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Verinotio.org
educação e ciências humanas
Ano I, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

w w w.v e r n o t i o . o r g
Verinotio
Coordenação Editorial
Ester Vaisman

Editores
Antônio José Lopes Alves, Vania Noeli Ferreira de Assunção, Antonio Rago Filho, Ester Vaisman, Lúcia Apareci-
da Valadares Sartório, Leonardo Gomes de Deus e Ronaldo Vielmi Fortes.

Conselho Editorial Conselho Consultivo:


Alex Ribeiro. Ana Selva Albinati (PUC-Minas).
Antonio José Romera Valverde (PUC-SP). André Stuchi de Almeida.
Basílio Senko Neto. André Trevisan.
Celso Frederico (USP). Danilo Amorim.
Christian Castillo (Universidade de Buenos Aires). Felipe Henrique Gonçalves da Silva.
João dos Reis Silva Júnior (UFSCar). Fernando Marineli
Leônidas Dias (Fumec-MG /Fabrai-MG). Gláucia Fornazari (PMSP).
Luis Esteban Domingues. Jacob Augusto Santos Portela (CUSC-RJ).
Márcia Kay (CUSC-SP). Leandro Candido de Souza.
Maria Aparecida de Paula Rago (PUC-SP). Maria de Annunciação Madureira (UEM).
Miguel Vedda (Universidade de Buenos Aires) Maria Luiza Oliveira Guimaro.
Mônica Hallak Martins Costa (PUC-Minas). Nanci Fonseca Gomes (UMESP).
Marco Vanzulli (Università degli studi di Milano-Bicocca). Rosana Batista Monteiro (UFSCar).
Nancy Romanelli (FASB e PMSBC). Roselaine Ripa.
Olga Marques Chorro. Sarah Basílio de Toledo.
Roberto Adrian Ribaric. Sandro Assencio.
Ronaldo Gaspar (FAD e Unicastelo). Sérgio Augusto Malacrida.
Sabina Maura Silva (FHA-MG), Thaís Lapa.
Susana Jimenez (UECE). Vladmir Luis da Silva.
Vittorio Morfino (Università degli studi di Milano-Bicocca). Wanderson Fabio Melo (FAMA).
Vera Lúcia Vieira (PUC-SP).
Zaira Rodrigues Vieira.

Revisores
Vânia Noeli Ferreira de Assunção, Leonardo Gomes de Deus, Leandro Candido de Souza, Marcos André Ferreira de Assunção e
Sandro Assencio.

Tradutores
Ronaldo Vielmi Fortes, Olga Marques Chorro, Leonardo Gomes de Deus

Editoração Eletrônica
Rodrigo Pereira Chagas
SUMÁRIO

EDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Ester Vaisman

ARTIGOS
MÚSICA E MÍMESES: UMA APROXIMAÇÃO CATEGORIAL
E HISTÓRICA AO PENSAMENTO MUSICAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Music and Mimesis: a categorial and historical approach to the musical thought
Ibaney Chasin
GRAMSCI SU VICO:
LA FILOSOFIA COME UNA FORMA DELLA POLITICA . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

Marco Vanzulli
J. CHASIN: A ONTONEGATIVIDADE
DA POLITICIDADE EM MARX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

Ana Selva Castelo Branco Albinati


J. CHASIN E DESCOBERTA DO ESTATUTO
ONTOLÓGICO NA OBRA DE MARX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Chasin and Discovery of the ontological statute of the Work of Marx
Antônio José Lopes Alves

Ediç ã o Es pe c ia l: J. Cha si n

5
PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO E A FORMA
EXPOSITIVA EM MARX – DUAS LEITURAS: LUKÁCS/CHASIN . . . . . . . . . . 45
Investigation procedures and explanation in Marx –Two readings: Lukács/Chasin
Ronaldo Vielmi Fortes
A FILOSOFIA DE JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI:
MARXISMO ADSTRINGIDO E ANALÍTICA PAULISTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
José Arthur Giannotti’s thinking adstringed marxism and the “uspian analytics”
Antonio Rago Filho
A CRÍTICA CHASINIANA À ANALÍTICA PAULISTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Chasin´s critique to the Sao Paulo School of Sociology
Vânia Noeli Ferreira de Assunção e Lúcia Ap. Valadares Sartório
J. CHASIN E A REALIDADE BRASILEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
J. Chasin and the Brasilian reality
Milney Chasin
J. CHASIN E A TESE DA “VIA COLONIAL” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Chasin and the thesis of “colonial path”
Sabina Maura Silva e Antônio José Lopes Alves
J. CHASIN: A CRÍTICA ONTOLÓGICA DO ANTICAPITALISMO
ROMÂNTICO TÍPICO DA "VIA COLONIAL". OS INTEGRALISMOS. . . . . . 45
J. Chasin: the ontological critique to the romantic anti-capitalism typical of the
“colonial via”. The integralisms.
Antonio Rago Filho

ENTREVISTA
DEZ ANOS SEM J. CHASIN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Entrevista concedida por Ester Vaisman e Antonio Rago Filhoa Vânia Noeli
F. Assunção e Lúcia Ap. Valadares Sartório

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TRADUÇÕES
SPIEGEL: ENTREVISTA AO FILÓSOFO LUKÁCS
Introdução (O futuro é possível: o testemunho final de Georg Lukács) . . . . . . . . . . . . 19
Tradução e Introdução de Rainer Patriota

RESENHAS
GEORG LUKÁCS: ETAPAS DE SEU PENSAMENTO ESTÉTICO . . . . . . . . . 375
de Nicolas Tertulian
Lúcia Ap. Valadares Sartório

DEPOIMENTOS

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 399

Ediç ã o Es pe c ia l: J. Cha si n

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educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

Editorial

A Verinotio – Revista on-line de Educação e Ciências Humanas é uma revista semestral


exclusivamente virtual e está filiada ao Grupo de Pesquisa Marxologia e Estudos Con-
fluentes da UFMG, vinculado ao Diretório de Grupos de Pesquisas do CNPq – Ref.:
UFMG. 0253. O propósito da Revista Verinotio é difundir produções teóricas e esta-
belecer intercâmbio entre grupos de pesquisas que atuem no campo do marxismo, do
humanismo e concepções filosóficas contracorrente – que desenvolvam críticas ao pen-
samento predominante e diluído nas diversas vertentes do liberalismo, do marxismo
vulgar, do anti-humanismo e do irracionalismo.
A nona edição da Revista Verinotio vem a público com um conjunto de artigos,
entrevista e correspondências que elucidam – nas possibilidades e nos limites de uma
revista - o perfil, o itinerário e a obra de J. Chasin. Edição especial que homenageia
os dez anos de sua morte, ocorrida em dezembro de 1998. Coletânea, cujo mérito,
reside em abordar aspectos diferenciados da evolução intelectual do autor, os temas
mais relevantes e sua importância, bem como os desafios e as dificuldades inerentes
a um intelectual que, da perspectiva marxiana, desde logo ousou criticar as proposi-
turas teóricas e organizacionais das esquerdas, como também, o leque ideal e prático
da direita, no âmbito nacional e internacional. Revista, deste modo, organizada em
torno de temáticas que, desde a juventude, ou balizaram e fizeram parte das preocu-
pações teóricas e da crítica aguda de J. Chasin, ou foram se constituindo, ao longo
de sua trajetória intelectual, em marco decisivo e inovador de sua ideação e de seus
objetivos. Seja como for, este número especial emerge com o propósito de resgatar
a memória, para o debate e a historiografia brasileira, do intelectual singular, forjado
no movimento de decifrar e compreender o caso brasileiro, não isoladamente, mas
e nas desejáveis articulações com a crítica que permite o entendimento da realidade
internacional. Movimento uníssono de uma subjetividade preocupada em responder
conscientemente às urgências e dilemas do estado de coisas atual. De modo que este
número se insere no movimento que quer a polêmica e não se furta à discussão e
ao debate, mas com uma única exigência: a da honestidade intelectual capaz de re-
conhecer identidades e desavenças solidamente argumentadas e no contraste do que

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Este r Vaisman

empiricamente é possível observar. Assim, esperamos evitar – no debate - o puro


subjetivismo de concepções arcaicas, muitas vezes amparadas na mera vontade das
velhas agremiações partidárias ou, ainda, daquelas advindas dos meios acadêmicos
cuja crença unilateral na vontade não é menor.
Comparecem, ainda, textos cuja orgânica se inspiram, embora mediatamente,
com os assuntos e/ou legados afins deixados por J. Chasin. É o caso do artigo sobre
Música e Mímeses, da entrevista de G. Lukács à revista Spiegel e da resenha do livro,
recém lançado no Brasil, de Nicolas Tertulian. Temas atados à esfera estética, de
Aristóteles a Lukács, cuja relevância dos autores examinados permite articular pon-
tes com o pensamento de Marx e, deste modo, endossam os objetivos deste número
especial. Já o artigo Gramsci sobre Vico se vincula ao propósito de explicitar a natureza
do pensamento político do mais influente marxista italiano do século passado cujo
debate, em nossos dias, é foco de polêmicas e disputas acerca de seu legado.
Cabe, ainda, algumas palavras sobre os artigos e sua unidade temática.
Os artigos de Ana Selva Albinati e Antonio José Lopes Alves, intitulados J.
Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx e J. Chasin e descoberta do estatuto ontológico
na obra de Marx, respectivamente, se imbricam mutuamente em seu tecido teórico.
Do primeiro, emerge a caracterização da crítica da política e do Estado formuladas
por Marx, vale dizer: a ontonegatividade da política, pois, Marx concebe (a política)
como predicado extrínseco ao ser social, isto é, como entificação presente e neces-
sária só e apenas no longo percurso da pré-história humana. Em termos diversos, a
política não é atributo eterno e natural ao ser social antes, pelo contrário, emerge dos
constrangimentos societários que impedem o auto-desenvolvimento dos indivíduos
e da sociabilidade. Assim, a crítica da política é caracterizada por J. Chasin como me-
tapolítica, ou seja, cabe à política e sua prática superar a própria política e o Estado.
Do segundo artigo, comparece a caracterização do estatuto ontológico em
Marx. A filosofia marxiana é compreendida na singularidade de crítica ontológica
do existente e, deste modo, a realidade é chamada a amparar a ideação configurada.
Diversamente, a crítica marxiana formulada ao estado atual de coisas tem o peso da
sensibilidade que limita e fornece as condições em que a ideação ganha feitio analíti-
co próprio. Assim, no e pelo contraste histórico Marx é levado a configurar a indivi-
dualidade socialmente posta, nos interstícios do homem ativo, de seus dilemas e das
perspectivas de se superar a barbárie como lepra da civilização, para usar uma expressão
marxiana consagrada. De modo que J. Chasin, redescobre em Marx, o homem ativo,
senhor de suas possibilidades, dono de potências infinitas.
Ainda sobre as conquistas teorias no plano filosófico, figura o artigo de Ronaldo
Vielmi Fortes, que representa esforço válido no sentido de identificar as possíveis

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Editorial

diferenças e identidades das reflexões sobre o caráter ontológico do pensamento de


Marx entre Lukács e Chasin. De fato, trata-se de tarefa inadiável, posta a necessidade
não só de evitar identificações que não respeitam a letra nem de um nem de outro,
mas também evitar a banalização de esforço intelectual de grande monta.
Quanto aos artigos voltados à realidade brasileira, a unidade é exemplar. Os tex-
tos de Antônio Rago (sobre Plínio Salgado) e Sabina Maura (Via Colonial) demons-
tram a preocupação central de J. Chasin por compreender a realidade brasileira nas
dimensões de sua formação ideal e histórica. Trata-se do encontro do pensamento
agrário de Salgado que, no hiper-atraso de nossa condição social (a Via Colonial),
emerge como possibilidade de fato, a sustentar um ideário radicalmente improgres-
sivo e insustentável. Também com a atenção voltada aos textos de J. Chasin que se
debruçaram sobre a “analítica paulista” – expressão por lê mesmo cunhada para
designar as derivações do “marxismo adstingido” – Vânia Noeli e Lúcia Valadares
empenharam-se de modo exitoso em, de um lado, caracterizar as linhas de inter-
pretação da realidade brasileira e latino-americana que se tornaram dominantes em
nosso meio acadêmico, mas com grande irradiação política, e a propositura crítica
que Chasin desenvolveu frente ao que ele mesmo denominou em artigo de 1989 de
“quadrúpede teórico”.
Por fim, algumas considerações sobre a entrevista.
Ao expor a memória de J. Chasin, a entrevista que ora se publica, nasce com
mérito preciso: evitar que a figura e o trabalho intelectual de J. Chasin se percam ou
se diluam no tempo. Tarefa difícil ainda mais em épocas onde tudo é relativizado,
tudo passa então, a ser subjetivamente sentido e visto. De modo que a entrevista
entremostra o perfil e o ideário de J. Chasin, sua formação e desenvolvimento e sua
atuação política. Um leque amplo produzindo imagens de um intelectual aguerrido
que sustentava suas teses e convicções até o fim. Não por teimosia, mas simplesmen-
te porque acreditava nas pessoas e nas suas potencialidades.

Ester Vaisman

Edi ç ão Esp e c i al : J. Cha si n

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educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

Música e Mímesis
Uma Aproximação Categorial e Histórica
ao Pensamento Musical
Ibaney Chasin*1

Resumo:
Este texto entende identificar como a música foi filosoficamente entendida e determinada
ao longo da história. Partindo-se de Aristóteles, num caminho que desemboca em Lukács,
constata-se que, em absoluta dominância, todo o pensamento a reconheceu como míme-
sis – mímesis dos afetos. Música não é linguagem, mas vida anímica exteriorizada, alma
humana sensificada.
Palavras-chave:
Música; Mímesis; Afetos; Aristóteles, Mei, Doni, Rousseau, Hegel, Lukács.

Music and Mimeses


A categorial and historical approach
to the musical thought
Abstract:
This text sets out how music was philosophically understood and determined throughout
history. Taking Aristotle as point of depart in a timeline that leads to Lukács, the most
influencial philosophers recognized music as mimesis – mimesis of affects. Music is not
language but animical exteriorized life, sensed human soul.
Keywords:
Music; Mimesis; Affects; Aristotle, Mei, Doni, Rousseau, Hegel, Lukács.

* Professor do Departamento de Música da UFPb.

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Ibane y Chasin

A meu pai,

Ele era um homem, e, pelo seu todo,


não mais verei ninguém igual a ele.
Hamlet

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

O tempo passado contém ensinamentos


que devem levar os seus frutos para o futuro.
A eloqüência dos fatos estaria perdida para nós?
Balzac, Fisiologia do Casamento

Este texto, breve, tem por télos marcar um reconhecimento teoricamente estru-
tural, a saber: a música, no curso da história, foi dominantemente compreendida e determinada
como esfera mimética. Música, afirmou categoricamente o pensamento filosófico, é mí-
mesis dos sentimentos, das paixões humanas. Efetivamente, o som musical carrega
em si a alma humana, ou mais rigorosamente, sensifica o sentir, de modo que a arte dos
sons, se esfera estética consubstanciada, não se atualiza ou pode se atualizar como
mera sonoridade, como som in sonu: se objetivação ôntica, é via das paixões, paixões
que pelos sons irrompem, se concretam, sensificam, se fazem arte, música.
No intento de substantificar, grosso modo, tal reconhecimento – sem o talante
desmedido de ir além de uma afiguração em silhueta –, tomamos a pena aristotélica,
que, ponto de partida, é, ato contínuo, conectada à letra de Girolamo Mei e Gio-
vanni Batista Doni; letras, a sua vez, que se ata às de Rousseau, Hegel e Lukács. As-
sim, de um arco teorético – categorial e historicamente – representativo, ou que de
Aristóteles desliza para Lukács – arco, histórico, entecido no interior de letra filosófi-
ca de substância induvidosa –, escava-se que o pensamento orientado à música assi-
nalou, sempre, sua ingênita dimensão mimética, posta e resposta no curso da reflexão
musical como categoria fundante desta arte. Assinalação que, reconhecimento categorial,
não pode então ser teoricamente descuidada: se de música se trata, de vida anímica
se trata. Vejamos, na brevidade que se impõe; logo, numa argumentação que mais
esboça do que funda, que antes pontualiza do que desdobra, necessariamente.

1. Aristóteles Mimético

Na longa palavra autocitada, inceptiva:


“A tematização do substrato mimético da vida e da arte alcança contornos matura-
dos e iniludíveis na filosofia grega. Sinal vigoroso e terminante desta orientação
era a posição ocupada por este complexo categorial nas páginas aristotélicas. A
mimese aí surgia como a mediação incontornável dos modos de relação e adequa-
ção do homem com o mundo exterior, como forma de apreensão e domínio do
real concreto. Nos termos concisos de Lukács: “Os gregos não tinham dúvidas
de que toda a relação humana com a realidade – tanto a científica quanto a artís-
tica – se fundava numa refiguração da natureza objetiva de tal realidade.” [Estetica,
Barcelona, Grijalbo, 1982, v.4, p. 8.]. Na Poética, a determinação do ato imitativo
enquanto categoria humana imanente é esboçada no interior de uma argumentação

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Ibane y Chasin

que significativamente quer desvelar também a origem da poesia. Deste ponto de


fuga, o pensador grego fazia emergir e estabelecia a imanente e multíplice facul-
dade imitativa do homem, como, outrossim, a natureza mimética da poesia. Na
mesma Poética assim concebia e determinava:

À poesia parece dever sua origem, em geral, a duas causas, ambas naturais. O imi-
tar é conatural ao homem, e nele se manifesta desde sua infância – o homem se
diferencia precisamente dos outros animais pois é muito mais apto para a imitação
e é por seu intermédio que adquire seus primeiros conhecimentos; em segundo
lugar, todos os homens se comprazem no imitado.’ [Poetica, 4, 1448 a/1448 b.].
Logo,
‘Sendo o instinto de imitação próprio à nossa natureza, da mesma forma como a
harmonia e o ritmo, pois é evidente que os metros não são mais que partes do rit-
mo, os que ao princípio estavam mais dotados para tais coisas – firma Aristóteles
– pouco a pouco deram origem, através de suas improvisações, à poesia.’ [Ibid]”.1
Radicado este suposto determinativo ontológico – a mímesis arma e sustenta
vida cotidiana e arte, funda e alenta a atividade humana e o fazer artístico2 –, a cate-
goria da imitação teria de surgir, como de fato ocorre, enquanto ser e fazer fundantes
da esfera musical. Se o homem aprende in imitatione, se ele se forja in communitate, se o
indivíduo se engendra a si no e pelo gênero – se a “vida individual e a vida genérica
do homem não são diversas, por mais que também – e isto necessariamente – o modo
de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais universal da vida
genérica”3 –, a música, em Aristóteles, não poderia não irromper como mímesis,
como ato nascido da relação entre o artista e a vida humana, que o alenta de si. Na
Política assim considera, em reconhecimento categorial:
Nos ritmos e melodias, sobretudo, estão as mimeses mais próximas da natureza
real da cólera, da doçura, e também da coragem e da temperança, e de todos os
seus contrários, e de outras qualidades morais. Isto os fatos mostram claramente:
ao ouvir tais mimeses, a alma muda de estado. E o hábito de se sentir dor ou
alegria por tais similitudes está muito próximo daquilo que se sente em face da
realidade.4

1. Ibaney Chasin, O Canto dos Afetos, São Paulo, Perspectiva, 2004, p. 51.
2. Na palavra aristotélica, que concreta a determinação: “A epopéia e o poema trágico, assim como a comédia,
a poesia ditirâmbica e grande parte da música de flauta e de cítara são, de um modo geral, imitações/.../ Pois,
assim como uns – seja pela arte, seja pelo hábito ou costume – imitam muitas coisas por meio das cores e do
desenho, cujas imagens nos reproduzem, e outros imitam por meio da voz, igualmente ocorre com as artes
mencionadas: todas realizam sua imitação por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia [música], combi-
nados ou não entre si.” [Poetica, I, 1447 a, tradução de Francisco Samaranch, in Obras, 2.ed. Madrid, Aguilar,
1973, p. 77.].
3. Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos, tradução Jesus Ranieri, São Paulo, Boitempo, 2004,
p. 107.
4. Aristotes, Politique, VIII, 5, 1340 a, tradução de Jean Aubonnet, Les Belles Lettres, Paris, 1989.

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

Ou ainda,
as peças de música, pelo contrário, contém atualmente em si mesmas imitações de ca-
racteres, e isto é evidente, pois que na própria natureza das simples melodias há
diferenças [recíprocas], de modo que ao ouvi-las as pessoas sentem-se afetadas
de diferentes maneiras, e não têm os mesmos sentimentos em relação a cada
uma delas; escutam, umas, com um espírito lamurioso e mais retraído, como,
por exemplo, o modo chamado mixolídio; outras, num estado suave e brando da
mente, como são as melodias livres; outras num estado de equilíbrio e da maior
serenidade, como parece que, entre todas, alcançam somente as do modo dórico;
enquanto que o modo frígio infunde entusiasmo aos homens. Estas coisas, com
efeito, foram bem determinadas pelos que estudaram esta forma de educação, já
que eles extraíram a evidência de suas teorias dos fatos atuais da experiência.5
Aristóteles é translúcido e categórico: música é um ato mimético; mais especifi-
camente, é expressão da vida afetiva, é interioridade que se exterioriza, subjetividade
que sente, mímesis do anímico. Ritmos e melodias – afloração do interno – sensifi-
cam sentimentos, o que se experiencia e comprova praticamente: “ao ouvir tais mime-
ses, a alma muda de estado” – acompanha e reproduz animicamente o mélos que ouve, que
sente. Em termos que desdobram, modo (musical) e sentimento se atam intrinsecamen-
te: aquele é via deste, de sua objetivação. Ao argumentar sobre o canto na tragédia
antiga, Doni toma e cita o filósofo grego, com o que entremostra tanto a orgânica
da música grega, quanto o jaez – mimético – da reflexão musical aristotélica; assim
elabora, extensamente:
Sabe-se que o ofício dos coristas era muito diverso dos histriões ou atores cênicos.
E ao se mostrar que havia diferença entre a melodia daqueles e destes, acredito
que facilmente se concluirá que não apenas os coristas cantavam, mas também os
atores. Aristóteles, na seção das questões musicais propõe, entre outros, este Pro-
blema: porque os coros da tragédia não cantam no modo hipodórico ou hipofrígio;
e então responde [numa passagem que Doni cita no original grego e traduz na
seqüência]: “Talvez porque estas duas harmonias, ou modos, não possuam uma
melodia flébil, calma, patética, tão necessárias ao coro. Pois a hipofrígia possui
um caráter ou maneira ativa, e por isso em Gerione a abertura e o desarmamento
foram nela modulados. Mas a hipodórica tem o caráter magnífico, constante, por
isso, entre todas as harmonias, é a mais adequada à música dos citaredos, isto é,
às cantilenas acompanhadas pela cítara e lira. Música que por suas qualidades é
desproporcional ao coro, logo, conveniente aos atores cênicos, que representam
os heróis, viventes só entre os antigos e príncipes. Isto é, o povo é constituído de
homens comuns, pelos quais é composto o coro. Assim, a este convém um caráter
e canto flébil e brando, características propriamente humanas, e que se encontram
em outras harmonias, com exceção da hipofrígia, furiosa e báquica. Mas principal-
mente a mixolídia possui aquelas propriedades [humanas], e por ela se exprimem
os afetos passivos, sendo as pessoas débeis mais sofridas do que as fortes. Então,
5. Aristoteles, Politica, VIII, 5, 1340 b, in Obras, op. cit. (Grifo nosso).

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Ibane y Chasin

esta convém aos coros, dado que a hipofrígia e hipodórica exprimem um caráter
ativo, impróprio ao coro, que é um curador ocioso, pois não oferece outro obsé-
quio a quem lhe assiste do que a simples benevolência.6
A letra do Trattato se urde em diafaneidade: a modalidade, pontualiza
Doni-Aristóteles, são modos humanos de sentir – vale dizer, o modo grego é, in essentia,
um modus afetivo. Então, amantar o coro com uma intemperada – dramática – har-
monia hipofrígia, coro este que é constituído por “homens comuns”, cuja natureza,
não heróica, não báquica, é, antes, comedida – não terminante, mas tendencialmente
prudente, não vocalmente aguda, mas complacente, talhada verossimelmente em
medianidade –, implicaria em impropriedade musical, rigorosamente porque generan-
te de uma impropriedade anímica. Posto distintamente, o mixolídio, sustenta o Trattato,
por suas propriedades humano-sonoras intrínsecas é mais próximo ao ânimo do coro, o que
significa, categorialmente, que um modo musical é ou expressa um pulso anímico espe-
cífico, que diz respeito e se ata à vida interior, aos batimentos do espírito. Lógica ou
ser-assim dos modos que lhes projeta artisticamente para muito além da sonoridade
enquanto sonoridade, do som enquanto entidade físico-acústica, enquanto abstrata
beleza sonora: o som modal é expressão, atualização – concretamente, é esfera afeti-
va, mímesis, música. Na palavra que arremata, pois mais aqui não se pode: na pena
aristotélica, a esfera musical é mímesis da alma, vale dizer, alma que sente, e isto na
ôntica medida em que nos ritmos e melodias, sobretudo, estão as mimeses mais próximas da
natureza real das paixões. Disto Aristóteles não tinha dúvidas, porque os fatos isto nos
mostra efetivamente, pois objetivamente.

2. Algumas reflexões renascentistas sobre a música

O século XVI, século de sínteses históricas, desaguadouro maturado daquilo que


o revoluteante ventre renascentista “italiano” quatrocentista gestara e concebera
socialmente, não menos substanciou em seara musical. Teoria e prática musicais
quinhentistas remataram tendências e perspectivas paridas de um fluxo humano que
os tempos de Poliziano, sem dúvida, sintomatizavam. Prenúncio de uma arte sono-
ra timbrada pela expressividade, música que Claudio Monteverdi, nascido em 1567,
conduziria à máxima realização compositiva do tempo. Nesse sentido, o universal
reconhecimento teorético renascentista de que a música coeva, assim como a grega,
plasmavam-se a partir e no interior da esfera dos sentimentos, corroborava, no cam-
po estético-musical, as sínteses ou consubstancializações históricas parturidas, conquan-
to tal reconhecimento genericamente compartilhado pela teoria musical fosse urdi-
do na distinção das argumentações, disposições e ênfases. Girolamo Mei e Giovanni
6. Giovanni Batista Doni, Trattato della Musica Scenica, Cap. II, in O canto dos Afetos, op. cit., p. 93.

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

Batista Doni, centrais nas formulações teórico-musicais tardo-renascentistas, são


nomes cujas reflexões destilam teses e posturas que estão definitivamente inscritas no
pensamento renascentista. Colhamo-las, minimamente, com o que se esboça, e não
mais do que isso, o pulso teórico-musical destes pensadores e de seu momento.

Ao estudar a música grega, Mei, filósofo e filólogo – para quem a “Poética [aris-
totélica] se constituiu no fundamento de sua estética musical”7 –, elabora uma re-
flexão sobre a música de talhe ôntico.8 Referido mais concretamente, ao tomar em
exame a música dos antigos, ou melhor, e não poderia ser diverso, a teoria musical
concernente – seu objeto musical por excelência,9 Mei – bem como Doni, igual e
posteriormente –, enforma um ideário cuja universalidade deve ser aqui sublinhada-
mente radicada. Por seus estudos, longos e exaustivos, Mei tange e evidencia cate-
gorias acrônicas da música, porquanto alcança e reconhece atributos fundantes do
ser-precisamente-assim musical. Atributos que, gregos, são analogamente renascentistas
ou contemporâneos. Tomemos a questão, in brevi manu.
7. Claude Palisca, Girolamo Mei (1519-1594): Letters on Ancient and Modern Music to Vincenzo Galilei and Gio-
vanni Bardi. 2.ed. rev, [s.l.], American Institute of Musicology, 1977, p.35.
8. Ainda da palavra de Palisca, quatro pontuações sobre este florentino, esclarecedoras e relevantes: “Mei pre-
tendia reconstituir toda a substância da teoria [musical] grega a partir da estrutura da prática antiga. Esta teoria
era para ele a matéria-prima da história, e não, como para muitos de seus predecessores, uma doutrina universal
a ser ditada para os músicos de todas as épocas.” [Palisca, op. cit., p. 35.]; e ainda, “/.../com o trabalho de Mei
encontramos pela primeira vez uma pesquisa histórica pura no campo da música. Não só por sua objetividade,
mas ainda por seu alcance exaustivo, a investigação de Mei sobre a música grega supera toda e qualquer tenta-
tiva anterior neste campo.” [Ibid.]; Nesse sentido, “O centro da música grega, mais do que as racionalizações
para uma prática moderna, era o objeto das investigações de Mei. Ele começou por reconstruir desapaixona-
damente a história da música grega. E somente buscou constituir uma moral para seu próprio tempo quando
se fez seguro de que possuía um corpo de verdades constatáveis. Ele não era um músico e não compartia
dos prejuízos dos teóricos musicais de sua época, o que provavelmente foi uma de suas maiores vantagens,
pois o salvou de cair nos erros de seus contemporâneos. Mas Mei tinha uma vantagem ainda maior: era o
único filólogo e historiador treinado dentre os que buscavam os segredos da música grega.” [Ibid, p. 2]. Em
suma, “Como filólogo e acadêmico participara, em Florença, de muitos dos mais significativos trabalhos dos
humanistas tardios - perspicazes críticas textuais, estudos sobre prosódia grega e latina, a edição dos textos de
Aristóteles, pesquisas sobre a história local e política, e a preparação das edições definitivas das peças gregas.
Dessa experiência Mei extraiu para o pensamento musical um complexo de atitudes completamente novo.”
[Ibid, p. 80.]. Sobre vida e obra de Mei, Doni e Galilei, cf. O Canto dos Afetos, op. cit.
9. Da música grega, nada restou, efetivamente. Significa que o estudo desta arte circunscrevia-se, e se circuns-
creve, ao campo teorético, incontornavelmente. Na palavra que conjectura: quanto aos gregos, “vários indícios
induzem a pensar que até o século IV a.C. não estava posta a exigência de se escrever a música: o caráter
substancialmente repetitivo da melodia, que mesmo nas possíveis variações se adequava a figuras melódicas
tradicionais, e o ensino “aural” do canto e da prática instrumental /.../ Um outro argumento ex silentio pode
confirmar a hipótese de que a música grega arcaica e clássica nunca tenha sido escrita: a tradição manuscrita
dos poetas gregos, que remonta em grande parte às edições dos gramáticos alexandrinos, não conservou
nenhum texto com notação musical. Se na época helenística os editores tivessem tido a possibilidade de trans-
crever, ao lado dos textos literários, também as relativas linhas melódicas, certamente não teriam transcurado
este elemento essencial da poesia.” (Giovanni Comotti, La musica nella cultura greca e romana, Torino, Edizioni
di Torino, 1991, p. 9.).

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Ibane y Chasin

1.
De uma carta de 1572, de Mei a Vincenzo Galilei, extrai-se a seguinte assertiva,
que, teoricamente estrutural, surge logo ao início:
Tive a convicção que todo o coro cantasse uma mesma ária [melodia] ao notar que
a música dos antigos era tomada como valoroso meio de comover os afetos, o que se
encontra em muitas observações narradas pelos escritores [da antiguidade].10
Mais à frente, em proposição roborante, de nítido jaez aristotélico, considerava
ao destinatário, analogamente: o objetivo da música grega era “conduzir outrem,
através deste prazer auditivo, à mesma afeição que guarda em si.”11 Posto de chofre, para
Mei, a música dos gregos é mímesis dos afetos: o canto, a melodia, nada mais fazem
do que manifestar a interioridade. E assim a música opera porque a comoção que me
invade, movendo-me afetivamente, é posta por uma invasão melódica, que mudando o
sentir d’alma é, pois, seu revérbero, sua objetivação anímica in sonu. Ao refletir sobre
a modalidade grega, Mei atualiza o reconhecimento de Aristóteles de que a sonori-
dade modal é um modus anímico, de que é expressão das paixões, do universo afetivo,
universo que o mélos, por sua agudez, gravidade e mediania, manifesta, exterioriza, con-
creta; a Galilei refere, in mímesis:
É coisa igualmente sabida que, dos tons [= modos], os da mediania - que estão
entre a extrema agudez e a extrema gravidade - são aptos a demonstrar calma e
moderada disposição de afeto; os muito agudos são de alma muito comovida e
exaltada, e os muito graves expressam pensamentos tanto abjetos quanto íntimos.
Da mesma forma que um número mediano entre a velocidade e a lentidão revela
ânimo pousado, e a velocidade, concitado; a tardança, espírito lento e mandrião.
E é claro que, em conjunto, todas essas qualidades da harmonia [= sonoridade
melódica] e do número hão de mover [na alma de outrem], por suas naturais fa-
culdades, aquelas afeições semelhantes a si próprias.12
A segunda carta de Mei a Galilei, conquanto tematicamente menos filosófica,
confirma os assertos mimético-catárticos da primeira. Consentâneo, assim, tomar-
lhe um momento, que, sucinto e claro, ata música e imitação, tomadia pela qual se
desdobra e avigora a sustentação teorética da natureza mimética do pensamento
musical meiano. Na carta de 1577 – que com a de 1572 e mais outras três compõe
o conjunto de epístolas com o qual o filósofo florentino responde às questões que
lhe foram postas por Vincenzo sobre a lógica da música grega, epistolário musical
que enforma determinações teórico-musicais categorialmente fundantes, assinale-se
–, lê Galilei a determinado passo, assertivo: “a virtude da música [grega] consistia
em fazer da melodia expressão adequada daquele afeto que, com as palavras, se queria
10. G. Mei, Carta de 1572 a Vincenzo Galilei, in o Canto dos Afetos, op. cit. p. 12. (Grifo nosso).
11. Ibid, p. 25. (Grifo nosso).
12. Mei, Carta de 1572 a V. Galilei, in O Cato dos Afetos, op. cit., p. 14. (Grifo nosso).

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

manifestar”.13 Ora, a pena epistolar, esteticamente roborante, é o reconhecimento de


que a melodia – o evoluir de uma voz que faz actus sua imanente potentia expressiva
– existe como expressione, isto é, como affectus. Significa que o ato musical se positiva,
escava-se de Mei, enquanto tecido mimético, tecido que, canto, se urde in mímesis.
Numa palavra, que prenuncia proposições venturas: na letra meiana, aquilo que en-
gendra a arte sonora não é o som, mas a expressão – imanente – do som, expressão
que parture música – som ad hominem. Prossigamos com Doni, cujo caminho reflexivo
é completação argumentativa, que esclarece, ato contínuo, sobre a esboçada lógica
da letra de Mei.
2.
Como Girolamo, a reflexão musical de Doni, aqui aduzida em ingenerosa exem-
plificação, é reconhecimento da categoria da mímesis enquanto categoria musical
basilar.14 No Trattato della Musica Scenica, onde reflete detidamente sobre o problema
da presença e lugar da música na tragédia grega, como também acerca do nascediço
canto cênico coetâneo, pontualiza, em talhe de natureza ontológica:
Os afetos veementes são potentes incentivos à música, e quando representados em cena se requer
maximamente a melodia. O que pode ser reconhecido na medida em que ao elevar-
mos naturalmente a voz – como ocorre nos lamentos, ameaças, júbilos, e outras
paixões humanas – nos avizinhamos do canto; não sendo este mais do que uma
variação de tom, feita ao se soltar a voz com um maior esforço das artérias através
de diversos intervalos harmônicos e prolongamentos das vogais. É por isso que
se pode observar que os oradores, comumente nas comiserações de seus epílo-
gos, costumam alterar muito a voz, aproximando-se assim das cantilenas. Nesse
sentido, Teofrasto demonstrou claramente em seus livros de música que de três
tipos de afetos (aos quais os outros se reduzem) a música deriva sua origem: da alegria,
tristeza e entusiasmo, isto é, furor divino – entendido também enquanto ímpeto
13. Mei, Carta de 1577 a V. Galilei, in Girolamo Mei (1519-1594): Letters on Ancient and Modern Music, op. cit., p.
132. (Grifo nosso).
14. Sobre Doni, uma passagem que traceja um perfil e uma perspectiva: “As linhas iniciais do sucinto comen-
tário que o abade Passeri estampa no Appendice do Trattato entremostra a dimensão de seu autor e obra, isto é,
pontua em termos gerais a importância histórica dos estudos donianos, e marca a relevância, em particular, de
suas reflexões no campo da música cênica. Avalia o abade de Pesero: ‘A música cênica, quando se observa o
modo como os antigos a manejaram, é a parte mais difícil de tal faculdade. Nos escritos, apenas traços redu-
zidos e esparsos foram conservados, reclamando o trabalho de uma grande inteligência que, apta a cavar sua
orgânica, juntasse à vasta erudição necessária para pesquisas desta natureza, uma franca capacidade na língua
grega e grande perícia em música, o que raramente ocorre. Tais requisitos integraram o imortal Gio. Batista
Doni.’ Imortal, talvez, mais do que por qualquer outro fato ou razão porquanto reconhecesse e destacasse
teoricamente o vívido fundamento humano da música grega - o que Passeri parece ter compreendido, pois
no Prefácio da Lyra Barberina refere precisamente que a música ‘deve secundar [a natureza ] na expressão das
paixões, para onde, principalmente, se voltou o doutíssimo Doni com seus ensinamentos. Notou Aristóteles
que nos ritmos existem as imagens da ira, do amor, da dor, e da docilidade. Eis então a música obrigada a se
orientar pela filosofia acerca da índole e modo de proceder de cada uma destas comoções. Quem fizer diversa-
mente poderá cantar bem, mas nunca moverá a alma’”. [Ibaney Chasin, O Canto dos Afetos, op. cit., pp. 6-7.].

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Ibane y Chasin

generoso. Por isso então se deve adotar a melodia onde afetos símiles são expressos.15
E em letra contígua:
De outro lado, o canto cênico sem o condimento do falar patético resulta, como
hoje se vê, friíssimo e pouco grato ao ouvido, pois lhe falta aquele incentivo que
dá alma à melodia, que fertiliza, como sal fecundo, o terreno, preenchendo a imagi-
nativa do compositor.16
A reflexão é induvidosa: a música, grega ou não, se consubstancia em sua condi-
ção de fundo, objetiva-se em proficuidade artística, positiva a potentia de sua vocação
mais íntima, se atualização anímica. O canto, firma Doni, é parido por necessidades
anímicas, para a expressão intensificada, concreta dos sentimentos. Sua irrupção, este
é o elemento de fundo, supõe e implica vida afetiva, que então se sensifica. Significa
que o ato cantado é, geneticamente, um ato in mímesis: uma melodia é alma objetivada
in affectu. De sorte que, pondera o filósofo sobre o teatro grego, se “/.../um ator
fala movido por algum afeto – como nas deplorações feitas no final das tragédias,
tenho por certo que estas fossem cantadas”.17 “Nas Troadas de Eurípides [– exempli-
fica –] onde Cassandra, depois de ter proferido vários iambos contínuos prossegue
o discurso com aqueles dezoito trocaicos, sem dúvida que aí se dava o início do
cântico. E para mencionar um caso latino, no Ippolito, de Sêneca, aqueles trocaicos
proferidos por Teseo – Pallidi fauces Averni, certamente eram cantados”.18 Para Doni,
enfim, escave-se em arremate de sua letra categorial, a melodia tem lugar e senso se
sentimentos têm lugar, ser-assim anímico da música que a faz música, lógica miméti-
ca reconhecida que funda sua reflexão, armando ser e dever-ser musicais de sua pena
teorética.
3.
Delineado este sucinto universo teorético, que se constituiu, rigorosamente, na
e pela palavra textual, necessário evidenciar o esteio ou fundamento que permitiu a
Aristóteles, Mei e Doni sustentarem a relação música-mímesis dos afetos. Movimen-
to que ao nitidizar a razão-de-ser e pertinência desta atação, expõe o pulso ôntico do
pensamento musical examinado.
Na carta de 1572, Mei assim considera:
visto que a música que concerne ao canto gravita em torno das qualidades da voz,
e nisto, especialmente, em ser aguda, média ou grave, pareceu-me que deveria ser
15. Doni, Trattato della Musica Scenica, V, in O Canto dos Afetos, op. cit., pp. 75-76. (Grifo nosso).
16. Ibid, p. 76.
17. Ibid, IV, in Lyra Barberina, A. Gori & G. Passeri (org.). Fac-similar da edição florentina de 1763. Bologna,
Forni, 1974, vol. II, p. 10.
18. Ibid.

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

primordial que a virtude desta arte repousasse seu principal fundamento necessa-
riamente nestas disposições. E, ademais, não havendo semelhança entre cada uma
destas paixões da voz [grave, média, aguda], seria irrazoável que tivessem as mesmas
faculdades. De fato, por serem contrárias entre si – nascidas de disposições [hu-
manas e sonoras] contrárias, ocorria, necessariamente, que tivessem propriedades
contrárias, as quais, por sua vez, tinham força para produzir reciprocamente efei-
tos contrários. Visto que a voz foi concedida pela natureza aos seres animados,
e ao homem, em particular, para a significação de seus próprios conceitos, era
efetivamente racionável que estas suas qualidades diversas – fundamentalmente
divergentes umas das outras – fossem adequadas, cada uma por si e distintamente,
para expressar afeições determinadas.19
Ora, o que nesta passagem Mei refere a seu interlocutor epistolar – e este reco-
nhecimento é musicalmente fundamental – é que a voz expressa, de per si, paixão huma-
na. Sentimentos que se manifestam ou são paridos pelo movimento ou modulação
da voz na exata medida em que esta, ou seus diferentes registros – agudo, médio e grave
– atualizam a interioridade, externam aquilo que se sente. Voz é anímica: seus registros
são regiões anímicas, ou mais rigorosamente, aqueles as transparecem, sensificam.
Em termos distintos,
A voz foi especialmente dada ao homem pela natureza não apenas para que ele
manifestasse através de seu simples som, como fazem os animais despossuídos
da razão, o prazer e a dor, mas para, na conjuminância com o falar significante,
exprimir adequadamente os conceitos da sua alma.20
Vale dizer, a voz, que é sonoridade, é, geneticamente, afetividade exteriorizada,
porquanto sonoridade que naturalmente se efetiva enquanto expressione. Ou ainda,
a voz se atualiza como instrumento, “/.../concedido ao homem com suas inúmeras
qualidades especialmente para a perfeita expressão de seus conceitos e afetos”,21 isto
é, como mediação da fala, de um lado, e, essencialmente – primariamente, enquanto
expressão, mímesis, via das paixões sentidas. Na consentânea letra aristotélica, ôntica:
“Os sons da voz são reflexos das afecções da alma”.22
Num fugaz desdobro em campo aristotélico, que importa tecer. Na Retórica,
no espaço voltado a problemas estilísticos, surge, logo ao início [III, 1, 1403 b], a
seguinte determinação, que denota o caráter ou natureza do ato vocal, o em-si onto-
imanente da voz; considera Aristóteles:
A recitação concerne à voz e ao modo pelo qual esta deve ser usada para exprimir
cada uma das emoções – quando, por exemplo, deve ser forte, quando fraca, quando
19. Mei, Carta de 1572 a Galilei, op. cit., p.13. (Grifo nosso).
20. Ibid, pp. 31-32.
21. Ibid, p. 33.
22. Aristote, Organon, De L’Interprétation, I, 16 a, tradução de J. Tricot, Paris, Libraire Philosophique, 1994,
p. 77. (Grifo nosso).

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média, e ao modo pelo qual a voz deve se servir dos tons – agudo, grave e médio, e quais
ritmos devem ser usados em cada caso.23
Posto sem mais: a letra filosófica reconhece a ingênita e fundante dinâmica ex-
pressiva da voz. A recitação, esboça a Retórica – recitação, marque-se, que é voz na
objetivação mais concreta de seus atributos, de sua orgânica, porque voz é sonoridade hu-
mana –, é voz “usada”, realizada, para exprimir emoções. Voz, portanto, que na ação
recitativa – que é ação de expressividade – positiva-se como tal. Em palavra análoga,
em Aristóteles, a objetivação do anímico encontra meio nos e pelos movimentos vocais
do dizer, pelas modulações da voz, que torneiam a palavra. Em argumento concreto: as
inflexões, na fala, que trazem a voz do agudo para o grave, empurram-na do grave para
o agudo, a deslocam do medial para o agudo ou grave, etc., sensificam pulsos afetivos,
pois a voz ao ser – ao modular, inflectir, acompanhar, secundar (sonoramente) o dito
– imediatamente os atualiza, isto é, exprime “cada uma das emoções”, o que se atina,
pontue-se, pela vivência cotidiana imediata. Ser-assim da voz que então destila, in
limine, sua natureza, mimética: sons – inarticulados – que, vindos do interno humano,
assim manifestam sua vida afetiva. Na letra hegeliana, sintetizadora:
a voz, como já indiquei, é o próprio ressoar da subjetividade total, que também chega a
representações e palavras, e encontra na própria voz e no canto o órgão adequado
quando quer exteriorizar e perceber o mundo interior de suas representações
como penetradas pela concentração interior do sentimento.24
Em termos análogos,
Mesmo fora da arte, o som, como interjeição, como grito de dor, suspiro ou riso,
constitui a expressão imediata e mais viva dos estados de alma e dos sentimentos, aquilo que
eu chamaria os oh! e os ah! da alma. Estamos em presença de uma objetivação da
alma por e para si mesma25.
Determinação esta que implica e significa a existência de uma atação indelével –
porque real – entre voz e interioridade, entre modulação vocal e estado da alma. Ata-
ção que, realidade sensível, não poderia escapar a ideários que propendiam à objetividade.
O Trattato, nesse sentido, substantifica uma reflexão que, por sua clareza, deve
ser exposta. Reflexão em cujo coração determinativo pulsa veemente a relação voz-
vida anímica, de sorte que pela condução da palavra doniana corrobora-se o expos-
to, que se nitidiza. Movimento que finaliza a argumentação em curso.
Os registros vocais, afirma Doni, dão concretitude à interioridade que sente, isto
é, da voz, dispõe o Trattato della Musica Scenica, escorrem batimentos afetivos sentidos: pela
modulação daquele que fala, prorrompe, no ato do dizer, seu sentir. Em propositura
23. Aristotele, Retorica, tradução de Marco Dorati, Milano, Oscar Mandadori,1996, p. 297. (Grifo nosso).
24. Hegel, Cursos de Estética, São Paulo, Edusp, 2002, vol. III, p. 337.
25. Hegel, Esthétique, France, Flammarion, 1979, vol. 3, p. 335.

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

escavada, para este pensador florentino, voz é subjetividade in affectu, o que sua letra
plasma em argumento ôntico, irrefutável; assim elabora, reconhecendo e pontuali-
zando uma imbricação real, concreta:
considere-se, na mesma pessoa, a variação de entoação. Pois um homem que fala em
seu tom natural – sem forçar a voz num tom agudo (que chamamos quilio), ou num grave (que
não tem nome) – demonstra uma postura pousada, calma, constante, um ânimo verdadeira-
mente estóico, que não se deixa comover por nenhuma paixão. Por isso, e prudentemente,
é que os gregos destinaram a este tom (que nós chamamos de corista) o modo
dórico, que possui algo de melancólico e grave. Precisamente por isso era natural,
e mais estimado pelos dóricos do que por qualquer outra nação grega. Dóricos
cuja nação era a mais numerosa, como a mais grave e de hábitos mais severos e
incorruptos. De sorte que a este tom convém, dentre as três espécies de melodia
[aguda, média, grave], aquela do meio, que chamavam de Hesychastica,26 isto é,
instauradora de calma e tranqüilidade. Mas, se este mesmo homem falar em um tom mais
esforçado e intenso, demonstrará veemência de afeto tanto na tristeza quanto na alegria, com
aquela diferença acima referida. Por isso é que tanto o modo frígio – destinado
a exprimir o furor divino, o desdém, o ardor militar, quanto o lídio – apropriado
à alegria, ao júbilo, festas e bailes, eram cantados pelos coristas num tom mais
agudo e intenso. E por outro lado ainda, se a mesma pessoa usar de um tom de voz mais
grave do que o seu natural, exprimirá certo cansaço, fraqueza, langor, e, entre os afetos, preguiça,
temor, uma tristeza fria e dolente, mas não concitada e desesperada. Em tom quedo, porém,
cantava-se o modo ou harmonia hipolídia, criticada por Sócrates e depois por
Platão (que a chamava de lídia, como de costume naquele tempo), pois não era
usada senão para exprimir um comportamento languente vezeiro, ou um prazer
exagerado, por inebriamento ou congêneres.27
No pulso determinativo nascido do ventre doniano, e sem mais: voz, alma in
sonu.
4.
E se assim o é – e então se pode atinar com a razão de fundo do reconhecimento
da dimensão mimética da música sustentada por Aristóteles, Mei e Doni –, a músi-
ca que é canto – canto que nada mais é do que voz in melodia –, é, incontornavelmente,
mímesis das paixões. Em desdobramento que entende nitidizar. Canto: dizer onde a
voz se fez predominante, onde irrompe materialmente em predomínio e proeminência; canto
é voz que envolve e entranha a palavra de si, amantando-a pois, melodiando-a. De
sorte que o canto é uma objetivação mimética: ontologicamente, radical expressão
dos afetos. Na letra que substancia. O canto se distingue da fala, in limine, na medida
em que naquele a voz – os sons inarticulados – consubstancia-se ampliada, medrada,
tipificada em sua orgânica, a tal ponto que, feita melodia, assume prevalência auditi-
va sobre o dito. No canto a voz se universaliza, fazendo-se mélos, que subsume a si a
26. O índice onomástico do Trattato traduz por hesychastica o termo grego ήσυχαςιχή.
27. Doni, Trattato della Musica Scenica, XIV, in O Canto dos Afetos, op. cit., pp. 80-81. (Grifo nosso).

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palavra, impondo-lhe uma carga emotiva que lhe seria desconhecida sem esta voz
dominante, sem este mélos, que então plasma o dito in affectu, que necessariamente se
faz prevalente frente à palavra, porque esta foi invadida pela melodia, tomada pela vo-
calidade. Numa propositura categorial, da qual se escava ser o canto voz que estendeu-se
a si, que determinou-se em seu ser-precisamente-assim – em suas curvas, inflexões, modu-
lações, pelas quais se atualiza:
alguém surpreendido por excessiva alegria, oprimido por uma grande dor, ou
tomado por uma ímpeto extraordinário ou furioso, facilmente costuma alterar e
curvar a voz de tal modo que se reconhece um princípio de canto.28
Significa, portanto, que o canto supõe e implica, em relação à fala cotidiana, uma
reordenação estrutural das formas de relação entre palavra e voz no sentido de uma
intensificação ou concreção desta. Reordenação pela qual, rigorosamente, a melodia
é parida. Na retomada de uma assertiva (nota 16),
ao elevarmos naturalmente a voz – como ocorre nos lamentos, ameaças, júbilos, e
outras paixões humanas – nos avizinhamos do canto; não sendo este mais do que uma
variação de tom, feita ao se soltar a voz com um maior esforço das artérias através de diversos
intervalos harmônicos e prolongamentos das vogais. É por isso que se pode observar que
os oradores, comumente nas comiserações de seus epílogos, costumam alterar
muito a voz, aproximando-se assim das cantilenas.
Em outros termos, que sintetizam:
Entre os homens se pode distinguir três modos de falar. O primeiro, e mais sim-
ples, é o que usamos quando falamos familiarmente uns com os outros, ou mes-
mo quando se fala em público à maneira de predicantes e oradores. O segundo é
aquele dos poemas, recitados um tom um tanto alterado, e que se avizinha mais
do verdadeiro canto. E o terceiro é o das cantilenas, onde expressamente aparece
maior alteração de tom e de intervalos29,
isto é, onde a voz atualizou sua potentia, plenificou-se, incontornavelmente predo-
minando sobre a palavra: canto – vida anímica, predominante, porque voz, expandida.
Uma melodia então, vocal ou instrumental – esta porque, lato sensu, dimana da-
quela, que é sua protoforma, sua referência, ainda que abstrata, seu ventre mediato,
seu mediato de-onde-para-onde –, por ser a sonoridade do homem objetiva-se in mímesis.
Voz que, via das paixões, quando expandida, determinada, atualizada in melodia, ne-
cessariamente verticaliza, aprofunda, substancia sua genética condição expressiva,
imitativa. Então, se de canto se trata, de um homem in plenitude afetiva se trata, porque
canto implica ou supõe a voz – uma voz positivada na universalização de sua potentia
mimético-anímica ingênita. Potentia realizada que, universalização da voz dial, funda
o canto, cuja expressividade intrínseca, portanto, é medrança das possibilidades da
28. Doni, apud Ibaney Chasin, in O Canto dos Afetos, op. cit. p. 89. (Grifo nosso).
29. Idem, Trattato della Musica Scenica, VIII, in O Canto dos Afetos, op. cit., p. 83.

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

vocalidade. Voz que in canto supera as circunscrições expressivas próprias da voz in


fala, voz que nesta sua condição cotidiana subordina-se ao dizer, à palavra, à língua,
à ação comunicativo-conceitual, que adstringe sua expressione, atributo que lhe fun-
damenta, especifica, faz.
Aristóteles, Mei e Doni não poderiam, assim, determinar a música se não como
o universo da interioridade: humano reconhecimento, e intemporal. Em tom per-
guntante, que arrima, sintetiza e projeta esta acronia real: o canto que se urde auten-
ticamente in voce, não se consubstanciará sempre enquanto mímesis dos afetos, da
alma que sente? Intemporalidade teorética é intemporalidade categorial, porque os
sons que engendram a música são sons ad hominem, ad anima, tenhamos ou não cons-
ciência disto. Consciência que, grega e renascentista, se afirmará pelo pensamento
iluminista, bem como por um dos nomes mais substantivos da história da filosofia.
Neste terreno mimético-filosófico adentra a pena teórica.

3. Considerações de Rousseau e uma pontuação hegeliana

1.
Se a pena teorética do abade Du Bos traça passos incoativos na direção de con-
figurar, no interior do pensamento ilustrado, a natureza do fazer musical – o que
significou, estruturalmente, buscar escavar, reconhecer e propor a já suposta e assu-
mida lógica mimética da música30 –, deve-se firmar, não obstante, que é Rousseau o
personagem que mais efetivamente substantifica uma reflexão musical. Na palavra
de Fubini, terminante: entre os enciclopedistas que escreveram sobre música, e mes-
mo fora deste círculo intelectual específico,
Rousseau é, indubitavelmente, a personalidade de maior relevo, o teórico mais
acreditado dos bufonistas; foi, talvez, também por sua particular competência que
se lhe tenha confiado a redação do núcleo mais importante dos verbetes musicais
da Enciclopédia, que mais tarde formaram o corpo do seu Dictionnaire de Musique.31
Nesse sentido, e em função dos limites a que este texto se deve ater, toma-se,
quanto ao ideário musical da ilustração, tão somente a palavra do genebrino, a qual,
sem dúvida, sintetiza tendências teóricas de seu tempo. Vejamos, num traçado ape-
nas silhuetado e pontual.
No Ensaio sobre a origem das línguas, na colação entre música e pintura, Rousseau
denota, por determinação negativa, a natureza mimética de ambas, natureza pela qual
se fazem arte. Em extensa assertividade que importa considerar:
30. Cf. Enrico Fubini, L’Estetica Musicale dal Settecento a Oggi, Torino, Einaudi, 1987, pp. 27-33.
31. Ibid, p. 54.

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Ibane y Chasin

Tal como os sentimentos despertados em nós pela pintura não vêm das cores, o
império que a música possui sobre nossa alma não é obra dos sons. Belas cores
bem graduadas agradam à vista, mas tal prazer é uma sensação pura. São o de-
sejo e a imitação que conferem vida e alma a essas cores, são as paixões por elas
reveladas que comovem as nossas, são os objetos por elas representados que nos
afetam. O interesse e o sentimento não dependem das cores. Os traços de um
quadro tocante também tocam numa estampa. Tirai os traços de um quadro e as
cores nada serão. A melodia constitui exatamente, na música, o que o desenho
representa na pintura – assinala traços e figuras, nos quais os acordes e os sons
não passam de cores.32
E logo depois substanciará:
Como, pois, a pintura não é a arte de combinar algumas cores de um modo agra-
dável à vista, também a música não é a arte de combinar os sons de uma maneira
que agrade ao ouvido. Se só fossem isso, tanto uma quanto outra figurariam entre
as ciências naturais e não entre as belas-artes. Somente a imitação as eleva até esse grau.
Ora, que faz da pintura uma arte de imitação? – o desenho. E da música? – a
melodia.33
Duas páginas à frente, roborando a determinação, acresce que, se de uma melo-
dia se trata, de uma mímesis in affectu se trata. Assim elabora:
Enquanto se continuar considerando os sons unicamente pela excitação que des-
pertam em nossos nervos, de modo algum se terá verdadeiros princípios da músi-
ca, nem noção de seu poder sobre os corações. Os sons, na melodia, não agem em
nós apenas como sons, mas como sinais de nossas afeições, de nossos sentimentos. Desse
modo despertam em nós os movimentos que exprimem e cuja imagem neles reconhecemos.34
Em termos análogos, nos quais se entrevê, sublinhe-se, o reconhecimento de
que a voz é via do anímico, reconhecimento categorial pelo qual o canto, voz em dominân-
cia, pode ser intrinsecamente atado aos afetos:
A melodia, imitando as inflexões da voz, exprime as lamentações, os gritos de dor ou
de alegria, as ameaças, os gemidos. Devem-se-lhe todos os sinais vocais das pai-
xões. Imita as inflexões das línguas e os torneios, ligados, em cada idioma, a certos
impulsos da alma. Não só imita como fala, e sua linguagem, inarticulada mas viva,
ardente e apaixonada, possui cem vezes mais energia do que a própria palavra.
Disso provém a força das imitações musicais, e nisso reside o império do canto
sobre corações sensíveis35.
Efetivamente, para Rousseau a voz é o som da alma, do sentir; são as inflexões
(exteriorizadas) das paixões; voz, sentimento sentido sensificado:

32. J-Jacques Rousseau, Ensaio sobre a origem das línguas, XIII, Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural,
1978, p.194.
33. Ibid, p. 195. (Grifo nosso).
34. Ibid, XV, p. 197. (Grifo nosso).
35. Ibid, XIV, p.196.

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

A cólera arranca gritos ameaçadores, que a língua e o palato articulam, porém a


voz da ternura, mais doce, é a glote que modifica, tornando-a um som. Sucede,
apenas, que os acentos são nela mais freqüentes ou mais raros, as inflexões mais
ou menos agudas, segundo o sentimento que se acrescenta.36
E se assim reconhece, sua letra não poderia não dispor e radicar que o canto
se urde in affectu; de fato, uma melodia é anima in sonu, ou que pelos sons do homem
se substantifica, exterioriza. Num dizer rousseauniano arrematante, de nítidíssima
procedência aristotélica, que reentece a imbricação entre mélos, voz e sentimento, ôntica
imbricação:
As paixões possuem seus gestos, mas também suas inflexões, e essas inflexões que
nos fazem tremer, essas inflexões a cuja voz não se pode fugir, penetram por seu
intermédio até o fundo do coração, imprimindo-lhe, mesmo que não o queiramos,
os movimentos que as despertam, fazendo-nos sentir o que ouvimos.37
Em passo final, que consubstancia. Para Rousseau, som não é música; esta são os
afetos que a melodia plasma e estila, melodia que nos fazendo sentir aquilo que encerra
em si mostra que a música é necessariamente ação in mímesis. Mímesis que ao plasmar
o universo dos sentimentos tem no som o seu meio, não um fim, na rigorosa medida
em que os sons na melodia – atina e firma o pensador ilustrado – não agem em nós apenas
como sons, mas como sinais de nossas afeições, de nossos sentimentos. E poderia, ontologica-
mente, não ser melodicamente assim?
2.
Ao tomar em exame a música, a pena hegeliana é notavelmente clara ao deter-
minar a lógica de sua orgânica. Na concisão terminante, que ecoa Aristóteles, e pela
qual se enceta o brevilíneo percurso por um Hegel musical: “Música [– categoriza –]
é espírito, alma”,38 isto é, “A interioridade subjetiva constitui o princípio da música”.39 E assim
o é e Hegel pensa porque do som do homem – da voz, o próprio ressoar da subjetividade
total –, então do som musical escorre – ou deve escorrer – vida anímica (ainda que da
música pura esta dimane necessariamente em pulso mais abstrato, ou mesmo rarefeito,
numa indeterminação predominante). Vida anímica que, esfera própria da composição, na
e pela melodia se substantifica. Melodia que, garra mimética da música – porque é o que
o desenho –, não deve ser confundida com pura sonoridade, mas se atualiza enquanto
melodia se carregada de humanidade, de afetos; se mimeticamente ativa, se alma in
sonu. Na assertiva ôntica, que avoca Rousseau, de pronto:

36. Ibid, XII, p. 192.


37. Ibid, I, p. 167. (Grifo nosso).
38. Hegel, Cursos de Estética, vol.III, São Paulo, Edusp, 2002, p. 324. (Grifo nosso).
39. Ibid, p. 335. (Grifo nosso).

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Ibane y Chasin

O peito humano, a disposição do ânimo, constitui em geral a esfera na qual o


compositor tem de se mover, e a melodia, o puro ressoar do interior, é a alma mais pró-
pria da música. Pois a expressão verdadeiramente plena de alma, o som, apenas
alcança pelo fato de que é introduzido nele um sentimento e que ressoa a partir
dele.40
Em termos distintos, que nitidizam:
A harmonia, a saber, abrange apenas as relações essenciais que constituem a lei
da necessidade para o mundo dos sons, mas tampouco como o compasso e o
ritmo ela abrange a música propriamente dita, e sim apenas a base substancial,
que são o fundamento e o terreno regulares sobre os quais se move a alma livre.
O poético da música, a linguagem da alma, que derrama o prazer interior e a dor
do ânimo em sons e nesta efusão se eleva suavemente acima da força natural do
sentimento, na medida em que faz da comoção [Ergriffensein] atual do interior uma
percepção de si mesmo, um demorar livre junto a si mesmo e dá ao coração, desse
modo, igualmente a libertação da pressão advinda da alegria e do sofrimento – o
livre soar da alma no campo da música é primeiramente a melodia.41 [E em com-
pletação, à frente considera:] o compasso, o ritmo, e a harmonia, tomados por si
mesmos, são apenas abstrações, que em seu isolamento não possuem nenhuma
validade musical, mas apenas por meio da melodia e no seio dela, como momen-
tos e lados da melodia mesma, podem chegar a uma existência verdadeiramente
musical.42
Para Hegel, pois, e sobre isto se deve insistir, a sonoridade artística opera in mí-
mesis, a melodia, síntese estética da alma, consubstancia-se como imitação. Se de música
se trata, da alma in affectu, da expressão de uma interioridade que sente, de uma sub-
jetividade in mélos, essencialmente se trata. Subjetividade que, expandida em verossímil
poderia ser anímico, é arte, música, sonoridade, ópera. Na letra hegeliana, que desdo-
bra e concreta esta assertiva:
Na ópera autêntica, ao contrário, que executa uma ação totalmente de modo mu-
sical, somos elevados de uma só vez desde a prosa para um mundo artístico mais
elevado, em cujo caráter também se mantém toda a obra, quando a música toma
por seu conteúdo principal o lado interior do sentimento, as disposições singulares
e universais nas diversas situações, os conflitos e as lutas das paixões, a fim de
ressaltar primeiramente os mesmos de modo completo por meio da expressão a
mais completa dos afetos.43

40. Ibid, p. 323. (Grifo nosso).


41. O que talvez explique, pontue-se polemicamente, o fato do monódico ter sido historicamente atributo
musical fundante, mesmo se de contraponto se tratasse.
42. Hegel, Cursos de Estética, op.cit,. pp. 315-317.
43. Ibid, p. 335.

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

Numa palavra, em síntese,


A poesia exprime ela mesma e diretamente os sentimentos, as representações e
as intuições, e é mesmo capaz de nos oferecer as imagens dos objetos exteriores,
ainda que não possa atingir nem a plasticidade da escultura nem a interioridade da
música,44
pois esta, diferentemente da poesia ou de qualquer outra arte, sensifica o sentir,
isto é, nos dá, concretamente, o lado interior do sentimento. Sensificação que é atualização
sensível do universo anímico, isto é, atualização sensível dos sentimentos sentidos, e
que por isso toca as cordas de nossa afetividade de modo especialmente ativo. Em
proposição final, que resgata: Música é espírito, alma, in concreto, e isto Hegel não pro-
façaria.

4. Uma última pontuação: a palavra lukácsiana

Sem dúvida, o elo coevo mais efetivo desta corrente teórico-musical que, grega,
alcança Hegel, é György Lukács. Sua Estética, conscientemente plasmada no intento
de substantificar um corpus aestheticus radicado na filosofia marxiana, ou que desta
buscou tomar o substrato categorial que lhe fundaria, é categórica na afirmação da na-
tureza mimética da música. De fato, ao reconhecer na vida concreta, cotidiana, no
ser e ir sendo objetivos e subjetivos do homem o de-onde-para-onde da arte, Lukács teria
de tomar a música como o campo estético do anímico. Neste sentido, quando refere
que a teoria da arte sempre a concebera como mímesis da interioridade, esta consta-
tação que desde logo surge no capítulo que trata da música, ordenando-o, não poderia
deixar de fundá-lo. Inceptivamente assim dispõe, histórica e categorialmente:
a teoria das artes, e especialmente a da música, a conceberam durante milênios,
numa naturalidade que parecia excluir qualquer necessidade de argumentação,
como reflexo, precisamente, da vida interior humana. Claro que tal consenso não
pode, por si mesmo, valer como prova, pois os erros podem por vezes sobreviver
por épocas inteiras. Porém, aqui, trata-se de outra coisa, e maior. A concepção da
música como uma espécie particular de mímesis acentua energicamente, com uma
segurança dialética nada surpreendente nos gregos, tanto aquilo que, do ponto de
vista da mímesis, à música é atado no mundo das artes, quanto, ao mesmo tempo,
e inseparavelmente, o que a separa das demais artes, ou o que constitui sua pecu-
liaridade específica. Não havia dúvida para os gregos de que toda a relação huma-
na com a realidade, tanto a científica quanto a artística, se funda numa refiguração
da natureza objetiva de tal realidade. /.../ Por outro lado, os gregos viram com
toda clareza que o objeto mimeticamente reproduzido pela música se distingue
qualitativamente dos das demais artes: é a vida interior do homem.45

44. Hegel, Esthétique, op. cit, v.3, p. 332. (Grifo nosso).


45. Lukács, op. cit., p. 8.

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Ibane y Chasin

Em palavra completadora, que vale apor:


Pode-se afirmar, sem vacilação, que toda a estética – até o passado mais recente
e a atualidade – reconheceu a natureza mimética da música. Até um representan-
te tão destacado do subjetivismo epistemológico e do irracionalismo filosófico
como Schopenhauer funda sua teoria da música, tão fantasmagórica e metafísica,
aliás, em seu caráter mimético. Também ele se esforça em distinguir entre o es-
pecífico da mímesis musical e o das demais artes, mas sem nunca por em dúvida
sua base mimética.46
No ideário musical lukácsiano, que assinala o reconhecimento estético universal
da natureza mimética da música, esta é, pois, a esfera artística da expressividade, do
interno. Numa palavra, em Lukács, a música é parida pelo ventre da alma.
À substancialização desta assertiva, um longo argumento sobre a relação pala-
vra-música em Otelo, terra das paixões humanas, firma a letra lukácsiana. Paixões que
predominam sobre a palavra poética, que então se reestrutura em sua orgânica, em sua
forma, em sua prosódia: na medida em que se faz palavra melodizada, é consubs-
tanciada e regida pela melodia, que a transmuta sonoramente. Em reflexão que ecoa
o Trattato – as determinações donianas sobre a função e lugar do canto na tragédia
grega –, eco que não poderia inexistir posto um fundamento teorético compartido:
Ao pensarmos no texto de Boito para o Otelo de Verdi – que é talvez, em nossa
opinião, a melhor transposição de um drama importante em um libreto de mú-
sica –-, observa-se que já as meras supressões mostram uma tendência análoga à
exposta por Brahms. Boito, sem vacilar, suprime toda a história poética do nasci-
mento do amor entre Otelo e Desdemona; dela só se conservam os fragmentos
liricamente utilizáveis, na grande cena de amor do final do primeiro ato. Também
se elimina conseqüentemente a relação de Otelo com a república de Veneza –
pouco considerada por muitos comentadores do drama, mas sumamente impor-
tante para a tragédia –, que configura o fundo adequado ao florescimento e ruína
do grande amor no drama, atravessando toda a obra de Shakespeare, da exposição
até o suicídio de Otelo. Inclusive quando Boito conserva algo deste complexo –
46 Ibid, pp. 9-10. Na palavra de Fubini, que corporifica a lukácsiana: “Na concepção de Schopenhauer existe
um salto qualitativo, não mais somente quantitativo, que separa a música das outras artes. A música está fora
da hierarquia, sobre a pirâmide, e se põe como linguagem absoluta, como limite insuperável, alcançável apenas
pelo gênio artístico.” Então, do ponto de vista de Schopenhauer, “Como se pode falar da música se, dada a sua
posição privilegiada em relação às outras artes, estará, a bem da verdade, além dos conceitos, que alcançam
apenas o mundo fenomênico, do qual a música é totalmente independente? Dela só se poderá falar por metáfo-
ras, porquanto existe um paralelismo entre música e idéias – ambas objetivações da vontade”. (Fubini, op. cit.,
p 131.). Em proposição que nitidiza: para Schopenhauer, “A música pode colher, exprimir, todas as manifes-
tações da vontade, todas as suas aspirações, satisfações, excitações, etc. Nesse sentido, pode exprimir também
todos os sentimentos do homem em todas as suas nuances, ou melhor, mais que exprimir pode representar
um análogo, porque a música não é fenômeno, mas a própria idéia. A música nos dará a essência, o em si [a
forma pura, in abstracto, dos sentimentos], não o fenômeno”. (Ibid, p.133). A tempo, mas em termos apenas
axiomáticos: na reflexão musical de Nietzsche pulsa igualmente uma dimensão mimético-afetiva – metafísico
coração da música.

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

como certas partes do esplêndido monólogo de Otelo onde espedaça sua fé em


Desdemona, quando o grande herói e estadista passa definitivamente em revista
à sua vida e dela se despede, sabendo que a partir deste momento suas paixões
o precipitarão inexoravelmente no abismo –, a conexão intelectual e emocional
é completamente diversa: na tragédia, este monólogo é um momento de repou-
so, a última calma insegura antes da tempestade; na ópera, [Otelo] é arrastado
impetuosamente pelo desbordamento das paixões desencadeadas pelas insídias
de Yago e perde toda a independência anímico-sensível. É-nos aqui impossível
entrar nos detalhes, pesem ser muito interessantes em sua conseqüência, como,
por exemplo, a simplificação do caráter de Emília, etc. Esta coerência se baseia na
intenção de estreitar a ampla e compreensível base vital da tragédia em função do
destino amoroso de dois seres humanos, para que a curva trágica – que vai desde a
felicidade amorosa ditirâmbica do começo, passando pela fúria dos céus e solidão
dos que até então estavam intimamente unidos, até o assassinato e o suicídio –,
se expresse puramente no meio homogêneo das emoções e paixões totalmente
expostas sobre a base do mínimo imprescindível de desencadeadores causais.47
A reflexão é clara: a música é o universo do sentir. O texto shakespeariano é
alterado por Boito porque o drama tem de se adequar à necessidades musicais, vale
dizer, e este é o ponto, à mimese dos afetos. Necessidades que artisticamente do-
minantes fundam a textura operística, que, palavra amantada pela melodia, poesia
in voce, é voz prevalente, canto, música, vida afetiva positivada in arte. O texto tem
de incitar ao canto, sustenta Doni, tem, em última instância, de suscitar a irrupção
da alma, entende Boito, que transfunde Shakespeare, que então se faz plataforma
dos afetos, afetos que, assevera Lukács, fundam a arte sonora, pois o som musical,
estaque-se, é o som do homem, é a sua sonoridade imanente, o seu som.
E se neste batimento pensa e dispõe Lukács, não nos deve surpreender que
sua pena se tivesse voltado ativamente contra aquelas correntes de pensamento que
desantropomorfizavam a música, que a entendiam como ausência do humano – como
som autoconsubstanciado enquanto som, isto é, enquanto casca, enquanto som que
se autoconsome, que se efetiva na consumação de sua própria materialidade; vale
dizer, que a entendiam como simples domínio de infilosóficas abstrações sonoras
inafetivas. Ao pontualizar que a arte, então a música, opera uma universalização, ao
radicar que a arte cria um mundo, necessário e verossímil, Lukács reconhece na arte dos
sons a potentia de uma experiência que humana. Que humana porque é expandida
vida afetiva ad hominem, vida esta que existe in arte porque ser e dever-ser existem in
vita. A criação artística original é ato escavado da vida cotidiana, e que responde
socialmente aos indivíduos, ainda que estes não tenham consciência disto. Arte, vida
humana universalizada in dever-ser. Na palavra filosófica que arremata, porque mais não
se pode, palavra que se Rousseau tivesse escutado provavelmente levaria em conta:

47. Ibid, pp. 68-69.

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Ibane y Chasin

O fato indiscutível de que toda autêntica obra de arte musical cria um “mundo”,
é o fundamento estético mais profundo à recusa de todo o ponto de vista for-
malista, e daquelas teorias que vêem na vivência musical uma fusão quase mística
do ouvinte com o ouvido. O profundo efeito da música consiste precisamente
em que introduz o receptor em seu “mundo”, o faz viver nele e vivenciá-lo; po-
rém, pese à penetração mais profunda, a mais veemente liberação das emoções,
constrói este mundo sempre como diverso do eu do receptor, como um mundo
distinto dele e para ele significativo precisamente em função desta diversidade es-
pecífica. A obra de arte musical recebe de fontes de conteúdo o caráter de “mun-
do” para-si: da madura totalidade das emoções que nela se revelam. Só quando
estas emoções são, vistas humanamente, coisa essencial, só quando são capazes
de desenvolver até as últimas conseqüências as emoções que elas mesmas desen-
cadeiam, só então pode surgir um “mundo” no sentido da arte./.../A questão de
quais são as emoções que promovem e suportam que delas nasça um “mundo”
é um problema, primeiramente, histórico-social. [E completa: mas] /.../quando
o “modelo” das emoções musicalmente refiguradas está preso à particularidade
do homem cotidiano e esta música se limita a levar a interna insuficiência, a frag-
mentação interna deste homem a um arredondamento “conciliador” aparente e
formal, a mímesis desta mímesis [isto é, a música] não pode nunca criar um “mun-
do”, não pode, portanto, cobrar uma forma artística autêntica. Uma música assim
pode recolher as tradições mais confirmadas ou as inovações mais audazes em sua
dação de forma: apesar disso, a trivialidade do meramente particular o arrastará
inteiramente para baixo, até a grosseria e a vulgaridade de gosto48;
à inafetividade!

5. Um movimento quase conclusivo, e que problematiza

Ao fim, considerado o exposto, se tem de assinalar que este texto deixa intoca-
do um problema categorial de fundo, a saber: que afetos ou sentimentos pulsam na
mímesis musical? Isto é, e referido sinteticamente, afinal, a música enforma senti-
mentos em si ou, distintamente, expressa pulsos anímicos, a subjetividade que sente, a
alma in affectu?
Posto o implexo da questão, desta não se tem como afigurar nem mesmo um
pálido contorno determinativo. Para tanto, remeto ao Canto dos Afetos, como tam-
bém a meu estudo mais recente: Música, Serva d’Alma – Claudio Monteverdi, Ad Voce
Umanissima, com previsão de lançamento para maio de 2009 (Ed. Perspectiva), onde
problemas categoriais da voz e do canto são extensivamente tratados. Seja como for,
e isto é o que importa radicar dados o cerne e télos deste artigo, na distinção teoré-
tica entre os diferentes pensadores em relação ao ser-assim mimético-afetivo da arte
sonora – reflexões estas, advirta-se, que no mais das vezes transpiram lacunas deter-
minativas e/ou ambigüidades –, a categoria da mímesis fundou, de forma inconcussa,
a filosofia da música, o pensamento categorial sobre a arte dos sons. De Aristóteles
48. Ibid, pp. 81-82.

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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical

a Lukács – ou mais rigorosamente, na reflexão filosófico-musical atualizada a partir


e/ou no interior de seu por-si imanente – inexistiram, lato sensu, incertezas estruturais
quanto à sua natureza, anímica.49
E se esta é a contextura, se da música a teoria da arte reconheceu o fundamento
anímico – incluso aqui o ecoante pensamento musical de Santo Agostinho, que, se
forjado em descendência pitagórico-platônica, bate outrossim em jaez aristotélico,
pois a experiência prática com a música faz o filósofo sentir e constatar sua dimensão
mimético-afetiva (cf. Confissões) –, tomá-la como linguagem, ainda que como lingua-
gem não conceitual (o que, de per si, é uma irrazoabilidade ôntica), é desnaturação teórica,
ou teoria que a descompreende. Desnaturação em nada ingênua, mas contrafactum de
uma práxis que aproximando, imbricando música e natureza, arte sonora e fisicidade
do som – música e som enquanto som, autonomizado das entranhas humanas –,
desafortunadamente lhe extirpa o homem, desentendendo-a como um fazer mimé-
tico. Fazer que, vocação genética, ventre que lhe parture, significa sua mais efetiva
condição de ser, e dever-ser.
No pulso de uma ultimação: música é mímesis – paixões que se atualizam em
aristotélico poderia ser, em sentir animicamente universalizado, expandido, humanado
–, não linguagem; é expressividade, não discurso; vida anímica, não beleza (ou feiúra)
dos sons; espírito in sonu. Ao menos parece que assim a história inscreveu. Inscriptione
que Monteverdi tão bem sintetizou no prefácio do seu último livro de madrigais, sín-
tese que ata pelas vísceras vida e música, voz e sentimentos, paixões e canto. Com as
seqüentes palavras o compositor o principia, palavras que educam porque conscientia
ex post, letra prefacial incoativa que ora se faz desfecho, in mímesis:

49. Mesmo do pensamento de Adorno, pontue-se, recalcitrante em relação ao jaez mimético da música, toma-
se, numa teoria que então parture incontornável ambigüidade determinativa, o reconhecimento – enevoado e
dissaboroso – desta sua condição ou natureza, que a faz ser. De fato, a negação da mímesis implica, em última
instância, a impossibilidade de uma reflexão que se enteça em razoabilidade argumentativa, do mesmo modo
que um fazer musical não mimético conduz a música à denegação de suas categorias. Nesse sentido, o pulso
metafísico do humanamente desacolhedor pensamento musical de Hanslick não deve surpresar, embora até
ele – até ele! – contrabandeie para O belo musical a dimensão (mimético-) espiritual da música. Que o tenha feito de
um modo teoricamente inarticulado e periférico; que desnature a categoria da mímesis; e ainda sem referir como
este “espírito” é plasmado e se enforma – apenas afirma: ‘as formas que os sons produzem não são vazias,
mas plenas; não são simples contornos de um vazio, mas espírito que se plasma interiormente’ [Hanslick, apud
Fubini, op. cit., p. 200.] –, o fato, não obstante, é que sua teoria, nubilosa e despossada de argumento probante,
tem de dar lugar, de algum modo, ao homem, ao preço de, posta sua ausência, impropriar-se in limine, descam-
bar para uma reflexão egra, porque desalmada. Na letra de Fubini, que ato contínuo toma a de Hanslick, passo
pelo qual se esboça e entrevê seu imbróglio teorético, ou a contradição de fundo que eiva O belo musical: para
Hanslick, “Ainda que o primeiro propósito de um musicista que se põe a trabalhar não seja o de representar
uma paixão, mas o de inventar uma melodia, as obras [– assevera, entanto –] espelharão simbolicamente ‘como
imagens totais as individualidades de seus criadores’, ainda que tenham sido compostas [– sustenta Hanslick –]
‘sem outro fim que si mesmas, como beleza autônoma e puramente musical’”. [Ibid, pp. 200-201.].

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Ibane y Chasin

Três são as principais paixões ou afeições da alma. Assim considerei, bem como
os melhores filósofos. São elas a ira, a temperança e a humildade ou súplica, como
mostra, aliás, a própria natureza da nossa voz, que se faz alta, baixa e mediana; na
música, claramente referidas por concitado, mole e temperado. Não pude, porém,
encontrar nas composições do passado exemplos do gênero concitado, apenas do
mole e temperado, mesmo que o gênero concitado tivesse sido mencionado por
Platão no terceiro livro de Retórica/.../; e sabendo ainda que o que move efetiva-
mente nossa alma são os contrários, e que a finalidade da boa música é mover, me
dispus com não pouco esforço e estudo a realizá-lo,50
isto é, a expressar a alma, a fazer música.

Música. Arte que não é dação de forma a afetos em si, mas a plasmação de sen-
timentos sentidos, dos pulsos anímicos de uma interioridade, que então se exteriorizam, sen-
sificam, ao menos se de canto se trata. Mas, calemo-nos! Que esta alusão seja apenas
um incitamento ao leitor. Pois isto é tema para outras reflexões sobre a arte dos sons,
sobre a alma que sente, sobre a alma humana. Alma humana.

50. Monteverdi, Prefácio do Livro VIII, in Gian Francesco Malipiero (ed.), Tutte le opere di Claudio Monteverdi,
Livro VIII, Wien, Universal Edition, 1926-1942.

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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

Gramsci su Vico:
la filosofia come una forma della politica
Marco Vanzulli*1

Resumo:
Através de um levantamento da leitura feita por Gramsci nos Quaderni del carcere da
obra de Giambattista Vico, entende-se mostrar a natureza da concepção gramsciana da
história da filosofia, isto é a união de teoria e prática em que consiste a filosofia da práxis
gramsciana. Apesar de sua pretendida superação da velha separação de teórico e pratico,
a filosofia da práxis (assim Gramsci passa a denominar o marxismo) se configura como
uma concepção desbalanceada que se move em torno duma «concepção subjetiva da
realidade», em que a filosofia é totalmente reduzida ao plano histórico contingente como
«fato real», isto é como instrumento hegemônico de um determinado grupo social dentro
da luta de classe. Esta redução da filosofia à política é o resultado de uma reforma de
temas neo-idealistas cujo culturalismo se torna, através do primado absoluto atribuído à
política, incapaz de responder de forma satisfatória à questão da filosofia come verdade
que desvenda as estruturas ontológicas do ser, e do conhecimento histórico como desco-
bridor, materialisticamente, de nexos reais.
Palavras-chave:
Filosofia; História; Política; Verdade; Subjetividade; Objetividade.

* É ricercatore da Università degli Studi di Milano-Bicocca e pesquisador visitante na Pós-Gra-


duação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de
Minas Gerais

37
Marco Vanzulli

Non ci si propone in questo testo di discutere una supposta e ipotetica influen-


za di temi vichiani nell’opera di Gramsci e segnatamente nei Quaderni del carcere. Se
anche essa fosse in qualche misura effettiva, lo sarebbe attraverso la mediazione
determinante dei due filosofi del neoidealismo italiano, Benedetto Croce e Gio-
vanni Gentile, fondamentali nella formazione intellettuale gramsciana, e che, pro-
prio negli anni di gioventù del comunista sardo, s’impegnano in una nuova lettura
dell’opera di Vico, del tutto funzionale e congeniale alle filosofie idealistiche che
stanno elaborando.1È certo, come già notava Eugenio Garin, che Vico ha operato
in Gramsci solo indirettamente, e che i temi vichiani presenti nei Quaderni sono solo
quelli che erano ormai divenuti un patrimonio comune, quasi topoi, della cosiddetta
«rinascita idealistica»; così i pochi rinvii gramsciani a Vico appaiono generici e di
seconda mano. Il riferimento di Gramsci rispetto a Vico è peraltro essenzialmente
Croce, la cui monografia del 1911, se pure non l’aveva letta, gli era certo in qualche
modo nota.2 È, in effetti, soprattutto attraverso la discussione in cui s’impegna con
Croce che i pochi riferimenti gramsciani a Vico e alla sua opera acquistano un signi-
ficato nelle note dei Quaderni.
Posto allora che Vico non è, per dirla vichianamente, un «autore» di Gramsci,
attraverso ed a partire da una ricognizione nelle osservazioni su Vico sparse nei Qua-
derni del carcere, s’intende qui svolgere una riflessione sulla filosofia e la forma della
sua dimensione pratica, a partire dal modo in cui Gramsci legge le figure filosofiche
e la storia della filosofia. Intese infatti esse da Gramsci come espressioni della es-
senziale politicità della storia e del pensiero filosofico, si pone la questione di quale
statuto sia dato al rapporto fra teoria e pratica implicito in questo presupposto, si
pone cioè la questione correlata di quale sia il nesso istituito dal politico sardo tra
l’atto politico e il mondo storico in cui esso s’inscrive.
Dunque, nell’intuizione gramsciana di Vico – e ciò vale per lo stesso marxismo,
che, secondo alcuni interpreti, non sarebbe, proprio per la precedenza e interpo-
sizione crociana, da considerarsi come una componente fondamentale della for-
mazione gramsciana3 –, è la lezione di Croce a giocare un fondamentale ruolo di
mediazione. I riferimenti a Vico dei Quaderni del carcere sono infatti legati alla ricerca
sulla storia, sono cioè fondamentalmente interni alla discussione di Gramsci con
1. La filosofia di Giambattista Vico di Croce esce nel 1911 (Bari, Laterza, 19804 [1911]); nel 1915 gli
Studi vichiani di Gentile (Firenze, Sansoni, 19683 [Messina, Principato, 1915]).
2. Cfr. E. Garin, Vico in Gramsci, «Bollettino del Centro di Studi Vichiani» 6 (1976), pp. 187-189.
3. «L’idealismo e, non tanto il marxismo, quanto il socialismo, accolto come un’esigenza istintiva
ma guardato attraverso il prisma dell’idealismo crociano, sono le due componenti iniziali della
sua personalità culturale: ma è il primo che prevale e dà il tono al pensiero» (M.A. Manacorda, La
formazione del pensiero pedagogico di Gramsci (1915-1926), in Pietro Rossi (a cura di), Gramsci e la cultura
contemporanea. Atti del Convegno internazionale di studi gramsciani tenuto a Cagliari il 23-27 aprile 1967,
Roma, Editori Riuniti – Istituto Gramsci, 1970, vol. I, p. 232).

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Croce: «Altro concetto da ridurre da speculativo a storicistico è quello di ‘razionali-


tà’ nella storia (e quindi di ‘irrazionalità’), concetto legato a quello di ‘provvidenza’
e di ‘fortuna’, nel senso in cui è adoperato (speculativamente) dai filosofi idealis-
ti italiani, e specialmente dal Croce. Occorrerà perciò vedere l’opera del Croce su
G.B. Vico, in cui il concetto di ‘provvidenza’ è appunto ‘speculativizzato’, dando
inizio così all’interpretazione idealistica della filosofia del Vico».4 Qui il riferimento
a Vico è, come si vede, tutto interno a quell’opera di ritraduzione dello speculativo
in storicistico volta a costituire una nuova filosofia della prassi, che prenda le dis-
tanze dal materialismo volgare alla Plechanov o alla Bucharin, attraverso il recupero
degli elementi validi, realistici (e, secondo Gramsci, desunti surrettiziamente pro-
prio dall’originario materialismo storico5) presenti nella filosofia contemporanea più
avanzata, che per Gramsci è appunto quella di Croce. Inoltre, Gramsci collega, come
aveva fatto Croce, il concetto vichiano di «provvidenza» a quello hegeliano di «astu-
zia della ragione»,6 solo che lo riporta come «astuzia della natura»7 o come «astuzia
della provvidenza».8
Facendo riferimento al saggio di Ettore Ciccotti, Elementi di «verità» e «certezza»
nella tradizione storica romana, apparso in due puntate sulla «Rivista d’Italia» nell’estate
del 1927, e ancora sulla scorta di Croce, Gramsci concorda nel ritenere non valide le
interpretazioni positivistiche di Vico. Commentando l’interpretazione della conver-
sione del «certo» nel «vero» data da Ciccotti, osserva che si tratta di «una sociologia
molto positivistica; una interpretazione positivistica del Vico». E subito prima aveva
osservato che «la conversione del ‘certo’ nel ‘vero’ dà luogo a una costruzione filoso-
fica [della storia eterna], ma non alla costruzione della storia ‘effettuale’: ma la storia
non può che essere ‘effettuale’».9 Con ciò Gramsci rimanda alla questione dell’unità
della teoria e della pratica, cioè al carattere specifico della sua filosofia della praxis.
Alla stessa questione rinvia l’interesse per il principio vichiano del «verum-factum»,
letto appunto come unità della teoria e della pratica, unità che sarebbe, secondo
Gramsci, caratteristica fondamentale del marxismo, il quale, a sua volta, l’avrebbe
4. A. Gramsci, Quaderni del carcere, Edizione critica dell’Istituto Gramsci (a cura di V. Gerratana,),
4 voll., Einaudi, Torino 1975, p. 1089. Si riporta dall’apparato di note di Gerratana la seguente
indicazione su La filosofia di Giambattista Vico di Benedetto Croce, uscito per le edizioni Laterza nel
1911 e, in seconda edizione, nel 1922: «Questo libro, che con ogni probabilità Gramsci conosceva,
non è però conservato tra i libri del carcere. Gramsci aveva presente invece certamente gli scritti
su Vico compresi nel volume di Croce, Saggio sullo Hegel, seguito da altri scritti di storia della filosofia [3a
edizione riveduta, Bari, Laterza, 1927], e in particolare lo scritto Fonti della gnoseologia vichiana, pp.
235-261, dove si polemizza con le critiche mosse al libro crociano su Vico» (ivi, p. 2815).
5. Cfr. ivi, pp. 1209-1210.
6. Cfr. B. Croce, La filosofia di G.B. Vico cit., p. 223.
7. A. Gramsci, Quaderni del carcere cit., pp. 821 e 1228.
8. Ivi, p. 1767.
9. Ivi, p. 300.

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mutuata dall’hegelismo. Di qui «la proposizione di Vico ‘verum ipsum factum’» sa-
rebbe addirittura quella da cui, «nelle sue origini hegeliane», «certamente dipende il
materialismo storico».10 Riporta qui Gramsci Vico ad Hegel perché possa acquistare
un orizzonte di senso storico.
Ed è in effetti incentrato sulla questione della rilevanza ed effettualità storica
del pensiero vichiano il passo più importante dei Quaderni su Vico, l’unico peraltro
che contenga un giudizio esplicito sull’autore della Scienza Nuova: «Quale ‘movimen-
to’ storico reale testimonia la filosofia di Vico? Quantunque la sua genialità consis-
ta appunto nell’aver concepito il vasto mondo da un angoletto morto della storia,
aiutato dalla concezione unitaria e cosmopolita del cattolicismo…».11 La genialità
dell’isolato pensatore cattolico, cosmopolita (e quindi non nazional-popolare) come
tutti gli intellettuali italiani, è contrapposta alla «storicità» del filosofo Hegel, al cen-
tro degli avvenimenti che vanno dal 1789 al 1815, «che sconvolsero tutto il mondo
civile di allora e obbligarono a pensare ‘mondialmente’. Che misero in movimento la
‘totalità’ sociale, tutto il genere umano concepibile, tutto lo ‘spirito’».12 Sta quindi «in
ciò la differenza essenziale tra Vico e Hegel, tra dio e Napoleone – spirito del mon-
do, tra la pura speculazione astratta e la ‘filosofia della storia’ che dovrà portare alla
identificazione di filosofia e di storia, del fare e del pensare, del ‘proletariato tedesco
come solo erede della filosofia classica tedesca’».13
Pur non essendo questo il contesto in cui mettere in luce il carattere complesso
– perché segnato dai due momenti della accettazione e della confutazione, tra loro
legati – della relazione tra la riflessione gramsciana nei Quaderni del carcere e i temi
della filosofia crociana, non si può evidentemente non partire, per un commento di
ampio respiro di questi passi, dal ruolo centrale assegnato da Gramsci nelle sue note
carcerarie alla discussione con Croce ai fini di una riformulazione del materialismo
storico in filosofia della prassi. Tanto che è stato scritto che: «il Croce è lo Hegel del
suo marxismo […]. È il Croce che impone a Gramsci tutti i temi della sua riflessione.
E se egli cerca di trattarli secondo l’ottica di Marx e di Lenin, essi restano tuttavia
sempre suggeriti dal Croce. Questo è talmente vero che il nostro autore non esce mai
dalla problematica del pensatore napoletano, a tal punto che i limiti del pensiero di

10. Ivi, p. 1060. Il «testo C» – secondo la nomenclatura data da Gerratana ai testi trascritti da
Gramsci nei quaderni monografici, da lui stessi chiamati «speciali» –, di questo passo elimina il
riferimento alle «origini hegeliane» e indica solo che la concezione corrispondente al «verum ip-
sum factum» «deve essere messa in relazione colla concezione propria della filosofia della prassi»
(cfr. ivi, p. 1482).
11. Ivi, p. 504 (testo A) e p. 1317 (testo C).
12. Ibidem.
13. Ibidem.

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Gramsci su Vi co : l a filosofia come una forma dell a politica

Gramsci sono i limiti stessi del pensiero del Croce».14 Nell’«Anti-Croce» dei Quaderni,
dunque, la rifondazione della filosofia della praxis passa da una confutazione hege-
liana della filosofia crociana. Croce, per Gramsci, «rappresenta il momento mondiale
odierno della filosofia classica tedesca», tanto che «come la filosofia della praxis è stata
la traduzione dell’hegelismo in linguaggio storicistico, così la filosofia del Croce è in
una misura notevolissima una ritraduzione in linguaggio speculativo dello storicismo
realistico della filosofia della praxis […] occorre rifare per la concezione filosofica del
Croce la stessa riduzione che i primi teorici della filosofia della praxis hanno fatto per
la concezione hegeliana. È questo il solo modo storicamente fecondo di determinare
una ripresa adeguata della filosofia della praxis, di sollevare questa concezione che si
è venuta, per la necessità della vita pratica immediata, ‘volgarizzando’, all’altezza che
deve raggiungere per la soluzione dei compiti più complessi che lo svolgimento attu-
ale della lotta propone».15 Si tratta cioè «solo di tradurre in linguaggio storicistico il
linguaggio speculativo, nel trovare cioè se questo linguaggio speculativo ha un valore
strumentale concreto che sia superiore ai precedenti valori strumentali».16 La cate-
goria di «strumentale» è fondamentale in una visione pragmatistica del sapere quale
quella di Gramsci. Infatti, la relazione con l’idealismo (qui «concezione soggettiva
della realtà») è presentata dal politico sardo in termini positivi nella misura in cui
l’idealismo, come la filosofia della prassi, concepisce il ruolo attivo delle concezioni
del mondo o ideologie di determinati gruppi sociali nella costituzione del mondo so-
ciale: «la filosofia della praxis è connessa […] alla concezione soggettiva della realtà,
in quanto appunto la capovolge, spiegandola come fatto storico, come ‘soggettività
storica di un gruppo sociale’, come fatto reale […] la forma di un contenuto concre-
to sociale e il modo di condurre l’insieme delle società a foggiarsi un’unità morale».17
La «concezione soggettiva della realtà» è così storicizzata nel ruolo formativo nelle
e sulle società delle concezioni filosofiche come «fatti reali», cioè come strumenti ege-
monici di gruppi sociali. La filosofia della praxis pone dunque in relazione le diverse
«concezioni soggettive della realtà» nella loro «storicità», perché ogni «concezione
soggettiva della realtà» è sostituita da «una nuova coscienza morale». «La filosofia
della praxis assorbe la concezione soggettiva della realtà (l’idealismo) nella teoria
delle superstrutture, l’assorbe e lo spiega storicamente, cioè lo ‘supera’, lo riduce a un
suo ‘momento’. La teoria delle superstrutture è la traduzione in termini di storicismo

14. A.R. Buzzi, La teoria politica di Gramsci, Firenze, La Nuova Italia, 1973, tr. it. di S. Genovali,
pp. 109 e 55.
15. A. Gramsci, Quaderni del carcere cit., p. 1233.
16. Ivi, p. 1222.
17. Ivi, p. 1226.

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realistico della concezione soggettiva della realtà».18 Il carattere attivo, di formazione


del mondo delle concezioni della realtà va cioè collocato, nell’intendimento di Gra-
msci, nel fuoco della lotta storico-sociale, non come momento di analisi contem-
plativa o di rispecchiamento del vero, ma come strumento egemonico-culturale di
permeazione e universalizzazione di un contesto politico.
Pragmatisticamente, è questa per Gramsci la distinzione tra ideologia e filo-
sofia: la filosofia è l’avvenuta universalizzazione di una concezione del mondo (di
un’ideologia), che supera l’immediato piano dell’azione economico-giuridica e si di-
ffonde nelle istituzioni tutte della società civile, permeandole di contenuto etico-
politico. Così: «La storia della filosofia come si intende comunemente, cioè la storia
delle filosofie dei filosofi, è la storia dei tentativi e delle iniziative ideologiche di una
determinata classe di persone per mutare, correggere, perfezionare le concezioni del
mondo esistenti […] ossia per mutare la attività pratica nel suo complesso».19 La fi-
losofia di un’epoca è una combinazione delle «concezioni del mondo delle grandi
masse», di «quelle dei più ristretti gruppi dirigenti (o intellettuali)» e dei «legami tra
questi vari complessi e la filosofia dei filosofi», «è una combinazione di tutti questi
elementi che culmina in una determinata direzione, in cui il suo culminare diventa
norma d’azione collettiva, cioè diventa ‘storia’ concreta e completa (integrale). La
filosofia di un’epoca storica non è dunque altro che la ‘storia’ di quella stessa epoca,
non è altro che la massa di variazioni che il gruppo dirigente è riuscito a determinare
nella realtà precedente: storia e filosofia sono inscindibili in questo senso, formano
‘blocco’».20 Il pensiero, concepito così nella sua effettualità storica, non solo perde
completamente il carattere contemplativo che erroneamente gli si attribuisce comu-
nemente, ma trova anzi un’identificazione totale con la prassi storica tale da mutarsi
in una forma di attività del tutto omogenea con l’evenemenzialità storica stessa. Il
pensiero è essenzialmente un atto storico-politico. Per questo, Gramsci pensa a Vico
come a un genio che da «un angoletto morto della storia» ha potuto elaborare sì una
visione del «vasto mondo», ma nella forma della «pura speculazione astratta», mentre
Hegel, che ha pensato tra la Rivoluzione francese e Napoleone, ha potuto erigere
quella «filosofia della storia» che, gravida di storia e di effettualità storica, riuscirà ad
identificare filosofia e storia, fare e pensare, e della cui effettualità sarà davvero erede
il proletariato tedesco.
Lo stesso marxismo è concepito così come un pensiero che è innanzitutto una
forma d’azione, inteso sostanzialmente come l’ideologia (la «filosofia della prassi»)
della transizione dal capitalismo alla società regolata: «Si può perfino giungere ad

18. Ivi, p. 1244.


19. Ivi, p. 1255
20. Ibidem.

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affermare che mentre tutto il sistema della filosofia della prassi può diventare caduco
in un mondo unificato, molte concezioni idealistiche, o almeno alcuni aspetti di esse,
che sono utopistiche durante il regno della necessità, potrebbero diventare ‘verità’
dopo il passaggio ecc. Non si può parlare di ‘Spirito’ quando la società è raggruppa-
ta, senza necessariamente concludere che si tratti di… spirito di corpo […] ma se ne
potrà parlare quando sarà avvenuta l’unificazione ecc.».21 Il materialismo storico è in
effetti inteso come una concezione del mondo funzionale all’azione politica, e quan-
do la sua funzione politica sarà compiuta, «tutto il sistema della filosofia della prassi
può diventare caduco»; torneranno valide, allora, «molte concezioni idealistiche, o
almeno alcuni aspetti di esse», diventeranno allora «verità», parola che Gramsci scrive
tra virgolette, come a relativizzarla.
Ci si dovrebbe interrogare su quale marxismo sia allora questo di Gramsci, che,
facendo del materialismo storico una Weltanschauung, una «concezione del mondo»
atta alla lotta comunista, ne misconosce il carattere oggettivistico, e con ciò la conna-
turata scientificità. Basterebbe una lettura dell’opera giovanile di Gramsci22 per ren-
dersi conto di come molti temi del suo marxismo siano sostanzialmente omogenei
e improntati alla revisione di Marx fatta da Croce e Gentile alla fine del XIX secolo,
e di come Gramsci accetti pacificamente come qualcosa di acquisito il carattere ide-
alistico della filosofia della prassi. E in questo, del resto, egli non costituisce affatto
un’eccezione, si può rilevare anzi come tutto il marxismo italiano sia segnato da
questo carattere idealistico, e come, coincidentemente, l’operazione di presentazione
e liquidazione del materialismo storico condotta in Italia dal neoidealismo sia stata
accompagnata da grande fortuna e abbia influenzato o, più precisamente, impron-
tato di sé tutta una generazione, impostando, attraverso una politica culturale di cui
la liquidazione del marxismo era aspetto centrale, tutta una temperie culturale. Su
questo punto, peraltro, Gramsci è assai lucido nei Quaderni, quando vede il carattere
essenziale della filosofia crociana nel revisionismo,23 ma ciò convive in lui con l’idea
che il momento più alto della filosofia mondiale sia la filosofia crociana, filosofia
speculativa arricchita dalla concretezza della filosofia della prassi.24 La problematica
marxiana di Gramsci risente perciò marcatamente di tutti quei temi che costituisco-

21. Ivi, p. 1490.


22. Non è possibile in questa sede riportare alcuni significativi passi giovanili gramsciani al riguar-
do, ci limitiamo a rimandare al nostro Gramsci e Labriola. Teoria della storia e filosofia politica in Gramsci
attraverso un confronto col marxismo di Antonio Labriola, in Atti del convegno di studi «Antonio Gramsci e la
storia d’Italia» (in corso di pubblicazione presso l’editore Unicopli di Milano).
23. «Croce dal 1912 al 1932 (elaborazione della storia etico-politica) tende a rimanere il leader delle
tendenze revisioniste per condurle fino a una critica radicale e alla liquidazione (politico-ideologi-
ca) anche del materialismo storico attenuato» (A. Gramsci, Quaderni del carcere cit., p. 1207).
24. Ivi, pp. 1209-1210.

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no la problematica marxiana com’era stata presentata da Croce,25 e tale presentazio-


ne non si era certo costituita all’insegna dell’apertura dell’intelligenza filosofica del
marxismo. La diversa e anzi opposta appartenenza politica di Gramsci rispetto al
filosofo napoletano rende certo più complessi i termini di questa filiazione, ma sem-
bra che la originalissima teoria politica gramsciana non alteri i limiti filosofici della
sua problematica di partenza, ma che piuttosto resti da questi limitata. Ha scritto Ma-
rio Tronti: «Dopo che il pensiero di Marx è passato attraverso le maglie della cultura
idealistica, che cosa ne è rimasto? Croce ha negato che esistesse un Marx ‘filosofo’;
Gentile lo ha concesso, ma lo ha considerato contraddittorio e quindi improponi-
bile; Mondolfo lo ha definito un ‘filosofo della prassi’. Ebbene, quest’ultima è da
considerarsi la conclusione logica che scaturisce da quelle premesse. Il marxismo come
‘filosofia della prassi’ è ciò che rimane del marxismo, dopo che è stato liquidato dall’interpretazione
idealistica. Rimane cioè una teoria dell’azione, una filosofia della volontà, una guida
per il comportamento sociale, una tecnica per il processo rivoluzionario, l’identità di
conoscere e fare, di pensiero e prassi; un vichianesimo corretto dal moderno pragmatis-
mo. Gramsci ha dietro di sé tutto questo passato. E senza capire tutto questo pas-
sato, non possiamo capire Gramsci; tanto meno il ‘marxismo’ di Gramsci».26 Così,
il primato attribuito alla «concezione soggettiva della realtà» sarebbe l’effetto di una
sopravvalutazione del mezzo egemonico culturale, retaggio di un’originaria e mai
abbandonata ascendenza idealistica con la preminenza data al fare umano nella sto-
ria.27 La filosofia della prassi, nella sua versione gramsciana, si definisce così come
totalmente inclusiva della teoreticità stessa nella sfera dell’azione, totalmente ridut-
tiva della teoria alla prassi, della filosofia alla politica. La determinazione soggettiva,
propria del fare umano, si trova così costituita in determinazione storica tout court. La
«filosofia della prassi» per ciò stesso non si accetta come «teoria» nel senso tradizio-
25. Cfr. al riguardo S. Timpanaro, Sul materialismo, Milano, Unicopli, 19973, pp. 203-204.
26. M. Tronti, Tra materialismo dialettico e filosofia della prassi, in A. Caracciolo e G. Scalía (a cura di),
La città futura. Saggi sulla figura e il pensiero di Antonio Gramsci, Milano, Feltrinelli, 1976, pp. 85-86.
27. Si veda com’è posta, nei Quaderni, la questione dell’oggettività: «Mi pare che sia un errore
domandare alla scienza come tale la prova dell’obbiettività del reale: questa è una concezione del
mondo, una filosofia, non un dato scientifico […]. In quanto si stabilisce questa oggettività [nella
scienza], la si afferma: si afferma l’essere in sé, l’essere permanente, l’essere comune a tutti gli uo-
mini, l’essere indipendente da ogni punto di vista che sia meramente particolare. Ma anche questa
è una concezione del mondo, è un’ideologia […] ciò che più importa non è dunque l’oggettività
del reale come tale ma l’uomo che elabora questi metodi […] cioè la cultura, cioè la concezione
del mondo, cioè il rapporto tra l’uomo e la realtà. Cercare la realtà fuori dell’uomo appare quindi
un paradosso, così come per la religione è un paradosso (peccato) cercarla fuori di Dio […].
Senza l’attività dell’uomo, creatrice di tutti i valori anche scientifici, cosa sarebbe l’‘oggettività’?
Un caos, cioè niente, il vuoto, se pure così si può dire, perché realmente se si immagina che non
esista l’uomo, non si può immaginare la lingua e il pensiero» (A. Gramsci, Quaderni del carcere cit.,
pp. 466-467)».

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nale del termine. Certo, il punto di vista di Gramsci è quello delle classi subalterne,
la sua prospettiva quella del comunismo, e questo fa sì che la volontà collettiva che
si realizza nell’azione divenga il metro di misura di questo fare umano creatore di
storia; è la volontà collettiva appunto il vero soggetto, e solo la passività delle masse
può lasciare campo all’azione di volontà sociali parziali.28 È questo il punto di vista
della praticità essenziale della filosofia della prassi sviluppato nella monografia su
Gramsci di Giorgio Nardone, per il quale appunto «persino la categoria che intende
esprimere il momento massimo dell’oggettività non sfugge alla praticità che è nota
definitiva di ogni certezza […]. Solo la prassi, in sostanza, può dichiarare l’efficacia
del proprio strumento e la verità della propria condizione»; le concezioni del mondo
e le ideologie «hanno esistenza solo in connessione alla volontà collettiva affermatasi
nell’azione […]. Vi è regolarità storica nella ipotesi che esista una volontà collettiva
capace di azione regolare e permanente […] Gramsci non trova la ragione sufficiente
della regolarità storica in fatti di ordine strutturale».29
Gramsci traduce in questo modo la concezione crociana della contemporanei-
tà di ogni storiografia, l’idea secondo cui il passato è sempre letto a partire dalle
preoccupazioni pratico-politiche del presente; Gramsci traduce cioè così la rinun-
cia crociana all’oggettivismo storiografico, effetto di una concezione della storia fin
dall’inizio segnata dal prevalere di una tematica neokantiana che separa sfera catego-
riale ed empiricità dell’accadere, scienza e storia.30 In Gramsci, l’infedeltà alla teoria
crociana dei distinti – di cui pure, come si è visto, si pone la questione della traduci-
bilità in termini di filosofia della prassi, in termini non speculativi31 –, insieme alla sua
assimilazione di una concezione non oggettivistica del sapere storiografico, conduce
28. Così, per esempio, la nozione di fatalità storica, in Gramsci, dipenderebbe solo dalla passività
della massa, soggetto trascendentale della storia, soggettivazione formatrice. L’azione politica è la
negazione della passività delle masse, che rompe ogni schema di prevedibilità storica costruito su
modelli di sviluppo naturale (come nel socialismo positivista e riformista) (cfr. G. Nardone, Il pensiero
di Gramsci, Bari, De Donato, 1971, pp. 31-35).
29. Ivi, pp. 308-309 e 329.
30. È questo l’aspetto irrazionalistico della filosofia di Croce rilevato da Lukács, ne La distruzione
della ragione (cfr. G. Lukács, La distruzione della ragione tr. it. di E. Arnaud, Torino, Einaudi, 1974,
pp. 19-20). Cfr. anche R. Racinaro, La crisi del marxismo nella revisione di fine secolo, Bari, De Donato,
1978, pp. 42-43.
31. «In una filosofia della prassi la distinzione non sarà certo tra i momenti dello Spirito assoluto,
ma tra i gradi della soprastruttura e si tratterà pertanto di stabilire la posizione dialettica dell’attivi-
tà politica (e della scienza corrispondente) come determinato grado superstrutturale […] l’attività
politica è appunto il primo momento o primo grado, il momento in cui la superstruttura è ancora
nella fase immediata di mera affermazione volontaria, indistinta ed elementare […]. In che senso
si può identificare la politica e la storia e quindi tutta la vita e la politica. Come perciò tutto il si-
stema delle superestrutture possa concepirsi come distinzioni della politica e quindi si giustifichi
l’introduzione del concetto di distinzione in una filosofia della prassi. Ma si può parlare di dialet-
tica dei distinti e come si può intendere il concetto di circolo fra i gradi della superestruttura?» (A.
Gramsci, Quaderni del carcere cit., pp. 1568-1569).

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all’identificazione di filosofia, politica ed economia: «Se queste tre attività sono gli
elementi costitutivi necessari di una stessa concezione del mondo, necessariamente
deve esserci, nei loro principi teorici, convertibilità da una all’altra, traduzione reci-
proca nel proprio specifico linguaggio di ogni elemento costitutivo: uno è implicito
nell’altro, e tutti insieme formano un circolo omogeneo»32. L’immanenza assoluta
della realtà significa, per Gramsci, la sua politicità, è infatti la politica ad avere la pre-
minenza tanto sull’economia quanto sulla filosofia, «perché l’atto politico ingloba il
passato, il presente e l’avvenire, presuppone l’economia e attua la filosofia, fonde in
un blocco la struttura e la sovrastruttura, realizza l’unione della teoria e della pratica,
l’attività cosciente organizzata che fa la storia».33 Nella sua teoria della traducibilità dei
linguaggi scientifici, Gramsci propone infatti la riduzione a politica di tutte le filosofie
speculative: «Riduzione a ‘politica’ di tutte le filosofie speculative, a momento della
vita storico-politica; la filosofia della praxis concepisce la realtà dei rapporti umani di
conoscenza come elemento di ‘egemonia’ politica».34 Infatti, scrive: «La proposizione
contenuta nell’introduzione alla Critica dell’economia politica che gli uomini prendono
coscienza dei conflitti di struttura nel terreno delle ideologie deve essere considerata
come un’affermazione di valore gnoseologico e non puramente psicologico e mora-
le. Da ciò consegue che il principio teorico-pratico dell’egemonia ha anch’esso una
portata gnoseologica […]. La realizzazione di un apparato egemonico, in quanto crea
un nuovo terreno ideologico, determina una riforma delle coscienze e dei metodi di
conoscenza, è un fatto di conoscenza, un fatto filosofico. Con linguaggio crociano:
quando si riesce a introdurre una nuova morale conforme a una nuova concezione
del mondo, si finisce con l’introdurre anche tale concezione, cioè si determina una
intera riforma filosofica».35 Ne consegue che: «Tutto è politica, anche la filosofia o
le filosofie […] e la sola ‘filosofia’ è la storia in atto, cioè è la vita stessa. In questo
senso si può interpretare la tesi del proletariato tedesco erede della filosofia classica
tedesca».36
In questo primato della politica, assimilata alla storia e alla filosofia, Gramsci
vede l’aspetto conclusivo della sua riforma del pensiero di Croce, che non aveva
potuto spingersi fino alla identificazione della politica con la storia e con la filoso-
fia – e che però implicitamente aveva realizzato proprio questa identificazione: non
era Croce il miglior storiografo del trasformismo liberale?37 –, e la conseguente
32. Ivi, p. 1493.
33. A.R. Buzzi, La teoria politica di Gramsci cit., p. 213.
34. A. Gramsci, Quaderni del carcere cit., p. 1244.
35. Ivi, pp. 1249-1250.
36. Ivi, p. 886.
37. «[Croce] Crede di trattare di una filosofia e tratta di una ideologia, crede di trattare di una
religione e tratta di una superstizione, crede di scrivere una storia in cui l’elemento di classe sia

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Gramsci su Vi co : l a filosofia come una forma dell a politica

identificazione assoluta della teoria e della pratica, colte attraverso la politica nella
loro identità. È la politica che unifica i termini dello storicismo assoluto gramsciano
–e, secondo Gramsci, è da trovarsi nella mancata esplicitazione di questo termine
unificatore il carattere ideologico deteriore dello storicismo assoluto crociano –, è
la politica che spiega la differenza tra ideologia e filosofia come una differenza non
esprimibile in termini di verità, ma che si dà «solo per gradi (quantitativa) e non qua-
litativamente», in virtù cioè dell’universalizzarsi di una concezione del mondo, del
suo passare da un livello immediato, economico-corporativo, ad uno più universale,
etico-politico, in virtù cioè dell’estensione della sua prassi trasformatrice. Gramsci
ritiene allora di aver portato alle estreme conseguenze la nozione crociana della con-
temporaneità di ogni storia, spingendola appunto fino alla sua assimilazione con la
politica, all’identificazione di ideologia e filosofia.38
È dunque per Gramsci la filosofia vichiana, come «pura speculazione astratta»,
di poco momento, privata com’è d’incidenza storica, opera isolata e distante dai
centri europei, dai centri dell’azione storica, politica e filosofica. Ad essa Gramsci
applica così solo negativamente la sua definizione di storia della filosofia – che si è
riportata sopra – come storia di una lotta ideologica tra concezioni del mondo, o me-
glio come storia del perfezionamento delle concezioni del mondo volto a «mutare la
attività pratica nel suo complesso»; una definizione che, riducendo la filosofia appun-
to a «concezione del mondo», e insistendo sul carattere pratico-politico di questa, ha
certo il merito di negare la pretesa autoreferenzialità delle filosofie, vincolandole alla
«vita» e intendendole come politica, ossia come aspetto sovrastrutturale del conflitto
sociale, del conflitto tra le «grandi masse» e i «gruppi dirigenti». Ciononostante, c’è
in questa impostazione un elemento di disconoscimento della maggior complessità
del pensiero filosofico, che non è solo trasformazione, non ambisce solo, attraverso
concetti, a diventare «norma d’azione collettiva», a diventare cioè «‘storia’ concreta
esorcizzato e invece descrive con grande accuratezza e merito il capolavoro politico per cui una
determinata classe riesce a presentare e far accettare le condizioni della sua esistenza e del suo
sviluppo di classe come principio universale, come concezione del mondo, come religione, cioè
descrive in atto lo sviluppo di un mezzo pratico di governo e di dominio. L’errore di origine pra-
tica non è stato commesso in tal caso dai liberali del secolo XIX, che anzi praticamente hanno
trionfato, hanno raggiunto i fini propostisi; l’errore di origine pratica è commesso dal loro storico
Croce che dopo aver distinto filosofia da ideologia finisce col confondere una ideologia politica
con una concezione del mondo, dimostrando praticamente che la distinzione è impossibile, che
non si tratta di due categorie, ma di una stessa categoria storica e che la distinzione è solo di gra-
do; è filosofia la concezione del mondo che rappresenta la vita intellettuale e morale (catarsi di
una determinata vita pratica) di un intero gruppo sociale concepito in movimento e visto quindi
non solo nei suoi interessi attuali e immediati, ma anche in quelli futuri e mediati; è ideologia ogni
particolare concezione dei gruppi interni della classe che si propongono di aiutare la risoluzione
di problemi immediati e circoscritti» (ivi, p. 1231)
38. Cfr. ivi, pp. 1241-1242.

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Marco Vanzulli

e completa (integrale)». Per Gramsci, «la filosofia di un’epoca storica non è dun-
que altro che la ‘storia’ di quella stessa epoca», e, come abbiamo visto, la storia
di un’epoca è senz’altro politica. La filosofia è politica. Ma una tale identificazione
risente di un grado d’astrazione ancora una volta tutto crociano nel rimuovere dalla
considerazione della storia tutti quei nessi «oggettivi» che sono nelle «cose stesse»,
intendendo l’accadere storico come quella somma di dati empirici bruti cui si oppo-
ne un universo categoriale spirituale e umano, intendendo cioè la storia come quel
relativo, quel contingente che è per l’idealismo il terreno su cui si esercita il fare uma-
no creatore, l’assoluto,39 facendo così della storia soltanto il campo d’azione della
volontà umana, un campo di lotta tra concezioni del mondo, riducendo appunto la
storia a politica, limitandola a campo d’azione della prassi trasformatrice, svincolan-
do così la teoria da ogni compito di rappresentazione dei nessi reali, di rilevazione
delle strutture ontologiche che della storia costituiscono la realtà; perdendo di vista,
infine, nel cogliere la correlazione (o meglio, ancora, l’identità) dell’aspetto «pragma-
tico» e dell’aspetto «teoretico», la loro distinzione. O intendendo la loro distinzione
nell’unica forma possibile della «pura speculazione astratta». Diceva già Labriola che
certo il marxismo era nato dal comunismo, cioè dal movimento moderno sorto in
seno al capitalismo per il superamento di questo; e tuttavia osservava che una tale
dottrina, nata dal comunismo, avrebbe continuato ad essere vera anche se il socialis-
mo non avesse dovuto trionfare.40 Labriola intendeva dire che anche se il socialismo
non avesse dovuto estendersi a movimento sociale egemone o comunque acquisire
una maggiore universalizzazione, anche se esso non fosse stato più pensato o sos-
tenuto da nessuno, non avrebbe perduto per questo il proprio carattere di verità
e oggettività, la propria dimensione veritativa, cioè teoretica. La «filosofia» – e il
marxismo per Labriola è anche una filosofia – non è insomma «ideologia», mantiene
rispetto ad essa una differenza qualitativa, e non solo di grado, per quanto sia da
vincolare alla prassi da cui sorge ed alla prassi che è capace di suscitare. Siccome alla
determinazione della struttura ontologica del reale, della storia, non ci si può mai
sottrarre, l’identificazione gramsciana di filosofia e politica, la riduzione della prima
alla seconda, riproduceva il dualismo di spirito-materia ereditato dal neo-idealismo
italiano; lungi quindi dall’eliminare ogni dualismo, come riteneva di aver fatto la
filosofia della prassi, eliminava il dualismo di pratico e teorico, soltanto annullan-
39. E in particolare per l’attualismo André Tosel notava come la libertà positiva dell’atto storico
fosse ereditata, dai Quaderni del carcere nella teoria dell’unità delle strutture e delle soprastrutture,
cioè nella teoria del «blocco storico», cfr. A. Tosel, Marx en italiques. Aux origines de la philosophie
italienne contemporaine, Mauzevin, Trans-Europ-Repress, 1991, p. 109.
40. Dagli appunti del corso di filosofia della storia tenuto da Labriola all’università di Roma
nell’anno 1894-1895, citati in Luigi Dal Pane, Antonio Labriola nella politica e nella cultura italiana,
Torino, Einaudi, 19752 [1935], p. 377.

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Gramsci su Vi co : l a filosofia come una forma dell a politica

do il secondo nel primo. Al di là di Gramsci, quindi, la politicità della filosofia va


definita nella sua relazione con un’ontologia storica, attraverso una differente e più
aperta teorizzazione del nesso tra teoria e pratica, rinunciando anche, d’altro lato, ad
un’unilaterale connotazione della politica, e forse limitandone, nonché l’autonomia,
la stessa portata trasformatrice.

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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

José Chasin:
a ontonegatividade da politicidade em Marx
Ana Selva Castelo Branco Albinati*1

Resumo:
Palavras-chave:

Abstract:

Keywords:
.

* Professora de Filosofia da PUC – Minas.

51
Ana S elva Ca stel o Branco Albinati

O mínimo a que somos elevados pela de-


terminação onto-negativa da politicidade,
configurada por Marx, é à percepção de que
a prática política é por natureza irresolutiva,
de modo que é uma ilusão castradora assen-
tar sobre ela a esperança de que as questões
humano-societárias possam por seu meio ser
efetivamente resolvidas.
Chasin, 2000, p.39

O propósito desse artigo é trazer à tona o trabalho realizado por José Chasin na
elucidação de um aspecto central do pensamento de Marx, que é a crítica à política.
O significado do esforço de Chasin está em que ele nos remete à fundamentação
ontológica de tal crítica, tratando-a com o rigor e o alcance devidos à dimensão e
originalidade com que Marx a propõe. A compreensão da relação entre a atividade
política e a existência social, entre o ser social e o Estado, possibilitada pelos estu-
dos de Chasin permite, aos leitores de Marx, o resgate do sentido profundo de sua
proposição filosófica, qual seja, a possibilidade da emancipação humana, desentra-
nhada dos equívocos e ilusões sobre os quais se sustenta a concepção tradicional do
sentido e da razão de ser da política.
A tradição ocidental nos legou, a partir dos gregos, uma concepção da política
como ciência superior, conhecimento racional que visa uma normatividade fundada
sobre o que seriam os elementos da natureza humana que estão envolvidos direta-
mente na vida em comunidade: a racionalidade e a liberdade na determinação de
valores, normas e instituições que garantam a vida em comunidade.
Nessa perspectiva, temos o reconhecimento de uma positividade na ação po-
lítica, positividade referida aqui à destinação da política e ao reconhecimento de
sua qualificação intrínseca para esta destinação. Em outros termos, a política é tida
como a esfera privilegiada da expressão da liberdade e da isonomia humanas, como
esfera racional de conformação das relações sociais a partir do estabelecimento (ra-
cional) de critérios para uma vida justa. A politicidade seria o elemento por excelên-
cia do humano.
Essa concepção da política permanece ainda hoje como o horizonte ao qual
devem se voltar as práticas políticas, e resiste a despeito do exercício sempre faltoso
em relação ao seu conceito. Em outros termos, se as práticas políticas são imper-
feitas, isso não é suficiente para abalar a confiança na politicidade, entendido como

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José Chasin : a ontonegativid ade d a politicid ade e m Marx

atributo inerente ao ser social, e isso parece constituir o núcleo da filosofia política
da antiguidade aos nossos tempos.
Mesmo um autor como Maquiavel, a quem devemos o grande questionamen-
to do sentido da política e do papel do Estado, ainda se inscreve no interior dessa
perspectiva, diferenciando-se, no entanto, ao apresentar, de forma realista, a essência
da atividade política em um momento no qual a relação entre o indivíduo e a co-
munidade já se apresentava muito mais cindida e complexa e, portanto, exigia uma
explicitação mais clara do papel do Estado na condução dos problemas sociais.
A questão central para Maquiavel era a preservação da unidade de um povo, que
ele via ameaçada quando do desmoronamento da ordem feudal e do surgimento
dos novos elementos da ordem capitalista. A emergência do indivíduo e sua predo-
minância sobre o comunitário ensejava todo um modo novo de viver que parecia
ameaçador para o autor. Como observa Chasin,
Sua enérgica denúncia e rejeição, sistematicamente reiteradas, do presente cor-
rompido, assim como a concepção resolutiva dos choques e confrontos que ado-
ta, comprovam que não é do realismo com que reconhece a desagregação moderna
que extrai o pólo norteador da parte concludente de sua reflexão, mas de uma luz
que vem do passado, para se transfigurar em suas mãos num claro-escuro revela-
dor. (CHASIN, 2000, p. 225)
O significativo da inflexão realizada por Maquiavel em relação à política é que
ele desvela o modo de ser da política, modo de ser agora claramente exposto, que
se refere à sua relação intrínseca com a forma da sociabilidade. A política é uma in-
tervenção, assegurada pelo monopólio do poder e da violência legitimada, sobre as
contradições da sociedade, sobre as fissuras internas à existência social, de forma a
mantê-las sob controle.
Ainda segundo Chasin,
um dos grandes méritos de Maquiavel foi ter constatado e admitido a existência
do fenômeno social que, bem mais adiante, recebeu o nome técnico de contradição,
porém, sob a forma reduzida e dessubstanciada do que também posteriormente
foi chamado de conflito. (2000, p. 227)
Vale dizer que a grandeza de Maquiavel de reconhecer a desunião e a desordem
como elementos da vida em sociedade, rompendo com a mística da harmonia social,
recua na medida em que essas não são compreendidas como contradições a serem
superadas, mas como conflitos diante dos quais não pode haver superação, remeti-
dos a uma antropologia naturalista que lhes dá subsistência ad eternum.
A percepção de uma ordem social pautada sobre contradições, e o remetimento
destas ao estatuto de conflitos, originários e eternos, próprios da natureza humana,
possibilitam a Maquiavel a leitura da política como artifício de assegurar a ordem

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Ana S elva Ca stel o Branco Albinati

frente a seus elementos negadores. Para tanto, a razão política se descola da razão
ética, baseada na homologia com a harmonia da physis, e ganha os contornos de uma
arte de estabilizar as contradições.
O caráter irresolutivo da política, em relação às questões sociais, se manifesta in-
tegralmente na reflexão de Maquiavel, assumindo, no entanto, uma fundamentação
naturalista, na qual a realidade empírica de seu tempo se ancora sobre uma antropo-
logia do egoísmo como dado irrecusável das relações humanas.
O desenvolvimento filosófico de tal fundamentação se dará em Hobbes, cujo
pensamento consagra a necessidade do Estado como condição sine qua non da sobre-
vivência dos indivíduos e a idéia do estado de natureza como ameaça constante que
ronda os indivíduos fora do domínio da sujeição ao Estado.
A questão que perpassa a filosofia política diz respeito à legitimidade do poder
do Estado. Em outras palavras, temos que, a partir de uma constatação da neces-
sidade de regulação das contradições sociais, o Estado é entendido como esfera
que dispõe do monopólio do uso legítimo da força para intervir internamente nas
questões sociais, bem como para garantir a segurança frente às outras nações, como
afirmará Max Weber.
De forma bastante simplificada, a existência do Estado se justifica pelo reco-
nhecimento das dificuldades de se viver em sociedade. A positividade da atividade
política está em atuar como uma arte de resolução de conflitos.
O que fica, no entanto, oculto, nessa formulação, é a razão de ser e o caráter
dessas dificuldades que, em sua incompreensão, são tomadas como parte da condi-
ção humano-social, entronizando assim, a politicidade como elemento essencial da
existência social.

A trajetória de Marx rumo à determinação onto-negativa da politicidade

É contra essa determinação da política como atributo constitutivo do ser social,


que Marx se coloca. E, ao fazê-lo, ele reconfigura toda uma tradição no que se refere
à relação entre indivíduo-sociedade e Estado.
Não se trata só da conhecida questão do fim do Estado, uma vez que esta se
coloca no interior de uma determinação mais ampla e profunda que é a do significa-
do da política, e da negação da politicidade enquanto atributo inerente à existência
social.
Esse aspecto fundamental do pensamento de Marx foi exaustivamente trabalha-
do por José Chasin, que procurou trazer à tona a radicalidade da proposição marxia-
na através do termo “ontonegatividade da politicidade”.

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José Chasin : a ontonegativid ade d a politicid ade e m Marx

A ontonegatividade se refere à negação da política ou da politicidade, ou seja, da


dimensão política, como componente ineliminável da vida social. A atividade políti-
ca não se assenta sobre uma dimensão constitutiva da vida social, nem representa a
vocação universalista de uma dada essência humana. Em outras palavras, ela não é
imprescindível nem como elemento superior da relação humano-social, nem como
mal necessário.
A politicidade indica, ao contrário, uma insuficiência da sociabilidade, e não o
seu corolário. A atividade política, enquanto meio para a regulação social, expressa
não um mérito, mas um déficit social. Se até então as contradições sociais eram
compreendidas como conflitos inerentes à condição humano-social, Marx procurará
compreendê-las em sua gênese, retirando-lhes assim o caráter de necessidade e eter-
nidade, para o qual a melhor resposta seria a política.
O Estado surge como resposta às contradições entre interesses privados e inte-
resses coletivos que são, por sua vez, oriundos da divisão do trabalho que separa os
indivíduos em redutos específicos que os impedem de compartilhar de uma forma
concreta a universalidade do gênero.
A questão de que o Estado venha a representar um dado conjunto de valores
e interesses particulares como sendo universal se acrescenta a essa compreensão
primeira.
Trata-se para Marx de fazer a crítica da forma da sociabilidade sobre a qual se
erige a necessidade do Estado. Esta trajetória se inicia com a Crítica da filosofia do
direito de Hegel, texto de 1843.1, no qual o autor concentra-se sobre os parágrafos da
obra de Hegel, Princípios da filosofia do direito, que tratam do Estado.
O texto de Marx se compõe de camadas de críticas e considerações a respeito
da relação entre sociedade e Estado, tal como colocada por Hegel, que se assentam
sobre uma crítica de caráter ontológico, qual seja, a identificação da inversão ontoló-
gica que Hegel realiza entre o sujeito e o predicado. Isso equivale a dizer que Hegel
toma a Idéia como sujeito e a realidade como predicado desta Idéia, como já havia
sido denunciado por Feuerbach.
Segundo Marx, Hegel “deduziria” a relação entre Estado e sociedade civil a
partir de uma lógica que lhe é imposta de fora. Assim sendo, em Hegel, “a lógica não
serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração da lógica.”
(MARX, 2005, p.39)
1. No período anterior a 43, os textos de Marx expressavam uma consonância com a determi-
nação onto-positiva da política, como se pode observar nas análises realizadas por Chasin em
“Marx-a determinação ontonegativa da politicidade” (2000, p.129-161), ou ainda por Eidt (2001,
p.79-100).

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Ana S elva Ca stel o Branco Albinati

O fenômeno político passa a ser uma aplicação da lógica hegeliana, na qual a


idéia que se desdobra no Espírito objetivo, nas esferas da família e da sociedade se
recupera, agora plena de determinações, no Estado.
Sendo a idéia o sujeito, temos, segundo Marx, que em Hegel,
A realidade empírica é tomada tal como é; ela é também enunciada como racio-
nal; porém ela não é racional devido à sua própria razão, mas sim porque o fato
empírico, em sua existência empírica, possui um outro significado diferente dele
mesmo. O fato, saído da existência empírica, não é apreendido como tal, mas
como resultado místico. (2005, p.31)
Assim, a crítica ao edifício lógico de Hegel, que tem na filosofia do espírito obje-
tivo o Estado como ápice, é feita por Marx no sentido de indicar neste procedimento
a inversão da relação entre ser e idéia, e a mistificação que dela se deriva.
A crítica ao procedimento especulativo se enlaça à crítica do próprio Estado,
que já se inicia neste texto, vindo culminar numa compreensão absolutamente pecu-
liar ao pensamento marxiano do significado da política.
Se a princípio, trata-se não da recusa do Estado enquanto instância de universa-
lidade, mas da recusa do procedimento especulativo que qualificaria qualquer Estado
existente como racional e, nessa medida, insere-se a defesa da democracia em con-
traposição ao reconhecimento da monarquia constitucional como expressão legítima
do Estado moderno por Hegel, encontra-se, no entanto, elementos nesse texto que
já propiciam a ruptura com a determinação positiva da política.
Temos, em Hegel, que o grande mérito do Estado moderno é a manutenção
das particularidades na vida civil e a conciliação de seus interesses na vida política.
O passo decisivo que Marx dá, neste texto, é a tematização das razões que levaram
historicamente a este distanciamento entre interesse privado e interesse público.
Nesse sentido, enquanto o que Hegel identifica como mérito da modernidade,
fruto do desenvolvimento da Idéia de liberdade, qual seja, o distanciamento entre
as esferas civil e política e a conciliação via Estado moderno, Marx verá este dis-
tanciamento em sua constituição histórica e em sua significação contraditória, e a
conciliação, a princípio, possível apenas na forma democrática.
Marx contrapõe a democracia à monarquia, atribuindo à primeira forma de go-
verno a capacidade de conciliação verdadeira entre os interesses particulares e os
interesses universais do gênero humano.
A relação entre vida civil e vida política se torna clara quando Marx afirma:
Na monarquia, o todo, o povo, é subsumido a um de seus modos de existência,
a constituição política; na democracia, a constituição mesma aparece somente como
uma determinação e, de fato, como autodeterminação do povo. Na monarquia
temos o povo da constituição; na democracia a constituição do povo. A democra-

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José Chasin : a ontonegativid ade d a politicid ade e m Marx

cia é o enigma resolvido de todas as constituições. Aqui a constituição, não apenas


em si, segundo a essência, mas segundo a existência, segundo a realidade, em seu
fundamento real, o homem real, o povo real, e posta como a obra própria deste último.
(2005, p.50)
A sociedade civil aparece neste texto, mesmo que ainda não em seu contorno
definitivo, como o pólo determinante das relações políticas e jurídicas, em oposição
à colocação hegeliana do Estado como fundamento e síntese das esferas da família e
da sociedade. Esta reconfiguração da relação sociedade-Estado possibilitará a Marx
uma abordagem radicalmente distinta da de Hegel da política e do Estado.
Na análise marxiana, o Estado moderno estaria divorciado da sociedade civil.
Esse divórcio se traduziria efetivamente na cisão entre o cidadão do Estado e o indi-
víduo enquanto membro da sociedade, em sua vida privada.
Marx dirá que o indivíduo privado não se reconhece na determinação universal
abstrata, e o cidadão não se traduz na sua realidade empírica.
Estado e sociedade são então esferas antitéticas, na medida em que a primeira
é apenas a expressão formal da determinação humana, porém vazia de conteúdo e
a segunda é a esfera da fragmentação, do material que não encontra uma vinculação
com sua expressão mais genérica. Por isso, a conciliação que se pretende via Estado
não passa de uma conciliação formal.
Na Crítica a filosofia do direito de Hegel, a superação desta fragmentação se daria
através da democracia. A continuidade dessa temática nos textos subseqüentes, no
entanto, indica que a própria democracia seria o caso limite desta conciliação via
Estado.
O ponto ao qual Marx chega é uma reconsideração radicalmente distinta da rela-
ção entre Estado e sociedade, que se coloca na contraposição à tese da positividade
da politicidade.
A partir da Crítica de 43, o seu foco se desloca para a compreensão do movimen-
to da sociedade civil, como base do entendimento da relação Estado-sociedade.
De acordo com a análise histórica oferecida pelo autor, a separação entre os
interesses sociais e os interesses políticos teve sua origem a partir do final da Idade
Média. Esta progressiva abstração do Estado seria o movimento de descolamento da
imediatidade do social, decorrente das mudanças estruturais ocorridas na passagem
da sociedade feudal à sociedade moderna.
Na sociedade feudal, identifica-se a presença explícita dos interesses privados na
esfera política, a constituição política traduz de forma imediata a vida civil, marcada
por toda sorte de privilégios. Marx refere-se a essa situação dizendo que “na Idade

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Ana S elva Ca stel o Branco Albinati

Média a vida do povo e a vida política são idênticas. O homem é o princípio real do
Estado, mas o homem não livre”, ou ainda caracteriza a Idade Média como “a demo-
cracia da não liberdade.” (2005, p.52)
No movimento histórico de autonomização do político, ocorre exatamente a
perda dessa referência imediata ao conteúdo social em favor de uma concepção
representativa e universalista. O Estado moderno se caracteriza, segundo Marx, por
uma relação de exterioridade em relação à vida civil, resguardando a universalidade
que faltava aos “Estados de unidade substancial”, nos quais a tradução da vida civil
se pautava pela manutenção da desigualdade e dos privilégios privados na esfera
política.
Essa universalidade formalizada na modernidade, no entanto, se relaciona com
a fragmentação da vida civil moderna de forma semelhante ao que se verifica no
fenômeno religioso. A constituição política moderna é “o céu de sua universalidade
em contraposição à existência terrena de sua realidade.” (MARX, 2005, p.51)
Questão que ele desenvolve em A Questão Judaica ao dizer que:
O Estado elimina, à sua maneira, as distinções estabelecidas por nascimento, posi-
ção social, educação e profissão, ao decretar que o nascimento, a posição social, a
educação e a profissão são distinções não políticas; ao proclamar, sem olhar a tais
distinções, que todo o membro do povo é igual parceiro na soberania popular, e
ao tratar do ponto de vista do Estado todos os elementos que compõem a vida
real da nação.. No entanto, o Estado permite que a propriedade privada, a educa-
ção e a profissão atuem à sua maneira, a saber, como propriedade privada, como
educação e profissão, e manifestem a sua natureza particular. Longe de abolir
estas diferenças efetivas, ele só existe na medida em que as pressupõe; apreende-
se como Estado político e revela a sua universalidade apenas em oposição a tais
elementos. (MARX, 1989, p.44)
O Estado se mostra como uma esfera de pseudo-conciliação, de universalidade
apenas formal, independente da forma política. Não se trata mais do regime político,
mas da essência do Estado que seria marcada por uma tentativa sempre insuficiente
de reparação da cisão fundamental advinda da sociedade civil, e que nunca pode ser
resolvida na esfera política.
Marx procura demonstrar a insustentabilidade da tentativa de Hegel de unificar
os interesses privados da sociedade com o interesse universal do Estado:
Hegel não chamou a coisa de que aqui se trata por seu nome conhecido. É a con-
trovérsia entre constituição representativa e constituição estamental. A constituição
representativa é um enorme progresso, pois ela é a expressão aberta, não-falseada,
conseqüente, da condição política moderna. Ela é a contradição declarada. (MARX, 2005,
p.93)

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José Chasin : a ontonegativid ade d a politicid ade e m Marx

É a fragmentação vivida pelos indivíduos privados que sustenta a universalidade


idealizada no Estado e na figura do cidadão. Marx percebe na política a mesma rela-
ção “espiritual” que se estabelece entre o céu e a terra, entre o reino da idealidade e
o campo de batalha dos interesses conflitantes, e daí a sua consideração na Introdução
à Crítica da filosofia do direito de Hegel, do Estado como sendo a forma profana de alie-
nação, nos mesmos moldes que a religião seria a sua forma sagrada.
O Estado proclama uma igualdade e uma universalidade em contraposição à
efetiva realidade da vida social. De acordo com Marx, esse estado de coisas começa
a se revelar não como um “acidente” na relação do Estado com a sociedade, para o
qual, por exemplo, a democracia poderia ser o corretivo, mas como a relação real e
possível entre a esfera política e a esfera social na sociedade moderna.
Ao contrário da concepção clássica de política, na qual a virtude do Estado
consiste em ser, ao menos potencialmente, o depositário dos princípios universais
que tornariam todos os homens iguais nos seus direitos e deveres, Marx sustenta que
o Estado se origina exatamente das insuficiências de uma sociedade em realizar em
si mesma, de forma concreta, estes ideais universalistas, ou seja, de garantir em sua
dinâmica a igualdade de condições sociais.
José Chasin se dedica à recomposição e análise desta trajetória de Marx, em
vários de seus textos.2 Na trilha aberta por Marx, Chasin dirá então de uma ontone-
gatividade do Estado, cuja presença indica o “caráter anti-social” da vida civil. Essa
determinação tem caráter ontológico já que se refere à natureza do Estado, ao seu
“ser-precisamente-assim”.
Mas se é assim, a questão a se enfrentar não é mais a do aperfeiçoamento do
Estado e da política, mas sim a da compreensão do ser social que leva à necessida-
de da política. O reconhecimento do texto crítico de 1843 como sendo o texto de
transição que marca a ruptura com a tradição idealista se justifica na medida em que
Marx traz à tona, a partir daí, a existência social como o elemento primário a ser
considerado em sua relação com o Estado, contrariamente à proposição hegeliana.
Como bem analisa Enderle,
O esforço de Marx em Kreuznach rendera-lhe a preciosa noção de “autodeter-
minação da sociedade civil”. Subsistia, no entanto, uma grave insuficiência:a con-
tradição entre Estado e sociedade civil permanecia nos quadros de um problema
de ordem política, uma deficiência localizada no terreno da “vontade”. Imedia-
tamente após a Crítica, nos Anais Franco-alemães, Marx tratará de superar essa
posição. A gênese da alienação política será detectada no seio da sociedade civil,
nas relações materiais fundadas na propriedade privada. Conseqüentemente, não
se tratará mais de buscar uma resolução política para além da esfera do Estado abs-
2. A este respeito, temos os diversos artigos que compõem a revista Ensaios AdHominem 1,
tomo III – CHASIN, José: Política – a determinação ontonegativa da politicidade.

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Ana S elva Ca stel o Branco Albinati

trato, mas sim uma resolução social para além da esfera abstrata da política.
Na Crítica, Marx encontrou seu objeto.
Faltava desvendar sua “anatomia”. (2005, p.26)
Ou seja, a partir de um certo momento do texto de Marx, o Estado deixa de
ser uma presença espiritual, pairando sobre a sociedade civil, e esta “espiritualidade
universal” passa a ser entendido como uma necessidade vinculada aos interesses
materiais da sociedade civil.
De acordo com Chasin,
em contraste radical com a concepção do Estado como demiurgo racional da
sociabilidade, isto é, da universalidade humana, que transpassa a tese doutoral e
os artigos da GR, irrompe e domina agora, para não mais ceder lugar, a ‘sociedade
civil’ - o campo da interatividade contraditória dos agentes privados, a esfera do
metabolismo social - como demiurgo real que alinha o Estado e as relações jurídicas.
(CHASIN, 1995, p. 362)
A partir dessa consideração, Marx distingue entre o que seja a “emancipação po-
lítica” e a “emancipação humana”, distinção que aponta para os limites da primeira,
enquanto forma parcial da liberdade, uma vez que
O Estado político aperfeiçoado é, por natureza, a vida genérica do homem em
oposição à sua vida material. Onde o Estado político atingiu o pleno desenvolvi-
mento, o homem leva, não só em pensamento, na consciência, mas na realidade,
na vida, uma dupla existência – celeste e terrestre. Vive na comunidade política,
em cujo seio é considerado com ser comunitário, e na sociedade civil, onde age
como simples indivíduo privado, tratando os outros homens como meios, degra-
dando-se a si mesmo em puro meio e tornando-se joguete de poderes estranhos.
(MARX, 1989, p.45)
Resgatadas essas passagens de Marx, podemos compreender melhor o termo
cunhado por Chasin de uma “determinação ontonegativa da politicidade”, que apon-
ta no sentido de que a política não é um atributo intrínseco ao ser humano, mas sim
que ela é gerada como um subproduto de uma sociabilidade “anti-social”.
Para Marx, cobrar do Estado uma efetivação de seu conteúdo universal é cobrar
a sua extinção, uma vez que ele se sustenta sobre a contradição entre o público e o
privado, contradição esta gestada a partir da divisão do trabalho. Desta forma pode-
se entender o porquê da impotência administrativa do Estado frente às mazelas
sociais.
No artigo Glosas Críticas marginais ao artigo “O Rei da Prússia e a reforma social”, es-
critas em 44, Marx, ao polemizar com Arnold Ruge a respeito do sentido da revolta
dos tecelões da Silésia, introduz uma segunda distinção entre revolução política e
revolução social, que aprofunda a distinção entre emancipação política e emancipa-
ção humana.

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José Chasin : a ontonegativid ade d a politicid ade e m Marx

Esclarecendo com mais rigor a gênese do Estado, ele dirá que o Estado
descansa na contradição entre a vida pública e a vida privada, na contradição entre os
interesses gerais e os interesses particulares. Daí que a administração deva limitar-se a uma
atividade formal e negativa, pois sua ação termina ali onde começa a vida civil e seu
trabalho. Mais ainda, frente às consequências que derivam do caráter anti-social
desta vida civil, desta propriedade privada, deste comércio, desta indústria, deste
mútuo saque dos diversos círculos civis, é a impotência a lei natural da administra-
ção. Com efeito, este desgarramento, esta vileza, esta escravidão da vida civil constitui
o fundamento natural em que se baseia o Estado moderno, do mesmo modo que
a sociedade civil da escravidão constituía o fundamento sobre o qual descansava o
Estado antigo. (MARX, 1987, p.513)
Uma vez que o Estado moderno se sustenta sobre a sociabilidade marcada pelos
interesses particulares antagônicos, não se pode esperar dele uma erradicação des-
tas mazelas, mas tão somente a eternização das mesmas de maneira administrada,
através de medidas paliativas. Dessa forma é que Marx argumenta que, mesmo nos
países mais desenvolvidos politicamente, permanecem essas mazelas sociais. Assim,
os bolsões de miséria identificados em todos os países modernos são tidos como
elementos constituintes, para os quais o Estado só pode propor a assistência social
conjugada com a penalidade jurídica.
Portanto, trata-se de diferenciar o que seja emancipação política, com o seu
correlato, o Estado moderno e a sociedade civil, e o que seja emancipação humana,
o rompimento da lógica política, com o advento de uma sociabilidade que permita
um mais pleno desenvolvimento das potencialidades do ser social. Continuando em
sua argumentação, Marx acrescenta que
quanto mais poderoso for o Estado e mais político seja portanto o país, menos se
inclinará a buscar no princípio do Estado, e portanto, na atual organização da sociedade,
cuja expressão ativa consciente de si e oficial é o Estado, o fundamento dos males
sociais e a compreender seu princípio geral. O entendimento político o é precisa-
mente porque pensa dentro dos limites da política. E quanto mais vivo e sagaz seja,
mais incapacitado se achará para compreender os males sociais. (1987, p.514)
O aspecto a se ressaltar neste trecho é a determinação das limitações originárias
do Estado, o que determina a impotência não de uma facção ou outra que esteja na
administração, mas do Estado enquanto tal. Se assim é, nenhuma revolução política,
por melhor intencionada que seja e, portanto, mais vontade política demonstre em
efetivar uma boa administração, será suficiente para levar a cabo as transformações
sociais necessárias para dirimir as questões da miséria. A esperança de que a questão
social possa ser resolvida através da política se baseia, de acordo com Marx, em uma
incompreensão dos limites da política.

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Ana S elva Ca stel o Branco Albinati

E aqui Marx toca numa questão que é muito cara aos tempos atuais: a cidadania
e a correlata fé na “vontade política”.
Com Marx, nós nos colocamos num terreno absolutamente outro, no qual estas
noções teriam que ser reavaliadas inteiramente. Não se trata de extrair daqui que
Marx tenha rechaçado a política, que ele tenha tomado como equivalentes quaisquer
proposição e ação políticas, ou mesmo tomado como indiferentes quaisquer gover-
nos ou regimes políticos. Do que se trata é de esclarecer a essência da politicidade,
de compreender a esfera política em sua gênese, em sua relação com a forma da
sociabilidade, e em seus limites efetivos, derivados de sua condição ontológica. Ao
fazê-lo, coloca-se em questão a crença na política baseada na noção de uma “vontade
política”, exatamente porque, como dirá Marx, a crença na onipotência da vontade
como fundamento da política desvia o foco da questão fundamental, que é a das
insuficiências da existência social. É por isso que ele afirma que “se o Estado mo-
derno quisesse acabar com a impotência de sua administração, teria que acabar com
a atual vida privada. E se quisesse acabar com a vida privada, teria que destruir-se a
si mesmo, pois o Estado só existe por oposição a ela.”(1987, p.514)
A compreensão da sociedade civil em sua totalidade e sistematicidade passa a ser
o objeto de Marx, uma vez compreendida a precedência desta sobre o Estado e as
formas jurídicas, de tal forma que a questão se desloca, a partir de Marx, do campo
da política para o terreno da vida social concreta.
Esse aspecto do pensamento de Marx é central para a recomposição de sua
proposição, segundo Chasin, na medida em que
O ser e o destino do homem, que abstrata e, muitas vezes, mesquinhamente atraves-
sa a história recente da filosofia, não é para Marx meramente aquilo que a pobreza
de uso acabou por conferir ao termo humanismo; não é um glacê sobre o oco,
mas a questão prático-teórica por excelência, o problema permanente e constante,
que não desaparece nem pode ser suprimido. (2000, p. 120)
Ou seja, a questão central que alinha toda a perspectiva marxiana é a da eman-
cipação humana, que, no entanto, não pode ser reduzida simplesmente a um apelo
ético ou a uma esperança colocada num horizonte a jamais ser alcançado. Trata-se de
enfrentar a questão em seu terreno legítimo, o da forma da sociabilidade, buscando
ali a gênese das contradições, das contrafações, dos impedimentos, dos limites, para
que desta inteligibilidade, se possa perscrutar alguma alternativa objetiva de supera-
ção.
Sabemos o quanto o termo “humanismo” foi questionado ao longo da filoso-
fia no século XX. Assumi-lo como elemento central da filosofia marxiana não se
torna, em vista disso, uma tarefa fácil. Daí a preocupação de Chasin em discernir o
caráter do humanismo em Marx. Uma outra questão à qual ele não poderia deixar

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José Chasin : a ontonegativid ade d a politicid ade e m Marx

de responder, correlata a esta, diz respeito à persistência ou não de tal temática, a


relação entre emancipação humana e humana política, no conjunto dos textos de
maturidade de Marx. Atento às críticas que poderiam surgir em relação à sustenta-
ção de uma determinação onto-negativa da politicidade em Marx, Chasin cuidou de
analisar em textos de sua fase de maturidade, a presença e o desenvolvimento dessa
questão, de tal forma a poder sustentar que tal temática não constitui um mero ar-
roubo de juventude do autor. De acordo com a sua análise, se a questão da emanci-
pação humana atravessa a obra de Marx como o ponto de convergência de todos os
seus esforços, a questão específica da relação entre Estado e sociedade se encontra
presente, sobretudo, na trilogia A guerra civil na França, Lutas de classe em França e O
18 Brumário, recebendo nessas obras um desenvolvimento coerente ao que Marx já
tratara nos textos anteriores.
Ao examinar o material preparatório para a elaboração de A guerra civil na França,
texto de 1871, Chasin chama a atenção para passagens nas quais Marx retoma essa
temática, aprofundando-a:
Tanto quanto o aparelho de Estado e o parlamentarismo não constituem a verda-
deira vida das classes dominantes, não sendo mais do que os organismos gerais de
sua dominação, as garantias políticas, as formas e as expressões da velha ordem
das coisas, igualmente, a Comuna não é o movimento social da classe operária e,
por conseqüência, o movimento regenerador de toda a humanidade, mas somente
o meio orgânico de sua ação. (apud CHASIN, 2000, p. 95)
Vê-se nessa passagem que o poder político, ainda que em sua forma reconheci-
damente superior, como analisa Marx em relação à Comuna, não constitui um fim
em si mesmo, mas, ao contrário, apenas deve atuar como meio que cria “o ambiente
racional no qual a luta de classes pode atravessar suas diferentes fases do modo mais
racional e mais humano”. (MARX apud CHASIN, 2000, p. 95).
Com o que Chasin conclui que “em suma, à política só cabem as tarefas negati-
vas ou preparatórias; a obra de ‘regeneração’, de que fala Marx, fica a cargo inteira-
mente da revolução social.” (2000, p. 96)
Outras passagens deste teor podem ser encontradas nos textos de análise políti-
ca do Marx maduro, nas quais ele se refere ao Estado como uma “excrescência para-
sitária sobre a sociedade civil, fingindo ser sua contrapartida ideal” ou ainda como “o
poder governamental centralizado e organizado, que, usurpador, se pretende senhor,
e não servidor da sociedade”. (MARX, apud CHASIN, 2000, p. 159)
A ação política, orientada para a emancipação humana, não pode, portanto, se
pautar por uma eternização ou aperfeiçoamento do poder político, mas pela sua
superação. É a isso que Chasin se refere ao dizer de uma metapolítica, uma política
que se coloque como fim o fim da necessidade da política, enquanto instância que se
assenta sobre as deficiências societárias.
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Ana S elva Ca stel o Branco Albinati

Analisando os pontos essenciais da proposição marxiana, Chasin sintetiza:


1. a emancipação política ou parcial é um avanço irrecusável, mas não é o ponto de
chegada da construção da liberdade; resume-se à liberdade possível na (des)ordem
humano-societária do capital; sua realidade é o homem fragmentado, impotente
como cidadão e emasculado como ser humano, diluído em abstração na primeira
metade e reduzido à naturalidade na segunda;

2. a emancipação universal ou humana não é mais da lógica das liberdades restritas,


condicionadas pela malha de determinações externas ao homem, mesmo que por
ele próprio construídas, mas a constituição da mundaneidade humana a partir da
lógica inerente ao humano, ou seja, do ser social, cuja natureza própria ou “segredo
ontológico” é a autoconstituição;

3. a emancipação humana ou revolução social do homem compreende:


A. a reintegração pelo homem real da figura do cidadão, ou seja, a reincorporação
e o desenvolvimento da capacidade de ser racional e justo, mera aspiração pie-
dosa na esfera da política, tornando a ética possível, porque imanente ao ser que
se auto-edifica, de modo que ele não mais aliene de si força humano-societária,
degenerada e transfigurada em força política, assim tornando impossível, além de
inútil, o aparecimento desta, o que derruba as barreiras atuais para a retomada da
autoconstrução do homem;
B. o reconhecimento e a organização – racional e humanamente orientada – das
próprias forças individuais como forças sociais, de tal sorte que a individualidade,
isolada e confundida com o ser mudo da natureza, quebre a finitude do ser orgânico
e se alce à universalidade do seu gênero. (2000, p. 151-2)
Trata-se de uma completa contraposição à concepção tradicional da política, na
medida em que a formulação marxiana é uma reiteração da autoconstrução humana,
cujo télos não se encontra na expressão política de uma universalidade formal, mas
aponta para uma forma de sociabilidade que alinhe a unidade indivíduo-gênero em
sua vida concreta.
Isso equivale a dizer de uma desnaturação da política como elemento intrínseco
à vida social, e em termos concretos, exigiria a superação da sociabilidade do capital
e o estabelecimento de uma outra forma de existência social, na qual a questão seja
a administração das diferenças, a superação das contradições, mas não mais a con-
tradição não-resolvida, o que significa a manutenção “estável” dos antagonismos
sociais.
Quando Chasin se detém na análise do significado de Maquiavel na filosofia
política, ele chama a atenção para o fato de que
Com efeito, a visão desencantada do homem, a malvadez como identidade da
alma humana é uma instauração da modernidade, e em seus albores Maquiavel
foi seu grande arauto, para cujas mazelas sua voz conseqüente, através da consis-
tência de uma fórmula matrizante, anunciou também a terapêutica sem cura do
poder político.

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José Chasin : a ontonegativid ade d a politicid ade e m Marx

Sem dúvida, essas dimensões do pensamento maquiaveliano não estão confinadas


a si mesmas, mas integram um complexo movido e movente no interior do cau-
dal renascentista, que impulsionou a dissolução da unidade harmônica da cultura
medieval, cuja base foi demolida ao longo dos séculos XV e XVI: a cadeia hierár-
quica do ser, na qual todas as coisas, positiva e definidamente, tinham seu lugar
próprio, firme e indiscutível dentro da ordem geral. Confluindo a nascente ordem
do capital e o sistema heliocêntrico, ambos envolvendo decididamente o presente
e impulsionando com vigor para o futuro, se conjugaram e potencializaram no
movimento real e ideal que arrebatou do homem sua antiga condição privilegia-
da, o qual, drasticamente desvalorizado, foi convertido em exilado no interior
do universo infinito e em desterrado no interior do cosmos social pulverizado.
Sozinho e depreciado – e depreciado porque sozinho -, sem outro arrimo, lançou
e foi coagido a lançar suas esperanças à conjunção abstrata dos homens na união
imposta e ilusória do Estado. (CHASIN, 2000, p. 238)
A questão desenvolvida por Chasin, a partir de Marx, diz respeito ao entendi-
mento do surgimento do Estado moderno como universalidade ilusória, e se refere
à alternativa colocada frente ao futuro: o aperfeiçoamento do poder político ou a
perspectiva de sua superação. Ao primeiro, correspondem as medidas paliativas do
controle do poder do Estado, através do apelo à ética, da ênfase na idéia de cidada-
nia, da vigilância às formas de corrupção e, na mais avançada das proposições, no
investimento em uma democracia mais abrangente. À segunda, corresponde uma
visão que recusa a naturalização da condição humana e a naturalização das relações
sociais tais como se apresentam a partir da modernidade, bem como a eternização
da sociabilidade do capital, insistindo em fazer cintilar no horizonte a distância entre
a emancipação política e a emancipação humana.

Referências Bibliográficas

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________. Rota e prospectiva de um projeto marxista. Revista Ensaios ad Hominem, São
Paulo, v.1, tomo III, p.5- 78, 2000a.
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________. A morte da esquerda e o neoliberalismo. Revista Ensaios ad Hominem, São Paulo,
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________. Marx: a determinação ontonegativa da politicidade. Revista Ensaios ad Hominem,
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________. O futuro ausente. Revista Ensaios ad Hominem, São Paulo, v.1, tomo III, p.163-
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Ana S elva Ca stel o Branco Albinati

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MARX, Karl. Glosas críticas al artículo “El rey de Prusia y la reforma social. Por un prusiano”.
In ROCES, W.(org.) MARX: escritos de juventud. México: Fondo de cultura econômica, 1987,
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________. Questão Judaica. In Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: edições 70, 1989,
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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

Chasin e a descoberta do
estatuto ontológico da obra de Marx
Antônio José Lopes Alves*1

Resumo:
O presente artigo pretende abordar e explicitar os principais resultados do esforço de pesquisa
desenvolvido pelo Professor José Chasin acerca da obra marxiana, no que denominou de Retorno a
Marx. Uma das principais conquistas teóricas do mencionado projeto foi sem dúvida a determina-
ção mais precisa do caráter da tematização de Marx, pondo em relevo o que constitui a especificida-
de de sua reflexão: um conjunto de demarcações de cunho ontológico, em particular, o primado da
objetividade das coisas. Crivo de cunho eminentemente materialista o qual teria, segundo Chasin,
formatado o exame de entes e processos, e por este último continuamente enriquecido, dentro do
que denomina unidade do saber. O que surge também é a postulação de uma nova relação entre
filosofia e ciência, dentro da qual as duas formas de conhecimento se incrementam e se criticam
reciprocamente, fazendo progredir ambas as instâncias do conhecer, tanto a particular quanto a
universal.

Palavras-chave:
Marxologia; Cientificidade; José Chasin; Ontologia.

Chasin and Discovery of the


ontological statute of the Work of Marx
Abstract:
This article aims to discuss and explain the main results of the search effort developed by Profes-
sor José Chasin about the work’s Marx, as called Return to Marx. One of the major theoretical
achievements of that project was undoubtedly a more precise determination of the character of
tematização of Marx, putting emphasis on what is the specificity of his reflection: a set of demarca-
tions of ontological stamp, in particular, the primacy of the objectivity of things. Sieve of highly
materialistic stamp who would, according Chasin, formatted the test of loved and processes, and
continuously enriched by the latter, which calls within the unity of knowledge. What also emerges is
the postulation of a new relationship between philosophy and science, within which the two forms
of knowledge is increased and that criticize each other, making progress both bodies of knowledge,
both on the particular universal.

Keywords:
Marxology, Scientific Standard, José Chasin, Ontology.

* Professor de Filosofia do CEFET-UFMG.

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Antônio José Lopes Alves

Escrito que pode ser entendido tanto como termo provisório de uma rota de
investigação, quanto um novo ponto de partida, Marx: Estatuto Ontológico e Resolução
Metodológica demarca um momento de inflexão na pesquisa marxológica, com conse-
qüências que extravasam o terreno meramente acadêmico. Itinerário inaugurado sob
a pressão teórico-prática de um diagnóstico grave: a inexistência nos círculos mar-
xistas e afluentes – opositivos ou simpáticos a Marx – de um efetivo entendimento
da natureza verdadeira do pensamento marxiano. Ausência que não apenas fere de
morte a aproximação à obra de Marx, mas também condiciona como determinação
adstringente o baixo nível da produção teórica acerca das diversas dimensões dos
processos histórico-sociais. Nesse sentido, a importância do empreendimento cha-
siniano de Retorno a Marx se mede pelo caráter extremamente gravoso das circuns-
tâncias e do ambiente em que foi proposto e realizado. Um conjunto atravessado
seja pelo desentendimento da reflexão marxiana, seja pela pura e simples hostilidade
visceral ou epidérmica para com o padrão de racionalidade inaugurado pelo pensa-
dor alemão. Retorno a Marx que significa, num primeiro momento, necessariamen-
te, ater-se aos termos e aos sentidos próprios dos escritos investigados e analisados.
Ou seja, Marx por seus próprios textos, Marx em seus próprios termos.
Obedecendo a essa diretiva intelectiva, anima o texto chasiniano a posição do
corpus teórico marxiano sob a forma de passos de apreensão do real, por meio da
produção de abstrações e concreção destas a partir do material. Não repisando,
portanto, o caminho comumente trilhado de imputar a Marx uma forma lógica qual-
quer – “dialética” ou não – como o segredo de sua teorização. Tal compreensão foi
pela primeira vez indicada e defendida por José Chasin em seu texto, a partir da tese
da existência de uma teoria das abstrações em Marx. Seguindo os passos analíticos e os
indicativos recolhidos da própria obra de Marx acerca desta questão, em especial os
contidos em Introdução de 1857, Chasin desenvolve um exame cuidadoso das princi-
pais determinações dos procedimentos marxianos, buscando configurar um esboço
de conjunto desta problemática.
Chasin explicita analiticamente certos elementos que constituem, segundo ele, o
arcabouço da cientificidade marxiana, tais como as noções de articulação, de momento
preponderante (übergreifendes Moment), de abstração razoável (verständige Abstraktion), e de
complexo (Cf. Chasin1995, pp. 420 a 433). Igualmente, chama a atenção ao fato de que
a questão do conhecimento só pode obter resolução, do ponto de vista marxiano,
em referência ao quadro mais geral de reconhecimento do por-si da coisa enfren-
tada, da posição de objetividade e da subsunção ativa do sujeito que conhece. Este
último, ele mesmo um ente, determinado e complexo sintético de determinações
objetivas de natureza social, em consonância com observações marxianas contidas
no posfácio à segunda edição de O Capital (Cf. Marx, 1998, pp. 25 a 28).

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Chasin e a descob e r ta do estatuto ontológ i co d a obra de Marx

Indicações e elementos de procedimentos que não configuram um método, no


sentido usual, pois em Marx, como o afirma Chasin:
Não há caminho pré-configurado, uma chave de ouro ou uma determinada me-
todologia de acesso ao verdadeiro. (...) Não há guias, mapas ou expedientes que
pavimentem a caminhada, ou pontos de partida ideais previamente estabelecidos.
O rumo só está inscrito na própria coisa e o roteiro de viagem só é visível, olhando
para trás, do cimo luminoso, quando a rigor, já não tem serventia, nem mesmo
para outras jornadas, a não ser como cintilação evanescente, tanto mais esquiva ou
enganosa quanto mais à risca for perseguida, exatamente porque é luminosidade
específica de um objeto específico. (Chasin, 1995, p.516)
Emerge aqui, a nosso ver, a tese de um “anti-método” em Marx. Não obstante
a imprecisão inicial de nossa formulação, os termos evidenciam os rastros de uma
ruptura cabal de Marx em relação a todo pensamento moderno, desde Descartes até
a configuração plena do método na filosofia especulativa de talhe hegeliano. Impli-
cação referida por Chasin, mas que em razão do escopo do seu escrito, articular todo
um esforço de leitura estrutural, exame categorial e reflexão analítica da obra mar-
xiana, não tenha sido talvez aprofundada em todas as suas dimensões críticas.1 No
entanto, não apenas a questão do método, mas também a articulação como armação da
forma de ser, entre outros aparece como tópicos para futuras investigações. Temas
e problemas que indicam o texto chasiniano como verdadeiro luminar de pesquisa,
ponto inicial de clarificação de determinadas questões e de indicativos precisos de
rotas de pesquisa possíveis. Igualmente ressaltamos que não estando o pensamento
marxiano centrado na questão de um método como chave do saber, mas da captação
dos aspectos essenciais das coisas e processos, uma questão pertinente é aquela da
natureza das próprias categorias em Marx. Ou seja, recolocando a discussão acerca
do método em seu verdadeiro nicho, como determinada e não determinante, Chasin
assevera a centralidade da questão da delimitação precisa da coisa faceada.
Não se trataria então de encravar mais um estandarte epistêmico no terreno
das pugnas entorno da fundamentação. Algo que se observa, entre outros, no texto
de Manfredo de Oliveira, publicado no mesmo volume, Pensando com Marx, como
prefácio. Já nas primeiras páginas podemos verificar a motivação de Oliveira em sua
descrição do suposto cunho dialético de Marx: “(...) como situar a dialética dentro da
disputa atual a respeito da racionalidade? A dialética ainda pode levantar a pretensão
de emergir como discurso sensato?” (Oliveira, 1995, p. 13). Modo de abordar a obra
marxiana que não se cinge pelo caráter particular da mesma, mas se perfaz partindo
de uma demanda externa e a ela estranha, aquela a respeito do fundamento prévio do
discurso científico. Ao lado disso, tem-se imediatamente a localização do pensamen-
to marxiano, sem mais, dentro do que se convencionou a chamar de tradição dialética,
1. Cf. Chasin, 1995, pp.389 a 390 e 515 a 519.

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Antônio José Lopes Alves

procedimento igualmente visível em Ruy Fausto, por exemplo.2 O que resulta na


defesa de um tipo de tratamento do texto marxiano que o enlaça necessariamente às
questões trazidas pelo desenvolvimento das querelas filosóficas sobre o fundamento
do saber: “Isso significa que não podemos mais ler Marx hoje sem levar em conside-
ração o nível de consciência epistemológica que se gerou pelo confronto com a crise
da razão” (Oliveira, 1995, p. 14). Resulta dessa maneira de por as coisas, que o texto
perde sua contextura de objeto, de algo por-si, possuindo uma malha determinativa
própria, para tornar-se, objeto posto por um terceiro, aqui, pela leitura formatada
por outra questão endógena: a crise da racionalidade abstratamente tomada. Nesse
contexto, a produção marxiana emerge como momento ou parte integrante de uma
facção científico-filosófica, a dialética, entendida como “paradigma de pensamento”
(Oliveira, idem).
Indo no sentido exatamente oposto, Chasin buscará determinar o caráter da
reflexão marxiana tomando como ponto de partida o desvendamento de sua lógica
interna, tendo por objeto inevitável e irrevogável a objetividade dos textos, peculiar,
dos sentidos que os integram e os perfazem. Num momento chave do texto, Cha-
sin se ocupa da afirmação marxiana segundo a qual as categorias são Daseinsformen,
formas de ser, de estar-aí, de ser atualmente, constante de Introdução de 1857. Decla-
ração que não somente clarifica a posição de Marx acerca do estatuto da teorização
e da sua relação com o mundo, mas também ressalta e reafirma o caráter próprio
de seu padrão de reflexão. Padrão esse que se construiu por meio de um itinerário,
cujas motivações extravasam o terreno puramente acadêmico. Caminho que Chasin
acompanha em partes anteriores do escrito em exame, como processo de gênese
que se dá pelo exercício de três críticas de cunho ontológico à tradição. Frise-se o
ontológico, porquanto não dirigida apenas, e nem primariamente, aos modos de abor-
dagem do objeto, mas da concepção mesma do objeto. O alvo principal, mas não
único, foi, desde os primeiros momentos da elaboração do pensamento propria-
mente marxiano, a identidade hegeliana ente Ser e Idéia. Segundo Chasin, o que põe
em movimento a crítica marxiana, desde meados de 1843, é a oposição resoluta ao
padrão especulativo, no empenho de alcançar a determinação precisa da lógica da coi-
sa, da forma de ser particular a cada ente ou processo. Nesse sentido, a identificação
das categorias como Daseinsformen ou Existenzbestimmungen, é ponto de chegada da
elaboração que se edificava desde Crítica da Filosofia do Direito Hegeliana, da crítica da
especulação e não a afirmação de um preceito metodológico.
Quem diz formas do ser, determinações de existência, categorias, etc., imediata e inevita-
velmente aponta para questões de natureza ontológica. Entender as categorias como
o material transposto e traduzido para a cabeça do homem, como o faz Marx no posfácio a
2. Cf. Fausto. Marx: Lógica e Política, Editora Brasiliense, São Paulo, 1987, prefácio.

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Chasin e a descob e r ta do estatuto ontológ i co d a obra de Marx

O Capital acima referido, longe de ser tão-somente um indicativo de procedimentos,


é antes a colocação da questão do ser, das formas imanentes e dos modos pelos quais se é
possível abordá-lo. Ou seja, o projeto de esquadrinhar na obra marxiana de maturi-
dade os elementos que apontam para a configuração de uma cientificidade de tipo
específico, como analítica das formas de ser, necessariamente tem de reportar-se a
este problema mais geral. Não significando então a mera classificação da reflexão
marxiana em algum tipo de discurso acerca da fundamentação do saber ou nalguma
corrente epistêmica.
Tema pela primeira vez levantado por Lukács, num dos capítulos de sua última
obra (Para uma Ontologia do Ser Social) 3, a existência de uma “ontologia” na obra mar-
xiana e das relações desta com a questão de método foi também objeto de exame ri-
goroso no texto Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica, acima referido. Exa-
me este que, entre outras determinações e descobertas importantes, delimita a nosso
ver com precisão o problema atinente à correta aproximação da obra de Marx:
(...) a determinação do que é antecede a admissão e o tratamento de temas gno-
sio-epistêmicos. Ao contrário de qualquer abordagem sob critério [ou posição]
gnosiológico [a], em que um pré-discurso nesse diapasão pretende fundamentar
o discurso propriamente dito a respeito do objeto, no pensamento marxiano o
tratamento ontológico dos objetos, sujeito incluso, não só é imediato e indepen-
dente, como autoriza e fundamenta o exame da problemática do conhecimento
(Chasin, 1995, p. 400).
Ou seja, no interior do modus reflexivo marxiano a questão do saber, enquanto
determinação de maneiras de abordagem e tratamento dos objetos, não obstante
sua importância, não se põe como lugar central e determinativo. Ao revés, o centro
do exame é aqui ocupado pela concreta dilucidação e exposição dos nexos efetivos
da coisa, ao menos dos mais decisivos, e da articulação havida entre estes. É somente
a partir do cumprimento desta etapa, na qual já se aborda o material, é que se pode
discutir de modo adequado o problema do método. É característico, a este respeito,
o momento em que, nos textos marxianos, aparece a exposição de procedimentos:
sempre após o exame de um complexo de categorias qualquer, nunca como funda-
mento deste exame. Os indicativos metodológicos nunca são apresentados como
base da pesquisa, como espaço dos movimentos cognitivos previamente circuns-
critos através da eleição de um princípio procedimental. Mas como conjunto de
procedimentos já realizados, no transcurso dos quais os nexos mais essenciais das
categorias foram trazidos à tona. Vale mencionar, neste sentido, por exemplo, o
caso da discussão crítica do método da economia política na Introdução de 57, a qual
aparece apenas na parte 3, somente depois de Marx, na parte anterior, ter mostrado
3. Cf. Lukács. Capítulo 1 Questões metodológicas preliminares.

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71
Antônio José Lopes Alves

como se articulam as categorias de produção, consumo, troca e distribuição no complexo


categorial da produção em geral, indicando na análise a determinação recíproca existente
entre elas.4
Além disso, cabe deixar fixado com Chasin que:
(...) a ontologia marxiana não é uma resolução de caráter absoluto, nos moldes do
sistema convencional, mas a condição de possibilidade de resolução do saber. É,
em outras palavras, um estatuto movente e movido de cientificidade, orienta e é
orientado pela ciência e pela prática universal dos homens. Orienta e é orientada,
guia e é guiada, corrige e é corrigida. Ou seja, não é um absoluto inquestionável,
uma certeza estabelecida por dedução a partir de axiomas, de uma vez para sem-
pre. (Chasin. APUD Vaisman, 2001, p. IX).
A posição ontológica marxiana, deste modo, segundo as descobertas chasinianas,
nunca se apresenta como um todo fechado de categorias encadeadas numa ordem
de determinações a priori e sistemática, nem se postula como último e permanente
delineamento da forma do ser. Ao revés, coloca-se, antes de tudo, como
(...) afirmação da objetividade do mundo e a possibilidade de ser conhecido, pos-
sibilidade que é sócio-historicamente determinada, exercendo a função de base
e guia para a ciência da história, especificamente como ontologia regional do ser
social, e que se nutre das ciências e a elas respondem tanto quanto elas mesmas
têm de responder aos lineamentos ontológicos pelos quais se guiam, mas os quais
não tomam como coágulos de saber imutável. De sorte que ontologia e ciência se
potencializam e se criticam recíproca e permanentemente (Chasin. APUD Vais-
man, 2001, p. VIII).
Não sendo então um conjunto de noções abstratas das quais, sob a égide de um
esquema por estas conformado, se extrairiam os resultados particulares. Em verda-
de, é desta última etapa, a compreensão dos resultados, que se ergue uma ontologia
estatutária. Assim, a esfera mais geral e a mais particular, no ato de conhecimento,
guardam uma relação bem específica, não de concorrência ou excludência, mas de
promoção e correção mútuas e contínuas.
O fato de haver na analítica marxiana uma ontologia de natureza estatutária,
como estamos indicando, não será diretamente abordado aqui, dados os limites do
presente artigo. A ontologia estatutária não se apresenta como as elaborações altamen-
te sistemáticas, e especulativas, consagradas pela tradição filosófica, mas somente
aparece referida às questões específicas enfrentadas pelo padrão de cientificidade de
Marx. Ou seja, como tematização ou reflexão atinente àquela dimensão mais geral
das coisas analisadas. Examinada ou apontada por Marx sempre no interior da es-
cavação efetiva das formas de ser, na particularidade concreta dos objetos faceados,
4. Cf. Marx. Einleitung zun den Grundrissen der Kritik der Politischen Ökonomie, In Marx-
Engels Werke, Band 42, Dietz Verlag, Berlin, pp. 24-34..

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Chasin e a descob e r ta do estatuto ontológ i co d a obra de Marx

nunca como momento sistemático de natureza absoluta contraposta ou superposta


aos mesmos. Deste modo, um conjunto sintético e provisório dependente priorita-
riamente da decifração dos traços específicos dos entes e processos. O fazer cientí-
fico marxiano, inclui, como momento seu, a indicação do modo como aparece no
aquela dimensão referente ao universal, mas sempre de modo subordinado ao des-
vendamento das formas de objetividade social, cada uma com suas peculiaridades e
determinações.
Assim a dimensão mais universal, compreendida sempre na simplicidade de ca-
ráter comum (Gemeinsame)5 não está contraposta à particular, e nem a determina univo-
camente. Por esta razão, Chasin a denomina de ontologia estatutária, à qual
(...) compete o reconhecimento dessa dimensão mais geral, base para a decifração
científica concreta dos casos efetivos, que por sua vez confirmam ou não critica-
mente a determinação mais geral, ontológica. Não há, portanto, um abismo se-
parando ontologia de ciência, mas a continuidade de momentos distintos de uma
mesma unidade de conhecimento, que interagem e se medem reciprocamente,
se apoiam, estimulam e criticam num infinito processo constitutivo das certezas
(Chasin. APUD Vaisman, 2001, p. XVII).
Sendo por conseqüência, “o momento mais abstrato do reconhecimento da
identidade das coisas por si, enquanto tal um dos momentos distintivos da unidade
do saber, do qual participa um segundo, a ciência” (Chasin. APUD Vaisman, 2001,
p.XXII). Fixe-se, unidade dos momentos do conhecer, não sua identidade, nem a
mera redução de um ao outro. Nem, de um lado, deducionismo a priori, nem, de ou-
tro lado, pura coleta abstrata de dados da empiricidade imediata, mas escavação ca-
tegorial, identificação de determinações, de articulações e de diferenças específicas,
em suma, a elucidação da lógica específica de uma coisa específica. Nesse contexto,
as relações entre filosofia e cientificidade assumem um caráter bem diverso daquele pos-
tulado tradicionalmente. Não são formas concorrentes e/ou excludentes de conhe-
cimento, nem é razoável supor a submissão de uma a outra. Não se tem, tampouco,
aqui a concatenação entre ontologia tomada num sentido geral e ontologias regionais. São,
ao contrário, dois exercícios cognitivos diferentes em nível de escavação do real e de
escopo, mas, simultaneamente, instâncias comunicantes e interdependentes. Ciência
e filosofia incrementam-se reciprocamente na medida em que o exercício de intelec-
ção penetra a articulação categorial da concretude, extraindo suas determinações e
relações essenciais, ao mesmo tempo em que permite a percepção e a tematização
dos aspectos mais gerais da configuração do real. Abordagem da universalidade que
não pode ser feita sob pena de recair na especulação, em divórcio com a marcha de
desvendamento da differentia specifica de cada ente ou processo examinado. Por outro
5. Cf. Marx. Einleitung zun den Grundrissen der Kritik der Politischen Ökonomie, In Marx-
Engels Werke, Band 42, Dietz Verlag, Berlin, p. 20-21.

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Antônio José Lopes Alves

lado, as conclusões de cunho geral permitem o contorno dos horizontes da intelec-


ção e a fixação de alguns parâmetros úteis à pesquisa e à reflexão particulares.
É exatamente a demonstração disso que a última parte do escrito chasiniano
em tela, analítica das coisas, oferece à avaliação do leitor. Concebido pelo autor como
recopilação de testemunhos, esse momento busca pôr em relevo a posição onto-cognitiva
marxiana. No interior daquela unidade de saber que caracteriza o padrão de cientifici-
dade de Marx, o próprio método aparece não como chave fundante da possibilidade
do conhecimento, mas como exercício, sempre particular, do próprio conhecer. O
método marxiano se revela, então, como enfrentamento cognitivo do mundo pelo in-
divíduo dotado de forças sociais de apropriação do mundo sem a interposição de
qualquer critério ou instrumento ideal, prévio, que o organiza para a tarefa em tela.
A não-certeza inicial como ponto de partida da obtenção da certeza e do elucida-
mento do real em suas conexões íntimas. É interessante notar que para Chasin, o
padrão marxiano de cientificidade se caracteriza pela “inexistência de qualquer tipo
de ante-sala lógico-epistêmica ou apriorismo teórico-metodológico”, o que constitui
o lado negativo ou expressão da propositura teorética de Marx, ou seja, da ausência
de todo problema de uma fundamentação a priori do saber. Tal expressão, longe de
desvelar-se como puro déficit ou lacuna, de outra parte, em sua positividade sustenta
“a prioridade e a regência do objeto ou, mais rigorosamente, da coisa enquanto tal -
do entificado real ou ideal em sua autonomia do ato cognitivo - em todo processo
do conhecimento” (Chasin, 1995, p.508). Deste modo, ato ideal e idealidade não
podem ser tomados como atividade e produto auto-sustentados. A prioridade da
coisa, em seu irremediável e incontornável por-si, é que se afirmará, segundo Chasin,
por toda obra marxiana o cunho distintivo, dos primeiros momentos, da crítica à
especulação impulsionada pelo enfrentamento feuerbachiano do pensamento hege-
liano aos momentos derradeiros constantes das Glosas a Adolf Wagner. De passagem,
é importante frisar que a identificação assim feita do núcleo gerativo do pensamento
marxiano interdita também a postulação de uma ruptura ou corte entre as fases de
sua constituição. Este Caráter é reafirmado por Chasin, quando examinando nova-
mente nas páginas seguintes as relações de Marx com Feuerbach, indica:
(...) a aguda inclinação marxiana pelos objetos reais e pela aproximação cognitiva
dos mesmos sem qualquer tipo de intermediação metódica antecipadamente es-
tabelecida, gênero da prática teórica esta última que, por natureza, carrega em si
o vício da pretensão à autonomia em face das coisas examinadas (Chasin, 1995,
p.511).
Determinada deste modo a atividade cognitiva como escavação rigorosa e sub-
missão ativa ao objeto tratado revela uma aparente simplicidade, por trás da qual se
revelam

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74
Chasin e a descob e r ta do estatuto ontológ i co d a obra de Marx

(...) as dificuldades de sua exercitação pelo complexo da determinação sócio-his-


tórica do pensamento e da teoria das abstrações”, pois, o “desafio das coisas não
se altera ou dissolve pela mera disposição ativa do sujeito enfrentar a decifração
das mesmas, nem porque detenha a visualização do roteiro analítico a ser cum-
prido, e sempre como dificuldade se repõe a cada objeto faceado (Chasin, 1995,
p. 515).
O que faz sentir aqui com toda força o peso da regência do objeto, o qual con-
tém uma lógica própria que não se desvela imediatamente, nem possui uma relação
de adequação com a força de abstração, sendo que igualmente ressalta-se neste passo
já que a marcha das abstrações e a escavação das coisas não se constitui num diktat
metodológico.
Retomando uma passagem do prefácio da edição francesa de O Capital, onde
se lê Não há estrada principal para a ciência, e apenas aqueles que não temem a fadiga de galgar
suas escarpas abruptas é que têm a chance de chegar a seus cimos luminosos, Chasin indica a
dificuldade como elemento constante e ineliminável do processo de escavação do real,
seguindo a advertência marxiana de que não existe um caminho pré-configurado na
trilha da verdade, não sendo possível a suposição nem a busca de uma chave que
abra todas as portas, facultando-nos a apreensão segura e infalível do objeto. Dada
a dupla determinação social acima aludida, de um lado as condições sociais da cog-
nição, e de outro, a existência do objeto enquanto tal, não há método que garanta
a completa e imediata acessibilidade aos nexos essenciais das coisas. Assim sendo,
fiel à raiz mesma do termo mšqodoj (caminho tortuoso em grego), Chasin completa a
argumentação de modo forte asseverando, numa das passagens que julgamos ser das
mais belas já lidas, a qual permitimo-nos citá-la integralmente, que:
Não há guias, mapas ou expedientes que pavimentem a caminhada, ou pontos de
partida ideais previamente estabelecidos. O rumo só está inscrito na própria coisa
e o roteiro de viagem só é visível, olhando para trás, do cimo luminoso, quando
a rigor já não tem serventia, nem mesmo para outras jornadas, a não ser como
cintilação evanescente, tanto mais esquiva ou enganosa quanto mais à risca for
perseguida, exatamente porque é luminosidade específica de um objeto específico.
As pegadas que ficam podem ser esquadrinhadas e repisadas, não são inúteis, mas
não ensinam a andar, precisamente como procede a teoria das abstrações, que
descreve [grife-se isto!] a universalidade das passadas, sem prescrever por si só um
único passo concreto de qualquer escalada concreta, mérito e segredo do método
marxiano, que centra no respeito à integridade ontológica das coisas e dos sujeitos
- estes reconhecidos objetivamente em posição [Standpunkt] e, correlativamente aos
graus de maturação dos objetos, suscetíveis de intensificação ou desatualização
para devassa analítica daqueles e de si próprios - a resolução do complexo proble-
mático do conhecimento (Chasin, 1995, p. 516).
Tornam-se patentes todas as conseqüências da afirmação de que não há em
Marx, a rigor, uma questão de método, ou seja, a recuperação do rumo tracejado na

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Antônio José Lopes Alves

apreensão da lógica das coisas, enquanto caminho do cérebro, é apenas de cunho


descritivo, jamais pode pretender à prescrição metódica. Neste contexto, cada enti-
ficação concreta teria seu método, cada destino, que somente existe como destino a
ser alcançado, o verdadeiro, não dominado no início, tem sua própria rota. Negação
de segredos metodológicos ou de um passe-partout epistemológico que facultassem
o descortino do objeto que é, concomitantemente, a afirmação por princípio da
possibilidade do conhecimento objetivo, não evidentemente da inevitabilidade da
verdade. O verdadeiro é uma meta e, ao mesmo tempo, uma aquisição ou conquista
do exercício da cognição, o qual não pode pretender a posse de uma garantia ou cer-
teza a priori arrimada na mera eleição de um conjunto de procedimentos de suposta
validade absoluta.
A descoberta chasiniana, mais que trazer à tona alguns dos elementos essenciais
da construção teorética marxiana, põe na ordem do dia a objetividade do mundo como
princípio fundante da intelecção. Posição teórico-prática que se coloca imediatamen-
te no terreno de luta ideológica, porquanto se a enuncia na contramão das linhas
dominantes na academia, com vigor especial nas ciências humanas. Nada mais de-
sagradável em tempos nos quais vige a triste ilusão de uma subjetividade tida como
onipotente, que em sua aparente pluripotência cria mundos, que a reafirmação do
primado do efetivo. Não no sentido da destituição do sujeito, mas no da revelação
do sujeito como algo mais que subjetividade. O sujeito é ele mesmo um objeto real,
concreto, social, dotado de aspectos e propriedades que podem ou não incrementar-
se, podem ou não, dependendo das determinações histórico-sociais, tornarem-se ca-
pacidades operativas e criativas. A escavação da obra marxiana, com o achado de seu
estatuto ontológico, de seu caráter e conteúdo de ser, estimula e exige, simultaneamente,
uma reconfiguração das formas pelas quais se entende o sujeito e o mundo humanos.

Referências Bibliográficas:

CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. In: Pensando com Marx: Edi-
tora Ensaio, São Paulo, 1995.
VAISMAN, Ester. Dossiê Marx: itinerário de um grupo de pesquisa. In: Ensaios Ad Hominem,
nº 1, tomo IV: Estudos e Edições Ad Hominem, Santo André, 2001.

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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx


Duas leituras: Lukács/Chasin
Ronaldo Vielmi Fortes*1

Resumo:
Este artigo trata das diferenças e identidades das reflexões sobre o caráter ontológico do
pensamento de Marx entre Lukács e Chasin, no esforço de identificar as questões que eles
desenvolveram em torno do pensamento marxiano.
Palavras-chave:
Investigação; Categorias; Abstrações; Ontologia; Marxiano; Trabalho.

Investigation procedures and explanation in Marx


Two readings: Lukács/Chasin
Abstract:
This article discusses the differences and identities of reflections developed by Lukács
and Chasin on the onthological character of Marx´s thought and attempts to identify the
issues both developed in the field of the Marxian thought.
Key words:
Investigation; Category.

* Professor do Departamento de Música da UFPb.

77
Ronaldo Vielmi Fortes

As relações possíveis de serem estabelecidas entre ambos pensadores aqui em


tela é no mínimo multifacética. Vários são os pontos que podem ser diretamente
comparados. Em grande medida isto se deve ao terreno comum sob o qual ambos
se movem, a afirmação de que o pensamento de Marx se caracteriza fundamental-
mente por ser acima de tudo uma reflexão ontológica sobre a sociabilidade Chasin
insistia no fato de que o primeiro a reconhecer esta base essencial do pensamento
de Marx havia sido Lukács e, precisamente no esteio deste desvelamento, efetuou
grande parte de sua pesquisa em meio a um diálogo declarado com a obra do pen-
sador húngaro. É certo que o centro de suas pesquisas se dirigia principalmente ao
próprio texto marxiano, porém dadas as dimensões alcançadas pelo trabalho de
Lukács, o debate com suas teses mais prementes não poderia deixar de se realizar.
Isto não coloca o pensador brasileiro como um discípulo de Lukács, pelo contrário,
o que verificamos no curso de seu pensamento é a constante necessidade de colocar
à prova os resultados lukacsianos com as palavras de Marx.
Em virtude deste trabalho rigoroso de cotejamento, que não chegou a se con-
cluir em sua plenitude, a dimensão deste debate se torna ampla e, portanto, difícil de
ser abordada em suas várias perspectivas no texto que ora apresentamos. Foi neces-
sário portanto lidar com um problema bem circunscrito: a análise que G. Lukács e J.
Chasin fazem acerca daquilo que poderíamos designar como as proposituras onto-
lógicas basilares de Marx quanto ao procedimento investigativo e o modo de expo-
sição presentes em O capital. Sob esta orientação este trabalho pretende apresentar
alguns argumentos que fornecem indícios de que são estudos que complementam
um ao outro, pois se em Lukács a ênfase recai sobre a forma expositiva de O Capital,
em Chasin a tônica é dada ao procedimento investigativo propriamente dito. Se este
último constitui uma lacuna em Lukács, igualmente podemos constatar a ausência
em Chasin – nem este era o objetivo central do texto que ora analisamos – de uma
análise que demonstre como que os passos dados por Marx em sua obra econômica
maior, são expressões contundentes de uma forma expositiva fundada sobre a pers-
crutação ontológica do complexo econômico da sociabilidade do capital.
Lukács trata diretamente do problema aqui em pauta na segunda seção do ca-
pítulo destinado à análise do pensamento marxiano, que constitui o capítulo 4 da
parte histórica de sua Ontologia. O autor abre sua análise com a observação sobre
a malversação tradicional no marxismo em relação ao problema do método em
Marx, cujo reflexo particularmente expressivo podemos constatar na incompreen-
são e descaso pelo único fragmento em que o pensador alemão trata diretamente
o tema, manuscrito escrito no final da década de 1850, costumeiramente chamado
de Introdução de 57 – publicado por Kautsky pela primeira vez na edição de Para a

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

crítica da economia política, em 1907. As razões para a desconsideração [Vernachlässigen]


quase que completa da Introdução de 57, pode ser em grande parte explicada pelo
predomínio das questões epistemológicas no campo da filosofia – cujos primórdios
remontam ao pensamento kantiano. Esta hegemonia gnosiológica repercutiu forte-
mente no interior do próprio marxismo de um modo generalizado e, na maior parte
dos casos, levou grande parte dos pensadores marxistas “ao abandono da crítica
da economia política para substituí-la por uma simples economia como ciência no
sentido burguês” [OGS, 578/283]. O que ficou obliterado foi a crítica ontológica à
economia enquanto forma da sociabilidade posta e direcionada pelo capital, dimen-
são do pensamento marxiano que foi substituída por uma concepção da economia
entendida nos moldes da cientificidade burguesa.
Contra as tendências predominantes no século XX, Lukács recoloca a deter-
minação da prioridade das determinações próprias do ser em relação à consciência,
insistindo na necessidade de estabelecer a forma e o meio pelo qual a objetividade
pode ser conhecida e idealmente apropriada pela consciência. Estas advertências
iniciais não apenas repõem o problema da necessária confrontação da ontologia com
a gnosiologia, mas adensam a discussão ao introduzir toda uma série de elementos
relevantes do pensamento marxiano que contribuem de maneira crucial para este
debate e que rompem na raiz com a tradição filosófica predominante. Sob esta di-
retriz argumentativa Lukács descreverá logo de saída a posição de Marx frente ao
problema que separa nitidamente dois complexos distintos: “o ser social, que existe
independentemente do fato de que venha a ser conhecido mais ou menos correta-
mente, e o método para apreendê-lo idealmente da maneira mais adequada possível”
[OGS: I, 578/283].
A forma pela qual Lukács se contrapõe aos equívocos que desvirtuam as de-
terminações de Marx o leva àquilo que caracterizará todo o conjunto de suas ela-
borações nesta seção: ao abordar o tema do caráter das abstrações no interior do
pensamento marxiano são conjuntamente expostos lineamentos que permitem esta-
belecer a base de uma teoria das categorias – lineamentos estes que constituem para
nosso autor “os princípios ontológicos fundamentais de Marx”. Em outros termos,
tratar do problema do conhecimento em Marx impõe caminhos completamente dis-
tintos, trata-se, primeiramente, de estabelecer os princípios ontológicos mais funda-
mentais de uma teoria sobre o ser para a partir de então lidar com o problema acerca
do modo pelo qual a realidade pode ser apreendida pelo pensamento. No entanto,
vale advertir que não há uma clara linha de demarcação entre as duas discussões, na

Edi ç ão Esp e c i al : J. Cha si n

79
Ronaldo Vielmi Fortes

medida em que se elucida o caráter das abstrações em Marx vêm à luz os elementos
gerais da teoria das categorias1.
A linha de discussão apresentada por Lukács remonta o texto dos Manuscri-
tos Econômicos-Filosóficos, onde encontra-se a afirmação da prioridade do ontológico
sobre o conhecimento. Tal passagem confronta não apenas a idéia da consciência
como elemento de síntese preponderante no processo do conhecimento, mas esbo-
ça aquilo que na problematização lukacsiana aparece como o princípio ontológico
fundante da filosofia de Marx: a primazia da objetividade sobre a consciência. O
texto marxiano é diretamente citado:
Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é um ser natural, não faz par-
te da essência da natureza. Um ser que não tem nenhum objeto fora de si não
é um ser objetivo. Um ser que não é por sua vez objeto para um terceiro ser
não tem nenhum ser como objeto seu, isto é, não se comporta objetivamente,
seu ser não é objetivo. Um ser não objetivo é um não ser (Unwesen). [MARX:
MEF:CXXI/578].
Com essa citação nosso autor explicita sua primeira consideração importante
acerca da posição do problema no interior do pensamento marxiano:
Marx já aqui rejeita toda concepção segundo a qual determinados elementos “últi-
mos” do ser teriam ontologicamente uma posição privilegiada em relação aqueles
mais complexos, mais compostos, e segundo a qual no caso destes últimos as
funções sintéticas do sujeito cognoscente desempenharia certo papel no o que e
no como da sua objetividade. [OGS, 579/284]
A segunda observação presente nesta passagem, bem mais óbvia que a primeira,
volta-se contra o pensamento kantiano. Como se sabe na gnosiologia formulada por
Kant o sujeito ocupa papel de destaque por ser quem cumpre a cada momento a
síntese concreta do conhecimento em relação a uma objetividade concreta – a coisa
em si é incognossível. A referência ao pensador idealista alemão não se dá por aca-
so: Lukács observa o influxo de sua filosofia no interior do próprio marxismo que,
por se encontrar distante da perspectiva ontológica, por vezes se vê às voltas com
o kantismo – e outras vertentes da filosofia – no intuito de complementar supostas
lacunas presentes no pensamento de Marx.
A primeira observação exposta nesta mesma citação, não tão clara quanto a que
analisamos acima, somente será devidamente tratada e elucidada linhas a frente. As-
sociada à citação do próprio Marx, Lukács põe em destaque a categoria da ‘relação’,
que aparece já logo de saída determinada como um atributo imprescindível de todo
1. A temática da construção de uma teoria das categorias, como veremos mais a frente, encontra-se posta pelo
próprio pensador húngaro, que em uma passagem do capítulo aqui analisado refere diretamente o problema
(cf. OGS I, 585/OSS I, 291).

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

ente objetivo, cujo corolário é a objetividade implica ser objeto para outrem. Esta de-
terminação terá grande relevância na ontologia do pensador húngaro. A relação não
aparece apenas como um detalhe fortuito, casual – em suma como mero acidente
–, muito menos é um processo de síntese promovida pelo sujeito do conhecimento,
mas constitui uma efetividade e um atributo ineliminável da constituição ontológica
de todo ser. Por via de conseqüências, deste lineamento inicial veremos se estabele-
cer de uma forma mais ampla páginas à frente a idéia de que os elementos, categorias
e propriedades do ser aparecem sempre de forma imbricada, suas categorias guar-
dam sempre uma posição específica no interior de um complexo, em suma estão em
uma constante interação e inter-relação no interior do todo que compõe o ser. Não
apenas esta determinação aparece como tese central da ontologia lukácsiana, mas o
seu desdobramento desemboca na demonstração de pelo menos mais três elemen-
tos centrais da ontologia: a idéia de prioridade ontológica diretamente associada à
noção de momento preponderante, de abstração isoladora e da idéia da interpene-
tração entre a esfera econômica e as esferas extra-econômicas. É a elucidação destes
princípios o objetivo principal da análise que faremos daqui em diante.
Para determinar a peculiaridade inovadora do método marxiano nosso autor
nos remete às páginas dos Grundrisse, onde se encontra de uma maneira mais clara
e consolidada a contraposição marxiana à vertente gnosiológica. A discussão sobre
o método que se reporta aos Grundrisse reforça a ênfase já presente nos textos dos
Manuscritos Econômicos-filosóficos onde é posto em destaque a importância que a cate-
goria da totalidade – e por via de conseqüências da noção de complexo – assume no
interior das reflexões do pensador alemão.
Quando se afirma que a objetividade é uma propriedade primário-ontológica de
todo ente, afirma-se em conseqüência que o ente originário é sempre uma tota-
lidade dinâmica, uma unidade de complexidade e processualidade. [OGS, 578/
OSS, 284]
O ponto de partida da exposição marxiana da questão principia por uma refe-
rência direta à totalidade. No entanto partir da totalidade não significa assumir uma
postura empirista, que associa de forma direta a verdade com esta experimentação
direta do mundo. Pelo contrário, seguindo os indicativos dados pelo próprio pensa-
dor alemão, Lukács afirma que a totalidade tem o caráter de um “princípio generalís-
simo” [Allerallgemeinste Prinzip] não conferindo de modo algum, de maneira imediata,
sua essência e sua constituição, muito menos é capaz de prescrever o modo mais
adequado para conhecê-la. Esta perspectiva se faz bem clara em Marx, quando este
inicia toda sua análise destacando que de um modo imediato esta totalidade aparece
como a população, que constitui “o real e o concreto”. Contudo, assim considerada

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temos apenas uma representação caótica do todo, atingimos apenas meras represen-
tações que não nos fornecem a riqueza de determinações e relações que enforma
o conjunto efetivo de nexos da realidade em questão. Analisando esta passagem,
Lukács apresenta o problema nos seguintes termos:
Se nós tomarmos a própria totalidade imediatamente dada ou seus complexos
parciais, o conhecimento imediatamente direto sobre a realidade imediatamente
dada encontra sempre meras representações. Estas portanto devem ser melhor
determinadas com abstrações isoladoras. A economia como ciência no início de-
sembocou de fato nesta estrada; andou sempre mais adiante pela estrada da abs-
tração, até que nasceu a verdadeira ciência econômica, que parte dos elementos
abstratos lentamente adquiridos para “empreender de novo a viagem de volta”,
até chegar novamente à população “mas desta vez não como uma representação
caótica do todo, ao contrário como uma rica totalidade de determinações e rela-
ções”. [OGS, 580/OSS, 285]
Com suas próprias palavras Lukács reproduz as idéias desenvolvidas por Marx
em sua Introdução. O que se faz notar aqui é o fato de que Lukács substitui todo um
conjunto de expressões utilizadas por Marx, tais como “determinações mais preci-
sas” [nähere Bestimmung], “conceitos simples” [einfachere Begrife], “abstrações rarefeitas”
[dünnere Abstrakta]2, etc., sintetizando o procedimento da investigação das categorias
econômicas por meio da expressão por ele mesmo cunhada: isolierende Abstraktio-
nen. Não se trata aqui de destacar uma simples peculiaridade no uso de expressões,
mas demonstrar que a opção do pensador húngaro já indica os caminhos do seu
entendimento acerca das determinações tratadas por Marx neste texto. Esta noção
ocupará um lugar central nas idéias que serão desenvolvidas a partir deste ponto da
sua análise3. O que Lukács parece pretender fixar com este termo é a resultante final
daquilo que em Marx, por meio das expressões acima citadas, aparece como o cami-
nho da construção dos “conceitos simples”, instante inicial da investigação em que
se identifica na realidade componentes específicos do complexo em questão. Não
seria exagero dizer que a preocupação do pensador húngaro é determinar em termos
precisos o caráter das abstrações no interior do pensamento marxiano, preocupação
esta que vai desde a consideração do papel das abstrações no trabalho de investiga-
2. “Finge ich also mit der Bevölkerung an, so wäre das eine chaotische Vorstellung des Ganzen, und durch
nähere Bestimmung würde ich analytisch immer mehr auf einfachere Begriffe kommen; von dem vorgestell-
ten Konkreten auf immer dünnere Abstrakta, bis ich bei den einfachsten Bestimmungen angelangt wäre.”
(“Se portanto começar pela população, então eu terei uma representação caótica do todo e, por meio de uma
determinação mais precisa, pela análise, alcançarei conceitos sempre mais e mais simples; do concreto figurado
eu passarei a abstrações sempre mais rarefeitas, até chegar às determinações mais simples”.) [MARX, Karl.
Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. Berlin: Dietz Verlag, 1953, p. 21]
3. Cremos que é precisamente neste ponto que a análise de Lukács toma um rumo diferente daquele que
será assumido na obra de Chasin. Os elementos suprimidos aqui por Lukács são precisamente os indicativos
centrais do procedimento investigativo.

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

ção das categorias da economia até o modo peculiar da exposição destas no interior
das obras de Marx – particularmente em O Capital.
O ponto de partida de suas reflexões tem por princípio a seguinte determina-
ção:
Apenas não devemos esquecer que tais ‘elementos’ na sua forma generalizada,
obtida por via de abstrações, são produtos do pensamento, do conhecimento.
Ontologicamente são também complexos processuais do ser, mas de constituição
mais simples e portanto mais fácil de apreender conceitualmente se tomarmos
como comparação os complexos totais dos quais são ‘elementos’. [OGS I, 581/
OSS I, 286]
Há aqui a clara diferenciação entre a objetividade e o modo pela qual esta é
apropriada pela consciência. O caminho percorrido pelo conhecimento, por meio
das abstrações, “é tão somente o caminho do conhecimento e não aquele da própria
realidade. Este último é feito de concretas e reais interações entre tais ‘elementos’ no
interior do quadro da graduada totalidade que opera ativa ou passivamente” [OGS,
580/OSS I, 286]. Mantendo-se fiel ao texto de Marx, Lukács cita a passagem em
que o pensador alemão se reporta diretamente a Hegel criticando-o por confundir o
caminho percorrido pelo pensamento para a apreensão da realidade com a própria
constituição e movimento da realidade. O ponto chave de sua afirmação é a ênfase
no fato de “que é a própria essência da totalidade econômica que prescreve a estrada
para conhecê-la” [OGS, 580/OSS, 285].
Portanto, levando em consideração os caminhos que devem ser percorridos pela
abstração, em um primeiro momento cabe isolar conceitualmente, pela via da abstra-
ção, elementos da realidade, sem que neste instante inicial sejam estabelecidas as de-
vidas inter-relações e interações concretas existentes entre eles. Este primeiro passo
constitui aquilo que será designado como experimento ideal. Este procedimento, em
suas linhas mais gerais, constituiu em grande medida no trabalho dos grandes nomes
da economia política, como por exemplo David Ricardo. E de fato, os precursores
da economia política estabeleceram grandes conquistas neste campo. Faltou a eles,
no entanto, empreender o “caminho de retorno” – tal como salientado por Marx em
seu texto – que leva das abstrações simples à representação dos nexos reais e efetivos
da realidade, que passa, após trilhar todo este caminho, a figurar no plano da ideação
como o concreto pensado.
No que tange ao processo investigativo marxiano propriamente dito Lukács
delineará os passos decisivos que o diferenciam do método da economia política:
É portanto da máxima importância esclarecer com a maior exatidão possível, em
parte por meio de observações empíricas, em parte por meio de experimentos
ideais abstrativos, o tipo de sua funcionalidade conforme a determinadas leis, isto

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é, ver com clareza como eles são em-si, como entram em ação – em sua pureza –
suas forças internas, quais inter-relações surgem entre esses e outros ‘elementos’
quando são excluídas as interferências externas. É claro portanto que o método
da economia política por Marx designado como “viagem de retorno” pressupõe
uma permanente colaboração entre o modo de trabalhar histórico (genético) e o
modo de trabalhar abstrato-sistematizante, que esclarece as leis e as tendências. A
inter-relação orgânica e portanto fecunda destes dois caminhos do conhecimento
é todavia possível apenas sobre a base de uma permanente crítica ontológica de
todo passo, já que ambos os métodos aspiram compreender por aspectos diferen-
tes o mesmo complexo de realidade4. A elaboração puramente ideal pode, deste
modo, cindir aquilo que no plano do ser é ligado e atribuir a suas partes uma
falsa autonomia, indiferentemente de ser uma elaboração empírico-histórica ou
abstrativa-teórica. Somente uma ininterrupta e atenta crítica ontológica daquilo
que vem conhecido como fato ou conexão, como processo ou lei, pode restaurar
idealmente a verdadeira inteligência dos fenômenos. (OGS I, 581/OSS I, 286)
A resolução metodológica marxiana consiste em uma síntese de novo tipo, que
une em seu procedimento tanto o experimento ideal abstrativo, quanto a observação
empírica. A observação empírica difere da experimentação ideal por se dirigir princi-
palmente ao problema da gênese histórica dos complexos. Esta funciona em grande
medida como reguladora do procedimento abstrato-sistematizante, impedindo este
último de estabelecer falsas conexões, ou seja, de reconstruir por critérios meramen-
te lógicos a totalidade, em detrimento das efetivas conexões que de fato constituem
a realidade. Por outro lado, a simples observação empírica não seria capaz por si
mesma de estabelecer as leis e tendências mais gerais da realidade econômica. A mul-
tiplicidade de determinações que constitui o emaranhado da realidade impede que
se vislumbre na forma aparente estas tendências e leis, sendo necessário, portanto, o
trabalho de isolar abstratamente complexos parciais, de modo a fazê-los operar, de
uma forma pura, sem as interferências que obscurecem a essência de suas relações.
Junto a estas considerações fica patente o rechaço do idealismo pela denúncia dos
perigos contidos em seus procedimentos investigativos, assim como a recusa do em-
pirismo. Ambos os procedimentos, embora de natureza fundamentalmente distinta,
comportam riscos pois tendem a atribuir falsas autonomias a partes do todo, fazen-
do desaparecer a verdadeira conexão histórica do processo em seu conjunto.
Em Marx esta possibilidade seria evitada. Seu pensamento se ergue sobre o prin-
cípio de que a realidade é acima de tudo um complexo de complexos. Todo elemento
se encontra nela posto em uma ineliminável interação e inter-relação com os demais,
cabendo pois ao pensamento apreender idealmente os efetivos nexos dos elementos
do complexo. Não se trata da construção de um sistema econômico nos moldes clás-
4. Nesta passagem o tradutor italiano confere um ar excessivamente figurativo ao texto: “miram por angulatu-
ras diversas compreender o mesmo complexo de realidade”.

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sicos, mas de uma descrição analítica da dinâmica efetiva dos processos da realidade.
Talvez pudéssemos falar neste contexto de uma ontologia da esfera econômica.
Expresso por meios destas determinações gerais as postulações lukácsianas em
torno do método de Marx aparentam ser algo dúbio – não é nem um nem o outro
procedimento, mas os dois ao mesmo tempo – e difícil de precisar, porém se con-
ciliarmos estas palavras com as análises que o autor fará da forma expositiva do
livro III de O Capital, tais considerações tornam-se mais claras. Convém, portanto,
antecipar as conclusões de Lukács; isto não implicará de forma nenhuma desviar
da construção de seu raciocínio, apenas pretende tornar mais claro aquilo que em
seu texto somente figurará de maneira definitiva ao final da seção. Se observarmos
o curso dos próprios acontecimentos históricos, veremos que as figuras do capital
comercial, monetário, e a própria renda da terra, são formas de relações econômicas
que antecedem ao capital industrial – que se torna na sociedade capitalista figura
central preponderante das tendências econômicas. Porém, esta factualidade histórica
não confere a reta compreensão sobre suas funções no interior deste processo de
produção. O que nos coloca diante do seguinte problema: a observação empírica,
histórica neste caso, não revela a verdadeira natureza dos nexos destes complexos
parciais na efetividade da sociabilidade vigente. Expondo a natureza deste problema,
Lukács assim se pronuncia:
E essa a razão pela qual o Livro III contém os mais amplos e detalhados excursos
sobre a história dos complexos econômicos que surgem novamente em seu con-
texto. Sem isso, seria de todo impossível integrar o capital comercial e monetário,
assim como a renda da terra, no quadro concreto do conjunto da economia. A
gênese histórica deles é o pressuposto para compreender teoricamente sua atual
operatividade no sistema de uma produção autenticamente social, ainda que —
ou precisamente porque — essa dedução histórica não seja capaz de explicar di-
retamente o papel que eles assumiram finalmente nesse sistema. Com efeito, esse
papel depende da subordinação deles à produção industrial; antes do surgimento
dessa última, capital comercial e monetário e renda fundiária haviam conhecido
por longo tempo uma existência autônoma; e, nessa autonomia, apesar de certa
conservação de suas peculiaridades, haviam desempenhado funções econômico-
sociais inteiramente diversas. [OGS I, 603/310].
Trata-se de falar de complexos econômicos específicos que são refundados pela
lógica do novo que determina de maneira decisiva estes mesmos complexos ante-
riormente existentes. Somente por meio da abstração isoladora, que põe como cen-
tro da reflexão as categorias decisivas da forma vigente do ordenamento social, po-
de-se localizar com rigor o conjunto de tendências e leis, que moldam, remodelam,

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conferem novas funções, às categorias pré-existentes. Significa dizer que, em sua


essência e em sua constituição, estes elementos outrora autônomos e independentes,
transformam-se, adquirindo novas funções e nexos no interior de uma totalidade
que os enforma de acordo com novas necessidades.
Basta recordar aqui a exposição feita por Marx em As teorias da mais valia, onde
demonstra como as formas do capital produtor de juros, do capital comercial, da
renda, são reconfigurados, de forma a continuarem sua existência de maneira subor-
dinada à nova ordem estabelecida pelo capital.
Sendo a forma comercial e a dos juros mais antiga que a produção capitalista,
o capital industrial, que é a forma fundamental da relação capitalista – as outras
formas apenas aparecem como derivadas desta ou como secundárias: derivadas,
como o capital produtor de juros; secundárias, como o capital investido em uma
função particular (que faz parte do seu processo de circulação), como o capital
comercial –, não apenas domina a sociedade burguesa, deve submeter a si no seu
processo de formação esta forma e transformar em forma derivada ou em par-
ticular função de si mesmo. Estas formas mais antigas, ele as encontra na época
de sua formação de sua origem. As encontra como pressupostos, mas não como
pressupostos por ele estabelecidos, não como formas do seu próprio processo vi-
tal. As encontra como originariamente encontra a mercadoria, mas não como seu
próprio produto; como encontra a circulação do dinheiro, mas não como um mo-
mento da sua própria reprodução. Assim que a produção capitalista se desenvolve
em toda a amplitude de sua forma, se torna o modo de produção dominante, o
capital produtor de juros é dominado pelo capital industrial, e o capital comercial
não é mais que uma figura do próprio capital industrial derivado do processo de
circulação. [MARX: Mehrwert III, 460/491]
Lukács poderia também neste contexto se valer de passagens do texto que ele
tinha em mãos, ou seja do próprio Rohentwurf – que são diretamente citados e anali-
sados por J. Chasin em seu texto – onde Marx afirma de maneira decisiva:
Come in generale per ogni scienza storica e sociale, nell’ordinare le categorie eco-
nomiche si deve sempre tener fermo che, come nella realtà così nella mente, il so-
ggetto — qui la moderna società borghese — è già dato, e che le categorie perciò
esprimono modi d’essere, determinazioni d’esistenza, spesso soltanto singoli lati
di questa determinata società, di questo soggetto, e che pertanto anche dal punto
di vista scientifico essa non comincia affatto nel momento in cui se ne comincia
a parlare come tale. Questo fatto deve essere tenuto ben presente, perché offre
elementi decisivi per la ripartizione della materia. Per esempio, niente sembra più
naturale che cominciare con la rendita fondiaria, con la proprietà fondiaria, dal
momento che essa è legata alla terra, alla fonte di ogni produzione e di ogni esis-
tenza, e alla prima forma di produzione di tutte le società in qualche modo con-
solidate, e cioè all’agricoltura. E tuttavia nulla sarebbe più errato. In tutte le forme
di società vi è una determinata produzione che decide del rango e dell’influenza di tutte lê altre,
e i cui rapporti decidono perciò del rango e dell’influenza di tutti gli altri. È uma illumina-

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zione generale in cui tutti gli altri colori sono immersi e che li modifica nella loro
Particolarità. È una atmosfera, particolare che determina il peso specifico di tutto
quanto essa avvolge. [Marx: Rohentwurf, ed. Italiana, p. 39]
Embora a gama de problemas tratados por Marx seja bem mais ampla que a
questão a que ora nos dedicamos, nela vemos figurar de forma clara o entendimento
marxiano da gênese e transformação histórica das categorias. O trabalho que aqui
tivemos de acrescentar elementos que não são citados pelo próprio autor, tem o ob-
jetivo de destacar que a tese aqui proposta encontra respaldo ao longo de uma série
de textos do pensador alemão.
O caráter destas determinações que constituem a base dos lineamentos onto-
lógicos de Marx confere, inclusive, à própria abstração um aspecto completamente
outro daqueles que encontramos nos sistemas econômicos formados nos moldes
típicos da já mencionada cientificidade burguesa – que se estrutura sob a influência
decisiva dos postulados gnosiológicos. A abstração isoladora não é de forma alguma
um conceito, no sentido de uma simples formulação ideal no interior de um sistema
que representa dados nexos passíveis de serem demonstrados na realidade. As cate-
gorias são para Marx, e Lukács insistirá nisto diversas vezes, “formas do ser, deter-
minações da existência”. Significa dizer que a abstração não é uma construção ideal
do pensamento na busca da compreensão da realidade, mas é parte constitutiva da
própria realidade. A abstração é factível, algo realmente, concretamente, efetivamen-
te posta no plano da materialidade; é atributo do próprio ser. É também nas páginas
de O capital que Lukács localizará os elementos necessários para demonstrar sua tese,
particularmente no Livro II, quando onde Marx trata do problema da reprodução
simples. O próprio Marx se pronuncia dando destaque ao caráter da abstração que
ele realiza neste momento:
Die einfache Reproduktion auf gleichbleibender Stufenleiter erscheint insoweit
als eine Abstraktion, als einerseits auf kapitalistischer Basis Abwesenheit aller
Akkumulation oder Reproduktion auf erweiterter Stufenleiter eine befremdliche
Annahme ist, andrerseits die Verhältnisse, worin produziert wird, nicht absolut
gleichbleiben (und dies ist vorausgesetzt) in verschiednen Jahren. Die Voraus-
setzung ist, daß ein gesellschaftliches Kapital von gegebnem Wert, wie im vo-
rigen Jahr so in diesem, dieselbe Masse Warenwerte wieder liefert und dasselbe
Quantum Bedürfnisse befriedigt, obgleich die Formen der Waren sich im Re-
produktionsprozeß ändern mögen. Indes, soweit Akkumulation stattfindet, bildet

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die einfache Reproduktion stets einen Teil derselben, kann also für sich betrach-
tet werden, und ist ein realer Faktor der Akkumulation.5 [MARX: Kapital, II, p.
393-4]
Os elementos que firmam a tese lukácsiana da abstração isoladora parecem
transparecer aqui com o máximo vigor. O que se elimina neste momento na abstra-
ção analítica empreendida por Marx são os aspectos quantitativos da relação posta
em causa, assim como determinadas funções do complexo da reprodução no in-
terior do processo capitalista. Abstração não é neste contexto, artificialização do
problema, e neste sentido a criação de uma forma inexistente, meramente figurativa
e antagônica ao efetivo, mas o isolamento parcial de um complexo de funções e di-
nâmicas efetivamente existentes. As palavras de Marx são reveladoras neste sentido:
“Entretanto, quando tem lugar a acumulação, a reprodução simples constitui sempre
uma parte desta, pode portanto ser considerada por si e é um fator real da acumula-
ção” [Idem, 393]. Vale lembrar que este isolamento é tão somente um momento da
análise, algo provisório uma vez que logo na seqüência aqueles elementos postos de
lado na análise deste complexo parcial são reintroduzidos para pensar a reprodução
em sua forma ampliada.
A isto Lukács acrescenta outra dimensão importante que abstração possui no
pensamento de Marx. Trata-se da categoria trabalho abstrato, que nada mais é que o
trabalho indiferenciado, uma abstração que suprime as diferenças entre as diversas
atividades laborativas, manifestando-se na realidade apenas como o tempo social-
mente necessário para a produção de mercadorias. Esta abstração é uma operação
real – uma objetividade sensível supra-sensível, se quisermos nos valer dos termos
de Marx – que existe efetivamente no plano das inter-relações estabelecidas pelos
indivíduos no seio da sociabilidade do capital.
Estes dois princípios fundamentais até aqui esboçados confluem diretamente
a determinação decisiva do procedimento marxiano, já por nós anunciada como a
noção da realidade como complexos de complexos:
[...] jamais se deve reduzir o contraste entre o “elemento” e a totalidade à simples
antítese entre aquilo que é em si simples e aquilo que é em si composto. As ca-
tegorias gerais do todo e das suas partes ganham aqui uma complicação ulterior,
sem no entanto virem a ser suprimidas como relação fundamental: cada “elemen-
5. La riproduzione semplice su scala invariata appare come un’astrazione in quanto, da un lato, su base capi-
talistica, l’assenza di ogni accumulazione o riproduzione su scala allargata è un’ipotesi improbabile, dall’altro,
le condizioni nelle quali si produce non rimangono perfettamente invariate (e questo è presupposto) in anni
differenti. Il presupposto è che un capitale sociale di valore dato fornisca tanto nell’anno precedente che nel
presente nuovamente la stessa massa di valori-merce e soddisfi la stessa quantità di bisogni sebbene possano
mutarsi le forme delle merci nel processo di riproduzione. Ma, quando si svolge l’accumulazione, la ripro-
duzione semplice ne costituisce sempre una parte, può essere quindi considerata a sé ed è un fattore reale
dell’accumulazione.

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to”, cada parte, é também um todo, o “elemento” é sempre um complexo com


propriedades concretas, qualitativamente específicas, um complexo de forças e
relações diversas que atuam em conjunto. Tal complexidade, porém, não elimina
o caráter de “elemento”: as categorias autênticas da economia são – propriamente
na sua complicada, processual complexidade – efetivamente – cada uma a seu
modo, cada uma em seu posto – algo “último”, ulteriormente analisável, mas não
ulteriormente decomposto na realidade. [OGS I, 582/OSS, 287]
Em suma, retomando os elementos até aqui apresentados, vemos que ser objeti-
vo implica em ser algo para outro, significa afirmar que a objetividade tem por cen-
tro a categoria da relação, esta constitui a base de toda a argumentação que estabe-
lece as diferenças das abstrações em Marx e nos outros pensadores. Por meio desta
categoria, parte-se de uma determinação fundamental, culminando como corolário
na afirmação da objetividade como um complexo, pela qual, se deve inclusive con-
ceber os elementos constitutivos deste como complexo dinâmico com propriedades
concretas. Precisamente porque os elementos são totalidades parciais, por estarem
sempre entrelaçados com outras categorias do complexo de que eles fazem parte,
deve-se destacar a distinção do papel das abstrações no interior do pensamento mar-
xiano: o experimento ideal extrai por via das abstrações os momentos mais decisivos
de um complexo parcial, pensa estes momentos em sua forma pura, por meio das
inter-relações categorias diretamente vinculadas à categoria posta como centro da
reflexão, sem no entanto perder de vista a totalidade do complexo do ser social, que
é o objetivo último a que se pretende chegar, ou seja: a reprodução ideal da riqueza
de determinações da totalidade – que corresponde ao mencionado, porém ainda
não detalhado por nós, caminho de retorno. Em outras palavras, estes lineamentos
iniciais acerca da doutrina das categorias em Marx formam a base para a explicitação
das diferenças das abstrações no interior de seu pensamento.
Esta idéia culminará, logo à frente, na idéia da prioridade ontológica [ontologische
Priorität], que reinvidica igualmente como centro fundante a categoria da relação.
Esta relação contém pois não apenas a ordenação lateral [paritária - Nebenordnung],
mas também a sobre-ordenação [Über-] e a subordinação [Unterordnung]. [OGS I,
582/OSS I, 287]6
A relação existente entre determinadas categorias ou complexos de categorias
envolve a idéia de uma anterioridade necessária de determinados elementos que via-
biliza a existência de outros complexos e de outras categorias. A noção de prioridade
6. Tanto a tradução italiana quanto a edição brasileira suprimem o termo Überordenung. Temos que reconhecer
a dificuldade de vertê-lo para as respectivas línguas, dada a ausência de um correspondente direto, porém a
sobre-ordenação (neologismo por nós utilizado) é um elemento decisivo para o pensamento de Lukács, pois
corresponde diretamente às noções de prioridade ontológica [ontologische Priorität] e de momento preponderante [über-
greifende Moment].

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ontológica é a afirmação de que uma categoria “pode existir sem a outra, enquan-
to que o contrário é ontologicamente impossível” [OGS I, 582/OSS I, 288]. Esta
determinação é, segundo nosso autor, similar à tese materialista segundo a qual o
“ser tem uma prioridade ontológica sobre a consciência”, uma vez que esta última
somente pode existir sob o fundamento de algo que é. Ampliando o campo em que
este princípio ontológico fundamental se faz presente, Lukács nos remete às palavras
de Engels, que em seu discurso pronunciado no velório de Marx, lembra que antes
de os homens se ocuparem com política, arte, religião, etc. devem comer, beber, etc.
As palavras de Engels endossam a idéia da prioridade ontológica das categorias da
produção e reprodução da vida em relação às outras funções igualmente existentes
no âmbito do ser social.
No entanto é no próprio Marx que serão buscadas as bases para a sustentação
e demonstração da razoabilidade do problema posto em pauta. Quando Marx con-
sidera o “conjunto das relações de produção” como a “base real” para o “conjunto
das formas de consciência” tem em mente não a afirmação de um determinismo,
mas a demonstração da prioridade ontológica do primeiro sobre o segundo, ou seja,
o conjunto das relações de produção forma a base sobre a qual se desdobra o pro-
cesso social, político e espiritual dos homens. Este primeiro constitui, neste sentido,
o pressuposto para o desdobramento das formas de consciência. Vale lembrar as
próprias palavras de Marx, que fornecem indícios claros sobre o problema aqui tra-
tado, quando afirma que “não é a consciência do homem que determina o seu ser,
mas o seu ser social que determina sua consciência”. Vê-se claramente como que por
meio destas palavras o pensador alemão não apenas retira da consciência o papel de
prioridade ontológica, como também não se inclina a afirmar a consciência como
um produto imediato da estrutura econômica, mas como algo que se forma sob a
base dos processos de interação e inter-relação que os homens estabelecem entre
si e com a natureza. Destes argumentos se originam uma tese interessantíssima de
Lukács: a acusação da existência de um economicismo no interior do pensamento
de Marx é fruto quase sempre da incapacidade de perceber o problema da priori-
dade ontológica e – como veremos mais à frente – do momento preponderante. O
marxismo vulgar sucumbiu à idéia do determinismo da esfera econômica sobre as
demais exatamente por não ter percebido a discussão que Marx realiza em torno da
produção e reprodução da vida como a prioridade ontológica no âmbito do ser so-
cial. Esta prioridade não implica um determinismo desta sobre a vida espiritual dos
homens, mas uma anterioridade, um pressuposto que fornece o campo de possíveis
desdobramentos “do mundo das formas de consciência”. A dimensão do problema
é bem mais complexa do que a tacanha e estreita afirmação de uma diretiva imediata

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e necessária da economia sobre as outras esferas.


Porém antes de encerramos nossos comentários acerca da noção de prioridade
ontológica, vale lembrar que o mesmo tema é retomado em um outro contexto,
quando nosso autor acusa sua presença na construção do livro III de O capital. A
demonstração que ali encontramos redimensiona o âmbito e a forma de atuação
deste princípio, quando não o vincula mais a análise à determinação da interação das
esferas distintas do ser, não o vinculando também ao problema da relação da esfera
econômica com as outras esferas da prática social, mas demonstra no interior da
própria da sociabilidade do capital já constituída como que nas relações econômicas
a sobre-ordenação [Überordnung], a subordinação [Unterordnung] e o ordenamento pa-
ritário [Nebenordnung] se fazem presentes.
Somente na terceira parte é que o capital comercial e monetário (assim como a
renda da terra) adquirem um papel concreto na repartição do lucro. A prioridade
ontológica da mais-valia, que domina em absoluto, como vimos, revela-se tam-
bém aqui ineliminável, em última instância, na medida em que se trata do único
ponto onde surge valor novo; agora, porém, a mais-valia transformada em lucro é
dividida entre todos os representantes economicamente necessários, mesmo que
não criem valor novo, à divisão social do trabalho; e a análise desse processo, que
não podemos examinar aqui em seus detalhes, constitui o aspecto essencial na
terceira parte. [OGS /309]
A categoria da mais-valia constitui uma prioridade ontológica, na medida em
que é pressuposto necessário para as categorias do lucro, lucro-médio – acrescente-
se a estas o juro e a própria renda da terra. È o único âmbito em que surge um novo
valor, as outras figuras do capital tem sua dinâmica determinada pela distribuição
entre estas ramificações deste novo valor que surge a partir do capital industrial. Sob
a forma do lucro e da taxa media de lucro a mais valia é repartida entre estas figuras
distintas. Estas, portanto, existem na sociabilidade do capital assentadas sobre esta
base. A autonomia destas últimas é sempre relativa, uma vez que nesta forma da
sociabilidade estas categorias adquirem suas funções e características na condição de
subordinadas à mais-valia – que é condição sine qua non para o seu persistir como ins-
tância operativa na sociabilidade do capital. Palavras complicadas estas últimas, mas
que se fazem necessárias, pois como vimos que o juro pré-existe ao capital indus-
trial, mas tem suas funções e diretrizes completamente reconfiguradas e redefinidas
com o advento desta forma de sociabilidade. Em suma a prioridade ontológica atua
neste caso no interior do ordenamento societário do capital, tem uma validade não
universal, mas histórica, pois está posta como necessária apenas no contexto desta
sociabilidade e permanecerá vigente enquanto este persistir. Toda esta discussão que
conclui pela afirmação da prioridade ontológica das referidas categorias econômi-

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cas – valor e mais-valia – vincula-se de um modo direto ao problema do momento


preponderante, pois a anterioridade que se realiza nesta situação é a da centralidade
de uma categoria que se põe como a articuladora decisiva dos nexos existentes, de
uma categoria hierarquicamente decisiva no ordenamento e diretriz assumida pelo
complexo em questão. Retomaremos esta discussão mais a frente.
Não podemos perder de vista que nas páginas iniciais de sua elaboração Lukács
está apenas delineando aspectos gerais da doutrina das categorias, somente mais à
frente quando se dedica a analisar diretamente a obra marxiana estes aspectos são
apresentados operando diretamente sob a forma da relação real das categorias da
esfera econômica. Este é o motivo que nos leva a transitar de um modo mais livre
sobre as páginas do texto de Lukács, objetivando vincular deste o início suas con-
siderações mais gerais sobre a ontologia, com a demonstração mais clara da forma
de sua realização no pensamento de Marx. A obra que ganha atenção especial, na
demonstração dos princípios fundamentais da ontologia, é O Capital. Lukács não
negligencia os textos anteriores – principalmente os manuscritos que constituem os
materiais preparatórios para a construção de sua obra principal – porém considera
que
O chamado Rohentwurf, ainda que pleno de instrutivas análises sobre complexos e
conexões não analisadas em O capital, todavia na sua composição completa ainda
não possui o modo de exposição novo, metodologicamente claro e ontologica-
mente fundamental, da obra prima conclusiva. [OGS I, 584/OSS I, 289]
Talvez o que escapa a Lukács neste momento é a percepção de que todo o tra-
balho ali realizado fornece fortes indícios do procedimento investigativo de Marx
– ou se preferirmos usar os termos cunhados pelo próprio Lukács, é o trabalho de
experimentação ideal no curso de sua construção formativa. Ao que tudo indica os
propósitos do pensador húngaro é evidenciar sobretudo o problema do método
expositivo deixando de lado o problema a investigação propriamente dito. Muito
embora não devamos nos esquecer que os caminhos seguidos pela investigação se
encontram de certo modo esboçados em toda discussão preliminar sobre os prin-
cípios ontológicos tidos como fundamentais para nortear a própria investigação;
suas noções de elemento como complexo parcial, a idéia de relação, de prioridade
ontológica, etc. orientam de saída, sob a forma de uma diretiva geral, não determi-
nativa, aqueles princípios mais gerais constitutivos de todo ser. Em outros termos,
a identificação destes princípios ao longo do próprio procedimento investigativo
apontam a direção pela qual o pensamento pode atingir aqueles complexos mais
prioritários que determinam de modo decisivo a dinâmica de um dado complexo de
ser. Contudo, convém ressaltar que, se estes elementos indicam o problema, o fazem

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

de uma maneira evidentemente indireta.


Em O Capital Marx já está de posse da riqueza de determinações do concreto,
portanto o elemento abstraído neste momento e tratado de forma pura, mais preci-
samente a abstração isoladora que é identificada à teoria do valor, expressa a forma
necessária de exposição do complexo em questão, não coincidindo de modo algum
com a descrição do processo investigativo que permite a Marx localizar nesta catego-
ria o ponto de partida. O valor é o centro por ser o pressuposto de todos os outros
elementos, a conexão que vincula os vários elementos da dinâmica econômica e
extra-econômica.
Precisamente em vista disso um pouco mais à frente, ele acrescenta que o valor
é
uma abstração sui generis: a sua base é a efetiva lei fundamental da circulação social
das mercadorias, uma lei que em última instância se afirma sempre na realidade
econômica, não obstante todas as oscilações dos preços, em uma totalidade que
funciona normalmente. Por isso esta não opera como uma abstração quando se
trata de esclarecer seja os nexos econômicos puros, seja as suas inter-relações com
os fatos e tendências extra-econômicos do ser social; por isso, toda a primeira
parte do livro O Capital se apresenta como uma reprodução da realidade, e não
como um experimento ideal abstrato. A razão reside, mais uma vez, no caráter
ontológico desta abstração: isso significa, nem mais nem menos, que ao isolá-la se
pôs em evidência a lei fundamental da circulação das mercadorias, a ela foi permi-
tido agir sem interferências ou obstáculos, sem que fosse desviada ou modificada
por outras relações estruturais e por outros processos, que em uma sociedade
são, ao contrário, necessariamente operantes. Por isto, em tal redução abstrativa
ao dado essencialíssimo todos os momentos – econômicos e extra-econômicos
– aparecem sem deformações; enquanto que uma abstração não fundada ontolo-
gicamente ou dirigida a aspectos periféricos leva sempre a deformar as categorias
decisivas. (I, 302)
O primeiro tema aqui presente – a abstração isoladora – já se encontra esboçado
em nossas considerações anteriores, o que merece destaque portanto são os dois
outros lineamentos ontológicos mencionados neste contexto: momento preponde-
rante e a interpenetração entre a esfera econômica e extra-econômica..
Lukács lança mão do problema da relação entre econômico e extra-econômico
para estabelecer não apenas a discussão em torno do momento preponderante, mas
inclusive a discussão sobre a centralidade da categoria do valor. Logo de início nosso
autor fala abertamente da importância deste problema – e isto é decisivo para os
nossos propósitos – para a doutrina das categorias: “Este mútuo compenetrar-se do
econômico e do extra-econômico no ser social incide a fundo na própria doutrina
das categorias [Kategorienlehre]” [OGS I, 585/OSS I, 291]. Frase chave para o entendi-
mento das idéias que estão sendo desenvolvidas nesta seção. O que Lukács procura

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fundar é a interpenetração e inter-relação irrevogável das categorias econômicas e


extra-econômicas sob a base de uma categoria que unifica e intercambia estes dois
pólos distintos. Em síntese, pelo menos duas conseqüências importantes decorrem
desta afirmação: 1) a discussão sobre a importância do problema da doutrina das
categorias; e 2) a determinação da continuidade e interpenetração das categorias que
compõem esferas distintas do ser social, como lineamento decisivo para a conside-
ração desta doutrina. Por meio desta segunda conseqüência aqui anunciada Lukács
refuta aquelas tendências que separam rigidamente a dimensão material e espiritual
do ser do homem. A tomada de posição em relação a este problema atravessa toda
a obra de Lukács.
O problema neste instante consiste em saber como e em que sentido a categoria
valor aglutina em si estes lineamentos mais fundamentais até aqui descritos. Quanto
à determinação do momento preponderante logo se vê, como já argumentado, que
esta lei eminentemente econômica incide diretamente na esfera extra-econômica,
fundando o campo e a base diretiva dos desdobramentos da luta de classes – além
de outra passagem significativa citada já acima que fala sobre “os comportamentos e
relações que derivam necessariamente da sua existência”.
Sua argumentação toma por base a especificidade da mercadoria força de traba-
lho, da qual, segundo Lukács, “necessariamente deriva a presença contínua de mo-
mentos extra-econômicos na realização da lei do valor também da compra e venda
normal desta mercadoria” [585/291]. Em uma referência direta a O Capital, Lukács
procura demonstrar como que a luta entre o “conjunto de capitalistas” e o “conjunto
de operários” ilustra o modo como momentos extra-econômicos da cotidianidade
dos homens se encontram determinados pela “necessidade ditada pela própria lei do
valor”. A demarcação desta interpenetração entre estas duas esferas está, segundo
ele, claramente presente na obra marxiana, onde as exposições iniciais sobre a lei do
valor, presentes logo no começo dos seus escritos, são posteriormente remetidas
ao problema da acumulação primitiva. Esta parte do texto constitui para Lukács
o momento em que são apresentadas “uma secular cadeia de atos de força extra-
econômicos” que criaram as “condições históricas que fizeram da força de trabalho
aquela mercadoria especifica que constitui a base da legalidade teórica da economia
do capitalismo” [586/292]. A interpenetração do econômico e do extra-econômico
é revelada por Lukács com o exemplo dos meios violentos por meio do qual foram
implantadas na Inglaterra as bases da sociedade capitalista. Não apenas a lei econô-
mica determinou seu nascedouro, mas um conjunto de medidas não diretamente
econômicas foi adotado para que sua implementação fosse viabilizada. O econômi-
co e o extra-econômico são esferas distintas que se determinam mutuamente. As leis
da economia prescrevem um conjunto de tendências, que só se efetivam porém, na

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

medida em que um conjunto de ações não diretamente vinculadas a esta esfera cria
as condições para a sua plena realização.
Tudo isto revela tão somente os aspectos iniciais da exposição das categorias
econômicas feitas por Marx em sua obra. Os passos posteriores subentendem a
dissolução deste preliminar grau de abstração realizada nas páginas iniciais. Basta
pensar na própria estrutura da obra marxiana para ver como que do mais abstrato,
parte-se em direção à “totalidade concreta”: a exposição da forma pura da lei do va-
lor vai culminar, após uma série de mediações importantes, no manuscrito inacabado
sobre as classes. Ou para usar as palavras de Lukács:
ali se põem experimentalmente conexões legais puras, homogêneas na sua abstra-
ção, e a ação exercitada sobre esta, por vezes até superá-la, por componentes mais
amplos, mais vizinhos à realidade, inseridos sucessivamente, para chegar no final
na concreta totalidade do ser social. [586/292]
O momento abstrato, eminentemente econômico, culminará na parte final do li-
vro, no encontro com os momentos extra-econômicos vigentes na totalidade do ser
social: neste caso, a luta de classes – em sua dimensão mais ampla, que compreende
não apenas o conflito entre trabalhadores e capitalistas, mas do capitalista industrial
com o capitalista que opera no comércio, no mercado monetário, etc, – como com-
posição diretiva da cotidianidade dos homens.
É necessário frisar que esta autêntica demarcação sobre a estrutura da obra de
Marx, vale como argumento para a tese da interpenetração do econômico e do extra-
econônomico e é usada neste contexto fundamentalmente para demonstrá-la. Retor-
nando, portanto, ao problema anunciado mais acima, o momento preponderante, é a
delimitação da lei diretiva decisiva que regula a interpenetração entre as duas esferas.
A definição desta lei aparece atrelada à determinação da categoria central da obra
marxiana: o valor.
Não por acaso Marx, em O Capital estudou como primeira categoria, como “ele-
mento” primário, o valor. E em particular a estudou no modo pela qual esta se
apresenta na sua gênese: de um lado esta gênese revela a história de toda a reali-
dade econômica em um resumo geral, em abstrato, reduzida a um só momento
decisivo, de outro lado a escolha mostra claramente a sua fecundidade porque esta
própria categoria, junto com os comportamentos e relações que derivam necessa-
riamente da sua existência, iluminam centralmente aquilo que de mais importante
existe na estrutura do ser social, a sociabilidade da produção. [OGS I, 587/OSS
I, 293]
Sob estas determinações, merece destaque o fato de que a forma expositiva não
é uma escolha aleatória definida pela subjetividade do autor, pois o próprio objeto
impõe os lineamentos de sua exposição. A dialética – termo alías pouco utilizado

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por Lukács ao longo de sua análise – aparece neste sentido não como uma escolha
ou como uma aplicação de método para referenciar a exposição de um problema,
mas é a expressão do movimento e da dinâmica interativa e inter-relacional posta
pelo próprio complexo em questão. A análise do valor não é pois uma abstração
conceitual que introduz os elementos primeiros da economia, mas é o tratamento
“puro”, a exposição dos nexos mais decisivos da esfera econômica tomadas de uma
forma isolada, sem a interferência de outros elementos presentes na totalidade, que
se tomados em consideração neste momento obscureceriam a autenticidade de seus
nexos. Abstração aqui é portanto o isolamento de um complexo parcial da realidade.
O complexo isolado abstratamente é algo tão existente quanto qualquer outro ele-
mento desta realidade, o que ocorre neste momento é que, por meio do experimento
ideal, isola-se este complexo parcial para delinear sua dinâmica de forma mais clara
e precisa.
Em O Capital podemos observar o declarado caminho das abstrações até a via-
gem de retorno ao mais concretamente determinado.
Se nós procurarmos determinar de maneira generalíssima os princípios decisivos
de sua estrutura [de O Capital], então nós podemos dizer de forma introdutória
que se trata de um grande processo de abstração como ponto de partida, a par-
tir do qual, dissolvendo as abstrações metodologicamente inevitáveis, etapa após
etapa vem aberta a estrada que conduz o pensamento a apreender a totalidade em
sua concretude clara e ricamente articulada. [OGS I, 584/OSS I, 289]
Lukács introduz neste parágrafo a segunda etapa necessária na reta exposição
dos complexos de ser. Se em um primeiro momento cumpre isolar determinadas ca-
tegorias e complexos decisivos por meio da abstração isoladora, o passo subseqüen-
te implica recompor a totalidade, em seu multiverso de articulações e interações.
Trata-se de um procedimento que evolve aquilo que o nosso autor denomina como
dissolução das abstrações [Abstraktionsauflösungen], momento que constitui a conso-
lidação do processo do conhecimento, apreensão ideal da riqueza de determinações
do concreto. O trabalho de Lukács é, portanto, demonstrar como este movimento
aparece nas páginas de O Capital: das abstrações isoladoras até a construção ideal do
concreto pensado.
Lukács percorrerá toda a obra de O Capital, demonstrando como a construção
marxiana expressa o caminho de retorno ao mais ricamente determinado, além de
demonstrar em linhas gerais o caráter das abstrações mais centrais e decisivas dos
três livros da obra. O centro de sua argumentação é a tese de que não são simples
abstrações, mas momentos reais, realmente existentes, porém que na realidade não
se encontram jamais atuando isoladamente, de forma pura.

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

A verdadeira construção de O Capital mostra que Marx lida decerto com uma abs-
tração, mas evidentemente extraída do mundo real. A composição do livro con-
siste, precisamente, em introduzir continuamente novos elementos e tendências
ontológicas no mundo reproduzido inicialmente sobre a base dessa abstração;
consiste em revelar cientificamente as novas categorias, tendências e conexões
surgidas desse modo, até o momento em que temos diante de nós, e compreen-
demos, a totalidade da economia enquanto centro motor primário do ser social.
O passo imediatamente sucessivo conduz ao próprio processo de conjunto, visto
inicialmente em sua generalidade. 57
As considerações de Lukács encontram respaldo direto no texto de Marx. Nas
primeiras linhas que abrem o seu manuscrito que compõe o livro III de O capital,
Marx explicita de imediato a estrutura geral de sua obra, destacando a forma da
exposição por ele assumida, que vai da explicitação do processo da produção capi-
talista tomado em si mesmo e considerado por meio de um isolamento abstrativo,
passando por uma intensificação gradativa dos diversos níveis de complexidade da
economia – por meio da descrição da gênese determinativa de outras categorias e
processos (a circulação) –, até a explicitação e exposição da forma pela qual esta eco-
nomia aparece na superfície da sociedade, como dado imediatamente perceptível.
Im ersten Buch wurden die Erscheinungen untersucht, die der kapitalistische Pro-
duktionsprozeß, für sich genommen, darbietet, als unmittelbarer Produktions-
prozeß, bei dem noch von allen sekundären Einwirkungen ihm fremder Umstän-
de abgesehn wurde. Aber dieser unmittelbare Produktionsprozeß erschöpft nicht
den Lebenslauf des Kapitals. Er wird in der wirklichen Welt ergänzt durch den
Zirkulationsprozeß, und dieser bildete den Gegenstand der Untersuchungen des
zweiten Buchs. Hier zeigte sich, namentlich im dritten Abschnitt, bei Betrachtung
des Zirkulationsprozesses als der Vermittlung des gesellschaftlichen Reprodukti-
onsprozesses, daß der kapitalistische Produktionsprozeß, im ganzen betrachtet,
Einheit von Produktions- und Zirkulationsprozeß ist. Worum es sich in diesem
dritten Buch handelt, kann nicht sein, allgemeine Reflexionen über diese Einheit
anzustellen. Es gilt vielmehr, die konkreten Formen aufzufinden und darzustel-
len, welche aus dem Bewegungsprozeß des Kapitals, als Ganzes betrachtet, her-
vorwachsen. In ihrer wirklichen Bewegung treten sich die Kapitale in solchen
konkreten Formen gegenüber, für die die Gestalt des Kapitals im unmittelbaren
Produktionsprozeß, wie seine Gestalt im Zirkulationsprozeß, nur als besondere
Momente erscheinen. Die Gestaltungen des Kapitals, wie wir sie in diesem Buch
entwickeln, nähern sich also schrittweis der Form, worin sie auf der Oberflä-

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che der Gesellschaft, in der Aktion der verschiedenen Kapitale aufeinander, der
Konkurrenz, und im gewöhnlichen Bewußtsein der Produktionsagenten selbst
auftreten. [Kapital, III, 34]7
A descrição destes três momentos da investigação desenvolvida apresenta em
graus diferentes de exposição as peculiaridades que podem ser discriminadas na
forma acabada do capital. O primeiro momento, que corresponde ao primeiro livro,
destaca analiticamente apenas o processo de produção capitalista abstraindo-se toda
e qualquer “influência secundária” que são “estranhas” a este momento específico
provisoriamente isolado. Tal procedimento põe em destaque uma faceta específi-
ca do capital, o que não esgota evidentemente todas suas nuances e todas as suas
possíveis formas ou figurações. O livro III tem como objetivo “expor as formas
concretas do processo de movimento do capital considerado como um todo”, o
que corresponde ao momento final da exposição, onde se conclui pela reprodução
no pensamento da totalidade do objeto em questão, em toda sua gama de determi-
nações, o que, para usar uma expressão do próprio Marx, pode ser referido como a
fase de conclusão na qual se constitui de forma cabal o concreto pensado. Após o
desvelamento das principais tendências inerentes à sociabilidade do capital, trata-se
portanto de empreender a elucidação da forma fenomênica, isto é, revelar a forma
da sua articulação com suas determinantes mais decisivas, assim como estabelecer a
gênese daquelas categorias que aparecem de forma mais clara e com maior evidência
na superfície dos processos econômicos.
Importa dizer que Lukács após uma longa série de demonstrações sobre a natu-
reza das abstrações e as etapas de sua dissolução ao longo da obra de Marx, sintetiza
todo o percurso marxiano da maneira que se segue:
Tão-somente a aproximação da concreta constituição do ser social, possibilitada
pela compreensão do processo de reprodução em seu conjunto, é que permite a
Marx dissolver [Auflösung] — em nível ainda mais concreto — as abstrações do
7. “Nel I Libro si sono analizzati i fenomeni che il processo di produzione capitalistico, preso in sé, presenta
come processo di produzione immediato, astraendo ancora da tutte le influenze secondarie di circostanze ad
esso estranee. Ma questo processo di produzione immediato non esaurisce il corso dell’esistenza del capitale.
Esso, nel mondo della realtà, viene completato dal mondo della circolazione, il quale ha costituito oggetto del-
le indagini del II Libro. Vi si mostrava, specialmente nella III sezione, che tratta del processo della circolazione
quale mediazione del processo di riproduzione sociale, che il processo di produzione capitalistico, preso nel
suo complesso, è unità di dei processi di produzione e di circolazione. Scopo del presente Libro non può es-
sere quello di esporre riflessioni generali su siffatta unità; si tratta piuttosto di scoprire ed esporre le forme concrete
dal processo di movimento del capitale, considerato come un tutto. Nel loro movimento reale, i capitali assumono l’uno
nei confronti dell’altro tali forme concrete, in rapporto alle quali l’aspetto del capitale nel processo immediato
di produzione, così come il suo aspetto nel processo di circolazione, appaiono soltanto come momenti parti-
colari. Gli aspetti del capitale, come noi li svolgiamo nel presente volume, si avvicinano quindi per gradi alla
forma in cui essi si presentano alla superficie della società, nell’azione dei diversi capitali l’uno sull’altro, nella
concorrenza e nella coscienza comune degli agenti stessi della produzione.”

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

início. Isso acontece na teoria da taxa de lucro. Valor e mais-valia continuam a ser
as categorias ontológicas fundamentais da economia do capitalismo. Na etapa de
abstração da primeira parte, basta afirmar que apenas a qualidade específica da
mercadoria força-de-trabalho é capaz de criar valor novo, enquanto os meios de
produção, matérias-primas, etc, simplesmente conservam o seu valor no processo
de trabalho. A concretização da segunda parte fornece uma análise do processo
global que, em muitos aspectos, ainda se mantém sobre essa base; isso ocorre na
medida em que, como elementos do ciclo, figuram o capital constante e o capital
variável, assim como a mais-valia. Aqui resulta verdadeiro que, no processo de
conjunto – considerado em sua generalidade pura, ou seja, prescindindo com
consciência metodológica dos atos singulares que o formam na realidade –, a lei
do valor continua em vigor sem alterações. E trata-se novamente de uma cons-
tatação justa e importante no plano ontológico, já que os desvios da lei do valor
— na totalidade do processo — compensam-se de modo necessário. Com uma
formulação simples, pode-se dizer: o consumo (inclusive o consumo produtivo da
sociedade) não pode ser maior do que a produção. Naturalmente, aqui se abstrai
do comércio exterior; mas se trata de uma posição correta, já que — precisamente
nesse caso — é sempre possível suprimir pura e simplesmente essa abstração e
estudar as variações que essa supressão introduz no conjunto das leis; deve-se
notar, de passagem, que toda a questão perde seu sentido se o objeto imediato da
teoria for a economia mundial. [OGS I, 600/306-7]
Nos dois primeiros livros as categorias do valor e da mais-valia encontram-se
fixadas pelo patamar de abstração empreendido, portanto, são apresentadas de um
modo em que elas aparecem irretocadas, manifestando-se sempre como pano de
fundo sobre o qual se desdobra a dinâmica da realidade econômica, ainda pensada
sob a forma de abstrações que isolam complexos parciais da totalidade. Mesmo no
livro II, onde o processo de circulação é introduzida na análise, a lei do valor conti-
nua como momento ontologicamente prioritário uma vez que a circulação não pode
prescindir nunca do processo de produção, regido e posto em movimento sob a base
da produção de mais valia. Nos termos de Lukács, nestes dois primeiros momentos
da exposição empreendida por Marx, a lei do valor figura sem os desvios – parti-
cularmente do lucro-médio – pela qual ela se efetiva no plano da realidade econô-
mica. Justificável a abstração isoladora, na medida em que no âmbito da realidade
manifesta, ela continua a operar como decisiva, pois a compensação de todos estes
“desvios” têm a orientação de fundo determinados por esta lei.
No parágrafo subseqüente encontramos a explicitação da derradeira dissolução
das abstrações empreendida nos dois livros anteriores:
De qualquer modo, o problema da terceira parte é o seguinte: no interior do ciclo
total, agora compreendido, investigar a legalidade que regula os atos econômicos
singulares, e não apenas para-si, mas precisamente no quadro da compreensão do
processo de conjunto. Esse influxo dos atos singulares sobre o processo global,

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capaz de modificar ontologicamente as categorias, tem porém duas premissas


histórico-reais: em primeiro lugar, o crescimento das forças produtivas, com a
conseqüente diminuição do valor; em segundo, a ampla possibilidade que tem
o capital de migrar de um ramo para outro. Ambos os processos pressupõem,
por seu turno, um grau relativamente elevado de desenvolvimento da produção
social, o que mostra novamente como as categorias econômicas, em sua forma
pura e explicitada, requerem um funcionamento evoluído do ser social; em ou-
tras palavras, a sua explicitação enquanto categorias, a superação categorial das
barreiras naturais, são um resultado do desenvolvimento histórico-social. [OGS
I, 601/307]
No livro III as abstrações iniciais culminam em sua completa dissolução. Esta
consiste para Lukács na consideração daqueles atos singulares que atuam diretamen-
te sobre o conjunto de leis e tendências vigentes na realidade econômica. As cate-
gorias da economia aparecem desta vez em sua real e concreta articulação com as
categorias mais superficiais, isto é, aqueles que se põem no plano da imediaticidade
ou da superfície. A lei do valor nesta dimensão agora analisada sofre a determinação
de outras tendências presentes na própria realidade, sem perder no entanto o perfil
de elo tônico, que articula de forma decisiva – momento preponderante – a dinâmica
da totalidade. Ganha destaque neste momento conclusivo da análise marxiana, o fato
de que é que no complexo total da economia estes momentos específicos da esfe-
ra econômica – leis tendenciais tomadas no seu “para-si” e os atos singulares – se
encontram em mútua determinação. Estes últimos não são portanto, meros epife-
nômenos ou reflexos passivos de uma lei perene, rígida e irrevogável, mas incidem
sobre ela alterando a própria forma pela qual ela se realiza na efetividade econômica.
Em termos mais diretos, a lei originária que põe em curso a viabilidade de outras leis
e dinâmicas – igualmente importantes – sofre o influxo direto daquilo que se põe
na escala do tempo como instante secundário. A lei do valor determina, permanece
determinante, porém é igualmente determinada, sobreposta e redimensionada por
um conjunto de elementos que existem assentados sobre ela – neste caso os atos
singulares dos indivíduos, que a realiza em suas tendências e a transforma em meio
às suas atividades cotidianas.
Reconfigurada no interior desta complexa interação com outros complexos de
determinações mais ricas, ela – a lei do valor – adquire o perfil de uma tendência
latente no interior deste processo total. Uma vez dissolvida as abstrações ela aparece
em sua real figuração no interior da dinâmica efetiva das interações econômicas.
Não devemos nos esquecer que todo este movimento abstrativo empreendido nos
livros anteriores se fazia necessário, pois sem ele permaneceria obscura as raízes ge-

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néticas das categorias mais periféricas da economia capitalista; permaneceria velado,


inclusive, o elemento articulador dos nexos e movimentos assumidos pela dinâmica
categorial da economia.
Por meio de todo este conjunto de exposições até então destacadas, procurou-
se demonstrar como a natureza dos argumentos lukácsianos em torno do proble-
ma ontológico em Marx, dá ênfase ao problema dos princípios ontológicos que se
encontram já realizados e efetivados em seu pensamento, e nesta medida, embora
revele aspectos relevantes do pensamento marxiano, não destaca o que vem a ser
o procedimento investigativo propriamente dito, na medida em que concentra sua
atenção no desvelamento das bases ontológicas sob as quais o pensador alemão
constrói sua obra e na explicitação dos fundamentos necessários que justificam a
estrutura presente em O Capital. A questão do procedimento investigativo fica, de
forma evidente, em aberto.
É precisamente este ponto, ausente nas reflexões de Lukács, que Chasin focali-
zará grande parte da análise desenvolvida na terceira parte de seu livro, intitulada A
resolução metodológica. O autor brasileiro dirige sua atenção ao mesmo texto de Marx
que dá início, como vimos, às reflexões de Lukács acerca do tema. Analisando a Intro-
dução de 57 é trazida à tona a categoria da abstração razoável [verständige Abstraktion],
que, para Chasin, cumpre o papel decisivo de ser o ponto de partida da investigação.
Do mesmo modo como faz Lukács ao seguir os passos descritos por Marx em seu,
Chasin destaca os problemas em se tomar a realidade imediata como ponto de par-
tida de um modo acrítico. Tal como o faz Lukács, o autor dá ênfase aos dizeres de
Marx que adverte:
Se portanto começar pela população, então eu terei uma representação caótica do
todo e, por meio de uma determinação mais precisa, pela análise, alcançarei con-
ceitos sempre mais e mais simples; do concreto figurado eu passarei a abstrações
sempre mais rarefeitas, até chegar às determinações mais simples. [MARX, Karl.
Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. Berlin: Dietz Verlag, 1953, p. 21]
Chasin identifica este momento na obra do próprio Lukács, dando destaque
ao fato que por meio desta passagem o pensador húngaro estabelece o conceito de
abstração isoladora. No entanto, os rumos de sua análise tomam um curso distinto.
Neste momento, ele considera que os passos aqui descritos nos enviam diretamente
ao problema das abstrações razoáveis, constituindo uma discussão que remete muito
mais à questão do procedimento investigativo do que ao problema do caráter das
abstrações no interior da estrutura expositiva desenvolvida por Marx, como o faz
Lukács.

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Acerca desta noção, nos esclarece Chasin:


A razoabilidade de uma abstração se manifesta, pois, quando retém e destaca
aspectos reais, comuns às formas temporais de entificação dos complexos fenomê-
nicos considerados. A razoabilidade está no registro ou constatação adequados,
“através da comparação”, do que pertence a todos ou a muitos sob diversos mo-
dos de existência.
As abstrações razoáveis constituem, por sua vez, “relações gerais ou as mais sim-
ples das categorias”, ou seja, são determinações apreendidas sob a forma dos aspec-
tos mais gerais de uma dada categoria. Diferentemente do que possa parecer a pri-
meira vista, a abstração razoável não constitui escolha aleatória ou uma formulação
fundada exclusivamente sob as bases do pensamento, pelo contrário, como destaca
Chasin, ela é antes de tudo “algo geral extraído das formações concretas, posto à
luz pela força da abstração, mas não produzido por um volteio autônomo da mes-
ma, pois seu mérito é operar subsumida à comparação dos objetos que investiga”
[Chasin, 422]. O que significa dizer que já em seu início, as determinações trazidas
à tona pelo pensamento são “determinações da existência, formas do ser”. Assim
como Lukács, Chasin constata esta asserção essencial de Marx, concedendo a ela o
devido peso no interior do seu pensamento, coisa que para transparece como um
mero enunciado protocolar.
A abstração razoável cumpre pelo menos dois papéis fundamentais no processo
da investigação: 1- ao fixar os elementos mais gerais de uma dada categoria permite
que, por comparação, sejam postas com maior evidência as diferenças essenciais (termo
empregado por Marx) existentes entre as diversas formas específicas de sua realiza-
ção; 2- por meio dela, tem início o trabalho inicial de identificação e de depuração
dos elementos mais simples que compõem o complexo posto como centro da aná-
lise, ou em outros termos, em meio ao todo caótico que se apresenta de um modo
mediato à percepção humana, tem início o trabalho de depuração de determinados
elementos que compõem a efetividade em causa. Arrimado nesta dupla perspectiva
das abstrações razoáveis que se encontram presentes nas considerações marxianas,
Chasin busca estabelecer os passos que compõem a démarche do pensamento no tra-
balho de elucidação do concreto analisado. Nelas já se encontram presentes elemen-
tos que descrevem o caminho da captura ideal dos nexos reais, que são elucidados
por meio da noção de intensificação ontológica. Em termos gerais, esta noção pode ser
definida como a consideração histórica da diferenciação essencial pela qual se efetivam
as categorias. Trabalho que implica a necessária transformação paulatina do ponto
inicial, ou seja, no “deperecimento da abstratividade” presente em um primeiro mo-
mento na forma provisória da abstração razoável.

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

Um dos aspectos fundamentais dessa transformação compreende a intensificação


da razoabilidade dessas categorias simples, ou seja, a atualização das virtualidades
de sua natureza ontológica enquanto forma de apropriação ideal dos objetos reais.
O que é operado pela exata aproximação e comparação delas aos traços efetivos,
portanto, determinados e delimitados dos objetos, de modo que sejam medidas por
eles e, conseqüentemente, ajustadas aos mesmos, de forma que sua capacidade de
os reproduzir se torne mais precisa e, por isso mesmo, maior. Em termos bem
sintéticos, na rota que vai do simples ao complexo, do abstrato ao concreto, as
abstrações razoáveis devem perder generalidade por especificação, adquirindo os
perfis da particularidade e da singularização, ou seja, a fisionomia de abstrações
razoáveis delimitadas. [Chasin, p. 426]
Neste sentido, a dinâmica trazida à tona por Chasin, demonstra que
a investigação marxiana está remetendo à multilateralidade determinativa de toda
conformação fenomênica, ou seja, referindo que todo objeto, intrínseca e extrin-
secamente, é e se manifesta como um feixe entrelaçado de inúmeras determina-
ções, para cuja adequada reprodução teórica são indispensáveis a delimitação e a
articulação das abstrações razoáveis. Desde logo porque a articulação, fase con-
clusiva do processo analítico, é também uma exigência de delimitação, levado em
conta que as abstrações razoáveis, umas em face das outras, têm de ser compa-
tibilizadas entre si, o que implica recíprocas determinações delimitadoras, pelas
quais são estabelecidas as proporções com que integram a reprodução final do
objeto investigado. Proporções, é evidente, que não dizem respeito, simples e
essencialmente, ao tamanho ou à extensão conceitual com que são incorporadas
à síntese, mas às qualidades com que participam da mesma, pois, as abstrações
razoáveis, sob a intensificação ontológica que as delimita, não apenas continuam
a ser “um conjunto de determinações diferentes e divergentes”, mas, a rigor, têm
sua diversidade acentuada por especificação, mesmo porque ajustadas à coabita-
ção, harmônica ou contraditória, com as diferenças essenciais, de modo a se torna-
rem capazes de reproduzir o concreto do ser-precisamente-assim, o que significa
aproximação e tradução máximas possíveis da profusa malha de determinações
interconexas do mesmo.
A fase conclusiva do trabalho analítico transparece aqui sob as bases de um per-
curso que paulatinamente, em um esforço investigativo diretamente voltado para o
objeto em questão, delimita as várias nuances, particularização e singularidades conti-
das na “coisa” analisada. Ao final, o pensamento deve dar provas da recta apreensão
da riqueza e complexidade de determinações que compõem a realidade. Momento
que lembra as palavras de Marx reproduzidas mais acima, que estão contidas no livro
III de O Capital, onde, como adverte Lukács, o pensador alemão aproxima de modo
direto o esforço analítico ao desvendamento da face mais aparente, superficial, do
complexo econômico. Porém, de uma tal maneira, que a expressão mais aparente da
economia é posta em destaque com toda aquela armação categorial dinâmica que se
encontrava velada no momento inicial da elucidação do complexo.

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Ronaldo Vielmi Fortes

É patente que Chasin não incorre no risco de se valer de expressões consagradas


na história do pensamento filosófico – como o faz Lukács com os termos experimento
ideal e observação empírica – ao buscar elucidar a natureza do problema em Marx. No
entanto, pondo de lado esta dimensão específica do uso das expressões tradicio-
nais, em grande medida as observações de ambos os autores coincidem em pontos
importantes. Dentre estes pontos merece relevância a afirmação de que os nexos,
relações, propriedades, categorias dos complexos analisados, não são de modo al-
gum formações específicas do pensamento, mas reprodução ideal da efetividade dos
mesmos, o que confere destaque ao primado da objetividade sob a própria consci-
ência que se apropria idealmente da realidade. Ainda como ponto coincidente, cabe
destacar a proximidade que a idéia de “deperecimento da abstratividade” ressaltada
por Chasin guarda com o noção de “dissolução da abstração” tal como enfatiza
Lukács em sua Ontologia.
No entanto, a noção de abstração isoladora, cunhada por Lukács, em termos bem
claros tem um sentido distinto deste ora apresentado. Não pode ser identificada com
o que é posto em destaque por Chasin: a abstração razoável. Quando Lukács busca
elucidar a noção de abstração isoladora à luz das elaborações de Marx contidas em O
Capital, suprime a discussão dos meios pelos quais determinadas categorias puderam
ser elucidadas como centrais no interior do complexo de complexos, ou seja, o seu
ponto de partida para a discussão e elucidação implica o trabalho da investigação
como já realizado, implica portanto a já acabada identificação da categoria central
ou de determinados complexos parciais que norteiam a dinâmica da efetividade. A
noção de abstração razoável, por sua vez, procura identificar o ponto de partida da
investigação, busca estabelecer o trabalho de delucidação, de construção e apreensão
paulatina dos nexos e conexões efetivas do complexo tratado.
Sem pretender fechar a questão acerca do problema, tudo parece indicar que
escapa a Lukács a temática do procedimento investigativo propriamente dito. Obvia-
mente, o fato determinante desta ausência não pode ser concebido como idêntico à
concepção gnosiológica que desvia-se em termos claros e declarados da proposição
ontológica da recta reprodução ideal da realidade; neste aspecto em particular, o
pensador húngaro guarda uma profunda diferença com as tendências predominan-
tes do marxismo, não se conduzindo de modo algum por um viés epistemológico no
resgate que realiza dos textos de Marx – fato que era reconhecido por Chasin, prin-
cipalmente quando se toma em consideração a ontologia lukacsciana. Se a natureza do
problema passa desapercebida para Lukács, não é obviamente por este se encontrar
circunscrito ao debate gnosiológico, mas trata-se de um problema de outra ordem,
que pode em parte ser explicado pela necessidade que o autor tinha de se contrapor

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

às tendências epistemologizantes da obra marxiana. Contra a procura frenética do


cerne metodológico do pensador alemão, Lukács percorre as páginas de O Capital
demonstrando a inexistência de um método que estabeleça a priori as determinantes
diretivas por meio das quais a realidade deva ser tomada em consideração, ou por
meio do qual o pensamento age ativamente conferindo, sob a bases de suas próprias
categorias, os encadeamentos e os nexos dos fatos analisados; pelo contrário, ele
insistirá em demarcar a presença de uma recta consideração marxiana da realidade
tomada em sua intrínseca constituição efetiva. As categorias são determinações da
existência, formas do ser, portanto, toda e qualquer explicitação das relações, cone-
xões, nexos captados pelo pensamento, são a expressão das reais interações e inter-
relações existentes na objetividade. Do mesmo modo, os princípios ontológicos
fundamentais identificados por Lukács no pensamento de Marx, não constituem um
receituário prévio, mas são determinações somente trazidas à tona após a escavação
do objeto, ou seja, estes princípios se revelam enquanto tais somente no destrincha-
mento real do complexo posto no centro da reflexão.
Demonstrar isto é em grande medida destacar o caráter das abstrações em Marx,
sobre a qual o pensador húngaro tracejará sua compreensão por meio da noção das
abstrações isoladoras. Esta constitui o ponto inicial da exposição do complexo tra-
tado, que culmina com a integral dissolução da abstração, momento final em que a
reprodução ideal se aproxima de forma inequívoca da riqueza de determinações da
realidade. Por mais que Lukács se atenha muito mais ao problema da forma exposi-
tiva de O Capital, vale insistir que esta não é algo aleatório, simples escolha subjetiva
do autor, mas é reflexo direto da matéria tratada, que circunscreve caminhos, formas
e liames necessários para ser descrita. É certo que o elemento subjetivo não pode
ser totalmente eliminado deste percurso expositivo, porém é igualmente fato que o
objeto impõe ao investigador os caminhos possíveis para sua descrição uma vez que
a perscrutação de seus liames e nexos impõe passos necessários de serem seguidos.
Neste sentido, a forma expositiva de O Capital não é a exposição “dialética” do com-
plexo de problema da economia calcada em uma metodologia que traça o esboço
da investigação científica, mas é a explicitação do movimento, nexos e dinâmicas
da própria coisa. E é neste segundo sentido que ela é dialética – em sua acepção
ontológica –, enquanto expressão efetiva do movimento, interações e inter-relações
das categorias. Remontando aos próprios dizeres de Marx que em sua crítica de 43 a
Hegel insiste na exposição da “lógica da coisa”, contra aquelas formulações teóricas
que são o fruto da “coisa da lógica”.
Em Chasin também encontramos considerações quanto à forma expositiva da
obra marxiana. No entanto suas considerações não chegam à explicitação paulatina

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Ronaldo Vielmi Fortes

dos passos dados por Marx em O Capital, análise que Lukács desenvolve de modo
contundente nas páginas de seu livro aqui estudadas. A análise lukacsiana da estru-
tura da obra marxiana desmonta toda uma série de interpretações que sugerem um
conjunto epistêmico previamente estipulado que suporta os elementos analíticos
presentes em seu pensamento. O movimento da construção categorial desenvolvida
por Marx segue os caminhos indicados pela prioridade ontológica e, conseqüentemente,
pela primazia determinativa – momento preponderante – de seus elementos.
Toda a análise aqui realizada, procurou dar destaque àqueles aspectos que julga-
mos mais relevantes e que concerniam diretamente ao tema proposto no início de
nosso trabalho. Não pretende, obviamente, ser a palavra final a respeito do proble-
ma, pois sabemos que sua complexidade envolve uma ampliação de toda a discussão
posta aqui em tela. Por exemplo, o problema da determinação social do pensamento,
tal como explicitado por Chasin em sua obra, é imprescindível para a elucidação
mais acurada do problema da resolução metodológica. Tal problema mereceria ser
comparado com os apontamentos que Lukács efetiva em sua Ontologia acerca dos
desvios que a recta apreensão dos nexos da realidade pode sofrer em virtude das de-
terminações históricas da vida cotidiana. Somente por meio da consideração deste
problema em particular, assim como de outros (a forte presença de Hegel no pensa-
mento de Lukács, por exemplo) poderia nos dar uma dimensão mais definitiva sobre
as convergências e divergências existentes entre os dois pensadores aqui analisados.

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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

A filosofia de José Arthur Giannotti marxismo adstringido e


analítica paulista*1
Antonio Rago Filho*2

Resumo:
Este artigo busca compreender a “leitura incoerente” de José Arthur Giannotti sobre a ontologia es-
tatutária de Marx. Parelho a Althusser, Giannotti divisa dois Marx, o da juventude e o da maturida-
de. Da primeira fase, o filósofo alemão alinha-se à perspectiva de um paraíso perdido, de harmonia
natural. Da segunda, alinha-se à dialética hegeliana, à categoria da identidade da identidade e da
não-identidade, dessa forma, subsumindo ao especulativismo, ao espírito absoluto na forma de um
sujeito universal, Marx cai no ardil do “misticismo lógico”. Com a “redescoberta do pensamento
de Marx” de J. Chasin torna-se inteligível a imputação hermenêutica do “marxismo adstringido”
próprio da Analítica Paulista.

Palavras-chave:
História do Marxismo Brasileiro; Marxismo Adstringido; Filosofia; Politicismo;
Analítica Paulista.

José Arthur Giannotti’s thinking


adstringed marxism and the “uspian analytics”
Abstract:
This article searches to understand José Arthur Giannotti’s “incoherent reading” of the statutary
ontology by Marx. Similarly to Althusser, Giannotti perceives two Marx, one of the youth and one
of the maturity. Regarding the first phase, the German philosopher is aligned with the perspective of
the lost paradise, the natural harmony. Regarding the second one, he is aligned with the Hegelian
dialectic, with the category of the “identity of identity and non-identity”, and so, submitted to the
speculativism, to the absolute spirit in the form of a universal subject, Marx falls into the trap of the
“logical mysticism”. With the “rediscovery of Marx’s thinking”, by J. Chasin, it is possible to turn
intelligible the hermeneutical imputation of the “adstringed Marxism”, peculiar to the “Uspian
Analytics”.

Key words:
Brazilian Marxism history; Adstringed Marxism; Philosophy; Politicism; Uspian Analytics: Uni-
versity-of -São Paulo Analytics.

* Publicado originalmente nos Cadernos de Ciências Sociais 1. “Ciência e Engajamento”. Colegiado de Ciências
Sociais do CUFSA, 2005.
** Prof. Dr. do Colegiado de Ciências Sociais do Centro Universitário Fundação Santo André e Programa de
Estudos Pós-graduados em História e Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-
SP.

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Antonio Rago Filho

Seria um cientista ou um visionário que teria na-


morado com o linguajar hegeliano?
J. A. Giannotti

Desde as suas origens, em fins da década de 50, o grupo de estudos sobre O


Capital, conhecido como Seminário de Marx, foi capitaneado pela figura de um
filósofo paulista, altamente influenciado pela fenomenologia e pelo estruturalismo
francês, que acabou por matrizar certo modo de interpretação do pensamento mar-
xiano. Este, apresentado em dois momentos disjuntivos: a obra de juventude se
oporia à da maturidade, ao feitio do corte epistemológico de Louis Althusser. José
Arthur Giannotti, nascido em 1930, na cidade de São Carlos, é o artífice principal
de um esforço analítico que visava a superar o pensamento de esquerda de baixo
padrão desenvolvido por ideólogos hospedados no PCB, o mais influente partido
de esquerda na década de 60 no Brasil.
As posições giannottianas são caracterizadas por um forte viés gnosiológi-
co, entrelaçado pelo politicismo, e que questionam as possibilidades históricas do
próprio ser social da classe operária, com o banimento da revolução do trabalho.
Consagram, desse modo, um marxismo adstringido, que vai se tornando outra coisa,
radicalmente distante do filósofo alemão, na medida em que nega a ontologia estatuá-
ria, a imanência histórica presente nos lineamentos ontológicos do pensamento de
Marx.
Em sua última produção, transcorridas algumas décadas do Seminário de Marx,
Giannotti busca dar a derradeira estocada na filosofia marxiana. O filósofo alemão
não teria se libertado das armadilhas metafísicas da dialética hegeliana, pois, sem ter
efetuado os acertos devidos, mesmo se propondo materialista, capitularia em sua
tentativa de fazer ciência, atropelando-se numa utopia de uma aventada revolução
que superaria o sociometabolismo do capital e a politicidade, tendo na irrealização
da filosofia o cerne de sua lógica mística.
Está claro que esta concepção não é nova e não será a última a “liquidar” a
filosofia radical de Marx. O filósofo paulista rechaça de chofre o esforço de compre-
ensão da obra de Marx, com o mesmo procedimento que este praticava, a crítica on-
tológica dos objetos históricos, ou seja, a captura do multiverso do mundo concreto,
apropriando-se da integridade dele em sua maturação histórica, seja na forma ideal
ou material, por meio da decifração de sua determinação social, dos nexos constitu-
tivos que o especificam, assim como da finalidade histórica que cumpre no evolver
histórico. Giannotti rechaça o prisma ontológico do autor de O Capital, mostrando
a impossibilidade da redescoberta do pensamento marxiano que não seja por meio

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A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista

interpretativo – com suas imputações hermenêuticas –, e as apropriações devidas


ou mesmo indevidas que produzem o destino trágico do pensamento marxiano nas
mãos de outros, por seus resultados práticos. Afinal de contas, na “família” dos mar-
xistas – de Engels a Lenin, de Gramsci a Lukács, de Lenin a Trotski, podendo incluir
Althusser, Colletti, André Gorz e Castoriadis, por exemplo, já que tudo é possível e o
fenomenólogo angula Marx principalmente por seus efeitos. Em sua hermenêutica,
encontramos uma penca de visões e posições díspares e divergentes que pretendem
desdobrar os conceitos marxianos e, assim, emprestar-lhes novos significados.
Não se pode dizer, entretanto, que, em suas idas e vindas no escarafunchar da
obra marxiana, Giannotti não tenha iluminado questões pontuais e mesmo essenciais
da ontologia estatutária de Marx. Todavia, a finalização da obra resulta em seu con-
trário, o abandono do próprio marxismo e o retorno ao kantismo, à fenomenologia,
aos “jogos de linguagem” de Wittgenstein, o que redunda na desfiguração completa
da obra marxiana. Há que reconhecer sua posição no cenário intelectual do país.
Giannotti marcará época com o texto “O ardil do trabalho” (GIANNOTTI, 1973).
Basta atentar para a qualidade da argumentação apaixonada, a fina erudição e o seu
domínio da história da filosofia, suas críticas demolidoras contra “as vagas e vogas
de idéias” como aquelas dirigidas a Althusser, Foucault, Habermas, Toni Negri, entre
outros, além de não poupar os célebres autores da “Escola de Frankfurt”, incluindo
também os clássicos da antropologia e da sociologia. Quem não foi influenciado por
trabalhos como “A sociedade como técnica da razão: um ensaio sobre Durkheim”
(1971), “Notas sobre o conceito de modo de produção – para uso e abuso dos soci-
ólogos” e assim vai? Há mesmo quem diga que “talvez não seja exagerado afirmar,
sem nenhuma ironia, que pertence a Giannotti o justo título de primeiro filósofo
brasileiro” (BARROS E SILVA, 2003, p. 87).
Sem desejarmos entrar no exame de seus desdobramentos, no espaço que nos
é concedido, caberia recorrermos à memória e autocrítica dos próprios integrantes.
Após a subida de seu príncipe ao tope do poder, houve uma espécie de desarruma-
ção e dissidência entre seus pares. Um dos mais argutos críticos brasileiros no campo
da arte, Roberto Schwarz retoma a gênese do Seminário de Marx. “Qual a origem do
seminário?” A esta interrogação segue a análise:
Como tudo que é antediluviano, ela é nebulosa e há mais de uma versão a respeito.
Giannotti conta que na França, quando bolsista, freqüentou o grupo Socialismme
ou Barbarie, onde ouviu as exposições de Claude Lefort sobre a burocratização da
União Soviética. De volta ao Brasil, em 1958, propôs à sua roda de amigos, jovens
assistentes de esquerda, que estudassem o assunto. Fernando Novais achou que

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Antonio Rago Filho

era melhor dispensar intermediários e ler O Capital de uma vez. A anedota mos-
tra a combinação heterodoxa e adiantada, em formação na época, de interesse
universitário pelo marxismo e distância crítica em relação à URSS (SCHWARZ,
1999, p. 87).1
No dizer do crítico dissidente, somada às obsessões lógicas, a “tirania metodo-
lógica”, mais especificamente a técnica de explication de texte, a exegese rigorosamente
praticada, constitui a principal contribuição do mestre para os estudiosos dos semi-
nários sobre O Capital. “/.../Se não me engano, a inovação mais marcante foi outra,
também devida a Giannotti, que na sua estada na França havia aprendido que os
grandes textos se devem explicar com paciência, palavra por palavra, argumento por
argumento, em vista de lhes entender a arquitetura” (SCHWARZ, 1999, p. 91). Em
seu reexame do Seminário de Marx, Schwarz destaca que
A intensidade intelectual do seminário devia muito às intervenções lógico-meto-
dológicas de Giannotti, cujo teor exigente, exaltado e obscuro, além de sempre
voltado para o progresso da ciência, causava excitação. /.../ Por Giannotti e Ben-
to Prado interpostos, o estudo de Marx tinha extensões filosóficas, que nutriam
a nossa insatisfação com a vulgata comunista, além de fazerem contrapeso aos
manuais americanos de metodologia empírica, que não deixávamos também de
consumir. Apesar de desajeitada, a tensão entre esses extremos foi uma força do
grupo, que não abria mão do propósito de explicar alguma coisa de real, e nesse
sentido nunca foi apenas doutrinário.2 (SCHWARZ, 1999, p. 91)
Segundo Emir Sader, em consonância com as linhas de Schwarz, os Seminários
foram uma resposta à vulgarização dos textos marxianos e marxistas praticada pelo
1. Há que registrar os principais nomes que vão constituir a nata de nossas ciências sociais. Schwarz salienta
em continuidade que “Quando o seminário começou a se reunir, as figuras constantes eram Giannotti, Fer-
nando Novais, Paul Singer, Octavio Ianni, Ruth e Fernando H. Cardoso. Com estatuto de aprendiz, apareciam
também alguns estudantes mais metidos: Bento Prado, Weffort, Michael Löwy, Gabriel Bolaffi e eu. A compo-
sição era multidisciplinar, de acordo com a natureza do assunto, e estavam representadas a filosofia, a história,
a economia, a sociologia e a antropologia. Vivíamos voltados para a Universidade, mas nos remetíamos fora
dela, para estudar com mais proveito, a salvo da compartimentação e dos estorvos da própria instituição”
(SCHWARZ, 1999, p. 87).
2. De sua parte, o sociólogo Emir Sader salienta que “Quanto ao que mais teria faltado ao seminário, que para
Roberto [Schwarz] seriam os frankfurtianos, eu diria que, além deles, a ausência mais importante era a das
mediações históricas e políticas concretas, presentes nos textos de Gramsci, nas análises históricas de Marx,
nas obras de Lenin e de Trotsky. O horizonte internacional estava aberto para os seminários – as polêmicas
com os principais autores da época o demonstram – mas faltavam as mediações teóricas para uma elaboração
frutífera da realidade nacional, latino-americana e mundial. Tanto assim que a herança daquele período ficou
relativamente com a teoria da dependência. Cortados pelo AI-5, pelo exílio, pela dispersão, pela derrota,
vieram tempos menos propícios para assaltos ao céu. Gramsci retornou mais como ‘teórico das superestru-
turas’, um marxismo domesticado pelo eurocomunismo foi re-importado, o próprio FHC passou da teoria
da dependência para a teoria do autoritarismo com toda a carga ideológica que mencionamos, a esquerda se
desentendeu com o socialismo, para fixar seu horizonte na democratização. A miséria da teoria abriu caminho
para a miséria da política – sem reflexões estratégicas, sem abordagens globais sobre o capitalismo e, portanto,
sem força para recriar um pensamento anticapitalista” (SADER, 1996, p. 77).

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A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista

PCB et caterva, à particularidade da Revolução Cubana, à crítica ao próprio pensa-


mento dito revolucionário, à reação à guerra do Vietnã e à própria carência de Marx
na USP e nas universidades.
No que tange, todavia, às suas próprias convicções filosóficas, como o filósofo
pensa a sua posição? Por que nosso filósofo se pensa como um reator que responde
às exigências teóricas de nosso tempo?
Não prego nenhuma posição filosófica. Sou apenas um reator: eu reajo às minhas
paixões. Eu me apaixonei pela fenomenologia e tentei, por meio do estudo de
intencionalidades noemáticas, entender melhor o que era a Lebenswelt (o mundo
da vida) de Husserl. Isso me predispôs a atentar para os nexos do capital na vida
cotidiana. Depois me apaixonei por Marx e quis ver como essas intencionalidades
podem ser contraditórias e ocultar ao mesmo tempo as atividades visadas indivi-
dualmente. Terminei me apaixonando por Wittgenstein na medida em que ele es-
toura a noção de proposição e amplia a própria idéia de expressão. E assim por diante.
Afirmar que possuo posição filosófica seria falsear a perspectiva correta, pois o
filósofo brasileiro é simplesmente alguém que luta contra vagas, é um “antivaga”
ou “antivoga”. Nesse sentido, o traçado da minha vida é aquele de um professor,
que vê na boa formação de seus alunos uma forma de incentivar a resistência a
pensamentos que não têm raízes em nossa experiência cotidiana. Daí essa mistura
de investigação própria e de polêmica. Estou sempre pensando por meio de al-
guém contra alguém (GIANNOTTI apud REGO; NOBRE, 2000, p. 102).
Ao explicitar as intenções do grupo de estudos de O Capital, Giannotti explicita
que
Esse seminário se tornou um mito e, em função disso, foram esquecidas suas
limitações e suas implicações. Ora, tratava-se de um grupo de estudos. /.../ Cabia
ler o próprio Marx e foi o que fizemos. Comecei com a análise do primeiro capí-
tulo d’O Capital e me lembro que ela já foi motivo de uma polêmica com Bento
[Prado Jr.], pois ele, como bom sartriano, queria encontrar ali uma antropologia
fundante. Eu criticava essa antropologia e puxava a interpretação para o plano de
uma lógica. O seminário era variado, somando pontos de vista diferentes, cada um
trazendo sua própria experiência. Depois do seminário, jantávamos e discutíamos
política brasileira (GIANNOTTI apud REGO; NOBRE, 2000, p. 95).
Sobre a sua relação com o marxismo, o filósofo também esclarece o seu verda-
deiro interesse filosófico.
Sempre me interessei mais por Marx do que pelo marxismo. Isso implica pensar,
de uma maneira muito cuidadosa, a distinção feita por Marx, en passant, entre a
história contemporânea das categorias, seu desdobramento formal, e a história
do vir-a-ser: de um sistema. De um lado, como as categorias se repõem através
de comportamentos, particularmente o processo de trabalho, cujos parâmetros
são reafirmados e adaptados no fim do ciclo produtivo; de outro, como a história
vai construindo situações e instituições determinadas – o dinheiro, o trabalho

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Antonio Rago Filho

livre etc. – que passam a ter novo sentido quando se integram num novo sistema.
Existe nessa passagem uma invenção, uma liberdade, que não está configurada
no mero decorrer do tempo. Mas isto abre uma cesura entre a regra e o processo
efetivo de segui-la, pois só assim a repetição da regra pode desenvolver sentidos
que, se são roubados para que ela possa ser reposta, deixam rastro cujo significado
vai ser aproveitado num novo sistema normativo (GIANNOTTI apud REGO;
NOBRE, 2000, pp. 102-3).
Refutando a lógica hegeliana, que “parte do pressuposto de que a expressividade
se dá no nível do conceito, da relação silogística da regra com seu caso”, e também
a vulgata marxista, que visa a “antepor à lógica formal uma lógica de contradição”,
Giannotti recorre aos supostos da Lógica de Wittgenstein, porque “Sem uma am-
pliação do conceito de expressão, acabaria caindo na besteira de imaginar que existe,
de um lado, uma lógica formal e, de outro, uma lógica da contradição, e de achar que
esta última consiste em ver os objetos como ao mesmo tempo iguais e contraditó-
rios”. E qual é sua solução para esta duplicidade?
Acontece que é preciso legitimar essa duplicidade. Mas para mim existem siste-
mas formais e lógica, o estudo de várias gramáticas. /.../ Afirmar a existência da
contradição real não eqüivale a afirmar a existência da luta e dos antagonismos,
implica ainda transformar o real num logos, numa forma de expressão. Enquanto
isso não for explicado de um ponto de vista distante da especulação hegeliana
sobre o Absoluto, a crítica de Marx à economia política e ao capital deixa de ter
sentido, pois toda ela se ancora na idéia de que capital e trabalho se contradizem
(GIANNOTTI apud REGO; NOBRE, 2000, p. 106).
O que Giannotti deixa de lado inteiramente é se este seu amarramento ao con-
ceito de expressão, no sentido wittgensteiniano, livra-o dos problemas da filosofia
especulativa. Isto, aliás, será uma constância. A versão é o que importa, será sempre
o elemento preponderante em face do pensamento marxiano. Preocupa-se com a
resolução lógica sem atentar que o pensamento marxista, que reproduz o mundo
concreto na cabeça, objetiva seu revolucionamento. Este é um padrão de compor-
tamento filosófico muito usual nele, pois, de repente, põe na boca de Marx as suas
próprias falas e perspectivas, os seus próprios interesses. O que resulta naquilo que
Chasin chama de marxismo adstringido, corporificando-se nas derivações próprias às
“imputações hermenêuticas” exteriores ao objeto considerado.
Seu opúsculo Marx: vida e obra, mais do que apresentar as idéias do revolucio-
nário, é uma chance para José Arthur Giannotti explicitar as suas profundas dife-
renças com os lineamentos ontológicos da obra de Marx. O que permite ao autor
apresentar sob a forma popular, em tom rasteiro, discrepante com o seu provado grau
de sofisticação teórica, as suas construções subjetivas atribuidoras de significações.
Segundo Giannotti, não se trata de tentar o impossível, a saber, reproduzir o real pe-

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A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista

las abstrações razoáveis até descender à efetividade concreta enquanto pensamento


concreto. É impossível alcançar plenamente a objetividade no plano da idealidade.
No principal formulador da “analítica paulista”3, que do marxismo adstringido cai
inteiramente no campo da fenomenologia, a razão é sempre descentrada com rela-
ção aos seres reais. Há um giro ou rebatimento lógico que diz respeito sempre ao
giro do próprio pensamento. A verdade não é concreta, como acredita Marx, pois,
ao se passar no plano do pensamento, opera na esfera das regras lógicas específicas
à idealidade, aos jogos de linguagem.
Giannotti insiste que todas as suas proposituras partem de um mundo já consti-
tuído, dado. Diante de sua obsessão de extração kantiana acerca da possibilidade do
conhecimento, sua resposta é nítida:
Sim, kantiana, mas passando pelo viés da fenomenologia, pela necessidade de
pensar esse enraizamento no mundo como um forma de deitar raízes no cotidia-
no, numa prática que logo se revelou muito mais complicada do que o trato com
o arado ou com o lápis, e muito mais perto do uso do telefone, dos instrumentos
tecnológicos – em suma, de uma segunda natureza que se abre para nós como
uma forma de linguagem da qual é preciso dominar os signos e à qual temos
acesso pelo ato de compra e venda. Pensar nosso enraizamento no mundo da vida
também é pensar nossa relação com o capital (GIANNOTTI apud BARROS E
SILVA, 2003, pp. 89-90).
Isto não significa, portanto, que Giannotti não opere com elementos da realida-
de, mas esta é mera descrição empírica, os sentidos que os indivíduos dão às coisas
numa situação conjuntural, dados isolados sem as mediações e nexos constitutivos
do processo de vida real.
Giannotti passa por cima da crítica ontológica do pensamento marxiano por
meio da análise imanente, gênese e necessidade histórica da própria obra. Por essa
razão, responde que é muito complicada a posição daqueles que intentam estabelecer
uma diferença entre pensamento de um autor e de seus discípulos. Já que uma inter-
pretação abre para múltiplas interrogações de sentido, para uma construção subjeti-
va que articula uma “leitura incoerente”, opta, desse modo, com esse procedimento,
às imputações e convenções lógicas de fora do objeto posto em tela. Em suma, deita
e rola, o que objetivamente significa o desrespeito pelas próprias formulações de
uma obra ou autor – no caso, a filosofia de Marx. Segundo sua interpretação, esta
repõe o “fantasma da Filosofia”, a crença “metafísica” nas possibilidades objetivas
de instauração no mundo de formas do pensamento. Sua justificativa:

3. A analítica paulista comporta, segundo Chasin, o “quadrúpede teórico” formado pelas teorias do popu-
lismo, da dependência, do autoritarismo e da marginalidade. Da perspectiva liberal-democrata, esta analítica
configura tipos ideais que visam a abarcar a complexidade dos fenômenos societários brasileiros, todavia,
ficando aquém de seu projeto ambicioso.

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Antonio Rago Filho

Por mais despretensiosa que pretenda ser esta minha introdução aos seus pen-
samentos, ela há de levar em conta que está sendo escrita depois da derrocada do
marxismo como força social. Por isso vamos adotar o termo “marxiano” para indicar
o que é relativo ao próprio Marx, reservando o termo “marxista” às idéias e aos
processos sociais que invocaram seu pensamento, mas com muita cautela (GIAN-
NOTTI, 2000a, p. 13).
Cautela de sua incoerência e desrespeito, na medida em que fratura a dimensão
ontológica da obra do autor visado, desmontada a ontologia estatutária marxiana
(diga-se de passagem, confundida como sistêmica, uma vez que os textos não pos-
suem objetividade – com o descarte de sua imanência ontoprática e histórica –,
pois se constituem numa janela aberta para interpretações e dações de significados).
Nesse sentido,
Não convém examinar os textos tais como se apresentam no cruzamento de suas
várias dimensões, considerando-os como um baluarte a ser conquistado por vá-
rias frentes? Sob esse prisma prefiro cair numa leitura às vezes incoerente do que
pressupor no texto uma harmonia que ele não possui, muito menos ensaiar uma
reconstrução que expurgasse qualquer contradição do terreno que o próprio
Marx balizou, pois me importa sobretudo mostrar o caráter muito particular que
assumem os conceitos pelos quais ele tenta entender o processo de desdobramen-
to do capital, como esses conceitos se conformam na tentativa de revirar a dialética hegeliana,
ao invés de pensá-los simplesmente como os únicos parâmetros capazes de pôr a nu
a realidade do capitalismo moderno. E se chegar a perceber contradições no seu
discurso, prefiro antes de tudo ficar atento aos limites do dizer e do pensar que elas
estão indicando (GIANNOTTI, 2000a, p. 65, grifos nossos).
Contrapondo-se publicamente ao principal crítico da analítica paulista, Giannot-
ti responde ao texto de José Chasin inscrito na obra Pensando com Marx:
Ao dizer que “marxiano” diz respeito ao que o próprio Marx escreveu, e “mar-
xista”, a tudo aquilo que foi feito devida ou indevidamente em nome dele, isso
não nos livra da responsabilidade de refletir sobre sua obra levando em conta as
leituras e tudo aquilo que elas provocam. Sem dúvida essa distinção serve para subli-
nhar as contradições entre o que ele mesmo ensinou e o que pregaram em seu
nome, mas não deve criar a ilusão de que se pode reler Marx sem ter o marxismo no horizonte
(GIANNOTTI, 2000a, pp. 6-7).
Será possível aceitar sem mais nem menos essa proposição? Mesmo com suas
torções propositais e arbitrárias? Ao reconhecer Marx como uma idealista que na-
mora a linguagem hegeliana, e mais do que isto, aprisionado nas armadilhas do lo-
gicismo místico, de que posição ideológica Giannotti se permite taxar um pensador
disto ou daquilo?

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A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista

Então, o filósofo, com seu ponto de vista, acrescenta que o pensamento de al-
guém sempre será perpassado por seus continuadores, que completam ou modificam
o pensamento do formulador. Afinal, “assim como não se pode distanciar as teses de
Aristóteles do aristotelismo, pois este as vai esclarecendo conforme elas mesmas se
desdobram e se contorcem, também o pensamento de Marx esfolha seus sentidos, tendo no
horizonte as vicissitudes do próprio marxismo” (GIANNOTTI, 2000a, pp. 13-4).
Não estamos próximos de ouvir que a falência e barbárie do Leste europeu têm
que ver com a falência dos marxismos, e “o fracasso do comunismo” tem um pé
no formulador clássico? Como já podemos depreender de seu discurso, o filósofo
paulista procede do mesmo modo que as filosofias da suspeita praticam: pinçam pe-
daços do mundo a partir de sua ótica fragmentada e do ponto de vista do indivíduo
isolado e egoísta. Recorde-se que, por meio da “leitura incoerente” ou das versões
dos marxismos, dois Marx continuam a existir. Há um “darwinista”, evolucionista,
como também, um “hegeliano”, “místico lógico”. Há um que fala na centralidade
da atividade prática sensível, da práxis; há outro que pensa de modo especulativo e
místico a lógica do capital e sua superação pela revolução da “classe universal”.
As suas torções, em verdade, não se constituem em novidade nos críticos de
Marx – são mais habituais do que se supõe; por exemplo, na concepção de E. P.
Thompson, a imputação segundo a qual Marx, desconhecendo o termo experiência
(a atividade prática sensível? A práxis?), simplesmente substituiu a Lógica do Espíri-
to (Hegel) pela Lógica do Capital. Isto é asseverar a mesma raiz do idealismo ativo:
logo no início de sua carreira já se encontram in nuce os elementos que serão
desenvolvidos muito mais tarde, marcando-a para sempre. As diversas maneiras
pelas quais vai digerindo a dialética idealista indicam como se reporta ao quadro
teórico delineado pelo idealismo alemão. Por mais que se consagre ao estudo
da realidade capitalista, seus adversários sempre imputarão ao seu pensamento
o defeito da Metafísica. Mas não seria metafísica a própria realidade do capital?
(GIANNOTTI, 2000a, p. 29)
A chave da interpretação de Giannotti reside na célebre distinção de raiz kan-
tiana entre “contradição” e “contrariedade”. Segundo Orlando Tambosi, a posição
kantiana já dera conta dessa questão ao diferenciar contradição de contrariedade.
“O marxismo – especialmente na versão do ‘materialismo dialético’ – não perce-
be, portanto, que as contradições são somente lógicas, que só o pensamento pode

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contradizer-se e que na realidade ocorrem apenas conflitos, choques, lutas – aquilo


que Kant chamou de Realrepugnanz ou Realopposition” (TAMBOSI, 1999, p. 279)4.
Nosso autor se mostra incapaz de pensar a realidade por meio de uma teoria
marxiana das abstrações razoáveis – como o projeto chasiniano da redescoberta de
Marx nos revelou –; mais ainda, assim como Marx não confundia as duas ordens, a
do pensamento e do mundo objetivado, supõe que, como estas ordens são ontolo-
gicamente distintas, o pensamento jamais poderá agarrar a raiz das próprias coisas.
Ele se põe, portanto, no campo da linguagem. É forma de pensamento, produto de
“jogos de linguagem”.5 Lógica autonomizada. Portanto, a verdade está no âmbito
da lógica. Sendo assim, há uma impossibilidade de reconhecimento do pensamento
como pensamento que reproduz o mundo concreto. De acordo com o filósofo da
analítica paulista, esta posição marxiana está inteiramente carregada de viés hegelia-
no, de misticismo lógico.
Giannotti bate pesado contra Marx, pois supõe falsamente que o filósofo ale-
mão substituíra o “Espírito Absoluto” pela “História” regida por uma teleologia
de fundo religioso. Considera o equívoco de Marx ocorrendo em função de sua
proposta de “realização da Filosofia”, na medida em que no desenvolvimento da
“lógica do capital”, pela negação da “classe universal” própria ao desenvolvimento
das forças produtivas materiais, não pode nascer uma consciência totalizadora da
história humana.
Desse passo para uma afirmação que lhe garante o acesso à lógica de Marx,
afiança de pés juntos que “é preciso levar muito a sério a advertência do próprio
Marx de que suas categorias não são unicamente construções do analista, mas ten-
tam captar formas de pensamento (Gedankenformen) pelas quais atuam efetivamente
no cumprimento de suas respectivas tarefas” (GIANNOTTI, 1995, p. 65-6). Gian-

4. Referindo-se a Lucio Colletti, o autor diz: “Este é um ponto fundamental na teoria collettiana, porque
corrobora a enfática afirmação de que não existem contradições reais, objetivas, ou seja, não existem fatos
contraditórios entre si: a contradição é exclusivamente lógica, do pensamento. /.../ Na realidade, para Colletti,
só ocorrem oposições, conflitos, choques, lutas. Admitir – à maneira de Hegel e do marxismo – a existência
de ‘contradições objetivas’, como se a realidade fosse regida por ‘contradições dialéticas’, implica violação do
princípio de não-contradição” (TAMBOSI, 1999, p. 216). Esta noção também é desenvolvida por N. Hart-
mann, de acordo com Tamposi (p. 217).
5. Em várias passagens de O jogo do belo e do feio Giannotti fornece ao leitor sua “leitura” de Wittgenstein: “Um
jogo de linguagem é, pois, uma invenção construída para mostrar como funcionam expressões significativas,
sendo que tais expressões podem ainda ser consideradas sob um ângulo a partir do qual seu sentido se exibe.
/.../ Os jogos de linguagem são montados e descritos, montados à medida que passam a exibir regras que regulam
a conduta de indivíduos capazes de aprendê-las; descritos, porém, a partir de nossa própria língua, que assim
enuncia o modo de ser de tais regras.” (GIANNOTTI, 1995, pp. 12-4) Além disso, “Se um jogo de linguagem
é sempre abertura para o novo, pois desde o início suas regras encarnadas em costumes estão sempre reque-
rendo reajustes, a imagem do mundo exerce sua condição de meio de apresentação cercando-se de uma zona
cinzenta em que o adequado e o inadequado ficam em suspenso.” (GIANNOTTI, 1995, p. 17)

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notti não se dá conta, ou melhor, não diz ao leitor, que sua “leitura incoerente”, que
se afasta da “doutrina ortodoxa” de um prisma só, de um único ponto de vista, já está
vacinada e amoldada a toda uma produção ligada à teoria dos “jogos de linguagem”
de Wittgenstein, e que continua a recorrer a empréstimos do estruturalismo de Lévi-
Strauss, do sociologismo reificado e da fenomenologia.
Mas, se Giannotti sustenta que sua leitura, ou a sua interrogação dos sentidos
e significações da lógica marxiana, irão passar pelo marxismo (os fiéis ou não discí-
pulos de Marx), não é isto que irá apresentar, pois se vale de “novos paradigmas”,
no caso específico, os “jogos de linguagem” de Wittgenstein, que possibilitariam
decifrar a “gramática do capital”. E a teoria da expressão, lacuna que constata na obra
de Marx.
Com a pretensão de descartar e liquidar o mais rapidamente possível a “re-
descoberta de Marx”, identifica nele um caráter idealista, na medida em que estaria
contaminada com o “vírus do misticismo lógico depois de terem sido mordidos pelo
hegelianismo”. Estranha posição de quem demonstra a impossibilidade da consci-
ência reproduzir o real enquanto “concreto pensado”. Em sua crítica a Chasin, o
principal disseminador da ontologia estatutária de Marx em nosso país, Giannotti,
porém, acaba por explicitar de modo mais visível o seu posicionamento:
Diria que se trata de um hiper-realismo, uma tentativa desesperada de saltar a dua-
lidade do ser e do pensar, mas que me parece retomar um caminho que só pode
levar à intuição intelectual do universal no caso. Contra Lukács, que aceita como um
fato a passagem do universal para o singular por meio da particularidade, Chasin
pretende expurgar qualquer viés gnosiológico, qualquer separação entre o ser e
o pensar. As abstrações, mesmo aquelas razoáveis, que não possuem referente
definido mas servem para estruturar o pensamento, resultam, como indica o próprio
Marx, de operações praticadas pelos próprios agentes. Uma “análise efetiva e sua
correlata produtividade só podem se manifestar pela escavação direta dos próprios
objetos, reconhecidos como entificações engendradas e desenvolvidas por distintos
movimentos contraditórios”, pois “tudo o que existe, tudo o que vive sobre a
terra e sob a água existe e vive graças a um movimento qualquer” (primeira ob-
servação da Miséria da Filosofia), “ou, por outros termos, quando a determinação é
voltada à esfera particular da sociabilidade” (GIANNOTTI, 2000b, p. 66)
Giannotti, sem levar em conta a totalidade das afirmações ontológicas de
Chasin, imputa à “redescoberta do pensamento de Marx” do criador do Movimento
Ensaio o padecimento cruel do “hiper-realismo”; assim, a mesma lógica formal que
diz encontrar na visão marxiana, perpassada por uma “intuição intelectual do uni-
versal”, própria do idealismo ativo, que busca a identificação de um sujeito absoluto, está
barrada de “fazer ciência”, ao tangenciar a linguagem hegeliana e brandir profecias e
utopias da revolução do trabalho. É “hiper-realismo” supor a reprodução categorial

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do mundo concreto, a posse de uma consciência totalizante rente às contradições


do movimento real? Aliás, como pretendemos mostrar, é Giannotti quem está todo
devorado pelo logicismo. Marx, ao revés desta torção ideológica, verdadeira “impu-
tação hermenêutica”, jamais poderia ser acusado de “misticismo lógico”, pois não
se encontra uma sobra ou resquício de idealismo ou filosofia especulativa em seus
trabalhos. Como não cansava de repetir Lukács, com sobras de razão, não há na obra
marxiana nenhuma afirmação que não seja de natureza ontológica.
O filósofo do marxismo adstringido prossegue com sua exposição desqualifi-
cadora:
A partir daí Chasin passa a falar de uma “intensificação ontológica” da categoria
simples a fim de que ela possa transformar-se em complexa e mais rente aos fe-
nômenos socioeconômicos. Dois pressupostos se infiltram nessa maneira de pensar:
o de que um movimento pode ser simplesmente lido como uma contradição de fato e
o de que uma categoria ela mesma, porque resulta de procedimentos sociais defini-
dos, de uma abstração sendo operada pelos próprios agentes em estudo, possui a virtude de
vir a ser carregada de realidade efetiva. Somente não se sabe qual é o sentido de uma
contradição de fato, nem como uma categoria que não seja momento do Absoluto
tem a virtude de pôr seus casos. Poucos se livram do vírus do misticismo lógico
depois de terem sido mordidos pelo hegelianismo (GIANNOTTI, 2000b, p. 66,
grifos nossos).
Está claro que, para o crítico da analítica paulista, torna-se um procedimento
lógico o de separar o modo de produção teórico do modo de produção real. Além
disso, “erro hegeliano”, não é possível a categoria contradição, como categoria real,
expressar sujeitos históricos vivos e atuantes, porquanto, pela natureza do capital, as
representações são ilusórias.
Em “Marx além de Marx”, título emprestado de Antonio Negri, Giannotti, des-
considerando inteiramente a teoria marxiana das abstrações, se vale de uma “con-
tradição lógica”:
Seria possível seguir regras contraditórias? A pergunta parece paradoxal, visto
que a contradição tem a virtude de inibir qualquer conduta. Como obedecer ao
comando “mate e não mate”? A questão, pois, só pode ter sentido se as repre-
sentações que pilotam o comportamento dos agentes forem negadas radicalmen-
te na perseguição dos efeitos. Se esse for o caso, não se está investigando uma
curiosidade gramatical, mas um modo muito peculiar de seguir uma regra, cujos
resultados são o inverso daquilo a que o agente visa no primeiro momento. Isso
é muito mais do que as conhecidas conseqüências involuntárias de uma ação
(GIANNOTTI, 2000c, p.5).
Está claro que Giannotti não perdeu o seu vinco com as margens inscritas no
pensamento fenomenológico, que busca a apreensão categorial – enquanto forma

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de pensamento – pela intencionalidade e sentidos dados pela consciência, transfor-


mados em esquemas lógicos. “Como explicar a identidade dessas diferenças sem cair
numa dialética do Absoluto ou, correndo maior risco, numa dialética negativa?” Daí,
a idéia de contradição e a apropriação das contradições reais, na lógica giannottiana,
serem problemáticas. Se para Marx, “Um ser sem objetividade é um não-ser, uma
absurdidade”, as categorias ontológicas em sua complexidade, múltiplas, relacionais
e carentes exprimem formas de seres históricos, modos de existência; para Gian-
notti, com sua torção especulativa, “cada categoria é uma forma de pensamento”
(GIANNOTTI, 2000a, p. 81).
Giannotti argumenta que “pedregoso será esse caminho de volta às próprias
coisas”. Toda a sua interpretação será o de interrogar “em poucas palavras, como a
dialética especulativa há de servir de modelo a um novo materialismo” (GIANNOT-
TI, 2000a, p. 35). Um dos equívocos manifestos em Marx, dado pela ontologia do lógos,
segundo Giannotti, é o de confundir os planos da universalidade abstrata com as
formas sensíveis, não percebendo a natureza peculiar da “contrariedade” e da “con-
tradição”. O real sempre apresenta oposições, no entanto, isto não conduz à negação
da ordem das contradições. Capital e trabalho formam essa situação, que não leva
necessariamente à ultrapassagem numa nova síntese produzida por um Absoluto.
Desde Origens da dialética do trabalho Giannotti imputará a Marx o “vínculo lógi-
co” com o idealismo hegeliano, a mesma temática está enunciada: “Qual é porém a
viabilidade dessa lógica manter-se fiel ao pensamento dialético? Por mais anti-hege-
liano que seja seu princípio, nunca deverá romper inteiramente com a matriz antiga,
pois será preciso conservar ao menos o movimento ternário do conceito e a teoria
da contradição” (GIANNOTTI, 1966, p. 24).
Se Marx tem de completar o movimento ternário, o que é uma absurdidade, a
contradição entre capital e trabalho deve necessariamente seguir o caminho con-
ceitual. A ruptura contra o capital e a politicidade não implica, como pretende essa
interpretação, uma “nova síntese” do movimento ternário. Marx jamais sinalizou
para uma equação lógica. Em Miséria da filosofia, rebatendo as teses hegelianas de
Proudhon, Marx explicitava que
Reduzidas todas as coisas a uma categoria lógica e todo movimento, todo ato de
produção ao método, a conseqüência natural é a redução de qualquer conjunto de
produtos e de produção, de objetos e de movimento a uma metafísica aplicada.
/.../ Mas o que é este método absoluto? A abstração do movimento. E o que é
a abstração do movimento? O movimento em estado abstrato. O que é o mo-
vimento em estado abstrato? A fórmula puramente lógica do movimento ou o
movimento da razão pura. Em que consiste o movimento da razão pura? Consiste
em se pôr, se opor, se compor, formular-se como tese, antítese, síntese ou, ainda,
afirmar-se, negar-se, negar sua negação. (MARX, 1982, pp. 104-5).

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Ora não precisamos reproduzir todo o restante das reflexões marxianas, que
precisamente se exaspera contra o pensamento metafísico de Proudhon. Esse “mé-
todo absoluto”, bem o sabemos, cumpre uma finalidade concreta, a de elidir as
contradições objetivas do processo real da vida social.
Os lineamentos ontológicos da filosofia marxiana orientam-se na direção da
produção e reprodução da vida material capturando as determinidades da “existên-
cia primária dos grandes complexos do ser” (Lukács),
pondo em primeiro plano o metabolismo humano-societário que as relaciona,
que a sociabilidade transforma sem cessar em sua auto-edificação cada vez mais
puramente social, consumando o progressivo “afastamento das barreiras natu-
rais”, que tipifica o auto-engendramento do ser humano, no sentido da presença
necessária, mas não determinante, da natureza na infinitude intensiva e extensiva
dessa entificação” (CHASIN, 1995, p. 381).
Chasin deixou configuradas as três críticas ontológicas que se enlaçam dialetica-
mente – a crítica da filosofia especulativa, da politicidade e do capital e suas expres-
sões teóricas – a fim de “ascender à decifração da mundaneidade imperfeita em sua
realidade, para a esclarecer, compreendendo sua gênese e necessidade, ou seja, para a capturar
em seu significado próprio, por meio da determinação das lógicas específicas que atualizam
os objetos de seu multiverso” (CHASIN, 1995, p. 377).
Nesse sentido, um arcabouço teórico pré-concebido em relação ao real a ser
desvendado é uma impropriedade no âmbito do complexo ontológico de Marx. “Se
por método é entendido uma arrumação operativa, a priori, da subjetividade, con-
substanciada por um conjunto normativo de procedimentos, ditos científicos, com
os quais o investigador deve levar a cabo seu trabalho, então, não há método em
Marx” (CHASIN, 1995, p. 389). O próprio Lukács, em sua Ontologia do ser social, sina-
lizou para o escasso tratamento marxiano das relações entre ontologia, gnosiologia
e lógica, e mais especificamente das questões gnosio-epistêmicas. Todavia, enfatiza
Chasin,
não terá sido por resquícios de hegelianismo que Marx rompeu com o método
lógico-especulativo, nem se situou, pela mediação do pressuposto ineliminável
da atividade sensível do homem, para além da fundamentação gnosiológica. Isto
equivale a admitir que a suposta falta seja antes uma afirmação de ordem teórico-
estrutural, do que uma debilidade por origem histórica insuficientemente digerida
(CHASIN, 1995, p. 390).
Não bastasse a destituição das contradições sociais como efetividades históricas
passíveis de serem superadas pela práxis crítico-revolucionária e de acordo com a

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maturação histórica dos pressupostos práticos, segundo a explicação giannottiana,


a concepção da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas mate-
riais da sociedade com as relações sociais de produção existentes – cerne da teoria
marxiana –, levaria a duas leituras inscritas na própria interpretação de Marx. “Na
primeira versão, o homem como ser-genérico é posto no início e no fim da história, seguindo
um processo darwiniano de evolução das espécies. É o ponto de vista predominante
quando Marx sublinha o aspecto histórico-natural desse movimento.” (GIANNOTTI,
2000d, p. 60, grifos nossos)
Como se vê, Giannotti repõe a sua velha cisma com um a essência humana
incrustada na produção teórica de Marx, aproximando-a da generidade muda de Feu-
erbach, porém modulada pelo evolucionismo darwinista. Num rebaixamento total,
estranho ao talento do filósofo paulista, que jamais se permitiu tal descompostura
intelectual, e tangenciando a vulgata marxista, prossegue com seus traços obsessi-
vos:
Em virtude de sua própria generalidade reflexionante, como acontece com as
espécies animais cindidas pela oposição macho-fêmea, a rede das relações sociais
se particulariza segundo o modo de apropriação (propriedade) do excedente eco-
nômico. E a história se constitui, assim, graças à sucessão temporal dos modos de
produção, numa evolução contínua que culmina no modo de produção capitalista.
Neste último passo, a oposição entre trabalho morto e trabalho vivo se cristaliza
na contradição entre capital e trabalho, a qual, sendo levada a seu limite, cria o
movimento de sua própria superação, repondo assim a generalidade do homem numa
forma mais perfeita, o comunismo (GIANNOTTI, 2000d, p. 61).
A partir daí, Giannotti identifica na visão marxiana uma história teleológica de
“cunho religioso”. Ridiculariza a revolução humana e a posição revolucionária de
Marx comparando-o a um verdadeiro profeta: “A estrutura do capitalismo constitui-
ria o termo final de um longo processo evolutivo, cuja superação culmina na repo-
sição da universalidade primeira em sua plenitude, salvando assim a humanidade do
pecado do trabalho e da luta de classes” (GIANNOTTI, 2000d, p. 61).
Que estranha abordagem, que estranho e paradoxal desconhecimento das teses
marxianas! Feita a chicana, típica de certa prática deformante, Giannotti mostra a
impossibilidade de os pensamentos marxiano e marxista refletirem as contradições
das classes sociais no modo de produção capitalista.
Seja do ponto de vista historicista, seja da óptica da estruturação do sistema ca-
pitalista, a dificuldade continua sendo pensar a luta de classes como processo
contraditório, cujo movimento de clausura requer a intervenção de uma aparência
necessária. Sem esse jogo necessário do aparente e do efetivo, do desenvolvimento
de formas categoriais e empuxo das forças produtivas, não haveria contradição real,
pois a mera oposição de formas ou de forças não pode, sem mais, ser dita con-

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traditória. Mas disso resultará uma série de problemas relativos a uma lógica do sen-
sível, que, como veremos em seguida, escapa ao âmbito tradicional do marxismo
(GIANNOTTI, 2000d, p. 62).
Como Giannotti não compreende o processo da individuação social no interior
da interatividade humano-societária, evolver da autoconstituição humana no bojo de
contradições reais, não compreende a lógica onímoda do trabalho, porquanto tudo
se arma pelo construtivismo produzido pelos juízos extraídos de regras gramaticais,
regras da lógica imputativa, porquanto não extraída por meio das abstrações reais.
E, é claro, ainda que o crítico de Marx não a mostre, sua perspectiva é a do social-
democrata que, descrendo da revolução humana ou do trabalho, prostra-se diante
das mazelas da vida capitalista e espera o maior alcance do estado em, ao menos,
diminuir tais sofrimentos humanos. O seu apelo maior, como se sabe, é mostrar o
caminho pedregoso de Marx. A sua “relação ambígua” com a filosofia especulativa de
Hegel.
No final das contas, ele insinua, “Seria um cientista ou um visionário que teria
namorado com o linguajar hegeliano?” “Desenvolve Marx uma análise científica ou
simplesmente está propondo uma metafísica do social?” (GIANNOTTI, 2000a, p.
63) Segundo Giannotti, o filósofo alemão tem um modo de ver a “Ciência” que está
mais próximo dos idealistas alemães do que a dos ingleses e franceses. A “Ciência”
especulativa alemã,
Esta, como sabemos, se converte de imediato numa ontologia do lógos, pois a
identidade in fieri dos elementos do discurso deve ser a mesma das unidades da
realidade em movimento racional. Obviamente essa identidade não pode ser man-
tida pelo marxismo, pois este nega que tudo, em última instância, se revele mo-
mento do Espírito. O que vem a ser então uma dialética da contradição que não tem
o Absoluto como termo de partida e termo de chegada? (GIANNOTTI, 2000d,
p. 62).
No entanto, esta indagação virá com a resposta devidamente antecipada:
“Na juventude ou na maturidade por certo encontramos o mesmo esquema pelo
qual um universal abstrato, a essência genérica do homem, há de converter-se, graças à
negação e alienação, provocadas pela divisão social do trabalho, e à atividade regene-
radora do proletariado, no universal concreto do comunismo. Mas essa negatividade
possuirá a mesma lógica interna ao funcionar em estruturas diferentes? (GIAN-
NOTTI, 2000a, p. 41).
No ensaio “Dialética futurista e outras demãos” Giannotti afirma:
Se a negação pode ter vários significados, se a nenhum cabe sentido originário,
torna-se impossível separar radicalmente a contradição da contrariedade. /.../
Mas desse meu ponto de vista torna-se crucial examinar como as oposições anta-

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A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista

gônicas se articulam e se diferenciam. As mudanças de forma pelas quais passam


os produtos do trabalho, segundo as análises de Marx, entendidas como expressões
de um produto por seu outro, aparecem então como um objeto privilegiado para
examinar como é possível que agentes sigam regras contraditórias. Sob esse as-
pecto, contradições passariam a existir na realidade, mas apenas naquela realidade
que ela mesma é modo de expressão, forma de discurso tecendo uma forma de
sociabilidade. Daí o interesse renovado em se estudar a fonte inspiradora dessa
problemática: a lógica especulativa hegeliana. (GIANNOTTI, 2000b, p. 61-2).
Da mesma forma, interroga-se: “Ao elaborar um novo conceito de capital, do-
tado de uma gramática própria, não empresta à alienação do trabalho uma nova
dimensão, aquela de fetiche?” (GIANNOTTI, 2000a, p. 42). Assim, Giannotti ex-
prime seu ponto de vista, que considera autenticamente científico, porque professa
a neutralidade axiológica ao apresentar o mundo por suas expressões lógicas. Gian-
notti acredita que está procedendo nos mesmos moldes de Marx, todavia, sempre
que pode anuncia a adesão marxiana ao procedimento crítico de Hegel.
É porque a crítica possui o sentido hegeliano de pôr em xeque a positividade
do ser que o capital poderá ser entendido como sujeito-substância que requer a
desmistificação das estruturações aparentes. Mas se esse procedimento imita o
movimento das determinações de reflexão da lógica da essência, tal como Hegel
o descreve, seu fundamento, em vez da Idéia, será o desenvolvimento das forças
produtivas. Não somos então obrigados a esmiuçar o texto de Marx, a nos demo-
rar nas conexões de suas formas lógicas para então compreender o próprio objeto
a que ele visa? (GIANNOTTI, 2000d, pp. 32-3)
Ou, em outra passagem adiante:
No entanto, convém não perder de vista que Marx, embora aceite que as contra-
dições tenham sentido, nunca se propôs a estudar como isso pode ser possível,
porquanto para ele existem contradições na realidade, de sorte que o discurso pode
falar delas precisamente porque existem da óptica da não-identidade. Já que exis-
tem, nossa tarefa é conhecê-las. Frisarei /.../ que as categorias do modo de produ-
ção capitalista são formas de pensar, conseqüentemente formas discursivas, mas
não é por isso que pensamento e realidade se identificam, como se todo ser fosse
racional e vice-versa. Ao tratar de fazer Ciência, embora a seu modo, Marx subli-
nha a diferença entre o “concreto espiritual” (geistiges Konkret) (G, 22) da teoria e o
concreto tal como ele é e permanece sendo, a despeito de todo esforço de teoriza-
ção. Pensa esse esforço em termos de uma apropriação, que produz seu resultado
de verdade, de modo diferente, entretanto, das outras apropriações efetuadas pela
consciência (GIANNOTTI, 2000d, p. 132).
Recorde-se, mais uma vez, que estamos diante de uma posição idealista que
apresenta o mundo sempre por uma lógica especulativa, que busca diferenciar o ter-
reno próprio das regras gramaticais que são “formas do pensamento”. Porque,

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Antonio Rago Filho

Se Marx concebe a consciência teórica e a consciência artística sob o mesmo pa-


radigma da produção coletiva, não é por isso que a transposição do material para
o cérebro segue as mesmas regras nas ciências e nas artes. E o que importa é a
especificidade dessas regras, que não são regras do pensamento ou da imaginação
em geral, mas se conformam e ganham sentido junto dos conteúdos apropriados
(GIANNOTTI, 2000d, p. 133).
Como se pode extrair disso, Giannotti mais uma vez põe a sua colher de contor-
cionista para sua interpretação enviesada. Do seu ponto de vista, os termos produz e
diferente significam que são objetos existentes numa dada gramática real, mas que são
também interpretações de sentidos múltiplos criando outra gramática no campo da
lógica. Segundo lhe parece, Marx construirá, a partir de uma ordem de oposições,
uma lógica de contradições, a fim de alcançar o Aufhebung do capital pela revolução
do trabalho (que não veio e não virá), ilusão das ilusões que jamais pode ser atingi-
da.
A dação de sentido, no universo das contrariedades e contradições, aqui, na
transmutação giannottiana, a partir de seus vícios logicistas, reside no fato de que a
razão é sempre descentrada com relação ao ser, a verdade se situa sempre no plano
da construção lógica. Há, portanto, como já salientamos, duas ordens de realidades.
A ordem construída pelos juízos lógicos e aquela expressa no mundo das coisas.
Vícios logicistas, diga-se de passagem, que não estão isentos de determinação so-
cial, de perspectiva e horizonte social, sentido posto em seu próprio ser social. De
Giannotti poderíamos dizer, do mesmo modo que Marx se dirigiu às boas intenções
dos jovens hegelianos, que “nenhum desses filósofos teve a idéia de perguntar pela
interconexão da filosofia alemã com a realidade efetiva alemã, pela interconexão da
crítica deles com a própria circunstância material deles” (MARX, 1983, p. 186).
Segundo Giannotti, em sua “visão de sobrevôo” (Wittgenstein), o cientista deve
abandonar a idéia de possuir uma visão privilegiada do todo histórico por represen-
tar os interesses da classe trabalhadora e a ilusão de que poderia abarcar todos os se-
gredos de um corpus teórico de um único ponto de vista (cf. GIANNOTTI, 2000a,
p. 65). Entre o decifrar da lógica do capital, com o seu modo de ver a “Ciência”, e a
postura revolucionária de “realização da filosofia”, de intervir “privilegiada e iluso-
riamente”, Marx não teve como resolver os impasses que ele próprio se enredou.
Por isso desconfio que entre o pensamento econômico de Marx e seu pensamen-
to político se abre um abismo, travando a continuidade de seu trabalho. Não é à
toa que permanece inacabado. Marx, como os melhores pensadores do ocidente,
termina por levar ao limite uma forma de pensar, sua atividade criadora é mais
forte do que a armação que levantou, de sorte que, quando seu discurso perde
o pé, não lhe resta outro recurso a não ser escrever textos inconciliáveis entre si
(GIANNOTTI, 2000a, p. 98).

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A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista

Dessa maneira, há um imbróglio que Marx não pode resolver. E aí reside o ba-
nimento da revolução do trabalho no projeto giannottiano:
Que base formal teria o proletariado para se constituir em classe quando as cate-
gorias mais complexas do sistema fibrilam, isto é, colocam-se como pressuposto
das ações dos atores sem contudo fornecer-lhes os meios de medir a parte da
riqueza social que lhes cabe? Como a contradição entre capital constante e capital
variável, sempre sendo pressuposta, poderá encontrar suas determinações quanti-
tativas, que somente se configuram na comprovação do ato de medir? E se, além
do mais, se esboroa a oposição entre trabalho produtivo e improdutivo – como
calcular o trabalho produtivo que produz computador ou se realiza por ele? –
onde os operários vão encontrar a medida que os transformaria em classe social?
E sem essa demarcação, como o objeto da produção da riqueza social parte do
trabalho morto sempre requerido por ela, converter-se-ia no sujeito que, além de
construí-la, seria capaz de se apropriar dela? (GIANNOTTI, 2000a, p. 98).
Está claro, pois, que a própria movimentação do capital soterraria a teoria mar-
xiana do valor-trabalho, facultada pela metafísica inerente ao sistema e pela desmedida
do valor:
O capital variável traz vida nova para a totalidade do sistema, surge como se fosse
parte do capital, trabalho morto, embora seja a única fonte de mais-valor. Mas se
ele revigora a comunidade das coisas, com a introdução de máquinas tecnologica-
mente avançadas, também vê anulada sua capacidade negadora: coloca-se medido como
trabalho morto, mas se exerce dissolvendo a fronteira entre trabalho produtivo e
improdutivo de mais-valia, vale dizer, impossibilitando a medida que lhe foi im-
posta. Denuncia na prática a ilusão de fechamento do sistema, necessária para que
ele seja posto como morto. Marx paga o preço de sua grande descoberta: a socia-
bilidade capitalista é metafísica, funciona como um deus capaz de criar seu pró-
prio mundo, mas a criação divina consiste na aparência da criação de um trabalho,
que perde sua forma natural de se socializar (GIANNOTTI, 2000a, p. 103).
A história contemporânea não caminha no sentido que Hegel supunha, haja
vista que
A força das coisas não carrega em seu bojo o motor de sua transformação em es-
pírito, como queria Hegel. As coisas sensíveis/supra-sensíveis perdem seus perfis
ao longo do caminho de suas próprias individuações. Os processos responsáveis
por suas respectivas produções, ao invés de se transformarem em discurso, em
Verbo referindo-se a si mesmo conforme o mundo mostra-se o lado opaco de
sua atividade pura, escapam da rede que os transformavam em coisas medidas
e fazem valer o peso da matéria que o capital não é capaz de dizer. As relações
sociais de produção não podem mais exprimir a totalidade das forças produtivas
que elas mobilizam, a própria comunidade que o capital postula e repõe como
força produtiva foge de maneira pela qual ele deveria exprimi-la (GIANNOTTI,
2000a, p. 104)”.

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Antonio Rago Filho

Buscaremos demonstrar a pertinência ou não dessas questões. Contudo, po-


demos sinalizar a partir de uma resenha da obra Certa herança marxista, feita por
um amigo dileto, no Caderno Mais! da Folha de S. Paulo, na qual aparece, de modo
nítido, quem são os suportes filosóficos do pensamento giannottiano. Numa antiga
resenha de Giannotti ao positivismo de Gilles Granger, o filósofo uspiano se valia
do conceito de “autoprodutividade do social”. Bento Prado Jr. explicita a base trans-
cendentalista de sua concepção:
Nem será difícil entender essa passagem, aparentemente insólita, da filosofia da
lógica para a ontologia do social, se lembrarmos a origem husserliana e transcen-
dental de nosso filósofo. Com efeito, não é a idéia de constituição crucial no proce-
dimento fenomenológico? Não opera ela tanto no nível da lógica transcendental
como no das ontologias regionais? Mas a maior originalidade, nesse momento, e
que distingue sua empresa de outras semelhantes na tradição fenomenológica, é
a articulação que proporá entre a idéia de constituição e aquilo que poderemos
chamar de a “lógica” do Capital (PRADO JR., 2000).
Sendo que, sob o fetiche do capital, “as condições de existência já estão grama-
ticalmente articuladas, de sorte que o real é simultaneamente práxis e pensamento”
(GIANNOTTI, 2000a, p. 85), não se apresenta a possibilidade de ruptura com estas
“regras gramaticais”, o que leva a um “eclipse da revolução”. Bento Prado Jr. de-
nuncia, dessa maneira, os limites de “uma certa idéia de razão” na visão do mundo
giannottiana. “Qual é a conclusão final de Giannotti? Ele encerra seu livro com a
seguinte proposição: ‘Qual é, porém, o sentido da luta de classes, a luta pelo controle
da norma, numa sociedade em que a norma fibrilou, serve para marcar intervalos
cujo espaço intermediário, contudo, é preenchido por decisões ad hoc?’”. Bento Pra-
do Jr. arremessa uma lança certeira sobre a impotência dessa crítica, em seu incrusta-
do “fim da história” e, por conseguinte, na sobrevida dada ao capitalismo. Visto que,
“Grosso modo, haveria problema com o ‘projeto iluminista modesto’ de Giannotti,
já que o recurso a Wittgenstein implica o reconhecimento de um limite essencial
no processo de ‘desalienação gramatical’.” Bento Prado Jr. aponta para os limites
dos propósitos giannottianos de santificação e prostração diante do capital, assim,
vai mais longe ainda do que a crítica feita por outro cebrapiano a Giannotti. “Mas é
preciso reconhecer que parece difícil conceber, como insiste Balthazar6, um projeto
iluminista, mesmo modesto, ‘porque faz parte, eu penso, de qualquer gramática
transcendental, a preservação da necessidade do erro gramatical’.” E arremata,
com uma tijolada: “Santificação do que está aí?”.
A nova gramática da sociabilidade construída por Giannotti aponta para algu-
6. Referência ao filósofo Balthazar Barbosa Filho, professor do Departamento de Filosofia da UFRGS.

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A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista

mas dimensões do mundo que afirmam a falência do projeto de emancipação radical


de Marx. O mundo do capital, com suas benesses e males, soterrou a força social
– com a fragmentação do trabalho – portadora da emancipação do gênero humano
e a filosofia radical norteadora de uma transformação social não se libertou de suas
próprias contradições, ficando impotente diante do ardil do Absoluto. A ilusão de
revolução do trabalho de Marx – de que o historicamente novo brotaria do histori-
camente velho – não se configurou, a não ser com a transformação dos sonhos em
pesadelos.
Uma questão de fundo da filosofia giannottiana é o banimento da emancipação
humana geral e o processo social de individuação. José Chasin apontou com precisão
para o fato de que o marxismo adstringido se constitui por meio de
operações redutoras que perfilaram uma versão do marxismo circunscrito à con-
dição de lógica ou método analítico e de ciência do capitalismo, para a qual ficou
irremediavelmente perdido o centro nervoso do pensamento marxiano – a pro-
blemática, real e idealmente inalienável, da emancipação humana ou do trabalho, na
qual e somente pela qual a própria questão da prática radical ou crítico-revolucio-
nária encontra seu télos, identificando na universalidade da trama das atividades
sociais seu território próprio e resolutivo, em distinção à finitude da política, meio
circunscrito dos atos negativos nos processos reais de transformação (CHASIN,
2000, p. 7).
Giannotti deposita as reflexões de Marx como mais um capítulo das intenções
utópicas que desembocaram no lixo da história. A “classe universal” do proletaria-
do foi esmigalhada pela revolução tecnológica e pela desmedida do próprio valor-
trabalho.
Em verdade, Giannotti está preso às posições de Georg Lukács de História e
consciência de classe, transferindo suas problemáticas para as de Marx. Com suas raízes
hegelianas, Giannotti atribuía ao proletariado a capacidade de produzir, com a revo-
lução socialista, uma identidade entre o sujeito histórico com a própria vida históri-
ca. O proletariado seria a única classe revolucionária a possuir o “ponto de vista da
totalidade”. Marx, entretanto, jamais colocou a questão da revolução social do pris-
ma gnosiológico. Para Giannotti, com a globalização do capital, o “sujeito universal”
e o prisma da totalidade se despedaçam. Em nosso presente, com a globalização do
capital e a superação do “marxismo” e do “comunismo”, gerando a “fragmentação
e a perda da centralidade do trabalho” no sociometabolismo do capital, como ima-
gina Giannotti, a classe operária não possui mais o ponto de vista da “totalidade” e
tampouco pode cumprir a missão do “sujeito universal” da revolução. Posto dessa
maneira, estamos diante de um falseamento e transplante de um parecer lógico para
a práxis histórico-social, invalidando por meio de uma atribuição gnosiológica as

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Antonio Rago Filho

possibilidades concretas da emancipação humana geral.


Como se pode depreender disso, Giannotti opera com uma ontologia restrita à
esfera do trabalho, e não uma ontologia estatutária do ser social em sua processua-
lidade histórica. A perspectiva da emancipação dos indivíduos sociais, da lógica oní-
moda do trabalho, “não pode extrair sua poesia do passado, mas sim do futuro”. A
nova forma histórica implica a superação do capital e da política, implica uma orien-
tação metapolítica que se dirija ao auto-revolucionamento das personalidades em
seu cotidiano universalizado pelo desenvolvimento das forças produtivas materiais,
o que vale dizer, com as capacidades subjetivas cada vez mais ampliadas, genéricas
e possibilidades virtuais a seu alcance para o atendimento pleno – ainda que sempre
marginado por circunstâncias históricas a serem transformadas – de seus carecimen-
tos de modo infinito e permanente.
Não precisaria tanto esforço para saber que Marx está à cata de um Absoluto e
este é o “sujeito universal”: o proletariado. Desse modo, o “sujeito universal”, como
se apresenta no marxismo adstringido, é uma aberração no que tange às reflexões
de Marx. Alimentar essa ilusão é o mesmo que dizer que uma revolução social é
fruto do “misticismo lógico” de talhe hegeliano, que Marx tinge com as cores de
seu materialismo, para torná-lo cego diante da realidade histórica. É imaginar uma
porção utópica, uma espécie de viseira que tangencia o projeto marxiano acerca da
necessidade de um novo metabolismo social, não mais sob o estatuto organizador
do capital, mas do trabalho. Giannotti, sem ter essa pretensão, abraça as teses do
“fim da história”. Só nos resta, portanto, admitindo suas teses, o esforço político em
aprimorar as regras democráticas do universo regido pelo capital.
Mesmo um autor que sempre se pôs num tom apologético ao atual desenvol-
vimento das forças produtivas materiais, autêntica revolução dos instrumentos de
produção, mostra-se, no entanto, constrangido a afirmar que “Mais do que o jogo
do poder pelo poder, circunscrito por uma gramática própria, essa política, para que
não seja impossibilitada pela dispersão das forças econômicas atuais, requer que se
proponha a colocar um limite na expansão de forças produtivas que criam tanto a
riqueza como a miséria dos homens”. Dessa maneira, Giannotti pretende, por meio
da política, barrar o avanço das forças vitais da sociabilidade, organizar a dispersão
causada pelo capital, uma vez que há uma desmedida em sua reprodução ampliada,
o capital perde o seu metro, “coloca-se a tarefa de conciliar as contradições que ele
cria sem poder resolver no mesmo plano em que se move. A história contemporâ-
nea escapa de sua gramática e perde de vez sua referência natural” (GIANNOTTI,
2000a, p. 104).
Jamais poderá, portanto, compreender, nos termos chasinianos, que:

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A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista

A revolução social como possibilidade real, posta pela lógica onímoda do trabalho,
não é a afirmação de uma classe – dita universal, mas a afirmação universal do
homem. Não é a afirmação do proletariado como classe universal, mas da sua condição de
classe negada, de uma classe que não é uma classe da sociedade civil; é essa condição
de classe negada – que não reivindica nenhum privilégio histórico, mas a simples
condição humana – que é a mediação para a afirmação da universalidade humana dos
indivíduos universalizados. (CHASIN, 2000, p. 62)
Giannotti se lança, assim, à crítica de Marx a partir de uma posição contemporâ-
nea, da perspectiva do futuro ausente, numa época que se caracteriza pela suprema-
cia, sem resistência radical, do capital, pela potencialização inaudita das forças pro-
dutivas e pelo fracasso do Leste europeu. Crítica esta que não mais pode se deter no
âmbito do próprio pensamento do autor, e que também deve se reportar às inúmeras
interpretações dos conceitos marxianos em seus “desdobramentos e contorções”, o
que significa se conformar com a regência do capital, a forma superior imbatível, no
que tange à produção das riquezas.
Com esta propositura, Giannotti se distancia do próprio mundo, desconhecen-
do a natureza do metabolismo social do capital nos países do Leste europeu, iden-
tificadas como modo de produção comunista. Daí sua certeza: o modo de produzir
de riquezas sob a lógica do capital se mostrou superior a qualquer outra forma de
organização produtiva, incluindo a “comunista”.
Nas palavras do filósofo da analítica paulista, “Não parece haver, para o modo de
produção da riqueza, outra forma que não o capitalismo”. Nesse sentido, o capitalismo sur-
ge como uma espécie de fim da história – ainda que Giannotti continue a negar esta
visão –, faltando a impregnação da ética política da perspectiva social-democrata, da
edificação de um estado político ajustador das mazelas que essa mesma forma par-
ticular de metabolismo social segrega, como causa do desenvolvimento das forças
produtivas materiais ilimitado e sem peias políticas. O capitalismo cria a figura dos
sem-emprego, “recria o trabalhador isolado de suas condições de existência, colo-
cando-o sob a ameaça de ficar de fora do metabolismo que o homem mantém com
a natureza”. Por esta razão, o sujeito histórico da revolução, como vimos, esboroa-se
pelo processo de desenvolvimento das forças produtivas. Giannotti faz crer que, ao
tentar o desvelamento da lógica do capital, Marx visa à captura de sua racionalidade.
O marxismo “rejeita a mera justaposição da moral à ciência, procurando descobrir
no âmago da racionalidade capitalista aquele empuxo capaz de transformá-la por
dentro e por inteiro e, desse modo, pavimentar o caminho para emancipar o gênero
humano desse vale de lágrimas” (GIANNOTTI, 2000d, pp. 8-9).
Nas oposições destacáveis do capitalismo, Marx supunha que “o lado negati-
vo, o proletariado, nada tendo a perder a não ser suas próprias cadeias, terminasse

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sabendo exercer o positivo inscrito em sua negatividade”. A dupla negação captada


e projetada por Marx, transforma-se em sua visão, num positivo que emerge da
negatividade. Vislumbre metafísico inscrito no projeto marxiano, “o comunismo
anunciaria a verdade da luta de classes, processo de superar os conflitos passados a
fim de desenhar aquela totalidade que configura uma história universal a englobar na
sua presença a arquitetura do passado” (GIANNOTTI, 2000d, p. 10).
Em suma, Marx jamais afirmou que a revolução contra o sistema metabólico do
capital, no fim da linha, abraçaria a “arquitetura do passado”. Seria isto a harmonia
do homem com ele e com a natureza? No que consiste essa afirmação de Giannotti?
O “comunismo” seria expressão de uma dialética hegeliana, que o passado se re-
constitui sob outra forma no momento de uma nova síntese? Porém, para o nosso
filósofo, a derrocada das formações pós-revolucionárias mostrou que essa raciona-
lidade do capitalismo se constitui numa força insuperável. Aí está porque temos de
ler Marx a partir do presente: o mercado não pode ser ultrapassado (é arquitetura do
passado?), o capital, nessa visão social-democrata, não pode ser superado totalmen-
te: “Não duvido que o fracasso do socialismo levante muitas questões para todos
aqueles que apostaram na completa abolição de uma economia de mercado, na denúncia dos
engodos da economia e da política, ambas havendo de ser substituídas pela adminis-
tração racional das coisas” (GIANNOTTI, 2000d, p. 11).
Como vimos ao longo de todo esse tempo, Giannotti se contorce por meio de
suas “imputações hermenêuticas”, mostrando que a filosofia de Marx está permeada
do “misticismo lógico” próprio à filosofia de Hegel. Porquanto,
Ao afirmar que o capital é uma contradição existente em processo de resolução,
até que ponto Marx não se compromete com esta Ciência da Lógica que, para
poder separar o princípio da identidade e o princípio da contradição, necessita
fundir num único cadinho determinações de pensamento e determinações do ser?
Mas, assumindo o ponto de vista da finitude, denunciando o misticismo de um
lógos capaz de absorver integralmente as peripécias do real, que reviravoltas Marx
necessitou praticar para ver no capital um sistema de antagonismos irredutíveis
caminhando para sua auto-superação? Seria um cientista ou um visionário que
teria namorado com o linguajar hegeliano? (GIANNOTTI, 2000d, p. 11).
Por outra parte, é notável que Giannotti é de fato quem está impregnado de
filosofia especulativa, atravessado por um idealismo mistificador7. Com a sua ma-
7. Cabe assinalar que estamos diante de um falseamento e transplante de um construto lógico para a práxis
histórico-social, invalidando por meio de uma atribuição gnosiológica as possibilidades concretas da emanci-
pação humana geral. Como adverte Mészáros: “Visto que Marx sempre afirmou a primazia da prática social
como o ‘Übergreifendes Moment’ da dialética entre teoria e prática, não via vantagem alguma em utilizar
princípios filosóficos abstratos – como a ‘identidade do Sujeito e do Objeto’ hegeliana – para realizar o traba-

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gistral crítica à Marx e aos seus herdeiros, abraçado às denúncias ideológicas de


extração conservadora, a pergunta que nos resta a fazer é: se a filosofia é sempre
metafísica, qual é o projeto político de Giannotti, a não ser a de uma minguada
social-democracia à brasileira conciliada à terceira via dominante?
Dessa forma, reduzida à sua forma parlamentar, a democracia – meio orgânico
da dominação burguesa – deixa intocada a natureza da relação-capital, fundada no
corte entre proprietários dos meios de produção e da riqueza socialmente produzida
e os não-proprietários. Portanto, tal como na visão liberal, que eterniza a diferença his-
tórico-social, estabelecendo, assim, uma divisão ilusória do poder plural de categorias
sociais antagônicas. Fica excluída, pois, a idéia cara a Marx de que o estado moderno,
em qualquer de suas formas, é sempre forma de opressão, “excrescência parasitária”,
monopólio da violência e da lei, ditadura de classe, obstáculo à efetivação de uma
autêntica emancipação humana; não sendo assim, senão o “anel de ferro” que repro-
duz, moto-contínuo, a sua anatomia. Ou, como enfatizava Chasin:
A questão, hoje, não se esgota no reconhecimento de que a revolução não está na
linha do horizonte prático, nem que o capital, refulgente, consolidou a prorroga-
ção de sua utilidade histórica, mas indagar, diante da miséria material, que se am-
plia, e da miséria espiritual já universalizada (já contando inclusive com o discurso
justificatório da desrazão contemporânea), se pode ser eterno o conformismo
diante do mal-estar da humanidade, do mal-estar indisfarçável de cada individu-
alidade, do apodrecimento radical de toda individualidade, pois no processo da
individuação capitalista são indissociáveis o enriquecimento e o apodrecimento da
individualidade, pois sem o apodrecimento ela não subsiste no quadro vigente. A
crítica é a luta contra o apodrecimento e não se pode limitar à suposta “crítica ra-
dical”, que só leva à desolação. Só pode ser entendida como crítica radical àquela
que se autotranscende, que vai para além dela, que por seu valor se confirma na
prática. (CHASIN, 2000, pp. 52-3).
Mesmo que se possa reconhecer que o proletariado “não foi capaz de se realizar
como a dupla negação prevista por Marx” (CHASIN, 2000, p. 66). Se a humanidade
está envolta numa nova etapa da acumulação capitalista sem paralelos, o proletariado
– antiga ponta da lógica onímoda do trabalho num determinado desenvolvimento
histórico – também padece das conseqüências do revolucionamento das forças pro-
dutivas e, portanto, de sua forma social de existência. O que vem a ser, então, essa
“dupla negação” anunciada por Marx? Chasin responde que este ser social
materializou-se apenas enquanto primeira negação, enquanto expressão da po-
breza e da opressão, só como figura da exploração capitalista, lutou apenas como
lho da história real de modo apriorístico. Na verdade, sempre deu ênfase à maturação de algumas condições
objetivas, sem as quais o ‘canto solo da revolução do proletariado’, por mais consciente que fosse, se tornaria
inevitavelmente ‘um canto do cisne em todas as sociedades camponesas’ – ou seja, na maior parte do mundo.”
(Cf. MÉSZÁROS, 1996, p. 355).

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vítima da miséria. Jamais se materializou como negação da negação, aquele que,


ao negar a própria negatividade e se auto-suprimir, suprime a miséria espiritual e
material de modo universal. Foi simplesmente incapaz de lutar como a negação
da negação (CHASIN, 2000, pp. 66-7).
E numa formulação típica de sua força intelectual:
O proletariado contém apenas a possibilidade de ser a negação da negação, que
lhe é conferida de modo intrínseco e ineliminável pela lógica onímoda do traba-
lho. Essa potência ou propriedade não é uma particularidade autônoma e exclu-
siva do proletariado, ou de qualquer outro contingente temporário do trabalho
alienado. Os contingentes de ponta em geral podem ter a possibilidade de encar-
nar essa potência, mas não a realizam obrigatoriamente. Nem por isso, pelo fra-
casso desse ou daquele agente concreto, essa possibilidade desaparece. É um bem
potencial das formas mais avançadas do trabalho, não de um de seus agentes em
especial, que se mantenha para sempre como categoria particular. Uma potência
universal do trabalho que, enquanto tal, se conserva para além da era do capital
como êmulo constante da revolução permanente do homem na infinitude de sua
humanização. Latência nas formas do desenvolvimento das forças produtivas do
gênero, que pode ser encarnada, na sucessão histórica, por agentes distintos, cuja
identidade será sempre a do contingente que trabalha com a tecnologia de ponta
(CHASIN, 2000, pp. 66-7).
A grande questão que Chasin buscava responder estava inscrita nas alternativas
concretas de nossa própria realidade universalizada: “o que é hoje a grande indústria,
qual a base de sua criação do valor, e quem é seu ‘produto mais autêntico’”. Não se
trata, assim, de restaurar um mito, de modo algum repor a idolatria do proletariado,
com a viseira passadista da esquerda nacionalista e saudosista. É pertinente, pois,
para o nosso debate, que seja enfatizado que os novos sujeitos que brotam do siste-
ma metabólico do capital, em nova configuração, referem-se aos produtores diretos
que operam por meio das forças produtivas de ponta (cf. CHASIN, 2000, p. 69).
Refinando sua própria análise, Chasin apreendeu como poucos as determina-
ções essenciais da nova progressividade da acumulação mundial do capital:
O nível atual de desenvolvimento das forças produtivas está em contradição com as
relações sociais de produção (relações de propriedade no plano jurídico), engen-
dradas pela lógica da propriedade privada em sua forma histórica mais evoluída
– o sistema de controle e ordenação do capital. Ou seja, a capacidade humana
alcançada para a produção de seu mundo próprio é superior e mais potente do
que a organização social que os homens permanecem obrigados a tolerar, contra
a qual se debatem. As relações sociais, a partir das quais aquela capacidade foi
produzida, não são capazes de conter e tirar proveito de sua realização, enquanto
tais, para se conservarem ferem de morte a própria humanidade, tornam letal a
sua maior realização: a) aniquila parte da própria humanidade, dos produtores da
realização; b) aniquila a autoprodução da individualidade, acentua a alienação (do

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132
A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista

produto, do trabalho, do gênero); c) agora a dispensa do próprio trabalho (aliena-


do) (CHASIN, 2000, p. 73).
A tentação óbvia, diante de nossa quadra histórica – o estancamento das tran-
sições, o revigoramento das forças do capital, a supremacia bélica norte-americana,
a morte das esquerdas e a hegemonia absoluta da “usina do falso” na cultura mun-
dializada – é a de olhar para trás e apontar os equívocos e lacunas de Marx. Esta
tentativa já foi feita à saturação pela inteligência manipulatória do capital. Está claro
que o “futuro ausente” se apresenta como o molde atual, dado pelas circunstâncias
históricas, mas que, ao invés de nos fazer recuar deve, muito pelo contrário, lançar-
nos ao encontro do “otimismo ponderado”, que vislumbrava um traçado radical
necessário à luta contra essa “impotência” e “apodrecimento sob a própria pele”.
Porque, assegurava Chasin,
o futuro humano, se futuro houver, será posto pela possibilidade emergente das
perspectivas da síntese do saber – a fusão entre o melhor e mais avançado do sa-
ber científico-tecnológico e o mais agudo e universal do saber humanista, ou seja,
da aglutinação natural entre o saber do mundo e o saber de si. Hoje, o homem
já está se tornando o demiurgo da natureza, falta se converter no demiurgo de si
mesmo. Numa palavra, capacidade ilimitada de produção material, domínio da vida de
seu próprio gênero e do planeta, e humanismo, no sentido de capacidade de produ-
ção do humano. Em síntese, capacidade de produção da vida, inclusive da genuína
vida consciente (CHASIN, 2000, pp. 72-3).
No centro de suas reflexões humanistas sobre as possibilidades abertas em nos-
so tempo pelo “novo emergente” na complexa contraditoriedade do capital está a
atividade crítico-revolucionária. Atividade que denuncia a miséria estrutural, física
e espiritual, do universo regido pelo capital. Sem os “agentes sociais interessados”
uma nova forma de interação humano-societária não pode emergir por um automa-
tismo espontâneo propiciado pela própria lógica onímoda do trabalho.

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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

A crítica chasiniana à analítica paulista

Vânia Noeli Ferreira de Assunção*1


Lúcia Aparecida Valadares Sartório**2
Resumo:
Este artigo versa sobre as críticas realizadas pelo pensador marxista brasileiro J. Chasin
(1937-1998) às teorias da escola sociológica ligada à Universidade de São Paulo, por ele
designada analítica paulista, nominalmente: teorias da dependência, do autoritarismo, da
marginalidade e do populismo.
Palavras-chave:
Teoria da Dependência; Teoria do Autoritarismo; Teoria do Populismo; Escola Socioló-
gica Paulista; José Chasin.

Chasin´s critique to the São Paulo School of Sociology


Abstract:
This article studies the critiques developed by the Brazilian marxist thinker J. Chasin
(1937-1998) of the Sãa Paulo School of Sociology´s theories. These theories were linked
to the University of Sao Paulo and named by Chasin as “analítica paulista”, nominally:
theories of dependency, authoritarism, marginality and populism.
Key words:
Dependency Theory; Authoritarism Theory; Theory of Populism; São Paulo School of
Sociology; José Chasin.

* Socióloga, mestre e doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professora dos cursos de pós-graduação lato
sensu: História, Sociedade e Cultura da Cogeae/SP; Fundamentos e Práticas de Promoção Social da Faculdade
Paulista de Serviço Social de São Caetano do Sul; e Gestão Escolar da Unicastelo. Professora da graduação em
Pedagogia e Serviço Social da Unicastelo.
** Socióloga, mestre em Filosofia pela PUC-SP, doutoranda em Educação pela UFSCar.

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Vâ nia Noeli Fe rreira de Assunção e Lúcia Ap. Val a d a res S artório

Dentre as inúmeras contribuições do pensador marxista brasileiro J. Chasin


para a compreensão da realidade nacional avulta a crítica que fez a um conjunto de
teorias que, durante a ditadura militar, ganhou notoriedade e grande primazia na
pretensão de elucidar formação e realidade nacionais. Trata-se das teorias da margi-
nalidade, do autoritarismo, da dependência e do populismo – produzidas quase ao mesmo
tempo na tentativa de criticar a história do pré-64 e, concomitantemente, apresentar
uma alternativa política e social para o país. Contudo, quase sempre camuflaram a
compreensão das várias facetas que compõem a realidade brasileira, contribuindo
para a não configuração de um novo quadro econômico e social.
Chasin denominou as produções teóricas desenvolvidas pelos intelectuais que
atuavam na USP e no Cebrap, como Fernando Henrique Cardoso, Francisco We-
ffort, José Arthur Giannotti e outros, de analítica paulista. Caracterizada por uma
visão adstringida do marxismo, a escola sociológica paulista constituía-se num ver-
dadeiro amálgama com influxos weberianos (base da sociologia da modernização),
estruturalistas e fenomenológicos, entre outros, sempre cimentados por uma pers-
pectiva liberal-democrática que toma o estado liberal europeu como o “ideal” a ser
perseguido – tanto teórica quanto praticamente.
Estas produções teóricas foram largamente disseminadas durante três décadas,
o que torna ainda mais pertinente recuperar algumas reflexões realizadas por Chasin
em torno delas. De fato, a crítica que este realizou à analítica paulista se mantém atu-
al e pertinente, pois aqueles ideários não foram abandonados como explicação de
certo período de nossa história, ainda que não tivessem dado conta das especificida-
des de nossa formação. Na verdade, eles foram propriamente incorporados, tomados
como pressuposto e, portanto, embasaram produções teóricas posteriores.
Outros autores também desenvolveram uma análise crítica sobre alguns as-
pectos da sociologia uspiana. Gilberto Vasconcelos e Rubem Barbosa Filho, por
exemplo, ressaltaram o vínculo da teoria do populismo com a liberal-democracia.
O espanhol radicado na Colômbia Jesus Martin Barbero, sob uma vertente teórica
ainda mais distinta, também chama a atenção para o modo como foram realizadas
as análises sobre os governos latino-americanos entre as décadas de 40 e 60, redu-
zindo todos aqueles processos de período populista. Limitamo-nos aqui a trazer à
baila os elementos da crítica chasiniana, sempre levada a cabo na análise específica
de situações sociais que sofriam influências daqueles corpos teóricos. Nossa tarefa
nesse artigo é bem mais restrita, apenas relembramos os principais argumentos da
crítica chasiniana, pressupondo que seja complementada pelos demais artigos que
compõem esta coletânea comemorativa.

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A crítica chasiniana à analítica paulista

Do Imperialismo à Interdependência

Com o final da Segunda Grande Guerra, a Organização das Nações Unidas


(ONU) disseminou pelos continentes núcleos que objetivavam apoiar o replaneja-
mento das economias nacionais. No nosso caso, foi criada a Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe (Cepal), em 1948, com sede em Santiago do Chile,
por onde passaram brasileiros como Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares,
José Serra, Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manoel Cardoso de Mello. Suas atividades
teóricas se intensificaram entre fins dos anos 1950 e início da década seguinte, quan-
do os processos de industrialização ocorridos na região mostraram sérias limitações
que precisavam ser compreendidas.
Em suas análises econômicas, a Cepal, sob forte influência de Celso Furtado,
criticava o liberalismo e aduzia a existência de um imperialismo conduzido pelos
países centrais, que não apenas impediam o desenvolvimento econômico das empre-
sas brasileiras como atrofiavam a existência de um capitalismo nacional. Em outros
termos, a Cepal via o subdesenvolvimento latino-americano como relacionado a
situações históricas recentes (e não apenas à colonização), ou seja, ao imperialis-
mo, cujo maior interesse seria manter a América Latina produzindo bens primários.
Desta forma, a divisão internacional do trabalho, que redunda em desenvolvimento
desigual e combinado, reduzia-se a um vínculo abstrato e unidimensional, “através
do qual a irradiação do pólo subordinante era responsabilizada sozinha por toda
a determinação, dissolvendo, assim, a legalidade específica do pólo subordinado”
(CHASIN, 1989, p. 74).
De outra parte, com uma visão mais voltada aos aspectos políticos, intelectuais
do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) – como Álvaro Vieira Pinto, Ro-
land Corbisier, Michel Debrun, Alberto Guerreiro Ramos, Ignácio Rangel, Rômulo
de Almeida, Ewaldo Correia Lima, Nelson Werneck Sodré, Helio Jaguaribe e Candi-
do Mendes de Almeida – avaliavam o desenvolvimento como um processo histórico
que pressupunha uma revolução industrial e uma revolução nacional que tornasse
o país apto à formulação e ao estabelecimento de uma estratégia nacional de de-
senvolvimento. Partiam da idéia de que havia uma burguesia nacional que poderia
representar os interesses gerais da nação, não obstante o caráter contraditório desta
aliança. Seu objetivo era elaborar uma interpretação da crise em que o país estava
inserido a fim de esclarecer e mobilizar as esquerdas, lideradas por uma vanguarda
esclarecida.
Como contrapartida ao imperialismo dominante, a Cepal e o Iseb (cuja análise
política fora apropriada pelo PCB) propunham o desenvolvimento regional com
base em uma estratégia que unisse as burguesias nacionais sob orientação dos técni-

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Vâ nia Noeli Fe rreira de Assunção e Lúcia Ap. Val a d a res S artório

cos do estado. Tratava-se de uma proposta de desenvolvimento fundamentado num


planejamento econômico com acentuado protagonismo estatal, baseado na indus-
trialização e com viés nacionalista. Em sua visão, o desenvolvimento unia progresso
técnico e elevação dos padrões de vida das massas populares, processo este iniciado
com uma revolução capitalista de caráter nacionalista, capitaneada pelo estado e
pelos capitalistas nacionais.
Assim, no dizer de Chasin, “a teoria vulgar do imperialismo era solidária com a
fantasia do capitalismo nacional autônomo” (CHASIN, 1989, p. 75). Esta crença na
possibilidade de completude do capitalismo nacional (em termos econômicos, so-
ciais e políticos) se somava, no caso da Cepal, a uma visão parcial e linear do proces-
so, que desconsiderava as configurações específicas do desenvolvimento nacional,
salientando unilateralmente a importância do pólo externo.
Rebelando-se contra tais insuficiências teóricas, a teoria da dependência, surgida
nos anos 1960, pretendia oferecer uma alternativa teórica e prática aos países latino-
americanos. Foi formulada para tentar apreender a estruturação e a dinâmica do pólo
subordinado, sua natureza concreta e as conseqüências desta advindas. Assim, inver-
tiam-se os termos e “dependência” – qualificativo próprio à periferia – contrapunha-
se a “imperialismo” – designativo da forma de dominação dos países centrais.
Se houve uma tentativa de realizar uma teoria da dependência de viés marxis-
ta (especialmente com Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini e André Gunder
Frank), a maior influência veio de autores que se inspiraram largamente na teoria
de Max Weber – nominalmente, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Com
estes últimos, em especial, a teoria da dependência se afastou significativamente dos
parâmetros analíticos marxianos, incorporando outros referenciais teóricos e distan-
ciando-se dos seus propósitos.
Seu objeto principal eram as relações das economias dos países periféricos com
as dos países centrais, hegemônicos, dos quais os primeiros eram dependentes. Esta
situação de dependência, diziam, estruturava as relações políticas, econômicas e
sociais que caracterizavam o tipo de desenvolvimento dos países dependentes ou
periféricos. Tratava-se de uma sorte de círculo vicioso em que as economias periféri-
cas, baseadas quase sempre na produção agroexportadora, reforçariam a situação de
dependência em relação aos capitais e tecnologias produzidos pelos países centrais,
dependência esta que terminava por plasmar as possibilidades de decisão e ação de
tais países.
Contrapondo-se à visão isebiana, os teóricos da dependência avaliavam que a
burguesia nacional era uma impossibilidade histórica. Atribuíam o subdesenvolvi-
mento não apenas ao imperialismo, mas também à incapacidade intrínseca à bur-

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A crítica chasiniana à analítica paulista

guesia brasileira de dedicar-se a interesses legitimamente nacionais e persegui-los


revolucionariamente. Chegavam a afirmar que era inverídica a oposição do centro
imperialista à industrialização da periferia, valendo-se dos exemplos das multinacio-
nais que se instalaram no país desde os anos 50. Não haveria impedimento, e sim
um condicionamento nefasto do desenvolvimento nacional (concentrador de renda no
plano econômico e autoritário no plano político), mas a participação das empresas
multinacionais e das instituições de empréstimo era tida por eles como imprescindí-
vel ao desenvolvimento nacional.
Assim, diante da impossibilidade de uma revolução burguesa nacional, elidindo-
se a força das formações subordinantes e descartando-se desde logo uma revolução
socialista, restava a esta teoria propor uma associação com o capital estrangeiro,
ou seja, terminava-se por legitimar o capitalismo dependente e associado que se
instituía no Brasil. Da dependência chegava-se, por tais vias, à interdependência, com a
supressão da relação desigual entre os estados nacionais. Ao justificar dessa maneira
o atraso econômico do país, a teoria da dependência acabou por considerar apenas
a universalidade do capitalismo enquanto tipo ideal e, por isso, reduziu as diferenças
internacionais a graus de desenvolvimento das nações, considerando a possibilidade
de os países “subdesenvolvidos” alcançarem um patamar semelhante ao dos países
centrais. Dissolveu, desta forma, toda “possibilidade de traduzir teoricamente o laço
real que ata o país ao capitalismo mundial” e retomou “a velha quimera do supe-
rimperialismo com suas expectativas de felicidade planetária, através da civilização
racional do capital em dueto com a perfectibilização dos processos representativos
e operacionais do estado” (CHASIN, 1989, p. 75). Nessa perspectiva, a teoria da
dependência repôs as antigas teses do desenvolvimentismo produzidas pela Cepal e
dificultou tremendamente a compreensão correta do imperialismo – uma das facetas
do historicamente velho.
Não apenas a via da universalização não foi entendida, mas também a própria
entificação nacional enquanto circuito do capital. Em outros termos, esta tese pulve-
rizou a categoria da particularidade, e dessa forma, descurou do efetivo processo de
constituição do capitalismo no Brasil e das diferenças reais com relação aos países
centrais – ou seja, das objetivações subordinante e subordinada. Com tudo isso, a teoria
da dependência terminou recaindo no erro oposto ao que criticava na tese cepalina
do imperialismo:
enquanto a reflexão sobre o imperialismo no pré-64 fazia desaparecer da análise a forma-
ção subordinada, a nova perspectiva teórica operava a mágica de dar sumiço à irradiação
das formações subordinantes e ao próprio nexo problemático da relação desigual entre
as formações, esvaziando o caráter dessa vinculação fundamental nas generalidades dos
temas referentes à internacionalização do capital (CHASIN, 1989, p. 75).

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O mesmo foi feito sobre a relação capital e trabalho: a teoria da dependência


colocou à margem as classes sociais contraditórias para tratar das lutas sociais como
efetuadas entre agentes em conflito – via seja, indivíduos isolados cujos interesses
duelam, mas podem ser conciliados pela política. Recai-se também aqui no mesmo
resultado: tendo como pressuposto a incompletude do capital brasileiro, e afastando
liminarmente a perspectiva do trabalho – o historicamente novo –, não poderia haver
nenhuma alternativa à ordem capitalista e a modernização excludente seria a única
saída possível.
Quando retirou “a própria identidade do capitalismo enquanto forma societária
erguida sobre a contradição estrutural entre capital e trabalho”, esta teoria afastou-se
da compreensão do modo de produção capitalista para ver as relações sociais apenas
como resultado da “interatividade dos homens moldada pelo engenho tecnológico”,
com o que todas as esferas sociais passam a ser entendidas como problema de or-
dem política (CHASIN, 1989, p. 75). Esta desintegração do concreto é procedimen-
to típico da perspectiva weberiana, que, diante do real, trata de desfazê-lo e refazê-lo
abstratamente, devolvendo como teoria, em vez da estruturação específica dos obje-
tos, um rearranjo subjetivo de fenômenos isolados artificialmente reagrupados.
Por outro lado, esta tentativa enviesada de compreender o real só é possível
com a eliminação da categoria da particularidade. No caso específico, esta elisão
remete imediatamente os indivíduos à universalidade do mundo humano, sem que
a relação seja mediada pela classe social, responsável pela inclusão de cada um na
universalidade. Ao conceber indivíduo e sociedade como antípodas independentes,
põe-se, ainda, a possibilidade para a separação entre estrutura material (o mundo do
burguês egoísta) e esfera política (refazimento abstrato da comunidade, tendo por
eixo o cidadão). A luta pelas garantias institucionais jungia-se a este mesmo procedi-
mento, que elimina a particularidade da liberdade limitada da democracia burguesa
para remetê-la liminarmente à liberdade em geral, perfazendo a identificação entre
democracia, política e liberdade.
Reducionismo semelhante foi efetivado pela teoria que se propunha a explicar a
forma de dominação instituída no Brasil em processo de industrialização. Partindo
da idéia de uma grande “artimanha” das elites para ludibriar as massas e manter-se
no poder, a teoria o populismo, não obstante o vínculo reivindicado com os inte-
resses do proletariado, capitulou diante do ardil do politicismo e contribuiu para
obnubilar o entendimento da realidade nacional.

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A crítica chasiniana à analítica paulista

A Falsa Artimanha Populista e o Ardil do Politicismo

Nos seus primórdios, a teoria do populismo – cujos principais teóricos brasilei-


ros foram Francisco Weffort, Octavio Ianni, Francisco de Oliveira, Décio Saes e José
Álvaro Moisés – objetivava compreender os processos históricos entre 1930 e 1964.
A teoria se apresentava como resgate da perspectiva proletária radical, cujo caráter
classista estaria diluído pela política de massas da burguesia industrial ascendente.
Para isso os teóricos se valiam “de um punhado de noções marxistas tomadas em sua
pura expressão abstrata, que a influência weberiana tornou definitivamente genéricas
na sua eclética e incriteriosa conversão a tipos ideais” (CHASIN, 1989, p. 80)1.
No percurso da ditadura militar este conceito foi transformado efetivamente em
instrumento para diagnóstico da história brasileira, difundindo-se a ponto de tornar-
se quase uma unanimidade nos meios acadêmicos. Os formuladores desta teoria
vincularam a análise da realidade brasileira aos fenômenos europeus, procurando,
assim, definir tipos de atuação política. Ao tentarem compreender os governos da
América Latina, realizaram a mesma comparação ao modelo da liberal-democracia:
segundo esses intelectuais, o Brasil não desenvolveu uma democracia liberal nem
implantou governos totalitários nos moldes europeus, instituindo outro fenômeno,
o populismo.
Sinteticamente, o conceito de populismo surgiu para definir uma prática política
decorrente da manipulação das massas pelas elites que dominam o estado, por in-
termédio de um líder carismático, cujo objetivo último seria retirar sua autonomia e
visão dos próprios interesses. O populismo era explicado como uma prática política
de um país socialmente atrasado, com instituições modernas ainda imberbes e fran-
zinas, dada a pouco definida estrutura de classes sociais. Deveria dar conta de um
período de transição – no Brasil, de 1930 a 1964 – da sociedade tradicional agrária
para a moderna industrial e de um estado oligárquico para um democrático.
Nesse processo, inexistiria, porém, a hegemonia de uma nova classe social,
abrindo-se um “vazio de poder”, o que tornaria necessário configurar um pacto
composto pelos setores agrários, industriais e a grande massa que entrava no cenário
político, embora subalternamente e de forma artificiosa. Nesta quadratura histórica,
a sociedade, desprovida de canais de organização e de uma estruturação social mais
desenvolvida, apelaria para uma relação direta entre as elites e as massas – mais pre-
1. Dados os objetivos limitados deste artigo, nem mesmo mencionaremos aqui outros autores que também
se debruçaram de forma crítica sobre a teoria do populismo. Remetemos os interessados à leitura direta dos
textos abaixo, entre outros que abordaram o tema: BARBOSA FILHO, Rubem. Populismo: uma revisão crítica.
Tese (Doutorado) apresentada à Universidade Federal de Juiz de Fora; FERREIRA, Jorge. O imaginário traba-
lhista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; FERREIRA, J. (Org.). O populismo e sua história. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.

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Vâ nia Noeli Fe rreira de Assunção e Lúcia Ap. Val a d a res S artório

cisamente, entre líderes demagogos e massas manipuladas, responsáveis pela susten-


tação do status quo. As elites tratam de introduzir as massas de forma subalternizada,
impedindo sua constituição enquanto classe autônoma, mas são obrigadas a fazer
concessões econômicas e sociais. Haveria uma grande artimanha para engabelar as
massas e mantê-las passivas mesmo diante de uma situação de ausência de hegemo-
nia burguesa. Dominação torna-se mera questão de manipulação conseguida por meio
da atribuição de uma falsa consciência.
Teoria do populismo e sociedade de massas estão estreitamente relacionadas no
interior da liberal-democracia: ambas são formuladas como deformações de uma
constituição democrática. A massa indiferenciada é dominada por paradigmas que
lhe são externos, por meio da astúcia das elites dominantes. Da transição de uma so-
ciedade tradicional para uma sociedade moderna poderia resultar uma sociabilidade
determinada pela liberal-democracia ou uma democracia populista. O populismo
ou a sociedade de massas seriam formas incompletas ou uma decadência da liberal-
democracia, modelo pronto e acabado que se tem em mira. Esta teoria pressupunha,
assim, que o grande dilema do populismo era não ter incorporado à perfeição a
racionalidade ocidental, embebida em e determinada por formas políticas arcaicas,
patrimoniais, mantidas por coalizões pluriclassistas entre setores modernos e elites
tradicionais. O populismo terminaria logo que o desenvolvimento socioeconômico
do país atingisse um novo patamar, cedendo lugar a uma ditadura ou a um legítimo
regime democrático que contemplasse todos os agentes: completada a transição, as
classes sociais estariam plenamente formadas e cônscias de seus interesses, incluindo
aí a hegemonia política.
De fato, de acordo com esta teoria, o golpe de 1964 veio pôr fim a esse fenôme-
no social: era o colapso do populismo, ocorrido com o fim de uma fase da acumulação
capitalista (baseada na substituição de importações) e a organização autônoma dos
trabalhadores, não mais enganados pelas elites. Avaliavam que o próprio populismo
havia aberto a brecha para o golpe, dado seu desprezo pelas instituições, as conces-
sões excessivas feitas às massas e a sua mobilização como instrumento de pressão
diante do imperialismo ou de setores burgueses resistentes. Ficavam de fora das
discussões as reformas de base, os projetos sociais reais e diferenciados que digla-
diavam na cena nacional naquele momento – tudo é substituído pela artimanha do
“pacto politicista” e de seu colapso. A trama societária é reduzida à esfera política
– mais ainda, a um “estilo de política” do qual se originariam as lutas decorrentes da
produção e reprodução da vida material. E o engodo deliberado em que se constitui
o populismo significaria a suspensão temporárias das lutas de classes e o ensejo para
sua convivência democrática. Há, portanto, um largo distanciamento da apreensão

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A crítica chasiniana à analítica paulista

marxiana das lutas de classes – estas, para Marx, são forjadas exatamente na luta
contra as classes oponentes.
Longe de pensarem numa alternativa à ordem do capital, os ideólogos do popu-
lismo limitaram-se a propugnar que, para garantir a democracia, seria fundamental a
manutenção das liberdades individuais e independência perante o estado. Somente
dessa forma seria possível impedir que os indivíduos fossem manipulados pelo es-
tado e se evitaria sua dominação total sobre a sociedade. Os teóricos do populismo
tentaram explicar os governos que denominaram de populistas tendo como parâ-
metro a liberal-democracia, cujo modelo previa uma estrutura política e jurídica do
estado no intercâmbio com os grupos secundários, entidades de classes e associa-
ções, como canais de mediação entre os indivíduos. Esta estrutura política poderia
amortecer as pressões das camadas populares sobre as elites e, ao mesmo tempo,
garantir os canais de comunicação entre os diferentes setores sociais, preservando,
desse modo, o pacto social e a governabilidade.
J. Chasin chamou a atenção para a profunda “fragilidade dessa armação teórica,
que se restringiu a um descritivismo empirista por cima do qual foi derramado um
vago glacê de significados através de conceitos muito problemáticos” (CHASIN,
1989, p. 80). Assim, por exemplo, ao mesmo tempo em que se sustentava haver um
vazio de poder na década de 1930 na coalizão das classes sociais, afirmava que aquele
período fora marcado pelo fortalecimento do poder executivo. Na tentativa de expli-
car a realidade nacional, perdeu-se a particularidade, a forma específica de domina-
ção burguesa aqui existente, deixando-se, também, de esclarecer em que dimensão
o populismo se diferenciava da dominação capitalista em geral (longe de explicar a
especificidade da dominação local).
Os ideólogos do populismo acabaram caindo na mesma rede de abstrações que
criticavam: buscaram explicar as transformações econômicas e sociais com base
num modelo preestabelecido, a partir do qual concluíram que no Brasil há uma de-
mocracia atípica em relação à das sociedades européias. O centro da análise se limita
a verificar se o período vivido é mais ou menos democrático, se existe manipulação
das classes dirigentes, se existe a formação de instituições independentes na socie-
dade civil. É, então, um corpo teórico construído por comparações, subordinando
todas as contradições do real a uma dada forma de fazer política, um estilo político
projetado pela conduta pessoal, que tem como fim a manipulação das massas.
Esta teoria se arvorava em alternativa às análises desenvolvidas pelos intelectu-
ais do Partido Comunista. Conseqüentemente, pretendia ser uma crítica às práticas
políticas equivocadas dos seus filiados no decorrer do pré-64. Dentre as posturas
censuradas, tomava relevo a idéia de coalizão – entendida por eles como sinônimo

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de subordinação do proletariado às classes dominantes, o que estaria em curso du-


rante o populismo. A contradição desta orientação estava no fato de que recusava
as alianças políticas, mas aceitava de bom grado a adesão partidária; a confusão ins-
taurada fez que não se refletisse com seriedade sobre os significados e as condições
e possibilidades das alianças reais entre partidos aliados independentes. Ou seja, não
foi esclarecida a questão da construção da independência de classe, com autonomia
teórica, ideológica e orgânica, com militância lúcida, numerosa e inserida em dife-
rentes poros sociais. A grande questão é o porquê de as esquerdas do pré-64 não
estarem dotadas de tais características – e sobre isso a teoria do populismo nada tem
a dizer. Como Chasin advertiu,
Operando simplesmente com universais, que supôs de extração marxista, e querendo ser,
de início, a consciência teórica da imanente radicalidade operária, a teoria do populismo
ficou às voltas com a “anomalia” do quadro brasileiro. (...) Para a teoria do populismo, a
democracia, o partido, o líder populista eram em conjunto ou a cada um per si o feiticei-
ro nefasto, que executava a mágica insuperável de atar as massas aos setores dominantes
(CHASIN, 1989, p. 80).

Esta busca de fazer a crítica à esquerda tradicional e resgatar a radicalidade es-


pontânea dos trabalhadores se baseava no seguinte diagnóstico, feito pela teoria do
populismo:
Não apenas as massas, despreparadas em sua inexperiência, mas a própria esquerda foi
aprisionada pelo ardil do populismo, tornando-se incapaz de converter a política de massas
em política de classes. Ou seja, não ofereceu uma formulação alternativa ao populismo, em
consonância com o potencial revolucionário, que supostamente estava contido no quadro
histórico-estrutural (CHASIN, 1989, p. 81).

Assim, a teoria do populismo reivindicava, corretamente, que a esquerda en-


contrasse seu próprio caminho e abandonasse o reboquismo que havia marcado
sua atuação no pré-64. Entretanto, partia da idéia de que a revolução brasileira era
possível. “Tanto que até hoje, passados 30 anos, a teoria do populismo não arriscou
se estender por uma teoria da revolução brasileira, nem há a menor possibilidade de
que o faça de futuro, pois hoje ela é peça naturalmente integrada à atmosfera ‘pós-
revolucionária’ em vigor” (CHASIN, 1989, p. 81).
Um dos maiores problemas originados de suas orientações foi o obscurantismo
em que lançou a compreensão da sociedade, ao substituir a análise das classes sociais
pela analogia de povo ou nação, como “comunhão de interesses ou a solidariedade
própria das comunidades” (CHASIN, 1989, p. 81). Isso se explica, em parte, pelo
fato de que os teóricos do populismo não se debruçaram sobre a esfera da produção,
sobre o tipo de inserção que o Brasil manteve em seu percurso histórico diante do
capitalismo mundial. Eles se restringiram à esfera política, como superior e regulado-

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A crítica chasiniana à analítica paulista

ra das relações sociais. Trata-se de uma teoria embebida em viscoso politicismo. “Poli-
ticizar é tomar e compreender a totalidade do real exclusivamente pela sua dimensão
política e, ao limite mais pobre, apenas de seu lado político-institucional.” (CHASIN,
1982, p. 7) O politicismo, fenômeno simétrico ao economicismo, nada tem que ver
com politização, com valorização da atuação política. Na verdade, desvirtua a pró-
pria política, pois desmonta o complexo de especificidades que é a sociedade e toma
cada uma das “partes” daí resultantes pelo viés político – pseudopolítico. Na prática e
na teoria, toma a realidade complexa por apenas uma de suas facetas, a política, o que
acaba por descaracterizá-la, por exacerbá-la arbitrariamente.
O politicismo expele da política a economia ou “torna o processo econômico
meramente paralelo ou derivado do andamento político”, deixando de “considerá-
los em seus contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais” e sem nunca admitir o
caráter fundante, ontologicamente matrizador, do econômico (CHASIN, 1982, p. 7). Tra-
ta-se de um procedimento tipicamente liberal, uma forma mesmo de acentuação do
princípio liberal segundo o qual a economia pertence à esfera do privado, enquanto
a política, “formalmente estufada”, vai para o terreno da coisa pública. O politicismo
age, pois, como “Protetor da estreiteza econômica e política da burguesia” e, na me-
dida em que “Efetivamente subtrai o questionamento e a contestação à sua fórmula
econômica e aparentemente expõe o político ao debate e ao ‘aperfeiçoamento’”,
“atua como freio antecipado, que busca desarmar previamente qualquer tentativa de
rompimento deste espaço estrangulado e amesquinhado” (CHASIN, 1982, p. 8).
Assim, por meio do conceito de populismo, grupos intelectuais explicam o perí-
odo transcorrido entre os anos 1930 a 1964 pelo viés politicista, segundo o qual perso-
nalidades políticas e circunstâncias sociais se enquadrariam num determinado “estilo
de política”. Por isso, esta teoria não permite uma apreensão mais ampla e correta
da realidade nacional, nem apresenta propostas para propiciar para saltos efetivos na
elevação do padrão de vida de uma grande parcela da população brasileira. Por seu
politicismo visceral, não consegue perceber que as práticas políticas típicas do Brasil
são resultantes da dinâmica de acumulação de capital que se deu interna e externa-
mente por meio da produção calcada na superexploração do trabalho.
J. Chasin ressalta que, além de ser a mais antiga, a teoria do populismo, “mais do
que qualquer outra das que integram o quarteto teórico dominante, é diretamente
responsável pela maioria dos posicionamentos daqueles que – pessoas ou organi-
zações políticas – pensam e querem firmar opções e atitudes de ou na esquerda”
(CHASIN, 1989, p. 79). Entretanto, quando analisado de forma crítica, o conceito
de populismo mostra-se por demais extenso, vago e dúbio, um tipo ideal frouxo ins-
pirador de absurdos analíticos – e, pior, capaz de provocar equívocos práticos sérios
pela história da chamada esquerda brasileira afora.

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Em suma, a teoria do embuste deliberado da burguesia – teoria do populismo


– deveria ter-se interrogado acerca das razões pelas quais o capital não foi capaz
de entificar em nossa formação histórica um capitalismo verdadeiro, completo, ob-
jetivando por estas plagas uma dominação socioeconômica do capital incompleta
e incompletável – atrófica. Em outros termos, fenômenos postos como explicação
dos caracteres nacionais deveriam, na verdade, ser tomados como problema e, por-
tanto, ser investigados e explicados, em vez de tautologicamente aceitos. Por outro
lado, a simples desqualificação da atuação dos trabalhadores e de seus representantes
ideológico-políticos no pré-64 desta teoria decorrente é uma absoluta improprie-
dade – mesmo porque, ainda que se admitam todos os erros do período anterior, a
esquerda pós-ditadura militar muito perdeu em substância no que tange a aspectos
teóricos e práticos. Pior: sendo reducionista e partindo de um arquétipo em que
tenta e enquadrar a realidade, a teoria do populismo não consegue explicar o porquê
do golpe de 64.
Tendo a aliança de classes populista entrado em colapso, o que teria resultado
no golpe militar de 1964, a teoria do populismo cedeu espaço à teoria do autoritarismo,
uma derivação piorada, que perdeu a historicidade – formalizou-se – e a pretensão
de resgate da perspectiva radical operária. É com base no tipo ideal de democracia,
na instituição de um oposto – o totalitarismo – e na comparação entre ambos que se
instituiu a teoria do autoritarismo, que passamos a ver a seguir.

Democracia Arquetípica e suas “Degenerações”: a teoria do autoritarismo

A teoria do autoritarismo originou-se em estudos psicológicos e se estendeu


posteriormente para a análise política, sociológica e jurídica. Em face do apoio que
os Estados Unidos ofereciam às ditaduras latino-americanas que pipocaram a partir
dos anos 1960, as questões do imperialismo e das formas de dominação autocráticas
regionais apareciam como intimamente ligadas. A teoria do autoritarismo, abraçada
por correntes diferentes, foi uma das que se propuseram explicar a situação.
São tidas como características de um regime autoritário a exclusividade no exer-
cício do poder, a existência de arbitrariedades, o enfraquecimento dos vínculos jurí-
dicos, a alteração da legislação institucional voltada à própria perpetuação no poder,
o cerceamento das liberdades públicas e individuais, a perseguição aos dissidentes, a
censura às opiniões e a tentativa de algum controle do pensamento e o emprego de
métodos ditatoriais e compulsórios de controle político e social.
As análises aqui desenvolvidas não estiveram isoladas dos movimentos teóricos
europeus, pelo contrário, estavam estreitamente relacionadas a elas. Por exemplo,
Karl Mannheim (1893-1947) analisou as sociedades de sua época pautando-se no

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A crítica chasiniana à analítica paulista

tipo ideal de democracia liberal européia. O conceito de totalitarismo foi desen-


volvido por Hannah Arendt (1906-1975) para explicar o nazismo e o fascismo na
Europa no período da Segunda Guerra Mundial. A produção teórica de Alexis de
Tocqueville (1805-1859) foi resgatada e transformada em ferramenta de análise por
estes autores na construção de suas teorias políticas e estudo dos grandes conflitos
políticos ocorridos na primeira metade do século XX. Estas teorias alcançaram boa
margem de difusão entre os intelectuais europeus e americanos e obtiveram inserção
na América Latina por meio da sociologia da modernização de Gino Germani e
Torcuato Di Tella, professores da Faculdade de Ciências Sociais do Chile no início
da década de 1970.
Para esta teoria, antes do fim da Primeira Guerra Mundial iniciava-se a história
do totalitarismo, fenômeno político que teria marcado o século passado. Diante das
necessidades geradas pela guerra e pelos imediatos acontecimentos posteriores, os
representantes do poder executivo das frágeis democracias liberais européias en-
veredaram para o fortalecimento próprio, em contraposição ao poder legislativo.
Acreditava-se que seria temporário, ou seja, quando voltasse a paz, cada um desses
poderes retornaria a seu papel original, previsão não consolidada – pelo contrário, a
década seguinte acabou assistindo ao fenômeno do estado cada vez mais forte.
Fortemente ligado à noção de monopólio de poder, totalitarismo é, de acor-
do com esta teoria, um regime político típico da sociedade de massas, fundado na
ampliação do poder do estado a todos os espaços e esferas sociais e resultante de
extremismos ideológicos e de uma concomitante desintegração da sociedade civil
organizada. A banalização do terror, a manipulação das massas, a incorporação acrí-
tica das mensagens do poder são algumas das características do totalitarismo; de
outro lado, vêm a existência de um partido único estatal de massas em cuja direção
se centralizam os processos de tomada de decisão; a burocratização do estado; a
repressão à dissidência e a criação de um estado policial; o culto à personalidade do
líder; o patriotismo exacerbado; a organização dos trabalhadores com intervenção
estatal, via propaganda e apelo ao patriotismo; a censura aos meios de comunicação;
a patrulha ideológica; e a militarização da sociedade e o expansionismo.
O nazismo e o fascismo, segundo a teoria mencionada, eram decorrentes do
enfraquecimento da liberal-democracia e da configuração de uma sociedade de mas-
sas, facilmente manipuladas pelo estado. A sociedade de massas surge, segundo esta
teoria, quando se dá uma ruptura na harmonia social estabelecida pela liberal-de-
mocracia, quebrando-se os canais que compõem sua estrutura, o que desequilibra a
participação popular, finalmente se perdendo o sentido da comunidade. Esse quadro
geraria uma instabilidade na vida social e política, a que se somaria a falta de legitimi-

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dade da elite, que acaba favorecendo o conflito ou a apatia social. Numa sociedade
de massas, as elites seriam diretamente acessíveis à população, no sentido de que
esta não age por meio de canais institucionais ou grupos secundários na resolução
de questões presentes no momento.
Na explicação do totalitarismo como deformação do estado, Chasin desvenda o
pressuposto que caracteriza o estado liberal defendido pela teoria:
o estado liberal vem a ser o sistema onde predominam a lei, a razão e a liberdade, garantidas
pela difusão do poder e pela estrutura pluripartidária. E o estado totalitário, o sistema onde pre-
valecem a violência extremada – o terror – e a dominação hipertrofiada pela concentração
do poder e nutrida pelo monopólio político do partido único (CHASIN, 1978, p. 49).

Assim, o estado liberal seria o regime da liberdade, da legalidade, da racionalida-


de, enquanto o totalitário seria o regime da opressão e da violência. Os fenômenos
nazista, fascista e stalinista foram explicados por esses intelectuais como manifesta-
ções de totalitarismo, pela ausência completa de democracia nos países em que ocor-
reram. Como as análises dos processos históricos foram dadas a partir do modelo da
liberal-democracia e não das transformações históricas objetivas, estas ocorrências
tão diferenciadas foram analisadas de modo indistinto. Trata-se de uma classificação
em relação ao que contraria o modelo de democracia – não necessariamente a reali-
dade, explique-se –, reducionista, por se situar na esfera da política, e que emprega
universais abstratos que mais ocultam que esclarecem o que pretende analisar.
Como se vê, a teoria em tela surgiu entre os pensadores liberais que estabele-
ceram a democracia burguesa como modelo político ideal e, para compreender o processo
histórico de outros países, instituíram comparação com o arquétipo da democracia
liberal. Assim, é possível perceber que as análises dos autores que desenvolveram
ou veicularam o conceito de totalitarismo se pautaram pela incorporação do mundo
burguês como forma acabada de sociabilidade e sua produção teórica se deu sob este
limite: o estado como estrutura guardiã das relações sociais capitalistas.
Os teóricos do totalitarismo evitaram olhar a sociedade em sua totalidade, para
se debruçarem apenas sobre a sua estrutura consolidada na sociedade capitalista.
Como partem da posição burguesa, estabelecem como referência a relação entre
estado – como grande gerenciador dos negócios burgueses – e sociedade civil: de acordo com
eles, se o estado suprime o pluripartidarismo para impor um partido único, é o ter-
ror, reina o totalitarismo. Mas se, ao contrário, o estado retirar o seu poder para deixar
prevalecer a sociedade civil, a liberdade ganha dimensão.
Insiste-se, as determinações relacionadas ao totalitarismo nada mais são do que
definições que se remetem à negação dos caracteres liberais. “Em última instância,
a noção de totalitarismo nada mais reflete do que o liberalismo com sinal trocado” (CHASIN,

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A crítica chasiniana à analítica paulista

1978, p. 49). É esse “arquétipo democrático ou a democracia como critério de verda-


de que faculta a edificação da teoria do autoritarismo” (CHASIN, 1989, p. 77). Cha-
sin adverte que não se trata apenas de debilidade teórica, pois as posições explicitam
claramente o interesse de separar as esferas que compõem a sociabilidade:
Configura-se, portanto, uma concepção cujos pressupostos necessários são: uma abstrata
relação excludente entre poder material e poder jurídico, e a atribuição, também em abstra-
to, de valor positivo ao campo jurídico e de negativo ao poder material. Pressupostos que
implicam considerar o estado liberal uma sorte de fim da história, portanto, racionalmente
insuperável, eterno como valor prático e teórico (CHASIN, 1978, p. 50).

Como a teoria do totalitarismo não conseguia explicar alguns fenômenos da


América Latina, apelou-se para outro conceito, que expressasse uma sociedade que
não chega a ser totalitária, mas se afasta da democracia liberal típica: o de autorita-
rismo. O ponto de partida para fundamentar o construto conceitual em exame foi a
criação do arquétipo de democracia, do qual foram derivados os outros dois modelos
de tipo ideal para explicar os fatos históricos no século XX, como salienta Chasin:
Por definição negativa, no pólo simétrico à democracia, aparece o totalitarismo como ex-
pressão pronta e acabada de sua negação absoluta, e o autoritarismo como uma figura
intermediária, desprovida enquanto tal de partes e procedimentos básicos do perfil demo-
crático, sem que atinja o cancelamento integral das liberdades que é o formato totalitário.
Assim, o autoritarismo é a voz abstrata que domina os quadros em geral de carência demo-
crática, a falta decisiva, ainda que parcial, de franquias públicas. Ou seja, enquanto o auto-
ritarismo é a atrofia ou a ausência, em graus diversos, de liberdade política, o totalitarismo
é o regime do terror contra o indivíduo, movido pelo estado policial, que concentra em si
todos os poderes e através deles exerce todos os controles sociais (CHASIN, 1989, p. 78).

A corrente desta teoria que alcançou maior expressão na América Latina foi
a criada por Guillermo O’Donnell, para quem o autoritarismo era parte orgânica
do aprofundamento do processo de acumulação em curso, ou seja, estava no bojo
da adoção de tecnologias intensivas em capital nas indústrias de base e de bens de
capital. Esta tese, adotada no Brasil pela analítica paulista, ligava-se à teoria da depen-
dência, segundo a qual a poupança externa era necessária ao processo de industria-
lização nacional – era necessária uma associação com o capital dominante estrangeiro
para que houvesse o desenvolvimento nacional, e nesse processo incluíam-se formas
de dominação autoritárias. Não deixou de ser, portanto, também ela uma teoria da
transição transada, ou da auto-reforma lerda, longa e limitada do regime bonapartista.
Faz parte desta teoria um enquadramento classificatório que tem como eixo cer-
to paradigma de democracia. Em outros termos, tanto o conceito de autoritarismo
como o de totalitarismo foram construídos a partir da comparação à democracia, ao
estado liberal, pautado pela “sociedade política de direito, cujo poder difuso se ma-

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nifesta por controles sociais pluralistas” (CHASIN, 1989, p. 78). De um lado, põe-se
o totalitarismo como absoluta negação desta democracia, e de outro o autoritarismo
como nível intermediário. Mais ainda: ao mesmo tempo em que é critério de verdade,
a democracia também é a finalidade da ação, ou seja, a análise é imediatamente regida
pelos propósitos políticos e, por isso, pode se manter no nível da superficialidade.
A liberal-democracia é um modelo político que tem como princípio o liberalis-
mo, a visão burguesa do mundo. Os pensadores liberais naturalizam as relações so-
ciais e afirmam que os homens são intrinsecamente isolados e egoístas, motivo pelo
qual defendem a construção do estado como fundamental para garantir a convivência
minimamente razoável entre os homens. A competitividade não é apenas naturali-
zada: é também vista como a alma das relações humanas e somente a criação de um
aparato jurídico coercitivo pode limitar o ímpeto da autodestruição da espécie. Com
isto, o mercado – a livre concorrência entre os produtores privados, hoje sob o jugo
dos monopólios e oligopólios – é tomado como intrínseco à vida humana. Ao se
subtraírem ao exame das condições materiais de existência e ignorarem o palco das
disputas travadas em defesa da propriedade privada, as teorias mencionadas atrelam
a democracia imediatamente à liberdade do capital no mercado. Ao reduzirem todas
as questões sociais à esfera meramente política, os teóricos do autoritarismo passa-
ram a pleitear a democracia como “plenitude da forma do poder do estado”.
Assim, enquanto a esquerda tradicional atuante no pré-64 se perdia entre um
abstrato revolucionarismo e o ativismo caudatário, seus críticos recaíam em outra forma
de maniqueísmo: democratismo e autoritarismo. São duas correntes “necrófilas do corpus
liberal”: ambas acreditam na instituição acabada, em solo nacional, seja da forma con-
cluída do capital, seja da forma de dominação liberal-democrática – esquecendo-se
de verificar a possibilidade histórica de ocorrerem essas totalizações. “Subsumidas,
as duas, ao universo teórico do capital, distinguem-se, neste campo, apenas pela
modalização de suas ideologias: a esquerda tradicional efetiva esta encarnação como
torcida liberal pela inintegralização do capital, e a nova esquerda toma o corpo da
teimosia liberal, conversão da hipótese do liberalismo, numa formação de liberalismo
impossível.” (CHASIN, 1985, p. XII)
De acordo com Chasin, o conceito do autoritarismo é um construto teórico
que se resume a dividir a complexidade real em “partes” e autonomizar o círculo
político em relação a todas as demais, em especial das bases materiais de existência.
Dissolvendo-se a complexa realidade concreta em uma “calda” política, promove-se
a hipertrofia do político, uma espécie de hiperpolítica, que se nega a si própria. Em
outras palavras, transforma a “totalidade estruturada do real – complexo de media-
ções – num bloco de matéria homogênea” que, além de constituir uma falsificação

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A crítica chasiniana à analítica paulista

intelectual, “configura para a prática um objeto irreal”, resultado do desprezo das


dimensões social, política, ideológica e, especialmente, das relações e fundamentos
econômicos que constituem o ente concreto (CHASIN, 1982, p. 7).
Assim, a teoria em exame deixou de levar em consideração a produção e a re-
produção da vida, bem como as especificidades das formas de dominação política e
as formações sociais em suas peculiaridades e particularidades históricas. Os cons-
trutos teóricos mencionados não passaram de instrumentos subjetivos de aproxima-
ção cognitiva – tipos ideais de talhe weberiano –, que na sua origem não pretendem
mesmo corresponder à realidade enquanto tal. Pior, prestam-se à obscurecer o que
pretendem explicar, as formas de dominação, pois só conseguem dizer o que não
são, sem atinar para o que efetivamente são – e, portanto, sem trazer nenhuma pro-
positura de ultrapassagem das condições concretas de limitação das liberdades.

Considerações Finais

O quarteto nada fantástico cujas idéias mais centrais apenas enumeramos, reto-
mando a espinha dorsal da crítica chasiniana, pauta-se por uma perspectiva analítica
muito pouco inocente. Seu nervo consiste em subentender a sociedade capitalista
sob forma liberal-democrática e tomá-la como modelo ideal pelo qual se aquilatam
formações sociais reais e específicas. Assim, em apenas um movimento, conseguem
naturalizar e legitimar a sociedade capitalista, arrogar à democracia o qualitativo de
forma de organização social mais desenvolvida e arrojar a temática da emancipação
humana ao latão de lixo da história. Ainda assim, a influência das teorias elaboradas
pela analítica paulista foi avassaladora nos meios da chamada “esquerda” brasileira,
no seu esforço de fazer a crítica e ultrapassar os limites dos seus antigos represen-
tantes institucionais, além das teorias da Cepal e do Iseb.
As teorias da marginalidade, da dependência, do autoritarismo e do populismo
– esta mais que todas as outras – tentaram explicar a realidade brasileira por meio de
uma comparação com moldes europeus, anulando as relações existentes entre o ca-
pitalismo constituído no Brasil e o conjunto da burguesia mundial. Portanto, é pos-
sível afirmar que serviram para camuflar a entificação específica do modo de produ-
ção do capitalismo no país e o papel que o estado exerce nesse processo. Ademais,
por se pôr à esquerda do capital, sem ultrapassar o ideário que norteia o pensamento
liberal, este corpus teórico resultou no arrefecimento da esquerda e no abandono de
qualquer perspectiva de transformação social que altere o sistema produtivo vigente.
Tais teorias resultaram, por caminhos diversos, na capitulação em relação à ordem
metabólica do capital e a toda a sua barbárie, embrutecimento e alienação. Não obs-
tante suas propaladas intenções de compreender a realidade nacional, contribuíram

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para elidir as características particulares da formação brasileira e, com isto, por sua
larga disseminação no seio da assim chamada esquerda, tiraram da perspectiva do
trabalho a “arma da crítica”.
Mesmo com – ou, talvez, exatamente pelas – suas graves insuficiências internas,
estas teorias se colocaram como instrumento de análise e de condução de práticas
sociais e políticas em nosso país, influenciando largamente a prática de movimentos
sociais e partidos que vão do PSDB ao seu primo pobre, o PT – não obstante as auto-
proclamadas diferenças radicais entre os escopos teóricos de ambas as agremiações.
Assim, passados 40 anos da ditadura militar, já puída (sem ser devidamente
feita!) a discussão sobre a consolidação da democracia brasileira, os principais re-
presentantes teórico-ideológicos da esquerda do capital nada têm a dizer, porque
esgotados em seus próprios referenciais, e a “esquerda” continua desorientada em
meio à grande usina do falso em que se constituiu o capitalismo atual.
As críticas de Chasin apontam alguns caminhos, que necessariamente exigem
uma séria revisão teórica e prática de maior rigor sobre a história brasileira, direcio-
nada a retomar uma práxis transformadora da realidade:
é preciso fazer – não alguma coisa, mas a coisa certa. Re-começar. Sem mito e sem mística,
o re-começo é antes de tudo um re-encontro da classe, uma retomada da razão do trabalho,
como potência central de uma dada ação política, que faz política para além da mera razão
política. Ação política, nem politicismo, nem economicismo, ou seja, movimento social
que visa a matriz e por seu meio o complexo da sociabilidade que ela engendra e mantém
(CHASIN, 1987, p. 199).

Referências Bibliográficas
Chasin, J. Politização da totalidade: oposição e discurso econômico. Revista Temas de Ciências Humanas. São
Paulo, Editorial Grijalbo, n. 2, 1977.
______. O integralismo de Plínio Salgado – forma de regressividade no capitalismo híper-tardio. São Paulo, Livra-
ria Editora Ciências Humanas, 1978.
______. Lukács: Vivência e Reflexão da Particularidade. Revista Ensaio. São Paulo, Ensaio, n. 9, 1982.
______. A Esquerda e a Nova República. Revista Ensaio. São Paulo, Ensaio, n. 14, 1985.
______. A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda. Revista Ensaio. São Paulo, Ensaio, n. 17/18, 1989.
______. “Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica”. In: Pensando com Marx. São Paulo, Ensaio,
1995.

Verinotio.org (n.9), Ano V, NOV./2008, ISSN 1981-061X

152
revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

J. Chasin e a realidade brasileira

Milney Chasin*1

Resumo:
O artigo narra o desenvolvimento intelectual de J.Chasin, iniciado na década de 60 até
a configuração do seu pensamento maduro. Trata-se, pois, de evidenciar características
marcantes de sua reflexão, tais como a propensão à objetividade, ideação marcada pelo
contraste do que empiricamente é passível de observação; de outro, um pensamento em-
breado pela crítica da realidade ideal e histórica do Brasil, de suas principais categorias
sociais revelando, assim, os possíveis nexos e condicionantes nacionais e internacionais
que, sobremaneira, afetaram e afetam a dinâmica e prospectiva do Brasil.
Palavras-chave:
Realidade Brasileira; Crítica; História; Objetividade.

J. Chasin and the Brasilian reality


Abstract:
The article describes J. Chasin’s intelectual development from the 60’s until the configu-
ration of his maturity thought. It emphasizes the most prominent features of his ideas,
such as the propensity to objectivity, ideation marked by contrast of what is empirically
observable. On the other hand, it is a thought moved by the criticism of Brazilian both
ideal and historical reality and also by an analysis of Brazilian main social categories.
The study of those categories allowed Chasin to disclose the possible national and in-
ternational connections and conditionings that affected most and still affect Brazilian
dynamics and prospections.
Key words:
Brazilian Reality; Critique; History; Objectivity..

* Professor do CEFET-MG.

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Milne y Chasin

Em 1962, aos 25 anos, em seus primeiros escritos1 J.Chasin parece definir, des-
de cedo, um dos traços marcantes de sua trajetória intelectual: a propensão à obje-
tividade, a reflexão forjada e exposta a partir dos problemas sociais mais urgentes,
ou seja, suas idéias (e a urgência em concebê-las) sempre se ataram a perspectiva
de que cabe ao pensamento responder aos desafios societários, historicamente re-
levantes. De outro, a propensão à objetividade se esboça no fato de que o pensar e
suas possibilidades emergem das formações sociais, isto é, os fenômenos sociais só
podem ser amplamente compreendidos se historicamente desvelados. Não é outro
o sentido dos textos que já emergiam nos idos da Maria Antônia que nitidamente
refletiam este posicionamento que, com o passar dos anos, foi recorrentemente
aprofundado. De modo que tais textos entremostram, assim, a preocupação inicial
do autor com temas ligados à sociabilidade brasileira, aos problemas historicamente
vividos no plano nacional e suas implicações (se houver) no universo internacional.
Assim, J.Chasin inicia sua trajetória intelectual tendo, por norte, a dissecação da reali-
dade brasileira, um envolver-se cada vez maior que, no tempo, o levará ao encontro
com o pensamento marxiano e marxista, à crítica das esquerdas e a configuração
original do capitalismo no Brasil.
Os textos que se afiguram a época permitem reconhecer este traço decisivo
de sua reflexão: “Jânio, do parto à sepultura (1962)”, “Algumas considerações sobre o movi-
mento estudantil brasileiro (1962)”, “Luta ideológica – objetivo central do movimento estudantil
(1962)”, “Contribuição para a análise da vanguarda política do campo (1962)”. Es-
critos que esboçam uma identidade temática e uma preocupação intelectual precisa:
o Brasil, seus dilemas e as lutas sociais. É neste quadro que emerge a análise sobre
Jânio Quadros e os movimentos sociais mais relevantes. Assim, no ensaio “Jânio, do
parto à sepultura” ao enveredar pelo exame histórico da sociabilidade brasileira Cha-
sin, de pronto, recusa qualquer análise meramente psicológica do fenômeno janista:
“Não pretendemos, no entanto, uma análise meramente pessoal ou psicológica do
sucesso janista. Falar em desequilíbrios, loucuras e idiossincrasias não basta e pouco
explica.”2 Linhas à frente o autor esclarece:
Queremos, isto sim, compreender os motivos da decomposição política de um
homem que tinha estofo para ser um autêntico e honesto líder popular e que
muito depressa teve que embair a massa para se sustentar como político /.../
Queremos as raízes econômicas, políticas e sociais desse fenômeno que muitos
erroneamente encararam como pessoal, mas que é evidentemente o produto de
uma fase histórica do processo evolutivo da sociedade brasileira..3

1. Cf. Apenso Arqueológico in A Miséria Brasileira, pp.305-367.


2. Ib., p.305-6.
3. Ib., p. 306.

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J. Chasin e a realid ade brasil eira

O feitio analítico esboçado acima arrima, fortemente, nossa exposição ao de-


marcar a propensão à objetividade que o texto ilustra, ou seja, Chasin analisa o
fenômeno janista a partir das condições históricas que o geraram, na interioridade
do “processo evolutivo da sociedade brasileira”. Em termos diversos, o fenômeno janista
só pode ser elucidado se, por princípio, forem elucidas as necessidades históricas
que levaram à emergência e ao estabelecimento da política janista encarnada na fi-
gura de Janio Quadros. De fato, comparece, desde logo, uma dupla necessidade
ao pensamento de J.Chasin: em primeiro lugar os temas envolvidos e pesquisados
são urgentes do ponto de vista societário, isto é, envolvem dilemas universais, pers-
pectivas humanas. De outro, a resolução possível destas urgências sociais depende,
sobremaneira, do entendimento e compreensão do tecido societário em questão, do
Brasil e de sua formação histórica.
Em Algumas considerações sobre o movimento estudantil brasileiro e Luta ideológica – obje-
tivo central do movimento estudantil, Chasin analisa os caminhos do movimento estudan-
til à época, suas deficiências e despreparo para atuar politicamente. Ao buscar um
perfil que permita compreender suas insuficiências, afirma:
Desde logo, duas questões fundamentais devem ser tratadas: o que é atualmente e
o que deve ser o movimento estudantil brasileiro. Evidentemente não poderemos
estudar as referidas questões isoladamente, fora do contexto global da sociedade
brasileira. Muito pelo contrário, só e somente só pela caracterização desta última
e pela identificação de seu estágio atual de desenvolvimento é que poderemos re-
conhecer a importância e atribuir um papel político adequado à camada estudantil
da nação.4
Note-se que o exame do fenômeno janista, como também, do movimento es-
tudantil são arrimados na compreensão decisiva da realidade, ou seja, só o tecido
social amplo e historicamente dinâmico é capaz de fornecer os elementos para a
efetiva cognição dos fenômenos sociais. Assim, existe o reconhecimento de que
os fenômenos sociais são conexos, pois, ao isolarmos (da sociedade) um atributo
ou qualidade específica dos entes enveredamos pela impossibilidade de apreensão
concreta do caso examinado, vale dizer: ao desenraizar os objetos somos obrigados
a enfatizar desmedidamente um dos seus aspectos em detrimento das reais conexões
do fenômeno no interior do tecido social.
Esta ideação incapaz de compreender os fenômenos sociais e suas reais cone-
xões societárias estava presente, segundo Chasin, no interior do próprio movimento
estudantil emergindo, deste modo, como problema capital, pois, “o problema no
meio universitário não é de honestidade, mas da incapacidade ou do temor de quase
todos os seus responsáveis em observar a realidade tal como ela se apresenta e a
4. Ib., p.312.

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Milne y Chasin

partir dela elaborar objetivamente o trabalho.”5 Em outros termos, a crítica à ideação


do movimento estudantil pressupõe que os objetivos pretendidos devam ser postos
na exata medida em que
A fixação exata de tais objetivos e métodos requer, no entanto, um trabalho pre-
liminar: a análise crítica das condições que presidiram a formação do movimen-
to estudantil nacional, tanto do ponto de vista das condições político-sociais da
nação como das características peculiares do meio estudantil então existente; e
ainda o condicionamento gerado por tais origens e que, apesar das transforma-
ções ocorridas na vida brasileira, marca profundamente, até hoje, toda a atividade
política da juventude estudantil do país.6
Assim, torna-se nítido, o caráter objetivo ou a propensão à objetividade dese-
nhada pelo texto chasiniano em seus pródromos, isto é, tanto o plano cognitivo
como a ação política devem se pautar e se reconhecer nas possibilidades que a ani-
mam e que as tornam possível, ou seja, o reconhecimento de que as ações humanas
(aqui exemplificadas pelo campo político) devem ser forjadas no conhecimento e
reconhecimento evolutivo das sociedades e de seus problemas. Em termos diversos
comparece, desde logo, a preocupação de que a ações ganhem corpo e condições no
enlace que as possibilite, vale dizer, na compreensão das “condições político-sociais
da nação”. Em suma, existe por parte do jovem J. Chasin uma recusa consciente de
um procedimento teórico descolado da realidade e impotente no exame dos proble-
mas sociais. Em verdade, o que se afigura paulatinamente é o adensamento de uma
subjetividade capaz de compreender e criticar as inúmeras faces da realidade brasi-
leira, suas matizes teóricas, políticas e seu desenvolvimento histórico. Preocupação
constante que jamais será abandonada pelo autor. De sorte que, a década de 70 será
marcada pelo reconhecimento do caso brasileiro, ou seja, pelo estudo histórico que
permitiu a Chasin caracterizar o capitalismo nos moldes da via colonial reconhecendo,
assim, a gênese formativa do capitalismo em nosso país, as insuficiências e limites da
burguesia nacional e, por extensão, de nossas esquerdas em contexto historicamente
adverso. De sorte que vale tomar, de pronto, sua tese doutoral.
Com o objetivo de dar consecução aos estudos da realidade nacional J.Chasin
envereda, na década de 70, pelo exame do complexo ideal e real de entificação do
capitalismo brasileiro. Tratava-se, portanto, de apreender sua natureza, seja no plano
das formações ideais, a raiz constitutiva do nosso pensamento, ou no plano econô-
mico-social, isto é, das determinações históricas e particulares do caso brasileiro.
O maior esforço nesta direção diz respeito à tese doutoral intitulada: O Inte-
gralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo híper-tardio, defendida em
5. Ib., p.312.
6. Ib., p.314.

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J. Chasin e a realid ade brasil eira

1977. Nesta, Chasin expõe o ideário de Salgado, expondo sua gênese e necessidade,
enquanto fruto de uma formação social industrialmente tardia, isto é, de um capita-
lismo atrasado e atado economicamente ao campo. Assim, ao estudar o ideário de
Salgado, Chasin incursiona decisivamente pela análise da realidade brasileira buscan-
do no “contexto global da sociedade brasileira” as causas que animaram e engendraram o
movimento integralista.
Ao iniciar os estudos do fenômeno integralista, Chasin constata que, em termos
predominantes, o fenômeno integralista foi subsumido a um viés e exame puramen-
te analógicos, vale dizer, o integralismo é equiparado ideológica e praticamente ao
fenômeno nazi-fascista europeu, pois
Enquanto Plínio Salgado, ao longo do tempo, reiteradamente afirma a originalida-
de de seu pensamento, a raiz brasileira de suas idéias e sua distinção do fascismo
europeu, empenhando nisto um esforço contínuo e sistemático, os autores que a
ele se referem têm primado em desconhecer por completo tais argumentos, insis-
tindo exatamente em teses diametralmente opostas /.../ Reduzindo, portanto, os
protestos e as afirmações de Salgado a mero resultado de dissimulações táticas.”7
Assim, ao desenhar a análise predominante do fenômeno integralista, Chasin
salienta que - para estes autores - “o integralismo é um “fascismo”, e as condições
históricas do Brasil de 30 são entendidas como fundamentalmente semelhantes às da
Itália, Alemanha e outros países da mesma época”.8
Em contraste analítico, J. Chasin afirma:
Fragmento da consciência social do Brasil, o integralismo continuava indecifrado,
oculto em convencional e abstrata definição com o fascismo. Determinar sua efe-
tiva natureza, especificá-lo na especificidade brasileira era projeto que se impunha
com grande evidência, no imperativo mais vasto, até hoje sofrivelmente atendido,
de examinar o conjunto, ou pelo menos os momentos principais, dos eventos
ideológicos no Brasil. Foi assim, então, que de fato nasceu este estudo, e que se
restringiu deliberadamente ao ideário de Plínio Salgado9
Tome-se sua argumentação de raiz que muito bem lembra os argumentos do
início da década de 60: J.Chasin examina o fenômeno integralista a partir de suas
reais condições históricas, ou seja, “especificá-lo na especificidade brasileira”. O objeto era
outro, mas o sentido era o mesmo quando autor, em 62, lidava com o fenômeno
janista e o movimento estudantil, pois já havia a inequívoca discordância em relação
a um discurso que, descolado da realidade, tornava-se incapaz de compreender o
fenômeno janista (atribuindo sua explicação às dimensões meramente pessoais) ou,
no que tange ao movimento estudantil, conquanto seus líderes sejam caracterizados

7. José CHASIN, O Integralismo de Plínio Salgado, p.33.


8. Ibid., p.35.
9. Ibid., p.23.

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como subjetivamente incapazes para compreender e identificar o “estágio atual de de-


senvolvimento” da sociedade brasileira e, a partir desta identificação, formular adequa-
damente os objetivos de sua inserção nas lutas sociais. Assim, de modo mais denso e
desdobrado, o ideário chasiniano se consolida na percepção de que a ideação cienti-
ficamente correta não trabalha por analogias abstratas, por universais tão amplos que
permitem toda e qualquer homogeneização de fenômenos intrinsecamente distintos.
Observa-se, assim, a inclinação de que o pensamento deve operar a partir da par-
ticularidade, isto é, é preciso analisar cada caso concreto em sua dinâmica e gênese
própria. De fato, Chasin recusa o domínio de um empirismo grosseiro cuja inob-
servância da realidade conduz o pensamento a impropriedade de, a partir de alguns
elementos topicamente parecidos, estabelecer a unidade e essência entre fenômenos
distintos. É preciso rejeitar análises que desconsideram diferenças importantes ao
uniformizar, no plano ideal, “a realidade de um país economicamente subordinado,
predominantemente agrário-exportador com a de países altamente industrializados e
que já atuam, dentro de particularidades históricas específicas, como pólo dinâmico
do grande capital.”10 Assim, afigura-se a reflexão que se impõe pela objetividade,
vale dizer: o pensar que valida a si mesmo quando ancorado nos ditames da vida
social, no evoluir sensível das dimensões que a compõem e matrizam. Deste modo,
o autor de o Integralismo de Plínio Salgado recusa a análise convencional do fenômeno
integralista, na pena de H. Trindade, ao entender que este cria um modelo mimético que
fundamenta sua análise, tomando-o como ponto de partida arbitrário, onde a história
é forçosamente homogeneizada, isto é, alguns fenômenos historicamente parecidos
entre o Brasil de 30 e a Itália e Alemanha são, no modelo mimético de Trindade,
forçosamente equiparados para explicar o movimento integralista, atrelá-lo mais fa-
cilmente ao fascismo italiano e também, quando necessário, ao nazismo alemão.
Assim, Chasin afirma:
Tudo isto nos permite dizer que, na concepção adotada por Trindade, o mimético
não nasce da “constatação empírica”, já vem dado como possível e politicamente
eficiente no plano teórico-metodológico. É o modelo, a abstração que se impõe
à realidade, e esta, posteriormente “colhida imaculadamente” por “rigorosos”
questionários quantificáveis, nada acrescenta de fundamental, preenche simples-
mente as formas que, em última análise, a criaram, e não a descrevem como se
supunha ser seu objetivo11
A constatação é importante: é “o modelo, a abstração que se impõe à realidade, e esta,
posteriormente “colhida imaculadamente”. De modo que, a realidade torna-se importante
na medida em que se encaixa nos pressupostos metodológicos, vincados e atados a
10. Ibid., p.37..
11. Ibid., p 43.

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J. Chasin e a realid ade brasil eira

modelos à priori. Trata-se da apreensão do fenômeno integralista a partir do modelo,


da figura do totalitarismo. De fato, Trindade procede por modelos, pois o conceito
de totalitarismo do qual faz uso é, de certa forma, um amálgama capaz de englobar
todo e qualquer fenômeno que se apresente como essencialmente violento, de parti-
do único, com concentração brutal de poder e supressão das liberdades individuais.
Assim, o conceito de totalitarismo muito mais embaraça do que os esclarece, pois,
ao
transformar o conceito de totalitarismo na noção chave para a explicação do fas-
cismo, a primeira decorrência é situar todo o problema na esfera do político,
isto é, é descaracterizar o todo histórico que ele representa em benefício de uma
descrição que o encerra na esfera do poder, tomada esta de forma isolada e auto-
suficiente. É encaminhar a explicação do político pelo político, do político por
ele próprio. É pressupô-lo, portanto, independente, autônomo da sociedade civil.
Conseqüentemente, a explicação se faz sem referência ao modo de produção em
que se manifesta; com desprezo pela historicidade do fenômeno; sem preocupa-
ção de investigar as relações infra-estruturais concretas em que emerge.12
Uma vez mais, Chasin ressalta a importância de que o pensamento se vinque
a historicidade, ao concreto sensível que estimula e permite a apreensão conceitual
dos fenômenos; de outro, descarte de todo e qualquer modelo, pois intrinsecamente
um estorvo ao hiper-valorar um elemento da realidade em contraste com os demais
reduzindo, deste modo, a orgânica e estrutura do objeto à simples expressão formal,
vazia de conteúdo.
Então, com formato definido a reflexão chasiniana (em sua tese doutoral) en-
contra o contorno maduro daquela preocupação inicial dos anos 60 em que o pen-
samento desunido da realidade histórica é levado a valorizar, de modo arbitrário,
dimensões psicológicas (a análise convencional do fenômeno janista) ou a hiper-
valorizar fenômenos secundários na gênese e explicação dos problemas. Sendo as-
sim, objetividade (realidade histórica) e subjetividade (tomada em sua capacidade
cognitiva e de intervenção social) são preocupações marcantes e decisivas do ideário
constituído por J.Chasin, vale dizer: identificar as raízes formativas da sociedade
brasileira, suas classes sociais e as condições subjetivas de intervenção e mudança
da sociedade em questão. Isto, como um todo, balizou o centro de seu trabalho
teórico. Deste modo, Chasin é levado a identificar a natureza da burguesia nacional,
sua peculiaridade e limites; de outro emerge a análise da categoria do trabalho e das
condições objetivas e subjetivas de sua intervenção no quadro político e social bra-
sileiro. De modo, que sua tese doutoral é, para além da caracterização da ideologia
pliniana, a caracterização do caso brasileiro e de suas perspectivas, investigação das
possibilidades assentadas nas classes sociais e prospectiva de emancipação humana.
12 Ibid., p 51-52

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Milne y Chasin

A investigação da formação do capitalismo no Brasil, sua gênese e particulari-


dade leva Chasin à determinação concreta da via colonial, quadro que singulariza o
capitalismo brasileiro que se ordenou a partir de condições históricas peculiares (a
condição de colônia). Em verdade, ao lado das indicações clássicas e prussianas de
objetivação do capitalismo comparece, para o autor de o Integralismo de Plínio Salgado,
uma gama de países (entre os quais o Brasil) que emergem para o capitalismo só mui-
to tardiamente e em condições ainda mais adversas se comparadas à exemplaridade
inglesa e francesa, como também, italiana e alemã. E assim, ao se debruçar sobre a
emergência do capitalismo no Brasil, o autor afirma:
É, pois, sob tais circunstâncias, profundamente retardadoras e retardatárias, con-
figurantes de um capitalismo híper-tardio brasileiro, que se põe a industrialização, à
época que nos ocupa, de tal forma que ‘A revolução de 1930 marca o fim de um
ciclo e o início de outro na economia brasileira: o fim da hegemonia agrário-ex-
portadora e o início da predominância da estrutura produtiva de base urbano-in-
dustrial. Ainda que essa predominância não se concretize em termos da participa-
ção industrial na renda interna senão em 1956, quando pela primeira vez a renda
do setor industrial superará a da agricultura’/.../ É o que fundamentalmente nos
competia estabelecer, no âmbito das necessidades do nosso trabalho: a presen-
ça concreta, sim, porém incipiente e ultra-retardatária dos primeiros momentos
significativos da objetivação do “verdadeiro capitalismo” no Brasil, exatamente
nos anos em que o ideário pliniano foi elaborado. Anos que para os países que
efetivamente conheceram o fascismo são, já de algum tempo, de plena atividade
imperialista, e até mesmo uma guerra dessa natureza já se conta em sua história.
Tal a disparidade do estágio de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, em
face daqueles países, que quaisquer igualizações ou identificações, além de impossíveis,
são verdadeiramente uma brutalidade teórica.13
Assim, “a brutalidade teórica” ganha forma e robustez quando
se considera que, em última análise, o que se está equiparando são elos débeis da
cadeia imperialista, portanto fenômenos do capitalismo altamente avançado, entida-
des da fase superior do capitalismo, com uma formação que integra precisamente as
áreas da disputa imperialista, faz parte justamente do território colonial que os elos
débeis forçam por ver redistribuído.14
Em outras palavras, a tese doutoral avança pela determinação e identificação
do capitalismo brasileiro, seu caráter retardatário e os problemas advindos de tal
contextura: o nascimento de uma burguesia frágil, regressiva em suas possibilidades,
antidemocrática por excelência e pragmaticamente politicista; de outro, a categoria do
trabalho cuja lógica e necessidade esteve a reboque do politicismo de nossa burguesia.
De fato, as condições históricas e sociais de nossas classes sociais enformaram os
13. Ibid., p 587.
14. Ibid., p 588.

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J. Chasin e a realid ade brasil eira

horizontes, limites, perspectivas e atos de nossas categorias sociais. Em termos con-


cretos: a emergência do capitalismo nos moldes da via colonial, na situação de ex-colô-
nia, é imposta de fora para dentro, ou seja, a ascensão capitalista é erigida a partir das
burguesias centrais que, historicamente, instalam suas indústrias a partir da década
de 50. Redundando, para, Chasin numa subsunção da burguesia local aos interesses
econômicos das burguesias centrais. É o caso da super-exploração do trabalho, do
arrocho salarial necessário para remunerar as burguesias interna e externamente.
No que se refere à burguesia brasileira, Chasin a identifica a partir de sua raiz
politicista. Politicismo examinado, primeiramente, na vivência do processo eleitoral bra-
sileiro de 1982. De pronto, Chasin caracteriza a situação daqueles tempos: “Principio
por uma afirmação sumária: estamos vencidos porque o processo político eleitoral
foi politicizado por interesse e iniciativa do sistema e pela hegemonia ideológica cas-
tradora a que estão submersas as oposições”.15
Tomemos o centro de seu argumento: as eleições de 1982, as primeiras desde o
golpe militar de 64, estão perdidas, pois imersas no politicismo consciente do sistema
e das oposições. Politicismo que tipifica nossa burguesia, seu perfil e modo de exis-
tência, ou seja,
nossa burguesia, para quem o liberalismo econômico (a livre troca para sustentar e
ampliar sua própria natureza exploradora, através da associação crescente com a
exploração hegemônica e universalizante do capital externo) foi sempre apropria-
do e conveniente, nunca pôde, nem sequer poderia ter aspirado a ser democrática,
tem no politicismo sua forma natural de procedimento. Politicista e politicizante, a bur-
guesia brasileira, de extração pela via colonial, tem na forma de sua irrealização eco-
nômica (ela não efetiva, de fato e por inteiro, nem mesmo suas tarefas econômicas
de classe) a determinante de seu politicismo. E este integra, pelo nível do político,
sua incompletude geral de classe. Incompletude histórica de classe que a afasta,
ao mesmo tempo, de uma solução orgânica e autônoma para a sua acumulação
capitalista, e das equações democrático-institucionais, que lhe são geneticamente
estranhas e estruturalmente insuportáveis, na forma de um regime minimamen-
te coerente e estável. O politicismo atua neste contexto, enquanto produto dele,
como freio e protetor. Protetor da estreiteza econômica e política da burguesia;
estreiteza, contudo, que é toda a riqueza e todo o poder desta burguesia estreita.
Efetivamente subtraí o questionamento e a contestação à sua fórmula econômica,
e aparentemente expõe o político a debate e ao “aperfeiçoamento”. Portanto, atua
como freio antecipado, que busca desarmar previamente qualquer tentativa de
rompimento deste espaço estrangulado e amesquinhado16.
Tome-se, assim, o politicismo conquanto modus operandi de uma burguesia estreita,
incompleta econômica e politicamente. No plano econômico obriga-se à superex-

15. Hasta Cuando? in Miséria Brasileira, p. 123.


16. Ibid., p.124.

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Milne y Chasin

ploração do trabalho, ao arrocho que a nutre em orgânica associação com as bur-


guesias centrais. Nos termos de As maquinas param, germina a democracia, escrito em
1980:
A política econômica do sistema no poder consiste, grosso modo, numa forma
de acumulação capitalista subordinada ao capital estrangeiro, em que a produção
é direcionada para dois pólos principais. De um lado, intensifica-se a produção de
bens de consumo duráveis (automóveis, eletro-eletrônicos e correlatos); para seu
consumo é estruturado, internamente, um mercado privilegiado e reduzido. É o
pacto com o segmento alto das camadas médias. Paralela e combinadamente, é
desencadeado um esforço exportador. Para que tal mecânica funcione, nas con-
dições de um país subordinado ao capital estrangeiro, são necessários o concurso
dos dinheiros internacionais e a aplicação do arrocho salarial sobre a grande mas-
sa dos trabalhadores. O primeiro aparece sob a forma de investimentos diretos
e muito especialmente de empréstimos. O arrocho preserva a existência da mão-
de-obra barata e faculta a produção de bens, ditos competitivos, para o mercado
internacional. É da lógica do sistema remunerar especialmente o capital financeiro
internacional, seus parceiros nacionais e reservar uma parcela para um segmento
privilegiado das camadas médias.; bem como obrigatoriamente implica também
a depressão salarial da massa trabalhadora. Numa palavra, a organização dada à
produção nacional é que determina a avassalante desigualdade na distribuição de
riqueza. Em outros termos, a forma atual da produção da riqueza é que causa
diretamente a superexploração do trabalho, isto é, a miséria das massas trabalha-
doras.17
A orgânica que estrutura a burguesia de extração colonial, notadamente a brasi-
leira emerge de condições históricas assumidamente adversas, vale dizer: a incomple-
tude e estreiteza assinaladas existem, em primeiro plano, conquanto impossibilidade
das classes burguesas, de extração colonial, de operarem economicamente por si,
fazendo valer, autonomamente, seus interesses econômicos. Em termos diversos,
é identificada uma classe social que para se por como classe social é obrigada a
submeter-se, no plano econômico, às exigências de acumulação dos sistemas capita-
listas centrais, isto é, na forma de empréstimos (divida externa e investimentos) que
garantam a produção e reprodução societárias em mão dupla, da burguesia nacional
e internacional. De concreto, temos: o capital externo financia as condições econô-
micas do país, sua produção e aquisição dos meios necessários à produção. Cria-se
uma produção vincada ao mercado externo, pois, internamente a população é maci-
çamente arrochada enquanto hiper-exploração do trabalho permitindo, assim, uma
produção com mão de obra barata (pois na associação com as burguesias centrais, a
burguesia brasileira ao impor o arrocho salarial garantia, necessariamente, as condi-
ções econômicas de remuneração das burguesias) e, por outro lado, a ausência de um
17. As maquinas param, germina a democracia! in A Miséria Brasileira, p. 85.

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mercado interno, induz a produção a voltar-se para o mercado internacional, ainda


que em termos restritos no universo da produção de mercadorias. Assiste-se, assim,
a um duplo movimento: associação e subordinação ao capital internacional; de outro, arrocho
salarial e mercado externo, unidos no tripé que sustenta e alimenta a burguesia nacional. Vínculo
carnal que a tipifica e constitui, ou nos termos de A Miséria da Republica dos Cruzados,
escrito em 1986, cuja tônica remete à transição politicista encapada pelo sistema com a
anuência das oposições. Assim, o autor reitera suas convicções acerca do capital de
extração colonial, gestado no Brasil:
Este, filho temporão da história planetária, não nasceu da luta, nem pela luta tem
fascínio. De verdade, o que mais o intimida é a própria luta, posto que está entre
o temor pelo mais forte que lhe deu vida, e o terror pelos de baixo que a podem
vir tomar. Toda revolução para ele é temível, toda transformação uma ameaça, até
mesmo aquelas que foram próprias de seu gênero. É uma espécie nova, covarde,
para quem toda mudança tem de ser banida. E só admite corrigendas na ordem e
pelo alto, aos cochilos em surdina com seus pares18
De pronto, é retomada a veia politicista de nossa burguesia, proteção que nasce
das condicionantes que a enformam, ou seja, ser politicista, nos termos da burguesia
nacional, significa “tomar e compreender a totalidade do real exclusivamente pela sua
dimensão política e, ao limite mais pobre, apenas de seu lado político-institucional.”19
Em termos desdobrados, a burguesia brasileira opera a
liquefação da rica carnação da realidade concreta em calda indiferenciada, que
é suposta como a política /.../ convertendo a totalidade estruturada e ordenada
do real – complexo real de mediações – num bloco de matéria homogênea /.../
bárbara amputação do ente concreto, que sofre a perda de suas dimensões sociais,
ideológicas e especialmente de suas relações e fundamentos econômicos /.../ Ex-
pulsa a economia da política ou, no mínimo, torna o processo econômico mera-
mente paralelo ou derivado do andamento político, sem nunca considerá-los em
seus contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais, e jamais admitindo o caráter
ontologicamente fundante e matrizador do econômico em relação ao político.20
Em termos concretos, ao supor a prevalência do político sobre a totalidade social, em
especial sobre as dimensões econômicas, a burguesia brasileira opera na direção de
que qualquer mudança (mesmo que mínima) deve-se ater ao universo do aperfeiço-
amento institucional, das regras da convivência democrática; do mesmo modo, tal
prevalência protege os mecanismos auto-reprodutores: o elo econômico vital com
as burguesias internacionais e o arrocho salarial, bases de uma equação econômica
excludente. Assim, ao privilegiar o político, nossa burguesia encontra o lugar de
18. A miséria da república dos cruzados, in A Miséria Brasileira, p. 169.
19. Hasta Cuando? in Miséria Brasileira, p. 123.
20. Ibid, pp. 123-124.

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Milne y Chasin

sua própria equação mesquinha: aperfeiçoar (dentro de limites factíveis) as regras e


formas do poder político em detrimento das questões econômicas que, na particu-
laridade de sua entificação, não podem ser alteradas ou minimamente equacionadas
em patamares menos perversos.
É, pois, desta herança funesta que se nutre nossas oposições, partidos e traba-
lhadores. Então, ao considerar a emergência histórica da esquerda brasileira, nos
quadros da via colonial, Chasin em A Esquerda e a Nova República, texto de 1985, assi-
nala: a “esquerda brasileira /... / não nasceu contra a cabeça e o corpo de um antigo
revolucionário. Não se deparou com uma entificação histórico-social integralizada.
Viu-se em face da integralização histórico-social de um inacabamento”21. É retoma-
do, frise-se, o centro de sua argumentação, pois, ao indicar o inacabamento histórico
de nossa burguesia, Chasin, simultaneamente, explicita o terreno adverso em que
nascem nossas esquerdas e suas perspectivas, ou seja, no espaço de uma burguesia
economicamente subordinada e politicamente incapaz de gestar em termos mais
favoráveis o estado democrático propriamente dito. De modo que a
crítica prática e teórica dos trabalhadores, aqui, não principiou por onde os pro-
prietários haviam concluído. Estes não só não haviam terminado como não po-
dem terminar nunca. E a esquerda bracejou no abismo do inacabamento do capi-
tal, convertida em empreitada de uma obra por finalizar. Obra que, sob a mesma
planta, jamais poderia ser sua /.../ a esquerda principia, neste caso, aquém dos li-
mites da crítica burguesa clássica, e toma os parâmetros abandonados desta como
se fossem os supostos de itinerário e de projeto da burguesia de extração colonial,
dos quais nem esta nem ela própria poderiam pretensamente escapar22.
Inacabamento que, torneando nossa burguesia, imprime ferozmente a tônica
de nossas esquerdas: completar historicamente uma forma particular da burgue-
sia que, em si mesma, é incompleta e inacabável. Assim, as esquerdas tomam por
bandeira e objetivo a criação das condições de uma revolução burguesa que gerasse
maior autonomia econômica e menor pobreza às camadas mais desfavorecidas; de
outro e concomitantemente, a luta pela construção da democracia no Brasil. Ban-
deiras construídas e efetivadas normalmente pelas burguesias clássicas que, no caso
das burguesias coloniais, não se alçavam à condição efetiva. Em termos concretos:
completar a nossa burguesia, ensejar orgânica e acabamento próprios são o cerne
que estimulou boa parte das ações de nossas esquerdas ao imprimirem à luta so-
cial um conteúdo isoladamente antiimperialista, ou seja, tinham por objetivo forjar
uma burguesia nacional autônoma, desgarrada e economicamente autárquica face as
burguesias hegemônicas. Um voltar-se a um nacionalismo redentor das mazelas de

21. A esquerda e a nova república in Miséria Brasileira, p. 159.


22. Ibid, p, 159.

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J. Chasin e a realid ade brasil eira

um capital inconcluso. Plataforma de boa parte da esquerda brasileira que buscava


“o desenvolvimento capitalista nacional, sob a iniciativa e os estímulos do estado,
inclusive como forma de integração/incorporação das massas excluídas”.23 O que,
para Chasin, configura um anacronismo de um modo de ser e pensar a realidade
próprio aos movimentos de esquerda que buscaram integralizar o capital ou mesmo
aperfeiçoá-lo. De fato, Chasin entende que ontem e, especialmente, hoje
pensar a partir do nacionalismo é pensar não apenas a partir das forças extenuadas
de uma perspectiva vencida, mas de um cadáver, em especial e especificamente
para a esquerda, pois é pensar contra a lógica do irreversível movimento histórico
atual, é ser esquerda às avessas, não se guiar pelas possibilidades reais de futuro,
mas a partir de uma lógica esgotada do passado, que no próprio passado se mos-
trou inviável e impossível24
Importa, pois, demarcar que os apegos ao nacionalismo amplamente difundido
nos partidos, sindicatos e organizações da sociedade civil denotam suas raízes na
irrealização histórica das burguesias de extração colonial, atadas economicamente
aos capitais clássicos e prussianos; laços que imprimem, vale reprisar, uma lógica
econômica essencialmente desigual e perversa combinada à regressividade política.
Em verdade, tal contextura acaba por lançar os partidos, sindicatos e oposições de
esquerda para a aventura de se completar o capital, almejando dar-lhe uma face, no
plano econômico e político de autonomia e de democracia, respectivamente. Será,
pois, na bandeira do nacionalismo-estatal que as esquerdas alcançam seu politicismo
e seu próprio fracasso. Querem que o estado seja capaz de regular e administrar o
capitalismo (de extração colonial) para os interesses das massas, como se a correção
de problemas estruturais dependesse, apenas, da mera vontade política. De modo
que em Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista, escrito inacabado de 1998, Chasin
reafirma os problemas de uma esquerda oriunda e imersa no politicismo e na falta
de clareza teórica:
Hoje a discussão fica entre a evocação de discutíveis glórias ou heroísmos passa-
dos e a domesticação ou democratização do capitalismo, a título de uma terceira
via, o que equivale a buscar o bom estado, o estado que funcione, pois o antigo o
nacional-estatista não funcionou (para os de baixo), e o de hoje, o estado-mínimo,
neoliberal, também não; ou seja, estão buscando um capitalismo e um estado pro-
pícios aos de baixo - o que não é apenas não ter bandeiras, mas também buscá-las
onde não pode existir. Mais uma vez a falta de cultura marxista é massacrante25.
Tome-se, em primeiro plano, a tônica nacionalista e politicista da “domesticação
ou democratização do capitalismo /.../ buscar o bom estado (para os de baixo)”. Projeto ilumi-
23. Rota e Prospectiva de um projeto marxista in Revista Ad Hominem, tomo III, política, p.47.
24 Ibid, p. 48.
25. Ibid., p.45.

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Milne y Chasin

nado a partir da crença cega na política, que Chasin qualificou como massacrante falta
de cultura marxista. Assim, o nacionalismo é tido como propositura prática em que
o estado é capaz de equacionar ou minimizar as mazelas típicas do capitalismo e
que se faz ainda mais importante em contextos historicamente mais adversos, casos
dos países de extração colonial. O bom estado, voltado para setores estrategicamente
mais importantes da produção em nome e benefício das populações mais carentes.
Equação política que, no século XX, dominou a prática e o sentimento de inúmeras
organizações progressistas, partidos e sindicatos de esquerda, especialmente atados
às formações capitalistas mais atrasadas. Sentimento que arrasta o estado à condição
de demiurgo da sociedade, ou seja, o estado é encarado positivamente enquanto elo
político a corrigir as disfunções crônicas do capitalismo, de exterminar a miséria ou
de contê-la em níveis menos perversos. É deste politicismo que se nutre a prática das
esquerdas brasileiras, tomando o terreno político (do estado) como condição, talvez
única, da resolução ou contenção de mazelas de um tipo de capital (economicamente
incompleto) e politicamente avesso às formais mais democráticas de dominação. As-
sim, enquadradas em território politicista, as oposições no Brasil desfibrinam as lutas
sociais ao enveredarem para o terreno eminentemente legal, da disputa e das formas
democráticas do poder. Nos termos de A Esquerda e a Nova República:
em vez de partir da materialidade das lutas dos trabalhadores (da cidade e do cam-
po) para atingir e moldar as instituições políticas, tem-se partido do formalismo
destas para atingir e moldar os trabalhadores. Ou seja, tem sido levada aos traba-
lhadores a perspectiva formal das instituições, ao invés de levar às instituições a
perspectiva material dos trabalhadores.26
Apresenta-se, pois, o cerne da crítica chasiniana ao politicismo: os partidos, sindica-
tos e frentes de esquerda operaram e operaram na direção de que o conteúdo pró-
prio das lutas sociais (sua dimensão essencialmente econômica) seja diluída em ma-
triz meramente política, conquanto a solução se enverede para o desenvolvimento e
aperfeiçoamento do aparato político-jurídico do estado. Assim, a vontade política é
hiper-valorada, tudo se restringe, em síntese, em quem será o timoneiro do estado.
De fato, e assim agindo, as esquerdas tornam-se obstáculo à criação de condições
verdadeiramente subjetivas que permitiriam o enfrentamento das urgências sociais,
estampadas nas greves de 78-80:
O retorno depois de muitos anos, dos trabalhadores à cena política brasileira deri-
vava de premências econômico-sociais e continha a perspectiva real de mudanças
estruturais. Barradas e levadas ao refluxo, as lutas operárias e sociais tiveram seu
curso desviado, pela intervenção politicista da ditadura e das oposições, para a
campanha eleitoral de 82. Na seqüência, foi a vez da gigantesca ansiedade popu-
26. A Esquerda e a Nova República in A Miséria Brasileira, p. 154.

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J. Chasin e a realid ade brasil eira

lar pelas mudanças sofrer a canalização para o território institucional das diretas-já,
depressa recodificada em escalada ao colégio eleitoral, em benefício de uma tran-
sição indefinida, rumo a uma suposta democracia só determinada pela falta de
conteúdo27
Tome-se, pois, o argumento em tela que esclarece a prática das esquerdas brasi-
leiras do pós-64: o conteúdo econômico das lutas sociais é posto secundariamente e
a reboque face às exigências de aperfeiçoamento das instituições políticas. Em ver-
dade, comparece a crença de que os problemas econômicos encontram uma solução
meramente política ou que dependam, apenas, da vontade de um governo popular,
amparado em amplo contexto de massas. Horizonte castrador que remete a universo
mesquinho e estéril de apenas questionarem “as formas do poder e nunca o próprio
poder, formas da prática política e nunca a própria prática política”28. Em síntese, as
agremiações, sindicatos e partidos de esquerda no Brasil jamais se interrogaram pela
natureza do poder político (e por extensão do estado) o que, para Chasin, sinaliza, vale
repetir, massacrante falta de cultura marxista. Disto resulta uma esquerda às avessas, cuja
fé na política configura a própria negação de si mesma. Esquerda cujo perfil politi-
cista e a incultura marxista torneiam a natureza de partidos, sindicatos e agremiações
cujos liames ganham o torno de esquerda no gradiente do capital. Assim, em 1989,
no texto A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda, Chasin sustenta a tese inovadora da
morte das esquerdas. No Brasil tal tese engloba as agremiações tradicionais (PCB, PC
do B e sindicatos), como também, da chamada nova esquerda ou esquerda não marxista cuja
exemplaridade é o próprio PT e seus sindicatos. Agremiações eivadas pelo marxismo
vulgar de inspiração stalinista-maoísta e pelo taticismo político. Chasin, então, expõe
seu argumento:
o século e meio de lutas compreendidas entre 1848 e 1989 foi um século e meio
de insucessos e fracassos, onde o “socialismo” real é a derrota culminante dessa
dura história de derrotas. É urgente compreender que as derrotas de hoje são
de natureza totalmente diversa daquelas sofridas no século passado e em princí-
pios deste. Enquanto nas mais antigas, mesmo episodicamente vencidas, a lógica
onímoda do trabalho se afirmou e rasgou perspectivas, nas mais recentes é o
esgotamento de todo um itinerário que se manifesta, envolvendo caminhos e ins-
trumentos. Muito em especial, rotas e ferramentas políticas mitificadas, que não
só não correspondem às concepções clássicas, mas que, na forma aberrante em
que se impuseram e difundiram, acabaram por se converter, em sua espúria iden-
tidade, em motivos fundamentais da própria liquidação da esquerda, enquanto
posição e organização política matrizada pela perspectiva da sociabilidade virtual
do trabalho29
27. Ibid, p. 154.
28. Democracia Direta Versus Democracia Representativa in Revista Ad Hominem, tomo III, política,
p.110.
29. A Sucessão na Crise e a Crise na esquerda in A Miséria Brasileira, p. 201.

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Milne y Chasin

A tese é, pois, original, pois não procura culpados ou meras justificativas para as
mazelas de ontem e hoje. Compreende a falência das esquerdas e a necessidade de se
repor, urgentemente, uma nova perspectiva de esquerda. Nos termos de A Sucessão
na Crise e a Crise na Esquerda:
Vencida até aqui, o que derrota a humanidade para muito além do estreito univer-
so da política, no entanto, a potência onímoda da lógica do trabalho não foi nem
poderia ser extinta, de modo que um futuro renascimento da esquerda, reassen-
tada sobre a autêntica legalidade humano-societária do trabalho, compreenderá
uma diversidade cabal na ordem da organização e efetuação políticas, bem como
na prática das lutas sociais e sindicais, redefinidas em contraste com as “matrizes”
do século XX, o que não implica a ruptura com heranças e princípios legítimos,
que as revoluções do século foram incapazes de respeitar e sustentar. Reconhecer,
em toda a extensão de sua gravidade prática imediata, a morte da esquerda real e
a ressurreição do liberalismo não é, portanto, manifestação de pessimismo, nem
muito menos uma declaração do fim da história. Pelo contrário, é cumprir a exi-
gência revolucionária elementar de aferição objetiva do quadro histórico vigente,
facultada exatamente pela manutenção de perspectivas, que suscita senso crítico
e de realidade, inclusive em circunstâncias de extrema adversidade, como a dese-
nhada nestes finais de século. Quanto mais concreta for a representação do atual
momento desfavorável, tanto mais solidamente poderão ser fundadas as esperan-
ças, pois a morte da esquerda não é a extinção da perspectiva histórica da esquerda30
Tese radical, pois alcança a raiz dos dilemas humano-societários. Enfrenta os
problemas para além das circunscritas dimensões político-organizacionais dos par-
tidos e sindicatos ou dos erros e equívocos de ordem ético-individuais. Reconhece
o tecido apodrecido das agremiações, sua prática improgressiva e a necessidade da
emergência de novas formas da esquerda. Novas formas que obrigariam repensar o
sentido e o significado de ser de esquerda, ainda mais, no atribulado século e meio de
derrotas. É, pois, neste contexto que se insere a emergência da Ensaio: Movimento de
Idéias, Idéias em Movimento.
Tomemos, pois, inicialmente o depoimento do próprio J.Chasin:
Há uns tantos anos, pouco mais de duas décadas, elididas rotas e convicções bem
mais pessoais e remotas, emergiu o projeto Ensaio, antecedente espiritual e passo
primeiro destes novos Ensaios AD HOMINEM. Foi na época, amálgama de dire-
tivas ponderadas, alguma experiência e muita observação das vicissitudes sofridas
pela esquerda brasileira e mundial desde os percalços do pré-6431.
E desdobra,
No início dos anos 80, o panorama nacional exibia a reconversão da ditadura
militar em distensão democrática, ao lado do refluxo aflitivo da movimentação
30. Ibid, pp. 201-2.
31. Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista in Miséria Brasileira, p. 5.

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J. Chasin e a realid ade brasil eira

dos trabalhadores, abatida na seqüência imediata à sua vigorosa reemergência nos


dois últimos anos da década anterior – lampejo marcante, mas episódico, que não
teve alento para engendrar sua auto-sustentação e foi minado pela sua imediata
instrumentalização político-partidária.. O instante exibia também a derradeira fa-
lência da esquerda tradicional e a inconsistência dos credos e propósitos da então
chamada nova esquerda. Tudo transpassado por uma carência antiga, tornada
ainda mais aguda e complexa: a sabida e reiterada falta de produção teórica de
qualidade nos círculos da esquerda organizada, defeito capital cujas raízes tinham
assento, sem falar nos constrangimentos extrateóricos, no desconhecimento do
pensamento marxiano e nas suas versões aleatórias e disformes32
O cenário apontado pelo autor é importante: no Brasil, no início dos anos 80, é
finalizada a transição da ditadura militar para a distensão democrática; processo conduzido
e armado, essencialmente, pelo regime militar evidenciando, deste modo, a falência
prático-teórica da esquerda tradicional e da nova esquerda. A politicização das lu-
tas sociais, instrumentalização político-partidária do movimento dos trabalhadores.
Ausência de produção teórica e desconhecimento da obra marxiana pela esquerda
organizada. É, pois, neste contexto adverso que se esboça, para Chasin, a necessi-
dade de se erguer, a partir de parâmetros novos, o movimento Ensaio. Em termos que
esclarecem:
Afrontando mitos e preconceitos da prática vulgar que engolfou o século, emer-
giu então, não sem alguns enganos e tropeços iniciais, a evidência da prioridade
radical, na ordem das necessidades intrínsecas ao campo da esquerda, de um Mo-
vimento de Idéias, voltado à produção e difusão teóricas e direcionado à redescoberta
da obra de Marx, bem como à tematização da problemática brasileira. Projeto am-
bicioso por seus alvos, foi desde logo equilibrado pela prudência e comedimento
de sua prática intelectual, pretendendo antes rigor no próprio trabalho do que
conquista imediata de influência, muito mais abrir um caminho do que lutar por
reconhecimento, indiferente em especial aos aplausos fáceis, complacentemente
permutados33
Movimento de Idéias pensado e conduzido como necessidade, pois, intrinsecamen-
te novo na recusa e nos procedimentos que se mostraram historicamente falidos e
teoricamente equivocados. Movimento que se põe e expõe no enfrentamento de
uma lógica sindical-partidária organicamente incipiente, viciada em seus erros e pou-
co afeita à auto-reflexão. Movimento, pois,
compreendido e praticado como suposto necessário para uma correta e concreta
intervenção social, exigida e orientada pela lógica humano-societária do trabalho.
Isto sumariza, no quadro nacional, forma diferente ou original de conceber e vir
a exercitar os atos inerentes à prática de esquerda, matrizada pela sua própria inte-
gridade e conduzida à eficácia. Movimento de Idéias como exigência de pressuposto
32. Ibid. PP.5-6.
33. Ibid. P.6.

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Milne y Chasin

incancelável, que deita raízes na exemplaridade de autores e eventos históricos


que, em sua grandeza e perenidade ou na mesquinhez e contingência de sua con-
trafação, constituem a base para o deciframento das revoluções dos séculos XIX
e XX, de cujo balanço emergem lineamentos para as revoluções do século XXI.
Movimento de Idéias afirmado como pré-requisito da disposição e dos dispositivos so-
ciais, legítimos e imprescindíveis à ação lúcida e resolutiva, que jamais foi atendido
nos adventos dos partidos brasileiros de esquerda, sempre tomados nos estreitos
limites da política, e jamais compreendidos como formas categoriais de identifi-
cação social. Entre suas debilidades de origem, essa é uma das fundamentais na
explicação de seus fracassos e falências34.
Assim, o itinerário que ora se fecha não pretendeu e nem poderia pretender ir
além da simples narrativa, do apontar, mais ou menos organizado, de problemas
importantes que moveram e constituíram o ideário de J.Chasin. Espero ter aguçado
o leitor e, se possível, de levá-lo aos textos chasinianos. Se isto ocorrer, está será a
melhor homenagem aos dez anos de sua morte.

Referência Bibliográfica:

CHASIN, J. A Miséria Brasileira, Santo André: Estudos e edições ad hominem, 2000, 367p.
_________. Tomo III, Política. Revista de Filosofia, Santo André: Estudos e edições ad hominem, 2000, 243p.
_________. Manifesto Editorial I in A Burguesia e a Contra-revolução, São Paulo: Editora Ensaio, 1993, 98p.

34. Manifesto Editorial I in A Burguesia e a Contra-Revolução, PP. 7-8.

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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

Chasin e a tese da "via colonial"

Sabina Maura Silva*1


Antônio José Lopes Alves**2
Resumo:
O presente artigo pretende explicitar as principais determinações categoriais e a articulação destas, que cons-
tituem a tese da Via Colonial de desenvolvimento da sociabilidade capitalista. Cunhada por José Chasin como
uma das resultantes teóricas mais importantes de sua pesquisa de doutoramento empreendida em torno do pen-
samento conservador no Brasil, especificamente o Integralismo de Plínio Salgado, a propositura em questão se
apresenta na obra do pensador brasileiro como explicação da rota particular de constituição e consolidação do
capitalismo entre nós, bem como das manifestações político-ideológicas havidas na sociedade brasileira. Ca-
racterizado como de matriz atrófico, dado o caráter incompleto do capital sobre o qual se assenta, o conjunto de
relações que perfazem o capitalismo brasileiro é entendido como uma forma específica e peculiar de entificação
do capital, a qual somente pode ser entendida em remetimento às condições históricas igualmente particulares
da mesma. O que não significa a proposição de um “capital brasileiro”, mas de uma articulação entre as di-
mensões gerais e particulares de desenvolvimento do capital na sociedade brasileira. Além disso, pretende-se
explorar as implicações e prospectivas relativas ao esgotamento ou à superação dessa forma de ser capital pelo
desenrolar histórico mundial recente.

Palavras-chave:
Marxismo; Capital; Capitalismo hiper-tardio; Via Colonial; Brasil.

Chasin and the thesis of “colonial path”


Abstract:
This article identifies the main categorical determinations and their articulation in what represents the thesis
of the Colonial Way of development of capitalist sociability. Conceived by José Chasin as one of the most im-
portant theoretical results of his doctoral research on the conservative thought in Brazil, specifically the Plínio
Salgado’s integralism, the proposition is presented in the work of this Brazilian thinker as an explanation of
the particular route of formation and consolidation of capitalism among us, and the ideological-political mani-
festations held in Brazilian society. Characterized as from an atrophic matrix, due to the , incomplete nature
of the capital on which it rests, the set of relationships that distinguish Brazilian capitalism is understood as a
specific and peculiar form of capital’s objectification which can be understood only considering the Brazilian
specific historical conditions. That does not imply the proposition of a “Brazilian capital” but a link between
the general and individual aspects required for the development of the capital in Brazilian society. Moreover,
the paper is intended to explore the implications and prospects of the Colonial way exhaustion or at least how
this form of being capital was overcame by the changes in recent world history.
Key words:
Marxism; Capital; Hyper-late Capitalism; Colonial Way, Brazil.

* Mestre em Filosofia pela UFMG, doutoranda em Educação pela UFMG, Professora do Instituto Superior
de Ensino Anísio Teixeira da Fundação Helena Antipoff-MG.
** Mestre em Filosofia pela UFMG, doutorando em Filosofia pela UNICAMP, Professor do Colégio Técnico
da UFMG.

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S abina Ma ura S ilva e Antônio José Lopes Alves

Observando-se com atenção e discernimento rigorosos o cenário da produção


marxista no Brasil durante o século XX, percebe-se que uma das contribuições mais
importantes para o conhecimento da realidade nacional é a consubstanciada na
tese da “Via Colonial”. Denominação cunhada por Chasin, tendo como referência
crítica a determinação de “Via Prussiana” (Chasin, 1999, p. 571/572), refere-se ao
modo particular de objetivação do modo de produção capitalista no Brasil e em paí-
ses que tiveram a configuração histórica de extração colonial. É um “modo e estágio
de ser, no ser e no ir sendo capitalismo” (Chasin, 1999, p.568).
Há que ressaltar, inicialmente, a diferença específica com relação tanto à sua
antecedente imediata, acima referida, quanto às demais que pretendem amoldar
cognitivamente a realidade a partir de modelos culturalistas ou antropológicos1. Não
pretende ser, nem pode ser tomada, como um modelo metodológico ou tipo ideal teórico. Ao
contrário, constitui-se em uma compreensão teórico-explicativa de um processo efetivo, de
um modo de ser das categorias que perfazem o capital num ambiente histórico-social deter-
minado. Em outros termos, trata-se da análise de um contexto de relações historicamente
forjadas, em muito distinto daquelas configurações societárias que objetivaram o modo de
produção capitalista da maneira reconhecida por Marx como casos clássicos, especificamente
os processos ocorridos na Inglaterra e na França. Separa-se assim, inclusive, da formação
ideal consagrada por Lênin, a qual Chasin assume como primeiro ponto de partida. Ponto
de partida de um itinerário que não é repetido ou apenas reposto no caminho a ser trilhado,
mas serve como plataforma reflexiva a ser superada pela apreensão dos nexos particulares
efetivos do processo sócio-econômico brasileiro. É o desvelamento argumentativo da pro-
cessualidade concreta do capital conforme se formou e se consolidou entre nós. Dessa ma-
neira, a via colonial é um caminho particular em direção ao “verdadeiro capitalismo”, “posto
pela forma do capital industrial” (Chasin, 1999, p.575). Refere-se à “particularidade de uma
formação imperialisticamente subsumida, e que principia hiper-tardiamente a consecução
da forma industrial de produção” (Chasin, 1999, p. 588). Portanto, “Via Colonial” designa o
processo hiper-tardio de constituição da industrialização brasileira, processo este que se dá
sob a subordinação imperialista. Nesse sentido, a propositura chasianiana não é, pois, uma
forma vazia à espera de conteúdos históricos empiricamente recolhidos, os quais seriam
ordenados por uma taxonomia sociológica ou historiográfica.
Por conseguinte, é uma construção ideal de caráter científico-filosófico que
projeta apanhar ou flagrar as determinações próprias ao processo de objetivação do
capitalismo brasileiro. Tal como identificadas por Chasin, objetivações capitalistas
tardias e hiper-tardias, “não são acompanhadas pelo progresso social que marca os
casos clássicos” (Chasin, 1999, p. 579). Ou seja, o desenvolvimento material está
1. Referimo-nos aqui a abordagens presentes, por exemplo, em Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freire, e
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda.

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Chasin e a tese d a "via coloni al"

dissociado do desenvolvimento social. Esta apreensão se mostra vital para se enten-


der correta e justamente as desventuras e mazelas reconhecidas no desenvolvimento
da vida social brasileira; pense-se a este respeito na irresolução crônica da questão do
Estado, para não referir à já igualmente maltratada, prática e teoricamente, demanda
social, sempre confundida, em sua emergência e enfrentamento, com desafios pos-
tos pela falta de “vontade política”, de “solidariedade” e de administração proba de
“políticas sociais”. A tese da Via Colonial impõe na enunciação de seus pressupostos
e argumentos, bem como na conseqüência rigorosa de suas implicações, teóricas e
ideológicas, a recusa decidida dos modos habituais de se pôr os problemas da difu-
são aparentemente desproporcional da riqueza socialmente produzida, porquanto
identifica na particularidade do processo brasileiro a constituição igualmente pecu-
liar das estruturas que equacionam e regulam o fluxo da corrente de distribuição.
Tomando por base o preceito marxiano da determinação das formas de distribuição
por aquelas da produção, Chasin arrima o formato da sociedade brasileira na sua
constituição histórica concreta. Desse modo, a
(...) decisão estruturante (que se dá no interior das nações: “onde na imediaticidade é decidido quem vive
e come, material e espiritualmente, e de que maneira”) diz respeito, em suma, à relação entre evolução
nacional e progresso social e /.../ é muito diversificada no interior da universalidade do capital. Retoman-
do os exemplos da história da França e da Inglaterra, constata-se que ambos se apóiam e estimulam
mutuamente, em contraste com o que se passou na Alemanha, onde a evolução nacional se afirmava
contra o progresso social. A contraposição, sob as condições de existência geradas pela via colonial, é
ainda mais perversa, porque a evolução nacional é reflexa, desprovida verdadeiramente de um centro
organizador próprio, dada a incompletude de classe do capital, do qual não emana nem pode emanar
um projeto de integração nacional de suas categorias sociais, a não ser sob a forma direta da própria
excludência do progresso social, até mesmo pela nulificação social de vários contingentes populacio-
nais (Chasin, 1989, p.49).

Perversidade histórica que não é fruto simplesmente de uma debilidade antro-


pológica das classes dominantes em se fazerem como tais no sentido de um mínimo
progresso humano universalizado ou, pior ainda, por uma maldade e/ou idiotia ina-
tas, e sim por via de conseqüência do processo histórico no qual se deu efetivamente
a invenção do Brasil. O que não significa a construção de uma mera genealogia do capi-
tal brasileiro, coisa tão a gosto das humanidades atuais levadas em sua discursividade
pelos caminhos das correntes filosoficamente dominantes, de extração nietzscheanas
e heideggerianas. Ao contrário, a reflexão de Chasin propõe a reconstrução catego-
rial do desenvolvimento histórico de uma formação social concreta, e não apenas a
narrativa do incremento de um gérmen cuja “face é a de um embrião maldito conde-
nado a uma gestação eterna. Cresce e encorpa na reprodução de sua incompletude,
engrossando sempre mais os cordões umbilicais que o atam às fontes que o tolhem

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173
S abina Ma ura S ilva e Antônio José Lopes Alves

e subordinam” (Chasin, 2000, p. 158). História que se tece com fios a esgarçar-se a
cada trama urdida no tear das relações societárias capitalistas no Brasil. Apartamento
de fios, separação da urdidura que perfaz não o nada, mas uma dada configuração de
ir sendo capital, que se revela incompleto em seus momentos de inflexão e de repro-
dução sócio-econômica, assim como desvela a sua própria incompletude como um
dos traços distintivos de sua totalidade concreta. Totalidade de relações de produção
que, na sua figura castrada e claudicante, foi-se consolidando temporalmente como
um modo particularizado de articulação das categorias do capital em terras brasi-
leiras. Modo de ser das categorias que explica e implica em sua atrofia original, em
sua figura lacunar primitiva, continuamente reproduzida e ampliada, em associação
necessariamente subordinada com os capitais centrais, as diversas incompletudes
sociais que dilaceram a sociabilidade brasileira, e elevam a potências inimagináveis
os dilaceramentos imanentes à ordem do capital enquanto tal:
Desprovido de energia econômica e por isso mesmo incapaz de promover a ma-
lha societária que aglutine organicamente seus habitantes, pela mediação articu-
lada das classes e segmentos, o quadro brasileiro de dominação proprietária é
completado cruel e coerentemente pelo exercício autocrático do poder político.
Pelo caráter, dinâmica e perspectiva do capital atrófico e de sua (des)ordem social
e política, a reiteração da excludência entre evolução nacional e progresso social é
sua lógica /.../ (Chasin, 1989, p.49).
Consolidação histórica concreta de um modo de capitalismo que fez da repro-
dução de sua rombuda limitação o meio próprio de ir existindo como forma mo-
derna de sociabilidade. Frise-se forma moderna, na medida em que nunca se tratou da
reedição curiosa e intempestiva de modalidades de ordenamento sociais já superadas
nas sociedades centrais. Não sendo a permanência de restos feudais ou coisa parecida,
nem que seja pela razão de que empiricamente a brasilidade se gesta no interior de
um processo econômico já ele mesmo tipicamente moderno. É a processualidade da
existência de uma forma atrófica de capital, com todo o séquito de relações sociais
que o acompanham necessariamente:
Em síntese, à via colonial de efetivação do capitalismo é inerente o estrangulamento
da potência auto-reprodutiva do capital, a limitação acentuada da sua capacidade
de reordenação social, e a redução drástica da sua força civilizatória. Desse modo,
ao mesmo tempo que encobrem por inacabamento, seus processos empuxam, pela
via da irresolução crônica das questões mais elementares, a contradição entre capital
e trabalho (Chasin, 1989, p.49).
Essa particularidade de desenvolvimento, a reprodução continuada e ampliada
de uma restrição, realiza-se plenamente na ausência de uma revolução propriamente
burguesa, ou ainda na sua impossibilidade original e visceral. Desse modo, o “novo”

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Chasin e a tese d a "via coloni al"

emerge sem que haja a superação do “velho”. A política, tão identificada – e pouco
compreendida – da formação de frentes e/ou de direcionamento de processos por
meio de compromissos, os quais excluem obrigatoriamente qualquer menção a rup-
turas concretas e a demarcações históricas, encontra, a partir da compreensão da Via
Colonial, então, a sua explicação:
Na particularidade da formação do capitalismo brasileiro /.../ [é] marcadamente
próprio desta a conciliação entre o historicamente velho e o historicamente novo,
de tal forma que o novo paga pesado tributo ao velho no seu processo de emersão e
vigência, o confronto entre as componentes agrária e industrial do modo de pro-
dução capitalista, no caso brasileiro, teria forçosamente de assumir modalidade
específica; digamos assim, formas abrandadas e veladas (Chasin, 1999, p. 566).
A história brasileira do capital, como historicidade concreta da incompletude e
da não ruptura, engendra a figura de suas personæ, como formas peculiares de indi-
viduação e de classes sociais capitalistas. O que se gestou na rota de constituição da
forma social capitalista brasileira foi uma burguesia à imagem das relações sociais
de produção do capital que aqui vicejaram. Capital atrófico e, por conseguinte, atro-
fiante, que circunscreve e, no caso específico, adstringe o campo de possibilidades
societárias. Incompletude de classe no âmbito econômico, no que tange às formas
de organizar a extorsão social de mais-valor, a qual se expressa, conseqüentemente,
no âmbito político, como uma espécie de inapetência para o domínio propriamente
moderno. O que a ela restou foram as ilusões próprias à politicidade em geral, sem
compartilhar das potencialidades sociais. Como bem observa Chasin,
Desprovido de energia econômica e por isso mesmo incapaz de promover a
malha societária que aglutine organicamente seus habitantes, pela mediação
articulada das classes e segmentos, o quadro brasileiro de dominação proprie-
tária é completado cruel e coerentemente pelo exercício autocrático do poder
político (Chasin, 1989, p.49).

Logo, “Politicista e politicizante, a burguesia brasileira, de extração pela via colo-


nial, tem na forma da sua irrealização econômica (ela não efetiva, de fato e por intei-
ro, nem mesmo suas tarefas econômicas de classe) a determinante de seu politicismo”
(Chasin, 2000, p. 153). Por esse motivo, a burguesia brasileira
Nunca foi a cabeça de sua própria criação e nunca aspirou a não ser não ter aspi-
rações. Não consumou suas luzes políticas, porque só abriu os olhos quando estas
já estavam extintas. Nunca teve que desacreditar do ideal do estado representativo
constitucional, simplesmente porque este nunca foi seu ideal de estado. Também
não abandonou a salvação do mundo e os fins universais da humanidade, porque
sempre só esteve absorvida na salvação amesquinhada de seu próprio ser mes-
quinho, e seus únicos fins foram sempre seus próprios fins particulares (Chasin,
2000, p. 159).

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S abina Ma ura S ilva e Antônio José Lopes Alves

Modo de ser do capital atrófico que determina e condiciona o desenho não ape-
nas das classes que dominam a produção, e exercem este domínio politicamente de
maneira canhestra, mas igualmente daquelas a estas contrapostas pela divisão capi-
talista do trabalho. A figura social do trabalho, como expressão em classe, do funda-
mento real da produção do capital – uma vez que é impossível ser processo de produção
do capital sem ser imediatamente processo de produção, de trabalho – acaba também
se realizando como forma de ser social incompleta. E isso, tanto em sua figuração
concreta, no processo imediato de produção, como nível baixo ou retardatário de
capacitação, quanto na expressão política de sua antítese social ao capital, na pessoa
de suas agremiações de classe ou políticas. A incompletude de classe da burguesia
brasileira determina a incompletude de classe dos trabalhadores:
A esquerda brasileira, portanto, não nasceu contra a cabeça e o corpo de um
antigo revolucionário. Não se deparou com uma entificação histórico-social inte-
gralizada. Viu-se em face da integralização histórico-social de um inacabamento.
/.../ A crítica prática e teórica dos trabalhadores, aqui, não principiou por onde
os proprietários haviam concluído. Estes não só não haviam terminado, como
não podiam terminar nunca. E a esquerda bracejou no abismo do inacabamento
do capital, convertida em empreiteira de uma obra por finalizar. Obra que, sob a
mesma planta, jamais poderia ser sua (Chasin, 2000, p. 159).
Assim, como modo de ser da articulação das categorias do capital, a via de cons-
tituição do capitalismo brasileiro determina como espelhamento da incompletude
de seu fundamento semelhante inacabamento da persona social a este contraposta.
Persona social ou classe que enfrenta a dos detentores da massa de condições so-
ciais objetivas da produção como capital no terreno minado por uma incompletude
imanente e inerente. Capital que se reproduz na atrofia de sua essência e condiciona
a predicação social e política de suas expressões como conflito entre classes. Como
imagem especular do inacabamento do capital, a prática conflituosa específica do
caso brasileiro impõe, curiosamente, às classes trabalhadoras, não o repto histórico
de derrubar a forma social capital, mas sim de realizá-la de maneira completa. O que
de per se se constitui num escândalo histórico-social, que vai caracterizar a anomia e a
anemia das lideranças do trabalho e de suas expressões políticas. Conseqüentemen-
te,
A esquerda brasileira nasce, portanto, submersa no limbo, entre o inacabamento de
classe do capital e o imperativo meramente abstrato de dar início ao processo de
integralização categorial dos trabalhadores. Alma morta sem batismo, não atina
para a natureza específica do solo em que pisa, nem para a peculiaridade de pos-
tura e encargo que este chão dela demanda e a ela confere.
Posta entre a mera possibilidade genérica de uma revolução abstrata, e a reali-
dade concreta de um capital incompleto e incompletável, a esquerda sucumbe,

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Chasin e a tese d a "via coloni al"

naturalmente, à presença real e às tensões e pressões efetivas da segunda. Entre a


idealidade esgarçada de uma revolução incogitável e o credo na finalização neces-
sária do capital, é arrastada para o objetivismo da empreitada que visa à última. É a
subsunção aos nexos mortos do que fora a lógica do capital concluso. É a submis-
são à lógica extinta do ideário liberal. No caso, duas vezes morta: a primeira vez,
enquanto cadáver ideológico da própria burguesia de ‘tipo europeu’; a segunda,
enquanto fantasma de empréstimo do conservantismo civilizado, boneco ‘liberal’
na ventriloquia da autocrática burguesia brasileira. O devaneio de principiar a inte-
gralização de classe dos trabalhadores reduz-se a miserável voto piedoso. Ao mes-
mo tempo, a empresa impossível de levar à completude o capital incompletável
amesquinha-se, progressivamente, em simples e melancólico ativismo caudatário
(Chasin, 2000, p. 159-160).
A tese da Via Colonial, nesse contexto, auxilia sobremaneira na iluminação das
causas dos vícios e das vicissitudes que assolam e flagelam as esquerdas brasileiras
no terreno das contendas sociais e políticas. Compreendem-se então os problemas
particulares da esquerda no Brasil não por uma reflexão de cunho moral ou pelo
diagnóstico abstrato da incapacidade congênita à propositura revolucionária, mas
pelo remetimento daqueles ao desenho da totalidade das relações sociais capitalistas
em sua forma particularizada. Totalidade que pode aparecer, por conseguinte, agora,
como conjunto particular de nexos de produção e reprodução do capital, que perfaz
a miséria brasileira:
A conjunção entre o embrião maldito do capital incompletável /.../ e a insubs-
tancialidade teórica e prática da esquerda organizada, é a determinação da miséria
brasileira.
Miséria brasileira é determinação particularizadora, para o âmbito do capital e do
capitalismo de extração colonial, da fórmula marxiana de “miséria alemã”. Com-
preende processo e resultantes da objetivação do capital industrial e do verdadeiro
capitalismo, marcados pelo acentuado atraso histórico de seu arranque e idêntico
retardo estrutural, cuja progressão está conciliada a vetores sociais de caráter infe-
rior e à subsunção ao capital hegemônico mundial. Alude, portanto, sinteticamen-
te, ao conjunto das mazelas típicas de uma entificação social capitalista, de extra-
ção colonial, que não é contemporânea de seu tempo (Chasin, 2000, p. 160).

II

O quadro assim delineado da via particular de realização do capital no Brasil,


não obstante bem caracterizado, restaria ele mesmo incompleto sem sua referência
determinativa à reprodução do capital em sua forma completa, uma vez que a de-
terminação do capital em sua figura atrófica se dá por sua ligação particular com o
circuito principal do capital. Nesse âmbito, pode-se observar outra virtude teórica da
tese da Via Colonial, dado que escapa tanto da tendência de assinalar unilateralmen-

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S abina Ma ura S ilva e Antônio José Lopes Alves

te as determinações externas, como o fazem certas posições do marxismo terceiro-


mundista, quanto o contrário abstrato destas, que acentuam empírica e abstratamente
o caráter vicioso das relações de produção e de suas personæ como tipos ideais. No
primeiro caso, a incompletude do capital aparece como resultante de uma trama
malévola do capital central, cabendo como resposta a enunciação de um projeto de
país. No segundo caso, como ausência de modernização do circuito interno, a qual se
cumpriria pelo caminho privilegiado das grandes armações de cunho político que
tornariam possíveis pactos e ajustamentos de posições para a reconfiguração do
Estado e dos liames societários.
Na recusa decidida tanto de uma quanto da outra ponta da concorrência acadê-
mico-ideológica, a propositura chasiniana procura compreender a incompletude do
capital interno por sua referência necessária aos movimentos e inflexões do capital
como sistema de produção global. Globalidade essa que se acentua e exerce uma
sobredeterminação crescente quanto mais a rede inerente de interdeterminação da
produção do capital, seja entre seus ramos, seja entre seus nichos geográficos, pro-
gride e tende à posição de si como sistema da totalidade da produção humana. A relação
capital subordinante – capital subordinado, portanto, emerge como o segredo oculto
pelos sortilégios do capital, tanto do caráter necessariamente subordinador e assimé-
trico das relações entre economias, quanto das carências e padecimentos imanentes
a cada uma delas. Causa secreta que, certamente, sofre transmutação na forma das
articulações – não sendo, portanto, lícito sustentar o Imperialismo como categoria ex-
plicativa da realidade do capital mundializado – mas que nem por isso torna o mun-
do do capital o melhor dos mundos, com a inauguração de uma meritocracia econômica
de natureza simétrica em escala mundial. As economias não participam todas em
um mesmo patamar do circuito de trocas múltiplas e multilaterais que caracterizam
o mercado mundial:
É sabido que a mundialização do capital subsume formações sociais distintas e
engendra desenvolvimentos desiguais e combinados. /.../ O que importa ressaltar
/.../ é que pela via colonial da objetivação do capitalismo, o receptor tem de ser
reproduzido sempre enquanto receptor, ou seja, em nível hierárquico inferior da
escala global do desenvolvimento. Em outras palavras, pelo estatuto de seu ar-
cabouço e pelos imperativos imanentes de sua subordinação, tais formações do
capital nunca integralizam a figura própria do capital, isto é, são capitais estrutu-
ralmente incompletos e incompletáveis ( Chasin, 1989, p. 41).
Como totalidade de relações inter-econômicas, a interação entre capitais, em
suas formas subordinadas e subordinantes, exige como espaço de circulação e re-
produção do capital global essas modalidades, isto é, a incompletude de umas como
pressuposto da completude de outras. Portanto, o capital atrófico é incompletável

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Chasin e a tese d a "via coloni al"

em função da relação que mantém com o capital subordinante. A incompletude do


capital atrófico é a condição de possibilidade para a reprodução do capital subordi-
nante.
Julgamos aqui estar a chave para o entendimento do fim da via colonial, como
modo particular de produção e reprodução do capital no Brasil. Esta se encerrou
não em função de sua resolução, mas em função da reconfiguração do padrão de
acumulação do capital, ou seja, em função da superação do capital monopolista pelo
capital globalizado. Neste sentido, a subordinação brasileira se põe em outro plano: o
desaparecimento do capital atrófico em função da integração desigual. Acabamento
que não põe necessariamente a solução das inviabilidades, mas as repõe num nível
novo de determinação internacional do capital, a qual se buscará esclarecer a seguir.
Chasin observa, no texto A Sucessão na Crise e a Crise da Esquerda, que uma su-
peração da via colonial poderia se dar a partir de uma reorganização do “sistema de
produção, [que] sem perseguir a superação do modo de produção, [promoveria] a
desestruturação dos aspectos mais gravosos da efetivação do capital atrófico e de
sua (des)ordem societária” (Chasin. 1989, p. 47), configurada por ele no que deno-
minou de Primeira Transição. Tal ocorreria no contexto de uma alteração essencial
de algumas mediações chave da organização do capital no Brasil, que indicaria a
virtualidade, não a necessidade fatal, de uma superação, em longo prazo, do sistema
do capital enquanto tal. Há que evidenciar, no entanto, que a “via colonial” não foi
superada por uma reconfiguração interna, uma vez que não se deu a reorganização
da produção, aludida naquela ocasião.
Chasin retoma a questão, na década seguinte, no texto “O Poder do Real”, pu-
blicado como verbete relativo ao Brasil, em O Mundo Hoje 95/96, apontando, por ou-
tro lado, as perspectivas de integração do país no atual padrão de acumulação capita-
lista, caracterizado pela produção e circulação globalizada. Entende a mundialização
do capital como processo atravessado e enviesado por desenvolvimentos desiguais,
marchas e contramarchas, “uma via geradora, em suma, também de contraditorie-
dades sem precedentes, tanto por seus conteúdos, quanto pelo gigantismo de seus
efeitos” (Chasin, 1996, p. 102). Atentando que não se trata apenas de uma mudança
conjuntural de rumos ou de natureza geopolítica, mas de uma verdadeira metamor-
fose sistêmica, em que as relações de subordinação de capitais ganham a forma da
interdependência financeira e da mobilidade incessante e incontornável dos capitais
em suas diversas formas (mercadorias ou dinheiro em-si), o que reformula o circuito
anterior, tornando impossível a manutenção do esquema antecedente, ao menos em
sua integralidade e imediatidade:

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S abina Ma ura S ilva e Antônio José Lopes Alves

O sistema produtivo nacional, desde sempre, encarnou seus perfis e o teor de suas
modernizações subordinado aos empuxos dos pólos hegemônicos mundiais. Não
é diverso o que se passa agora, diante da mais radical das revoluções tecnológicas,
combinada ao quadro da globalização econômica (idem).
Nesse sentido, o Brasil sempre esteve inserido no quadro de uma economia in-
ternacionalizada. “Todavia, dada a qualidade e a envergadura destas e o próprio grau
de desenvolvimento material alcançado no país, as margens de manobra nos ajustes
e seus efeitos possíveis também se diferenciam, ao mudarem de natureza” (ibidem).
É importante ressaltar que Chasin chama a atenção para a mudança de natureza do
processo de acumulação e reprodução do capital, a qual determina a mudança de
natureza da subordinação brasileira. É, pois, neste sentido que pode se entender o
“fim da via colonial”, dado que,
Para o bem e para o mal, aqui se fecha e fica para trás um longo ciclo, cujas ca-
racterísticas dominaram a maior parte do cenário brasileiro neste século. Traços
que reduzidos ao essencial, conferiram ao país o semblante de uma entificação na-
cional que pelejava para completar sua formação capitalista, mas que reproduzia
sempre, apesar da multiplicação das formas de crescimento e diversificação eco-
nômicas, a incompletude de seu capital e, por conseqüência, suas peculiares mazelas
sociais e políticas. Toda essa problemática perdeu suas âncoras e se transfigurou,
no bojo dos novos parâmetros internacionais do sistema de produção e circulação
de mercadorias (Chasin, 1996, p. 104).
De modo que o fim da via colonial se deu em função do ultrapassamento da
lógica do capital que a enformava: “os contornos de uma produção de mercadorias
ainda delimitada ou de escala relativamente modesta, cuja circulação era efetivada,
em regra, no âmbito bilateral de mercados mais ou menos restritos e cativos, sob a
regência das potências centrais” (Chasin, 1996, p. 105). Dado a isso é que o receptor
tinha que necessariamente ser reproduzido enquanto tal. Agora, em face da “produ-
ção ampliada a grandezas sem limites e o intercâmbio comercial elevado ao primado
das trocas infinitas e superpostas, sem embaraços de fronteira” (idem), as delimitações
sistêmicas alteram as exigências do padrão produtivo interno do capital, não mais
como potência subordinada diretamente, por meio do financiamento externo de sua
reprodução, a um dado capital localizado, pois
crescer passou a supor a capacidade de ocupar nichos na infinitude da malha de
produção atualizada, universo no qual os mercados interno e externo não mais
se distinguem: ao capital social global corresponde agora o Mercado Único das
trocas levadas ao paroxismo” (ibdem).

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Chasin e a tese d a "via coloni al"

Chasin, por isso, considerava


(...) impensável o Brasil dissociado das novas tecnologias e do mercado globali-
zado. Até porque, independentemente de todas as inconsistências peculiares com
que as tenha percorrido até aqui, as trilhas do país sempre estiveram imbricadas
nos avanços mundiais dos meios de produção e à dinâmica das trocas internacio-
nais (Chasin, 1996, p. 104).
Face a isso, julgava que “no caso brasileiro, a transição demandada é antes uma
regulagem de caráter jurídico, por certo de largo alcance, do que uma reviravolta na
essência das coisas” (Chasin, 1996, p. 104/105), uma vez que o que ocorreu foi uma
mudança de natureza na relação do Brasil com a dinâmica internacional. Outrossim,
considerava que:
O Brasil, no futuro imediato e palpável, é do grupo restrito de nacionalidades pe-
riféricas que maior proveito pode tirar da nova forma de acumulação ampliada do
capital. Em verdade, não tem alternativa: ou participa desta civilização ou envereda
pela estagnação degenerativa. Pelo seu porte econômico, cultura e modernização
tecnológica e a recém-adquirida estabilidade política, tem inserção produtiva asse-
gurada nos planos regionais e internacionais, inclusive pela experiência acumulada
no comércio exterior. As reforma constitucionais no plano econômico buscam
homologia e coerência, em relação à nova lógica do sistema, dos movimentos
financeiros e do fluxo dos investimentos, abrindo espaços às inversões nacionais
e estrangeiras na alavancagem do crescimento. Pelo seu potencial, em uma década
ou duas, o país poderá estar alçado em alguns graus no quadro dos mais abonados
(Chasin, 1996, p. 105).

III

Portanto, a “via colonial” é uma particularidade de objetivação capitalista, relati-


va a um determinado padrão de acumulação do capital. É um modo particular de um
padrão específico de universalidade do sistema do capital. Com a superação desse
padrão, tem-se a conseqüente revogação do modo particular caracterizado pela via
colonial. Com o seu ”fim”, conforme observa Chasin em um escrito postumamente
publicado,
(...) a lógica e as possibilidades do desenvolvimento autônomo capitalista desapa-
receram, mesmo como simples modernização subordinada, se restrito à dinâmica
no interior das fronteiras nacionais, pois no perímetro destas só resta o latejamen-
to de problemas, não mais a dinâmica das soluções. Na globalização as diferenças
não desaparecem, é o que dramatiza a transição [de uma economia pré-globaliza-
da para uma economia globalizada], mas não a susta. Todavia, a globalização na
forma da alienação barra estruturalmente o saber humanista (Chasin, 2001, p.74)

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Alteração de padrão de acumulação que, entretanto, não significa uma cabal


transformação social, com a revogação das formas características de ser social do modo
capitalista de produzir a vida humana. É uma alteração da natureza do capital, da-
quele cujo centro da reprodução global se situava na relação imperialista ou financista
entre capitais subordinados e subordinantes, para aquele que se determina como
arrimado no movimento multilateral dos capitais particulares, numa rede de interde-
pendência crescente. Mas é também, e principalmente, uma mudança de natureza do
capital. Ambiente de interdependência que não implica, por outro lado, a afirmação
de uma indeterminação ou de uma equivalência, sequer aparente, entre os capitais
que se trocam e circulam mundialmente. A chamada globalização, que outra coisa não
é senão o conjunto dos movimentos de constituição do que Marx denominava de
Weltmarket, não coloca em pé de igualdade absoluta, senão na mera alçada formal, os
entes da troca mundial; as diversas economias e a capacidade reprodutiva no tempo
de cada uma delas. Processos econômicos nacionalmente dados e constituídos que
são forçados a se adequar a determinados protocolos de universalização da produ-
ção capitalista. Protocolos que passam a exigir igualmente certas alterações de monta
em mediações específicas, como a do equacionamento da produção e a da relação
desta com o Estado.
Neste sentido, embora se tenha modificado a natureza da acumulação capita-
lista, embora tenha findado a “via colonial”, terá a burguesia nacional alterado seu
padrão de comportamento? Quanto a isso, vale frisar, com Chasin:
A globalização não é uma política, nem a prática política tem força e capacida-
de para engendrar a globalização e as forças produtivas que, mais do que tudo,
subjazem ao processo, a política não é capaz de engendrar ou de se contrapor à
globalização. Por isso a política, na transição para a globalização, ou se torna seu
agente inteligente ou brutal, ou se manifesta como agente perturbador de curto
fôlego (Chasin, 2001, p. 75).
A globalização aparece como processo inerente à lógica do capital, e não como
forma de dominação política, não obstante tenha de engendrar a sua. O que está em
marcha como processualidade contraditória de universalização da produção é um
estágio complicadíssimo, em parte, inclusive, por sua natureza inicial, de acumulação
mundial. Forma de produzir e acumular global que não se contrapõe ao capital, mui-
to embora adensem ao mesmo novas modalidades de contradição de monta:
A globalização como efeito da acumulação de capital principiou com a forma-
ção dos estados nacionais a partir das cidades-estado. Do Renascimento aos dias
atuais tivemos, então, estados nacionais, colonização, imperialismo, e agora a ex-
pansão alcança a circunscrição de todo o espaço planetário. Quem estiver ou ficar
fora, deixa de existir, pois tenderá a regredir e degenerar (Idem).

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Chasin e a tese d a "via coloni al"

A tematização chasianiana em torno da globalização do capital, não obstante tenha


levantado em seus aspectos gerais uma série de elementos e determinações centrais,
permaneceu incompleta, até por conta da fatalidade da morte extremamente preco-
ce de seu autor. O que demanda, da parte de quem deseja alcançar um olhar lúcido
sobre as prospectivas humanas, uma compreensão objetiva da nova configuração do
real, principalmente levando-se em conta os atuais desdobramentos em curso – a
primeira grande crise do mercado mundial. E isso tanto mais urgente quando se ob-
serva como “solução” apresentada, seja pelos sicofantas de sempre do capital, seja pe-
los que ainda se arrogam “de esquerda”, nada mais nada menos que a administração
político-moral do ambiente que gera, e não tem como não engendrar, crises e mais
crises... Posição essa que pressupõe uma oposição abstrata entre capitais especulativos
e capitais produtivos, como se os primeiros não pressupusessem os segundos e estes
últimos nada mais fossem que a forma final da produção capitalista, ou seja, a meta
dos capitais individuais invertidos na extração de mais-valor; a transformação final de
capital-valor na mercadoria em capital como tal.

Referências Bibliográficas:

Chasin, J. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio, Belo Horizonte: UNA
Editora/Estudos e Edições Ad Hominem, 1999.
_______. A Miséria Brasileira: 1964-1994 – do golpe militar à crise social, São Paulo: Estudos e Edições Ad Ho-
minem, 2000.
_______. O poder do real, in O Mundo Hoje 95/96, São Paulo: Editora Ensaio, 1995.
_______. Rota e prospectiva de um projeto marxista, in Ensaios Ad Hominem, número 1, tomo III, São
Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 2001.
_______. A Sucessão na Crise e a Crise da Esquerda, in Ensaio 17/18, São Paulo: Editora Ensaio, 1989.

Edi ç ão Esp e c i al : J. Cha si n

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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico


típico da "via colonial". Os integralismos.*1
Antonio Rago Filho**2
Resumo:
A historiografia convencional, descartando as especificidades sociais do solo histórico, identifica o integralismo
ao fascismo por meio do recurso mimético, fenômeno à mercê dos influxos externos. A ideologia integralista
se configura como uma utopia reacionária que intenta frear o desenvolvimento da industrialização e das forças
produtivas materiais, haja vista que a progressividade do capital industrial in limine levaria ao comunismo, ao
materialismo e ao fim da religião. Um dos primevos partidos de massa, a Ação Integralista Brasileira (1932-
1937) constituiu-se numa frente de direitas, com Plínio Salgado à testa, que ambicionava a instauração de um
estado integral forte por meio de uma revolução espiritual ancorada na doutrina social da Igreja. José Chasin
efetiva uma verdadeira revolução historiográfica, afirmando que, ao revés de ser homólogo do fascismo, o inte-
gralismo é uma utopia reacionária, forma particular de anticapitalismo romântico da via colonial de objetivação
do capital no Brasil.

Palavras-chave:
Integralismo; Utopia Recionária; Revolução Espiritual; Anticapitalismo Romântico; Capitalismo hiper-tardio.

J. Chasin: the ontological critique to the romantic anti-


capitalism typical of the “colonial via”. The integralisms.
Abstract:
The conventional historiography, discarding the social particularities of the historical ground, identifies the
integralism with the fascism through the mimetic resource, a phenomenon at the mercy of external influences.
The integralist ideology takes shape as a reactionary utopy that tends to restrain the development of indus-
trialization and the material productive forces, considering that the progressivity of the industrial capital “in
limine” would lead to the communism, the materialism and the end of religion. The Brazilian Integralist Action
(1932-1937), one of the initial mass parties, was constitutued as a front of rightists, with Plinio Salgado at the
head, and aspired to the institution of a strong, integral state, by means of a spiritual revolution anchored in
the social doctrine of the Church. José Chasin accomplished an actual historiographic revolution stating that
instead of being homologous to the fascism, the integralism is rather a reactionary utopia, a peculiar form of
romantic anticapitalism of the colonial via, objectifying the capital in Brazil.specific historical conditions. That
does not imply the proposition of a “Brazilian capital” but a link between the general and individual aspects
required for the development of the capital in Brazilian society. Moreover, the paper is intended to explore the
implications and prospects of the Colonial way exhaustion or at least how this form of being capital was over-
came by the changes in recent world history.
Key words:
Integralism; reactionary utopia; spiritual revolution; romantic anti-capitalism; hyper-late capitalism.

* Publicado originalmente com o título “A crítica ontológica à oposição romântica da ‘miséria brasileira’: os in-
tegralismos de Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale”, Posfácio à segunda edição da obra de Chasin,
O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo/Belo Horizonte, Ad Hominem/Ed. Una, 1999.
** Prof. Dr. do Colegiado de Ciências Sociais do Centro Universitário Fundação Santo André e Programa de
Estudos Pós-graduados em História e Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-
SP.

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Antoni o R ag o Fil h o

Compreender consiste em captar a lógica específi-


ca do objeto específico.
Karl Marx

Quem, diante de um mundo assombrado e atemorizado pela ascensão dos mo-


vimentos fascistas, não se colocaria, de um pólo oposto, no combate efetivo contra
o corporativismo embutido na proposta do integralismo e na instauração do estado
integral? Quem, diante de uma frente de direita comandada por líderes, cujos gestos
e rituais se aproximariam às milícias de seus aparentados europeus, alardeando a
tomada do poder contra os democratas liberais, os socialistas e os comunistas, não
se lançaria contra os “galinhas verdes” no Brasil?
Diante desse legado e dessas evidências empíricas, a crítica acadêmica do in-
tegralismo jamais se questionou acerca da possibilidade real desta identificação. É
possível que – mesmo se reconhecendo a distância entre o desenvolvimento histó-
rico da Alemanha e Itália e o do Brasil – em contextos históricos distintos possam
brotar fenômenos ideológicos idênticos? Segundo a analítica convencional, a resposta é
indiscutível: o integralismo é uma cópia brasileira do fascismo europeu.
Qual é a arma teórica, política e pessoal capaz de ultrapassar as exterioridades e
as formas fenomênicas do integralismo, reconhecida a sua validade como objeto, a
fim de alcançar a sua verdadeira natureza histórica? Somente com a alta competên-
cia e rigor – aliada à dignidade de caráter, à “condição subjetiva de isenção científi-
ca”, balizada pela arma do estatuto ontológico de Marx, que se orienta pelo empenho
à objetividade – foi possível o discernimento da especificidade histórica do discurso
integralista e o desmonte da cristalização de uma identificação do senso comum
transformada em verdade científica. A obra monumental de José Chasin (1937-
98) intitulada O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo
híper-tardio pode ser considerada, no campo das humanidades, uma verdadeira re-
volução científica na esfera da crítica ontológica da ideologia e na captura da particularidade
histórica da objetivação capitalista no Brasil.
Grosso modo, a historiografia do integralismo passa então – após o terremoto cha-
siniano – a ser polarizada por duas vertentes, radicalmente contrapostas, uma de
natureza culturalista e outra ontológica; a que considera o discurso integralista “fora de
lugar” e, posta numa formulação sintética, não encontrando as mesmas condições
históricas: “Copia-se (sic!) os módulos políticos e culturais da Europa, mas vocifera-
se ao mesmo tempo contra o mimetismo – eis a contradição que atormentou os

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

integralistas” (VASCONCELLOS, 1979, p. 193). E, do primado ontológico, a cap-


tura da particularidade concreta feita por Chasin, que considera a diversidade entre os
fundantes das objetivações ideológicas em causa. Nesse sentido,
Ostensivamente, e até mesmo de forma acusada por adeptos do fascismo, as bases
fundantes do integralismo e do fascismo são distintas e perfeitamente discerní-
veis, repercutindo isto no nível do conjunto dos dois ideários, e de forma decisiva.
Diríamos melhor, que necessidades de objetivação social diferentes, em condições
diversas, levaram a reflexões de naturezas distintas, determinando ideologias que
de modo algum podem ser confundidas. De fato, entre ter, como suposto último,
uma concepção que se identifica com o catolicismo tradicional ou o racismo biológico,
vai uma grande distância (CHASIN, 1978, p. 650).
Ao contrário das teses consagradas que apontam a identidade fascista do integra-
lismo pela via do mimetismo ideológico – a assimilação do fascismo dar-se-ia no terreno
da idealidade ao copiar-se o “modelo europeu” –, Chasin faz ver que, precisamente,
pela particularidade da objetivação capitalista num caso e noutro, o fascismo e o in-
tegralismo, reconhecidos como realidades históricas distintas no universo do capital,
conformaram, concretamente, fenômenos diferentes que não podem ser reduzidos
a uma mesma configuração histórica. Daí, a tese central desta obra: “Ontológica e
teleologicamente, fascismo e integralismo se põem como objetivações distintas”.
Revelando sua enorme sensibilidade, pois se coloca como um não-especialista
do tema, Antonio Candido aponta suas concordâncias e dissonâncias em relação à
obra chasiniana; permanecendo ainda no terreno da generalidade abstrata, detecta as
possíveis similitudes entre os dois fenômenos históricos:
Por exemplo: o fato do fascismo e integralismo serem formas de falso anticapi-
talismo, mas na verdade funcionarem como defesa deste, seja ele pleno, “tardio”
ou “híper-tardio”. O fato de ambos insistirem nos direitos dos operários e na ini-
qüidade da burguesia mas, ao mesmo tempo, preconizarem todas as medidas ne-
cessárias para o domínio desta e oferecerem àqueles uma espécie de miragem de
aburguesamento. Com efeito, assim como os nazistas e fascistas, os integralistas
pregavam a substituição da luta de classes pela ascensão dos melhores, para renovar
as camadas dirigentes gastas e continuar estrutural e funcionalmente o seu papel
na sociedade. (CANDIDO, 1978, p. 17)
Mesmo não descartando a identidade fascista atribuída ao integralismo, e já media-
tizando sua maneira de interpretar esse movimento político por parâmetros postos
pela tese chasiniana, o crítico Antonio Candido inferiu:
Estejamos ou não de acordo com a premissa de Chasin (o integralismo não é um
fascismo), o fato é que não será mais possível ver o fenômeno integralista com os
mesmos olhos, porque ele realizou um dos feitos mais difíceis para um estudio-
so: alterar as noções dominantes e transformar em problema o que era considerado

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Antoni o R ag o Fil h o

como fato estabelecido. Se pessoalmente não aceito a sua premissa, sinto que não poderei
mais falar do assunto sem passar por ela e sem que ela me leve a matizar o meu ponto de vista.
(CANDIDO, 1978, p. 20)
Nada mais justo, todavia, nada mais próximo da verdade histórica do que esta
autêntica apreciação de “alterar as noções dominantes”, as quais simplesmente anu-
laram as especificidades históricas, tornando-as indistintas, porque, de fato, a crítica
chasiniana do fenômeno integralista alça a um verdadeiro divisor de águas, que nos
obriga a repensá-lo em sua integridade ontológica. De outra parte, Antonio Candido
reclamará um certo exagero em suas demonstrações, uma “certa prolixidade” em
suas minúcias; porém, o intento chasiniano, próprio à sua obsessão, era o de não dei-
xar escapar nenhuma determinidade que pudesse gerar alguma dúvida, que abrisse
alguma brecha para o debate desqualificador. Daí, a força probante da tese chasiniana,
levada à saturação. O combate deveria ser travado no domínio da objetividade his-
tórica.
Certamente, Chasin se propunha a reestruturar este trabalho, não só no sentido
de torná-lo mais enxuto, porém, mais diretamente, no que tange à parte teórico-
metodológica, ainda tributária de certas imprecisões das reflexões lukacsianas, que
mais tarde seriam criticadas, especialmente no capítulo “Da teoria das abstrações à
crítica de Lukács” de sua obra Marx - estatuto ontológico e resolução metodológica (1995)
e ao descortino pleno do estatuto ontológico imanente ao pensamento marxiano;
todavia, jamais no sentido de alterar ou desmentir sua descoberta básica: o integralismo
não é o fascismo brasileiro. É bom que se grife: nesta obra, todos os conteúdos estão
submetidos ao diapasão ontológico, nessa medida, Chasin não renuncia por um só
momento às abstrações razoáveis próprias à captura da objetividade histórica, do con-
creto enquanto concreto pensado.
Se a tese punha de modo cabal a importância da crítica ontológica da ideologia – para
o desvelamento dos produtos espirituais e da particularidade histórica da objetiva-
ção capitalista em nosso país, da natureza de suas classes sociais, da variedade das
formas de nacionalismo e da especificidade da oposição romântica à miséria brasileira –, a
recepção da tese à esquerda, no entanto, foi um rotundo fracasso. A tática da guerra
de silêncio se constitui desde aí. Na medida em que Chasin renovava com um autên-
tico e rigoroso procedimento científico, alargando as possibilidades da crítica das
ideologias, trabalhando com profundidade a própria realidade nacional, por meio do
desvendamento do tecido teórico de Marx e com as contribuições de Lukács sobre
as determinações da via prussiana e de seu complexo cultural, particularmente, desdo-
bradas na obra A destruição da razão –, a esquerda torcia o nariz julgando até mesmo
desnecessário o esforço despendido, enquanto a academia desdenhava a validade de
estudo científico de objetos “menores”.

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

Mesmo um autor do porte de Florestan Fernandes foi categórico na rejeição de


tal empreitada. “O que me põe de quarentena é o assunto.” Comenta ao prefaciar a
obra Ideologia Curupira (1979) de G. Vasconcellos: “Hoje está na moda dizer-se que se
deve estudar o integralismo. Não compartilho dessa opinião. Nem mesmo devemos
nos preocupar com destruí-lo. /.../ O que nos coube, na ‘virada fascista’ da história
recente, merece mais a novela picaresca que a investigação sociológica séria” (FER-
NANDES, 1979, p. 13). Todavia, a sua argumentação se insere na mesma lógica da
análise convencional, uma vez que, segundo Fernandes, os integralistas teriam forjado
uma consciência social, com a aparência de autonomia ao capital estrangeiro, mas
que, na verdade, buscavam “fixar a consciência burguesa” em nosso país. “Eles se
adaptaram a um fascismo destituído de visibilidade fascista”, portanto, se apresen-
tam como engodo deliberado.
Chasin advertia em sua epígrafe que os integralistas deveriam ser combatidos
por aquilo que foram objetivamente em sua efetividade histórica. Ora, o que tem
sido o “combate” da esquerda a não ser empunhar de forma oportunista a arma das
inversões rústicas da vulgata marxista? Corajosamente, Chasin enfatizava: “há que
sentenciá-los por aquilo que são, não por aquilo que seus válidos inimigos entende-
ram, ou puderam entender, que fossem. E isto, acima de tudo, para o nosso próprio
bem”. O que causa estranheza é essa posição que justifica a identificação do integra-
lismo como uma forma de fascismo – daí, mais ainda, a necessidade imperiosa de
sua crítica até a raiz -, ao mesmo tempo em que o relega a uma manifestação grotesca
típica das figuras risíveis do romance picaresco, de uma “utopia narcisista” ou mes-
mo do “janismo populista”. Numa outra posição, próxima à do tipo obscurantista
“Não li e não gostei”, de um renomado editorialista, ofendido por ter travado um
combate idealizado, foi a resposta do principal responsável pela difusão nos meios
acadêmicos da tese que anula as especificidades históricas, que tornam integralismo
e fascismo irmãos gêmeos.
Em seu ensaio “Integralismo: teoria e práxis política nos anos 30”, Helgio
Trindade tentou a desqualificação da obra chasiniana apontando para o fato de que
esta seria teoricamente monolítica (modo de imputar arbitrariamente a um marxista
como estreito e dogmático), uma vez que centrada apenas nos discursos plinianos,
tendo se descuidado de tratar os “mais fascistas”, tais como o Secretário Nacional
de Doutrina, Miguel Reale (e, poderíamos dizer, na mesma linha de argumentação,
o “mais nazista”, por causa do seu propalado anti-semitismo, Gustavo Barroso, o
Chefe Nacional da Milícia. O fato de Chasin se centrar no principal formulador do
integralismo, ter mostrado a linha de continuidade de seu pensamento – dado que a
constituição de sua ideologia já estava delineada bem antes da existência da Ação

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Antoni o R ag o Fil h o

Integralista Brasileira (AIB), presente na estrutura interna de O estrangeiro, o conhe-


cido romance de 1926 e ter destacado a coerência ideológica de Plínio Salgado para
além da extinção do movimento ocorrida em 1937 –, é visto como uma arte retó-
rica e manipulatória de Chasin. Trindade chega ao desplante de afirmar que Chasin
desconhece a chicana de Salgado, que se valeria de adulterações de seus próprios
textos e manifestos. Porque, conclui, “o chefe integralista, no afã de escamotear a
linguagem fascista do seu discurso ideológico (menos enfático deve-se reconhecer
do que transparece nas obras de Miguel Reale), provocou deliberadamente adulte-
rações nos textos originais dos documentos oficiais transcorridos” (TRINDADE,
1981, p. 311). Acusando Chasin de não ter apoio documental suficiente para sua tese,
Trindade reafirma o recurso ao mimetismo ideológico como sendo a determinante
fundamental da existência do fascismo no solo brasileiro, em suma, o integralismo
nasce pela força do discurso fascista. Não é a existência social que determina a cons-
ciência, mas a formação ideal que gera a vida.
Certamente, quem, por infelicidade, não tiver acesso ao livro de Chasin, mas a
esta dissimulada e deformada denúncia, ficará totalmente com a impressão de que
este possuía um modelo apriorístico, e que, forçando a barra, o “aplicou” de modo
impróprio ao objeto posto em exame. Em defesa de sua tese, Chasin teria aderido a
um dogma. O procedimento chasiniano, no entanto, segue o caminho exatamente
oposto às conceituações e conclusões de Trindade. Há que ler com atenção a orien-
tação ontológica dada por Marx aos populistas russos e pressuposto ineliminável da
obra chasiniana, que rege todos os seus passos:
Assim, pois, eventos notavelmente análogos que, porém, ocorrem em meios his-
tóricos diferentes conduzem a resultados totalmente distintos. Estudando em se-
parado cada uma dessas formas de evolução e comparando-as depois, pode-se
encontrar facilmente a chave deste fenômeno. Nunca porém se chegará a isto me-
diante o passaporte universal de uma teoria histórico-filosófica geral cuja suprema
virtude consiste em ser supra-histórica. (MARX apud CHASIN, 1978, p. 29).
Em seu livro Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30, Trindade precisa-
mente opera com construtos subjetivos – típicos do viés psico-comportamental – que
subsumem amplo material empírico coletado por meio de depoimentos, a fim de
encaixar as opiniões e posições dos integralistas como produtos de dissimulação tática.
O paradoxo entre as declarações integralistas de que eram diferentes e superiores
à concepção fascista e a imputação de “fascistas” por seus adversários será resol-
vida da forma a mais bisonha, pois, segundo a analítica convencional, os integralistas
passaram o tempo todo dissimulando a sua verdadeira face: cópias emprestadas ao
fascismo. Quando eles se proclamam como originais e autônomos com respeito às
formulações estrangeiras, a analítica convencional vê um engodo deliberado, um ato

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

em permanente estado de mistificação, sem jamais se questionar acerca da validade


ontológica de tal recurso gnosiológico.
O que deveria ser posto como um problema a ser investigado, por uma abstração
irrazoável, torna-se uma arbitrariedade. Nada mais evidente do que a rejeição ao em-
penho à objetividade, ao respeito à lógica imanente do objeto histórico, uma vez que
Trindade é explícito quando diz sem titubear que “O fenômeno fascista /.../ teria
podido se desenvolver no Brasil, nesta época, com um discurso ideológico e uma
organização nacionais. A realidade, porém, foi outra. /.../ A análise da Ação Integralista
nos leva a concluir que sua natureza, organização hierárquica, estilo do chefe e ritu-
ais não se podem explicar sem levar em consideração a influência do modelo de referência
externo.” (TRINDADE, 1974,l p. 289).
Como se pode notar, o autor é obrigado a se esforçar ao máximo para fun-
damentar o seu ponto de partida, o empréstimo ideológico condiciona a vida, a
referência ao modelo externo é a determinante, própria ao viés culturalista de sua
construção, acabam por compor o objeto da investigação. Como demonstrar, po-
rém, que, em meios históricos diferentes, em realidades econômicas historicamente
desiguais, com categorias sociais diferentes, brote uma mesma ideologia por um proces-
so de cópia, por influxos externos que condicionam o comportamento ideológico?
A sua resposta, diretamente dirigida a Chasin, tropeça mais uma vez em seus limites
idealistas e especulativos:
Não seria o caso de questionar se a viabilidade de um mimetismo ideológico não su-
poria que as idéias estivessem ‘fora de lugar’, e que o objeto de explicação deveria,
justamente, em se tratando de sociedades econômica e socialmente diferentes,
como estas idéias conseguem ser importadas e reelaboradas não só pelas elites
intelectuais, mas também como penetram em segmentos mais amplos da socieda-
de? (TRINDADE, 1981, p. 313)
Com esta resposta à pergunta chasiniana, o autor ainda permanece na mesma
tecla, adicionando que a cópia não é igual ao original. É o movimento em torno do
mesmo círculo.
Dentre as ambigüidades do culturalismo, vamos encontrar a afirmação de que o
equívoco da maioria dos críticos do integralismo está em que parte de uma posição
apriorística, configurando a realidade por meio de idéias preconcebidas, tais como as
de “vazio, atraso, tardio, desigual, imaturo, importado”, relevando com isso o indeter-
minado do movimento histórico: “Assim em lugar de assumirmos a indeterminação
inicial pela qual haverá processo, supomos que no ponto de partida do caminho
histórico e do trabalho teórico tudo já está determinado, restando-nos apenas a tare-
fa de articular os dados esparsos para recuperar o caráter plenamente determinado
da situação” (CHAUÍ, 1978, p. 29). Em sua primeira posição face ao fenômeno do

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integralismo, Chauí se mantém presa às formulações da analítica convencional, esfor-


çando-se em demonstrar: “Que essa importação é determinada pelo ritmo interna-
mente necessário do capitalismo brasileiro para ajustar-se ao compasso da música
internacional, é coisa de que não duvidamos” (CHAUÍ, 1978, p. 35), sem colocar
que permanece no mesmo terreno problemático do formalismo dos intérpretes.
Não se põe em discussão, desse modo, se a doutrina integralista é produto ou não de
um mimetismo ideológico, mas que “no caso específico do pensamento autoritário,
a importação de idéias possui um sentido peculiar” (CHAUÍ, 1978, p. 36) Assim,
Chauí busca justificar o empréstimo de idéias produzidas em solo europeu, na deter-
minante do “autoritarismo”, porque aqui sua forma vazia foi devidamente preenchida
por “conteúdos locais”. O engodo deliberado ocorre na medida em que “O pensar
autoritário tem a peculiaridade de precisar recorrer a certezas decretadas antes do
pensamento e fora dele para que possa entrar em atividade” (CHAUÍ, 1978, p. 37).
A engenhosidade epistemológica monta agora seu fundamento no quadro da
“cultura autoritária”, que permite enquadrar e interpretar qualquer fenômeno políti-
co desta época. Desvendar as razões que permitem à ideologia comandar as opera-
ções de ocultamento e dissimulação. Tal como no caso do conceito de totalitarismo,
este construto subjetivo não nasce desprovido de determinação social, uma vez que,
como especifica a crítica ontológica, “a noção de totalitarismo nada mais reflete que
o liberalismo com sinal trocado” (Chasin, 1978, p. 49). Referindo-se ao vigor da
crítica chasiniana, que denuncia a improcedência da equalização entre fenômenos
históricos distintos, Antonio Candido observa que
O seu principal ponto de apoio teórico talvez seja a discussão sobre o conceito
de totalitarismo, que funcionaria, para os que os identificam, como denominador
comum de ambos os movimentos. Mas é claro que a sua veemente discussão
mira mais longe; visa ao próprio conceito, que serve à crítica liberal para operar
a assimilação mais grave entre fascismo e comunismo, na medida em que ambos
seriam afastamentos de um modelo ideal, supra-sumo da filosofia e da organiza-
ção política – o do liberalismo (CANDIDO, 1978, pp. 13-4)
Este obnubilamento criado pela conceituação liberal se serve de universais abstra-
tos para tentar descrever o real e, com isso, tal conceituação fica impossibilitada – d
exatamente pela determinação social de sua perspectiva – de apropriar-se dos univer-
sais concretos por meio das mediações e determinações concretas. Este procedimento
formalista, de natureza politicista, além de tornar equivalentes fenômenos históricos,
por mais distintos que possam ser, acaba por reduzir a história a uma construção
eventista. Assim sendo, ao contrapor a todo monopólio de poder, a todo estado
totalitário, os valores do estado liberal, a análise convencional oculta a questão da própria
hegemonia de classe, operando-se, assim, a eternização do estado e da dominação
de classe.
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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

Confundindo manifestações históricas concretas, e reduzindo-as à sua expressão


política, o conceito de totalitarismo opera simplesmente uma sorte de tautologia
ao “determinar” o fascismo, o nacionalismo e tantos outros eventos que ele se
permite englobar e que de algum modo contrariam o perfil liberal. /.../ Com isto
não estamos querendo confundir ou dissolver as distintas formas de hegemonia;
pelo contrário, queremos ressaltá-las, afirmando que ela, a hegemonia, sempre
está presente ao fenômeno do poder, ao contrário do que a análise liberal pressu-
põe (CHASIN, 1978, pp. 53-4).
Submersa ao conceito de autoritarismo, de corte liberal, a ideologia integra-
lista, segundo a versão de Chauí, como todo “pensar autoritário”, reduz-se a uma
“região das conseqüências sem premissas, (que) precisa localizar em algum ponto
externo, anterior e fixo um conjunto de afirmações protocolares graças às quais
entra a pensar” (CHAUÍ, 1978, p. 38) O passo subseqüente desse ato especulativo,
que se transforma em seu novo ponto de partida, está em assinalar que a peculia-
ridade desse pensamento é “o de operar com imagens em lugar de trabalhar com
conceitos” (CHAUÍ, 1978, p. 40) O que faculta a operação da ideologia autoritária,
transformando os integralistas em peritos na arte de manipular, em produzir ima-
gens, algumas por meio de “livre associação” sem nenhum espelhamento com o real.
Como se vê, Chauí – que transita num ecletismo sofisticado, que começa com Marx
e acaba nas reflexões de Lefort –, age como se estivesse num mesmo campo teórico.
Com isso, jamais poderá responder acerca da determinação social do pensamento
integralista. Qual é a posição e o sentido da utopia reacionária ou do paraíso rural no
integralismo de Plínio Salgado? Em seu empreendimento intelectual não poderemos
encontrar essa resposta.
Ainda mais porque estamos diante de uma analítica que, elidindo a objetividade
da produção histórica de uma subjetividade determinada, propõe-se a “não tomar
como critério a adequação ou inadequação entre o texto e o real, mas a represen-
tação do real veiculada pelo texto e, então, interpretar as diferenças e os conflitos
entre os documentos segundo as representações que oferecem do social, do político
e da história e, conseqüentemente, segundo os destinatários que elegem” (CHAUÍ,
1978, p. 34).
Esta postura dará margem para imputações as mais diversas aos comportamen-
tos dos integralistas – como se eles fossem governados pelo poder de manipular
de acordo com o destinatário a que se dirigem –, promovendo uma autêntica auto-
nomização do pensamento em relação ao sujeito histórico que o produziu. Mesmo
Salgado sendo católico assumido, tecer a sua concepção com a doutrina social da
Igreja Católica, ter escrito a Vida de Jesus, Chauí acredita estar revelando um segredo
taticista: “Sem dúvida, um texto como o Sofrimento universal, ciclo de conferências de

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Salgado para os católicos portugueses, é prova de que o catolicismo é um elemento tático


e ideológico de grande envergadura, porém, é preciso não ignorarmos a natureza do
público a que era destinado: salazaristas convictos” (CHAUÍ, 1978, pp. 76-7).
Chauí, que identifica ideologia com representação imaginária, passa por cima
da pertinência da afirmação marxiana, acerca da natureza ontológica da consciência
social: “Se a expressão consciente das relações reais dos indivíduos é ilusória, se em
suas representações põem a realidade de cabeça para baixo, isto é conseqüência de
seu modo de atividade material limitado e das suas relações sociais limitadas que daí
resultaram”. Comentando esta problemática, Chasin esclarece que
Vincadas à sociabilidade, dela nascendo, as formas do pensamento “são a expres-
são consciente – real ou ilusória – de relações e atividades efetivas”. Em outras
palavras, verdadeiras ou falsas, as representações dos indivíduos, os únicos dota-
dos de capacidade espiritual, brotam sempre do terreno comum do intercâmbio
social. Correta ou fantasiosa, efetiva reprodução ideal de um objeto, ou rombudo
borrão mental, as ideações não são auto-engendradas, variando de um pólo a
outro em função do potencial societário em que se manifestam. (CHASIN, 1995,
p. 406).
A chave está na especificação da natureza do ser social que se estrutura no
“sujeito decifrado como atividade sensível, do qual o espírito é inerência reiterada na
própria confirmação objetiva daquele. O que há, então, de escandaloso em constatar
que tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim eles pensam? A extravagância não está,
exatamente, em sustentar o oposto?” (CHASIN, 1995, p. 408)
Como não encontramos as premissas efetivas nos textos do “imaginário inte-
gralista”, com sua liberdade de associar imagens, visto que os textos integralistas são
“textos onde as conclusões se sucedem com total ausência de premissas” (CHAUÍ,
1978, p. 34), trata-se de encontrar o destinatário representado para o qual devem con-
vergir os interesses das classes dominantes e, conseqüentemente, as suas manipula-
ções. Esta será, inclusive, considerada a causa do fracasso da corrente integralista, a
saber, a ideologia integralista peca por estar direcionada às “classes médias”, pois o
sucesso do getulismo foi o de dirigir-se aos operários. Não é exagero dizer que toda
a sua análise está ancorada nessa concepção de ideologia como arte de ocultar e mis-
tificar, que em seu movimento apresenta “ofertas” e “promessas” às necessidades
mais “sensíveis” do destinatário.
Se o integralismo se vale de uma “história imaginária”, uma ficção típica do
“pensar autoritário”, tal como é supostamente construída por seus ideólogos, sem
nexo com a realidade histórica, trata-se, então, de apontar – mais uma vez pelo viés
politicista – se o determinante externo ainda convém à análise do fenômeno integralista.
O recurso ao mimetismo ideológico torna-se, assim, descartável:

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Nessa medida, torna-se de menor importância saber se houve importação dos


fascismos europeus, pois o que interessa compreender é que, importando ou não
idéias que não poderiam espelhar a situação brasileira, as formulações integralistas
exprimiram, na forma da construção pura, a verdade do nacionalismo como polí-
tica autoritária, mesmo quando os militantes aderiam à AIB pelo medo ao comu-
nismo ou pelo antiliberalismo, na esperança de ver realizados ideais que, de outra
maneira, permaneceriam como simples desiderata (CHAUÍ, 1978, pp. 116-7).
A grande novidade da análise de Chauí, segundo suas próprias palavras – ao
contrário do “lugar-comum da historiografia brasileira, isto é, a afirmação do atre-
lamento da classe-média à classe dominante”, que supõe o fato de seus dirigentes e
militantes terem se transformado em massa de manobra de Vargas –, é que “sob a
bandeira do combate ao comunismo, a classe média desse período serve de ponta-
de-lança para a repressão exercida contra o proletariado”. Getulismo e integralismo
se articulam, então, com a finalidade de barrar o movimento operário, nesse sentido,
“Não se trata sequer da suposta convergência político-ideológica entre integralistas
e o golpe de 37, nem se trata do suposto fascismo de uns e de outros, mas, sim de
que, por motivos diferentes, o autoritarismo e a ditadura surgem para dominantes e
classe média integralista como freio indispensável quando se tem em mira a paralisia
operária” (CHAUÍ, 1978, p. 108).
Chauí aos poucos vai se livrando da importação das idéias fascistas e, portanto,
do preenchimento integralista das formas vazias emprestadas do mundo europeu
fascistizado, para garantir que, em certo sentido, o integralismo, em vez de ser um
mimetismo, estaria mais próximo de um “populismo janista” (Weffort), um estilo de
política “oposto ao paternalismo e ao clientelismo do líder, em nome da moralidade,
da autoridade e da burocratização estatal, pelos quais o chefe deve ser responsável”
(CHAUÍ, 1978, pp. 111-2) Completando, por fim, que
O Integralismo pode ser tido como fenômeno político-ideológico local, prenún-
cio de um populismo falhado, diverso do de Vargas, e que não se ocuparia com o
“povo operário”, mas como o “povo-classe média”. Sob este prisma é possível supor
que o fracasso da AIB tenha algo a ver com o sucesso de Vargas, não porque este
teria estado mais à altura da “grande política”, mas sim porque não permaneceu cego
à prática operária, enquanto o movimento do Sigma, estabelecendo uma cisão entre
o “monstro comunista” e o “mísero obreiro”, aprisionou-se nas imagens pequeno-
burguesas do social e do político, permanecendo apenas à altura do destinatário de
seu discurso (CHAUÍ, 1978, p. 112) No campo da análise convencional, outros
intérpretes tentaram explicar a ideologia integralista como estruturada no mi-
metismo dos fascismos europeus, fora do lugar, e cujo comportamento é dita-
do pela tática do engodo deliberado. Seguindo o viés culturalista de Trindade,

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Gilberto Vasconcellos abre sua obra A ideologia curupira com o alvo pretendi-
do: “A busca da especificidade do integralismo enquanto discurso fascista que
se insere numa sociedade capitalista periférica”. Nesse sentido, tenta buscar
e precisar a “especificidade” da cópia do fascismo europeu: “embora de ponta
a ponta mimético, o discurso integralista ostenta um traço que o diferencia de
seus congêneres europeus, e cuja razão de ser nasce da resposta equivocada
(mas sociologicamente compreensível) à heteronomia de país periférico, a saber: a
fantasmagoria de uma utopia autonomística em relação às nações capitalistas
hegemônicas”. Pois, como deseja o autor, tendo como base os resultados da
analítica paulista: “o pano de fundo: mostrar que o contexto da dependência, no
qual se moviam os camisas-verdes, acabou por afetar (independentemente de
sua consciência) a apropriação dos fascismos europeus” (VASCONCELLOS, 1979,
p. 17).
Vasconcellos tenta provar que aqui não ocorre uma relação orgânica entre ide-
ologia e estrutura social tal como se verifica em países capitalistas dominantes, pois
estes não sofrem da “heteronomia estrutural da dependência” do imperialismo, pro-
porcionando, desta forma, aos países periféricos uma espécie de “indeterminação
social” do pensamento, caindo assim no campo das ideologias “de segundo grau”.
Com isso, tenta consubstanciar “as idéias fora do lugar” do movimento integralista,
pois, “Em outros termos, é justamente através da ausência de organicidade entre
superestrutura ideológica e a base material da sociedade que se realiza o modo par-
ticular de as idéias se produzirem socialmente na periferia”. Concluindo que, no
discurso do “fascismo caboclo”, “transparece o timbre característico da vida ideo-
lógica na periferia: o funcionamento dessa não se auto-impulsiona em conexão com
a estrutura social que lhe corresponde, permanece mais à mercê dos influxos externos. Em
suma, ele se enquadra perfeitamente naquilo que Schwarz denomina ideologia de
‘segundo grau’, ou seja, ideologias que ‘não descrevem falsamente a realidade, e não
gravitam segundo uma lei que lhes seja própria! Um discurso fora do lugar, a expressão
que aqui se justifica” (VASCONCELLOS, 1979, p. 190).
Mas como Vasconcellos se propôs à compreensão da “especificidade” das for-
mas do “irracionalismo fascista”, as determinações essenciais próprias à via colonial
de objetivação capitalista são descartadas, ainda que o autor se esforce em apontar
que os conflitos sociais não se encontravam sob o mesmo plano de radicalidade que
no capitalismo avançado. Por isso, reconhece que,
Tendo em mira o contexto brasileiro dos anos 30, a emergência de um irraciona-
lismo fascista do tipo camisa-verde não corresponde a um resultado da evolução

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

social. Noutras palavras, se o discurso integralista segue os parâmetros das doutri-


nas fascistas européias, concluindo que há no Brasil um nítido descompasso entre
ele e a estrutura social. Falta a base social fundamental que acompanha a reação
fascista e que faz desta um discurso eminentemente contraconceitual (oposição
ao liberalismo e ao marxismo), a saber: organização política da classe operária.
A perspectiva de uma revolução proletária era uma quimera dos anos 30; e nem
mesmo havia o “desafio do bolchevismo” (E. Nolte), pré-requisito essencial dos
movimentos fascistas. (VASCONCELLOS, 1979, p. 182).
Comparando as formas históricas distintas, o capitalismo tardio com o capi-
talismo subordinado brasileiro, Vasconcellos aponta que os “fascistas caboclos” não
encontraram uma classe operária altamente organizada disputando o poder; as clas-
ses médias não se sentiam ameaçadas com a destruição da ordem que as “educam”
para o fascismo; aqui, o liberalismo não se põe como um inimigo político, tal qual no
mundo europeu. Assim, com a varinha mágica na mão, é possível afirmar que, como
há correspondência, no mundo europeu, entre grande capital e fascismo (obviamen-
te esta única generalização é abstrata), no caso brasileiro, como “as idéias estão fora
do lugar” não encontram sua determinação social (a sua burguesia monopolista impe-
rialista no confronto com a classe operária organizada), resta a Vasconcellos aderir
à proposta de Trindade.
Eis uma outra via que desemboca no núcleo deste ensaio: ao contrário do que su-
cede com o fascismo europeu, cujo laço com o capitalismo monopolista salta aos
olhos, a demanda que “solicita” a emergência do discurso integralista nos anos 30
não se localiza no plano da estrutura social. /.../ Como se vê, do ponto de vista
das condições ideológicas internas, a busca da gênese do discurso integralista se
afasta da estrutura social propriamente dita; ela tem mais a ver, conforme sugerem
as conclusões de Trindade, com a esfera cultural: é sobretudo o filão nacionalista
que o informa. Ora, esse não esteve imune à glosa das idéias hegemônicas do
Ocidente. É decisivo, portanto, o peso dos influxos ideológicos externos. (VAS-
CONCELLOS, 1979, pp. 189-90).
É interessante observar que, ao se considerar o “peso externo”, não levando
em conta a significação interna do discurso ideológico integralista, Vasconcellos não
se detém objetivamente em sua estrutura interna, determinação social e finalidade
no âmbito de seu complexo histórico, com isso, acaba por desqualificar a expressão e
o protesto do projeto integralista. O próprio autor – atualmente assumindo de peito
aberto as cores do nacionalismo trabalhista, renuncia a qualquer conciliação com a
analítica paulista – em seu estudo focaliza mais intensamente o “nacionalismo verde-
amarelo”, considerado a fonte nacional do discurso “fascista”, do que a doutrina inte-
gralista propriamente dita.

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Desse modo, a “utopia reacionária” ou o “paraíso rural”, a denúncia e barragem


ao desenvolvimento das forças produtivas materiais, às formas da “civilização urba-
no-industrial”, à “materialização da vida”, à acumulação ampliada do capital, que o
integralismo tentou promover como realização das “verdades eternas da raça e da
terra”, contra o domínio do “banqueirismo internacional”, ganham uma total inver-
são: regressivismo econômico vira, nessa leitura, expansionismo, pois nesse condão
a utopia integralista pode ser vista como um ensaio de realizar, no plano imaginário,
as condições plenas da acumulação de capital. Noutras palavras, ele espelha – ainda que
ao avesso a própria impotência da burguesia brasileira em realizar o desenvolvi-
mento capitalista auto-sustentado. /.../ A saída para essa situação seria a ”Inde-
pendência do Brasil de toda e qualquer influência estrangeira”, única maneira de
escapar à “civilização artificial’ (VASCONCELLOS, 1979, p. 59).
Ora, é precisamente num momento histórico em que se processa a transição de
uma ordem agroexportadora para a ordem urbano-industrial, graças s uma “conci-
liação pelo alto”, uma recomposição das frações dominantes no estado autocrático
dos proprietários, é que surge um movimento político de tolhimento (ou melhor,
de tentativa ilusória) do avanço das forças produtivas materiais contra os “reis da
finança” ou o “espírito burguês”.
Miguel Reale, que tomou assento no “triunvirato” do Conselho Nacional da
AIB, ao lado de Salgado e Gustavo Barroso, em seu primeiro livro de memórias
Destinos cruzados, atenta para esta dimensão histórica desprezada pelos críticos con-
vencionais: a situação anacrônica verificada entre o anticapitalismo integralista e as
próprias condições particulares da entificação capitalista em nosso país. O criador do
sigma e figura de proa na construção do ideário integralista constatou este “anacro-
nismo”, num país essencialmente agrário, onde os integralistas se inflamavam contra
uma industrialização incipiente. Em seus próprios termos: “Se a idéia nacionalista ti-
nha a legitimá-la vários fatores (a ferrenha política estadualista, ou os pruridos sepa-
ratistas, com perda do sentido global dos problemas brasileiros) e se o anticapitalismo
brotava da experiência de um incipiente industrialismo selvagem (sem se olvidarem
notórias interferências imperialistas em nossa economia), parece-me que na atitude
integralista havia certo anacronismo. No fundo, éramos fervorosos anticapitalistas e
antiburgueses num país ainda sem capitalismo” (REALE, 1986, p. 79)
É bom que se recorde: o integralismo se constituiu, de fato, numa frente de direita
assumida tacitamente. Miguel Reale foi enfático na caracterização das tendências que
se aglutinavam na AIB:
Como já observei, a AIB não formava unidade compacta do ponto de vista dou-
trinário, nela atuando correntes de opinião diversificadas. Pelo menos três delas
persistiram até o término do movimento: uma, a mais numerosa, liderada por

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

Plínio Salgado, fundamentava-se na doutrina social da Igreja e na exaltação na-


cionalista; uma outra, que dava ênfase especial aos problemas sociais e sindicais,
assim como aos problemas jurídico-institucionais do estado; e na terceira, mais
preocupada com os valores tradicionais da história pátria, a que acrescentava um
anti-semitismo de frágil mas espalhafatosa fundamentação, com Gustavo Barroso
à frente (1986, p. 80).
Em outro lugar, o jurista de renome, caracterizava a corrente pliniana, reafir-
mando a centralidade do espiritualismo da doutrina, do catolicismo tradicional,
aproximando-se do objeto histórico, apontava para o traço antimessiânico do chefe
integralista, que o distingue ainda mais da posição fascista:
Outros (e constituíam a maioria) eram mais seduzidos pelos valores do naciona-
lismo ou da “reação espiritualista” no desempenho da vida política , como se dava
sobretudo com Plínio Salgado, o qual se considerava menos um chefe, no sentido ple-
no dessa palavra, do que o condestável da nação mais inspirando do que exercendo o
poder. Profundamente integrado na doutrina social da Igreja Católica, era a partir
dela que Plínio pregava a reorganização social do país, com grande carga emocio-
nal, dando ênfase ao culto dos valores nacionais numa campanha de intenso valor
cívico que, pela primeira vez em nossa história, conseguiu congregar centenas de
milhares de brasileiros, de maneira permanente, e não para o fim episódico de
pleitos eleitorais (REALE, 1983, p. 9).
Cabe, então, aqui, repor, ainda que nesse breve espaço, algumas questões de-
vidamente esclarecidas por Chasin. Consciente do estágio em que se encontrava
a historiografia brasileira sobre nossa formação histórica, e na medida em que o
integralismo era composto de integralismos, impunha-se a real necessidade de sua
compreensão em seu conjunto, Chasin explicava que, enquanto
fragmento da consciência social no Brasil, o integralismo continuava indecifrado,
oculto em convencional e abstrata definição como fascismo. Determinar sua efe-
tiva natureza, especificá-lo na especificidade brasileira era projeto que se impunha
com grande evidência, no imperativo mais vasto, até hoje sofrivelmente atendido,
de examinar o conjunto, ou pelo menos os momentos principais, dos eventos
ideológicos no Brasil (CHASIN, 1978, p. 23).
Esta obra, na verdade, fazia parte de um projeto coletivo de maior envergadu-
ra, era um primeiro assentamento, que permitiria a edificação de inúmeros outros
trabalhos, perfazendo um “círculo de círculos”. O exercício da crítica ontológica da
ideologia abarcaria um leque mais amplo de pensadores, que Chasin arrolara a fim
de compreender a natureza da ideologia brasileira, com o mesmo intuito que Marx e
Engels tiveram quando escreveram A ideologia alemã. Uma pletora de ideólogos foi
elencada: do integralismo com suas várias vertentes, Plínio Salgado, Gustavo Barro-
so, Miguel Reale, Olbiano de Mello, Severino Sombra (obviamente, os dois últimos

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se distinguiam dos principais ideólogos integralistas). Do pensamento conservador,


de Oliveira Vianna a Golbery do Couto e Silva, dos ideólogos do estado novo, como
Azevedo Amaral e Francisco Campos, dos pensadores isebianos, de Hélio Jaguaribe
a Guerreiro Ramos, dos economistas, de Eugênio Gudin a Roberto Campos etc. etc.
Este projeto intentava, por meio de análises imanentes desses pensadores singulares,
alcançar uma autêntica síntese da ideologia dominante no Brasil. E não, ao contrá-
rio, pinçando alguns temas de alguns ideólogos, articulados arbitrariamente, com a
finalidade de traçar a matriz de toda uma cultura nacional.
Destrinchando pela raiz a doutrina pliniana, Chasin detectou vários nódulos
ideológicos que compõem a sua configuração básica, tendo como núcleo diretor
a utopia ruralista, a saber: o espiritualismo católico tradicional; o antimaterialismo;
a hostilidade absoluta à civilização urbano-industrial; uma postura antimessiânica;
visceral ojeriza à liberal-democracia; o corporativismo de inspiração cristã; o entro-
nizamento da intuição como o único processo válido de captação da verdade; entre
outros. É importante destacar a contraposição do corporativismo integralista com o
de molde fascista, pois, enquanto para o fascismo a sua função residia precisamente
na potencialização da produção, no caso do integralismo, o corporativismo de inspi-
ração católica e de estilo medieval, “Seriam corporações de ofícios que ordenariam
a representação moral, profissional e dos partidos políticos, que se extinguiriam.
Entretanto, o seu corporativismo não estimularia o desenvolvimento do modo de
produção capitalista, é mais um instrumento para deter a expansão das forças pro-
dutivas, especialmente o capital industrial.” (CHASIN, 1977, p. 6.)
Nessa mesma entrevista dada a Getúlio Bittencourt, logo após a defesa da tese
doutoral, o jornalista da Folha de S. Paulo pôs uma questão pertinente: “Um estudo
baseado exclusivamente em textos não pode conduzir a distorções, na medida em que um político
pode dizer uma coisa mas fazer outra – ou seja, na medida em que não se compara a verbalização
com a ação?” Assumindo a sua dívida para com as reflexões lukacsianas, numa clara e
densa resposta, Chasin esclarece a sua posição ontológica:
Vou começar pelo contrário: se decidimos que o que vale são exclusivamente os
atos e não o pensamento, suprimimos portanto a manifestação da consciência.
Parcializamos a própria realidade, pois um todo histórico é um conjunto de fatos
objetivos e subjetivos, e o que caracteriza a ação humana é um embricamento das
duas coisas. O homem não tem um pensamento que se separa da realidade por
um abismo; esse abismo é criado por metodologias falsas. Predominantemente, as
metodologias separaram a consciência do objeto e depois não conseguiram reuni-
las. /.../ O homem faz a história, mas em condições que ele não escolhe. Por isso
a sua consciência não é absoluta, pois por mais que tenha conhecimentos, sempre
há dados da realidade que ele desconhece. Dialeticamente, não é possível uma
ação que não seja precedida de uma intenção ou prévia ideação. Veja, quando al-

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

guém defende a democracia, mas age contra a democracia, a sua ideologia eviden-
temente é antidemocrática. No plano verbal, portanto, essa pessoa perpetra um
engodo. O seu momento ideológico verdadeiro não é enunciado. Muito bem, mas
a ideologia seria muito simples se fosse um ato deliberado de enganar os outros.
O que faz da ideologia um fenômeno difícil, complexo e importante, é que ela
freqüentemente manifesta um auto-engano: a pessoa engana a si mesma, acredita
sinceramente numa visão distorcida da realidade. (CHASIN, 1977, p. 6)
Com relação às fontes e influências nacionais de Plínio Salgado, as descobertas
chasinianas são reveladoras. Se não, vejamos.
Se lemos, superficialmente a obra de Plínio Salgado, podemos chegar à conclusão
de que quase todas as personalidades importantes do Brasil e de Portugal con-
tribuíram para a formação de sua ideologia. Qualquer manifestação regressivista,
ainda que sem nenhuma ligação com as propostas integralistas, é incorporada por
ele, a partir do Infante Dom Henrique. Mas a sua principal fonte de inspiração é
realmente Farias Brito, no campo de espiritualismo – um Farias Brito já conver-
tido ao cristianismo. Também Jackson de Figueiredo, sob um duplo aspecto, o
influenciou: no cristianismo militante e fanático e na ideologia da ordem e do es-
tado forte. Tristão de Athayde, antiliberal cristão nos primórdios do integralismo,
saúda em Plínio Salgado “um pensamento novo”. Oliveira Lima e Oliveira Vianna
(deste, uma noção de corporativismo), além de Alberto Torres (o nacionalismo
agrário e a distinção Brasil real - Brasil legal) são outras fontes de Plínio Salgado
(CHASIN, 1977, p. 6.)
O valor da tese chasiniana sobre o integralismo não se reduz, entretanto, ao
exame do conjunto essencial dos escritos de Plínio Salgado, o principal ideólogo do
movimento, o principal formulador da visão integralista do mundo, antes, durante e
depois da própria existência da AIB (1932-1937), mas alcança a explicitação do mar-
xismo como um novo patamar teórico dotado de uma ontologia estatutária. Ressal-
te-se aí a força das abstrações razoáveis – tematização que, mais tarde, será amplamente
desenvolvida em sua mais consistente reflexão sobre Marx: estatuto ontológico e resolução
metodológica, de 1995 –, por meio da qual buscou concretar a efetiva análise imanente
do discurso pliniano, respeitando-o em sua integridade própria, realizando em graus
mais abstratos as determinações relativas ao solo histórico, sempre no empenho à
objetividade, enquanto pensamento concreto, e o resultado desta efetiva concreção, a re-
produção do complexo categorial da miséria brasileira ou da via colonial de objetivação
capitalista em suas determinações essenciais.
Em virtude de o integralismo apresentar uma larga dimensão retórica em seu dis-
curso, os intérpretes convencionais o caracterizaram como uma forma permanente
de dissimulação e mistificação. Como esta analítica deixa de lado a parte residual
desse discurso, deixa de lado a objetividade do corpo ideológico, os conteúdos signi-
ficativos que expressam o ser social limitado, de natureza ruralista, a debilidade de sua

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manifestação ideológica, forma de regressividade posta num trânsito à consolidação


do capital industrial em nossa formação histórica.
Chasin, ao contrário, em respeito à integridade do objeto histórico, desvenda
no irracionalismo pliniano a especificidade de “um ideário que, por impossibilidade
intrínseca de ser convincente, se mostra visceralmente persuasivo” (CHASIN, 1978, p.
605). Para o teórico da via colonial, o discurso pliniano, por ser basicamente persuasivo,
retórico, está longe de construir uma argumentação articulada por nexos racionais no
sentido de convencer, uma vez que a apropriação do verdadeiro só se dá pela intuição
ou pela revelação. Com isso, tem-se que, no discurso do ideólogo do sigma, “o retó-
rico não é o residual; ao inverso, o residual ... é, aí, o não-retórico” (CHASIN, 1978,
p. 606).
É precisamente aqui, na porção residual da doutrina, naquilo que sobra, em que
se revela por inteiro o sentido histórico do integralismo, que Chasin divisa os dois
limites teleológicos da oposição romântica à miséria brasileira, que escapou inteira-
mente à versão hegemônica do integralismo, a saber:
O limite máximo, que designamos por utopia reacionária ou regressiva, que visiona a
conversão do país numa pletora de pequenas propriedades, quase que exclusiva-
mente rurais, e que, pela sua total inviabilidade, e até mesmo absurdidade, jamais é
inteiramente explicitada. O limite mínimo, também de solução ruralista, mas que,
por assim dizer, se conforma em transigir um pouco, busca pelo menos frear ou
estancar a acumulação capitalista. (CHASIN, 1978, p. 607)
A crítica chasiniana desvenda, portanto, o devido lugar, a condição e a finalidade
– a necessidade histórica – dessa utopia reacionária, e, ao contrário da historiografia
oficial, descobre “o sentido do desesperado esforço pliniano de persuasão, cegando-se
para a evidência de que, se não podia convencer, isto não seria razão suficiente, nem
muito menos, para Salgado deixar de querer e de propor exatamente aquilo pelo qual
se esforçaria decididamente por persuadir” (CHASIN, 1978, p. 607).
É só a partir daí, uma vez efetuada a crítica ontológica da ideologia pliniana, a
captura de sua destinação histórica por seus significados internos, articulados à sua
determinação social na via colonial de objetivação capitalista –, que Chasin pode partir
para uma comparação ontologicamente posta entre os dois fenômenos históricos
distintos. Chasin não capitula em nenhum momento à dimensão liberal-democrática
que sustenta o formalismo dessa analítica pelo recurso aos conceitos de totalitaris-
mo e de autoritarismo, e que, graças ao viés politicista, tornam indistintos e idênticos
objetos históricos de naturezas diversas. O conceito de fascismo ganha, portanto,
sua precisa especificação no que concerne à sua natureza particular: “abrange todos
os casos de objetivação tardia do capitalismo que tenham emergido, de fato, como elos débeis
da cadeia imperialista e nos quais o fascismo tenha se manifestado” (CHASIN, 1978,
p. 637).
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Nesse sentido, adotar a tese de que integralismo e fascismo são entes concretos
que se distinguem historicamente, implica também distinguir a via prussiana, como
forma não-clássica de objetivação capitalista, que propiciou às formações capitalistas
singulares, como a Itália e, principalmente, a Alemanha, um salto sem precedentes
de uma condição de atraso histórico para posição de um capitalismo monopolista já
no estágio imperialista. O fenômeno do fascismo, portanto, é produto dessa lógica
particular do desenvolvimento do capitalismo avançado. O fascismo é considerado,
assim, expressão do grande capital, que busca expandir-se por meio de uma ideolo-
gia de mobilização para a guerra imperialista, a fim de se forçar uma redivisão das
esferas já dominadas pelos pólos hegemônicos do grande capital. A via prussiana
é tomada não como modelo, mas como exemplaridade histórica. O integralismo,
muito ao contrário, põe-se como utopia reacionária no interior dos condicionamen-
tos de outra forma não-clássica, a via colonial, subordinado ao imperialismo, como
movimento que buscou estancar o desenvolvimento do capital industrial em nossa
singularidade histórica.
Segundo seu formulador, o conceito de miséria brasileira ou, mais precisamente,
via colonial de objetivação capitalista, designa um complexo concreto historicamente
determinado; da mesma maneira que o caminho prussiano, caracteriza-se como uma
forma não-clássica do desenvolvimento do capitalismo.
Miséria brasileira é determinação particularizadora, para o âmbito do capital e
do capitalismo de extração colonial, da fórmula marxiana de “miséria alemã”.
Compreende processo e resultantes da objetivação do capital industrial e do ver-
dadeiro capitalismo, marcado pelo acentuado atraso histórico de seu arranque e
idêntico retardo estrutural, cuja progressão está conciliada a vetores sociais de
caráter inferior e à subsunção ao capital hegemônico mundial. Alude, portanto,
sinteticamente, ao conjunto das mazelas típicas de uma entificação social capi-
talista, de extração colonial, que não é contemporânea de seu tempo (CHASIN,
1985, p. XI).
Recorde-se, num outro contexto, com maior concreção, Chasin salientava que
a mundialização do capital subsume formações sociais distintas e engendra de-
senvolvimentos desiguais e combinados. /.../ O que importa ressaltar /.../ é que
pela via colonial da objetivação do capitalismo, o receptor tem de ser reproduzido
sempre enquanto receptor, ou seja, em nível hierárquico inferior da escala global
do desenvolvimento. Em outras palavras, pelo estatuto de seu arcabouço e pelos
imperativos imanentes de sua subordinação, tais formações do capital nunca inte-
gralizam a figura própria do capital, isto é, são capitais estruturalmente incomple-
tos e incompletáveis (CHASIN, 1989, p. 41).
Em virtude dessa natureza, aqui a evolução nacional se manifesta contrariamen-
te ao progresso social. Segundo a especificação chasiniana, a modernização capita-

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lista se faz sem ruptura, o historicamente novo paga alto tributo ao historicamente velho, a
dominação autocrática dos proprietários se põe de modo perverso, sem os processos
democráticos de incorporação das massas. Daí,
A contraposição, sob as condições de existência geradas pela via colonial, é ainda
mais perversa, porque a evolução nacional é reflexa, desprovida verdadeiramente
de um centro organizador próprio, dada a incompletude de classe do capital, do
qual não emana nem pode emanar um projeto de integração nacional de suas
categorias sociais, a não ser sob a forma direta da própria excludência do pro-
gresso social, até mesmo pela nulificação de vastos contingentes populacionais
(CHASIN, 1989, p. 49).
A exigência integralista de um estado forte se insere no contexto do autocratismo
burguês, determinidade intrínseca do capital atrófico, tal como Chasin especifica em
sua teoria da via colonial.
A nossa burguesia, para quem o liberalismo econômico (a livre troca para susten-
tar e ampliar sua própria natureza exploradora, através da associação crescente
com a exploração hegemônica e universalizante do capital externo) foi sempre
apropriado e conveniente, nunca pôde, nem sequer poderia ter aspirado a ser
democrática, tem no politicismo sua forma natural de procedimento. Politicista e
politicizante, a burguesia brasileira, de extração pela via colonial, tem na forma de
sua irrealização econômica (ela não efetiva, de fato e por inteiro, nem mesmo
suas tarefas econômicas de classe) a determinante de seu politicismo. E este integra,
pelo nível do político, sua incompletude geral de classe. Incompletude histórica de
classe que a afasta, ao mesmo tempo, de uma solução orgânica e autônoma para a
sua acumulação capitalista, e das equações democrático-institucionais, que lhe são
geneticamente estranhas e estruturalmente insuportáveis, na forma de um regime
minimamente coerente e estável. O politicismo atua neste contexto, enquanto
produto dele, como freio e protetor. (CHASIN, 1982, pp. 7-8)
Pesando os traços específicos, Chasin estabelece as diferenças concretas entre
particularidades históricas distintas entre si, que possuem similitudes se comparadas
com as determinações imanentes à via clássica, porém, deixa consignado que esta-
mos diante de predicados abstratos, cuja concreção efetiva somente se obtém em sua
consideração histórica, a saber:
no momento em que se determina que, no caso alemão, se está indicando uma
grande propriedade rural proveniente da característica propriedade feudal posta
no quadro europeu, enquanto no Brasil se aponta para um latifúndio procedente
de outra gênese histórica, posto, desde suas formas originárias, no universo da
economia mercantil pela empresa colonial. Do mesmo modo quanto à expansão
das forças produtivas. Em ambos os casos o desenvolvimento é lento e retarda-
tário em relação aos casos clássicos. Mas, enquanto a industrialização alemã é das
últimas décadas do século XIX, e atinge, no processo, a partir de certo momen-
to, grande velocidade e expressão, a ponto da Alemanha alcançar a configuração

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imperialista, no Brasil a industrialização principia a se realizar efetivamente muito


mais tarde, já num momento avançado da época das guerras imperialistas, e sem
nunca, com isto, romper sua condição de país subordinado aos pólos hegemô-
nicos da economia internacional. De sorte que o “verdadeiro capitalismo” alemão é
tardio, se bem que autônomo, ao passo que o brasileiro, além de hiper-tardio, é caudatário das
economias centrais (CHASIN, 1977a, p. 156)
De posse desse profundo domínio dos objetos investigados, não operando com
nenhuma forma de concessão e reducionismo, Chasin pôde explicitar as especifi-
cidades que distinguem os dois fenômenos históricos, e com isso as necessidades
ideológicas determinadas, pois,
o fascismo é uma ideologia de mobilização nacional para a guerra imperialista,
que se põe nas formações de capitalismo tardio, quando estes emergem na condi-
ção de elos débeis da cadeia imperialista, e o integralismo uma manifestação de
regressividade nas formações de capitalismo híper-tardio, uma proposta de freagem
do desenvolvimento das forças produtivas, com um apelo ruralista, no preciso
momento em que estas principiam a objetivar o “capitalismo verdadeiro” (CHA-
SIN, 1978, p. 647).
Chasin, portanto, em seu estudo sobre O integralismo de Plínio Salgado, delucida a
questão da natureza histórico-social desse fenômeno particular, precisamente como
uma crítica romântica ao capitalismo de fundo ruralista. Com isso, ilumina a desti-
nação histórica da ideologia integralista, o centro de onde se ramificam os principais
nódulos ideológicos do fenômeno do integralismo. A utopia reacionária do paraíso
rural, o núcleo ideológico diretor, que passou inteiramente despercebido pelos intér-
pretes da análise convencional.
Rumo à terra!, a chave do integralismo pliniano, surge, assim, numa época das
guerras imperialistas, entre os anos que abrangem as duas décadas, de 1922 a 1937. A
significação concreta dessa palavra de ordem revela-se como a matriz segundo a qual
se elevaria, naturalmente, uma organização econômico-social adequada ao espírito
nacional e, também, ao desenvolvimento do sentimento cristão do povo brasileiro.
Se o ideário pliniano forma-se anteriormente aos eventos de 30, e se mantém intei-
ramente coeso, nesse período, com as indeterminações advindas desse processo po-
lítico, Salgado manifesta a urgência de organizar o movimento integralista no plano
nacional.
Por esta razão, Chasin descreve os contornos que condicionam a emergência
dessa propositura:
De modo que, enquanto o momento internacional vive o confronto imperialista,
caracterizado pela luta em torno da redivisão territorial do mundo, suscitada exa-
tamente pelas necessidades da expansão da produção, Salgado emerge com uma
proposição de freagem da acumulação capitalista, recusa o modo de existência

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Antoni o R ag o Fil h o

urbano-industrial, acena com uma vaga e longínqua civilização agrária que se im-
porá espontaneamente à admiração mundial, e defende programaticamente para
o Brasil um urgentíssimo retorno à terra. (CHASIN, 1978, p. 618)
Esta é, portanto, a determinação essencial da natureza ideológica do integra-
lismo de Plínio Salgado, não detectada pela crítica convencional, como manifestação
de oposição romântica ao capitalismo, de uma ótica do pequeno capital, que se põe
contra os efeitos do desenvolvimento do capitalismo híper-tardio. Coloca-se, dessa
maneira, com uma doutrina em face da urgência política, própria às indefinições
do processo aberto em 30, desenvolvendo para esta função social um discurso per-
suasivo. “É”, afirma Chasin, “a urgência de uma tentativa desesperada de tolher a
progressão histórica”!
Entende-se, pois, a natureza social dessa forma de regressividade que luta deses-
peradamente contra o maquinismo e o materialismo da ordem social burguesa, mirando
um retorno à terra: “Queremos o indivíduo integral. Nós, caboclos dos trópicos,
proclamamos, em face de uma civilização que nos quer deprimir, os sagrados direi-
tos do homem brasileiro. O indivíduo como força moral é o centro da família, como
força econômica é a razão de ser de sua classe. E é em conseqüência dessas duas forças
que ele age, como força política no Estado”, escrevia Plínio no Manifesto da Legião
Revolucionária de São Paulo, em janeiro de 1931. Ideologia esta que busca atingir aquilo
que considera a raiz dos males que afetam a nação brasileira. O verdadeiro engendra-
dor dos conflitos e dos contrastes sociais, “o Estado liberal democrático é um Esta-
do opressor”. Por isto, no jornal A Razão de 17 de julho de 1931 Salgado condena:
“A luta de classes tem a sua origem na concepção desse estado que exerce, através de
sua força armada e do seu judiciário, apenas o papel de esbirro”.
Nesse sentido, preso à visão politicista do capital atrófico, Salgado propõe a ins-
tauração de um estado forte, que face ao raquitismo deste sujeito histórico, na acepção
chasiniana, surge como um estado intermédio, uma vez que quer se diferenciar tanto
do estado fascista como do liberal, suposto como um estado pequeno-burguês para
fazer prevalecer um capitalismo pequeno-burguês de base rural. Este estado forte
põe-se, assim, como instrumento da revolução espiritualista, que tem na família o seu
esteio moral. A revolução espiritualista tem o significado de um movimento de regres-
são, de retomada dos valores imutáveis abandonados pela humanidade, a fim de se
reporem equilíbrios perdidos; nesse sentido, para Salgado, “A Revolução tem que
lutar contra os fatos /.../. É aí que se evidencia o caráter subjetivo (leia-se: idealista,
espiritualista) da Revolução. Pois ela não se conforma com o desenvolvimento das
forças materiais da sociedade” (SALGADO apud CHASIN, 1978, p. 614).

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

Na entrevista concedida à Folha de S. Paulo, ao delinear o nódulo ideológico da


intuição, elemento básico do irracionalismo integralista, Chasin condensa esta formu-
lação, nos seguintes termos: com
o entronizamento da intuição como o único processo válido de captação da ver-
dade, ele rejeita, por exemplo, a ordenação teológica do cristianismo a partir da
Idade Média. O indivíduo, para Plínio Salgado, é meramente alguém que faz um
movimento cativo em torno do absoluto, e que age corretamente enquanto circu-
la nas proximidades do absoluto, e age erradamente enquanto circula distante do
absoluto. A revolução, para o chefe integralista, é o movimento que repõe equilí-
brios perdidos, que reencontra o velho, perdido por um erro do espírito humano.
É por isso que ele escreveu que, quando se pensa que se está indo para o passado,
é quando se está indo para o futuro (CHASIN, 1977, p. 6).
Por meio desta revolução subjetiva, Salgado busca fundar uma organização cor-
porativa, de fundo cristão, pois, deseja restabelecer a fraternidade e solidariedade
humana assemelhadas às corporações medievais, a fim de não permitir a acumu-
lação desenfreada do capital e o domínio do capital estrangeiro. O corporativismo
integralista visava, assim, a restringir a progressividade dos eventos históricos, que
reordenaria o rumo da industrialização e materialização da vida social. A crítica cha-
siniana, decifrando esta solução de meio termo, como expressão da debilidade estrutural
desse sujeito histórico, conclui com primor: “Estado que é pensado num ponto
intermediário entre o poder de autoridade decaída, consubstanciado pelo liberalismo,
dado mesmo como em colapso desde a Primeira Guerra Mundial, e a autoridade abso-
luta, absorvente e destruidora da personalidade, e que afirma uma finalidade própria.
Poder-se-ia falar aqui de um estado intermédio para um capitalismo intermédio” (CHA-
SIN, 1978, p. 613).
Para Salgado, vivíamos uma época de terror conduzida pelo capitalismo, “o
grande bolchevista”, porque olhando para “as causas das desgraças financeiras do
Brasil, veremos que o único culpado foi o capitalismo universal”. A terceira humani-
dade seria, desse modo, o resultado das destruições causadas pelo capitalismo e pelo
liberalismo, o que acabou por gerar uma época sem Deus, caracterizada pelo avanço
das ciências e do materialismo. Diante desse quadro regido pelo domínio do ban-
queirismo internacional e da ameaça comunista, o mundo europeu achava-se inteiramente
dilacerado pelas lutas de classes. Nesse sentido, Salgado propõe um movimento de
resistência rumo à direita. “Trata-se, da ótica pliniana, de um movimento de regenera-
ção do poder de Estado, e das nacionalizações pela atualização, particularmente no
caso italiano, do espírito hierárquico do poder de Roma imperial, e da organização
medieval do trabalho”. Com isso, Chasin tenta mostrar a visão peculiar do fascismo
construída pelo integralismo, a tão propalada “superioridade”, na medida em que
“Salgado enfatiza que este transporta o Passado para o primeiro plano, para o Presente”.

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Na visão pliniana do mundo, que entende o evolver histórico como oscilação


pendular do espírito humano entre o bem e o mal, numa permanente rotação em tor-
no do Absoluto, como frisa Chasin, “Em nenhum instante o evolver gera algo que já
não estivesse prefixado. Não existe o novo, apenas presentificações, atualizações, na
forma de essências perenes. /.../ Com a prevalência do materialismo sobre o espiri-
tualismo, que se efetiva especialmente a partir do sempre estigmatizado século XIX,
Salgado tematiza constantemente o caos produzido pela civilização ocidental com o
desenvolvimento do capitalismo, a época terrível da absorção do homem pela má-
quina” (CHASIN, 1978, p. 615). Nessa linha de crítica romântica marcada por forte
teor espiritualista, o comunismo nada mais seria do que a finalização de um mesmo
espírito, o completar-se do desenvolvimento do capitalismo. “Conseqüentemente,
todo o combate ao comunismo implica um combate ao capitalismo e, inversamente,
todo combate ao capitalismo obriga ao combate do comunismo. É aí que se mostra
bem claramente o liame no pensamento pliniano, entre sua crítica romântica do ca-
pitalismo e seu visceral anticomunismo” (CHASIN, 1978, p. 616).
É sabido que para Salgado o fascismo é considerado um estágio inferior com
relação ao integralismo. “Em contrapartida, o integralismo é a doutrina de uma nova
civilização, o pensamento do século XX, que supera a luta de classes, fenômeno típico
do século XIX, pela luta das civilizações. E será através de tal doutrina que o Brasil,
invertendo as tendências, até então em vigor, influirá sobre a Europa, quando esta se
puser à altura e em condições de compreendê-lo. O integralismo será a palavra nova
do Brasil para o mundo dos novos tempos.” (CHASIN, 1978, p. 616)
Em virtude de o Brasil fazer parte das civilizações geográficas – os fatos naturais
matrizam as características formadoras da nacionalidade –, dessa maneira, não segue
o destino caótico encetado pelas civilizações geológicas, que caminham no sentido da
industrialização, mas sim a sua vocação “agrícola por fatalidade de suas condições”
(Salgado). Armado da revolução espiritualista, o Brasil, país jovem, liberto das perturba-
ções do mundo industrial e tecnológico, seguindo a sua via natural, poderia revelar a
saída para essa “luta de civilizações” que avassala o universo. No plano econômico,
o paraíso rural, com uma pletora de pequenas propriedades rurais e o artesanato a se
harmonizarem; no plano étnico, a raça harmoniosa do futuro, a construção de uma raça
que, graças ao elemento tupi, assimila as mais variadas etnias, consubstanciando-se
numa concórdia nacional.
Trata-se, portanto, de uma visão do mundo que expressa o desespero de uma
limitada categoria social, numa proposta inteiramente anacrônica, posta num mo-
mento histórico específico de nossa formação social: a passagem da ordem agro-
exportadora capitalista para a ordem urbano-industrial. Precisamente nesse período

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

de transição emerge a apologética integralista, que, tangenciando a superfície das


contradições do capitalismo de extração colonial, divisa uma catástrofe e crise derra-
deira da humanidade, e propõe um retrocesso, uma volta à agricultura, a resposta da
“Quarta Humanidade”, que ensinaria as nações velhas e cansadas do ocidente.
Numa passagem longa, mas com expressivo rigor, em que sintetiza as deter-
minações básicas que configuram o fenômeno do integralismo, Chasin pode ca-
racterizar a utopia reacionária de Salgado, no contexto da particularidade histórica do
capitalismo brasileiro, do seguinte modo:
A antimodernização pliniana é a mais extremada, manifestando-se, na crítica ro-
mântica do capitalismo, e na reação diante do que toma como a derrocada mundial
deste (o primeiro conflito mundial, as crises de superprodução e desemprego,
a instauração do estado soviético), como um salto para trás em busca de formas
pré-capitalistas de entificação social. De forma que, diante do capitalismo inter-
nacional em crise, e em face da industrialização brasileira (que se levada adiante só
poderia conduzir à mesma ruína capitalista em que o mundo desenvolvido já se
encontra, e cuja última fase é o comunismo), aproveitando a lição das nações antigas
e cansadas, Salgado, na evasão de um mundo desconfortável e inquietante - raiz de seu uto-
pismo reacionário e do desespero pequeno-burguês – retoma a “vocação agrária”
brasileira, agora pelo nível mais baixo dos pequenos proprietários. Para tanto,
impõe-se a freagem da expansão das forças produtivas. Convicto de que é par-
cela do cobiçado botim do imperialismo, e convencido também de que, em face
dele, não dispõe, nem mesmo em percentagem mínima, dos recursos para uma
defesa material efetiva, lança à arena de luta, o combate espiritual ao imperialismo.
O anticosmopolitismo, o nacionalismo defensivo o expressam perfeitamente: é a
dimensão de seu antiimperialismo regressivo. (CHASIN, 1978, pp. 644-5).
Por mais incrível que possa parecer, para os integralistas, a ameaça proletária
não era posta como problema imediato. O pior estava na inconveniência do libera-
lismo na vida nacional, que, com sua fórmula do sufrágio universal, deixava o estado
nas mãos de interesses particulares, sem regular e controlar, de um ponto de vista
moral, o desenvolvimento econômico de nosso país. Uma economia sem restrições,
fatalmente, implicaria a destruição do pequeno proprietário e sua proletarização
definitiva, em conseqüência, conduziria as massas a uma vida miserável e, aí sim,
encontraríamos um grande risco: a situação de miserabilidade e de insatisfação das
massas poderia fazê-las serem submetidas aos interesses comunistas. Aos seus olhos,
as coisas lhes pareciam muito simples: como não ver que a política liberal é que está
na raiz da política comunista?
Objetivada pela crítica chasiniana, sabemos então que essa manifestação de-
sesperada do anticapitalismo romântico foi a expressão de uma luta dos pequenos

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proprietários contra o grande capital, a fim de preservar e conservar o homem integral,


identificando-o com o camponês e com o artesão. Alcança-se, assim, a diferença
essencial que especifica fenômenos históricos distintos,
De modo que o “burguesismo – mal do século” não é uma farsa retórica, mas a
forma da crítica romântica no capitalismo híper-tardio. E uma moral da resigna-
ção, da pobreza edificante, se põe como a “revolução espiritualista”, e enquanto
tal, é a defesa de uma totalidade inferior. Mas a defesa de uma totalidade, não o esfacela-
mento de toda e qualquer totalidade. O fascismo esfacela para expandir; o integralis-
mo retrocede com medo do esfacelamento. Ontológica e teleologicamente, fascis-
mo e integralismo se põem como objetivações distintas. (CHASIN, 1978, p. 652)
Há que acrescentar, ainda, outra dimensão do integralismo, a vertente integralis-
ta de Gustavo Dodt Barroso (1888-1959), o segundo homem da escala hierárquica
do integralismo, que se distinguia das demais por seu forte anti-semitismo. A partir
de seu ingresso nas hostes da AIB, em 1933, graças à influência de Madeira de Frei-
tas, Gustavo Barroso, o fundador e primeiro diretor do Museu Histórico Nacional,
toma conhecimento de obras anti-semitas, de fundo cristão, e, imediatamente se põe
a ler as obras de Drumond e, em especial, As forças secretas da revolução - maçonaria e
judaísmo (P. Alegre: Globo, 1931) de Léon de Poncins, assim como traduz com pres-
teza a peça fraudulenta Os protocolos dos sábios de Sião, da versão francesa, em 1936. O
que mais uma vez passou batido aos intérpretes convencionais é que não levam em
conta o anticapitalismo romântico e a natureza cristã do anti-semitismo de Gustavo
Barroso, no afã de explicar a analogia do integralismo com o nazismo, especificidade
que a distingue do dogma da teoria da raça expresso no darwinismo social, tal como
foi aventado na obra chasiniana.
A crítica imanente do conjunto das obras de Barroso, particularmente no perí-
odo de sua franca atuação (entre 1933 e 1938), ainda que com o nódulo ideológico
do anti-semitismo, revela a mesma identidade do nacionalismo defensivo nascido
nos contornos da via colonial de objetivação capitalista. Como é sabido, Os protocolos
constituem-se numa das maiores mistificações literárias já produzidas, divulgadas
principalmente em solo russo, em princípios do século XX, mais intensamente, em
1905; aparentam ser uma súmula, na forma de transcrição de atas do “Primeiro
Congresso Sionista” realizado na Basiléia, em 1897, e que narram, em tom farsesco,
as razões e os objetivos de um plano conspirativo universal que seria levado a cabo
por organizações secretas a fim de instaurar o domínio judaico em todo o mundo
cristão.
Os protocolos, na realidade, foram baseados na sátira de Maurice Joly, um ferrenho
crítico do bonapartismo francês no século passado, e foram modificados pela Okra-
na, a polícia secreta do tsar Nicolau II, reforçando os pogroms e a política de combate

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

aos movimentos revolucionários, no sentido de que atribuíam aos judeus a condução


desses processos. Em sua ideologia, Os protocolos consubstanciam toda uma gama
de conteúdos contra-revolucionáros, com traços de reação feudal, que apontava o
judaísmo como a fonte intelectual dos processos revolucionários que se espalhavam
no mundo europeu.
Nessa peça, são apresentados os pontos programáticos de um plano secular,
cuja finalidade reside num suposto domínio universal dos judeus sobre os cristãos.
O mundo cristão é apresentado sempre com conotações positivas, no registro pro-
tocolar, pelo suposto agente judaico, como um mundo hierarquicamente constituído,
com base na religião e num poder assentado na autoridade divina, onde as multidões
vivem pacificamente, em perfeita harmonia espiritual. Por esta razão, a estratégia
judaica, nessa peça fraudulenta, tem como objetivo a destruição dessa unidade espi-
ritual e material da ordem cristã.
De acordo com esse simulacro, os tempos modernos se apresentam inteiramen-
te corrompidos pela inteligência satânica dos judeus e sob o domínio do ouro. “Todas
as engrenagens do mecanismo governamental dependem dum motor que está em
nossas mãos: esse motor é o ouro”, escrevem os supostos “sábios de Sião”. A força
moderna do ouro nas economias, aliada a seu culto e à especulação financeira, ins-
tauram o poder despótico do capital. Por esta razão, “O capital, para ter liberdade de
ação, deve obter o monopólio da indústria e do comércio; é o que já vai realizando
a nossa mão invisível em todas as partes do mundo” (OS PROTOCOLOS, 1939,
p. 154).
Mesmo com a sua contundente condenação num fórum internacional em Ber-
na, em meados da década de 30, conforme Gustavo Barroso, mesmo que tudo fosse
inverdade, “Nos Protocolos está debuxado todo o plano estratégico de Israel para a
conquista do mundo”. A melhor arma para enfrentar os “agentes sem pátria”, desig-
nadamente os banqueiros, os especuladores, os industriais, os homens de negócio, os
homens públicos, mancomunados com o cosmopolitismo, o imperialismo, a corrup-
ção e os favores nos empregos públicos –, era a restauração da moral cristã que deveria
ser levada a todas as esferas da nação brasileira. Mais ainda, com a centralização
política e a descentralização administrativa assentada nos municípios autônomos, o
estado integral deveria instituir a verdadeira “unidade integral do Brasil”, pois
Controlará a economia nacional de modo a impedir o intermediário de sugar as
forças da produção, o trabalho de ficar reduzido pela lei da oferta e procura ao
papel de mercadoria, a especulação de abafar consumidores e produtores, a so-
berania econômica nacional de cair às mãos do judaísmo internacional. Naciona-
lizará as minas, as estradas de ferro, a navegação, as quedas de água, as empresas
de eletricidade e o banco. Terá o monopólio dos produtos que servem de base à
alimentação pública. (BARROSO, 1935, p. 124)

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Barroso vê a possibilidade de invasão do capital financeiro de modo intenso, o


que acarretaria um aprofundamento da dependência econômica da nação, com os
grandes proprietários dominantes de origem judaica a controlar o próprio estado
nacional. Nesse sentido, os males do materialismo contemporâneo adviriam inevi-
tavelmente com a grande indústria e o maquinismo. Na obra Espírito do século XX
(1936), ele é bastante incisivo quando se reporta aos elementos desagregadores da
ordem social: “O pai de todas as terríveis lutas que se processam no seio da socieda-
de contemporânea é o capitalismo. O sistema capitalista produzido pelo liberalismo
político e econômico implantou a grande indústria, sufocando a pequena e o artesa-
nato, e fez triunfar a máquina, anemiando o valor do trabalho manual” (BARROSO,
1936, p. 271).
Na mesma direção de crítica social, Barroso se insurge contra o expansionismo
imperialista, que leva à desestruturação da ordem social, em especial, à dissolução
das pequenas propriedades e, conseqüentemente, conduz à proletarização de amplas
parcelas da sociedade brasileira. Esse desespero diante das conseqüências do expan-
sionismo do grande capital fica evidente em seu livro O quarto império (1935): “O
mundo foi partilhado pelos sindicatos ocultos de financistas e negocistas sem pátria,
quase todos judeus. /.../ E a propriedade privada, sobretudo a pequena propriedade,
começou a ser sugada, destruída e concentrada em blocos dependentes de pequeno
número de detentores, de modo a se proletarizarem as classes sociais, encaminhan-
do-as para uma definitiva escravidão econômica” (BARROSO, 1935a, pp. 126-7).
Confirmando, dessa maneira, o aporte chasiniano que descortina a diferença
histórica entre o conteúdo biológico da concepção rácica do nazismo, matriz da
superioridade ariana sobre o povo hebreu, no anti-semitismo integralista, o “judeu”
é a encarnação do “anticristo”; segundo Barroso, não se trata de um problema ra-
cial, uma vez que “Ninguém combate o judeu porque ele seja da raça semita nem
porque siga a religião de Moisés. Mas sim porque ele age politicamente dentro das
nações, no sentido de um plano preconcebido e levado por diante através dos sécu-
los” (BARROSO, 1935b, p. 119).
Esse barbarismo chega à imputação de que “Na verdade, grande parte dos ju-
deus – já não professa religião alguma. /.../ A religião e a raça nada têm a ver, pro-
priamente, com o antijudaísmo” (BARROSO, 1937, p. 87).
Trata-se, pois, de restaurar a ordem social, conservando intacta a estrutura pro-
dutiva em nosso país, cortejando os grandes proprietários rurais, que sofrem a “tra-
gédia do café” e pondo-se – e aí reside a particularidade social do integralismo – na
defesa dos pequenos produtores rurais. Projeto restaurador que, de uma posição
ruralista, tem como pressuposto a paralisia da história, por meio do fetiche de nossa

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

singularidade social e a efetuação “integral” da colaboração das classes antagônicas.


Só dessa maneira, acreditava Barroso, os confrontos de classe seriam evitados e a
preservação do núcleo essencial da sociedade garantida: a família. A defesa da famí-
lia, pela garantia de acesso à propriedade privada e a proteção de um estado integral,
eis a fórmula da salvação do pequeno-burguês.
Segundo os parâmetros dados pelo fundador do integralismo, Barroso vê como
fim último do desenvolvimento do capital a sua conversão em capitalismo de estado.
Sendo assim, para formar uma barreira a essa avalancha multiplicadora da materia-
lização do mundo, restaria uma única saída: a criação de um “grande movimento
ascético” de mobilização popular, visto que
o mundo espiritual reserva aos que nele crêem perspectivas ilimitadas. Somente ele
poderá levar os homens a um destino capaz de acalmar na sua alma a inquietação
que trazem do mistério insondável de sua origem. Diante do Anticristo, formado
pelo comunismo, irmão e sócio do liberalismo burguês, reverso do capitalismo, impõe-se a
volta ao Cristo para uma nova salvação. O Império da Animalidade e da Economia,
o Império do Capricórnio só poderá ser vencido definitivamente por uma nova
espiritualização da Humanidade (BARROSO, 1935a, p. 138).
O nacionalismo integralista visava, desse modo, à edificação de uma “democra-
cia orgânica” que integrasse todas as categorias sociais. Daí, o símbolo emblemático
do sigma. Vê-se, pois, que pretende efetuar uma conciliação de classes, no mais
perfeito equilíbrio no interior da diferenciação entre as classes sociais, postas pela
própria “desigualdade natural”, a fim de se manter a totalidade orgânica brasileira.
Defrontando-se com a possibilidade de objetivação do capital industrial em nosso
país, os integralistas apresentaram a sua contra-revolução: a revolução do espírito.
Acreditavam que uma verdadeira cruzada se fazia necessária para se combater o
outro espírito que havia construído toda uma história: o espírito do materialismo. Para
atacar este mal, essa revolução deveria se alçar a uma forma política, um estado inter-
médio, porque “O Integralismo não pode ser extremismo, porque é uma síntese, um
todo, não se colocando em extremo algum, porém, no meio, não caminhando para
os lados, a distanciar-se cada vez mais do centro, porém marchando com esse centro
na sua direção normal, para a frente” (BARROSO, 1936, pp. 236-7).
Quem se dispuser a ler os discursos integralistas, sem o viés politicista e cultura-
lista, reconhecerá que há uma leitura integralista do próprio fascismo. Distinguindo-se
do lema mussoliniano e do lema leniniano, expressões da forma totalitária, o ideólogo
integralista acredita que “O estado totalitário, comunista ou fascista, forma os ho-
mens. O estado integral é formado pelos homens /.../ formando uma democracia
orgânica e não um estado absorvente. Ela [a concepção integralista] é profundamente
cristã”, sendo assim, “Nazismo, fascismo e integralismo são cidades muito diferen-

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Antoni o R ag o Fil h o

tes, diversas repúblicas. Todos querem, organizando os respectivos nacionalismos, ‘ven-


cer a anarquia’, mas cada um tem sua doutrina própria e obedece a realidades humanas
diferentes, que só os ignorantes ou os de má-fé negam ou escondem” (BARROSO,
1937a, p. 168) Nessa direção, a universalidade fascista é identificada a esta reação nacio-
nalista que atua no sentido da nova espiritualização.
Por outra parte, Barroso reagiu, com veemência, à mera identificação do inte-
gralismo com o fascismo, pois “Em primeiro lugar, nenhum doutrinador integralista
defende a teoria do fáscio. Isso é uma inverdade flagrante e manifesta. Todos os
autores de livros integralistas mostram que o integralismo, na generalidade de seus
princípios, possui pontos de contato com o fascismo e o hitlerismo, porém os supera no
sentido espiritual, de consulta direta às realidades brasileiras”. Em suma, “O que nós
defendemos são os princípios básicos da civilização cristã ocidental e, como esses
princípios fundamentam todos os movimentos geralmente chamados fascismos por
falta de mais apropriada designação, naturalmente com eles cruzamos aqui e ali”.
Qual é, todavia, o sentido histórico-social dado pela leitura integralista de Gus-
tavo Barroso acerca da natureza desses movimentos? A sua resposta é peremptória:
“A reação fascista tenta e realiza na Itália e na Alemanha a volta ao campo, a fecun-
dação das glebas abandonadas pelo exagero das indústrias, o contato com a fonte de
vida eterna, cuja profundidade ninguém mede. Na organização do estado integral
brasileiro, o problema da terra, abandonado pelo nosso liberalismo de fancaria, será
atacado como deve ser. E sua resolução fará do Brasil o celeiro do mundo” (BARROSO,
1935c, p. 80).
O retorno à terra! A hostilidade à ordem urbano-industrial! Esta percepção ingênua
no tratamento da natureza do fascismo por parte dos integralistas – o que de modo
algum os põe à margem do seu reacionarismo, ainda que numa outra especificidade
– foi também colocada por Reale:
Não nego que tenha havido excessivo e até ingênuo entusiasmo pelas realizações
fascistas ou mesmo hitleristas, mas é necessário nos situarmos na época (1932-37)
para darmos conta desses desvios ideológicos: no fundo, sentíamos preservada,
em seus valores próprios, a doutrina integralista fundada no corporativismo de-
mocrático e num nacionalismo defensivo, para salvaguarda de um País no início
de seu desenvolvimento industrial. O imperialismo fascista-nazista se, às vezes, me-
receu ingênuas referências, não tinha guarida no cerne do pensamento integra-
lista, nem havia razão para tal atitude no contexto da América Latina (REALE,
1986, p. 83).
Mais adiante, em outra referência, Reale salienta o equívoco de sua posição:
“Via, naquela época, o corporativismo fascista como um meio de superação da polí-
tica monopolista, sem antever que o estado fascista iria subordinar-se cada vez mais

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

a injunções imperialistas, como a da Guerra da Abissínia, que iriam afastá-lo defini-


tivamente da anunciada terza via” (REALE, 1986, p. 92).
Ora, o que o esforço chasiniano alcançou – despido de qualquer preconceito
ideológico – não deixa margem à dúvida, colado às determinidades que o condi-
cionamento histórico-social gerou, é possível alcançar as diferenças: “Enquanto,
no integralismo, o suposto último é uma concepção espiritualista do universo e do
homem, concretada essencialmente em termos do catolicismo tradicional, no caso
‘clássico’ do fascismo, temos uma expressão do darwinismo social, levado às últimas
conseqüências, consubstanciando literalmente o dogma central da raça.” (CHASIN,
1978, p. 648)
Diante de sua contundente exigência, Chasin foi em busca do primeiro estudo
acadêmico, em língua alemã, escrito em 1938, em que o autor explicita as debilidades
de nosso integralismo ao não acompanhar a dimensão rácica do nazismo. É bastante
reveladora, nesse sentido, a crítica de um ponto de vista nazista que se faz ao integralis-
mo brasileiro, exatamente quanto à questão racial. Em Der Brasilianische Integralismus,
Karl Heinrich Hunsche denuncia esta fraqueza:
o integralismo brasileiro adota a teoria assimilatória, antibiológica, do nativismo
lusitano /.../. Destruindo, porém, os diversos grupos étnicos – e isto ocorre se
se sacrificam as características particulares, que eles possuem por vontade divina,
a favor de uma idéia vaga de uma raça mista no futuro –, destroem-se simulta-
neamente também os valores inerentes a esses grupos. Sim, pode até ser dito
que o integralismo concorda neste ponto com as idéias materialístico-estáticas do
comunismo, que também não reconhece os limites por vontade divina dos povos,
na sua originalidade disposta pelo destino. A teoria de Meltingpot (assimilatória)
do integralismo está, portanto, diametralmente em oposição à sua própria idéia
dinâmica de base, isto é, àquela qualidade pela qual o integralismo brasileiro supe-
ra o seu homônimo português. (apud CHASIN, 1978, p. 649)
Em outros termos, o autor nazista critica exatamente esta falha do integralis-
mo, creditada à tese de Salgado acerca da “raça harmoniosa do futuro”, na defesa
energética do racismo biológico próprio da ideologia nacional-socialista. Nessa medida, é
“impossível formar no Brasil”, reclama Hunsche,
qualquer movimento vivo político ou cultural ou de outra natureza sem que o
mesmo adote uma perfeita atitude frente ao problema racial. Mas, na verdade, ele
[o Brasil] adotou a atitude racial do nativismo lusitano que muito se assemelha à
sua. Ambos afirmam que o problema racial no Brasil só poderá ser solucionado
de acordo com a realidade brasileira, em harmonia com a brasilidade, mas não
com o que os cientistas europeus constataram em seus laboratórios. Mas se em
outros pontos já constatamos a fragilidade e a interpretação subjetiva do conceito
de brasilidade, com maior razão ocorre isto no problema racial. (apud CHASIN,
1978, p. 649)

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Antoni o R ag o Fil h o

Recorde-se, mais uma vez, que, em vários momentos, o próprio Barroso pro-
curou mostrar a diferença do seu anti-semitismo com respeito ao nacionalismo hi-
tlerista, de natureza rácica. Em sua ótica, se o anti-semitismo alemão tem como
base a “unidade dos povos germânicos”, isto de forma alguma se aplicaria ao caso
brasileiro, em virtude das “verdades essenciais” de nossa tradição histórica. Isto por-
que, escreve em Integralismo e catolicismo, “O Brasil não tem brasileiros exilados em
minorias étnicas além de suas fronteiras e é um país cadinho de raças. Também a
questão judaica aqui não se apresenta sob o mesmo aspecto. Temos de nos libertar
da escravidão ao banqueiro internacional e temos de impedir a formação de forças
paralelas ao estado, que entravam a ação deste e o levam a medidas favorecedoras
de interesses de grupos políticos, econômicos e financeiros” (BARROSO, 1937c, p.
114).
E, no caso do principal ideólogo do integralismo, qual era a sua posição diante
desta questão? Salgado, numa fórmula sintética, enfatizará que o “problema do mun-
do é ético e não étnico”. Numa carta de 1934, publicada na revista Panorama, deixa
explícito que:
“Não sustentamos preconceito de raça; pelo contrário, afirmamos ser o povo e
a raça brasileiros tão superiores como quaisquer outros. Em relação ao judeu,
não nutrimos contra essa raça nenhuma prevenção. Tanto que desejamos vê-la
em pé de igualdade com as demais raças, isto é, misturando-se pelo casamento
com os cristãos. /.../ O judeu capitalista é igual a um cristão capitalista: sinais de
uma época de democracia liberal. Ambos não terão mais razão de ser porque a
humanidade se libertará da escravidão dos juros e do latrocínio do jogo das Bolsas
e das manobras banqueiristas. A animosidade contra os judeus é, além do mais,
anticristã e, como tal, até condenada pelo próprio catolicismo. A guerra que se fez
a essa raça, na Alemanha, foi, nos seus exageros, inspirada pelo paganismo e pelo
preconceito de raça. (SALGADO apud CHASIN, 1978, p. 572)
Da mesma forma, ainda que a propositura pliniana esteja centrada na idéia da
“harmonia das raças”, revela-nos que Salgado tampouco estava livre de preconceitos
anti-semitas. “Todavia, não se trata nunca de um anti-semitismo que tenha por
fundamento bases raciais. Enquadra-se, isto sim, no estereótipo da sovada fórmula
do judeu-usurário, manipulador internacional dos dinheiros. E nem mesmo vem à
tona o anti-semitismo de fundo religioso, tão comum em determinadas formas da
prática católica” (CHASIN, 1978, pp. 572-3).
É interessante observar que essa utopia reacionária, perpassada por uma forma
específica de anticapitalismo romântico, de fundo cristão, ensejou uma forte sedu-
ção naqueles que acreditavam na sedutora “revolução espiritual” que, a partir das
“verdades eternas da terra e da raça”, pudesse moralizar as mazelas da sociedade

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J. Chasin: a crítica ontológica do anticapitalismo romântico típico da "via colonial". Os integralismos.

capitalista brasileira. Isto explica a massiva adesão à sua propositura ideológica. Ob-
viamente, os problemas enfrentados pelos integralistas eram extraídos de suas con-
dições concretas de vida; no entanto, estavam impossibilitados da real compreensão
dos fenômenos apontados em face da determinação social de sua própria categoria
social. Por isso, um reconhecido crítico pôde inferir que os integralistas “nas críticas
que faziam atingiam o cerne dos problemas nacionais, comprovando como o nosso
país era explorado pelos banqueiros internacionais, como o voto secreto, que tanto
entusiasmava os tenentes, não melhorava as condições de vida das camadas humil-
des, salientando a falta de espírito público, de formação ideológica dos políticos
profissionais” (ANDRADE, 1980, p. 72-3). Contudo, se o integralismo é a cabal
expressão e protesto de uma miséria real, a miséria brasileira, a constelação ilusória
de seu nacionalismo defensivo acabou por se configurar numa visão do mundo profun-
damente regressiva que, diante da sua fuga aos determinantes concretos da realidade
nacional, dada a fraqueza congênita do seu ser social, sua proposta ficou interditada
de se realizar e ferir concretamente o núcleo real das contradições sociais de nossa
formação histórica.
O mesmo esforço que Chasin empreendeu para efetuar a crítica ontológica do
mundo do capital, em suas manifestações sociais, ideológicas, políticas e filosóficas
– a partir do resgate e da memória de Marx, pela raiz, sem concessão e capitulação
alguma – há que ser trilhado. Em respeito à sua memória e ao seu legado, há que
ser sinalizado que os seus escritos merecem um lugar especial no empreendimento
revolucionário, e da mesma maneira, com sofrimento e transfiguração, sob esta base,
ao menos nessa parte do mundo, o esforço concentrado de uma parcela – seja o
tamanho que for – na luta contra as formas da alienação e do estranhamento, que
não se confunda e nem se submeta ao espírito mesquinho e medíocre que domina
o homem contemporâneo, pode ensejar o recomeçar a partir desses fundamentos so-
lidamente instaurados.

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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

ENTREVISTA

A trajetória de J. Chasin:
teoria e prática a serviço da revolução social

Entrevista com os Profs. Drs. Antonio Rago Filho e Ester Vaisman


Por Lúcia Ap. Valadares Sartório e Vânia Noeli Ferreira de Assunção

Por ocasião dos dez anos do falecimento do filósofo J. Chasin (1937-1998),


reunimos em São Paulo dois de seus mais antigos e fiéis companheiros e interlocu-
tores, Antonio Rago Filho e Ester Vaisman, para conversar sobre o legado teórico
e prático deste grande marxista brasileiro. A escolha desses dois nomes não foi, de
modo algum, aleatória ou arbitrária, ao contrário: entre as pessoas que conviveram
com Chasin, Rago e Ester se mostraram os mais capacitados e confiáveis para uma
entrevista desse teor. Das histórias relembradas por aqueles que estiveram a seu
lado em boa parte de sua vida adulta impõem-se algumas constatações: a coerência
prática, a lucidez teórica, a convicção pelo acerto científico-filosófico do pensamen-
to marxiano, a aposta no homem e a luta pela sua emancipação. E, acima de tudo,
o ineditismo e a densidade de sua personalidade, marcante para todos aqueles que
conviveram com ele. Como demonstra o longo depoimento a seguir, Chasin abra-
çou com paixão e coerência toda uma série de atividades, muitas das quais hoje
desconhecidas, esquecidas pela história. Só por este registro a entrevista já é válida,
mas ainda constam dela análises sobre a realidade nacional efetuadas pelo filósofo,
desdobramentos sobre o pensamento de Marx, comentários sobre autores e aspec-
tos da sua vida particular, sempre atada à sua vida pública, as amizades sólidas e as
traições sórdidas. Conteúdo, do começo ao fim, que busca dar conta desta grande
figura humana que foi J. Chasin e que torna a sua leitura obrigatória.

219
Entrevista

Da esquerda para direita: Vânia, Ester, Rago e Lúcia

Vânia: Nosso objetivo hoje é realizar uma entrevista sobre a trajetória de vida e a obra do
filósofo J. Chasin, com Ester Vaisman e Antonio Rago Filho. Ester, o que você pode falar sobre
a infância dele, onde nasceu, quem era sua família?
Ester: Bom, esse relato que eu vou fazer é baseado naquilo que ele me contou,
naquilo que, nos curtos períodos de contato que eu tive com a mãe dele, ela pôde
me narrar. São características, são aspectos da vida dele enquanto criança, enquanto
adolescente, que ele me contou, e é nessa condição que isso tem de ser levado em
consideração, já que eu não fui testemunha dos fatos. Mas o que é importante ressal-
tar, em primeiro lugar, é que Chasin nasceu em 1937 e é de origem judaica e, embora
seja uma “contradição nos termos”, é de uma família judaica pobre. Ele nasceu na
Mooca, que, na época, era um bairro em que viviam, principalmente, trabalhadores.
Teve uma infância cheia de dificuldades financeiras. Os pais não nasceram no Brasil:
a mãe nasceu na Romênia, o pai nasceu na Polônia, provavelmente num lugarejo
que fazia fronteira com a Lituânia. Ambos vieram na leva de imigração judaica, nas
primeiras décadas do século XX, ou seja, antes da Segunda Guerra Mundial. Não
se instalaram, como a maioria dos judeus dessa leva, no bairro do Bom Retiro, mas
na Mooca. O pai de Chasin chamava-se Nochun Chasin, mas era conhecido por
Nelson. Muitos judeus mudavam o nome porque eram comerciantes e, para que a
clientela pudesse chamá-los pelo nome, entendê-los etc., mudavam o nome original,
aportuguesavam, e virou Nelson. Era, realmente, um homem muito bonito quando

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A t r a je t ó r i a d e J. C ha si n : t eo r i a e práti ca a s e r vi ço da r e vo lução s o ci al

jovem: isso é possível ver nas poucas fotografias que existem. A mãe também era
igualmente bonita. O nome dela era Pepi Chasin. Chasin também tem um irmão
chamado Jaques, nove anos mais novo que ele. Mas o que mais ele lembrava e con-
tava a esse respeito era a avó. A família se estruturava em um esquema matriarcal,
centrado na avó, mãe da mãe dele. Um esquema matriarcal, segundo o qual na casa
da avó é que se reuniam todos os parentes, sempre na cozinha. A avó sempre tinha
algo no fogão para servir para as visitas. Esquema, inclusive, semelhante ao italiano
ou espanhol, muito característico desse tipo de imigração, em que as pessoas se
reuniam na cozinha para conversar, para contar as novidades. A primeira língua
que Chasin aprendeu não foi o português, e sim o iídiche. Ele começou a falar em
iídiche, porque era a língua que se usava na casa da avó, na vida familiar. O pai era
vendedor de roupa de porta em porta, algo que era muito característico dessa leva de
imigrantes judeus, o vender roupa de cama ou peças de vestuário de porta em porta.
Infelizmente, o pai foi internado duas vezes por tuberculose, por longos períodos,
em Campos do Jordão. Foram momentos marcantes para a familia, que se viu às
voltas com a resolução de problemas de sobrevivência, inclusive, é obvio, com o sen-
timento da ausência paterna. A mãe teve, então, de assumir a criação dos filhos, as
funções domésticas, mas também prover a casa. Então, ela saía com pacotes pesados
de roupa de cama, pegava o bonde para bater de porta em porta, e vender – tentar
vender – essas mercadorias. Então, era muito difícil. E, enquanto a mãe saía, dada a
diferença de idade, que num determinado período da vida sabemos que é importan-
te, Chasin ajudou a criar o irmão, cuidava de sua alimentação etc., porque, como já
disse, a criança era pequena e a mãe tinha de sair para vender mercadorias.
Vânia: Ele não chegou a trabalhar nessa época?
Ester: Não chegou a trabalhar. Ele cuidava da casa e cuidava do irmão. Ele
ficava encarregado dessas funções, da função doméstica e tarefas afins. Houve um
período em que a situação melhorou e eles contaram com o apoio de uma ajudante,
de uma empregada doméstica. Mas houve períodos bem difíceis; eles não chegaram,
evidentemente, a passar fome, mas foram períodos difíceis. Eu não sei perfeitamente
a idade, mas foi ainda na primeira infância que Chasin teve reumatismo infantil. Na
época, imagino que não havia tratamento à base de corticóides, de forma que ele
teve de ficar deitado por um ano. Eles moravam em uma casa que só tinha um quar-
to, então, ele teve de ficar deitado na sala, onde todo mundo ficava quando chegava,
o que era bem constrangedor. Era uma casa que ficava na vila e ele via os meninos
jogando futebol e não podia jogar também… Não podia brincar…

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221
Entrevista

Vânia: Eles eram judeus praticantes?


Ester: A mãe, principalmente. Era ortodoxa. O pai nem tanto… A mãe era or-
todoxa, então, a comida servida na casa era kasher. Mas, enquanto a mãe era bastante
séria e rígida, sob vários aspectos, o pai era mais brincalhão, era mais light, vamos
dizer assim, e às vezes fugia do esquema kasher, ia ao boteco da esquina e comia
arroz, feijão com lingüiça!! Era um cara muito brincalhão, gostava muito de futebol.
Tinha um lado brincalhão que Jaques, o irmão do Chasin, tem, o próprio Chasin
tinha, os filhos também têm, que é esse hábito de contar piadas etc. Quando ele ia à
feira para fazer compras, todo mundo o conhecia, e ele ficava apertando os tomates
e, evidentemente, fazia comentários não muito… publicáveis a respeito do estágio
de maturação dos tomates. Todo mundo na feira o conhecia: “Ah, o Sr. Nelson tá
chegando…” Ele já vinha contando piada, fazendo comentários, todo mundo o
conhecia. E Chasin, inclusive, quando esteve em Moçambique, mandou uma longa
carta para o irmão, lamentando a morte do pai, ocorrida no início de 1978, pouco
tempo antes de Chasin partir… Nessa carta, uma carta muito bonita, muito poética
– Chasin tinha um traço poético, um traço literário na escrita –, ele comentava essas
características do pai. Ele nunca se deu bem com a mãe, exatamente pelo rigor, pela
ortodoxia religiosa dela. Ele veio a estabelecer um contato melhor com ela pouco
tempo antes de ela morrer, dois anos antes de Chasin, em 1996, de um câncer na
garganta.
Vânia: Eles tinham relações no meio judaico? Como era, nessa época, a circulação dele?
Ester: Eu não sei bem, mas acho que era um relacionamento mais familiar, mes-
mo. Chasin estudou o antigo primário numa escola judaica, de que eu não lembro o
nome, e depois ele começou a estudar em escola pública, e terminou o segundo grau
em um colégio estadual de referência. Acho que ainda existe, fica no Parque D. Pedro
[em São Paulo]. E o relacionamento com a comunidade judaica era mais via família
propriamente. Na família, a única pessoa que tinha uma condição de vida melhor era
o irmão da mãe, o tio, que possuía em casa um rádio. O Chasin menino gostava de
ir à casa desse tio, porque lá ele tinha condições de ouvir o rádio, era um aparelho
que tinha um botão ou alguma luz vermelha que o encantava enquanto criança. Não
só porque a caixa falava, mas porque tinha uma luz vermelha que o hipnotizava na
caixa… Então, era lá que ele ouvia rádio, música etc., na casa desse tio, que era irmão
da mãe dele.

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A t r a je t ó r i a d e J. C ha si n : t eo r i a e práti ca a s e r vi ço da r e vo lução s o ci al

Vânia: Ele conservou amigos de infância no decorrer da vida?


Ester: Não, não… Mas, por outro lado, há uma coisa muito característica da
primeira geração de judeus que nasceram aqui no Brasil. Eu li, certa feita, um estu-
do socioantropológico sobre isso, que afirmava o seguinte: os filhos de imigrantes
tentam se integrar de toda forma ao país. Eles querem se integrar para não ficar no
limbo… Vejam, a primeira língua que Chasin aprendeu foi o iídiche, e a segunda, o
português. Assim, ele fez um esforço muito grande de se integrar ao bairro, ao país,
aos costumes, aos hábitos. Ele fez questão, inclusive, de fazer o CPOR1 quando es-
tava na faculdade. Era tenente da reserva. Fez questão de servir ao Exército, porque
considerava, achava – certo ou errado, ingenuamente ou não – uma forma possível
de se integrar. Acho que isso é muito característico dessa primeira geração que nasce
de pais que vieram na imigração. Mas, enfim, ele teve uma infância muito difícil,
conflitos domésticos, principalmente com a mãe… E conflitos domésticos com os
pais, porque ambos tinham modos de ser muito diferentes: a mãe, muito rígida, mui-
to ortodoxa, e o pai mais aberto, alegre, enfim, encarava a vida de uma forma um
pouco mais positiva que a mãe.
Vânia: Nesse período de infância e adolescência se manifestava, de alguma maneira que ele
tenha transferido a você, uma tendência para a questão social, filosófica?
Ester: Não. O que se manifestou na adolescência foi o interesse por discutir
questões que estavam na ordem do dia. Por exemplo, no antigo colegial, ele orga-
nizou um grande debate à época, na década de 1950 – imagina como isso deve ter
gerado um frisson –, ele organizou uma série de palestras sobre amor livre. Por outro
lado, em meados da década de 50, Chasin, com cerca de 18 anos, escrevia poemas.
Evidentemente, poemas livres. Ele chegou a participar de concursos de poesias, mas
nunca chegou a ganhar nada. As poesias dele, realmente, não eram grande coisa,
mas, enfim… Ele escreveu poesias… Mais tarde, tentou pintar… Artes plásticas…
Os quadros que ele produziu também não são grande coisa (risos), mas, enfim…
Havia essa veia… E são poesias niilistas, pessimistas, de amores fugidios, enfim, real-
mente, transparece um niilismo acentuado… E ele escreveu também nesse período,
uma coluna num jornal que se chamava União, um pequeno jornal comercial. Então,
1. “O Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) é a unidade de ensino do Exército
Brasileiro responsável pela formação básica, moral, física e técnico-profissional do oficial subal-
terno da 2ª Classe da reserva. /.../ através de seus Cursos de Formação de Oficiais da Reser-
va (CFOR), formam aspirantes-a-oficial, habilitando-os ao desempenho de funções de coman-
do das frações elementares da tropa, tanto na guerra como na paz”. Disponível em: < http://
pt.wikipedia.org/wiki/CPOR>, acessado em 14 set. 2008. Cursar uma universidade dispensa o
serviço militar, mas habilita o interessado a fazer o treinamento para oficial da reserva nos fins de
semana, caso de Chasin.

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Entrevista

ele era mais da leitura, principalmente nesse ano em que ele ficou de cama, ainda na
infância… O tratamento era repouso e ele lia muito. Então, ele leu na juventude, na
adolescência, tudo aquilo que a gente deveria ler, que são os autores clássicos, tanto
nacionais como da literatura universal: Tolstoi, Dostoievski, Balzac… Então, tudo
que era livro que lhe caía na mão, ele lia. O dinheiro que ganhava, com o pouco di-
nheiro que ele tinha ele não ia comprar nem gibi, nem brinquedo, mas livro. Então,
era alguém que desde cedo demonstrou uma preocupação, uma atenção, um gosto,
um prazer pela leitura, pela escrita. Ele tentou desenvolver uma veia poética, mas
não conseguiu.
Vânia: E ele saiu do colégio direto para a faculdade ou demorou para ingressar?
Ester: Acho que ele demorou um pouco. Ele não foi direto. Ele ingressou em
1959… Houve uma época em que ele trabalhou como bancário, ele estudava à noite
e trabalhava em um banco. Ele fez o colegial à noite e foi nesse período, no colégio,
que os amigos dele eram Luiz Weiss2 e Vladimir Herzog3. Eles saíam sem rumo
pelas ruas do centro de São Paulo, entravam em algum bilhar ou coisa parecida. Ele
andava muito, pois não tinha dinheiro para a condução, então, ele saía da Mooca e
ia até o centro da cidade etc. É isso, eles andavam muito, porque os três não tinham
dinheiro para pagar condução, bonde, seja o que for.
Rago: Há nesse período a formação de uma esquerda judaica, vamos dizer assim, de origem
judaica, que milita no trotsquismo e no PCB.
Ester: Sim. A primeira esposa de Chasin, Hannah Profis, participava dessa es-
querda judaica. Ela era professora, inclusive, de iídiche, numa escola que fica no
Bom Retiro, Scholem Aleichem. Hannah Profis é que participou dessa esquerda
judaica desde a juventude. Os pais dela vieram da Ucrânia, eram de esquerda e ela foi
da Juventude Comunista. Já Chasin não teve participação na esquerda judaica.
Vânia: E ele decidiu estudar filosofia na USP.
Ester: Exatamente. Antes de ingressar na faculdade, ele ficou muito impactado,
foi muito influenciado pelas leituras que fez de Bertrand Russell, que era um agnósti-
co. Então, o agnosticismo de Bertrand Russell, os textos dele, nessa época, o influen-
ciaram muito, e eu penso que Chasin decidiu pelo curso de filosofia exatamente por
conta da leitura que fez de Russell. Além disso, era alguém muito preocupado com as
2. Jornalista e sociólogo, atualmente no Observatório da Imprensa e no jornal O Estado de S.
Paulo.
3. Vlado Herzog (1937-1975), cuja morte, decorrente de tortura, nos porões do Destacamento de
Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) desencadeou
uma onda internacional de protestos e marcou uma inflexão da ditadura militar.
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relações humanas, interesse já demonstrado nos temas ds palestras que ele organizou
quando cursava o colegial. Ele só veio a conhecer Marx e a esquerda na universidade,
pelas mãos de Hannah Profis, que, como já disse, era da esquerda.
Vânia: Eles se conheceram na universidade?
Ester: Sim. Ela fazia o curso de ciências sociais, ele fazia o curso de filosofia. E,
de uma forma bastante esperta, atraída por ele, ela pediu umas aulas particulares de
filosofia. Eles freqüentavam a Biblioteca Mário de Andrade, começaram a namorar
lá, durante as aulas de filosofia que Chasin dava para Hannah. E foi lá, exatamente,
que ele conheceu Maurício Tragtenberg e conviveu com ele e um grupo de intelec-
tuais que freqüentava a Biblioteca Municipal Mário de Andrade. Ele estudava lá e
namorou lá também, entre os livros.
Rago: Isso é interessante, porque recentemente, em torno da morte de Bento
Prado Jr., passou na TV Cultura o depoimento de amigos, como Giannotti e ou-
tros… E eles recuperaram como grupos de intelectuais freqüentavam a Biblioteca
Municipal e a troca intelectual que se tinha ali. Maurício Tragtenberg, certa feita, nos
contava de sua aproximação da esquerda, em especial dos trotskistas. Contava como
esses intelectuais liam e debatiam textos que não tinham tradução em português.
Então, eles liam em francês, a pessoa anotava, o outro depois comentava… Uma
vez perguntei a Maurício como ele aprendeu literatura, história, língua estrangeira…
Maurício salientava o “grupo da Biblioteca” como fundamental para sua formação.
Citava o próprio Bento Prado Jr., Flávio Rangel, Leôncio Martins Rodrigues, An-
tunes Filho, Aracy Rodrigues, entre outros, como seus companheiros da Biblioteca.
Ele aprendeu muito com esse “método”, com esses núcleos, nos quais se incluía
a família Abramo – Leila, Athos, Perseu, Fúlvio. Maurício, posteriormente, relia a
tradução que faziam, anotava, e depois confrontava com o texto original, de posse
de dicionários. Isso nos faz pensar no tipo de intelectuais que freqüentava aquele
ambiente, que permitia esse intercâmbio.
Ester: No caso, Hannah e Chasin eram estudantes, e enquanto tal absorviam
esse clima, o aproveitavam, além do fato de que lá encontravam livros. Não se com-
prava, eles não tinham condições de comprar livros. Eram poucos aqueles que con-
seguiam adquirir livros na época da faculdade.
Vânia: Ele trabalhava na época da faculdade? Ou só estudava?
Ester: Eu não tenho idéia, mas acho que trabalhava, porque a família não tinha
condição de mantê-lo apenas estudando. Lembro-me que ele dava aulas no cursinho
do Grêmio da Faculdade de Filosofia, em certo período.

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Entrevista

Vânia: Ele contou como foi o primeiro contato com Marx, como ele começou a se aproximar
das questões marxistas e sociais, propriamente ditas?
Ester: Foi no saguão da [unidade da USP na R.] Maria Antônia. Porque, da
mesma forma que havia essas discussões na Biblioteca Mário de Andrade, ele dizia
que as discussões, aquilo de vivo que acontecia na faculdade de filosofia ocorria no
saguão da Maria Antônia. Então, ali é que se travavam os grandes debates, as grandes
discussões, e ele tomou conhecimento de Marx ali.
Vânia: Então, ele não tinha aulas que abordassem o pensamento marxiano, que o tivessem
influenciado…
Ester: Não, não me parece que Marx era uma matéria… Não tenho certeza,
mas me parece que Marx não era um tema, naquele período, muito presente no cur-
so de filosofia. Talvez no curso de ciências sociais, que ele conhecia por Hannah, que
fez este curso. Inclusive, quando FHC foi eleito pela primeira vez, numa foto que foi
publicada da defesa de tese de doutorado dele, Hannah aparece assistindo…
Rago: É bom demarcar o período. Ele entra em 1959?
Ester: Exato! É importante ressaltar isso… Ele se envolveu no movimento es-
tudantil, na época, logo de início, influenciado por esse relacionamento com Hannah
e com outros que vinham do curso de ciências sociais. Ele viu nascer e acompanhou
o famoso grupo de estudos sobre Marx que surgiu exatamente nessa época, em 59,
e foi até 63, do qual participaram Giannotti, FHC, Ruth Cardoso, Weffort… Bento
Prado participou num período, Roberto Schwarz também, como estudante. Enfim,
Chasin acompanhou isso. Ele tinha um ótimo relacionamento com Cruz Costa, que
foi seu professor, e foi aluno de Giannotti, de Michel Debrun, de Gilles-Gaston
Granger, enfim, de toda essa geração que vinha para a USP para lecionar. Ele co-
nheceu também Gérard Lebrun… enfim, teve uma formação em filosofia bastante
sólida, graças ao fato de que as turmas eram reduzidíssimas e os professores eram
de primeira linha. Além de que foi um momento de intensa polêmica, de intenso
debate sobre questões nacionais, questões intelectuais, que ele teve o privilégio de
viver, enquanto estudante, nesse momento pré-64, no Brasil, participando também
do movimento estudantil nesse período. Ele teve uma atuação muito intensa nesse
período no movimento estudantil.
Vânia: Ele falava de amigos desse período, de companheiros do movimento?
Ester: Ele comentava de casos como Goldman, Alberto Goldman, que foi con-
temporâneo dele e estudava na Poli…

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Rago: É preciso lembrar que em 1958 Giannotti volta do doutorado na França.


Ele propõe o Seminário de Marx. O estudo de O Capital é proposta de Fernando
Novais. Nessa organização havia, por exemplo, alguns estudantes, como Paul Singer
e Roberto Schwarz – que eram, inclusive, os que entendiam alemão, uma língua
que muitos não dominavam. Esse seminário produziu uma irradiação teórica muito
grande entre os vários ramos das ciências humanas no Brasil, fenômeno que Chasin,
mais adiante, passa denominar de analítica paulista, que inclui as teorias do populismo,
do autoritarismo, da dependência e da marginalidade. Nela há esse marxismo redu-
tor, adstringido, com seu viés epistemologizante das leituras de O Capital. Está claro
que paulatinamente os desenvolvimentos epistêmicos desse marxismo adstringido
serão expulsos desse corpo teórico. Mas eu só queria demarcar isso, nesse momento
da entrevista: a presença desses dois braços na universidade, o braço do Partido Co-
munista – com o marxismo vulgar – e esta linha da filosofia uspiana. De todo modo,
Chasin sempre nos lembrava o feitio da leitura dos textos que era realizada à época,
sobretudo seu rigor, o seu caráter de análise imanente.
Ester: Na época, chamava-se de análise estrutural, mas não tem nada a ver com
o estruturalismo, evidentemente.
Rago: O fato de Chasin ter recebido uma formação séria por parte de Granger,
de Debrun, do próprio Giannotti... foi muito importante para ele. Ao mesmo tempo,
assiste-se à própria movimentação da realidade e dela se participa, pois era um ano
de muita transformação, ou seja, a modernização é acelerada naquele momento, e no
Brasil a modernização acelerada é excludente, como o próprio Chasin sempre anali-
sou. Então, acho que esse ambiente que se apresentou na universidade obrigou-o a
tomar certas posições. Nesse momento ele vai ter expressão enquanto estudante.
Ester: É. Ele tinha uma expressão, uma influência, uma irradiação, uma lide-
rança importante nesse período, mas, como ele dizia: “eu entrei para o PCB porque,
na época, não havia nenhuma outra organização”. As organizações trotskistas ou
paratrotskistas eram muito restritas, quer dizer, o partido de esquerda que existia era
o Partidão, mas desde o início a relação de Chasin com o PCB, mesmo enquanto es-
tudante, foi extremamente problemática, conflituosa. As propostas do Partidão para
o movimento estudantil, ele sempre as questionou, a relação foi bastante tensa desde
o começo, desde o início. Nunca foi uma relação de subserviência, de simples acei-
tação das diretrizes que o Comitê Estadual ou a direção do movimento estudantil
determinavam… Exemplo desse tipo de comportamento foi a campanha pela escola
pública, na qual ele foi representante da UNE.

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Entrevista

Rago: Eu soube disso tardiamente, quando Chasin falou que era vice-presiden-
te e Florestan era o presidente da Campanha pela Escola Pública. Em princípios dos
anos 1960, Chasin foi convidado a participar do Congresso do PCB, por conta de
sua atuação nos movimentos sociais. Mencionou, inclusive, que ele foi decisivo na
discussão do Congresso. E, depois, temos a posição que ele assume no CPC4. Até
então, eu não sabia que Chasin teve uma presença importante, aqui, em São Paulo,
no CPC também. Infelizmente, num livro de Marcelo Ridenti, Em Busca do Povo Bra-
sileiro, aparece uma pequena nota sobre o conflito com o Partido Comunista, mas
que dá a impressão de que Chasin teve uma posição negativa em relação ao CPC. E
não localizam o problema no plano estético. Quer dizer, Chasin condenava a posição
de levar a programática do Partido para o campo da arte. Aí, já aparece um tipo de
vínculo com Marx e com Lukács. Aproveito a ocasião para mencionar a importân-
cia de Caio Prado Jr. na formação intelectual de Chasin e da pesquisa que ele fará
depois, porque isso poucas pessoas conhecem. Chasin é citado por conta de sua
“Contribuição para a Análise da Vanguarda Política no Campo”, que foi publicada
na Revista Brasiliense de finais de 19625.
Ester: Muitas pessoas desconhecem…
Rago: Muitas pessoas desconhecem, porque não há citações de autores n’A Re-
volução Brasileira, que é de 1966, de Caio Prado Jr., a não ser a de Chasin. Assim, creio
que, nesse momento, Marx, Lukács e Caio Prado Jr. são influências importantes e
que, sem dúvida, permitiram que Chasin desenvolvesse uma posição extremamente
crítica em relação ao PCB. Nós sabemos qual posição tinha Caio Prado Jr., mas
sabemos também qual lugar ele ocupava frente aos stalinistas, ao marxismo vulgar.
Chasin atuou na Revista Brasiliense, e isso foi fundamental, porque nessa revista ele
publicará sob a forma de dois artigos a crítica a Mannheim6, que elabora já sob a
influência do pensamento de Lukács7. Acho que é bom recuperar que a militância de
Chasin nessa época: de um lado, há a figura de Caio Prado Jr. – Chasin, mais tarde,
aprofundará certos aspectos da análise histórica caiopradiana – e, de outro, a pre-
sença de Marx e Lukács, que também serão alvo de estudos profundos e minuciosos
por parte dele.
4. Os Centros Populares de Cultura (CPCs) foram criados em 1961, no Rio de Janeiro, e eram
ligados à União Nacional dos Estudantes (UNE). Esses Centros reuniam diferentes segmentos
artísticos que atuavam junto às classes populares.
5. CHASIN, J. “Contribuição para a Análise da Vanguarda Política no Campo”. Revista Brasiliense.
São Paulo, n. 44, nov./dez. 1962. Republicado na coletânea A Miséria Brasileira.
6. Karl Mannheim (1893-1947), sociólogo judeu nascido na Hungria. Publicou Ideologia e Utopia
em 1929, entre outras obras.
7. Trata-se do trabalho intitulado “Dissertação sobre a Sociologia do Conhecimento de Man-
nheim”, orientada pelo Prof. Michel Debrun. O texto foi publicado em dois números da Revista
Brasiliense.
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Ester: Veja, aquilo que eu falei há pouco: ele assistiu ao nascimento do Seminá-
rio sobre Marx, ou seja, ele foi testemunha ocular daquilo que estava acontecendo na
USP. Evidentemente, esse seminário surgiu, me parece, por duas razões fundamen-
tais, uma teórica e outra política. A primeira razão era a insatisfação dessas figuras em
relação ao estágio em que se encontravam as ciências sociais ou o pensamento social
no Brasil. Essas figuras estavam insatisfeitas com o ensaísmo brasileiro, ou seja, Gil-
berto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Em outros termos, eles não considera-
vam toda essa produção propriamente científica. Ao mesmo tempo, os membros do
Seminário Marx não concordavam nem com as teses de Nelson Werneck Sodré, nem
com as de Alberto Passos Guimarães, nem com as de Caio Prado sobre a formação
social brasileira. Então, eles foram ler Marx influenciados pela polêmica gnosiológica
em torno do pensamento marxiano… Eles foram ler Marx com o intuito de per-
seguir aquilo que poderia ser um método científico, existente, implicitamente, na obra
econômica. Supostamente, a partir da apreensão deste método, pleiteavam a sua uti-
lização para a investigação da formação social brasileira e, nessa medida, oferecer um
contraponto para a produção teórica direta ou indiretamente vinculada à esquerda
ou ao ensaísmo de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. É curioso, como
Rago bem chamou a atenção, que, enquanto esse pessoal, professores e dois estu-
dantes, rumavam por uma trilha desta natureza – evidentemente, Chasin foi alijado,
e foi alijado exatamente porque ele tinha um vínculo com o movimento estudantil,
ele tinha uma militância política e isso, na época, para esses digníssimos professores,
era um ponto contra Chasin, era uma mácula. Chasin era um aluno que se destacava
entre os demais, não só por conta de seu perfil teórico, mas por sua dimensão crítica.
Imaginem uma sala de aula, final da década de 50, começo da década de 60, na Maria
Antônia, na USP. Os rapazes iam de terno e gravata, as moças todas bem vestidas...
Havia todo um comportamento respeitoso do aluno em relação ao professor. Tão
respeitoso que era muito difícil ou mesmo impossível um aluno se manifestar em
sala de aula! Um episódio que Giannotti nunca esqueceu foi que, numa aula de lógi-
ca – Giannotti era professor de lógica –, Chasin teve a “ousadia”, digamos assim, de
se contrapor a ele em sala de aula. Uma coisa que não era admissível à época! Cruz
Costa, certa feita, chegou para Chasin e disse: “Você é muito inteligente, você é um
rapaz de grande capacidade, mas aqui você não vai ter futuro em função de sua mi-
litância política no movimento estudantil e de sua postura em sala de aula”. A partir
desse momento – é bom lembrar que nós estávamos sob o regime de cátedra ainda
–, a partir daquele momento, Chasin viu que, em função da sua postura teórica, sua
postura crítica e de alguém vinculado ao movimento estudantil, as portas da aca-
demia já estavam fechadas para ele. Isto ficou claro nessa fala muito sincera, muito

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Entrevista

honesta de Cruz Costa, com quem ele tinha um ótimo relacionamento. Mas é bem
verdade que, quando Chasin optou pelo curso de filosofia, ele não tinha grandes
ambições de fazer carreira como professor universitário. Ele queria ser professor de
filosofia de segundo grau, além de escritor. Era isso que ele queria naquela época,
ao contrário do que a família pressionava, principalmente a mãe. A mãe judaica quer
que o filho seja médico… Tenha status de médico... Mas, para horror de Dona Pepi,
Chasin optou pela filosofia, ele queria ser professor e escritor. Infelizmente, como
sabemos, o ensino de filosofia foi retirado do ensino médio, quando da reforma de
68. Assim, Chasin não tinha diante de si muitas alternativas. Mesmo porque o golpe
de 64 foi devastador para ele também em termos pessoais.
Vânia: Antes de entrar no período da ditadura, só queria pontuar: Ester comentou certa vez
que o primeiro contato que ela teve com Chasin foi justamente num grupo de estudos de Evolução
Política do Brasil, de Caio Prado Jr. Chasin achava o livro muito importante, bem como diferen-
ciava Caio Prado de todos os outros teóricos que tentavam compreender a realidade nacional. E A
Revolução Brasileira foi um livro que marcou época e que menciona a pesquisa feita por Chasin,
que resultou no “Contribuição para a Análise da Vanguarda Política no Campo”. Havia proxi-
midade entre eles no diagnóstico da situação rural no Brasil?
Rago: Chasin partilhava da análise concreta da situação dos trabalhadores rurais
em nossa formação social, que não identificava os nossos trabalhadores do campo
com os camponeses de extração feudal. Nesse Congresso8, buscava-se compreen-
der os interesses, as perspectivas dessa categoria social do campo brasileiro. Chasin
sempre se pautou pela busca da compreensão racional do mundo, e também pela
militância, pela intervenção prática. O que, como Ester colocou, “atrapalhou na
academia”, mas atrapalhou também na esquerda. Porque, diante da luta interna do
Partido Comunista, ele assume a luta anti-stalinista. E isto vai lhe custar a hostiliza-
ção típica do stalinismo, tanto nos anos 60, por sua participação naquele Congresso,
como no período da Escola de Sociologia e Política, a formação de intelectuais va-
cinados contra o stalinismo e a vulgata marxista... Tanto que, num congresso para
o qual ele foi convidado ele faz uma intervenção radical. No sentido de mostrar os
crimes stalinistas, as ações oportunistas e um pouco além.

8. I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, promovido pelo CPC de São


Paulo em Belo Horizonte (MG) em novembro de 1962.

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Da esquerda para direita ??, Caio Prado Jr., Chasin, Rago.

Ester: E contra as teses da Terceira Internacional, contra o etapismo9 etc… E


contra as diretrizes, vamos dizer, culturais do Partidão. Então, em relação a essa
história do CPC, é preciso que se diga o seguinte: primeiro, é preciso fazer ainda
a história do CPC, pois isso não foi feito. Aqueles que se voltaram para a análise
da atuação do CPC fizeram essa análise por um viés, viés esse que joga no lixo da
história toda a movimentação do pré-64, e foi o que caracterizou a esquerda não
marxista e toda a teoria produzida pelo marxismo adstringido no que diz respeito ao
movimento sindical. Aí, nós pegamos, por exemplo, Weffort e José Álvaro Moisés…
Em suma, toda a movimentação do pré-64 foi rejeitada, negada in totum, como se
tivesse sido meramente, para usar a expressão utilizada por esses dois autores, correia
de transmissão do Partido Comunista. Então, o CPC foi visto como uma espécie de
braço do Partido Comunista no movimento estudantil – e mais, como uma espécie
de instrumentalização política da arte, contra a qual Chasin logo se colocou. Mas é
preciso lembrar que a história do CPC é muito mais complicada que isso, mais com-
plexa que isto, porque nós precisamos lembrar que se trata de um período na história
do Brasil em que havia uma intensa movimentação social e, evidentemente, os inte-
9. O Partido Comunista, seguindo as teses stalinistas, defendia a idéia de que as transformações
históricas se realizavam pela sucessão de etapas invariáveis e predeterminadas e que todas as
sociedades eram subordinadas a elas, isto é, que há estágios fixos de desenvolvimento que todas
as sociedades deveriam atingir – o sistema escravista, o feudal e o capitalista – e ultrapassar histo-
ricamente até atingir o socialismo.
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Entrevista

lectuais e artistas, teatrólogos, enfim… todos os que militavam nessa área queriam,
parafraseando a música de Milton Nascimento, queriam estar onde o povo estava, de
alguma forma, queriam contribuir… Então, é preciso analisar caso a caso os traba-
lhos que surgiram nesse período e resgatar, se assim for possível… Guarnieri10, Juca
de Oliveira11, Vianinha12, Paulo Pontes13… Quer dizer, as principais figuras... Disso
resultou o Teatro de Arena, Arena conta Zumbi. Não é possível uma pessoa, alguém
minimamente razoável, pegar toda essa experiência e simplesmente negá-la, rejeitá-
la in totum, como sendo uma experiência que significou o braço do Partido Comu-
nista no interior do campo artístico no Brasil, dentro do movimento estudantil, e
rejeitar, por isso, toda a produção cultural que o CPC produziu. Igualmente, é um
despropósito ver Chasin como alguém que levava as teses do Partido para o interior
da UNE ou do CPC. Ao contrário… Foi aí que ele encontrou Lukács, foi aí que a
questão sobre a obra de arte, sobre a função da obra de arte, se pôs, e desde aquele
momento Chasin se manifestou contrário a qualquer tentativa de instrumentalização
política da arte, o que lembra, inclusive, a polêmica de Lukács e Brecht. É interessan-
te resgatar isso exatamente porque Lukács sempre foi contra isso. Como Chasin se
interessa por Lukács? Como Chasin encontra Lukács? Evidentemente, poucas obras
de Lukács eram conhecidas no Brasil, mas, se pegarmos a história do marxismo no
século XX, vamos reconhecer que foram poucos os comunistas que se debruçaram
sobre o campo da cultura ou sobre o campo da formação ideal, das ideologias, não
no sentido pejorativo. Chasin estava interessado pela situação social brasileira – e
a aproximação com Caio Prado se deu em função disso –, mas, ao mesmo tempo,
interessado em analisar aquilo que se chama de pensamento conservador ou pensamento
das classes dominantes ou a ideologia das classes dominantes no Brasil. Desde es-
tudante ele se interessou por isso. Quando colocou essa questão a Giannotti, este o
desaconselhou fortemente que ele se voltasse a isso, dizendo que era uma questão
menor. Se lermos a apresentação de O Integralismo de Plínio Salgado14, nós veremos ali
que, indiretamente, Chasin, em vários trechos, refere-se a essa questão – quer dizer,
nem o Partido Comunista considerava esta uma questão de maior importância e nem
10. Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), ator, diretor, dramaturgo e poeta ítalo-brasileiro. Autor,
entre outras, de Eles não Usam Black-Tie, de 1958.
11. Juca de Oliveira (*1935) é ator e dramaturgo consagrado. Passou pelo Teatro Brasileiro de
Comédia (TBC) e pelo revolucionário Teatro de Arena, além de ter sido militante da esquerda
comunista.
12. Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha (1936-1974) – um dos maiores nomes da dramaturgia bra-
sileira e um dos fundadores dos CPCs.
13. Paulo Pontes (1940-1976) atuou nos CPCs e nos teatros de resistência no período da ditadura
.militar.
14. CHASIN, J. O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade do capitalismo híper-tardio.
2. ed. Santo André, Estudos e Edições Ad Hominem, 2000.

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Giannotti, nem os acadêmicos a consideravam um objeto, um tema que deveria ser


estudado. Então, ali Chasin foi contra a corrente duplamente, na academia e em relação
ao Partido. Ele dizia: “nós precisamos entender, nós precisamos identificar como
pensa a burguesia, o arremedo de burguesia, o que é o pensamento conservador no
Brasil, para poder entender a dinâmica das classes”. Algo que destoa completamente
daquilo que, no período, era considerado prioritário. Onde ele foi buscar o apoio, o
elemento teórico fundamental para isso? Em Lukács. Mannheim foi objeto da mo-
nografia de final de curso de Chasin, de 1962, que foi publicada em dois números
da Revista Brasiliense. Na época, Mannheim exercia uma influência muito grande na
academia. Havia como que uma posição que endossava, que aceitava, que acatava a
teoria, a posição de Mannheim. E, mais uma vez, Chasin teve a coragem de ir contra
a corrente e fez uma monografia de final de curso amparando-se em Lukács, mas
pegando o texto de Mannheim e mostrando as suas deficiências por dentro. O que
é algo muito difícil de fazer e ninguém faz isso até hoje, e ainda critica quando nós
fazemos, dizendo que isso é mera paráfrase. Definitivamente, não é. Então, é preciso
sinalizar também este momento. Quer dizer, enquanto outros autores são festejados
por terem traduzido ou introduzido o pensamento de Lukács no Brasil, nós não po-
demos esquecer que um estudante de filosofia fez sua monografia de final de curso
contra Mannheim, que gozava de uma aceitação, de uma influência muito grande na
época, inspirando-se em Lukács.
Rago: Eu acho importante, mais para registrar, que, num certo sentido, nós
podemos até dizer que Mannheim predomina ainda na academia, no sentido de que
o intelectual é pensado sem liames sociais, sem vínculos e determinações sociais.
Como se isso fosse possível! Quer dizer, o intelectual ficar livre das conjunções,
das lutas sociais, das classes etc. Então, eu acho importante isso, porque era uma
característica da academia essa dimensão, e depois, obviamente, a direita também
recuperava Mannheim no sentido da racionalidade do planejamento. Celso Furtado
e outros se referem a essa dimensão. E a esquerda social-democrática ainda crê na
racionalidade do Estado, agora, como interventor democrático ante a aceleração das
forças produtivas materiais. Então, havia uma confluência de um pensamento de
esquerda da academia com outras intervenções políticas que, no fundo, se cruzavam.
E Chasin dava esse corte. Uma coisa que acho que seria bom pontuar, é óbvio que
está na cabeça de todos nós esse momento, é o significado do golpe de Estado de
1964 na vida de Chasin. Eu acho que é óbvio que 64 é uma fenda, um corte. Chasin
se valia de uma frase de Marx, que diz que, como no caso da Comuna de Paris e
outros, uma derrota para o movimento operário poderia significar muito. No sen-
tido de você compreender, de fato, as posições das classes, as estratégias, os seus

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Entrevista

limites, erros etc. e dar um salto. E eu acho que, a partir desse momento que eles
procuram Prestes15, tanto Caio Prado Jr., Elias Chaves Neto16 e outros do núcleo da
“Brasiliense”… Estou falando Brasiliense entre aspas, porque eles não configuravam
uma tendência, mas eram uma tendência de fato, no sentido da linha teórica. E esse
momento é um divisor de águas, porque Chasin vai colocar que houve um fracasso,
porque, quando foi procurado por esse grupo, Prestes achava que a esquerda estava
quase no poder.
Ester: Aqui é preciso lembrar o comício do Partido Comunista em 1963, no
Pacaembu, quando Prestes, no discurso, dizia: “Estamos no poder”.
Rago: Algo como: “Não somos o governo, mas estamos no poder, porque
influímos mais do que Goulart”. Mesmo que Prestes, depois, tenha dito que nunca
falou isso. Todavia, a consciência que o Partido disseminava era exatamente essa
dimensão de que as rédeas do poder “estão nas nossas mãos”, “temos o sindicato, o
PTB está com a gente, frações do exército estão com o partido”, e assim por diante.
E quando isso é colocado, um golpe estava prestes a ocorrer, então, é muito impor-
tante que isso seja grifado, que um grupo de intelectuais marxistas, entre os quais o
jovem Chasin, já tinha uma visão de que algo desastroso estava para ocorrer e o Par-
tido estava completamente desarmado. Então, só para pegar uma coisa disso tudo:
desta derrota Chasin se propõe a produzir alguma coisa – o que viria a se constituir
com o Movimento Ensaio –, imbuído da idéia de que “ter lucidez é um ato revo-
lucionário”. O que implicava dedicar-se em tempo integral aos estudos e formação
de pessoas. Levar às últimas conseqüências a consigna de que era condição sine qua
non a superação da carência teórica da esquerda – veja que Caio Prado Jr. começa
com essa questão seu livro sobre A Revolução Brasileira de 1966. Aí é que Chasin sai
definitivamente do Partido, em 1963…
Ester: Quer dizer, ele, na verdade, nunca esteve no Partido. Ele se mirava muito
no exemplo de Caio Prado, que tinha um pé fora e um pé dentro. É uma expressão
que ele sempre utilizava e um posicionamento que ele sempre defendia e justifica-
va.
Rago: Caio Prado falava também muito disso, da necessidade de, na militância,
ter sempre os pés nas condições vividas, um pé dentro e outro fora. Eu acho que
isso é visceral, porque o golpe de estado de 1964 vai se refletir na vida de Chasin
por uma quebra, uma ruptura violenta de um projeto. Além disso, no plano estrita-
15. Luís Carlos Prestes (1898-1990), conhecido como Cavaleiro da Esperança, liderou a famosa
Coluna Prestes antes de ingressar no Partido Comunista, do qual foi dirigente.
16. Elias Chaves Neto (1898-1981) estava à frente da Editora e da Revista Brasiliense junto com Caio
Prado Jr., de quem era primo.

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mente profissional, ele tinha sido convidado por Maurício Tragtenberg para lecionar
em uma faculdade que estava sendo estruturada em São José do Rio Preto e, com a
intervenção ditatorial, houve o cerceamento da continuidade daquilo que seria uma
carreira promissora, porque Chasin vai ficar afastado por um tempo, para só mais
tarde retomar o magistério superior. Enfim, gostaria de fazer mais alguns comentá-
rios sobre esse período, porque é um momento em que o Brasil assiste a movimen-
tações sociais ímpares, movimento sindical, movimento rural, Ligas Camponesas
no Nordeste, mas também no Sudeste, movimento estudantil… Havia programas,
projetos sociais, e não como hoje, em que a “esquerda” está totalmente desarmada.
Veja a CUT ante o governo Lula e a crise mundial do capital.
Ester: Embora Chasin não tivesse sido preso ou torturado, por exemplo, em
1973, convidado pelo Ceupes – o Centro de Estudos e Pesquisas, que era o Centro
Acadêmico do curso de ciências sociais da USP –, Chasin foi dar uma palestra sobre
ideologia ou ciência, na USP. No dia seguinte, parou uma veraneio, em frente à casa
dele, “convidando-o” para depor no Dops. Então, a cada momento que ele aparecia
publicamente, ele era “convidado” a depor. Então, ele era acompanhado, pari passu,
pelos órgãos da repressão, embora nunca tivesse sido preso nem torturado – mas
temos de convir que há outras formas de tortura também... Não somente a física.
Há formas de acabar com a vida de uma pessoa além da prisão... Isso deve ficar
registrado.
Vânia: Eu queria incluir nessa discussão, voltando um pouquinho, também a revelação dos
crimes stalinistas, como isso repercutiu no Brasil e como isso entrou nessa questão de que vocês estão
falando, nessa movimentação toda de 64…
Ester: Na verdade, é o seguinte: Chasin teve sempre um pé atrás em relação a
tudo o que dizia respeito à União Soviética e aos Partidos Comunistas. No entanto,
é bom deixar claro, porque alguém pode perguntar: “Por que ele se vinculou?” Por-
que era a única arena, o único espaço, único lugar no qual se podia atuar e discutir.
Nunca passou pela cabeça dele, mesmo enquanto estudante, tomar uma posição
de voyeur, como Marilena Chauí, que entrou na universidade depois dele e que con-
fessa que apenas assistiu a tudo aquilo, como voyeuse. A partir do momento em que
Chasin, pelas mãos de Hannah, entrou no Partido, tomou essa decisão, considerou
necessária essa atuação para mudar as coisas, ele não tinha melindres, mas sempre
foi crítico em relação a uma série de aspectos, seja em relação ao marxismo vulgar,
seja à forma de organização política do PCB no Brasil, seja em relação às teses que
o Partido disseminava à época – como a do capitalismo autônomo, da necessidade
de uma revolução burguesa para depois chegar ao socialismo e outras. E por isso ele

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Entrevista

se aproximou de Caio Prado. Ele sempre teve uma postura crítica em relação a isso.
Embora ele tenha sido visto por muitos como comunista stalinista, ele nunca o foi,
em nenhum aspecto. Ele só atuou nesse organismo porque se tratava de um espaço
que considerava o único por meio do qual se poderia efetivamente fazer alguma
coisa, e eu creio que, passados todos esses anos, ele não se enganou e percebeu cla-
ramente, como Rago frisou, os erros teóricos. A aproximação com Caio Prado e o
grupo da Brasiliense se deu justamente em função da precariedade, da mediocridade
teórica que caracterizava o Partido aqui no Brasil. Isso sempre foi um problema para
Chasin. Naquela época, a esquerda tinha um programa, mas era um programa que
foi construído em bases teóricas totalmente equivocadas. Era algo que estava claro
na cabeça daquele estudante, ele sabia, ele constatava a mediocridade, a fraqueza e
a debilidade teóricas; para ele isso sempre foi um problema, sempre foi algo que ele
queria mudar. Queria, de alguma forma, contribuir para que a esquerda, no Brasil,
produzisse teoricamente algo rigoroso, para que a esquerda pudesse ler a realidade
de forma rigorosa e identificar na realidade as possibilidades de transformação. En-
tão, desde estudante, isso estava absolutamente claro. Em dezembro de 1963 ele di-
zia que o golpe estava sendo articulado. Ele procurou diversas pessoas, foi até ridicu-
larizado: “Como você, um jovem, vem dizer que vai acontecer isto ou aquilo? Você
está delirando”. O primeiro filho dele já havia nascido, em outubro de 1962. Hannah
havia abandonado a faculdade por causa do nascimento do primeiro filho… Eles
moravam num prédio que ainda existe, na Martinho Prado, em frente à sinagoga.
Existia embaixo um bar, chamado Ferro’s Bar, eu não sei se existe ainda. Chegado o
golpe, há esse episódio na faculdade de São José do Rio Preto... eles tiveram de tirar
rapidamente todos os documentos que haviam colocado na secretaria da faculdade,
a partir dos quais eles iam ser contratados, para que não fossem presos, Maurício
[Tragtenberg] e ele… Eles começaram a pegar tudo quanto é documento e jogar
e queimar no vaso sanitário, até que o vaso sanitário explodiu! Logo em seguida,
eles começaram a mudar – Chasin, a mulher, Hannah, e a criança pequena, Ibaney,
mudando de casa para não serem localizados, para não serem pegos e aprisionados.
Eles rodaram bastante. Chasin ficou desempregado por um longo período, vivendo
graças a contribuições da família. Foi um período dificílimo. Ele não chegou a ser
preso ou torturado, mas… o golpe de 64, para a geração dele, foi uma ruptura, foi
um corte, foi o final de um projeto. Em 64 nasce o segundo filho dele, prematuro,
evidentemente por conta do sofrimento todo, de todos esses problemas que a mãe
teve e, então, emocionalmente atingida, fisicamente atingida, ele dá à luz um menino
aos seis meses de gestação.

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Rago: Nesse quadro complicado, Chasin mantém a consigna de “manter a lu-


cidez” como ato revolucionário. Dedica-se à tarefa de estudar e pesquisar como
nunca. Mas, ao mesmo tempo, ele tinha que trabalhar em empresa para garantir uma
situação financeira para a família, pois, para ele, qualquer necessidade humana que
afetasse um dos seus exigia sua dedicação exclusiva e integral. E esta dedicação o
obrigou a atuar em um campo completamente hostil a tudo aquilo que ele gostaria
de ter realizado. Assim também foi a história de Marx: Marx queria ser professor
de filosofia, queria dar aulas, mas foi impedido pela vida. E Chasin também foi
impedido pelo golpe de 1964, pois o convite de Maurício Tragtenberg não pôde
ser cumprido e houve a intervenção dos conspiradores na Faculdade de Filosofia,
já no primeiro dia de abril de 1964. Em conseqüência disso ele foi buscar outros
espaços para sobrevivência. Tem até uma história curiosa que Chasin me contou,
que foi a inovação das embalagens dos remédios. Ele inovou a venda de compri-
midos… Sabe o comprimido Cibalena, que você compra em conjunto de quatro?
Foi Chasin que criou isso no Brasil. Criou a cartela de comprimidos. E isso lhe
permitiu comprar seus livros. Enfim, com esse ideal de manter a lucidez, de estudar
sem trégua, acabou por criar uma grande biblioteca. Ele tinha a história completa
da esquerda, história da América Latina, história européia, filosofia, história da arte,
tudo o que você possa imaginar. E em várias edições. E não era uma pessoa que só
lia na língua portuguesa, mas ele garimpava a todo instante, qualquer obra inédita,
recém-lançada, falando de Marx, Lênin ou do próprio Lukács, ele ia atrás. E é des-
se empenho que nasce a Senzala17. Porque a Senzala, para quem não sabe, é uma
editora e Chasin em 1967 publica Marxismo ou Existencialismo, de Lukács, com tradu-
ção de José Carlos Bruni. Ele fez o prefácio do livro e a Senzala publicou também
Baby Jean sobre a China, o próprio Maurício Tragtenberg e o romancista Marcos
Rey. Seria necessário, por isso, fazer uma rápida história da Editora Senzala. Quer
dizer, as pessoas pouco falam disso, porque desconhecem. As que sabem ocultam...

17. Editora dirigida por José e Jacques Chasin, que publicou: As Grandes Divergências do Mundo Co-
munista, em que Baby Jean discutia as divergências sino-soviéticas a partir de meados dos anos 50;
Marxismo ou Existencialismo, de G. Lukács; Não Podemos Esperar, de Martin Luther King; Planificação:
desafio do século XX, de Maurício Tragtenberg; Hai-Kais, de Millôr Fernandes; Navalha na Carne,
de Plínio Marcos; Psicanálise do Anti-Semitismo, de Rodolphe Loewenstein, além de livros sobre a
questão negra, da mulher e outros.

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Entrevista

Capa do Livro Existêncialismo ou Marxismo de Georg Lukács com introdução e tradução de José Carlos Bruni.
Publicado em 1867 pela editora Senzala.

Veja, Caio Navarro de Toledo fez uma resenha do livro organizado por Sérgio Lessa
e Maria Orlanda Pinassi18 sobre aquelas entrevistas de Carlos Nelson Coutinho com
Leandro Konder. E ele fala: “Que absurdo, vocês não citam a Revista Temas19, vocês
não citam a Ensaio, não citam Chasin”. Vejam, Caio Navarro, uma pessoa distante
de nós, mas com a coerência de apontar: “Vocês não deram o tratamento devido”.
E ninguém fala disso. Assim como eles citam a autobiografia de Lukács20, que foi
preparada por Chasin, antes de vir a falecer, publicada pela Ad Hominem, editora
pensada por ele para dar continuidade à Ensaio, com a Universidade Federal de Vi-
çosa; eles não mencionam como surgiu, quem propôs, a importância da publicação
do último trabalho de Lukács e como surgiu toda essa história. Então, Chasin fica
nulo nesse processo atual. Porque o livro é de agora, desse século. Voltando, então,
ao século passado, para ressaltar a importância daquele momento. Por que fazer a
Senzala? Chasin dava prosseguimento à sua linha de “manter a lucidez”, dedicando-
18. Trata-se de Lukács e a Atualidade do Marxismo, publicado pela Boitempo Editorial em 2002,
organizado por Maria Orlanda Pinassi e Sérgio Lessa. Entre outros textos, está ali coligida a cor-
respondência de Lukács com Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder entre 1961 e 1970. A
resenha de Caio Navarro de Toledo mencionada pelo entrevistado está disponível em: <http://
www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/resenhatoledo.pdf>.
19. Revista Temas de Ciências Humanas, publicada entre 1977 e 1981, primeiro pela Grijalbo, depois
pela Livraria Editora de Ciências Humanas. Retoma-se o histórico da revista mais à frente.
20. LUKÁCS, G. Conversando com Lukács. Autobiografia em Diálogo. Santo André, Ad Hominem/
Universidade Federal de Viçosa, 1999.

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se a publicações fundamentais para o debate da esquerda, já no período de con-


solidação da dominação autocrático-burguesa em nosso país. Diante da carência
teórica, é necessário que essa esquerda mude, na ditadura, e a Senzala foi um eforço
considerável de Chasin nesse sentido. Ele não dormia à noite, para estudar, e depois
descansava muito pouco. Então, Chasin foi criando um hábito de leituras sistemáti-
cas sobre vários assuntos. Ele era muito focado nos seus temas, praticava a análise
imanente às últimas conseqüências, e ele tratava desde uma questão brasileira, uma
questão teórica, questões de várias ordens que faziam com que ele trabalhasse num
sentido múltiplo de pesquisa...
Ester: Só para reforçar o argumento de Rago. Ele era alguém da área de filoso-
fia, mas que destoava completamente de todo e qualquer professor de filosofia. Quer
dizer, ele tinha uma formação filosófica densa, mas, simultaneamente, um olhar vol-
tado para a realidade brasileira. Então, ele era capaz de fazer ciência e filosofia ao
mesmo tempo, o que é absolutamente original, inédito, porque normalmente nós
temos uma coisa ou outra – ou nem uma coisa nem outra. O mais comum é nem
uma coisa nem outra...
Rago: Então, nesse sentido, ele tem já em mira influir com edições de livros e
revistas, suprir essa carência. Disso, mais adiante, resultará em seu projeto da Temas
e da Ensaio. Isso longe de concordâncias plenas, mas para fomentar a polêmica. E
aí tem também um traço em Chasin, e isso para mim ficou muito evidente quando a
gente criou a Ensaio, quando ele veio com a proposta da [revista] Ensaio e, particu-
larmente, com a publicação de um texto de Lênin – “Carta a um Camarada”21. Com
essa proposta, não apenas ficava claro o conhecimento que ele tinha das obras de Lê-
nin , mas também como ele assimilou um traço do pensamento leniniano: o papel de
jornais e revistas como instrumento de luta e organização. Agora, vejam só, basta pe-
gar o Partido dos Trabalhadores, que nunca teve um jornal que fosse orientador. Ele
pode ter revistas, mas aí é um suplemento literário, não é um elemento de polêmica.
E Chasin tinha como exemplo a Iskra quando foi criada a Revista Temas de Ciências
Humanas em 1977. Chasin sabia da importância de uma revista, da importância de
acolher a polêmica no seio de uma revista. Ele sempre procurou criar instrumentos
para problematizar, e – não só isso – também mobilizar e organizar , ao contrário do
que é muito difundido por seus detratores, isto é, que Chasin queria criar uma revista
que seguise apenas uma linha: a dele. Foi justamente o contrário que aconteceu em
todas as suas tentativas de criar um instrumento de debate e polêmica! Além disso,
Chasin teve uma característica muito marcante na sua pessoalidade, que é essa dire-
triz de pensar o mundo permanentemente. Ele não é o intelectual que pensava, por
21. LÊNIN. “Carta a um Camarada”. Revista Nova Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano IV, n. 8,
pp. pp. 111-33, 1981.
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Entrevista

exemplo, o marxismo voltado apenas para questões sociais, econômicas e políticas,


mas também para a vida pessoal. Ou seja, ele não separava as duas facetas, vida pri-
vada de um lado e vida pública, de outro. A construção do caráter se dá no processo
da vida. Chasin diferenciava instrução de educação, porque a educação se põe no
processo de vida, não se resume à apreensão de conhecimentos na universidade. É
o espírito da educação humanista e radical. O autorevolucionamento permanente
implicava uma luta cotidiana. Não é o fato de se apossar da teoria marxiana que
livra o indivíduo das mazelas do mundo. Chasin brincava dizendo que ninguém es-
capava das contradições da via colonial. Ou seja, ter consciência revolucionária não
suspende a deteminação social dos indivíduos, de sua vida e seu pensamento. Essa
dimensão, Chasin a põe como roteiro de vida. A Editora Senzala já era este embrião,
de influir e de formar, mas só quando ele vai para a [Escola de] Sociologia e Política
é que ele vai ter a possibilidade, aí sim, de disseminar aquilo que já era o resultado
anterior.
Ester: Agora, lembrando que, no caso de Marx, um grande momento de atua-
ção política dele – que a gente sabe que foram raros, que foram poucos, embora todo
mundo tenha a visão de um Marx militante nas 24 horas do dia, o que é inverídico,
completamente inverídico – foi a Nova Gazeta Renana, de 1848. Foi o modo pelo
qual Marx pensou e interveio na Revolução de 48 na Alemanha – foi por intermédio
de um jornal. Isso estava muito claro para Chasin, reforçando essa idéia que Rago
colocou. Tomando como parâmetros o próprio Marx e Lênin, a existência de um
órgão jornalístico... Não foi por acaso que a gente publicou “Carta ao Camarada” de
Lênin, exatamente porque Lênin concebeu o Comitê Central (CC), de um lado, e o
Órgão Central (OC), de outro, este último como órgão de divulgação, de elaboração
teórica e como meio de intervir, mobilizar e conscientizar na luta, e era mais uma di-
mensão que estava presente em Chasin. Isso na década de 60. Quem trabalhou com
ele naquela pioneira editora: Hannah, a esposa, um sócio cujo nome eu não me lem-
bro, que rapidamente saiu, e o irmão Jaques ajudando nessa editora que, por razões
óbvias, não se sustentou, mas que foi um primeiro ensaio, um primeiro embrião, que
ganhará novo corpo quando Chasin voltar de Moçambique.
Vânia: Ester, já que estamos falando em atuação política, eu gostaria que você recuperasse a
questão da candidatura de Chasin nesse processo. Ele foi candidato a deputado, não é isso?
Ester: Sim. A candidatura em 1970 foi algo de que ele próprio se arrependeu
profundamente. Em 1970, ele tinha 33 anos. Ele foi procurado, à época, por pessoas
que haviam participado do PCB ou que tinham alguma ligação com o Partido: “Olha,
a gente precisa de um candidato...”. E Chasin considerava: “Bom. Deputado estadu-

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al, eu não quero. Quer dizer, se é para se candidatar a alguma coisa, é para deputado
federal, porque é ali que as questões decisivas passam.” Um segmento do Partido, na
época, prometeu que o apoiaria, mas, no fim, não apoiou; fizeram com ele a mesma
coisa que, mais tarde, fizeram com Resk22. Resk acabou se elegendo, porque a gente
o apoiou. Então, a mesma coisa, na hora H, não apoiaram Chasin... Goldmann foi
eleito. E foi um momento em que os setores de esquerda propagavam o voto nulo
E mesmo assim... Eu não me lembro exatamente, mas acho que Chasin teve 3 mil, 4
mil votos... E não foi uma coisa tão ruim. E a plataforma dele era pelo desenvolvimento
do mercado interno; pela educação... Mas de imediato ele percebeu que tinham puxado o
tapete dele. E ele se arrependeu, inclusive, de tentar ser candidato.
Rago: Eu queria ainda continuar os comentários sobre o livro Marxismo ou Exis-
tencialismo, porque se trata de um momento em que Chasin escreve para Lukács, pois
pretendia publicar História e Consciência de Classe23. Todavia, Lukács não autorizou,
explicando que era um livro com o qual não mais se identificava. Lukács responde
para Chasin comentando que queria que História e Consciência de Classe fosse publica-
do com um prefácio em que faria alguns apontamentos corretivos. Chasin espera,
então, Lukács escrever o prefácio. É bom esclarecer isso muito bem, porque circulou
entre os lukacsianos no Brasil a notícia de que havia um oportunista que pretendia
publicar o livro sem o prefácio, à revelia de Lukács. Não sei se falam de Chasin, mas,
se assim for, isso é completamente falso, pois eu mesmo fiz a leitura da carta.
Ester: E a Senzala, que, infelizmente, vai à falência... Havia funcionado entre
1966, 1967, 1968... Publicou livros de Plínio Marcos – A Navalha na Carne –, de Mar-
cos Rey, Hai-Kais de Millôr Fernandes, livro de Maurício Tragtenberg – publicou vá-
rios títulos. Chasin também criou um jornal, chamado Jornal da Senzala, que traz, em
seu único número – parece os Anais Franco-Alemães –, no seu único número, de janei-
ro de 1968, uma entrevista, justamente, com Caio Prado. E um artigo que Florestan
Fernandes havia escrito em 1965 para a Brasiliense, mas que havia ficado inédito por
causa da proibição da Revista, “O Problema da Universidade”, republicado como o
primeiro capítulo do livro Universidade Brasileira: reforma ou revolução?, de 1975.
Vânia: Nesse período, ele se dedicou integralmente, profissionalmente à Senzala?
Ester: Houve um período em que ele abandonou tudo para se dedicar profissio-
nalmente à Senzala, depois não deu certo e ele teve de voltar a trabalhar em indústria
22. Antonio Resk (1933-2005), jornalista e político, teve participação ativa nos movimentos sociais
durante a ditadura militar. Foi membro do MDB e do PCB e vice-presidente do Instituto Astrojil-
do Pereira, além de membro do Conselho Editorial da Revista Novos Rumos.
23. Obra de Georg Lukács publicada originalmente em 1936, que teve enorme impacto e foi obje-
to de grande polêmica, tendo em vista os apontamentos críticos feitos pelo próprio autor.

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Entrevista

farmacêutica. Ele entrou para a Ciba Geigy, na qual ficou responsável pela área
de publicidade; e como publicitário é meio esquisitão, ele usou cabelo comprido,
camiseta, não tinha horário de trabalho certo e fez questão de aparecer como pubi-
citario “doidão” para fazer seu próprio horário e conseguir tempo para estudar, sem
precisar permanecer na empresa por oito horas. Durante o dia, ou parte do dia, ele
trabalhava e criou peças publicitárias importantes. Ele tinha um gosto para isso, que
acabou se revelando depois, na forma como a Ensaio trabalhava, essa coisa de usar
papel pólen, meio amarelado, que depois outros editoras usaram, a mancha [a dis-
tribuição do texto numa página], o cuidado com a diagramação interna, com a capa
etc. Todo esse talento, esse know-how que ele desenvolveu na área de publicidade,
acabou sendo aproveitado para o caso da Ensaio. Mas é importante, então, ressaltar
que ele vai para a Ciba Geigy e trabalha nesta empresa por 15 anos. Não sei como
ele agüentou, mas ele conseguiu isso, e, mais uma vez, quero ressaltar que todo o
dinheiro que ele ganhou foi para comprar livros, foi para financiar a pesquisa sobre
Plínio Salgado e o integralismo...
Vânia: Eu só queria entender bem como foi esse período em que ele trabalhou na empresa.
Ester: Foi terrível, avassalador... Essa “vida dupla” – essa expressão é dele –,
essa vida dupla que ele levava foi uma coisa, assim, terrível. Gerava um mal-estar,
uma frustração terrível.
Vânia: Mas, ao mesmo tempo, ele era um profissional e seguia determinados padrões. Ou
seja, ele se dispunha a ser um bom profissional naquilo que estava fazendo.
Ester: Pois é. Até que chegou a um ponto, e isso acontece em qualquer multi-
nacional... Quando certo padrão de executivo chega a um determinado nível, ele é
convidado a ir para a matriz, no caso era na Basiléia, na Suíça, para depois assumir
a superintendência em outro país. Ele se negou... Ele não queria sair do Brasil. Por-
que, dizia: “O meu lugar é aqui, é aqui que eu tenho de trabalhar, que eu tenho de
estudar... Eu tenho de contribuir para a – digamos entre aspas –, para a ‘revolução
brasileira’, eu tenho que contribuir para o entendimento teórico desse país, eu não
quero sair”. Ele deu lá uma resposta dizendo que a sogra, ou mãe, que alguém estava
doente, mas, evidentemente, não colou essa desculpa e ficou claro que, afinal de con-
tas, Chasin não “vestia a camisa” da empresa. Foi bom porque ele pediu demissão,
ele sentiu que realmente iam mandá-lo embora, mais cedo ou mais tarde, exatamente
porque ele tinha se negado a ir para a Suíça, e durante um ano ele viveu com o Fundo
de Garantia [do Tempo de Serviço], para terminar a tese de doutorado, que foi sobre
Plínio Salgado. Isso porque um tema fundamental para Chasin, para a compreensão

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da dinâmica das classes no Brasil, era exatamente entender o que foi o pensamento
conservador. Ele o fez fundamentado naquilo que Lukács, na Destruição da Razão,
dizia que era o tripé metodológico: a análise imanente e da determinação social do
pensamento pela análise da gênese e da função social. Ele procurou seguir esses três
pontos na tese de doutorado, o que o fez ficar acordado durante as madrugadas ao
longo de vários anos, porque ele escreveu ainda no regime antigo, ou seja, antes da
criação do atual regime de pós-graduação, no qual o indivíduo faz uma seleção, tem
de fazer créditos etc. Ele se inscreveu no Conselho Estadual de Educação para de-
fender na Escola de Sociologia e Política. Era o modo como antigamente se defendia
uma tese: você solicitava à congregação de uma faculdade para se matricular e para
esta congregação compor uma banca e nomear o orientador, pois não havia cursos
de pós-graduação como os de hoje. Ele se inscreveu no sistema antigo e, durante
anos a fio, à própria custa, como diz na apresentação do livro, ele coletou jornais,
trabalhos escritos, ele pegou toda a obra escrita, todos os discursos de Plínio Salgado
como deputado, todos os romances... E ele só pôde contemplar do tripé a análise
imanente, e mesmo assim o trabalho se transformou em um volume imenso, porque
ele tinha, a todo preço, a todo custo, de mostrar como o discurso integralista tinha
características completamente diferentes do nazi-fascista. Ele tinha de demonstrar,
tinha de provar que eram dois fenômenos ideológicos distintos, apesar das seme-
lhanças no plano aparente. Isso não significa, como ele mesmo fez questão de escla-
recer nas primeiras páginas da tese, que o integralismo era mais positivo! Isso é uma
grande besteira ventilada por certos leitores mal-intencionados. Ele provou que, em
termos ideológicos, o integralismo era mais regressivo que o nazi-fascismo! Então,
a tese ganhou um tamanho gigantesco, Cruz Costa até fez uma piada – Chasin fez
questão de levar a tese pessoalmente, Cruz Costa já estava doente... Como sempre,
este, mesmo doente, fazia piada: “Chasin me trouxe a tese, mas eu não posso fazer
a leitura do volume deitado...”. De tão imensa que ela era. Na época, tinha de datilo-
grafar, não tinha computador... Teve mil e não sei quantas páginas...
Rago: A tese tem dois volumes, dois catataus que estão dispostos no Arquivo
do Estado e na USP também. Eu queria comentar, e é uma coisa muito interessan-
te, que, mesmo seguindo aquilo que Chasin chamava à época de ontometodologia da
história (depois ele abandona esse termo, mas há pessoas que até hoje falam dessa
construção que ele usava), o que eu acho importante é que nós somos formados
por Chasin inteiramente, em história, filosofia, nas análises críticas de outros auto-
res... Além disso, Chasin insistia na idéia de iniciar o processo da compreensão do
pensamento conservador, mas indo até o limite da análise imanente, coisa que Lukács
não teve como fazer no livro A Destruição da Razão. Chasin sempre pensou essa

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Entrevista

Edição póstuma da tese de doutorado de J. Chasin.

pesquisa como um processo coletivo. Seriam várias monografias, que incluíam Gus-
tavo Barroso, Miguel Reale, Olbiano de Melo, Severino Sombra, entre outros. Quer
dizer, só se poderia multiplicar esse tratamento indo até à saturação, para daí, sim,
efetuar a síntese do movimento e suas concepções, visões de mundo. Existiam inte-
gralismos... Observem os novos livros sobre a AIB e o fenômeno do integralismo:
eles continuam na ladainha da análise convencional, segundo a qual esse fenômeno é
uma imitação, uma cópia, um recurso mimético: já que as condições históricas não
permitiram fluir o fascismo e nazismo como na Europa, os integralistas recorreram
a empréstimos ideológicos, tendo como suposto a noção de “idéia fora de lugar”,
então o fenômeno se deu no Brasil por via da mera imitação. E era precisamente o
que Chasin contestava: “Ora, se isso é verdade, que mostrem pela imanência de sua
entificação histórica.” Chasin, ao contrário, em sua pesquisa, pratica a análise imanente,
coisa que, aliás, nós demoramos muito tempo para entender como fazer... Na ver-

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dade, é aquela idéia de Marx já explícita em 1843, que compreender significa captar
“a lógica específica do objeto específico”24. Por isso é que Chasin nunca separou a
análise imanente da determinação social e da função social do pensamento na aná-
lise das ideologias. Tanto é que, no caso da pesquisa sobre o integralismo de Plínio
Salgado, ele extrai a perpectiva social do pequeno proprietário rural que se volta para
um mundo utópico. As dimensões de regressividade, de um anticapitalismo romântico,
Chasin vai evidenciá-las por dentro da obra, e não como aplicação de um modelo,
de uma teoria pré-fabricada. Ou seja, Chasin extrai essas características do discurso
ideológico pliniano, da própria lógica concreta do objeto. Essa é uma dimensão da
pesquisa que ele fez, passo a passo, com muito rigor, colado aos textos de Salgado.
Posteriormente, Hélgio Trindade25 foi dizer que Chasin leu só alguns trechinhos para
tirar uma idéia fora do lugar.
Ester: A reação negativa despropositada de Hélgio ocorreu também porque
Chasin foi para o Rio Grande do Sul conversar com ele a respeito do integralismo,
que Hélgio já havia pesquisado, e este deu acesso às fontes que tinha. E depois
Hélgio ficou muito irritado e levou a discordância teórica para o campo pessoal, de
forma completamente descabida. Isso é um absurdo e eu acho que esta é uma opor-
tunidade também para esclarecer.
Rago: De fato, Hélgio Trindade escreve que Chasin leu o Plínio [Salgado] pós-
integralismo e, portanto, que teria feito uma leitura falsa, anacrônica. Isso é completa-
mente falso, porque Chasin contemplou todo o discurso de Salgado, o conjunto de
seus escritos, não uma pequena porção deles, e chegou a encontrar uma bibliografia
específica: o primeiro livro alemão, escrito da ótica nazista, criticando o integralis-
mo! Trata-se de um livro no qual o nazismo reivindica do integralismo o elemento rácico,
denuncia a ausência do racismo em Plínio Salgado! E, vejam, Chasin, na análise do
texto, havia já identificado a ausência desse racismo e, a partir desta e de outras ca-
racterísticas, mostrou as diferenças entre o discurso pliniano e o nazi-fascista. Chasin
sempre ponderou... Não se pode usar uma teoria como passaporte universal. A con-
cepção está em Marx: “Portanto, eventos de chocante analogia, mas se passando em
millieu (meios) históricos diferentes, levaram a resultados bem diferentes.” Ou seja,
não se pode usar uma teoria supra-histórica, como passaporte universal para se ex-
plicar realidades distintas, sem mais, como modelo! Deve-se partir, obviamente, das
24. Trata-se de citação da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, escrito por Marx em 1843, texto de
transição para seu período propriamente marxiano.
25. Hélgio Henrique Casses Trindade (*1939), cientista político, estudou o integralismo e foi
reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992-96). Foi também o primeiro presi-
dente da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes), órgão do Ministério
da Educação que desde 2003 tem a prerrogativa de supervisionar a avaliação do ensino superior.
Atualmente, é membro do Conselho Nacional de Educação.

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Entrevista

realidades específicas e concretas, e aí sim vale o momento comparativo. Comparar,


diz Chasin, é próprio do conhecimento. Agora, Chasin praticava (e isso se torna
muito claro na teoria das abstrações, que ele extrai de Marx) essa intensificação ontológica.
Chasin levava em conta fundamentalmente a dimensão histórica e assim chegou às
conclusões de sua pesquisa. Quer dizer, no integralismo não há o elemento rácico que
há no nazismo e não há o expansionismo imperialista.
Ester: Imperialista mobilizador para a guerra...
Rago: Isso mesmo! Chasin dizia: “O nazismo é uma ideologia de mobilização
para a guerra. É um imperialismo...”. Tem também um caráter nacionalista. Mas, cui-
dadoso, acrescentava: “Existem muitas formas de ser nacionalista”. Nacionalismo
não é um molde, um tipo ideal que se aplica de modo indiscriminado a realidades
concretas diferentes, coisa que caracteriza o procedimento usual. Quando estudei
[Gustavo] Barroso26, ficou inteiramente provado que Chasin tinha toda razão, por-
que há essa dimensão regressiva e não o elemento rácico mobilizador para anexações,
para a busca do espaço vital. Por isso, acho que Chasin abre e faz uma revolução
teórica nos estudos sobre ideologia.
Vânia: Nesse processo de tentar suprir as carências da esquerda é que se insere a Revista
Temas de Ciências Humanas? Como se deu a criação dela?

Revista Temas de Ciências Humanas nº 7

26. Dissertação de Mestrado em História defendida na PUC-SP em 1989, intitulada A Crítica Ro-
mântica à Miséria Brasileira: O Integralismo de Gustavo Barroso. Gustavo Barroso (1888-1959) foi
um dos ideólogos do movimento integralista e redator do Jornal do Commércio.

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Rago: O primeiro número da Temas saiu em 1977. O grupo que coordenava a


revista era composto por Chasin, Werneck Sodré, que estava no Rio, Marco Aurélio
Nogueira e Gildo Marçal Brandão, que foram professores da Escola de Sociologia e
Política. Mais tarde esses dois últimos demonstraram um comportamento altamente
reprovável. Mas o que importa nesse momento é que, quando a Revista Temas é cria-
da, Chasin se propõe a chamar para dentro dela os lukacsianos que estavam no exílio
em vários países: Leandro Konder estava na Alemanha, Carlos Nelson Coutinho
na Itália, e José Paulo Netto em Portugal. Chasin recebeu, já em Moçambique, uma
carta de José Paulo Netto elogiando a sua obra sobre O Integralismo de Plínio Salgado,
falando que aquela era a maior obra que ele tinha visto de análise marxista no Brasil
sobre ideologia etc. Citei o caso da Revista Temas, em primeiro lugar, para indicar a
ação agregadora que caracterizou sempre a atuação do Chasin, em qualquer nível em
que ele tenha se dado, e em segundo para mostrar esses dois aspectos. Chasin vai à
raiz, na análise imanente, e compreende que deve orientar outras pessoas a fazerem
o mesmo. Isso quer dizer: ele não dava como completa a análise do integralismo e
achava que outros pesquisadores deveriam levar adiante outras pesquisas para en-
tender mais profundamente a ideologia burguesa no Brasil. Guardadas as devidas
proporções, Chasin já propunha fazer com a ideologia nascida da miséria brasileira
aquilo que Marx fez com a ideologia alemã. Aqui a referência também é Marx: a
miséria alemã.
Lúcia: Quando Chasin começou a lecionar na Escola de Sociologia e Política?
Ester: Chasin começou a lecionar no início da década de 1970. A Escola de
Sociologia e Política era um anexo à USP, era um casarão, na Rua General Jardim...
E Chasin lecionava lá na segunda à noite e no sábado à tarde. Era para o primeiro
e quarto anos... Por alguma razão que desconheço, a Escola de Sociologia e Política
ficou fora da atenção dos órgãos de repressão, durante certo período. Depois, como
veremos, essa situação privilegiada se inverteu, pois a ESP acabou por se tornar um
palco de disputas acirradas, em que a repressão intervém. Mas, de início, ali havia,
além desse ponto para o qual Rago está chamando a atenção, um clima de discussão,
um clima de liberdade que a USP não conhecia naqueles tempos sombrios... Eu fiz
a graduação em Ciências Sociais na USP e os estudantes desconfiavam que até o
pipoqueiro era agente do Dops!!! Na Escola de Sociologia e Política, ao contrário,
havia festas onde rolava de tudo, havia debates em que podia falar o que se bem en-
tendesse, porque até aquele momento a repressão não tinha percebido o que estava
acontecendo ali...

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Entrevista

Vânia: Quem mais estava na ESP naquele momento?


Rago: Quando eu entrei na Sociologia e Política, já sabia da fama de seus in-
telectuais. Porque lá estavam Chasin, Maurício Tragtenberg, Moniz Bandeira e uma
série de outros professores que, de um modo ou de outro, defendiam claramente
suas posições. Um era adorniano, defendia a Escola de Frankfurt até à raiz; o outro
era gramsciano, o outro era trotskista e assim por diante... E Chasin, no primeiro
ano – acreditem ou não – não iniciava o curso com o pensamento de Marx. Ele
abria o curso com Sócrates, com A Apologia de Sócrates, para comentar o problema da
liberdade do indivíduo e da condenação dessa mesma liberdade. As aulas de Chasin
eram muito marcantes. Por exemplo: ele indicava um texto. Nós líamos e ele rodava a
classe para saber de nossa leitura, comentava o texto e nossas interpretações, as nos-
sas versões. E era muito engraçado, porque você falava tal coisa, o outro falava outra
coisa e Chasin ia amarrando e falava: “Olha, a posição de fulano é mais próxima de
Demócrito, porque ele acredita que o mecanismo...”. E a gente exclamava: “De onde
ele tirou isso??”. “A posição de fulano é aristotélica, porque...” Então, era muito en-
graçado, porque ele não era o professor comum, que dava a matéria e ia embora. Ele
fazia a gente pensar. Então, uma característica de suas aulas era essa capacidade que
ele possuía de fazer a gente pensar...
Vânia: Que disciplina ele ministrava?
Rago: No primeiro ano, metodologia e no quarto, filosofia social, disciplinas
que introduziam a Ontologia do Ser Social de Lukács, as posições ontológicas de Marx.
Geralmente, a sala dele era superlotada. Não só por nós, mas também por pessoas
que eram convidadas, e mesmo pelos temas que ele desenvolvia...
Ester: Eu, por exemplo...
Vânia: Então, você não foi aluna regular de Chasin?
Ester: Não, eu estudava na USP. Fui convidada para ouvir as aulas de Chasin.
Rago: E Carlos Eduardo Berriel convidou Ricardo Antunes, que fazia FGV27.
Havia também o pessoal do primeiro ano, mas que também freqüentava as aulas do
quarto ano...
Ester: E a sala era pequena.
Rago: Era muito pequena, então, aquilo transbordava de gente... De pessoas
que vinham de fora, porque já se colocava o alto nível de suas aulas, o domínio que

27. Fundação Getúlio Vargas.

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ele tinha em certas questões para as quais não encontrávamos respostas em outros
intelectuais.
Ester: Eu tenho essas aulas preparadas dele, até hoje, em um pequeno fichário.
Rago: Isso eu nem posso imaginar, mas só para ver se isso bate com o que você
tem em mãos... Chasin, por exemplo, fazia crítica daquilo que estava em voga.
Ester: Exato.
Rago: Uma teoria que estava em voga naquele momento era a de Reich28. A
Função do Orgasmo etc., pegava a garotada inteira. Tinha até um tratamento psicológi-
co reichiano, em São Paulo. As pessoas colocavam uma máscara e um maiô elástico,
e ficavam se tocando... Como se isso liberasse a humanidade... E Chasin criticava
duramente. Havia um setor reichiano na Escola de Sociologia e Política que ficava
visceralmente ofendido... Como alguém tem a coragem de falar de Reich nesses
termos? Como alguém se atreve a denunciar os limites de Adorno? Então, era uma
verdadeira guerra! Porque os outros professores também criticavam aquilo que Cha-
sin falava. Desde essa época – eu entrei em 1973, após deixar a Faus, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo de Santos –, ele já fazia a crítica do populismo. Então, foi
por esse período a primeira vez que eu ouvi que o populismo era um modelo, de
talhe weberiano, de extração liberal-democrática, um tipo ideal que nascera de necessidades
na Europa e que os nossos sociólogos uspianos, incluindo Francisco Weffort, assi-
milam de Gino Germani, Torcuato di Tella, na Flacso [Faculdade Latino Americana
de Ciências Sociais], no Chile, e que se dissemina num Brasil muito empolgado com
a sociologia da modernização, acabando por aplicar essa teoria aqui no Brasil. E Chasin
já questionava o núcleo da sociologia da modernização de Gino Germani e Tor-
cuato di Tella. Além disso, no período da ditadura militar, vão se tornando moeda
corrente a teoria do populismo e a teoria da dependência de Fernando Henrique Cardoso e
Enzo Faletto. Chasin, desde aquela época, situa a falsidade dessa analítica: a questão
do “vácuo político”, das “atimanhas da burguesia”, dos conceitos de elite/massa
substituindo as categorias ontológicas de classe e dominação de classe, e assim vai...
A primeira crítica que Chasin fez a FHC, o “príncipe da sociologia”, como era ape-
lidado, na sala de aula, os alunos e alunas se revoltaram, dizendo: “Esse cara é um
marxista, professor, esse cara é um socialista”. Chasin respondeu: “tudo bem, mas
vamos mostrar o ecletismo metodológico, o viés social-democrata, a tipologicização, que
estão presentes nos textos de Cardoso”. Essa postura, esse rigor marcaram muito os
alunos Na época, havia um grupo de alunos chamado Práxis. Eu nunca pertenci ao
Práxis.. Mas o pessoal do Práxis me considerava próximo, porque eu criticava todo
28. Wilhelm Reich (1897-1957), psiquiatra e psicanalistra áustro-americano.

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Entrevista

professor que não fosse marxista ou que não estivesse próximo daquilo que Chasin
ensinava. De minha parte, entretanto, nunca me atrevi a procurá-lo, a não ser mais
para o final do curso...
Vânia: Então, na época que era estudante você nunca teve nenhum contato pessoal com o
Chasin e a família?
Rago: Sim, tive... Uma vez nos encontramos em um restaurante italiano no Bi-
xiga que eu frequentava com minha família. Timidamente me dirigi à mesa em que
ele estava sentado com a família e começamos a conversar. Foram vários os assuntos
e acabei dizendo que era músico, que tocava violão. Ao saber disso, Chasin e Hanna
me convidaram para dar aulas de violão para o filho mais velho, então adolescente,
Ibaney. Vocês sabem que hoje Ibaney é um profundo conhecedor da música de
Monteverdi, do Renascimento, do Iluminismo, além de regente, um formulador de
estética musical. Assim, ao freqüentar sua casa tomei conhecimento de seus gostos
musicais, por exemplo, Astor Piazzolla29. E, assim, percebi que tínhamos gostos em
comum. Além disso, constatei que era alguém que dominava e gostava não só de boa
música, mas de boa literatura também. Tudo isso fez com que eu viesse a admirar
Chasin. Mas, fundamentalmente, após da morte de Herzog e, depois, no ano seguin-
te, de Manuel Filho30, em 1976, já se colocava para nós a necessidade de militância,
quando Chasin conversa com a gente, mostrando que a esquerda estava fragmentada
e a gente teria que organizar alguma coisa... Chasin já criticava o politicismo das
esquerdas, que separava a luta política da base material da vida. A esquerda não ques-
tionava a plataforma econômica da ditadura militar. Nesse sentido, Chasin acreditava
que, se levássemos a discussão de um programa econômico alternativo para o seio
de movimento operário, da independência ideológica para a classe trabalhadora, se
aproximássemos as esquerdas divididas – pensava, inclusive num fórum de esquer-
das –, se nos atássemos aos movimentos sociais, poderíamos colocar uma cunha,
ainda que pequena, na luta contra a ditadura militar e seu projeto de auto-reforma.
A gente se empolgou em estar em contato com operários, em estar na militância.
Com todos os riscos que a militância continha. Porque havia muitos infiltrados nos
movimentos de esquerda...
Ester: Era comum na época.
Rago: Era comum, dada a debilidade da própria esquerda. Tanto é que na So-
29. Astor Pantaleón Piazzolla (1921-1992), músico argentino, compositor de tango mais impor-
tante da segunda metade do século XX,
30. Manuel Fiel Filho (1927-1976), metalúrgico morto por tortura pela ditadura militar, sob acu-
sação de pertencer ao Partido Comunsita.Sua morte provocou o afastamento do general Ednardo
D’Ávila Melo do comando do III Exército.

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ciologia e Política, por exemplo, você tinha na cúpula da diretoria Vicente Unzer de
Almeida. Você tinha esse aluno, Luiz Brum, se não me falha a memória, e outras
pessoas que também representaram um papel de direita, de extrema-direita. Veja o
caso do Nelson Brissac, um intelectual que trabalha com o pensamento de Jean Bau-
drillard, com essa questão do irracionalismo pós-moderno. Este jovem vai ter uma
posição muito ruim na Ala Vermelha31. Em sua tese doutoral intitulada Ala Vermelha:
revolução, autocrítica e repressão judicial no Estado de São Paulo, Tadeu Dix Silva denuncia o
papel covarde a que se prestou esse jovem e o papel de seu pai na denúncia do grupo
dirigente. Alípio Freire32 e outras pessoas que militaram com ele na Ala Vermelha
são claros em dizer que ele não foi torturado, que ele ficou do lado de fora, e vendo
depois eles sendo torturados... Tanto é que um policial chama Alípio Freire de um
codinome que poucos sabiam, e ele intui quem passou a informação. O aparelho é
descoberto dessa maneira, com a Oban atuando, por conta dessas relações, e o pai
negocia a ida do filho para o exterior. E esse menino retorna na Fundação Escola de
Sociologia e Política, em São Paulo, e será um agente detonador no movimento es-
tudantil de operações difamadoras contra Chasin. Havia outra colega minha, a gente
estudava na casa dela. Eu ia estudar num grupo de estudos, para fazer as atividades
de pesquisa, e o marido dela também era do Deops. A gente não sabia. Ele contro-
lava essa menina por todos os lados. Eu não me lembro do nome dele, mas quando
alguém foi preso e depois solto, nos disse: “Encontrei o fulano de tal dentro do De-
ops e com visíveis intimidades...”. Então, esse marido de uma colega nossa também
era infiltrado. Os vários grupos que atuavam ali, dos stalinistas aos trotsquistas, mais
essa penca de infiltrados, se exasperam quando vêem a liderança de Chasin se impor
e o curso se transformar de ponta a ponta numa escola de marxismo. Mas um tipo
determinado de pesquisa marxista. O tormento se apresenta quando Chasin amarra
o curso. E isso começa a mobilizar todos esses agentes...
Vânia: Amarra o curso?
Rago: Eu vou explicar. Do primeiro ao quarto ano, essa linha que Chasin cha-
mava, à época, de “ontometodologia de história”, “centralidade do trabalho”, “crí-
tica ontológica à analítica paulista”, já começa a se pôr. Marx se torna figura central.
Gildo Marçal Brandão trabalhava a Fenomenologia do Espírito de Hegel e dissecava os
Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, de Marx. Então, ali Chasin já começa a ler a

31. A Ala Vermelha foi uma das duas cisões surgidas do Partido Comunista do Brasil (PC do
B) em 1966 – a outra foi o Partido Comunista Revolucionário, formada por membros das Ligas
Camponesas e por integrantes do movimento estudantil. Esta organização se lançou na luta arma-
da, inclusive compondo uma Frente Armada com a Aliança Nacional Libertadora (ALN), a Van-
guarda Popular Revolucionária (VPR) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).
32. Poeta, militante e jornalista.

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Entrevista

Ontologia do Ser Social de Lukács. Começávamos a estudar em meados dos anos 70 os


seus esboços da ontologia estatutária de Marx. Quer dizer, o tríptico lukácsiano de
análise imanente, determinação social e função social já está amplamente desenvolvi-
do no Integralismo defendido em 1977, na Sociologia e Política, mas Chasin fala disso
bem antes da apresentação da tese doutoral. Então, começávamos aí a aprender essa
questão do marxismo enquanto ontologia. Para mim, era uma coisa inteiramente
nova e só foi ficar claro, se é que posso afirmar isso, muito tempo depois... Bem,
retomando, do primeiro ao quarto ano, os professores integravam uma linha e isso
vai tornando algo orgânico. E o estopim é quando Chasin prepara a implementação
de um curso de pós-graduação. As próprias esquerdas começam a denunciar essa
organicidade, pois, afirmavam, além de ter o curso da graduação uma hegemonia
do “marxismo chasiniano”, você teria um pós-graduação como extensão da própria
graduação, e Chasin já vislumbrava a feitura de vários trabalhos monográficos, sobre
o pensamento conservador, movimentos sociais, industrialização híper-tardia etc. E,
mais ainda: o movimento estudantil, na época, desenvolvia aquela questão do centro
acadêmico versus diretório acadêmico. No fundo, esse projeto marxista estava pro-
movendo uma verdadeira formação de quadros...
Ester: E este era justamente o objetivo de Chasin ao chegar à Escola de Socio-
logia e Política. Quer dizer, naquela experiência que ele teve enquanto estudante, ele
constatou logo de imediato a debilidade e mediocridade teóricas da esquerda tradi-
cional... Quando ele passou a lecionar na Escola de Sociologia e Política, significou
um momento especial, no qual ele encontrou jovens como Rago, Berriel, interes-
sados, preparados... Exatamente para compor um grupo de pesquisa com pessoas
formadas teoricamente para esse grande projeto de entender o Brasil, de pensar o
Brasil sob as mais diferentes formas, mas, num primeiro momento, do ponto de
vista ideológico, exatamente para suprir essa carência secular de uma perspectiva
teórica consistente para a esquerda. Foi isso que significou a Escola de Sociologia
e Política. E, rapidamente, os setores de direita e setores de esquerda perceberam,
constataram o perigo que isso significava...
Rago: Bom, o que eu queria retomar é que há uma confluência de posições:
quer dizer, a extrema-direita, a direita, a esquerda e a extrema-esquerda. Por incrível
que pareça, o leque que vai de Unzer àqueles jovens Brum e Brissac...
Vânia: Unzer era da diretoria?
Ester: Vicente Unzer de Almeida era um alto executivo da Mercedes-Benz e
professor da Escola de Sociologia e Política. Fazia o serviço de informações para a
ditadura.

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Rago: Veja, em todas as universidades existia uma rede vinculada à Assessoria


Especial de Segurança e Informações (Aesi), ligada ao MEC. Então, essa conflu-
ência de esquerdas com a direita se põe contra uma dada hegemonia. De fato, o
pensamento marxista era hegemônico no curso, e estava estruturado do primeiro ao
quarto ano. O que Gramsci chamava de hegemonia, de formação de intelectuais or-
gânicos nas lutas de classes. E isso ia redundando na nossa própria formação. Ainda
que alguns não percebessem, vamos dizer assim, que estavam se formando... Tanto
é que, nesse processo, enquanto eu era músico, totalmente fora de uma estrutura, eu
agia como se fosse do Práxis e isso fazia com que certos setores estudantis também
me condenassem, atacassem, assim por diante. E eu fui dando uma guinada pessoal.
Então, desta confluência, eles vão armar uma situação inverídica, falsa, de que Cha-
sin intervinha diretamente no movimento estudantil. Inventam uma cena pitoresca,
grotesca, inteiramente falsa! Eles falaram que Chasin subiu numa mesa, propondo a
ocupação do prédio pelos estudantes do Práxis, sendo que – pequeno detalhe – nós
vivíamos numa ditadura militar, nos anos 70, meados de 70, ainda sob a vigência do
AI-533, ainda sob a vigência do Decreto-Lei 47734, que é um decreto que pune radi-
calmente a interveniência do docente no movimento estudantil, entre outras coisas,
como a própria militância política. Quer dizer, se um professor se imiscuísse nas
atividades estudantis, ele era literalmente expulso da instituição. E a esquerda, então,
monta com a direita esta acusação improcedente. Improcedente pelo próprio perfil
de Chasin. Veja, não estou dizendo que ele não formava quadros de talhe marxista,
mas Chasin jamais subiria numa mesa! Ainda mais, para propor “Todo poder aos
sovietes de estudantes!”. Esses setores da esquerda vêem como única saída a aber-
tura de uma sindicância para forjar a expulsão de Chasin da [Escola de] Sociologia
e Política. Nessa sindicância, eles procuram estudantes para depor que não fossem,
obviamente, aqueles que eram supostamente implicados com ele ou coisa parecida.
Aí, Chasin me pede para eu participar da sindicância. Outra depoente foi uma jovem
chamada Anete. Quer dizer, fui um dos estudantes que depuseram e eu sofri muito
com a pessoa que escrevia, porque eu falava uma coisa e ela escrevia outra. Eu fiquei
33. O Ato Institucional n. 5 (AI-5) foi baixado pelo presidente-ditador Artur da Costa e Silva em
13 de dezembro de 1968. Este instrumento inaugurou o período mais duro da ditadura militar,
dando ao regime poderes absolutos. Dentre suas determinações estava o fechamento do Congres-
so por tempo indeterminado, a cassação de mandatos de parlamentares, a intervenção nos estados
e municípios, a possibilidade de decretação do Estado de sítio pelo presidente da República, a
suspensão das reuniões políticas, a censura prévia, a suspensão do habeas corpus para os crimes
políticos e outras. Foi suspenso dez anos depois.
34. O Decreto-Lei 477, de 26 de fevereiro de 1969, discriminava infrações disciplinares praticadas
por professores, alunos, funcionários ou empregados da educação. Entre outras medidas, proibia
o estudante considerado subversivo de se matricular em qualquer escola por um período de três
anos.

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Entrevista

profundamente irritado, tanto é que eu comecei a esbravejar, num certo sentido,


com aquela senhora, porque quando eu ia ler o que ela havia anotado, o que dizia que
eu tinha falado era dúbio, não era precisamente o que tinha falado. Mas eu repeti o
que presenciei no dia do “Todo poder aos sovietes...”: Chasin não estava no momen-
to, no exato momento em que os estudantes fizeram a assembléia, não estava junto,
e em nenhum momento nenhum professor se pronunciou. E muito menos Chasin
subiu na mesa... Então, esse foi meu depoimento, com todas as manipulações dos
inquisidores... Numa operação extraordinária, os estudantes “tomaram de assalto”,
numa madrugada, a sala da diretoria da [Escola de] Sociologia e Política e encontra-
ram uma documentação típica da pretensa Aesi. Descobriram nomes das pessoas
tachadas como de esquerda, com a sigla de seu partido ou tendência, e outros que
faziam o serviço de informantes, internamente, e também dos professores da direita
que estavam ali. Veja que o quadro é complexo, porque na raiz dessa perseguição
está também a proposta de Chasin para a criação, nesse ano de 1976, de um curso
de pós-graduação.
Ester: É, esse que era um dos pontos delicados. Os professores se sentiram
ameaçados.
Rago: Muito ameaçados.
Ester: Viram-se questionados e a ignorância e mediocridade se mostravam, as-
sim, claramente.
Rago: Nesse processo de ficar debatendo, polemizando com os professores,
eles ficavam numa situação muito delicada. A gente não tinha mais Maurício Trag-
tenberg, nem Moniz Bandeira e outros professores que deram a formação para nós.
Mas esses professores [de direita], que eram iniciantes, também eram temerosos
para dar aula, foram ficando cada vez mais... numa situação muito ruim. Bom, esse
processo culmina, então, na expulsão de Chasin... Chegamos a falar com alguns
professores que desejavam a sua expulsão, para mostrar onde estavam se metendo:
que a saída de Chasin implicaria a demissão deles próprios. Estavam dando armas
para a direita inscrustada na direção da ESP e que mantinha ligações com a seita do
reverendo Moon.
Ester: Não foi só Chasin, mas também Hannah, Augusto e Flávia Cacciabava,
Gildo [Marçal Brandão]... Os outros professores, que pensavam em se assegurar,
que não iriam sofrer com a demissão de Chasin, também sofreram com a lâmina dos
cortes.... Aí, Chasin falou: “Eu vou primeiro, mas tenham certeza de que vocês vão
também”. E foi o que aconteceu... O diretor, um liberal, ficou em cima do muro,

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chamava-se De Lorenzo. Nós pensávamos que ele ia acabar apoiando, evitando o


pior, mas ele não evitou, deixou a coisa andar...
Rago: No processo da sindicância, eu fui conversar com ele, em seu apartamen-
to, na Avenida Angélica, e De Lorenzo foi claro dizendo que Chasin tinha razão e
tal, mas no processo ele acabou atuando de forma diferente. Inclusive, porque, nesse
momento, ocorreria a defesa da tese de doutorado de Chasin, e aproveitando a maré
repressiva tentaram impedir a todo o custo essa defesa... Chasin só a defendeu em
1977 – nesse episódio, há que destacar a intervenção positiva de Maurício Tragten-
berg, de Antonio Candido, de Carlos Guilherme Mota, Reynaldo Carneio Pessoa...
Ester: Era para ter defendido em 1976... Houve toda uma batalha jurídica por-
que Vicente Unzer de Almeida, baseando-se em fatos que não existiram, alegou que
Chasin não cumpriu o prazo estabelecido para entregar a tese. E, não tendo cum-
prido o prazo estabelecido para entregar a tese, ele não poderia defendê-la. Então,
Chasin teve de brigar por um ano para ter o direito de defender a tese. Quer dizer,
Vicente Unzer de Almeida, que era de extrema-direita, aliado com a “esquerda”, cuja
liderança era um policial, Luiz Brum... Anos mais tarde, inclusive, revistas, jornais
mostraram que o pessoal do PC do B estava sendo liderado por um policial, por um
infiltrado... Além de hostilizar violentamente Chasin, eles fizeram um enterro sim-
bólico dele, com caixão e tudo mais.
Rago: Aí um fato pitoresco para a história... Everton Capri tem, naquele mo-
mento, uma atitude maravilhosa... Porque os estudantes vêm com um caixão, pas-
sando pelo corredor da [Escola de] Sociologia [e Política], que era pequenininho, e
logo na porta de entrada, Everton, simplesmente, coloca os dois pés neles... E ele era
alto... Ele dá um vôo rasante, assim, derruba todos e sai correndo... Nós atrás, mas
nós éramos o mesmo que nada perto daquela massa, mas a massa sai correndo... Por
isso foi pitoresco... E ele não era uma pessoa militante, mas ficou tão indignado...
Vânia: Ele me disse que apoiava a chapa contrária à do grupo Práxis...
Rago: Exatamente... Everton ficou tão indignado, porque sabia que Chasin era
o melhor professor... Quer dizer, Chasin era uma potência dando aula, transborda-
va erudição e conhecimento de Marx... Então, esse é o processo, que é muito mais
complexo, mas para nós era muito claro o equívoco da confluência de esquerda com
direita... Então, aí desmorona o projeto da Sociologia e Política. É o ano de 1976.
Vânia: Só para pegar o fio da meada, a defesa da tese ocorre...?

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Entrevista

Ester: No final de 77, ele consegue, finalmente, depois de muitas idas e vindas,
jurídicas e administrativas, ele consegue vencer e ter o direito de defender para uma
banca composta por Antonio Candido, Reinaldo Carneiro Xavier, Carlos Guilherme
Mota, Maurício Tragtenberg, que era o orientador, e Braz José de Araújo. O salão da
Escola de Sociologia e Política estava lotado, tinha gente pendurada na janela, gente
tentando entrar... Foi realmente uma vitória emocionante, porque ele volta para a
Escola de Sociologia por cima, defendendo uma tese brilhante, com uma banca que
reconheceu esse mérito – foi uma espécie de desforra. Nós até organizamos uma
festa para comemorar, na casa dele. Foi uma surpresa... Ele ganhou até uma placa
de prata, dos alunos da Escola de Sociologia e Política, uma volta triunfal dele para
a Escola depois de ser demitido daquele jeito...
Rago: E tem um fato, Ester, muito importante: sai na Folha de S. Paulo uma
página inteira mostrando a revolução teórica contida em sua tese doutoral sobre o
integralismo...
Ester: É uma entrevista com Getúlio Bittencourt... Uma entrevista de página
inteira com Chasin, sobre a tese, que sai na Folha de S. Paulo, em fins de 77...35 Foi
cedida a Getúlio Bittencourt que, na época, era jornalista da Folha de S. Paulo.
Vânia: E nesse ano em que ele foi demitido, entre a demissão e a defesa, o que Chasin fez?
Como ele sobrevivia?
Rago: Uma questão, sobre a qual até o grupo se dividiu, foi que Chasin come-
çou a procurar emprego em outras universidades. Então, mais umas vez, surge a
figura de Maurício Tragtenberg... Maurício foi genial... Vocês sabem que foi a pessoa
que indicou Chasin, quando de sua volta de Moçambique, para João Pessoa. E ele
indica Chasin, para a área de Educação, acho que lá da Unicamp.
Ester: Isso mesmo. Tragtenberg dava aula na Faculdade de Educação da Uni-
camp.
Rago: O que vai acontecer... Esses jovens, como Nelson Brissac, e outros pro-
fessores começam a se articular para envenenar qualquer espaço com o objetivo de
evitar que o Chasin trabalhasse... Então, Chasin começa a ter os espaços bloqueados
e controlados. Porque as pessoas começavam a falar e falar que onde ele entrava, ele
organiza quadros, “desmonta tudo...”.
Ester: Chasin defendeu, por fim, a tese, que para ele tinha vários significados.
Além desse significado que a gente enfatizou, que é o de abrir uma linha de pesquisa
35. CHASIN, J. O integralismo não é um fascismo. Entrevista de J. Chasin a G. Bittencourt. Folha
de S. Paulo, 25 dez. 1977.

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toda voltada ao entendimento do pensamento social brasileiro, do pensamento con-


servador brasileiro, embora ele não considerasse essa expressão a mais adequada,
tinha também outro lado. Era o passaporte para ele ingressar em uma universidade
pública, para se dedicar apenas à docência e à pesquisa, para acabar com aquela
vida dupla, que ele foi obrigado a ter durante vários anos. Ele não suportava sequer
pensar na idéia de voltar a trabalhar numa empresa. Ele queria lecionar e – como
Rago, inclusive escreveu no necrológio, publicado na revista Crítica Marxista36, logo
depois a morte de Chasin –, ele se viu impedido de ingressar na Unicamp, não
obstante todos os esforços de Maurício nesse sentido, e em outras universidades
também... É preciso lembrar aqui que ele tentou, no início dos anos 70, ingressar na
pós-graduação na USP. Ele foi impedido também. Por ex-colegas, como Weffort e
companhia. A esposa tinha voltado a estudar, na época, no início dos anos 70. Foi
quando eu a conheci. E ela achou que ele seria aceito na pós-graduação da USP. Ele
foi até lá, conversou com várias pessoas, como Carlos Estevão Martins, o famoso
Capitão Ipanema... Conversou também com Weffort e outros e simplesmente foi ne-
gado a ele o ingresso na USP. Então, ele foi, durante todo esse período, boicotado...
perseguido pela direita e boicotado pela soi disant esquerda. E essa coisa ocorre no-
vamente depois da defesa de tese, que foi um sacrifício terrível, de vida, inclusive de
família, se privar da companhia da mulher, dos filhos, dos amigos, para se dedicar à
pesquisa do integralismo de Plínio Salgado... Em suma, tinha esse sentido, que aqui
já foi ressaltado por Rago, e tinha um sentido também de a tese ser um passaporte,
afinal de contas, para se dedicar àquilo que era o talento dele, aquilo para que ele es-
tava vocacionado, que era a atividade docente e de pesquisa. E ele se viu, novamente,
impedido de realizar isso, sofreu vários boicotes, não obstante todos os esforços que
Maurício Tragtenberg fez no sentido contrário.
Rago: Foi um período, só para vocês entenderem o que está ocorrendo, em
que ele lança a Revista Temas. A Temas é de 77. O primeiro número sai, inclusive, com
aquele material, a “Carta sobre o Stalinismo”, de Lukács. Sai o texto de Gramsci37
e assim por diante. E o que vai acontecer? Chasin começa a realizar, na casa dele,
uma organização desse grupo, que vai ser o grupo do Movimento Ensaio; ele começa

36. “Em Memória de J. Chasin: Luta pela Autenticidade Humana”, publicado na Revista Crítica
Marxista n. 8, de junho de 1999.
37. Refere-se a “Alguns Temas da Questão Meridional”. No mesmo número ainda havia textos de
Braz José de Araújo (“Caio Prado Júnior e a Questão Agrária no Brasil”), NelsonWerneck Sodré
(“História do Iseb 1”), J. Chasin (“Sobre o Conceito de Totalitarismo”), Marco Aurélio Nogueira
(“Max Weber: a Burocracia e as Armadilhas da Razão”) e Gildo Marçal Bezerra Brandão (“Totali-
dade e Determinação Econômica”), além do “Manifesto da Associação Industrial”, de 1881, com
apresentação de Reynaldo Carneiro Pessoa.

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Entrevista

a lecionar sobre a ontologia do ser social de Lukács, confrontando com as posições


do próprio Marx...
Ester: Nós organizamos cursos livres, que foram, naquele momento, a única
fonte de sobrevivência para ele e para a família.
Rago: A gente bancava em parte, mas ficou uma questão para nós: ou a gente
bancaria isso até ele conseguir alguma coisa ou ele teria de fazer outra atividade. E
é esse processo que Ricardo Antunes, no livro sobre os sociólogos brasileiros38, não
sei se vocês leram, da Editora 34, conta desse momento, em que ele aprendeu com
Chasin lineamentos da ontologia marxiana e lukacsiana. É esse o momento da nossa
entrada no Partido Comunista. Quero mostrar que, nesses anos, Chasin convida a
mim e a Cida39, pessoalmente. E era um momento de muito risco, porque, por mais
que a gente soubesse que tinha toda a crítica do mundo ao Partido Comunista, era
um momento em que tinha ocorrido a morte de Herzog, havia a movimentação so-
cial... Havia desde 74 o movimento político da oposição democrática, o MDB, a ação
conjugada do movimento estudantil com outros movimentos populares e em 76 morre
Manuel Filho. Então, duas pessoas, um intelectual e outro operário, do mesmo Par-
tido Comunista. E você sabe que, mesmo que o Partido Comunista não fosse uma
ameaça, ele começa a ser perseguido e destroçado.
Vânia: Vladmir Herzog ainda era amigo de Chasin nesta época?
Ester: Eles não tinham mais contato. Acho importante ressaltar o seguinte: esse
movimento de reconstrução do PCB aqui no Brasil foi encetado por um grupo de
pessoas que sobreviveram às prisões, às mortes, enfim... Pessoas que sobreviveram
e que, em dado momento, resolveram isso. O Comitê Central estava fora. Então,
foi um processo de reorganização do PCB que se fez meio que atabalhoadamente,
a partir daqueles que restaram, literalmente. E, veja, há nesse período duas coisas:
primeiro, o Partidão insistia em designar o regime militar brasileiro como fascista. Chasin
era um violento crítico dessa designação, não por causa de algum purismo, algum
florilégio intelectual, mas por um rigor cientifico. Não era fascista. Tá certo você sair
na rua e xingar os milicos de fascistas. É um xingamento ótimo para causar efeito,
mas não era uma categoria cientifica. Então, tudo bem, nós entramos para ajudar na
reconstrução, mas, espera um pouco... Tratava-se da mesma discussão que Marx
e Engels tiveram em [18]48 com a Liga dos Comunistas. A gente vai entrar, mas
espera um pouco: vamos sentar aqui para ver o diagnóstico da realidade para ver o
38. Trata-se de Conversas com Sociólogos Brasileiros, organizado por Elide Rugai Bastos, Fernando
Abrucio, Maria Rita Loureiro e José Marcio Rego e publicado em 2006.
39. Maria Aparecida de Paula Rago é professora da PUC-SP.

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que a sociedade capitalista... Enfim... havia essa questão. Nós entramos, desde que...
Então, tinha uma coisa muito complicada... Sim, entramos, mas havia um “desde
que”... Chasin estabeleceu condições para isso. E as condições eram claramente o
abandono, por parte do Partido, dessa tese falsa de que nós estávamos vivendo sob
fascismo; segundo, a discussão do politicismo, ou seja, de que a luta pelas liberda-
des democráticas, embora válida, não era a luta que deveria ser encetada a partir do
ponto de vista do trabalho. Ou seja, a luta pelas liberdades democráticas, do ponto
de vista do trabalho, implicava inserir um programa econômico, visava a estabelecer,
identificar as bases econômicas de sustentação da ditadura militar. A política econô-
mica da ditadura militar estava sobre um tripé: o arrocho salarial, a entrada de capital
estrangeiro e o investimento estatal nas indústrias de base, e era isso que deveria ser
questionado. Não era suficiente apenas reivindicar a volta do estado de direito. Qual-
quer mudança efetiva implicava a intervenção da perspectiva de um agente específi-
co, que é o agente do trabalho. Eu me lembro das reuniões, pois eu também participei...
O nosso contato não era um cara à altura, não tinha a menor dimensão intelectual,
inclusive, para perceber o que estava em questão. Ele queria que nós ingressássemos
porque para ele isso seria um trunfo, no interior da reorganização. Ele estava que-
rendo ascender dentro da estrutura do poder. Bom, entrar gente como nós, especial-
mente Chasin, professor renomado, intelectual etc., para ele seria um grande trunfo.
Mas Chasin deixou claro nas discussões que havia certas condições que deveriam ser
aceitas para que nós ingressássemos... Isso é preciso ressaltar também. E essas con-
dições passavam por esse tipo de discussão, o questionamento da atuação do PCB,
da linha de diagnóstico da realidade brasileira, do programa. Isso porque, à época,
simplesmente, o Partidão estava indo a reboque, que era a expressão utilizada, a re-
boque do Dr. Ulysses Guimarães40 etc., a reboque de um princípio liberal, deixando
de lado a perspectiva do trabalho, a democracia social. Ou seja, o que estava em jogo
naquele momento não apenas a democracia política.
Rago: Isso que Ester está falando é decisivo. Porque, mesmo assim, tem um
pessoal que era próximo à Ensaio, que era da Ensaio e que sai dizendo por aí afo-
ra que a gente era uma tendência que desejava deter as rédeas do Partido etc. Mas
Chasin sempre levou à radicalidade aquilo que Ester colocou antes, a idéia de Caio
Prado, de ter um pé dentro e outro fora. E conhecer essa realidade para saber o que
fazer. Tanto é que aquela idéia que eu mencionei antes, de a gente buscar discutir
40. Ulysses Guimarães (1916-1922), político, presidente do Movimento Democrático
Nacional (MDB) que, com o fim do bipartidarismo, em 1979, se tornaria Partido do
Movimento Democrático Nacional (PMDB). Participou das campanhas pelo retorno
do estado de direito, inclusive da luta pela anistia ampla, geral e irrestrita e pelas eleições
diretas.

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Entrevista

com outras parcelas da esquerda a construção de algo comum, uma espécie de fó-
rum das esquerdas em que ficariam preservadas as suas diferenças, publicações e or-
ganizações... Eu lembro que houve um período em que a gente pensou isso... Chasin
foi para Moçambique e, na volta, houve o encontro com Prestes. A idéia, então, era
isso que Ester falou: ver as possibilidades; e não é à toa que Chasin publica então
na Temas o artigo “Sobre o Conceito de Totalitarismo”, porque aí você primeiro faz
uma crítica ao próprio Partido...
Ester: Crítica a Hannah Arendt e à teoria do autoritarismo também.
Rago: Exatamente. Então, aí vai aparecer com clareza esse tipo de explicação
teórica e Chasin vai, vamos dizer... Se você pegar a número 3, em que sai o texto
de Marx, sobre o livre câmbio41, você tem ali a dimensão de como o mercado dá as
bases das liberdades formais. Quer dizer, você tem a idéia de Marx, Engels, Lênin...
De Lênin, ele publica as atas do Iskra42. Quer dizer, qual a função de uma revista? A
número 3 da Temas, ela é o Iskra. Isso é importantíssimo. Porque senão as pessoas
pensam que nós estamos, assim, numa batalha meramente...
Ester: Teórica...
Rago: Tínhamos a consciência de que o PCB era reformista, politicista e obtuso
teoricamente A direção estava no exterior e aqui vivíamos a sua reconstrução. Você
sabe que eles voltam em 1979, com a anistia restrita. Organizamo-nos para receber
os anistiados ainda sob ameaças de prisões... Nesse retorno do exílio já se explicitam
as rupturas, os rachas e a ideologia reformista e politicista do eurocomunismo como
a ideologia do grupo que alijara Prestes e seu bloco do Comitê Central. Nosso emba-
te se dá contra essa visão que priorizava a luta pela democracia política desconectada
da programática da perspectiva do trabalho...
Ester: Com o politicismo43, não é? Não é à toa que Chasin publica um artigo
sobre os discursos do Saturnino Braga – “A Politização da Totalidade: Oposição e
41. “Troca, Liberdade, Igualdade”, publicada na Revista Temas n. 3.
42. Refere-se a “Projeto de Declaração da Redação de Iskra e de Zariá”, publicado no número 5
da Temas. Iskra foi um periódico operário criado por Lênin, Mártov, Plekhânov, Vera Zassulich e
outros. Foram publicados quatro números até agosto de 1902. O órgão desempenhou um impor-
tante papel na criação do Partido Bolchevique.
43. J. Chasin denomina de politicismo a subordinação analítica de todas as esferas da vida social,
principalmente a econômica, à esfera política – como sendo preponderante sobre as outras. No
artigo “A Politização da Totalidade: Oposição e Discurso Econômico” J. Chasin aponta os equí-
vocos dessas análises, por impedirem a compreensão das relações sociais e da estrutura econômica
instaurada. Com isso, enxerga-se apenas a esfera das questões políticas, reduzida às franquias
democráticas, e por isso, ontologicamente parcializadora.

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Discurso Econômico” – em que ele fala que a única figura da oposição a trazer para
o debate a questão econômica era o senador Satunino Braga.
Rago: E o lance era o seguinte: como chegar ao movimento operário?
Ester: Chasin publica na Temas um texto que tinha escrito para ser lido e deba-
tido no interior do Partidão, cujo titulo é “Conquistar a Democracia pela Base”. Foi
publicado na Temas, mas antes esse artigo circulou e foi discutido exatamente porque
é um artigo em que sintetiza as suas formulações e críticas, e essa proposta deveria
ser disseminada para ser tematizada junto às esquerdas, para que esta não ficasse
simplesmente a reboque de uma plataforma, ou de uma palavra de ordem, simples-
mente liberal, que era a das liberdades democráticas. Assim, inserir nessa plataforma
a questão econômica do ponto de vista do trabalho.
Rago: Nós tentamos irradiar esse documento para muitos setores. Desde o
ressurgimento das greves operárias no ABC paulista e sua irradiação no movimento
sindical até a formação da Conclat44 e, mais adiante, dentro do PT. Então, nesse
momento em que a gente está numa dada militância, qual que era o nosso intuito?
Descobrir as fendas para o movimento operário, porque ele tinha uma fragilidade
fantástica... Quando a gente se aproximou dos operários e operárias do Partido,
quando fomos discutir com eles a teoria de Marx, Engels, Lênin, eles não sabiam
nada. Eles não tinham lido sequer o Manifesto Comunista. Mas isso foi importante,
porque nós começamos a ter uma militância nos movimentos dos professores, num
dado momento, tornando-se referencial da categoria dos professores nessa luta con-
tra a direção oportunista do sindicato. Fazíamos uma frente única de esquerdas e
enfrentávamos resistência do próprio Partido. E tinha o Sr. Leopoldino, que era um
pelego muito colado ao patronato...
Ester: De um lado era isso, e do outro era o pessoal que era do sindicato para-
lelo.
Rago: Isso, havia os trotskistas, que defendiam o sindicato paralelo. Tanto é
que, não sei se você está lembrada, quando ocorrem as greves do ABC, certa corren-
te trotsquista tenta vender seu jornal estampado com a manchete “Lula traidor”. Isto
porque Lula agia na estrutura sindical legal. E no maior momento em que a classe
operária se põe, em seu ascenso, com a liderança de uma das principais greves do país
contra a ditadura militar e que ia ao encontro dessa dimensão que Chasin inaugurava
em seus escritos: a centralidade do trabalho. Então, é no bojo desse ressurgimento

44. Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras. A I Conclat, realizada em 1981, reuniu 5.030
delegados, na primeira grande reunião intersindical realizada no Brasil desde 1964.

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Entrevista

das ações de massa que Chasin já começa a ver o desmoronamento do “milagre


econômico brasileiro”, da plataforma econômica sustentada na superexploração da
força de trabalho que já vinha... Desde fins de 1974, já começam as dissensões do
capital, da base da própria autocracia burguesa bonapartista... Ele cita no texto dele,
da Temas, em 1977, a Conclap45, o encontro dos empresários que começam a gritar
por “abertura”, a fim de não arcarem com o ônus da crise do “milagre”. Porque,
nessa Conferência, no que tange à questão democrática, a burguesia punha barreiras
à democracia. Chasin já sinalizava para os limites do ser social dos proprietários no
Brasil. Então, o que ele analisava vai se comprovando e, a cada momento, Chasin
concretiza as determinações essenciais, ontológicas, da via colonial. Obviamente, era
algo já discutido na tese e que já estava em aulas, sobre a natureza autocrática do
capital atrófico. Para nós, ficava claro o distanciamento do Partido ante a irrupção
das greves operárias e seu significado concreto. E é no bojo desta compreensão que
atuamos no MDB...
Ester: No Departamento Trabalhista do MDB. Nós criamos um fundo de gre-
ve no porão da Câmara Municipal de São Paulo.
Rago: Uma coisa que nunca alardeamos, mas conseguimos uma irradiação em
toda a cidade. A população contribuiu de várias maneiras, conseguimos uma grande
quantidade de caminhões com arroz, latas de óleo, sal... foi fantástico esse apoio.
Ainda que nossa atuação se regesse pela análise chasiniana, segundo a qual a greve
deveria ampliar suas bases sociais, com as diversas categorias que compõem a classe
operária.
Lúcia: Vocês que fizeram aquele cartão que tinha um cara desempregado e a gente vendia
para contribuir com o Fundo?
Ester: Esse é o segundo Fundo de Greve, da Igreja de São Bernardo... Nós
fizemos o primeiro.
Rago: Há que lembrar, então, que, uma vez que nós não demos sustentação
com aqueles cursos, que não davam o suficiente para manter sua família, avaliamos
que a proposta de morar em Moçambique, num certo sentido, era positiva. E Chasin,
já pensando alto, quer dizer, pensou na possibilidade de o grupo ir para lá, participar
de uma revolução dita socialista, num país extremamente pobre e ver as possibilida-
des revolucionárias...
Ester: É preciso chamar a atenção: ele fica dividido, completamente indeciso. Se

45. Refere-se à IV Conferência das Classes Produtoras do Brasil (Conclap), realizada em fins de
1977.

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tivesse surgido qualquer alternativa aqui, ele teria ficado. Ele só partiu para Moçam-
bique porque ele não teve alternativa. Foi, como ele dizia, um auto-exílio. Isso não
significou, no entanto, que de início ele não tenha ficado entusiasmado com o que
encontrou por lá logo que chegou a Maputo. Ao contrário...
Vânia: Essa proposta veio de quem?
Ester: O convite para ir para Moçambique partiu de um ex-aluno da Escola de
Sociologia e Política e Chasin consultou o grupo sobre se era o caso de ir ou não ir.
O casal Augusto e Flávia Cacciabava também foi convidado – eles viajaram primeiro
e depois Chasin foi com a família... Bom, Chasin ficou muito indeciso, muito des-
confiado... Afinal, não havia muitas informações disponíveis. Viajar, ir com a família
para um país desconhecido, um país que apenas três anos antes era uma colônia
portuguesa, que havia enfrentado uma violenta guerra de libertação... E Chasin pon-
derava: “Eu vou como, fazer o quê?” Como era bem típico dele, acabou por afirmar
“vamos tirar o melhor do pior. Eu não tenho alternativa a não sei ir para lá... Ir para
Moçambique pode significar algo positivo para mim, para minha família, mas tam-
bém algo positivo para todos, para o projeto.” Ou seja, Chasin acabou por chegar à
conclusão de que a viagem para Moçambique poderia criar as condições para se de-
senvolver aquilo que havia se tornado impossível no Brasil. Parecia ser, naquele mo-
mento, uma experiência importante, mas ele realmente ficou muito indeciso, muito,
muito indeciso. Depois da decisão, todos os preparativos da viagem... Eu me lembro
até hoje o que foi desmontar aquela biblioteca, porque ele levou parte da biblioteca
para Moçambique, e a outra parte ficou na casa de um amigo nosso, em São Paulo,
José Luiz... Foi uma coisa muito triste para ele sair daqui do Brasil, deixar a casa,
viajar com os filhos adolescentes, sem saber o que ia encontrar, de fato, pela frente...
Ele sabia perfeitamente que corria um grande risco Num primeiro momento, ele, ao
chegar lá, ficou muito extasiado com tudo o que estava ocorrendo, com a disposição,
com o papel que Eduardo Mondlane, que já havia morrido – a universidade levava
o nome dele – tinha desempenhado. O que chamou muito a atenção, também, foi a
atuação da Frelimo – Frente de Libertação de Moçambique – que, ao lado de uma
guerrilha contra o colonialismo português, desenvolveu uma batalha diplomática
extremamente bem pensada e eficiente. Diga-se de passagem, pois poucos sabem,
que talvez o colonialismo português tenha sido um dos mais devastadores. Foi abso-
lutamente terrível. E é óbvio que a perda das colônias enfraqueceu a ditadura Salazar
e, então, Chasin chamava a atenção para a atuação da Frelimo por esses dois tipos
de atuação conjugada: a guerrilha, de um lado, e de outro uma atuação diplomática
com intelectuais de peso. Outra característica da atuação da Frelimo para a qual ele

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Entrevista

chamava a atenção era a vontade, a disposição, o projeto da Frelimo de se tornar


independente... Seja da União Soviética, seja da China... O projeto de fazer o próprio
caminho, sem seguir nenhum modelo... É óbvio que depois as coisas degringolaram
e ele tristemente constatou esse processo. Mas o fato é que havia também uma
dimensão de certa ingenuidade que depois ele veio a reconhecer. Vejam, ele viajou
para Moçambique desconhecendo completamente a situação. Chasin viajou sem sa-
ber que embarcara com aval do Partido. Quando ele tomou conhecimento disso,
foi terrível... porque ele não queria ter ido com o aval do Partido, como se ele fosse
um militante do PCB. Ele não queria ter viajado nessas condições. Ao chegar lá, ele
constatou isso. Mas aí não podia voltar mais, não podia. E naquela época tinha o
maldito depósito compulsório. Quer dizer, a ditadura inventou uma forma de impe-
dir a evasão de divisas: só saía do país quem depositasse um valor astronômico para
a época, então, só a fatia mais privilegiada da população, que está no ápice da pirâmi-
de, conseguia... Além disso, Chasin teve de cancelar CPF, tudo... desmontou tudo, a
casa toda... tudo... Eu chorei quando vi a casa se desmontando. E, ao chegar lá, ele,
primeiro, constatou que aquele casal que ele considerava amigo, que foi um casal no
qual ele apostou, que foi um casal que passou a dar aula na Escola de Sociologia e
Política pelas mãos dele... Ao chegar lá, em Moçambique, ele constatou que esse ca-
sal tinha criado uma rede de intrigas... Tinham divulgado coisas do mais baixo nível
que se possa imaginar contra ele, contra a família dele... E ele teve de chegar lá e des-
fazer todo o lixo. Foi um susto de cara... O tempo que ele perdeu para desfazer tudo
isso! Imaginem! E nós aqui, sem saber exatamente o que aconteceu... A correspon-
dência era toda cifrada, porque havia violação de correspondência aqui no Brasil, era
óbvio. Imagina se uma carta de Moçambique não seria violada. Então, Chasin teve
uma boa impressão da experiência logo no primeiro momento de Moçambique, mas
rapidamente ele viu, ele constatou a inviabilidade que é sair de uma sociedade tribal
para o socialismo, constatou todas as desconfianças, as restrições que ele tinha ao
marxismo soviético, ao marxismo vulgar, ao marxismo de plantão etc., ali foi confir-
mado tudo... Então, a experiência em Moçambique foi a experiência de confirmação
de que da miséria não se vai ao socialismo de forma nenhuma. Foi a constatação de
todas as desconfianças, restrições que ele tinha em relação às transições intentadas,
às transições que não resultaram efetivamente no socialismo. E ele resolve voltar,
mas, antes de voltar, como ele tinha aval do Partido sem saber, ele participa das dis-
cussões das organizações dos brasileiros lá em Moçambique... Do Partido Brasileiro
filiado ao Partido Comunista lá em Moçambique e ele sabe, então, do racha que está
ocorrendo no Comitê Central, em que Prestes, no “undécimo gorjeio do labor”,
como ele dizia... Bom, a gente ficou um tempão para decifrar o que era o “undécimo

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Foto de José Chasin em Moçambique

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Entrevista

gorjeio do labor”... Era o décimo primeiro número do jornal Voz Operária... “Gorjeio
do labor” é voz operária... Até a gente descobrir tudo aquilo! Era tudo cifrado... “Leiam
o undécimo gorjeio do labor...”. Então, o que está lá é a fala de Prestes, a fala que
vem ao encontro... Com todas as restrições a Prestes, mas era a único... Ele já havia
sido expulso, ele estava neutralizado no PC. A maioria do Comitê Central já tinha
abraçado o eurocomunismo... E Prestes é o único que fala: “Espera um pouco, não
é assim...”. E que ele fala “preste atenção” etc... E nós, aqui, no Brasil... Cometemos
um grande equívoco. A gente deveria ter “ingressado” no Partido como tendência,
sem se deixar sufocar, contaminar pelo veneno que há numa organização partidária
do tipo do Partidão aqui. E nós, infelizmente, não agimos desse modo no setor dos
professores, no qual atuávamos. É verdade que nós brigamos, nós lutamos etc., mas
passamos a agir... A coisa era tão violenta que nós passamos a agir sob a diretriz do
Partidão!! Nós éramos militantes do Partidão. Como se isso fosse uma grande coisa,
uma grande vitória... nós invertemos tudo. Nós cometemos erros colossais. Brigan-
do dentro etc. etc., tentando levar as coisas. Havia uma grande ambigüidade de nossa
parte. No caso da Temas, por exemplo, nós tentamos impedir o Sr. Raul e Marco Au-
rélio Nogueira de italianizarem a Temas, ou seja, de abraçarem o eurocomunismo, im-
pedir que a Temas se transformasse em uma espécie de moeda de troca de interesse
pessoal... Chasin, eu tenho toda essa correspondência, enviou inúmeras cartas para
Raul, para Gildo [Marçal Brandão], para Nelson Werneck Sodré... “Por favor, não
deixem que a Temas vire moeda de troca para o italianismo...”. Porque, o pessoal que
voltava voltava sob influência do eurocomunismo. Berriel até escreveu um artigo na
Ensaio, “Gramsci e eles”46, contra o artigo “Gramsci e nós”47. Quer dizer, Berriel
denunciava a leitura de Gramsci a partir de um viés liberal, ao resgatar os nódulos
crocianos48 ali presentes. Criticamos, assim, a noção de democracia como valor universal.
Foi uma briga muito violenta, mas, contraditoriamente, ironicamente, assumindo o
Partido; quando nós devíamos ser uma tendência dentro do Partido, brigando contra
o Partido, nós o assumimos, caímos no ardil do partido.
Rago: Então, eu queria só recuperar o momento que romperam as greves me-
talúrgicas do ABC. Chasin está em Moçambique. Nesse período, a gente propõe
uma revista no MDB. E Chasin faria o texto principal. Cida simplesmente reuniu
e catalogou todos os documentos das greves, o dia-a-dia das greves e enviava para
Maputo. Então, a gente comprava a Folha, o Jornal do Brasil, o Diário do Grande ABC,

46. Publicado na Nova Escrita Ensaio n. 9.


47. In: COUTINHO, Carlos Nelson. A Democracia como Valor Universal. São Paulo, Ciências Hu-
manas, 1980.
48. Referência a Benedetto Croce (1866-1952), filósofo idealista italiano que exerceu grande influ-
ência nos estudos estéticos do início do século.

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coletava os boletins sindicais, tudo quanto era material... E Cida tinha esse papel de
mandar caixas e caixas de jornais para Maputo. E Chasin escreve, de lá “As Máquinas
Param, Germina a Democracia!”49...
Ester: ... com base nas informações que a gente manda daqui. Chasin tinha mais
informações sobre o Brasil que a embaixada brasileira em Moçambique.
Rago: Nesse momento, já tínhamos produzido dois números sobre o movi-
mento operário, a Escrita/Ensaio n.º6 sobre Movimento Operário: Novas e Velhas
Lutas e a n.º 7, O Arrocho Treme nas Bases do ABC. Na verdade, era para ser um
único número, mas o editor, Wladyr Nader, considerou melhor seu desdobramento.
Quando Chasin volta de Moçambique pontua que a Escrita/Ensaio deveria se dife-
renciar da linha anterior. Chasin propõe: “Vai ser a Nova Escrita Ensaio”. A Escrita/
Ensaio, como pensada por Wladyr Nader, tratava de temas abrangentes e diferencia-
dos. Sobre a mulher, ele dava para um setor de mulher... Sobre literatura, sobre un-
derground... Ele dava para grupos especializados naqueles assuntos. A partir, portanto,
dos números 6 e 7, direcionamos a revista para o movimento operário. Porque este é
o momento da irrupção das greves operárias no ABC. O que eu queria colocar é que
isso está ocorrendo simultaneamente. Num dado momento, a gente estava achando
que ia para Moçambique e, portanto, ia ser outra a história das nossas vidas...
Ester: Nós mandamos o curriculum vitae...
Rago: E eu ia para a área de música, trabalhar com o maestro Martinho Lutero,
que hoje, diga-se de passagem, é regente em Milão. Até que Chasin falou: “Olha, a
situação aqui está difícil.” Mas o que eu queria colocar é que, nesse quadro... Chasin
tinha nos ensinado que “sem teoria revolucionária não há praxis revolucionária”,
que a teoria tinha de ir ao encontro das massas; de repente, imagina, a nossa geração
vê aquilo na prática, um volume de massas impressionante, que a gente nem tinha
dimensão... Chasin falava que uma greve na Europa não reunia o número de 60 mil
pessoas, 70 mil numa praça – veja, aqui os metalúrgicos e matelúrgicas da região do
ABC tomavam conta do gramado e das arquibancadas de um estádio de futebol.
E era uma fração do movimento operário. Não era uma assembléia de classe, uma
mobilização da classe operária. Enquanto isso, Chasin nos enviava cartas de Moçam-
bique contando as barbaridades de nossos “camaradas”. Por exempo, aquela família
de búlgaros que estava preocupada não com o desenlace do processo revolucionário,
mas em fazer o enxoval da filha... E a gente ficava escandalizado, porque, o “nosso
camarada” búlgaro deveria estar preocupado com a revolução... E não se preocupar

49. CHASIN, J. “As Máquinas Páram: Germina a Democracia!”. Revista Escrita/Ensaio. São Paulo,
Ed. Escrita, ano IV, n. 7, 1980.

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Entrevista

em ganhar dinheiro... E Chasin falava: “Vocês não vão acreditar... O pessoal está
aqui para ganhar dinheiro e a corrupção começa a rolar na direção da Frelimo.”
Nós achávamos que um cara que lutou pela libertação de Moçambique – a gente
divulgou aqui em São Paulo um filme Essas São as Armas, um filme que acompanha
Samora Machel nas zonas libertadas, mostrando a necessidade da luta armada, flagra
a barbárie, o genocídio do exército português, mostra cenas dos enfrentamentos
dos moçambicanos, cenas do cotidiano do trabalho etc. –, imaginar, portanto, que
um revolucionário seja corrupto... E Chasin falava: “Constataram vários processos
internos de corrupção no Estado...”. Então, Chasin foi dando armas para a gente
repensar o mundo dito socialista. E os próprios limites de Lukács... Chasin começa,
como era do seu feitio, a procurar entender essa figura imprevista das formas sociais
pós-revolucionárias, mas que não transitaram para uma formação autenticamente
comunista...
Ester: Das inviabilidades...
Rago: Isso, inviabilidades... E o que acontece aqui com a Revista que ele criou:
a Temas. Chasin perde a Temas a partir do número 8... A anistia é de 1979, tem a vin-
da das pessoas para cá e nós já sabíamos, num certo sentido, que a coisa não estava
tranqüila... Chasin falou para Prestes, pessoalmente, que ele não tinha base alguma
em São Paulo, não tinha base no Brasil... Prestes respondeu: “Fique no seu lugar...
Não se intrometa...”. Ele não quis ouvir... E quando a gente sabia que aqui vigorava
essa linha democratista, a teoria da democracia como valor universal... Daí em diante, até
sua falência, editando poucos números depois da saída de Chasin, a Temas envereda
para o eurocomunismo...
Ester: Exato! E é preciso retomar aqui o que dissemos agora há pouco. Toda a
concepção inicial da revista foi de responsabilidade de Chasin, ou seja, não apenas
a concepção da capa da Temas , mudando de cor a cada número, mas a própria con-
cepção inicial da revista, tanto em termos teóricos quanto ideológicos.
Rago: É, nesse período, então, que surge a possibilidade e o convite do Maurí-
cio Tragtenberg.
Ester: É… Maurício Tragtenberg, num evento de que participou, conheceu
o pró-reitor de pós-graduação da Universidade Federal da Paraíba e, conversa vai,
conversa vem… novamente, Maurício, que era uma pessoa excepcional, uma figura
humana excepcionalíssima… Eu tenho as cartas, inclusive, que Maurício mandou
para Chasin, dizendo: “Olha, Zezinho, conheci fulano de tal, está interessado em
te contratar… Vai lá para criar o curso de pós-graduação de filosofia da UFPb”.

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Enfim, Chasin pensou em voltar, não por conta desse convite. Ele pensou em voltar
porque era impossível continuar em Moçambique, em função dessas inviabilidades
originárias que já referimos. Assim, ele voltou para o Brasil 22 meses depois de partir
para Moçambique.
Vânia: Em 1980, já?
Ester: No início de 80.
Vânia: Só para entender… Nesse ínterim, então, quando ele estava fora, foi perdida a Te-
mas e feita a Nova Escrita/Ensaio, muito próximo um evento do outro… E aí então, ele recebe
esse convite…
Ester: É, mas ele não resolve voltar para o Brasil por causa do convite. Inde-
pendentemente do convite, ele queria voltar para o Brasil. Exatamente por causa da
experiência que ele vivenciou por lá. A volta ao Brasil era necessária sob todos os
pontos de vista, e o velho dilema retornou com mais força agora. Onde Chasin ia
trabalhar? Ele tentou inserção em São Paulo, não conseguiu e, assim, ele foi para a
Paraíba, para João Pessoa, por conta desse contato que Maurício Tragtenberg havia
feito e, depois, por correspondências, que eu tenho também, entre Chasin e o pesso-
al da UFPb para criar lá a pós-graduação em filosofia na universidade, que havia sido
criada… Era gigantesca… eram sete campi, coisa assim, imensa. Eu fiquei impres-
sionada. A gente não sabia se a universidade estava dentro da cidade ou o contrário,
dado o impacto que o primeiro câmpus, que ficava em João Pessoa, tinha sobre a
cidade. Mas eram sete campi, campi que se localizavam desde o litoral até o interior,
quase limite com o Ceará, o último na cidade de Cajazeiras.
Vânia: E no retorno para o Brasil Chasin teve nenhum problema com a repressão, ou ele
voltou tranqüilamente?
Ester: Voltou tranqüilamente. Lembre-se, eram os inícios dos anos 80. Nós or-
ganizamos uma vinda, distribuímos convites etc. e ele, logo ao chegar ao aeroporto
de Congonhas, ele se pronunciou sobre o Brasil. Nós conseguimos que ele fosse
recebido na sala VIP do aeroporto de Congonhas, na época, e, ao chegar, ele fez um
belo discurso... Não apenas porque se tratava de alguém que voltava e nunca deveria
ter ido, mas porque voltava para lutar... E ali havia mais de 100 pessoas esperando
por ele. Ele, imediatamente ao chegar, já faz um belo discurso.
Rago: Com o retorno de Chasin ele fez a crítica ao nosso comportamento, pois
considerava absurdo que ainda estivéssemos com um pé dentro do partido. Era hora
de romper com o Partidão. Então, com a volta de Chasin de Moçambique, o nosso

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Entrevista

contato com as lideranças do movimento operário, que víamos com olhos deslum-
brados, foram questionados por Chasin. Eu digo, em tom pessoal, que acreditava
ilusoriamente que, o simples fato de um indivíduo ser da classe operária, participar
de ações de massa tão expressivas, o levaria à consciência revolucionária...
Ester: Eu também... aliás, todo mundo.
Rago: Eu dei o Manifesto Comunista para Lula. Eu lhe dei várias [Revistas] Ensaio...
Depois nós fizemos uma matéria com Lula na capa, foi a Ensaio número 9... A gente
achava que poderia influir no movimento operário. E Chasin, então, distante dessa
realidade, em terra moçambicana, fez uma análise crítica dos limites do movimen-
to operário... Ao ler “As Máquinas Param, Germina a Democracia!”, Eder Sader
afirmou: “Como Chasin pode ousar escrever sobre uma realidade que ele não está
vivenciando?”.
Ester: Seguindo esse raciocínio, Marx não poderia escrever sobre a Comuna de
Paris50 vivendo na Inglaterra...
Rago: Exatamente. Nem Lênin poderia escrever nada sobre a Rússia, porque
ele passou o século XX todo, até chegar abril de 1917, para entrar em solo russo, no
exterior. Então, por esse critério... Mas, retomando, naquele momento, Chasin volta
e quer conhecer esses operários. Nós falávamos muito sobre isso. A gente ia para
Osasco, ia para lá e para cá. Nós tentamos depois realizar esse alargamento das bases
sociais do movimento grevista. Tentando conectar lideranças de várias regiões, uma
confluência do movimento operário, quando Chasin vai mostrar as debilidades da
direção sindical... Não sei se Ester está lembrada do evento em São José dos Cam-
pos... Nós fizemos um encontro com lideranças da classe operária... Com Lula, Zé
Pedro, Arnaldo Gonçalves, entre outros. Chasin mostrava que o movimento operá-
rio só teria força se ele se transformasse de ações de frações em ações de classe. Quer
dizer, em movimento social, se alargassem as bases sociais de modo permanente,
a começar pelos metalúrgicos. Se os metalúrgicos de São Paulo e do ABC paulista
tinham os dissídios diferenciados, um era em março e o outro em outubro, ou a
outra categoria em novembro, a idéia era fazer a confluência. Que a classe operária
fizesse uma grande greve e não isolasse o ABC, como era o risco. E quando Chasin
veio para São Paulo, e a gente o levou ao movimento grevista, às assembléias mul-
titudinárias, ele pôde conversar com o pessoal da base, com o pessoal do comando
de greve. Nós nos reunimos com Melão, hoje um grande amigo, Wagner Lino, Os-
50. Comuna de Paris de 1871, evento em que, pela primeira vez na história, a classe operária toma
o poder, no qual permanece durante 72 dias.

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marzinho, Alemão, que depois adentrou no MR-8 e hoje coordena a central ligada à
social-democracia...
Ester: Nós vimos, nós assistimos à ascensão do MR-8, nós vimos isso. Eu as-
sisti a isso...
Rago: E está na [Revista Nova Escrita/Ensaio] número 8 o registro com o coman-
do de greve. Então, nós acreditávamos que seria possível influir no movimento...
Ester: E Chasin faz uma crítica violenta à nossa atuação... E foi pesado...
Vânia: O texto ele escreveu ainda em Moçambique...
Rago: Sim, o texto crítico sobre nossa atuação ele escreveu em Moçambique.
É bom lembrar que a número 8 inaugura a Nova Escrita/Ensaio, que contém o texto
“Carta a um Camarada” de Lênin e a homenagem a Florestan Fernandes. A entre-
vista com o nosso sociólogo foi um verdadeiro marco. Porque Florestan atravessava
um momento difícil em sua vida e era escanteado pela própria esquerda. Nesse
momento, Florestan morava na Rua Nebraska, no Brooklin. Chasin propôs que re-
alizássemos um grande ato de homenagem a Florestan Fernandes, no Sindicato dos
Jornalistas.
Ester: Antigos alunos dele, assistentes dele, também não lhe davam a mínima
atenção...
Rago: Convidamos o jornalista Alípio Freire para nos ajudar, Carlos Guilherme
Mota e outros companheiros. Chasin dizia: “Nós vamos trazer Florestan à tona”. E
foi uma homenagem verdadeiramente linda!.

Lúcia: E foi aí que ele sai candidato?


Rago: Não, não. Estamos em 80... Florestan sai [candidato] em 1986. E nós fa-
zemos, então, esse grande encontro no Sindicato dos Jornalistas... Nós convidamos
para compor a mesa, além do homenageado, Alípio Freire, Almino Afonso, Ricardo
Antunes e Chasin... Até tem uma foto em um livro de homenagem a Florestan Fer-
nandes na qual aparece no lugar do nome de Chasin o de Chico de Oliveira. As pes-
soas nem conhecem, nem sabem o que estão escrevendo... Então, quer dizer, neste
momento, Chasin fala: “Vamos contatar os alunos, os amigos...”. Por exemplo, o his-
toriador Carlos Guilherme Mota conseguiu uma carta de Julio Le Riverend, de Cuba.

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Entrevista

Da esquerda para direita: Florestan, Ricardo Antunes, Chasin, Almino Afonso e Alípio Freire

Corrreio da Paraiba, 14 de novembro 1982

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O historiador cubano prestou uma bela homenagem a Florestan. Chasin publicou


essa carta na revista n.º 951. Fora isso, tem também a entrevista52... Essa entrevista
com Florestan foi um marco, porque as pessoas desconheciam a vida, a sua origem,
suas concepções etc. e acho que nesse período é que a gente se aproxima muito de
Florestan Então, esse período dos anos 1980 é que vai, aí sim, matizar o nascimento
da Ensaio. É no bojo disso que Chasin propõe publicar “Carta a um Camarada”, que
tem dimensões muito importantes para o grupo. Porque Chasin vai mostrar que essa
idéia de um partido não é universal, o partido não é modelo e que nós não seríamos
um partido. O que seria uma tendência, um bloco, para exemplificar, assim como há
um bloco leniniano, trotsquista... Nós seríamos uma tendência. Mas com a compre-
ensão de uma orgânica distribuída por funções, porque Chasin colocava exatamente
as atribuições de cada qual, com responsabilidade. Quer dizer, então, cada pessoa ali
teria sua função e responsabilidade. Produção teórica, reprodução e disseminação no
corpo social eram atividades que qualquer grupo revolucionário deveria cumprir. No
que concerne à produção teórica – prioritária, dadas as acaracterísticas da tendência
Ensaio –, infelizmente, Chasin depois ponderou que imaginava que em poucos anos
a gente cumpriria o processo de fazer muita produção. Ele não imaginava, da nossa
parte, tanta debilidade, tantos tropeços, tantas frustrações, fracassos etc... Ele não
imaginava...
Ester: ... que esse processo fosse tão demorado.
Rago: Porque, na cabeça dele, deveríamos pegar essa dimensão de Lênin, das
funções, das atribuições, responsabilidades, e também estar colado ao movimento
social, mas não enquanto partido. E, mais uma vez, a gente trocou os pés pelas mãos,
ou melhor, o cérebro pelos pés... Eu vou só comentar isso, Ester, porque a gente
começa a ter uma atividade prática exacerbada. A gente inverte, mais uma vez, as
coisas. Veja, na Fundação Santo André, Chasin nunca concordou com o taticismo
aplicado ao movimento estudantil e com as disputas de poder. A prática deveria ser
direcionada para formar, para irradiar idéias. Por isso aquela questão de movimento
de idéias e idéias em movimento.
Ester: Nós não tínhamos de elaborar proposta para o movimento sindical, pro-
posta para tal sindicato, proposta para isso... para aquilo... Não éramos partido... Isso
é muito difícil de entender. Foram anos e anos que as pessoas entendiam o Movi-
mento Ensaio como um partido. Era uma loucura!
51. LE RIVEREND, Julio. “Florestan Fernandes: la história y la sociología como conciência”.
Revista Nova Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano IV, n. 9, pp. 161-3, 1982.
52. Refere-se a “Florestan Fernandes: a Pessoa e o Político”, entrevista publicada na Revista Nova
Escrita Ensaio n. 8.

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Entrevista

Rago: As pessoas agiam como se fôssemos um movimento prático.


Ester: E se comportavam como tal.
Rago: De outra parte, há também a incompreensão dos críticos do Movimento
Ensaio. Para elas, o que vem a ser um movimento de idéias e idéias em movimento?
Que nós éramos hegelianos!!! Ou, então, algumas pessoas entendem assim: “ah, vo-
cês eram uma tendência para quebrar os partidos”. E, nesse processo, Chasin tenta
mostrar: “nós temos de edificar um movimento. Esse movimento tem na filosofia
de Marx a sua centralidade...”. Então, aí fica muito evidente para nós que teríamos de
estudar, voltar-nos para o exame da realidade nacional e mundial, fazer uma produ-
ção teórica – e Chasin, de certo modo, fez uma programação dessa produção. Então,
havia uma programação do que cada qual iria pesquisar. Pense em nossa Ideologia
Brasileira, parodiando A Ideologia Alemã de Marx e Engels... Desse projeto saíram
várias pesquisas sobre o pensamento social brasileiro, entre elas, Oliveira Vianna,
Francisco Campos, Gustavo Barroso, Azevedo Amaral, Roberto Simonsen, Hélio
Jaguaribe, Guerreiro Ramos, Golbery do Couto e Silva e tantos outros pensadores.
Chasin projetava, com essa produção sobre o pensamento brasileiro – somada à das
classes sociais, do movimento sindical, da esquerda, dos discursos presidenciais dos
generais da ditadura militar etc. – que: “Talvez daqui a alguns anos, dois, três anos,
nós teremos vários trabalhos, livros...”. Essa imagem que ele tinha, com a produção
teórica, a resposta à carência teórica do marxismo brasileiro... As pessoas passariam
a nos confrontar com posições no plano teórico, não mais no plano do boca a boca
ou coisa parecida.
Ester: Ele pensava que, com a evolução, com o desenvolvimento da editora, daí
saísse um instituto de pesquisa.
Rago: Chasin pensava num instituto que permitisse o fluir dessa produção teó-
rica. Então, quando surge o Movimento Ensaio, desde a origem, Chasin tem muita
clareza de um trabalho nucleado em Marx, mas que compreenda aquilo que Lukács
falava, do renascimento do marxismo. Há que fazer um novo O Capital. Há que
entender a realidade brasileira, a formação histórica brasileira, a mundialização do
capital. E há que recordar que Chasin incluía também estudos sobre arte, estética,
história social da arte. E o nosso papel seria o da produção teórica, sua reprodução e
disseminação, apoiando os movimentos sociais. Mas não como partido. No fundo, a
gente pensava com cabeça de partido. E Chasin, quando volta de Moçambique, fica
estarrecido, literalmente estarrecido com as nossas debilidades, com as nossas cren-
ças: “Poxa, mas tudo aquilo que eu falei vocês jogaram no buraco?” Nós manifesta-

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mos várias debilidades que vão se revelar de modo até ostensivo, uma debilidade de
caráter... Perdidos, muitas vezes, ora em taticismos, ora em oportunismos...
Ester: Também uma debilidade teórica, uma debilidade de compreensão, uma
imaturidade conjugada com ingenuidade etc. etc... Outra coisa completamente dife-
rente é uma debilidade de caráter que já tinha se manifestado naquele casal que foi
para Moçambique antes de Chasin e família e depois também veio a se manifestar
em outras pessoas nos momentos de dificuldade da Ensaio.
Lúcia: Eu só queria retomar, bem rapidamente, quando Ester fala que nós não tínhamos
clareza ou achávamos que era momento de revolução, tamanha a efervescência do movimento: nós
temos de lembrar que realmente existia na América Latina algo acontecendo. Revolução da Nica-
rágua, depois o movimento Sendero Luminoso... E no Brasil, antes da formação do PT, havia, sim,
movimentos no campo, muitos assassinatos, sem falar em todo aquele apoio de vocês ao movimento
operário e dos muitos núcleos que existiam. Até 84 foi a Conclat, antes da formação da CUT53.
Então, eram muito intensos os movimentos sociais. E qual era o lema? “CUT pela base.” Era
tudo organização pela base. No momento em que surge o PT, quando o PT de fato vai se fortalecen-
do, isso tudo vai sendo minguado, mas, naquele momento, não era equivocado, não era ilusório...
Rago: Sim, mas o que nós estávamos falando era da nossa ilusão de que o ope-
rário, por ser operário, tinha uma estrutura diferenciada. E Chasin, sempre, num cer-
to sentido, estava um passo à frente da realidade. Ele antecipava o que poderia acon-
tecer. Quer dizer, quando você ainda estava tentando entender uma dada análise de
realidade, ele já apresentava outros desdobramentos, porque ele pesquisava perma-
nentemente. E, como a realidade é processual, Chasin ia adicionando, concretando
sua análise da via colonial, com a intensificação ontológica. Ele ia se aproximando da
concretude a cada determinação especificada. Chasin começava a mostrar traços da
estrutura ontológica da personalidade operária. Analisava traços de debilidade dessas
lideranças. Porque, tradicionalmente, a esquerda não trabalha com essa questão. A
esquerda trabalha com a idéia de que a classe operária é uma massa que, movida por
seus interesses econômicos, tendo uma direção, uma vanguarda consciente, segue
a estratégia revolucionária. E Chasin mostrava que, para além da disseminação da
consciência revolucionária, havia uma estrutura ontológica do caráter desses operá-
rios que fazia expandir seu arrivismo. Quando Chasin, no Editorial da Ensaio n.º 9,
examina o perfil de Lula,54 apontan para a grande liderança sindical que ele era, mas,
quando escreveu que Lula não poderia ser um grande estadista, muitos de nós nos
53. Central Única dos Trabalhadores, criada no I Congresso Nacional das Classes Trabalhadoras,
em 1983.
54. CHASIN, J. “Nota da Coordenação”. Revista Nova Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano IV,
n. 9, pp. 5-11, 1981.

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Entrevista

assustamos. “Mas, Chasin, como é que vou defender isso? Como nós vamos difundir
o que você está falando?”. E Chasin diferenciava “Lula” de “Luiz Inácio da Silva”.
Ester: Ele nunca incluiu o “Lula” dentro do nome de Luiz Inácio. Ele diferen-
ciava o dirigente sindical daquele que havia sido eleito deputado federal e que teve
uma atuação pífia...

Capas da Revista “Nova Escrita Ensaio” nº 8, 9 e – já como “Ensaio” –


o número duplo 17/18.

Lúcia: Acho também que era uma sedução pelo mundo burguês... Não conseguem fazer a
crítica, porque o mundo burguês seduz de tal forma que as pessoas querem fazer parte...
Rago: Mas eu acho que é mais do que isso que Chasin está falando. Ele está
falando de uma determinação ontológica do ser social. Quer dizer, é uma determi-
nação específica de um tipo social de classe operária...
Ester: É o fenômeno da alienação traduzido para uma situação mais específica.
Se é um traço do caráter, ele não é inato. Faz parte da condição de ser daquele indi-
víduo em determinadas condições sociais, específicas. Em termos gerais, é alienação,
mas alienação em um país retardatário.
Rago: Há que grifar também a influência da Igreja. Acredito que a maioria
dos dirigentes metalúrgicos do ABC estava afinada com a doutrina anticomunista
disseminada pela Igreja. Daí o combate permanente ao marxismo no interior do PT
por parte desses setores religiosos e da “nova esquerda” não-marxista. Então, havia,
de um lado, o marxismo vulgar, pois na gênese do PT, tanto o PCB como o PC do

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B foram contrários ao nascimento de um partido da classe operária. Então, quando


Chasin começa a bater permanentemente nisso – nas ilusões dessa “nova esquerda”
destituída de teoria revolucionária, que não repensou as experiências fracassadas do
movimento operário, que fazia a apologia do “novo sindicalismo”, apagando as lutas
passadas identificadas como “populismo”, sem possuir projeto social que articulasse
a classe operária da cidade e do campo, não só no plano nacional –, vai se tornando
cada vez mais clara na cabeça dele, mais uma vez, a necessidade da compreensão
dos lineamentos ontológicos de Marx. Haveria que mergulhar nos escritos de Marx.
Pensar os esforços de Lukács em sua monumental Ontologia do Ser Social. A necessi-
dade de um novo O Capital para o século XX. Nesse seu embate, a crítica ao Leste
Europeu vai se expandindo... E quando tem a homenagem a Marx e sai aquele livro
especial55, e ele publica “Marx – Da Razão do Mundo ao Mundo sem Razão”, ali já
começam a ficar claros, para nós, os complexos categoriais que expõem e há uma
confluência com Mészáros muito importante sobre o estatuto ontológico do capital.
Desde seu retorno de Moçambique ao Brasil, Chasin debruçou-se sobre a organiza-
ção de um evento marcante no Brasil, que foi o centenário do falecimento de Marx,
em 1983. Já instalado em João Pessoa, Chasin torna públicas suas reflexões sobre o
significado essencial das determinações concretas do “socialismo num só país”. É
obvio que o arrimo teórico se encontra em Marx. Chasin desenvolve um termo para
designar a transição impossível. Trata-se, tematizava, de um capital coletivo/não-social.
Forma imprevista de sociabilidade que não teria condições objetivas de superar o
metabolismo social do capital em sua forma universalizada. Da mesma forma que
Mészáros, para Chasin há que distinguir capital de capitalismo. Desse modo, não é gra-
tuito que a primeira vinda de Mészáros ao Brasil seja pelas mãos de Chasin, que fez
o possível para divulgar os resultados teóricos da obra Para Além do Capital em nosso
país. A revolução política nascida de uma mobilização efetiva da classe trabalhadora,
em virtude da ausência dos pressupostos práticos que Marx havia explicitado em
sua obra com Engels, A Ideologia Alemã, impossibilitava o trânsito para a revolução
social. Chasin sempre acentuou o télos da emancipação humana, da revolução do
trabalho que abriria a possibilidade de um novo metabolismo social onde o processo
de individuação social estaria aberto sem as barragens do trabalho alienado e estra-
nhado. Daí o seu empenho em decifrar a imanência histórica dessa tragédia humano-
societária, uma “transição que se autoperpetua”, como ele escrevia. De posse de uma
ontologia estatuária extraída da produção filosófica de Marx, uma ontologia sempre
de natureza histórica, Chasin passa a desenvolver a determinação ontonegativa da
55. Marx Hoje, edição especial da Revista Escrita/Ensaio (nº 11/12), de 1983. A republicação ocor-
reu em forma de livro: CHASIN, J. (Org.). Marx Hoje. São Paulo, Ensaio, 1988. “Da Razão do
Mundo ao Mundo sem Razão”, de Chasin, consta de ambas as edições.

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Entrevista

politicidade. Cabem à revolução política as tarefas negativas, destrutivas, a tarefa de


pôr abaixo os pilares; à revolução social, os passos da construção sem barragens
do trabalho alienado. A esquerda confundiu e me parece ainda confundir estatismo
com socialismo. Veja, a “transição que se autoperpetua” engendrou uma nova bar-
bárie social, uma vez que não ultrapassou o próprio capital, e a esquerda deposita
sua fé ou na ausência da democracia (daí o paradoxo do “socialismo democrático”
que preserva o mercado, as classes sociais, o próprio estado) ou pensa em se valer
das experiências passadas sem a autocrítica devida. A grande questão, como Chasin
repetia, era a de pensar a passagem de uma sociabilidade assentada no estatuto or-
ganizador do trabalho sob a lógica de uma metapolítica. Como seria possível o tra-
balho vivo passar à condição de regente do trabalho morto? Então, esse momento é
muito importante, porque, ao mesmo tempo em que desenvolve a crítica ao pseudo-
socialismo, são os anos em que Chasin vai cada vez mais compreendendo a lógica
concreta da particularidade brasileira. O que vai acontecer com antevisão do processo de
auto-reforma da autocracia e ele mostra aquela realidade pendular, entre a autocracia
burguesa bonapartista e as suas formas de institucionalização, que era aquilo a que a
ditadura militar estava induzindo a oposição democrática. O politicismo, como ardil,
é próprio do ser da burguesia. Isso vai ficando cada vez mais claro e nos momentos
concretos. Se você examinar os editoriais que escreve durante a década de 1980, são
análises coladas à realidade nacional e à realidade mundial. Essa era a importância e
significado do lema “movimento de idéias/idéias em movimento”. Era necessário
fecundar a reflexão nacional...
Lúcia: Não confundir com o que vão dizer, que acusam Chasin de ser hegeliano: “Olha o que
ele defende, a razão, a racionalidade”. Não é a racionalidade transcendente de Hegel.
Rago: Obviamente, é uma racionalidade a partir do reconhecimento do prima-
do do ser, da crítica ontológica do mundo. Então, Chasin vai deixando muito claro
para nós que tínhamos de captar essa racionalidade extraída do mundo, e, inclusive,
compreender a hierarquia dos valores humanos. Isso que eu acho que se perdeu,
porque hoje, como dizia o velho Lukács, “tudo vale!”. Tudo se equivale, e a medio-
cridade, aliada à desumanização, rege o irracionalismo contemporâneo e dá forma
ao reino do capital. Quer dizer, a gente tinha de ter o rigor teórico de conhecer o
mundo pela imanência histórica. Há os que dizem que nós temos a perspectiva de um
humanismo abstrato. Estamos presos ao jovem Marx... É bom repetir que não é uma
razão em geral, mas é uma consciência concreta da lógica onímoda do trabalho, que
se posiciona com relação à emancipação humana. “Sem teoria revolucionária, não
há práxis revolucionária”. Da compreensão do mundo, mas da posição da emancipação,
da liberdade. Aí está a diferença específica...

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Ester: Aquilo que Chasin fala no texto inacabado “Rota e Prospectiva”56: sem
essa visão da revolução social, como norte, como orientação, você se perde... Esse é o
ponto que dá a direção, esse é o norte: a revolução social, a emancipação humana. Se não
tiver esse norte a orientar todos os seus momentos – seja nas relações humanas, seja
o momento cognitivo, seja o momento da prática, o momento da atuação etc. – você
se perde. Quer dizer, nós vivemos um momento que... Veja, no “Rota e Prospecti-
va”, que é o texto inacabado que foi publicado nos quatro tomos da Ad Hominem,
que tem uma parte inicial, na qual ele fala da analítica paulista, quer dizer, no momen-
to inicial do texto, que ele não acabou, ele morreu antes de terminar, ele tentava
compreender e expor as razões do fracasso do projeto Ensaio. São duas ordens de
motivações: uma é de ordem interna – nós fracassamos diante do projeto –, e outra
de ordem externa, é um marxismo vulgar e a analítica paulista, de ordem externa. Ou
seja, o projeto Ensaio fracassou por suas próprias debilidades internas, mas, sobre-
tudo, pelo fato de ter suas propostas violentamente criticadas pelo marxismo vulgar
no Brasil e não ter sido compreendido e aceito pelos representantes da “analítica
paulista”. Rago está se referindo exatamente à questão de ordem interna, que diz
respeito à inconsistência do ponto de vista humano, essa falta de caráter, ou falta de
um suporte efetivamente humano para um projeto. Quer dizer, o projeto era muito
mais pesado, muito mais importante do que as pessoas que estavam ali eram capazes
de suportar. Não somente porque eram débeis teoricamente, ou porque não estuda-
vam ou porque não se dedicavam à venda dos livros... Porque a questão se mostrou
uma questão essencialmente humana. Uma coisa que Chasin sempre dizia em todas
as intervenções, e que era muito cara a ele, era o problema da autoconstrução individu-
al. Em que medida, a cada momento, eu estou me revolucionando, eu estou me in-
dagando, eu estou me tornando melhor no esterco das contradições, para usar uma ex-
pressão de Marx e, depois, de Lukács? Em que medida, em meio ao esterco das
contradições, eu estou, apesar disso, não obstante isso, e por isso, me tornando me-
lhor? Quer dizer, esse fracasso de ordem interna diz respeito a um processo de
apodrecimento, de velhacaria pessoal que chegou a um ponto que eu nunca imaginei
que fosse testemunhar uma coisa dessa natureza. E, efetivamente, isso, para Chasin,
foi algo muito violento, mais do que a falência da Ensaio. Porque, logo na imediati-
cidade da falência da Ensaio, ele falou: “Faliu? Vamos partir para outra, a Ad Homi-
nem”. O problema não está em a editora falir, a gente pode constituir outra. O
problema foi o apodrecimento das pessoas, a que ponto a velhacaria, o mau-caratis-
mo chegou. Foi baixo, foi o fundo do poço, e foi isso que eu pessoalmente testemu-

56. CHASIN, J. “Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista”. Revista Ensaios Ad Hominem. Santo
André, Ad Hominem, tomo 1, n. 1, 1999. Reproduzido nos tomos II, III e IV da mesma Revis-
ta.

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Entrevista

nhei, e que derrubou Chasin. O que derrubou Chasin não foi a falência da editora...
Porque uma característica fundamental dele – e isso ninguém compreende, porque
eu não conheço outra pessoa que tivesse essas características – é o rigor. Mesmo
porque Lukács, nos Prolegômenos57, que eu trabalhei muito, que descobri... Foi um
texto que Chasin não leu, porque os textos que ele lia, ele deixava rastros, anota-
ções... Os Prolegômenos à Ontologia do Ser Social ele não leu. Estava lá na estante, mas ele
não leu. Quando eu comecei a fazer a revisão técnica da tradução58 – que, na verda-
de, foi outra tradução – eu encontrei outro Lukács, um Lukács um pouco diferente
do da Ontologia. E eu encontrei lá em Lukács coisas que Chasin dizia antes de morrer
e que ele não tinha lido em Lukács. Não é à toa que justamente nos Prolegômenos a
questão que eu acho mais importante, que eu considero mais importante é a relação
indivíduo e gênero... Indivíduo e sociabilidade. Então, essa preocupação com a indi-
vidualidade era permanente. Tanto no sentido teórico quanto no interior das rela-
ções humanas que ele estabelecia... A individualidade dele mesmo, e a individualida-
de das pessoas que o cercavam, que trabalhavam com ele. Por isso é possível entender
porque ele sempre apostava no outro... Porque há muitos que dizem: “Bom, Chasin
se dedicou tanto, se esfacelou...”. Morreu, afinal de contas, por conta daquilo que ele
fez. Do sangue que ele deu, do trabalho, das horas, da preocupação que o consumi-
ram... Ele podia muito bem ter ficado em casa sozinho e escrito uma dezena de li-
vros. Aí, eu pergunto: “Para quê? Para a ‘crítica roedora dos ratos’?” Que editora ia
editar alguma coisa de Chasin? Para três ou quatro lerem os seus textos? Não era isso
que ele queria. E eu acho que ele estava certo. Ele só pensava na possibilidade de um
trabalho coletivo, com os outros, pelos outros, e era um trabalho coletivo em que até,
como diz Rago, até o indivíduo levantar o punhal, ele continuava apostando. Ele não
se equivocou com as pessoas, ele sabia muito bem quem eram. Dos lados débeis, das
qualidades, defeitos. Mas ele sempre falava: “Eu me auto-intitulo otimista pondera-
do”. Ele sempre apostava na dimensão positiva das individualidades. Ele apostava
que essa dimensão positiva viesse a prevalecer sobre as dimensões negativas que
todos nós temos, ele inclusive. Por mais brilhante que ele tenha sido em todos os
aspectos, ele não era onisciente e nem perfeito. Ele tinha as contradições individuais
e pessoais dele também... Então, primeiro, ele não foi ingênuo, não se equivocou. Na
verdade, ele não tinha a noção concreta do ponto a que as coisas tinham chegado [na
direção da Editora Ensaio] aqui em São Paulo. Tinha exata noção do que acontecia
com as pessoas que eram responsáveis pela Editora e pelo movimento Ensaio. Ago-
57. LUKÁCS, G. Prolegômenos à Ontologia do Ser Social, texto inédito no Brasil, deixado incompleto
por Lukács, que faleceu em 1971.
58. A Profa. Ester Vaisman realizou a revisão técnica do texto de Lukács, cuja edição está sendo
preparada pela Boitempo Editorial.

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ra, é verdade que vários encaminhamentos, decisões, atitudes e comportmentos lhe


foram propositalmente omitidos. Aqui em São Paulo valia o argumento de autorida-
de; aqui valia instrumentalizar o outro para que o interesse pessoal de alguns preva-
lecesse. Instrumentalizar a editora; instrumentalizar a secretária da editora; instru-
mentalizar a sede da editora; fazer com que a editora fosse trampolim para a
satisfação, propensão de fins puramente egoístas, pequenos, medíocres. É óbvio que
ele não tinha percebido que a coisa chegou tão fundo, tão baixo. Mas ele não se
equivocou, ele sabia perfeitamente com quem ele estava lidando. Mas sabia, também,
que corria um risco. Ele não via, não concebia um projeto teórico a não ser por meio
de um grupo, a não ser por uma forma coletiva de trabalho. Que isso, em nossos
tempos, seja impossível, isso não é culpa de Chasin, não é responsabilidade dele, mas
é por conta mesmo dos tempos que nós estamos vivendo, que produz as individua-
lidades às vezes as mais pútridas possíveis. Não foi ele que criou essas individuali-
dades, mas foram os nossos tempos. O projeto dele está inacabado. Nenhum de nós
soube, nesses dez anos, dar o devido prosseguimento para aquilo que ele iniciou e
desenvolveu do ponto de vista teórico... Nenhum de nós deu prosseguimento àquilo
que ele fazia em termos de análise de realidade, embora existam por aí pessoas que
se autodenominem os verdadeiros herdeiros de Chasin, não é? Quer dizer, todo o
tipo de bizarrice ou de bisonhice é possível nos dias de hoje. Nada mais me espanta.
É comum se afirmar que ninguém é insubstituível. Eu acho que, no caso de Chasin,
ninguém pode substituí-lo. Não fomos capazes de dar prosseguimento ao seu traba-
lho de pesquisa de modo conseqüente. De todo modo, todos nós, dentro das nossas
possibilidades, procuramos levar à frente orientações, artigos, teses. E o mais impor-
tante: levar uma vida minimamente digna, contudo, poderíamos ter feito muito mais
– e não fizemos. No que diz respeito ao projeto Ensaio, é preciso levar em conta que
várias vezes ele teve que lembrar as pessoas da necessidade da venda de mão em mão,
e que agora outras editoras estão seguindo a mesma direção. Caso contrário, certas
publicações não sobrevivem... Ele teve de vencer muitas resistências à base da argu-
mentação, à base da prova, à base da demonstração. Até que chegou o momento em
que não era mais possível continuar daquela forma e ele teve de denunciar publica-
mente aquela pessoa que visivelmente... visivelmente... havia muito tempo, vinha
solapando todo o projeto de uma maneira absolutamente evidente e sórdida. Então,
vamos lá! Chasin era um ingênuo? Era um utopista? Era um bobo? Chasin podia ter
qualquer defeito, mas ele não era utopista, não era ingênuo, não era bobo, ele sabia
exatamente com quem ele estava lidando, volto a repetir. Mas a gente lida e trabalha
com as pessoas possíveis. Agora, que no final das contas todo o projeto tenha fra-
cassado, e que isso tenha, infelizmente, coincidido com a morte dele, é uma coinci-

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Entrevista

dência infeliz, mas uma coincidência. Isso não estava “escrito nas estrelas”. E eu
considero essa entrevista um momento não só de esclarecer determinadas mistifica-
ções e calúnias que se montaram em torno da figura dele, mas também de mostrar
que não é ingenuidade, não é utopismo... Se orientar, ter como norte, ter como ob-
jetivo e ter como ponto de orientação a emancipação humana, porque, do contrário,
é a total capitulação, é a total submersão naquilo que o mundo do capital produziu
de pior.
Vânia: E é interessante como Chasin combatia teórica e praticamente, na sua vida pessoal,
lutando contra essa fragmentação, contra esse egoísmo...
Ester: Essa manipulação, essa instrumentalização do outro, que é o que passou
a ocorrer [no grupo Ensaio] aqui em São Paulo. Uma instrumentalização atroz do
outro. A ponto de se calar o outro, a ponto de se aterrorizar o outro. A ponto de se
manipular os sentimentos mais autênticos do outro.
Lúcia: Tudo isso afastou muita gente que estava envolvida naquele trabalho
Rago: A regência em nosso trabalho se punha no interior de uma hierarquia de
valores. Quer dizer, havia regramento no sentido da autoconstrução, a crítica pro-
funda não era no sentido destrutivo, mas de elevação humana. Chasin sempre dava
a postura exemplar, também aqui regia o princípio segundo o qual “o indivíduo é o
que faz e como faz”. Basta pensar que poderia ter se dedicado a uma “carreira-solo”,
talvez ganhasse muito com isso, mas sempre tentava mostrar que era no trabalho
conjunto, um potencializando o outro, que as individualidades poderiam se expandir
humanamente, os indivíduos poderiam se potencializar mutuamente, sem aqueles
indivíduos dissimulados, cínicos, sem relações...
Ester: Sem relações hipócritas...
Rago: Exato. Chasin dizia que as contradições também nos pegavam. Isto pode
provocar risos... mas é que algumas pessoas começaram a pensar que estavam imu-
nes, dada a sua consciência revolucionária, dotadas de “ontologia”, resguardadas,
porque detinham a “sabedoria”... As pessoas pensavam que elas tinham a verdade e
o mundo não as respeitava. E Chasin falava: “Ao contrário, as contradições sociais
estão em nós”...
Lúcia: Seria interessante retomarmos as reflexões chasinianas acerca do Leste Europeu,
porque, me parece, Chasin vai se diferenciando inteiramente das análises de Lukács...

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Ester: Chasin, entre outras coisas, procurou mostrar o Leste Europeu como
forma ainda de manutenção do capital, mas uma forma de capital coletivo/não-
social, no qual não se tem a apropriação social do mundo produzido pelo trabalho.
E nesta relação de continuidade... Ainda que a forma do Leste Europeu tenha sido
imprevista historicamente, quer dizer, nem Marx, nem o próprio Lênin, nem Trotsky
puderam imaginar que aquilo daria esse monstro, inclusive no seu gigantismo. Quer
pense o que foi o terrorismo de estado nesse período, de massacre de milhões e
milhões de vidas... E Chasin falava da iliberdade do trabalho. Isso é uma coisa muito
importante, porque em tudo o que você faz na vida, se você não tiver a responsabili-
zação e... fazendo aquilo para a sua autoconstrução, aquilo não lhe diz respeito.
Rago: Chasin começa a capturar as determinações ontológicas do processo do
Leste Europeu e daí essa necessidade visceral da compreensão de Marx. Quer dizer,
há um ritmo muito mais acentuado da compreensão das passagens de Marx, este
projeto da “redescoberta do pensamento de Marx”, destrinchando as três críticas
ontológicas: crítica ao pensamento especulativo, à politicidade e às formas materiais
e ideais do capital. Porém, isto não significa um mero estudo dos lineamentos on-
tológicos inscritos na obra de Marx, mas também compreender as novas determi-
nações dos mundos do capital. E, desse modo, compreender ontologicamente essa
forma social imprevista, quer dizer, Marx especificou a impossibilidade de transição
sem os pressupostos práticos para a consumação da revolução social e colocou nas
páginas de A Ideologia Alemã que, se a revolução comunista ocorresse num país sem
esses pressupostos práticos, o comunismo local, mantendo relações com países com
forças produtivas mais desenvolvidas, seria inevitavelmente esmagado. Quer dizer,
qualquer país ou conjunto de países com a estrutura produtiva mais desenvolvida, a
formação mais desenvolvida captura a de menor desenvolvimento das forças pro-
dutivas, que é da lógica histórica que Marx detectou no século XIX, e a história e
o fim do Leste Europeu comprovaram isso. Então, quando Chasin desenvolve essa
categoria do capital coletivo/não-social... quer dizer, não era uma forma de socialismo. O
socialismo de acumulação... Era uma impropriedade o uso do termo.
Vânia: Ou capitalismo de estado...
Ester: Ou socialismo realmente existente...
Rago: Então, isso faz com que haja um desenvolvimento da nossa compreen-
são e Chasin anuncia a derrocada do Leste... Eu nunca me esqueço quando o Leste
desaba, no ano de 1989 para 1990, e Chasin afirmava: “nações que não existem mais;
classes se foram, partidos se foram e pessoas se foram!”. Quer dizer, a quebra das

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Entrevista

possibilidades históricas, no fundo, atingia a nós próprios. E Chasin aventa o nos-


so fim. Lembre-se da celeuma do tópico sobre a “morte da esquerda”. Para mim,
1989 é um divisor também. Porque 1989 é um mundo que Chasin antecipa naquela
nossa reunião de meados do ano de 1989 – eu não me lembro se é maio –, quando
ele fala que Collor iria vencer [as eleições presidenciais]. Quer dizer, se dariam em
novembro, e Chasin falava: “Se não houver uma confluência eleitoral Brizola/Lula,
tirem o cavalinho da chuva. A direita volta ao poder depois de a última eleição ter
ocorrido nos anos 1960 e no início de 1961, termos como vitorioso Jânio [Quadros]
e desde lá não houve eleições democráticas. Essas eleições ocorrendo, vão dar a
vitória para a direita”. Brizola e Lula não mudariam o país, mas poderiam revolver a
lógica produtiva assentada na superexploração da força de trabalho, uma transição
conectada com México e Argentina. É claro, se houvesse disposição e estruturas da
esquerda para pensar uma transição. Então, nesse momento em que Chasin expõe
que nações se modificam, outras acabaram, classes se acabaram e indivíduos se aca-
baram, é que ele coloca a nossa própria situação, pois deveríamos nos modificar para
sobreviver. Não é à toa, então, que essa parte da “morte da esquerda” aparece num
texto belíssimo de Chasin, “A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda”59, quando
ele demonstra ali radicalmente o fim de possibilidades, que a esquerda precisaria
repensar inteiramente as derrotas sucessivas do movimento operário, as transições
impossíveis e a velocidade das mutações intrínsecas à mundialização do capital. E
Chasin colocava também que muitos de nós poderiam dar um passo atrás, sabendo
que nossos esforços seriam redobrados. E no “Rota e Prospectiva...” ele fala muito
claramente desses intelectuais que, na universidade, continuam a falar do proleta-
riado, mas agora na condição de mercador do proletariado. Então, é a desfiguração do
intelectual... Chasin faz uma análise ali do que é um intelectual, é uma coisa que ele
sempre colocava para nós. Chasin decifrava o perfil do intelectual que não tinha a
mesma responsabilidade, a mesma disciplina do operário, não tinha essa dimensão
prática, de gerar um produto concreto, controlado pelo capitalista ou seus gesto-
res. Daí, na universidade, o intelectual ficar surrupiando o pensamento marxista
enquanto mercador na universidade. Então, Chasin colocava que a pesquisa é sem fim; a
possibilidade da realização do conhecimento é um processo humano revolucionário.
Daí, novamente, a importância dada por ele a essa urgência histórica e à necessidade
premente da produção teórica. O que é a razão revolucionária? O que Gramsci quer
dizer com a expressão “a verdade é concreta”? Por que as pessoas não falam que
Gramsci é hegeliano? Por que as pessoas não falam que Lênin é hegeliano quando ele
sintetiza a máxima marxiana: “Sem teoria revolucionária não há prática revolucioná-
59. Publicado na Revista Ensaio 18/19, de 1989.

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ria”? Certamente, não é a “identidade da identidade e da não-identidade” de Hegel,


não se trata, nos lineamentos ontológicos do pensamento marxiano, de uma razão
que sobrevoa a história num processo histórico para examinar os seus feitos. Chasin
está falando de um télos da emancipação humana, não num confronto especulativo,
mas nas contradições do mundo societário, onde viscejam possibilidades históricas
para as respostas dos indivíduos socialmente determinados. Portanto, trata-se de
possibilidades genéricas que o indivíduo tem de se autoconstruir, naquilo que Ester
falou: no auto-revolucionamento permanente, ainda que sob o capital. Uma conduta éti-
ca. Quer dizer, se a ética não é possível enquanto possibilidade humano-societária
de indivíduos se realizarem plenamente sob o metabolismo social do capital, uma
pseudo-revolução é o que a esquerda pensa: a ética na política...
Ester: A revolução como apelo ético...
Lúcia: Voltando às possibilidades do quadro brasileiro, como fica a questão da teoria chasi-
niana da via colonial de objetivação do capital?
Rago: Chasin já alertava para o uso indevido que as pessoas estavam fazendo
da teoria da via colonial. O capital industrial já estava materializado. O capital chegou
a essa forma monopólica de capital incompleto – e, por favor, com desenvolvimento das
forças produtivas materiais. Não era mais sustentável uma teoria do subdesenvolvimento,
sobre a qual a esquerda se debruçava... Torna-se inadequado para os tempos atuais o
uso da categoria de capitalismo híper-tardio...
Ester: Exatamente, porque a via colonial chegou à sua finalização. No meu
modo de pensar, insistir na análise da situação brasileira atual a partir da categoria da
via colonial é um erro. Um saudosismo teórico, na ausência de um novo feixe cate-
gorial para entender o que se passa nesse exato momento. O próprio Chasin, antes
de morrer, se pronunciou sobre isso, inclusive por escrito.
Rago: Acabou nessa configuração, na configuração da modernização excludente e
com alto desenvolvimento das forças produtivas, com um mercado interno amplia-
do e diversificado. E era sobre isso que a gente tinha de se debruçar, porque as forças
produtivas são expressão do trabalho humano...
Ester: São capacitação humana...
Rago: Sim, capacitação humana. E Chasin deixa isso claro nas reflexões do
“Rota e Prospectiva...”, segundo as quais o homem vem se tornando demiurgo da
natureza, falta ser demiurgo de si mesmo... resolver a saída da pré-história humana
de que Marx falava e norte do humanismo radical, a capacidade de produção de

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Entrevista

uma vida humana, livre e plena, ainda que no sentido histórico do termo. Implica o
quê? Que, para nós, é cada vez mais claro que a história em Marx é aberta, é autocons-
tituição social da própria individualidade – caso contrário, temos a “impotência”,
o “apodrecimento sob a própria pele”. Então, nós temos de repensar o que está
acarretando o fenômeno de desenvolvimento universal das forças produtivas. Porque hoje
o capital se depara com uma crise sem precedentes. E é notável que se fala todo dia
na crise e nos aportes financeiros para o sistema ficar de pé e pouco se diz acerca
das demissões volumosas que já põem o navio à deriva, e tendencialmente tendem
a crescer... Chasin se valia dessa imagem, o capital como um navio à deriva. Porém,
há que ressaltar que a universalização do capital é também universalização das forças
do trabalho. Os críticos de Marx acentuam que sua teoria faliu quando o ser social da
classe trabalhadora se fragmentou. Com isso, torna-se impossível uma consciência
revolucionária da totalidade social. Esta teoria reformista se esquece de dizer que a
universalização das forças produtivas materiais não faz desaparecer como um passe
de mágica a lógica onímoda do trabalho. Se você pensar que o trabalho se universalizou, que
a cooperação social do trabalho se potencializa graças a sua universalização, significa
que não é só o capital que está universalizado, enquanto mercado globalizado, mas
significa que a classe trabalhadora que se configura nessa nova quadra é também uma
nova classe operária. Marx, naquela famosa “Carta a Annenkov”, diz o seguinte: “O que
é história? O que dá continuidade ao processo histórico? O desenvolvimento das
forças produtivas materiais. E o que é o desenvolvimento dessas forças produtivas
materiais? O desenvolvimento do indivíduo. O que é a história senão a produção
dos próprios indivíduos na história?” E nós chegamos a um momento em que se
dá aquilo que Marx havia colocado como tendência do capital, se não houvesse ne-
nhuma barreira, a sua mundialização. A mundialização nada mais é do que o domínio
planetário do capital sobre o trabalho. Mas é também, de modo contraditório, a
universalização do trabalho...
Ester: E do indivíduo social também...
Rago: E do indivíduo social, que é a chave para Chasin. É estranho como parte da
esquerda começa a negar o desenvolvimento das forças produtivas, que é capacidade
ilimitada de produção material, e, portanto, de nós próprios, sopesando formas de
organização social que têm como base a pequena produção rual, a economia solidá-
ria, a economia ecológica etc. E o legado politicista da analítica paulista continua a dar
o tom. Chasin escreveu que a Ensaio foi espremida por dois pólos: o pólo que ele
chama de nobre60 e o pólo do baixo clero. Esse pólo nobre simplesmente foi arrogante.
60. J. Chasin se referia aos intelectuais do PSDB como “nobres”, e aos do PT como “baixo clero”,
porque a extração dos intelectuais dos partidos era a mesma: conviviam e produziam suas teorias

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Desconsiderou as questões que Chasin abria para o debate. Mas não tinha outro
jeito, porque a crítica de Chasin é visceral.
Ester: Agora, um aspecto que deve ser lembrado é o seguinte: ainda... Eu acho
que é preciso fazer algumas referências ao texto de 1989. Não só por conta das elei-
ções, não só por conta de que em 1989 ocorre a implosão do Leste Europeu, mas
porque 89 significou para o Brasil e para a América Latina em geral a última chance
de um revolucionamento, de uma mudança. Foi o último momento, a última chance
histórica para uma mudança. Mas que tipo de mudança? Naquele momento, Chasin
propunha uma mudança na estrutura da produção, sem revolucionar ainda o próprio
modo de produção. Tal mudança implicava a alteração completa do relacionamento
com o capital estrangeiro, uma redefinição cabal da relação com o capital financeiro
etc. Agora, há alguns ex-alunos de Chasin lá de Belo Horizonte que afirmam pe-
remptoriamente que ele errou. Bom, post festum eu posso dizer uma série de coisas...
Eu posso até dizer que Marx errou, post festum! Agora, naquelas condições, naquele
momento, realmente era a última possibilidade. Não deu, como Rago falou, Brizola/
Lula, Collor venceu, acabou! Quer dizer, encerrou, terminou... A oportunidade his-
tórica foi perdida. Não foi Chasin que errou. A história entrou por um caminho que
afastou qualquer possibilidade de transformação efetiva no sentido de uma democracia
social, de uma república social no Brasil e, por conseqüência, na América Latina.
Vânia: Para retomar o fio da meada: estávamos com Chasin em João Pessoa, por ocasião da
celebração do centenário de Marx. Que atividades Chasin desenvolveu por lá?
Ester: No Nordeste em geral, as atividades foram muito promissoras. Num
primeiro momento a carência era, ao mesmo tempo, a força. Assim, ele desenvolveu
um trabalho incansável; ele viajava, orientava, dava palestras, dava cursos – a ponto
de Giannotti ironicamente referir-se a ele como o “vice-rei do Nordeste”. Pouco
tempo depois, o que veio a acontecer na universidade? Ao mesmo tempo em que
se abriu o processo de democratização, eleições para todos os tipos de cargo: para
chefe de departamento, coordenador de colegiado de curso, para diretor de centro,
reitor etc. etc., a “Paraíba profunda”, que é como nós denominávamos as velhas
oligarquias – que, até aquele momento, não tinham o controle da universidade, e
por isso várias vezes dirigiam ataques violentos à universidade, porque grande parte
dos professores era de fora, eram professores estrangeiros ou da região Centro-Sul e
na USP e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap): José Arthur Giannotti, Fer-
nando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso e outros, filiados ao PSDB; Marilena Chauí, Francisco
de Oliveira, Francisco Weffort e outros, filiados ao PT. Enfim, os dois partidos, embora diver-
gentes no campo eleitoral, comungavam as mesmas idéias, realizavam as mesmas análises sobre
a realidade brasileira, ancoradas nas teorias da dependência, do autoritarismo, do populismo e da
marginalidade.

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Entrevista

que, por isso... Havia uma coluna no jornal chamada Linha Direta em que diariamen-
te o colunista atacava, fazia uma campanha xenófoba... Rubens Pinto Lyra, que era
professor, num dos números da Nova Escrita/Ensaio, publicou um artigo sobre essa
questão61... Enfim, a Paraíba profunda finalmente conseguiu se apoderar da universi-
dade à base do velho clientelismo, que ela é sábia em utilizar, e tornou a nossa situação
insuportável. A gota d’água disso foi uma defesa de dissertação do chamado Frei
Marcelino, que havia participado, segundo ele próprio, de um movimento camponês
em Catolé do Rocha. Queria aplicar Foucault na análise daquele movimento. E um
dos professores que iam participar da banca – não havia naquele momento exame de
qualificação – disse: “Isso não tem condições de ir para defesa”. Chasin era, então,
o coordenador do Colegiado e tentou tentou pedir para o orientador, que era Jean
Robert Weisshaupt, convencer Frei Marcelino de não ir à defesa, porque ele seria,
muito provavelmente, reprovado. Apesar de todos os esforços para convencê-lo,
Frei Marcelino insistiu e disse: “Quero ir à defesa”. Agora, imaginem fazer uma
dissertação sobre si mesmo com base nas categorias da Microfísica do Poder, tendo em
vista analisar o movimento camponês de Catolé do Rocha!!! Sabendo que havia, en-
tre os membros da banca, professores que tinham levantado restrições ao seu traba-
lho, ele resolveu levar um grupo de camponeses para o auditório. Iniciada a argüição,
os camponeses batiam o pé no chão e não deixavam os argüidores se pronunciarem,
principalmente, a professora Tereza Calvet, que tinha levantado a impossibilidade
de aprovar a dissertação. A dissertação foi reprovada. Inconformado com a decisão,
ele resolveu, em seu programa de rádio, “denunciar” o ocorrido. No entanto, toda a
carga do tal Frei Marcelino foi dirigida contra Chasin, porque Chasin era comunista.
Frei Marcelino se valeu de todos os recursos possíveis e imagináveis. Foi até o Con-
selho Universitário, mas, no final, ele perdeu...
Vânia: Chasin estava na banca?
Ester: Não. Ele era coordenador do Colegiado. Apenas isso. Mas, aí, o que
aconteceu? De repente, aquilo que Chasin chamou de “os muitos marcelinos” que
havia em João Pessoa resolveram se “vingar” e aparece em público, publicado em
um jornal, a notícia de que Chasin não era doutor! Veja... Nós falamos há pouco
que Vicente Unzer de Almeida tentou impedir a defesa da tese de Chasin. Mesmo
assim, depois de muita batalha jurídica, Chasin defendeu. Inconformado, Vicente
Unzer de Almeida tentou anular a defesa, entrando com um recurso no Conselho
Federal de Educação. Nós não sabíamos disso! Então, alguém... algum “Marcelino”
foi procurar algo que pudesse prejudicar Chasin e localizou o tal processo. Como eu
disse, Chasin não tinha conhecimento disso! Mas, em seguida, procuramos verificar
61. LYRA, Rubens Pinto. “Reacionarismo e Xenofobia na Paraíba: o caso da UFBp”. Revista Nova
Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano IV, n. 8, pp. 51-68, 1981.
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o que realmente havia acontecido com ajuda de um advogado. Constatamos que,


mais uma vez, Unzer havia perdido. De fato, ele havia interposto um recurso, mas,
mais uma vez, ele perdeu.
Rago: Mas como isso apareceu em João Pessoa?
Ester: Não conseguimos saber, mas o fato que eu quero aqui ressaltar é que isso
foi aos jornais, com uma manchete intitulada: “Chasin Doutor?”. Mas Chasin não
esmoreceu! Pesquisou o que realmente havia ocorrido e sentiu-se obrigado a vir a
público divulgar todo o processo, acrescentando a informação mais importante, que
havia sido – propositalmente, é óbvio – sonegada. Ou seja, que existiu o recurso,
mas que o parecer do CFE foi contrário, o CFE não acatou o recurso de Unzer, que
àquela altura já tinha morrido. Essa tentativa de desmoralizar Chasin publicamente
havia mostrado o seguinte: nossa situação na UFPb havia se tornado insuportável.
Aí surgiu o convite de nos transferirmos para a UFMG e, naquele momento, acha-
mos que era a melhor coisa a fazer, porque a Paraíba profunda já tinha, com seus ten-
táculos, asfixiado a vida universitária, pelo menos para nós! Já tinha tomado conta
da universidade, impedindo qualquer trabalho mais conseqüente. Agora, em 1980,
Chasin desenvolveu uma participação importante na universidade, esteve presente
em vários debates e encaminhou soluções para problemas muito graves que tinham
surgido, por exemplo, perseguição de professores. E, dada a visibilidade que ele
adquiriu, a forma, a facilidade com que ele se expressava em público, o seu carisma,
a argumentação que ele desenvolvia... Ele foi logo proposto para ser candidato da
Associação Docente. Ele veio a ser presidente da Associação Docente em 1980 e
liderou a memorável greve de 80, que foi a primeira grande greve das Ifes, das Insti-
tuições Federais de Ensino Superior. O resultado dessa greve foi muito importante,
pois não apenas criou a carreira de professor, que depois foi reformulada etc... Mas
o fato é que não existia carreira, a maioria dos professores era contratada como
professor visitante, como era o caso dele, ou como professor colaborador. Foi uma
greve que, então, não apenas gerou a carreira, mas foi uma greve que acompanhou
toda a movimentação social grevista, agora no campo dos professores do ensino fe-
deral superior. Então, ele lidera essa movimentação. O comando de greve se instala,
primeiramente, em Goiânia. E disso depois é criado o Andes62 e o próprio movi-
mento docente, enquanto tal, do ensino superior. Pouca gente sabe dessa hisória,
por isso é importante registrar. Mas logo surgiram problemas, porque existiam lá em
João Pessoa as vestais, não é? Aquelas pessoas que não assumiam... não tinham essa
condição de aparecer em público, de falar em público, de liderar assembléia, mas
que fazem esse trabalho por trás; que são consultadas. E os petismos, vamos dizer,
62. Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior.

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289
Entrevista

nascentes... já ali presentes, o que tornou, também, os anos de direção dele na Asso-
ciação Docente bastante complicados. Mas, por outro lado, havia também o intenso
trabalho lá a Escrita/Ensaio, por exemplo, a entrevista com D. Zumbi, ex-D. Pelé, a
entrevista com Adam Schaff e assim por diante63... Nós trouxemos Mészáros para o
evento de 1983, o seminário sobre Marx, fizemos a entrevista... Bom, o seminário foi
algo inesquecível. Primeiro, é preciso lembrar que, bem ou mal, nós ainda estávamos
com Figueiredo64 no poder. No entanto, Chasin conseguiu o envolvimento de várias
entidades de fomento à pesquisa: do CNPq, da Capes, da própria UFPb, de forma
que foi levantado um financiamento para um evento de caráter internacional, porque
veio Mészáros participar. Participaram também Michel Debrun, Gerd Bornheim e
muitos outros... E disso resultou aquele número especial que já mencionamos65. Pa-
dre Vaz, embora não tenha ido, colaborou com o caderno sobre Marx66 e assim por
diante. E todas as atividades se realizaram num local construído pelo governador da
época, Tarcísio Burity67, no Bairro dos Estados, lá em João Pessoa, o Espaço Cultu-
ral. Lá havia dois anfiteatros divididos por uma espécie de tapume... Na abertura do
evento, essa grande divisória do palco foi suspensa e a Orquestra Sinfônica da Paraí-
ba, que na época era uma das principais orquestras do país, abriu o evento. Então, os
dois anfiteatros, e a orquestra no centro, com uma abertura dos trabalhos; toda uma
secretaria montada. As coisas funcionaram perfeitamente bem, com comunicações,
mesas redondas, palestras etc. Evidentemente que o convidado principal foi Mészá-
ros, mas havia intelectuais de peso, não necessariamente marxistas, mas estudiosos
de Marx, ou que tinham alguma relação com ele.

63. “De D. Pelé a D. Zumbi: a prática política da fé”, entrevista com D. José Maria Pires, e “Contra
o Stalinismo e a Alienação”, entrevista com Adam Schaff. Revista Nova Escrita Ensaio. São Paulo,
Escrita, n. 10, 1982. Mencionem-se, também, as entrevistas com Mészáros (Revista Ensaio n. 13)
e Paulo Freire (n. 14).
64. João Batista de Oliveira Figueiredo assumiu o governo federal em 1979 e saiu em 1985, quan-
do foi substituído por José Sarney.
65. Revista Nova Escrita Ensaio n. 10/11, Edição Especial – Marx Hoje, republicada posteriormente
em formato de livro.
66. VAZ, Henrique Lima. “Sobre as Fontes Filosóficas do Pensamento de Karl Marx”. Revista
Nova Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano V, n. 10/11, pp. 247-160, 1983.
67. Tarcísio de Miranda Burity (1938-2003), político, escritor e professor.

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A t r a je t ó r i a d e J. C ha si n : t eo r i a e práti ca a s e r vi ço da r e vo lução s o ci al

Da esquerda para direita: Debrun, Chasin, Mészáros e ??. Durante o I Congresso de Filosofia do Nordeste promovi-
do pelo SEAF--ordeste em outubro de 1983.

Rago: E a Orquestra toca Antonín Dvorák, a Sinfonia do Novo Mundo68...


Ester: Exato! Eu me lembro do jeito de Gerd Bornheim, ele estava ao lado,
em uma das frisas, olhando para aquilo sem acreditar que uma coisa daquela enver-
gadura pudesse acontecer em João Pessoa, na Paraíba. E aconteceu. Inacreditável,
mas aconteceu. E foi um acontecimento memorável. E isso tudo incomodou. Inco-
modou a oligarquia, a Paraíba profunda. De forma que, de 1980, quando Chasin foi
para lá, até o início de 1986, ele teve uma atividade intensa em Maceió, em Natal, em
Fortaleza, ele não parava de viajar. E, ao mesmo tempo, orientava a linha editorial da
Ensaio, sempre preocupado, produzindo material, escrevendo... incentivando outros
a escreverem; conseguindo textos para publicação; idéias novas etc. Então, foram
anos de atividade muito intensa e febril lá em João Pessoa.
Rago: A Anpof69 é desse período?
Ester: A Anpof foi criada em 1983, em Diamantina, e Chasin foi um de seus
fundadores. Foi membro da diretoria por duas vezes.
Vânia: Vocês foram convidados por quem para irem para Belo Horizonte?
Ester: Por José de Anchieta Correia, que era o coordenador da pós-graduação.

68. Antonín Dvorák (1841-1904), compositor tcheco, escreveu a Sinfonia do Novo Mundo em
1893.
69. Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia.

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291
Entrevista

Rago: É nesse momento que é formado o Grupo de Pesquisa em Marxolo-


gia ?
70

Ester: Isso foi por iniciativa dele, criar esse grupo de caráter multidisciplinar;
daí o titulo: Marxologia, Filosofia e Estudos Confluentes. Chasin queria que professores,
pesquisadores de outras áreas participassem do grupo. Trata-se da velha caracerística
dele, ele nunca se viu trabalhando no isolamento. Nunca se viu nessa condição. A
Seaf – a Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas – também foi um momento
importante, que precedeu a criação da Anpof, ainda durante a ditadura, que ele tam-
bém participou, ajudou a desenvolver as atividades. Ela foi muito atuante em Belo
Horizonte também.. Enfim, eu tentei levar lá, sozinha, essa atividade, mas é pratica-
mente impossível. Quando Chasin morreu a Ad Hominem não existia ainda. Estava
tudo projetado e , quando me vi naquela situação, pensei nesses termos: “Bom. Em
homenagem à memória dele, o mínimo que eu posso fazer... O mínimo que a gente
pode fazer é publicar esses quatro tomos...”. Publicamos o Pensamento Vivido, publi-
camos A Miséria71 e o Integralismo de novo. De fato, antes de morrer Chasin estava
pensando em publicar novamente o Integralismo, mas numa versão mais sintética. Um
pouco antes de falecer, Chasin elaborou um grande projeto de pesquisa que visava
a resgatar, a partir da história da filosofia, todas as tentativas, todas as propostas de
constituição de uma ontologia etc. Mas, novamente, não se tratava de um projeto
que ele pensava levar a cabo de modo individual, não se tratava, volto a insistir, de
uma pesquisa pessoal, porque individualmente era inexeqüível. Ele tinha em mente
também fazer os devidos ajustes de contas com Lukács. É pena ele não tenha chega-
do a ler os Prolegômenos, pois eu acho que ali há algumas coisas muito preciosas, como
ele deixou escrito no “Rota e Prospectiva”, ou, como eu por diversas vezes reiterei
em sala de aula, Lukács atinou para isso no final da vida, quando tudo já estava des-
moronando… embora Lukács tenha sido enfático ao afirmar que o retorno às coisas
mesmas só poderia se dar a partir do Marx, por meio do pensamento de Marx.
Lúcia: Já que falamos em Lukács, por que não está correto dizer ontologia do traba-
lho?
Ester: Ontologia só pode ser referente a uma entificação ou a um ser. Ou seja,
70. Grupo de Pesquisa: Marxologia, Filosofia e Estudos Confluentes da UFMG, acessível pelo
site: < http://plsql1.cnpq.br/dwdiretorio/pr_detalhe_bt_grupos?strPNroIdGrupo=0333701C
JFCKHN&strPQuery=&strPConector=ALL>. Parte significativa da produção do Grupo está
disponível na página da Verinotio, no setor de Publicações (teses e dissertações).
71. A Miséria Brasileira, lançado em 2000, reuniu todos os artigos desenvolvidos por Chasin sobre
a realidade braisleira.

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para deixar claro o que interessou a Marx... Sobre o que Marx se debruçou foi uma
forma de ser específica, que é a sociabilidade.
Vânia: Chasin denunciava com muita veemência o modismo de usar o termo “ontologia”, bem
como o uso disseminado e banal de práxis, de ideologia, difundidas de maneira vulgarizada, como
argumento de autoridade, como pretexto para não estudar e explicar correntamente a realidade.
Para escapar de um problema, você simplesmente tacha de ideologia, diz que é ontológico, que é
dialético etc., cola o rótulo e deixa de explicar...
Ester: Exato. Esse é o problema que o preocupava muito. Passa-se a utilizar, a
se expressar, a veicular essa categoria, sem ter a mínima noção do quão é espinhosa
e essa questão no interior da filosofia.
Vânia: Que autores atuais Chasin respeitava?
Ester: Olha, eu não me lembro de nenhum, sinceramente. Nem nas anota-
ções dele... Ele tinha reservas... Ele começou a desenvolver reservas com relação
a Mészáros etc. Então... eu não me lembro... Não. A coisa era estudar Marx... Ele
tem algumas anotações. No “Rota e Prospectiva”, ele estava lendo o Ressentimento
da Dialética de Paulo Arantes... Determinadas colocações que Paulo Arantes fazia e
que ele pegou como ponto de referência, como pretexto para desenvolvimento. Ele
estava lendo, quando morreu, o Ressentimento da Dialética de Paulo Arantes, parecia
que aquele livro estava fazendo ele pensar algumas coisas.
Vânia: Caminhando para o fim dessa entrevista, poderíamos falar algumas palavras finais.
Eu queria ressaltar a importância de uma personagem como Chasin no mundo de hoje. Diante da
vulgaridade teórica, do hedonismo que justifica as mais profundas degenerações, do pleito irraciona-
lista pela incoerência – Chasin, sem dúvida, destoa. Eu pouco convivi com ele, mas ainda assim ele
me impressionou profundamente, e não apenas em termos teóricos, é preciso registrar. É da figura
humana que se trata aqui. E duas frases dele me são muito caras: aquela já citada por Rago, que
diz que manter a lucidez é o ato mais revolucionário possível hoje – de um poder de síntese e de
um acerto fenomenais nessa usina do falso que é o mundo contemporâneo. E a outra é: quando há
urgência social, não se pode ter pressa. Por isso, apesar de tudo, eu acho que é possível recuperar a
importância dele. Eu acho que, mesmo com a “guerra do silêncio” que ele sofreu... Marx falava da
mesma questão em relação a O Capital, da guerra do silêncio que ele enfrentou. E Marx, parece
que ele tende a retomar, volta e meia... sem querer... Com todos os problemas das “interpretações”
e reducionismos, ele acaba se fazendo presente. Até pelos ataques que sofre: ninguém chuta cachorro
morto...
Lúcia: Eu acho que sim... Eu tenho certeza...

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293
Entrevista

Ester: Eu não sei... Eu sou mais pessimista...


Rago: Eu também. Veja as ruínas do mundo universitário, da probidade do in-
telectual. Veja a tendência irracionalista que ganha hegemonia e se distancia cada vez
mais do humanismo radical, que põe de modo mais agudo a depleção da consciência
e as lutas insanas na academia... Chasin criticava a usina do falso que a contempora-
neidade se meteu...
Ester: Uma mediocrização... Na verdade, quanto mais se afastava a possibilidade de
transformação social, mais Chasin é afastado, mais ele é esquecido. São coisas que estão
correlacionadas.
Vânia: De todo modo, acho que a herança que ele deixou é grandiosa. Veja, vocês fizeram
uma análise, uma autocrítica, que eu acho corretíssima, claro. As individualidades que conviveram
conosco no período da Ensaio demonstraram uma podridão que eu não era capaz de imaginar.
Basta olhar os acontecimentos dos últimos anos da Fundação Santo André, com toda a bandalheira
que ocorreu lá. Crimes, inclusive, no sentido jurídico mesmo, e um rebaixamento extraordinário
no sentido humano. E nós, que não chegamos a tal nível, também demonstramos fraquezas mil em
momentos fundamentais, no sentido pessoal e grupal. Chasin fazia questão de mostrar como isso
estava relacionado ao próprio contexto histórico, ou seja, ele não via a questão pelo aspecto moral,
mas a remetia à própria objetividade e às suas determinações. O já mencionado esterco das contra-
dições que é o real, que nos determina positiva e negativamente, sem que, com isso, evidentemente,
estejamos desculpados por nossos erros e fraquezas. Entretanto, acho que houve também momentos
extremamente positivos. Em termos de atuação prática, vocês mencionaram a intervenção durante
as greves do ABC, a celebração dos cem anos de Marx... Em relação à Ensaio, que é do que mais
posso falar: quando eu vou a uma biblioteca, a um sebo, e eu vejo alguns daqueles títulos que publi-
camos... História do Estruturalismo, O Modernismo Reacionário, História da Comuna de 1871,
Por que não Somos Nietzschianos e tantos outros que, à parte o sucesso comercial (que quase nunca
veio!), são marcantes nas respectivas áreas e se tornaram de leitura obrigatória. O mesmo eu acho
que se aplica à produção acadêmica: as teses e dissertações produzidas sob orientação direta de Cha-
sin ou sob sua influência, como as que foram feitas pelo pessoal do Grupo de Marxologia, têm uma
importância muito grande. São de uma excepcional qualidade! Enfim, quero apenas salientar esse
aspecto também, para que não pareça que a experiência Ensaio (como a Senzala, a Temas, a Ad
Hominem) se resumiu a uma sucessão de equívocos e fracassos. Esses também houve, em número
maior do que gostaríamos, mas os acertos e sucessos também estão presentes e não poderiam deixar
de ser mencionados, mesmo recheados de autocríticas, em nome da verdade histórica. E é claro que
Chasin foi determinante para que eles ocorressem.

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Ester: Antes de finalizar essa entrevista, seria interessante aviar um balanço


rápido da herança que Chasin nos legou. Em primeiro, lugar, na minha opinião,
emerge a sua figura humana. É óbvio que não se trata aqui de mitificar pessoas ou
coisa do tipo, mesmo porque já fomos acusados de cultuar a figura dele, mesmo em
vida! Grupo Chasin para cá, grupo Chasin para lá e assim por diante... Quem teve
a rara oportunidade de conviver como ele de perto, como é meu caso, durante 25
anos aproximadamente, primeiro como aluna, amiga, admiradora e depois como
mulher e interlocutora, tem condições de formular um testemunho concreto acerca
de sua figura, de seu modo de viver, de sua maneira de se relacionar com as pessoas
e lidar com as dificuldades. De fato, não conheço ninguém que tenha apresentado as
mesmas características, tanto pessoais quanto intelectuais. Morreu cedo, é verdade,
lamentavelmente... mas teve uma vida com sentido. Quem de nós pode em sã cons-
ciência afirmar que teve condições de nortear sua vida segundo um projeto, ao qual
se dedicou integralmente e sem desânimo? Digam, quem? Isso não significa, é óbvio,
que ele não enfrentou, do ponto de vista íntimo, altos e baixos, como qualquer um
de nós, isso não significa que, diante de dificuldades que pareciam insuperáveis, ele
não tenha reagido negativamente sob o ímpeto do desespero...

Não! Mas o que o diferencia é que, apesar desses momentos de extremo desâni-
mo e até desespero, como disse, ele possuía uma força, uma convicção, um desejo de
viver e lutar que acabava por vencer esses momentos negativos que foram muito fre-
qüentes em sua vida, em todos os níveis, desde o familiar até o acadêmico, passando
pelo político e ideológico. Foi um homem íntegro, coerente, mas, ao mesmo tempo,
carinhoso e capaz de nutrir sentimentos monumentais como marido, pai e amigo!
Ele era tido como demasiadamente sério, racional e até arrogante. Tinha que sê-lo,

Edi ç ão Esp e c i al : J. Cha si n

295
Entrevista

como poderia ser diferente diante das lutas que abraçou? Mas, no convívio familiar e
com os amigos próximos, tinha um senso de humor inigualável, preocupava-se com
os filhos de maneira cotidiana e me amou como ninguém é capaz de amar! Tudo
nele era grandioso, intenso, coerente, essencialmente humano, como humano po-
demos ser ao limite máximo de nossas possibilidades. Do ponto de vista intelectual
deixou-nos uma série de contribuições fundamentais, seja no plano da filosofia, seja
no plano da análise da realidade contemporânea, principalmente, a brasileira. Deixou
também em seus arquivos um ambicioso projeto de pesquisa que tem como objetivo
fundamental resgatar a questão ontológica ao longo da história da filosofia, com o
objetivo de chegar à resolução marxiana de questão tão vital. Que o reconhecimen-
to de tal contribuição não tenha se dado é puro sinal dos tempos. E aqui vai uma
confissão: tenho a sensação de que o mundo havia se tornado insuportável para um
homem como Chasin. Isso era visível em seus comentários e avaliações de todo o
tipo: desde aqueles que o traíram até as pessoas mais próximas; chegou mesmo a de-
nominar um réveillon que passamos em São Paulo, logo depois da quebra da Ensaio,
como a festa dos derrotados! Nada e ninguém escapavam de sua perspicácia, de seu
olhar arguto, nada e ninguém chegaram a iludi-lo, enganá-lo. Nada que era humano
lhe era estranho!

Verinotio.org (n.9), Ano V, NOV./2008, ISSN 1981-061X

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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

TRADUÇÃO

Spiegel: entrevista ao filósofo Lukács


Introdução e Tradução de Rainer Patriota1

INTRODUÇÃO
O futuro é possível: o testemunho final de Georg Lukács

Em carta de 16 de fevereiro de 1962, Frank Benseler – o futuro editor das Obras


completas de Lukács – informava ao filósofo húngaro que o Der Spiegel pretendia
dedicar-lhe um “longo artigo”. No comunicado, Benseler também expressava seu
juízo sobre a revista:
Essa revista “Der Spiegel” aparece numa tiragem de praticamente um milhão de
exemplares e seu significado é igual ao da “Life” na América. As notícias são de
um tipo moderno e um tanto distorcido; o estilo é esnobe. Tudo é colocado de
um modo mais ou menos às claras. Seu efeito é condizente com isso. Em Bonn
circula a pilhéria de que os ministérios temem Adenauer, o Spiegel e praticamente
nada mais nesse mundo. O público leitor é intelectual e seu efeito tem larga pro-
pagação. Apesar de todos os traços negativos que essa revista de notícias possa
ter, é preciso dizer a seu favor que, para a Alemanha ocidental, onde muita coisa
não pode mais ser dita ou escrita, o Spiegel desempenha uma importante função.
Sua luta contra Strauss, contra a corrupção geral, contra a perseguição aos comu-
nistas, contra o neofascismo, só foi possível dessa forma e, apesar de tudo, tem
surtido efeitos (DANNEMANN; JUNG, 1995: 92).
Não temos notícia se a matéria, de fato, veio a ser publicada. Em todo caso,
oito anos depois, a redação do Spiegel irá até Budapeste para entrevistar o filósofo de
85 anos e imenso vigor intelectual. A entrevista, direcionada para temas políticos,
resulta num diálogo fluente e pontuado por provocações de ambas as partes, con-
firmando o que Benseler anos atrás havia destacado como o traço mais positivo do
semanário: uma certa liberdade de opinião em face do status quo.

1. Rainer Câmara Patriota é bacharel em música e mestre em filosofia pela UFPB. Atualmente, sob
orientação da Profª.Drª. Ester Vaisman, elabora uma tese de doutorado sobre a estética tardia de
Georg Lukács pelo departamento de filosofia da UFMG. E-mail: pcr2737@yahoo.com.br

297
Ronaldo Vielmi Fortes

Franco e irônico, mas sem perder a diplomacia, Lukács tenta colocar algumas
questões de princípio, ao mesmo tempo em que traça uma visão panorâmica – ou
antes, um diagnóstico – da situação mundial do período em seus dois subsistemas.

A crise insuperável do capitalismo

A crítica de Lukács ao capitalismo jamais conheceu nenhum tipo de concessão


ou abrandamento. Nessa conversa com os jornalistas do Spiegel, vemos o filósofo
húngaro voltar a desmistificar as instituições da democracia burguesa, como o parla-
mento, a política partidária e o jornalismo supostamente independente. Como falar
de eleições livres se apenas partidos com elevado financiamento podem efetivamen-
te eleger seus quadros? E qual parlamento pode se declarar imune ao fisiologismo e
às pressões externas exercidas pelos grandes conglomerados econômicos da socie-
dade civil? É lícito considerar os grandes jornais burgueses tão mais autônomos do
que o Pravda, se também eles agem a serviço de interesses ideológicos? Para Lukács,
é inevitável que no capitalismo a igualdade de direitos e os direitos da liberdade es-
barrem no poder da economia de marcado, encontrando aí um limite insuperável.
A sociedade mercantil divida em classes não pode gerar e promover instituições
verdadeiramente democráticas, da mesma forma que o bourgeois – na sanha de seus
interesses privados – não é capaz de se reconhecer nos sonhos cívicos do citoyen.
Indagado sobre as agitações políticas e pretensões revolucionárias do movimen-
to estudantil, Lukács chama a atenção para o grande problema dos jovens rebeldes:
sua inconsistência teórica e prática. O veredicto vem de um homem que, na juven-
tude, viveu e protagonizou tempos verdadeiramente revolucionários, de quem se
doou à causa como um dos dirigentes do PC húngaro, assumindo cargos políticos,
expondo-se ao trabalho clandestino, tornando-se alvo de intrigas e perseguições e,
last but not least, desenvolvendo uma larga reflexão sobre os acontecimentos da hora
e suas tendências de fundo. Gestos escandalosos, “happening” e palavras de ordem
não mudam realidade alguma. Os estudantes, antes de sair às ruas protestando deve-
riam fazer a lição de casa: estudar atentamente a história e a realidade presente.
Esta crítica ao movimento estudantil prolonga-se, aqui, numa dura reprovação
aos teóricos de Frankfurt, nomeadamente, Adorno e Horkenheimer. Na opinião de
Lukács, é cômodo não se comprometer com a brutalidade dos fatos e condenar a
priori toda e qualquer ação concreta. O gesto é típico de certa tradição intelectual
alemã, inaugurada em grande estilo por Schopenhauer. Para os filósofos reunidos
no Grande Hotel Abismo, a crítica é apenas um tempero para apimentar o banquete
do pensamento especulativo.

Verinotio.org (n.9), Ano V, NOV./2008, ISSN 1981-061X

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

Contra as visões mistificadas de Adorno e Horkenheimer, Lukács expõe seu


ponto de vista acerca do progresso. A história obedece a movimentos causais que
se autonomizam frente a seus agentes conscientemente motivados. As contradições
surgem a partir do conjunto das relações sociais. Assim, erra também Bukharin ao
tentar fundamentar o desenvolvimento histórico com base no princípio abstrato da
técnica. Por outro lado, não se pode perder de vista as grandes linhas do progresso:
o desenvolvimento das forças produtivas, a humanização do homem pelo “recuo
das barreiras naturais” e a integração material da humanidade. A humanização do
homem é um fato inequívoco, não obstante todas as suas implicações históricas
profundamente negativas e destrutivas, para cuja superação só o autêntico socialis-
mo pode ter uma resposta concreta: a implantação de um sistema de conselhos que
entregue aos trabalhadores os meios reais de decisão e gestão.

O impasse do socialismo stalinista e o resgate do sistema de conselhos

A discussão sobre os conselhos dos trabalhadores, que dá início à entrevista,


merece aqui um destaque. Ela remete imediatamente a um texto escrito por Lukács
em 68, intitulado Demokratisierung Heute und Morgen (Democratização hoje e ama-
nhã). Trata-se de seu último e maior acerto de contas com o sistema repressor e
burocrático da era stalinista e pós-stalinista. Lukács acabava de reingressar no PC
húngaro, do qual fora afastado em virtude de sua participação no levante popular de
56 na Hungria, quando é novamente surpreendido pela truculência do poder sovié-
tico, desta vez, na capital da Tchecoslováquia. A intervenção das tropas do Pacto de
Varsóvia em Praga para dissipar as aspirações democráticas dos rebeldes despertou
em Lukács uma profunda aversão, transubstanciada e objetivada nas páginas de De-
mokratisierung Heute und Morgen.
Sob a divisa da democratização da vida cotidiana, Lukács conclamava todo o
bloco socialista a operar modificações radicais no sistema, a seu ver, já petrificado
e desmoralizado. Retomar este caminho significava ir ao encontro do sistema de
conselhos. Ao contrário do que diz István Mészáros em Para alem do capital, o último
Lukács jamais considerou os Conselhos como uma experiência “sem relevância para
o presente”, isto é, como “pertencente à história passada” (MÉSZÁROS, 2002: 383),
mas nele viu um modelo insuperável de autogestão e, mais que isso, a etapa final do
amplo movimento de reformas que defendeu em seus últimos anos. Acontece que
motivado por um profundo senso de realidade, Lukács julgava impossível sua im-
plantação imediata. “Faltam todas as condições objetivas e subjetivas para que isso
ocorra”, diz o filósofo, acrescentando:

Edi ç ão Esp e c i al : J. Cha si n

299
Ronaldo Vielmi Fortes

Quem – subjetivamente entusiasmado, profundamente convicto – sonha com um


movimento de Conselhos que entre imediatamente em ação e que seja análogo
por suas dimensões e intensidade àquele de 1871 ou àquele de 1905, está apenas
sonhando (Ib.: 151-2).
Lukács era ciente de que, naquele momento, um movimento de massas estava
fora de cogitação, dada a herança stalinista de torpor e medo que se abatera sobre
a sociedade e a mente dos trabalhadores. Quando Stalin sepultou de vez o já mori-
bundo sistema de conselhos, subsumindo os sindicatos às injunções do partido, ele
bloqueou “em termos práticos toda a estrada que podia conduzir o desenvolvimento
do socialismo na direção do ‘reino da liberdade’” (Ib.: 142). A democratização socia-
lista devia, pois, começar por modificações econômicas que, tornando as condições
de trabalho mais produtivas, dignas e adequadas aos trabalhadores, operasse modifi-
cações também no plano da subjetividade:
À primeira vista [a reestruturação da economia] se apresenta simplesmente como
uma reforma econômica destinada a ampliar quantitativamente e a melhorar qua-
litativamente o aparato produtivo e distributivo (Ib.: 177).
No entanto, mudanças materiais de conjunto necessariamente afetam o plano
subjetivo, criando um campo de novos problemas e alternativas para os homens.
Com a reforma econômica, diz Lukács, os indivíduos seriam colocados diante de
demandas subjetivas compatíveis com o projeto de reconstrução do socialismo:
A cada degrau desta obra de reforma econômica, certamente longa, emergem,
sob formas econômicas, à medida que a economia for se reorganizando, os novos
problemas que já acenamos acerca do caminho a abrir rumo ao despertar e ao
desenvolvimento do fator subjetivo da formação social socialista (Ib.: 177).
Em Demokratisierung Heute und Morgen, Lukács expõe, sem romancear, as debili-
dades congênitas do “socialismo num só país”, de sua gênese atípica (não-clássica) e
de seu desenvolvimento truncado e sob permanente ameaça de ruína, mas aposta – e
por que não o faria? - suas últimas fichas numa reforma que, com o tempo, venha a
culminar na autogestão dos trabalhadores, isto é, no sistema de conselhos, renascido
sob formas novas (Ib.: 178), onde a auto-atividade das massas pudesse, enfim, regu-
lar todas as esferas da vida e descortinar os horizontes “do reino da liberdade”.
Na entrevista ao Spiegel, Lukács, como que burlando a censura imposta ao seu
livro, torna a falar sobre a importância dos Conselhos, mostrando-se de um tal modo
enfático que chega a arriscar projeções excessivamente otimistas. Se no escrito de
68, as mudanças que possibilitariam o renascimento do sistema de conselhos são
perspectivadas no longo prazo, aqui, diante dos jornalistas ocidentais, Lukács, num
primeiro momento, estima um período de 10 anos para a sua consecução, cujo “úni-
co” pressuposto, porém, é que as massas se movam, isto é, reivindiquem...

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Não há como saber o que exatamente se passava no foro íntimo de Lukács em


seus últimos anos de vida em relação às perspectivas da União Soviética, pois, nesse
aspecto, suas declarações, privadas e públicas, parecem um tanto desencontradas. O
filósofo não queria abrir mão de um ideal pelo qual lutara a vida inteira, mas também
era suficientemente lúcido para perceber que a revolução havia se extraviado drasti-
camente. Uma coisa, porém, é absolutamente indiscutível: por mais que insistisse na
superioridade do socialismo soviético sobre o capitalismo (pois aquele, a despeito de
todos os seus problemas, nascera de um projeto de emancipação), Lukács nunca se
deixou iludir pelo mito nefasto do “novo homem”. Por isso, não é de se espantar
que sua obra só tenha podido extrair alguns poucos exemplos relevantes da vida no
Leste, mas sem jamais poder se irmanar às causas oficiais do Partido.
Longe do poder, Lukács trabalhou tenazmente no campo da idéias, sustentando
que, juntamente com o resgate da tradição dos conselhos, devia-se também redesco-
brir a obra de Marx, soterrada por décadas de vulgarização e hipocrisia intelectuais.
Sua Estética e sua Ontologia do ser social, neste sentido, revelam o esforço titânico de
um pensador empenhado na remoção de escombros ideológicos. Cético em relação
ao presente, Lukács sabe que a história é um campo aberto de possibilidades e que
a iniciativa individual não pode ser desprezada. Os tempos eram desfavoráveis, mais
havia razões para lutar em nome do futuro do marxismo e do socialismo. Na Ontolo-
gia, dirá com seu característico bom-senso: “Se, onde e como este renascimento do
marxismo terá lugar, é algo sobre o qual obviamente nada podemos dizer. Mas as
nossas considerações devem concluir pela demonstração ontológica de sua possibi-
lidade” (LUKÁCS, 1981: 555).

ENTREVISTA
Spiegel: Professor Lukács, certa vez o senhor afirmou que o parlamentarismo havia “envelhe-
cido em termos histórico-mundiais”. Mais tarde, Lênin corrigiu sua afirmação, argumentando que
essa questão não era de natureza ideológica, mas sim tática. Como o senhor avalia o parlamenta-
rismo hoje, especialmente em relação aos paises socialistas?
Lukács: Ela possui um aspecto extraordinariamente andrógino, que tem início
com a transformação empreendida por Stalin dos restos já bastante corrompidos
dos conselhos centrais dos trabalhadores (sovietes) num parlamento. Na minha opi-
nião, isso representou um passo atrás, pois o parlamentarismo é um sistema de ma-
nipulação a partir de cima.

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Speigel: Porque, então, segundo a constituição, todos podem fundar um partido e disputar
eleições?
Lukács: De facto, nas eleições americanas há uma efetiva disputa, mas para isso
é necessário uma soma tão grande de dinheiro que os partidos de bases populares
acabam sendo totalmente excluídos.
Já a essência do sistema de conselhos, pelo contrário, consiste em que sua cons-
trução vem de baixo. Em 1917, qualquer trabalhador inteligente podia dentro da sua
empresa fundar um grupo e através desse grupo conseguir levar para o conselho
dos trabalhadores representantes da fábrica. Daí ele ia avançando passo a passo. Na
minha opinião, esse é que é, do ponto de vista democrático, o sistema mais progres-
sista, o autêntico socialismo. Ao abandoná-lo – no interesse de uma administração e
de uma capacidade de ação perfeitamente uniformes – nós demos um passo atrás.
Spiegel: O senhor acha que esse desenvolvimento stalinista pode ser modificado mediante refor-
mas, pode ser cancelado, ou há que haver uma segunda Revolução de Outubro para restabelecer o
sistema de conselhos?
Lukács: Em primeiro lugar considero impossível resolver uma questão dessa
magnitude por vias administrativas. Se fundássemos um conselho de trabalhadores
mediante decreto, este conselho seria eleito da mesma forma burocrática das elei-
ções atuais para deputados. É preciso, no curso de uma reforma econômica que já se
tornou necessária, introduzir uma democracia de base (von unten), isto é, começar
com o direito e também o poder de intromissão nas questões de interesse geral, e a
partir dessas experiências avançar gradativamente.
Spiegel: Qual foi a falha do conselho na Rússia?
Lukács: Em 1921, na União soviética, houve uma grande discussão sobre os
sindicatos. Trotski adotou o ponto de vista segundo o qual os sindicatos deveriam
ser estatizados, de modo que pudessem servir de apoio à produção. Lênin se pôs
contra e sustentou que os sindicatos tinham por tarefa defender os interesses dos
trabalhadores em face do estado burocratizado. Hoje, ninguém dúvida que Stalin
acabou pondo em prática a idéia de Trotski, tanto aqui quanto a propósito de várias
outras questões. Para não ir além do exemplo dos sindicatos, deve-se dizer que nos-
sa tarefa agora é fazer oposição a isso, para assim retornar à concepção de Lênin.
Decerto, não podemos criar nenhuma situação revolucionária, mas podemos reco-
nhecer o que foi importante em termos histórico-mundiais, isto é, que a democracia
não precisa necessariamente dividir os homens em bourgeois e citoyen, como ocorreu
na Revolução francesa e nas que vieram depois, todas elas condenadas a terminar
por estabelecer o domínio do bourgeois sobre o citoyen.
Spiegel: O citoyen, o burguês revolucionário, anda sumido em nossos dias?

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

Lukács: Apenas a sociedade socialista deixou para trás objetiva e economicamen-


te o dualismo do bourgeois e do citoyen, na medida em que dissolveu o medo capitalista
de que o movimento do citoyen pudesse deter ou perturbar o processo de produção.
Precisamos enxergar melhor do que temos feito até agora que, para a consecução
das tão necessárias reformas econômicas no estado socialista, uma tal suporte demo-
crático é imprescindível e insubstituível. Para isso, não vejo necessidade de nenhuma
revolução. É algo que pode ocorrer, provavelmente, no curso de uma década, desde
que haja um movimento de reivindicações - mas preciso dizer que, com tal perspec-
tiva de uma década, estou sendo bem otimista.
Spiegel: Entretanto esse desenvolvimento pressupõe muita coisa. Hoje, as massas burocratica-
mente governadas não possuem absolutamente nenhuma necessidade visível de praticar formas de
auto-gestão.
Lukács: Talvez aqui eu esteja sendo demasiado otimista. As pessoas sempre fa-
lam que falta um Kader, mas o que a minha longa experiência me diz é que o
desenvolvimento social produz gente suficiente para novos recrutamentos e
gente que se dispõe a isso com prazer. Quando em 1919 fui enviado ao front
para ser comissário temporário de uma divisão, eu precisei, de início, encon-
trar por toda parte - nas pequenas unidades e nos batalhões - comissários pre-
parados. Em três dias o problema havia sido resolvido. A esses comissários
de guerra cabia, antes de mais nada, ver se os soldados eram alimentados de
forma adequada e se recebiam sua correspondência regularmente; se faziam
isso com sucesso, obtinham a confiança das pessoas também em outras ques-
tões.
Estou convencido de que hoje em dia, não há entre nós uma única fábrica onde
cinco ou seis engenheiros não sejam a favor da reforma; mas enquanto predominar
uma atmosfera igual a do período stalinista, eles não arriscarão sua existência. Ape-
nas se eliminarmos os riscos, teremos gente em massa para a reforma.
Spiegel: Portanto, isso quer dizer que a Reforma-Kader está aí; basta não criar dificuldades
para ela. Você não está vendo a coisa de modo muito otimista, dada a burocracia vigente?
Lukács: Eu diria que é impossível surgir amanhã um sistema de conselho plana-
mente eficiente na Hungria. Mas em 10, 20 ou 30 anos uma mudança assim poderá
ocorrer. Porque não? Em princípio, trata-se apenas de conquistar uma massa cres-
cente de pessoas para as reformas econômicas necessárias.
Em 1919, tivemos no campo da cultura um êxito muito maior do que a maioria
dos outros comissariados populares. Adotamos uma linha totalmente democrática,
onde os poucos comunistas a favor de uma reforma cultural se uniram com alguns

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movimentos culturais burgueses já existentes. No topo de cada organização cultural


foram colocados, a partir dos próprios interessados, o que chamávamos de diretó-
rios. O diretório musical, por exemplo, surgiu com Bartók, Kodáli e Dohnanyi, não
havia um único comunista estava entre eles. E, no entanto, Bartók reformou a vida
musical húngara como nenhum de nossos comunistas teria conseguido fazer. Bartók
viu com clareza que uma transformação do ensino da música, da ópera etc. seria
mais fácil de fazer conosco do que com a burguesia.
Spiegel: Quem não está contra nós, está por nós, disse Kádár, o Primeiro-secretário do parti-
do.
Lukács: Preciso confessar que tenho uma boa opinião sobre Kadar. A meu ver,
Kadar não é um Burocrata. Um homem como ele, que nunca esqueceu que já foi um
operário, tem sempre sensibilidade para perceber o que está se passando nas esferas
de baixo. E Kadar disse que hoje quase todas as pessoas que não cuidam de seus
interesses de um modo puramente egoísta, mas sim por meio de alguma mediação
social, instintivamente são nossos aliados.
Spiegel: Vários partidos comunistas de países do Ocidente advogam hoje por uma ampla união
com simpatizantes e consideram a via parlamentarista não apenas como necessária, mas até mesmo
como a única promissora.
Lukács: Lênin propôs que fizéssemos uma diferença entre as instituições supe-
radas em termos histórico-mundiais e as superadas apenas de forma relativa. Ele
está coberto de razão quando afirma que num país como a Alemanha o poder do
parlamento precisa se opor à burocracia, uma vez que o parlamento não é suficien-
temente independente. Muita coisa, como uma legislação de emergência pública,
nunca teria sido feita por um parlamento, ainda que eleito com efetiva independência
e funcionando com efetiva independência. Portanto, para não rejeitar a democracia
burguesa é preciso fazer uma reforma no parlamentarismo.
Spiegel: Não obstante, há pouco o senhor definiu o parlamento como um instrumento de ma-
nipulação do sistema capitalista.
Lukács: No capitalismo é sempre assim, ao menos em parte. É da essência do
capitalismo que os grandes trustes exerçam uma poderosa influência sobre a opinião
pública. E quando alguém quer me apresentar o New York Times ou o Frankfurter All-
gemeine Zeitung como o modelo da liberdade de expressão em comparação ao Pravda,
aí, como velho jornalista e escritor, eu sou obrigado a dizer que tenho cá minhas
dúvidas sobre a liberdade de expressão do Frankfurter Allgemeine Zeitung.
Naturalmente, as pessoas do Frankfurter não podem prender ninguém, porém,
recorrendo a outros meio tão eficazes quanto os utilizados pelo órgão stalinista, elas
podem impedir que uma determinada perspectiva ou opinião editorial chegue até a

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opinião pública. O que na Alemanha ocidental se denomina de liberdade de expres-


são é tão-somente a rotina do escritor que sabe exatamente em qual jornal e com
qual entonação ele pode escrever. E o senhor há de me perdoar se não abro exceção
para o Der Spiegel.
Spiegel: O senhor quer defender a regulamentação dos escritores soviéticos como Soljenitsin
apenas porque eles são úteis ao partido?
Lukács: Há muitas sutilezas envolvidas nessa questão. Até onde vai meu co-
nhecimento histórico, nunca houve de nenhuma sociedade dividida em classes ou
interesses opostos que gozasse de uma plena liberdade de expressão. Apenas num
sistema de conselhos, através de uma auto-regulação democrática, pode-se abolir a
manipulação em todas as suas formas. Que a Revolução de 1917 foi um impulso
nessa direção é fato que hoje não se discute. Depois, devido a determinadas razões
econômicas e políticas, sofremos, um retrocesso em certa medida inevitável.
Portanto, há razões históricas para essa estagnação, para esse bloqueio. Bloqueio
que já se vai por algumas décadas. Mas não se esqueça que 50 anos não é tanta coisa
assim quando o assunto é abandonar uma formação social e começar outra. Da
escravidão até a consolidação do feudalismo foi necessário uma transição de oito-
centos a mil anos.
Spiegel: Os descuidos também existem. Durante um bom tempo, os teóricos marxistas não ofe-
receram nenhuma análise econômica suficiente do capitalismo existente e por isso ficaram inseguros
diante das possibilidades de desenvolvimento e das formas de manipulação do capitalismo tardio.
Lukács: Concordo com o senhor que nós não acompanhamos de forma sufi-
ciente as grandes modificações estruturais do capitalismo. Antes de Marx havia ape-
nas o capitalismo da chamada indústria pesada e a produção de consumo ficava em
grande medida nas mãos dos artesãos. As necessidades de consumo dos trabalhado-
res, por isso, eram indiferentes aos empreendedores. Mas depois que o capitalismo
se apropriou também da indústria de consumo e do setor de serviços, os artesãos,
por um lado, foram desaparecendo cada vez mais e, com eles, o reservatório para
aquisição de novos trabalhadores. Por outro lado, o trabalhador começou a se tornar
interessante para o capitalismo como consumidor, seguindo-se um aumento do sa-
lário e uma redução do tempo de trabalho – isso no intuito de torná-lo um melhor
consumidor. Estas são questões que não existiam para Marx. Por isso precisamos
submeter todos os critérios utilizados por Marx para o capitalismo do século XIX a
uma nova investigação econômica. Isso não aconteceu. Por essa razão, nós, comu-
nistas, ficamos como que paralisados diante do novo capitalismo e a todo momento
atribuímos a ele categorias envelhecidas que não podem esclarecer mais nada.

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Spiegel: Atualmente, no Ocidente, tem havido tentativas de analisar justamente essas novas
formas de manifestação do capitalismo de consumo e de serviços. Tentativas que são empreendidas
principalmente por aqueles estudantes que hoje se auto-intitulam de nova vanguarda revolucioná-
ria.
Lukács: Sem dúvida, o movimento estudantil é uma coisa, em princípio, saudá-
vel. Se eu fosse criticar o movimento estudantil, eu o faria apenas em relação ao seu
caráter de happening, isto é, à ilusão de que, por meio de uma greve ou de alguns atos
escandalosos, pode-se modificar uma linha [histórica] de desenvolvimento, quando
esta, na verdade, antes de ser submetida a qualquer intervenção prática, precisa ser
compreendida.
O problema fundamental é que, objetivamente, a ciência tem passado por um
ininterrupto processo de integração, ao passo que, na contramão dessa tendência,
a pratica da ciência enfrenta uma extrema divisão do trabalho e uma extrema de-
sintegração - o modelo do teamwork americano. Se você perguntar hoje em dia, se
determinado problema é físico ou químico, nem Heisenberg nem qualquer outro
poderá lhe responder, pois a física e a química estão mais integradas do que nunca.
Ou então pense nas ciências sociais: você pode me dizer onde termina a economia e
começa a sociologia? O freudiano mexicano Erich Fromm, recentemente, disse que
para entender realmente o freudismo é necessário uma análise das condições sociais
sob as quais surgiram os sintomas investigados por Freud, indicando, portanto, que
também entre a psicanálise e a sociologia as fronteiras desapareceram.
A divisão capitalista do trabalho e a manipulação capitalista não seguem mais
juntas a favor da ciência como ocorria há cem anos, mas sim em contraposição ao
desenvolvimento real da ciência. Evito propositalmente tocar em questões atuais,
porém, sou da opinião que esse tipo de constatação ideológica não é uma coisa des-
provida de sentido e que aqui nós precisamos nos opor à palavra de ordem da moda,
ou seja, a desideologização, para que possamos compreender corretamente o papel
da ideologia no desenvolvimento social.
Spiegel: O que você entende aqui por ideologia?
Lukács: Hoje virou hábito entender a ideologia como falsa consciência em con-
traste com a consciência correta do neo-positivismo, visto como uma ciência obje-
tiva. E presume-se então que ela foi desideologizada. Agora, na Introdução à Crítica
da economia política, Marx forneceu uma descrição exata da ideologia. Ele disse que o
desenvolvimento econômico, sobretudo a contradição entre as forças produtivas e
as relações de produção, a todo momento nos colocam problemas. O meio pelo qual
estes problemas se tornam conscientes e são enfrentados é a ideologia.

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

Veja o senhor o século XVIII. Sem dúvida existe na ideologia de Rousseau mui-
ta coisa de questionável em termos científicos. Mas é igualmente indiscutível que, se
por acaso, a Revolução Francesa fosse liderada pelos materialistas girondinos, bons
na sua maioria, aquela revolução agrária conduzida por Robespierre e Saint-Juste
pelas vias ideológicas falsas do roussseauismo nunca teria ocorrido.
Speigel: A libertação dos camponeses foi de fato apenas uma questão de ideologia jacobina?
Lukács: É óbvio que não. Objetivamente o feudalismo havia se tornado insus-
tentável e isso é um fato econômico. O pensamento humano corresponde sempre a
algum tipo de necessidade econômica que fica pairando no ar. E a tarefa da consci-
ência humana é justamente, a partir daí, formular uma questão. Mas, mesmo se, em
última instância, a práxis humana depende imediatamente das respostas dadas a estas
questões, disso não se segue que as questões e respostas antropológicas sejam o fator
primário, pois primário é sim o processo de reprodução dos homens, os quais, desde
que surgiu o trabalho, se adaptam ativamente ao meio que o cerca.
Spiegel: Entretanto, houve um desenvolvimento voraz e contínuo da técnica, que por sua vez
produziu uma cadeia de novos carecimentos. Será que os teóricos marxistas, em geral, não exa-
minaram o fenômeno da técnica de forma muito acrítica e predominantemente sob o enfoque da
progressiva libertação do reino da necessidade?
Lukács: Bukharin defendeu a teoria de que o não-desenvolvimento do modo de
produção antigo seria a causa da escravidão e que, portanto, a técnica é a verdadeira
força produtiva. Eu me posicionei contra e disse que a escravidão era a causa do
modo de produção não-desenvolvido.
Hoje, no capitalismo, o trabalhador é ao mesmo tempo o consumidor, e nunca
houve período algum da humanidade com aparelhos de barbear e minissaias tão per-
feitas. Mas se eu for medir o progresso dos últimos 50 anos pelo setor de habitação
e pela problemática das favelas, vou ter de constatar que esse progresso foi muito
menor do que no caso dos aparelhos de barbear.
Spiegel: Possivelmente, houve até um recuo.
Lukács: Possivelmente, sim. Em todo caso, recuso-me a julgar o desenvolvi-
mento das forças produtivas simplesmente a partir dos aparelhos de barbear. En-
contramos a contradição não apenas no setor de habitação, mas também no tráfego
de automóveis, na poluição do ar e das águas, e isso a ponto das grandes cidades já
estarem se tornando imprestáveis. A problemática do capitalismo moderno é o que
emerge ao primeiro plano.
Por outro lado, é preciso ver que dos começos do átomo até a economia ame-
ricana atual, o mundo viveu um processo irreversível. O jovem Marx tinha toda
razão em ver a história como a ciência fundamental. O que está, de fato, na base da

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história? A história é a interpretação e a compreensão de processos irreversíveis. Se


a história retornasse sempre a um ponto de partida, então não seria história.
Os processos irreversíveis da natureza orgânica, por um feliz acaso, produziram
a vida orgânica na terra. E hoje sabemos, com base em Darwin e seus antecessores,
que dos primeiros vestígios de vida na terra até o orangotango e o mamute, um pro-
cesso irreversível foi consumado. E neste processo irreversível surgiu, por fim, o ho-
mem e a sociedade, de modo que podemos constatar completamente a observação
do jovem Marx, segundo a qual o desenvolvimento do mundo deve ser apreendido
como um processo homogêneo, mas como um grande processo irreversível.
Spiegel: Daí pode-se inferir que o desenvolvimento é sempre e necessariamente um avanço e que
não há lugar para retrocessos?
Lukács: Evolução e retrocesso existem apenas sob um determinado ponto de
vista. Se uma espécie de vida pode ou não vingar por meio de uma adaptação bioló-
gica, isso configura ou não um progresso apenas sob o ponto de vista dessa espécie.
Mas penso que o desenvolvimento global não tem nada a ver com isso: ele segue
irreversivelmente, em última instância de forma causal. Voltando ao homem: a adap-
tação biológica, que é uma adaptação passiva ao meio ambiente, é suplantada, com
o trabalho humano, por uma adaptação ativa, que muda o meio ambiente. Há três
momentos, descobertos pelo marxismo, que nos autorizam a falar de uma evolução
sem nenhuma conotação ideológica. Primeiro: o dispêndio de trabalho físico para a
reprodução do homem decresce; hoje um trabalhador produz 50 ou 100 vezes mais
daquilo que seria necessário para a reprodução de sua vida física.
Spiegel: E com esforço cada vez menor.
Lukács: O segundo ponto é o que Marx chamou de recuo das barreiras naturais.
Isso quer dizer que, por meio do trabalho, um ser originariamente biológico se con-
verte em um ser humano; com isso, o fator biológico não desaparece, mas é trans-
formado. Hoje, as pessoas podem assumir comportamentos tão selvagens quanto
possível, mas nenhum dos estudantes rebeldes regredirá às formas de alimentação e
sexualidade dos tempos primordiais. Quem preconiza uma sexualidade pura, preco-
niza a sexualidade pura de 1970 e não a de qualquer era remota. Em outros termos,
esse recuo das barreiras naturais que conhecemos é um tipo de progresso, um pro-
cesso irreversível.
Speigel: Na opinião do senhor, o que Engels chamou de amor sexual entre os indivíduos e que
viu como grande conquista civilizatória, não sofrerá mais nenhum recuo?
Lukács: Sim. O terceiro momento, finalmente, é o grande processo de integra-
ção. A humanidade existia originariamente em pequenas unidades, e a uma distância
de 50 ou 100 quilômetros, uma unidade não sabia nada da outra. Apenas o capitalis-

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mo, com o mercado mundial, criou a base daquilo que hoje podemos denominar de
humanidade. Hoje ela aparece de uma maneira puramente negativa.
Spiegel: Mas também existe uma cultura mundial
Lukács: Não pretendo me contrapor a isso. Em todo caso, não há dúvida de que
se trata, objetivamente, de um processo de integração. Se eu tomo em consideração
apenas estes três momentos destacados por Marx, já se pode ver que o processo civi-
lizatório é um processo irreversível e que, neste quadro, mostra grandes progressos.
Não devemos conceber o progresso num sentido vulgar, pois assim a bomba atômi-
ca também seria um progresso em relação aos canhões e estes, por sua vez, seriam
progressos em relação ao arco e flecha, não obstante o fato da bomba atômica ser
em si mesma assustadoramente perigosa.
Spiegel: Entretanto, são desenvolvimentos sociais que visivelmente podem aniquilar este pro-
gresso objetivo.
Lukács: Com certeza. Veja, agora vou chamar a atenção para uma oposição que
as pessoas nem sempre querem compreender: a oposição entre o modo de conside-
ração causal e o teleológico. Afirmo com o marxismo que uma teleologia – portanto
uma determinação que parte sobretudo de uma finalidade – não existe nem na natu-
reza inorgânica nem na orgânica, que teleologia – como Marx mostra com exatidão
em O capital – surge apenas com o trabalho, porque o plano daquilo que tem de ser
feito antecede a realização. Um leão destroça um antílope hoje como o fazia há dez
mil anos. Mas um ferreiro, há tempos, não trabalha mais de forma tão imperfeita
como nos primórdios.
Spiegel: No caso do artesão o senhor ainda pode falar assim. Mas o trabalhador comum, em
geral, não conhece o produto final de sua atividade. Pode-se falar de um aprimoramento do processo
de trabalho? Esse trabalhador é praticamente um instrumento sem consciência.
Lukács: Estou me referindo ao processo de trabalho e não ao trabalhador. O
processo de trabalho surge no momento em que o diretor da fábrica elabora o plano
para uma máquina: um ato teleológico. Certamente, os homens – como disse Marx
– fazem a história, mas não sob circunstâncias por eles escolhidas. Estas circunstân-
cias não-escolhidas são em parte o produto de seu próprio trabalho. Veja o senhor,
quando os americanos descobriram a bomba atômica, estavam convictos de poder
assegurar uma superioridade militar duradoura para a América. Que daí surgisse o
pacto atômico certamente era algo que não estava contido em seu ato teleológico.
Quero deixar claro esse duplo sentido do desenvolvimento social; por um lado,
tudo depende de atos teleológicos. Por outro lado, o processo irreversível do de-
senvolvimento global forma o contexto desses atos. Quem não percebe esse duplo
sentido do desenvolvimento humano, só pode estabelecer uma relação entre neces-

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sidade e liberdade na velha forma falsa e totalmente abstrata. Dito de uma forma
um tanto banal: para falar comigo, o senhor precisou vir até o meu escritório aqui
em Budapeste; a essa necessidade concreta correspondeu a sua liberdade, inclusive a
liberdade do senhor não falar comigo.
Spiegel: Na Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer mostraram como um
determinado uso da razão, meramente positivista, poderia impelir os homens a criar situações que
posteriormente se tornariam objetivamente insuportáveis.
Lukács: Não nego isso. Meu ceticismo em relação a Adorno e Horkheimer surge
de um caso paralelo na filosofia alemã. De forma muito arguta, muito espirituosa,
Shopenhauer reuniu tudo o que há de negativo na existência e a partir disso negou
a história como história [efetiva]. Há situações, como o período anterior e posterior
a 1848 na Alemanha, em que é impossível dizer aos intelectuais que se está vivendo
uma situação ideal e que por isso é um dever afirmá-la. Mas pode-se explicar – e
Schopenhauer equacionou essa questão de forma brilhante – que o mundo, de uma
forma geral, é ruim e que não haveria nenhum sentido em transformá-lo. É assim
que as pessoas, com base numa crítica que lança um desprezo mordaz contra o sis-
tema, tornam-se, eles mesmos, partidários do sistema.
Speigel: Mas aí é preciso defender Horheheimer e Adorno...
Lukács: Claro, veja bem, não pretendo comparar em termos filosóficos Horkehei-
mer e Adorno com Schopenahuer. Digo apenas que existe aqui uma analogia geral,
a saber: satisfazer as necessidades intelectuais da intelligentzia em relação à crítica das
atuais condições sociais e ao mesmo tempo demonstrar que não há nenhuma saída
desse processo de desenvolvimento.No meu livro “A destruição da razão”, falei do
“grande hotel abismo”: mora-se num hotel sofisticado e o fato de haver um abismo
em volta nada mais é que um picante ingrediente para ser acrescentado à comida e
à dança.
Agora, não estou dizendo que Adorno queria isso. O problema é que muitos
estudantes de hoje tomaram conhecimento sobre as vilanias da sociedade atual atra-
vés de suas lições e escritos, só que, depois, quando eles saíram às ruas, Adorno
encolheu os ombros e disse que o Marquês de Sade é a conseqüência necessária da
Revolução Francesa.
Spiegel: Por outro lado, porém, ele teve o mérito de encorajar, desse modo, a crítica das relações
existentes...
Lukács: Concordo.
Speigel: ...ao invés de cair na ilusão de que se vivia, então, uma situação revolucionária, como
muitos estudantes fizeram.
Lukács: O senhor falou certo: “muitos estudantes”. O marxismo nunca disse
que naquele momento era possível fazer uma revolução.

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Spiegel: Na sua opinião, quando o Ocidente conheceu, objetivamente, uma situação revolucio-
nária?
Lukács: Confesso que não saberia responder a essa questão. Sem dúvida, são
visíveis os sintomas de que o sistema começa a entrar em crise; mas por enquanto
estamos apenas no começo de um abalo revolucionário. O senhor sabe que para
Lênin o fator subjetivo nunca pairou no vazio, mas ao contrário: quando as classes
dominantes não podem mais governar como antes e as classes oprimidas não que-
rem mais viver como antes, surge uma situação revolucionária.
Spiegel: No caso do movimento dos estudantes, pode-se falar destas duas condições e termos
muito limitados. Mas não seria justo dizer que é um erro querer simplesmente passar por cima da
democracia e das relações capitalistas?
Lukács: Sim. Engels, num escrito genial, Crítica ao Programa de Erfurt, exortou o
partido social-democrata a acabar com os restos da velha Alemanha. Ele denominou
de ilusão acreditar que toda aquela porcaria pudesse ser removida do socialismo
pura, piedosa, alegre e livremente, porquanto a Alemanha nunca tivesse passado
por uma democracia burguesa. Penso que isso deve ser enunciado de forma aberta
e brutal. Na França, houve o julgamento do capitão do estado-maior judeu Dreyfus.
E do julgamento injusto irrompeu uma crise do Estado, que por anos convulsionou
todo o país e pôs fim a toda uma época.
Em Berlin, ao contrário - no meio de uma revolução – Liebknecht e (Rosa)
Luxemburgo foram assassinados. No entanto, não se mostrou a menor vontade de
sequer saber quem eram os assasinos; quiseram que eles assegurarassem sua posição
conceituada junto à opinião pública. Tem-se aí uma grande diferença no desenvol-
vimento da democracia burguesa que precisa ser reparada.
Spiegel: O senhor diria que os estudantes se enganam quando, na atual República alemã, ad-
vogam por uma revolução social ou pelo socialismo? O senhor estaria sugerindo que eles, em primeiro
lugar, se voltassem para uma democracia burguesa?
Lukács: Lênin sempre afirmou que não existe nenhuma muralha chinesa entre
revolução burguesa e revolução operária. Também não é por acaso que em 1917, a
partir de reivindicações burguesas revolucionárias não-satisfeitas – a paz e a divisão
de terras para os camponeses – tenha surgido uma revolução socialista. Posso dizer
com Engels que sem uma solução para essa questão não pode haver nenhuma liber-
tação do povo alemão. Se o movimento dos estudantes ficará confinado à moldura
da sociedade burguesa ou se haverá de rompê-la em maior ou menor medida – é
óbvio que não compete a um cidadão como eu, residindo em Budapeste e acom-
panhando o desenvolvimento da Alemanha apenas pelos jornais, dar uma resposta

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Ronaldo Vielmi Fortes

a essa questão. Penso apenas que eles partem de um ponto de vista quimérico, que
consiste em querer empreender o socialismo na Alemanha sem destruir essa tradição
do desenvolvimento alemão.
Spiegel: Então o senhor considera que a etapa atual da democracia burguesa na República
alemã é um elemento progressista, um pressuposto necessário para um desenvolvimento futuro do
socialismo...
Lukács: ...se ela fosse uma etapa efetivamente democrática. Sem dúvida, se eu
tivesse de escolher entre um Josef Strauss e um Willy Brandt, obviamente que eu
ficaria com Brandt. No entanto, pelo menos desde que a social-democracia votou
pela lei de emergência, passei a desconfiar de sua competência para implementar na
Alemanha burguesa uma democracia conseqüente.
E mesmo o SPIEGEL, por quem tenho uma certa simpatia, não vai tão longe
quanto foram Jaurès, Zola ou Anatole France no caso-Dreyfus – mas eu não posso,
do meu gabinete de trabalho em Budapeste, dar nenhum conselho aos políticos
alemães.
Spiegel: Senhor Lukács, como o senhor avalia seu papel pessoal em meio à crise que assola os
campos socialista e capitalista?
Lukács: Vejo de forma positiva que hoje tanto a solução stalinista quanto o Ame-
rican way of life estejam objetivamente em crise. Em 1945, opinava-se no Ocidente
que o marxismo, como ideologia do século XIX, havia ruído e se transformado num
mero documento histórico. E nos países socialistas, acreditava-se que, com a refor-
ma stalinista, havia-se encontrado a forma definitiva do marxismo. Hoje sabemos
que os fatos refutaram a ambos.
Eu mesmo, desde 1930, não sou mais um ativista político e tento agora como
ideólogo trazer à tona aquilo que constitui o essencial no marxismo. Com isso, quero
contribuir para o conhecimento de como efetuar, em campos diversos e sob formas
diversas, uma transformação política real.
Spiegel: O senhor está trabalhando em algum livro novo?
Lukács: Escrevo uma Ontologia do ser social – a primeira desde Marx. Um traba-
lho assim, por sua limitação, parece estar em contradição com o desenvolvimento
do movimento dos trabalhadores. Pois este se tornou influente com pessoas como
Marx, que foi ao mesmo tempo um grande ideólogo e um grande político. A ele
seguiu-se Engels e Lênin, que também reuniram as duas coisas.
Mas isso não é uma lei histórica necessária. Stalin, por exemplo, que foi um bom
organizador e um e um tático habilidoso, nunca entendeu nada de ideologia e foi por
isso apenas um administrador. E dizer que os vários primeiros-secretários que aqui
tiveram lugar, - Rákosi na Hungria, por exemplo – tinham alguma competência para

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

questões ideológicas, é simplesmente risível.


Spiegel: Sem dúvida, a guerra contra Hitler exigia um talento muito mais tático que ideoló-
gico.
Lukács: Os dois grandes movimentos de inflexão de nosso período – se Hitler
ou o American way of life seria o senhor do mundo – foram interditados pelo socialis-
mo tel quel, pelo socialismo de cunho stalinista.
Através do pacto de Molotov, Hitler tornou possível a Guerra Mundial – e com
isso as forças do Ocidente se viram pressionadas a se voltar contra ele. Sem o acordo
da bomba atômica, os Estados Unidos nunca teriam permitido que a União Soviéti-
ca fizessem o transporte de armas para o norte do Vietnã – e sem esse transporte de
armas os vietcongs teriam sido maltratados por muito tempo.
Apesar disso, do ponto de vista ideológico, hoje estamos todos de certa forma
vis-à-vis de rien. Por isso, o renascimento do marxismo deve fornecer uma base ideoló-
gica para os políticos, pois, tão-pouco quanto o próprio Marx, considero ser sempre
o acaso que decide quem num determinado momento subirá ao topo do movimento
dos trabalhadores.
Spiegel: Senhor Lukács, agradecemos por esta conversa.

Referências Bibliográficas:

DANNEMANN, R; JUNG, W (Hrsg.). Objektive Möglichleit: Beiträge zu Georg Lukács’ “Zur On-
tologie des gesselschaftlichen Seins”. Opladen: Westdeutsche Verlag, 1995.
LUKÁCS, G. Demokratisierung heute und morgen. Budapeste: Akadémiai Kiadó, 1985.
_______. Ontologia dell’essere sociale – volume II. Roma: Riuniti, 1976.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo editorial, 2002

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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X

DEPOIMENTOS

Organizados por Mônica Hallak*1

Depoentes:
Ana Selva Albinati
Ângelo Leite
Antônio Lopes Alves
Carlos Magno Machado
Celso Eidt
Frederico Almeida Rocha
José Divino Lopes Filho
Juracy Amaral
Leonardo Gomes de Deus
Leônidas Dias de Faria
Lúcia Vasconcelos
Maria Cláudia Almeida Magnani
Mônica Hallak Martins da Costa
Rodrigo Alckmin
Ronaldo Vielmi
Sabina Maura Silva
Silvia Pereira Barbosa
Vinícius Lima

* Socióloga, mestre em Filosofia pela PUC-SP, doutoranda em Educação pela UFSCar.

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Ronaldo Vielmi Fortes

Introdução

O leitor encontrará nos relatos reproduzidos a seguir o testemunho de dife-


rentes gerações que mantiveram contato e sofreram influência do professor José
Chasin a partir de 1986, quando ele chegou a Belo Horizonte. Os textos foram
escritos, em sua maioria, por pessoas que foram seus alunos no curso de Filosofia
da UFMG.
Todos os depoimentos tratam brevemente do contato de cada um com Chasin
e o impacto dessa convivência em suas vidas nos aspectos pessoal, profissional,
acadêmico e na militância política (quando esse é o caso), seguindo os indicativos
de um roteiro previamente distribuído por meio eletrônico. Não houve nenhuma
espécie de seleção na publicação dos relatos. Todos os depoimentos enviados foram
publicados.
O roteiro foi enviado para tantas pessoas quantas foi possível contatar e não
houve obrigatoriedade nenhuma de ser seguido na íntegra, mas oferecia ao ex-aluno
uma orientação na abordagem. Algumas pessoas se entusiasmaram excessivamente
no relato e tiveram seus textos reduzidos para esta edição, a fim de manter certa har-
monia no conjunto, mas não houve nenhuma alteração no conteúdo apresentado.
Os pontos sugeridos no roteiro contemplavam aspectos objetivos da convivência com o Prof.
Chasin que pudessem oferecer ao leitor que o conheceu a lembrança de seu caráter
firme, do seu bom humor, da sua capacidade de envolver o público em suas refle-
xões. Para o leitor que não o conheceu buscou expor um perfil, o mais fiel possível,
de seu estilo único.
As pessoas que se manifestaram acerca do encontro com Chasin mantiveram
com ele níveis distintos de aproximação. Alguns foram seus alunos por muitos anos
e também ingressaram no Movimento Ensaio, outros freqüentaram suas aulas por
um período curto e outros, ainda, não chegaram a conhecê-lo em sala de aula.
Além da diferença nos níveis de contato, são também muito distintas as carac-
terísticas de cada autor dos relatos. Chasin foi professor de alunos da graduação,
ingressantes no curso de Filosofia aos 18 anos de idade (como é o caso de Antônio
Alves), de estudantes da pós-graduação (tanto do mestrado quanto do doutorado)
em Filosofia e em outros cursos (Ciências Sociais, Comunicação, Direito, Engenha-
ria, História, Medicina, Pedagogia, Psicologia, Serviço Social etc.) que chegaram ao
Departamento de Filosofia atraídos por referências diversas acerca de um estudioso
de Marx e Lukács com uma abordagem distinta daquela usualmente divulgada na
academia. Havia também professores (da UFMG, de outras escolas públicas e pri-
vadas de Belo Horizonte, do interior e mesmo de outros Estados) e militantes de
esquerda que viam na análise empreendida por Chasin a oportunidade de refletir os

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

descaminhos na luta política revolucionária. Portanto, a diversidade do “público”


que acompanhava as aulas e o trabalho do Prof. Chasin encontrará aqui apenas uma pe-
quena, mas significativa, amostra.
Será fácil observar que alguns comentários acerca da personalidade e estilo do
Prof. Chasin aparecem em vários depoimentos, outros são apresentados em um nú-
mero menor de testemunhos. Mas também não será difícil constatar que nenhuma
dessas pessoas passou incólume pelo contato com o filósofo marxista, o que, segun-
do diversos depoimentos, era algo impossível.
Todas as pessoas que falaram do convívio com Chasin buscaram, claro, home-
nagear aquele que foi, para alguns, um grande mestre, para outros, a referência mais
significativa de suas vidas. A homenagem, no entanto, não se perdeu em mitifica-
ções ou culto à personalidade (como comenta Cláudia Magnani em seu texto), mas
se atêm aos aspectos da convivência com o Prof. Chasin que cada um considerou
oportuno relembrar. Mas há uma direção clara no testemunho de todos: como bons
alunos, aprenderam com seu mestre a olhar para o futuro e, por isso, enfatizam na
lembrança dos momentos que vivenciaram com ele não a saudade que paralisa, mas
a que impulsiona a continuar sua luta e seu trabalho.
Os depoimentos estão dispostos iniciando pelos ex-alunos que primeiro tiveram
contato com o Prof. Chasin, de modo que os textos iniciais são dos alunos mais
antigos e os últimos daqueles que tiveram contato com ele mais recentemente. O
último depoimento resgata trechos do curso ministrado por Chasin no ano de sua
morte (1998) e termina com uma dessas passagens, transcritas muito fielmente pelo
autor (Frederico Rocha), que optou por manter o caráter incompleto de seu relato, e
assim ele será apresentado. O registro de Rocha tem também o mérito de descrever
o ambiente intelectual encontrado pelo estudante que ingressa no curso de Filosofia
(talvez possamos ampliar para todos os cursos da área de Ciências Humanas) atual-
mente. Mesmo em se tratando, no seu caso, de uma universidade específica, o qua-
dro delineado por ele reproduz certamente o estilo difundido nos meios acadêmicos
em todo o mundo. Como o seu depoimento foi construído pelo contraste entre esse
cenário e o impacto causado pelo contato com Chasin, ele foi o único mantido na
sua integralidade, apesar de ultrapassar o limite previsto para os textos.
Seguem, sem mais delongas, os depoimentos dos ex-alunos.

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SABINA MAURA SILVA


“Em 1984 conclui minha licenciatura em História e em 1985 iniciei o curso de
graduação em Filosofia na UFMG. Conheci Chasin no ano de 1986, quando fui sua
aluna no curso de Filosofia. Fui cursar a disciplina oferecida por ele porque se tratava
de Marx e, a partir daí, nunca deixei de freqüentar seus cursos.
“No curso de História, as posições dos professores acerca de Marx, da URSS,
das ditaduras latino-americanas e, em particular a brasileira, eram controversas. Ain-
da estávamos sob o militarismo, sob sua resistência agônica feroz. Mas, apesar de
sabermos que corríamos riscos, fazia parte de um grupo de alunos entusiastas das
idéias do Partido dos Trabalhadores. Embora nunca tenha me filiado ao Partido,
tampouco tenha sido uma militante, nutria simpatias pelo PT. Considerava-o um
partido revolucionário. Quanta ilusão!
“Ao concluir o curso de História, tinha uma questão a ser resolvida e sabia que
só a Filosofia poderia respondê-la: qual a razão dos fatos? Qual o porquê da história?
Entre os vários professores que tive, aquele que indicou as respostas foi Chasin.
“Considero impossível alguém não sair impactado de um encontro com Chasin,
seja de forma negativa ou positiva. Muitos o julgavam arrogante e tantos outros,
como eu, éramos atraídos por sua capacidade de nos fazer pensar sobre nossas con-
vicções e refletir sobre suas correções ou equívocos.
“Chasin conseguia, com exemplos aparentemente prosaicos, fazer com que as
questões filosóficas descessem do céu das abstrações para se tornarem concreta-
mente compreensíveis. Estudioso rigoroso, não se comportava com um detentor da
verdade, mas como alguém que, dialogando com as questões surgidas ao longo das
discussões em aula, era capaz de aproveitá-las como novas fontes de reflexão.
“Com Chasin, aprendi a compreender a realidade. Aprendi como entender as
vicissitudes da formação social brasileira, a não nutrir falsas esperanças na ação polí-
tica e nos partidos políticos, a distinguir o verdadeiro escopo revolucionário propug-
nado na obra de Marx. Com ele, aprendi como elaborar com rigor – e, sobretudo,
com honestidade intelectual – um trabalho acadêmico.
“Em 1991 me liguei ao Projeto Ensaio – movimento de idéias, idéias em movimento. Já
era consumidora ávida das publicações e, abraçando a proposta, contribuí muito
modestamente com o esforço enorme liderado por Chasin de mobilizar no cenário
brasileiro um ambiente de debates sobre questões candentes acerca da realidade
nacional e mundial, sobre o domínio do irracionalismo e sobre o abandono da pers-
pectiva revolucionária da emancipação humana.
“Em 1994, ingressei no mestrado sob sua orientação. Convencida por suas com-
provações documentais da necessidade de redescobrir o pensamento de Marx, falsi-

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

ficado pelas conveniências do chamado socialismo real, adulterado pela incompreensão


dos intérpretes, vilipendiado pela desonestidade dos arautos do capital. Infelizmente,
Chasin não pôde ver o resultado deste trabalho que tanto auxiliou, como o de muitos
outros que com certeza gostaria, levado que foi pelo que definia como a dimensão
não-humana da vida humana.
“Após dez anos de sua morte, Chasin continua sendo uma referência constante
em minha vida, tanto intelectual quanto pessoal. Mais que meu professor e orien-
tador, tornou-se o meu maior amigo. Alguém com quem sempre pude contar nos
momentos difíceis. Alguém que, detentor de imensa generosidade, sempre esteve
disponível para um conselho e uma palavra acalentadora, sem deixar de apontar os
erros ou equívocos.
“Sinto imensa saudade daquele que me ajudou a ser melhor do que eu era. Sinto
imensa falta daquele que nunca desistiu do futuro, que nunca desistiu das pessoas,
mesmo tendo sido por muitas traído. Sinto imensa falta daquele cujo caráter é cada
vez mais raro nos dias de hoje.”

MÔNICA HALLAK MARTINS DA COSTA


“Em 1986, quando cheguei ao 8º andar do prédio da Fafich da rua Carangola, fiz
matrícula em duas disciplinas que alguns amigos haviam indicado por causa de uma
professora que fazia muito sucesso na época: Cultura e Filosofia Gregas. Além delas,
ingressei também em uma terceira, que escolhi a partir da leitura da ementa. Não
tinha nenhuma outra referência. Era um curso sobre os estudos de economia desde
a Grécia antiga até a crítica da economia política no século XIX. O professor havia
chegado da Paraíba com sua esposa – a Profa. Ester Vaisman –, que era também
professora do departamento. Só vim a conhecê-la no semestre seguinte.
“Fiquei completamente fascinada desde a primeira aula. Apesar dos conheci-
mentos e de todas as referências da outra professora que ministrava a disciplina de
Cultura Grega, as aulas do Prof. Chasin eram muito mais ricas de conteúdo acerca
do cotidiano na Grécia antiga, pois, ao apresentar o texto de Xenofonte (Econômico)
ele tratava da reprodução da vida material, dos costumes, enfim, da cultura. Não che-
gamos a terminar a parte relativa a Aristóteles (veja bem: a proposta da ementa era
chegar ao século XIX), mas não importava. Àquela altura, interessava-me continuar
a acompanhar as aulas de Chasin fosse qual fosse a disciplina que ele ministrasse.
“Em 1990, ingressei no mestrado e a linha de pesquisa coordenada pelo Prof.
Chasin se voltava, na época, aos textos de Marx no início do período propriamente
marxiano, ou seja, após a ruptura com Hegel, em 1843. Foi um grande privilégio

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ter os Manuscritos de 1844 como objeto de pesquisa, pois era meu interesse analisar a
categoria da alienação e era parte do projeto do grupo a dedicação a este que foi o
primeiro trabalho de Marx sobre economia política. Os alunos que ingressaram no
programa no mesmo período assumiram outros temas relacionados aos textos de
Marx de 1843 a 1847. Tratava-se, portanto, de um trabalho coletivo sob a orientação
e coordenação do Prof. Chasin, claro, mas delegando a cada um de nós a responsa-
bilidade de manter o rigor na sua pesquisa individual e o compromisso de trocar e
difundir nossos resultados.
“Ao mesmo tempo em que seguíamos com nossas pesquisas e o estudo de Marx
(e, em menor medida, também da obra tardia de Lukács), mantínhamos o debate
acerca da questão nacional. Desde o primeiro ano em que conheci Chasin, ou seja,
1986, numa mistura de curiosidade e resistência, eu tentava entender uma posição
política que era pautada no estudo da especificidade do capitalismo brasileiro – a via
colonial – e que se propunha a assumir propostas diversas – não necessariamente
defendendo este ou aquele partido – que estivessem em consonância com o de-
senvolvimento nacional. Imediatamente me identifiquei com a crítica em relação à
postura de alguns partidos políticos de não votar em Tancredo Neves em 1985. Foi
um alívio conhecer dois marxistas que consideravam importante assumir o apoio
possível para aquele momento.
“A curiosidade e o interesse aumentavam na medida em que as propostas políti-
cas estavam coerentemente articuladas com a discussão teórica acerca da ontonegati-
vidade da política em Marx – sem dúvida, uma das maiores conquistas das pesquisas
de Chasin, que supera, inclusive, o legado lukasciano – e com a compreensão dos
problemas nacionais.
“Em sala de aula, o Prof. Chasin era, antes de tudo, um provocador. Buscava
sempre estimular o debate e fazia longas digressões que, no entanto, sempre eram
muito pertinentes e nos ajudavam a entender a multiplicidade de implicações das
questões em pauta. O estilo provocador de Chasin, associado à dificuldade dos alu-
nos com o ineditismo de sua abordagem, muitas vezes resultava em conflitos em
sala de aula. Da perspectiva do presente, posso avaliar como eram situações distintas
daquelas usualmente ocorridas na academia. Pois, ao contrário de se curvar diante
da dificuldade dos alunos (que, com freqüência, manifestavam-se com certa arrogân-
cia), o Prof. Chasin mantinha seus argumentos e continuava a colocar questões que
desarmavam os argumentos do interlocutor. Como se pode imaginar, eram situações
tensas e que lhe renderam a fama de autoritário e intransigente. Ele, de fato, não to-
lerava o acobertamento das dificuldades e as facilitações estimuladas, de certa forma,
na vida acadêmica. Quanto a isso, temos seu testemunho, ainda que incompleto, no

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

texto publicado nos quatro tomos da revista Ensaios Ad Hominem 1: Rota e prospectiva
de um projeto marxista.
“O meu contato mais sistemático com o Prof. Chasin, no entanto, foi no Mo-
vimento Ensaio. Reuníamo-nos quinzenalmente na casa de um dos participantes e
uma vez no mês – ou talvez uma vez a cada dois meses (não me lembro bem) – na
casa dos professores Chasin e Ester. Era sempre um momento muito precioso, pois,
além de rever a organização de nosso trabalho, tínhamos a oportunidade de conver-
sar sobre a escolha e o conteúdo das publicações, as questões em pauta nos cenários
nacional e internacional e, claro, as idéias de Marx e Lukács. Inicialmente, o que
achei mais curioso (porque era muito diferente das minhas outras experiências de
participação política) era a centralidade do trabalho. Havia, ao mesmo tempo, certo
estímulo à ajuda mútua, mas sem expor as dificuldades das pessoas. Nunca havia
participado de um ambiente tão respeitoso, sem ser distante ou indiferente. Mas,
muito além de minhas impressões pessoais, chamava a atenção o envolvimento de
Chasin em todo o processo de construção do trabalho: desde a escolha das publi-
cações até a sugestão de pontos de venda e difusão, passando pela diagramação dos
livros, contatos com os autores – enfim ele estava atento a cada detalhe.
“Um grande estímulo para o Prof. Chasin, no último ano de sua vida, foi a liga-
ção de alguns jovens estudantes de Filosofia com o seu trabalho. Mas, pouco depois
da seleção em que alguns desses novos alunos ingressaram no mestrado, Chasin veio
a falecer, sem chegar a orientá-los.
“Dez anos depois, não consigo ainda dimensionar o que significou essa perda.
Continuar o trabalho do Prof. Chasin era, e continua sendo, impossível. Tentamos
levar adiante nossas pesquisas e manter a divulgação de suas idéias, mas em um âm-
bito infinitamente mais restrito. De todo modo, o pouco que conseguimos manter é
a prova mais concreta do legado deixado por ele: a confiança no trabalho conjunto,
que lhe custou o investimento sistemático e prioritário na formação das pessoas e
não só diretamente na produção teórica.”

ANTÔNIO LOPES ALVES:


“Eu tive a felicidade de conhecer Chasin logo no início de meu curso de gra-
duação em Filosofia, no ano de 1986. Por coincidência, fui aluno dele numa das
primeiras turmas para as quais lecionou na Fafich, ainda no bairro Santo Antônio,
quando veio da UFPb para a UFMG. A disciplina não era diretamente do curso, mas
pertencia ao antigo Ciclo Básico de Ciências Sociais. Foi uma experiência fascinante,

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em todos os aspectos e acepções do termo. Tinha acabado de concluir o ensino mé-


dio, quando vim a ‘cair’ na Fafich, sentindo um misto de curiosidade, excitação pela
nova fase de minha vida e também bastante receio de não ter as qualidades requeri-
das para enfrentar esse desafio, que era a academia. Quando me deparei com Chasin,
esse conjunto conflituoso só fez crescer, pois, em função de minha pouca idade e
experiência de via, era ainda bastante imaturo. No entanto, a percepção, ainda que
confusa, da propriedade das suas colocações colaborou para que as dificuldades
iniciais fossem superadas, não sem muito esforço e lágrimas, na direção de uma cres-
cente simpatia pessoal e afinidade para com as idéias trazidas pelo professor.
“Já desde o primeiro encontro, chamou-me a atenção a sua firmeza na posição
das teses e problemas, a sua postura ao mesmo tempo magistral, de quem domina
muito bem seu ofício e tem algo de relevante a dizer, e extremamente disponível
para as dúvidas e inquietações da turma. Chasin sempre primou pela extrema res-
ponsabilidade intelectual e didática, buscando simultaneamente indicar referenciais
e transtornar completamente as seguranças tão caras e dogmáticas do senso comum
burguês. As aulas eram momentos gratificantes, apesar de difíceis, ainda mais para
um neófito imaturo como eu, pois as questões levantadas e as discussões levadas a
efeito tinham sempre o télos de nos obrigar a pensar e abandonar a cômoda preguiça
intelectual.
“O mais importante entre elementos da personalidade de Chasin que o distin-
guiam dos demais professores, além dos acima mencionados, era a sua capacidade
de, ao mesmo tempo, ser extremamente rigoroso e atencioso para com as perguntas
e intervenções dos alunos. Ele não incorria na prática deletéria – hoje mais corrente
que há 20 anos – de aceitar todos os argumentos como válidos, como ’contribuições
para o debate’. Mas, num mesmo movimento, tentava integrar as inquietações teó-
ricas e axiológicas dos estudantes ao objeto-texto da aula. As coisas sempre ficavam
muito claras para os alunos. Tanto os pontos de contato quanto os de divergência,
mas com um traço de respeito, que naquele tempo já era bastante invulgar. Ele exigia
o máximo esforço e trabalho dedicado no entendimento dos textos, tencionando
sempre tornar os sentidos e os temas o mais claro possível, sem perder de vista a
exigência de correção acadêmica e de honestidade intelectual.
“Chasin sempre se portou como um mestre, Magister, no sentido mais verdadeiro
do termo. Alguém que se empenhava continuamente em conduzir o processo com
autoridade – a autoridade do conhecimento – e suavidade exigidas na relação com o
aprendiz. Fora da sala de aula, instância a que vim a ter acesso quando me tornei um
dos seus orientandos, envidava esforços sempre no sentido de tornar as relações as
mais francas e abertas . Era um exemplo que transcendia, apesar de englobar, a di-

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mensão teórica, de honestidade e de retidão para com valores e posições. Ao mesmo


tempo, possuía uma disposição incomum para o diálogo e o auxílio, transformando
o convívio em exercício de terna e sincera camaradagem.
“O contato com Chasin com certeza me impactou em vários momentos e em
diferentes sentidos, tanto no que se refere ao aspecto acadêmico e profissional,
quanto ao pessoal e moral. Ele acabou por tornar-se um sólido referencial para
mim. Firmeza de propósitos e valores, disponibilidade para com as pessoas e uma
capacidade ímpar de ‘apostar’ no outro, são, para mim, as qualidades mais marcantes
da personalidade de Chasin.
“Li diversos textos de Chasin, como aluno, depois como orientando, e hoje
como alguém que tenta, dentro de meus limites, desenvolver as elaborações impres-
sionantes e de grande alcance legadas por seu trabalho. Destaco, em especial, dois:
Da razão do mundo ao mundo sem razão e Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica.
O primeiro me marcou profundamente pelo fato de ter encontrado nele a primeira
aproximação explicativa coerente e rigorosa do leste europeu, exemplar histórico-
social que, por motivos familiares e de índole, sempre me incomodou no que tange
à correta compreensão e classificação. Meu pai foi um acólito do marxismo, mas nas
versões dominantes que identificavam sem mais a revolução ao processo soviético
e o que dele surgiu ao comunismo. Isto sempre me incomodou... O segundo, não
apenas pela sua importância na crítica dos desvarios e perversões teóricos e práti-
cos do marxismo, mas também pela força imagética que anima e emana de várias
passagens, onde se dá o encontro feliz entre o poder de expressão e a verdade do
expressado, como na parte referente ao fato de que método é caminho sempre parti-
cular de objetos particulares em especial na página 516 ss da edição de Pensando com
Marx (Ensaio, 1995).
“Tive conhecimento e participei das atividades de difusão de obras e idéias pu-
blicadas e discutidas pelo Movimento Ensaio. Foi uma iniciativa sem paralelo, para
a época. Empreendimento que, por sua envergadura e grau demandado de com-
prometimento, pareceu estar bem à frente das possibilidades subjetivas do tempo
em que foi proposto e organizado. Hoje, algumas correntes copiam, de maneira
canhestra e enviesada, determinados elementos parcialmente percebidos no projeto
Ensaio.
“As análises chasinianas primaram sempre pela coerência teórica, pela solidez
argumentativa e pelo arrimo textual, documental e factual rigoroso. Mas, acima de
tudo, por um respeito incondicional à ordem objetiva dos desenvolvimentos históri-
cos efetivos. Nunca incorrendo no difundido hábito de ‘torcer um pouco’ os fatos e
processos para que eles caibam nos argumentos e conclusões.

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“A vivência que tive com Chasin exerceu enorme mudança em meu modo de
ser e pensar, especialmente no sentido de valorizar o que de melhor, de horizonte de
possibilidades, as pessoas, as situações e problemas podem apresentar. Assim como
da imperiosa necessidade de manter-se lúcido e decente, e da urgência de pensar os
destinos humanos, sem a mesquinharia e limitação das formas prosaicas de encarar
a existência.”

VINICIUS LIMA:
“Conheci Chasin em 1986, quando tive notícias de que ele dava aulas sobre
Marx e Lukács na Fafich. Tinha um amigo, Élcio Marques, que falou dele para mim
e nós procuramos nos aproximar do intelectual, mas jamais fomos alunos dele. A
referência que tínhamos dele era teórica e de amigos da Faculdade de Direito da
UFMG.
“A diferença principal entre Chasin e os outros professores era a de que ele fazia
a ponte entre a Filosofia e a prática material, incluída a política, que ele criticava do
ponto de vista marxiano; sempre dizia que a Filosofia era eminentemente prática
(nada a ver com o pragmatismo...).
“Chasin era muito acessível e sempre nos chamava (eu e Élcio) para assistirmos
às aulas, mas nunca entramos. Um episódio interessante foi quando Élcio descobriu
a obra de Lukács – El asalto a la razón - na Faculdade de Ciências Econômicas da
UFMG (Face) (em 1987), relegada “à crítica roedora dos ratos”. Achamos um ab-
surdo, pois não havia nenhum exemplar na Fafich naquela época. Pedimos então à
bibliotecária da Face para enviar o livro para a Filosofia, pois lá havia um professor
que era discípulo do autor e a obra lhe seria muito útil. Quando o livro chegou à Fa-
fich mostramos a Chasin e ele ficou muito contente. Depois, foi difícil retirar o livro
da Biblioteca, pois ele só vivia emprestado. São coisas que ninguém sabe, mas eu fui
o responsável pela idéia do envio do livro para a Fafich, com o apoio do Élcio.
“O impacto muito positivo de Chasin veio por meio da Editora Ensaio. Acom-
panhei todo o ‘movimento de idéias’ e comprei quase todos os livros publicados nos
anos 80 e 90. Li o livro que detona Plínio Salgado; o livro é muito bom e cobriu uma
lacuna na crítica ao integralismo; li muitas coisa que ele publicou
“Quanto à redescoberta de Marx, sua tarefa foi importante porque cavou uma
trincheira marxista na Fafich, jamais capitulou diante da filosofia reacionária e incen-
tivou as novas gerações a ler o Barbudo e a desmistificar a idéia de que Marx não era
‘filósofo’, mas ‘economista’ e outras idiotices acadêmicas...

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

“Chasin trouxe a problemática da emancipação humana para a ordem do dia,


algo que estava no jovem Marx; fez a crítica materialista da política, em seu sentido
negativo e antipositivista.
“O Chasin era um sujeito que sabia que a militância ignara não servia às causas
da revolução social; ria dos oportunistas de plantão e era severo crítico de Lula e
da tal ‘esquerda’; lembro-me bem de uma crítica que ele fez de um trabalhador do
canavial paulista que foi cooptado por Maluf...
“Em vista de tantas adversidades reacionárias, Chasin deixa saudades, porque
estamos divididos e desarticulados e isto não é bom para nós, que gostamos das
idéias do Barbudo...”

JOSÉ DIVINO LOPES FILHO:


“Conheci o Prof. J. Chasin como seu aluno na disciplina ‘Introdução à ontologia
de Marx’, do curso de Filosofia da UFMG. A disciplina foi ministrada no segundo
semestre de 1987. Não tinha nenhuma referência sobre ele, ainda que após sua che-
gada à UFMG houvesse comentários sobre sua trajetória e o seu trabalho.
“Pessoalmente, eu o considerava uma pessoa ‘curiosamente’ vaidosa. Quero di-
zer, a sua lucidez intelectual acerca da realidade, dos homens, parecia dar a ele uma
convicção existencial que ele sabia muito bem usar na sala de aula. Neste cenário,
sua forma elegante de se vestir para as aulas, e mesmo de fumar, contribuíram para
compor a imagem que me ficou do Prof. J. Chasin.
“No período em que fui estudante de Filosofia na UFMG, alguns professores
se diferenciaram muito uns dos outros, felizmente. O Prof. J. Chasin se caracte-
rizou por sua contundência nos posicionamentos que assumia, tomando partido
nas questões, particularmente políticas, que se colocavam no contexto nacional e
internacional. Para nós, estudantes, esta atitude foi encorajadora e profícua, porque,
ao assumir suas posições, ela as fazia com convicção e densidade teóricas. Nas duas
oportunidades em que fui seu aluno, por dois semestres, eu nunca o vi, a propósito
de estarmos em Minas Gerais, ‘em cima do muro’.
“Sua postura dentro e fora de sala de aula era de coerência entre seus pressupos-
tos teóricos e a sua forma de pensar o mundo. Naqueles anos, 1987-1988, um grupo
de estudantes da Fafich, do qual fiz parte, e amigos militantes desejosos de aprofun-
dar a reflexão sobre a sociedade e a política brasileiras da época, num movimento
fora da universidade, criaram um centro de estudos para realizar palestras, cursos,
chegando até a disponibilizar uma pequena livraria para os sócios e freqüentadores.
O Prof. Chasin, sabendo desta iniciativa dos estudantes, dispôs-se a colaborar, ofe-

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recendo sua participação para palestras e aulas. Parece-me ter sido o único professor
da universidade a incentivar pessoalmente esta iniciativa. O Centro foi extinto, mas
vários daqueles que se vincularam a ele continuam contribuindo para uma reflexão
crítica da realidade. E penso que a atitude do Prof. J. Chasin ficou como um incenti-
vo a todos sobre ‘o pensar e o participar’.
“Especialmente na condição de aluno, creio ser impossível ter convivido com
o Prof. J. Chasin sem que se tenha recebido algum impacto. Penso que seu impacto
fundamental diz respeito ao método: contundência e consistência. Porque se seus
ensinamentos de estética e ontologia em Marx, como todo aprendizado na Filosofia,
são obra da disciplina intelectual, a capacidade de sustentar conceitos e princípios
enquanto fundamento de reflexão ontológica da realidade exige metodologia que
sustente o discurso. E hoje reflito que esta foi, para mim, a maior virtude do Prof.
J. Chasin.
“Chasin, enquanto fui seu aluno, sempre me pareceu muito criterioso no que se
refere aos objetivos das disciplinas que ministrava. Metódico, colocava em prática
aquilo que enunciava: ‘antes de interpretar e criticar, é incontornavelmente neces-
sário compreender e fazer prova de ter compreedido’. Demandava, assim, leitura
exegética dos textos adotados (Marx, Lukács...), protelando leitura de seus próprios
textos. Através da Ensaio é que passei a ter contato com os textos do Prof. J. Chasin.
O último que li, e também aquele com que mais tenho afinidade (pelo menos até
o presente momento) porque abarca fundamentos de categorias centrais no pensa-
mento do filósofo J. Chasin foi ‘Marx – estatuto ontológico e resolução metodológi-
ca’, posfácio de Pensando com Marx: Uma leitura Crítico-comentada de O Capital’, de
Francisco J. S. Teixeira, publicado pela Ensaio em 1995.
“Quando conheci o projeto o considerei arrojado, especialmente porque a pro-
posta editorial requereria um esforço material significativo dos editores para lhe dar
regularidade. Recordo-me que mais de uma vez ouvi o professor J. Chasin comentar
o valor deste esforço, reiterando que ao rigor e profundidade do conteúdo deve estar
colado um projeto editorial de qualidade. Não acompanhei a evolução do projeto e
as circunstâncias que a definiram, mas, independentemente disto, a sua contribuição
ao entendimento da Filosofia marxiana é definitiva.
“Não me sinto muito à vontade para opinar sobre o impacto global das análises
do Prof. Chasin acerca do contexto brasileiro em geral, visto que não acompanhei
esta evolução. Contudo, pelo alcance da percepção que me foi possível até o mo-
mento, considero capital sua teoria e metodologia de análise e compreensão das
ciências sociais, por meio da perspectiva ontológica. Traduz numa forma de siste-
matização da realidade social, que acredito muito proveitosa, para que profissionais

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

possam trabalhar e oferecer alternativas mais de acordo com a objetividade social.


Por exemplo, penso que a forma como os assistentes sociais se apropriaram desta
perspectiva qualificou bastante suas elaborações.
“Nos dois semestres em que fui seu aluno, lembro-me do professor J. Chasin
insistindo na necessidade da releitura de textos marxianos, em função de uma certa
apropriação indevida de termos como ‘dialética’, ‘ontologia’. Uma boa síntese do
que ele queria nos ensinar, é o que gostava de repetir, referindo-se aos Manuscritos de
44: ‘todo ser é objetivo’. Era impressionante a derivação que ele construía a partir da
exegese desta sentença, mostrando-nos que o homem é um ser que só o é porque
age. Ao propor, trabalhar e construir o contexto para redescobrir Marx, J. Chasin
não apenas chamou a atenção para o necessário debruçamento sobre os escritos
marxianos, como fez repercutir esta leitura na prática das ciências sociais, conforme
afirmei anteriormente.
“Por considerar o homem um ser ativo, volitivo, pensante, proponente de ide-
ologias etc. evidentemente ele estava visceralmente comprometido com a questão
da emancipação das potencialidades humanas. E o mais interessante de seus argu-
mentos: esta emancipação deve ser produto da ação humana em seu cotidiano, sem
expurgar dele as manifestações superiores do espírito. Ou seja, a cotidianidade e as
formas superiores jamais rompem seus liames.
“Exatamente porque percebo o valor do que assisti e aprendi nas aulas do Prof.
J. Chasin e nas leituras de sua bibliografia e naquela recomendada por ele, demons-
trar os efeitos disso numa vida é tarefa árdua. Mas vou sintetizar esta importância
no meu cotidiano, reproduzindo a famosa frase de Marx, com a qual Lukács abre
o volume 1 da sua Estética, e que o professor J. Chasin não cansava de repetir e nos
explicar: ‘No lo saben, pero lo hacen’.
“Gostaria muito de apreciar, no volume que está sendo preparado, textos que
ressaltem a contribuição particular do professor J. Chasin para leitura, análise e in-
terpretação da estética marxiana a partir da volumosa e pouco conhecida Estética de
G. Lukács.”

MARIA CLÁUDIA ALMEIDA MAGNANI:

“Conheci o prof. Chasin no curso de Filosofia na Fafich/UFMG, acredito que


em 1988. Não tinha referências, a não ser informações de colegas de curso que
desaconselhavam a matrícula nas disciplinas ministradas por ele, em função de um
suposto excesso de rigor. Chasin foi uma das pessoas mais humanas que conhe-

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ci tanto no que se refere à sua atividade como profissional quanto como pessoa.
Chamava a atenção a sua coerência, franqueza, honestidade pessoal, dedicação ao
trabalho e, desnecessário dizer, sua competência.
“De uma maneira geral, são raros os professores que produzem tanto, tão de-
dicados e verdadeiros em seu trabalho, em sua produção intelectual e que têm uma
ação que extrapole ensino, pesquisa e extensão dentro da universidade.
“Não era possível ser indiferente ao contato com o prof. Chasin. No meu caso
pessoal o impacto foi positivo. Aconteceu em um momento em que eu questionava
a escolha do curso que fizera e o contato com Chasin e Ester deu-me a certeza de
uma boa escolha.
“Participei do projeto Ensaio e, depois de tantos anos, avalio-o como um movi-
mento efetivamente necessário, muitas vezes mal compreendido, nadando contra a
corrente dos modismos inconseqüentes da Filosofia.
“A vivência com os professores Chasin e Ester foi ao encontro de um modo de
ser e de pensar que já me era próprio e um tanto sem referência e solitário naquele
momento. Consolidou posturas profissionais e pessoais.
“Acrescento que vejo de maneira positiva esta homenagem, não como uma mi-
tificação ou um culto à personalidade, mas como uma necessidade, no sentido de
chamar a atenção para a importância do seu trabalho, que, em uma metáfora que o
próprio Chasin usava, pretendia jogar algumas pedras sobre a lama, para que gera-
ções futuras pudessem pisar. De todo o tempo em que tive o privilégio de conviver
com Chasin, uma afirmação sua nunca me saiu da mente: ele dizia que se havia uma
vaidade que ele possuía era a de não compactuar com este mundo, a ordem societária
regida pelo capital. Lamento profundamente a sua morte, até hoje.”

CELSO EIDT:
“Ao ‘spiritus rector’ Prof. Dr. José Chasin
“Foi no ano de 1988 que conheci o Prof. Dr. José Chasin, no curso de mestrado
em Filosofia na Fafich da UFMG. Ele foi um dos intelectuais que mais marcaram
meu percurso formativo, seja por seu trabalho filosófico, seja por sua generosidade
humana, digno de um autêntico ser genérico.
“Chasin desenvolveu um estilo filosófico característico, com fundamentos cla-
ros e objetivos, em que a exposição dos núcleos conceituais mais complexos se fazia
acompanhar de análises contextuais, em que as elaborações próprias davam vazão
aos elementos metafóricos, às ironias sutis e às críticas radicais, levando os princípios

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

teóricos às últimas conseqüências. Nesta tarefa, publicamente explicitada, o cená-


rio político brasileiro, então entusiasmado pelos ares da democracia e da cidadania,
torna-se objeto por excelência, temática de crítica profunda e impiedosa, dolorida
para quem militava nos partidos de esquerda, mas que propugnava as exigências
dos ideais universais da emancipação humana. Em meio ao entusiasmo geral pelos
ideais da liberdade política, Chasin fazia a diferença, indicando a fragilidade do cami-
nho que a ’pseudo-esquerda’ optara seguir. Aqui a obra e os princípios da Filosofia
marxiana saltavam ao primeiro plano. O retorno aos textos de Marx, a investigação
direta dos princípios e fundamentos de sua Filosofia, constituíam tarefa primeira
para aportar recursos e fazer frente aos desdobramentos da esquerda no Brasil e em
nível planetário.
“Numa perspectiva teórica clara, comprometida com a obra de Marx, Chasin
não poupava esforços para difundir o projeto de pesquisa em marxologia, bem como
as conquistas teóricas dele resultante. Assim ocorreu na Unijuí (Universidade Regio-
nal do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul), onde, juntamente com a Profa.
Ester Vaisman, as conferências sobre o pensamento político e ético em Karl Marx
tiveram grande receptividade e causaram profundo interesse.
“Para minha experiência intelectual, Chasin representa um marco insuperável na
leitura e compreensão tanto da obra de Karl Marx quanto do exame da moderna re-
lação entre a esfera econômico-social e a política. Fui orientando de Chasin e guardo
do seu trabalho o mais profundo carinho; hoje, cada vez mais percebo a dimensão
dos ideais teóricos e sociais aos quais Chasin se dedicava; suas obras fazem uma
grande diferença no campo do marxismo.”

LÚCIA VALADARES:
“Eu conheci J. Chasin num curso de Filosofia que ele veio dar em São Paulo, em
março de 1988, na Associação dos Sociólogos do Estado : foram quatro encontros
nos quais ele desenvolveu reflexões em torno da ontologia, bem como da história da Fi-
losofia e as questões político-econômicas mais polêmicas presentes naquele momen-
to. Nos anos subseqüentes, acompanhei o modo como ele realizou outros encontros
para expor seus estudos sobre o pensamento de Marx e sobre a história da Filosofia,
ou para expor suas reflexões sobre a realidade brasileira.
“Em todos esses momentos, sua postura sempre foi a mesma: em qualquer
lugar em que estivesse ele alterava a disposição das mesas para formar um círculo e
abria os encontros convidando todas as pessoas presentes a falarem, a exporem suas
idéias. Sem o controle do tempo das falas, as pessoas expunham as suas idéias e suas

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análises, se desejassem – a maioria das pessoas se manifestava – e no final J. Chasin


comentava e expunha as suas reflexões, sempre ricas e anunciantes de uma compre-
ensão ímpar sobre os acontecimentos que estariam por vir, sinalizava possibilidades
que poderiam ser efetivadas nos rumos políticos do nosso país.
“J. Chasin foi um homem profundamente ligado ao seu tempo e suas idéias
foram produzidas no intercâmbio com os acontecimentos, embates teóricos, na luta
cotidiana pela vida, contra todas as formas de estranhamentos, de subjugação do ser
humano. Ancorado ao princípio marxiano – do auto-revolucionamento permanente,
da compreensão da sociedade como comunidade humanamente social – levou às
últimas conseqüências a sua dedicação ao resgate do pensamento de Marx, à cons-
trução de um projeto marxista.
“No decorrer da sua vida J. Chasin realizou um amplo debate de idéias, reme-
tendo-se às questões centrais do nosso tempo desde os embates filosóficos até as
questões de ordem econômica e política, arte e literatura, enfim, trazia para o debate
os problemas centrais da humanidade. Sua Filosofia foi extremamente importante,
justamente pelas propostas que ele apresentava e o significado que ela representava
para a humanidade: o canto do galo gaulês que anuncia o novo dia, para J. Chasin, sim-
bolizava os ideais que retiram poesia do futuro, que anunciam o limiar de um novo
dia e identificam alternativas de superação da realidade.
“A sua dedicação à retomada do pensamento de Marx, ao acompanhamento do
itinerário do seu pensamento foi uma tarefa imprescindível, pois, dentre os diversos
marxistas atuantes no século XX, em grande medida prevaleceu a análise parcial
das obras marxianas, e muitas vezes um revisionismo que fragmentou e destituiu o
pensamento de Marx. O resultado da investida revisionista levou muitas pessoas que
se colocavam no campo da esquerda a aderirem à sociedade de mercado e não mais
enxergarem as possibilidades de mudança desta sociedade.
“Por isso, o trabalho desenvolvido por J. Chasin foi fundamental para reconsti-
tuir a produção teórica deixada por Marx, por ela ser uma referência imprescindível
para a compreensão da sociedade capitalista, bem como da gênese da constituição
da humanidade e do processo de desenvolvimento e transformação da história. No
caso específico do capitalismo, pelo seu próprio movimento extremamente dinâ-
mico de constituir e dissolver, desenvolver e destituir, ele segue o seu curso em constante
transformação e desenvolvimento, produzindo riqueza e miséria simultaneamente.
“Em sua ampla pesquisa acerca do ideário de Plínio Salgado, J. Chasin trouxe à
baila diversas questões pertinentes ao processo de constituição da história do nosso
país e seu grau de inserção no capitalismo mundial. J. Chasin pensou o mundo e o
Brasil, recusou análises subordinadas à imediaticidade e, num esforço fenomenal,

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

conseguiu acompanhar os diversos acontecimentos – por meio da análise da realida-


de singular e concreta, buscava identificar as mediações com a totalidade.
“Não se pensa a atualidade sem compreender o passado, sem analisar o que pen-
sam e o que fazem os vários extratos sociais, que idéias têm sido produzidas pelos
vários expoentes da sociedade, e em que direção caminham seus pensamentos.
“J. Chasin foi um homem inteiramente despojado de interesses pessoais, e com-
pletamente envolvido e comprometido com os problemas humanos. Sua pessoa faz
muita falta entre nós, pois não perdemos apenas um intelectual, perdemos um ho-
mem profundamente humano e amigo. Os seus ensinamentos e exemplo de vida, a
sua produção teórica tão profunda e indicativa de futuro precisam ser estudadas e
retomadas, se pretendemos lançar para o futuro as sementes de um mundo novo.”

RONALDO VIELMI:
“Vim a conhecer o Prof. Chasin logo após ter me formado no curso de gradua-
ção em Psicologia. A convite um colega de turma – Fernando – assisti como ouvinte
às aulas do professor na graduação. As primeiras referências que tive de Chasin
foram também a partir deste colega, que fez na faculdade Fumec a divulgação da
famosa Ensaio 18, com o texto sobre as eleições diretas de 1989.
“Preliminarmente, meu interesse era o estudo de Marx, dadas minhas vincula-
ções sindicais. Obviamente, ao assistir às suas aulas, as expectativas iniciais foram
todas ‘destruídas’, no sentido positivo. A crítica e a perspectiva abertas durante as au-
las que tive com Chasin foram essenciais para mudar minhas crenças e projetos que
tinha em torno da luta sindical. Particularmente, a radical contestação da propositura
Petista, que na época almejava a presidência da República. A identificação da crítica
de Chasin com uma série de desleixos e ‘estranhezas’ que via na prática partidária e
sindical foi imediata.
“Porém, não foi apenas este aspecto que me atraiu. O fascínio maior veio da
percepção de que o pensamento de Marx não se reduzia à velha cantilena da luta de
classes, do compromisso com a revolução, mas, ao tomar conhecimento, por meio
de suas aulas, da perspectiva humanista presente na obra marxiana. O, para mim,
inusitado preceito de que a revolução tem o papel precípuo da emancipação das
individualidades.
“No plano da minha formação intelectual, minhas dívidas são bem maiores.
Não apenas fui acolhido e muito auxiliado nos passos iniciais, mas o modo, o rigor,
as exigências defendidas por Chasin no âmbito do trabalho intelectual me marcaram
profundamente - juntamente com a profa. Ester Vaisman. A relevância de Marx para

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Ronaldo Vielmi Fortes

a prospectiva humana, assim como a importância da obra lukacsiana na redescoberta


da autenticidade do pensamento do filósofo alemão, é uma herança que carrego e
que carregarei ao longo de meus estudos.
“Por fim, um lamento revoltado, lembrando Engels na morte de Marx: anos
para se construir uma cabeça como esta, para que em apenas alguns segundos... A
‘biologia’ interrompe toda uma potencialidade de anos de estudos importantíssimos,
que somente uma cabeça como aquela teria efetivamente condições de pôr em cur-
so.”

ANA SELVA ALBINATI:


“Conheci o Prof. Chasin no final dos anos 1980, pouco antes da mudança da
Fafich da rua Carangola para o câmpus da Pampulha, quando eu fazia a graduação
em Filosofia. Não me lembro exatamente o ano, mas me lembro que a vinda dele
para o Departamento de Filosofia foi cercada de muita expectativa, pois se tratava de
um intelectual com reconhecimento nacional no campo do marxismo. Eu me lem-
bro particularmente de um debate ainda no prédio da Carangola, no qual se discutia
a leitura lukacsiana e a leitura althusseriana de Marx, e havia, além dos estudantes da
faculdade, militantes de partidos políticos e estudantes ligados ao movimento estu-
dantil que ansiavam pela fala de um conhecedor de Lukács.
“Foi a primeira vez que o ouvi falar. Eu não conhecia nada de Lukács e não tinha
ainda me definido por nenhum autor como objeto de estudo para uma pós-gradua-
ção, mas desde já a seriedade de sua postura no debate me impressionou bastante.
“Demorei alguns semestres a cursar uma disciplina ministrada por ele, por duas
razões: a primeira é que eu cursava apenas a metade das disciplinas de cada perío-
do a cada semestre, por falta de tempo, e a segunda, bastante ridícula, é que corria
uma fama do Chasin pelos corredores, como sendo alguém muito exigente, que
intimidava os alunos com a sua intransigência. Então, eu via aquele homem barbudo
pelos corredores e achava sempre melhor adiar a minha matrícula para o próximo
semestre. Quando vim a cursar a primeira disciplina com ele, ainda na graduação, já
estávamos no câmpus da Pampulha. Era engraçado porque o horário da disciplina
era de 14:00 às 18:00 horas, e os alunos chegavam por volta das 14:00 horas, e iam
ficando, conversando, e aí dava 15:00 horas, 15:30, e o professor não chegava. Mas
o mais curioso é que poucos alunos se incomodavam com aquilo, a maioria era for-
mada de alunos que já o conheciam e que, portanto, já conheciam o fato de que o
horário para ele era apenas uma referência. Ele chegava sempre mais tarde, por volta
das 15:30, e iniciava a sua aula com tranqüilidade, entre uma baforada de cigarro e

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outra, sempre a partir de alguma coisa que estava acontecendo no país. Da mesma
forma que não havia hora para começar, não havia hora para terminar, as aulas iam
até às 20:00, 21:00, às vezes até às 22:00 horas.
“Eu comecei a gostar daquele jeito irreverente que ele tinha, de se importar ape-
nas com o que era importante de fato, o conteúdo, a discussão, enquanto o resto, as
formalidades, os horários, tudo isso não tinha a menor importância.
“A sala de aula tinha outra característica também que me agradava muito: era
como uma reunião num outro espaço, que não o acadêmico, em que as pessoas o
escutavam com muita atenção, discutiam, tomavam café e fumavam sem parar. Em-
bora eu não fosse uma fumante, aquilo não me incomodava, ao contrário, encantava-
me sempre a irreverência que ele cultivava pelo local, pelas normas e pela ‘qualidade
de vida’.
De fato, o que falavam dele nos corredores era em parte verdade: Chasin me
intimidava um pouco, mas logo eu percebi que era uma intimidação proposital, pro-
vocadora. A exigência de rigor, de fundamentação, de contextualização, era um exer-
cício difícil a que ele nos expunha o tempo todo.
Havia um aspecto do seu comportamento com relação aos alunos que eu apre-
ciava especialmente: ele os levava a sério. Ele considerava nossas perguntas, desen-
volvia a partir delas a sua reflexão e retornava a elas com um material mais vasto de
pesquisa, incitando-nos a acompanhá-lo naquela trajetória. Na verdade, essa era a
‘braveza’ de Chasin, a sua intransigência. O que eu pensava ser uma intimidação se
revelou como um profundo interesse e consideração pelos alunos. Ele queria nos
tornar aptos a uma conversação filosófica. O que não era fácil, devido à sua erudição
e à sua capacidade de articular as questões e realizar uma reflexão original, interes-
sante, instigante e, no mais das vezes, ao avesso das considerações tradicionais.
“Ele me impressionava muito por sua segurança na exposição das questões, por
sua franqueza e por um certo humor, uma espirituosidade muito peculiar que ele
apresentava (às vezes, quase cruel, diga-se de passagem).
“Quando eu comecei a freqüentar alguns de seus cursos (e também alguns de
Ester), dei-me conta que havia um grupo coordenado por eles, empenhado em de-
terminados aspectos da obra de Marx, e tomei também conhecimento da Editora
Ensaio.
“Acho muito significativo o fato de que um grupo se empenhe em um determi-
nado objeto de estudo e trabalhe junto, o que é ainda mais interessante, se pensar-
mos o individualismo e a vaidade reinantes nos meios acadêmicos. Esse grupo tinha
no Prof. Chasin a orientação segura, a definição dos pontos a serem pesquisados
em torno de um objetivo maior, que era trazer à tona o texto do próprio Marx. Esta

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programação me pareceu bastante interessante e a ela me integrei quando do meu


mestrado.
“Da mesma forma, o esforço nas publicações das edições da Ensaio é outro
ponto alto a destacar na trajetória do Prof. Chasin, pois significou perseguir um pro-
jeto de autonomia intelectual, fora dos modismos e na contramão das expectativas
da Filosofia contemporânea.
“Mas a pretensão de Chasin era ainda maior. Recuperar o pensamento de Marx
na atualidade significava uma contraposição às parcas expectativas da contempora-
neidade, tanto no campo teórico como no da prática social e política. O seu hori-
zonte era o da possibilidade de recuperação da perspectiva da emancipação huma-
na, questão à qual dedicou os seus melhores esforços, identificando na Filosofia de
Marx o lume desse caminho. Interessava para ele, sobretudo, o resgate de Marx no
sentido de esclarecer as opções e práticas políticas e os caminhos e descaminhos dos
movimentos sociais na atualidade.
“Essa pretensão de articular teoria e prática, de conciliar uma análise macro com
as questões empíricas da cotidianidade, ou ainda de questionar a prática a partir da
teoria, se é, por um lado, não só legítima, mas uma tarefa à qual a Filosofia não pode
se furtar, não é tarefa simples. Nós pudemos acompanhar em parte o seu esforço
nesse sentido, que se traduziu em análises da conjuntura social em diversos mo-
mentos no Brasil, muitas das quais se mostraram bastante elucidativas da realidade
nacional.
“Eu posso dizer que a oportunidade que tive de conviver um pouco com o Prof.
Chasin marcou, sem dúvida, a minha formação, a começar pela própria compreen-
são do que seja Filosofia e do para quê ela se destina. Eu me lembro perfeitamente
quando ele dizia que a tarefa da Filosofia é criar lucidez. Essa frase, aparentemente
simples, carrega uma carga de esforço intelectual, de não submissão aos padrões e
aos modismos e, mais que tudo, de entendimento da Filosofia não como um jogo
de paralelismos do pensar, mas como tarefa séria de responder aos impasses cruciais
da realidade, a partir da apreensão do cerne da questão. Ela repõe a radicalidade do
projeto marxiano de não se deixar enredar por aspectos secundários na análise das
questões que tocam o problema da existência humano-social, no interior de uma
inabalável confiança na restituição do projeto de emancipação humana, que sempre
foi o seu horizonte maior.“

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RODRIGO ALCKMIN:
“O meu primeiro contato com o Prof. Chasin aconteceu no curso de graduação
em Filosofia pela UFMG, no início da década de 1990, quando a Fafich ainda fun-
cionava no antigo prédio da Rua Carangola. Apesar de não ter nenhuma referência
sobre ele, desde o princípio, era notório o seu bom humor, acompanhado de uma
fina ironia, conjunção que também ficava visível em suas inúmeras participações em
seminários ou congressos.
“Dotado de uma personalidade carismática, além de uma sólida formação te-
órica, impressionava a maneira como era articulada a história da Filosofia com as
questões mais imediatas presentes no cenário mundial. A argúcia das suas análises
e o poder de síntese na exposição das idéias ultrapassavam o mero conhecimento
acadêmico. Naturalmente, isso provocava um impacto em seus ouvintes; não era
mais possível estudar Filosofia alardeando toda aquela problemática levantada nas
suas aulas e, ainda, não examinar com mais atenção os apontamentos para as suas
supostas soluções.
“Longe de um simples ‘carreirismo’, a qualidade do trabalho desenvolvido pelo
Prof. Chasin encontrava consistência na elevação, ao primeiro plano, da emancipa-
ção humana. A seriedade empreendida nessa tarefa – seja como autor ou orientador
– resultava em pesquisas marcadas, antes de tudo, pela exigência de um alto padrão
de rigor. Nesse sentido, o projeto Ensaio revelou a lucidez das suas leituras sobre
a miséria brasileira, assim como o esforço editorial na tentativa de mobilizar um
maior número de pessoas, apesar dos obstáculos que num intento dessa monta se
inscrevem.
“A proposta de redescoberta de Marx é de suma importância para uma avaliação
das contribuições deixadas pela sua obra. Penso que a ontologia marxiana forneceu
o indispensável norteamento para toda sua atividade intelectual. Evidentemente,
esse embasamento teórico, aliado à presença exercida pela sua figura, influenciava
decisivamente o modo de ser e pensar dos seus alunos. A vivência com o Prof. Cha-
sin, de certa forma, desnudava aquilo que Marx havia anotado em sua segunda tese
ad Feuerbach, isto é, de que a questão sobre a realidade efetiva do pensamento não
poderia estar isolada da prática.”

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ÂNGELO LEITE:
“Cruz Costa, antigo catedrático de Filosofia da USP, quando perguntado, res-
pondia que não era filósofo e sim um filosofante, além de ensinar que se devia fazer
Filosofia no Brasil com a cabeça nessas terras. Pensar em alguém como filosofante,
então, não é nenhum demérito, e sim ver um pensamento lastreado numa dada rea-
lidade. É como penso sobre a figura do Prof. José Chasin.
“Penso que a relação com o Prof. José Chasin teve alguma repercussão na minha
prática profissional, particularmente naquela parte em que, ainda hoje, seja possível
fazer algo de positivo no exercício da docência de ensino superior, mesmo que, cada
vez mais, de forma mais rara.
“Conheci pessoalmente o professor no início dos anos 1990, embora ouvisse
falar dele (às vezes bem, às vezes mal) desde o final dos anos 1980, quando ingressei
no curso de Filosofia da Fafich/UFMG, como seu aluno da disciplina de Filosofia
no Brasil.
“O que me chamou a atenção de início na pessoa do professor foi sua arte de
falar em sala de aula, de um brilho incomum e muito próprio, o que já o distinguia
dos demais, mesmo dos mais brilhantes na arte em questão.
“Bastaria essa qualidade para tê-lo na conta de um mestre paradigmático, mas
houve um dado a mais que repercutiu na minha formação, que foi a idéia de renova-
ção da ontologia que, até então, pensava como um defunto pertencente ao cemitério
da metafísica, tudo em razão do predomínio de questões de ordem gnosiológica e
epistemológica até aquele momento do curso, que considero de encruzilhada e de
queda no real.
Passei, então, como disse, não só a freqüentar os cursos ofertados, como a ler
sobre o assunto, aliás, li todos os lançamentos da Editora Ensaio, projeto que tinha
como figura central o Prof. José Chasin e mesmo o sucessor desse projeto – os En-
saios Ad Hominem, inaugurado um pouco antes de sua morte.
“Em seu último escrito, que ficou inconcluso (é bom que se diga!), “Ad Ho-
minem – Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista”, ao analisar a composição
acadêmica da época (consoante à política de então), marcada naquele momento por
dois tipos predominantes: o alto e o baixo clero, Chasin destaca criticamente tanto as
virtudes quanto os limites do primeiro, para em seguida tecer uma crítica impiedosa
ao segundo.
“Retornar ao filosofante em questão, que espero não ter deformado em dema-
sia, possibilita pensar, mais que se lembrar de sua morte apenas, não só as caracte-
rísticas que tomou a expansão do ensino superior no Brasil de agora, bem como do
rumo tomado pelo país na senda que o leva a integração da nova ordem.”

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

CARLOS MAGNO MACHADO:


“Em 1991, o movimento social passava por um momento de muitas dificul-
dades. A desagregação completa do leste europeu caiu por sobre nossas cabeças,
pois, ainda que pudéssemos ter algumas desconfianças quanto ao que lá ocorria,
não conseguíamos ter uma análise que se fundasse nas reais concepções de Marx. A
esquerda se orientava pelos manuais soviéticos, chineses ou albaneses de qualidade
mais que sofrível. Aquela afirmações de nossos dirigentes políticos do ‘grande ba-
luarte do marxismo-leninismo’ e outras quimeras ruiu sem muito barulho, tal era o
grau de desagregação interna daqueles países.
“No bojo desse processo, ainda militando no PC do B, eu e mais um compa-
nheiro convidamos o Prof. Chasin para expor o tema ‘Causas e Conseqüências da
Estagnação do Marxismo’, dentro do Seminário organizado pelo Partido, intitulado
‘Socialismo em Debate’. Já tínhamos, naquele momento, um contato com o Prof.
Chasin, que, mesmo reclamando do tempo disponível, prontificou-se a expor o tema
proposto. O debate ocorreu no Centro Cultural da UFMG, no dia 7 de agosto de
1991. Daí, foi um passo para me aproximar ainda mais do Prof. Chasin. Apesar de,
em certos momentos, ser muito cortante, sob a forma de certa rispidez, respeita-
va-o pelo conteúdo das idéias que expunha com tanta clareza e disposição para alte-
rar as nossas concepções. Dizia ele, em certos momentos, creio que parafraseando
Marx, que ‘o velho parasitava o novo’. Considerava ser uma verdade, mas o mais
difícil não era admitir isso, o difícil mesmo era proceder à nossa autotransformação.
Chasin afirmava que, para compreender Marx, era necessário realizar uma revolução
pessoal.
“Outro momento importante da atividade fora dos muros da universidade foi
quando da realização do Encontro da Revista Ensaio, nos dias 20 e 21 de fevereiro
de 1993, em São Paulo, eu, já como participante do Grupo Ensaio, o Prof. Chasin
fez um exposição sobre o momento internacional que vivíamos e tomamos um po-
sicionamento sobre a questão nacional mais polêmica naquele ano: a discussão sobre
os sistemas de governo (parlamentarismo x presidencialismo). Tomamos a decisão
pelo último. A discussão foi muito rica de ensinamentos.
“Antes do primeiro contato com o Prof. Chasin, tinha uma leve referência de
que existia na Fafich um professor muito polêmico, que se dizia marxista e que tinha
vindo lá dos lados da Paraíba. Daí, a curiosidade, e no clima de queda do muro a
aproximação necessária foi. Pois, como ideologicamente o quadro daquele momento
impactava minha ação e percepção do mundo, o encontro com Chasin alimentou a
busca de novo caminho, nas trilhas das formulações de Marx. Em 1992, já freqüen-
tando suas aulas, chamava-me a atenção o andamento da aula. Cada aula era como

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Ronaldo Vielmi Fortes

se Chasin estivesse escrevendo um texto. Tinha um roteiro, e mesmo com vários


volteios não perdia o rumo. Lembro-me de uma frase que me impactou e criou novo
ânimo, era uma frase curta mas de grande valia para mim naquele momento. Exata-
mente ele dizia que ‘viver é resolver problemas’. Não sei explicar o porquê, mas o
fato é que essa frase ficou gravada. Muitas vezes eram afirmações simples, mas com
alta pertinência para a condução da vida cotidiana.
“Tive professores muito competentes e dedicados, tanto no nivelamento1 quan-
to nas disciplinas do mestrado. Eram professores cultos, mais ao estilo de certa
ilustração. Por certo, essa postura agradava aos alunos, pois contribuía, de alguma
forma. No meu caso, pelo fato de me encontrar dentro do ‘campo’ do marxismo, e
Chasin se ancorar nessa propositura, o meu interesse era evidente. Suas palavras não
eram vazias. Estavam carregadas de convicção. Com ele não tinha essa de intervalo
para ir à cantina ou ao banheiro. Tocava o barco. No período em que o Prof. Chasin
estava elaborando o texto que posteriormente se intitulou ‘Futuro Ausente’ (não
tenho muito certeza se era esse, mas creio que sim), ele tinha o texto como referên-
cia, passava a idéia para mim de que ele sabia cada detalhe do texto. Com a caneta
a postos, em determinado momento ele dava uma parada, olhava para a janela e es-
crevia na margem do texto alguma observação. Isso apontava para o fato de que, ao
falar, estava refletindo. Parecia que, súbito, emergia uma idéia e, tão rápido quanto
as palavras, a anotava na margem do texto por ele em elaboração.
“Chasin era um professor que não suscitava o meio-termo. Era oito ou 80. Sua
franqueza, muitas vezes até a franqueza rude, era o seu diapasão de vida. Nada de
conciliação! A busca da verdade era sua senda de vida. Ninguém é perfeito. Temos
as nossas intolerâncias e outras agruras. Sempre raciocinei sobre as atitudes do Prof.
Chasin do seguinte modo: pouco me importavam os seus defeitos ou forma de falar
sem muito polimento; importavam sim, e muito, o seu profundo conhecimento, um
manancial inesgotável em relacionar particularidade e universalidade. Suas aulas,
para mim, eram lições de vida, no sentido mais profundo: do de onde ao para onde.”

JURACY AMARAL:
“Conheci o Prof. Chasin no início dos anos 1990, através de Carlos Magno,
um de seus alunos no mestrado em Filosofia. Antes, por volta de 1989, fui aluno da
professora Ester, no curso de Filosofia, quando a faculdade funcionava no prédio da
rua Carangola, Santo Antônio, mas não sabia nada sobre o Prof. Chasin.
“Nas minhas conversas com Carlos Magno, fiquei sabendo que a aula do Prof.
1. Curso de disciplinas obrigatórias para quem não é graduado em Filosofia.

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

Chasin era sobre a obra de Marx, logo me matriculei como aluno irregular do mes-
trado em Filosofia. Foram quatro semestres freqüentando suas aulas, normalmente,
às quartas-feiras de 16 horas às 19 horas.
“Lembro-me da presença altiva do Prof. Chasin. Chegava, sempre com sua pas-
ta marrom e muito ofegante, assentava-se, abria a pasta, pegava um maço de cigar-
ros, um isqueiro ZIP, acendia um cigarro e começava a falar sobre o tema da aula. O
que me chamava a atenção era o seu estilo de fumar, elegante, estilo aristocrático, que
buscava a cada tragada um intenso prazer no hábito tabagista. Jamais me esquecerei
do seu jeito inimitável de fumar. Durante a sua aula, que durava aproximadamente
três horas, eu contava 28 ou 29 cigarros que ele fumava até o fim. Algumas vezes ele
comentava que, devido à intoxicação tabagista, estava evitando o cigarro comum,
mas nesses dias ele fumava charuto ou cigarrilhas em menor quantidade.
“Nas avaliações orais ele me pedia para abordar um tema da teoria de Marx,
elogiava quando eu conseguia me aprofundar no tema e responder de acordo a pro-
posição, às vezes ele me corrigia, mas suas intervenções me pareciam outra aula, uma
nova abordagem para trazer à luz o que foi compreendido do pensamento de Marx.
E, todas as vezes que eu entrava na sala, para fazer a prova oral, ele me falava assim:
‘você é um rapaz sorridente e está de bem com o mundo, não perca esse modo sim-
pático e vamos para a questão’!
“O Prof. Chasin me ensinou muito, não somente sobre Marx, mas, principal-
mente, como pensar a Filosofia de forma crítica e dinâmica. Quando ele abordava
a questão social brasileira, ele gostava de se referir ao grupo que estudou Marx nos
anos 60 (Francisco Weffort, Fernando Henrique, Ruth Cardoso e outros), com uma
pitada de crítica, ele analisava o cenário político da esquerda brasileira, falava sobre
Brizola e prognosticava sobre o futuro do Partido dos Trabalhadores. Através de
suas análises não me surpreendi com o esquema de poder montado pelo PT que
culminou com o caso do ‘mensalão’. Não me lembro muito bem do texto, mas
penso que seja um com o nome ‘A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda’ em que
Chasin evidencia certeiramente o desenrolar do processo político protagonizado
pela esquerda brasileira.
“O Prof. Chasin, para mim, foi o mestre da lição, ele se posicionava como um
professor altivo, de saber trabalhado e refinado, detalhava para instigar o aluno a
pensar e elaborar a partir das suas assertivas, muito raro nos tempos atuais. Depois
de muito tempo, tive a felicidade de ter outro professor com estilo semelhante ao
do Prof. Chasin, foi na UnB, um professor com estilo de professor – ‘um mestre da
lição como Chasin’.
“Ainda leio a obra de Chasin, principalmente quando preciso me referir a
Marx.”

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Ronaldo Vielmi Fortes

SÍLVIA PEREIRA BARBOSA E LEÔNIDAS DIAS DE FARIA:


“Quanto aos aspectos positivos da personalidade do Prof. Chasin, restringimo-
nos àqueles que para nós foram os mais importantes: a coragem e o compromisso
irrestrito de assumir explicitamente uma posição filosófica, com seus desdobramen-
tos práticos mais profundos, sem meias-palavras e, sempre, com a disposição para a
discussão verdadeira – que se distingue em absoluto da mera ‘troca de idéias’ típica
da academia, que, sob o disfarce de busca conjunta de soluções para as questões,
processa-se como instrumento de auto-afirmação e, em alguns casos, auto-ilusão
acompanhada de ilusão de outros.
“Para ficarmos apenas no nível da menção, sem ir para seus desdobramentos,
indicamos como méritos teóricos do Prof. Chasin a explicitação precisa feita por ele
de alguns pontos extremamente importantes da obra de Marx: o estatuto ontológico
do discurso marxiano; a detecção da atividade sensível e autoprodutora do ser social
como instância a partir da qual o conhecimento, para este autor, não só se mostra
possível como também se apresenta como indispensável; a determinação sociohistó-
rica do ato de pensar e dos produtos deste mesmo ato, com a explicitação do caráter
prático, efetivo, deste mesmo ato e destes mesmos produtos, que não se reduzem a
reflexos da infra-estrutura; a sustentação do caráter secundário da questão metodo-
lógica para Marx (jogando por terra o cartesianismo dos pretensos seguidores deste
autor, os idólatras do método dialético materialista etc.), bem como a sustentação de
que, em qualquer autor, as questões epistemológica metodológica sempre têm como
‘chão’ uma concepção de caráter ontológico, explícita ou implicitamente.
“Além disso, devemos a Chasin a compreensão da Filosofia como análise da
realidade, como um discurso que não é autônomo, mas integra-se (ou deve integrar-
se) como um elemento em um discurso mais amplo (em que se articulam também
saberes científicos, técnicos e mesmo de senso comum – isto é, pré-teoréticos, mas
legítimos), discurso dotado de níveis diversos de abstração e de vários recortes da
realidade, que tem a totalidade do ser (‘o complexo de complexos’, expressão que
traz saudades!) como seu objeto – não só admitindo, mas impondo o reconheci-
mento das várias formas de ser que em seu bojo se articulam e interagem de modos
diversos, determinando-se mutuamente e determinando a realidade como um todo.
Discurso coerente que, no entanto, não tem como objetivo a coerência, mas a re-
produção mais fiel possível da realidade, tendo como propósito final, no entanto, a
produção de vida humana! É o aspecto proponente da teoria! O objeto da Filosofia,
e isso nós aprendemos com Chasin, não é a Filosofia, mas o mundo! E seu fim úl-
timo é a lida consciente, responsável... livre com este mundo, o que inclui a lida de
cada um de nós consigo mesmo e com os outros!

Verinotio.org (n.9), Ano V, NOV./2008, ISSN 1981-061X

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

“Pode-se dizer que tudo isso se deva a Marx, prioritariamente. Não sabemos
se é o caso com relação a todos os pontos aludidos. Mas, mesmo se for, foi Chasin
quem nos fez perceber isso tudo. E à preservação e divulgação da memória de tão
grandioso e exemplar homem, pensador e mestre, dedicamos boa parte de nossos
modestos esforços cotidianos.”

LEONARDO GOMES DE DEUS:


“Conheci o Prof. Chasin no curso de Filosofia, que eu freqüentava como ou-
vinte ou aluno de disciplinas eletivas. Por um motivo prosaico, matriculei-me em sua
disciplina sobre política: era o único curso da Filosofia ministrado à noite, às vezes
tarde da noite, entrando na madrugada. Diante de meu hegelianismo empedernido e
antiesquerdismo (leia-se, petismo) contumaz, não tinha muito interesse, mas Chasin,
de quem nunca ouvira falar, foi-me recomendado por colegas como alguém que
pensava a obra marxiana como original e contraposta à obra hegeliana, como parte
da Filosofia, mas ao mesmo tempo dotada de nítida e original contribuição à refle-
xão filosófica. No final, a curiosidade e a peculiaridade do horário venceram.
“Para um aluno de graduação apegado a provas, prazos, horários, anotações
em aulas, à rotina acadêmica pedestre, em suma, o curso teve um impacto já em sua
forma: não havia aulas no sentido tradicional, mas discussões exaustivas sobre os
textos e sobre os temas em questão, no caso, a questão política. Em meu caderno
dessa disciplina, só consegui anotar, nas primeiras aulas, a ementa, singela e despre-
tensiosa, explicada ao longo da primeira aula. Todas as aulas eram, pode-se dizer,
provocações, era impossível sair indiferente, eram ‘provocações honestas’, expres-
são de Chasin; repentinamente os alunos eram convidados a pensar sob um prisma
completamente diferente, em verdade, eram convidados a pensar. O momento mais
dramático do curso era a prova oral, que acabava por ser um diálogo, uma discussão:
Chasin avaliava simplesmente a capacidade de pensar, tarefa esquecida nos cursos
de Filosofia. No caso da política, a pensar o seu enraizamento social e seu caráter
incompleto – tratava-se de ser verdadeiramente radical. Além disso, várias aulas eram
profundamente vinculadas a acontecimentos do momento, seja na ciência, seja na
política do momento, algo estranho ao curso de Filosofia e, até mesmo, à maior
parte dos cursos de Humanas. Finalmente, quando conheci Chasin, Marx já vivia o
descrédito completo que sofre até hoje e a proposta de uma leitura de seus textos
livre de uma série de preconceitos (tanto de seus detratores quanto de seus defenso-
res) abria perspectivas profundas. Com isso, colocavam-se duas questões fundamen-
tais, a da emancipação humana e, num nível teórico e prático, a retomada de Marx.
Ao contrário da esquerda dos anos 1990, Chasin atacava as propostas de reforma e

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Ronaldo Vielmi Fortes

melhorias no sistema capitalista. Com isso, impunha-se exatamente a retomada da


obra marxiana. Por isso, sua postura política imediata causava tanta polêmica entre
os alunos, como o escândalo de votar em FHC.
“Durante o curso tive a oportunidade de ler trechos do ‘Estatuto Ontológico’ e
o texto, em suas duas primeiras seções, teve o efeito de convidar a uma nova leitura
da obra de Marx, uma volta a seu texto original. Para alguém com interesse na polí-
tica e no direito, os textos de juventude, recuperados e repostos em sua consistência
própria, representaram também uma virada pessoal: da vida espiritual das leis [Leo-
nardo de Deus graduou-se em direito antes de ingressar no curso de Fisolofia], para
as leis da vida terrena dos homens, questões postas em 1843 por Marx e discutidas
por Chasin em seus cursos de política.
“A partir desse curso, levei muito tempo metabolizando todas as idéias con-
tidas ali, até me decidir a estudar mais seriamente as questões propostas, período
em que ainda não conhecia a trajetória de Chasin e muitos de seus textos. Ainda fiz
uma parte de seu curso de ontologia, embora a segunda descoberta de sua reflexão,
infelizmente, só tenha se dado depois de sua morte. A partir daí, do ponto de vista
intelectual, duas coisas me chamam mais a atenção: a reposição de Marx no curso
da tradição filosófica, com continuidades e, sobretudo, com uma nítida ruptura, de
caráter ontológico, algo que torna esses cursos de ontologia um contraponto autên-
tico a toda a reflexão sobre a história da Filosofia. Em segundo lugar, e é o que até
hoje me acompanha com maior detalhe, a necessidade urgente de pensar o Brasil e,
também, aqueles que pensaram o Brasil. Descobrir os textos que Chasin produziu
sobre a “miséria brasileira”, em seus múltiplos aspectos, sempre com uma perspec-
tiva filosófica de fundo, é uma retomada de uma longa tradição brasileira e, no caso
da perspectiva de esquerda, única nos últimos 30 anos.
“Do ponto de vista pessoal, acho que o encontro com Chasin, sua luta e sua
obra, foi profundamente transformador. Para dizer o mínimo, Chasin convidou seus
alunos e leitores a estudar Marx, autor mais completo do ponto de vista da posição
de crítica e superação do capitalismo, e isso transformou minha visão filosófica.
Essa análise, também, não se fazia apenas num nível teórico e abstrato, mas Chasin
sempre remeteu sua visão à quotidianidade, propôs um modo de ver a vida de forma
profunda, quase uma filosofia de vida. Lembro-me de suas últimas palavras em sala
de aula, naquela conversinha de fim de ano, antes do recesso. Perguntado se a nova
editora [Estudos e Edições Ad Hominem] iria sair mesmo, disse, meio irônico, que
a editora, na verdade, já existia; com os olhos sorridentes, cigarro na boca, ergueu
os braços e disse enfático: ‘Produção!’ – nada mais marxiano. A teoria marxiana
aplicada na vida quotidiana, produzir sejam quais forem as condições, mantendo o

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

‘otimismo ponderado’, mesmo diante do futuro ausente.”


FREDERICO ALMEIDA ROCHA:
“Monsieur, le créateur, à vous permis; cha-
cun est le maître dans son monde; mais vous
ne me ferez jamais croire que celui où nous
sommes soit de verre (...)”.
Voltaire

“Durante o curso de graduação na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas


da UFMG, de 1995 a 1998, o que sempre me pareceu mais incompreensível e ab-
surdo nas preleções de Filosofia era assistir à montagem de discursos que, embora
muito bem elaborados e sofisticados, nenhuma pretensão ou preocupação ontológi-
ca genuína possuíam.
“Naturalmente, ao mencionar o caráter ontológico dos discursos, indo ao ponto
central, nem sequer se leva em consideração o âmbito das pseudo-produções e das
atuações pseudo-intelectuais.
“A forma e o conteúdo predominantes nas aulas, em sua maioria esmagadora,
ficavam muito aquém do que se espera naturalmente da Filosofia: apreensão do real,
tal como ele efetivamente é, e sua elaboração cognitiva. Crítica efetiva do real e do
ideal. Todo discurso, ainda que não tenha a pretensão, está carregado de concepções
e categorias concernentes ao meio efetivo de onde brotam (não de forma mecânica,
é claro). Portanto, o mais jocoso era atentar-se às entrelinhas dos discursos, isto é,
aos seus pressupostos, compromissos e conseqüências ontológicos. Aí é que deveria
estar o substancial. E é aí, inegavelmente, que o alarido filosófico se revelava gene-
ricamente assombroso e atordoador, pois o que era para vir em primeiro plano, ao
ficar subentendido (era casual?), tornava as excentricidades ainda mais grotescas.
Certas postulações ontológicas chegavam a um tal nível de irracionalidade que em
nada rebaixariam quem já nos quis fazer ‘acreditar que este [mundo] em que estamos
[é] de vidro2’.
“Durante toda a graduação, prevaleceu o discurso especulativo, quando não
abertamente relativista e diletante – era de tal forma o tom predominante nos deba-
tes formais e informais, nos corredores e salas de aula, que por vezes se dava a im-
pressão de que realmente não havia outro modo de se colocar a questão da finalidade
e natureza da Filosofia, senão pelas vias do diletantismo e do discurso falsificador.
O que acabava contribuindo ainda mais para a visão adversária às luzes filosóficas,
pois, a cada debate diletante, a cada colocação especulativa, a cada repelão do senso
2. Voltaire. O Homem dos Quarenta Escudos (1768). Capítulo VI.

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Ronaldo Vielmi Fortes

comum, a cada postulação do pluralismo irresponsável, a Filosofia confirmava sua


inutilidade histórica, capaz de abrigar todo tipo de espírito aventureiro e imaturo,
incompetente e desavergonhado e incapaz de enxergar o óbvio. As exceções, e havia
algumas, não chegavam a romper o caudal dessa romaria de pós-modernos aprego-
adores de disparates, pois sua predominância no meio e sua proliferação são mais o
efeito das estruturas de certa quadra histórica, que criam sua demanda, do que pro-
priamente o resultado de debilidades estritamente individuais, já que inclusive estas
são o produto perfeitamente concebível de certas quadras históricas tão adversas
quanto a nossa. Como a pândega acadêmica em alguns casos era lavada a sério pelos
que a praticavam, e outras vezes era realizada por pura leviandade ou superficialida-
de, era comum a manifestação de discursos bem intencionados e sofisticados nos
primeiros, adornados de admiráveis argumentações, mas inócuos e maçantes. No
segundo caso, a miséria espiritual já possuía contornos trágico-cômicos.
“Numa esfera à parte, deve-se ressaltar que alguns professores, competentes e
sérios, de irrepreensível erudição, seguiam ministrando seus cursos (importantes,
sim) no formato tradicional de leitura imanente dos textos, com extremo rigor e
profundidade, mas sem se atinar às dimensões extra-acadêmicas do exercício filo-
sófico. Excelentes profissionais da Filosofia, mas sem qualquer pretensão de que os
estudos filosóficos transcendessem o âmbito da pura história das idéias. A história
do pensamento filosófico é necessária e grandiosa, mas como fim em si mesma
perde o seu sentido.
“Como até o sétimo período da graduação o discurso era invariavelmente o
mesmo, dentro ou fora de sala de aula, isso criava certa atmosfera de déjà-vu. Já se
sabia como eram manipuladas as categorias, quais truques lógicos ou retóricos usar
para obter o efeito pretendido, sempre em função do próprio exercício argumenta-
tivo como fim em si mesmo, para exclusivo gozo dos próprios expositores e ouvin-
tes, ainda que gerando incalculáveis deformidades ontológicas. As querelas sobre
os fundamentos destes discursos, mesmo quando postas sob a insígnia ontológica,
continuavam pairando nas incertezas de plataformas puramente teoréticas, pois era
discurso pretendendo validar discurso. Teoria fundamentando teoria. Como é evi-
dente a arbitrariedade na escolha de qual seria a idéia fundante, a sensação de que
qualquer discurso tinha validez era inevitável. E assim o era. O importante é quem
conseguia gritar mais alto.
“As conseqüências são por si mesmas evidentes: pluralismo diletante, ecletismo,
baixo nível teórico, vontades caprichosas por conta do casualismo teórico das fun-
damentações, incapacidade crítica, despautérios ontológicos etc.
“Ao assistir pela primeira vez às aulas de Chasin na disciplina Filosofia no Brasil,

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

sétimo período, sem ter ouvido qualquer comentário anterior a seu respeito, duas
coisas me surpreenderam imediatamente. Duas qualidades de caráter, na verdade,
foram as mais imediatas: o caráter enérgico e resoluto da argumentação, bem como
a paixão crítica e/ou crítica apaixonada nos temas explanados, pois eles brotavam
diretamente da vida real, vivida, para a exposição oral e retornavam para os conflitos
da vida real, procurando suas origens, fundamentos, resoluções, de forma universal,
clara, lúcida, radical, profunda. Isso ao mesmo tempo feito com séria e respeitosa
desmontagem crítica dos discursos descompromissados com a urgente questão do
fundamento objetivo das idéias.
“Mas, evidentemente, tais qualidades morais, embora tivessem, no caso do pro-
fessor, relação explícita e direta com seu caráter, suas idéias e seus projetos, é algo
que por si só não fariam dele o grande mestre que foi. Ele trazia uma novidade an-
siosamente aguardada por todos que estavam desejosos de ver o coreto da ‘querela
dos fundamentos’ abalado, no bom sentido.
“Ao apresentar, na introdução da disciplina Filosofia no Brasil, as conquistas
filosóficas da equação ‘pré-teorética’ para o problema das fundamentações, assimi-
lada e amadurecida mediante as leituras da obra de Marx, recoloca corajosamente
em discussão algo que estava fora de moda no gosto filosófico atual: a necessidade
de um fundamento irremovível, não arbitrário, para a Filosofia e demais produções
humanas. E isso, dizia ele, encontramos no próprio Marx. Os textos realmente não
o negam. O que gerava espanto e desconfiança. A própria razão, lúcida, não pode
negar tal fundamento, a menos que pague ônus da prova, afirmava Chasin, que nada
mais é que seu próprio esvaziamento ontológico, ou seja, sua própria extinção (para
não falar em sua gênese, o que já descartaria o próprio surgimento da querela espe-
culativa, seu ponto de partida).
“Além de a questão parecer totalmente ‘fora de moda’, arrancando, em sala de
aula, risos nervosos entre os pragmatistas, kantianos, hermeneutas etc., reações in-
flamadas de todos os lados, havia também o enfrentamento com as outras Filosofias
que colocam um fundamento teorético. Neste caso, reações vinham dos defensores
da metafísica, do empirismo, do racionalismo, do hegelianismo etc.
“Nas filosofias para as quais o fundamento é uma questão da velha metafísica, já
morta desde Kant, a questão é mostrar, depois de Kant (sobretudo no século XX),
que já não é necessário nem possível levantar qualquer fundamento. Portanto, elas
descartam a própria questão do fundamento como algo relevante e realizável. Essas
filosofias, no fundo, acabam por colocar tudo e nada como fundamento, embora não
o confessem de forma alguma. Nas outras, os fundamentos são postulações teóricas
de natureza epistêmica ou ontológica, mas ambas elaboradas na forma de uma teoria
arrimando a teoria.

Edi ç ão Esp e c i al : J. Cha si n

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Ronaldo Vielmi Fortes

“Quanto às epistêmicas, é por demais evidente sua inteira incapacidade para so-
lucionar a querela, dizia Chasin. Pois seu ponto de partida é a subjetividade, a lógica
do sujeito, antes mesmo de apreender a lógica do objeto. No caso das fundamenta-
ções ontológicas, aparece também a questão do pré-teorético, sobretudo nas tentati-
vas de Heidegger e Ricoeur, que Chasin menciona e critica no curso de Filosofia no
Brasil, pois ambos trazem uma concepção abstrata do pré-teorético.
Sobre um pouco da crítica direcionada, de forma sucinta e didática em sala de
aula, a Heidegger, afirma Chasin:
Ontologia Fenomenológica de Heidegger. Ponto de partida: A vida vivida ou pré-
teorético. Experiência vivida: Experiência existencial. Essa experiência parece ser
um universal sem maiores problemas. Noção de experiência que engloba as ex-
periências. Um pensar sobre si mesmo no mundo. Aleatoriedade: Qualquer coisa
cabe nisso. É uma experiência do indivíduo isolado que experimenta o mundo.
Derrelição: É o indivíduo isolado que experimenta o mundo (abstrai-se da socia-
bilidade). Existencialismo: Indivíduo jogado no mundo, condenado à liberdade.
O homem jogado no mundo e que tem que viver: Condição humana. Uma vez
posto no mundo, o homem está condenado a ser livre.

É uma concepção da vida vivida, como ela transcorre, não é uma analítica do
cotidiano. É uma esfera, uma concepção abstrata do pré-teorético. Há um reconhe-
cimento de uma cotidianidade fundante e o existencialismo aniquila isso. O homem é
um nada, é um vazio na sua liberdade. O existencialismo não é uma analítica da
cotidianidade. Campo puramente abstrato. Fundamento da teoria existencialista:
O indivíduo isolado, sua condição é a do homem sofrendo a liberdade.

Chasin: A experiência compreende muito mais que a subjetividade (essa subjetivi-


dade impactada). Experiência subentende ‘lugar’, os ‘outros’, as ações praticadas
etc.

Aquele pré-teorético abstrato já envolve uma concepção teórica: a noção de in-


divíduo fechado em si e jogado no mundo é pressuposto do existencialismo. O
existencialismo é uma tentativa ontológica reducionista: todos os entes são entes
de uma individualidade só: O homem. É uma aparência de remetimento à universa-
lidade das coisas. É uma dissolução da ontologia, e não sua afirmação. Heidegger
se situa no plano do sentido do ser. Sartre também é uma ausência de objetividade
ontológica. O homem como ser do qual tudo o mais depende é uma negação
radical de toda a ontologia. (Anotações de aula, 27 de março de 1998)
“Claro que, para além do esquematismo e informalidade das anotações de aula
acima, que não reproduz a riqueza do discurso falado, é incisiva e direta a crítica. O
fundamento pré-teorético de que fala Chasin, que na verdade retira-o de Marx, é
também chamado por ele de fundamento onto-prático. O fundamento de natureza
teórica revela sua relatividade, ou seja, é uma dada forma de conceber o caminho do
saber (não as determinações do ser) nas várias formas particulares de empreendê-

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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin

lo. Escolher entre um e outro fundamento é arbitrário. Todo fundamento teórico


é questionável: é nada mais que uma escolha entre várias. Ele é uma contingência
teórica. Não há nenhum fundamento teórico inquestionável. E, no entanto, era isso
que ele pretendia ser. Se absolutizarmos o caminho trilhado, chegamos à supressão
de todo ponto de orientação. Essa absolutização leva à negação do conhecimento.
O caminho é romper com o fundamento teórico como fundamento válido e colocar
outro no lugar. O fundamento não está na teoria, mas na prática: fundamento onto-
prático. Ele parte da experiência real, de um todo vivido, do que é necessariamente
vivido. Analítica da vida cotidiana, analítica da cotidianidade. Vale a pena mencionar
toda a passagem de anotação de sala de aula em que Chasin apresenta argumentação
para caracterizar o onto-prático e como este fundamento da Filosofia marxiana é
inquestionável e original na história da Filosofia:
Antes de qualquer reflexo interior, eu já vivo em contato com as coisas no mundo:
isso é um reconhecimento, uma constatação.

Eu constato na imediaticidade do meu viver que ele é uma infinitude de relações,


de contatos (isso é irrecusável por qualquer tipo de teoria, porque eu não estou
explicando essas relações, eu estou constatando que elas estão aí). Eu não preciso
de uma teoria para dizer isso: eu faço isso no dia a dia, na imediaticidade direta.
Ao sair de um prédio, eu escolho a porta e não a janela. Eu estou reconhecendo
formas de existência objetivas.

Quando eu tomo um objeto, eu reconheço que ele é uma coisa externa a mim e
que eu uso para meu benefício. Acertar ou errar — distanciamento adequado dos
objetos — não é o que orienta a prática, de imediato. O ato prático se dá antes
do critério de verdadeiro ou falso, a aproximação vivida com a coisa é anterior.
A prática se põe não a partir de um fundamento pautado na verdade. Essa noção
é dos gregos, da Filosofia grega. A prática se põe como atendimento a algo que
é mais vital que a verdade e ela se dá sempre, mesmo quando não se tem certeza
da veracidade ou não do evento em questão. Falsidade e veracidade não impedem
a prática, ela é indiferente a elas. Há algo que eu tenho que fazer se não eu não
subsisto, se eu não fizer eu pereço: a prática é guiada pela necessidade: seu critério
é a necessidade, não o verdadeiro ou o falso. A ação humana se dirige a fins. Di-
mensão fundante da ação humana. A ação visa a atender as carências objetuais do
ser humano. Universo da vida vivida, da vida real: a vida cotidiana em que todos
nós vivemos: artistas ou não, filósofos ou não, cientistas ou não. Não saímos dela
nunca. É um engodo pensar o contrário, eu me fechar na minha vida individual,
no meu recolhimento subjetivo.

Subjetividade não é ser, é predicado de um ser objetivo e que para viver tem de
atender a exigências objetivas. A subjetividade não é substância, nesse sentido ela
não é objetiva, ou melhor, não como as coisas sensíveis o são. A consciência é
consciência de um ser objetivo: essa é sua condição de possibilidade. Ela não é
uma coisa em si e por si, consciência é consciência da objetividade. Na imediatici-
dade do cotidiano, a subjetividade conscientiza que eu tenho fome e meu objetivo

Edi ç ão Esp e c i al : J. Cha si n

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Ronaldo Vielmi Fortes

é buscar alimento. A prática é um complexo de ações sensíveis cujo momento


fundamental é o atendimento de carências. Como ser objetivo, o homem tem
carências. Essa é a vida efetiva, inescapável que se repete todas as horas do dia.
Tudo o mais na vida deriva desse complexo da realidade da vida cotidiana, tudo se
desdobra acima dele. A vida fundante para tudo é a vida cotidiana. O onto-prático
é a constatação das experiências fundamentais. Há algo que liga todos os homens:
para poder estar em condições de negar ou afirmar é preciso antes de tudo de
‘estar vivo’. Há uma condição objetiva, objetos fora de mim, independentes.

Os objetos de que eu preciso não existem na natureza, não estão dados na nature-
za, eu tenho de produzi-los, de modo que a produção é o meio de subsistência hu-
mano. Isso é irremovível, inquestionável. Sem isso todo o resto se torna impossí-
vel. Eu não posso abstrair dos meios, eles são um pressuposto objetivo. Isso tudo
é o resultado de uma simples análise do cotidiano. Não há nenhuma teoria nisso,
eu simplesmente li no mundo. A filosofia dos últimos 50 anos tem sido uma corrupção da
Filosofia. Aquele resultado da analítica da cotidianidade é uma abstração razoável:
é aquele tipo de abstração mantenedora da efetividade, é o reconhecer do nervo
fundamental sem o qual todo o resto é impossível. Essa constatação envolve uma
operação mental (abstração razoável). Levou-se cerca de 2.500 anos, desde o nas-
cimento da Filosofia, para ser descoberta e, ao mesmo tempo, é tão simples. Só
com Marx isso se efetivou. Se os meios de subsistência são irremovíveis, eu posso
extrair dessa colocação que se o homem produz seus meios de subsistência, ele
produz a si mesmo, não como a metafísica faz, que parte de uma certeza abstrata.
Nossa certeza é sensível. (Anotações de aula, 27 de março de 1998).’”

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