Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Vitória
2015
JANIVALDO PACHECO CORDEIRO
Vitória
2015
(Biblioteca Nilo Peçanha do Instituto Federal do Espírito Santo)
É tempo de agradecer. De olhar para os céus e dessa vez, pelo menos dessa vez
não fez pedidos e, sim agradecer! Talvez um pedido de agradecimento, para não
perder o costume do solicitar sempre.
Agradecimento tão especialíssimo quanto, ao meu pai, exemplo de vida, que não
mediu esforços para nos educar e nos ensinou desde novos a respeitar os outros e a
vencer por méritos próprios:
por acreditar em mim, por acreditar naquele projetinho inicial de ideias frágeis e
imaturas. Obrigado muito mais que especialíssimo por me ajudar a perceber que
hoje!
Que Deus o ilumine por todo sempre para que sua luz continue a guiar a todos
aqueles que de ti necessitam!
Você é um grande amigo!
À Alex Jordane
pelas valiosas contribuições e pelas palavras de apoio a este trabalho. Pela acolhida
no mestrado, na disciplina lecionada, nas qualificações e pelos projetos realizados
em conjunto comigo.
O carinho especial a nós atribuídos potencializam numa relação de amizade
agradeço por aceitar a participação neste trabalho, pelo tempo dedicado, e pelas
preciosas contribuições na qualificação que foram essenciais para os ´novos´ rumos
que foram tomados.
e contribuído sensivelmente.
Aos meus sobrinhos e sobrinhas: Denise, André, Heloísa, Jorge Neto, Laís,
Larissa, Letícia, Mayara, Jade, Isabel, Daniel, Gabriel, Murilo, que me ensinam
Aos meus irmãos Marilene, Agnaldo, Dôdo (em memória), Quequê (em memória),
Edgard, Iran e Marly, que sempre acreditaram em mim. E aos cunhados: Fabrício,
Aos amigos Fabiano e Adriano por sempre me motivarem à estudar, a crescer, a ser
Aos amigos do trabalho que se tornaram amigos ‘do peito’: Sílvia, Mara,
Patrícia, Paty, Érica, Alice, Zezé, Rachel, Jeane, Regina, Mellyssia, Tatiana,
Obrigadíssimo!
- [...]Na certa você já ouviu falar do teatro do absurdo.1
- Sim.
- E você entende o que a palavra “absurdo” significa?
- Significa alguma coisa sem sentido ou irracional, não é?
- Exatamente. O “teatro do absurdo” está preocupado em mostrar a falta de sentido da vida.
O que se espera é que o público assista à peça, mas também reaja a ela. Não era objetivo
deste teatro, portanto, fazer uma apologia da falta de sentido da vida. Ao contrário: por
meio da representação e da exposição às claras do absurdo, em cenas do cotidiano, por
exemplo, o público era levado a refletir sobre a possibilidade de uma vida mais verdadeira, mais
essencial.
- Continue.
- Frequentemente, o “teatro do absurdo” aborda situações absolutamente triviais. O homem é
representado exatamente como é. Mas quando você leva para o palco de um teatro o que
acontece, por exemplo, dentro do banheiro de uma casa como todas as outras, numa manhã
como todas as outras, o público acaba rindo. Este riso pode ser entendido como um mecanismo
de defesa contra o fato de as pessoas se verem representadas sem rodeios no palco
(GAARDER, 1995, p. 490 – 491, destaques do autor).
1Diálogo entre Sofia Amundsen e o seu professor de filosofia. Sobre a referência ao teatro, a
expectativa é que o leitor se (re)conheça em várias situações deste texto.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CAMPUS VITÓRIA
Avenida Vitória, 1729 – Bairro Jucutuquara – 29040-780 – Vitória – ES
27 3331-2110
RESUMO
ABSTRACT
2.3 “SOFIA, SOFIA... QUEM É VOCÊ? DE ONDE VOCÊ VEM? POR QUE
VOCÊ ENTROU NA MINHA VIDA?” ................................................................... 46
3.2.3 Bia: a convidada para a festa filosófica nos jardins de Sofia .................... 71
E de repente o silêncio,
Com os passos da ilusão
Perseguem a criança-sonho
Pelas terras da invenção,
Falando a seres bizarros...
Uma verdade, outra não.
E assim que a história secava
As fontes da fantasia,
Em vão tentava o cansado
Desfazer o que tecia,
“Mais, só depois...” “É depois!”
Gritavam com alegria.
Forjou-se assim, lentamente,
O País das Maravilhas,
Está pronto para a casa
Já foi virada a quilha
Pela alegre equipagem
Sob um sol que já não brilha.
Com mãe gentil, entre os sonhos,
Alice! Guarda este conto
Na memória da infância,
Sob seu místico manto,
Grinalda que um peregrino
Colheu em terras de encanto.
(CARROL, 1998, p. 3-4).
15
A história a qual se pretende contar não é a de um conto de fadas. Até poderia ser,
se o espaçotempo3 em que me encontro fosse realmente um País de Maravilhas.
Uma personagem de uma dessa história, que é verídica, poderia ser Alice, e é
Alice4! Porém é uma Alice do mundo real, que sofre de Desordem Mitocondrial
associada à Deficiência Intelectual, mas que se aventura por um mundo tão
estranho, tão esquisito, tão mágico, tão encantador, quanto o da outra Alice. É muito
provável que essa duplicidade de “Alices” possa causar confusões. Não é esse o
objetivo! Todavia, pretende-se que essa possível troca, ora real ora imaginária,
provoque reflexões. O foco desta pesquisa não é somente ela! Entretanto, é
importante mencionar em diversas partes deste texto que foi por meio dela que o
meu interesse pelos alunos especiais se fez mais presente.
Esta é uma primeira parte da história a ser contada. Não há entre elas uma que seja
mais importante: ambas se complementam. A primeira impulsiona a segunda e a
segunda provoca reflexões sobre a primeira. A outra parte da história é a história de
Sofia, personagem que será conhecida mais adiante.
Para início, ouço, então, o Rei do “País das maravilhas”, e tentarei seguir a sua
ordem:
Comece pelo começo, disse o Rei muito sério, “e continue até chegar ao fim, então pare”
(CARROL, 1998, p. 164)5.
Carol e O Mundo de Sofia de Jostein Gaarder, com o intuito provocar reflexões, pausar a leitura, dar
um tempo: sincronizar o texto com a vida. Tais trechos serão grafados em fonte especial para dar
destaque e leveza e, ao mesmo tempo, “desnormatizar” a norma, fugir da modelização. O uso
desses trechos poderá causar troca de interlocutores. O texto, em geral é um diálogo direcionado ao
leitor, porém partes dele poderá ser um diálogo entre mim e Alice, ou entre mim e Sofia, personagens
dos livros. É necessário salientar que esta parte estética, apoiada pela literatura, música e poesia, é
de fundamental importância para a fluidez da pesquisa e aproximação com o universo dos sujeitos
envolvidos. Em alguns momentos dispensou-se propositalmente o uso da ênclise ou da próclise,
com o intuito de não fugir de mim mesmo.
16
Nesse momento, fiquei a pensar onde seria o começo. E, mergulhado nesse conto
de fadas, lembro-me do meu tempo de infância, das histórias contadas e que me
fascinavam, fazendo-me viajar, e assim me pergunto: mas é preciso ir tão longe?
Não corro o risco de trazer asneiras?
Atendendo ao impositivo do rei, resgato em meu auxílio uma história tão linda e tão
conflitante, que se apresenta metade louca e, por incrível que isso possa parecer, a
outra metade também. A história de Alice no País das Maravilhas nos envolve e nos
deixa ora insanos, ora reflexivos. Quem de nós nunca conversou com um bicho,
quer seja um gato ou um pássaro? Sentiu-se pequeno e grande? Perdido ou
achado?... Assim, sirvo-me do diálogo entre Alice e o gato, e reflito sobre aonde
quero chegar, ou de onde devo partir:
“Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar pra sair
daqui?”
“Isso depende bastante de onde você quer chegar”, disse o Gato.
“O lugar não me importa muito...”, disse Alice.
“Então não importa que caminho você vai tomar, disse o Gato
“... desde que eu chegue a algum lugar”, acrescentou Alice em forma
de explicação.
“Oh, você vai certamente chegar a algum lugar”, disse o Gato, “se
caminhar bastante.” (CARROL, 1998, p.84).
E assim, parto como Alice, nessa caoticidade que é o seu mundo e que também é o
meu, embora sejam mundos distintos. Vou chegar a algum lugar se eu caminhar
bastante. Mesmo que obstáculos sejam encontrados, ou até mesmo que nesse
caminho surjam “Rainhas de Copas” que mandem cortar a cabeça, ou “Chapeleiros
Malucos” que apontem charadas insolúveis.
Assim, nessa caminhada, dividido entre esses dois mundos, entre duas Alices (ou
várias delas) e, com isso, nem sei se eu continuo sendo eu mesmo, ou se já existe
um novo eu. Ora estou no país das maravilhas de Alice, ora no espaçotempo da
Alice de minha sala de aula. Enquanto uma é personagem principal de sua história,
a outra parece lutar e acreditar que o simples fato de ser percebida pelos outros, de
17
ser vista, de ser tocada, abraçada, a faz feliz. Dessa forma, materializa-se a
dicotomia dos dois mundos: dos sonhos e o real.
E, então, torno-me o professor que vê Alice, mas que não a enxerga e fica a se
preocupar sobre os saberesfazeres que são necessários para lidar com ela e ainda,
sobre as teoriaspráticasteóricas adequadas que é preciso desenvolver para ajudá-la,
já que a sua presença instiga imagensnarrativas. Alice é mais uma entre centenas
de meus alunos. É especial, como cada aluno deveria ser. Assim, entre tantas
reflexões, para entendê-las basta saber que ela é minha aluna, e devo percebê-la
desse modo.
Se está lendo este texto agora, provavelmente deve ser um professor, ou pretende
vir a ser. Por isso, sinta-se convidado a pensar em seus alunos especiais e a
problematizar sobre as imagensnarrativas feitas deles. Possivelmente, os seus
pensamentos foram na direção daqueles que são vistos como coitadinhos, como
18
Nesse contexto, Alice é minha aluna, sem ser; Alice faz parte da sala, sem fazer;
Alice é ser humano, sem ser. Assim, também sou professor de Alice, sem ser, pois é
bem mais fácil para mim, invisibilizá-la, como já feito com tantos outros que por suas
deficiências também foram invisibilizados. Alice impulsionou-me à pesquisa, abriu-
me os olhos, despertou-me os sentidos. Sua ausência8 conduziu ao envolvimento
com o mundo de Sofia9 e a trouxe para a pesquisa e, por meio delas, foi possível
perceber tantas outras crianças que necessitam da atenção de todo educador.
Desejo que este trabalho seja inspirador para novas pesquisas, que supere
(pré)conceitos, como superei, que amplie o horizonte como ampliei o meu e que, por
conseguinte, tornou-me melhor.
Para isso, foi necessário abrir a cabeça, escancarar de vez as portas do armário que
me prendia. E...
“Quando nos damos conta, passamos de lagarta à borboleta. Já analisou o quanto a lagarta sofre até
se transformar em borboleta? Por instinto, ela sabe que algo de muito grande acontecerá em seu
organismo e que terá que sair do cômodo e seguro casulo para enfrentar o desconhecido (MORAES,
s.d., s.p.).”
mundo do autismo e ao “mundo de Sofia”, já que não foi mais possível contar com a
presença de Alice, pois ela não pôde mais comparecer às aulas. Portanto,
estabeleceu-se uma dedicação a essa criança e a “seu mundo isolado”, ou de
maneira mais óbvia, aconteceu um sair do meu e adentrar/conhecer o seu, pois
talvez seja mais fácil o meu deslocamento (nesse momento) ao invés do dela para,
assim compreender um pouco mais desse “infinito particular”, desse mundo singular.
Por conseguinte, nessa perspectiva, houve neste trabalho uma procura direcionada
ao valorizar as diferenças, entender os limites e os avanços dos envolvidos nesta
pesquisa, colaborando, ouvindo, apontando caminhos, acertando, errando, mas,
acima de tudo, procurando colocar sentimentos e explorar os sentidos em todos os
momentos.
Nosso desafio está em problematizar essa confluência entre o cotidiano dos alunos
especiais e a matemática, e que precisa ser pensada, enredada, enlaçada com nós
que, ao mesmo tempo firmes, oferecem possibilidades de desatar outros que se
tornaram cegos, principalmente quando focada nesse público, uma vez que muitas
vezes sua deficiência é vista como a própria barreira da dificuldade.
Para tanto, a proposta foi acompanhar duas alunas especiais, Alice e Sofia, no
cotidiano escolar e em algumas atividades curriculares de alfabetização e processos
de contagens, desenvolvidas apenas com Sofia, uma vez que não foi possível a
participação integral de Alice no decorrer da pesquisa.
Para tanto, de forma mais específica propôs-se: (a) problematizar as redes tecidas
entre saberesfazeres e espaçostempos dos sujeitos envolvidos nas aulas de
matemática, (b) problematizar as relações, os encontros e os diálogos produzidos
em torno desses alunos, personificados nas figuras de Alice e Sofia e (c)
problematizar as produções dos sujeitos envolvidos na pesquisa em uma dimensão
ético-estético-político.
Pode ser que assim seja possível entender melhor a vida, pode ser que toquemos as
nossas Ilhas Afortunadas... É, pode ser!
Ou o poço era muito fundo, ou ela estava caindo muito devagar, pois teve bastante tempo
para olhar ao redor enquanto caía e para se perguntar o que iria acontecer a seguir (CARROL,
1998, p.13).
A história começa um pouco antes disso. Alice encontra um coelho que, às pressas,
corre em direção à toca. Ela não se surpreende com as falas do coelho “Oh, meu
Deus! Oh, meu Deus! Vou chegar tarde!”. Mesmo achando que deveria se
surpreender. Alice seguiu o coelho e adentra a toca sem sequer pensar como é que
iria sair dela de novo.
E, então, assim como Alice adentra uma toca sem pensar no que a espera, entrei,
por força do acaso, no curso de Ciências/Matemática. Nesse período, também tive
bastante tempo para olhar ao meu redor e me questionar, por diversas vezes, o que
iria acontecer a seguir.
A decisão de entrar para a Educação, em 1998, foi como sendo a última das minhas
escolhas. A maioria dos jovens do interior, - como eu que sou de uma pequena
cidade: Serra dos Aimorés – MG, sonha em ser médico pelo relevo dado a essa
profissão, ou então advogado. Ainda não sei se o sonho era meu, ou se era do meu
pai. Tornar-me “doutor” faria de mim o orgulho de meus pais e dos meus irmãos.
Entristecido, resolvi fazer o magistério para não ficar parado e assim tomei gosto
pela área. Excelentes professores me fizeram sentir a importância dessa profissão e
o quanto eu poderia ser importante na vida de meus alunos. Essa percepção ocorreu
quando surgiu a primeira oportunidade de substituir um professor na escola em que
havia estudado. Pois, o término do ensino médio permitiu a aventura e dar os
primeiros passos, embora titubeantes, para substituir uma licença para tratamento
de saúde de uma colega. A empolgação com o novo, o medo, a vontade de poder
ensinar os outros causaram insônia, porém também foi desafiador. A licença durou
apenas quinze dias, mas a satisfação de ter o dever cumprido, de saber que foi
importante para mim prevaleceu. Depois dessa, outras licenças surgiram e, assim,
cada vez mais adentrei o impressionante mundo da Educação.
Dois anos depois, algo me fez acreditar que sair da educação e ingressar em uma
outra carreira pública me faria mais feliz. Nunca entendi como alguém poderia estar
bem em uma sala de aula com todo o descaso e desmotivação que os professores
vivenciam, seja pelos alunos descompromissados, pelo salário degradante pago
pelo governo, pela falta de união da categoria, ou pelo desapego das famílias, entre
outros fatores. Então, voltei para Minas Gerais para servir a Polícia Civil daquele
Estado. Foram precisos exatos dois anos para perceber que havia me equivocado.
Tempos depois, conclui a faculdade, fiz pós-graduação à distância, também em
Matemática e resolvi voltar para a educação. Trabalhei nos municípios de Serra dos
23
Aimorés – MG, Lajedão - BA e, por fim, em Mucuri – BA onde fui concursado por
quase dois anos.
Insatisfeito e infeliz naquele momento, sentia que algo em minha vida não estava
completo. Bom sentir isso, bom saber que a vida nunca está completa. Isso estimula
a vontade de buscar mais, de correr atrás, de ir além, isso vivifica. Dessa forma,
resolvi fazer o concurso para professor de Matemática no Estado do Espírito Santo,
cargo ocupado até hoje trabalhando em duas cadeiras.
Primeiro, tentou olhar para baixo e descobrir onde ia chegar, mas estava escuro demais para
ver alguma coisa (CARROL, 1998, p.13).
Assim como Alice, que não enxergava por estar escuro, o pensamento sobre
inclusão implicada em cegueira pessoal. Porém, com as muitas pedras encontradas
pelo caminho da educação foram construídas paredes sólidas, ora de defesa e ora
de distanciamento do propósito de educador. Isso conduz à lembrança dos alunos
especiais, que por muitas vezes, são consideradas como pedras no caminho.
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
(Carlos Drummond de Andrade)
É muito provável que o poema de Drummond cause certo estranhamento, mas era
esse o sentimento ao ver um aluno especial em sala de aula e, além disso, havia a
dificuldade de se compreender a razão pela qual as diferenças dele o tornava
“especial”. Porque não era assim que eles eram vistos, mas sim como pedras no
caminho que precisavam ser contornadas! E, semelhantes às pedras, esperava-se
24
que ficassem imóveis, quietas, silenciosas. Todavia, isso seria apenas um paliativo,
pois a solução definitiva seria retirá-las do caminho.
11Esta expressão deve ser entendida com referência às necessidades de todos os alunos que, por
quaisquer que sejam os motivos, enfrentam obstáculos no processo educativo.
25
pelo seu comportamento, pelas suas falas em sala de aula, percebeu-se que era
“diferenciado”. Assim, encontrei-me diante do meu primeiro aluno completamente
invisibilizado.
Mais uma vez as crianças são “clichetizadas”, julgadas incapazes de aprender por
apresentar alguma deficiência, ou por serem diferenciadas, limitando-se, assim, suas
presenças em sala de aula como processo único de socialização. Processo esse
que, mesmo sendo importante, nem sempre acontece. E, então, o aluno especial é
invisibilizado mais uma vez, mesmo quando a ele é dado uma atividade mecânica,
repetitiva ou sem sentido com o objetivo único de mantê-lo ocupado, ou de atribuir-
lhe uma nota de avaliação.
Muitas vezes, adotei essa postura, isso porque compreender e aceitar o propósito da
inclusão implicaria em mais trabalho, mas posso afirmar que hoje tenho superado
essa fase. A postura adotada, assim, igualou-se a de muitos outros. Embora se
desconheça a forma de trabalho de outros professores, pode-se dizer que não havia
26
nada de especial nos planejamentos. Destarte, não importa qual prática o colega
realize, é preciso pensar em uma prática pessoal coerente. Essa perspectiva inicia
um novo olhar referente às questões inclusivas, que pouco a pouco começa a se
tornar comum no cotidiano, bem como contribui para modificar o fazer e o ser.
Alice foi uma dessas pedras transformadas em diamante. E seu brilho ofuscou o
meu preconceito!
“Quem sou eu e quem é você? Nessa história ainda não sei dizer...”
(Rock Estrela – Léo Jaime)
Em sua busca incessante, Alice envereda-se nos caminhos do País das Maravilhas.
Indecisa, reflexiva e um tanto perdida. Alice encontra uma grande lagarta azul,
sentada no topo de um cogumelo:
Quem sou eu? Essa é uma pergunta difícil de responder! Sou o que sou agora, e
serei mais do que sou daqui a pouco. Posso dizer sobre quem eu era, e antes de
começar a escrever sobre inclusão, quero colocar aqui a minha visão do que até
hoje pensava sobre ela. Porque o olhar para alguém que não considerava “normal”
em meio aos outros produzia uma angústia que apertava o peito. E onde se
localizava a diferença12, localizava-se também o preconceito, que fazia excluir,
repulsar, contornar a pedra, e nesses contornos entender que os atos pessoais
denotavam perversidade.
12 A diferença aqui empregada é vista como aquilo que difere da “dita” normalidade.
27
Por muito tempo me senti ilha! Por diversas, discriminei, apontei, julguei e me isolei.
Pois o desejo era estar junto daqueles que para mim eram normais, comuns,
“melhores do que eu”. Havia algo dificultando a minha aproximação àqueles que
sempre foram excluídos, era como se houvesse entre nós uma grande parede, uma
muralha.
[...] a questão das dificuldades ou dos problemas em aprender não pode ser
atribuída ao sujeito de forma isolada, senão teríamos que pensar, inclusive,
em dificuldades de “ensinagem”, dentre tantas outras dificuldade e
problemas que poderíamos supor. (FERRAÇO, 2008 p. 18).
Assim, ao encontrar Alice e conviver com ela, observou-se o quanto ela era feliz
estando ali, junto aos outros. Essa constatação deu início a um processo de
(des)construção de um mundo a partir do momento reflexivo realizado sobre aquilo
que até então era velado. E o medo existente agora consistia em não ser aceito por
ela. Alice não é gente como a gente, há uma pureza escancarada em seu rosto! Há
quem diga que Deus a colocou em nossas vidas para nos mostrar o quão pequenos
somos e aprender com ela. Colocou-a em minha vida para me mostrar que há
beleza naquilo que não considerava belo. Ela é especial!
Dessa forma, e com toda a dita ‘normalidade’, foi possível se ver no lugar de Alice e
passar a sentir as possíveis dores de ser discriminado, invisibilizado. E, na
perspectiva de se encontrar no outro, de se perceber no outro, de quebrar
preconceitos, é fundamental refletir:
13Cazuza
14Tradução nossa.
29
E agora, sobre o título desta seção. Pois bem, o conselho era para Alice ao receber
da lagarta um cogumelo: “um lado fará você crescer, e o outro fará você
diminuir” (CARROL, 1998, p.66). Já com o cogumelo nas mãos, Alice não
Já no País das Maravilhas, Alice (des)caminha a fim de buscar um sentido para toda
aquela loucura, até encontrar, quem sabe um dos personagens mais curiosos dessa
história, o gato de Cheshire.
Quanta tolice de Alice achar que não anda com loucos! E como disse o gato, somos
todos loucos. Afinal, todos possuem a sua dose de loucura. E sendo assim,
30
Seria preciso, então, partir da ideia de que deveriam existir dois mundos: um para
quem é julgado louco e outro para aquele que não é julgado louco! Que despautério!
Que loucura, uma vez que na condição de Simão Bacamarte15 estaria apto a fazer
isso e a construção da Casa Verde seria o mundo no qual os loucos poderiam viver
tranquilamente.
O fato é que Alice não está na Casa Verde! E, estando em um mundo que julgam
não ser o dela, tornam-na invisibilizada! Colegas não a veem, professores não a
percebem. Ela se torna, assim, mais uma na multidão que é discriminada e rejeitada,
como todas as minorias desrespeitadas em seus direitos, desejos, sonhos. Nesse
ponto, desponta a percepção de como a inclusão pode se tornar perversa. Nada é
feito por Alice, além de uma atividade qualquer, quando é feita, e muitas vezes
infantilizada, mecanizada - para que ela não fique sem fazer nada! Assim, deve-se
refletir sobre qual é o papel da escola com os alunos especiais, bem como o papel
de professor com todos os seus alunos.
fere o direito daqueles que não escolheram ser o que são. É indigna a discriminação
do ser humano por ser diferente seja qual for esta diferença.
Analisando por esse aspecto o discurso deste trabalho parece em vão. Mas não é
bem isso que acontece. Vive-se em uma sociedade a qual discrimina o que foge à
normalidade, o que “desvia” dos padrões julgados pela sociedade como aceitáveis.
É nesse sentido que se concorda com a necessidade de se estimular o diálogo,
Miranda (2011, p.12) explica que “para Vygotsky, a inserção da criança com
deficiência no meio social e cultural oportuniza-lhe a possibilidade de interação e
internalização de conceitos de forma a favorecer o desenvolvimento de suas funções
psíquicas superiores”. Há de se convir que não é correto existir qualquer tipo de
discriminação, menos ainda em um lugar de aprendizados, tão social e democrático
quanto a escola.
Inúmeras vezes ouve-se a fala de que a inclusão não é possível. E por diversas
vezes, com preconceito pessoal, desiste-se de tentar ensinar uma criança por julgar
que ela não tem capacidade de aprender por ser deficiente. Certamente, outros que
também já vivenciaram isso e não quiseram mudar jamais viram o sorriso
32
pois por uma semana ela se esteve ausente da escola, por não ter quem a levasse.
Eu a percebi feliz. Parecia que esta Alice havia feito daquele espaçotempo o seu
País das maravilhas.
“Gostaria de não ter chorado tanto!”, disse Alice, enquanto nadava ao redor, tentando
encontrar o seu caminho (CARROL, 1998, p. 30).
16 Funcionária contratada para auxiliar, na escola, o aluno especial em suas necessidades fisiológicas
e locomoção. Este servidor não pode permanecer em sala de aula com o intuito de orientá-lo em suas
tarefas curriculares, no entanto ela ajudava Alice também nas atividades curriculares.
17 Os diálogos transcritos do diário de bordo serão aqui inseridos neste modelo de caixa de texto.
33
Primeiro ele traçou uma pista de corrida, numa espécie de círculo (“a
forma exata não tem importância”, disse), e depois todo o grupo foi
colocado ao longo da pista, aqui e ali. Não houve nada de “Um, dois,
três, já!”, eles começavam a correr quando desejavam, por isso não era
fácil saber quando a corrida tinha chegado ao fim. Entretanto, quando
já tinham corrido por meia hora ou mais, e estavam de novo bem
secos, o Dodo de repente gritou: “Acabou a corrida!”, e todos
aglomeraram ao redor dele, ofegando e perguntando: “Mas quem
ganhou?” [...] Por fim, o Dodo disse: “Todos ganharam, e todos
devem receber prêmios” (CARROLL 1998, p.39, grifo do autor).
Refletindo um pouco mais sobre esse “faz de conta”, é assim que parece estar a
Educação Inclusiva, não se sabe por onde começar, pois não há “um, dois, três, já!”,
pois cada um tem o seu tempo. Não se sabe como incluir, pois não há forma exata
para isso, não há uma receita, cada ser tem a sua necessidade, e não se sabe
35
Parte das crianças especiais que está na escola acabam por se evadir, pois, muitas
vezes, o argumento do professor de não se sentir preparado ou de duvidar da
capacidade do aluno deficiente e, às vezes, a resistência da escola em acolhê-los,
contribuem para o não atendimento desse público em suas necessidades.
Alice não ficou muito surpresa com isso, pois já estava se acostumando a que coisas estranhas
acontecessem (CARROL, 1998, p.86).
Ainda mais cruel é a histórica invisibilização sofrida por esse grupo “especial” que,
por suas características diferenciadas, e nem sempre perceptíveis, são julgados,
estigmatizados e marginalizados.
Uma escola é inclusiva se ela for capaz de abraçar “às necessidades diversas de
seus alunos, acomodando ambos os estilos e ritmos de aprendizagem e
assegurando uma educação de qualidade a todos” (UNESCO, 1994, s.p.).
Com certeza, a inclusão é uma realidade cada vez mais consolidada na prática
escolar cotidiana. É um caminho sem volta e,
Ampliando a ideia de Heredero (2010), muitos nem sabem qual estratégia. Além
disso, outras questões que precisam ser exploradas ou respondidas consomem os
profissionais quando se deparam com um aluno especial. Entre elas, está o
tratamento dado a esses alunos e sobre o convívio deles com os demais, a
necessidade de se realizar uma análise capaz de verificar o nível de
felicidade/aceitação, e também da ocorrência concreta de uma socialização entre
37
eles. Além de repensar metodologias alternativas para trabalhar com esses alunos
no sentido de melhor atendê-los.
O trabalho para e pela inclusão se deve também ao fato de que é por meio da
interação entre os indivíduos que ocorre o aprendizado. Não se deve ater,
simplesmente, ao fato de que aprender seja somente o escrito, o falado ou o
estudado. Defende-se, portanto, a ideia de aprender, também, as relações sociais
necessárias para a vida em sociedade, tais como o respeito às diferenças, a
igualdade de direitos e a convivência pacífica. Não se refere apenas a minimizar as
atividades a serem desenvolvidas, infantilizá-las ou mecanizá-las a fim de mantê-los
ocupados, e sim desenvolver propostas que atendam as especificidades de cada
um.
Muitas vezes, o aluno especial não frequenta regularmente as aulas porque elas são
desconectadas da sua realidade, ou porque não lhe é ofertado a garantia e a
assistência devida. Estar na sala de aula, com os demais alunos, não significa
exatamente estar se socializando, mas é um passo importante para que esse e os
demais processos ocorram. “Vygotsky tem como um de seus pressupostos básicos a
ideia de que o ser humano constitui-se enquanto tal na sua relação com o outro
social” (OLIVEIRA, 1992, p.24).
Para o aluno autista, por exemplo, a socialização torna-se fundamental para o seu
desenvolvimento, pois
Essa questão da socialização tão comumente falada pelos educadores tem reduzido
os processos inclusivos dos alunos com deficiência ao simples fato de se fazer
presente, ignorando-se em que condições, qual o nível de aprendizagem, se estão
felizes e se realmente a socialização se manifesta.
Convém relatar que o primeiro contato com Alice revelou um sentimento de não ter
condições de trabalhar, de que “não contribuiria com seu aprendizado, que não fui
preparado para isso e, cheguei até dizer que não sou pago para fazer isso”.
Interessante observar como esses discursos pessoais são coletivos, tornam-se
cômodos clichês que mantêm muitos em uma zona de conforto. Parece que os
professores que não entendem a Inclusão Escolar, ensaia a fala de que ser/estar
capacitados para isso ou para aquilo. E, de fato, não se encontram suficientemente
preparados! Pois, pouco a pouco, a vida colabora nesse processo preparando,
desatando nós, construindo conceitos e (re)estabelecendo outros, cruzando destinos
e sentimentos.
Na certa sempre haverá lugares para Alice, mas nem sempre será convidada para
sentar. Nem todas as pessoas estão dispostas a acolher as diferenças. Mas, já que
sabiamente se impôs, mostrou que esse lugar também é seu por direito, que tal
contar um pouco de sua vida, um pouco desses (des)caminhos?
Se Alice tivesse desenvoltura para falar, certamente diria o quanto se sente bem
estando naquela escola. Comentaria também das saudades dos colegas, dos
professores, do recreio e até do namoradinho que em seus pensamentos julga ter.
Porém, Alice não tem essa facilidade.
É bem provável que teria percebido o jeito distanciado e indiferente que olhava para
ela e na certa falaria sobre isso também, e quem sabe completaria sobre as
mudanças que ela vislumbrou em mim.
40
Além disso, diria sobre os sentidos aflorados por essa experiência e pela força de
todos eles, que tornaram possível perceber o ser humano através da imagem
negativa que fazia dela. Surge, então, a percepção do quanto ela cresceu nesses
últimos meses, o quanto ela se desenvolveu, seja com os colegas, seja no
atendimento educacional especializado, seja na vida! E o quanto Alice faz cada um
crescer e refletir. Daí, pode-se dizer que é uma Alice feliz, apesar de suas limitadas
possibilidades.
Faz parte dos (des)caminhos de Alice as suas dificuldades, não restritas unicamente
à sua vontade ou às suas limitações. Porque, apesar de morar em uma localidade
próxima à escola, há adversidades para sua locomoção como o seu apartamento
ficar no terceiro andar de um prédio que não tem elevador. Assim, só é possível ir
para a escola se o pai estiver disponível, pois a mãe não tem forças para descer
com a filha os três andares de escadas.
Alice não fala sobre isso, não fala quase nada. Não em uma linguagem que se está
acostumada a ouvir ou a observar. Mas fala com o olhar, com o esboço de um
sorriso e de gargalhadas. Comunica-se com seus sentimentos. E quando fala ou
tenta se comunicar não é para reclamar. Entretanto, se Alice pudesse dizer, diria que
não é mais uma criança, apesar do tratamento infantilizado que lhe oferecem! Que
tem 18 anos e que não gostaria de ficar só brincando em sala de aula, ou que até
gostaria de continuar brincando com sua boneca que sempre traz em seu colo; que
gostaria de aprender também; que não gostaria de ficar o tempo todo desenhando,
pintando, ou parada, observando. Penso que Alice não culparia ninguém pelo fato
de ser como é! Não culparia os professores, por não saber desenvolver um trabalho
que possa realmente significar algo para ela. Não falaria de suas dificuldades de
41
Sendo assim, em meios a tantos ditos, Alice é personagem de uma história e não é
vista como protagonista dela: a história de sua vida, ou de “não vida”. E em vez de
protagonista, Alice é vista como anti-heroína, vilã, aquela que veio provocar o caos,
a desarmonia da sala de aula. Pobre Alice! Viva Alice! Que bom que ela consegue
provocar os sentidos e retirar todos do lugar comum!
Pobre Alice! Rica Alice! Ainda que sendo duas Alices ou várias delas, uma no mundo
real, e outra em um conto de fadas, a torcida é para que ambas tenham finais
felizes, e se encontrem com a felicidade; sejam sozinhas, seja com príncipes ou
princesas, seja com amigos ou família, mas que sejam felizes. Uma lá e outra cá, ou
juntas. E, mesmo estando elas em realidades tão distantes, ambas se aproximam
nesse diálogo entre o Rei, a Rainha e Alice:
Da mesma maneira como no País das Maravilhas, a Alice daqui também já foi
previamente sentenciada, embora haja contendas relativas ao veredicto, ainda assim
condenada à exclusão pelo fato de ser deficiente e, para muitos, inumana:
“Poderiam me dizer, por favor, disse Alice um pouco tímida, “por que
é que estão pintando as rosas?”
[...]
“Ora o caso é o seguinte, Senhorita, esta roseira deveria ser vermelha,
mas plantamos uma branca por engano, se a Rainha descobrir, vamos
todos perder a cabeça [...]” (CARROL, 1998, p. 105-106).
Porém, a Rainha não parece entender que não se deve pintar os outros com a
“nossa” cor. E não se pode perder a cabeça por causa desse mundo colorido. Não
43
A frase poderia ser até cômica se não fosse mais uma tragédia. Mais um dos
grandes absurdos desse teatro: a mesma pessoa que diz que “estão aqui só para
socialização” defende a reprovação dos mesmos. Não atingiram os objetivos!
Certamente aqueles do professor que se julgava despreparado para trabalhar com o
aluno especial. E o conselho decidiu que ela estava certa. Contra Alice ainda pesava
o grande número de faltas! O Conselho ratificou a decisão da Rainha!
“Acho que entenderia isso melhor”, disse Alice muito polidamente, “se o viesse por escrito.
Não consigo acompanhar muito bem o sentido assim de ouvido” (CARROL, 1998 p.123).
Ah, se Alice pudesse entender! Se pudesse brigar pelos seus direitos, certamente
teria questionado: “Garantia de acesso e permanência, inclusão, igualdade de
direitos”, e tantas outras conversas bonitas, tantos papéis e, haja personagens para
44
tantos teatros: um verdadeiro absurdo! E, para quê e para quem? Com certeza não
eram para Alice.
Contudo, a força de uma pressão da família dessa vez conduziu a uma reavaliação
da sentença dada, e se decidiu aprová-la! Afinal, não era sua responsabilidade a
escola não dispor um cuidador para auxiliá-la.
Bem nesse momento Alice sentiu uma sensação muito curiosa, que a intrigou bastante até
descobrir do que se tratava: ela estava começando a crescer de novo (CARROL, 1998, p.
152).
Alice não é uma personagem, não representa papel algum. Não é um fantoche que
se possa manipular. Alice é real, usa cadeira de rodas, não pode levantar-se dela,
andar e correr como as outras crianças, tem coordenação motora comprometida,
‘retardo mental’18, microcefalia, miopia alta, problemas de audição, entre outros
sintomas característicos produzidos pela falta de energia em suas células.
Continuou sentada, de olhos fechados, e meio que acreditou estar no País das Maravilhas,
embora soubesse que bastava abrir os olhos para que tudo se transformasse na realidade
monótona... (CARROL, 1997, p. 171).
- Sou o Ursinho Pooh – disse- É pena que eu tenha me perdido na floresta, pois de resto o
dia está lindo hoje. Sabe, eu nunca vi você...
- Talvez seja eu quem nunca tenha estado aqui – respondeu Sofia.
[...]
- Já ouvi falar de você, Ursinho Pooh.
- Então na certa você é Alice. [...] Você bebeu um líquido que fez você diminuir, diminuir, até
ficar pequenininha. Depois bebeu outro líquido que fez você crescer, crescer até ficar bem
grandona.
- Eu não sou Alice.
- Não importa quem somos. O mais importante é que somos
- Eu me chamo Sofia
- Prazer em conhecê-la, Sofia. Como disse, acho que você é nova por estas bandas
(GAARDER, 1995, p. 362 – 363, grifo do autor).
Alice não é a única aluna especial da escola. Além dela e outros, há também Sofia,
autista, e que não se destaca tanto pela sua deficiência. A escolha desse nome
remete à obra de Jostein Gaarder: O Mundo de Sofia, por existir a ideia precoce de
que o autista tem seu mundo próprio. À primeira vista, ela não destoa do grupo como
Alice. Tímida, fala pouco, apresenta dificuldade para se envolver com os outros.
19 Forma de agressão física ou psicológica, intencional e repetida, praticada por uma pessoa ou grupo
com a intenção de intimidar ou ofender alguém, podendo causar traumas, problemas de
relacionamento etc. (BECHARA, 2011, p. 358).
46
tenta lhe ensinar os deveres mesmo com dificuldades. Seu nome é Emy 20. A
dedicação de Emy à Sofia é tão admirável pois parece que Emy não tenta trazer
Sofia ao mundo “normal”, mas sim adentrar ao dela!
Contudo, foi preciso se desprender de Alice, pois ela foi “convidada a se retirar” do
seu País das Maravilhas por ordem da “Rainha de Copas”. Assim, prefiro pensar que
Alice vive em um mundo de sonhos e fantasias, e que possivelmente prefira assim!
Talvez, dentro da zona de conforto, seja melhor assim! Por isso, a reflexão gira em
torno do não ter feito muito por ela quando era seu professor, mas também do muito
que ela fez por mim! Esse fazer desemboca em um agradecimento por mostrar
novos caminhos, mesmo que ela não saiba. O fato é que a saída abrupta de Alice
produziu um grande choque e trouxe dificuldades para se desprender dela, o que
acabou por influenciar os rumos no decorrer desta pesquisa e, por conseguinte, a
fuga obrigatória para o mundo autístico de Sofia.
2.3 “SOFIA, SOFIA... QUEM É VOCÊ? DE ONDE VOCÊ VEM? POR QUE VOCÊ
ENTROU NA MINHA VIDA?”21
Quem é você?
Se ela soubesse! É claro que ela era Sofia Amundsen, mas quem era esta pessoa? Isto ela ainda
não tinha descoberto direito (GAARDER, 1995, p.15, grifos do autor).
Sofia tem 9 anos é a segunda filha de um casal que atualmente está separado. De
acordo com o laudo médico, apresenta autismo leve/moderado associado à
deficiência intelectual. É uma criança tímida e, ao contrário de muitas outras
crianças, tem dificuldades de comunicação e socialização, principalmente com quem
não tem a sua confiança. Sofia parece ter mesmo o seu mundo. Um mundo singular
em que só entra quem tem a sua permissão.
20 Nome fictício.
21 GAARDER, 1995, p.503.
47
Se me interesso por cavalos ou pedras preciosas, não posso querer que todos os outros tenham
o mesmo interesse (GAARDER, 1995, p.24).
Concentrada em sua pintura, vez ou outra solta algumas de suas frases que podem
parecer engraçadas, para quem a entende, ou para quem não a entende pode
parecer “má-criação”:
48
A linguagem usada por crianças com ASD pode ser repetitiva e não fluente.
Podem usar frases feitas que ouviram antes, em um vídeo, programa de TV,
escola ou de adultos. Na maioria das vezes, essas frases são usadas
adequadamente, mas têm um tom estranho, por exemplo, “Estou faminto
mãe” (de 101 Dálmatas). Alguns profissionais denominam isso de “ecolalia
retardada” (WILLIAMS; WRIGHT, 2008, p. 74, grifos do autor).
Essas frases ditas por Sofia, geralmente tem entonação diferenciada daquela usual.
O “isso aí, muito bem!”, por exemplo, é uma forma que a professora do AEE utiliza
para elogiá-la. Temple Grandin, em filme homônimo - que conta a história de sua
vida - repetia para sua tia, constantemente: “Você quer que eu abra o portão?” em
entonação semelhante à de um filme que possivelmente marcou em sua memória.
Na sequência, essa personagem será abordada com mais profundidade.
DSM-IV CID-10
É muito importante que os pais estejam atentos ao comportamento dos filhos, pois
quanto antes perceberem atitudes autísticas, maiores são as possibilidades de
auxiliar no desenvolvimento dessas crianças.
O que você pensaria? Bem, isto não importa. Mas será que já passou pela sua cabeça que você
pode ser uma marciana? (GAARDER, 1995, p. 28).
É lógico que Sofia não é uma marciana, nem personagem criada para compor uma
história. Sofia é autista, e nem por isso deve ser percebida como uma extraterrestre,
como alguém que foge à normalidade.
Atualmente, Sofia é aluna do 3º ano do ensino fundamental I, não sabe ler e nem
escrever e isso significa afirmar que Sofia não sabe fazer a leitura dos textos
escritos, não sabe representar o que é solicitado que ela escreva: “a, e, i, o, u” para
50
começar seu processo de alfabetização, e também não sabe contar, limitando seus
interesses na escola pelo desenho e pintura.
Sofia não é tão diferente dos demais alunos, pois demonstra já ter vivenciado
situações cotidianas em que os conceitos de números são utilizados. Entende-se
que a numeralização (ou alfabetização matemática) também seja importante para a
sua autonomia na tomada de decisões. Dante (1996, p.15), evidencia o fato de que
“Não há uma só criança que não saiba nada. Alguma coisa ela sempre sabe. O
ponto de partida de qualquer atividade é este: o que ela já sabe, por mais simples
que seja”.
Com o intuito de iniciar esse processo de contagem, deve-se que este se inicia antes
mesmo de as crianças chegarem à escola. A maioria delas já chega à escola
sabendo contar e com noções de quantidade. A contagem, então, passa a ser o
52
- Isto soa tão místico que vou precisar de um tempo para conseguir digerir. Mas gostei dessa
última frase que você disse (GAARDER, 1995, p. 395).
Muita calma, Sofia, eu sei o quanto esse tema pode não ser envolvente para você!
Voltemos então à discussão sobre o autismo.
Tal desinteresse pelo outro é explicado por estudiosos por meio da Teoria da Mente
(TOM).
Era o Coelho Branco, voltando a passos lentos e olhando ansiosamente ao redor, como se
tivesse perdido alguma coisa. [...] Alice logo compreendeu que ele estava atrás do leque e do
par de luvinhas brancas, e muito bondosamente começou a procurá-los [...] (CARROL, 1998,
p.46).
Por isso propus-me a buscar respostas: as minhas respostas! A procurar o meu par
de luvinhas brancas. Ou então, a cavar mais perguntas: O que eu vou fazer? Onde
encontrar? Quem já disse isso? E assim, estava decidido e inseguro, sentindo o
peso e o alívio de investigar os sentidos dados ao autismo, os cotidianos e a
matemática. Sentindo-me um pouco do lagarto à espera do recado dado pelo
coelho.
De súbito, surgiu um pouco de tristeza com tal busca, pois não havia fontes para
“matar” completamente a minha sede desses conhecimentos entrelaçados. Umas
discutiam as temáticas do autismo e da Matemática, outras cotidianos e currículo e,
nenhuma delas envolvia integralmente os temas de nossa proposta. No entanto, a
frustração pelo desencontro também foi motivadora, e nossa tentativa de descrever
tais processos impulsionaram a pesquisa.
E, assim dialogando com Robers (2013) tomei a liberdade de usar as suas, e agora,
nossas palavras
E, por mais de uma vez, das inúmeras vezes, foi o meu orientador que me
tranquilizou. E o meu medo era sempre o “E se não der certo?, “E se eu não
conseguir ensiná-la?” Então, pude entender que os conceitos de certo e errado,
aqueles que me amedrontavam, poderiam não ter tanta importância ou sentidos.
Tão importante quanto a primeira, esta tornou possível aprofundar um pouco mais a
respeito dos processos metodológicos e compreender que “esse tipo de pesquisa
não pretende explicar uma realidade dada ou apreensível e que antes, ela prioriza
as perguntas ao invés das respostas” (OLIVEIRA, 2103, p. 27).
24Oliveira utilizou uma escolha linguística e política por uma grafia que não eleja um gênero
(masculino ou feminino) como norma-padrão, sendo esta uma tendência nas produções dos Estudos
Feministas e da Teoria Queer.
58
Essa pesquisa causou muita preocupação porque compará-la com este trabalho, e
também com a das outras colegas, produziu apreensão e certo nervosismo: “Meu
Deus, tá tudo errado, não está igual, nem parecida!” Contudo, despontou a
descoberta de que não tinha que ser igual ou parecida, mas sim ser única, singular,
exclusiva, minha essência, meus sentidos, minhas lutas, minhas observações...
Com uma proposta bem similar à esta pesquisa, Nunes, Azevedo e Schmidt
destacam o trabalho de Pedrosa (2010), que analisou as interações de uma criança
autista com seus colegas, com sua professora e demais funcionários da escola.
Dessa forma, embora surgisse o cansaço provocado pela leitura, recorria-se a outros
meios de informação e foi o filme Temple Grandin que possibilitou finalmente
compreender que todos possuem capacidades de aprender, basta apenas encontrar
o meio apropriado, sensibilidade, paciência, orientação e acima de tudo, é
necessário acreditar no próprio potencial e também no potencial das outras pessoas.
Grandin sempre teve apoio familiar e incentivo aos estudos, pois demonstrava
notáveis habilidades. Como qualquer outra criança especial, sofreu com as
perseguições nas escolas pelos colegas e com o (des)preparo de professores. Até
que um desses professores acreditou nela e viu a mente brilhante que possuía.
Temple Grandin é PhD em engenharia agropecuária e uma respeitada especialista
no assunto, é professora na Universidade do Estado do Colorado (EUA) e autora de
diversos livros sobre autismo.
61
Se para isto você tem de perder-se enquanto Sofia Amundsen, então talvez sirva de consolo o
reconhecimento de que um dia terá de perder este “eu cotidiano”, de uma forma ou de outra
(GAARDER, 1995, p. 154).
Não é por menos que o condutor desse chá seja o Chapeleiro Maluco e, por isso,
justifica-se o título deste capítulo. Nele, os convidados discutem a seu bel- prazer
sobre o assunto que lhes convêm, conforme diz a Lebre de Março “Então deveria dizer
Paralelamente a esse chá, Sofia resolveu convidar os seus amigos para uma festa
filosófica:
- Querida Sofia! [...] Gostaria de lembrar a todos que esta é uma festa filosófica. Por isso,
vou fazer um discurso filosófico (GAARDER, 1995, p. 510).
Assim, resolveu-se juntar a esse chá um pouco dessa filosofia. Por isso, este
capítulo abordará o referencial teórico, contudo, é preciso lembrar que ele será
conduzido por uma espécie de Chapeleiro Filosófico Maluco, e a qualquer tempo
também serão abordados o método utilizado, o local e os demais convidados desta
pesquisa.
Não, senhor Chapeleiro! Não seja tão maluco! Venda os seus chapéus que não são
seus como disse ao Rei, “Eu os tenho para vender” (CARROL, 1998, 152). E não me
venha com essas esquisitices: como vou saber “Por que um corvo é parecido com uma
escrivaninha?” (CARROL, 1998, p. 91). Não ouso te responder isso. No entanto, gosto
do jeito de como vê as coisas, de como leva à vida, ou de como ela te leva! No
fundo, acho que gostaria de ser como você ao conduzir esta pesquisa, a pensar
como você e a revirar do avesso essas teorias e métodos diferenciados que me
foram apresentados, sem me preocupar tanto, sem me esgotar tanto, sem me
esquecer tanto... Talvez você seja capaz de mostrar-me o caminho.
“Não me lembro!”, disse o Chapeleiro (CARROL, 1998, 155).
A vida é simples ou complexa? A teoria dos caos diz que pode ser as duas
coisas, e mais – pode ser ambas ao mesmo tempo. O caos revela que o
que parece incrivelmente complicado pode ter uma origem simples,
enquanto a simplicidade superficial pode ocultar algo de assombrosa
complexidade (BRIGGS; PEAT, 2000, p. 81).
É só uma questão de saber através de que lentes você observa tudo isto
(GAARDER, 1995, p. 271).
Para Certeau (1996, p. 207), “a vida entretém e desloca, ela usa, quebra e refaz, ela
cria novas configurações de seres e objetos, através das práticas cotidianas dos
vivos, sempre semelhantes e diferentes”. Nesse sentido, as pesquisas no/do/com os
cotidianos dedicam a estudar as representações e/ou os comportamentos na
sociedade e, “graças ao conhecimento desses objetos sociais, parece possível e
necessário balizar o uso que deles fazem os grupos ou os indivíduos” (CERTEAU,
1994, p.39).
Acho que entendo o que ele quer dizer. Mas não me agrada o pensamento de que não sou eu
quem decide sobre mim mesma (GAARDER, 1995, p. 272).
64
[...] o espaço privado deve saber abrir-se a fluxos de pessoas que entram e
saem, ser o lugar de passagem de uma circulação contínua, onde se
cruzam objetos, pessoas, palavras e ideias. Pois a vida também é
mobilidade, impaciência por mudança, relação com um plural do outro
(CERTEAU, 1996, p. 207).
Atualmente, a escola possui cerca de 900 alunos matriculados, sendo que 9 são
“especiais”. Do público chamado especial, 8 possui laudos médicos e/ou
psicológicos, e 5 deles participam do Atendimento Educacional Especializado (AEE)
no turno oposto às aulas regulares.
Assim, volto a me reportar com o Régio, a não me definir, a não me limitar e a ser
essa metamorfose ambulante tão quanto a música cantada por Raul Seixas, tão
66
quanto o poema do José Régio... tão constante e inconstante, tanto caos, quanto
serenidade, e a observar esse vendaval de diversidades, que é a vida e, é isso...
Pois essa pluralidade fascina, essa diversidade alimenta, guia em busca de uma
igualdade que difere uns e outros, são esses locais em que a vida acontece que
permite sonhar, pesquisar, colaborar, e respeitar o ser em sua singularidade e os
seres em suas multiplicidades. Para Certeau (1994, p. 38), cada individualidade é o
lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas
determinações relacionais.
Nesse sentido, ao perceber o mundo do autista, das (não) relações pelas quais
Sofia passa na escola e daquelas vividas por Alice, refletiu-se sobre suas
individualidades, suas singularidades, suas subjetividades e coube o pensar sobre “o
que dizer dessa história muda?” (CERTEAU, 1994, p. 35), ou o que dizer dessa
“encenação da vida cotidiana” (CERTEAU, 1996, p. 38) que a escola supõe propor
aos seus alunos? Ao pensar o cotidiano desses alunos especiais, reflete-se ainda, à
luz do autor “os efeitos marcados por esses heróis obscuros de que somos
devedores e aos quais nos assemelhamos” (CERTEAU, 1996, p. 32). Há de se
considerar que se aprende muito a cada dia, com cada ser e isso conduz a pensar o
porquê de sermos também especiais.
Sofia e Alice são como esses heróis obscuros retratados por Certeau; são heroínas
de si mesmas, vivem inocentemente alegres apesar das adversidades encontradas
em seus caminhos, apesar das atividades infantilizadas e mecanizadas com o fim de
torná-las ocupadas.
quase que dizer que elas são excluídas por suas próprias responsabilidades; “[...]
metáforas de uma disseminação da língua que não tem mais autor, mas se torna o
discurso ou a citação indefinida do outro” (CERTEAU, 1994, p. 59). Alguns desses
discursos são muito naturalizados:
Por ela não conseguir aprender, por não prestar atenção ou ainda, por que ‘eu’ não
fui preparado para trabalhar com crianças especiais.
O autor ressalta que as pessoas tendem a culpar o outro por aquilo que é de
responsabilidade própria (CERTEAU, 1994). São os clichês criados em torno
daqueles que, para um conforto pessoal, é mais fácil responsabilizá-los pela
ignorância alheia.
Desse modo,
Alice não gostou nem um pouco do tom desse comentário, e achou melhor mudar de assunto.
Enquanto tentava se decidir por um tema [...] (CARROL, 1998, p. 78).
Certo, enquanto Alice não se decide, outro parêntese será aberto para descrever
dois convidados de Sofia bem curiosos deste chá filosófico: A Duquesa, professora
da sala de aula na qual Sofia estuda e Bia, professora do Atendimento Educacional
Especializado, velha conhecida de Alice.
3.2.2 A Duquesa25
25Apesar de reproduzida a realidade sobre esta personagem/professora não foi nossa intenção
culpabilizá-la por seus atos que, antes de qualquer julgamento, lembremos que é humana e por isso,
passível de falhas. Reconheço-me por vezes em suas ações e por isso, ao representar os seus atos,
também represento vários que outras vezes foram praticados por mim.
69
Duquesa: Nada do que faço consegue prender a atenção de Sofia e, pois já que não
sabe ler ou escrever, vive a desenhar e pintar e, por não ser alfabetizada combinei
com a professora do AEE para que fizesse isso por ela.
Ainda que tenha passado pelos cursos de formação destinados à Educação Especial
e à alfabetização, a Duquesa não se sente capacitada em trabalhar com crianças
com necessidades especiais. Nas aulas presenciadas pelo pesquisador não houve
atividades diferenciadas planejadas, exclusivamente, para Sofia, ou que partissem
das dificuldades dela, ou ainda aulas que motivassem a sua atenção, ou dos demais
alunos. Sofia não faz avaliações e nem sempre recebe as atividades que os demais
alunos recebem. E como observado, vive a desenhar e pintar, enquanto a professora
ocupa-se, parte do tempo de suas aulas, sentada em sua mesa realizando algumas
atividades e aguardando que os alunos terminem os exercícios propostos.
“Oh, não me amole!”, disse a Duquesa. “Nunca suportei números.” (CARROL, 1998, p. 80).
No primeiro dia de investigações, ela advertiu que não seria permitido filmar, gravar
ou fotografar as suas aulas. A Duquesa é uma professora do tipo tradicional,
daquelas que reclamam se um aluno olha para o colega do lado, ou conversa com
outro. Os alunos se comportam “bem”, costumeiramente educados. Talvez esse
‘bom’ comportamento é movido por medo à professora, que normalmente resolve
toda a indisciplina com um olhar ou um falar mais alto. Nas aulas observadas,
comenta sobre assuntos diversos, não pertinentes ao seu trabalho, como conversas
de corredores, problemas com familiares de alunos, desentendimentos entre colegas
de trabalho, festas entre outros assuntos. Enquanto estive presente, várias dessas
conversas foram escutadas na presença de todos os alunos. Volta e meia, ela
buscava afirmação dos mesmos com a frase:
70
Duquesa: Não foi gente? Não foi verdade? A mãe [da aluna tal] não quis me bater?
Mas não havia essa aproximação! Essa re-flexão de verbos e ações. A Duquesa não
gostava de ser amolada, desafiada, e até mesmo importunada. A Duquesa não lhes
dava atenção, nem mesmo quando a atingiam (CARROL, 1998, p.79). Pobres crianças! Por
vezes houve o receio de que os alunos não a confirmassem. Eu mesmo jamais
confirmei com palavras algumas de suas frases, não queria criar atritos ou
comprometer a pesquisa, e então, ouvia tudo silenciosamente.
[...] pode ser que você um dia tropece em si mesma. Pode ser que um belo dia você para o
que está fazendo e passe a se ver de uma forma completamente diferente (GAARDER, 1995,
p.28). Acho que eu levei esse tropeção, esse topada no peito do pé que
ocasionalmente a vida nos dá, para que possamos também olhar para baixo. Eu me
via nas ações da Duquesa.
Entretanto, “o que alguns veem como limitação, como algo apenas negativo, outros
veem como condição de possibilidade para que algo exista, portanto algo afirmativo”
(FIGUEIRA, 2014, p. 62). Essas pessoas não desvinculam o pensamento da vida e
enxergam o deficiente como o ser humano normal que é, ou seja, não limitando as
suas capacidades às suas deficiências. Uma dessas pessoas cuja alegria expandiu
a minha mente é a Bia, a professora do AEE.
Sofia tinha sérias dúvidas sobre isto (GAARDER, 1995, p. 118).
Pode-se compreender perfeitamente o ponto que Sofia duvidava, pois também tive
momentos de incertezas de mim mesmo, dos outros e de tudo! Mas, em alguns
desses momentos era preciso acreditar. Dessa forma, a figura da Bia provocou
dificuldades em atrelá-la a algum personagem dos livros, sendo necessário dizer que
ela se tornou uma convidada especial, ou, quem sabe, ela se aproxima do professor
Alberto do livro ‘O Mundo de Sofia’, ou da Lebre de Março ou do Chapeleiro Maluco
de Alice...
- Desculpe se começo a ficar irritada com todas essas alusões misteriosas (GAARDER, 1995,
p. 521).
Não são misteriosas, Sofia: Bia ora se assemelha a um e ora se assemelha a outros,
e essa é a sua essência. Te peço paciência, uma hora tudo se esclarecerá!
que combinou? Bia é contratada pelo Estado para trabalhar 40 horas nessa escola.
É graduada em Educação Física, com as seguintes especializações (a)
Psicomotricidade, (b) Filosofia e Psicanálise na Educação (c) Psicopedagogia e (d)
Educação Especial e Inclusiva, além de vasta experiência educacional na
PESTALOZZI e APAE.
O atendimento à Sofia ocorre nas segundas e quartas-feiras, das 10h às 12h, porém
recentemente acrescentou também as sextas-feiras, por sentir necessidade de
desenvolver atividades de coordenação motora com Sofia. Bia é uma profissional
que demonstra preocupação com o aprendizado de seus alunos especiais, busca
recursos diferenciados e utiliza de métodos diversos para o ensino e a
aprendizagem. Sempre que possível, procura entrar na sala de aula de seus alunos
para acompanhar o trabalho do professor e, com isso, pensar em recursos que
aproximem o conteúdo ao aluno em sala de aula e, posteriormente, reforçá-lo no
AEE.
Bia reclama da falta de interesse de alguns professores em planejar com ela, em sua
maioria, dizem que “estão ocupados demais, com serviços demais e provas demais
para corrigir”. Às vezes se emociona e desabafa por se encontrar “sozinha” nessa
luta. Relata, com tristeza, que desenvolve materiais para que os professores
trabalhem em sala de aula com esses alunos – sem ser essa sua obrigação –
porém, queixa-se que esses materiais ficam guardados nos armários e nunca viu
ninguém utilizá-los. Outro dia, ligou-me em prantos para dizer que Sofia não queria
entrar na sala de aula e que já não sabia como proceder, pois não era a primeira vez
que isso acontecia.
“Aquela que faz alguém feliz!” Poderia ter definição melhor para ela? Bia sempre
estava disposta no trabalho. Sempre sorridente, alegre, contagiante. E também tão
envolvida com a causa dos alunos especiais. Outro dia, após chegar à escola,
encontrei Alice com seus pés em cima dos pés da Bia e, como se fossem uma única
pessoa, andavam pelos corredores, pacientemente, com sorrisos largos e
contagiantes. A Alice que antes era invisibilizada estava agora ensaiando com Bia
73
alguns pequenos passos, sendo tocada, beijada, abraçada, sentida, cada vez que
correspondia a um estímulo!
Convém ressaltar a diferença feita pelo e com o trabalho realizado pela Bia entre
tantos outros alunos! Poderiam dizer: “mas ela é paga para isso!”, “Não faz mais do
que sua obrigação!”. No entanto, Bia é uma pessoa especial por se entregar assim
ao seu trabalho. Há tantas outras pessoas que também são pagas para isso ou
aquilo, todavia o máximo que fazem é entregar uma atividade qualquer para ocupar
o tempo do aluno e este não atrapalhar o seu. Haveria mil coisas para falar de Bia.
Contudo, uma dos mais importantes foi um dos nossos diálogos em que conversei
com ela sobre a preocupação em terminar esta pesquisa com Sofia e sobre o receio
de elas não estarem nessa escola no próximo ano, pois isso dificultaria conduzir os
próximos passos da pesquisa. E a “quebra” da rotina ocasionada pela saída de
Sofia, complicar a sua vida.
Bia: “Jan, eu pretendo continuar nesta escola! Apesar de todos os percalços (que
você sabe quais são) eu gostaria de continuar aqui!”
Jan: “Mas e Sofia, será que continua?”
Bia: “Vou ligar para a mãe dela para saber!”
Utilizando-se de empatia, Bia ligou e, por meio do viva-voz, assim que a mãe de
Sofia, Dona Júlia26, atendeu, Bia iniciou um diálogo com ela perguntando o que era
preciso saber e a resposta soou como música aos nossos ouvidos:
Dona Júlia: Ela vai estudar onde você for trabalhar, pois em nenhuma outra escola
ninguém deu tanta importância à minha filha como você dá!
Nesse momento, com a emoção aflorada, passei a refletir sobre aquilo que é
possível e necessário fazer por essas crianças e suas respectivas famílias. Bia,
realmente se entrega ao seu trabalho, se envolve com ele. Apesar de esperar por
26 Nome fictício.
74
resultados ‘concretos’, Bia não perde a paciência quando um de seus alunos não
responde ‘corretamente’. Às vezes, o apego se encontra direcionado tanto aos
conteúdos, às avaliações, às notas, que culmina no esquecimento do que é
primordial nesse processo: as relações, as negociações, as trocas condensadas em
aprendizado.
Sofia nunca tinha pensado a este respeito. Mas quanto mais pensava
sobre o assunto, tanto mais claro lhe parecia que, no fundo, saber que
não se sabe também é uma forma de conhecimento. De qualquer
modo, não lhe ocorria nada mais estúpido do que pessoas que batem o
pé em suas opiniões sobre coisas das quais não fazem a menor ideia
(GAARDER, 1995, p.74).
Fecha parênteses!
Para mim que a observo, posso perceber que Sofia existe, e que Alice ‘re-siste’,
contudo não posso fazer delas o meu ponto cego, como um pintor e o ponto
invisível. No entanto, se não me coloco no lugar delas, no lugar deles, esqueço que
esse ponto também sou eu, é você,
75
[...] pois esse ponto somos nós mesmos: nosso corpo, nosso rosto, nossos
olhos. O espetáculo [...] é portanto, duas vezes invisível: uma vez que não é
representado no espaço do quadro e uma vez que se situa precisamente
nesse ponto cego, nesse esconderijo essencial onde nosso olhar se furta a
nós mesmos no momento em que olharmos. E, no entanto, como
poderíamos deixar de ver essa invisibilidade, que está ai sob nossos olhos
[...]? (FOUCAULT, 1999, p. 4).
Esse ponto cego é representado por mim quando ignoro a presença de Sofia e de
Alice em sala de aula e deixo-as à mercê de atividades, muitas vezes, não
planejadas para elas. Esquecidas, escurecidas e até mesmo “apagadas”.
Complementando essa reflexão à luz das ideias foucaultianas e o exercício do
poder, ele esclarece que:
E então, esses sujeitos viveram por muito tempo nessa penumbra provocada pela
falta de luz em alguns olhares, enquanto outros captam a essência por trás desses,
assim como nós, “seres ordinários” (CERTEAU, 1994). E, no entanto, “essa tênue
linha de visibilidade envolve, em troca, toda uma rede complexa de incertezas, de
trocas e de evasivas” (FOUCAULT, 1999, p. 5). Se são percebidos, os profissionais
se julgam incapazes e se apóiam na necessidade de capacitação, aprimoramento,
entendimento para trabalhar com eles; se invisibilizados, ignoram-se as
responsabilidades. Se são sentidos, há muito o que aprender com eles, se são
excluídos deixa-se de vivenciar, quem sabe, o mais puro e verdadeiro sentimento.
Desse modo, no palco em que todos somos protagonistas, “só dirige os olhos para
nós na medida em que nos encontramos no lugar dos seus motivos” (FOUCAULT,
1999), cabendo questionamentos sobre essa grade curricular muitas vezes
desmotivadora, ou pelas aulas desestimulantes lecionadas, que não provocam nem
estimulam a curiosidade de nossos estudantes.
[...] Sofia lembrou-se muito bem de situações nas quais sua mãe ou o professor da escola
tinham tentado lhe ensinar alguma coisa para a qual ela não estava receptiva (GAARDER,
1995, p.74).
76
responder. Dessa forma, que formação cidadã poderia ser dada se nem mesmo
aceitava o deficiente em sala de aula; se continuava a ensinar conteúdos tão
desvinculados da prática e alguns deles nem, ao menos, sabia relacioná-los em seu
propósito. Serviria para brincar quando um aluno perguntava: “Pra que estudar
isso?” E a resposta viria certeira: “Quem sabe um dia você não se torne um
professor!” Essa sempre foi uma resposta a conteúdos de grades curriculares nem
sempre entendíveis e praticáveis em detrimento à valorização do que realmente
poderia ser realidade para o estudante.
mas sim a todos, à coletividade, a uma escola que inclua verdadeiramente a todos,
sem qualquer distinção.
Nesse ponto,
Para Mantoan (2006, p. 192), “as propostas educativas devem ter como eixo o
convívio com as diferenças, a aprendizagem como experiência relacional,
participativa, que produz sentido para o aluno”. É preciso desenvolver uma
pedagogia centrada na criança.
É claro que, às vezes, a tendência é proteger aqueles que são mais frágeis, com um
olhar acolhedor, de sensibilidade e até mesmo por sermos humanos. Por isso é
preciso se lembrar daqueles cujas deficiências não estão tão explícitas. Essa
questão trouxe à lembrança a música cantada por Chico Buarque que expressa
muito bem a realidade com beleza e suavidade.
Ciranda Da Bailarina
Chico Buarque/Têtes Raides
Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira
Berruga nem frieira
Nem falta de maneira
Ela não tem
Futucando bem
Todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem um irmão meio zarolho
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida
Nem dente com comida
Nem casca de ferida
Ela não tem
79
Confessando bem
Todo mundo faz pecado
Logo assim que a missa termina
Todo mundo tem um primeiro namorado
Só a bailarina que não tem
Sujo atrás da orelha
Bigode de groselha
Calcinha um pouco velha
Ela não tem
O padre também
Pode até ficar vermelho
Se o vento levanta a batina
Reparando bem, todo mundo tem pentelho
Só a bailarina que não tem
Sala sem mobília
Goteira na vasilha
Problema na família
Quem não tem
Procurando bem
Todo mundo tem...
Para Alves (2012), “o entendimento desse dentrofora nos faz compreender que é
impossível aos processos desenvolvidos nos currículos escolares não incorporarem
os processos sociais mais amplos”. Desse modo, nessa linha de pensamento, tornar
invisível os problemas acometidos na vida, e na vida escolar, e aquilo que é tão
visível, não colabora para o desenvolvimento social cidadão. É desumano ver uma
criança precisar de ajuda, procurar aprender, querer ser vista, bem como fingir não
enxergá-la.
Mundos plurais onde caibam todos. Mundos que possam nos ajudar a
escapar dos discursos de discriminação do outro. Mundos que nos ajudem
a resistir aos perversos olhares e discursos que, de tão naturalizados, não
conseguem ver que a vida se gosta e sempre insiste em continuar sendo
vida, e que a escola pode e deve contribuir para esses processos de
alargamento dos mundos-vidas de seus sujeitos (FERRAÇO, 2011, p. 12,
grifo do autor).
Com certeza, não há uma receita para fazer ‘dar certo’ e muito menos uma varinha
de condão para resolver os problemas da vida, pois a vida, se (re)inventa, se
transforma, vivifica. Torna-se sim válido o aprendizado e o esforço para se conhecer
e se compreender melhor a educação inclusiva, não em uma perspectiva de olhar
para o aluno com necessidades educacionais especiais com um olhar de pena, de
81
compaixão, mas principalmente pelo fato de serem pessoas, que como tal
necessitam, entre tantos, do aprendizado, da convivência e da atenção.
Também já passei por isso Sofia, na certa Alice também. Eu também pensava a
respeito disso e daquilo, só não perguntava muito. Naquela época, criança não
deveria ser tão curiosa! Não deveria fazer perguntas desviantes do conteúdo!
Todavia, sua reflexão provocou um desvio para outro campo, e agora surge a
necessidade de falar um pouco sobre o método e aquilo que ainda falta dizer.
“Vamos, já consegui realizar metade do meu plano! Como são intrigantes todas estas
mudanças! Nunca sei ao certo o que vou ser no próximo minuto! Voltei ao meu tamanho
normal, agora é entrar naquele lindo jardim... Mas como é que vou fazer isso?” (CARROL,
1998, p. 72).
Calma, Alice, por acaso você foi convidada para a festa filosófica que Sofia está
fazendo no jardim de sua casa? Sabe ao menos como tudo foi feito? Que material foi
utilizado?
A vida tem sons que pra gente ouvir
Precisa entender que um amor de verdade
82
Para responder às perguntas feitas à Alice, mais um parênteses será aberto para
descrever o que foi possível observar-conversar-investigar-sentir-ouvir-silenciar-
interpretar durante a pesquisa, quais materiais foram utilizados e como a
investigação foi realizada.
, iniciar um texto, sem mais nem menos, apenas com uma vírgula cabe a pessoas
ousadas como Clarice em seu livro “Uma aprendizagem ou livro dos prazeres”. Que
deslumbre! Que intrigante! Que curioso! Quanta ousadia de alguém que escreve tão
lindamente desafiar a língua portuguesa dessa maneira. Olha Clarice
desnormalizando a norma! Subvertendo, colocando acima dessas regras o seu jeito
peculiar de ser, de escrever.
Contudo, antes de iniciar seu livro daquela maneira, Lispector menciona a respeito
dessa escrita, em uma nota:
Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim.
Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu (LISPECTOR, 1998).
Foi preciso essa liberdade para escrever, minha pesquisa exigiu! Nesse espaço me
tornei dois, sendo um eu mais forte que o outro. O mais fraco era aquele que seguia
83
as normas, comportado, alinhado, e o mais forte era aquele que não se preocupava
com a ênclise, com a próclise ou com a mesóclise, escrevia mesmo “me sentia, ao
invés de sentia-me, usava fontes diferentes: “Você usa vários tipos de fontes
diferentes”, “Não estou acostumado com essa liberdade de sua escrita”, “Tá
enfeitando demais o pavão!”, “Nossa, quanta frescuragem!”... Se eram críticas ou
elogios não me preocupavam, pois
Este não é um livro de história. A escolha que nele se encontra não seguiu
outra regra mais importante do que meu gosto, meu prazer, uma emoção, o
riso, a surpresa, um certo assombro ou qualquer outro sentimento, do qual
teria dificuldades, talvez, em justificar a intensidade [...] (FOUCAULT, 2003,
s.p.).
Agora, meus dois eus se juntam, e somos, temporariamente, um só para repetir que
“a vida tem sons que para gente ouvir é preciso entender”, que é necessário muito
mais do que bons ouvidos para escutar. É preciso ter sentidos! Todos os sentidos
aguçados para poder interpretar inclusive os silêncios.
Dessa forma, o método de pesquisa encontra-se nas conversas e muito também nos
silêncios e nas vozes silenciadas pela normalidade, pelas dificuldades de
comunicação, pela falta de socialização, pela inércia e pelas ações que por si só já
dizem muito. Encontra-se nos encontros e desencontros, nos encantos e
desencantos, nos (des)caminhos dos sujeitos envolvidos e nas experiências vividas
pela pesquisa.
Alves (2012, p. 36) acredita que as pesquisas com os cotidianos estimulam a pensar
as metodologias, “criando-as para desenvolver processos de pesquisas novos”.
Ao comparar com o rio que segue o fluxo ao caminho do mar, é possível imaginar
que a vida segue continuadamente na mesma rotina. Porém, relembrando as
palavras de Sofia (GAARDER, 1995, p. 335): “[...] o fato de o mar estar calmo na
superfície não significa que alguma coisa não esteja acontecendo nas profundezas”;
ou ainda, as palavras de Briggs e Peat (1945, p.15-16): “Se você se sentar para
observar o rio, começará a notar que ele é, ao mesmo tempo, estável e inconstante.”
Desse modo, o rio é outra metáfora para nós mesmos. Como ele, nosso
corpo físico encontra-se em contínua renovação e transformação, à medida
que as células vão sendo regularmente substituídas. Enquanto isso, o “eu”
que acreditamos existir dentro do corpo, em nosso centro psicológico,
também constitui um fluxo. Somos tanto a “mesma” pessoa que éramos dez
anos atrás quanto um indivíduo totalmente novo [...] (BRIGGS; PEAT, 1945,
p. 16).
Pesquisar o cotidiano requer transpor e evidenciar aquilo que o ser humano está
habituado a não ver, a invisibilizar, e a não sentir ou, como diria Alves (2012, p. 35-
36) quando destaca os espaçostempos vazios, “aquelas temáticas ou questões às
quais não demos, ainda, a atenção devida e que, se o fizéssemos, ajudaria no
melhor entendimento dos processos curriculares nos/dos/com os cotidianos”.
Para isso, foi preciso conhecer e discutir e nunca ignorar, os percalços enfrentados e
confrontados, as políticas impostas e a falta de políticas necessárias e
imprescindíveis e, ainda, “[...] as “políticas oficiais” – de currículo; de formação de
professores; de condições materiais de trabalho, dentro das quais os baixos salários
profissionais ganhavam relevo [...]” (ALVES, 2012, p. 39).
Por essas e outras, é preciso ter coragem para seguir adiante, levantar-se do chão,
apostar na força do (re)começo e apostar “na força das
conversas/conversações/narrações não só para a produção de dados para a
pesquisa, mas para a invenção de uma vida bonita (ROBERS, 2013, p. 72).”
Além da invenção de uma vida bonita, acredita-se na força dos diálogos como
provocador de sentidos, procurando, com isso, “atingir a complexidade das redes
tecidas entre instâncias e dimensões da realidade impossíveis de ser captada por
outros tipos de estudo e pesquisas” (OLIVEIRA, 2012, p. 55).
Ferraço (2011, p. 45) alerta que as pesquisas com o cotidiano acabam envolvendo
os próprios pesquisadores nessas redes, para ele
nos propomos a realizar uma pesquisa narrando histórias tecidas por tantas
outras histórias (FERRAÇO, 2011, p. 45).
E como isso tudo foi registrado? Nem sempre foi possível gravar, filmar, ou
fotografar. Em algumas vezes foi preciso confiar na memória, outras vezes, no diário
de bordo. As observações no AEE, algumas vezes foram gravadas em áudio e
depois transcritas, outras foram filmadas evitando-se identificar qualquer um dos
participantes e, outras vezes, observadas e escritas em um caderninho preto!
Dispensou-se o uso de questionários, e muitos dos dados pessoais coletados foram
por meio de conversas descontraídas em meio a risos e outros sentidos.
Dados que não são considerados como fontes a serem analisadas, mas que
trazem a possibilidade de problematização dos sentidos produzidos,
buscando novas significações, evidenciando fluxos e desdobramentos no/do
trabalho realizado. São, portanto, imagensnarrativas (FERRAÇO, 2011) que
operam movimentos e falam da potência das redes de saberesfazeres, de
modos de produção de vida (PIONTKOVSKY, 2013, p. 183, grifos da
autora).
Como posso “ver” uma flor, por exemplo? Você já pensou nisso, Sofia? Se não pensou, está aí
uma boa oportunidade para fazê-lo (GAARDER, 1995, p. 51).
Segundo relato de Bia, sempre havia um motivo para esse planejamento não
acontecer, sendo que em todo o semestre letivo, para o planejamento semanal, ela
conseguiu apenas se reunir com eles em três ocasiões.
89
Durante toda a pesquisa, alguns encontros com Sofia na sala de aula foram
observados, os quais forneceram uma noção do cotidiano dessa aluna na classe e
no recreio. Essas observações ocorreram apenas nas aulas de matemática que, de
acordo com a Duquesa, eram sempre geminadas, nas segundas, quartas e sextas-
feiras da semana.
Infere-se da observação desse período, que Sofia falta muito às aulas regulares, fato
que pouco ocorre no AEE. Por esse motivo e, por compreender as peculiaridades
dessa aluna, a opção foi concentrar as pesquisas no contraturno das aulas
regulares.
O atendimento no AEE para Sofia foi alterado e ocorre sempre das 10h às 12h, nas
segundas e quartas-feiras, pois, segundo Bia, Sofia apresentava-se bastante
sonolenta nas primeiras horas da manhã, conforme confirmado observações
realizadas.
As fotos a seguir apresentam o ambiente da sala de recurso, local onde Bia faz o
Atendimento Educacional Especializado. É um lugar muito colorido, com diversos
materiais que podem contribuir para o aprendizado do aluno especial, apesar de o
ambiente se apresentar um pouco tumultuado. Nele, há um professor surdo e mais
dois intérpretes de libras. Para o atendimento à Sofia, às vezes, o local parece
inapropriado, pois há muito barulho, divisão de espaços e a quantidade excessiva de
90
materiais na prateleira pode dar uma ideia de falta de organização, além de ser
constante o “entra e sai” de alunos.
[...] às vezes é certo pensar que se tem de sair de determinado lugar, mesmo que não se
sabia para onde ir (GAARDER, 1995, p. 491, grifo do autor).
Referindo-se a qualquer letra que Bia mostrasse e quando era corrigida, ela repetia,
porém tempos depois voltava a dizer que era “B de Vitória”. Essa situação resultou
em um mergulho em um grande vazio na busca por respostas e, em meio a tantas
incertezas, o que se evidenciava era apenas o longo caminho a ser trilhado. Isso
porque Sofia tinha dificuldades em aprender, enquanto ainda nem sabíamos das
nossas dificuldades em ensinar. Por enquanto, as imagensnarrativas feitas de Sofia
ou as que ela provocou são a sua vida em mundo próprio e a visão de que ela
relacionava letras a algum nome.
Além disso, não estava clara qual a relação da palavra/resposta Vitória nesse
contexto. Poderia ser a cidade ou o fato de estarmos jogando e com isso alguém
venceria. Mais tarde, esclareceu-se que se tratava de sua irmã.
Parecia-lhe estar vendo as cores pela primeira vez. Talvez ela tivesse visto sombras até então,
e não as ideias claras (GAARDER, 1995, p. 108).
Bia achou graça de suas palavras e sorriu para mim. Segundo ela, o objetivo da
atividade, além da concentração, é a de identificação das cores. “Ela sente
dificuldades em reconhecê-las”.
Para que ela pintasse as unhas de amarelo, Bia usou como molde a mão de Sofia e
a desenhou. Mostrou o relógio amarelo em seu braço e. em seguida. entregou-lhe o
desenho de um sol, para que a mesma o pintasse. Após terminar, entregou-lhe o
desenho de uma nuvem, a qual Bia diz ser azul, para que fosse colorida. Era o
nosso segundo encontro com Sofia, e então preferi não interferir dizendo que a
nuvem, geralmente, é branca. Ao término, perguntamos: “qual a cor da nuvem?”
93
Bia pergunta por três vezes sobre a cor da nuvem e Sofia repete sempre que é
amarelo. As perguntas feitas de maneiras diferentes e “atropeladas” pareciam
confundir Sofia e, assim, as suas respostas não foram processadas conforme nossa
expectativa, visto que foram perguntadas sobre a nossa lógica de raciocínio.
Bia estava com um tênis vermelho, reproduziu a imagem deste em uma folha de
papel e entregou a Sofia.
Bia: Muito bem pegou a cor certa! [Elogiou Bia]. “Que cor é essa?”
Sofia: Cor certa!
Bia: Que cor é essa?
Sofia: Cor certa!
Bia e eu sorrimos discretamente de sua resposta. Sofia não estava errada. Bia disse
ser a “cor certa”, e ela apenas reproduziu o que ouviu. Para Silva et al (2012), ao se
dirigir à criança autista, as perguntas devem ser claras, objetivas, com vocabulário
simplificado. O desejo de que Sofia terminasse a aula conhecendo as cores fazia
com que as perguntas saíssem afobadas. Na verdade, Sofia já reconhecia, só não
sabia denominá-las, pois conseguia separar os botões em seus respectivos
vasilhames, conforme suas cores.
Provavelmente, Bia não alcançou os seus objetivos nessa atividade, pois exagerou
na quantidade de cores para ensinar. Com certeza, o ensino de uma cor única por
vez, em objetos variados, pode trazer melhores resultados.
Foto 7 - Sofia pintando a nuvem de ‘azul’ Foto 8 - O sapato de Bia pintado por Sofia:
‘cor certa!’
Quando encontramos alguma coisa que não conseguimos classificar, levamos um verdadeiro
choque (GAARDER, 1995, p. 128).
Foto 9 - Sofia colocando pedrinhas no orifício da caixa e Bia acompanhando a realização desta
atividade
Para Bia, a maneira posicionada de Sofia, possibilita que a mesma não se disperse
com qualquer outro acontecimento na sala de aula. Ao tomar essa atitude, Bia se
inspira no método TEACCH30 como modelo de ensinoaprendizagem.
Em outra atividade, passou letra por letra do seu nome, e ao falar a letra L do seu
sobrenome, Sofia completava (de Luan Santana), I (de índio).
Outra atividade para aprender seu nome foi a de encontrá-lo entre outros e colori-lo.
Ela localizou corretamente e começou a pintá-lo. No exercício de “caça-palavras”,
teve dificuldades em encontrar o seu nome, e Bia teve que indicar a localização dele.
combina diferentes materiais concretos e visuais, que auxilia as crianças a estruturarem o seu
ambiente e a sua rotina. O TEACCH é um modelo de intervenção que, através de uma “estrutura
externa”, organização de espaço, materiais e atividades, permite que as crianças do espectro autista
criem mentalmente “estruturas internas”, transformando-as em “estratégias”, para que possam
crescer e se desenvolver de forma que consigam o máximo de autonomia na idade adulta (SILVA et
al, 2012, p. 218-219).
97
Houve uma intervenção discreta ao dizer a Bia que deveria ter aproveitado o
momento para que Sofia fizesse alguma atividade relacionada a números, pensando
na oportunidade de aproveitar o seu interesse. Porém, Bia preferiu continuar com o
planejado.
Bia, então, entrega a Sofia uma folha de papel com um desenho que se
assemelhava a um rosto, porém sem os órgãos do sentido, como disse Bia ao
entregá-lo. Nessa atividade: “Sofia tem que colar os olhos, o nariz, a boca, as
orelhas e ainda os cabelos”.
E mais uma vez Sofia respondeu além das intenções perguntadas por Bia. Claro que
a pergunta daria possibilidade a qualquer tipo de resposta, pois foi feita de maneira
abrangente.
Ao fazer a atividade Sofia “se elogia” algumas vezes, repetindo os elogios que Bia
sempre faz: “É isso ai, muito bem!”
Bia resolve contar as letras do nome de Sofia. Aponta cada letra e em seguida diz os
números 1, 2, 3, 4 e 5, realizando, assim, a correspondência termo a termo. No final,
pergunta:
- Acho que nunca vou entender como é ser outra pessoa. Não há duas pessoas iguais em todo
o mundo (GAARDER, 1995, p. 401).
Duquesa: Sofia é atônita! Não presta atenção em nada. Não sabe ler, não sabe
escrever e vive a desenhar! Eu não sei como trabalhar com ela e por isso, fico de
mãos atadas. Combinei com a professora do AEE para que ela a alfabetize e ensine
a contar. Aqui nas minhas aulas ela só desenha e pinta e, para completar,
falta muito à aula,
Sofia não responde, não se defende, nem parece se ofender com as palavras
faladasescutadas assim como Alice também não o fazia. É provável que estivessem
calejadas e anestesiadas, aproveitando a ocasião e permitindo se sentir invisíveis
nessa “pura existência verbal que faz desses infelizes [...] seres quase fictícios [...]”
(FOUCAULT, 2003, s.p.).
na medida em que essa identidade lhe permite assumir o seu lugar na rede das
relações sociais inscritas no ambiente” (CERTEAU, 1996, p.40, grifo do autor).
Assim se confirmou que a observação deveria ser feita além das quatro paredes da
sala de aula, começando por acompanhar a hora do recreio. Nesse mesmo dia, após
retornar mais cedo à escola, observei a recreação dos alunos. Assim que me viu,
Sofia se aproximou sorridente e, acompanhada com a sua amiga Emy, sentaram-se
ao meu lado e iniciaram o diálogo:
Emy continuou a fazer perguntas a Sofia sobre adição de números naturais e ela
sempre repetia as perguntas de Emy como resposta. Até que acabou o recreio e
ambas correram em direção à sala de aula. Aguardei um pouco e, em seguida,
encaminhei para a classe.
A professora separa uma atividade para Sofia sobre a identificação de objetos com
desenhos para colorir. A princípio, perguntou a Sofia quantos corações havia no
desenho, mas ela permaneceu calada e começou a pintar. Ao terminar a pintura
Sofia se levanta e vai mostrar o seu caderno à professora. Esta separa uma
segunda atividade de mesmo objetivo que a primeira: desenhos para colorir. Sofia
volta a sentar em sua cadeira e começa a pintar. Dificilmente fala com alguém ou
alguém fala com ela, com exceção de Emy, que senta sempre ao seu lado, e
dificilmente, também, os alunos falam entre si.
A professora volta a corrigir atividades na lousa e escolhe alguns alunos para ajudar
na resolução dos problemas. Sofia não é escolhida. Emy também não. Ambas tem
dificuldades com os números. A Duquesa determina que os alunos colem as
atividades no caderno dizendo: “Só três pinguinhos de cola!” Em torno dessa fala faz
um discurso sobre os excessos. Sofia se levanta e leva a atividade para a professora
demonstrando que havia terminado. A professora solicitou o seu caderno para fazer
a colagem, porém os outros alunos são estimulados e orientados a fazerem por si
mesmos.
Uma terceira tarefa foi entregue à Sofia: um desenho de uma casa com variado
número de corações desenhados.
Essa atividade tinha como cabeçalho o nome de outra escola, sendo, portanto, uma
tarefa elaborada para outra realidade, para outros alunos. Surgiram na memória as
palavras de Bia sobre a falta de planejamento com os professores, os planos de
curso entregues a cada ano que, às vezes só têm as datas alteradas, bem como as
atividades planejadas iguaizinhas para turmas de realidades distintas. E, é claro,
para finalizar, lembrar da cópia carbono!
Essa prática ainda utilizada atualmente reflete a postura de alguns profissionais que
trabalham em duas ou mais escolas e são obrigados a apresentar planejamento
inicial para turmas que ainda não conhece. Isso porque, geralmente, ao iniciar o ano
letivo, cobra-se o plano trimestral dos conteúdos a serem abordados durante esse
período, suas respectivas metodologias, os processos avaliativos e os projetos a
serem trabalhados.
Sofia sentiu novamente que as diferenças haviam deixado de ser importantes (GAARDER,
1995, p. 402).
É assim mesmo, Sofia, mas esperamos que esse seu sentimento seja temporário!
As diferenças são muito importantes e é por elas e para elas que a atenção deve
estar voltada. Planejar pensando nas diferenças é um caminho para se alcançar
todos.
Por um momento, a professora precisou buscar uma apostila para um dos alunos.
Assim que saiu da sala, Emy chamou Sofia e, mostrando a apostila que estava em
suas mãos, perguntou:
Como o poder seria leve e fácil, sem dúvida, de desmantelar, se ele não
fizesse senão vigiar, espreitar, surpreender, interditar e punir; mas ele incita,
suscita, produz; ele não é simplesmente orelha e olho; ele faz agir e falar
(FOUCAULT, 2003, s.p.).
-Ela não parece mais ser a mesma. Ela é como um universo de muitos contos fantásticos
(GAARDER, 1995, p. 402).
Na sala de AEE, Sofia ficou em uma mesa separada enquanto eu e Bia ficamos em
outra para dialogar sobre as atividades. Tempos depois, Sofia começa a falar:
107
Ao falar de Emy que havia faltado, Sofia poderia estar falando de si mesma
“Crianças com ASD podem misturar os pronomes “eu” e “você” [...]. Além disso,
podem continuar a referir-se a si mesmos pelo próprio nome” (WILLIAMS;
WHRIGHT, 2008, p. 71).
Sofia continua a fazer associações, às vezes absurdas para falar de cores. A cor
vermelha, por exemplo, era dita como “a cor do sangue que sai da minha boca”,
frase esta já repetida por Bia.
But I see your true colors Mas eu vejo suas cores reais
Shining through Brilhando por dentro.
I see your true colors Eu vejo suas cores reais31
(True Colors - Billy Steinberg / Tom Kelly) (Cores Reais -- Billy Steinberg / Tom Kelly)
31 Tradução nossa
108
Sim Sofia, vemos em você as suas cores reais e a pureza por detrás delas. Porém, a
conversa com a mãe deixou transparecer que a família não tem tanto envolvimento
com aquela criança, talvez pela humildade demonstrada, talvez por ignorância às
necessidades do autista, ou por falta de tempo em acompanhar Sofia em suas
atividades e até mesmo pela falta de parceria com Bia e a família, ajudando-lhes
com informações complementares.
- É exatamente isso que me incomoda um pouco. Para mim, este é um exemplo típico de algo
em que só se pode acreditar, mas que não se pode saber (p. 339, grifos do autor).
As atividades para todos os alunos, inclusive Sofia, era de pintura. Nesse dia, as
aulas tiveram horário reduzido.
Nesse caso, mesmo não sendo uma atividade adaptada, ou pensada em interesses
restritos à Sofia, houve certo envolvimento dela e uma vontade de compartilhar
sentidos com os outros colegas. Embora ela sempre pintasse, geralmente, a única a
pintar nestas aulas, agora estaria “entre iguais”, pintando, colorindo, trocando cores
entre os colegas, socializando imagens e talvez se sentindo parte integrante do
grupo.
O que importa para mim, querida Sofia, é que você não esteja entre aqueles que consideram o
mundo uma evidência (GAARDER, 1995, p. 28).
Bia iniciou o atendimento à Sofia com uma atividade a qual denominou “caixa
mágica”. Nela foram colocadas doze figuras geométricas, confeccionadas em
madeira, de cores e formas distintas, sendo 3 retângulos verdes, 3 círculos
vermelhos, 3 quadrados azuis e 3 triângulos amarelos. Essa caixa contém orifícios
laterais nos quais o aluno introduz as mãos para a captura dos objetos. Bia solicita a
cor e Sofia tenta procurá-la entre os objetos, mas sem vê-los. O objetivo era que
Sofia associasse a cor ao objeto e sua forma, induzindo-a a memorização. Bia
lamenta por não ter obtido o êxito desejado.
Bia, assim como eu, esperava por “melhores” resultados, aqueles resultados
visíveis, palpáveis. No entanto, era possível saber que “aqui ainda subsiste um
“saber”, mas sem o seu aparelho técnico [...] ou cujas maneiras não têm legitimidade
aos olhos de uma racionalidade produtivista” (CERTEAU, 1994, p. 141). Sofia estava
110
O maior desafio era captar a mensagem por detrás dos silêncios, do olhar curioso de
Sofia, das falas ‘desconexas’ [...] Nesse sentido, interessava menos a relação do
que estava lá dentro com aquilo que o aluno inventava, e mais o que era ‘inventado’
pelo aluno, como possibilidades criativas e inventivas (ALVES; OLIVEIRA, 2005,
p.79).
Ela sentia uma coisa que nunca tinha sentido antes: na escola, e também por toda a parte, as
pessoas só se preocupavam com trivialidades. Mas havia questões maiores, mas graves, cujas
respostas eram mais importantes do que as matérias normais da escola (GAARDER, 1995, p.
22).
Com certeza, Sofia estava pensando certo. Sofia pensava no que realmente era
importante para ela naquele momento.
Para que essa compreensão fosse possível foi preciso nos libertar das nossas
certezas e por um pouco de lado as teorias aprendidas ao longo dos estudos
realizados, as quais “negaram a existência dos cotidianos e dos conhecimentos que
nele são tecidos” (ALVES; OLIVEIRA, 2005, p.89).
Como na maioria das vezes, Sofia se apresentou dispersa, parecendo estar com
sono. Faz uso de frases desconexas e fala de situações passadas. O exercício da
caixa mágica pareceu, para ela, ser envolvente e desinteressante ao mesmo tempo.
Bia então convida Sofia para assistir e ouvir no computador a música “Aquarela” de
Toquinho. A princípio, Sofia teve dificuldades de se posicionar frente ao computador,
111
pois a caixa de som emitia barulhos estranhos. Com calma e muita conversa, Bia a
convenceu a se sentar e acompanhar o vídeo.
Em outro momento, Bia cantou com Sofia e pedia para ela que completasse a frase
com a palavra que faltava. Em seguida, resolveram dançar. Nesse momento, a caixa
de som fez alguns estranhos ruídos e, imediatamente, Sofia afastou-se com medo,
tampando os ouvidos. Mais uma vez teve dificuldades em retornar para a sala,
cabendo a Bia convencê-la para o retorno.
Foto 13 - Sofia com o ‘pompom’, o qual Bia Foto 14 - Bia e Sofia dançam a música
denominou aquarela. Aquarela de Toquinho
Ao final da aula, Bia mostrou uma cartilha que utilizará como tentativa de alfabetizar
Sofia e , provavelmente, será utilizada na sala de aula.
112
A apostila em questão não foi elaborada por Bia: “Uma amiga fez e me emprestou”,
disse. Bia acreditava que essa apostila poderia auxiliar na alfabetização de Sofia e
que, em parceria com a Duquesa, poderia ser utilizada em sala de aula.
Não havia nada de especial na apostila. Parecia aquela velha cartilha utilizada na
alfabetização: “Caminho Suave”. Fiquei a refletir sobre essa busca padronizada de
ensinoaprendizagem. Começar com vogais e depois com o “BA-BE-BI-BO-BU”; falar
em vogais ou consoantes para alguém que possivelmente ainda não reconhece nem
ao menos os símbolos. Contudo, nunca presenciei a utilização desta apostila. A
opção era por atividades fotocopiadas e, durante o processo de alfabetização, era
constante Bia corrigir Sofia:
Sonolenta, Sofia esfregou os olhos. Tentou lembrar-se de tudo o que tinha acontecido no dia
anterior. Mas tudo aquilo lhe parecia peças desconexas de um quebra-cabeça (GAARDER, 1995,
p. 330).
Bia iniciou a aula com uma atividade de reconhecimento das vogais do alfabeto,
utilizando material concreto confeccionado em EVA. Com uma tarefa de
alfabetização composta por figuras, Bia solicita que Sofia complete as palavras com
a vogal que falta. Ao perguntar sobre a vogal ou outra letra, Sofia sempre faz
associações.
Bia convida Sofia para ler as palavrinhas e leu insistentemente por seis vezes,
pedindo para que ela repetisse:
Bia: Hoje ela não quer responder, está muito dispersa! Tá com sono [Lamentou].
Com o objetivo de motivar Sofia, Bia a convida para assistir a um vídeo com músicas
sobre vogais. Sofia senta em frente ao computador e começa a assistir ao vídeo.
Após alguns ruídos pede, insistentemente, para sair dali logo após a caixa de som
ter feito um barulho estranho. Ambas se levantam e Bia a convida para dançar. Ao
terminar a dança, Sofia veio para o meu lado e começou a sorrir e apontando o dedo
para Bia disse:
Ao final da aula, como de costume, dei tchau e, então, Sofia se levantou e me beijou
a testa. O gesto inesperado de Sofia nos deixou admirados. E nos fez refletir ainda
mais sobre o ato carinhoso e inesperado daquela criança vista como isolada,
‘egoísta’, da aluna não sociável que, ‘de repente’, me deu um beijo.
autista costuma fazer a tradução “ao pé da letra” do que é ouvido, e assim criar
imagens deturpadas de diálogos mal interpretados. “Crianças com autismo podem
ter a conclusão errada porque têm problemas em referir-se ao contexto e detalhes,
um em relação ao outro. A maioria das pessoas fazem isso intuitivamente, sem
pensar” (WILLIAMS; WRIGHT, 2008, p. 44).
É muito provável que Sofia não tenha colocado peso algum naquelas palavrasideias
de Bia, muito menos dado importância àquilo. O sentido dado por Bia pode ter sido
entendido de outra forma por Sofia. Palavras ditas sem reflexão, ou de ‘supetão’,
podem revelar pensamentos e ideias pessoais nem sempre agradáveis. E se Sofia
tivesse feito perguntas a respeito?
Alguém teria respostas para elas? De qualquer forma, Sofia achava mais importante refletir
sobre elas do que quebrar a cabeça decorando verbos irregulares (GAARDER, 1995, p.22).
Sofia não fez perguntas, não demonstrou reação; o que de certa forma trouxe alívio,
pois, preferi não imaginar quais seriam as respostas que ela teria. No entanto, as
ideias intrínsecas às palavras de Bia foram de encontro do sentido ético-estético-
político dado à educação, uma vez que
O que, sobretudo, me move a ser ético é saber que, sendo a educação, por
sua própria natureza, diretiva e política, eu devo, sem jamais negar meu
sonho ou minha utopia aos educandos, respeitá-los. Defender com
seriedade, rigorosamente, mas também apaixonadamente, uma tese, uma
posição, uma preferência, estimulando e respeitando, ao mesmo tempo, ao
discurso contrário, é a melhor forma de ensinar, de um lado, o direito de
termos o dever de “brigar” por nossas ideias, por nossos sonhos e não
apenas de aprender a sintaxe do verbo haver, do outro, o respeito mútuo
(FREIRE, 2002, p.78).
Assim, pode-se afirmar que opiniões pessoais não devem interferir na educação das
crianças e, ainda, que ideias que valorizam somente ‘a norma’ não devem ser
utilizadas em espaços libertadores como a escola.
Sofia não externalizou questionamentos sobre “o homem não poder ser Barbie”, ou
em ser “feio para o homem ser Barbie”, mas pode ter feito algum questionamento
interno, e se entende que em algum momento essa fala poderia voltar à tona. Assim
como o “eu não sou mala” dito por Sofia que, por algumas vezes, Bia se direcionou a
ela dessa maneira.
Bia externalizou um pensamento seu. Sofia pode ter feito a simples interpretação de
que um homem não pode ser uma boneca. No entanto, evidencia-se o cuidado que
é preciso ter com as palavras e ideias de ordem pessoal.
Mas é claro que não dava para ter certeza, pois o fato de uma criança não falar não
significava necessariamente que em sua cabeça não houvesse ideias (GAARDER, 1995, p.117).
Para Nunes e Bryant (1997), ao contar conjuntos, a criança precisa ter noção que o
último número falado representa a quantidade de elementos desse conjunto, ter
também a noção de que, não importa a ordem inicial de contagem dos objetos, se da
esquerda para a direita ou vice-versa, ou se do meio para os extremos; ela precisa
saber que isso não importa, bem como compreender a utilidade da contagem.
Bia pediu que Sofia colasse os desenhos dos corações e ela os colou, procurando
organizá-los como faz a maioria dos autistas: enfileirados. Silva et al (2012, p. 94)
relata que há casos em que pessoas autistas “passam horas engajadas em uma
simples brincadeira de empilhar caixas ou enfileirar carrinhos”. Para eles, é dessa
maneira enfileirada que está organizado.
Estas três exigências são indiscutíveis. Uma criança que não as respeita
não está definitivamente contando apropriadamente, e qualquer criança que
de fato as respeita consistentemente está se saindo bem. Não se poderia
dizer que esta última criança entende o que ela está fazendo [...] (NUNES;
BRYANT 1997, p. 37).
Nunes estimula uma reflexão sobre o próprio conceito de ser numeralizado. Como a
autora afirma, mesmo que a criança faça a leitura corretamente isso não significa
que esteja consciente de seu ato. Assim, o fato de Sofia não corresponder às
expectativas também não permite afirmar que ela não estaria aprendendo.
Bia tenta outra estratégia para auxiliar na contagem. Desenha os números em uma
folha e pede que Sofia desenhe-os abaixo dos corações. Em seguida, solicita que
conte apontando para os números. Sofia conta sem qualquer relação entre o número
e a quantidade relacionada. Terminada a tarefa, Sofia sorri e aponta o dedo para
mim:
“Você é um zumbi!”
Afinal de contas, uma coisa era certa: todas as flores e árvores, todos os homens e animais
eram “imperfeitos” (GAARDER, 1995, p. 108).
Bia prepara os materiais para o início da aula. Escreve em uma cartolina o nome
SOFIA de um lado e, do outro, as vogais. Junta a isso o material concreto, contendo
as letras do seu nome. Para motivar o interesse, Bia procura em um site um vídeo
no qual uma mãe ensina ao filho as vogais do alfabeto.
Agora, a tarefa seguinte é a de recorte. Com um jornal Bia solicita à Sofia que
recorte algumas palavras dele. Enquanto Sofia realizava as tarefas, começamos a
dialogar:
120
Bia vai olhar no calendário o dia do aniversário de Sofia: “dia 9 de outubro32”, disse.
Bia retorna com a atividade das vogais abrindo um jornal. Localiza uma manchete
que começa com a letra A e pergunta:
Bia retorna ao exercício anterior [da cartolina] e solicita que Sofia repita a atividade.
Sofia repete as vogais corretamente. Volta ao jornal, recorta a letra A e cola no
caderno. Em seguida, apontando a letra E no jornal, Bia pergunta:
32 Datas fictícias
121
Bia convida Sofia para recortar a letra i. Procura no jornal, localiza, mostra a Sofia e
pede que ela corte. Na sequência, solicita o recorte da letra o. Sofia encontra a letra
O e faz biquinho (bolinha), como ensinado pela professora.
Bia: E agora, falta qual?[ apontando para a letra U] – “Faz biquinho pra falar:
Sofia: Uuuuuuuuuuuu...
Bia: Isso ai, muito bem!
Após recortar e colar todas as vogais, Bia convida Sofia para que a mesma leia:
Sofia: a, e, i, o, uuuuuuuuuuuuu...
Bia: Muito bem! Agora você vai escrever as vogais.
Foto 18 - Sofia colando as vogais recortadas Foto 19 - As colagens feitas por Sofia e a
no jornal escrita das vogais realizada por ela
Ninguém respondeu à sua pergunta. Não havia barulho de música alguma e Bia
continuou com a atividade. Para Bia, em sua primeira tentativa, Sofia não fez
corretamente. Na segunda vez, fez o A e, em seguida, o U, em seguida perguntou:
123
Sofia: Tá errado?
Bia: Tá! Você fez a letra A e em seguida o U. O U não vem depois do A.
“Vem sim, Bia. O U vem depois de todas as vogais! Mas não vemos diferença nisso,
e para nós não está errado! Sofia está corretíssima”. Era o que deveria ter sido dito
nessa hora, porém Bia provavelmente não aceitaria esse argumento. Preferia
continuar “[...] nas tentativas em vão de buscar assegurar obediência a um sentido
único, preestabelecido, em relação ao conhecimento ou a uma informação”
(FERRAÇO, 2008, p. 17).
“É verdade”, disse a Duquesa“, e a moral disso é... ‘Oh, é o amor que faz o mundo girar!’”
(CARROL, 1998, p. 121).
Bia desenhou alguns retângulos no papel e dentro deles escreveu as vogais, uma
em cada retângulo. “Agora você vai fazer sozinha” – disse Bia. Antes de começar a
fazer, Sofia desenha os retângulos e depois escreve dentro deles as vogais. Bia
124
pediu mais uma vez, e novamente ela desenhou os retângulos antes de começar a
fazer.
Foto 23 - Sofia realizando a tarefa de Foto 24 - As vogais escritas por Sofia.
escrever as vogais
Nessa última vez, escreveu as letras A, E, I e R. Ao perceber que o R não fazia parte
do grupo, tentou apagar e fez a letra O por cima. Parece que apesar de Sofia ainda
não dominar os conceitos de vogal ou consoante, reconheceu que a letra R não faria
parte do grupo solicitado por Bia e por iniciativa própria quis apagá-lo.
Apesar das tentativas de Bia em engessar sentidos às tarefas, pode-se afirmar que o
dia de hoje foi bastante produtivo. Sofia demonstrou interesse em realizar as
atividades, parecia que ela se afastou um pouco do seu mundo ou que nós visitamos
o dela.
Seus amigos, estes sim talvez pudesse escolher, mas não tinha tido a chance de escolher-se a
si própria. Não tinha decidido se quer ser uma pessoa (GAARDER, 1995, p. 16).
33O recreio, nessa escola, ocorre em duas etapas: "o recreio dos pequenos" é destinado às crianças
do Ensino Fundamental I (séries inicias) e, em seguida, ocorre o recreio dos maiores.
125
Sentado em um dos bancos do refeitório improvisado, observo Sofia pegar seu prato
de comida, sentar-se em um banco próximo e, observar as outras crianças
brincarem enquanto se alimenta. Às vezes, repetitivamente, bate palmas,
característica do autismo exemplificada como disfunções comportamentais. Ao
terminar sua refeição, aproximou-se de mim, tocou meu ombro e sorriu. Até outras
crianças chamarem:
Para Silva et al., “[...] as crianças com autismo geralmente têm fascínio especial por
música. Não pela letra em si, mas sim pela melodia.” A autora explica que, por meio
da música, as crianças podem compartilhar o que sentem.
Sofia não tocava música alguma, apenas batia as mãos sobre a mesa, fazendo um
batuque desritmado, pelo menos aos meus ouvidos. Mas, por trás de tudo aquilo,
por detrás das imagensnarrativas que fazia de Sofia, é perfeitamente possível
perceber que ela “combina os seus fragmentos e cria algo não-sabido no espaço
organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de
significações” (CERTEAU, 1994, p. 265). Era impossível definir Sofia pela sua
multiplicidade. Era injusto reduzi-la a uma única palavra: autista.
Mas, quem é você? Você é Sofia Amundsen, mas também é expressão de algo infinitamente
maior (GAARDER, 1995, p. 217).
Sofia se diverte vendo as crianças brincarem, com movimentos de vai e vem, pula, ri
e me abraça. Uma criança sentada no banco a observa e me pergunta:
Eu deveria ter dito que todos somos especiais, como tenho feito ultimamente. Mas a
pergunta feita por uma criança me surpreendeu.
Para muitas pessoas, o mundo é tão incompreensível quanto o coelhinho branco que um mágico
tira de uma cartola que, há poucos instantes, estava vazia (GAARDER, 1995, p.26).
Assim, frases como essas, ditas de maneira maliciosa e/ou com sentidos figurados,
ou duplo sentido, podem causar em crianças com autismo a interpretação fiel de
suas palavras. Deve-se ter o cuidado de dizer certos ditados populares, pois
crianças com autismo não conseguem entender a essência implícita nesses ditados.
Mas a Duquesa não tinha muito cuidado com as palavras. Agia de forma muito
espontânea e naturalizada. Falava o que pensava e, às vezes, de forma austera. Era
comum o seu domínio até mesmo pelo olhar e pela “[...] convicção de que as
palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes
mecanismos de subjetivação” (LARROSA, 2002, p. 20-21).
Por acaso se exerce nesta casa alguma espécie de censura? (GAARDER, 1995, p. 458).
Sim, Sofia, por mais incrível que isso possa parecer, exerce! Hoje é dia de avaliação
e com o intuito de revisar a matéria da prova, a professora trouxe uma atividade de
reforço das operações de adição e subtração de números naturais e seus termos:
parcelas, minuendo, subtraendo, resto ou diferença.
existia a possibilidade de Sofia aprender o que era ensinado. Dessa forma, houve
uma tentativa de orientá-la na realização do exercício, porém sem obter êxito. Sofia
não parece estar interessada em realizar essa tarefa. Pega seu caderno e começa a
pintar, em meio à sua concentração diz: “Eu não sou pra frente!”, respondi: “Ela não
estava falando com você!”
Oito mais quatro são doze, Sofia. Podemos estar absolutamente certos
quanto a isso. Trata-se de um exemplo para as verdades racionais,
sobre as quais falaram todos os filósofos desde Descartes. Mas nós as
incluímos em nossas orações antes de dormir? E por acaso ficamos
quebrando a cabeça sobre elas em nosso leito de morte? Não. Por mais
“objetivas” ou “genéricas” que tais verdades sejam, é exatamente por
isso que elas são tão pouco importantes para a existência de cada um
(GAARDER, 1995, p. 406).
Talvez ela se importasse mais em se perceber como aluna ‘de carne e osso’
presente como qualquer outro daquela sala.
129
Não era extraordinário estar viva naquele momento e ser personagem de uma aventura
maravilhosa como a vida?(GAARDER, 1995, p.16).
Bia: “Por que você não veio ontem? Você precisava ver como a aula foi boa. A
Duquesa não veio e eu assumi a turma. E fiz uma aula inclusiva. Você precisava
estar aqui...” – disse entusiasmada.
Bia não parava de falar e, quando quis justificar a minha ausência, completou:
“Eu brinquei com eles a música de Dona Baratinha. Fiz todo o teatro. E você
precisava ver como Sofia participou. Cantou, brincou com as outras crianças. Quando
terminei, perguntei aos alunos. Quem quer ser a Dona Baratinha? Quatro alunos
disseram que sim, inclusive Sofia. E quando ela disse que queria os demais alunos
gritavam: “ela não sabe, tia! Ela não sabe!”. “Sabe, sim! – eu dizia e Sofia veio e se
divertiu muito.”,
Bia estava tão afoita que mal me deixava falar. “Que legal!” – eu disse. Ela
completou:
“Sabe, eu tenho deixado a desejar com o meu papel de orientação aos professores.
E vejo também falta de vontade por parte deles. Tô preparando um material para
ajudar, mas tem professor que não quer; que faz de bobo. Tem professor, então, que
parece ser bipolar. Tem gente que tenho até medo de falar e achar ruim... Menino,
você viu a morte de Eduardo Campos? Você precisa ver, tem professor que faz
gracinha com isso. Não pode! O cara deixou um filho Down de 7 meses. Por falar em
política, queria te convidar...”
Bia falou por mais uns dez minutos e, então, pedi licença para retornar à sala de
aula. “Vai lá, tudo bem! Depois conversamos!” - disse ela com o ar de quem gostaria
de continuar a desatar os seus nós, muitos deles cegos!
É como querer tapar o buraco de uma toupeira. Você pode até conseguir, mas com certeza ela
virá à superfície em algum ponto (GAARDER, 1995, p. 466).
decimais, a tarefa proposta pela professora era recortar valores de produtos que
somassem R$ 70,00. Enquanto os alunos faziam recortes, Sofia estava desenhando
e pintando. Sentei-me próximo a ela e perguntei:
Apesar de discordar, fui para o fundo da sala por vontade da Sofia. Lembrei-me do
ponto cego! Das visibilidades que incomodam. Nas vontades de ter todos os
problemas afastados. E, quanto a ser filmado, desconhecia tal fato, porém depois
obtive essa informação, conforme abaixo explanado.
A escola ganhou uma verba que deveria ser utilizada pois, caso contrário, seria
devolvida. O colegiado decidiu pela compra de câmeras e pela instalação delas em
sala de aula, com o argumento de aumentar a segurança.
mesmo não seria visto, e sim inibir comportamentos inadequados dos alunos, como
quebra de carteiras, pichações entre outras possibilidades.
Algumas vezes adentrei a sala e as câmeras estavam voltadas para o teto, e depois
de algumas contendas ocorridas na escola, os professores foram comunicados de
que elas foram desligadas, mas que não comentassem aos alunos.
Em seguida, uma nova tarefa lhe foi entregue: a de ligar pontos enumerados para
formar um desenho. Auxiliei Sofia na sequência numérica e perguntei: “o que
formou?”, ela disse: “uma maçã!” E era mesmo uma maçã, um pouco diferente,
quase única. Sofia ficou a pintar até a hora do recreio.
Sofia ficou algum tempo parada, sem dizer nada. Virou-se algumas vezes e não sossegou
enquanto não tinha examinado a sala por todos os ângulos (GAARDER, 1995, p. 213).
Sofia pareceu não estar à vontade quando as turmas foram unidas, provavelmente
por ter quebrado a sua rotina. Sentou-se bem na frente, muito próximo à porta.
133
Sentei-me em uma cadeira próxima à sua e disse: “Preste atenção ao filme”. Sofia
séria respondeu: “Tô prestando!” No entanto, em momento algum Sofia olhou para o
vídeo.
De certa forma o curta não exerceria tanto fascínio sobre qualquer uma daquelas
crianças a não ser pelo fato de ser um desenho animado, pois os temas comentados
não eram familiares a eles, bem como às professoras que, ao final, solicitaram que
fizesse comentários a respeito do filme. Algumas crianças fizeram algumas
perguntas a respeito das diferenças entre quadrados e cubos, retângulos e
paralelepípedos. Após a explicação, a Duquesa comentou:
Tá vendo, disso eu não sabia! Acho um despropósito essas crianças não terem um
professor especialista de matemática para elas. A gente não sabe tudo!
Nós mesmos contribuímos para o que sentimos e percebemos, pois somos nós que escolhemos
aquilo que nos é importante (GAARDER, 1995, p. 488).
Bia lamentou o modo grosseiro como foi dada a resposta, desestimulando o seu
trabalho e como se esse planejamento não fizesse parte das ‘coisas que ela tem a
fazer’. Assim, Bia comentou que esperaria o encerramento do trimestre para reiniciar
o planejamento coletivo.
“[...] mais importante do que a busca de uma VERDADE com letras maiúsculas era a busca
por verdades que são importantes para a vida de cada indivíduo (GAARDER, 1995, p. 404).
Somente quando agimos, e, sobretudo, quando fazemos uma escolha, é que nos relacionamos
com nossa própria existência (GAARDER, 1995, p. 405).
-Não somos nós que podemos ser irônicos. Nós não passamos de vítimas indefesas de tal
ironia. Quando uma criança faz um desenho numa folha de papel, não podemos perguntar ao
papel que desenho é aquele (GAARDER, 1995,p. 396, grifos do autor).
Minha preferência era que Bia permitisse que Sofia desenhasse o que era de sua
vontade para, a partir desses desenhos, contextualizá-los de forma a descobrir o
motivo de fazê-los e, ao mesmo tempo, procurar ensinar os conteúdos necessários
para sua alfabetização ou sua numeralização. Contudo, a postura de Bia
demonstrava a dificuldade em agir diferente. Não existia o processo de se libertar
das amarras da educação formal, nem a percepção de que “[...] a implantação
136
Porém, Sofia permitia perder-se quase o tempo todo e talvez não fosse ela a
“perdida”. Isso porque a preocupação por não conseguir ensiná-la era visível, visto
que os caminhos dela ainda não tinham sido descobertos, significando que os
nossos sentidos permaneciam engessados.
Bia começa a fazer perguntas para que Sofia relate um pouco da sua vida, da sua
rotina:
Sempre que se refere à mãe, Sofia utiliza a terceira pessoa. Nunca ouvi dizer “minha
mãe”, mas sempre “Dona Júlia”. Algumas vezes sente a necessidade de que sejam
feitas perguntas para ela mesma responder, como aconteceu no diálogo “Quem
mais? Pergunta!” Essa atitude causou certa surpresa, pois denotou o seu interesse
por aquela informação.
138
Sofia: 2, 3, 4.
Você está tão acostumada com um evento se seguindo ao outro que acha que ele vai acontecer
todas as vezes (GAARDER, 1995, p. 295).
É possível entender bem a tristeza e a decepção estampadas nos olhos de Bia, bem
como fazer algumas previsões, caso ela não permaneça na escola. Realmente, há
139
poucos profissionais que acreditam na Educação Inclusiva ou que agem para poder
acreditar, pelo menos, nessa possibilidade. Assim, é perfeitamente possível temer
também pelo futuro de Alices e Sofias para os próximos anos. É visível o
envolvimento de Bia com a causa e, às vezes, seu comportamento lembra o de o
Dodo na sua corrida-caucus:
Sim, Bia, todos ganham no seu tempo e todos são premiados. Uma pena que nem a
todos é garantido o direito de alcançar a linha de chegada, apesar de reconhecê-los
como vencedores. Agora já posso afirmar que começo a compreender o significado
de serem especiais.
Porém, nem tão carregado de cores assim como deveria ser, pois às vezes não
passam de variações nos tons de cinza, uma vez que ainda há uma penumbra que
obscurece muitos olhos.
Bia: A gente tenta usar de vários recursos, mas nem sempre é possível. [Lamentou].
Enquanto Sofia realiza as atividades propostas, Bia a convida para cantar e começa:
“Mariana conta um, Mariana conta um...”
Bia lamentava com razão sobre o ‘descaso’ dos governantes com a educação e em
particular com a educação inclusiva. Apesar disso, sempre demonstrou interesse em
articular várias atividades para o aprendizado de Sofia. A preocupação de Bia em
relação à continuidade do trabalho era realmente tocante. Por um lado, Sofia poderia
não se adaptar a essa quebra abrupta de sua rotina, por outro existia o receio sobre
a postura de um novo profissional ainda não conhecido.
Não nascemos com expectativas já prontas acerca de como o mundo é, ou de como as coisas se
comportam no mundo. O mundo é como é, e nós vamos experimentando isso pouco a pouco
(GAARDER, 1995, p.297).
Enquanto Bia prepara o material, Sofia fica rabiscando o papel cantando: “Mariana
conta um, Mariana conta um...” Entre frases desconexas, canta outro refrão de outra
música: “Não quero dinheiro, eu só quero amar...”
141
A música de Tim Maia, ouvida na própria escola, faz parte de uma apresentação que
estava sendo ensaiada no palco do pátio para a mostra cultural. Às 10h47min, Bia
convida Sofia para iniciar a aula e, enquanto o vídeo “carrega”, Sofia: “Não quero
dinheiro, eu só quero amar, só quero amar...”
Bia passou outro vídeo que pareceu ser mais interessante para Sofia. Tinha uma
música suave e desenhos de animais. Sofia acompanha e canta a música,
ensinando contar de um até dez.
Bia explora o vídeo com Sofia até que ela perde o interesse e começa a não prestar
mais a atenção e a responder de qualquer jeito. Bia finaliza o vídeo e a convida a
desenhar os elementos apresentados.
142
Enquanto desenha, Sofia começa a cantar uma música com palavras estranhas ao
meu ouvido.
Bia avança o vídeo e agora Sofia deve desenhar a cena “dois gatos sobem na
árvore”. Sofia desenha e Bia pergunta:
Bia olha entristecida, parece não compreender o que se passa na cabeça de Sofia.
Porém não esmorece, deixa que Sofia pinte até acabar a aula.
É que estou mudando o tempo todo. Por exemplo, não sou hoje a
mesma Sofia de quatro anos atrás. Meu humor e a forma como eu
mesma me vejo modificam-se de um minuto para outro. É como se de
repente eu passasse a ser outra pessoa, completamente diferente
(GAARDER, 1995, p. 292-293).
Esperei mais um pouco e como não havia indícios de que chegaria, desci para
verificar o porquê de Sofia não ter aparecido. Fui falar com Bia.
Ela disse que na segunda-feira à tarde Sofia chegou à escola e foi direto para o
AEE. Mas, quando pediu a Sofia subir para a sala de aula, ela começou a chorar
muito dizendo que não queria ir. Bia, então, acompanhou Sofia até a sala e, ao
chegar lá, Sofia apontou que gostaria de ir para a sala ao lado, outra turma.
Bia: Acredita que a professora não demonstrou a menor simpatia?” [lamentou Bia],
“nunca tem tempo para planejar comigo, [completou].
O comportamento de Sofia descrito por Bia era incomum. Bia relatou que
ultimamente estava acontecendo com regularidade.
Ah... ela não queria mais pensar sobre isso. Talvez sua mãe tivesse mesmo razão quando dizia
que ela andava um tanto fora do ar nos últimos dias (GAARDER, 1995, p. 93).
Na chegada, encontrei Bia dando comida na boca de Sofia porque quando ela se
alimenta sozinha perde muito tempo com distrações.
145
Enquanto Sofia é alimentada por Bia, fala frases conectadas com sua realidade
ainda difusa para nós, sem continuidade, sobre ladrões, celulares e portão de casa.
Bia tenta contextualizar os fatos, contando histórias e buscando significado em todo
aquele emaranhado de falas nem sempre entendidas.
Enquanto fala, Sofia parece viajar em seus pensamentos e nos convida a viajar com
eles.
Bia: Sofia, você não pode dizer que a pessoa não tem braço! [Bia referia-se a uma
funcionária da escola que não tem um dos braços] Ela ficou triste!
Sofia: Ela ficou triste! (repetindo baixinho como se fosse para si mesma).
Jan: Você sabe quando a pessoa tá triste?
Sofia: Ela chora!
Bia retoma a atividade da aula passada e começa a brincar com os desenhos feitos
por Sofia, a começar pelo sol, mostrando para ela.
Sofia se lembrou de minha fala da aula passada. Bia não respondeu. E então ela
continuou.
Bia encostou o desenho do sol em seu rosto, como se usasse uma máscara, e
começou a conversar com Sofia.
Bia não respondeu às perguntas de Sofia sobre o sol e os seus sentidos. Será que
não seria nesses momentos de curiosidade que Sofia aprenderia? Sofia continuou a
verouvir o vídeo, a pintar e a desenhar até o término da aula.
Durante as aulas seguintes, Bia continuou a trabalhar com Sofia a música dos
bichinhos e os números. Sofia ilustrava cada um daqueles versos em meio a
atividades de numeralização, alfabetização e o aprendizado de cores. No final, as
produções de Sofia foram fixadas nas paredes do AEE.
Foto 32 - Um bingo para Sofia Foto 33 - Bia ensina números a Sofia por
meio de jogos na internet
O triste de tudo isso é que, à medida que crescemos, nos acostumamos não apenas com a lei
da gravidade. Acostumamo-nos, ao mesmo tempo, com o mundo em si (GAARDER, 1995, p.
29).
- Posso sentir o fogo da minha indignação ardendo em fortes labaredas (GAARDER, 1995,
p.392).
Eu também Sofia. Isso é de deixar qualquer pessoa indignada. Com certeza, Alice,
que também já havia passado por isso, também se sentiu assim. De certa forma,
existe uma permissividade gritante para que tal absurdo aconteça. Porque, embora
pais, mães, diretor, professores e alunos ficassem revoltados com o tamanho
descaso, nada foi resolvido até que a Duquesa voltasse e assumisse a turma.
150
- Às vezes é constrangedor ver tudo o que as pessoas engolem sem reagir (GAARDER, 1995,
p. 491).
Da mesa, a professora disse que havia trazido um dominó de cores para Sofia,
entregando-me para que jogar com ela. Sentado frente a frente com Sofia, ela
começou a posicionar as pedras do dominó uma após a outra. Tentei iniciar o jogo,
porém sem sucesso.
Dessa forma, a opção foi observar Sofia na sua arrumação de pedras enfileiradas,
que mais parecia ser uma organização de peças do que o iniciar de um jogo, e
também pensar de que forma poderia incitá-la para um interesse além da atividade
151
Assim, a tentativa de jogar por alguns minutos, associando cores e números logo
acabou quando Sofia apontou o dedo para o meu caderno. O sinal parecia indicar
que desejava uma folha. Então, perguntei:
Jan: O que é?
Sofia: Folha!
Jan: Você quer uma folha?
Sofia: É!
Jan: Você vai fazer a atividade do quadro?
Sofia: É!
Muitas vezes pode parecer que nada adianta. Por mais que você se esforce,
a criança parece não entender o que está tentando ensinar. Saiba: ela pode
aprender de maneira diferente ou mais lenta, mas é capaz de conseguir,
sim! Insista e discuta sempre com os profissionais novas maneiras e
técnicas criativas capazes de trazer o estímulo necessário para que ela
consiga aprender de forma mais eficaz. Persistência, perseverança e
disciplina são as palavras-chave (SILVA et al, 2012, p. 101).
Na sequência, Sofia pegou a folha e começou a desenhar. Nem sequer olhou para o
quadro. Inconformado, peguei outra folha, escrevi o nome dela e, embaixo, seu
nome pontilhado, Entreguei a folha sem dizer nada. Ela cobriu e pôs-se a desenhar.
A atividade tornou-se mecanizada ou já era assim. Nem eu mesmo sabia por que
havia feito aquilo. Pontilhar e cobrir nomes!
152
Duquesa: Meu aluno aprende com facilidade, a família dele se envolve. Ele tem
atendimento com o fonoaudiólogo e tem um assistente em sala de aula...
Apesar de concordar com a Duquesa sobre a precária assistência dada aos nossos
alunos, porém não fiquei à vontade quando mais uma vez a professora inicia o seu
processo de comparação. Porque, como educador, é fundamental lembrar-se de que
cada ser é único, uns com mais facilidades, outros com mais fragilidades...
Duquesa: Já tentei ensiná-la por várias vezes, mas ela não responde aos meus
estímulos!” [lamentou]
atividades propostas no quadro e Sofia, ao nosso lado, continuou a fazer aquilo que
mais lhe parece agradar: desenhar e pintar!
Ao sair da sala [a aluna], a professora começou a falar sobre os problemas que teve
com ela e, solicitou aos alunos que confirmassem. “Não foi, gente?, Não foi desse
jeito?” Quando a aluna voltou, a professora perguntou do que se tratava. Bateu o
sinal e fomos para o recreio.
Nesta quarta, Bia entrou para tratar de um assunto especial com os pequenos:
pretende desenvolver na escola uma apresentação com os alunos com a
participação de todos.
Bia comentou com a Duquesa que precisaria de um tempo para conversar com os
alunos e de alguns dias para ensaiá-los. Bia repetiu para mim as palavras ditas pela
Duquesa.
154
“Não use muito do tempo da minha aula, não gosto de deixá-los ociosos”.
Alves e Oliveira (1990) descrevem o ponto crucial dessa questão: as certezas. E são
tantas as que circulam em torno do descrédito a inclusão que se amofinássemos, se
não acreditássemos, se não tivéssemos as nossas certezas que essa convivência
com as diferenças é saudável e positiva, se não nos colocássemos no lugar do
outro... teríamos a sensação de que fosse inviável.
Então, Bia envereda-se pelos caminhos da inclusão, no mundo das suas “certezas”
convidando os alunos a compartilhá-lo.
155
Para caracterizá-la pelos infinitivos (ou pelos imperativos) que pontuam com
gestos uma receita, essa operação teorizante se resume em dois
momentos: em primeiro lugar, destacar e, depois, pôr do avesso. Em
primeiro lugar, um isolamento “etnológico”; depois, uma inversão lógica
(CERTEAU, 1994, p. 132-133).
E assim se explicou, destacou com suas palavras, com seus dizeres, com suas
convicções o que para ela seria incluir em seguida, se pôs, impôs, propôs e por
alguns sentidos se ex-pôs (LARROSA, 2002).
“O primeiro gesto destaca certas práticas num tecido indefinido, de maneira a tratá-
las como uma população à parte, formando um todo coerente, mas estranho no
lugar de onde se produz a teoria” (CERTEAU, 1994, p. 133, grifos do autor). Bia
citou vários exemplos até chegar a Sofia, que também estava presente na sala, mas
parecendo não demonstrar algum interesse em suas palavras, como uma estranha,
indiferente, como se ela sozinha formasse uma multidão à parte. Parecendo que os
fios utilizados para tecer aquela teia de conversações não passavam de fios sem
significados.
Bia: Vocês sabem que Sofia é uma aluna especial. Ela tem uma forma de
aprender diferente de vocês. Vocês já observaram?
Crianças: Sim!
Bia: Sofia precisa bastante da ajuda de vocês. Então, por ela precisar da ajuda de
vocês, vocês acham que ela não deveria estar estudando aqui?
Crianças: Ahan!
Bia: Deveria!
Crianças: Deveria!
Bia: Não é? Por que tem inclusão! Se eu não deixo ela vir, eu estou tirando dela o
direito de conhecer vocês, de ter amigos. Uma pessoa que não tem os braços o
lugar dela a gente pode falar assim: ah, ela não tem os braços ela não vai estudar,
é certo?
Crianças: Não!
Bia: Não! Porque ela tem o cérebro. Ela tem as pernas, o que ela não pode fazer
com a mão, ela pode usar o pé!
Eu não quero que justamente você passe a pertencer ao clube dos apáticos e indiferentes.
Quero que você viva uma vida instigante (GAARDER, 1995, p. 30).
156
Esse diálogo suscitou risos nas crianças, e ocasionou alguns exemplos de pessoas
que usam a boca. Porém, o destaque, dessa vez, foi Sofia, “o segundo gesto inverte
ou põe do avesso a unidade assim obtida por isolamento (CERTEAU, 1994, p. 133,
grifos do autor). Essa inversão, contudo, não alterou a postura de Sofia, visto que
demonstra indiferença: permanece alheia aos movimentos que acontecem ao seu
redor. As imagensnarrativas agora são provocadas por Bia ao expô-la dessa
maneira.
Bia: Eu conheço uma menina que lava vasilhas, não tem os braços, linda! Nasceu
sem os braços, ela lava com os pés! E tem um menino que não tem os braços e toca
violino perfeito com os pés!
Alguns alunos voltam a dar outros exemplos de pessoas que conhecem com
deficiências e que mesmo assim fazem serviços comuns.
Bia: Então, a inclusão é isso! A gente não pode discriminar o outro. “Ah, ela não
tem um braço, não vou sentar perto dela”. A inclusão é a gente incluir, dar
oportunidade para todos e sem ficar falando que o outro é negro, o outro é feio, o
outro é narigudo, que o outro tem a orelha grande, não pode, é certo?
Crianças: Não!
Bia: Isso é o que? Bullying!
Crianças: Discriminação!
Bia: Bullying e discriminação! Porque, às vezes, a pessoa tem uma orelha maior
que a outra e se a gente ficar rindo, ela vai se sentir como? Envergonhada, não é?
Triste! Então, que é eu vou fazer? Eu queria saber se vocês concordam! Eu vou
fazer um dia de inclusão aqui na nossa escola, ai, a turma da Vilma, professora do
4º ano, vai apresentar um teatro, vocês uma música, pra vocês mostrar para a
escola que a gente precisa de fazer in?...
157
Bia: Inclusão! Então, eu vou passar a música pra vocês, tá bom? E a gente vai
cantar pra depois eu falar como a gente vai apresentar essa música.
Após a entrega da cópia da letra da música para todas as crianças, Bia faz a leitura
com todos.
Bia: O que ele quis dizer com essa música alguém entendeu?
Crianças: Nãaaaao!
Bia: O que essa música quer passar pra gente? Quando ele fala “Se tem bigodes de
foca, nariz de tamanduá...” O que ele quer dizer, fala, Júnior!
Júnior: Não pode discriminar!
Bia: Não pode discriminar o colega, mesmo que ela tenha “bigodes de foca ou nariz
de tamanduá” né, e “orelhas de camelo, deixa assim como está!” Por que a gente
tem que ser o quê?
Crianças: Amigo!
Bia: Então, vocês vão passar isso pra escola todinha que a gente não deve
discriminar as pessoas e sim ser amigo...
É Tão Lindo
A Turma do Balão Mágico
Bia: E aqui, quem já conhece a foca? Quem já viu esse animal foca?
Crianças: Eu já vi!
Bia: Você já viu a foca, Sofia?
Sofia: É!
Bia: Como que a foca é, Sofia? Ela é como? Ela se parece com o quê?
Sofia: Um peixe! – responde Sofia depois que os alunos também responderam.
Bia: Um peixe, muito bem! E a foca ela brinca com que brinquedo?
Crianças: Bola!
Bia: Eu quero ver, peraí! Ninguém responde, hein?! Sofia, a foca brinca com que
brinquedo?
Nesse momento, as crianças falam baixinho pra ela: “com a bola” para que
repetisse. Porém, Sofia não responde.
161
Bia descreveu alguns momentos junto com a turma para o ensaio e o desenrolar dos
mesmos. Em uma das vezes, decidiram ilustrar a música com os bichos que
aparecem nela, uma garota para representar a Simony, um garoto para representar
o Roberto, Sofia iria representar o tamanduá... Logo o tamanduá: pensei! Será que
mais uma vez seria uma outra forma velada de ser invisibilizada?
Jan: Bia, não acha que seria interessante colocar a Sofia como a Simony, para
mostrar para todos que ela também é capaz? Ou, então, fazer vários casais de
Simonys e Robertos para mostrar que todos podem fazer?
A resposta e a risada indicaram que o comentário não foi aceito, além de dizer sobre
o meu modesto conhecimento sobre incluir! “Imagina, se todos de uma novela
fossem protagonistas?” Eis a resposta! Nessa perspectiva, a conversa permaneceu
superficial, sem possibilidade de aprofundamento, pois qualquer tentativa de
justificar a opinião dada, vinha seguida pela ideia, já registrada por ela, sobre a
pouca experiência com inclusão. E, embora o assunto continuasse por várias
semanas, o pensamento da Bia sempre se sobressaiu...
consiste em coisas reais, ou será que tudo o que nos cerca não passa
de consciência? (GAARDER, 1995, p. 327).
Apesar disso, e devido à importância do tema para esta pesquisa, estive na escola
no dia das apresentações. Era, com certeza, uma excelente oportunidade para
analisar como seria a receptividade no ambiente escolar do trabalho realizado pela
Bia. Porém, apesar do esforço, a decepção se fez presente: a professora da turma
não compareceu e junto com ela, boa parte dos alunos também não, inclusive Sofia.
- Psiu!
- O quê?
- Tem alguma coisa acontecendo também nas entrelinhas. E é
justamente aí que estou jogando com toda a minha astúcia para
conseguir me infiltrar
(GAARDER, 1995, p. 415).
Este dia marcou o final das atividades com Sofia no AEE. Solicitei a Bia permissão
para conduzir uma atividade cujo objetivo era tentar ensinar a Sofia a respeito do
número um e, possivelmente, do número dois. O planejamento consistia no uso do
vídeo “Mariana Conta Um” como atividade motivadora no ensino da contagem.
Nesse dia, porém, não foi possível o uso do computador porque outros professores
163
estavam utilizando e, muito embora tenha sido solicitado com antecedência, não
houve cedência alguma. Por isso, optou-se por dialogar com a aluna.
-Você não está passando mal, está, Sofia? Tente conversar comigo por frases inteiras
(GAARDER, 1995, p. 262).
Ficou incompreensível o que Sofia quis dizer com as respostas ‘escuringa’ e ‘direti’,
provavelmente, são palavras que ela ouviu e entendeu de forma errada, e agora
estava repetindo em razão da ecolalia.
Conforme dialogávamos, a aluna se envolvia com minha sacola com alguns jogos
matemáticos. Em certo momento, disse que se fizesse a atividade direito, ganharia
presentes.
Sofia ficou em silêncio observando o anel que eu havia posto em seu dedo. A ideia
de trazer anéis foi inspirada em um material didático desenvolvido pelo matemático
Yokoyama, cujo objetivo era numeralizar crianças com Síndrome de Down. Em sua
palestra ele afirmou que “as crianças precisam sentir as quantidades”.
Sofia continuava sentada, séria, os olhos fixos na mesa. Em algum ponto escondido dentro de
si, porém, não conseguiu deixar de achar graça (GAARDER, 1995, p. 114).
De súbito, soltei um ‘crendospai’. Afirmei que não poderia dizer esse nome. As
‘viagens’ feitas com Sofia resultam em refletir que “[...] estamos sempre em
processos de mudança, imersos em redes de saberes e fazeres que não podem ser
explicadas por relações lineares de causalidade, sendo, portanto, imprevisíveis”[...]
(ALVES; OLIVEIRA, 2005, p.87). Sofia é uma caixa de surpresas, um universo
inteiro dentro de uma mente fascinante!
165
Jan: Responde! Quantos anéis você tem ai? Responde se não, não ganha outro!
Sofia: É 4, 5.
Jan: Não! Você tem 1 anel. Este aqui é o número 1 [mostrando o número
em EVA].
Sofia:1!
Jan: Isso! Quantos anéis você tem na mão?
Sofia: Dooooois!
Jan: Não! Você tem, olha aqui pra mim. Que número é esse?
Sofia: 5.
Jan: Não! Não é 5! É esse número aqui [mostrando o número 1 em EVA]. Que
número é esse?
Sofia: 1!
Jan: 1! Muito bem! Vamos procurar o número 1 aqui também? [Mostrando um jogo
de quebra-cabeças]. Cadê o número 1 aqui?
Insisto em perguntar a Sofia sobre os números e ela começa a sorrir. Ela transforma
qualquer ‘seriedade’ de trabalho em misteriosas aventuras. Faz-nos refletir sobre
esses currículos hegemônicos que buscam perpetuar a linearidade das coisas. Ela
nos faz reconhecer e assumir “cada pessoa como tendo diferentes possibilidades de
invenção e partilha de significados, relacionadas a diferentes histórias de vida”
(FERRAÇO, 2008, p. 20).
Eis então que um falar se depreende ou se mantém, mas como aquilo que
“escapa” à dominação de uma economia sócio-cultural, à organização de
uma razão, à escolarização obrigatória, ao poder de uma elite e, enfim, ao
controle da consciência esclarecida (CERTEAU, 1994, p. 252).
- De fato, vocês são mesmo novidade por aqui. Mas precisamos o quanto antes cortar o
cordão umbilical que os une à sua origem carnal. Aqui não precisamos mais de carne e osso.
Todos nós fazemos parte do “povo invisível” (GAARDER, 1995, p. 529).
Agora era verdade, nós também integrávamos esse “povo invisível”, defensor da
valorização das práticas cotidianas, dos saberesfazeres aos quais estamos
impregnados e nem sempre perceptíveis, e que pretende cortar o cordão umbilical
que nos prende ao engessamento do ensino tradicional e “[...] recuperar a
importância daquilo que não integra as estatísticas para redefinir o próprio
cotidiano”(ALVES; OLIVEIRA, 2005, p.85).
Nesse momento, Sofia realmente estava com 2 anéis na mão. Bia sorri e elogia:
“Muito bem!”. No entanto, ainda não há garantia de sua aprendizagem. Apenas a
certeza de que ela nos ensinou muito mais do que poderia imaginar.
Não sabia dizer se era ou se não era, ou se deveria ser. Não sabia exatamente o
que ela ouvia em casa e o porquê dessa pergunta. Penso que, por conviver com
Sofia, durante todo esse tempo, pareceu-me que sua família é religiosa. Então, pela
figura que Satanás geralmente representa, respondi:
168
Jan: É
Sofia: É palavrão?
Jan: É
Sofia: Não é que é palavrão?
Jan: É.
Sofia: É palavrão?
Jan: Sim
Sofia: Fala de que “é palavrão”!
Jan: É palavrão!
Sofia tinha seu barco carregado de genes também diferenciados como qualquer
pessoa. Sofia é humana e assim sendo não precisava ser comparada: “Meu aluno é
o oposto dela!” Essa frase ecoava em meus ouvidos..., bem como o desânimo batia
nas costas. Senti-me cansado, vencido. Seria preciso dar razão à Duquesa pelas
frias palavras ditas?! Melhor seria ter descoberto o caminho para chegar até o
mundo de Sofia, como fez o professor de Temple Grandin. Ele havia descoberto o
caminho para chegar até ela...
170
Desse convívio, pode-se inferir que a tentativa para que ela respondesse sempre às
nossas perguntas, ‘às nossas verdades’, aos nossos anseios, muitas vezes passam
por cima das perguntas que Sofia gostaria de fazer, das ‘verdades’ que ela quer
mostrar e das respostas que anseia ouvir. Na busca de trazê-la à nossa realidade,
ela nos fornece pistas das suas múltiplas realidades, numa tempestade de
perguntas, num furacão de frases nem sempre entendíveis. Enquanto brinca com o
quebra-cabeça, Sofia começa a fazer perguntas e comentários.
Sofia recebeu uma atividade para pintar somente onde houvesse o número 1.
Porém, ela pintou aquilo que teve vontade de pintar, não seguindo as minhas
orientações. Logo perguntei:
171
Sofia não deu importância para o que eu falei e continuar a pintar do seu jeito.
Questionei:
Assim, por não ter feito a pergunta corretamente, obtive a resposta: “12 horas”.
Mesmo que seja difícil responder a uma pergunta, isto não significa que ela tem uma – e só
uma- resposta certa (GAARDER, 1995, p. 25).
172
Na sequência, Sofia recebeu atividades que mais gosta de fazer: pintar! E em meio a
tantos desenhos e pinturas dialogávamos: eu, com o objetivo de ensinar algo, e ela,
com sua ingenuidade, nem se preocupava comigo ou com algo ao seu redor,
ensinando, dessa forma, que há coisas bem maiores do que saber contar... Em meio
às atividades, Bia expõe sua opinião:
Bia: Sabe o que eu achei? Você trouxe muita informação. Você quis ensinar o número
1, o número 2 e trouxe 4 anéis. Muita atividade. Eu tenho outro aluno autista e pra ele
eu já ensinei até 10. E ele aprendeu. Ela, devido à deficiência intelectual, tem que ser
mais devagar. Cada autista tem seu jeito.
Bia surpreendeu ao fazer a comparação entre seus alunos, o que de certa forma,
provocou-me reflexões. Aquelas mesmas que eu fazia quando a Duquesa os
comparava. Não havia necessidade disso. Sofia é única, singular, ímpar!
-Ela é Sofia Amundsen, disto ela tem certeza. Mas ela também vive
segundo as leis da natureza. O problema é que ela mesma não percebe
isso, pois por trás de tudo o que faz existe um número muito grande
de motivos extremamente complicados (p. 273).
Assim me senti: livre para escrever! Livre para pensar, errar, caminhar, desarrumar
as lógicas, desorientar. Aprendi muito com Alice e mais ainda com Sofia. Não estou
certo de que ela teria essa resposta: “será que ela já se acostumou com o mundo?”
Em contraponto, eu perguntaria: e o mundo será que se move para se acostumar
com ela?
34 GAARDER, 1995, p. 30
174
de filosofia de Sofia, o Alberto. Fui tanta gente: Bia, Emy, Walk, eu mesmo, e
também fui Sofia!
- Quer dizer que é falsa a sensação de que nossa personalidade possui um núcleo constante.
Nossa noção de eu compõe-se, na verdade, de uma longa cadeia de impressões isoladas, que
nunca conseguimos vivenciar simultaneamente (GAARDER, 1995, p. 293).
Isso mesmo, Sofia; Todavia, nesse momento que me torno você, posso responder à
pergunta do título: não! Eu não preciso decidir nada! Não acostumei com o mundo e
nem ele acostumará comigo. E tenho a absoluta necessidade de que seja desse
modo. Acostumar não nos permite crescer. Acostumar não permite que o outro nos
veja em nossa essência! Acostumar é um verbo que deveria se ressignificar! Mas,
enquanto isso não acontece, há outra pergunta que preciso responder, aquela
norteadora desta pesquisa!
Queria afirmar, simplesmente, que o processo ocorre e ponto final! Porém, não
seria justo nem comigo, nem com Alice, nem com Sofia, com a Duquesa ou com Bia.
O processo caminha a passos lentos e, na maioria das vezes, suplicantes, penosos,
dolorosos e em contrapartida: fascinante, dependendo do ponto de vista de cada
um, dependendo também da vontade de cada um, das possibilidades de se colocar
no lugar do outro, de tocar, de experimentar se sentir como o outro sentiria se
estivesse em seu lugar . É difícil aceitar o diferente? Nem tanto. É fácil colocar-se no
lugar do outro? Nem sempre! Mas é um exercício necessário.
No contexto desta pesquisa, observou-se nos encontros que nem sempre eram
relacionadas atividades que contemplassem as necessidades de Sofia: ou a
atividade era comum à dos outros alunos, ou era um exercício planejado de outra
escola para outro aluno autista. Assim como Alice, Sofia parecia ser
constantemente invisibilizada, mecanizada, recebendo atividades somente enquanto
o pesquisador estivesse presente. Pois, no atraso de algumas vezes, Sofia estava
“ociosa”, enquanto os outros alunos estudavam. No entanto, percebo que este [a
escola regular] é também o lugar de Alices e Sofias. Entretanto é preciso ter mais
que olhos para poder vê-las. Nesta história, quem sou eu já não importa, não é a
questão. E quem é Sofia: heroína obscura ou obscurecida?
175
Para que alguma coisa delas chegue até nós, foi preciso, no entanto, que
um feixe de luz, ao menos por um instante, viesse iluminá-las. Luz que vem
de outro lugar. O que as arranca da noite em que elas teriam podido, e
talvez sempre devido, permanecer é o encontro com o poder: sem esse
choque, nenhuma palavra, sem dúvida estaria mais ali para lembrar seu
fugidio trajeto (FOUCAULT, 2003, s.p.).
“Não é alfabetizada!”, “Não sabe contar!”, “O que eu posso fazer com ela?” eram
falas da Duquesa. E assim, mudam-se os personagens, mas os discursos continuam
os mesmos. Surgem novas Rainhas de Copas dispostas a cortar novas cabeças. As
palavras usadas para Alice são transferidas agora para Sofia em uma naturalização
do discurso quase convincente. E os clichês que a envolvem são ditos em voz alta,
como um jogral, ensaiado, enraizado, bem trançado:
“- Sofia é autista. Se você conseguir que ela olhe para você já ganhou seu dia!”
Me senti sufocado com essas e outras palavras ouvidas durante a pesquisa, e não
me conformo com a falta de ar que elas carregam. Reduz-se Sofia ao discurso do
olhar: “O autista não te olha nos olhos!”, ou “o autista tem seu mundo próprio!” e
ainda, “Não dá para entender o autista!”, e formam-se as imagensnarrativas da
pessoa com deficiência, sem ao menos procurar entendê-la, procurar ajudá-la a
trilhar novos caminhos. Fazemos a imagem do outro pois é mais fácil apontá-los e
nos esquecemos que todos temos o nosso grau de autismo: nem sempre é olho no
176
olho; temos o nosso próprio mundo e não é a qualquer um que se permite a entrada.
Também, muitas vezes, não somos ou não nos fazemos compreensíveis.
Quando me recuso a ter um autista em minha classe, em minha escola, alegando não estar
preparado para isso, estou sendo resistente à mudança de rotina.
Quando digo a meu aluno que responda a minha pergunta como quero e no tempo que determino,
estou sendo agressivo.
Quando espero que outra pessoa de minha equipe de trabalho faça uma tarefa que pode ser feita por
mim, estou a usando como ferramenta.
Quando, numa conversa, me desligo, "viajo", estou olhando em foco desviante, estou tendo audição
seletiva.
Quando preciso desenvolver qualquer atividade da qual não sei exatamente o que esperam ou como
fazer, posso me mostrar inquieto, ansioso e até hiperativo.
Quando fico sacudindo meu pé, enrolando meu cabelo com o dedo, mordendo a caneta ou coisa
parecida, estou tendo movimentos estereotipados.
Quando me recuso a participar de eventos, a dividir minhas experiências, a compartilhar
conhecimentos, estou tendo atitudes isoladas e distantes.
Quando nos momentos de raiva e frustração, soco o travesseiro, jogo objetos na parede ou quebro
meus bibelôs, estou sendo agressivo e destrutivo.
Quando atravesso a rua fora da faixa de pedestres, me excedo em comidas e bebidas, corro atrás de
ladrões, estou demonstrando não ter medo de perigos reais.
Quando evito abraçar conhecidos, apertar a mão de desconhecidos, acariciar pessoas queridas,
estou tendo comportamento indiferente.
Quando dirijo com os vidros fechados e canto alto, exibo meus tiques nervosos, rio ao ver alguém
cair, estou tendo risos e movimentos não apropriados.
Somos todos autistas. Uns mais, outros menos. O que difere é que em uns (os não rotulados),
sobram malícia, jogo de cintura, hipocrisias e em outros (os rotulados) sobram autenticidade,
ingenuidade e vontade de permanecer assim.
177
De todo o exposto, vale, agora, finalizar (?), ou por um lado, refletir sobre,
Sofia, Alice, Emy, Walk..., suas pessoas permitem refletir e dizer o quanto foi
importante a decisão de ingressar neste mestrado em busca de respostas
minimizadoras das minhas angústias em relação aos meus alunos mais do que
especiais. Ao iniciar os estudos, com certeza, havia a completa ciência e consciência
de que eu seria o narrador da história de duas garotas especiais vagando como
corpos sem vidas na escola.
E, de repente, Sofia
Todavia, houve um engano; esta não é uma história delas, é uma história de minha
vida, de minhas memórias, as quais elas foram fundamentais para a formação do
meu eu, caçador de mim! E, nesse aspecto, nesse conflito, nessa transformação
cotidiana da vida, percebi que, na verdade, quem precisa ser incluído sou eu, são os
colegas professores, é a escola, é toda a comunidade. São todos aqueles que se
julgam despreparados, porque, nesse caso, compete a cada um decidir se preparar,
qualificar, capacitar, se aparelhar de forma ser incluído nesse meio diverso,
singular, distinto. É preciso aprender a não se acostumar...
Enquanto isso:
178
Marina Colasanti
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as
janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque
não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as
cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o
sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café
correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da
viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os
mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas
negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra,
dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir
para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser
visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para
ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais
trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar
a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado,
conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não
perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema
está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está
contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a
gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que
fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para
evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A
gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto
acostumar, se perde de si mesma.
(1972)
O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro,
1996, pág. 09.
Homenagem à Sofia
Homenagem à Alice
REFERÊNCIAS
ALVES, Nilda; OLIVEIRA, Inês Barbosa. Uma história da contribuição dos estudos
do cotidiano escolar ao campo de currículo. In: LOPES, Alice Casimiro; MACEDO,
Elizabeth [Orgs]. Currículo: debates contemporâneos. 2. ed. São Paulo: Cortez,
2005.
BEYER, Hugo Otto. A criança com autismo: propostas de apoio cognitivo a partir da
“teoria da mente”. In: BAPTISTA, Cláudio Roberto; BOSA Cleonice e cols. Autismo
e Educação: reflexões e propostas de intervenção. Porto Alegre: Artmed, 2002.
BRIGGS, John; PEAT, F. David. A Sabedoria do Caos: sete lições que vão mudar
sua vida. Rio de Janeiro: Campos, 2000.
183
CARROL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. 11ª ed. Porto Alegre: L&PM
Editores, 1998.
FIGUEIRA, Felipe. Para uma nova imagem de inclusão. Revista Filosofia, ciência
& vida. Ano viii, nº 97, Ago. São Paulo: Araguaia, 2014.
______. A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder-saber. Ditos e
escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 203-222.
______. A Ordem do Discurso. 13ª ed.- São Paulo: Edições Loyola, 2006.
______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 38ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
______. O direito de ser, sendo diferente, na escola. In: RODRIGUES, David (Org.).
Inclusão e Educação: doze olhares sobre a educação inclusiva. São Paulo:
Summus, 2006.
185