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Verinotio.org
educação e ciências humanas
Ano I, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
w w w.v e r n o t i o . o r g
Verinotio
Coordenação Editorial
Ester Vaisman
Editores
Antônio José Lopes Alves, Vania Noeli Ferreira de Assunção, Antonio Rago Filho, Ester Vaisman, Lúcia Apareci-
da Valadares Sartório, Leonardo Gomes de Deus e Ronaldo Vielmi Fortes.
Revisores
Vânia Noeli Ferreira de Assunção, Leonardo Gomes de Deus, Leandro Candido de Souza, Marcos André Ferreira de Assunção e
Sandro Assencio.
Tradutores
Ronaldo Vielmi Fortes, Olga Marques Chorro, Leonardo Gomes de Deus
Editoração Eletrônica
Rodrigo Pereira Chagas
SUMÁRIO
EDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Ester Vaisman
ARTIGOS
MÚSICA E MÍMESES: UMA APROXIMAÇÃO CATEGORIAL
E HISTÓRICA AO PENSAMENTO MUSICAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Music and Mimesis: a categorial and historical approach to the musical thought
Ibaney Chasin
GRAMSCI SU VICO:
LA FILOSOFIA COME UNA FORMA DELLA POLITICA . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Marco Vanzulli
J. CHASIN: A ONTONEGATIVIDADE
DA POLITICIDADE EM MARX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Ediç ã o Es pe c ia l: J. Cha si n
5
PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO E A FORMA
EXPOSITIVA EM MARX – DUAS LEITURAS: LUKÁCS/CHASIN . . . . . . . . . . 45
Investigation procedures and explanation in Marx –Two readings: Lukács/Chasin
Ronaldo Vielmi Fortes
A FILOSOFIA DE JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI:
MARXISMO ADSTRINGIDO E ANALÍTICA PAULISTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
José Arthur Giannotti’s thinking adstringed marxism and the “uspian analytics”
Antonio Rago Filho
A CRÍTICA CHASINIANA À ANALÍTICA PAULISTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Chasin´s critique to the Sao Paulo School of Sociology
Vânia Noeli Ferreira de Assunção e Lúcia Ap. Valadares Sartório
J. CHASIN E A REALIDADE BRASILEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
J. Chasin and the Brasilian reality
Milney Chasin
J. CHASIN E A TESE DA “VIA COLONIAL” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Chasin and the thesis of “colonial path”
Sabina Maura Silva e Antônio José Lopes Alves
J. CHASIN: A CRÍTICA ONTOLÓGICA DO ANTICAPITALISMO
ROMÂNTICO TÍPICO DA "VIA COLONIAL". OS INTEGRALISMOS. . . . . . 45
J. Chasin: the ontological critique to the romantic anti-capitalism typical of the
“colonial via”. The integralisms.
Antonio Rago Filho
ENTREVISTA
DEZ ANOS SEM J. CHASIN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Entrevista concedida por Ester Vaisman e Antonio Rago Filhoa Vânia Noeli
F. Assunção e Lúcia Ap. Valadares Sartório
6
TRADUÇÕES
SPIEGEL: ENTREVISTA AO FILÓSOFO LUKÁCS
Introdução (O futuro é possível: o testemunho final de Georg Lukács) . . . . . . . . . . . . 19
Tradução e Introdução de Rainer Patriota
RESENHAS
GEORG LUKÁCS: ETAPAS DE SEU PENSAMENTO ESTÉTICO . . . . . . . . . 375
de Nicolas Tertulian
Lúcia Ap. Valadares Sartório
DEPOIMENTOS
Ediç ã o Es pe c ia l: J. Cha si n
7
revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
Editorial
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Este r Vaisman
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Editorial
Ester Vaisman
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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
Música e Mímesis
Uma Aproximação Categorial e Histórica
ao Pensamento Musical
Ibaney Chasin*1
Resumo:
Este texto entende identificar como a música foi filosoficamente entendida e determinada
ao longo da história. Partindo-se de Aristóteles, num caminho que desemboca em Lukács,
constata-se que, em absoluta dominância, todo o pensamento a reconheceu como míme-
sis – mímesis dos afetos. Música não é linguagem, mas vida anímica exteriorizada, alma
humana sensificada.
Palavras-chave:
Música; Mímesis; Afetos; Aristóteles, Mei, Doni, Rousseau, Hegel, Lukács.
13
Ibane y Chasin
A meu pai,
14
Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical
Este texto, breve, tem por télos marcar um reconhecimento teoricamente estru-
tural, a saber: a música, no curso da história, foi dominantemente compreendida e determinada
como esfera mimética. Música, afirmou categoricamente o pensamento filosófico, é mí-
mesis dos sentimentos, das paixões humanas. Efetivamente, o som musical carrega
em si a alma humana, ou mais rigorosamente, sensifica o sentir, de modo que a arte dos
sons, se esfera estética consubstanciada, não se atualiza ou pode se atualizar como
mera sonoridade, como som in sonu: se objetivação ôntica, é via das paixões, paixões
que pelos sons irrompem, se concretam, sensificam, se fazem arte, música.
No intento de substantificar, grosso modo, tal reconhecimento – sem o talante
desmedido de ir além de uma afiguração em silhueta –, tomamos a pena aristotélica,
que, ponto de partida, é, ato contínuo, conectada à letra de Girolamo Mei e Gio-
vanni Batista Doni; letras, a sua vez, que se ata às de Rousseau, Hegel e Lukács. As-
sim, de um arco teorético – categorial e historicamente – representativo, ou que de
Aristóteles desliza para Lukács – arco, histórico, entecido no interior de letra filosófi-
ca de substância induvidosa –, escava-se que o pensamento orientado à música assi-
nalou, sempre, sua ingênita dimensão mimética, posta e resposta no curso da reflexão
musical como categoria fundante desta arte. Assinalação que, reconhecimento categorial,
não pode então ser teoricamente descuidada: se de música se trata, de vida anímica
se trata. Vejamos, na brevidade que se impõe; logo, numa argumentação que mais
esboça do que funda, que antes pontualiza do que desdobra, necessariamente.
1. Aristóteles Mimético
15
Ibane y Chasin
À poesia parece dever sua origem, em geral, a duas causas, ambas naturais. O imi-
tar é conatural ao homem, e nele se manifesta desde sua infância – o homem se
diferencia precisamente dos outros animais pois é muito mais apto para a imitação
e é por seu intermédio que adquire seus primeiros conhecimentos; em segundo
lugar, todos os homens se comprazem no imitado.’ [Poetica, 4, 1448 a/1448 b.].
Logo,
‘Sendo o instinto de imitação próprio à nossa natureza, da mesma forma como a
harmonia e o ritmo, pois é evidente que os metros não são mais que partes do rit-
mo, os que ao princípio estavam mais dotados para tais coisas – firma Aristóteles
– pouco a pouco deram origem, através de suas improvisações, à poesia.’ [Ibid]”.1
Radicado este suposto determinativo ontológico – a mímesis arma e sustenta
vida cotidiana e arte, funda e alenta a atividade humana e o fazer artístico2 –, a cate-
goria da imitação teria de surgir, como de fato ocorre, enquanto ser e fazer fundantes
da esfera musical. Se o homem aprende in imitatione, se ele se forja in communitate, se o
indivíduo se engendra a si no e pelo gênero – se a “vida individual e a vida genérica
do homem não são diversas, por mais que também – e isto necessariamente – o modo
de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais universal da vida
genérica”3 –, a música, em Aristóteles, não poderia não irromper como mímesis,
como ato nascido da relação entre o artista e a vida humana, que o alenta de si. Na
Política assim considera, em reconhecimento categorial:
Nos ritmos e melodias, sobretudo, estão as mimeses mais próximas da natureza
real da cólera, da doçura, e também da coragem e da temperança, e de todos os
seus contrários, e de outras qualidades morais. Isto os fatos mostram claramente:
ao ouvir tais mimeses, a alma muda de estado. E o hábito de se sentir dor ou
alegria por tais similitudes está muito próximo daquilo que se sente em face da
realidade.4
1. Ibaney Chasin, O Canto dos Afetos, São Paulo, Perspectiva, 2004, p. 51.
2. Na palavra aristotélica, que concreta a determinação: “A epopéia e o poema trágico, assim como a comédia,
a poesia ditirâmbica e grande parte da música de flauta e de cítara são, de um modo geral, imitações/.../ Pois,
assim como uns – seja pela arte, seja pelo hábito ou costume – imitam muitas coisas por meio das cores e do
desenho, cujas imagens nos reproduzem, e outros imitam por meio da voz, igualmente ocorre com as artes
mencionadas: todas realizam sua imitação por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia [música], combi-
nados ou não entre si.” [Poetica, I, 1447 a, tradução de Francisco Samaranch, in Obras, 2.ed. Madrid, Aguilar,
1973, p. 77.].
3. Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos, tradução Jesus Ranieri, São Paulo, Boitempo, 2004,
p. 107.
4. Aristotes, Politique, VIII, 5, 1340 a, tradução de Jean Aubonnet, Les Belles Lettres, Paris, 1989.
16
Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical
Ou ainda,
as peças de música, pelo contrário, contém atualmente em si mesmas imitações de ca-
racteres, e isto é evidente, pois que na própria natureza das simples melodias há
diferenças [recíprocas], de modo que ao ouvi-las as pessoas sentem-se afetadas
de diferentes maneiras, e não têm os mesmos sentimentos em relação a cada
uma delas; escutam, umas, com um espírito lamurioso e mais retraído, como,
por exemplo, o modo chamado mixolídio; outras, num estado suave e brando da
mente, como são as melodias livres; outras num estado de equilíbrio e da maior
serenidade, como parece que, entre todas, alcançam somente as do modo dórico;
enquanto que o modo frígio infunde entusiasmo aos homens. Estas coisas, com
efeito, foram bem determinadas pelos que estudaram esta forma de educação, já
que eles extraíram a evidência de suas teorias dos fatos atuais da experiência.5
Aristóteles é translúcido e categórico: música é um ato mimético; mais especifi-
camente, é expressão da vida afetiva, é interioridade que se exterioriza, subjetividade
que sente, mímesis do anímico. Ritmos e melodias – afloração do interno – sensifi-
cam sentimentos, o que se experiencia e comprova praticamente: “ao ouvir tais mime-
ses, a alma muda de estado” – acompanha e reproduz animicamente o mélos que ouve, que
sente. Em termos que desdobram, modo (musical) e sentimento se atam intrinsecamen-
te: aquele é via deste, de sua objetivação. Ao argumentar sobre o canto na tragédia
antiga, Doni toma e cita o filósofo grego, com o que entremostra tanto a orgânica
da música grega, quanto o jaez – mimético – da reflexão musical aristotélica; assim
elabora, extensamente:
Sabe-se que o ofício dos coristas era muito diverso dos histriões ou atores cênicos.
E ao se mostrar que havia diferença entre a melodia daqueles e destes, acredito
que facilmente se concluirá que não apenas os coristas cantavam, mas também os
atores. Aristóteles, na seção das questões musicais propõe, entre outros, este Pro-
blema: porque os coros da tragédia não cantam no modo hipodórico ou hipofrígio;
e então responde [numa passagem que Doni cita no original grego e traduz na
seqüência]: “Talvez porque estas duas harmonias, ou modos, não possuam uma
melodia flébil, calma, patética, tão necessárias ao coro. Pois a hipofrígia possui
um caráter ou maneira ativa, e por isso em Gerione a abertura e o desarmamento
foram nela modulados. Mas a hipodórica tem o caráter magnífico, constante, por
isso, entre todas as harmonias, é a mais adequada à música dos citaredos, isto é,
às cantilenas acompanhadas pela cítara e lira. Música que por suas qualidades é
desproporcional ao coro, logo, conveniente aos atores cênicos, que representam
os heróis, viventes só entre os antigos e príncipes. Isto é, o povo é constituído de
homens comuns, pelos quais é composto o coro. Assim, a este convém um caráter
e canto flébil e brando, características propriamente humanas, e que se encontram
em outras harmonias, com exceção da hipofrígia, furiosa e báquica. Mas principal-
mente a mixolídia possui aquelas propriedades [humanas], e por ela se exprimem
os afetos passivos, sendo as pessoas débeis mais sofridas do que as fortes. Então,
5. Aristoteles, Politica, VIII, 5, 1340 b, in Obras, op. cit. (Grifo nosso).
17
Ibane y Chasin
esta convém aos coros, dado que a hipofrígia e hipodórica exprimem um caráter
ativo, impróprio ao coro, que é um curador ocioso, pois não oferece outro obsé-
quio a quem lhe assiste do que a simples benevolência.6
A letra do Trattato se urde em diafaneidade: a modalidade, pontualiza
Doni-Aristóteles, são modos humanos de sentir – vale dizer, o modo grego é, in essentia,
um modus afetivo. Então, amantar o coro com uma intemperada – dramática – har-
monia hipofrígia, coro este que é constituído por “homens comuns”, cuja natureza,
não heróica, não báquica, é, antes, comedida – não terminante, mas tendencialmente
prudente, não vocalmente aguda, mas complacente, talhada verossimelmente em
medianidade –, implicaria em impropriedade musical, rigorosamente porque generan-
te de uma impropriedade anímica. Posto distintamente, o mixolídio, sustenta o Trattato,
por suas propriedades humano-sonoras intrínsecas é mais próximo ao ânimo do coro, o que
significa, categorialmente, que um modo musical é ou expressa um pulso anímico espe-
cífico, que diz respeito e se ata à vida interior, aos batimentos do espírito. Lógica ou
ser-assim dos modos que lhes projeta artisticamente para muito além da sonoridade
enquanto sonoridade, do som enquanto entidade físico-acústica, enquanto abstrata
beleza sonora: o som modal é expressão, atualização – concretamente, é esfera afeti-
va, mímesis, música. Na palavra que arremata, pois mais aqui não se pode: na pena
aristotélica, a esfera musical é mímesis da alma, vale dizer, alma que sente, e isto na
ôntica medida em que nos ritmos e melodias, sobretudo, estão as mimeses mais próximas da
natureza real das paixões. Disto Aristóteles não tinha dúvidas, porque os fatos isto nos
mostra efetivamente, pois objetivamente.
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Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical
Ao estudar a música grega, Mei, filósofo e filólogo – para quem a “Poética [aris-
totélica] se constituiu no fundamento de sua estética musical”7 –, elabora uma re-
flexão sobre a música de talhe ôntico.8 Referido mais concretamente, ao tomar em
exame a música dos antigos, ou melhor, e não poderia ser diverso, a teoria musical
concernente – seu objeto musical por excelência,9 Mei – bem como Doni, igual e
posteriormente –, enforma um ideário cuja universalidade deve ser aqui sublinhada-
mente radicada. Por seus estudos, longos e exaustivos, Mei tange e evidencia cate-
gorias acrônicas da música, porquanto alcança e reconhece atributos fundantes do
ser-precisamente-assim musical. Atributos que, gregos, são analogamente renascentistas
ou contemporâneos. Tomemos a questão, in brevi manu.
7. Claude Palisca, Girolamo Mei (1519-1594): Letters on Ancient and Modern Music to Vincenzo Galilei and Gio-
vanni Bardi. 2.ed. rev, [s.l.], American Institute of Musicology, 1977, p.35.
8. Ainda da palavra de Palisca, quatro pontuações sobre este florentino, esclarecedoras e relevantes: “Mei pre-
tendia reconstituir toda a substância da teoria [musical] grega a partir da estrutura da prática antiga. Esta teoria
era para ele a matéria-prima da história, e não, como para muitos de seus predecessores, uma doutrina universal
a ser ditada para os músicos de todas as épocas.” [Palisca, op. cit., p. 35.]; e ainda, “/.../com o trabalho de Mei
encontramos pela primeira vez uma pesquisa histórica pura no campo da música. Não só por sua objetividade,
mas ainda por seu alcance exaustivo, a investigação de Mei sobre a música grega supera toda e qualquer tenta-
tiva anterior neste campo.” [Ibid.]; Nesse sentido, “O centro da música grega, mais do que as racionalizações
para uma prática moderna, era o objeto das investigações de Mei. Ele começou por reconstruir desapaixona-
damente a história da música grega. E somente buscou constituir uma moral para seu próprio tempo quando
se fez seguro de que possuía um corpo de verdades constatáveis. Ele não era um músico e não compartia
dos prejuízos dos teóricos musicais de sua época, o que provavelmente foi uma de suas maiores vantagens,
pois o salvou de cair nos erros de seus contemporâneos. Mas Mei tinha uma vantagem ainda maior: era o
único filólogo e historiador treinado dentre os que buscavam os segredos da música grega.” [Ibid, p. 2]. Em
suma, “Como filólogo e acadêmico participara, em Florença, de muitos dos mais significativos trabalhos dos
humanistas tardios - perspicazes críticas textuais, estudos sobre prosódia grega e latina, a edição dos textos de
Aristóteles, pesquisas sobre a história local e política, e a preparação das edições definitivas das peças gregas.
Dessa experiência Mei extraiu para o pensamento musical um complexo de atitudes completamente novo.”
[Ibid, p. 80.]. Sobre vida e obra de Mei, Doni e Galilei, cf. O Canto dos Afetos, op. cit.
9. Da música grega, nada restou, efetivamente. Significa que o estudo desta arte circunscrevia-se, e se circuns-
creve, ao campo teorético, incontornavelmente. Na palavra que conjectura: quanto aos gregos, “vários indícios
induzem a pensar que até o século IV a.C. não estava posta a exigência de se escrever a música: o caráter
substancialmente repetitivo da melodia, que mesmo nas possíveis variações se adequava a figuras melódicas
tradicionais, e o ensino “aural” do canto e da prática instrumental /.../ Um outro argumento ex silentio pode
confirmar a hipótese de que a música grega arcaica e clássica nunca tenha sido escrita: a tradição manuscrita
dos poetas gregos, que remonta em grande parte às edições dos gramáticos alexandrinos, não conservou
nenhum texto com notação musical. Se na época helenística os editores tivessem tido a possibilidade de trans-
crever, ao lado dos textos literários, também as relativas linhas melódicas, certamente não teriam transcurado
este elemento essencial da poesia.” (Giovanni Comotti, La musica nella cultura greca e romana, Torino, Edizioni
di Torino, 1991, p. 9.).
19
Ibane y Chasin
1.
De uma carta de 1572, de Mei a Vincenzo Galilei, extrai-se a seguinte assertiva,
que, teoricamente estrutural, surge logo ao início:
Tive a convicção que todo o coro cantasse uma mesma ária [melodia] ao notar que
a música dos antigos era tomada como valoroso meio de comover os afetos, o que se
encontra em muitas observações narradas pelos escritores [da antiguidade].10
Mais à frente, em proposição roborante, de nítido jaez aristotélico, considerava
ao destinatário, analogamente: o objetivo da música grega era “conduzir outrem,
através deste prazer auditivo, à mesma afeição que guarda em si.”11 Posto de chofre, para
Mei, a música dos gregos é mímesis dos afetos: o canto, a melodia, nada mais fazem
do que manifestar a interioridade. E assim a música opera porque a comoção que me
invade, movendo-me afetivamente, é posta por uma invasão melódica, que mudando o
sentir d’alma é, pois, seu revérbero, sua objetivação anímica in sonu. Ao refletir sobre
a modalidade grega, Mei atualiza o reconhecimento de Aristóteles de que a sonori-
dade modal é um modus anímico, de que é expressão das paixões, do universo afetivo,
universo que o mélos, por sua agudez, gravidade e mediania, manifesta, exterioriza, con-
creta; a Galilei refere, in mímesis:
É coisa igualmente sabida que, dos tons [= modos], os da mediania - que estão
entre a extrema agudez e a extrema gravidade - são aptos a demonstrar calma e
moderada disposição de afeto; os muito agudos são de alma muito comovida e
exaltada, e os muito graves expressam pensamentos tanto abjetos quanto íntimos.
Da mesma forma que um número mediano entre a velocidade e a lentidão revela
ânimo pousado, e a velocidade, concitado; a tardança, espírito lento e mandrião.
E é claro que, em conjunto, todas essas qualidades da harmonia [= sonoridade
melódica] e do número hão de mover [na alma de outrem], por suas naturais fa-
culdades, aquelas afeições semelhantes a si próprias.12
A segunda carta de Mei a Galilei, conquanto tematicamente menos filosófica,
confirma os assertos mimético-catárticos da primeira. Consentâneo, assim, tomar-
lhe um momento, que, sucinto e claro, ata música e imitação, tomadia pela qual se
desdobra e avigora a sustentação teorética da natureza mimética do pensamento
musical meiano. Na carta de 1577 – que com a de 1572 e mais outras três compõe
o conjunto de epístolas com o qual o filósofo florentino responde às questões que
lhe foram postas por Vincenzo sobre a lógica da música grega, epistolário musical
que enforma determinações teórico-musicais categorialmente fundantes, assinale-se
–, lê Galilei a determinado passo, assertivo: “a virtude da música [grega] consistia
em fazer da melodia expressão adequada daquele afeto que, com as palavras, se queria
10. G. Mei, Carta de 1572 a Vincenzo Galilei, in o Canto dos Afetos, op. cit. p. 12. (Grifo nosso).
11. Ibid, p. 25. (Grifo nosso).
12. Mei, Carta de 1572 a V. Galilei, in O Cato dos Afetos, op. cit., p. 14. (Grifo nosso).
20
Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical
21
Ibane y Chasin
generoso. Por isso então se deve adotar a melodia onde afetos símiles são expressos.15
E em letra contígua:
De outro lado, o canto cênico sem o condimento do falar patético resulta, como
hoje se vê, friíssimo e pouco grato ao ouvido, pois lhe falta aquele incentivo que
dá alma à melodia, que fertiliza, como sal fecundo, o terreno, preenchendo a imagi-
nativa do compositor.16
A reflexão é induvidosa: a música, grega ou não, se consubstancia em sua condi-
ção de fundo, objetiva-se em proficuidade artística, positiva a potentia de sua vocação
mais íntima, se atualização anímica. O canto, firma Doni, é parido por necessidades
anímicas, para a expressão intensificada, concreta dos sentimentos. Sua irrupção, este
é o elemento de fundo, supõe e implica vida afetiva, que então se sensifica. Significa
que o ato cantado é, geneticamente, um ato in mímesis: uma melodia é alma objetivada
in affectu. De sorte que, pondera o filósofo sobre o teatro grego, se “/.../um ator
fala movido por algum afeto – como nas deplorações feitas no final das tragédias,
tenho por certo que estas fossem cantadas”.17 “Nas Troadas de Eurípides [– exempli-
fica –] onde Cassandra, depois de ter proferido vários iambos contínuos prossegue
o discurso com aqueles dezoito trocaicos, sem dúvida que aí se dava o início do
cântico. E para mencionar um caso latino, no Ippolito, de Sêneca, aqueles trocaicos
proferidos por Teseo – Pallidi fauces Averni, certamente eram cantados”.18 Para Doni,
enfim, escave-se em arremate de sua letra categorial, a melodia tem lugar e senso se
sentimentos têm lugar, ser-assim anímico da música que a faz música, lógica miméti-
ca reconhecida que funda sua reflexão, armando ser e dever-ser musicais de sua pena
teorética.
3.
Delineado este sucinto universo teorético, que se constituiu, rigorosamente, na
e pela palavra textual, necessário evidenciar o esteio ou fundamento que permitiu a
Aristóteles, Mei e Doni sustentarem a relação música-mímesis dos afetos. Movimen-
to que ao nitidizar a razão-de-ser e pertinência desta atação, expõe o pulso ôntico do
pensamento musical examinado.
Na carta de 1572, Mei assim considera:
visto que a música que concerne ao canto gravita em torno das qualidades da voz,
e nisto, especialmente, em ser aguda, média ou grave, pareceu-me que deveria ser
15. Doni, Trattato della Musica Scenica, V, in O Canto dos Afetos, op. cit., pp. 75-76. (Grifo nosso).
16. Ibid, p. 76.
17. Ibid, IV, in Lyra Barberina, A. Gori & G. Passeri (org.). Fac-similar da edição florentina de 1763. Bologna,
Forni, 1974, vol. II, p. 10.
18. Ibid.
22
Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical
primordial que a virtude desta arte repousasse seu principal fundamento necessa-
riamente nestas disposições. E, ademais, não havendo semelhança entre cada uma
destas paixões da voz [grave, média, aguda], seria irrazoável que tivessem as mesmas
faculdades. De fato, por serem contrárias entre si – nascidas de disposições [hu-
manas e sonoras] contrárias, ocorria, necessariamente, que tivessem propriedades
contrárias, as quais, por sua vez, tinham força para produzir reciprocamente efei-
tos contrários. Visto que a voz foi concedida pela natureza aos seres animados,
e ao homem, em particular, para a significação de seus próprios conceitos, era
efetivamente racionável que estas suas qualidades diversas – fundamentalmente
divergentes umas das outras – fossem adequadas, cada uma por si e distintamente,
para expressar afeições determinadas.19
Ora, o que nesta passagem Mei refere a seu interlocutor epistolar – e este reco-
nhecimento é musicalmente fundamental – é que a voz expressa, de per si, paixão huma-
na. Sentimentos que se manifestam ou são paridos pelo movimento ou modulação
da voz na exata medida em que esta, ou seus diferentes registros – agudo, médio e grave
– atualizam a interioridade, externam aquilo que se sente. Voz é anímica: seus registros
são regiões anímicas, ou mais rigorosamente, aqueles as transparecem, sensificam.
Em termos distintos,
A voz foi especialmente dada ao homem pela natureza não apenas para que ele
manifestasse através de seu simples som, como fazem os animais despossuídos
da razão, o prazer e a dor, mas para, na conjuminância com o falar significante,
exprimir adequadamente os conceitos da sua alma.20
Vale dizer, a voz, que é sonoridade, é, geneticamente, afetividade exteriorizada,
porquanto sonoridade que naturalmente se efetiva enquanto expressione. Ou ainda,
a voz se atualiza como instrumento, “/.../concedido ao homem com suas inúmeras
qualidades especialmente para a perfeita expressão de seus conceitos e afetos”,21 isto
é, como mediação da fala, de um lado, e, essencialmente – primariamente, enquanto
expressão, mímesis, via das paixões sentidas. Na consentânea letra aristotélica, ôntica:
“Os sons da voz são reflexos das afecções da alma”.22
Num fugaz desdobro em campo aristotélico, que importa tecer. Na Retórica,
no espaço voltado a problemas estilísticos, surge, logo ao início [III, 1, 1403 b], a
seguinte determinação, que denota o caráter ou natureza do ato vocal, o em-si onto-
imanente da voz; considera Aristóteles:
A recitação concerne à voz e ao modo pelo qual esta deve ser usada para exprimir
cada uma das emoções – quando, por exemplo, deve ser forte, quando fraca, quando
19. Mei, Carta de 1572 a Galilei, op. cit., p.13. (Grifo nosso).
20. Ibid, pp. 31-32.
21. Ibid, p. 33.
22. Aristote, Organon, De L’Interprétation, I, 16 a, tradução de J. Tricot, Paris, Libraire Philosophique, 1994,
p. 77. (Grifo nosso).
23
Ibane y Chasin
média, e ao modo pelo qual a voz deve se servir dos tons – agudo, grave e médio, e quais
ritmos devem ser usados em cada caso.23
Posto sem mais: a letra filosófica reconhece a ingênita e fundante dinâmica ex-
pressiva da voz. A recitação, esboça a Retórica – recitação, marque-se, que é voz na
objetivação mais concreta de seus atributos, de sua orgânica, porque voz é sonoridade hu-
mana –, é voz “usada”, realizada, para exprimir emoções. Voz, portanto, que na ação
recitativa – que é ação de expressividade – positiva-se como tal. Em palavra análoga,
em Aristóteles, a objetivação do anímico encontra meio nos e pelos movimentos vocais
do dizer, pelas modulações da voz, que torneiam a palavra. Em argumento concreto: as
inflexões, na fala, que trazem a voz do agudo para o grave, empurram-na do grave para
o agudo, a deslocam do medial para o agudo ou grave, etc., sensificam pulsos afetivos,
pois a voz ao ser – ao modular, inflectir, acompanhar, secundar (sonoramente) o dito
– imediatamente os atualiza, isto é, exprime “cada uma das emoções”, o que se atina,
pontue-se, pela vivência cotidiana imediata. Ser-assim da voz que então destila, in
limine, sua natureza, mimética: sons – inarticulados – que, vindos do interno humano,
assim manifestam sua vida afetiva. Na letra hegeliana, sintetizadora:
a voz, como já indiquei, é o próprio ressoar da subjetividade total, que também chega a
representações e palavras, e encontra na própria voz e no canto o órgão adequado
quando quer exteriorizar e perceber o mundo interior de suas representações
como penetradas pela concentração interior do sentimento.24
Em termos análogos,
Mesmo fora da arte, o som, como interjeição, como grito de dor, suspiro ou riso,
constitui a expressão imediata e mais viva dos estados de alma e dos sentimentos, aquilo que
eu chamaria os oh! e os ah! da alma. Estamos em presença de uma objetivação da
alma por e para si mesma25.
Determinação esta que implica e significa a existência de uma atação indelével –
porque real – entre voz e interioridade, entre modulação vocal e estado da alma. Ata-
ção que, realidade sensível, não poderia escapar a ideários que propendiam à objetividade.
O Trattato, nesse sentido, substantifica uma reflexão que, por sua clareza, deve
ser exposta. Reflexão em cujo coração determinativo pulsa veemente a relação voz-
vida anímica, de sorte que pela condução da palavra doniana corrobora-se o expos-
to, que se nitidiza. Movimento que finaliza a argumentação em curso.
Os registros vocais, afirma Doni, dão concretitude à interioridade que sente, isto
é, da voz, dispõe o Trattato della Musica Scenica, escorrem batimentos afetivos sentidos: pela
modulação daquele que fala, prorrompe, no ato do dizer, seu sentir. Em propositura
23. Aristotele, Retorica, tradução de Marco Dorati, Milano, Oscar Mandadori,1996, p. 297. (Grifo nosso).
24. Hegel, Cursos de Estética, São Paulo, Edusp, 2002, vol. III, p. 337.
25. Hegel, Esthétique, France, Flammarion, 1979, vol. 3, p. 335.
24
Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical
escavada, para este pensador florentino, voz é subjetividade in affectu, o que sua letra
plasma em argumento ôntico, irrefutável; assim elabora, reconhecendo e pontuali-
zando uma imbricação real, concreta:
considere-se, na mesma pessoa, a variação de entoação. Pois um homem que fala em
seu tom natural – sem forçar a voz num tom agudo (que chamamos quilio), ou num grave (que
não tem nome) – demonstra uma postura pousada, calma, constante, um ânimo verdadeira-
mente estóico, que não se deixa comover por nenhuma paixão. Por isso, e prudentemente,
é que os gregos destinaram a este tom (que nós chamamos de corista) o modo
dórico, que possui algo de melancólico e grave. Precisamente por isso era natural,
e mais estimado pelos dóricos do que por qualquer outra nação grega. Dóricos
cuja nação era a mais numerosa, como a mais grave e de hábitos mais severos e
incorruptos. De sorte que a este tom convém, dentre as três espécies de melodia
[aguda, média, grave], aquela do meio, que chamavam de Hesychastica,26 isto é,
instauradora de calma e tranqüilidade. Mas, se este mesmo homem falar em um tom mais
esforçado e intenso, demonstrará veemência de afeto tanto na tristeza quanto na alegria, com
aquela diferença acima referida. Por isso é que tanto o modo frígio – destinado
a exprimir o furor divino, o desdém, o ardor militar, quanto o lídio – apropriado
à alegria, ao júbilo, festas e bailes, eram cantados pelos coristas num tom mais
agudo e intenso. E por outro lado ainda, se a mesma pessoa usar de um tom de voz mais
grave do que o seu natural, exprimirá certo cansaço, fraqueza, langor, e, entre os afetos, preguiça,
temor, uma tristeza fria e dolente, mas não concitada e desesperada. Em tom quedo, porém,
cantava-se o modo ou harmonia hipolídia, criticada por Sócrates e depois por
Platão (que a chamava de lídia, como de costume naquele tempo), pois não era
usada senão para exprimir um comportamento languente vezeiro, ou um prazer
exagerado, por inebriamento ou congêneres.27
No pulso determinativo nascido do ventre doniano, e sem mais: voz, alma in
sonu.
4.
E se assim o é – e então se pode atinar com a razão de fundo do reconhecimento
da dimensão mimética da música sustentada por Aristóteles, Mei e Doni –, a músi-
ca que é canto – canto que nada mais é do que voz in melodia –, é, incontornavelmente,
mímesis das paixões. Em desdobramento que entende nitidizar. Canto: dizer onde a
voz se fez predominante, onde irrompe materialmente em predomínio e proeminência; canto
é voz que envolve e entranha a palavra de si, amantando-a pois, melodiando-a. De
sorte que o canto é uma objetivação mimética: ontologicamente, radical expressão
dos afetos. Na letra que substancia. O canto se distingue da fala, in limine, na medida
em que naquele a voz – os sons inarticulados – consubstancia-se ampliada, medrada,
tipificada em sua orgânica, a tal ponto que, feita melodia, assume prevalência auditi-
va sobre o dito. No canto a voz se universaliza, fazendo-se mélos, que subsume a si a
26. O índice onomástico do Trattato traduz por hesychastica o termo grego ήσυχαςιχή.
27. Doni, Trattato della Musica Scenica, XIV, in O Canto dos Afetos, op. cit., pp. 80-81. (Grifo nosso).
25
Ibane y Chasin
palavra, impondo-lhe uma carga emotiva que lhe seria desconhecida sem esta voz
dominante, sem este mélos, que então plasma o dito in affectu, que necessariamente se
faz prevalente frente à palavra, porque esta foi invadida pela melodia, tomada pela vo-
calidade. Numa propositura categorial, da qual se escava ser o canto voz que estendeu-se
a si, que determinou-se em seu ser-precisamente-assim – em suas curvas, inflexões, modu-
lações, pelas quais se atualiza:
alguém surpreendido por excessiva alegria, oprimido por uma grande dor, ou
tomado por uma ímpeto extraordinário ou furioso, facilmente costuma alterar e
curvar a voz de tal modo que se reconhece um princípio de canto.28
Significa, portanto, que o canto supõe e implica, em relação à fala cotidiana, uma
reordenação estrutural das formas de relação entre palavra e voz no sentido de uma
intensificação ou concreção desta. Reordenação pela qual, rigorosamente, a melodia
é parida. Na retomada de uma assertiva (nota 16),
ao elevarmos naturalmente a voz – como ocorre nos lamentos, ameaças, júbilos, e
outras paixões humanas – nos avizinhamos do canto; não sendo este mais do que uma
variação de tom, feita ao se soltar a voz com um maior esforço das artérias através de diversos
intervalos harmônicos e prolongamentos das vogais. É por isso que se pode observar que
os oradores, comumente nas comiserações de seus epílogos, costumam alterar
muito a voz, aproximando-se assim das cantilenas.
Em outros termos, que sintetizam:
Entre os homens se pode distinguir três modos de falar. O primeiro, e mais sim-
ples, é o que usamos quando falamos familiarmente uns com os outros, ou mes-
mo quando se fala em público à maneira de predicantes e oradores. O segundo é
aquele dos poemas, recitados um tom um tanto alterado, e que se avizinha mais
do verdadeiro canto. E o terceiro é o das cantilenas, onde expressamente aparece
maior alteração de tom e de intervalos29,
isto é, onde a voz atualizou sua potentia, plenificou-se, incontornavelmente predo-
minando sobre a palavra: canto – vida anímica, predominante, porque voz, expandida.
Uma melodia então, vocal ou instrumental – esta porque, lato sensu, dimana da-
quela, que é sua protoforma, sua referência, ainda que abstrata, seu ventre mediato,
seu mediato de-onde-para-onde –, por ser a sonoridade do homem objetiva-se in mímesis.
Voz que, via das paixões, quando expandida, determinada, atualizada in melodia, ne-
cessariamente verticaliza, aprofunda, substancia sua genética condição expressiva,
imitativa. Então, se de canto se trata, de um homem in plenitude afetiva se trata, porque
canto implica ou supõe a voz – uma voz positivada na universalização de sua potentia
mimético-anímica ingênita. Potentia realizada que, universalização da voz dial, funda
o canto, cuja expressividade intrínseca, portanto, é medrança das possibilidades da
28. Doni, apud Ibaney Chasin, in O Canto dos Afetos, op. cit. p. 89. (Grifo nosso).
29. Idem, Trattato della Musica Scenica, VIII, in O Canto dos Afetos, op. cit., p. 83.
26
Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical
1.
Se a pena teorética do abade Du Bos traça passos incoativos na direção de con-
figurar, no interior do pensamento ilustrado, a natureza do fazer musical – o que
significou, estruturalmente, buscar escavar, reconhecer e propor a já suposta e assu-
mida lógica mimética da música30 –, deve-se firmar, não obstante, que é Rousseau o
personagem que mais efetivamente substantifica uma reflexão musical. Na palavra
de Fubini, terminante: entre os enciclopedistas que escreveram sobre música, e mes-
mo fora deste círculo intelectual específico,
Rousseau é, indubitavelmente, a personalidade de maior relevo, o teórico mais
acreditado dos bufonistas; foi, talvez, também por sua particular competência que
se lhe tenha confiado a redação do núcleo mais importante dos verbetes musicais
da Enciclopédia, que mais tarde formaram o corpo do seu Dictionnaire de Musique.31
Nesse sentido, e em função dos limites a que este texto se deve ater, toma-se,
quanto ao ideário musical da ilustração, tão somente a palavra do genebrino, a qual,
sem dúvida, sintetiza tendências teóricas de seu tempo. Vejamos, num traçado ape-
nas silhuetado e pontual.
No Ensaio sobre a origem das línguas, na colação entre música e pintura, Rousseau
denota, por determinação negativa, a natureza mimética de ambas, natureza pela qual
se fazem arte. Em extensa assertividade que importa considerar:
30. Cf. Enrico Fubini, L’Estetica Musicale dal Settecento a Oggi, Torino, Einaudi, 1987, pp. 27-33.
31. Ibid, p. 54.
27
Ibane y Chasin
Tal como os sentimentos despertados em nós pela pintura não vêm das cores, o
império que a música possui sobre nossa alma não é obra dos sons. Belas cores
bem graduadas agradam à vista, mas tal prazer é uma sensação pura. São o de-
sejo e a imitação que conferem vida e alma a essas cores, são as paixões por elas
reveladas que comovem as nossas, são os objetos por elas representados que nos
afetam. O interesse e o sentimento não dependem das cores. Os traços de um
quadro tocante também tocam numa estampa. Tirai os traços de um quadro e as
cores nada serão. A melodia constitui exatamente, na música, o que o desenho
representa na pintura – assinala traços e figuras, nos quais os acordes e os sons
não passam de cores.32
E logo depois substanciará:
Como, pois, a pintura não é a arte de combinar algumas cores de um modo agra-
dável à vista, também a música não é a arte de combinar os sons de uma maneira
que agrade ao ouvido. Se só fossem isso, tanto uma quanto outra figurariam entre
as ciências naturais e não entre as belas-artes. Somente a imitação as eleva até esse grau.
Ora, que faz da pintura uma arte de imitação? – o desenho. E da música? – a
melodia.33
Duas páginas à frente, roborando a determinação, acresce que, se de uma melo-
dia se trata, de uma mímesis in affectu se trata. Assim elabora:
Enquanto se continuar considerando os sons unicamente pela excitação que des-
pertam em nossos nervos, de modo algum se terá verdadeiros princípios da músi-
ca, nem noção de seu poder sobre os corações. Os sons, na melodia, não agem em
nós apenas como sons, mas como sinais de nossas afeições, de nossos sentimentos. Desse
modo despertam em nós os movimentos que exprimem e cuja imagem neles reconhecemos.34
Em termos análogos, nos quais se entrevê, sublinhe-se, o reconhecimento de
que a voz é via do anímico, reconhecimento categorial pelo qual o canto, voz em dominân-
cia, pode ser intrinsecamente atado aos afetos:
A melodia, imitando as inflexões da voz, exprime as lamentações, os gritos de dor ou
de alegria, as ameaças, os gemidos. Devem-se-lhe todos os sinais vocais das pai-
xões. Imita as inflexões das línguas e os torneios, ligados, em cada idioma, a certos
impulsos da alma. Não só imita como fala, e sua linguagem, inarticulada mas viva,
ardente e apaixonada, possui cem vezes mais energia do que a própria palavra.
Disso provém a força das imitações musicais, e nisso reside o império do canto
sobre corações sensíveis35.
Efetivamente, para Rousseau a voz é o som da alma, do sentir; são as inflexões
(exteriorizadas) das paixões; voz, sentimento sentido sensificado:
32. J-Jacques Rousseau, Ensaio sobre a origem das línguas, XIII, Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural,
1978, p.194.
33. Ibid, p. 195. (Grifo nosso).
34. Ibid, XV, p. 197. (Grifo nosso).
35. Ibid, XIV, p.196.
28
Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical
29
Ibane y Chasin
30
Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical
Sem dúvida, o elo coevo mais efetivo desta corrente teórico-musical que, grega,
alcança Hegel, é György Lukács. Sua Estética, conscientemente plasmada no intento
de substantificar um corpus aestheticus radicado na filosofia marxiana, ou que desta
buscou tomar o substrato categorial que lhe fundaria, é categórica na afirmação da na-
tureza mimética da música. De fato, ao reconhecer na vida concreta, cotidiana, no
ser e ir sendo objetivos e subjetivos do homem o de-onde-para-onde da arte, Lukács teria
de tomar a música como o campo estético do anímico. Neste sentido, quando refere
que a teoria da arte sempre a concebera como mímesis da interioridade, esta consta-
tação que desde logo surge no capítulo que trata da música, ordenando-o, não poderia
deixar de fundá-lo. Inceptivamente assim dispõe, histórica e categorialmente:
a teoria das artes, e especialmente a da música, a conceberam durante milênios,
numa naturalidade que parecia excluir qualquer necessidade de argumentação,
como reflexo, precisamente, da vida interior humana. Claro que tal consenso não
pode, por si mesmo, valer como prova, pois os erros podem por vezes sobreviver
por épocas inteiras. Porém, aqui, trata-se de outra coisa, e maior. A concepção da
música como uma espécie particular de mímesis acentua energicamente, com uma
segurança dialética nada surpreendente nos gregos, tanto aquilo que, do ponto de
vista da mímesis, à música é atado no mundo das artes, quanto, ao mesmo tempo,
e inseparavelmente, o que a separa das demais artes, ou o que constitui sua pecu-
liaridade específica. Não havia dúvida para os gregos de que toda a relação huma-
na com a realidade, tanto a científica quanto a artística, se funda numa refiguração
da natureza objetiva de tal realidade. /.../ Por outro lado, os gregos viram com
toda clareza que o objeto mimeticamente reproduzido pela música se distingue
qualitativamente dos das demais artes: é a vida interior do homem.45
31
Ibane y Chasin
32
Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical
33
Ibane y Chasin
O fato indiscutível de que toda autêntica obra de arte musical cria um “mundo”,
é o fundamento estético mais profundo à recusa de todo o ponto de vista for-
malista, e daquelas teorias que vêem na vivência musical uma fusão quase mística
do ouvinte com o ouvido. O profundo efeito da música consiste precisamente
em que introduz o receptor em seu “mundo”, o faz viver nele e vivenciá-lo; po-
rém, pese à penetração mais profunda, a mais veemente liberação das emoções,
constrói este mundo sempre como diverso do eu do receptor, como um mundo
distinto dele e para ele significativo precisamente em função desta diversidade es-
pecífica. A obra de arte musical recebe de fontes de conteúdo o caráter de “mun-
do” para-si: da madura totalidade das emoções que nela se revelam. Só quando
estas emoções são, vistas humanamente, coisa essencial, só quando são capazes
de desenvolver até as últimas conseqüências as emoções que elas mesmas desen-
cadeiam, só então pode surgir um “mundo” no sentido da arte./.../A questão de
quais são as emoções que promovem e suportam que delas nasça um “mundo”
é um problema, primeiramente, histórico-social. [E completa: mas] /.../quando
o “modelo” das emoções musicalmente refiguradas está preso à particularidade
do homem cotidiano e esta música se limita a levar a interna insuficiência, a frag-
mentação interna deste homem a um arredondamento “conciliador” aparente e
formal, a mímesis desta mímesis [isto é, a música] não pode nunca criar um “mun-
do”, não pode, portanto, cobrar uma forma artística autêntica. Uma música assim
pode recolher as tradições mais confirmadas ou as inovações mais audazes em sua
dação de forma: apesar disso, a trivialidade do meramente particular o arrastará
inteiramente para baixo, até a grosseria e a vulgaridade de gosto48;
à inafetividade!
Ao fim, considerado o exposto, se tem de assinalar que este texto deixa intoca-
do um problema categorial de fundo, a saber: que afetos ou sentimentos pulsam na
mímesis musical? Isto é, e referido sinteticamente, afinal, a música enforma senti-
mentos em si ou, distintamente, expressa pulsos anímicos, a subjetividade que sente, a
alma in affectu?
Posto o implexo da questão, desta não se tem como afigurar nem mesmo um
pálido contorno determinativo. Para tanto, remeto ao Canto dos Afetos, como tam-
bém a meu estudo mais recente: Música, Serva d’Alma – Claudio Monteverdi, Ad Voce
Umanissima, com previsão de lançamento para maio de 2009 (Ed. Perspectiva), onde
problemas categoriais da voz e do canto são extensivamente tratados. Seja como for,
e isto é o que importa radicar dados o cerne e télos deste artigo, na distinção teoré-
tica entre os diferentes pensadores em relação ao ser-assim mimético-afetivo da arte
sonora – reflexões estas, advirta-se, que no mais das vezes transpiram lacunas deter-
minativas e/ou ambigüidades –, a categoria da mímesis fundou, de forma inconcussa,
a filosofia da música, o pensamento categorial sobre a arte dos sons. De Aristóteles
48. Ibid, pp. 81-82.
34
Música e mímesis: uma aproximação categorial e histórica ao pensamento musical
49. Mesmo do pensamento de Adorno, pontue-se, recalcitrante em relação ao jaez mimético da música, toma-
se, numa teoria que então parture incontornável ambigüidade determinativa, o reconhecimento – enevoado e
dissaboroso – desta sua condição ou natureza, que a faz ser. De fato, a negação da mímesis implica, em última
instância, a impossibilidade de uma reflexão que se enteça em razoabilidade argumentativa, do mesmo modo
que um fazer musical não mimético conduz a música à denegação de suas categorias. Nesse sentido, o pulso
metafísico do humanamente desacolhedor pensamento musical de Hanslick não deve surpresar, embora até
ele – até ele! – contrabandeie para O belo musical a dimensão (mimético-) espiritual da música. Que o tenha feito de
um modo teoricamente inarticulado e periférico; que desnature a categoria da mímesis; e ainda sem referir como
este “espírito” é plasmado e se enforma – apenas afirma: ‘as formas que os sons produzem não são vazias,
mas plenas; não são simples contornos de um vazio, mas espírito que se plasma interiormente’ [Hanslick, apud
Fubini, op. cit., p. 200.] –, o fato, não obstante, é que sua teoria, nubilosa e despossada de argumento probante,
tem de dar lugar, de algum modo, ao homem, ao preço de, posta sua ausência, impropriar-se in limine, descam-
bar para uma reflexão egra, porque desalmada. Na letra de Fubini, que ato contínuo toma a de Hanslick, passo
pelo qual se esboça e entrevê seu imbróglio teorético, ou a contradição de fundo que eiva O belo musical: para
Hanslick, “Ainda que o primeiro propósito de um musicista que se põe a trabalhar não seja o de representar
uma paixão, mas o de inventar uma melodia, as obras [– assevera, entanto –] espelharão simbolicamente ‘como
imagens totais as individualidades de seus criadores’, ainda que tenham sido compostas [– sustenta Hanslick –]
‘sem outro fim que si mesmas, como beleza autônoma e puramente musical’”. [Ibid, pp. 200-201.].
35
Ibane y Chasin
Três são as principais paixões ou afeições da alma. Assim considerei, bem como
os melhores filósofos. São elas a ira, a temperança e a humildade ou súplica, como
mostra, aliás, a própria natureza da nossa voz, que se faz alta, baixa e mediana; na
música, claramente referidas por concitado, mole e temperado. Não pude, porém,
encontrar nas composições do passado exemplos do gênero concitado, apenas do
mole e temperado, mesmo que o gênero concitado tivesse sido mencionado por
Platão no terceiro livro de Retórica/.../; e sabendo ainda que o que move efetiva-
mente nossa alma são os contrários, e que a finalidade da boa música é mover, me
dispus com não pouco esforço e estudo a realizá-lo,50
isto é, a expressar a alma, a fazer música.
Música. Arte que não é dação de forma a afetos em si, mas a plasmação de sen-
timentos sentidos, dos pulsos anímicos de uma interioridade, que então se exteriorizam, sen-
sificam, ao menos se de canto se trata. Mas, calemo-nos! Que esta alusão seja apenas
um incitamento ao leitor. Pois isto é tema para outras reflexões sobre a arte dos sons,
sobre a alma que sente, sobre a alma humana. Alma humana.
50. Monteverdi, Prefácio do Livro VIII, in Gian Francesco Malipiero (ed.), Tutte le opere di Claudio Monteverdi,
Livro VIII, Wien, Universal Edition, 1926-1942.
36
revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
Gramsci su Vico:
la filosofia come una forma della politica
Marco Vanzulli*1
Resumo:
Através de um levantamento da leitura feita por Gramsci nos Quaderni del carcere da
obra de Giambattista Vico, entende-se mostrar a natureza da concepção gramsciana da
história da filosofia, isto é a união de teoria e prática em que consiste a filosofia da práxis
gramsciana. Apesar de sua pretendida superação da velha separação de teórico e pratico,
a filosofia da práxis (assim Gramsci passa a denominar o marxismo) se configura como
uma concepção desbalanceada que se move em torno duma «concepção subjetiva da
realidade», em que a filosofia é totalmente reduzida ao plano histórico contingente como
«fato real», isto é como instrumento hegemônico de um determinado grupo social dentro
da luta de classe. Esta redução da filosofia à política é o resultado de uma reforma de
temas neo-idealistas cujo culturalismo se torna, através do primado absoluto atribuído à
política, incapaz de responder de forma satisfatória à questão da filosofia come verdade
que desvenda as estruturas ontológicas do ser, e do conhecimento histórico como desco-
bridor, materialisticamente, de nexos reais.
Palavras-chave:
Filosofia; História; Política; Verdade; Subjetividade; Objetividade.
37
Marco Vanzulli
38
Gramsci su Vi co : l a filosofia come una forma dell a politica
39
Marco Vanzulli
mutuata dall’hegelismo. Di qui «la proposizione di Vico ‘verum ipsum factum’» sa-
rebbe addirittura quella da cui, «nelle sue origini hegeliane», «certamente dipende il
materialismo storico».10 Riporta qui Gramsci Vico ad Hegel perché possa acquistare
un orizzonte di senso storico.
Ed è in effetti incentrato sulla questione della rilevanza ed effettualità storica
del pensiero vichiano il passo più importante dei Quaderni su Vico, l’unico peraltro
che contenga un giudizio esplicito sull’autore della Scienza Nuova: «Quale ‘movimen-
to’ storico reale testimonia la filosofia di Vico? Quantunque la sua genialità consis-
ta appunto nell’aver concepito il vasto mondo da un angoletto morto della storia,
aiutato dalla concezione unitaria e cosmopolita del cattolicismo…».11 La genialità
dell’isolato pensatore cattolico, cosmopolita (e quindi non nazional-popolare) come
tutti gli intellettuali italiani, è contrapposta alla «storicità» del filosofo Hegel, al cen-
tro degli avvenimenti che vanno dal 1789 al 1815, «che sconvolsero tutto il mondo
civile di allora e obbligarono a pensare ‘mondialmente’. Che misero in movimento la
‘totalità’ sociale, tutto il genere umano concepibile, tutto lo ‘spirito’».12 Sta quindi «in
ciò la differenza essenziale tra Vico e Hegel, tra dio e Napoleone – spirito del mon-
do, tra la pura speculazione astratta e la ‘filosofia della storia’ che dovrà portare alla
identificazione di filosofia e di storia, del fare e del pensare, del ‘proletariato tedesco
come solo erede della filosofia classica tedesca’».13
Pur non essendo questo il contesto in cui mettere in luce il carattere complesso
– perché segnato dai due momenti della accettazione e della confutazione, tra loro
legati – della relazione tra la riflessione gramsciana nei Quaderni del carcere e i temi
della filosofia crociana, non si può evidentemente non partire, per un commento di
ampio respiro di questi passi, dal ruolo centrale assegnato da Gramsci nelle sue note
carcerarie alla discussione con Croce ai fini di una riformulazione del materialismo
storico in filosofia della prassi. Tanto che è stato scritto che: «il Croce è lo Hegel del
suo marxismo […]. È il Croce che impone a Gramsci tutti i temi della sua riflessione.
E se egli cerca di trattarli secondo l’ottica di Marx e di Lenin, essi restano tuttavia
sempre suggeriti dal Croce. Questo è talmente vero che il nostro autore non esce mai
dalla problematica del pensatore napoletano, a tal punto che i limiti del pensiero di
10. Ivi, p. 1060. Il «testo C» – secondo la nomenclatura data da Gerratana ai testi trascritti da
Gramsci nei quaderni monografici, da lui stessi chiamati «speciali» –, di questo passo elimina il
riferimento alle «origini hegeliane» e indica solo che la concezione corrispondente al «verum ip-
sum factum» «deve essere messa in relazione colla concezione propria della filosofia della prassi»
(cfr. ivi, p. 1482).
11. Ivi, p. 504 (testo A) e p. 1317 (testo C).
12. Ibidem.
13. Ibidem.
40
Gramsci su Vi co : l a filosofia come una forma dell a politica
Gramsci sono i limiti stessi del pensiero del Croce».14 Nell’«Anti-Croce» dei Quaderni,
dunque, la rifondazione della filosofia della praxis passa da una confutazione hege-
liana della filosofia crociana. Croce, per Gramsci, «rappresenta il momento mondiale
odierno della filosofia classica tedesca», tanto che «come la filosofia della praxis è stata
la traduzione dell’hegelismo in linguaggio storicistico, così la filosofia del Croce è in
una misura notevolissima una ritraduzione in linguaggio speculativo dello storicismo
realistico della filosofia della praxis […] occorre rifare per la concezione filosofica del
Croce la stessa riduzione che i primi teorici della filosofia della praxis hanno fatto per
la concezione hegeliana. È questo il solo modo storicamente fecondo di determinare
una ripresa adeguata della filosofia della praxis, di sollevare questa concezione che si
è venuta, per la necessità della vita pratica immediata, ‘volgarizzando’, all’altezza che
deve raggiungere per la soluzione dei compiti più complessi che lo svolgimento attu-
ale della lotta propone».15 Si tratta cioè «solo di tradurre in linguaggio storicistico il
linguaggio speculativo, nel trovare cioè se questo linguaggio speculativo ha un valore
strumentale concreto che sia superiore ai precedenti valori strumentali».16 La cate-
goria di «strumentale» è fondamentale in una visione pragmatistica del sapere quale
quella di Gramsci. Infatti, la relazione con l’idealismo (qui «concezione soggettiva
della realtà») è presentata dal politico sardo in termini positivi nella misura in cui
l’idealismo, come la filosofia della prassi, concepisce il ruolo attivo delle concezioni
del mondo o ideologie di determinati gruppi sociali nella costituzione del mondo so-
ciale: «la filosofia della praxis è connessa […] alla concezione soggettiva della realtà,
in quanto appunto la capovolge, spiegandola come fatto storico, come ‘soggettività
storica di un gruppo sociale’, come fatto reale […] la forma di un contenuto concre-
to sociale e il modo di condurre l’insieme delle società a foggiarsi un’unità morale».17
La «concezione soggettiva della realtà» è così storicizzata nel ruolo formativo nelle
e sulle società delle concezioni filosofiche come «fatti reali», cioè come strumenti ege-
monici di gruppi sociali. La filosofia della praxis pone dunque in relazione le diverse
«concezioni soggettive della realtà» nella loro «storicità», perché ogni «concezione
soggettiva della realtà» è sostituita da «una nuova coscienza morale». «La filosofia
della praxis assorbe la concezione soggettiva della realtà (l’idealismo) nella teoria
delle superstrutture, l’assorbe e lo spiega storicamente, cioè lo ‘supera’, lo riduce a un
suo ‘momento’. La teoria delle superstrutture è la traduzione in termini di storicismo
14. A.R. Buzzi, La teoria politica di Gramsci, Firenze, La Nuova Italia, 1973, tr. it. di S. Genovali,
pp. 109 e 55.
15. A. Gramsci, Quaderni del carcere cit., p. 1233.
16. Ivi, p. 1222.
17. Ivi, p. 1226.
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Marco Vanzulli
42
Gramsci su Vi co : l a filosofia come una forma dell a politica
affermare che mentre tutto il sistema della filosofia della prassi può diventare caduco
in un mondo unificato, molte concezioni idealistiche, o almeno alcuni aspetti di esse,
che sono utopistiche durante il regno della necessità, potrebbero diventare ‘verità’
dopo il passaggio ecc. Non si può parlare di ‘Spirito’ quando la società è raggruppa-
ta, senza necessariamente concludere che si tratti di… spirito di corpo […] ma se ne
potrà parlare quando sarà avvenuta l’unificazione ecc.».21 Il materialismo storico è in
effetti inteso come una concezione del mondo funzionale all’azione politica, e quan-
do la sua funzione politica sarà compiuta, «tutto il sistema della filosofia della prassi
può diventare caduco»; torneranno valide, allora, «molte concezioni idealistiche, o
almeno alcuni aspetti di esse», diventeranno allora «verità», parola che Gramsci scrive
tra virgolette, come a relativizzarla.
Ci si dovrebbe interrogare su quale marxismo sia allora questo di Gramsci, che,
facendo del materialismo storico una Weltanschauung, una «concezione del mondo»
atta alla lotta comunista, ne misconosce il carattere oggettivistico, e con ciò la conna-
turata scientificità. Basterebbe una lettura dell’opera giovanile di Gramsci22 per ren-
dersi conto di come molti temi del suo marxismo siano sostanzialmente omogenei
e improntati alla revisione di Marx fatta da Croce e Gentile alla fine del XIX secolo,
e di come Gramsci accetti pacificamente come qualcosa di acquisito il carattere ide-
alistico della filosofia della prassi. E in questo, del resto, egli non costituisce affatto
un’eccezione, si può rilevare anzi come tutto il marxismo italiano sia segnato da
questo carattere idealistico, e come, coincidentemente, l’operazione di presentazione
e liquidazione del materialismo storico condotta in Italia dal neoidealismo sia stata
accompagnata da grande fortuna e abbia influenzato o, più precisamente, impron-
tato di sé tutta una generazione, impostando, attraverso una politica culturale di cui
la liquidazione del marxismo era aspetto centrale, tutta una temperie culturale. Su
questo punto, peraltro, Gramsci è assai lucido nei Quaderni, quando vede il carattere
essenziale della filosofia crociana nel revisionismo,23 ma ciò convive in lui con l’idea
che il momento più alto della filosofia mondiale sia la filosofia crociana, filosofia
speculativa arricchita dalla concretezza della filosofia della prassi.24 La problematica
marxiana di Gramsci risente perciò marcatamente di tutti quei temi che costituisco-
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Marco Vanzulli
44
Gramsci su Vi co : l a filosofia come una forma dell a politica
nale del termine. Certo, il punto di vista di Gramsci è quello delle classi subalterne,
la sua prospettiva quella del comunismo, e questo fa sì che la volontà collettiva che
si realizza nell’azione divenga il metro di misura di questo fare umano creatore di
storia; è la volontà collettiva appunto il vero soggetto, e solo la passività delle masse
può lasciare campo all’azione di volontà sociali parziali.28 È questo il punto di vista
della praticità essenziale della filosofia della prassi sviluppato nella monografia su
Gramsci di Giorgio Nardone, per il quale appunto «persino la categoria che intende
esprimere il momento massimo dell’oggettività non sfugge alla praticità che è nota
definitiva di ogni certezza […]. Solo la prassi, in sostanza, può dichiarare l’efficacia
del proprio strumento e la verità della propria condizione»; le concezioni del mondo
e le ideologie «hanno esistenza solo in connessione alla volontà collettiva affermatasi
nell’azione […]. Vi è regolarità storica nella ipotesi che esista una volontà collettiva
capace di azione regolare e permanente […] Gramsci non trova la ragione sufficiente
della regolarità storica in fatti di ordine strutturale».29
Gramsci traduce in questo modo la concezione crociana della contemporanei-
tà di ogni storiografia, l’idea secondo cui il passato è sempre letto a partire dalle
preoccupazioni pratico-politiche del presente; Gramsci traduce cioè così la rinun-
cia crociana all’oggettivismo storiografico, effetto di una concezione della storia fin
dall’inizio segnata dal prevalere di una tematica neokantiana che separa sfera catego-
riale ed empiricità dell’accadere, scienza e storia.30 In Gramsci, l’infedeltà alla teoria
crociana dei distinti – di cui pure, come si è visto, si pone la questione della traduci-
bilità in termini di filosofia della prassi, in termini non speculativi31 –, insieme alla sua
assimilazione di una concezione non oggettivistica del sapere storiografico, conduce
28. Così, per esempio, la nozione di fatalità storica, in Gramsci, dipenderebbe solo dalla passività
della massa, soggetto trascendentale della storia, soggettivazione formatrice. L’azione politica è la
negazione della passività delle masse, che rompe ogni schema di prevedibilità storica costruito su
modelli di sviluppo naturale (come nel socialismo positivista e riformista) (cfr. G. Nardone, Il pensiero
di Gramsci, Bari, De Donato, 1971, pp. 31-35).
29. Ivi, pp. 308-309 e 329.
30. È questo l’aspetto irrazionalistico della filosofia di Croce rilevato da Lukács, ne La distruzione
della ragione (cfr. G. Lukács, La distruzione della ragione tr. it. di E. Arnaud, Torino, Einaudi, 1974,
pp. 19-20). Cfr. anche R. Racinaro, La crisi del marxismo nella revisione di fine secolo, Bari, De Donato,
1978, pp. 42-43.
31. «In una filosofia della prassi la distinzione non sarà certo tra i momenti dello Spirito assoluto,
ma tra i gradi della soprastruttura e si tratterà pertanto di stabilire la posizione dialettica dell’attivi-
tà politica (e della scienza corrispondente) come determinato grado superstrutturale […] l’attività
politica è appunto il primo momento o primo grado, il momento in cui la superstruttura è ancora
nella fase immediata di mera affermazione volontaria, indistinta ed elementare […]. In che senso
si può identificare la politica e la storia e quindi tutta la vita e la politica. Come perciò tutto il si-
stema delle superestrutture possa concepirsi come distinzioni della politica e quindi si giustifichi
l’introduzione del concetto di distinzione in una filosofia della prassi. Ma si può parlare di dialet-
tica dei distinti e come si può intendere il concetto di circolo fra i gradi della superestruttura?» (A.
Gramsci, Quaderni del carcere cit., pp. 1568-1569).
45
Marco Vanzulli
all’identificazione di filosofia, politica ed economia: «Se queste tre attività sono gli
elementi costitutivi necessari di una stessa concezione del mondo, necessariamente
deve esserci, nei loro principi teorici, convertibilità da una all’altra, traduzione reci-
proca nel proprio specifico linguaggio di ogni elemento costitutivo: uno è implicito
nell’altro, e tutti insieme formano un circolo omogeneo»32. L’immanenza assoluta
della realtà significa, per Gramsci, la sua politicità, è infatti la politica ad avere la pre-
minenza tanto sull’economia quanto sulla filosofia, «perché l’atto politico ingloba il
passato, il presente e l’avvenire, presuppone l’economia e attua la filosofia, fonde in
un blocco la struttura e la sovrastruttura, realizza l’unione della teoria e della pratica,
l’attività cosciente organizzata che fa la storia».33 Nella sua teoria della traducibilità dei
linguaggi scientifici, Gramsci propone infatti la riduzione a politica di tutte le filosofie
speculative: «Riduzione a ‘politica’ di tutte le filosofie speculative, a momento della
vita storico-politica; la filosofia della praxis concepisce la realtà dei rapporti umani di
conoscenza come elemento di ‘egemonia’ politica».34 Infatti, scrive: «La proposizione
contenuta nell’introduzione alla Critica dell’economia politica che gli uomini prendono
coscienza dei conflitti di struttura nel terreno delle ideologie deve essere considerata
come un’affermazione di valore gnoseologico e non puramente psicologico e mora-
le. Da ciò consegue che il principio teorico-pratico dell’egemonia ha anch’esso una
portata gnoseologica […]. La realizzazione di un apparato egemonico, in quanto crea
un nuovo terreno ideologico, determina una riforma delle coscienze e dei metodi di
conoscenza, è un fatto di conoscenza, un fatto filosofico. Con linguaggio crociano:
quando si riesce a introdurre una nuova morale conforme a una nuova concezione
del mondo, si finisce con l’introdurre anche tale concezione, cioè si determina una
intera riforma filosofica».35 Ne consegue che: «Tutto è politica, anche la filosofia o
le filosofie […] e la sola ‘filosofia’ è la storia in atto, cioè è la vita stessa. In questo
senso si può interpretare la tesi del proletariato tedesco erede della filosofia classica
tedesca».36
In questo primato della politica, assimilata alla storia e alla filosofia, Gramsci
vede l’aspetto conclusivo della sua riforma del pensiero di Croce, che non aveva
potuto spingersi fino alla identificazione della politica con la storia e con la filoso-
fia – e che però implicitamente aveva realizzato proprio questa identificazione: non
era Croce il miglior storiografo del trasformismo liberale?37 –, e la conseguente
32. Ivi, p. 1493.
33. A.R. Buzzi, La teoria politica di Gramsci cit., p. 213.
34. A. Gramsci, Quaderni del carcere cit., p. 1244.
35. Ivi, pp. 1249-1250.
36. Ivi, p. 886.
37. «[Croce] Crede di trattare di una filosofia e tratta di una ideologia, crede di trattare di una
religione e tratta di una superstizione, crede di scrivere una storia in cui l’elemento di classe sia
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Gramsci su Vi co : l a filosofia come una forma dell a politica
identificazione assoluta della teoria e della pratica, colte attraverso la politica nella
loro identità. È la politica che unifica i termini dello storicismo assoluto gramsciano
–e, secondo Gramsci, è da trovarsi nella mancata esplicitazione di questo termine
unificatore il carattere ideologico deteriore dello storicismo assoluto crociano –, è
la politica che spiega la differenza tra ideologia e filosofia come una differenza non
esprimibile in termini di verità, ma che si dà «solo per gradi (quantitativa) e non qua-
litativamente», in virtù cioè dell’universalizzarsi di una concezione del mondo, del
suo passare da un livello immediato, economico-corporativo, ad uno più universale,
etico-politico, in virtù cioè dell’estensione della sua prassi trasformatrice. Gramsci
ritiene allora di aver portato alle estreme conseguenze la nozione crociana della con-
temporaneità di ogni storia, spingendola appunto fino alla sua assimilazione con la
politica, all’identificazione di ideologia e filosofia.38
È dunque per Gramsci la filosofia vichiana, come «pura speculazione astratta»,
di poco momento, privata com’è d’incidenza storica, opera isolata e distante dai
centri europei, dai centri dell’azione storica, politica e filosofica. Ad essa Gramsci
applica così solo negativamente la sua definizione di storia della filosofia – che si è
riportata sopra – come storia di una lotta ideologica tra concezioni del mondo, o me-
glio come storia del perfezionamento delle concezioni del mondo volto a «mutare la
attività pratica nel suo complesso»; una definizione che, riducendo la filosofia appun-
to a «concezione del mondo», e insistendo sul carattere pratico-politico di questa, ha
certo il merito di negare la pretesa autoreferenzialità delle filosofie, vincolandole alla
«vita» e intendendole come politica, ossia come aspetto sovrastrutturale del conflitto
sociale, del conflitto tra le «grandi masse» e i «gruppi dirigenti». Ciononostante, c’è
in questa impostazione un elemento di disconoscimento della maggior complessità
del pensiero filosofico, che non è solo trasformazione, non ambisce solo, attraverso
concetti, a diventare «norma d’azione collettiva», a diventare cioè «‘storia’ concreta
esorcizzato e invece descrive con grande accuratezza e merito il capolavoro politico per cui una
determinata classe riesce a presentare e far accettare le condizioni della sua esistenza e del suo
sviluppo di classe come principio universale, come concezione del mondo, come religione, cioè
descrive in atto lo sviluppo di un mezzo pratico di governo e di dominio. L’errore di origine pra-
tica non è stato commesso in tal caso dai liberali del secolo XIX, che anzi praticamente hanno
trionfato, hanno raggiunto i fini propostisi; l’errore di origine pratica è commesso dal loro storico
Croce che dopo aver distinto filosofia da ideologia finisce col confondere una ideologia politica
con una concezione del mondo, dimostrando praticamente che la distinzione è impossibile, che
non si tratta di due categorie, ma di una stessa categoria storica e che la distinzione è solo di gra-
do; è filosofia la concezione del mondo che rappresenta la vita intellettuale e morale (catarsi di
una determinata vita pratica) di un intero gruppo sociale concepito in movimento e visto quindi
non solo nei suoi interessi attuali e immediati, ma anche in quelli futuri e mediati; è ideologia ogni
particolare concezione dei gruppi interni della classe che si propongono di aiutare la risoluzione
di problemi immediati e circoscritti» (ivi, p. 1231)
38. Cfr. ivi, pp. 1241-1242.
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Marco Vanzulli
e completa (integrale)». Per Gramsci, «la filosofia di un’epoca storica non è dun-
que altro che la ‘storia’ di quella stessa epoca», e, come abbiamo visto, la storia
di un’epoca è senz’altro politica. La filosofia è politica. Ma una tale identificazione
risente di un grado d’astrazione ancora una volta tutto crociano nel rimuovere dalla
considerazione della storia tutti quei nessi «oggettivi» che sono nelle «cose stesse»,
intendendo l’accadere storico come quella somma di dati empirici bruti cui si oppo-
ne un universo categoriale spirituale e umano, intendendo cioè la storia come quel
relativo, quel contingente che è per l’idealismo il terreno su cui si esercita il fare uma-
no creatore, l’assoluto,39 facendo così della storia soltanto il campo d’azione della
volontà umana, un campo di lotta tra concezioni del mondo, riducendo appunto la
storia a politica, limitandola a campo d’azione della prassi trasformatrice, svincolan-
do così la teoria da ogni compito di rappresentazione dei nessi reali, di rilevazione
delle strutture ontologiche che della storia costituiscono la realtà; perdendo di vista,
infine, nel cogliere la correlazione (o meglio, ancora, l’identità) dell’aspetto «pragma-
tico» e dell’aspetto «teoretico», la loro distinzione. O intendendo la loro distinzione
nell’unica forma possibile della «pura speculazione astratta». Diceva già Labriola che
certo il marxismo era nato dal comunismo, cioè dal movimento moderno sorto in
seno al capitalismo per il superamento di questo; e tuttavia osservava che una tale
dottrina, nata dal comunismo, avrebbe continuato ad essere vera anche se il socialis-
mo non avesse dovuto trionfare.40 Labriola intendeva dire che anche se il socialismo
non avesse dovuto estendersi a movimento sociale egemone o comunque acquisire
una maggiore universalizzazione, anche se esso non fosse stato più pensato o sos-
tenuto da nessuno, non avrebbe perduto per questo il proprio carattere di verità
e oggettività, la propria dimensione veritativa, cioè teoretica. La «filosofia» – e il
marxismo per Labriola è anche una filosofia – non è insomma «ideologia», mantiene
rispetto ad essa una differenza qualitativa, e non solo di grado, per quanto sia da
vincolare alla prassi da cui sorge ed alla prassi che è capace di suscitare. Siccome alla
determinazione della struttura ontologica del reale, della storia, non ci si può mai
sottrarre, l’identificazione gramsciana di filosofia e politica, la riduzione della prima
alla seconda, riproduceva il dualismo di spirito-materia ereditato dal neo-idealismo
italiano; lungi quindi dall’eliminare ogni dualismo, come riteneva di aver fatto la
filosofia della prassi, eliminava il dualismo di pratico e teorico, soltanto annullan-
39. E in particolare per l’attualismo André Tosel notava come la libertà positiva dell’atto storico
fosse ereditata, dai Quaderni del carcere nella teoria dell’unità delle strutture e delle soprastrutture,
cioè nella teoria del «blocco storico», cfr. A. Tosel, Marx en italiques. Aux origines de la philosophie
italienne contemporaine, Mauzevin, Trans-Europ-Repress, 1991, p. 109.
40. Dagli appunti del corso di filosofia della storia tenuto da Labriola all’università di Roma
nell’anno 1894-1895, citati in Luigi Dal Pane, Antonio Labriola nella politica e nella cultura italiana,
Torino, Einaudi, 19752 [1935], p. 377.
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Gramsci su Vi co : l a filosofia come una forma dell a politica
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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
José Chasin:
a ontonegatividade da politicidade em Marx
Ana Selva Castelo Branco Albinati*1
Resumo:
Palavras-chave:
Abstract:
Keywords:
.
51
Ana S elva Ca stel o Branco Albinati
O propósito desse artigo é trazer à tona o trabalho realizado por José Chasin na
elucidação de um aspecto central do pensamento de Marx, que é a crítica à política.
O significado do esforço de Chasin está em que ele nos remete à fundamentação
ontológica de tal crítica, tratando-a com o rigor e o alcance devidos à dimensão e
originalidade com que Marx a propõe. A compreensão da relação entre a atividade
política e a existência social, entre o ser social e o Estado, possibilitada pelos estu-
dos de Chasin permite, aos leitores de Marx, o resgate do sentido profundo de sua
proposição filosófica, qual seja, a possibilidade da emancipação humana, desentra-
nhada dos equívocos e ilusões sobre os quais se sustenta a concepção tradicional do
sentido e da razão de ser da política.
A tradição ocidental nos legou, a partir dos gregos, uma concepção da política
como ciência superior, conhecimento racional que visa uma normatividade fundada
sobre o que seriam os elementos da natureza humana que estão envolvidos direta-
mente na vida em comunidade: a racionalidade e a liberdade na determinação de
valores, normas e instituições que garantam a vida em comunidade.
Nessa perspectiva, temos o reconhecimento de uma positividade na ação po-
lítica, positividade referida aqui à destinação da política e ao reconhecimento de
sua qualificação intrínseca para esta destinação. Em outros termos, a política é tida
como a esfera privilegiada da expressão da liberdade e da isonomia humanas, como
esfera racional de conformação das relações sociais a partir do estabelecimento (ra-
cional) de critérios para uma vida justa. A politicidade seria o elemento por excelên-
cia do humano.
Essa concepção da política permanece ainda hoje como o horizonte ao qual
devem se voltar as práticas políticas, e resiste a despeito do exercício sempre faltoso
em relação ao seu conceito. Em outros termos, se as práticas políticas são imper-
feitas, isso não é suficiente para abalar a confiança na politicidade, entendido como
52
José Chasin : a ontonegativid ade d a politicid ade e m Marx
atributo inerente ao ser social, e isso parece constituir o núcleo da filosofia política
da antiguidade aos nossos tempos.
Mesmo um autor como Maquiavel, a quem devemos o grande questionamen-
to do sentido da política e do papel do Estado, ainda se inscreve no interior dessa
perspectiva, diferenciando-se, no entanto, ao apresentar, de forma realista, a essência
da atividade política em um momento no qual a relação entre o indivíduo e a co-
munidade já se apresentava muito mais cindida e complexa e, portanto, exigia uma
explicitação mais clara do papel do Estado na condução dos problemas sociais.
A questão central para Maquiavel era a preservação da unidade de um povo, que
ele via ameaçada quando do desmoronamento da ordem feudal e do surgimento
dos novos elementos da ordem capitalista. A emergência do indivíduo e sua predo-
minância sobre o comunitário ensejava todo um modo novo de viver que parecia
ameaçador para o autor. Como observa Chasin,
Sua enérgica denúncia e rejeição, sistematicamente reiteradas, do presente cor-
rompido, assim como a concepção resolutiva dos choques e confrontos que ado-
ta, comprovam que não é do realismo com que reconhece a desagregação moderna
que extrai o pólo norteador da parte concludente de sua reflexão, mas de uma luz
que vem do passado, para se transfigurar em suas mãos num claro-escuro revela-
dor. (CHASIN, 2000, p. 225)
O significativo da inflexão realizada por Maquiavel em relação à política é que
ele desvela o modo de ser da política, modo de ser agora claramente exposto, que
se refere à sua relação intrínseca com a forma da sociabilidade. A política é uma in-
tervenção, assegurada pelo monopólio do poder e da violência legitimada, sobre as
contradições da sociedade, sobre as fissuras internas à existência social, de forma a
mantê-las sob controle.
Ainda segundo Chasin,
um dos grandes méritos de Maquiavel foi ter constatado e admitido a existência
do fenômeno social que, bem mais adiante, recebeu o nome técnico de contradição,
porém, sob a forma reduzida e dessubstanciada do que também posteriormente
foi chamado de conflito. (2000, p. 227)
Vale dizer que a grandeza de Maquiavel de reconhecer a desunião e a desordem
como elementos da vida em sociedade, rompendo com a mística da harmonia social,
recua na medida em que essas não são compreendidas como contradições a serem
superadas, mas como conflitos diante dos quais não pode haver superação, remeti-
dos a uma antropologia naturalista que lhes dá subsistência ad eternum.
A percepção de uma ordem social pautada sobre contradições, e o remetimento
destas ao estatuto de conflitos, originários e eternos, próprios da natureza humana,
possibilitam a Maquiavel a leitura da política como artifício de assegurar a ordem
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Ana S elva Ca stel o Branco Albinati
frente a seus elementos negadores. Para tanto, a razão política se descola da razão
ética, baseada na homologia com a harmonia da physis, e ganha os contornos de uma
arte de estabilizar as contradições.
O caráter irresolutivo da política, em relação às questões sociais, se manifesta in-
tegralmente na reflexão de Maquiavel, assumindo, no entanto, uma fundamentação
naturalista, na qual a realidade empírica de seu tempo se ancora sobre uma antropo-
logia do egoísmo como dado irrecusável das relações humanas.
O desenvolvimento filosófico de tal fundamentação se dará em Hobbes, cujo
pensamento consagra a necessidade do Estado como condição sine qua non da sobre-
vivência dos indivíduos e a idéia do estado de natureza como ameaça constante que
ronda os indivíduos fora do domínio da sujeição ao Estado.
A questão que perpassa a filosofia política diz respeito à legitimidade do poder
do Estado. Em outras palavras, temos que, a partir de uma constatação da neces-
sidade de regulação das contradições sociais, o Estado é entendido como esfera
que dispõe do monopólio do uso legítimo da força para intervir internamente nas
questões sociais, bem como para garantir a segurança frente às outras nações, como
afirmará Max Weber.
De forma bastante simplificada, a existência do Estado se justifica pelo reco-
nhecimento das dificuldades de se viver em sociedade. A positividade da atividade
política está em atuar como uma arte de resolução de conflitos.
O que fica, no entanto, oculto, nessa formulação, é a razão de ser e o caráter
dessas dificuldades que, em sua incompreensão, são tomadas como parte da condi-
ção humano-social, entronizando assim, a politicidade como elemento essencial da
existência social.
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Média a vida do povo e a vida política são idênticas. O homem é o princípio real do
Estado, mas o homem não livre”, ou ainda caracteriza a Idade Média como “a demo-
cracia da não liberdade.” (2005, p.52)
No movimento histórico de autonomização do político, ocorre exatamente a
perda dessa referência imediata ao conteúdo social em favor de uma concepção
representativa e universalista. O Estado moderno se caracteriza, segundo Marx, por
uma relação de exterioridade em relação à vida civil, resguardando a universalidade
que faltava aos “Estados de unidade substancial”, nos quais a tradução da vida civil
se pautava pela manutenção da desigualdade e dos privilégios privados na esfera
política.
Essa universalidade formalizada na modernidade, no entanto, se relaciona com
a fragmentação da vida civil moderna de forma semelhante ao que se verifica no
fenômeno religioso. A constituição política moderna é “o céu de sua universalidade
em contraposição à existência terrena de sua realidade.” (MARX, 2005, p.51)
Questão que ele desenvolve em A Questão Judaica ao dizer que:
O Estado elimina, à sua maneira, as distinções estabelecidas por nascimento, posi-
ção social, educação e profissão, ao decretar que o nascimento, a posição social, a
educação e a profissão são distinções não políticas; ao proclamar, sem olhar a tais
distinções, que todo o membro do povo é igual parceiro na soberania popular, e
ao tratar do ponto de vista do Estado todos os elementos que compõem a vida
real da nação.. No entanto, o Estado permite que a propriedade privada, a educa-
ção e a profissão atuem à sua maneira, a saber, como propriedade privada, como
educação e profissão, e manifestem a sua natureza particular. Longe de abolir
estas diferenças efetivas, ele só existe na medida em que as pressupõe; apreende-
se como Estado político e revela a sua universalidade apenas em oposição a tais
elementos. (MARX, 1989, p.44)
O Estado se mostra como uma esfera de pseudo-conciliação, de universalidade
apenas formal, independente da forma política. Não se trata mais do regime político,
mas da essência do Estado que seria marcada por uma tentativa sempre insuficiente
de reparação da cisão fundamental advinda da sociedade civil, e que nunca pode ser
resolvida na esfera política.
Marx procura demonstrar a insustentabilidade da tentativa de Hegel de unificar
os interesses privados da sociedade com o interesse universal do Estado:
Hegel não chamou a coisa de que aqui se trata por seu nome conhecido. É a con-
trovérsia entre constituição representativa e constituição estamental. A constituição
representativa é um enorme progresso, pois ela é a expressão aberta, não-falseada,
conseqüente, da condição política moderna. Ela é a contradição declarada. (MARX, 2005,
p.93)
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José Chasin : a ontonegativid ade d a politicid ade e m Marx
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trato, mas sim uma resolução social para além da esfera abstrata da política.
Na Crítica, Marx encontrou seu objeto.
Faltava desvendar sua “anatomia”. (2005, p.26)
Ou seja, a partir de um certo momento do texto de Marx, o Estado deixa de
ser uma presença espiritual, pairando sobre a sociedade civil, e esta “espiritualidade
universal” passa a ser entendido como uma necessidade vinculada aos interesses
materiais da sociedade civil.
De acordo com Chasin,
em contraste radical com a concepção do Estado como demiurgo racional da
sociabilidade, isto é, da universalidade humana, que transpassa a tese doutoral e
os artigos da GR, irrompe e domina agora, para não mais ceder lugar, a ‘sociedade
civil’ - o campo da interatividade contraditória dos agentes privados, a esfera do
metabolismo social - como demiurgo real que alinha o Estado e as relações jurídicas.
(CHASIN, 1995, p. 362)
A partir dessa consideração, Marx distingue entre o que seja a “emancipação po-
lítica” e a “emancipação humana”, distinção que aponta para os limites da primeira,
enquanto forma parcial da liberdade, uma vez que
O Estado político aperfeiçoado é, por natureza, a vida genérica do homem em
oposição à sua vida material. Onde o Estado político atingiu o pleno desenvolvi-
mento, o homem leva, não só em pensamento, na consciência, mas na realidade,
na vida, uma dupla existência – celeste e terrestre. Vive na comunidade política,
em cujo seio é considerado com ser comunitário, e na sociedade civil, onde age
como simples indivíduo privado, tratando os outros homens como meios, degra-
dando-se a si mesmo em puro meio e tornando-se joguete de poderes estranhos.
(MARX, 1989, p.45)
Resgatadas essas passagens de Marx, podemos compreender melhor o termo
cunhado por Chasin de uma “determinação ontonegativa da politicidade”, que apon-
ta no sentido de que a política não é um atributo intrínseco ao ser humano, mas sim
que ela é gerada como um subproduto de uma sociabilidade “anti-social”.
Para Marx, cobrar do Estado uma efetivação de seu conteúdo universal é cobrar
a sua extinção, uma vez que ele se sustenta sobre a contradição entre o público e o
privado, contradição esta gestada a partir da divisão do trabalho. Desta forma pode-
se entender o porquê da impotência administrativa do Estado frente às mazelas
sociais.
No artigo Glosas Críticas marginais ao artigo “O Rei da Prússia e a reforma social”, es-
critas em 44, Marx, ao polemizar com Arnold Ruge a respeito do sentido da revolta
dos tecelões da Silésia, introduz uma segunda distinção entre revolução política e
revolução social, que aprofunda a distinção entre emancipação política e emancipa-
ção humana.
60
José Chasin : a ontonegativid ade d a politicid ade e m Marx
Esclarecendo com mais rigor a gênese do Estado, ele dirá que o Estado
descansa na contradição entre a vida pública e a vida privada, na contradição entre os
interesses gerais e os interesses particulares. Daí que a administração deva limitar-se a uma
atividade formal e negativa, pois sua ação termina ali onde começa a vida civil e seu
trabalho. Mais ainda, frente às consequências que derivam do caráter anti-social
desta vida civil, desta propriedade privada, deste comércio, desta indústria, deste
mútuo saque dos diversos círculos civis, é a impotência a lei natural da administra-
ção. Com efeito, este desgarramento, esta vileza, esta escravidão da vida civil constitui
o fundamento natural em que se baseia o Estado moderno, do mesmo modo que
a sociedade civil da escravidão constituía o fundamento sobre o qual descansava o
Estado antigo. (MARX, 1987, p.513)
Uma vez que o Estado moderno se sustenta sobre a sociabilidade marcada pelos
interesses particulares antagônicos, não se pode esperar dele uma erradicação des-
tas mazelas, mas tão somente a eternização das mesmas de maneira administrada,
através de medidas paliativas. Dessa forma é que Marx argumenta que, mesmo nos
países mais desenvolvidos politicamente, permanecem essas mazelas sociais. Assim,
os bolsões de miséria identificados em todos os países modernos são tidos como
elementos constituintes, para os quais o Estado só pode propor a assistência social
conjugada com a penalidade jurídica.
Portanto, trata-se de diferenciar o que seja emancipação política, com o seu
correlato, o Estado moderno e a sociedade civil, e o que seja emancipação humana,
o rompimento da lógica política, com o advento de uma sociabilidade que permita
um mais pleno desenvolvimento das potencialidades do ser social. Continuando em
sua argumentação, Marx acrescenta que
quanto mais poderoso for o Estado e mais político seja portanto o país, menos se
inclinará a buscar no princípio do Estado, e portanto, na atual organização da sociedade,
cuja expressão ativa consciente de si e oficial é o Estado, o fundamento dos males
sociais e a compreender seu princípio geral. O entendimento político o é precisa-
mente porque pensa dentro dos limites da política. E quanto mais vivo e sagaz seja,
mais incapacitado se achará para compreender os males sociais. (1987, p.514)
O aspecto a se ressaltar neste trecho é a determinação das limitações originárias
do Estado, o que determina a impotência não de uma facção ou outra que esteja na
administração, mas do Estado enquanto tal. Se assim é, nenhuma revolução política,
por melhor intencionada que seja e, portanto, mais vontade política demonstre em
efetivar uma boa administração, será suficiente para levar a cabo as transformações
sociais necessárias para dirimir as questões da miséria. A esperança de que a questão
social possa ser resolvida através da política se baseia, de acordo com Marx, em uma
incompreensão dos limites da política.
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Ana S elva Ca stel o Branco Albinati
E aqui Marx toca numa questão que é muito cara aos tempos atuais: a cidadania
e a correlata fé na “vontade política”.
Com Marx, nós nos colocamos num terreno absolutamente outro, no qual estas
noções teriam que ser reavaliadas inteiramente. Não se trata de extrair daqui que
Marx tenha rechaçado a política, que ele tenha tomado como equivalentes quaisquer
proposição e ação políticas, ou mesmo tomado como indiferentes quaisquer gover-
nos ou regimes políticos. Do que se trata é de esclarecer a essência da politicidade,
de compreender a esfera política em sua gênese, em sua relação com a forma da
sociabilidade, e em seus limites efetivos, derivados de sua condição ontológica. Ao
fazê-lo, coloca-se em questão a crença na política baseada na noção de uma “vontade
política”, exatamente porque, como dirá Marx, a crença na onipotência da vontade
como fundamento da política desvia o foco da questão fundamental, que é a das
insuficiências da existência social. É por isso que ele afirma que “se o Estado mo-
derno quisesse acabar com a impotência de sua administração, teria que acabar com
a atual vida privada. E se quisesse acabar com a vida privada, teria que destruir-se a
si mesmo, pois o Estado só existe por oposição a ela.”(1987, p.514)
A compreensão da sociedade civil em sua totalidade e sistematicidade passa a ser
o objeto de Marx, uma vez compreendida a precedência desta sobre o Estado e as
formas jurídicas, de tal forma que a questão se desloca, a partir de Marx, do campo
da política para o terreno da vida social concreta.
Esse aspecto do pensamento de Marx é central para a recomposição de sua
proposição, segundo Chasin, na medida em que
O ser e o destino do homem, que abstrata e, muitas vezes, mesquinhamente atraves-
sa a história recente da filosofia, não é para Marx meramente aquilo que a pobreza
de uso acabou por conferir ao termo humanismo; não é um glacê sobre o oco,
mas a questão prático-teórica por excelência, o problema permanente e constante,
que não desaparece nem pode ser suprimido. (2000, p. 120)
Ou seja, a questão central que alinha toda a perspectiva marxiana é a da eman-
cipação humana, que, no entanto, não pode ser reduzida simplesmente a um apelo
ético ou a uma esperança colocada num horizonte a jamais ser alcançado. Trata-se de
enfrentar a questão em seu terreno legítimo, o da forma da sociabilidade, buscando
ali a gênese das contradições, das contrafações, dos impedimentos, dos limites, para
que desta inteligibilidade, se possa perscrutar alguma alternativa objetiva de supera-
ção.
Sabemos o quanto o termo “humanismo” foi questionado ao longo da filoso-
fia no século XX. Assumi-lo como elemento central da filosofia marxiana não se
torna, em vista disso, uma tarefa fácil. Daí a preocupação de Chasin em discernir o
caráter do humanismo em Marx. Uma outra questão à qual ele não poderia deixar
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José Chasin : a ontonegativid ade d a politicid ade e m Marx
Referências Bibliográficas
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educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
Chasin e a descoberta do
estatuto ontológico da obra de Marx
Antônio José Lopes Alves*1
Resumo:
O presente artigo pretende abordar e explicitar os principais resultados do esforço de pesquisa
desenvolvido pelo Professor José Chasin acerca da obra marxiana, no que denominou de Retorno a
Marx. Uma das principais conquistas teóricas do mencionado projeto foi sem dúvida a determina-
ção mais precisa do caráter da tematização de Marx, pondo em relevo o que constitui a especificida-
de de sua reflexão: um conjunto de demarcações de cunho ontológico, em particular, o primado da
objetividade das coisas. Crivo de cunho eminentemente materialista o qual teria, segundo Chasin,
formatado o exame de entes e processos, e por este último continuamente enriquecido, dentro do
que denomina unidade do saber. O que surge também é a postulação de uma nova relação entre
filosofia e ciência, dentro da qual as duas formas de conhecimento se incrementam e se criticam
reciprocamente, fazendo progredir ambas as instâncias do conhecer, tanto a particular quanto a
universal.
Palavras-chave:
Marxologia; Cientificidade; José Chasin; Ontologia.
Keywords:
Marxology, Scientific Standard, José Chasin, Ontology.
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Antônio José Lopes Alves
Escrito que pode ser entendido tanto como termo provisório de uma rota de
investigação, quanto um novo ponto de partida, Marx: Estatuto Ontológico e Resolução
Metodológica demarca um momento de inflexão na pesquisa marxológica, com conse-
qüências que extravasam o terreno meramente acadêmico. Itinerário inaugurado sob
a pressão teórico-prática de um diagnóstico grave: a inexistência nos círculos mar-
xistas e afluentes – opositivos ou simpáticos a Marx – de um efetivo entendimento
da natureza verdadeira do pensamento marxiano. Ausência que não apenas fere de
morte a aproximação à obra de Marx, mas também condiciona como determinação
adstringente o baixo nível da produção teórica acerca das diversas dimensões dos
processos histórico-sociais. Nesse sentido, a importância do empreendimento cha-
siniano de Retorno a Marx se mede pelo caráter extremamente gravoso das circuns-
tâncias e do ambiente em que foi proposto e realizado. Um conjunto atravessado
seja pelo desentendimento da reflexão marxiana, seja pela pura e simples hostilidade
visceral ou epidérmica para com o padrão de racionalidade inaugurado pelo pensa-
dor alemão. Retorno a Marx que significa, num primeiro momento, necessariamen-
te, ater-se aos termos e aos sentidos próprios dos escritos investigados e analisados.
Ou seja, Marx por seus próprios textos, Marx em seus próprios termos.
Obedecendo a essa diretiva intelectiva, anima o texto chasiniano a posição do
corpus teórico marxiano sob a forma de passos de apreensão do real, por meio da
produção de abstrações e concreção destas a partir do material. Não repisando,
portanto, o caminho comumente trilhado de imputar a Marx uma forma lógica qual-
quer – “dialética” ou não – como o segredo de sua teorização. Tal compreensão foi
pela primeira vez indicada e defendida por José Chasin em seu texto, a partir da tese
da existência de uma teoria das abstrações em Marx. Seguindo os passos analíticos e os
indicativos recolhidos da própria obra de Marx acerca desta questão, em especial os
contidos em Introdução de 1857, Chasin desenvolve um exame cuidadoso das princi-
pais determinações dos procedimentos marxianos, buscando configurar um esboço
de conjunto desta problemática.
Chasin explicita analiticamente certos elementos que constituem, segundo ele, o
arcabouço da cientificidade marxiana, tais como as noções de articulação, de momento
preponderante (übergreifendes Moment), de abstração razoável (verständige Abstraktion), e de
complexo (Cf. Chasin1995, pp. 420 a 433). Igualmente, chama a atenção ao fato de que
a questão do conhecimento só pode obter resolução, do ponto de vista marxiano,
em referência ao quadro mais geral de reconhecimento do por-si da coisa enfren-
tada, da posição de objetividade e da subsunção ativa do sujeito que conhece. Este
último, ele mesmo um ente, determinado e complexo sintético de determinações
objetivas de natureza social, em consonância com observações marxianas contidas
no posfácio à segunda edição de O Capital (Cf. Marx, 1998, pp. 25 a 28).
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Referências Bibliográficas:
CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. In: Pensando com Marx: Edi-
tora Ensaio, São Paulo, 1995.
VAISMAN, Ester. Dossiê Marx: itinerário de um grupo de pesquisa. In: Ensaios Ad Hominem,
nº 1, tomo IV: Estudos e Edições Ad Hominem, Santo André, 2001.
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educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
Resumo:
Este artigo trata das diferenças e identidades das reflexões sobre o caráter ontológico do
pensamento de Marx entre Lukács e Chasin, no esforço de identificar as questões que eles
desenvolveram em torno do pensamento marxiano.
Palavras-chave:
Investigação; Categorias; Abstrações; Ontologia; Marxiano; Trabalho.
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
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medida em que se elucida o caráter das abstrações em Marx vêm à luz os elementos
gerais da teoria das categorias1.
A linha de discussão apresentada por Lukács remonta o texto dos Manuscri-
tos Econômicos-Filosóficos, onde encontra-se a afirmação da prioridade do ontológico
sobre o conhecimento. Tal passagem confronta não apenas a idéia da consciência
como elemento de síntese preponderante no processo do conhecimento, mas esbo-
ça aquilo que na problematização lukacsiana aparece como o princípio ontológico
fundante da filosofia de Marx: a primazia da objetividade sobre a consciência. O
texto marxiano é diretamente citado:
Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é um ser natural, não faz par-
te da essência da natureza. Um ser que não tem nenhum objeto fora de si não
é um ser objetivo. Um ser que não é por sua vez objeto para um terceiro ser
não tem nenhum ser como objeto seu, isto é, não se comporta objetivamente,
seu ser não é objetivo. Um ser não objetivo é um não ser (Unwesen). [MARX:
MEF:CXXI/578].
Com essa citação nosso autor explicita sua primeira consideração importante
acerca da posição do problema no interior do pensamento marxiano:
Marx já aqui rejeita toda concepção segundo a qual determinados elementos “últi-
mos” do ser teriam ontologicamente uma posição privilegiada em relação aqueles
mais complexos, mais compostos, e segundo a qual no caso destes últimos as
funções sintéticas do sujeito cognoscente desempenharia certo papel no o que e
no como da sua objetividade. [OGS, 579/284]
A segunda observação presente nesta passagem, bem mais óbvia que a primeira,
volta-se contra o pensamento kantiano. Como se sabe na gnosiologia formulada por
Kant o sujeito ocupa papel de destaque por ser quem cumpre a cada momento a
síntese concreta do conhecimento em relação a uma objetividade concreta – a coisa
em si é incognossível. A referência ao pensador idealista alemão não se dá por aca-
so: Lukács observa o influxo de sua filosofia no interior do próprio marxismo que,
por se encontrar distante da perspectiva ontológica, por vezes se vê às voltas com
o kantismo – e outras vertentes da filosofia – no intuito de complementar supostas
lacunas presentes no pensamento de Marx.
A primeira observação exposta nesta mesma citação, não tão clara quanto a que
analisamos acima, somente será devidamente tratada e elucidada linhas a frente. As-
sociada à citação do próprio Marx, Lukács põe em destaque a categoria da ‘relação’,
que aparece já logo de saída determinada como um atributo imprescindível de todo
1. A temática da construção de uma teoria das categorias, como veremos mais a frente, encontra-se posta pelo
próprio pensador húngaro, que em uma passagem do capítulo aqui analisado refere diretamente o problema
(cf. OGS I, 585/OSS I, 291).
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
ente objetivo, cujo corolário é a objetividade implica ser objeto para outrem. Esta de-
terminação terá grande relevância na ontologia do pensador húngaro. A relação não
aparece apenas como um detalhe fortuito, casual – em suma como mero acidente
–, muito menos é um processo de síntese promovida pelo sujeito do conhecimento,
mas constitui uma efetividade e um atributo ineliminável da constituição ontológica
de todo ser. Por via de conseqüências, deste lineamento inicial veremos se estabele-
cer de uma forma mais ampla páginas à frente a idéia de que os elementos, categorias
e propriedades do ser aparecem sempre de forma imbricada, suas categorias guar-
dam sempre uma posição específica no interior de um complexo, em suma estão em
uma constante interação e inter-relação no interior do todo que compõe o ser. Não
apenas esta determinação aparece como tese central da ontologia lukácsiana, mas o
seu desdobramento desemboca na demonstração de pelo menos mais três elemen-
tos centrais da ontologia: a idéia de prioridade ontológica diretamente associada à
noção de momento preponderante, de abstração isoladora e da idéia da interpene-
tração entre a esfera econômica e as esferas extra-econômicas. É a elucidação destes
princípios o objetivo principal da análise que faremos daqui em diante.
Para determinar a peculiaridade inovadora do método marxiano nosso autor
nos remete às páginas dos Grundrisse, onde se encontra de uma maneira mais clara
e consolidada a contraposição marxiana à vertente gnosiológica. A discussão sobre
o método que se reporta aos Grundrisse reforça a ênfase já presente nos textos dos
Manuscritos Econômicos-filosóficos onde é posto em destaque a importância que a cate-
goria da totalidade – e por via de conseqüências da noção de complexo – assume no
interior das reflexões do pensador alemão.
Quando se afirma que a objetividade é uma propriedade primário-ontológica de
todo ente, afirma-se em conseqüência que o ente originário é sempre uma tota-
lidade dinâmica, uma unidade de complexidade e processualidade. [OGS, 578/
OSS, 284]
O ponto de partida da exposição marxiana da questão principia por uma refe-
rência direta à totalidade. No entanto partir da totalidade não significa assumir uma
postura empirista, que associa de forma direta a verdade com esta experimentação
direta do mundo. Pelo contrário, seguindo os indicativos dados pelo próprio pensa-
dor alemão, Lukács afirma que a totalidade tem o caráter de um “princípio generalís-
simo” [Allerallgemeinste Prinzip] não conferindo de modo algum, de maneira imediata,
sua essência e sua constituição, muito menos é capaz de prescrever o modo mais
adequado para conhecê-la. Esta perspectiva se faz bem clara em Marx, quando este
inicia toda sua análise destacando que de um modo imediato esta totalidade aparece
como a população, que constitui “o real e o concreto”. Contudo, assim considerada
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Ronaldo Vielmi Fortes
temos apenas uma representação caótica do todo, atingimos apenas meras represen-
tações que não nos fornecem a riqueza de determinações e relações que enforma
o conjunto efetivo de nexos da realidade em questão. Analisando esta passagem,
Lukács apresenta o problema nos seguintes termos:
Se nós tomarmos a própria totalidade imediatamente dada ou seus complexos
parciais, o conhecimento imediatamente direto sobre a realidade imediatamente
dada encontra sempre meras representações. Estas portanto devem ser melhor
determinadas com abstrações isoladoras. A economia como ciência no início de-
sembocou de fato nesta estrada; andou sempre mais adiante pela estrada da abs-
tração, até que nasceu a verdadeira ciência econômica, que parte dos elementos
abstratos lentamente adquiridos para “empreender de novo a viagem de volta”,
até chegar novamente à população “mas desta vez não como uma representação
caótica do todo, ao contrário como uma rica totalidade de determinações e rela-
ções”. [OGS, 580/OSS, 285]
Com suas próprias palavras Lukács reproduz as idéias desenvolvidas por Marx
em sua Introdução. O que se faz notar aqui é o fato de que Lukács substitui todo um
conjunto de expressões utilizadas por Marx, tais como “determinações mais preci-
sas” [nähere Bestimmung], “conceitos simples” [einfachere Begrife], “abstrações rarefeitas”
[dünnere Abstrakta]2, etc., sintetizando o procedimento da investigação das categorias
econômicas por meio da expressão por ele mesmo cunhada: isolierende Abstraktio-
nen. Não se trata aqui de destacar uma simples peculiaridade no uso de expressões,
mas demonstrar que a opção do pensador húngaro já indica os caminhos do seu
entendimento acerca das determinações tratadas por Marx neste texto. Esta noção
ocupará um lugar central nas idéias que serão desenvolvidas a partir deste ponto da
sua análise3. O que Lukács parece pretender fixar com este termo é a resultante final
daquilo que em Marx, por meio das expressões acima citadas, aparece como o cami-
nho da construção dos “conceitos simples”, instante inicial da investigação em que
se identifica na realidade componentes específicos do complexo em questão. Não
seria exagero dizer que a preocupação do pensador húngaro é determinar em termos
precisos o caráter das abstrações no interior do pensamento marxiano, preocupação
esta que vai desde a consideração do papel das abstrações no trabalho de investiga-
2. “Finge ich also mit der Bevölkerung an, so wäre das eine chaotische Vorstellung des Ganzen, und durch
nähere Bestimmung würde ich analytisch immer mehr auf einfachere Begriffe kommen; von dem vorgestell-
ten Konkreten auf immer dünnere Abstrakta, bis ich bei den einfachsten Bestimmungen angelangt wäre.”
(“Se portanto começar pela população, então eu terei uma representação caótica do todo e, por meio de uma
determinação mais precisa, pela análise, alcançarei conceitos sempre mais e mais simples; do concreto figurado
eu passarei a abstrações sempre mais rarefeitas, até chegar às determinações mais simples”.) [MARX, Karl.
Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. Berlin: Dietz Verlag, 1953, p. 21]
3. Cremos que é precisamente neste ponto que a análise de Lukács toma um rumo diferente daquele que
será assumido na obra de Chasin. Os elementos suprimidos aqui por Lukács são precisamente os indicativos
centrais do procedimento investigativo.
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
ção das categorias da economia até o modo peculiar da exposição destas no interior
das obras de Marx – particularmente em O Capital.
O ponto de partida de suas reflexões tem por princípio a seguinte determina-
ção:
Apenas não devemos esquecer que tais ‘elementos’ na sua forma generalizada,
obtida por via de abstrações, são produtos do pensamento, do conhecimento.
Ontologicamente são também complexos processuais do ser, mas de constituição
mais simples e portanto mais fácil de apreender conceitualmente se tomarmos
como comparação os complexos totais dos quais são ‘elementos’. [OGS I, 581/
OSS I, 286]
Há aqui a clara diferenciação entre a objetividade e o modo pela qual esta é
apropriada pela consciência. O caminho percorrido pelo conhecimento, por meio
das abstrações, “é tão somente o caminho do conhecimento e não aquele da própria
realidade. Este último é feito de concretas e reais interações entre tais ‘elementos’ no
interior do quadro da graduada totalidade que opera ativa ou passivamente” [OGS,
580/OSS I, 286]. Mantendo-se fiel ao texto de Marx, Lukács cita a passagem em
que o pensador alemão se reporta diretamente a Hegel criticando-o por confundir o
caminho percorrido pelo pensamento para a apreensão da realidade com a própria
constituição e movimento da realidade. O ponto chave de sua afirmação é a ênfase
no fato de “que é a própria essência da totalidade econômica que prescreve a estrada
para conhecê-la” [OGS, 580/OSS, 285].
Portanto, levando em consideração os caminhos que devem ser percorridos pela
abstração, em um primeiro momento cabe isolar conceitualmente, pela via da abstra-
ção, elementos da realidade, sem que neste instante inicial sejam estabelecidas as de-
vidas inter-relações e interações concretas existentes entre eles. Este primeiro passo
constitui aquilo que será designado como experimento ideal. Este procedimento, em
suas linhas mais gerais, constituiu em grande medida no trabalho dos grandes nomes
da economia política, como por exemplo David Ricardo. E de fato, os precursores
da economia política estabeleceram grandes conquistas neste campo. Faltou a eles,
no entanto, empreender o “caminho de retorno” – tal como salientado por Marx em
seu texto – que leva das abstrações simples à representação dos nexos reais e efetivos
da realidade, que passa, após trilhar todo este caminho, a figurar no plano da ideação
como o concreto pensado.
No que tange ao processo investigativo marxiano propriamente dito Lukács
delineará os passos decisivos que o diferenciam do método da economia política:
É portanto da máxima importância esclarecer com a maior exatidão possível, em
parte por meio de observações empíricas, em parte por meio de experimentos
ideais abstrativos, o tipo de sua funcionalidade conforme a determinadas leis, isto
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Ronaldo Vielmi Fortes
é, ver com clareza como eles são em-si, como entram em ação – em sua pureza –
suas forças internas, quais inter-relações surgem entre esses e outros ‘elementos’
quando são excluídas as interferências externas. É claro portanto que o método
da economia política por Marx designado como “viagem de retorno” pressupõe
uma permanente colaboração entre o modo de trabalhar histórico (genético) e o
modo de trabalhar abstrato-sistematizante, que esclarece as leis e as tendências. A
inter-relação orgânica e portanto fecunda destes dois caminhos do conhecimento
é todavia possível apenas sobre a base de uma permanente crítica ontológica de
todo passo, já que ambos os métodos aspiram compreender por aspectos diferen-
tes o mesmo complexo de realidade4. A elaboração puramente ideal pode, deste
modo, cindir aquilo que no plano do ser é ligado e atribuir a suas partes uma
falsa autonomia, indiferentemente de ser uma elaboração empírico-histórica ou
abstrativa-teórica. Somente uma ininterrupta e atenta crítica ontológica daquilo
que vem conhecido como fato ou conexão, como processo ou lei, pode restaurar
idealmente a verdadeira inteligência dos fenômenos. (OGS I, 581/OSS I, 286)
A resolução metodológica marxiana consiste em uma síntese de novo tipo, que
une em seu procedimento tanto o experimento ideal abstrativo, quanto a observação
empírica. A observação empírica difere da experimentação ideal por se dirigir princi-
palmente ao problema da gênese histórica dos complexos. Esta funciona em grande
medida como reguladora do procedimento abstrato-sistematizante, impedindo este
último de estabelecer falsas conexões, ou seja, de reconstruir por critérios meramen-
te lógicos a totalidade, em detrimento das efetivas conexões que de fato constituem
a realidade. Por outro lado, a simples observação empírica não seria capaz por si
mesma de estabelecer as leis e tendências mais gerais da realidade econômica. A mul-
tiplicidade de determinações que constitui o emaranhado da realidade impede que
se vislumbre na forma aparente estas tendências e leis, sendo necessário, portanto, o
trabalho de isolar abstratamente complexos parciais, de modo a fazê-los operar, de
uma forma pura, sem as interferências que obscurecem a essência de suas relações.
Junto a estas considerações fica patente o rechaço do idealismo pela denúncia dos
perigos contidos em seus procedimentos investigativos, assim como a recusa do em-
pirismo. Ambos os procedimentos, embora de natureza fundamentalmente distinta,
comportam riscos pois tendem a atribuir falsas autonomias a partes do todo, fazen-
do desaparecer a verdadeira conexão histórica do processo em seu conjunto.
Em Marx esta possibilidade seria evitada. Seu pensamento se ergue sobre o prin-
cípio de que a realidade é acima de tudo um complexo de complexos. Todo elemento
se encontra nela posto em uma ineliminável interação e inter-relação com os demais,
cabendo pois ao pensamento apreender idealmente os efetivos nexos dos elementos
do complexo. Não se trata da construção de um sistema econômico nos moldes clás-
4. Nesta passagem o tradutor italiano confere um ar excessivamente figurativo ao texto: “miram por angulatu-
ras diversas compreender o mesmo complexo de realidade”.
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
sicos, mas de uma descrição analítica da dinâmica efetiva dos processos da realidade.
Talvez pudéssemos falar neste contexto de uma ontologia da esfera econômica.
Expresso por meios destas determinações gerais as postulações lukácsianas em
torno do método de Marx aparentam ser algo dúbio – não é nem um nem o outro
procedimento, mas os dois ao mesmo tempo – e difícil de precisar, porém se con-
ciliarmos estas palavras com as análises que o autor fará da forma expositiva do
livro III de O Capital, tais considerações tornam-se mais claras. Convém, portanto,
antecipar as conclusões de Lukács; isto não implicará de forma nenhuma desviar
da construção de seu raciocínio, apenas pretende tornar mais claro aquilo que em
seu texto somente figurará de maneira definitiva ao final da seção. Se observarmos
o curso dos próprios acontecimentos históricos, veremos que as figuras do capital
comercial, monetário, e a própria renda da terra, são formas de relações econômicas
que antecedem ao capital industrial – que se torna na sociedade capitalista figura
central preponderante das tendências econômicas. Porém, esta factualidade histórica
não confere a reta compreensão sobre suas funções no interior deste processo de
produção. O que nos coloca diante do seguinte problema: a observação empírica,
histórica neste caso, não revela a verdadeira natureza dos nexos destes complexos
parciais na efetividade da sociabilidade vigente. Expondo a natureza deste problema,
Lukács assim se pronuncia:
E essa a razão pela qual o Livro III contém os mais amplos e detalhados excursos
sobre a história dos complexos econômicos que surgem novamente em seu con-
texto. Sem isso, seria de todo impossível integrar o capital comercial e monetário,
assim como a renda da terra, no quadro concreto do conjunto da economia. A
gênese histórica deles é o pressuposto para compreender teoricamente sua atual
operatividade no sistema de uma produção autenticamente social, ainda que —
ou precisamente porque — essa dedução histórica não seja capaz de explicar di-
retamente o papel que eles assumiram finalmente nesse sistema. Com efeito, esse
papel depende da subordinação deles à produção industrial; antes do surgimento
dessa última, capital comercial e monetário e renda fundiária haviam conhecido
por longo tempo uma existência autônoma; e, nessa autonomia, apesar de certa
conservação de suas peculiaridades, haviam desempenhado funções econômico-
sociais inteiramente diversas. [OGS I, 603/310].
Trata-se de falar de complexos econômicos específicos que são refundados pela
lógica do novo que determina de maneira decisiva estes mesmos complexos ante-
riormente existentes. Somente por meio da abstração isoladora, que põe como cen-
tro da reflexão as categorias decisivas da forma vigente do ordenamento social, po-
de-se localizar com rigor o conjunto de tendências e leis, que moldam, remodelam,
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Ronaldo Vielmi Fortes
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
zione generale in cui tutti gli altri colori sono immersi e che li modifica nella loro
Particolarità. È una atmosfera, particolare che determina il peso specifico di tutto
quanto essa avvolge. [Marx: Rohentwurf, ed. Italiana, p. 39]
Embora a gama de problemas tratados por Marx seja bem mais ampla que a
questão a que ora nos dedicamos, nela vemos figurar de forma clara o entendimento
marxiano da gênese e transformação histórica das categorias. O trabalho que aqui
tivemos de acrescentar elementos que não são citados pelo próprio autor, tem o ob-
jetivo de destacar que a tese aqui proposta encontra respaldo ao longo de uma série
de textos do pensador alemão.
O caráter destas determinações que constituem a base dos lineamentos onto-
lógicos de Marx confere, inclusive, à própria abstração um aspecto completamente
outro daqueles que encontramos nos sistemas econômicos formados nos moldes
típicos da já mencionada cientificidade burguesa – que se estrutura sob a influência
decisiva dos postulados gnosiológicos. A abstração isoladora não é de forma alguma
um conceito, no sentido de uma simples formulação ideal no interior de um sistema
que representa dados nexos passíveis de serem demonstrados na realidade. As cate-
gorias são para Marx, e Lukács insistirá nisto diversas vezes, “formas do ser, deter-
minações da existência”. Significa dizer que a abstração não é uma construção ideal
do pensamento na busca da compreensão da realidade, mas é parte constitutiva da
própria realidade. A abstração é factível, algo realmente, concretamente, efetivamen-
te posta no plano da materialidade; é atributo do próprio ser. É também nas páginas
de O capital que Lukács localizará os elementos necessários para demonstrar sua tese,
particularmente no Livro II, quando onde Marx trata do problema da reprodução
simples. O próprio Marx se pronuncia dando destaque ao caráter da abstração que
ele realiza neste momento:
Die einfache Reproduktion auf gleichbleibender Stufenleiter erscheint insoweit
als eine Abstraktion, als einerseits auf kapitalistischer Basis Abwesenheit aller
Akkumulation oder Reproduktion auf erweiterter Stufenleiter eine befremdliche
Annahme ist, andrerseits die Verhältnisse, worin produziert wird, nicht absolut
gleichbleiben (und dies ist vorausgesetzt) in verschiednen Jahren. Die Voraus-
setzung ist, daß ein gesellschaftliches Kapital von gegebnem Wert, wie im vo-
rigen Jahr so in diesem, dieselbe Masse Warenwerte wieder liefert und dasselbe
Quantum Bedürfnisse befriedigt, obgleich die Formen der Waren sich im Re-
produktionsprozeß ändern mögen. Indes, soweit Akkumulation stattfindet, bildet
87
Ronaldo Vielmi Fortes
die einfache Reproduktion stets einen Teil derselben, kann also für sich betrach-
tet werden, und ist ein realer Faktor der Akkumulation.5 [MARX: Kapital, II, p.
393-4]
Os elementos que firmam a tese lukácsiana da abstração isoladora parecem
transparecer aqui com o máximo vigor. O que se elimina neste momento na abstra-
ção analítica empreendida por Marx são os aspectos quantitativos da relação posta
em causa, assim como determinadas funções do complexo da reprodução no in-
terior do processo capitalista. Abstração não é neste contexto, artificialização do
problema, e neste sentido a criação de uma forma inexistente, meramente figurativa
e antagônica ao efetivo, mas o isolamento parcial de um complexo de funções e di-
nâmicas efetivamente existentes. As palavras de Marx são reveladoras neste sentido:
“Entretanto, quando tem lugar a acumulação, a reprodução simples constitui sempre
uma parte desta, pode portanto ser considerada por si e é um fator real da acumula-
ção” [Idem, 393]. Vale lembrar que este isolamento é tão somente um momento da
análise, algo provisório uma vez que logo na seqüência aqueles elementos postos de
lado na análise deste complexo parcial são reintroduzidos para pensar a reprodução
em sua forma ampliada.
A isto Lukács acrescenta outra dimensão importante que abstração possui no
pensamento de Marx. Trata-se da categoria trabalho abstrato, que nada mais é que o
trabalho indiferenciado, uma abstração que suprime as diferenças entre as diversas
atividades laborativas, manifestando-se na realidade apenas como o tempo social-
mente necessário para a produção de mercadorias. Esta abstração é uma operação
real – uma objetividade sensível supra-sensível, se quisermos nos valer dos termos
de Marx – que existe efetivamente no plano das inter-relações estabelecidas pelos
indivíduos no seio da sociabilidade do capital.
Estes dois princípios fundamentais até aqui esboçados confluem diretamente
a determinação decisiva do procedimento marxiano, já por nós anunciada como a
noção da realidade como complexos de complexos:
[...] jamais se deve reduzir o contraste entre o “elemento” e a totalidade à simples
antítese entre aquilo que é em si simples e aquilo que é em si composto. As ca-
tegorias gerais do todo e das suas partes ganham aqui uma complicação ulterior,
sem no entanto virem a ser suprimidas como relação fundamental: cada “elemen-
5. La riproduzione semplice su scala invariata appare come un’astrazione in quanto, da un lato, su base capi-
talistica, l’assenza di ogni accumulazione o riproduzione su scala allargata è un’ipotesi improbabile, dall’altro,
le condizioni nelle quali si produce non rimangono perfettamente invariate (e questo è presupposto) in anni
differenti. Il presupposto è che un capitale sociale di valore dato fornisca tanto nell’anno precedente che nel
presente nuovamente la stessa massa di valori-merce e soddisfi la stessa quantità di bisogni sebbene possano
mutarsi le forme delle merci nel processo di riproduzione. Ma, quando si svolge l’accumulazione, la ripro-
duzione semplice ne costituisce sempre una parte, può essere quindi considerata a sé ed è un fattore reale
dell’accumulazione.
88
Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
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Ronaldo Vielmi Fortes
ontológica é a afirmação de que uma categoria “pode existir sem a outra, enquan-
to que o contrário é ontologicamente impossível” [OGS I, 582/OSS I, 288]. Esta
determinação é, segundo nosso autor, similar à tese materialista segundo a qual o
“ser tem uma prioridade ontológica sobre a consciência”, uma vez que esta última
somente pode existir sob o fundamento de algo que é. Ampliando o campo em que
este princípio ontológico fundamental se faz presente, Lukács nos remete às palavras
de Engels, que em seu discurso pronunciado no velório de Marx, lembra que antes
de os homens se ocuparem com política, arte, religião, etc. devem comer, beber, etc.
As palavras de Engels endossam a idéia da prioridade ontológica das categorias da
produção e reprodução da vida em relação às outras funções igualmente existentes
no âmbito do ser social.
No entanto é no próprio Marx que serão buscadas as bases para a sustentação
e demonstração da razoabilidade do problema posto em pauta. Quando Marx con-
sidera o “conjunto das relações de produção” como a “base real” para o “conjunto
das formas de consciência” tem em mente não a afirmação de um determinismo,
mas a demonstração da prioridade ontológica do primeiro sobre o segundo, ou seja,
o conjunto das relações de produção forma a base sobre a qual se desdobra o pro-
cesso social, político e espiritual dos homens. Este primeiro constitui, neste sentido,
o pressuposto para o desdobramento das formas de consciência. Vale lembrar as
próprias palavras de Marx, que fornecem indícios claros sobre o problema aqui tra-
tado, quando afirma que “não é a consciência do homem que determina o seu ser,
mas o seu ser social que determina sua consciência”. Vê-se claramente como que por
meio destas palavras o pensador alemão não apenas retira da consciência o papel de
prioridade ontológica, como também não se inclina a afirmar a consciência como
um produto imediato da estrutura econômica, mas como algo que se forma sob a
base dos processos de interação e inter-relação que os homens estabelecem entre
si e com a natureza. Destes argumentos se originam uma tese interessantíssima de
Lukács: a acusação da existência de um economicismo no interior do pensamento
de Marx é fruto quase sempre da incapacidade de perceber o problema da priori-
dade ontológica e – como veremos mais à frente – do momento preponderante. O
marxismo vulgar sucumbiu à idéia do determinismo da esfera econômica sobre as
demais exatamente por não ter percebido a discussão que Marx realiza em torno da
produção e reprodução da vida como a prioridade ontológica no âmbito do ser so-
cial. Esta prioridade não implica um determinismo desta sobre a vida espiritual dos
homens, mas uma anterioridade, um pressuposto que fornece o campo de possíveis
desdobramentos “do mundo das formas de consciência”. A dimensão do problema
é bem mais complexa do que a tacanha e estreita afirmação de uma diretiva imediata
90
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medida em que um conjunto de ações não diretamente vinculadas a esta esfera cria
as condições para a sua plena realização.
Tudo isto revela tão somente os aspectos iniciais da exposição das categorias
econômicas feitas por Marx em sua obra. Os passos posteriores subentendem a
dissolução deste preliminar grau de abstração realizada nas páginas iniciais. Basta
pensar na própria estrutura da obra marxiana para ver como que do mais abstrato,
parte-se em direção à “totalidade concreta”: a exposição da forma pura da lei do va-
lor vai culminar, após uma série de mediações importantes, no manuscrito inacabado
sobre as classes. Ou para usar as palavras de Lukács:
ali se põem experimentalmente conexões legais puras, homogêneas na sua abstra-
ção, e a ação exercitada sobre esta, por vezes até superá-la, por componentes mais
amplos, mais vizinhos à realidade, inseridos sucessivamente, para chegar no final
na concreta totalidade do ser social. [586/292]
O momento abstrato, eminentemente econômico, culminará na parte final do li-
vro, no encontro com os momentos extra-econômicos vigentes na totalidade do ser
social: neste caso, a luta de classes – em sua dimensão mais ampla, que compreende
não apenas o conflito entre trabalhadores e capitalistas, mas do capitalista industrial
com o capitalista que opera no comércio, no mercado monetário, etc, – como com-
posição diretiva da cotidianidade dos homens.
É necessário frisar que esta autêntica demarcação sobre a estrutura da obra de
Marx, vale como argumento para a tese da interpenetração do econômico e do extra-
econônomico e é usada neste contexto fundamentalmente para demonstrá-la. Retor-
nando, portanto, ao problema anunciado mais acima, o momento preponderante, é a
delimitação da lei diretiva decisiva que regula a interpenetração entre as duas esferas.
A definição desta lei aparece atrelada à determinação da categoria central da obra
marxiana: o valor.
Não por acaso Marx, em O Capital estudou como primeira categoria, como “ele-
mento” primário, o valor. E em particular a estudou no modo pela qual esta se
apresenta na sua gênese: de um lado esta gênese revela a história de toda a reali-
dade econômica em um resumo geral, em abstrato, reduzida a um só momento
decisivo, de outro lado a escolha mostra claramente a sua fecundidade porque esta
própria categoria, junto com os comportamentos e relações que derivam necessa-
riamente da sua existência, iluminam centralmente aquilo que de mais importante
existe na estrutura do ser social, a sociabilidade da produção. [OGS I, 587/OSS
I, 293]
Sob estas determinações, merece destaque o fato de que a forma expositiva não
é uma escolha aleatória definida pela subjetividade do autor, pois o próprio objeto
impõe os lineamentos de sua exposição. A dialética – termo alías pouco utilizado
95
Ronaldo Vielmi Fortes
por Lukács ao longo de sua análise – aparece neste sentido não como uma escolha
ou como uma aplicação de método para referenciar a exposição de um problema,
mas é a expressão do movimento e da dinâmica interativa e inter-relacional posta
pelo próprio complexo em questão. A análise do valor não é pois uma abstração
conceitual que introduz os elementos primeiros da economia, mas é o tratamento
“puro”, a exposição dos nexos mais decisivos da esfera econômica tomadas de uma
forma isolada, sem a interferência de outros elementos presentes na totalidade, que
se tomados em consideração neste momento obscureceriam a autenticidade de seus
nexos. Abstração aqui é portanto o isolamento de um complexo parcial da realidade.
O complexo isolado abstratamente é algo tão existente quanto qualquer outro ele-
mento desta realidade, o que ocorre neste momento é que, por meio do experimento
ideal, isola-se este complexo parcial para delinear sua dinâmica de forma mais clara
e precisa.
Em O Capital podemos observar o declarado caminho das abstrações até a via-
gem de retorno ao mais concretamente determinado.
Se nós procurarmos determinar de maneira generalíssima os princípios decisivos
de sua estrutura [de O Capital], então nós podemos dizer de forma introdutória
que se trata de um grande processo de abstração como ponto de partida, a par-
tir do qual, dissolvendo as abstrações metodologicamente inevitáveis, etapa após
etapa vem aberta a estrada que conduz o pensamento a apreender a totalidade em
sua concretude clara e ricamente articulada. [OGS I, 584/OSS I, 289]
Lukács introduz neste parágrafo a segunda etapa necessária na reta exposição
dos complexos de ser. Se em um primeiro momento cumpre isolar determinadas ca-
tegorias e complexos decisivos por meio da abstração isoladora, o passo subseqüen-
te implica recompor a totalidade, em seu multiverso de articulações e interações.
Trata-se de um procedimento que evolve aquilo que o nosso autor denomina como
dissolução das abstrações [Abstraktionsauflösungen], momento que constitui a conso-
lidação do processo do conhecimento, apreensão ideal da riqueza de determinações
do concreto. O trabalho de Lukács é, portanto, demonstrar como este movimento
aparece nas páginas de O Capital: das abstrações isoladoras até a construção ideal do
concreto pensado.
Lukács percorrerá toda a obra de O Capital, demonstrando como a construção
marxiana expressa o caminho de retorno ao mais ricamente determinado, além de
demonstrar em linhas gerais o caráter das abstrações mais centrais e decisivas dos
três livros da obra. O centro de sua argumentação é a tese de que não são simples
abstrações, mas momentos reais, realmente existentes, porém que na realidade não
se encontram jamais atuando isoladamente, de forma pura.
96
Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
A verdadeira construção de O Capital mostra que Marx lida decerto com uma abs-
tração, mas evidentemente extraída do mundo real. A composição do livro con-
siste, precisamente, em introduzir continuamente novos elementos e tendências
ontológicas no mundo reproduzido inicialmente sobre a base dessa abstração;
consiste em revelar cientificamente as novas categorias, tendências e conexões
surgidas desse modo, até o momento em que temos diante de nós, e compreen-
demos, a totalidade da economia enquanto centro motor primário do ser social.
O passo imediatamente sucessivo conduz ao próprio processo de conjunto, visto
inicialmente em sua generalidade. 57
As considerações de Lukács encontram respaldo direto no texto de Marx. Nas
primeiras linhas que abrem o seu manuscrito que compõe o livro III de O capital,
Marx explicita de imediato a estrutura geral de sua obra, destacando a forma da
exposição por ele assumida, que vai da explicitação do processo da produção capi-
talista tomado em si mesmo e considerado por meio de um isolamento abstrativo,
passando por uma intensificação gradativa dos diversos níveis de complexidade da
economia – por meio da descrição da gênese determinativa de outras categorias e
processos (a circulação) –, até a explicitação e exposição da forma pela qual esta eco-
nomia aparece na superfície da sociedade, como dado imediatamente perceptível.
Im ersten Buch wurden die Erscheinungen untersucht, die der kapitalistische Pro-
duktionsprozeß, für sich genommen, darbietet, als unmittelbarer Produktions-
prozeß, bei dem noch von allen sekundären Einwirkungen ihm fremder Umstän-
de abgesehn wurde. Aber dieser unmittelbare Produktionsprozeß erschöpft nicht
den Lebenslauf des Kapitals. Er wird in der wirklichen Welt ergänzt durch den
Zirkulationsprozeß, und dieser bildete den Gegenstand der Untersuchungen des
zweiten Buchs. Hier zeigte sich, namentlich im dritten Abschnitt, bei Betrachtung
des Zirkulationsprozesses als der Vermittlung des gesellschaftlichen Reprodukti-
onsprozesses, daß der kapitalistische Produktionsprozeß, im ganzen betrachtet,
Einheit von Produktions- und Zirkulationsprozeß ist. Worum es sich in diesem
dritten Buch handelt, kann nicht sein, allgemeine Reflexionen über diese Einheit
anzustellen. Es gilt vielmehr, die konkreten Formen aufzufinden und darzustel-
len, welche aus dem Bewegungsprozeß des Kapitals, als Ganzes betrachtet, her-
vorwachsen. In ihrer wirklichen Bewegung treten sich die Kapitale in solchen
konkreten Formen gegenüber, für die die Gestalt des Kapitals im unmittelbaren
Produktionsprozeß, wie seine Gestalt im Zirkulationsprozeß, nur als besondere
Momente erscheinen. Die Gestaltungen des Kapitals, wie wir sie in diesem Buch
entwickeln, nähern sich also schrittweis der Form, worin sie auf der Oberflä-
97
Ronaldo Vielmi Fortes
che der Gesellschaft, in der Aktion der verschiedenen Kapitale aufeinander, der
Konkurrenz, und im gewöhnlichen Bewußtsein der Produktionsagenten selbst
auftreten. [Kapital, III, 34]7
A descrição destes três momentos da investigação desenvolvida apresenta em
graus diferentes de exposição as peculiaridades que podem ser discriminadas na
forma acabada do capital. O primeiro momento, que corresponde ao primeiro livro,
destaca analiticamente apenas o processo de produção capitalista abstraindo-se toda
e qualquer “influência secundária” que são “estranhas” a este momento específico
provisoriamente isolado. Tal procedimento põe em destaque uma faceta específi-
ca do capital, o que não esgota evidentemente todas suas nuances e todas as suas
possíveis formas ou figurações. O livro III tem como objetivo “expor as formas
concretas do processo de movimento do capital considerado como um todo”, o
que corresponde ao momento final da exposição, onde se conclui pela reprodução
no pensamento da totalidade do objeto em questão, em toda sua gama de determi-
nações, o que, para usar uma expressão do próprio Marx, pode ser referido como a
fase de conclusão na qual se constitui de forma cabal o concreto pensado. Após o
desvelamento das principais tendências inerentes à sociabilidade do capital, trata-se
portanto de empreender a elucidação da forma fenomênica, isto é, revelar a forma
da sua articulação com suas determinantes mais decisivas, assim como estabelecer a
gênese daquelas categorias que aparecem de forma mais clara e com maior evidência
na superfície dos processos econômicos.
Importa dizer que Lukács após uma longa série de demonstrações sobre a natu-
reza das abstrações e as etapas de sua dissolução ao longo da obra de Marx, sintetiza
todo o percurso marxiano da maneira que se segue:
Tão-somente a aproximação da concreta constituição do ser social, possibilitada
pela compreensão do processo de reprodução em seu conjunto, é que permite a
Marx dissolver [Auflösung] — em nível ainda mais concreto — as abstrações do
7. “Nel I Libro si sono analizzati i fenomeni che il processo di produzione capitalistico, preso in sé, presenta
come processo di produzione immediato, astraendo ancora da tutte le influenze secondarie di circostanze ad
esso estranee. Ma questo processo di produzione immediato non esaurisce il corso dell’esistenza del capitale.
Esso, nel mondo della realtà, viene completato dal mondo della circolazione, il quale ha costituito oggetto del-
le indagini del II Libro. Vi si mostrava, specialmente nella III sezione, che tratta del processo della circolazione
quale mediazione del processo di riproduzione sociale, che il processo di produzione capitalistico, preso nel
suo complesso, è unità di dei processi di produzione e di circolazione. Scopo del presente Libro non può es-
sere quello di esporre riflessioni generali su siffatta unità; si tratta piuttosto di scoprire ed esporre le forme concrete
dal processo di movimento del capitale, considerato come un tutto. Nel loro movimento reale, i capitali assumono l’uno
nei confronti dell’altro tali forme concrete, in rapporto alle quali l’aspetto del capitale nel processo immediato
di produzione, così come il suo aspetto nel processo di circolazione, appaiono soltanto come momenti parti-
colari. Gli aspetti del capitale, come noi li svolgiamo nel presente volume, si avvicinano quindi per gradi alla
forma in cui essi si presentano alla superficie della società, nell’azione dei diversi capitali l’uno sull’altro, nella
concorrenza e nella coscienza comune degli agenti stessi della produzione.”
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
início. Isso acontece na teoria da taxa de lucro. Valor e mais-valia continuam a ser
as categorias ontológicas fundamentais da economia do capitalismo. Na etapa de
abstração da primeira parte, basta afirmar que apenas a qualidade específica da
mercadoria força-de-trabalho é capaz de criar valor novo, enquanto os meios de
produção, matérias-primas, etc, simplesmente conservam o seu valor no processo
de trabalho. A concretização da segunda parte fornece uma análise do processo
global que, em muitos aspectos, ainda se mantém sobre essa base; isso ocorre na
medida em que, como elementos do ciclo, figuram o capital constante e o capital
variável, assim como a mais-valia. Aqui resulta verdadeiro que, no processo de
conjunto – considerado em sua generalidade pura, ou seja, prescindindo com
consciência metodológica dos atos singulares que o formam na realidade –, a lei
do valor continua em vigor sem alterações. E trata-se novamente de uma cons-
tatação justa e importante no plano ontológico, já que os desvios da lei do valor
— na totalidade do processo — compensam-se de modo necessário. Com uma
formulação simples, pode-se dizer: o consumo (inclusive o consumo produtivo da
sociedade) não pode ser maior do que a produção. Naturalmente, aqui se abstrai
do comércio exterior; mas se trata de uma posição correta, já que — precisamente
nesse caso — é sempre possível suprimir pura e simplesmente essa abstração e
estudar as variações que essa supressão introduz no conjunto das leis; deve-se
notar, de passagem, que toda a questão perde seu sentido se o objeto imediato da
teoria for a economia mundial. [OGS I, 600/306-7]
Nos dois primeiros livros as categorias do valor e da mais-valia encontram-se
fixadas pelo patamar de abstração empreendido, portanto, são apresentadas de um
modo em que elas aparecem irretocadas, manifestando-se sempre como pano de
fundo sobre o qual se desdobra a dinâmica da realidade econômica, ainda pensada
sob a forma de abstrações que isolam complexos parciais da totalidade. Mesmo no
livro II, onde o processo de circulação é introduzida na análise, a lei do valor conti-
nua como momento ontologicamente prioritário uma vez que a circulação não pode
prescindir nunca do processo de produção, regido e posto em movimento sob a base
da produção de mais valia. Nos termos de Lukács, nestes dois primeiros momentos
da exposição empreendida por Marx, a lei do valor figura sem os desvios – parti-
cularmente do lucro-médio – pela qual ela se efetiva no plano da realidade econô-
mica. Justificável a abstração isoladora, na medida em que no âmbito da realidade
manifesta, ela continua a operar como decisiva, pois a compensação de todos estes
“desvios” têm a orientação de fundo determinados por esta lei.
No parágrafo subseqüente encontramos a explicitação da derradeira dissolução
das abstrações empreendida nos dois livros anteriores:
De qualquer modo, o problema da terceira parte é o seguinte: no interior do ciclo
total, agora compreendido, investigar a legalidade que regula os atos econômicos
singulares, e não apenas para-si, mas precisamente no quadro da compreensão do
processo de conjunto. Esse influxo dos atos singulares sobre o processo global,
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dos passos dados por Marx em O Capital, análise que Lukács desenvolve de modo
contundente nas páginas de seu livro aqui estudadas. A análise lukacsiana da estru-
tura da obra marxiana desmonta toda uma série de interpretações que sugerem um
conjunto epistêmico previamente estipulado que suporta os elementos analíticos
presentes em seu pensamento. O movimento da construção categorial desenvolvida
por Marx segue os caminhos indicados pela prioridade ontológica e, conseqüentemente,
pela primazia determinativa – momento preponderante – de seus elementos.
Toda a análise aqui realizada, procurou dar destaque àqueles aspectos que julga-
mos mais relevantes e que concerniam diretamente ao tema proposto no início de
nosso trabalho. Não pretende, obviamente, ser a palavra final a respeito do proble-
ma, pois sabemos que sua complexidade envolve uma ampliação de toda a discussão
posta aqui em tela. Por exemplo, o problema da determinação social do pensamento,
tal como explicitado por Chasin em sua obra, é imprescindível para a elucidação
mais acurada do problema da resolução metodológica. Tal problema mereceria ser
comparado com os apontamentos que Lukács efetiva em sua Ontologia acerca dos
desvios que a recta apreensão dos nexos da realidade pode sofrer em virtude das de-
terminações históricas da vida cotidiana. Somente por meio da consideração deste
problema em particular, assim como de outros (a forte presença de Hegel no pensa-
mento de Lukács, por exemplo) poderia nos dar uma dimensão mais definitiva sobre
as convergências e divergências existentes entre os dois pensadores aqui analisados.
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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
Resumo:
Este artigo busca compreender a “leitura incoerente” de José Arthur Giannotti sobre a ontologia es-
tatutária de Marx. Parelho a Althusser, Giannotti divisa dois Marx, o da juventude e o da maturida-
de. Da primeira fase, o filósofo alemão alinha-se à perspectiva de um paraíso perdido, de harmonia
natural. Da segunda, alinha-se à dialética hegeliana, à categoria da identidade da identidade e da
não-identidade, dessa forma, subsumindo ao especulativismo, ao espírito absoluto na forma de um
sujeito universal, Marx cai no ardil do “misticismo lógico”. Com a “redescoberta do pensamento
de Marx” de J. Chasin torna-se inteligível a imputação hermenêutica do “marxismo adstringido”
próprio da Analítica Paulista.
Palavras-chave:
História do Marxismo Brasileiro; Marxismo Adstringido; Filosofia; Politicismo;
Analítica Paulista.
Key words:
Brazilian Marxism history; Adstringed Marxism; Philosophy; Politicism; Uspian Analytics: Uni-
versity-of -São Paulo Analytics.
* Publicado originalmente nos Cadernos de Ciências Sociais 1. “Ciência e Engajamento”. Colegiado de Ciências
Sociais do CUFSA, 2005.
** Prof. Dr. do Colegiado de Ciências Sociais do Centro Universitário Fundação Santo André e Programa de
Estudos Pós-graduados em História e Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-
SP.
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Antonio Rago Filho
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era melhor dispensar intermediários e ler O Capital de uma vez. A anedota mos-
tra a combinação heterodoxa e adiantada, em formação na época, de interesse
universitário pelo marxismo e distância crítica em relação à URSS (SCHWARZ,
1999, p. 87).1
No dizer do crítico dissidente, somada às obsessões lógicas, a “tirania metodo-
lógica”, mais especificamente a técnica de explication de texte, a exegese rigorosamente
praticada, constitui a principal contribuição do mestre para os estudiosos dos semi-
nários sobre O Capital. “/.../Se não me engano, a inovação mais marcante foi outra,
também devida a Giannotti, que na sua estada na França havia aprendido que os
grandes textos se devem explicar com paciência, palavra por palavra, argumento por
argumento, em vista de lhes entender a arquitetura” (SCHWARZ, 1999, p. 91). Em
seu reexame do Seminário de Marx, Schwarz destaca que
A intensidade intelectual do seminário devia muito às intervenções lógico-meto-
dológicas de Giannotti, cujo teor exigente, exaltado e obscuro, além de sempre
voltado para o progresso da ciência, causava excitação. /.../ Por Giannotti e Ben-
to Prado interpostos, o estudo de Marx tinha extensões filosóficas, que nutriam
a nossa insatisfação com a vulgata comunista, além de fazerem contrapeso aos
manuais americanos de metodologia empírica, que não deixávamos também de
consumir. Apesar de desajeitada, a tensão entre esses extremos foi uma força do
grupo, que não abria mão do propósito de explicar alguma coisa de real, e nesse
sentido nunca foi apenas doutrinário.2 (SCHWARZ, 1999, p. 91)
Segundo Emir Sader, em consonância com as linhas de Schwarz, os Seminários
foram uma resposta à vulgarização dos textos marxianos e marxistas praticada pelo
1. Há que registrar os principais nomes que vão constituir a nata de nossas ciências sociais. Schwarz salienta
em continuidade que “Quando o seminário começou a se reunir, as figuras constantes eram Giannotti, Fer-
nando Novais, Paul Singer, Octavio Ianni, Ruth e Fernando H. Cardoso. Com estatuto de aprendiz, apareciam
também alguns estudantes mais metidos: Bento Prado, Weffort, Michael Löwy, Gabriel Bolaffi e eu. A compo-
sição era multidisciplinar, de acordo com a natureza do assunto, e estavam representadas a filosofia, a história,
a economia, a sociologia e a antropologia. Vivíamos voltados para a Universidade, mas nos remetíamos fora
dela, para estudar com mais proveito, a salvo da compartimentação e dos estorvos da própria instituição”
(SCHWARZ, 1999, p. 87).
2. De sua parte, o sociólogo Emir Sader salienta que “Quanto ao que mais teria faltado ao seminário, que para
Roberto [Schwarz] seriam os frankfurtianos, eu diria que, além deles, a ausência mais importante era a das
mediações históricas e políticas concretas, presentes nos textos de Gramsci, nas análises históricas de Marx,
nas obras de Lenin e de Trotsky. O horizonte internacional estava aberto para os seminários – as polêmicas
com os principais autores da época o demonstram – mas faltavam as mediações teóricas para uma elaboração
frutífera da realidade nacional, latino-americana e mundial. Tanto assim que a herança daquele período ficou
relativamente com a teoria da dependência. Cortados pelo AI-5, pelo exílio, pela dispersão, pela derrota,
vieram tempos menos propícios para assaltos ao céu. Gramsci retornou mais como ‘teórico das superestru-
turas’, um marxismo domesticado pelo eurocomunismo foi re-importado, o próprio FHC passou da teoria
da dependência para a teoria do autoritarismo com toda a carga ideológica que mencionamos, a esquerda se
desentendeu com o socialismo, para fixar seu horizonte na democratização. A miséria da teoria abriu caminho
para a miséria da política – sem reflexões estratégicas, sem abordagens globais sobre o capitalismo e, portanto,
sem força para recriar um pensamento anticapitalista” (SADER, 1996, p. 77).
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A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista
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livre etc. – que passam a ter novo sentido quando se integram num novo sistema.
Existe nessa passagem uma invenção, uma liberdade, que não está configurada
no mero decorrer do tempo. Mas isto abre uma cesura entre a regra e o processo
efetivo de segui-la, pois só assim a repetição da regra pode desenvolver sentidos
que, se são roubados para que ela possa ser reposta, deixam rastro cujo significado
vai ser aproveitado num novo sistema normativo (GIANNOTTI apud REGO;
NOBRE, 2000, pp. 102-3).
Refutando a lógica hegeliana, que “parte do pressuposto de que a expressividade
se dá no nível do conceito, da relação silogística da regra com seu caso”, e também
a vulgata marxista, que visa a “antepor à lógica formal uma lógica de contradição”,
Giannotti recorre aos supostos da Lógica de Wittgenstein, porque “Sem uma am-
pliação do conceito de expressão, acabaria caindo na besteira de imaginar que existe,
de um lado, uma lógica formal e, de outro, uma lógica da contradição, e de achar que
esta última consiste em ver os objetos como ao mesmo tempo iguais e contraditó-
rios”. E qual é sua solução para esta duplicidade?
Acontece que é preciso legitimar essa duplicidade. Mas para mim existem siste-
mas formais e lógica, o estudo de várias gramáticas. /.../ Afirmar a existência da
contradição real não eqüivale a afirmar a existência da luta e dos antagonismos,
implica ainda transformar o real num logos, numa forma de expressão. Enquanto
isso não for explicado de um ponto de vista distante da especulação hegeliana
sobre o Absoluto, a crítica de Marx à economia política e ao capital deixa de ter
sentido, pois toda ela se ancora na idéia de que capital e trabalho se contradizem
(GIANNOTTI apud REGO; NOBRE, 2000, p. 106).
O que Giannotti deixa de lado inteiramente é se este seu amarramento ao con-
ceito de expressão, no sentido wittgensteiniano, livra-o dos problemas da filosofia
especulativa. Isto, aliás, será uma constância. A versão é o que importa, será sempre
o elemento preponderante em face do pensamento marxiano. Preocupa-se com a
resolução lógica sem atentar que o pensamento marxista, que reproduz o mundo
concreto na cabeça, objetiva seu revolucionamento. Este é um padrão de compor-
tamento filosófico muito usual nele, pois, de repente, põe na boca de Marx as suas
próprias falas e perspectivas, os seus próprios interesses. O que resulta naquilo que
Chasin chama de marxismo adstringido, corporificando-se nas derivações próprias às
“imputações hermenêuticas” exteriores ao objeto considerado.
Seu opúsculo Marx: vida e obra, mais do que apresentar as idéias do revolucio-
nário, é uma chance para José Arthur Giannotti explicitar as suas profundas dife-
renças com os lineamentos ontológicos da obra de Marx. O que permite ao autor
apresentar sob a forma popular, em tom rasteiro, discrepante com o seu provado grau
de sofisticação teórica, as suas construções subjetivas atribuidoras de significações.
Segundo Giannotti, não se trata de tentar o impossível, a saber, reproduzir o real pe-
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A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista
3. A analítica paulista comporta, segundo Chasin, o “quadrúpede teórico” formado pelas teorias do popu-
lismo, da dependência, do autoritarismo e da marginalidade. Da perspectiva liberal-democrata, esta analítica
configura tipos ideais que visam a abarcar a complexidade dos fenômenos societários brasileiros, todavia,
ficando aquém de seu projeto ambicioso.
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Antonio Rago Filho
Por mais despretensiosa que pretenda ser esta minha introdução aos seus pen-
samentos, ela há de levar em conta que está sendo escrita depois da derrocada do
marxismo como força social. Por isso vamos adotar o termo “marxiano” para indicar
o que é relativo ao próprio Marx, reservando o termo “marxista” às idéias e aos
processos sociais que invocaram seu pensamento, mas com muita cautela (GIAN-
NOTTI, 2000a, p. 13).
Cautela de sua incoerência e desrespeito, na medida em que fratura a dimensão
ontológica da obra do autor visado, desmontada a ontologia estatutária marxiana
(diga-se de passagem, confundida como sistêmica, uma vez que os textos não pos-
suem objetividade – com o descarte de sua imanência ontoprática e histórica –,
pois se constituem numa janela aberta para interpretações e dações de significados).
Nesse sentido,
Não convém examinar os textos tais como se apresentam no cruzamento de suas
várias dimensões, considerando-os como um baluarte a ser conquistado por vá-
rias frentes? Sob esse prisma prefiro cair numa leitura às vezes incoerente do que
pressupor no texto uma harmonia que ele não possui, muito menos ensaiar uma
reconstrução que expurgasse qualquer contradição do terreno que o próprio
Marx balizou, pois me importa sobretudo mostrar o caráter muito particular que
assumem os conceitos pelos quais ele tenta entender o processo de desdobramen-
to do capital, como esses conceitos se conformam na tentativa de revirar a dialética hegeliana,
ao invés de pensá-los simplesmente como os únicos parâmetros capazes de pôr a nu
a realidade do capitalismo moderno. E se chegar a perceber contradições no seu
discurso, prefiro antes de tudo ficar atento aos limites do dizer e do pensar que elas
estão indicando (GIANNOTTI, 2000a, p. 65, grifos nossos).
Contrapondo-se publicamente ao principal crítico da analítica paulista, Giannot-
ti responde ao texto de José Chasin inscrito na obra Pensando com Marx:
Ao dizer que “marxiano” diz respeito ao que o próprio Marx escreveu, e “mar-
xista”, a tudo aquilo que foi feito devida ou indevidamente em nome dele, isso
não nos livra da responsabilidade de refletir sobre sua obra levando em conta as
leituras e tudo aquilo que elas provocam. Sem dúvida essa distinção serve para subli-
nhar as contradições entre o que ele mesmo ensinou e o que pregaram em seu
nome, mas não deve criar a ilusão de que se pode reler Marx sem ter o marxismo no horizonte
(GIANNOTTI, 2000a, pp. 6-7).
Será possível aceitar sem mais nem menos essa proposição? Mesmo com suas
torções propositais e arbitrárias? Ao reconhecer Marx como uma idealista que na-
mora a linguagem hegeliana, e mais do que isto, aprisionado nas armadilhas do lo-
gicismo místico, de que posição ideológica Giannotti se permite taxar um pensador
disto ou daquilo?
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A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista
Então, o filósofo, com seu ponto de vista, acrescenta que o pensamento de al-
guém sempre será perpassado por seus continuadores, que completam ou modificam
o pensamento do formulador. Afinal, “assim como não se pode distanciar as teses de
Aristóteles do aristotelismo, pois este as vai esclarecendo conforme elas mesmas se
desdobram e se contorcem, também o pensamento de Marx esfolha seus sentidos, tendo no
horizonte as vicissitudes do próprio marxismo” (GIANNOTTI, 2000a, pp. 13-4).
Não estamos próximos de ouvir que a falência e barbárie do Leste europeu têm
que ver com a falência dos marxismos, e “o fracasso do comunismo” tem um pé
no formulador clássico? Como já podemos depreender de seu discurso, o filósofo
paulista procede do mesmo modo que as filosofias da suspeita praticam: pinçam pe-
daços do mundo a partir de sua ótica fragmentada e do ponto de vista do indivíduo
isolado e egoísta. Recorde-se que, por meio da “leitura incoerente” ou das versões
dos marxismos, dois Marx continuam a existir. Há um “darwinista”, evolucionista,
como também, um “hegeliano”, “místico lógico”. Há um que fala na centralidade
da atividade prática sensível, da práxis; há outro que pensa de modo especulativo e
místico a lógica do capital e sua superação pela revolução da “classe universal”.
As suas torções, em verdade, não se constituem em novidade nos críticos de
Marx – são mais habituais do que se supõe; por exemplo, na concepção de E. P.
Thompson, a imputação segundo a qual Marx, desconhecendo o termo experiência
(a atividade prática sensível? A práxis?), simplesmente substituiu a Lógica do Espíri-
to (Hegel) pela Lógica do Capital. Isto é asseverar a mesma raiz do idealismo ativo:
logo no início de sua carreira já se encontram in nuce os elementos que serão
desenvolvidos muito mais tarde, marcando-a para sempre. As diversas maneiras
pelas quais vai digerindo a dialética idealista indicam como se reporta ao quadro
teórico delineado pelo idealismo alemão. Por mais que se consagre ao estudo
da realidade capitalista, seus adversários sempre imputarão ao seu pensamento
o defeito da Metafísica. Mas não seria metafísica a própria realidade do capital?
(GIANNOTTI, 2000a, p. 29)
A chave da interpretação de Giannotti reside na célebre distinção de raiz kan-
tiana entre “contradição” e “contrariedade”. Segundo Orlando Tambosi, a posição
kantiana já dera conta dessa questão ao diferenciar contradição de contrariedade.
“O marxismo – especialmente na versão do ‘materialismo dialético’ – não perce-
be, portanto, que as contradições são somente lógicas, que só o pensamento pode
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4. Referindo-se a Lucio Colletti, o autor diz: “Este é um ponto fundamental na teoria collettiana, porque
corrobora a enfática afirmação de que não existem contradições reais, objetivas, ou seja, não existem fatos
contraditórios entre si: a contradição é exclusivamente lógica, do pensamento. /.../ Na realidade, para Colletti,
só ocorrem oposições, conflitos, choques, lutas. Admitir – à maneira de Hegel e do marxismo – a existência
de ‘contradições objetivas’, como se a realidade fosse regida por ‘contradições dialéticas’, implica violação do
princípio de não-contradição” (TAMBOSI, 1999, p. 216). Esta noção também é desenvolvida por N. Hart-
mann, de acordo com Tamposi (p. 217).
5. Em várias passagens de O jogo do belo e do feio Giannotti fornece ao leitor sua “leitura” de Wittgenstein: “Um
jogo de linguagem é, pois, uma invenção construída para mostrar como funcionam expressões significativas,
sendo que tais expressões podem ainda ser consideradas sob um ângulo a partir do qual seu sentido se exibe.
/.../ Os jogos de linguagem são montados e descritos, montados à medida que passam a exibir regras que regulam
a conduta de indivíduos capazes de aprendê-las; descritos, porém, a partir de nossa própria língua, que assim
enuncia o modo de ser de tais regras.” (GIANNOTTI, 1995, pp. 12-4) Além disso, “Se um jogo de linguagem
é sempre abertura para o novo, pois desde o início suas regras encarnadas em costumes estão sempre reque-
rendo reajustes, a imagem do mundo exerce sua condição de meio de apresentação cercando-se de uma zona
cinzenta em que o adequado e o inadequado ficam em suspenso.” (GIANNOTTI, 1995, p. 17)
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notti não se dá conta, ou melhor, não diz ao leitor, que sua “leitura incoerente”, que
se afasta da “doutrina ortodoxa” de um prisma só, de um único ponto de vista, já está
vacinada e amoldada a toda uma produção ligada à teoria dos “jogos de linguagem”
de Wittgenstein, e que continua a recorrer a empréstimos do estruturalismo de Lévi-
Strauss, do sociologismo reificado e da fenomenologia.
Mas, se Giannotti sustenta que sua leitura, ou a sua interrogação dos sentidos
e significações da lógica marxiana, irão passar pelo marxismo (os fiéis ou não discí-
pulos de Marx), não é isto que irá apresentar, pois se vale de “novos paradigmas”,
no caso específico, os “jogos de linguagem” de Wittgenstein, que possibilitariam
decifrar a “gramática do capital”. E a teoria da expressão, lacuna que constata na obra
de Marx.
Com a pretensão de descartar e liquidar o mais rapidamente possível a “re-
descoberta de Marx”, identifica nele um caráter idealista, na medida em que estaria
contaminada com o “vírus do misticismo lógico depois de terem sido mordidos pelo
hegelianismo”. Estranha posição de quem demonstra a impossibilidade da consci-
ência reproduzir o real enquanto “concreto pensado”. Em sua crítica a Chasin, o
principal disseminador da ontologia estatutária de Marx em nosso país, Giannotti,
porém, acaba por explicitar de modo mais visível o seu posicionamento:
Diria que se trata de um hiper-realismo, uma tentativa desesperada de saltar a dua-
lidade do ser e do pensar, mas que me parece retomar um caminho que só pode
levar à intuição intelectual do universal no caso. Contra Lukács, que aceita como um
fato a passagem do universal para o singular por meio da particularidade, Chasin
pretende expurgar qualquer viés gnosiológico, qualquer separação entre o ser e
o pensar. As abstrações, mesmo aquelas razoáveis, que não possuem referente
definido mas servem para estruturar o pensamento, resultam, como indica o próprio
Marx, de operações praticadas pelos próprios agentes. Uma “análise efetiva e sua
correlata produtividade só podem se manifestar pela escavação direta dos próprios
objetos, reconhecidos como entificações engendradas e desenvolvidas por distintos
movimentos contraditórios”, pois “tudo o que existe, tudo o que vive sobre a
terra e sob a água existe e vive graças a um movimento qualquer” (primeira ob-
servação da Miséria da Filosofia), “ou, por outros termos, quando a determinação é
voltada à esfera particular da sociabilidade” (GIANNOTTI, 2000b, p. 66)
Giannotti, sem levar em conta a totalidade das afirmações ontológicas de
Chasin, imputa à “redescoberta do pensamento de Marx” do criador do Movimento
Ensaio o padecimento cruel do “hiper-realismo”; assim, a mesma lógica formal que
diz encontrar na visão marxiana, perpassada por uma “intuição intelectual do uni-
versal”, própria do idealismo ativo, que busca a identificação de um sujeito absoluto, está
barrada de “fazer ciência”, ao tangenciar a linguagem hegeliana e brandir profecias e
utopias da revolução do trabalho. É “hiper-realismo” supor a reprodução categorial
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Ora não precisamos reproduzir todo o restante das reflexões marxianas, que
precisamente se exaspera contra o pensamento metafísico de Proudhon. Esse “mé-
todo absoluto”, bem o sabemos, cumpre uma finalidade concreta, a de elidir as
contradições objetivas do processo real da vida social.
Os lineamentos ontológicos da filosofia marxiana orientam-se na direção da
produção e reprodução da vida material capturando as determinidades da “existên-
cia primária dos grandes complexos do ser” (Lukács),
pondo em primeiro plano o metabolismo humano-societário que as relaciona,
que a sociabilidade transforma sem cessar em sua auto-edificação cada vez mais
puramente social, consumando o progressivo “afastamento das barreiras natu-
rais”, que tipifica o auto-engendramento do ser humano, no sentido da presença
necessária, mas não determinante, da natureza na infinitude intensiva e extensiva
dessa entificação” (CHASIN, 1995, p. 381).
Chasin deixou configuradas as três críticas ontológicas que se enlaçam dialetica-
mente – a crítica da filosofia especulativa, da politicidade e do capital e suas expres-
sões teóricas – a fim de “ascender à decifração da mundaneidade imperfeita em sua
realidade, para a esclarecer, compreendendo sua gênese e necessidade, ou seja, para a capturar
em seu significado próprio, por meio da determinação das lógicas específicas que atualizam
os objetos de seu multiverso” (CHASIN, 1995, p. 377).
Nesse sentido, um arcabouço teórico pré-concebido em relação ao real a ser
desvendado é uma impropriedade no âmbito do complexo ontológico de Marx. “Se
por método é entendido uma arrumação operativa, a priori, da subjetividade, con-
substanciada por um conjunto normativo de procedimentos, ditos científicos, com
os quais o investigador deve levar a cabo seu trabalho, então, não há método em
Marx” (CHASIN, 1995, p. 389). O próprio Lukács, em sua Ontologia do ser social, sina-
lizou para o escasso tratamento marxiano das relações entre ontologia, gnosiologia
e lógica, e mais especificamente das questões gnosio-epistêmicas. Todavia, enfatiza
Chasin,
não terá sido por resquícios de hegelianismo que Marx rompeu com o método
lógico-especulativo, nem se situou, pela mediação do pressuposto ineliminável
da atividade sensível do homem, para além da fundamentação gnosiológica. Isto
equivale a admitir que a suposta falta seja antes uma afirmação de ordem teórico-
estrutural, do que uma debilidade por origem histórica insuficientemente digerida
(CHASIN, 1995, p. 390).
Não bastasse a destituição das contradições sociais como efetividades históricas
passíveis de serem superadas pela práxis crítico-revolucionária e de acordo com a
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traditória. Mas disso resultará uma série de problemas relativos a uma lógica do sen-
sível, que, como veremos em seguida, escapa ao âmbito tradicional do marxismo
(GIANNOTTI, 2000d, p. 62).
Como Giannotti não compreende o processo da individuação social no interior
da interatividade humano-societária, evolver da autoconstituição humana no bojo de
contradições reais, não compreende a lógica onímoda do trabalho, porquanto tudo
se arma pelo construtivismo produzido pelos juízos extraídos de regras gramaticais,
regras da lógica imputativa, porquanto não extraída por meio das abstrações reais.
E, é claro, ainda que o crítico de Marx não a mostre, sua perspectiva é a do social-
democrata que, descrendo da revolução humana ou do trabalho, prostra-se diante
das mazelas da vida capitalista e espera o maior alcance do estado em, ao menos,
diminuir tais sofrimentos humanos. O seu apelo maior, como se sabe, é mostrar o
caminho pedregoso de Marx. A sua “relação ambígua” com a filosofia especulativa de
Hegel.
No final das contas, ele insinua, “Seria um cientista ou um visionário que teria
namorado com o linguajar hegeliano?” “Desenvolve Marx uma análise científica ou
simplesmente está propondo uma metafísica do social?” (GIANNOTTI, 2000a, p.
63) Segundo Giannotti, o filósofo alemão tem um modo de ver a “Ciência” que está
mais próximo dos idealistas alemães do que a dos ingleses e franceses. A “Ciência”
especulativa alemã,
Esta, como sabemos, se converte de imediato numa ontologia do lógos, pois a
identidade in fieri dos elementos do discurso deve ser a mesma das unidades da
realidade em movimento racional. Obviamente essa identidade não pode ser man-
tida pelo marxismo, pois este nega que tudo, em última instância, se revele mo-
mento do Espírito. O que vem a ser então uma dialética da contradição que não tem
o Absoluto como termo de partida e termo de chegada? (GIANNOTTI, 2000d,
p. 62).
No entanto, esta indagação virá com a resposta devidamente antecipada:
“Na juventude ou na maturidade por certo encontramos o mesmo esquema pelo
qual um universal abstrato, a essência genérica do homem, há de converter-se, graças à
negação e alienação, provocadas pela divisão social do trabalho, e à atividade regene-
radora do proletariado, no universal concreto do comunismo. Mas essa negatividade
possuirá a mesma lógica interna ao funcionar em estruturas diferentes? (GIAN-
NOTTI, 2000a, p. 41).
No ensaio “Dialética futurista e outras demãos” Giannotti afirma:
Se a negação pode ter vários significados, se a nenhum cabe sentido originário,
torna-se impossível separar radicalmente a contradição da contrariedade. /.../
Mas desse meu ponto de vista torna-se crucial examinar como as oposições anta-
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Dessa maneira, há um imbróglio que Marx não pode resolver. E aí reside o ba-
nimento da revolução do trabalho no projeto giannottiano:
Que base formal teria o proletariado para se constituir em classe quando as cate-
gorias mais complexas do sistema fibrilam, isto é, colocam-se como pressuposto
das ações dos atores sem contudo fornecer-lhes os meios de medir a parte da
riqueza social que lhes cabe? Como a contradição entre capital constante e capital
variável, sempre sendo pressuposta, poderá encontrar suas determinações quanti-
tativas, que somente se configuram na comprovação do ato de medir? E se, além
do mais, se esboroa a oposição entre trabalho produtivo e improdutivo – como
calcular o trabalho produtivo que produz computador ou se realiza por ele? –
onde os operários vão encontrar a medida que os transformaria em classe social?
E sem essa demarcação, como o objeto da produção da riqueza social parte do
trabalho morto sempre requerido por ela, converter-se-ia no sujeito que, além de
construí-la, seria capaz de se apropriar dela? (GIANNOTTI, 2000a, p. 98).
Está claro, pois, que a própria movimentação do capital soterraria a teoria mar-
xiana do valor-trabalho, facultada pela metafísica inerente ao sistema e pela desmedida
do valor:
O capital variável traz vida nova para a totalidade do sistema, surge como se fosse
parte do capital, trabalho morto, embora seja a única fonte de mais-valor. Mas se
ele revigora a comunidade das coisas, com a introdução de máquinas tecnologica-
mente avançadas, também vê anulada sua capacidade negadora: coloca-se medido como
trabalho morto, mas se exerce dissolvendo a fronteira entre trabalho produtivo e
improdutivo de mais-valia, vale dizer, impossibilitando a medida que lhe foi im-
posta. Denuncia na prática a ilusão de fechamento do sistema, necessária para que
ele seja posto como morto. Marx paga o preço de sua grande descoberta: a socia-
bilidade capitalista é metafísica, funciona como um deus capaz de criar seu pró-
prio mundo, mas a criação divina consiste na aparência da criação de um trabalho,
que perde sua forma natural de se socializar (GIANNOTTI, 2000a, p. 103).
A história contemporânea não caminha no sentido que Hegel supunha, haja
vista que
A força das coisas não carrega em seu bojo o motor de sua transformação em es-
pírito, como queria Hegel. As coisas sensíveis/supra-sensíveis perdem seus perfis
ao longo do caminho de suas próprias individuações. Os processos responsáveis
por suas respectivas produções, ao invés de se transformarem em discurso, em
Verbo referindo-se a si mesmo conforme o mundo mostra-se o lado opaco de
sua atividade pura, escapam da rede que os transformavam em coisas medidas
e fazem valer o peso da matéria que o capital não é capaz de dizer. As relações
sociais de produção não podem mais exprimir a totalidade das forças produtivas
que elas mobilizam, a própria comunidade que o capital postula e repõe como
força produtiva foge de maneira pela qual ele deveria exprimi-la (GIANNOTTI,
2000a, p. 104)”.
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A revolução social como possibilidade real, posta pela lógica onímoda do trabalho,
não é a afirmação de uma classe – dita universal, mas a afirmação universal do
homem. Não é a afirmação do proletariado como classe universal, mas da sua condição de
classe negada, de uma classe que não é uma classe da sociedade civil; é essa condição
de classe negada – que não reivindica nenhum privilégio histórico, mas a simples
condição humana – que é a mediação para a afirmação da universalidade humana dos
indivíduos universalizados. (CHASIN, 2000, p. 62)
Giannotti se lança, assim, à crítica de Marx a partir de uma posição contemporâ-
nea, da perspectiva do futuro ausente, numa época que se caracteriza pela suprema-
cia, sem resistência radical, do capital, pela potencialização inaudita das forças pro-
dutivas e pelo fracasso do Leste europeu. Crítica esta que não mais pode se deter no
âmbito do próprio pensamento do autor, e que também deve se reportar às inúmeras
interpretações dos conceitos marxianos em seus “desdobramentos e contorções”, o
que significa se conformar com a regência do capital, a forma superior imbatível, no
que tange à produção das riquezas.
Com esta propositura, Giannotti se distancia do próprio mundo, desconhecen-
do a natureza do metabolismo social do capital nos países do Leste europeu, iden-
tificadas como modo de produção comunista. Daí sua certeza: o modo de produzir
de riquezas sob a lógica do capital se mostrou superior a qualquer outra forma de
organização produtiva, incluindo a “comunista”.
Nas palavras do filósofo da analítica paulista, “Não parece haver, para o modo de
produção da riqueza, outra forma que não o capitalismo”. Nesse sentido, o capitalismo sur-
ge como uma espécie de fim da história – ainda que Giannotti continue a negar esta
visão –, faltando a impregnação da ética política da perspectiva social-democrata, da
edificação de um estado político ajustador das mazelas que essa mesma forma par-
ticular de metabolismo social segrega, como causa do desenvolvimento das forças
produtivas materiais ilimitado e sem peias políticas. O capitalismo cria a figura dos
sem-emprego, “recria o trabalhador isolado de suas condições de existência, colo-
cando-o sob a ameaça de ficar de fora do metabolismo que o homem mantém com
a natureza”. Por esta razão, o sujeito histórico da revolução, como vimos, esboroa-se
pelo processo de desenvolvimento das forças produtivas. Giannotti faz crer que, ao
tentar o desvelamento da lógica do capital, Marx visa à captura de sua racionalidade.
O marxismo “rejeita a mera justaposição da moral à ciência, procurando descobrir
no âmago da racionalidade capitalista aquele empuxo capaz de transformá-la por
dentro e por inteiro e, desse modo, pavimentar o caminho para emancipar o gênero
humano desse vale de lágrimas” (GIANNOTTI, 2000d, pp. 8-9).
Nas oposições destacáveis do capitalismo, Marx supunha que “o lado negati-
vo, o proletariado, nada tendo a perder a não ser suas próprias cadeias, terminasse
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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
* Socióloga, mestre e doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professora dos cursos de pós-graduação lato
sensu: História, Sociedade e Cultura da Cogeae/SP; Fundamentos e Práticas de Promoção Social da Faculdade
Paulista de Serviço Social de São Caetano do Sul; e Gestão Escolar da Unicastelo. Professora da graduação em
Pedagogia e Serviço Social da Unicastelo.
** Socióloga, mestre em Filosofia pela PUC-SP, doutoranda em Educação pela UFSCar.
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Vâ nia Noeli Fe rreira de Assunção e Lúcia Ap. Val a d a res S artório
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Do Imperialismo à Interdependência
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marxiana das lutas de classes – estas, para Marx, são forjadas exatamente na luta
contra as classes oponentes.
Longe de pensarem numa alternativa à ordem do capital, os ideólogos do popu-
lismo limitaram-se a propugnar que, para garantir a democracia, seria fundamental a
manutenção das liberdades individuais e independência perante o estado. Somente
dessa forma seria possível impedir que os indivíduos fossem manipulados pelo es-
tado e se evitaria sua dominação total sobre a sociedade. Os teóricos do populismo
tentaram explicar os governos que denominaram de populistas tendo como parâ-
metro a liberal-democracia, cujo modelo previa uma estrutura política e jurídica do
estado no intercâmbio com os grupos secundários, entidades de classes e associa-
ções, como canais de mediação entre os indivíduos. Esta estrutura política poderia
amortecer as pressões das camadas populares sobre as elites e, ao mesmo tempo,
garantir os canais de comunicação entre os diferentes setores sociais, preservando,
desse modo, o pacto social e a governabilidade.
J. Chasin chamou a atenção para a profunda “fragilidade dessa armação teórica,
que se restringiu a um descritivismo empirista por cima do qual foi derramado um
vago glacê de significados através de conceitos muito problemáticos” (CHASIN,
1989, p. 80). Assim, por exemplo, ao mesmo tempo em que se sustentava haver um
vazio de poder na década de 1930 na coalizão das classes sociais, afirmava que aquele
período fora marcado pelo fortalecimento do poder executivo. Na tentativa de expli-
car a realidade nacional, perdeu-se a particularidade, a forma específica de domina-
ção burguesa aqui existente, deixando-se, também, de esclarecer em que dimensão
o populismo se diferenciava da dominação capitalista em geral (longe de explicar a
especificidade da dominação local).
Os ideólogos do populismo acabaram caindo na mesma rede de abstrações que
criticavam: buscaram explicar as transformações econômicas e sociais com base
num modelo preestabelecido, a partir do qual concluíram que no Brasil há uma de-
mocracia atípica em relação à das sociedades européias. O centro da análise se limita
a verificar se o período vivido é mais ou menos democrático, se existe manipulação
das classes dirigentes, se existe a formação de instituições independentes na socie-
dade civil. É, então, um corpo teórico construído por comparações, subordinando
todas as contradições do real a uma dada forma de fazer política, um estilo político
projetado pela conduta pessoal, que tem como fim a manipulação das massas.
Esta teoria se arvorava em alternativa às análises desenvolvidas pelos intelectu-
ais do Partido Comunista. Conseqüentemente, pretendia ser uma crítica às práticas
políticas equivocadas dos seus filiados no decorrer do pré-64. Dentre as posturas
censuradas, tomava relevo a idéia de coalizão – entendida por eles como sinônimo
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Vâ nia Noeli Fe rreira de Assunção e Lúcia Ap. Val a d a res S artório
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A crítica chasiniana à analítica paulista
ra das relações sociais. Trata-se de uma teoria embebida em viscoso politicismo. “Poli-
ticizar é tomar e compreender a totalidade do real exclusivamente pela sua dimensão
política e, ao limite mais pobre, apenas de seu lado político-institucional.” (CHASIN,
1982, p. 7) O politicismo, fenômeno simétrico ao economicismo, nada tem que ver
com politização, com valorização da atuação política. Na verdade, desvirtua a pró-
pria política, pois desmonta o complexo de especificidades que é a sociedade e toma
cada uma das “partes” daí resultantes pelo viés político – pseudopolítico. Na prática e
na teoria, toma a realidade complexa por apenas uma de suas facetas, a política, o que
acaba por descaracterizá-la, por exacerbá-la arbitrariamente.
O politicismo expele da política a economia ou “torna o processo econômico
meramente paralelo ou derivado do andamento político”, deixando de “considerá-
los em seus contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais” e sem nunca admitir o
caráter fundante, ontologicamente matrizador, do econômico (CHASIN, 1982, p. 7). Tra-
ta-se de um procedimento tipicamente liberal, uma forma mesmo de acentuação do
princípio liberal segundo o qual a economia pertence à esfera do privado, enquanto
a política, “formalmente estufada”, vai para o terreno da coisa pública. O politicismo
age, pois, como “Protetor da estreiteza econômica e política da burguesia” e, na me-
dida em que “Efetivamente subtrai o questionamento e a contestação à sua fórmula
econômica e aparentemente expõe o político ao debate e ao ‘aperfeiçoamento’”,
“atua como freio antecipado, que busca desarmar previamente qualquer tentativa de
rompimento deste espaço estrangulado e amesquinhado” (CHASIN, 1982, p. 8).
Assim, por meio do conceito de populismo, grupos intelectuais explicam o perí-
odo transcorrido entre os anos 1930 a 1964 pelo viés politicista, segundo o qual perso-
nalidades políticas e circunstâncias sociais se enquadrariam num determinado “estilo
de política”. Por isso, esta teoria não permite uma apreensão mais ampla e correta
da realidade nacional, nem apresenta propostas para propiciar para saltos efetivos na
elevação do padrão de vida de uma grande parcela da população brasileira. Por seu
politicismo visceral, não consegue perceber que as práticas políticas típicas do Brasil
são resultantes da dinâmica de acumulação de capital que se deu interna e externa-
mente por meio da produção calcada na superexploração do trabalho.
J. Chasin ressalta que, além de ser a mais antiga, a teoria do populismo, “mais do
que qualquer outra das que integram o quarteto teórico dominante, é diretamente
responsável pela maioria dos posicionamentos daqueles que – pessoas ou organi-
zações políticas – pensam e querem firmar opções e atitudes de ou na esquerda”
(CHASIN, 1989, p. 79). Entretanto, quando analisado de forma crítica, o conceito
de populismo mostra-se por demais extenso, vago e dúbio, um tipo ideal frouxo ins-
pirador de absurdos analíticos – e, pior, capaz de provocar equívocos práticos sérios
pela história da chamada esquerda brasileira afora.
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A crítica chasiniana à analítica paulista
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dade da elite, que acaba favorecendo o conflito ou a apatia social. Numa sociedade
de massas, as elites seriam diretamente acessíveis à população, no sentido de que
esta não age por meio de canais institucionais ou grupos secundários na resolução
de questões presentes no momento.
Na explicação do totalitarismo como deformação do estado, Chasin desvenda o
pressuposto que caracteriza o estado liberal defendido pela teoria:
o estado liberal vem a ser o sistema onde predominam a lei, a razão e a liberdade, garantidas
pela difusão do poder e pela estrutura pluripartidária. E o estado totalitário, o sistema onde pre-
valecem a violência extremada – o terror – e a dominação hipertrofiada pela concentração
do poder e nutrida pelo monopólio político do partido único (CHASIN, 1978, p. 49).
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A crítica chasiniana à analítica paulista
A corrente desta teoria que alcançou maior expressão na América Latina foi
a criada por Guillermo O’Donnell, para quem o autoritarismo era parte orgânica
do aprofundamento do processo de acumulação em curso, ou seja, estava no bojo
da adoção de tecnologias intensivas em capital nas indústrias de base e de bens de
capital. Esta tese, adotada no Brasil pela analítica paulista, ligava-se à teoria da depen-
dência, segundo a qual a poupança externa era necessária ao processo de industria-
lização nacional – era necessária uma associação com o capital dominante estrangeiro
para que houvesse o desenvolvimento nacional, e nesse processo incluíam-se formas
de dominação autoritárias. Não deixou de ser, portanto, também ela uma teoria da
transição transada, ou da auto-reforma lerda, longa e limitada do regime bonapartista.
Faz parte desta teoria um enquadramento classificatório que tem como eixo cer-
to paradigma de democracia. Em outros termos, tanto o conceito de autoritarismo
como o de totalitarismo foram construídos a partir da comparação à democracia, ao
estado liberal, pautado pela “sociedade política de direito, cujo poder difuso se ma-
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Vâ nia Noeli Fe rreira de Assunção e Lúcia Ap. Val a d a res S artório
nifesta por controles sociais pluralistas” (CHASIN, 1989, p. 78). De um lado, põe-se
o totalitarismo como absoluta negação desta democracia, e de outro o autoritarismo
como nível intermediário. Mais ainda: ao mesmo tempo em que é critério de verdade,
a democracia também é a finalidade da ação, ou seja, a análise é imediatamente regida
pelos propósitos políticos e, por isso, pode se manter no nível da superficialidade.
A liberal-democracia é um modelo político que tem como princípio o liberalis-
mo, a visão burguesa do mundo. Os pensadores liberais naturalizam as relações so-
ciais e afirmam que os homens são intrinsecamente isolados e egoístas, motivo pelo
qual defendem a construção do estado como fundamental para garantir a convivência
minimamente razoável entre os homens. A competitividade não é apenas naturali-
zada: é também vista como a alma das relações humanas e somente a criação de um
aparato jurídico coercitivo pode limitar o ímpeto da autodestruição da espécie. Com
isto, o mercado – a livre concorrência entre os produtores privados, hoje sob o jugo
dos monopólios e oligopólios – é tomado como intrínseco à vida humana. Ao se
subtraírem ao exame das condições materiais de existência e ignorarem o palco das
disputas travadas em defesa da propriedade privada, as teorias mencionadas atrelam
a democracia imediatamente à liberdade do capital no mercado. Ao reduzirem todas
as questões sociais à esfera meramente política, os teóricos do autoritarismo passa-
ram a pleitear a democracia como “plenitude da forma do poder do estado”.
Assim, enquanto a esquerda tradicional atuante no pré-64 se perdia entre um
abstrato revolucionarismo e o ativismo caudatário, seus críticos recaíam em outra forma
de maniqueísmo: democratismo e autoritarismo. São duas correntes “necrófilas do corpus
liberal”: ambas acreditam na instituição acabada, em solo nacional, seja da forma con-
cluída do capital, seja da forma de dominação liberal-democrática – esquecendo-se
de verificar a possibilidade histórica de ocorrerem essas totalizações. “Subsumidas,
as duas, ao universo teórico do capital, distinguem-se, neste campo, apenas pela
modalização de suas ideologias: a esquerda tradicional efetiva esta encarnação como
torcida liberal pela inintegralização do capital, e a nova esquerda toma o corpo da
teimosia liberal, conversão da hipótese do liberalismo, numa formação de liberalismo
impossível.” (CHASIN, 1985, p. XII)
De acordo com Chasin, o conceito do autoritarismo é um construto teórico
que se resume a dividir a complexidade real em “partes” e autonomizar o círculo
político em relação a todas as demais, em especial das bases materiais de existência.
Dissolvendo-se a complexa realidade concreta em uma “calda” política, promove-se
a hipertrofia do político, uma espécie de hiperpolítica, que se nega a si própria. Em
outras palavras, transforma a “totalidade estruturada do real – complexo de media-
ções – num bloco de matéria homogênea” que, além de constituir uma falsificação
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A crítica chasiniana à analítica paulista
Considerações Finais
O quarteto nada fantástico cujas idéias mais centrais apenas enumeramos, reto-
mando a espinha dorsal da crítica chasiniana, pauta-se por uma perspectiva analítica
muito pouco inocente. Seu nervo consiste em subentender a sociedade capitalista
sob forma liberal-democrática e tomá-la como modelo ideal pelo qual se aquilatam
formações sociais reais e específicas. Assim, em apenas um movimento, conseguem
naturalizar e legitimar a sociedade capitalista, arrogar à democracia o qualitativo de
forma de organização social mais desenvolvida e arrojar a temática da emancipação
humana ao latão de lixo da história. Ainda assim, a influência das teorias elaboradas
pela analítica paulista foi avassaladora nos meios da chamada “esquerda” brasileira,
no seu esforço de fazer a crítica e ultrapassar os limites dos seus antigos represen-
tantes institucionais, além das teorias da Cepal e do Iseb.
As teorias da marginalidade, da dependência, do autoritarismo e do populismo
– esta mais que todas as outras – tentaram explicar a realidade brasileira por meio de
uma comparação com moldes europeus, anulando as relações existentes entre o ca-
pitalismo constituído no Brasil e o conjunto da burguesia mundial. Portanto, é pos-
sível afirmar que serviram para camuflar a entificação específica do modo de produ-
ção do capitalismo no país e o papel que o estado exerce nesse processo. Ademais,
por se pôr à esquerda do capital, sem ultrapassar o ideário que norteia o pensamento
liberal, este corpus teórico resultou no arrefecimento da esquerda e no abandono de
qualquer perspectiva de transformação social que altere o sistema produtivo vigente.
Tais teorias resultaram, por caminhos diversos, na capitulação em relação à ordem
metabólica do capital e a toda a sua barbárie, embrutecimento e alienação. Não obs-
tante suas propaladas intenções de compreender a realidade nacional, contribuíram
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para elidir as características particulares da formação brasileira e, com isto, por sua
larga disseminação no seio da assim chamada esquerda, tiraram da perspectiva do
trabalho a “arma da crítica”.
Mesmo com – ou, talvez, exatamente pelas – suas graves insuficiências internas,
estas teorias se colocaram como instrumento de análise e de condução de práticas
sociais e políticas em nosso país, influenciando largamente a prática de movimentos
sociais e partidos que vão do PSDB ao seu primo pobre, o PT – não obstante as auto-
proclamadas diferenças radicais entre os escopos teóricos de ambas as agremiações.
Assim, passados 40 anos da ditadura militar, já puída (sem ser devidamente
feita!) a discussão sobre a consolidação da democracia brasileira, os principais re-
presentantes teórico-ideológicos da esquerda do capital nada têm a dizer, porque
esgotados em seus próprios referenciais, e a “esquerda” continua desorientada em
meio à grande usina do falso em que se constituiu o capitalismo atual.
As críticas de Chasin apontam alguns caminhos, que necessariamente exigem
uma séria revisão teórica e prática de maior rigor sobre a história brasileira, direcio-
nada a retomar uma práxis transformadora da realidade:
é preciso fazer – não alguma coisa, mas a coisa certa. Re-começar. Sem mito e sem mística,
o re-começo é antes de tudo um re-encontro da classe, uma retomada da razão do trabalho,
como potência central de uma dada ação política, que faz política para além da mera razão
política. Ação política, nem politicismo, nem economicismo, ou seja, movimento social
que visa a matriz e por seu meio o complexo da sociabilidade que ela engendra e mantém
(CHASIN, 1987, p. 199).
Referências Bibliográficas
Chasin, J. Politização da totalidade: oposição e discurso econômico. Revista Temas de Ciências Humanas. São
Paulo, Editorial Grijalbo, n. 2, 1977.
______. O integralismo de Plínio Salgado – forma de regressividade no capitalismo híper-tardio. São Paulo, Livra-
ria Editora Ciências Humanas, 1978.
______. Lukács: Vivência e Reflexão da Particularidade. Revista Ensaio. São Paulo, Ensaio, n. 9, 1982.
______. A Esquerda e a Nova República. Revista Ensaio. São Paulo, Ensaio, n. 14, 1985.
______. A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda. Revista Ensaio. São Paulo, Ensaio, n. 17/18, 1989.
______. “Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica”. In: Pensando com Marx. São Paulo, Ensaio,
1995.
152
revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
Milney Chasin*1
Resumo:
O artigo narra o desenvolvimento intelectual de J.Chasin, iniciado na década de 60 até
a configuração do seu pensamento maduro. Trata-se, pois, de evidenciar características
marcantes de sua reflexão, tais como a propensão à objetividade, ideação marcada pelo
contraste do que empiricamente é passível de observação; de outro, um pensamento em-
breado pela crítica da realidade ideal e histórica do Brasil, de suas principais categorias
sociais revelando, assim, os possíveis nexos e condicionantes nacionais e internacionais
que, sobremaneira, afetaram e afetam a dinâmica e prospectiva do Brasil.
Palavras-chave:
Realidade Brasileira; Crítica; História; Objetividade.
* Professor do CEFET-MG.
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Em 1962, aos 25 anos, em seus primeiros escritos1 J.Chasin parece definir, des-
de cedo, um dos traços marcantes de sua trajetória intelectual: a propensão à obje-
tividade, a reflexão forjada e exposta a partir dos problemas sociais mais urgentes,
ou seja, suas idéias (e a urgência em concebê-las) sempre se ataram a perspectiva
de que cabe ao pensamento responder aos desafios societários, historicamente re-
levantes. De outro, a propensão à objetividade se esboça no fato de que o pensar e
suas possibilidades emergem das formações sociais, isto é, os fenômenos sociais só
podem ser amplamente compreendidos se historicamente desvelados. Não é outro
o sentido dos textos que já emergiam nos idos da Maria Antônia que nitidamente
refletiam este posicionamento que, com o passar dos anos, foi recorrentemente
aprofundado. De modo que tais textos entremostram, assim, a preocupação inicial
do autor com temas ligados à sociabilidade brasileira, aos problemas historicamente
vividos no plano nacional e suas implicações (se houver) no universo internacional.
Assim, J.Chasin inicia sua trajetória intelectual tendo, por norte, a dissecação da reali-
dade brasileira, um envolver-se cada vez maior que, no tempo, o levará ao encontro
com o pensamento marxiano e marxista, à crítica das esquerdas e a configuração
original do capitalismo no Brasil.
Os textos que se afiguram a época permitem reconhecer este traço decisivo
de sua reflexão: “Jânio, do parto à sepultura (1962)”, “Algumas considerações sobre o movi-
mento estudantil brasileiro (1962)”, “Luta ideológica – objetivo central do movimento estudantil
(1962)”, “Contribuição para a análise da vanguarda política do campo (1962)”. Es-
critos que esboçam uma identidade temática e uma preocupação intelectual precisa:
o Brasil, seus dilemas e as lutas sociais. É neste quadro que emerge a análise sobre
Jânio Quadros e os movimentos sociais mais relevantes. Assim, no ensaio “Jânio, do
parto à sepultura” ao enveredar pelo exame histórico da sociabilidade brasileira Cha-
sin, de pronto, recusa qualquer análise meramente psicológica do fenômeno janista:
“Não pretendemos, no entanto, uma análise meramente pessoal ou psicológica do
sucesso janista. Falar em desequilíbrios, loucuras e idiossincrasias não basta e pouco
explica.”2 Linhas à frente o autor esclarece:
Queremos, isto sim, compreender os motivos da decomposição política de um
homem que tinha estofo para ser um autêntico e honesto líder popular e que
muito depressa teve que embair a massa para se sustentar como político /.../
Queremos as raízes econômicas, políticas e sociais desse fenômeno que muitos
erroneamente encararam como pessoal, mas que é evidentemente o produto de
uma fase histórica do processo evolutivo da sociedade brasileira..3
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1977. Nesta, Chasin expõe o ideário de Salgado, expondo sua gênese e necessidade,
enquanto fruto de uma formação social industrialmente tardia, isto é, de um capita-
lismo atrasado e atado economicamente ao campo. Assim, ao estudar o ideário de
Salgado, Chasin incursiona decisivamente pela análise da realidade brasileira buscan-
do no “contexto global da sociedade brasileira” as causas que animaram e engendraram o
movimento integralista.
Ao iniciar os estudos do fenômeno integralista, Chasin constata que, em termos
predominantes, o fenômeno integralista foi subsumido a um viés e exame puramen-
te analógicos, vale dizer, o integralismo é equiparado ideológica e praticamente ao
fenômeno nazi-fascista europeu, pois
Enquanto Plínio Salgado, ao longo do tempo, reiteradamente afirma a originalida-
de de seu pensamento, a raiz brasileira de suas idéias e sua distinção do fascismo
europeu, empenhando nisto um esforço contínuo e sistemático, os autores que a
ele se referem têm primado em desconhecer por completo tais argumentos, insis-
tindo exatamente em teses diametralmente opostas /.../ Reduzindo, portanto, os
protestos e as afirmações de Salgado a mero resultado de dissimulações táticas.”7
Assim, ao desenhar a análise predominante do fenômeno integralista, Chasin
salienta que - para estes autores - “o integralismo é um “fascismo”, e as condições
históricas do Brasil de 30 são entendidas como fundamentalmente semelhantes às da
Itália, Alemanha e outros países da mesma época”.8
Em contraste analítico, J. Chasin afirma:
Fragmento da consciência social do Brasil, o integralismo continuava indecifrado,
oculto em convencional e abstrata definição com o fascismo. Determinar sua efe-
tiva natureza, especificá-lo na especificidade brasileira era projeto que se impunha
com grande evidência, no imperativo mais vasto, até hoje sofrivelmente atendido,
de examinar o conjunto, ou pelo menos os momentos principais, dos eventos
ideológicos no Brasil. Foi assim, então, que de fato nasceu este estudo, e que se
restringiu deliberadamente ao ideário de Plínio Salgado9
Tome-se sua argumentação de raiz que muito bem lembra os argumentos do
início da década de 60: J.Chasin examina o fenômeno integralista a partir de suas
reais condições históricas, ou seja, “especificá-lo na especificidade brasileira”. O objeto era
outro, mas o sentido era o mesmo quando autor, em 62, lidava com o fenômeno
janista e o movimento estudantil, pois já havia a inequívoca discordância em relação
a um discurso que, descolado da realidade, tornava-se incapaz de compreender o
fenômeno janista (atribuindo sua explicação às dimensões meramente pessoais) ou,
no que tange ao movimento estudantil, conquanto seus líderes sejam caracterizados
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nado a partir da crença cega na política, que Chasin qualificou como massacrante falta
de cultura marxista. Assim, o nacionalismo é tido como propositura prática em que
o estado é capaz de equacionar ou minimizar as mazelas típicas do capitalismo e
que se faz ainda mais importante em contextos historicamente mais adversos, casos
dos países de extração colonial. O bom estado, voltado para setores estrategicamente
mais importantes da produção em nome e benefício das populações mais carentes.
Equação política que, no século XX, dominou a prática e o sentimento de inúmeras
organizações progressistas, partidos e sindicatos de esquerda, especialmente atados
às formações capitalistas mais atrasadas. Sentimento que arrasta o estado à condição
de demiurgo da sociedade, ou seja, o estado é encarado positivamente enquanto elo
político a corrigir as disfunções crônicas do capitalismo, de exterminar a miséria ou
de contê-la em níveis menos perversos. É deste politicismo que se nutre a prática das
esquerdas brasileiras, tomando o terreno político (do estado) como condição, talvez
única, da resolução ou contenção de mazelas de um tipo de capital (economicamente
incompleto) e politicamente avesso às formais mais democráticas de dominação. As-
sim, enquadradas em território politicista, as oposições no Brasil desfibrinam as lutas
sociais ao enveredarem para o terreno eminentemente legal, da disputa e das formas
democráticas do poder. Nos termos de A Esquerda e a Nova República:
em vez de partir da materialidade das lutas dos trabalhadores (da cidade e do cam-
po) para atingir e moldar as instituições políticas, tem-se partido do formalismo
destas para atingir e moldar os trabalhadores. Ou seja, tem sido levada aos traba-
lhadores a perspectiva formal das instituições, ao invés de levar às instituições a
perspectiva material dos trabalhadores.26
Apresenta-se, pois, o cerne da crítica chasiniana ao politicismo: os partidos, sindica-
tos e frentes de esquerda operaram e operaram na direção de que o conteúdo pró-
prio das lutas sociais (sua dimensão essencialmente econômica) seja diluída em ma-
triz meramente política, conquanto a solução se enverede para o desenvolvimento e
aperfeiçoamento do aparato político-jurídico do estado. Assim, a vontade política é
hiper-valorada, tudo se restringe, em síntese, em quem será o timoneiro do estado.
De fato, e assim agindo, as esquerdas tornam-se obstáculo à criação de condições
verdadeiramente subjetivas que permitiriam o enfrentamento das urgências sociais,
estampadas nas greves de 78-80:
O retorno depois de muitos anos, dos trabalhadores à cena política brasileira deri-
vava de premências econômico-sociais e continha a perspectiva real de mudanças
estruturais. Barradas e levadas ao refluxo, as lutas operárias e sociais tiveram seu
curso desviado, pela intervenção politicista da ditadura e das oposições, para a
campanha eleitoral de 82. Na seqüência, foi a vez da gigantesca ansiedade popu-
26. A Esquerda e a Nova República in A Miséria Brasileira, p. 154.
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lar pelas mudanças sofrer a canalização para o território institucional das diretas-já,
depressa recodificada em escalada ao colégio eleitoral, em benefício de uma tran-
sição indefinida, rumo a uma suposta democracia só determinada pela falta de
conteúdo27
Tome-se, pois, o argumento em tela que esclarece a prática das esquerdas brasi-
leiras do pós-64: o conteúdo econômico das lutas sociais é posto secundariamente e
a reboque face às exigências de aperfeiçoamento das instituições políticas. Em ver-
dade, comparece a crença de que os problemas econômicos encontram uma solução
meramente política ou que dependam, apenas, da vontade de um governo popular,
amparado em amplo contexto de massas. Horizonte castrador que remete a universo
mesquinho e estéril de apenas questionarem “as formas do poder e nunca o próprio
poder, formas da prática política e nunca a própria prática política”28. Em síntese, as
agremiações, sindicatos e partidos de esquerda no Brasil jamais se interrogaram pela
natureza do poder político (e por extensão do estado) o que, para Chasin, sinaliza, vale
repetir, massacrante falta de cultura marxista. Disto resulta uma esquerda às avessas, cuja
fé na política configura a própria negação de si mesma. Esquerda cujo perfil politi-
cista e a incultura marxista torneiam a natureza de partidos, sindicatos e agremiações
cujos liames ganham o torno de esquerda no gradiente do capital. Assim, em 1989,
no texto A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda, Chasin sustenta a tese inovadora da
morte das esquerdas. No Brasil tal tese engloba as agremiações tradicionais (PCB, PC
do B e sindicatos), como também, da chamada nova esquerda ou esquerda não marxista cuja
exemplaridade é o próprio PT e seus sindicatos. Agremiações eivadas pelo marxismo
vulgar de inspiração stalinista-maoísta e pelo taticismo político. Chasin, então, expõe
seu argumento:
o século e meio de lutas compreendidas entre 1848 e 1989 foi um século e meio
de insucessos e fracassos, onde o “socialismo” real é a derrota culminante dessa
dura história de derrotas. É urgente compreender que as derrotas de hoje são
de natureza totalmente diversa daquelas sofridas no século passado e em princí-
pios deste. Enquanto nas mais antigas, mesmo episodicamente vencidas, a lógica
onímoda do trabalho se afirmou e rasgou perspectivas, nas mais recentes é o
esgotamento de todo um itinerário que se manifesta, envolvendo caminhos e ins-
trumentos. Muito em especial, rotas e ferramentas políticas mitificadas, que não
só não correspondem às concepções clássicas, mas que, na forma aberrante em
que se impuseram e difundiram, acabaram por se converter, em sua espúria iden-
tidade, em motivos fundamentais da própria liquidação da esquerda, enquanto
posição e organização política matrizada pela perspectiva da sociabilidade virtual
do trabalho29
27. Ibid, p. 154.
28. Democracia Direta Versus Democracia Representativa in Revista Ad Hominem, tomo III, política,
p.110.
29. A Sucessão na Crise e a Crise na esquerda in A Miséria Brasileira, p. 201.
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A tese é, pois, original, pois não procura culpados ou meras justificativas para as
mazelas de ontem e hoje. Compreende a falência das esquerdas e a necessidade de se
repor, urgentemente, uma nova perspectiva de esquerda. Nos termos de A Sucessão
na Crise e a Crise na Esquerda:
Vencida até aqui, o que derrota a humanidade para muito além do estreito univer-
so da política, no entanto, a potência onímoda da lógica do trabalho não foi nem
poderia ser extinta, de modo que um futuro renascimento da esquerda, reassen-
tada sobre a autêntica legalidade humano-societária do trabalho, compreenderá
uma diversidade cabal na ordem da organização e efetuação políticas, bem como
na prática das lutas sociais e sindicais, redefinidas em contraste com as “matrizes”
do século XX, o que não implica a ruptura com heranças e princípios legítimos,
que as revoluções do século foram incapazes de respeitar e sustentar. Reconhecer,
em toda a extensão de sua gravidade prática imediata, a morte da esquerda real e
a ressurreição do liberalismo não é, portanto, manifestação de pessimismo, nem
muito menos uma declaração do fim da história. Pelo contrário, é cumprir a exi-
gência revolucionária elementar de aferição objetiva do quadro histórico vigente,
facultada exatamente pela manutenção de perspectivas, que suscita senso crítico
e de realidade, inclusive em circunstâncias de extrema adversidade, como a dese-
nhada nestes finais de século. Quanto mais concreta for a representação do atual
momento desfavorável, tanto mais solidamente poderão ser fundadas as esperan-
ças, pois a morte da esquerda não é a extinção da perspectiva histórica da esquerda30
Tese radical, pois alcança a raiz dos dilemas humano-societários. Enfrenta os
problemas para além das circunscritas dimensões político-organizacionais dos par-
tidos e sindicatos ou dos erros e equívocos de ordem ético-individuais. Reconhece
o tecido apodrecido das agremiações, sua prática improgressiva e a necessidade da
emergência de novas formas da esquerda. Novas formas que obrigariam repensar o
sentido e o significado de ser de esquerda, ainda mais, no atribulado século e meio de
derrotas. É, pois, neste contexto que se insere a emergência da Ensaio: Movimento de
Idéias, Idéias em Movimento.
Tomemos, pois, inicialmente o depoimento do próprio J.Chasin:
Há uns tantos anos, pouco mais de duas décadas, elididas rotas e convicções bem
mais pessoais e remotas, emergiu o projeto Ensaio, antecedente espiritual e passo
primeiro destes novos Ensaios AD HOMINEM. Foi na época, amálgama de dire-
tivas ponderadas, alguma experiência e muita observação das vicissitudes sofridas
pela esquerda brasileira e mundial desde os percalços do pré-6431.
E desdobra,
No início dos anos 80, o panorama nacional exibia a reconversão da ditadura
militar em distensão democrática, ao lado do refluxo aflitivo da movimentação
30. Ibid, pp. 201-2.
31. Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista in Miséria Brasileira, p. 5.
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Milne y Chasin
Referência Bibliográfica:
CHASIN, J. A Miséria Brasileira, Santo André: Estudos e edições ad hominem, 2000, 367p.
_________. Tomo III, Política. Revista de Filosofia, Santo André: Estudos e edições ad hominem, 2000, 243p.
_________. Manifesto Editorial I in A Burguesia e a Contra-revolução, São Paulo: Editora Ensaio, 1993, 98p.
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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
Palavras-chave:
Marxismo; Capital; Capitalismo hiper-tardio; Via Colonial; Brasil.
* Mestre em Filosofia pela UFMG, doutoranda em Educação pela UFMG, Professora do Instituto Superior
de Ensino Anísio Teixeira da Fundação Helena Antipoff-MG.
** Mestre em Filosofia pela UFMG, doutorando em Filosofia pela UNICAMP, Professor do Colégio Técnico
da UFMG.
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S abina Ma ura S ilva e Antônio José Lopes Alves
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Chasin e a tese d a "via coloni al"
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S abina Ma ura S ilva e Antônio José Lopes Alves
e subordinam” (Chasin, 2000, p. 158). História que se tece com fios a esgarçar-se a
cada trama urdida no tear das relações societárias capitalistas no Brasil. Apartamento
de fios, separação da urdidura que perfaz não o nada, mas uma dada configuração de
ir sendo capital, que se revela incompleto em seus momentos de inflexão e de repro-
dução sócio-econômica, assim como desvela a sua própria incompletude como um
dos traços distintivos de sua totalidade concreta. Totalidade de relações de produção
que, na sua figura castrada e claudicante, foi-se consolidando temporalmente como
um modo particularizado de articulação das categorias do capital em terras brasi-
leiras. Modo de ser das categorias que explica e implica em sua atrofia original, em
sua figura lacunar primitiva, continuamente reproduzida e ampliada, em associação
necessariamente subordinada com os capitais centrais, as diversas incompletudes
sociais que dilaceram a sociabilidade brasileira, e elevam a potências inimagináveis
os dilaceramentos imanentes à ordem do capital enquanto tal:
Desprovido de energia econômica e por isso mesmo incapaz de promover a ma-
lha societária que aglutine organicamente seus habitantes, pela mediação articu-
lada das classes e segmentos, o quadro brasileiro de dominação proprietária é
completado cruel e coerentemente pelo exercício autocrático do poder político.
Pelo caráter, dinâmica e perspectiva do capital atrófico e de sua (des)ordem social
e política, a reiteração da excludência entre evolução nacional e progresso social é
sua lógica /.../ (Chasin, 1989, p.49).
Consolidação histórica concreta de um modo de capitalismo que fez da repro-
dução de sua rombuda limitação o meio próprio de ir existindo como forma mo-
derna de sociabilidade. Frise-se forma moderna, na medida em que nunca se tratou da
reedição curiosa e intempestiva de modalidades de ordenamento sociais já superadas
nas sociedades centrais. Não sendo a permanência de restos feudais ou coisa parecida,
nem que seja pela razão de que empiricamente a brasilidade se gesta no interior de
um processo econômico já ele mesmo tipicamente moderno. É a processualidade da
existência de uma forma atrófica de capital, com todo o séquito de relações sociais
que o acompanham necessariamente:
Em síntese, à via colonial de efetivação do capitalismo é inerente o estrangulamento
da potência auto-reprodutiva do capital, a limitação acentuada da sua capacidade
de reordenação social, e a redução drástica da sua força civilizatória. Desse modo,
ao mesmo tempo que encobrem por inacabamento, seus processos empuxam, pela
via da irresolução crônica das questões mais elementares, a contradição entre capital
e trabalho (Chasin, 1989, p.49).
Essa particularidade de desenvolvimento, a reprodução continuada e ampliada
de uma restrição, realiza-se plenamente na ausência de uma revolução propriamente
burguesa, ou ainda na sua impossibilidade original e visceral. Desse modo, o “novo”
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emerge sem que haja a superação do “velho”. A política, tão identificada – e pouco
compreendida – da formação de frentes e/ou de direcionamento de processos por
meio de compromissos, os quais excluem obrigatoriamente qualquer menção a rup-
turas concretas e a demarcações históricas, encontra, a partir da compreensão da Via
Colonial, então, a sua explicação:
Na particularidade da formação do capitalismo brasileiro /.../ [é] marcadamente
próprio desta a conciliação entre o historicamente velho e o historicamente novo,
de tal forma que o novo paga pesado tributo ao velho no seu processo de emersão e
vigência, o confronto entre as componentes agrária e industrial do modo de pro-
dução capitalista, no caso brasileiro, teria forçosamente de assumir modalidade
específica; digamos assim, formas abrandadas e veladas (Chasin, 1999, p. 566).
A história brasileira do capital, como historicidade concreta da incompletude e
da não ruptura, engendra a figura de suas personæ, como formas peculiares de indi-
viduação e de classes sociais capitalistas. O que se gestou na rota de constituição da
forma social capitalista brasileira foi uma burguesia à imagem das relações sociais
de produção do capital que aqui vicejaram. Capital atrófico e, por conseguinte, atro-
fiante, que circunscreve e, no caso específico, adstringe o campo de possibilidades
societárias. Incompletude de classe no âmbito econômico, no que tange às formas
de organizar a extorsão social de mais-valor, a qual se expressa, conseqüentemente,
no âmbito político, como uma espécie de inapetência para o domínio propriamente
moderno. O que a ela restou foram as ilusões próprias à politicidade em geral, sem
compartilhar das potencialidades sociais. Como bem observa Chasin,
Desprovido de energia econômica e por isso mesmo incapaz de promover a
malha societária que aglutine organicamente seus habitantes, pela mediação
articulada das classes e segmentos, o quadro brasileiro de dominação proprie-
tária é completado cruel e coerentemente pelo exercício autocrático do poder
político (Chasin, 1989, p.49).
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Modo de ser do capital atrófico que determina e condiciona o desenho não ape-
nas das classes que dominam a produção, e exercem este domínio politicamente de
maneira canhestra, mas igualmente daquelas a estas contrapostas pela divisão capi-
talista do trabalho. A figura social do trabalho, como expressão em classe, do funda-
mento real da produção do capital – uma vez que é impossível ser processo de produção
do capital sem ser imediatamente processo de produção, de trabalho – acaba também
se realizando como forma de ser social incompleta. E isso, tanto em sua figuração
concreta, no processo imediato de produção, como nível baixo ou retardatário de
capacitação, quanto na expressão política de sua antítese social ao capital, na pessoa
de suas agremiações de classe ou políticas. A incompletude de classe da burguesia
brasileira determina a incompletude de classe dos trabalhadores:
A esquerda brasileira, portanto, não nasceu contra a cabeça e o corpo de um
antigo revolucionário. Não se deparou com uma entificação histórico-social inte-
gralizada. Viu-se em face da integralização histórico-social de um inacabamento.
/.../ A crítica prática e teórica dos trabalhadores, aqui, não principiou por onde
os proprietários haviam concluído. Estes não só não haviam terminado, como
não podiam terminar nunca. E a esquerda bracejou no abismo do inacabamento
do capital, convertida em empreiteira de uma obra por finalizar. Obra que, sob a
mesma planta, jamais poderia ser sua (Chasin, 2000, p. 159).
Assim, como modo de ser da articulação das categorias do capital, a via de cons-
tituição do capitalismo brasileiro determina como espelhamento da incompletude
de seu fundamento semelhante inacabamento da persona social a este contraposta.
Persona social ou classe que enfrenta a dos detentores da massa de condições so-
ciais objetivas da produção como capital no terreno minado por uma incompletude
imanente e inerente. Capital que se reproduz na atrofia de sua essência e condiciona
a predicação social e política de suas expressões como conflito entre classes. Como
imagem especular do inacabamento do capital, a prática conflituosa específica do
caso brasileiro impõe, curiosamente, às classes trabalhadoras, não o repto histórico
de derrubar a forma social capital, mas sim de realizá-la de maneira completa. O que
de per se se constitui num escândalo histórico-social, que vai caracterizar a anomia e a
anemia das lideranças do trabalho e de suas expressões políticas. Conseqüentemen-
te,
A esquerda brasileira nasce, portanto, submersa no limbo, entre o inacabamento de
classe do capital e o imperativo meramente abstrato de dar início ao processo de
integralização categorial dos trabalhadores. Alma morta sem batismo, não atina
para a natureza específica do solo em que pisa, nem para a peculiaridade de pos-
tura e encargo que este chão dela demanda e a ela confere.
Posta entre a mera possibilidade genérica de uma revolução abstrata, e a reali-
dade concreta de um capital incompleto e incompletável, a esquerda sucumbe,
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O sistema produtivo nacional, desde sempre, encarnou seus perfis e o teor de suas
modernizações subordinado aos empuxos dos pólos hegemônicos mundiais. Não
é diverso o que se passa agora, diante da mais radical das revoluções tecnológicas,
combinada ao quadro da globalização econômica (idem).
Nesse sentido, o Brasil sempre esteve inserido no quadro de uma economia in-
ternacionalizada. “Todavia, dada a qualidade e a envergadura destas e o próprio grau
de desenvolvimento material alcançado no país, as margens de manobra nos ajustes
e seus efeitos possíveis também se diferenciam, ao mudarem de natureza” (ibidem).
É importante ressaltar que Chasin chama a atenção para a mudança de natureza do
processo de acumulação e reprodução do capital, a qual determina a mudança de
natureza da subordinação brasileira. É, pois, neste sentido que pode se entender o
“fim da via colonial”, dado que,
Para o bem e para o mal, aqui se fecha e fica para trás um longo ciclo, cujas ca-
racterísticas dominaram a maior parte do cenário brasileiro neste século. Traços
que reduzidos ao essencial, conferiram ao país o semblante de uma entificação na-
cional que pelejava para completar sua formação capitalista, mas que reproduzia
sempre, apesar da multiplicação das formas de crescimento e diversificação eco-
nômicas, a incompletude de seu capital e, por conseqüência, suas peculiares mazelas
sociais e políticas. Toda essa problemática perdeu suas âncoras e se transfigurou,
no bojo dos novos parâmetros internacionais do sistema de produção e circulação
de mercadorias (Chasin, 1996, p. 104).
De modo que o fim da via colonial se deu em função do ultrapassamento da
lógica do capital que a enformava: “os contornos de uma produção de mercadorias
ainda delimitada ou de escala relativamente modesta, cuja circulação era efetivada,
em regra, no âmbito bilateral de mercados mais ou menos restritos e cativos, sob a
regência das potências centrais” (Chasin, 1996, p. 105). Dado a isso é que o receptor
tinha que necessariamente ser reproduzido enquanto tal. Agora, em face da “produ-
ção ampliada a grandezas sem limites e o intercâmbio comercial elevado ao primado
das trocas infinitas e superpostas, sem embaraços de fronteira” (idem), as delimitações
sistêmicas alteram as exigências do padrão produtivo interno do capital, não mais
como potência subordinada diretamente, por meio do financiamento externo de sua
reprodução, a um dado capital localizado, pois
crescer passou a supor a capacidade de ocupar nichos na infinitude da malha de
produção atualizada, universo no qual os mercados interno e externo não mais
se distinguem: ao capital social global corresponde agora o Mercado Único das
trocas levadas ao paroxismo” (ibdem).
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Referências Bibliográficas:
Chasin, J. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio, Belo Horizonte: UNA
Editora/Estudos e Edições Ad Hominem, 1999.
_______. A Miséria Brasileira: 1964-1994 – do golpe militar à crise social, São Paulo: Estudos e Edições Ad Ho-
minem, 2000.
_______. O poder do real, in O Mundo Hoje 95/96, São Paulo: Editora Ensaio, 1995.
_______. Rota e prospectiva de um projeto marxista, in Ensaios Ad Hominem, número 1, tomo III, São
Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 2001.
_______. A Sucessão na Crise e a Crise da Esquerda, in Ensaio 17/18, São Paulo: Editora Ensaio, 1989.
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educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
Palavras-chave:
Integralismo; Utopia Recionária; Revolução Espiritual; Anticapitalismo Romântico; Capitalismo hiper-tardio.
* Publicado originalmente com o título “A crítica ontológica à oposição romântica da ‘miséria brasileira’: os in-
tegralismos de Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale”, Posfácio à segunda edição da obra de Chasin,
O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo/Belo Horizonte, Ad Hominem/Ed. Una, 1999.
** Prof. Dr. do Colegiado de Ciências Sociais do Centro Universitário Fundação Santo André e Programa de
Estudos Pós-graduados em História e Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-
SP.
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como fato estabelecido. Se pessoalmente não aceito a sua premissa, sinto que não poderei
mais falar do assunto sem passar por ela e sem que ela me leve a matizar o meu ponto de vista.
(CANDIDO, 1978, p. 20)
Nada mais justo, todavia, nada mais próximo da verdade histórica do que esta
autêntica apreciação de “alterar as noções dominantes”, as quais simplesmente anu-
laram as especificidades históricas, tornando-as indistintas, porque, de fato, a crítica
chasiniana do fenômeno integralista alça a um verdadeiro divisor de águas, que nos
obriga a repensá-lo em sua integridade ontológica. De outra parte, Antonio Candido
reclamará um certo exagero em suas demonstrações, uma “certa prolixidade” em
suas minúcias; porém, o intento chasiniano, próprio à sua obsessão, era o de não dei-
xar escapar nenhuma determinidade que pudesse gerar alguma dúvida, que abrisse
alguma brecha para o debate desqualificador. Daí, a força probante da tese chasiniana,
levada à saturação. O combate deveria ser travado no domínio da objetividade his-
tórica.
Certamente, Chasin se propunha a reestruturar este trabalho, não só no sentido
de torná-lo mais enxuto, porém, mais diretamente, no que tange à parte teórico-
metodológica, ainda tributária de certas imprecisões das reflexões lukacsianas, que
mais tarde seriam criticadas, especialmente no capítulo “Da teoria das abstrações à
crítica de Lukács” de sua obra Marx - estatuto ontológico e resolução metodológica (1995)
e ao descortino pleno do estatuto ontológico imanente ao pensamento marxiano;
todavia, jamais no sentido de alterar ou desmentir sua descoberta básica: o integralismo
não é o fascismo brasileiro. É bom que se grife: nesta obra, todos os conteúdos estão
submetidos ao diapasão ontológico, nessa medida, Chasin não renuncia por um só
momento às abstrações razoáveis próprias à captura da objetividade histórica, do con-
creto enquanto concreto pensado.
Se a tese punha de modo cabal a importância da crítica ontológica da ideologia – para
o desvelamento dos produtos espirituais e da particularidade histórica da objetiva-
ção capitalista em nosso país, da natureza de suas classes sociais, da variedade das
formas de nacionalismo e da especificidade da oposição romântica à miséria brasileira –, a
recepção da tese à esquerda, no entanto, foi um rotundo fracasso. A tática da guerra
de silêncio se constitui desde aí. Na medida em que Chasin renovava com um autên-
tico e rigoroso procedimento científico, alargando as possibilidades da crítica das
ideologias, trabalhando com profundidade a própria realidade nacional, por meio do
desvendamento do tecido teórico de Marx e com as contribuições de Lukács sobre
as determinações da via prussiana e de seu complexo cultural, particularmente, desdo-
bradas na obra A destruição da razão –, a esquerda torcia o nariz julgando até mesmo
desnecessário o esforço despendido, enquanto a academia desdenhava a validade de
estudo científico de objetos “menores”.
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Gilberto Vasconcellos abre sua obra A ideologia curupira com o alvo pretendi-
do: “A busca da especificidade do integralismo enquanto discurso fascista que
se insere numa sociedade capitalista periférica”. Nesse sentido, tenta buscar
e precisar a “especificidade” da cópia do fascismo europeu: “embora de ponta
a ponta mimético, o discurso integralista ostenta um traço que o diferencia de
seus congêneres europeus, e cuja razão de ser nasce da resposta equivocada
(mas sociologicamente compreensível) à heteronomia de país periférico, a saber: a
fantasmagoria de uma utopia autonomística em relação às nações capitalistas
hegemônicas”. Pois, como deseja o autor, tendo como base os resultados da
analítica paulista: “o pano de fundo: mostrar que o contexto da dependência, no
qual se moviam os camisas-verdes, acabou por afetar (independentemente de
sua consciência) a apropriação dos fascismos europeus” (VASCONCELLOS, 1979,
p. 17).
Vasconcellos tenta provar que aqui não ocorre uma relação orgânica entre ide-
ologia e estrutura social tal como se verifica em países capitalistas dominantes, pois
estes não sofrem da “heteronomia estrutural da dependência” do imperialismo, pro-
porcionando, desta forma, aos países periféricos uma espécie de “indeterminação
social” do pensamento, caindo assim no campo das ideologias “de segundo grau”.
Com isso, tenta consubstanciar “as idéias fora do lugar” do movimento integralista,
pois, “Em outros termos, é justamente através da ausência de organicidade entre
superestrutura ideológica e a base material da sociedade que se realiza o modo par-
ticular de as idéias se produzirem socialmente na periferia”. Concluindo que, no
discurso do “fascismo caboclo”, “transparece o timbre característico da vida ideo-
lógica na periferia: o funcionamento dessa não se auto-impulsiona em conexão com
a estrutura social que lhe corresponde, permanece mais à mercê dos influxos externos. Em
suma, ele se enquadra perfeitamente naquilo que Schwarz denomina ideologia de
‘segundo grau’, ou seja, ideologias que ‘não descrevem falsamente a realidade, e não
gravitam segundo uma lei que lhes seja própria! Um discurso fora do lugar, a expressão
que aqui se justifica” (VASCONCELLOS, 1979, p. 190).
Mas como Vasconcellos se propôs à compreensão da “especificidade” das for-
mas do “irracionalismo fascista”, as determinações essenciais próprias à via colonial
de objetivação capitalista são descartadas, ainda que o autor se esforce em apontar
que os conflitos sociais não se encontravam sob o mesmo plano de radicalidade que
no capitalismo avançado. Por isso, reconhece que,
Tendo em mira o contexto brasileiro dos anos 30, a emergência de um irraciona-
lismo fascista do tipo camisa-verde não corresponde a um resultado da evolução
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guém defende a democracia, mas age contra a democracia, a sua ideologia eviden-
temente é antidemocrática. No plano verbal, portanto, essa pessoa perpetra um
engodo. O seu momento ideológico verdadeiro não é enunciado. Muito bem, mas
a ideologia seria muito simples se fosse um ato deliberado de enganar os outros.
O que faz da ideologia um fenômeno difícil, complexo e importante, é que ela
freqüentemente manifesta um auto-engano: a pessoa engana a si mesma, acredita
sinceramente numa visão distorcida da realidade. (CHASIN, 1977, p. 6)
Com relação às fontes e influências nacionais de Plínio Salgado, as descobertas
chasinianas são reveladoras. Se não, vejamos.
Se lemos, superficialmente a obra de Plínio Salgado, podemos chegar à conclusão
de que quase todas as personalidades importantes do Brasil e de Portugal con-
tribuíram para a formação de sua ideologia. Qualquer manifestação regressivista,
ainda que sem nenhuma ligação com as propostas integralistas, é incorporada por
ele, a partir do Infante Dom Henrique. Mas a sua principal fonte de inspiração é
realmente Farias Brito, no campo de espiritualismo – um Farias Brito já conver-
tido ao cristianismo. Também Jackson de Figueiredo, sob um duplo aspecto, o
influenciou: no cristianismo militante e fanático e na ideologia da ordem e do es-
tado forte. Tristão de Athayde, antiliberal cristão nos primórdios do integralismo,
saúda em Plínio Salgado “um pensamento novo”. Oliveira Lima e Oliveira Vianna
(deste, uma noção de corporativismo), além de Alberto Torres (o nacionalismo
agrário e a distinção Brasil real - Brasil legal) são outras fontes de Plínio Salgado
(CHASIN, 1977, p. 6.)
O valor da tese chasiniana sobre o integralismo não se reduz, entretanto, ao
exame do conjunto essencial dos escritos de Plínio Salgado, o principal ideólogo do
movimento, o principal formulador da visão integralista do mundo, antes, durante e
depois da própria existência da AIB (1932-1937), mas alcança a explicitação do mar-
xismo como um novo patamar teórico dotado de uma ontologia estatutária. Ressal-
te-se aí a força das abstrações razoáveis – tematização que, mais tarde, será amplamente
desenvolvida em sua mais consistente reflexão sobre Marx: estatuto ontológico e resolução
metodológica, de 1995 –, por meio da qual buscou concretar a efetiva análise imanente
do discurso pliniano, respeitando-o em sua integridade própria, realizando em graus
mais abstratos as determinações relativas ao solo histórico, sempre no empenho à
objetividade, enquanto pensamento concreto, e o resultado desta efetiva concreção, a re-
produção do complexo categorial da miséria brasileira ou da via colonial de objetivação
capitalista em suas determinações essenciais.
Em virtude de o integralismo apresentar uma larga dimensão retórica em seu dis-
curso, os intérpretes convencionais o caracterizaram como uma forma permanente
de dissimulação e mistificação. Como esta analítica deixa de lado a parte residual
desse discurso, deixa de lado a objetividade do corpo ideológico, os conteúdos signi-
ficativos que expressam o ser social limitado, de natureza ruralista, a debilidade de sua
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Nesse sentido, adotar a tese de que integralismo e fascismo são entes concretos
que se distinguem historicamente, implica também distinguir a via prussiana, como
forma não-clássica de objetivação capitalista, que propiciou às formações capitalistas
singulares, como a Itália e, principalmente, a Alemanha, um salto sem precedentes
de uma condição de atraso histórico para posição de um capitalismo monopolista já
no estágio imperialista. O fenômeno do fascismo, portanto, é produto dessa lógica
particular do desenvolvimento do capitalismo avançado. O fascismo é considerado,
assim, expressão do grande capital, que busca expandir-se por meio de uma ideolo-
gia de mobilização para a guerra imperialista, a fim de se forçar uma redivisão das
esferas já dominadas pelos pólos hegemônicos do grande capital. A via prussiana
é tomada não como modelo, mas como exemplaridade histórica. O integralismo,
muito ao contrário, põe-se como utopia reacionária no interior dos condicionamen-
tos de outra forma não-clássica, a via colonial, subordinado ao imperialismo, como
movimento que buscou estancar o desenvolvimento do capital industrial em nossa
singularidade histórica.
Segundo seu formulador, o conceito de miséria brasileira ou, mais precisamente,
via colonial de objetivação capitalista, designa um complexo concreto historicamente
determinado; da mesma maneira que o caminho prussiano, caracteriza-se como uma
forma não-clássica do desenvolvimento do capitalismo.
Miséria brasileira é determinação particularizadora, para o âmbito do capital e
do capitalismo de extração colonial, da fórmula marxiana de “miséria alemã”.
Compreende processo e resultantes da objetivação do capital industrial e do ver-
dadeiro capitalismo, marcado pelo acentuado atraso histórico de seu arranque e
idêntico retardo estrutural, cuja progressão está conciliada a vetores sociais de
caráter inferior e à subsunção ao capital hegemônico mundial. Alude, portanto,
sinteticamente, ao conjunto das mazelas típicas de uma entificação social capi-
talista, de extração colonial, que não é contemporânea de seu tempo (CHASIN,
1985, p. XI).
Recorde-se, num outro contexto, com maior concreção, Chasin salientava que
a mundialização do capital subsume formações sociais distintas e engendra de-
senvolvimentos desiguais e combinados. /.../ O que importa ressaltar /.../ é que
pela via colonial da objetivação do capitalismo, o receptor tem de ser reproduzido
sempre enquanto receptor, ou seja, em nível hierárquico inferior da escala global
do desenvolvimento. Em outras palavras, pelo estatuto de seu arcabouço e pelos
imperativos imanentes de sua subordinação, tais formações do capital nunca inte-
gralizam a figura própria do capital, isto é, são capitais estruturalmente incomple-
tos e incompletáveis (CHASIN, 1989, p. 41).
Em virtude dessa natureza, aqui a evolução nacional se manifesta contrariamen-
te ao progresso social. Segundo a especificação chasiniana, a modernização capita-
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lista se faz sem ruptura, o historicamente novo paga alto tributo ao historicamente velho, a
dominação autocrática dos proprietários se põe de modo perverso, sem os processos
democráticos de incorporação das massas. Daí,
A contraposição, sob as condições de existência geradas pela via colonial, é ainda
mais perversa, porque a evolução nacional é reflexa, desprovida verdadeiramente
de um centro organizador próprio, dada a incompletude de classe do capital, do
qual não emana nem pode emanar um projeto de integração nacional de suas
categorias sociais, a não ser sob a forma direta da própria excludência do pro-
gresso social, até mesmo pela nulificação de vastos contingentes populacionais
(CHASIN, 1989, p. 49).
A exigência integralista de um estado forte se insere no contexto do autocratismo
burguês, determinidade intrínseca do capital atrófico, tal como Chasin especifica em
sua teoria da via colonial.
A nossa burguesia, para quem o liberalismo econômico (a livre troca para susten-
tar e ampliar sua própria natureza exploradora, através da associação crescente
com a exploração hegemônica e universalizante do capital externo) foi sempre
apropriado e conveniente, nunca pôde, nem sequer poderia ter aspirado a ser
democrática, tem no politicismo sua forma natural de procedimento. Politicista e
politicizante, a burguesia brasileira, de extração pela via colonial, tem na forma de
sua irrealização econômica (ela não efetiva, de fato e por inteiro, nem mesmo
suas tarefas econômicas de classe) a determinante de seu politicismo. E este integra,
pelo nível do político, sua incompletude geral de classe. Incompletude histórica de
classe que a afasta, ao mesmo tempo, de uma solução orgânica e autônoma para a
sua acumulação capitalista, e das equações democrático-institucionais, que lhe são
geneticamente estranhas e estruturalmente insuportáveis, na forma de um regime
minimamente coerente e estável. O politicismo atua neste contexto, enquanto
produto dele, como freio e protetor. (CHASIN, 1982, pp. 7-8)
Pesando os traços específicos, Chasin estabelece as diferenças concretas entre
particularidades históricas distintas entre si, que possuem similitudes se comparadas
com as determinações imanentes à via clássica, porém, deixa consignado que esta-
mos diante de predicados abstratos, cuja concreção efetiva somente se obtém em sua
consideração histórica, a saber:
no momento em que se determina que, no caso alemão, se está indicando uma
grande propriedade rural proveniente da característica propriedade feudal posta
no quadro europeu, enquanto no Brasil se aponta para um latifúndio procedente
de outra gênese histórica, posto, desde suas formas originárias, no universo da
economia mercantil pela empresa colonial. Do mesmo modo quanto à expansão
das forças produtivas. Em ambos os casos o desenvolvimento é lento e retarda-
tário em relação aos casos clássicos. Mas, enquanto a industrialização alemã é das
últimas décadas do século XIX, e atinge, no processo, a partir de certo momen-
to, grande velocidade e expressão, a ponto da Alemanha alcançar a configuração
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urbano-industrial, acena com uma vaga e longínqua civilização agrária que se im-
porá espontaneamente à admiração mundial, e defende programaticamente para
o Brasil um urgentíssimo retorno à terra. (CHASIN, 1978, p. 618)
Esta é, portanto, a determinação essencial da natureza ideológica do integra-
lismo de Plínio Salgado, não detectada pela crítica convencional, como manifestação
de oposição romântica ao capitalismo, de uma ótica do pequeno capital, que se põe
contra os efeitos do desenvolvimento do capitalismo híper-tardio. Coloca-se, dessa
maneira, com uma doutrina em face da urgência política, própria às indefinições
do processo aberto em 30, desenvolvendo para esta função social um discurso per-
suasivo. “É”, afirma Chasin, “a urgência de uma tentativa desesperada de tolher a
progressão histórica”!
Entende-se, pois, a natureza social dessa forma de regressividade que luta deses-
peradamente contra o maquinismo e o materialismo da ordem social burguesa, mirando
um retorno à terra: “Queremos o indivíduo integral. Nós, caboclos dos trópicos,
proclamamos, em face de uma civilização que nos quer deprimir, os sagrados direi-
tos do homem brasileiro. O indivíduo como força moral é o centro da família, como
força econômica é a razão de ser de sua classe. E é em conseqüência dessas duas forças
que ele age, como força política no Estado”, escrevia Plínio no Manifesto da Legião
Revolucionária de São Paulo, em janeiro de 1931. Ideologia esta que busca atingir aquilo
que considera a raiz dos males que afetam a nação brasileira. O verdadeiro engendra-
dor dos conflitos e dos contrastes sociais, “o Estado liberal democrático é um Esta-
do opressor”. Por isto, no jornal A Razão de 17 de julho de 1931 Salgado condena:
“A luta de classes tem a sua origem na concepção desse estado que exerce, através de
sua força armada e do seu judiciário, apenas o papel de esbirro”.
Nesse sentido, preso à visão politicista do capital atrófico, Salgado propõe a ins-
tauração de um estado forte, que face ao raquitismo deste sujeito histórico, na acepção
chasiniana, surge como um estado intermédio, uma vez que quer se diferenciar tanto
do estado fascista como do liberal, suposto como um estado pequeno-burguês para
fazer prevalecer um capitalismo pequeno-burguês de base rural. Este estado forte
põe-se, assim, como instrumento da revolução espiritualista, que tem na família o seu
esteio moral. A revolução espiritualista tem o significado de um movimento de regres-
são, de retomada dos valores imutáveis abandonados pela humanidade, a fim de se
reporem equilíbrios perdidos; nesse sentido, para Salgado, “A Revolução tem que
lutar contra os fatos /.../. É aí que se evidencia o caráter subjetivo (leia-se: idealista,
espiritualista) da Revolução. Pois ela não se conforma com o desenvolvimento das
forças materiais da sociedade” (SALGADO apud CHASIN, 1978, p. 614).
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Recorde-se, mais uma vez, que, em vários momentos, o próprio Barroso pro-
curou mostrar a diferença do seu anti-semitismo com respeito ao nacionalismo hi-
tlerista, de natureza rácica. Em sua ótica, se o anti-semitismo alemão tem como
base a “unidade dos povos germânicos”, isto de forma alguma se aplicaria ao caso
brasileiro, em virtude das “verdades essenciais” de nossa tradição histórica. Isto por-
que, escreve em Integralismo e catolicismo, “O Brasil não tem brasileiros exilados em
minorias étnicas além de suas fronteiras e é um país cadinho de raças. Também a
questão judaica aqui não se apresenta sob o mesmo aspecto. Temos de nos libertar
da escravidão ao banqueiro internacional e temos de impedir a formação de forças
paralelas ao estado, que entravam a ação deste e o levam a medidas favorecedoras
de interesses de grupos políticos, econômicos e financeiros” (BARROSO, 1937c, p.
114).
E, no caso do principal ideólogo do integralismo, qual era a sua posição diante
desta questão? Salgado, numa fórmula sintética, enfatizará que o “problema do mun-
do é ético e não étnico”. Numa carta de 1934, publicada na revista Panorama, deixa
explícito que:
“Não sustentamos preconceito de raça; pelo contrário, afirmamos ser o povo e
a raça brasileiros tão superiores como quaisquer outros. Em relação ao judeu,
não nutrimos contra essa raça nenhuma prevenção. Tanto que desejamos vê-la
em pé de igualdade com as demais raças, isto é, misturando-se pelo casamento
com os cristãos. /.../ O judeu capitalista é igual a um cristão capitalista: sinais de
uma época de democracia liberal. Ambos não terão mais razão de ser porque a
humanidade se libertará da escravidão dos juros e do latrocínio do jogo das Bolsas
e das manobras banqueiristas. A animosidade contra os judeus é, além do mais,
anticristã e, como tal, até condenada pelo próprio catolicismo. A guerra que se fez
a essa raça, na Alemanha, foi, nos seus exageros, inspirada pelo paganismo e pelo
preconceito de raça. (SALGADO apud CHASIN, 1978, p. 572)
Da mesma forma, ainda que a propositura pliniana esteja centrada na idéia da
“harmonia das raças”, revela-nos que Salgado tampouco estava livre de preconceitos
anti-semitas. “Todavia, não se trata nunca de um anti-semitismo que tenha por
fundamento bases raciais. Enquadra-se, isto sim, no estereótipo da sovada fórmula
do judeu-usurário, manipulador internacional dos dinheiros. E nem mesmo vem à
tona o anti-semitismo de fundo religioso, tão comum em determinadas formas da
prática católica” (CHASIN, 1978, pp. 572-3).
É interessante observar que essa utopia reacionária, perpassada por uma forma
específica de anticapitalismo romântico, de fundo cristão, ensejou uma forte sedu-
ção naqueles que acreditavam na sedutora “revolução espiritual” que, a partir das
“verdades eternas da terra e da raça”, pudesse moralizar as mazelas da sociedade
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capitalista brasileira. Isto explica a massiva adesão à sua propositura ideológica. Ob-
viamente, os problemas enfrentados pelos integralistas eram extraídos de suas con-
dições concretas de vida; no entanto, estavam impossibilitados da real compreensão
dos fenômenos apontados em face da determinação social de sua própria categoria
social. Por isso, um reconhecido crítico pôde inferir que os integralistas “nas críticas
que faziam atingiam o cerne dos problemas nacionais, comprovando como o nosso
país era explorado pelos banqueiros internacionais, como o voto secreto, que tanto
entusiasmava os tenentes, não melhorava as condições de vida das camadas humil-
des, salientando a falta de espírito público, de formação ideológica dos políticos
profissionais” (ANDRADE, 1980, p. 72-3). Contudo, se o integralismo é a cabal
expressão e protesto de uma miséria real, a miséria brasileira, a constelação ilusória
de seu nacionalismo defensivo acabou por se configurar numa visão do mundo profun-
damente regressiva que, diante da sua fuga aos determinantes concretos da realidade
nacional, dada a fraqueza congênita do seu ser social, sua proposta ficou interditada
de se realizar e ferir concretamente o núcleo real das contradições sociais de nossa
formação histórica.
O mesmo esforço que Chasin empreendeu para efetuar a crítica ontológica do
mundo do capital, em suas manifestações sociais, ideológicas, políticas e filosóficas
– a partir do resgate e da memória de Marx, pela raiz, sem concessão e capitulação
alguma – há que ser trilhado. Em respeito à sua memória e ao seu legado, há que
ser sinalizado que os seus escritos merecem um lugar especial no empreendimento
revolucionário, e da mesma maneira, com sofrimento e transfiguração, sob esta base,
ao menos nessa parte do mundo, o esforço concentrado de uma parcela – seja o
tamanho que for – na luta contra as formas da alienação e do estranhamento, que
não se confunda e nem se submeta ao espírito mesquinho e medíocre que domina
o homem contemporâneo, pode ensejar o recomeçar a partir desses fundamentos so-
lidamente instaurados.
Referências Bibliográficas
ANDRADE, M. Correia de. 1930: a atualidade da Revolução. São Paulo, Moderna, 1934.
BARROSO, G. A palavra e o pensamento integralista. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1935.
______. O quarto império Rio de Janeiro, J. Olympio, 1935a.
______. O que o integralista deve saber. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1935b.
______. Espírito do século XX. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1936.
_______. Sinagoga paulista. Rio de Janeiro, ABC, 1937a.
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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
ENTREVISTA
A trajetória de J. Chasin:
teoria e prática a serviço da revolução social
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Entrevista
Vânia: Nosso objetivo hoje é realizar uma entrevista sobre a trajetória de vida e a obra do
filósofo J. Chasin, com Ester Vaisman e Antonio Rago Filho. Ester, o que você pode falar sobre
a infância dele, onde nasceu, quem era sua família?
Ester: Bom, esse relato que eu vou fazer é baseado naquilo que ele me contou,
naquilo que, nos curtos períodos de contato que eu tive com a mãe dele, ela pôde
me narrar. São características, são aspectos da vida dele enquanto criança, enquanto
adolescente, que ele me contou, e é nessa condição que isso tem de ser levado em
consideração, já que eu não fui testemunha dos fatos. Mas o que é importante ressal-
tar, em primeiro lugar, é que Chasin nasceu em 1937 e é de origem judaica e, embora
seja uma “contradição nos termos”, é de uma família judaica pobre. Ele nasceu na
Mooca, que, na época, era um bairro em que viviam, principalmente, trabalhadores.
Teve uma infância cheia de dificuldades financeiras. Os pais não nasceram no Brasil:
a mãe nasceu na Romênia, o pai nasceu na Polônia, provavelmente num lugarejo
que fazia fronteira com a Lituânia. Ambos vieram na leva de imigração judaica, nas
primeiras décadas do século XX, ou seja, antes da Segunda Guerra Mundial. Não
se instalaram, como a maioria dos judeus dessa leva, no bairro do Bom Retiro, mas
na Mooca. O pai de Chasin chamava-se Nochun Chasin, mas era conhecido por
Nelson. Muitos judeus mudavam o nome porque eram comerciantes e, para que a
clientela pudesse chamá-los pelo nome, entendê-los etc., mudavam o nome original,
aportuguesavam, e virou Nelson. Era, realmente, um homem muito bonito quando
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jovem: isso é possível ver nas poucas fotografias que existem. A mãe também era
igualmente bonita. O nome dela era Pepi Chasin. Chasin também tem um irmão
chamado Jaques, nove anos mais novo que ele. Mas o que mais ele lembrava e con-
tava a esse respeito era a avó. A família se estruturava em um esquema matriarcal,
centrado na avó, mãe da mãe dele. Um esquema matriarcal, segundo o qual na casa
da avó é que se reuniam todos os parentes, sempre na cozinha. A avó sempre tinha
algo no fogão para servir para as visitas. Esquema, inclusive, semelhante ao italiano
ou espanhol, muito característico desse tipo de imigração, em que as pessoas se
reuniam na cozinha para conversar, para contar as novidades. A primeira língua
que Chasin aprendeu não foi o português, e sim o iídiche. Ele começou a falar em
iídiche, porque era a língua que se usava na casa da avó, na vida familiar. O pai era
vendedor de roupa de porta em porta, algo que era muito característico dessa leva de
imigrantes judeus, o vender roupa de cama ou peças de vestuário de porta em porta.
Infelizmente, o pai foi internado duas vezes por tuberculose, por longos períodos,
em Campos do Jordão. Foram momentos marcantes para a familia, que se viu às
voltas com a resolução de problemas de sobrevivência, inclusive, é obvio, com o sen-
timento da ausência paterna. A mãe teve, então, de assumir a criação dos filhos, as
funções domésticas, mas também prover a casa. Então, ela saía com pacotes pesados
de roupa de cama, pegava o bonde para bater de porta em porta, e vender – tentar
vender – essas mercadorias. Então, era muito difícil. E, enquanto a mãe saía, dada a
diferença de idade, que num determinado período da vida sabemos que é importan-
te, Chasin ajudou a criar o irmão, cuidava de sua alimentação etc., porque, como já
disse, a criança era pequena e a mãe tinha de sair para vender mercadorias.
Vânia: Ele não chegou a trabalhar nessa época?
Ester: Não chegou a trabalhar. Ele cuidava da casa e cuidava do irmão. Ele
ficava encarregado dessas funções, da função doméstica e tarefas afins. Houve um
período em que a situação melhorou e eles contaram com o apoio de uma ajudante,
de uma empregada doméstica. Mas houve períodos bem difíceis; eles não chegaram,
evidentemente, a passar fome, mas foram períodos difíceis. Eu não sei perfeitamente
a idade, mas foi ainda na primeira infância que Chasin teve reumatismo infantil. Na
época, imagino que não havia tratamento à base de corticóides, de forma que ele
teve de ficar deitado por um ano. Eles moravam em uma casa que só tinha um quar-
to, então, ele teve de ficar deitado na sala, onde todo mundo ficava quando chegava,
o que era bem constrangedor. Era uma casa que ficava na vila e ele via os meninos
jogando futebol e não podia jogar também… Não podia brincar…
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Entrevista
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Entrevista
ele era mais da leitura, principalmente nesse ano em que ele ficou de cama, ainda na
infância… O tratamento era repouso e ele lia muito. Então, ele leu na juventude, na
adolescência, tudo aquilo que a gente deveria ler, que são os autores clássicos, tanto
nacionais como da literatura universal: Tolstoi, Dostoievski, Balzac… Então, tudo
que era livro que lhe caía na mão, ele lia. O dinheiro que ganhava, com o pouco di-
nheiro que ele tinha ele não ia comprar nem gibi, nem brinquedo, mas livro. Então,
era alguém que desde cedo demonstrou uma preocupação, uma atenção, um gosto,
um prazer pela leitura, pela escrita. Ele tentou desenvolver uma veia poética, mas
não conseguiu.
Vânia: E ele saiu do colégio direto para a faculdade ou demorou para ingressar?
Ester: Acho que ele demorou um pouco. Ele não foi direto. Ele ingressou em
1959… Houve uma época em que ele trabalhou como bancário, ele estudava à noite
e trabalhava em um banco. Ele fez o colegial à noite e foi nesse período, no colégio,
que os amigos dele eram Luiz Weiss2 e Vladimir Herzog3. Eles saíam sem rumo
pelas ruas do centro de São Paulo, entravam em algum bilhar ou coisa parecida. Ele
andava muito, pois não tinha dinheiro para a condução, então, ele saía da Mooca e
ia até o centro da cidade etc. É isso, eles andavam muito, porque os três não tinham
dinheiro para pagar condução, bonde, seja o que for.
Rago: Há nesse período a formação de uma esquerda judaica, vamos dizer assim, de origem
judaica, que milita no trotsquismo e no PCB.
Ester: Sim. A primeira esposa de Chasin, Hannah Profis, participava dessa es-
querda judaica. Ela era professora, inclusive, de iídiche, numa escola que fica no
Bom Retiro, Scholem Aleichem. Hannah Profis é que participou dessa esquerda
judaica desde a juventude. Os pais dela vieram da Ucrânia, eram de esquerda e ela foi
da Juventude Comunista. Já Chasin não teve participação na esquerda judaica.
Vânia: E ele decidiu estudar filosofia na USP.
Ester: Exatamente. Antes de ingressar na faculdade, ele ficou muito impactado,
foi muito influenciado pelas leituras que fez de Bertrand Russell, que era um agnósti-
co. Então, o agnosticismo de Bertrand Russell, os textos dele, nessa época, o influen-
ciaram muito, e eu penso que Chasin decidiu pelo curso de filosofia exatamente por
conta da leitura que fez de Russell. Além disso, era alguém muito preocupado com as
2. Jornalista e sociólogo, atualmente no Observatório da Imprensa e no jornal O Estado de S.
Paulo.
3. Vlado Herzog (1937-1975), cuja morte, decorrente de tortura, nos porões do Destacamento de
Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) desencadeou
uma onda internacional de protestos e marcou uma inflexão da ditadura militar.
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relações humanas, interesse já demonstrado nos temas ds palestras que ele organizou
quando cursava o colegial. Ele só veio a conhecer Marx e a esquerda na universidade,
pelas mãos de Hannah Profis, que, como já disse, era da esquerda.
Vânia: Eles se conheceram na universidade?
Ester: Sim. Ela fazia o curso de ciências sociais, ele fazia o curso de filosofia. E,
de uma forma bastante esperta, atraída por ele, ela pediu umas aulas particulares de
filosofia. Eles freqüentavam a Biblioteca Mário de Andrade, começaram a namorar
lá, durante as aulas de filosofia que Chasin dava para Hannah. E foi lá, exatamente,
que ele conheceu Maurício Tragtenberg e conviveu com ele e um grupo de intelec-
tuais que freqüentava a Biblioteca Municipal Mário de Andrade. Ele estudava lá e
namorou lá também, entre os livros.
Rago: Isso é interessante, porque recentemente, em torno da morte de Bento
Prado Jr., passou na TV Cultura o depoimento de amigos, como Giannotti e ou-
tros… E eles recuperaram como grupos de intelectuais freqüentavam a Biblioteca
Municipal e a troca intelectual que se tinha ali. Maurício Tragtenberg, certa feita, nos
contava de sua aproximação da esquerda, em especial dos trotskistas. Contava como
esses intelectuais liam e debatiam textos que não tinham tradução em português.
Então, eles liam em francês, a pessoa anotava, o outro depois comentava… Uma
vez perguntei a Maurício como ele aprendeu literatura, história, língua estrangeira…
Maurício salientava o “grupo da Biblioteca” como fundamental para sua formação.
Citava o próprio Bento Prado Jr., Flávio Rangel, Leôncio Martins Rodrigues, An-
tunes Filho, Aracy Rodrigues, entre outros, como seus companheiros da Biblioteca.
Ele aprendeu muito com esse “método”, com esses núcleos, nos quais se incluía
a família Abramo – Leila, Athos, Perseu, Fúlvio. Maurício, posteriormente, relia a
tradução que faziam, anotava, e depois confrontava com o texto original, de posse
de dicionários. Isso nos faz pensar no tipo de intelectuais que freqüentava aquele
ambiente, que permitia esse intercâmbio.
Ester: No caso, Hannah e Chasin eram estudantes, e enquanto tal absorviam
esse clima, o aproveitavam, além do fato de que lá encontravam livros. Não se com-
prava, eles não tinham condições de comprar livros. Eram poucos aqueles que con-
seguiam adquirir livros na época da faculdade.
Vânia: Ele trabalhava na época da faculdade? Ou só estudava?
Ester: Eu não tenho idéia, mas acho que trabalhava, porque a família não tinha
condição de mantê-lo apenas estudando. Lembro-me que ele dava aulas no cursinho
do Grêmio da Faculdade de Filosofia, em certo período.
225
Entrevista
Vânia: Ele contou como foi o primeiro contato com Marx, como ele começou a se aproximar
das questões marxistas e sociais, propriamente ditas?
Ester: Foi no saguão da [unidade da USP na R.] Maria Antônia. Porque, da
mesma forma que havia essas discussões na Biblioteca Mário de Andrade, ele dizia
que as discussões, aquilo de vivo que acontecia na faculdade de filosofia ocorria no
saguão da Maria Antônia. Então, ali é que se travavam os grandes debates, as grandes
discussões, e ele tomou conhecimento de Marx ali.
Vânia: Então, ele não tinha aulas que abordassem o pensamento marxiano, que o tivessem
influenciado…
Ester: Não, não me parece que Marx era uma matéria… Não tenho certeza,
mas me parece que Marx não era um tema, naquele período, muito presente no cur-
so de filosofia. Talvez no curso de ciências sociais, que ele conhecia por Hannah, que
fez este curso. Inclusive, quando FHC foi eleito pela primeira vez, numa foto que foi
publicada da defesa de tese de doutorado dele, Hannah aparece assistindo…
Rago: É bom demarcar o período. Ele entra em 1959?
Ester: Exato! É importante ressaltar isso… Ele se envolveu no movimento es-
tudantil, na época, logo de início, influenciado por esse relacionamento com Hannah
e com outros que vinham do curso de ciências sociais. Ele viu nascer e acompanhou
o famoso grupo de estudos sobre Marx que surgiu exatamente nessa época, em 59,
e foi até 63, do qual participaram Giannotti, FHC, Ruth Cardoso, Weffort… Bento
Prado participou num período, Roberto Schwarz também, como estudante. Enfim,
Chasin acompanhou isso. Ele tinha um ótimo relacionamento com Cruz Costa, que
foi seu professor, e foi aluno de Giannotti, de Michel Debrun, de Gilles-Gaston
Granger, enfim, de toda essa geração que vinha para a USP para lecionar. Ele co-
nheceu também Gérard Lebrun… enfim, teve uma formação em filosofia bastante
sólida, graças ao fato de que as turmas eram reduzidíssimas e os professores eram
de primeira linha. Além de que foi um momento de intensa polêmica, de intenso
debate sobre questões nacionais, questões intelectuais, que ele teve o privilégio de
viver, enquanto estudante, nesse momento pré-64, no Brasil, participando também
do movimento estudantil nesse período. Ele teve uma atuação muito intensa nesse
período no movimento estudantil.
Vânia: Ele falava de amigos desse período, de companheiros do movimento?
Ester: Ele comentava de casos como Goldman, Alberto Goldman, que foi con-
temporâneo dele e estudava na Poli…
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Entrevista
Rago: Eu soube disso tardiamente, quando Chasin falou que era vice-presiden-
te e Florestan era o presidente da Campanha pela Escola Pública. Em princípios dos
anos 1960, Chasin foi convidado a participar do Congresso do PCB, por conta de
sua atuação nos movimentos sociais. Mencionou, inclusive, que ele foi decisivo na
discussão do Congresso. E, depois, temos a posição que ele assume no CPC4. Até
então, eu não sabia que Chasin teve uma presença importante, aqui, em São Paulo,
no CPC também. Infelizmente, num livro de Marcelo Ridenti, Em Busca do Povo Bra-
sileiro, aparece uma pequena nota sobre o conflito com o Partido Comunista, mas
que dá a impressão de que Chasin teve uma posição negativa em relação ao CPC. E
não localizam o problema no plano estético. Quer dizer, Chasin condenava a posição
de levar a programática do Partido para o campo da arte. Aí, já aparece um tipo de
vínculo com Marx e com Lukács. Aproveito a ocasião para mencionar a importân-
cia de Caio Prado Jr. na formação intelectual de Chasin e da pesquisa que ele fará
depois, porque isso poucas pessoas conhecem. Chasin é citado por conta de sua
“Contribuição para a Análise da Vanguarda Política no Campo”, que foi publicada
na Revista Brasiliense de finais de 19625.
Ester: Muitas pessoas desconhecem…
Rago: Muitas pessoas desconhecem, porque não há citações de autores n’A Re-
volução Brasileira, que é de 1966, de Caio Prado Jr., a não ser a de Chasin. Assim, creio
que, nesse momento, Marx, Lukács e Caio Prado Jr. são influências importantes e
que, sem dúvida, permitiram que Chasin desenvolvesse uma posição extremamente
crítica em relação ao PCB. Nós sabemos qual posição tinha Caio Prado Jr., mas
sabemos também qual lugar ele ocupava frente aos stalinistas, ao marxismo vulgar.
Chasin atuou na Revista Brasiliense, e isso foi fundamental, porque nessa revista ele
publicará sob a forma de dois artigos a crítica a Mannheim6, que elabora já sob a
influência do pensamento de Lukács7. Acho que é bom recuperar que a militância de
Chasin nessa época: de um lado, há a figura de Caio Prado Jr. – Chasin, mais tarde,
aprofundará certos aspectos da análise histórica caiopradiana – e, de outro, a pre-
sença de Marx e Lukács, que também serão alvo de estudos profundos e minuciosos
por parte dele.
4. Os Centros Populares de Cultura (CPCs) foram criados em 1961, no Rio de Janeiro, e eram
ligados à União Nacional dos Estudantes (UNE). Esses Centros reuniam diferentes segmentos
artísticos que atuavam junto às classes populares.
5. CHASIN, J. “Contribuição para a Análise da Vanguarda Política no Campo”. Revista Brasiliense.
São Paulo, n. 44, nov./dez. 1962. Republicado na coletânea A Miséria Brasileira.
6. Karl Mannheim (1893-1947), sociólogo judeu nascido na Hungria. Publicou Ideologia e Utopia
em 1929, entre outras obras.
7. Trata-se do trabalho intitulado “Dissertação sobre a Sociologia do Conhecimento de Man-
nheim”, orientada pelo Prof. Michel Debrun. O texto foi publicado em dois números da Revista
Brasiliense.
Verinotio.org (n.9), Ano V, NOV./2008, ISSN 1981-061X
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Ester: Veja, aquilo que eu falei há pouco: ele assistiu ao nascimento do Seminá-
rio sobre Marx, ou seja, ele foi testemunha ocular daquilo que estava acontecendo na
USP. Evidentemente, esse seminário surgiu, me parece, por duas razões fundamen-
tais, uma teórica e outra política. A primeira razão era a insatisfação dessas figuras em
relação ao estágio em que se encontravam as ciências sociais ou o pensamento social
no Brasil. Essas figuras estavam insatisfeitas com o ensaísmo brasileiro, ou seja, Gil-
berto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Em outros termos, eles não considera-
vam toda essa produção propriamente científica. Ao mesmo tempo, os membros do
Seminário Marx não concordavam nem com as teses de Nelson Werneck Sodré, nem
com as de Alberto Passos Guimarães, nem com as de Caio Prado sobre a formação
social brasileira. Então, eles foram ler Marx influenciados pela polêmica gnosiológica
em torno do pensamento marxiano… Eles foram ler Marx com o intuito de per-
seguir aquilo que poderia ser um método científico, existente, implicitamente, na obra
econômica. Supostamente, a partir da apreensão deste método, pleiteavam a sua uti-
lização para a investigação da formação social brasileira e, nessa medida, oferecer um
contraponto para a produção teórica direta ou indiretamente vinculada à esquerda
ou ao ensaísmo de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. É curioso, como
Rago bem chamou a atenção, que, enquanto esse pessoal, professores e dois estu-
dantes, rumavam por uma trilha desta natureza – evidentemente, Chasin foi alijado,
e foi alijado exatamente porque ele tinha um vínculo com o movimento estudantil,
ele tinha uma militância política e isso, na época, para esses digníssimos professores,
era um ponto contra Chasin, era uma mácula. Chasin era um aluno que se destacava
entre os demais, não só por conta de seu perfil teórico, mas por sua dimensão crítica.
Imaginem uma sala de aula, final da década de 50, começo da década de 60, na Maria
Antônia, na USP. Os rapazes iam de terno e gravata, as moças todas bem vestidas...
Havia todo um comportamento respeitoso do aluno em relação ao professor. Tão
respeitoso que era muito difícil ou mesmo impossível um aluno se manifestar em
sala de aula! Um episódio que Giannotti nunca esqueceu foi que, numa aula de lógi-
ca – Giannotti era professor de lógica –, Chasin teve a “ousadia”, digamos assim, de
se contrapor a ele em sala de aula. Uma coisa que não era admissível à época! Cruz
Costa, certa feita, chegou para Chasin e disse: “Você é muito inteligente, você é um
rapaz de grande capacidade, mas aqui você não vai ter futuro em função de sua mi-
litância política no movimento estudantil e de sua postura em sala de aula”. A partir
desse momento – é bom lembrar que nós estávamos sob o regime de cátedra ainda
–, a partir daquele momento, Chasin viu que, em função da sua postura teórica, sua
postura crítica e de alguém vinculado ao movimento estudantil, as portas da aca-
demia já estavam fechadas para ele. Isto ficou claro nessa fala muito sincera, muito
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Entrevista
honesta de Cruz Costa, com quem ele tinha um ótimo relacionamento. Mas é bem
verdade que, quando Chasin optou pelo curso de filosofia, ele não tinha grandes
ambições de fazer carreira como professor universitário. Ele queria ser professor de
filosofia de segundo grau, além de escritor. Era isso que ele queria naquela época,
ao contrário do que a família pressionava, principalmente a mãe. A mãe judaica quer
que o filho seja médico… Tenha status de médico... Mas, para horror de Dona Pepi,
Chasin optou pela filosofia, ele queria ser professor e escritor. Infelizmente, como
sabemos, o ensino de filosofia foi retirado do ensino médio, quando da reforma de
68. Assim, Chasin não tinha diante de si muitas alternativas. Mesmo porque o golpe
de 64 foi devastador para ele também em termos pessoais.
Vânia: Antes de entrar no período da ditadura, só queria pontuar: Ester comentou certa vez
que o primeiro contato que ela teve com Chasin foi justamente num grupo de estudos de Evolução
Política do Brasil, de Caio Prado Jr. Chasin achava o livro muito importante, bem como diferen-
ciava Caio Prado de todos os outros teóricos que tentavam compreender a realidade nacional. E A
Revolução Brasileira foi um livro que marcou época e que menciona a pesquisa feita por Chasin,
que resultou no “Contribuição para a Análise da Vanguarda Política no Campo”. Havia proxi-
midade entre eles no diagnóstico da situação rural no Brasil?
Rago: Chasin partilhava da análise concreta da situação dos trabalhadores rurais
em nossa formação social, que não identificava os nossos trabalhadores do campo
com os camponeses de extração feudal. Nesse Congresso8, buscava-se compreen-
der os interesses, as perspectivas dessa categoria social do campo brasileiro. Chasin
sempre se pautou pela busca da compreensão racional do mundo, e também pela
militância, pela intervenção prática. O que, como Ester colocou, “atrapalhou na
academia”, mas atrapalhou também na esquerda. Porque, diante da luta interna do
Partido Comunista, ele assume a luta anti-stalinista. E isto vai lhe custar a hostiliza-
ção típica do stalinismo, tanto nos anos 60, por sua participação naquele Congresso,
como no período da Escola de Sociologia e Política, a formação de intelectuais va-
cinados contra o stalinismo e a vulgata marxista... Tanto que, num congresso para
o qual ele foi convidado ele faz uma intervenção radical. No sentido de mostrar os
crimes stalinistas, as ações oportunistas e um pouco além.
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Entrevista
lectuais e artistas, teatrólogos, enfim… todos os que militavam nessa área queriam,
parafraseando a música de Milton Nascimento, queriam estar onde o povo estava, de
alguma forma, queriam contribuir… Então, é preciso analisar caso a caso os traba-
lhos que surgiram nesse período e resgatar, se assim for possível… Guarnieri10, Juca
de Oliveira11, Vianinha12, Paulo Pontes13… Quer dizer, as principais figuras... Disso
resultou o Teatro de Arena, Arena conta Zumbi. Não é possível uma pessoa, alguém
minimamente razoável, pegar toda essa experiência e simplesmente negá-la, rejeitá-
la in totum, como sendo uma experiência que significou o braço do Partido Comu-
nista no interior do campo artístico no Brasil, dentro do movimento estudantil, e
rejeitar, por isso, toda a produção cultural que o CPC produziu. Igualmente, é um
despropósito ver Chasin como alguém que levava as teses do Partido para o interior
da UNE ou do CPC. Ao contrário… Foi aí que ele encontrou Lukács, foi aí que a
questão sobre a obra de arte, sobre a função da obra de arte, se pôs, e desde aquele
momento Chasin se manifestou contrário a qualquer tentativa de instrumentalização
política da arte, o que lembra, inclusive, a polêmica de Lukács e Brecht. É interessan-
te resgatar isso exatamente porque Lukács sempre foi contra isso. Como Chasin se
interessa por Lukács? Como Chasin encontra Lukács? Evidentemente, poucas obras
de Lukács eram conhecidas no Brasil, mas, se pegarmos a história do marxismo no
século XX, vamos reconhecer que foram poucos os comunistas que se debruçaram
sobre o campo da cultura ou sobre o campo da formação ideal, das ideologias, não
no sentido pejorativo. Chasin estava interessado pela situação social brasileira – e
a aproximação com Caio Prado se deu em função disso –, mas, ao mesmo tempo,
interessado em analisar aquilo que se chama de pensamento conservador ou pensamento
das classes dominantes ou a ideologia das classes dominantes no Brasil. Desde es-
tudante ele se interessou por isso. Quando colocou essa questão a Giannotti, este o
desaconselhou fortemente que ele se voltasse a isso, dizendo que era uma questão
menor. Se lermos a apresentação de O Integralismo de Plínio Salgado14, nós veremos ali
que, indiretamente, Chasin, em vários trechos, refere-se a essa questão – quer dizer,
nem o Partido Comunista considerava esta uma questão de maior importância e nem
10. Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), ator, diretor, dramaturgo e poeta ítalo-brasileiro. Autor,
entre outras, de Eles não Usam Black-Tie, de 1958.
11. Juca de Oliveira (*1935) é ator e dramaturgo consagrado. Passou pelo Teatro Brasileiro de
Comédia (TBC) e pelo revolucionário Teatro de Arena, além de ter sido militante da esquerda
comunista.
12. Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha (1936-1974) – um dos maiores nomes da dramaturgia bra-
sileira e um dos fundadores dos CPCs.
13. Paulo Pontes (1940-1976) atuou nos CPCs e nos teatros de resistência no período da ditadura
.militar.
14. CHASIN, J. O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade do capitalismo híper-tardio.
2. ed. Santo André, Estudos e Edições Ad Hominem, 2000.
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Entrevista
limites, erros etc. e dar um salto. E eu acho que, a partir desse momento que eles
procuram Prestes15, tanto Caio Prado Jr., Elias Chaves Neto16 e outros do núcleo da
“Brasiliense”… Estou falando Brasiliense entre aspas, porque eles não configuravam
uma tendência, mas eram uma tendência de fato, no sentido da linha teórica. E esse
momento é um divisor de águas, porque Chasin vai colocar que houve um fracasso,
porque, quando foi procurado por esse grupo, Prestes achava que a esquerda estava
quase no poder.
Ester: Aqui é preciso lembrar o comício do Partido Comunista em 1963, no
Pacaembu, quando Prestes, no discurso, dizia: “Estamos no poder”.
Rago: Algo como: “Não somos o governo, mas estamos no poder, porque
influímos mais do que Goulart”. Mesmo que Prestes, depois, tenha dito que nunca
falou isso. Todavia, a consciência que o Partido disseminava era exatamente essa
dimensão de que as rédeas do poder “estão nas nossas mãos”, “temos o sindicato, o
PTB está com a gente, frações do exército estão com o partido”, e assim por diante.
E quando isso é colocado, um golpe estava prestes a ocorrer, então, é muito impor-
tante que isso seja grifado, que um grupo de intelectuais marxistas, entre os quais o
jovem Chasin, já tinha uma visão de que algo desastroso estava para ocorrer e o Par-
tido estava completamente desarmado. Então, só para pegar uma coisa disso tudo:
desta derrota Chasin se propõe a produzir alguma coisa – o que viria a se constituir
com o Movimento Ensaio –, imbuído da idéia de que “ter lucidez é um ato revo-
lucionário”. O que implicava dedicar-se em tempo integral aos estudos e formação
de pessoas. Levar às últimas conseqüências a consigna de que era condição sine qua
non a superação da carência teórica da esquerda – veja que Caio Prado Jr. começa
com essa questão seu livro sobre A Revolução Brasileira de 1966. Aí é que Chasin sai
definitivamente do Partido, em 1963…
Ester: Quer dizer, ele, na verdade, nunca esteve no Partido. Ele se mirava muito
no exemplo de Caio Prado, que tinha um pé fora e um pé dentro. É uma expressão
que ele sempre utilizava e um posicionamento que ele sempre defendia e justifica-
va.
Rago: Caio Prado falava também muito disso, da necessidade de, na militância,
ter sempre os pés nas condições vividas, um pé dentro e outro fora. Eu acho que
isso é visceral, porque o golpe de estado de 1964 vai se refletir na vida de Chasin
por uma quebra, uma ruptura violenta de um projeto. Além disso, no plano estrita-
15. Luís Carlos Prestes (1898-1990), conhecido como Cavaleiro da Esperança, liderou a famosa
Coluna Prestes antes de ingressar no Partido Comunista, do qual foi dirigente.
16. Elias Chaves Neto (1898-1981) estava à frente da Editora e da Revista Brasiliense junto com Caio
Prado Jr., de quem era primo.
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mente profissional, ele tinha sido convidado por Maurício Tragtenberg para lecionar
em uma faculdade que estava sendo estruturada em São José do Rio Preto e, com a
intervenção ditatorial, houve o cerceamento da continuidade daquilo que seria uma
carreira promissora, porque Chasin vai ficar afastado por um tempo, para só mais
tarde retomar o magistério superior. Enfim, gostaria de fazer mais alguns comentá-
rios sobre esse período, porque é um momento em que o Brasil assiste a movimen-
tações sociais ímpares, movimento sindical, movimento rural, Ligas Camponesas
no Nordeste, mas também no Sudeste, movimento estudantil… Havia programas,
projetos sociais, e não como hoje, em que a “esquerda” está totalmente desarmada.
Veja a CUT ante o governo Lula e a crise mundial do capital.
Ester: Embora Chasin não tivesse sido preso ou torturado, por exemplo, em
1973, convidado pelo Ceupes – o Centro de Estudos e Pesquisas, que era o Centro
Acadêmico do curso de ciências sociais da USP –, Chasin foi dar uma palestra sobre
ideologia ou ciência, na USP. No dia seguinte, parou uma veraneio, em frente à casa
dele, “convidando-o” para depor no Dops. Então, a cada momento que ele aparecia
publicamente, ele era “convidado” a depor. Então, ele era acompanhado, pari passu,
pelos órgãos da repressão, embora nunca tivesse sido preso nem torturado – mas
temos de convir que há outras formas de tortura também... Não somente a física.
Há formas de acabar com a vida de uma pessoa além da prisão... Isso deve ficar
registrado.
Vânia: Eu queria incluir nessa discussão, voltando um pouquinho, também a revelação dos
crimes stalinistas, como isso repercutiu no Brasil e como isso entrou nessa questão de que vocês estão
falando, nessa movimentação toda de 64…
Ester: Na verdade, é o seguinte: Chasin teve sempre um pé atrás em relação a
tudo o que dizia respeito à União Soviética e aos Partidos Comunistas. No entanto,
é bom deixar claro, porque alguém pode perguntar: “Por que ele se vinculou?” Por-
que era a única arena, o único espaço, único lugar no qual se podia atuar e discutir.
Nunca passou pela cabeça dele, mesmo enquanto estudante, tomar uma posição
de voyeur, como Marilena Chauí, que entrou na universidade depois dele e que con-
fessa que apenas assistiu a tudo aquilo, como voyeuse. A partir do momento em que
Chasin, pelas mãos de Hannah, entrou no Partido, tomou essa decisão, considerou
necessária essa atuação para mudar as coisas, ele não tinha melindres, mas sempre
foi crítico em relação a uma série de aspectos, seja em relação ao marxismo vulgar,
seja à forma de organização política do PCB no Brasil, seja em relação às teses que
o Partido disseminava à época – como a do capitalismo autônomo, da necessidade
de uma revolução burguesa para depois chegar ao socialismo e outras. E por isso ele
235
Entrevista
se aproximou de Caio Prado. Ele sempre teve uma postura crítica em relação a isso.
Embora ele tenha sido visto por muitos como comunista stalinista, ele nunca o foi,
em nenhum aspecto. Ele só atuou nesse organismo porque se tratava de um espaço
que considerava o único por meio do qual se poderia efetivamente fazer alguma
coisa, e eu creio que, passados todos esses anos, ele não se enganou e percebeu cla-
ramente, como Rago frisou, os erros teóricos. A aproximação com Caio Prado e o
grupo da Brasiliense se deu justamente em função da precariedade, da mediocridade
teórica que caracterizava o Partido aqui no Brasil. Isso sempre foi um problema para
Chasin. Naquela época, a esquerda tinha um programa, mas era um programa que
foi construído em bases teóricas totalmente equivocadas. Era algo que estava claro
na cabeça daquele estudante, ele sabia, ele constatava a mediocridade, a fraqueza e
a debilidade teóricas; para ele isso sempre foi um problema, sempre foi algo que ele
queria mudar. Queria, de alguma forma, contribuir para que a esquerda, no Brasil,
produzisse teoricamente algo rigoroso, para que a esquerda pudesse ler a realidade
de forma rigorosa e identificar na realidade as possibilidades de transformação. En-
tão, desde estudante, isso estava absolutamente claro. Em dezembro de 1963 ele di-
zia que o golpe estava sendo articulado. Ele procurou diversas pessoas, foi até ridicu-
larizado: “Como você, um jovem, vem dizer que vai acontecer isto ou aquilo? Você
está delirando”. O primeiro filho dele já havia nascido, em outubro de 1962. Hannah
havia abandonado a faculdade por causa do nascimento do primeiro filho… Eles
moravam num prédio que ainda existe, na Martinho Prado, em frente à sinagoga.
Existia embaixo um bar, chamado Ferro’s Bar, eu não sei se existe ainda. Chegado o
golpe, há esse episódio na faculdade de São José do Rio Preto... eles tiveram de tirar
rapidamente todos os documentos que haviam colocado na secretaria da faculdade,
a partir dos quais eles iam ser contratados, para que não fossem presos, Maurício
[Tragtenberg] e ele… Eles começaram a pegar tudo quanto é documento e jogar
e queimar no vaso sanitário, até que o vaso sanitário explodiu! Logo em seguida,
eles começaram a mudar – Chasin, a mulher, Hannah, e a criança pequena, Ibaney,
mudando de casa para não serem localizados, para não serem pegos e aprisionados.
Eles rodaram bastante. Chasin ficou desempregado por um longo período, vivendo
graças a contribuições da família. Foi um período dificílimo. Ele não chegou a ser
preso ou torturado, mas… o golpe de 64, para a geração dele, foi uma ruptura, foi
um corte, foi o final de um projeto. Em 64 nasce o segundo filho dele, prematuro,
evidentemente por conta do sofrimento todo, de todos esses problemas que a mãe
teve e, então, emocionalmente atingida, fisicamente atingida, ele dá à luz um menino
aos seis meses de gestação.
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17. Editora dirigida por José e Jacques Chasin, que publicou: As Grandes Divergências do Mundo Co-
munista, em que Baby Jean discutia as divergências sino-soviéticas a partir de meados dos anos 50;
Marxismo ou Existencialismo, de G. Lukács; Não Podemos Esperar, de Martin Luther King; Planificação:
desafio do século XX, de Maurício Tragtenberg; Hai-Kais, de Millôr Fernandes; Navalha na Carne,
de Plínio Marcos; Psicanálise do Anti-Semitismo, de Rodolphe Loewenstein, além de livros sobre a
questão negra, da mulher e outros.
237
Entrevista
Capa do Livro Existêncialismo ou Marxismo de Georg Lukács com introdução e tradução de José Carlos Bruni.
Publicado em 1867 pela editora Senzala.
Veja, Caio Navarro de Toledo fez uma resenha do livro organizado por Sérgio Lessa
e Maria Orlanda Pinassi18 sobre aquelas entrevistas de Carlos Nelson Coutinho com
Leandro Konder. E ele fala: “Que absurdo, vocês não citam a Revista Temas19, vocês
não citam a Ensaio, não citam Chasin”. Vejam, Caio Navarro, uma pessoa distante
de nós, mas com a coerência de apontar: “Vocês não deram o tratamento devido”.
E ninguém fala disso. Assim como eles citam a autobiografia de Lukács20, que foi
preparada por Chasin, antes de vir a falecer, publicada pela Ad Hominem, editora
pensada por ele para dar continuidade à Ensaio, com a Universidade Federal de Vi-
çosa; eles não mencionam como surgiu, quem propôs, a importância da publicação
do último trabalho de Lukács e como surgiu toda essa história. Então, Chasin fica
nulo nesse processo atual. Porque o livro é de agora, desse século. Voltando, então,
ao século passado, para ressaltar a importância daquele momento. Por que fazer a
Senzala? Chasin dava prosseguimento à sua linha de “manter a lucidez”, dedicando-
18. Trata-se de Lukács e a Atualidade do Marxismo, publicado pela Boitempo Editorial em 2002,
organizado por Maria Orlanda Pinassi e Sérgio Lessa. Entre outros textos, está ali coligida a cor-
respondência de Lukács com Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder entre 1961 e 1970. A
resenha de Caio Navarro de Toledo mencionada pelo entrevistado está disponível em: <http://
www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/resenhatoledo.pdf>.
19. Revista Temas de Ciências Humanas, publicada entre 1977 e 1981, primeiro pela Grijalbo, depois
pela Livraria Editora de Ciências Humanas. Retoma-se o histórico da revista mais à frente.
20. LUKÁCS, G. Conversando com Lukács. Autobiografia em Diálogo. Santo André, Ad Hominem/
Universidade Federal de Viçosa, 1999.
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Entrevista
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al, eu não quero. Quer dizer, se é para se candidatar a alguma coisa, é para deputado
federal, porque é ali que as questões decisivas passam.” Um segmento do Partido, na
época, prometeu que o apoiaria, mas, no fim, não apoiou; fizeram com ele a mesma
coisa que, mais tarde, fizeram com Resk22. Resk acabou se elegendo, porque a gente
o apoiou. Então, a mesma coisa, na hora H, não apoiaram Chasin... Goldmann foi
eleito. E foi um momento em que os setores de esquerda propagavam o voto nulo
E mesmo assim... Eu não me lembro exatamente, mas acho que Chasin teve 3 mil, 4
mil votos... E não foi uma coisa tão ruim. E a plataforma dele era pelo desenvolvimento
do mercado interno; pela educação... Mas de imediato ele percebeu que tinham puxado o
tapete dele. E ele se arrependeu, inclusive, de tentar ser candidato.
Rago: Eu queria ainda continuar os comentários sobre o livro Marxismo ou Exis-
tencialismo, porque se trata de um momento em que Chasin escreve para Lukács, pois
pretendia publicar História e Consciência de Classe23. Todavia, Lukács não autorizou,
explicando que era um livro com o qual não mais se identificava. Lukács responde
para Chasin comentando que queria que História e Consciência de Classe fosse publica-
do com um prefácio em que faria alguns apontamentos corretivos. Chasin espera,
então, Lukács escrever o prefácio. É bom esclarecer isso muito bem, porque circulou
entre os lukacsianos no Brasil a notícia de que havia um oportunista que pretendia
publicar o livro sem o prefácio, à revelia de Lukács. Não sei se falam de Chasin, mas,
se assim for, isso é completamente falso, pois eu mesmo fiz a leitura da carta.
Ester: E a Senzala, que, infelizmente, vai à falência... Havia funcionado entre
1966, 1967, 1968... Publicou livros de Plínio Marcos – A Navalha na Carne –, de Mar-
cos Rey, Hai-Kais de Millôr Fernandes, livro de Maurício Tragtenberg – publicou vá-
rios títulos. Chasin também criou um jornal, chamado Jornal da Senzala, que traz, em
seu único número – parece os Anais Franco-Alemães –, no seu único número, de janei-
ro de 1968, uma entrevista, justamente, com Caio Prado. E um artigo que Florestan
Fernandes havia escrito em 1965 para a Brasiliense, mas que havia ficado inédito por
causa da proibição da Revista, “O Problema da Universidade”, republicado como o
primeiro capítulo do livro Universidade Brasileira: reforma ou revolução?, de 1975.
Vânia: Nesse período, ele se dedicou integralmente, profissionalmente à Senzala?
Ester: Houve um período em que ele abandonou tudo para se dedicar profissio-
nalmente à Senzala, depois não deu certo e ele teve de voltar a trabalhar em indústria
22. Antonio Resk (1933-2005), jornalista e político, teve participação ativa nos movimentos sociais
durante a ditadura militar. Foi membro do MDB e do PCB e vice-presidente do Instituto Astrojil-
do Pereira, além de membro do Conselho Editorial da Revista Novos Rumos.
23. Obra de Georg Lukács publicada originalmente em 1936, que teve enorme impacto e foi obje-
to de grande polêmica, tendo em vista os apontamentos críticos feitos pelo próprio autor.
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Entrevista
farmacêutica. Ele entrou para a Ciba Geigy, na qual ficou responsável pela área
de publicidade; e como publicitário é meio esquisitão, ele usou cabelo comprido,
camiseta, não tinha horário de trabalho certo e fez questão de aparecer como pubi-
citario “doidão” para fazer seu próprio horário e conseguir tempo para estudar, sem
precisar permanecer na empresa por oito horas. Durante o dia, ou parte do dia, ele
trabalhava e criou peças publicitárias importantes. Ele tinha um gosto para isso, que
acabou se revelando depois, na forma como a Ensaio trabalhava, essa coisa de usar
papel pólen, meio amarelado, que depois outros editoras usaram, a mancha [a dis-
tribuição do texto numa página], o cuidado com a diagramação interna, com a capa
etc. Todo esse talento, esse know-how que ele desenvolveu na área de publicidade,
acabou sendo aproveitado para o caso da Ensaio. Mas é importante, então, ressaltar
que ele vai para a Ciba Geigy e trabalha nesta empresa por 15 anos. Não sei como
ele agüentou, mas ele conseguiu isso, e, mais uma vez, quero ressaltar que todo o
dinheiro que ele ganhou foi para comprar livros, foi para financiar a pesquisa sobre
Plínio Salgado e o integralismo...
Vânia: Eu só queria entender bem como foi esse período em que ele trabalhou na empresa.
Ester: Foi terrível, avassalador... Essa “vida dupla” – essa expressão é dele –,
essa vida dupla que ele levava foi uma coisa, assim, terrível. Gerava um mal-estar,
uma frustração terrível.
Vânia: Mas, ao mesmo tempo, ele era um profissional e seguia determinados padrões. Ou
seja, ele se dispunha a ser um bom profissional naquilo que estava fazendo.
Ester: Pois é. Até que chegou a um ponto, e isso acontece em qualquer multi-
nacional... Quando certo padrão de executivo chega a um determinado nível, ele é
convidado a ir para a matriz, no caso era na Basiléia, na Suíça, para depois assumir
a superintendência em outro país. Ele se negou... Ele não queria sair do Brasil. Por-
que, dizia: “O meu lugar é aqui, é aqui que eu tenho de trabalhar, que eu tenho de
estudar... Eu tenho de contribuir para a – digamos entre aspas –, para a ‘revolução
brasileira’, eu tenho que contribuir para o entendimento teórico desse país, eu não
quero sair”. Ele deu lá uma resposta dizendo que a sogra, ou mãe, que alguém estava
doente, mas, evidentemente, não colou essa desculpa e ficou claro que, afinal de con-
tas, Chasin não “vestia a camisa” da empresa. Foi bom porque ele pediu demissão,
ele sentiu que realmente iam mandá-lo embora, mais cedo ou mais tarde, exatamente
porque ele tinha se negado a ir para a Suíça, e durante um ano ele viveu com o Fundo
de Garantia [do Tempo de Serviço], para terminar a tese de doutorado, que foi sobre
Plínio Salgado. Isso porque um tema fundamental para Chasin, para a compreensão
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da dinâmica das classes no Brasil, era exatamente entender o que foi o pensamento
conservador. Ele o fez fundamentado naquilo que Lukács, na Destruição da Razão,
dizia que era o tripé metodológico: a análise imanente e da determinação social do
pensamento pela análise da gênese e da função social. Ele procurou seguir esses três
pontos na tese de doutorado, o que o fez ficar acordado durante as madrugadas ao
longo de vários anos, porque ele escreveu ainda no regime antigo, ou seja, antes da
criação do atual regime de pós-graduação, no qual o indivíduo faz uma seleção, tem
de fazer créditos etc. Ele se inscreveu no Conselho Estadual de Educação para de-
fender na Escola de Sociologia e Política. Era o modo como antigamente se defendia
uma tese: você solicitava à congregação de uma faculdade para se matricular e para
esta congregação compor uma banca e nomear o orientador, pois não havia cursos
de pós-graduação como os de hoje. Ele se inscreveu no sistema antigo e, durante
anos a fio, à própria custa, como diz na apresentação do livro, ele coletou jornais,
trabalhos escritos, ele pegou toda a obra escrita, todos os discursos de Plínio Salgado
como deputado, todos os romances... E ele só pôde contemplar do tripé a análise
imanente, e mesmo assim o trabalho se transformou em um volume imenso, porque
ele tinha, a todo preço, a todo custo, de mostrar como o discurso integralista tinha
características completamente diferentes do nazi-fascista. Ele tinha de demonstrar,
tinha de provar que eram dois fenômenos ideológicos distintos, apesar das seme-
lhanças no plano aparente. Isso não significa, como ele mesmo fez questão de escla-
recer nas primeiras páginas da tese, que o integralismo era mais positivo! Isso é uma
grande besteira ventilada por certos leitores mal-intencionados. Ele provou que, em
termos ideológicos, o integralismo era mais regressivo que o nazi-fascismo! Então,
a tese ganhou um tamanho gigantesco, Cruz Costa até fez uma piada – Chasin fez
questão de levar a tese pessoalmente, Cruz Costa já estava doente... Como sempre,
este, mesmo doente, fazia piada: “Chasin me trouxe a tese, mas eu não posso fazer
a leitura do volume deitado...”. De tão imensa que ela era. Na época, tinha de datilo-
grafar, não tinha computador... Teve mil e não sei quantas páginas...
Rago: A tese tem dois volumes, dois catataus que estão dispostos no Arquivo
do Estado e na USP também. Eu queria comentar, e é uma coisa muito interessan-
te, que, mesmo seguindo aquilo que Chasin chamava à época de ontometodologia da
história (depois ele abandona esse termo, mas há pessoas que até hoje falam dessa
construção que ele usava), o que eu acho importante é que nós somos formados
por Chasin inteiramente, em história, filosofia, nas análises críticas de outros auto-
res... Além disso, Chasin insistia na idéia de iniciar o processo da compreensão do
pensamento conservador, mas indo até o limite da análise imanente, coisa que Lukács
não teve como fazer no livro A Destruição da Razão. Chasin sempre pensou essa
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Entrevista
pesquisa como um processo coletivo. Seriam várias monografias, que incluíam Gus-
tavo Barroso, Miguel Reale, Olbiano de Melo, Severino Sombra, entre outros. Quer
dizer, só se poderia multiplicar esse tratamento indo até à saturação, para daí, sim,
efetuar a síntese do movimento e suas concepções, visões de mundo. Existiam inte-
gralismos... Observem os novos livros sobre a AIB e o fenômeno do integralismo:
eles continuam na ladainha da análise convencional, segundo a qual esse fenômeno é
uma imitação, uma cópia, um recurso mimético: já que as condições históricas não
permitiram fluir o fascismo e nazismo como na Europa, os integralistas recorreram
a empréstimos ideológicos, tendo como suposto a noção de “idéia fora de lugar”,
então o fenômeno se deu no Brasil por via da mera imitação. E era precisamente o
que Chasin contestava: “Ora, se isso é verdade, que mostrem pela imanência de sua
entificação histórica.” Chasin, ao contrário, em sua pesquisa, pratica a análise imanente,
coisa que, aliás, nós demoramos muito tempo para entender como fazer... Na ver-
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dade, é aquela idéia de Marx já explícita em 1843, que compreender significa captar
“a lógica específica do objeto específico”24. Por isso é que Chasin nunca separou a
análise imanente da determinação social e da função social do pensamento na aná-
lise das ideologias. Tanto é que, no caso da pesquisa sobre o integralismo de Plínio
Salgado, ele extrai a perpectiva social do pequeno proprietário rural que se volta para
um mundo utópico. As dimensões de regressividade, de um anticapitalismo romântico,
Chasin vai evidenciá-las por dentro da obra, e não como aplicação de um modelo,
de uma teoria pré-fabricada. Ou seja, Chasin extrai essas características do discurso
ideológico pliniano, da própria lógica concreta do objeto. Essa é uma dimensão da
pesquisa que ele fez, passo a passo, com muito rigor, colado aos textos de Salgado.
Posteriormente, Hélgio Trindade25 foi dizer que Chasin leu só alguns trechinhos para
tirar uma idéia fora do lugar.
Ester: A reação negativa despropositada de Hélgio ocorreu também porque
Chasin foi para o Rio Grande do Sul conversar com ele a respeito do integralismo,
que Hélgio já havia pesquisado, e este deu acesso às fontes que tinha. E depois
Hélgio ficou muito irritado e levou a discordância teórica para o campo pessoal, de
forma completamente descabida. Isso é um absurdo e eu acho que esta é uma opor-
tunidade também para esclarecer.
Rago: De fato, Hélgio Trindade escreve que Chasin leu o Plínio [Salgado] pós-
integralismo e, portanto, que teria feito uma leitura falsa, anacrônica. Isso é completa-
mente falso, porque Chasin contemplou todo o discurso de Salgado, o conjunto de
seus escritos, não uma pequena porção deles, e chegou a encontrar uma bibliografia
específica: o primeiro livro alemão, escrito da ótica nazista, criticando o integralis-
mo! Trata-se de um livro no qual o nazismo reivindica do integralismo o elemento rácico,
denuncia a ausência do racismo em Plínio Salgado! E, vejam, Chasin, na análise do
texto, havia já identificado a ausência desse racismo e, a partir desta e de outras ca-
racterísticas, mostrou as diferenças entre o discurso pliniano e o nazi-fascista. Chasin
sempre ponderou... Não se pode usar uma teoria como passaporte universal. A con-
cepção está em Marx: “Portanto, eventos de chocante analogia, mas se passando em
millieu (meios) históricos diferentes, levaram a resultados bem diferentes.” Ou seja,
não se pode usar uma teoria supra-histórica, como passaporte universal para se ex-
plicar realidades distintas, sem mais, como modelo! Deve-se partir, obviamente, das
24. Trata-se de citação da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, escrito por Marx em 1843, texto de
transição para seu período propriamente marxiano.
25. Hélgio Henrique Casses Trindade (*1939), cientista político, estudou o integralismo e foi
reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992-96). Foi também o primeiro presi-
dente da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes), órgão do Ministério
da Educação que desde 2003 tem a prerrogativa de supervisionar a avaliação do ensino superior.
Atualmente, é membro do Conselho Nacional de Educação.
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Entrevista
26. Dissertação de Mestrado em História defendida na PUC-SP em 1989, intitulada A Crítica Ro-
mântica à Miséria Brasileira: O Integralismo de Gustavo Barroso. Gustavo Barroso (1888-1959) foi
um dos ideólogos do movimento integralista e redator do Jornal do Commércio.
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ele tinha em certas questões para as quais não encontrávamos respostas em outros
intelectuais.
Ester: Eu tenho essas aulas preparadas dele, até hoje, em um pequeno fichário.
Rago: Isso eu nem posso imaginar, mas só para ver se isso bate com o que você
tem em mãos... Chasin, por exemplo, fazia crítica daquilo que estava em voga.
Ester: Exato.
Rago: Uma teoria que estava em voga naquele momento era a de Reich28. A
Função do Orgasmo etc., pegava a garotada inteira. Tinha até um tratamento psicológi-
co reichiano, em São Paulo. As pessoas colocavam uma máscara e um maiô elástico,
e ficavam se tocando... Como se isso liberasse a humanidade... E Chasin criticava
duramente. Havia um setor reichiano na Escola de Sociologia e Política que ficava
visceralmente ofendido... Como alguém tem a coragem de falar de Reich nesses
termos? Como alguém se atreve a denunciar os limites de Adorno? Então, era uma
verdadeira guerra! Porque os outros professores também criticavam aquilo que Cha-
sin falava. Desde essa época – eu entrei em 1973, após deixar a Faus, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo de Santos –, ele já fazia a crítica do populismo. Então, foi
por esse período a primeira vez que eu ouvi que o populismo era um modelo, de
talhe weberiano, de extração liberal-democrática, um tipo ideal que nascera de necessidades
na Europa e que os nossos sociólogos uspianos, incluindo Francisco Weffort, assi-
milam de Gino Germani, Torcuato di Tella, na Flacso [Faculdade Latino Americana
de Ciências Sociais], no Chile, e que se dissemina num Brasil muito empolgado com
a sociologia da modernização, acabando por aplicar essa teoria aqui no Brasil. E Chasin
já questionava o núcleo da sociologia da modernização de Gino Germani e Tor-
cuato di Tella. Além disso, no período da ditadura militar, vão se tornando moeda
corrente a teoria do populismo e a teoria da dependência de Fernando Henrique Cardoso e
Enzo Faletto. Chasin, desde aquela época, situa a falsidade dessa analítica: a questão
do “vácuo político”, das “atimanhas da burguesia”, dos conceitos de elite/massa
substituindo as categorias ontológicas de classe e dominação de classe, e assim vai...
A primeira crítica que Chasin fez a FHC, o “príncipe da sociologia”, como era ape-
lidado, na sala de aula, os alunos e alunas se revoltaram, dizendo: “Esse cara é um
marxista, professor, esse cara é um socialista”. Chasin respondeu: “tudo bem, mas
vamos mostrar o ecletismo metodológico, o viés social-democrata, a tipologicização, que
estão presentes nos textos de Cardoso”. Essa postura, esse rigor marcaram muito os
alunos Na época, havia um grupo de alunos chamado Práxis. Eu nunca pertenci ao
Práxis.. Mas o pessoal do Práxis me considerava próximo, porque eu criticava todo
28. Wilhelm Reich (1897-1957), psiquiatra e psicanalistra áustro-americano.
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Entrevista
professor que não fosse marxista ou que não estivesse próximo daquilo que Chasin
ensinava. De minha parte, entretanto, nunca me atrevi a procurá-lo, a não ser mais
para o final do curso...
Vânia: Então, na época que era estudante você nunca teve nenhum contato pessoal com o
Chasin e a família?
Rago: Sim, tive... Uma vez nos encontramos em um restaurante italiano no Bi-
xiga que eu frequentava com minha família. Timidamente me dirigi à mesa em que
ele estava sentado com a família e começamos a conversar. Foram vários os assuntos
e acabei dizendo que era músico, que tocava violão. Ao saber disso, Chasin e Hanna
me convidaram para dar aulas de violão para o filho mais velho, então adolescente,
Ibaney. Vocês sabem que hoje Ibaney é um profundo conhecedor da música de
Monteverdi, do Renascimento, do Iluminismo, além de regente, um formulador de
estética musical. Assim, ao freqüentar sua casa tomei conhecimento de seus gostos
musicais, por exemplo, Astor Piazzolla29. E, assim, percebi que tínhamos gostos em
comum. Além disso, constatei que era alguém que dominava e gostava não só de boa
música, mas de boa literatura também. Tudo isso fez com que eu viesse a admirar
Chasin. Mas, fundamentalmente, após da morte de Herzog e, depois, no ano seguin-
te, de Manuel Filho30, em 1976, já se colocava para nós a necessidade de militância,
quando Chasin conversa com a gente, mostrando que a esquerda estava fragmentada
e a gente teria que organizar alguma coisa... Chasin já criticava o politicismo das
esquerdas, que separava a luta política da base material da vida. A esquerda não ques-
tionava a plataforma econômica da ditadura militar. Nesse sentido, Chasin acreditava
que, se levássemos a discussão de um programa econômico alternativo para o seio
de movimento operário, da independência ideológica para a classe trabalhadora, se
aproximássemos as esquerdas divididas – pensava, inclusive num fórum de esquer-
das –, se nos atássemos aos movimentos sociais, poderíamos colocar uma cunha,
ainda que pequena, na luta contra a ditadura militar e seu projeto de auto-reforma.
A gente se empolgou em estar em contato com operários, em estar na militância.
Com todos os riscos que a militância continha. Porque havia muitos infiltrados nos
movimentos de esquerda...
Ester: Era comum na época.
Rago: Era comum, dada a debilidade da própria esquerda. Tanto é que na So-
29. Astor Pantaleón Piazzolla (1921-1992), músico argentino, compositor de tango mais impor-
tante da segunda metade do século XX,
30. Manuel Fiel Filho (1927-1976), metalúrgico morto por tortura pela ditadura militar, sob acu-
sação de pertencer ao Partido Comunsita.Sua morte provocou o afastamento do general Ednardo
D’Ávila Melo do comando do III Exército.
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ciologia e Política, por exemplo, você tinha na cúpula da diretoria Vicente Unzer de
Almeida. Você tinha esse aluno, Luiz Brum, se não me falha a memória, e outras
pessoas que também representaram um papel de direita, de extrema-direita. Veja o
caso do Nelson Brissac, um intelectual que trabalha com o pensamento de Jean Bau-
drillard, com essa questão do irracionalismo pós-moderno. Este jovem vai ter uma
posição muito ruim na Ala Vermelha31. Em sua tese doutoral intitulada Ala Vermelha:
revolução, autocrítica e repressão judicial no Estado de São Paulo, Tadeu Dix Silva denuncia o
papel covarde a que se prestou esse jovem e o papel de seu pai na denúncia do grupo
dirigente. Alípio Freire32 e outras pessoas que militaram com ele na Ala Vermelha
são claros em dizer que ele não foi torturado, que ele ficou do lado de fora, e vendo
depois eles sendo torturados... Tanto é que um policial chama Alípio Freire de um
codinome que poucos sabiam, e ele intui quem passou a informação. O aparelho é
descoberto dessa maneira, com a Oban atuando, por conta dessas relações, e o pai
negocia a ida do filho para o exterior. E esse menino retorna na Fundação Escola de
Sociologia e Política, em São Paulo, e será um agente detonador no movimento es-
tudantil de operações difamadoras contra Chasin. Havia outra colega minha, a gente
estudava na casa dela. Eu ia estudar num grupo de estudos, para fazer as atividades
de pesquisa, e o marido dela também era do Deops. A gente não sabia. Ele contro-
lava essa menina por todos os lados. Eu não me lembro do nome dele, mas quando
alguém foi preso e depois solto, nos disse: “Encontrei o fulano de tal dentro do De-
ops e com visíveis intimidades...”. Então, esse marido de uma colega nossa também
era infiltrado. Os vários grupos que atuavam ali, dos stalinistas aos trotsquistas, mais
essa penca de infiltrados, se exasperam quando vêem a liderança de Chasin se impor
e o curso se transformar de ponta a ponta numa escola de marxismo. Mas um tipo
determinado de pesquisa marxista. O tormento se apresenta quando Chasin amarra
o curso. E isso começa a mobilizar todos esses agentes...
Vânia: Amarra o curso?
Rago: Eu vou explicar. Do primeiro ao quarto ano, essa linha que Chasin cha-
mava, à época, de “ontometodologia de história”, “centralidade do trabalho”, “crí-
tica ontológica à analítica paulista”, já começa a se pôr. Marx se torna figura central.
Gildo Marçal Brandão trabalhava a Fenomenologia do Espírito de Hegel e dissecava os
Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, de Marx. Então, ali Chasin já começa a ler a
31. A Ala Vermelha foi uma das duas cisões surgidas do Partido Comunista do Brasil (PC do
B) em 1966 – a outra foi o Partido Comunista Revolucionário, formada por membros das Ligas
Camponesas e por integrantes do movimento estudantil. Esta organização se lançou na luta arma-
da, inclusive compondo uma Frente Armada com a Aliança Nacional Libertadora (ALN), a Van-
guarda Popular Revolucionária (VPR) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).
32. Poeta, militante e jornalista.
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Entrevista
Ester: No final de 77, ele consegue, finalmente, depois de muitas idas e vindas,
jurídicas e administrativas, ele consegue vencer e ter o direito de defender para uma
banca composta por Antonio Candido, Reinaldo Carneiro Xavier, Carlos Guilherme
Mota, Maurício Tragtenberg, que era o orientador, e Braz José de Araújo. O salão da
Escola de Sociologia e Política estava lotado, tinha gente pendurada na janela, gente
tentando entrar... Foi realmente uma vitória emocionante, porque ele volta para a
Escola de Sociologia por cima, defendendo uma tese brilhante, com uma banca que
reconheceu esse mérito – foi uma espécie de desforra. Nós até organizamos uma
festa para comemorar, na casa dele. Foi uma surpresa... Ele ganhou até uma placa
de prata, dos alunos da Escola de Sociologia e Política, uma volta triunfal dele para
a Escola depois de ser demitido daquele jeito...
Rago: E tem um fato, Ester, muito importante: sai na Folha de S. Paulo uma
página inteira mostrando a revolução teórica contida em sua tese doutoral sobre o
integralismo...
Ester: É uma entrevista com Getúlio Bittencourt... Uma entrevista de página
inteira com Chasin, sobre a tese, que sai na Folha de S. Paulo, em fins de 77...35 Foi
cedida a Getúlio Bittencourt que, na época, era jornalista da Folha de S. Paulo.
Vânia: E nesse ano em que ele foi demitido, entre a demissão e a defesa, o que Chasin fez?
Como ele sobrevivia?
Rago: Uma questão, sobre a qual até o grupo se dividiu, foi que Chasin come-
çou a procurar emprego em outras universidades. Então, mais umas vez, surge a
figura de Maurício Tragtenberg... Maurício foi genial... Vocês sabem que foi a pessoa
que indicou Chasin, quando de sua volta de Moçambique, para João Pessoa. E ele
indica Chasin, para a área de Educação, acho que lá da Unicamp.
Ester: Isso mesmo. Tragtenberg dava aula na Faculdade de Educação da Uni-
camp.
Rago: O que vai acontecer... Esses jovens, como Nelson Brissac, e outros pro-
fessores começam a se articular para envenenar qualquer espaço com o objetivo de
evitar que o Chasin trabalhasse... Então, Chasin começa a ter os espaços bloqueados
e controlados. Porque as pessoas começavam a falar e falar que onde ele entrava, ele
organiza quadros, “desmonta tudo...”.
Ester: Chasin defendeu, por fim, a tese, que para ele tinha vários significados.
Além desse significado que a gente enfatizou, que é o de abrir uma linha de pesquisa
35. CHASIN, J. O integralismo não é um fascismo. Entrevista de J. Chasin a G. Bittencourt. Folha
de S. Paulo, 25 dez. 1977.
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36. “Em Memória de J. Chasin: Luta pela Autenticidade Humana”, publicado na Revista Crítica
Marxista n. 8, de junho de 1999.
37. Refere-se a “Alguns Temas da Questão Meridional”. No mesmo número ainda havia textos de
Braz José de Araújo (“Caio Prado Júnior e a Questão Agrária no Brasil”), NelsonWerneck Sodré
(“História do Iseb 1”), J. Chasin (“Sobre o Conceito de Totalitarismo”), Marco Aurélio Nogueira
(“Max Weber: a Burocracia e as Armadilhas da Razão”) e Gildo Marçal Bezerra Brandão (“Totali-
dade e Determinação Econômica”), além do “Manifesto da Associação Industrial”, de 1881, com
apresentação de Reynaldo Carneiro Pessoa.
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que a sociedade capitalista... Enfim... havia essa questão. Nós entramos, desde que...
Então, tinha uma coisa muito complicada... Sim, entramos, mas havia um “desde
que”... Chasin estabeleceu condições para isso. E as condições eram claramente o
abandono, por parte do Partido, dessa tese falsa de que nós estávamos vivendo sob
fascismo; segundo, a discussão do politicismo, ou seja, de que a luta pelas liberda-
des democráticas, embora válida, não era a luta que deveria ser encetada a partir do
ponto de vista do trabalho. Ou seja, a luta pelas liberdades democráticas, do ponto
de vista do trabalho, implicava inserir um programa econômico, visava a estabelecer,
identificar as bases econômicas de sustentação da ditadura militar. A política econô-
mica da ditadura militar estava sobre um tripé: o arrocho salarial, a entrada de capital
estrangeiro e o investimento estatal nas indústrias de base, e era isso que deveria ser
questionado. Não era suficiente apenas reivindicar a volta do estado de direito. Qual-
quer mudança efetiva implicava a intervenção da perspectiva de um agente específi-
co, que é o agente do trabalho. Eu me lembro das reuniões, pois eu também participei...
O nosso contato não era um cara à altura, não tinha a menor dimensão intelectual,
inclusive, para perceber o que estava em questão. Ele queria que nós ingressássemos
porque para ele isso seria um trunfo, no interior da reorganização. Ele estava que-
rendo ascender dentro da estrutura do poder. Bom, entrar gente como nós, especial-
mente Chasin, professor renomado, intelectual etc., para ele seria um grande trunfo.
Mas Chasin deixou claro nas discussões que havia certas condições que deveriam ser
aceitas para que nós ingressássemos... Isso é preciso ressaltar também. E essas con-
dições passavam por esse tipo de discussão, o questionamento da atuação do PCB,
da linha de diagnóstico da realidade brasileira, do programa. Isso porque, à época,
simplesmente, o Partidão estava indo a reboque, que era a expressão utilizada, a re-
boque do Dr. Ulysses Guimarães40 etc., a reboque de um princípio liberal, deixando
de lado a perspectiva do trabalho, a democracia social. Ou seja, o que estava em jogo
naquele momento não apenas a democracia política.
Rago: Isso que Ester está falando é decisivo. Porque, mesmo assim, tem um
pessoal que era próximo à Ensaio, que era da Ensaio e que sai dizendo por aí afo-
ra que a gente era uma tendência que desejava deter as rédeas do Partido etc. Mas
Chasin sempre levou à radicalidade aquilo que Ester colocou antes, a idéia de Caio
Prado, de ter um pé dentro e outro fora. E conhecer essa realidade para saber o que
fazer. Tanto é que aquela idéia que eu mencionei antes, de a gente buscar discutir
40. Ulysses Guimarães (1916-1922), político, presidente do Movimento Democrático
Nacional (MDB) que, com o fim do bipartidarismo, em 1979, se tornaria Partido do
Movimento Democrático Nacional (PMDB). Participou das campanhas pelo retorno
do estado de direito, inclusive da luta pela anistia ampla, geral e irrestrita e pelas eleições
diretas.
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Entrevista
com outras parcelas da esquerda a construção de algo comum, uma espécie de fó-
rum das esquerdas em que ficariam preservadas as suas diferenças, publicações e or-
ganizações... Eu lembro que houve um período em que a gente pensou isso... Chasin
foi para Moçambique e, na volta, houve o encontro com Prestes. A idéia, então, era
isso que Ester falou: ver as possibilidades; e não é à toa que Chasin publica então
na Temas o artigo “Sobre o Conceito de Totalitarismo”, porque aí você primeiro faz
uma crítica ao próprio Partido...
Ester: Crítica a Hannah Arendt e à teoria do autoritarismo também.
Rago: Exatamente. Então, aí vai aparecer com clareza esse tipo de explicação
teórica e Chasin vai, vamos dizer... Se você pegar a número 3, em que sai o texto
de Marx, sobre o livre câmbio41, você tem ali a dimensão de como o mercado dá as
bases das liberdades formais. Quer dizer, você tem a idéia de Marx, Engels, Lênin...
De Lênin, ele publica as atas do Iskra42. Quer dizer, qual a função de uma revista? A
número 3 da Temas, ela é o Iskra. Isso é importantíssimo. Porque senão as pessoas
pensam que nós estamos, assim, numa batalha meramente...
Ester: Teórica...
Rago: Tínhamos a consciência de que o PCB era reformista, politicista e obtuso
teoricamente A direção estava no exterior e aqui vivíamos a sua reconstrução. Você
sabe que eles voltam em 1979, com a anistia restrita. Organizamo-nos para receber
os anistiados ainda sob ameaças de prisões... Nesse retorno do exílio já se explicitam
as rupturas, os rachas e a ideologia reformista e politicista do eurocomunismo como
a ideologia do grupo que alijara Prestes e seu bloco do Comitê Central. Nosso emba-
te se dá contra essa visão que priorizava a luta pela democracia política desconectada
da programática da perspectiva do trabalho...
Ester: Com o politicismo43, não é? Não é à toa que Chasin publica um artigo
sobre os discursos do Saturnino Braga – “A Politização da Totalidade: Oposição e
41. “Troca, Liberdade, Igualdade”, publicada na Revista Temas n. 3.
42. Refere-se a “Projeto de Declaração da Redação de Iskra e de Zariá”, publicado no número 5
da Temas. Iskra foi um periódico operário criado por Lênin, Mártov, Plekhânov, Vera Zassulich e
outros. Foram publicados quatro números até agosto de 1902. O órgão desempenhou um impor-
tante papel na criação do Partido Bolchevique.
43. J. Chasin denomina de politicismo a subordinação analítica de todas as esferas da vida social,
principalmente a econômica, à esfera política – como sendo preponderante sobre as outras. No
artigo “A Politização da Totalidade: Oposição e Discurso Econômico” J. Chasin aponta os equí-
vocos dessas análises, por impedirem a compreensão das relações sociais e da estrutura econômica
instaurada. Com isso, enxerga-se apenas a esfera das questões políticas, reduzida às franquias
democráticas, e por isso, ontologicamente parcializadora.
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Discurso Econômico” – em que ele fala que a única figura da oposição a trazer para
o debate a questão econômica era o senador Satunino Braga.
Rago: E o lance era o seguinte: como chegar ao movimento operário?
Ester: Chasin publica na Temas um texto que tinha escrito para ser lido e deba-
tido no interior do Partidão, cujo titulo é “Conquistar a Democracia pela Base”. Foi
publicado na Temas, mas antes esse artigo circulou e foi discutido exatamente porque
é um artigo em que sintetiza as suas formulações e críticas, e essa proposta deveria
ser disseminada para ser tematizada junto às esquerdas, para que esta não ficasse
simplesmente a reboque de uma plataforma, ou de uma palavra de ordem, simples-
mente liberal, que era a das liberdades democráticas. Assim, inserir nessa plataforma
a questão econômica do ponto de vista do trabalho.
Rago: Nós tentamos irradiar esse documento para muitos setores. Desde o
ressurgimento das greves operárias no ABC paulista e sua irradiação no movimento
sindical até a formação da Conclat44 e, mais adiante, dentro do PT. Então, nesse
momento em que a gente está numa dada militância, qual que era o nosso intuito?
Descobrir as fendas para o movimento operário, porque ele tinha uma fragilidade
fantástica... Quando a gente se aproximou dos operários e operárias do Partido,
quando fomos discutir com eles a teoria de Marx, Engels, Lênin, eles não sabiam
nada. Eles não tinham lido sequer o Manifesto Comunista. Mas isso foi importante,
porque nós começamos a ter uma militância nos movimentos dos professores, num
dado momento, tornando-se referencial da categoria dos professores nessa luta con-
tra a direção oportunista do sindicato. Fazíamos uma frente única de esquerdas e
enfrentávamos resistência do próprio Partido. E tinha o Sr. Leopoldino, que era um
pelego muito colado ao patronato...
Ester: De um lado era isso, e do outro era o pessoal que era do sindicato para-
lelo.
Rago: Isso, havia os trotskistas, que defendiam o sindicato paralelo. Tanto é
que, não sei se você está lembrada, quando ocorrem as greves do ABC, certa corren-
te trotsquista tenta vender seu jornal estampado com a manchete “Lula traidor”. Isto
porque Lula agia na estrutura sindical legal. E no maior momento em que a classe
operária se põe, em seu ascenso, com a liderança de uma das principais greves do país
contra a ditadura militar e que ia ao encontro dessa dimensão que Chasin inaugurava
em seus escritos: a centralidade do trabalho. Então, é no bojo desse ressurgimento
44. Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras. A I Conclat, realizada em 1981, reuniu 5.030
delegados, na primeira grande reunião intersindical realizada no Brasil desde 1964.
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45. Refere-se à IV Conferência das Classes Produtoras do Brasil (Conclap), realizada em fins de
1977.
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tivesse surgido qualquer alternativa aqui, ele teria ficado. Ele só partiu para Moçam-
bique porque ele não teve alternativa. Foi, como ele dizia, um auto-exílio. Isso não
significou, no entanto, que de início ele não tenha ficado entusiasmado com o que
encontrou por lá logo que chegou a Maputo. Ao contrário...
Vânia: Essa proposta veio de quem?
Ester: O convite para ir para Moçambique partiu de um ex-aluno da Escola de
Sociologia e Política e Chasin consultou o grupo sobre se era o caso de ir ou não ir.
O casal Augusto e Flávia Cacciabava também foi convidado – eles viajaram primeiro
e depois Chasin foi com a família... Bom, Chasin ficou muito indeciso, muito des-
confiado... Afinal, não havia muitas informações disponíveis. Viajar, ir com a família
para um país desconhecido, um país que apenas três anos antes era uma colônia
portuguesa, que havia enfrentado uma violenta guerra de libertação... E Chasin pon-
derava: “Eu vou como, fazer o quê?” Como era bem típico dele, acabou por afirmar
“vamos tirar o melhor do pior. Eu não tenho alternativa a não sei ir para lá... Ir para
Moçambique pode significar algo positivo para mim, para minha família, mas tam-
bém algo positivo para todos, para o projeto.” Ou seja, Chasin acabou por chegar à
conclusão de que a viagem para Moçambique poderia criar as condições para se de-
senvolver aquilo que havia se tornado impossível no Brasil. Parecia ser, naquele mo-
mento, uma experiência importante, mas ele realmente ficou muito indeciso, muito,
muito indeciso. Depois da decisão, todos os preparativos da viagem... Eu me lembro
até hoje o que foi desmontar aquela biblioteca, porque ele levou parte da biblioteca
para Moçambique, e a outra parte ficou na casa de um amigo nosso, em São Paulo,
José Luiz... Foi uma coisa muito triste para ele sair daqui do Brasil, deixar a casa,
viajar com os filhos adolescentes, sem saber o que ia encontrar, de fato, pela frente...
Ele sabia perfeitamente que corria um grande risco Num primeiro momento, ele, ao
chegar lá, ficou muito extasiado com tudo o que estava ocorrendo, com a disposição,
com o papel que Eduardo Mondlane, que já havia morrido – a universidade levava
o nome dele – tinha desempenhado. O que chamou muito a atenção, também, foi a
atuação da Frelimo – Frente de Libertação de Moçambique – que, ao lado de uma
guerrilha contra o colonialismo português, desenvolveu uma batalha diplomática
extremamente bem pensada e eficiente. Diga-se de passagem, pois poucos sabem,
que talvez o colonialismo português tenha sido um dos mais devastadores. Foi abso-
lutamente terrível. E é óbvio que a perda das colônias enfraqueceu a ditadura Salazar
e, então, Chasin chamava a atenção para a atuação da Frelimo por esses dois tipos
de atuação conjugada: a guerrilha, de um lado, e de outro uma atuação diplomática
com intelectuais de peso. Outra característica da atuação da Frelimo para a qual ele
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gorjeio do labor”... Era o décimo primeiro número do jornal Voz Operária... “Gorjeio
do labor” é voz operária... Até a gente descobrir tudo aquilo! Era tudo cifrado... “Leiam
o undécimo gorjeio do labor...”. Então, o que está lá é a fala de Prestes, a fala que
vem ao encontro... Com todas as restrições a Prestes, mas era a único... Ele já havia
sido expulso, ele estava neutralizado no PC. A maioria do Comitê Central já tinha
abraçado o eurocomunismo... E Prestes é o único que fala: “Espera um pouco, não
é assim...”. E que ele fala “preste atenção” etc... E nós, aqui, no Brasil... Cometemos
um grande equívoco. A gente deveria ter “ingressado” no Partido como tendência,
sem se deixar sufocar, contaminar pelo veneno que há numa organização partidária
do tipo do Partidão aqui. E nós, infelizmente, não agimos desse modo no setor dos
professores, no qual atuávamos. É verdade que nós brigamos, nós lutamos etc., mas
passamos a agir... A coisa era tão violenta que nós passamos a agir sob a diretriz do
Partidão!! Nós éramos militantes do Partidão. Como se isso fosse uma grande coisa,
uma grande vitória... nós invertemos tudo. Nós cometemos erros colossais. Brigan-
do dentro etc. etc., tentando levar as coisas. Havia uma grande ambigüidade de nossa
parte. No caso da Temas, por exemplo, nós tentamos impedir o Sr. Raul e Marco Au-
rélio Nogueira de italianizarem a Temas, ou seja, de abraçarem o eurocomunismo, im-
pedir que a Temas se transformasse em uma espécie de moeda de troca de interesse
pessoal... Chasin, eu tenho toda essa correspondência, enviou inúmeras cartas para
Raul, para Gildo [Marçal Brandão], para Nelson Werneck Sodré... “Por favor, não
deixem que a Temas vire moeda de troca para o italianismo...”. Porque, o pessoal que
voltava voltava sob influência do eurocomunismo. Berriel até escreveu um artigo na
Ensaio, “Gramsci e eles”46, contra o artigo “Gramsci e nós”47. Quer dizer, Berriel
denunciava a leitura de Gramsci a partir de um viés liberal, ao resgatar os nódulos
crocianos48 ali presentes. Criticamos, assim, a noção de democracia como valor universal.
Foi uma briga muito violenta, mas, contraditoriamente, ironicamente, assumindo o
Partido; quando nós devíamos ser uma tendência dentro do Partido, brigando contra
o Partido, nós o assumimos, caímos no ardil do partido.
Rago: Então, eu queria só recuperar o momento que romperam as greves me-
talúrgicas do ABC. Chasin está em Moçambique. Nesse período, a gente propõe
uma revista no MDB. E Chasin faria o texto principal. Cida simplesmente reuniu
e catalogou todos os documentos das greves, o dia-a-dia das greves e enviava para
Maputo. Então, a gente comprava a Folha, o Jornal do Brasil, o Diário do Grande ABC,
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coletava os boletins sindicais, tudo quanto era material... E Cida tinha esse papel de
mandar caixas e caixas de jornais para Maputo. E Chasin escreve, de lá “As Máquinas
Param, Germina a Democracia!”49...
Ester: ... com base nas informações que a gente manda daqui. Chasin tinha mais
informações sobre o Brasil que a embaixada brasileira em Moçambique.
Rago: Nesse momento, já tínhamos produzido dois números sobre o movi-
mento operário, a Escrita/Ensaio n.º6 sobre Movimento Operário: Novas e Velhas
Lutas e a n.º 7, O Arrocho Treme nas Bases do ABC. Na verdade, era para ser um
único número, mas o editor, Wladyr Nader, considerou melhor seu desdobramento.
Quando Chasin volta de Moçambique pontua que a Escrita/Ensaio deveria se dife-
renciar da linha anterior. Chasin propõe: “Vai ser a Nova Escrita Ensaio”. A Escrita/
Ensaio, como pensada por Wladyr Nader, tratava de temas abrangentes e diferencia-
dos. Sobre a mulher, ele dava para um setor de mulher... Sobre literatura, sobre un-
derground... Ele dava para grupos especializados naqueles assuntos. A partir, portanto,
dos números 6 e 7, direcionamos a revista para o movimento operário. Porque este é
o momento da irrupção das greves operárias no ABC. O que eu queria colocar é que
isso está ocorrendo simultaneamente. Num dado momento, a gente estava achando
que ia para Moçambique e, portanto, ia ser outra a história das nossas vidas...
Ester: Nós mandamos o curriculum vitae...
Rago: E eu ia para a área de música, trabalhar com o maestro Martinho Lutero,
que hoje, diga-se de passagem, é regente em Milão. Até que Chasin falou: “Olha, a
situação aqui está difícil.” Mas o que eu queria colocar é que, nesse quadro... Chasin
tinha nos ensinado que “sem teoria revolucionária não há praxis revolucionária”,
que a teoria tinha de ir ao encontro das massas; de repente, imagina, a nossa geração
vê aquilo na prática, um volume de massas impressionante, que a gente nem tinha
dimensão... Chasin falava que uma greve na Europa não reunia o número de 60 mil
pessoas, 70 mil numa praça – veja, aqui os metalúrgicos e matelúrgicas da região do
ABC tomavam conta do gramado e das arquibancadas de um estádio de futebol.
E era uma fração do movimento operário. Não era uma assembléia de classe, uma
mobilização da classe operária. Enquanto isso, Chasin nos enviava cartas de Moçam-
bique contando as barbaridades de nossos “camaradas”. Por exempo, aquela família
de búlgaros que estava preocupada não com o desenlace do processo revolucionário,
mas em fazer o enxoval da filha... E a gente ficava escandalizado, porque, o “nosso
camarada” búlgaro deveria estar preocupado com a revolução... E não se preocupar
49. CHASIN, J. “As Máquinas Páram: Germina a Democracia!”. Revista Escrita/Ensaio. São Paulo,
Ed. Escrita, ano IV, n. 7, 1980.
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Entrevista
em ganhar dinheiro... E Chasin falava: “Vocês não vão acreditar... O pessoal está
aqui para ganhar dinheiro e a corrupção começa a rolar na direção da Frelimo.”
Nós achávamos que um cara que lutou pela libertação de Moçambique – a gente
divulgou aqui em São Paulo um filme Essas São as Armas, um filme que acompanha
Samora Machel nas zonas libertadas, mostrando a necessidade da luta armada, flagra
a barbárie, o genocídio do exército português, mostra cenas dos enfrentamentos
dos moçambicanos, cenas do cotidiano do trabalho etc. –, imaginar, portanto, que
um revolucionário seja corrupto... E Chasin falava: “Constataram vários processos
internos de corrupção no Estado...”. Então, Chasin foi dando armas para a gente
repensar o mundo dito socialista. E os próprios limites de Lukács... Chasin começa,
como era do seu feitio, a procurar entender essa figura imprevista das formas sociais
pós-revolucionárias, mas que não transitaram para uma formação autenticamente
comunista...
Ester: Das inviabilidades...
Rago: Isso, inviabilidades... E o que acontece aqui com a Revista que ele criou:
a Temas. Chasin perde a Temas a partir do número 8... A anistia é de 1979, tem a vin-
da das pessoas para cá e nós já sabíamos, num certo sentido, que a coisa não estava
tranqüila... Chasin falou para Prestes, pessoalmente, que ele não tinha base alguma
em São Paulo, não tinha base no Brasil... Prestes respondeu: “Fique no seu lugar...
Não se intrometa...”. Ele não quis ouvir... E quando a gente sabia que aqui vigorava
essa linha democratista, a teoria da democracia como valor universal... Daí em diante, até
sua falência, editando poucos números depois da saída de Chasin, a Temas envereda
para o eurocomunismo...
Ester: Exato! E é preciso retomar aqui o que dissemos agora há pouco. Toda a
concepção inicial da revista foi de responsabilidade de Chasin, ou seja, não apenas
a concepção da capa da Temas , mudando de cor a cada número, mas a própria con-
cepção inicial da revista, tanto em termos teóricos quanto ideológicos.
Rago: É, nesse período, então, que surge a possibilidade e o convite do Maurí-
cio Tragtenberg.
Ester: É… Maurício Tragtenberg, num evento de que participou, conheceu
o pró-reitor de pós-graduação da Universidade Federal da Paraíba e, conversa vai,
conversa vem… novamente, Maurício, que era uma pessoa excepcional, uma figura
humana excepcionalíssima… Eu tenho as cartas, inclusive, que Maurício mandou
para Chasin, dizendo: “Olha, Zezinho, conheci fulano de tal, está interessado em
te contratar… Vai lá para criar o curso de pós-graduação de filosofia da UFPb”.
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Enfim, Chasin pensou em voltar, não por conta desse convite. Ele pensou em voltar
porque era impossível continuar em Moçambique, em função dessas inviabilidades
originárias que já referimos. Assim, ele voltou para o Brasil 22 meses depois de partir
para Moçambique.
Vânia: Em 1980, já?
Ester: No início de 80.
Vânia: Só para entender… Nesse ínterim, então, quando ele estava fora, foi perdida a Te-
mas e feita a Nova Escrita/Ensaio, muito próximo um evento do outro… E aí então, ele recebe
esse convite…
Ester: É, mas ele não resolve voltar para o Brasil por causa do convite. Inde-
pendentemente do convite, ele queria voltar para o Brasil. Exatamente por causa da
experiência que ele vivenciou por lá. A volta ao Brasil era necessária sob todos os
pontos de vista, e o velho dilema retornou com mais força agora. Onde Chasin ia
trabalhar? Ele tentou inserção em São Paulo, não conseguiu e, assim, ele foi para a
Paraíba, para João Pessoa, por conta desse contato que Maurício Tragtenberg havia
feito e, depois, por correspondências, que eu tenho também, entre Chasin e o pesso-
al da UFPb para criar lá a pós-graduação em filosofia na universidade, que havia sido
criada… Era gigantesca… eram sete campi, coisa assim, imensa. Eu fiquei impres-
sionada. A gente não sabia se a universidade estava dentro da cidade ou o contrário,
dado o impacto que o primeiro câmpus, que ficava em João Pessoa, tinha sobre a
cidade. Mas eram sete campi, campi que se localizavam desde o litoral até o interior,
quase limite com o Ceará, o último na cidade de Cajazeiras.
Vânia: E no retorno para o Brasil Chasin teve nenhum problema com a repressão, ou ele
voltou tranqüilamente?
Ester: Voltou tranqüilamente. Lembre-se, eram os inícios dos anos 80. Nós or-
ganizamos uma vinda, distribuímos convites etc. e ele, logo ao chegar ao aeroporto
de Congonhas, ele se pronunciou sobre o Brasil. Nós conseguimos que ele fosse
recebido na sala VIP do aeroporto de Congonhas, na época, e, ao chegar, ele fez um
belo discurso... Não apenas porque se tratava de alguém que voltava e nunca deveria
ter ido, mas porque voltava para lutar... E ali havia mais de 100 pessoas esperando
por ele. Ele, imediatamente ao chegar, já faz um belo discurso.
Rago: Com o retorno de Chasin ele fez a crítica ao nosso comportamento, pois
considerava absurdo que ainda estivéssemos com um pé dentro do partido. Era hora
de romper com o Partidão. Então, com a volta de Chasin de Moçambique, o nosso
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Entrevista
contato com as lideranças do movimento operário, que víamos com olhos deslum-
brados, foram questionados por Chasin. Eu digo, em tom pessoal, que acreditava
ilusoriamente que, o simples fato de um indivíduo ser da classe operária, participar
de ações de massa tão expressivas, o levaria à consciência revolucionária...
Ester: Eu também... aliás, todo mundo.
Rago: Eu dei o Manifesto Comunista para Lula. Eu lhe dei várias [Revistas] Ensaio...
Depois nós fizemos uma matéria com Lula na capa, foi a Ensaio número 9... A gente
achava que poderia influir no movimento operário. E Chasin, então, distante dessa
realidade, em terra moçambicana, fez uma análise crítica dos limites do movimen-
to operário... Ao ler “As Máquinas Param, Germina a Democracia!”, Eder Sader
afirmou: “Como Chasin pode ousar escrever sobre uma realidade que ele não está
vivenciando?”.
Ester: Seguindo esse raciocínio, Marx não poderia escrever sobre a Comuna de
Paris50 vivendo na Inglaterra...
Rago: Exatamente. Nem Lênin poderia escrever nada sobre a Rússia, porque
ele passou o século XX todo, até chegar abril de 1917, para entrar em solo russo, no
exterior. Então, por esse critério... Mas, retomando, naquele momento, Chasin volta
e quer conhecer esses operários. Nós falávamos muito sobre isso. A gente ia para
Osasco, ia para lá e para cá. Nós tentamos depois realizar esse alargamento das bases
sociais do movimento grevista. Tentando conectar lideranças de várias regiões, uma
confluência do movimento operário, quando Chasin vai mostrar as debilidades da
direção sindical... Não sei se Ester está lembrada do evento em São José dos Cam-
pos... Nós fizemos um encontro com lideranças da classe operária... Com Lula, Zé
Pedro, Arnaldo Gonçalves, entre outros. Chasin mostrava que o movimento operá-
rio só teria força se ele se transformasse de ações de frações em ações de classe. Quer
dizer, em movimento social, se alargassem as bases sociais de modo permanente,
a começar pelos metalúrgicos. Se os metalúrgicos de São Paulo e do ABC paulista
tinham os dissídios diferenciados, um era em março e o outro em outubro, ou a
outra categoria em novembro, a idéia era fazer a confluência. Que a classe operária
fizesse uma grande greve e não isolasse o ABC, como era o risco. E quando Chasin
veio para São Paulo, e a gente o levou ao movimento grevista, às assembléias mul-
titudinárias, ele pôde conversar com o pessoal da base, com o pessoal do comando
de greve. Nós nos reunimos com Melão, hoje um grande amigo, Wagner Lino, Os-
50. Comuna de Paris de 1871, evento em que, pela primeira vez na história, a classe operária toma
o poder, no qual permanece durante 72 dias.
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marzinho, Alemão, que depois adentrou no MR-8 e hoje coordena a central ligada à
social-democracia...
Ester: Nós vimos, nós assistimos à ascensão do MR-8, nós vimos isso. Eu as-
sisti a isso...
Rago: E está na [Revista Nova Escrita/Ensaio] número 8 o registro com o coman-
do de greve. Então, nós acreditávamos que seria possível influir no movimento...
Ester: E Chasin faz uma crítica violenta à nossa atuação... E foi pesado...
Vânia: O texto ele escreveu ainda em Moçambique...
Rago: Sim, o texto crítico sobre nossa atuação ele escreveu em Moçambique.
É bom lembrar que a número 8 inaugura a Nova Escrita/Ensaio, que contém o texto
“Carta a um Camarada” de Lênin e a homenagem a Florestan Fernandes. A entre-
vista com o nosso sociólogo foi um verdadeiro marco. Porque Florestan atravessava
um momento difícil em sua vida e era escanteado pela própria esquerda. Nesse
momento, Florestan morava na Rua Nebraska, no Brooklin. Chasin propôs que re-
alizássemos um grande ato de homenagem a Florestan Fernandes, no Sindicato dos
Jornalistas.
Ester: Antigos alunos dele, assistentes dele, também não lhe davam a mínima
atenção...
Rago: Convidamos o jornalista Alípio Freire para nos ajudar, Carlos Guilherme
Mota e outros companheiros. Chasin dizia: “Nós vamos trazer Florestan à tona”. E
foi uma homenagem verdadeiramente linda!.
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Entrevista
Da esquerda para direita: Florestan, Ricardo Antunes, Chasin, Almino Afonso e Alípio Freire
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mos várias debilidades que vão se revelar de modo até ostensivo, uma debilidade de
caráter... Perdidos, muitas vezes, ora em taticismos, ora em oportunismos...
Ester: Também uma debilidade teórica, uma debilidade de compreensão, uma
imaturidade conjugada com ingenuidade etc. etc... Outra coisa completamente dife-
rente é uma debilidade de caráter que já tinha se manifestado naquele casal que foi
para Moçambique antes de Chasin e família e depois também veio a se manifestar
em outras pessoas nos momentos de dificuldade da Ensaio.
Lúcia: Eu só queria retomar, bem rapidamente, quando Ester fala que nós não tínhamos
clareza ou achávamos que era momento de revolução, tamanha a efervescência do movimento: nós
temos de lembrar que realmente existia na América Latina algo acontecendo. Revolução da Nica-
rágua, depois o movimento Sendero Luminoso... E no Brasil, antes da formação do PT, havia, sim,
movimentos no campo, muitos assassinatos, sem falar em todo aquele apoio de vocês ao movimento
operário e dos muitos núcleos que existiam. Até 84 foi a Conclat, antes da formação da CUT53.
Então, eram muito intensos os movimentos sociais. E qual era o lema? “CUT pela base.” Era
tudo organização pela base. No momento em que surge o PT, quando o PT de fato vai se fortalecen-
do, isso tudo vai sendo minguado, mas, naquele momento, não era equivocado, não era ilusório...
Rago: Sim, mas o que nós estávamos falando era da nossa ilusão de que o ope-
rário, por ser operário, tinha uma estrutura diferenciada. E Chasin, sempre, num cer-
to sentido, estava um passo à frente da realidade. Ele antecipava o que poderia acon-
tecer. Quer dizer, quando você ainda estava tentando entender uma dada análise de
realidade, ele já apresentava outros desdobramentos, porque ele pesquisava perma-
nentemente. E, como a realidade é processual, Chasin ia adicionando, concretando
sua análise da via colonial, com a intensificação ontológica. Ele ia se aproximando da
concretude a cada determinação especificada. Chasin começava a mostrar traços da
estrutura ontológica da personalidade operária. Analisava traços de debilidade dessas
lideranças. Porque, tradicionalmente, a esquerda não trabalha com essa questão. A
esquerda trabalha com a idéia de que a classe operária é uma massa que, movida por
seus interesses econômicos, tendo uma direção, uma vanguarda consciente, segue
a estratégia revolucionária. E Chasin mostrava que, para além da disseminação da
consciência revolucionária, havia uma estrutura ontológica do caráter desses operá-
rios que fazia expandir seu arrivismo. Quando Chasin, no Editorial da Ensaio n.º 9,
examina o perfil de Lula,54 apontan para a grande liderança sindical que ele era, mas,
quando escreveu que Lula não poderia ser um grande estadista, muitos de nós nos
53. Central Única dos Trabalhadores, criada no I Congresso Nacional das Classes Trabalhadoras,
em 1983.
54. CHASIN, J. “Nota da Coordenação”. Revista Nova Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano IV,
n. 9, pp. 5-11, 1981.
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Entrevista
assustamos. “Mas, Chasin, como é que vou defender isso? Como nós vamos difundir
o que você está falando?”. E Chasin diferenciava “Lula” de “Luiz Inácio da Silva”.
Ester: Ele nunca incluiu o “Lula” dentro do nome de Luiz Inácio. Ele diferen-
ciava o dirigente sindical daquele que havia sido eleito deputado federal e que teve
uma atuação pífia...
Lúcia: Acho também que era uma sedução pelo mundo burguês... Não conseguem fazer a
crítica, porque o mundo burguês seduz de tal forma que as pessoas querem fazer parte...
Rago: Mas eu acho que é mais do que isso que Chasin está falando. Ele está
falando de uma determinação ontológica do ser social. Quer dizer, é uma determi-
nação específica de um tipo social de classe operária...
Ester: É o fenômeno da alienação traduzido para uma situação mais específica.
Se é um traço do caráter, ele não é inato. Faz parte da condição de ser daquele indi-
víduo em determinadas condições sociais, específicas. Em termos gerais, é alienação,
mas alienação em um país retardatário.
Rago: Há que grifar também a influência da Igreja. Acredito que a maioria
dos dirigentes metalúrgicos do ABC estava afinada com a doutrina anticomunista
disseminada pela Igreja. Daí o combate permanente ao marxismo no interior do PT
por parte desses setores religiosos e da “nova esquerda” não-marxista. Então, havia,
de um lado, o marxismo vulgar, pois na gênese do PT, tanto o PCB como o PC do
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Ester: Aquilo que Chasin fala no texto inacabado “Rota e Prospectiva”56: sem
essa visão da revolução social, como norte, como orientação, você se perde... Esse é o
ponto que dá a direção, esse é o norte: a revolução social, a emancipação humana. Se não
tiver esse norte a orientar todos os seus momentos – seja nas relações humanas, seja
o momento cognitivo, seja o momento da prática, o momento da atuação etc. – você
se perde. Quer dizer, nós vivemos um momento que... Veja, no “Rota e Prospecti-
va”, que é o texto inacabado que foi publicado nos quatro tomos da Ad Hominem,
que tem uma parte inicial, na qual ele fala da analítica paulista, quer dizer, no momen-
to inicial do texto, que ele não acabou, ele morreu antes de terminar, ele tentava
compreender e expor as razões do fracasso do projeto Ensaio. São duas ordens de
motivações: uma é de ordem interna – nós fracassamos diante do projeto –, e outra
de ordem externa, é um marxismo vulgar e a analítica paulista, de ordem externa. Ou
seja, o projeto Ensaio fracassou por suas próprias debilidades internas, mas, sobre-
tudo, pelo fato de ter suas propostas violentamente criticadas pelo marxismo vulgar
no Brasil e não ter sido compreendido e aceito pelos representantes da “analítica
paulista”. Rago está se referindo exatamente à questão de ordem interna, que diz
respeito à inconsistência do ponto de vista humano, essa falta de caráter, ou falta de
um suporte efetivamente humano para um projeto. Quer dizer, o projeto era muito
mais pesado, muito mais importante do que as pessoas que estavam ali eram capazes
de suportar. Não somente porque eram débeis teoricamente, ou porque não estuda-
vam ou porque não se dedicavam à venda dos livros... Porque a questão se mostrou
uma questão essencialmente humana. Uma coisa que Chasin sempre dizia em todas
as intervenções, e que era muito cara a ele, era o problema da autoconstrução individu-
al. Em que medida, a cada momento, eu estou me revolucionando, eu estou me in-
dagando, eu estou me tornando melhor no esterco das contradições, para usar uma ex-
pressão de Marx e, depois, de Lukács? Em que medida, em meio ao esterco das
contradições, eu estou, apesar disso, não obstante isso, e por isso, me tornando me-
lhor? Quer dizer, esse fracasso de ordem interna diz respeito a um processo de
apodrecimento, de velhacaria pessoal que chegou a um ponto que eu nunca imaginei
que fosse testemunhar uma coisa dessa natureza. E, efetivamente, isso, para Chasin,
foi algo muito violento, mais do que a falência da Ensaio. Porque, logo na imediati-
cidade da falência da Ensaio, ele falou: “Faliu? Vamos partir para outra, a Ad Homi-
nem”. O problema não está em a editora falir, a gente pode constituir outra. O
problema foi o apodrecimento das pessoas, a que ponto a velhacaria, o mau-caratis-
mo chegou. Foi baixo, foi o fundo do poço, e foi isso que eu pessoalmente testemu-
56. CHASIN, J. “Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista”. Revista Ensaios Ad Hominem. Santo
André, Ad Hominem, tomo 1, n. 1, 1999. Reproduzido nos tomos II, III e IV da mesma Revis-
ta.
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Entrevista
nhei, e que derrubou Chasin. O que derrubou Chasin não foi a falência da editora...
Porque uma característica fundamental dele – e isso ninguém compreende, porque
eu não conheço outra pessoa que tivesse essas características – é o rigor. Mesmo
porque Lukács, nos Prolegômenos57, que eu trabalhei muito, que descobri... Foi um
texto que Chasin não leu, porque os textos que ele lia, ele deixava rastros, anota-
ções... Os Prolegômenos à Ontologia do Ser Social ele não leu. Estava lá na estante, mas ele
não leu. Quando eu comecei a fazer a revisão técnica da tradução58 – que, na verda-
de, foi outra tradução – eu encontrei outro Lukács, um Lukács um pouco diferente
do da Ontologia. E eu encontrei lá em Lukács coisas que Chasin dizia antes de morrer
e que ele não tinha lido em Lukács. Não é à toa que justamente nos Prolegômenos a
questão que eu acho mais importante, que eu considero mais importante é a relação
indivíduo e gênero... Indivíduo e sociabilidade. Então, essa preocupação com a indi-
vidualidade era permanente. Tanto no sentido teórico quanto no interior das rela-
ções humanas que ele estabelecia... A individualidade dele mesmo, e a individualida-
de das pessoas que o cercavam, que trabalhavam com ele. Por isso é possível entender
porque ele sempre apostava no outro... Porque há muitos que dizem: “Bom, Chasin
se dedicou tanto, se esfacelou...”. Morreu, afinal de contas, por conta daquilo que ele
fez. Do sangue que ele deu, do trabalho, das horas, da preocupação que o consumi-
ram... Ele podia muito bem ter ficado em casa sozinho e escrito uma dezena de li-
vros. Aí, eu pergunto: “Para quê? Para a ‘crítica roedora dos ratos’?” Que editora ia
editar alguma coisa de Chasin? Para três ou quatro lerem os seus textos? Não era isso
que ele queria. E eu acho que ele estava certo. Ele só pensava na possibilidade de um
trabalho coletivo, com os outros, pelos outros, e era um trabalho coletivo em que até,
como diz Rago, até o indivíduo levantar o punhal, ele continuava apostando. Ele não
se equivocou com as pessoas, ele sabia muito bem quem eram. Dos lados débeis, das
qualidades, defeitos. Mas ele sempre falava: “Eu me auto-intitulo otimista pondera-
do”. Ele sempre apostava na dimensão positiva das individualidades. Ele apostava
que essa dimensão positiva viesse a prevalecer sobre as dimensões negativas que
todos nós temos, ele inclusive. Por mais brilhante que ele tenha sido em todos os
aspectos, ele não era onisciente e nem perfeito. Ele tinha as contradições individuais
e pessoais dele também... Então, primeiro, ele não foi ingênuo, não se equivocou. Na
verdade, ele não tinha a noção concreta do ponto a que as coisas tinham chegado [na
direção da Editora Ensaio] aqui em São Paulo. Tinha exata noção do que acontecia
com as pessoas que eram responsáveis pela Editora e pelo movimento Ensaio. Ago-
57. LUKÁCS, G. Prolegômenos à Ontologia do Ser Social, texto inédito no Brasil, deixado incompleto
por Lukács, que faleceu em 1971.
58. A Profa. Ester Vaisman realizou a revisão técnica do texto de Lukács, cuja edição está sendo
preparada pela Boitempo Editorial.
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Entrevista
dência infeliz, mas uma coincidência. Isso não estava “escrito nas estrelas”. E eu
considero essa entrevista um momento não só de esclarecer determinadas mistifica-
ções e calúnias que se montaram em torno da figura dele, mas também de mostrar
que não é ingenuidade, não é utopismo... Se orientar, ter como norte, ter como ob-
jetivo e ter como ponto de orientação a emancipação humana, porque, do contrário,
é a total capitulação, é a total submersão naquilo que o mundo do capital produziu
de pior.
Vânia: E é interessante como Chasin combatia teórica e praticamente, na sua vida pessoal,
lutando contra essa fragmentação, contra esse egoísmo...
Ester: Essa manipulação, essa instrumentalização do outro, que é o que passou
a ocorrer [no grupo Ensaio] aqui em São Paulo. Uma instrumentalização atroz do
outro. A ponto de se calar o outro, a ponto de se aterrorizar o outro. A ponto de se
manipular os sentimentos mais autênticos do outro.
Lúcia: Tudo isso afastou muita gente que estava envolvida naquele trabalho
Rago: A regência em nosso trabalho se punha no interior de uma hierarquia de
valores. Quer dizer, havia regramento no sentido da autoconstrução, a crítica pro-
funda não era no sentido destrutivo, mas de elevação humana. Chasin sempre dava
a postura exemplar, também aqui regia o princípio segundo o qual “o indivíduo é o
que faz e como faz”. Basta pensar que poderia ter se dedicado a uma “carreira-solo”,
talvez ganhasse muito com isso, mas sempre tentava mostrar que era no trabalho
conjunto, um potencializando o outro, que as individualidades poderiam se expandir
humanamente, os indivíduos poderiam se potencializar mutuamente, sem aqueles
indivíduos dissimulados, cínicos, sem relações...
Ester: Sem relações hipócritas...
Rago: Exato. Chasin dizia que as contradições também nos pegavam. Isto pode
provocar risos... mas é que algumas pessoas começaram a pensar que estavam imu-
nes, dada a sua consciência revolucionária, dotadas de “ontologia”, resguardadas,
porque detinham a “sabedoria”... As pessoas pensavam que elas tinham a verdade e
o mundo não as respeitava. E Chasin falava: “Ao contrário, as contradições sociais
estão em nós”...
Lúcia: Seria interessante retomarmos as reflexões chasinianas acerca do Leste Europeu,
porque, me parece, Chasin vai se diferenciando inteiramente das análises de Lukács...
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Ester: Chasin, entre outras coisas, procurou mostrar o Leste Europeu como
forma ainda de manutenção do capital, mas uma forma de capital coletivo/não-
social, no qual não se tem a apropriação social do mundo produzido pelo trabalho.
E nesta relação de continuidade... Ainda que a forma do Leste Europeu tenha sido
imprevista historicamente, quer dizer, nem Marx, nem o próprio Lênin, nem Trotsky
puderam imaginar que aquilo daria esse monstro, inclusive no seu gigantismo. Quer
pense o que foi o terrorismo de estado nesse período, de massacre de milhões e
milhões de vidas... E Chasin falava da iliberdade do trabalho. Isso é uma coisa muito
importante, porque em tudo o que você faz na vida, se você não tiver a responsabili-
zação e... fazendo aquilo para a sua autoconstrução, aquilo não lhe diz respeito.
Rago: Chasin começa a capturar as determinações ontológicas do processo do
Leste Europeu e daí essa necessidade visceral da compreensão de Marx. Quer dizer,
há um ritmo muito mais acentuado da compreensão das passagens de Marx, este
projeto da “redescoberta do pensamento de Marx”, destrinchando as três críticas
ontológicas: crítica ao pensamento especulativo, à politicidade e às formas materiais
e ideais do capital. Porém, isto não significa um mero estudo dos lineamentos on-
tológicos inscritos na obra de Marx, mas também compreender as novas determi-
nações dos mundos do capital. E, desse modo, compreender ontologicamente essa
forma social imprevista, quer dizer, Marx especificou a impossibilidade de transição
sem os pressupostos práticos para a consumação da revolução social e colocou nas
páginas de A Ideologia Alemã que, se a revolução comunista ocorresse num país sem
esses pressupostos práticos, o comunismo local, mantendo relações com países com
forças produtivas mais desenvolvidas, seria inevitavelmente esmagado. Quer dizer,
qualquer país ou conjunto de países com a estrutura produtiva mais desenvolvida, a
formação mais desenvolvida captura a de menor desenvolvimento das forças pro-
dutivas, que é da lógica histórica que Marx detectou no século XIX, e a história e
o fim do Leste Europeu comprovaram isso. Então, quando Chasin desenvolve essa
categoria do capital coletivo/não-social... quer dizer, não era uma forma de socialismo. O
socialismo de acumulação... Era uma impropriedade o uso do termo.
Vânia: Ou capitalismo de estado...
Ester: Ou socialismo realmente existente...
Rago: Então, isso faz com que haja um desenvolvimento da nossa compreen-
são e Chasin anuncia a derrocada do Leste... Eu nunca me esqueço quando o Leste
desaba, no ano de 1989 para 1990, e Chasin afirmava: “nações que não existem mais;
classes se foram, partidos se foram e pessoas se foram!”. Quer dizer, a quebra das
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Entrevista
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Entrevista
uma vida humana, livre e plena, ainda que no sentido histórico do termo. Implica o
quê? Que, para nós, é cada vez mais claro que a história em Marx é aberta, é autocons-
tituição social da própria individualidade – caso contrário, temos a “impotência”,
o “apodrecimento sob a própria pele”. Então, nós temos de repensar o que está
acarretando o fenômeno de desenvolvimento universal das forças produtivas. Porque hoje
o capital se depara com uma crise sem precedentes. E é notável que se fala todo dia
na crise e nos aportes financeiros para o sistema ficar de pé e pouco se diz acerca
das demissões volumosas que já põem o navio à deriva, e tendencialmente tendem
a crescer... Chasin se valia dessa imagem, o capital como um navio à deriva. Porém,
há que ressaltar que a universalização do capital é também universalização das forças
do trabalho. Os críticos de Marx acentuam que sua teoria faliu quando o ser social da
classe trabalhadora se fragmentou. Com isso, torna-se impossível uma consciência
revolucionária da totalidade social. Esta teoria reformista se esquece de dizer que a
universalização das forças produtivas materiais não faz desaparecer como um passe
de mágica a lógica onímoda do trabalho. Se você pensar que o trabalho se universalizou, que
a cooperação social do trabalho se potencializa graças a sua universalização, significa
que não é só o capital que está universalizado, enquanto mercado globalizado, mas
significa que a classe trabalhadora que se configura nessa nova quadra é também uma
nova classe operária. Marx, naquela famosa “Carta a Annenkov”, diz o seguinte: “O que
é história? O que dá continuidade ao processo histórico? O desenvolvimento das
forças produtivas materiais. E o que é o desenvolvimento dessas forças produtivas
materiais? O desenvolvimento do indivíduo. O que é a história senão a produção
dos próprios indivíduos na história?” E nós chegamos a um momento em que se
dá aquilo que Marx havia colocado como tendência do capital, se não houvesse ne-
nhuma barreira, a sua mundialização. A mundialização nada mais é do que o domínio
planetário do capital sobre o trabalho. Mas é também, de modo contraditório, a
universalização do trabalho...
Ester: E do indivíduo social também...
Rago: E do indivíduo social, que é a chave para Chasin. É estranho como parte da
esquerda começa a negar o desenvolvimento das forças produtivas, que é capacidade
ilimitada de produção material, e, portanto, de nós próprios, sopesando formas de
organização social que têm como base a pequena produção rual, a economia solidá-
ria, a economia ecológica etc. E o legado politicista da analítica paulista continua a dar
o tom. Chasin escreveu que a Ensaio foi espremida por dois pólos: o pólo que ele
chama de nobre60 e o pólo do baixo clero. Esse pólo nobre simplesmente foi arrogante.
60. J. Chasin se referia aos intelectuais do PSDB como “nobres”, e aos do PT como “baixo clero”,
porque a extração dos intelectuais dos partidos era a mesma: conviviam e produziam suas teorias
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Desconsiderou as questões que Chasin abria para o debate. Mas não tinha outro
jeito, porque a crítica de Chasin é visceral.
Ester: Agora, um aspecto que deve ser lembrado é o seguinte: ainda... Eu acho
que é preciso fazer algumas referências ao texto de 1989. Não só por conta das elei-
ções, não só por conta de que em 1989 ocorre a implosão do Leste Europeu, mas
porque 89 significou para o Brasil e para a América Latina em geral a última chance
de um revolucionamento, de uma mudança. Foi o último momento, a última chance
histórica para uma mudança. Mas que tipo de mudança? Naquele momento, Chasin
propunha uma mudança na estrutura da produção, sem revolucionar ainda o próprio
modo de produção. Tal mudança implicava a alteração completa do relacionamento
com o capital estrangeiro, uma redefinição cabal da relação com o capital financeiro
etc. Agora, há alguns ex-alunos de Chasin lá de Belo Horizonte que afirmam pe-
remptoriamente que ele errou. Bom, post festum eu posso dizer uma série de coisas...
Eu posso até dizer que Marx errou, post festum! Agora, naquelas condições, naquele
momento, realmente era a última possibilidade. Não deu, como Rago falou, Brizola/
Lula, Collor venceu, acabou! Quer dizer, encerrou, terminou... A oportunidade his-
tórica foi perdida. Não foi Chasin que errou. A história entrou por um caminho que
afastou qualquer possibilidade de transformação efetiva no sentido de uma democracia
social, de uma república social no Brasil e, por conseqüência, na América Latina.
Vânia: Para retomar o fio da meada: estávamos com Chasin em João Pessoa, por ocasião da
celebração do centenário de Marx. Que atividades Chasin desenvolveu por lá?
Ester: No Nordeste em geral, as atividades foram muito promissoras. Num
primeiro momento a carência era, ao mesmo tempo, a força. Assim, ele desenvolveu
um trabalho incansável; ele viajava, orientava, dava palestras, dava cursos – a ponto
de Giannotti ironicamente referir-se a ele como o “vice-rei do Nordeste”. Pouco
tempo depois, o que veio a acontecer na universidade? Ao mesmo tempo em que
se abriu o processo de democratização, eleições para todos os tipos de cargo: para
chefe de departamento, coordenador de colegiado de curso, para diretor de centro,
reitor etc. etc., a “Paraíba profunda”, que é como nós denominávamos as velhas
oligarquias – que, até aquele momento, não tinham o controle da universidade, e
por isso várias vezes dirigiam ataques violentos à universidade, porque grande parte
dos professores era de fora, eram professores estrangeiros ou da região Centro-Sul e
na USP e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap): José Arthur Giannotti, Fer-
nando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso e outros, filiados ao PSDB; Marilena Chauí, Francisco
de Oliveira, Francisco Weffort e outros, filiados ao PT. Enfim, os dois partidos, embora diver-
gentes no campo eleitoral, comungavam as mesmas idéias, realizavam as mesmas análises sobre
a realidade brasileira, ancoradas nas teorias da dependência, do autoritarismo, do populismo e da
marginalidade.
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Entrevista
que, por isso... Havia uma coluna no jornal chamada Linha Direta em que diariamen-
te o colunista atacava, fazia uma campanha xenófoba... Rubens Pinto Lyra, que era
professor, num dos números da Nova Escrita/Ensaio, publicou um artigo sobre essa
questão61... Enfim, a Paraíba profunda finalmente conseguiu se apoderar da universi-
dade à base do velho clientelismo, que ela é sábia em utilizar, e tornou a nossa situação
insuportável. A gota d’água disso foi uma defesa de dissertação do chamado Frei
Marcelino, que havia participado, segundo ele próprio, de um movimento camponês
em Catolé do Rocha. Queria aplicar Foucault na análise daquele movimento. E um
dos professores que iam participar da banca – não havia naquele momento exame de
qualificação – disse: “Isso não tem condições de ir para defesa”. Chasin era, então,
o coordenador do Colegiado e tentou tentou pedir para o orientador, que era Jean
Robert Weisshaupt, convencer Frei Marcelino de não ir à defesa, porque ele seria,
muito provavelmente, reprovado. Apesar de todos os esforços para convencê-lo,
Frei Marcelino insistiu e disse: “Quero ir à defesa”. Agora, imaginem fazer uma
dissertação sobre si mesmo com base nas categorias da Microfísica do Poder, tendo em
vista analisar o movimento camponês de Catolé do Rocha!!! Sabendo que havia, en-
tre os membros da banca, professores que tinham levantado restrições ao seu traba-
lho, ele resolveu levar um grupo de camponeses para o auditório. Iniciada a argüição,
os camponeses batiam o pé no chão e não deixavam os argüidores se pronunciarem,
principalmente, a professora Tereza Calvet, que tinha levantado a impossibilidade
de aprovar a dissertação. A dissertação foi reprovada. Inconformado com a decisão,
ele resolveu, em seu programa de rádio, “denunciar” o ocorrido. No entanto, toda a
carga do tal Frei Marcelino foi dirigida contra Chasin, porque Chasin era comunista.
Frei Marcelino se valeu de todos os recursos possíveis e imagináveis. Foi até o Con-
selho Universitário, mas, no final, ele perdeu...
Vânia: Chasin estava na banca?
Ester: Não. Ele era coordenador do Colegiado. Apenas isso. Mas, aí, o que
aconteceu? De repente, aquilo que Chasin chamou de “os muitos marcelinos” que
havia em João Pessoa resolveram se “vingar” e aparece em público, publicado em
um jornal, a notícia de que Chasin não era doutor! Veja... Nós falamos há pouco
que Vicente Unzer de Almeida tentou impedir a defesa da tese de Chasin. Mesmo
assim, depois de muita batalha jurídica, Chasin defendeu. Inconformado, Vicente
Unzer de Almeida tentou anular a defesa, entrando com um recurso no Conselho
Federal de Educação. Nós não sabíamos disso! Então, alguém... algum “Marcelino”
foi procurar algo que pudesse prejudicar Chasin e localizou o tal processo. Como eu
disse, Chasin não tinha conhecimento disso! Mas, em seguida, procuramos verificar
61. LYRA, Rubens Pinto. “Reacionarismo e Xenofobia na Paraíba: o caso da UFBp”. Revista Nova
Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano IV, n. 8, pp. 51-68, 1981.
Verinotio.org (n.9), Ano V, NOV./2008, ISSN 1981-061X
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Entrevista
nascentes... já ali presentes, o que tornou, também, os anos de direção dele na Asso-
ciação Docente bastante complicados. Mas, por outro lado, havia também o intenso
trabalho lá a Escrita/Ensaio, por exemplo, a entrevista com D. Zumbi, ex-D. Pelé, a
entrevista com Adam Schaff e assim por diante63... Nós trouxemos Mészáros para o
evento de 1983, o seminário sobre Marx, fizemos a entrevista... Bom, o seminário foi
algo inesquecível. Primeiro, é preciso lembrar que, bem ou mal, nós ainda estávamos
com Figueiredo64 no poder. No entanto, Chasin conseguiu o envolvimento de várias
entidades de fomento à pesquisa: do CNPq, da Capes, da própria UFPb, de forma
que foi levantado um financiamento para um evento de caráter internacional, porque
veio Mészáros participar. Participaram também Michel Debrun, Gerd Bornheim e
muitos outros... E disso resultou aquele número especial que já mencionamos65. Pa-
dre Vaz, embora não tenha ido, colaborou com o caderno sobre Marx66 e assim por
diante. E todas as atividades se realizaram num local construído pelo governador da
época, Tarcísio Burity67, no Bairro dos Estados, lá em João Pessoa, o Espaço Cultu-
ral. Lá havia dois anfiteatros divididos por uma espécie de tapume... Na abertura do
evento, essa grande divisória do palco foi suspensa e a Orquestra Sinfônica da Paraí-
ba, que na época era uma das principais orquestras do país, abriu o evento. Então, os
dois anfiteatros, e a orquestra no centro, com uma abertura dos trabalhos; toda uma
secretaria montada. As coisas funcionaram perfeitamente bem, com comunicações,
mesas redondas, palestras etc. Evidentemente que o convidado principal foi Mészá-
ros, mas havia intelectuais de peso, não necessariamente marxistas, mas estudiosos
de Marx, ou que tinham alguma relação com ele.
63. “De D. Pelé a D. Zumbi: a prática política da fé”, entrevista com D. José Maria Pires, e “Contra
o Stalinismo e a Alienação”, entrevista com Adam Schaff. Revista Nova Escrita Ensaio. São Paulo,
Escrita, n. 10, 1982. Mencionem-se, também, as entrevistas com Mészáros (Revista Ensaio n. 13)
e Paulo Freire (n. 14).
64. João Batista de Oliveira Figueiredo assumiu o governo federal em 1979 e saiu em 1985, quan-
do foi substituído por José Sarney.
65. Revista Nova Escrita Ensaio n. 10/11, Edição Especial – Marx Hoje, republicada posteriormente
em formato de livro.
66. VAZ, Henrique Lima. “Sobre as Fontes Filosóficas do Pensamento de Karl Marx”. Revista
Nova Escrita/Ensaio. São Paulo, Escrita, ano V, n. 10/11, pp. 247-160, 1983.
67. Tarcísio de Miranda Burity (1938-2003), político, escritor e professor.
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Da esquerda para direita: Debrun, Chasin, Mészáros e ??. Durante o I Congresso de Filosofia do Nordeste promovi-
do pelo SEAF--ordeste em outubro de 1983.
68. Antonín Dvorák (1841-1904), compositor tcheco, escreveu a Sinfonia do Novo Mundo em
1893.
69. Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia.
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Entrevista
Ester: Isso foi por iniciativa dele, criar esse grupo de caráter multidisciplinar;
daí o titulo: Marxologia, Filosofia e Estudos Confluentes. Chasin queria que professores,
pesquisadores de outras áreas participassem do grupo. Trata-se da velha caracerística
dele, ele nunca se viu trabalhando no isolamento. Nunca se viu nessa condição. A
Seaf – a Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas – também foi um momento
importante, que precedeu a criação da Anpof, ainda durante a ditadura, que ele tam-
bém participou, ajudou a desenvolver as atividades. Ela foi muito atuante em Belo
Horizonte também.. Enfim, eu tentei levar lá, sozinha, essa atividade, mas é pratica-
mente impossível. Quando Chasin morreu a Ad Hominem não existia ainda. Estava
tudo projetado e , quando me vi naquela situação, pensei nesses termos: “Bom. Em
homenagem à memória dele, o mínimo que eu posso fazer... O mínimo que a gente
pode fazer é publicar esses quatro tomos...”. Publicamos o Pensamento Vivido, publi-
camos A Miséria71 e o Integralismo de novo. De fato, antes de morrer Chasin estava
pensando em publicar novamente o Integralismo, mas numa versão mais sintética. Um
pouco antes de falecer, Chasin elaborou um grande projeto de pesquisa que visava
a resgatar, a partir da história da filosofia, todas as tentativas, todas as propostas de
constituição de uma ontologia etc. Mas, novamente, não se tratava de um projeto
que ele pensava levar a cabo de modo individual, não se tratava, volto a insistir, de
uma pesquisa pessoal, porque individualmente era inexeqüível. Ele tinha em mente
também fazer os devidos ajustes de contas com Lukács. É pena ele não tenha chega-
do a ler os Prolegômenos, pois eu acho que ali há algumas coisas muito preciosas, como
ele deixou escrito no “Rota e Prospectiva”, ou, como eu por diversas vezes reiterei
em sala de aula, Lukács atinou para isso no final da vida, quando tudo já estava des-
moronando… embora Lukács tenha sido enfático ao afirmar que o retorno às coisas
mesmas só poderia se dar a partir do Marx, por meio do pensamento de Marx.
Lúcia: Já que falamos em Lukács, por que não está correto dizer ontologia do traba-
lho?
Ester: Ontologia só pode ser referente a uma entificação ou a um ser. Ou seja,
70. Grupo de Pesquisa: Marxologia, Filosofia e Estudos Confluentes da UFMG, acessível pelo
site: < http://plsql1.cnpq.br/dwdiretorio/pr_detalhe_bt_grupos?strPNroIdGrupo=0333701C
JFCKHN&strPQuery=&strPConector=ALL>. Parte significativa da produção do Grupo está
disponível na página da Verinotio, no setor de Publicações (teses e dissertações).
71. A Miséria Brasileira, lançado em 2000, reuniu todos os artigos desenvolvidos por Chasin sobre
a realidade braisleira.
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para deixar claro o que interessou a Marx... Sobre o que Marx se debruçou foi uma
forma de ser específica, que é a sociabilidade.
Vânia: Chasin denunciava com muita veemência o modismo de usar o termo “ontologia”, bem
como o uso disseminado e banal de práxis, de ideologia, difundidas de maneira vulgarizada, como
argumento de autoridade, como pretexto para não estudar e explicar correntamente a realidade.
Para escapar de um problema, você simplesmente tacha de ideologia, diz que é ontológico, que é
dialético etc., cola o rótulo e deixa de explicar...
Ester: Exato. Esse é o problema que o preocupava muito. Passa-se a utilizar, a
se expressar, a veicular essa categoria, sem ter a mínima noção do quão é espinhosa
e essa questão no interior da filosofia.
Vânia: Que autores atuais Chasin respeitava?
Ester: Olha, eu não me lembro de nenhum, sinceramente. Nem nas anota-
ções dele... Ele tinha reservas... Ele começou a desenvolver reservas com relação
a Mészáros etc. Então... eu não me lembro... Não. A coisa era estudar Marx... Ele
tem algumas anotações. No “Rota e Prospectiva”, ele estava lendo o Ressentimento
da Dialética de Paulo Arantes... Determinadas colocações que Paulo Arantes fazia e
que ele pegou como ponto de referência, como pretexto para desenvolvimento. Ele
estava lendo, quando morreu, o Ressentimento da Dialética de Paulo Arantes, parecia
que aquele livro estava fazendo ele pensar algumas coisas.
Vânia: Caminhando para o fim dessa entrevista, poderíamos falar algumas palavras finais.
Eu queria ressaltar a importância de uma personagem como Chasin no mundo de hoje. Diante da
vulgaridade teórica, do hedonismo que justifica as mais profundas degenerações, do pleito irraciona-
lista pela incoerência – Chasin, sem dúvida, destoa. Eu pouco convivi com ele, mas ainda assim ele
me impressionou profundamente, e não apenas em termos teóricos, é preciso registrar. É da figura
humana que se trata aqui. E duas frases dele me são muito caras: aquela já citada por Rago, que
diz que manter a lucidez é o ato mais revolucionário possível hoje – de um poder de síntese e de
um acerto fenomenais nessa usina do falso que é o mundo contemporâneo. E a outra é: quando há
urgência social, não se pode ter pressa. Por isso, apesar de tudo, eu acho que é possível recuperar a
importância dele. Eu acho que, mesmo com a “guerra do silêncio” que ele sofreu... Marx falava da
mesma questão em relação a O Capital, da guerra do silêncio que ele enfrentou. E Marx, parece
que ele tende a retomar, volta e meia... sem querer... Com todos os problemas das “interpretações”
e reducionismos, ele acaba se fazendo presente. Até pelos ataques que sofre: ninguém chuta cachorro
morto...
Lúcia: Eu acho que sim... Eu tenho certeza...
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Entrevista
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Não! Mas o que o diferencia é que, apesar desses momentos de extremo desâni-
mo e até desespero, como disse, ele possuía uma força, uma convicção, um desejo de
viver e lutar que acabava por vencer esses momentos negativos que foram muito fre-
qüentes em sua vida, em todos os níveis, desde o familiar até o acadêmico, passando
pelo político e ideológico. Foi um homem íntegro, coerente, mas, ao mesmo tempo,
carinhoso e capaz de nutrir sentimentos monumentais como marido, pai e amigo!
Ele era tido como demasiadamente sério, racional e até arrogante. Tinha que sê-lo,
295
Entrevista
como poderia ser diferente diante das lutas que abraçou? Mas, no convívio familiar e
com os amigos próximos, tinha um senso de humor inigualável, preocupava-se com
os filhos de maneira cotidiana e me amou como ninguém é capaz de amar! Tudo
nele era grandioso, intenso, coerente, essencialmente humano, como humano po-
demos ser ao limite máximo de nossas possibilidades. Do ponto de vista intelectual
deixou-nos uma série de contribuições fundamentais, seja no plano da filosofia, seja
no plano da análise da realidade contemporânea, principalmente, a brasileira. Deixou
também em seus arquivos um ambicioso projeto de pesquisa que tem como objetivo
fundamental resgatar a questão ontológica ao longo da história da filosofia, com o
objetivo de chegar à resolução marxiana de questão tão vital. Que o reconhecimen-
to de tal contribuição não tenha se dado é puro sinal dos tempos. E aqui vai uma
confissão: tenho a sensação de que o mundo havia se tornado insuportável para um
homem como Chasin. Isso era visível em seus comentários e avaliações de todo o
tipo: desde aqueles que o traíram até as pessoas mais próximas; chegou mesmo a de-
nominar um réveillon que passamos em São Paulo, logo depois da quebra da Ensaio,
como a festa dos derrotados! Nada e ninguém escapavam de sua perspicácia, de seu
olhar arguto, nada e ninguém chegaram a iludi-lo, enganá-lo. Nada que era humano
lhe era estranho!
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revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
TRADUÇÃO
INTRODUÇÃO
O futuro é possível: o testemunho final de Georg Lukács
1. Rainer Câmara Patriota é bacharel em música e mestre em filosofia pela UFPB. Atualmente, sob
orientação da Profª.Drª. Ester Vaisman, elabora uma tese de doutorado sobre a estética tardia de
Georg Lukács pelo departamento de filosofia da UFMG. E-mail: pcr2737@yahoo.com.br
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Ronaldo Vielmi Fortes
Franco e irônico, mas sem perder a diplomacia, Lukács tenta colocar algumas
questões de princípio, ao mesmo tempo em que traça uma visão panorâmica – ou
antes, um diagnóstico – da situação mundial do período em seus dois subsistemas.
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
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Ronaldo Vielmi Fortes
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
ENTREVISTA
Spiegel: Professor Lukács, certa vez o senhor afirmou que o parlamentarismo havia “envelhe-
cido em termos histórico-mundiais”. Mais tarde, Lênin corrigiu sua afirmação, argumentando que
essa questão não era de natureza ideológica, mas sim tática. Como o senhor avalia o parlamenta-
rismo hoje, especialmente em relação aos paises socialistas?
Lukács: Ela possui um aspecto extraordinariamente andrógino, que tem início
com a transformação empreendida por Stalin dos restos já bastante corrompidos
dos conselhos centrais dos trabalhadores (sovietes) num parlamento. Na minha opi-
nião, isso representou um passo atrás, pois o parlamentarismo é um sistema de ma-
nipulação a partir de cima.
301
Ronaldo Vielmi Fortes
Speigel: Porque, então, segundo a constituição, todos podem fundar um partido e disputar
eleições?
Lukács: De facto, nas eleições americanas há uma efetiva disputa, mas para isso
é necessário uma soma tão grande de dinheiro que os partidos de bases populares
acabam sendo totalmente excluídos.
Já a essência do sistema de conselhos, pelo contrário, consiste em que sua cons-
trução vem de baixo. Em 1917, qualquer trabalhador inteligente podia dentro da sua
empresa fundar um grupo e através desse grupo conseguir levar para o conselho
dos trabalhadores representantes da fábrica. Daí ele ia avançando passo a passo. Na
minha opinião, esse é que é, do ponto de vista democrático, o sistema mais progres-
sista, o autêntico socialismo. Ao abandoná-lo – no interesse de uma administração e
de uma capacidade de ação perfeitamente uniformes – nós demos um passo atrás.
Spiegel: O senhor acha que esse desenvolvimento stalinista pode ser modificado mediante refor-
mas, pode ser cancelado, ou há que haver uma segunda Revolução de Outubro para restabelecer o
sistema de conselhos?
Lukács: Em primeiro lugar considero impossível resolver uma questão dessa
magnitude por vias administrativas. Se fundássemos um conselho de trabalhadores
mediante decreto, este conselho seria eleito da mesma forma burocrática das elei-
ções atuais para deputados. É preciso, no curso de uma reforma econômica que já se
tornou necessária, introduzir uma democracia de base (von unten), isto é, começar
com o direito e também o poder de intromissão nas questões de interesse geral, e a
partir dessas experiências avançar gradativamente.
Spiegel: Qual foi a falha do conselho na Rússia?
Lukács: Em 1921, na União soviética, houve uma grande discussão sobre os
sindicatos. Trotski adotou o ponto de vista segundo o qual os sindicatos deveriam
ser estatizados, de modo que pudessem servir de apoio à produção. Lênin se pôs
contra e sustentou que os sindicatos tinham por tarefa defender os interesses dos
trabalhadores em face do estado burocratizado. Hoje, ninguém dúvida que Stalin
acabou pondo em prática a idéia de Trotski, tanto aqui quanto a propósito de várias
outras questões. Para não ir além do exemplo dos sindicatos, deve-se dizer que nos-
sa tarefa agora é fazer oposição a isso, para assim retornar à concepção de Lênin.
Decerto, não podemos criar nenhuma situação revolucionária, mas podemos reco-
nhecer o que foi importante em termos histórico-mundiais, isto é, que a democracia
não precisa necessariamente dividir os homens em bourgeois e citoyen, como ocorreu
na Revolução francesa e nas que vieram depois, todas elas condenadas a terminar
por estabelecer o domínio do bourgeois sobre o citoyen.
Spiegel: O citoyen, o burguês revolucionário, anda sumido em nossos dias?
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
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Ronaldo Vielmi Fortes
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
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Ronaldo Vielmi Fortes
Spiegel: Atualmente, no Ocidente, tem havido tentativas de analisar justamente essas novas
formas de manifestação do capitalismo de consumo e de serviços. Tentativas que são empreendidas
principalmente por aqueles estudantes que hoje se auto-intitulam de nova vanguarda revolucioná-
ria.
Lukács: Sem dúvida, o movimento estudantil é uma coisa, em princípio, saudá-
vel. Se eu fosse criticar o movimento estudantil, eu o faria apenas em relação ao seu
caráter de happening, isto é, à ilusão de que, por meio de uma greve ou de alguns atos
escandalosos, pode-se modificar uma linha [histórica] de desenvolvimento, quando
esta, na verdade, antes de ser submetida a qualquer intervenção prática, precisa ser
compreendida.
O problema fundamental é que, objetivamente, a ciência tem passado por um
ininterrupto processo de integração, ao passo que, na contramão dessa tendência,
a pratica da ciência enfrenta uma extrema divisão do trabalho e uma extrema de-
sintegração - o modelo do teamwork americano. Se você perguntar hoje em dia, se
determinado problema é físico ou químico, nem Heisenberg nem qualquer outro
poderá lhe responder, pois a física e a química estão mais integradas do que nunca.
Ou então pense nas ciências sociais: você pode me dizer onde termina a economia e
começa a sociologia? O freudiano mexicano Erich Fromm, recentemente, disse que
para entender realmente o freudismo é necessário uma análise das condições sociais
sob as quais surgiram os sintomas investigados por Freud, indicando, portanto, que
também entre a psicanálise e a sociologia as fronteiras desapareceram.
A divisão capitalista do trabalho e a manipulação capitalista não seguem mais
juntas a favor da ciência como ocorria há cem anos, mas sim em contraposição ao
desenvolvimento real da ciência. Evito propositalmente tocar em questões atuais,
porém, sou da opinião que esse tipo de constatação ideológica não é uma coisa des-
provida de sentido e que aqui nós precisamos nos opor à palavra de ordem da moda,
ou seja, a desideologização, para que possamos compreender corretamente o papel
da ideologia no desenvolvimento social.
Spiegel: O que você entende aqui por ideologia?
Lukács: Hoje virou hábito entender a ideologia como falsa consciência em con-
traste com a consciência correta do neo-positivismo, visto como uma ciência obje-
tiva. E presume-se então que ela foi desideologizada. Agora, na Introdução à Crítica
da economia política, Marx forneceu uma descrição exata da ideologia. Ele disse que o
desenvolvimento econômico, sobretudo a contradição entre as forças produtivas e
as relações de produção, a todo momento nos colocam problemas. O meio pelo qual
estes problemas se tornam conscientes e são enfrentados é a ideologia.
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
Veja o senhor o século XVIII. Sem dúvida existe na ideologia de Rousseau mui-
ta coisa de questionável em termos científicos. Mas é igualmente indiscutível que, se
por acaso, a Revolução Francesa fosse liderada pelos materialistas girondinos, bons
na sua maioria, aquela revolução agrária conduzida por Robespierre e Saint-Juste
pelas vias ideológicas falsas do roussseauismo nunca teria ocorrido.
Speigel: A libertação dos camponeses foi de fato apenas uma questão de ideologia jacobina?
Lukács: É óbvio que não. Objetivamente o feudalismo havia se tornado insus-
tentável e isso é um fato econômico. O pensamento humano corresponde sempre a
algum tipo de necessidade econômica que fica pairando no ar. E a tarefa da consci-
ência humana é justamente, a partir daí, formular uma questão. Mas, mesmo se, em
última instância, a práxis humana depende imediatamente das respostas dadas a estas
questões, disso não se segue que as questões e respostas antropológicas sejam o fator
primário, pois primário é sim o processo de reprodução dos homens, os quais, desde
que surgiu o trabalho, se adaptam ativamente ao meio que o cerca.
Spiegel: Entretanto, houve um desenvolvimento voraz e contínuo da técnica, que por sua vez
produziu uma cadeia de novos carecimentos. Será que os teóricos marxistas, em geral, não exa-
minaram o fenômeno da técnica de forma muito acrítica e predominantemente sob o enfoque da
progressiva libertação do reino da necessidade?
Lukács: Bukharin defendeu a teoria de que o não-desenvolvimento do modo de
produção antigo seria a causa da escravidão e que, portanto, a técnica é a verdadeira
força produtiva. Eu me posicionei contra e disse que a escravidão era a causa do
modo de produção não-desenvolvido.
Hoje, no capitalismo, o trabalhador é ao mesmo tempo o consumidor, e nunca
houve período algum da humanidade com aparelhos de barbear e minissaias tão per-
feitas. Mas se eu for medir o progresso dos últimos 50 anos pelo setor de habitação
e pela problemática das favelas, vou ter de constatar que esse progresso foi muito
menor do que no caso dos aparelhos de barbear.
Spiegel: Possivelmente, houve até um recuo.
Lukács: Possivelmente, sim. Em todo caso, recuso-me a julgar o desenvolvi-
mento das forças produtivas simplesmente a partir dos aparelhos de barbear. En-
contramos a contradição não apenas no setor de habitação, mas também no tráfego
de automóveis, na poluição do ar e das águas, e isso a ponto das grandes cidades já
estarem se tornando imprestáveis. A problemática do capitalismo moderno é o que
emerge ao primeiro plano.
Por outro lado, é preciso ver que dos começos do átomo até a economia ame-
ricana atual, o mundo viveu um processo irreversível. O jovem Marx tinha toda
razão em ver a história como a ciência fundamental. O que está, de fato, na base da
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
mo, com o mercado mundial, criou a base daquilo que hoje podemos denominar de
humanidade. Hoje ela aparece de uma maneira puramente negativa.
Spiegel: Mas também existe uma cultura mundial
Lukács: Não pretendo me contrapor a isso. Em todo caso, não há dúvida de que
se trata, objetivamente, de um processo de integração. Se eu tomo em consideração
apenas estes três momentos destacados por Marx, já se pode ver que o processo civi-
lizatório é um processo irreversível e que, neste quadro, mostra grandes progressos.
Não devemos conceber o progresso num sentido vulgar, pois assim a bomba atômi-
ca também seria um progresso em relação aos canhões e estes, por sua vez, seriam
progressos em relação ao arco e flecha, não obstante o fato da bomba atômica ser
em si mesma assustadoramente perigosa.
Spiegel: Entretanto, são desenvolvimentos sociais que visivelmente podem aniquilar este pro-
gresso objetivo.
Lukács: Com certeza. Veja, agora vou chamar a atenção para uma oposição que
as pessoas nem sempre querem compreender: a oposição entre o modo de conside-
ração causal e o teleológico. Afirmo com o marxismo que uma teleologia – portanto
uma determinação que parte sobretudo de uma finalidade – não existe nem na natu-
reza inorgânica nem na orgânica, que teleologia – como Marx mostra com exatidão
em O capital – surge apenas com o trabalho, porque o plano daquilo que tem de ser
feito antecede a realização. Um leão destroça um antílope hoje como o fazia há dez
mil anos. Mas um ferreiro, há tempos, não trabalha mais de forma tão imperfeita
como nos primórdios.
Spiegel: No caso do artesão o senhor ainda pode falar assim. Mas o trabalhador comum, em
geral, não conhece o produto final de sua atividade. Pode-se falar de um aprimoramento do processo
de trabalho? Esse trabalhador é praticamente um instrumento sem consciência.
Lukács: Estou me referindo ao processo de trabalho e não ao trabalhador. O
processo de trabalho surge no momento em que o diretor da fábrica elabora o plano
para uma máquina: um ato teleológico. Certamente, os homens – como disse Marx
– fazem a história, mas não sob circunstâncias por eles escolhidas. Estas circunstân-
cias não-escolhidas são em parte o produto de seu próprio trabalho. Veja o senhor,
quando os americanos descobriram a bomba atômica, estavam convictos de poder
assegurar uma superioridade militar duradoura para a América. Que daí surgisse o
pacto atômico certamente era algo que não estava contido em seu ato teleológico.
Quero deixar claro esse duplo sentido do desenvolvimento social; por um lado,
tudo depende de atos teleológicos. Por outro lado, o processo irreversível do de-
senvolvimento global forma o contexto desses atos. Quem não percebe esse duplo
sentido do desenvolvimento humano, só pode estabelecer uma relação entre neces-
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Ronaldo Vielmi Fortes
sidade e liberdade na velha forma falsa e totalmente abstrata. Dito de uma forma
um tanto banal: para falar comigo, o senhor precisou vir até o meu escritório aqui
em Budapeste; a essa necessidade concreta correspondeu a sua liberdade, inclusive a
liberdade do senhor não falar comigo.
Spiegel: Na Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer mostraram como um
determinado uso da razão, meramente positivista, poderia impelir os homens a criar situações que
posteriormente se tornariam objetivamente insuportáveis.
Lukács: Não nego isso. Meu ceticismo em relação a Adorno e Horkheimer surge
de um caso paralelo na filosofia alemã. De forma muito arguta, muito espirituosa,
Shopenhauer reuniu tudo o que há de negativo na existência e a partir disso negou
a história como história [efetiva]. Há situações, como o período anterior e posterior
a 1848 na Alemanha, em que é impossível dizer aos intelectuais que se está vivendo
uma situação ideal e que por isso é um dever afirmá-la. Mas pode-se explicar – e
Schopenhauer equacionou essa questão de forma brilhante – que o mundo, de uma
forma geral, é ruim e que não haveria nenhum sentido em transformá-lo. É assim
que as pessoas, com base numa crítica que lança um desprezo mordaz contra o sis-
tema, tornam-se, eles mesmos, partidários do sistema.
Speigel: Mas aí é preciso defender Horheheimer e Adorno...
Lukács: Claro, veja bem, não pretendo comparar em termos filosóficos Horkehei-
mer e Adorno com Schopenahuer. Digo apenas que existe aqui uma analogia geral,
a saber: satisfazer as necessidades intelectuais da intelligentzia em relação à crítica das
atuais condições sociais e ao mesmo tempo demonstrar que não há nenhuma saída
desse processo de desenvolvimento.No meu livro “A destruição da razão”, falei do
“grande hotel abismo”: mora-se num hotel sofisticado e o fato de haver um abismo
em volta nada mais é que um picante ingrediente para ser acrescentado à comida e
à dança.
Agora, não estou dizendo que Adorno queria isso. O problema é que muitos
estudantes de hoje tomaram conhecimento sobre as vilanias da sociedade atual atra-
vés de suas lições e escritos, só que, depois, quando eles saíram às ruas, Adorno
encolheu os ombros e disse que o Marquês de Sade é a conseqüência necessária da
Revolução Francesa.
Spiegel: Por outro lado, porém, ele teve o mérito de encorajar, desse modo, a crítica das relações
existentes...
Lukács: Concordo.
Speigel: ...ao invés de cair na ilusão de que se vivia, então, uma situação revolucionária, como
muitos estudantes fizeram.
Lukács: O senhor falou certo: “muitos estudantes”. O marxismo nunca disse
que naquele momento era possível fazer uma revolução.
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
Spiegel: Na sua opinião, quando o Ocidente conheceu, objetivamente, uma situação revolucio-
nária?
Lukács: Confesso que não saberia responder a essa questão. Sem dúvida, são
visíveis os sintomas de que o sistema começa a entrar em crise; mas por enquanto
estamos apenas no começo de um abalo revolucionário. O senhor sabe que para
Lênin o fator subjetivo nunca pairou no vazio, mas ao contrário: quando as classes
dominantes não podem mais governar como antes e as classes oprimidas não que-
rem mais viver como antes, surge uma situação revolucionária.
Spiegel: No caso do movimento dos estudantes, pode-se falar destas duas condições e termos
muito limitados. Mas não seria justo dizer que é um erro querer simplesmente passar por cima da
democracia e das relações capitalistas?
Lukács: Sim. Engels, num escrito genial, Crítica ao Programa de Erfurt, exortou o
partido social-democrata a acabar com os restos da velha Alemanha. Ele denominou
de ilusão acreditar que toda aquela porcaria pudesse ser removida do socialismo
pura, piedosa, alegre e livremente, porquanto a Alemanha nunca tivesse passado
por uma democracia burguesa. Penso que isso deve ser enunciado de forma aberta
e brutal. Na França, houve o julgamento do capitão do estado-maior judeu Dreyfus.
E do julgamento injusto irrompeu uma crise do Estado, que por anos convulsionou
todo o país e pôs fim a toda uma época.
Em Berlin, ao contrário - no meio de uma revolução – Liebknecht e (Rosa)
Luxemburgo foram assassinados. No entanto, não se mostrou a menor vontade de
sequer saber quem eram os assasinos; quiseram que eles assegurarassem sua posição
conceituada junto à opinião pública. Tem-se aí uma grande diferença no desenvol-
vimento da democracia burguesa que precisa ser reparada.
Spiegel: O senhor diria que os estudantes se enganam quando, na atual República alemã, ad-
vogam por uma revolução social ou pelo socialismo? O senhor estaria sugerindo que eles, em primeiro
lugar, se voltassem para uma democracia burguesa?
Lukács: Lênin sempre afirmou que não existe nenhuma muralha chinesa entre
revolução burguesa e revolução operária. Também não é por acaso que em 1917, a
partir de reivindicações burguesas revolucionárias não-satisfeitas – a paz e a divisão
de terras para os camponeses – tenha surgido uma revolução socialista. Posso dizer
com Engels que sem uma solução para essa questão não pode haver nenhuma liber-
tação do povo alemão. Se o movimento dos estudantes ficará confinado à moldura
da sociedade burguesa ou se haverá de rompê-la em maior ou menor medida – é
óbvio que não compete a um cidadão como eu, residindo em Budapeste e acom-
panhando o desenvolvimento da Alemanha apenas pelos jornais, dar uma resposta
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Ronaldo Vielmi Fortes
a essa questão. Penso apenas que eles partem de um ponto de vista quimérico, que
consiste em querer empreender o socialismo na Alemanha sem destruir essa tradição
do desenvolvimento alemão.
Spiegel: Então o senhor considera que a etapa atual da democracia burguesa na República
alemã é um elemento progressista, um pressuposto necessário para um desenvolvimento futuro do
socialismo...
Lukács: ...se ela fosse uma etapa efetivamente democrática. Sem dúvida, se eu
tivesse de escolher entre um Josef Strauss e um Willy Brandt, obviamente que eu
ficaria com Brandt. No entanto, pelo menos desde que a social-democracia votou
pela lei de emergência, passei a desconfiar de sua competência para implementar na
Alemanha burguesa uma democracia conseqüente.
E mesmo o SPIEGEL, por quem tenho uma certa simpatia, não vai tão longe
quanto foram Jaurès, Zola ou Anatole France no caso-Dreyfus – mas eu não posso,
do meu gabinete de trabalho em Budapeste, dar nenhum conselho aos políticos
alemães.
Spiegel: Senhor Lukács, como o senhor avalia seu papel pessoal em meio à crise que assola os
campos socialista e capitalista?
Lukács: Vejo de forma positiva que hoje tanto a solução stalinista quanto o Ame-
rican way of life estejam objetivamente em crise. Em 1945, opinava-se no Ocidente
que o marxismo, como ideologia do século XIX, havia ruído e se transformado num
mero documento histórico. E nos países socialistas, acreditava-se que, com a refor-
ma stalinista, havia-se encontrado a forma definitiva do marxismo. Hoje sabemos
que os fatos refutaram a ambos.
Eu mesmo, desde 1930, não sou mais um ativista político e tento agora como
ideólogo trazer à tona aquilo que constitui o essencial no marxismo. Com isso, quero
contribuir para o conhecimento de como efetuar, em campos diversos e sob formas
diversas, uma transformação política real.
Spiegel: O senhor está trabalhando em algum livro novo?
Lukács: Escrevo uma Ontologia do ser social – a primeira desde Marx. Um traba-
lho assim, por sua limitação, parece estar em contradição com o desenvolvimento
do movimento dos trabalhadores. Pois este se tornou influente com pessoas como
Marx, que foi ao mesmo tempo um grande ideólogo e um grande político. A ele
seguiu-se Engels e Lênin, que também reuniram as duas coisas.
Mas isso não é uma lei histórica necessária. Stalin, por exemplo, que foi um bom
organizador e um e um tático habilidoso, nunca entendeu nada de ideologia e foi por
isso apenas um administrador. E dizer que os vários primeiros-secretários que aqui
tiveram lugar, - Rákosi na Hungria, por exemplo – tinham alguma competência para
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Procedimento investigativo e a forma expositiva em Marx – duas leituras: Lukács/Chasin
Referências Bibliográficas:
DANNEMANN, R; JUNG, W (Hrsg.). Objektive Möglichleit: Beiträge zu Georg Lukács’ “Zur On-
tologie des gesselschaftlichen Seins”. Opladen: Westdeutsche Verlag, 1995.
LUKÁCS, G. Demokratisierung heute und morgen. Budapeste: Akadémiai Kiadó, 1985.
_______. Ontologia dell’essere sociale – volume II. Roma: Riuniti, 1976.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo editorial, 2002
313
revista on-line
Verinotio.org Espaço de interlocução em ciências humanas
educação e ciências humanas Ano V, novembro de 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X
DEPOIMENTOS
Depoentes:
Ana Selva Albinati
Ângelo Leite
Antônio Lopes Alves
Carlos Magno Machado
Celso Eidt
Frederico Almeida Rocha
José Divino Lopes Filho
Juracy Amaral
Leonardo Gomes de Deus
Leônidas Dias de Faria
Lúcia Vasconcelos
Maria Cláudia Almeida Magnani
Mônica Hallak Martins da Costa
Rodrigo Alckmin
Ronaldo Vielmi
Sabina Maura Silva
Silvia Pereira Barbosa
Vinícius Lima
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Introdução
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ter os Manuscritos de 1844 como objeto de pesquisa, pois era meu interesse analisar a
categoria da alienação e era parte do projeto do grupo a dedicação a este que foi o
primeiro trabalho de Marx sobre economia política. Os alunos que ingressaram no
programa no mesmo período assumiram outros temas relacionados aos textos de
Marx de 1843 a 1847. Tratava-se, portanto, de um trabalho coletivo sob a orientação
e coordenação do Prof. Chasin, claro, mas delegando a cada um de nós a responsa-
bilidade de manter o rigor na sua pesquisa individual e o compromisso de trocar e
difundir nossos resultados.
“Ao mesmo tempo em que seguíamos com nossas pesquisas e o estudo de Marx
(e, em menor medida, também da obra tardia de Lukács), mantínhamos o debate
acerca da questão nacional. Desde o primeiro ano em que conheci Chasin, ou seja,
1986, numa mistura de curiosidade e resistência, eu tentava entender uma posição
política que era pautada no estudo da especificidade do capitalismo brasileiro – a via
colonial – e que se propunha a assumir propostas diversas – não necessariamente
defendendo este ou aquele partido – que estivessem em consonância com o de-
senvolvimento nacional. Imediatamente me identifiquei com a crítica em relação à
postura de alguns partidos políticos de não votar em Tancredo Neves em 1985. Foi
um alívio conhecer dois marxistas que consideravam importante assumir o apoio
possível para aquele momento.
“A curiosidade e o interesse aumentavam na medida em que as propostas políti-
cas estavam coerentemente articuladas com a discussão teórica acerca da ontonegati-
vidade da política em Marx – sem dúvida, uma das maiores conquistas das pesquisas
de Chasin, que supera, inclusive, o legado lukasciano – e com a compreensão dos
problemas nacionais.
“Em sala de aula, o Prof. Chasin era, antes de tudo, um provocador. Buscava
sempre estimular o debate e fazia longas digressões que, no entanto, sempre eram
muito pertinentes e nos ajudavam a entender a multiplicidade de implicações das
questões em pauta. O estilo provocador de Chasin, associado à dificuldade dos alu-
nos com o ineditismo de sua abordagem, muitas vezes resultava em conflitos em
sala de aula. Da perspectiva do presente, posso avaliar como eram situações distintas
daquelas usualmente ocorridas na academia. Pois, ao contrário de se curvar diante
da dificuldade dos alunos (que, com freqüência, manifestavam-se com certa arrogân-
cia), o Prof. Chasin mantinha seus argumentos e continuava a colocar questões que
desarmavam os argumentos do interlocutor. Como se pode imaginar, eram situações
tensas e que lhe renderam a fama de autoritário e intransigente. Ele, de fato, não to-
lerava o acobertamento das dificuldades e as facilitações estimuladas, de certa forma,
na vida acadêmica. Quanto a isso, temos seu testemunho, ainda que incompleto, no
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texto publicado nos quatro tomos da revista Ensaios Ad Hominem 1: Rota e prospectiva
de um projeto marxista.
“O meu contato mais sistemático com o Prof. Chasin, no entanto, foi no Mo-
vimento Ensaio. Reuníamo-nos quinzenalmente na casa de um dos participantes e
uma vez no mês – ou talvez uma vez a cada dois meses (não me lembro bem) – na
casa dos professores Chasin e Ester. Era sempre um momento muito precioso, pois,
além de rever a organização de nosso trabalho, tínhamos a oportunidade de conver-
sar sobre a escolha e o conteúdo das publicações, as questões em pauta nos cenários
nacional e internacional e, claro, as idéias de Marx e Lukács. Inicialmente, o que
achei mais curioso (porque era muito diferente das minhas outras experiências de
participação política) era a centralidade do trabalho. Havia, ao mesmo tempo, certo
estímulo à ajuda mútua, mas sem expor as dificuldades das pessoas. Nunca havia
participado de um ambiente tão respeitoso, sem ser distante ou indiferente. Mas,
muito além de minhas impressões pessoais, chamava a atenção o envolvimento de
Chasin em todo o processo de construção do trabalho: desde a escolha das publi-
cações até a sugestão de pontos de venda e difusão, passando pela diagramação dos
livros, contatos com os autores – enfim ele estava atento a cada detalhe.
“Um grande estímulo para o Prof. Chasin, no último ano de sua vida, foi a liga-
ção de alguns jovens estudantes de Filosofia com o seu trabalho. Mas, pouco depois
da seleção em que alguns desses novos alunos ingressaram no mestrado, Chasin veio
a falecer, sem chegar a orientá-los.
“Dez anos depois, não consigo ainda dimensionar o que significou essa perda.
Continuar o trabalho do Prof. Chasin era, e continua sendo, impossível. Tentamos
levar adiante nossas pesquisas e manter a divulgação de suas idéias, mas em um âm-
bito infinitamente mais restrito. De todo modo, o pouco que conseguimos manter é
a prova mais concreta do legado deixado por ele: a confiança no trabalho conjunto,
que lhe custou o investimento sistemático e prioritário na formação das pessoas e
não só diretamente na produção teórica.”
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“A vivência que tive com Chasin exerceu enorme mudança em meu modo de
ser e pensar, especialmente no sentido de valorizar o que de melhor, de horizonte de
possibilidades, as pessoas, as situações e problemas podem apresentar. Assim como
da imperiosa necessidade de manter-se lúcido e decente, e da urgência de pensar os
destinos humanos, sem a mesquinharia e limitação das formas prosaicas de encarar
a existência.”
VINICIUS LIMA:
“Conheci Chasin em 1986, quando tive notícias de que ele dava aulas sobre
Marx e Lukács na Fafich. Tinha um amigo, Élcio Marques, que falou dele para mim
e nós procuramos nos aproximar do intelectual, mas jamais fomos alunos dele. A
referência que tínhamos dele era teórica e de amigos da Faculdade de Direito da
UFMG.
“A diferença principal entre Chasin e os outros professores era a de que ele fazia
a ponte entre a Filosofia e a prática material, incluída a política, que ele criticava do
ponto de vista marxiano; sempre dizia que a Filosofia era eminentemente prática
(nada a ver com o pragmatismo...).
“Chasin era muito acessível e sempre nos chamava (eu e Élcio) para assistirmos
às aulas, mas nunca entramos. Um episódio interessante foi quando Élcio descobriu
a obra de Lukács – El asalto a la razón - na Faculdade de Ciências Econômicas da
UFMG (Face) (em 1987), relegada “à crítica roedora dos ratos”. Achamos um ab-
surdo, pois não havia nenhum exemplar na Fafich naquela época. Pedimos então à
bibliotecária da Face para enviar o livro para a Filosofia, pois lá havia um professor
que era discípulo do autor e a obra lhe seria muito útil. Quando o livro chegou à Fa-
fich mostramos a Chasin e ele ficou muito contente. Depois, foi difícil retirar o livro
da Biblioteca, pois ele só vivia emprestado. São coisas que ninguém sabe, mas eu fui
o responsável pela idéia do envio do livro para a Fafich, com o apoio do Élcio.
“O impacto muito positivo de Chasin veio por meio da Editora Ensaio. Acom-
panhei todo o ‘movimento de idéias’ e comprei quase todos os livros publicados nos
anos 80 e 90. Li o livro que detona Plínio Salgado; o livro é muito bom e cobriu uma
lacuna na crítica ao integralismo; li muitas coisa que ele publicou
“Quanto à redescoberta de Marx, sua tarefa foi importante porque cavou uma
trincheira marxista na Fafich, jamais capitulou diante da filosofia reacionária e incen-
tivou as novas gerações a ler o Barbudo e a desmistificar a idéia de que Marx não era
‘filósofo’, mas ‘economista’ e outras idiotices acadêmicas...
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recendo sua participação para palestras e aulas. Parece-me ter sido o único professor
da universidade a incentivar pessoalmente esta iniciativa. O Centro foi extinto, mas
vários daqueles que se vincularam a ele continuam contribuindo para uma reflexão
crítica da realidade. E penso que a atitude do Prof. J. Chasin ficou como um incenti-
vo a todos sobre ‘o pensar e o participar’.
“Especialmente na condição de aluno, creio ser impossível ter convivido com
o Prof. J. Chasin sem que se tenha recebido algum impacto. Penso que seu impacto
fundamental diz respeito ao método: contundência e consistência. Porque se seus
ensinamentos de estética e ontologia em Marx, como todo aprendizado na Filosofia,
são obra da disciplina intelectual, a capacidade de sustentar conceitos e princípios
enquanto fundamento de reflexão ontológica da realidade exige metodologia que
sustente o discurso. E hoje reflito que esta foi, para mim, a maior virtude do Prof.
J. Chasin.
“Chasin, enquanto fui seu aluno, sempre me pareceu muito criterioso no que se
refere aos objetivos das disciplinas que ministrava. Metódico, colocava em prática
aquilo que enunciava: ‘antes de interpretar e criticar, é incontornavelmente neces-
sário compreender e fazer prova de ter compreedido’. Demandava, assim, leitura
exegética dos textos adotados (Marx, Lukács...), protelando leitura de seus próprios
textos. Através da Ensaio é que passei a ter contato com os textos do Prof. J. Chasin.
O último que li, e também aquele com que mais tenho afinidade (pelo menos até
o presente momento) porque abarca fundamentos de categorias centrais no pensa-
mento do filósofo J. Chasin foi ‘Marx – estatuto ontológico e resolução metodológi-
ca’, posfácio de Pensando com Marx: Uma leitura Crítico-comentada de O Capital’, de
Francisco J. S. Teixeira, publicado pela Ensaio em 1995.
“Quando conheci o projeto o considerei arrojado, especialmente porque a pro-
posta editorial requereria um esforço material significativo dos editores para lhe dar
regularidade. Recordo-me que mais de uma vez ouvi o professor J. Chasin comentar
o valor deste esforço, reiterando que ao rigor e profundidade do conteúdo deve estar
colado um projeto editorial de qualidade. Não acompanhei a evolução do projeto e
as circunstâncias que a definiram, mas, independentemente disto, a sua contribuição
ao entendimento da Filosofia marxiana é definitiva.
“Não me sinto muito à vontade para opinar sobre o impacto global das análises
do Prof. Chasin acerca do contexto brasileiro em geral, visto que não acompanhei
esta evolução. Contudo, pelo alcance da percepção que me foi possível até o mo-
mento, considero capital sua teoria e metodologia de análise e compreensão das
ciências sociais, por meio da perspectiva ontológica. Traduz numa forma de siste-
matização da realidade social, que acredito muito proveitosa, para que profissionais
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ci tanto no que se refere à sua atividade como profissional quanto como pessoa.
Chamava a atenção a sua coerência, franqueza, honestidade pessoal, dedicação ao
trabalho e, desnecessário dizer, sua competência.
“De uma maneira geral, são raros os professores que produzem tanto, tão de-
dicados e verdadeiros em seu trabalho, em sua produção intelectual e que têm uma
ação que extrapole ensino, pesquisa e extensão dentro da universidade.
“Não era possível ser indiferente ao contato com o prof. Chasin. No meu caso
pessoal o impacto foi positivo. Aconteceu em um momento em que eu questionava
a escolha do curso que fizera e o contato com Chasin e Ester deu-me a certeza de
uma boa escolha.
“Participei do projeto Ensaio e, depois de tantos anos, avalio-o como um movi-
mento efetivamente necessário, muitas vezes mal compreendido, nadando contra a
corrente dos modismos inconseqüentes da Filosofia.
“A vivência com os professores Chasin e Ester foi ao encontro de um modo de
ser e de pensar que já me era próprio e um tanto sem referência e solitário naquele
momento. Consolidou posturas profissionais e pessoais.
“Acrescento que vejo de maneira positiva esta homenagem, não como uma mi-
tificação ou um culto à personalidade, mas como uma necessidade, no sentido de
chamar a atenção para a importância do seu trabalho, que, em uma metáfora que o
próprio Chasin usava, pretendia jogar algumas pedras sobre a lama, para que gera-
ções futuras pudessem pisar. De todo o tempo em que tive o privilégio de conviver
com Chasin, uma afirmação sua nunca me saiu da mente: ele dizia que se havia uma
vaidade que ele possuía era a de não compactuar com este mundo, a ordem societária
regida pelo capital. Lamento profundamente a sua morte, até hoje.”
CELSO EIDT:
“Ao ‘spiritus rector’ Prof. Dr. José Chasin
“Foi no ano de 1988 que conheci o Prof. Dr. José Chasin, no curso de mestrado
em Filosofia na Fafich da UFMG. Ele foi um dos intelectuais que mais marcaram
meu percurso formativo, seja por seu trabalho filosófico, seja por sua generosidade
humana, digno de um autêntico ser genérico.
“Chasin desenvolveu um estilo filosófico característico, com fundamentos cla-
ros e objetivos, em que a exposição dos núcleos conceituais mais complexos se fazia
acompanhar de análises contextuais, em que as elaborações próprias davam vazão
aos elementos metafóricos, às ironias sutis e às críticas radicais, levando os princípios
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LÚCIA VALADARES:
“Eu conheci J. Chasin num curso de Filosofia que ele veio dar em São Paulo, em
março de 1988, na Associação dos Sociólogos do Estado : foram quatro encontros
nos quais ele desenvolveu reflexões em torno da ontologia, bem como da história da Fi-
losofia e as questões político-econômicas mais polêmicas presentes naquele momen-
to. Nos anos subseqüentes, acompanhei o modo como ele realizou outros encontros
para expor seus estudos sobre o pensamento de Marx e sobre a história da Filosofia,
ou para expor suas reflexões sobre a realidade brasileira.
“Em todos esses momentos, sua postura sempre foi a mesma: em qualquer
lugar em que estivesse ele alterava a disposição das mesas para formar um círculo e
abria os encontros convidando todas as pessoas presentes a falarem, a exporem suas
idéias. Sem o controle do tempo das falas, as pessoas expunham as suas idéias e suas
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RONALDO VIELMI:
“Vim a conhecer o Prof. Chasin logo após ter me formado no curso de gradua-
ção em Psicologia. A convite um colega de turma – Fernando – assisti como ouvinte
às aulas do professor na graduação. As primeiras referências que tive de Chasin
foram também a partir deste colega, que fez na faculdade Fumec a divulgação da
famosa Ensaio 18, com o texto sobre as eleições diretas de 1989.
“Preliminarmente, meu interesse era o estudo de Marx, dadas minhas vincula-
ções sindicais. Obviamente, ao assistir às suas aulas, as expectativas iniciais foram
todas ‘destruídas’, no sentido positivo. A crítica e a perspectiva abertas durante as au-
las que tive com Chasin foram essenciais para mudar minhas crenças e projetos que
tinha em torno da luta sindical. Particularmente, a radical contestação da propositura
Petista, que na época almejava a presidência da República. A identificação da crítica
de Chasin com uma série de desleixos e ‘estranhezas’ que via na prática partidária e
sindical foi imediata.
“Porém, não foi apenas este aspecto que me atraiu. O fascínio maior veio da
percepção de que o pensamento de Marx não se reduzia à velha cantilena da luta de
classes, do compromisso com a revolução, mas, ao tomar conhecimento, por meio
de suas aulas, da perspectiva humanista presente na obra marxiana. O, para mim,
inusitado preceito de que a revolução tem o papel precípuo da emancipação das
individualidades.
“No plano da minha formação intelectual, minhas dívidas são bem maiores.
Não apenas fui acolhido e muito auxiliado nos passos iniciais, mas o modo, o rigor,
as exigências defendidas por Chasin no âmbito do trabalho intelectual me marcaram
profundamente - juntamente com a profa. Ester Vaisman. A relevância de Marx para
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outra, sempre a partir de alguma coisa que estava acontecendo no país. Da mesma
forma que não havia hora para começar, não havia hora para terminar, as aulas iam
até às 20:00, 21:00, às vezes até às 22:00 horas.
“Eu comecei a gostar daquele jeito irreverente que ele tinha, de se importar ape-
nas com o que era importante de fato, o conteúdo, a discussão, enquanto o resto, as
formalidades, os horários, tudo isso não tinha a menor importância.
“A sala de aula tinha outra característica também que me agradava muito: era
como uma reunião num outro espaço, que não o acadêmico, em que as pessoas o
escutavam com muita atenção, discutiam, tomavam café e fumavam sem parar. Em-
bora eu não fosse uma fumante, aquilo não me incomodava, ao contrário, encantava-
me sempre a irreverência que ele cultivava pelo local, pelas normas e pela ‘qualidade
de vida’.
De fato, o que falavam dele nos corredores era em parte verdade: Chasin me
intimidava um pouco, mas logo eu percebi que era uma intimidação proposital, pro-
vocadora. A exigência de rigor, de fundamentação, de contextualização, era um exer-
cício difícil a que ele nos expunha o tempo todo.
Havia um aspecto do seu comportamento com relação aos alunos que eu apre-
ciava especialmente: ele os levava a sério. Ele considerava nossas perguntas, desen-
volvia a partir delas a sua reflexão e retornava a elas com um material mais vasto de
pesquisa, incitando-nos a acompanhá-lo naquela trajetória. Na verdade, essa era a
‘braveza’ de Chasin, a sua intransigência. O que eu pensava ser uma intimidação se
revelou como um profundo interesse e consideração pelos alunos. Ele queria nos
tornar aptos a uma conversação filosófica. O que não era fácil, devido à sua erudição
e à sua capacidade de articular as questões e realizar uma reflexão original, interes-
sante, instigante e, no mais das vezes, ao avesso das considerações tradicionais.
“Ele me impressionava muito por sua segurança na exposição das questões, por
sua franqueza e por um certo humor, uma espirituosidade muito peculiar que ele
apresentava (às vezes, quase cruel, diga-se de passagem).
“Quando eu comecei a freqüentar alguns de seus cursos (e também alguns de
Ester), dei-me conta que havia um grupo coordenado por eles, empenhado em de-
terminados aspectos da obra de Marx, e tomei também conhecimento da Editora
Ensaio.
“Acho muito significativo o fato de que um grupo se empenhe em um determi-
nado objeto de estudo e trabalhe junto, o que é ainda mais interessante, se pensar-
mos o individualismo e a vaidade reinantes nos meios acadêmicos. Esse grupo tinha
no Prof. Chasin a orientação segura, a definição dos pontos a serem pesquisados
em torno de um objetivo maior, que era trazer à tona o texto do próprio Marx. Esta
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RODRIGO ALCKMIN:
“O meu primeiro contato com o Prof. Chasin aconteceu no curso de graduação
em Filosofia pela UFMG, no início da década de 1990, quando a Fafich ainda fun-
cionava no antigo prédio da Rua Carangola. Apesar de não ter nenhuma referência
sobre ele, desde o princípio, era notório o seu bom humor, acompanhado de uma
fina ironia, conjunção que também ficava visível em suas inúmeras participações em
seminários ou congressos.
“Dotado de uma personalidade carismática, além de uma sólida formação te-
órica, impressionava a maneira como era articulada a história da Filosofia com as
questões mais imediatas presentes no cenário mundial. A argúcia das suas análises
e o poder de síntese na exposição das idéias ultrapassavam o mero conhecimento
acadêmico. Naturalmente, isso provocava um impacto em seus ouvintes; não era
mais possível estudar Filosofia alardeando toda aquela problemática levantada nas
suas aulas e, ainda, não examinar com mais atenção os apontamentos para as suas
supostas soluções.
“Longe de um simples ‘carreirismo’, a qualidade do trabalho desenvolvido pelo
Prof. Chasin encontrava consistência na elevação, ao primeiro plano, da emancipa-
ção humana. A seriedade empreendida nessa tarefa – seja como autor ou orientador
– resultava em pesquisas marcadas, antes de tudo, pela exigência de um alto padrão
de rigor. Nesse sentido, o projeto Ensaio revelou a lucidez das suas leituras sobre
a miséria brasileira, assim como o esforço editorial na tentativa de mobilizar um
maior número de pessoas, apesar dos obstáculos que num intento dessa monta se
inscrevem.
“A proposta de redescoberta de Marx é de suma importância para uma avaliação
das contribuições deixadas pela sua obra. Penso que a ontologia marxiana forneceu
o indispensável norteamento para toda sua atividade intelectual. Evidentemente,
esse embasamento teórico, aliado à presença exercida pela sua figura, influenciava
decisivamente o modo de ser e pensar dos seus alunos. A vivência com o Prof. Cha-
sin, de certa forma, desnudava aquilo que Marx havia anotado em sua segunda tese
ad Feuerbach, isto é, de que a questão sobre a realidade efetiva do pensamento não
poderia estar isolada da prática.”
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ÂNGELO LEITE:
“Cruz Costa, antigo catedrático de Filosofia da USP, quando perguntado, res-
pondia que não era filósofo e sim um filosofante, além de ensinar que se devia fazer
Filosofia no Brasil com a cabeça nessas terras. Pensar em alguém como filosofante,
então, não é nenhum demérito, e sim ver um pensamento lastreado numa dada rea-
lidade. É como penso sobre a figura do Prof. José Chasin.
“Penso que a relação com o Prof. José Chasin teve alguma repercussão na minha
prática profissional, particularmente naquela parte em que, ainda hoje, seja possível
fazer algo de positivo no exercício da docência de ensino superior, mesmo que, cada
vez mais, de forma mais rara.
“Conheci pessoalmente o professor no início dos anos 1990, embora ouvisse
falar dele (às vezes bem, às vezes mal) desde o final dos anos 1980, quando ingressei
no curso de Filosofia da Fafich/UFMG, como seu aluno da disciplina de Filosofia
no Brasil.
“O que me chamou a atenção de início na pessoa do professor foi sua arte de
falar em sala de aula, de um brilho incomum e muito próprio, o que já o distinguia
dos demais, mesmo dos mais brilhantes na arte em questão.
“Bastaria essa qualidade para tê-lo na conta de um mestre paradigmático, mas
houve um dado a mais que repercutiu na minha formação, que foi a idéia de renova-
ção da ontologia que, até então, pensava como um defunto pertencente ao cemitério
da metafísica, tudo em razão do predomínio de questões de ordem gnosiológica e
epistemológica até aquele momento do curso, que considero de encruzilhada e de
queda no real.
Passei, então, como disse, não só a freqüentar os cursos ofertados, como a ler
sobre o assunto, aliás, li todos os lançamentos da Editora Ensaio, projeto que tinha
como figura central o Prof. José Chasin e mesmo o sucessor desse projeto – os En-
saios Ad Hominem, inaugurado um pouco antes de sua morte.
“Em seu último escrito, que ficou inconcluso (é bom que se diga!), “Ad Ho-
minem – Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista”, ao analisar a composição
acadêmica da época (consoante à política de então), marcada naquele momento por
dois tipos predominantes: o alto e o baixo clero, Chasin destaca criticamente tanto as
virtudes quanto os limites do primeiro, para em seguida tecer uma crítica impiedosa
ao segundo.
“Retornar ao filosofante em questão, que espero não ter deformado em dema-
sia, possibilita pensar, mais que se lembrar de sua morte apenas, não só as caracte-
rísticas que tomou a expansão do ensino superior no Brasil de agora, bem como do
rumo tomado pelo país na senda que o leva a integração da nova ordem.”
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JURACY AMARAL:
“Conheci o Prof. Chasin no início dos anos 1990, através de Carlos Magno,
um de seus alunos no mestrado em Filosofia. Antes, por volta de 1989, fui aluno da
professora Ester, no curso de Filosofia, quando a faculdade funcionava no prédio da
rua Carangola, Santo Antônio, mas não sabia nada sobre o Prof. Chasin.
“Nas minhas conversas com Carlos Magno, fiquei sabendo que a aula do Prof.
1. Curso de disciplinas obrigatórias para quem não é graduado em Filosofia.
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Chasin era sobre a obra de Marx, logo me matriculei como aluno irregular do mes-
trado em Filosofia. Foram quatro semestres freqüentando suas aulas, normalmente,
às quartas-feiras de 16 horas às 19 horas.
“Lembro-me da presença altiva do Prof. Chasin. Chegava, sempre com sua pas-
ta marrom e muito ofegante, assentava-se, abria a pasta, pegava um maço de cigar-
ros, um isqueiro ZIP, acendia um cigarro e começava a falar sobre o tema da aula. O
que me chamava a atenção era o seu estilo de fumar, elegante, estilo aristocrático, que
buscava a cada tragada um intenso prazer no hábito tabagista. Jamais me esquecerei
do seu jeito inimitável de fumar. Durante a sua aula, que durava aproximadamente
três horas, eu contava 28 ou 29 cigarros que ele fumava até o fim. Algumas vezes ele
comentava que, devido à intoxicação tabagista, estava evitando o cigarro comum,
mas nesses dias ele fumava charuto ou cigarrilhas em menor quantidade.
“Nas avaliações orais ele me pedia para abordar um tema da teoria de Marx,
elogiava quando eu conseguia me aprofundar no tema e responder de acordo a pro-
posição, às vezes ele me corrigia, mas suas intervenções me pareciam outra aula, uma
nova abordagem para trazer à luz o que foi compreendido do pensamento de Marx.
E, todas as vezes que eu entrava na sala, para fazer a prova oral, ele me falava assim:
‘você é um rapaz sorridente e está de bem com o mundo, não perca esse modo sim-
pático e vamos para a questão’!
“O Prof. Chasin me ensinou muito, não somente sobre Marx, mas, principal-
mente, como pensar a Filosofia de forma crítica e dinâmica. Quando ele abordava
a questão social brasileira, ele gostava de se referir ao grupo que estudou Marx nos
anos 60 (Francisco Weffort, Fernando Henrique, Ruth Cardoso e outros), com uma
pitada de crítica, ele analisava o cenário político da esquerda brasileira, falava sobre
Brizola e prognosticava sobre o futuro do Partido dos Trabalhadores. Através de
suas análises não me surpreendi com o esquema de poder montado pelo PT que
culminou com o caso do ‘mensalão’. Não me lembro muito bem do texto, mas
penso que seja um com o nome ‘A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda’ em que
Chasin evidencia certeiramente o desenrolar do processo político protagonizado
pela esquerda brasileira.
“O Prof. Chasin, para mim, foi o mestre da lição, ele se posicionava como um
professor altivo, de saber trabalhado e refinado, detalhava para instigar o aluno a
pensar e elaborar a partir das suas assertivas, muito raro nos tempos atuais. Depois
de muito tempo, tive a felicidade de ter outro professor com estilo semelhante ao
do Prof. Chasin, foi na UnB, um professor com estilo de professor – ‘um mestre da
lição como Chasin’.
“Ainda leio a obra de Chasin, principalmente quando preciso me referir a
Marx.”
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“Pode-se dizer que tudo isso se deva a Marx, prioritariamente. Não sabemos
se é o caso com relação a todos os pontos aludidos. Mas, mesmo se for, foi Chasin
quem nos fez perceber isso tudo. E à preservação e divulgação da memória de tão
grandioso e exemplar homem, pensador e mestre, dedicamos boa parte de nossos
modestos esforços cotidianos.”
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sétimo período, sem ter ouvido qualquer comentário anterior a seu respeito, duas
coisas me surpreenderam imediatamente. Duas qualidades de caráter, na verdade,
foram as mais imediatas: o caráter enérgico e resoluto da argumentação, bem como
a paixão crítica e/ou crítica apaixonada nos temas explanados, pois eles brotavam
diretamente da vida real, vivida, para a exposição oral e retornavam para os conflitos
da vida real, procurando suas origens, fundamentos, resoluções, de forma universal,
clara, lúcida, radical, profunda. Isso ao mesmo tempo feito com séria e respeitosa
desmontagem crítica dos discursos descompromissados com a urgente questão do
fundamento objetivo das idéias.
“Mas, evidentemente, tais qualidades morais, embora tivessem, no caso do pro-
fessor, relação explícita e direta com seu caráter, suas idéias e seus projetos, é algo
que por si só não fariam dele o grande mestre que foi. Ele trazia uma novidade an-
siosamente aguardada por todos que estavam desejosos de ver o coreto da ‘querela
dos fundamentos’ abalado, no bom sentido.
“Ao apresentar, na introdução da disciplina Filosofia no Brasil, as conquistas
filosóficas da equação ‘pré-teorética’ para o problema das fundamentações, assimi-
lada e amadurecida mediante as leituras da obra de Marx, recoloca corajosamente
em discussão algo que estava fora de moda no gosto filosófico atual: a necessidade
de um fundamento irremovível, não arbitrário, para a Filosofia e demais produções
humanas. E isso, dizia ele, encontramos no próprio Marx. Os textos realmente não
o negam. O que gerava espanto e desconfiança. A própria razão, lúcida, não pode
negar tal fundamento, a menos que pague ônus da prova, afirmava Chasin, que nada
mais é que seu próprio esvaziamento ontológico, ou seja, sua própria extinção (para
não falar em sua gênese, o que já descartaria o próprio surgimento da querela espe-
culativa, seu ponto de partida).
“Além de a questão parecer totalmente ‘fora de moda’, arrancando, em sala de
aula, risos nervosos entre os pragmatistas, kantianos, hermeneutas etc., reações in-
flamadas de todos os lados, havia também o enfrentamento com as outras Filosofias
que colocam um fundamento teorético. Neste caso, reações vinham dos defensores
da metafísica, do empirismo, do racionalismo, do hegelianismo etc.
“Nas filosofias para as quais o fundamento é uma questão da velha metafísica, já
morta desde Kant, a questão é mostrar, depois de Kant (sobretudo no século XX),
que já não é necessário nem possível levantar qualquer fundamento. Portanto, elas
descartam a própria questão do fundamento como algo relevante e realizável. Essas
filosofias, no fundo, acabam por colocar tudo e nada como fundamento, embora não
o confessem de forma alguma. Nas outras, os fundamentos são postulações teóricas
de natureza epistêmica ou ontológica, mas ambas elaboradas na forma de uma teoria
arrimando a teoria.
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“Quanto às epistêmicas, é por demais evidente sua inteira incapacidade para so-
lucionar a querela, dizia Chasin. Pois seu ponto de partida é a subjetividade, a lógica
do sujeito, antes mesmo de apreender a lógica do objeto. No caso das fundamenta-
ções ontológicas, aparece também a questão do pré-teorético, sobretudo nas tentati-
vas de Heidegger e Ricoeur, que Chasin menciona e critica no curso de Filosofia no
Brasil, pois ambos trazem uma concepção abstrata do pré-teorético.
Sobre um pouco da crítica direcionada, de forma sucinta e didática em sala de
aula, a Heidegger, afirma Chasin:
Ontologia Fenomenológica de Heidegger. Ponto de partida: A vida vivida ou pré-
teorético. Experiência vivida: Experiência existencial. Essa experiência parece ser
um universal sem maiores problemas. Noção de experiência que engloba as ex-
periências. Um pensar sobre si mesmo no mundo. Aleatoriedade: Qualquer coisa
cabe nisso. É uma experiência do indivíduo isolado que experimenta o mundo.
Derrelição: É o indivíduo isolado que experimenta o mundo (abstrai-se da socia-
bilidade). Existencialismo: Indivíduo jogado no mundo, condenado à liberdade.
O homem jogado no mundo e que tem que viver: Condição humana. Uma vez
posto no mundo, o homem está condenado a ser livre.
É uma concepção da vida vivida, como ela transcorre, não é uma analítica do
cotidiano. É uma esfera, uma concepção abstrata do pré-teorético. Há um reconhe-
cimento de uma cotidianidade fundante e o existencialismo aniquila isso. O homem é
um nada, é um vazio na sua liberdade. O existencialismo não é uma analítica da
cotidianidade. Campo puramente abstrato. Fundamento da teoria existencialista:
O indivíduo isolado, sua condição é a do homem sofrendo a liberdade.
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Quando eu tomo um objeto, eu reconheço que ele é uma coisa externa a mim e
que eu uso para meu benefício. Acertar ou errar — distanciamento adequado dos
objetos — não é o que orienta a prática, de imediato. O ato prático se dá antes
do critério de verdadeiro ou falso, a aproximação vivida com a coisa é anterior.
A prática se põe não a partir de um fundamento pautado na verdade. Essa noção
é dos gregos, da Filosofia grega. A prática se põe como atendimento a algo que
é mais vital que a verdade e ela se dá sempre, mesmo quando não se tem certeza
da veracidade ou não do evento em questão. Falsidade e veracidade não impedem
a prática, ela é indiferente a elas. Há algo que eu tenho que fazer se não eu não
subsisto, se eu não fizer eu pereço: a prática é guiada pela necessidade: seu critério
é a necessidade, não o verdadeiro ou o falso. A ação humana se dirige a fins. Di-
mensão fundante da ação humana. A ação visa a atender as carências objetuais do
ser humano. Universo da vida vivida, da vida real: a vida cotidiana em que todos
nós vivemos: artistas ou não, filósofos ou não, cientistas ou não. Não saímos dela
nunca. É um engodo pensar o contrário, eu me fechar na minha vida individual,
no meu recolhimento subjetivo.
Subjetividade não é ser, é predicado de um ser objetivo e que para viver tem de
atender a exigências objetivas. A subjetividade não é substância, nesse sentido ela
não é objetiva, ou melhor, não como as coisas sensíveis o são. A consciência é
consciência de um ser objetivo: essa é sua condição de possibilidade. Ela não é
uma coisa em si e por si, consciência é consciência da objetividade. Na imediatici-
dade do cotidiano, a subjetividade conscientiza que eu tenho fome e meu objetivo
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Os objetos de que eu preciso não existem na natureza, não estão dados na nature-
za, eu tenho de produzi-los, de modo que a produção é o meio de subsistência hu-
mano. Isso é irremovível, inquestionável. Sem isso todo o resto se torna impossí-
vel. Eu não posso abstrair dos meios, eles são um pressuposto objetivo. Isso tudo
é o resultado de uma simples análise do cotidiano. Não há nenhuma teoria nisso,
eu simplesmente li no mundo. A filosofia dos últimos 50 anos tem sido uma corrupção da
Filosofia. Aquele resultado da analítica da cotidianidade é uma abstração razoável:
é aquele tipo de abstração mantenedora da efetividade, é o reconhecer do nervo
fundamental sem o qual todo o resto é impossível. Essa constatação envolve uma
operação mental (abstração razoável). Levou-se cerca de 2.500 anos, desde o nas-
cimento da Filosofia, para ser descoberta e, ao mesmo tempo, é tão simples. Só
com Marx isso se efetivou. Se os meios de subsistência são irremovíveis, eu posso
extrair dessa colocação que se o homem produz seus meios de subsistência, ele
produz a si mesmo, não como a metafísica faz, que parte de uma certeza abstrata.
Nossa certeza é sensível. (Anotações de aula, 27 de março de 1998).’”
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