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IMAGENS DA COLONIZACAO etre Tee LL de Caminha a Vieira Tmt ui : c= CeCe ei eM Ratz Mee Al Trees Copyright © 1996, Ronald Raminell ‘Todos os direitos reservados, A reprodugio no-autorizada desta publicacao no todo ‘ou em part, .onstitui violagto do copyright. (Lei 5.988) 1996 Direitos para esta edigio contratados com Jorge Zaher Editor Ltda, ua Méxi-o 31 sobreloja 2031-144 Rio de Janeiro, RJ tel: (021) 240-0296 / Fax: (021) 262-5123, usp ~ Editora da Universidade de Sao Paulo Ay. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374 6° andar ~Ed. da Antiga Reitoria ~ Cidade Universitaria (5508-900 — Sao Paulo SP Brasil Fax: (011) 211-6988 Tel: (O11) 813-8837 +. 216 Capa: Rara Dias, ustragao: Gravura de Theodor de Bry (cliché, Biblioteca Nacional de Paris) ‘CIP-Brasil. Catalogacgo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Ry. Raminelli, Ronald Imagens da colonizacdo: a representagio do indio de Caminha a Vieira / Ronald Raminell, —Riode Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1996, Indui bibliografia ISBN 85711097721 1. fad \izacio. 2. indios do Brasil = Primeiros contatos com os portugue: 86, 3, Brasil -Hist6ria~ Periodo colonial, 1500 1822 Titulo. I. Thulo.A representacao do indio deCaminha.a Viera DD — 98041 DU — 981 Prefacio, 7 Introducio, 13, Agradecimentos, 21 I. GENTIOS E RELIGIOSOS, 23 1. A natureza dos amerindios, 23 2. Indio, homem natural, 34 3. Indios cristéos, colonos-tutelados, 41 TL. BARBAROS E COLONIZADORES, 53 1. Dos esterebtipos, 56 2. A natureza barbara, 66 3. Legitimando a guerra justa, 69 4. O barbaro e 0 martir, 73 5. Pseudometamorfose, 79 ‘TI. MULHERES CANIBAIS, 84 1. Canibalismio de afinidade, 85 2. Canibulismo de repulsio, 93 3. Mulheres indias, mulheres européias, 98 IV. O DEMONIO £ A PoLfrica, 109 1. Miserabilidades no império diabdlico, 112 2. Um sistema agradével, 117 3. A resisténcia de Sata, 121 4. Santidade do Jaguaripe, um levante demonizado, 128 5. Sobre 0 compld, 133 V. 0 inDIO EO RENASCIMENTO PorTUGUES, 137 1. Do pragmatismo lusitano, 137 2. O indio na metrépole, 140 3. O fascinio pelas grandes civilizagées, 148 4. O indio nas artes visuais, 152 Conclusio, 163 Referéncias Bibliograficas, 168 Bibliografia, 177 Prefacio Diferentemente do que sucedeu com o negro, objeto de inconté- veis estudos desde o inicio do século — como a exorcizar o horror da escravidio —, 0 indio tem sido pouco estudado em nossa historia. B verdade que nossos etnélogos, assim como os estran- geiros, tém se debrucado sobre o papel da guerra, sobre a estru- tura da organizagao social, das relagdes de parentesco, e ainda sobre tantos outros assuntos, valendo-se, muitas vezes, dos pobres testemunhos que ainda restam em nossas reservas e nas fronteiras que a expansio “branca” e “civilizada” nao logrou exterminar; tais estudiosos produziram estudos notiveis, desde os mais an- tigos, como 0s que definiram em Lévi-Strauss a vocacao de an- tropélogo, ou os que fizeram de Métraux um ponto de referéncia Obrigatério, até os mais recentes e jé cléssicos, como os de Roberto Cardoso de Oliveira, Maria Manuela Carneiro da Cunha, Eduardo Viveiros de Castro. Entre os historiadores, contudo, 0 indio s6 se tornou tema mais habitual bem recentemente. E malgrado 0 brilho das andlises etnol6gicas, elas nao substituem a abordagem hist6rica: na falta desta, um grande vazio ia se formando. Para ndo cometer injusticas, é preciso lembrar o trabalho pioneiro de Alexander Marchant, Do escambo a escravidio, e as observacdes de Stuart Schwartz, sempre agudissimas mas em geral dispersas por suas varias obras. Nos tiltimos anos, dois excelentes trabalhos ajudaram a reequacionar, respectivamente, a problematica da escravidao indigena e das relag6es entre cul- tura, catequese e colonizagio: Negros da terra, de John Manuel Monteiro, e A heresia dos indios, de Ronaldo Vainfas. No cémputo geral, porém, continua 0 débito para com 0 tema, e perdura muitas vezes uma espécie de esquecimento sobre a escravizagio 8 imagens da colonizagio do indigena — obscurecida, aliés, pelo grande destaque dado a do negro, ressalvando-se obviamente a disparidade numérica en- tre uma e outra, e a importéncia, em termos globais, que uma e outra assumiram na economia colonial. Imagens da colonizagio, de Ronald Raminelli, dé seqiiéncia, por um lado, a este esforco incipiente de estudar os indios em chave hist6rica, valendo-se antes da perspectiva diacrénica do que da sincrénica — e diferindo, portanto, dos trabalhos antro- pologicos acima referidos. Por outro, inaugura um viés analitico inédito no tratamento do tema: o da histéria antropolégica, ou antropologia historica, com forte influéncia das andlises iconol6- gicas norteadas pelos trabalhos dos warburguianos — destacan- do-se, entre estes, Erwin Panofsky e Ernst Gombrich. Neste tra- balho precursor, as imagens assumem o mesmo estatuto que as fontes escritas; aliés, as andlises das representagoes iconograficas sobre o Mundo Novo.constituem um dos pontos altos de Imagens da colonizagao. Mas também o trabalho com as fontes escritas merece des- taque; de registros muitas vezes usadissimos— como o sao varias das cartas jesuiticas do primeiro século — 0 autor extrai inter- pretacées instigantes e originais, provando mais uma vez que, em Histéria, a documentagao é inesgotavel, sempre passivel de abordagens diferentes. Nas consideragdes de Léry acerca danudez, das mulheres indias, o autor mostra, por exemplo, a presenca do contraponto entre simplicidade e artificialismo. Por fim, hé fontes in€ditas ou pouco trabalhadas, como os processes inquisitoriais contra mamelucos, depositados no Cartério da Inquisigéo de Lis- boa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo. E, sobretudo, andlises mais propriamente iconol6gicas realizadas pelo autor, que nao descuram, contudo — seguindo o bom conselho de Carlo Ginz- burg em Indagagoes sobre Piero —, da indispensdvel contextuali- zacio hist6rica, Do confronto entre imagem e texto escrito — no primeiro caso, as gravuras sobre 0 Novo Mundo que ilustravam as publi- cagées de obras como as de Hans Staden, Jean de Léry, André Thevet, ou que integravam colesées como a das "Grandes Voya- ges”, do editor Theodor de Bry;nosegundo, as prépriasnarrativas dos autores mencionados, e ainda outras como as de Gabriel Soares de Sousa, Ferao Cardim, Yves d’Evreux — ressaltam 0 aspecto mais instigante do estudo de Raminelli. 0 objetivo ultimo preficio 8 é compreender o significado das imagens produzidas pelos eu- ropeus acerca dos indios da América portuguesa no decorrer do século XVI, entrando-se um pouco pelo século xvu: rastrear as matrizes sobre que se assentaram, as condigdes em que se pro- duziram, mostrando, por fim, 0 quanto tal tipo de andlise con- tribui para melhor compreender a natureza dos diversos projetos colonizadores integrantes do sistema colonial portugués. Se texto e imagem podem dizer a mesma coisa, freqiiente- mente discrepam. O canibalismo é um dos temas em que ocorrem ‘com mais freqiléncia tais deslizamentos de significados — ou pseudometamorfoses, como o autor prefere dizer, parafraseando Panofsky. Tal como foram representadas na cartografia portugue- sa, as préticas indigenas nao se pautaram pela observacao em- pitica, inspirando-se antes em alegorias alemas (cap.tt, p.63). Nos demais paises europeus, esses deslizamentos também se verifi- caram, e gravuras idealizadas com base em outros contetidos, proprios as tradigdes culturais do Velho Continente, foram sis- tematicamente reutilizadas — e aqui, quem guia Raminelli € outro ilustre warburguiano, o Emnst Gombrich de Arte ¢ ilusio. Qual o significado profundo dessas pseudometamorfoses? Por que, afinal, so ativadas? Primeiramente, porque a arte nao seguia, naquela época, critérios de representagéo norteados eminentemente pela obser- vacdo direta da natureza — malgrado 0 dbvio peso de um na- turalismo na arte renascentista. Nao se representava 0 que se tinha diante dos olhos, mas 0 que era possivel e licito representar, segundo normas e cénones muito bem fixados. Em segundo lugar, porque a representacio dos indios obedecia quase que a um pro- _grama, importantissimo a consolidacao e mantenca do predominio europeu na América. O indio representado na iconografia euro- Péia € 0 indio barbaro, selvagem, antropéfago — incapaz, por todos estes atributos, de gerir a propria vida, e justificando, sem maiores problemas, a dominagio européia — tanto a econdmica ¢ politica quanto a espiritual, viabilizada pela catequese: “Enfim, a representagao do indio como gentio, como cristo colono-tute- lado, seria o principal trunfo dos religiosos para permanecerem no comando das comunidades amerindias” (cap.t, p.51). Tais re- presentagées, portanto, difundiam esterestipos de barbarismo, nao raro imputando-lhes caracteristicas demonfacas. Estas nao eram meramente detrativas, constituindo também um esforgo de 10 imagens da colonizacio “absorver a diversidade cultural encontrada no Novo Mundo” {as palavras sao do autor no capull, p.66) e de integrar 0 indio a0 imaginério ocidental por meio de uma nova classificagio e de uma nova atribuigao de valor & sua imagem. Por isso a aproximacao do indio aos elementos ameacadores ¢ negativos da cultura européia: os jé aludidos barbaros, antro- péfagos e homens selvagens, mas também os monstros e as bru- xas; 0 século XVI, quando comegou a colonizagéo da América, foi o de maior mortandade para as bruxas, ou pseudobruxas, como uma vasta e variada bibliografia vem destacando nas iil- timas décadas. No belissimo capitulo m, “Mulheres canibais", ficam evidentes os mecanismos de mais esta pseudometamorfose. Retomando certas idéias que outros autores, entre os quais me incluo, haviam indicado hé alguns anos, Raminelli vai muito além, sobretudo pelo brilho da andlise que aqui explora, mais uma vez, com rara felicidade, os descompassos entre imagem e texto. Numa tradigdo iconogréfica fixada por Eckhout, atribuia-se a0 repasto das mulheres canibais partes do corpo do guerreiro morto que, a rigor — como informa a etnologia — munca Ihe couberam; por outro lado, gravuras anteriores, como as de De Bry, sistematicamente hiperdimensionaram a participacao femi- nina em tais festins, atendendo antes a um gosto mis6gino sensacionalista, nutrido com habilidade por gravuras alemas — ‘como a série de Hans Baldung Grien que retratou feiticeiras em- preparacdo para 0 sab4 —, do que a eventual fidelidade com relagdo aos costumes amerindios do Novo Mundo. Vale a pena transcrever a instigante conclusdo deste capitulo: Assim, as guertas, a antropofagia e as mulheres seriam os meios ideais para recriar uma ambientagao infernal, uma atmosfera fan- {stica e atemorizadora bem ao gosto da época. As fndias canibais de Albert Ekhout e Theodor de Bry portam membros decepados, xgesticulam, devoram bragos e pernas, mesclavam-se as bruxas, retratadas em meio a 0ss0s humanos, gatos, bodes e pogdes ma- gists, O cendrio permita aos protestants sentir emogGes seme- antes as vivenciadas pelos primeiros colonizadores. Enfim, as mulheres canibais traduzem a alteridade do Novo Mundo, pois antes mesmo da descoberta da América jé ocupavam um espago no imagindrio cristo (p.74).. Se so oportunas as consideragdes sobre o viés politico-de- monol6gico com que os colonizadores enxergaram 0 mundo mé- preficio * n gico-religioso dos indios na América portuguesa imputando a seus agentes comportamentos sediciosos, aproximando 0 pajé aos bruxos e bruxas da cultura européia (cap.v, “O deménio e a politica”), é igualmente importante a anélise final sobre o desta- que reduzido das representagGes do indio na iconografia lusitana. Nesta, manifestaram-se 0s tracos empfricos que Joaquim Barradas de Carvalho detectara, em estudos classicos, como caracteristicos ao universo mental do renascimento portugués, e foi sobretudo nna cartografia que apareceram as imagens de indios: mapas que serviam, pragmaticamente, aos viajantes, mostrando-lhes 0 ca- minho do Novo Mundo, e alertando-os para os perigos que 14 encontrariam. Os franceses encontraram nos indios uma alteri- dade cémoda para poderem refletir sobre sua propria sociedade —e Montaigne ilustra bem tal processo; 0s portugueses, senhores de um vasto império habitado, inclusive, pelos amerindios, pre- feriram sonhar com as imagens dos habitantes do Oriente: a india, a China, o Japao. Foram estas as paragens que povoaram, de fato, a imaginacio lusitana na época das descobertas. trabalho de Ronald Raminelli € precioso. Por um lado, filia-se a uma grande tradicao de hist6ria cultural, onde 0s ex- poentes talvez sejam Antonello Gerbi e Sérgio Buarque de Ho- anda, Por outro, vale-se do vasto conhecimento dos estudos an- tropolégicos — Sahlins parece atrai-lo mais do que outros teéricos da antropologia — e etnol6gicos, aproximando-se de um novo enfoque, bastante contemporaneo: veja-se sua familiaridade com Michelle Duchet, Bernadette Bucher, Roger Bartra, para citar ape- nas alguns. Entre 0s estudiosos da literatura, afina bem mais com Frank Lestringant do que com Stephen Greenblatt; mais do que exaustivas andlises de discurso, é de fato a possibilidade analitica surgida a partir do confronto texto/imagem que o interessa, a metodologia propria ao Instituto Warburg mas enriquecida pelo viés cuidadoso do historiador. Ainda sao raros, entre nés, trabalhos que, apesar de eruditos eatualizados, mantém viva uma tradicao mais propriamente nos- sa de pensar, buscando solucées proprias para enfrentar os pro- blemas fundamentais de nossa hist6ria, sem pedantismo e com frescor. O de Roriald Raminelli é um destes, como 0 leitor ira constatar, diga-se, alias, com grande prazer. LAURA DE MELLO E SOUZA INTRODUGAO As imagens dos povos indigenas construidas pelos europeus nos primeiros séculos da colonizacao constituem um tema fascinante quase inexplorado. A bibliografia sobre o periodo preocupou-se em estudar as formas de domina¢ao e os primeiros estabeleci- mentos agricolas voltados para o comércio europeu. Os historia dores nao priorizaram os temas teol6gicos e filos6ficos em tomo da “assimilagao” dos amerindios ao imagindrio ocidental. Des- cartaram, assim, uma anélise mais consistente sobre a relacdo en- tre brancos e indios, colonizadores e colonizados. A tradi¢ao eu- ropéia buscou em um passado remoto argumentos para conso- lidar essa relagdo pautada pela desigualdade. Os europeus ndo eram iguais aos amerindios: a superioridade dos primeiros res- paldava a conquista, a colonizagéo e a catequese. Os nativos desconheciam o cristianismo, menosprezavam 0 ouro e a idéia de trabalho tal como concebida pelos colonizadores. Portanto, eram considerados seres degenerados, decaidos e necessitados da intervengao européia para tomar os rumos de uma vida melhor, ‘uma vida pantada nos mesmos principios ¢ valores da cultura ocidental. Esta abordagem do problema esté ausente dos estudos dedicados aos primeiros contatos entre os indios e os brancos. No entanto, ela explicaria em boa parte a dinémica da economia colonial. Sobre o emprego da mao-de-obra indigena hé 0 importante trabalho do historiador norte-americano Stuart B. Schwartz, Se- ‘gredos internos, onde analisou as formas encontradas pelos por- ‘tugueses para integrar os nativos aos empreendimentos desen- volvidos no Brasil. O historiador enumerou os projetos coloniais da seguinte forma: imagens da colonizagio O primeizo, empregado pelos colonos, consistia na coergao direta, sob a forma de escravizacéo. O segundo, experimentado pelos jesuitas ea seguir por outras ordens religiosas, foi a criacio de lum campesinato indfgena, tornando flexivel as demandas euro- péias por meio da aculturacdo e destribalizasio. A terceira estra- ‘égia foi aplicada tanto por leigos quanto por religiosos. Consistia fem integrar aos pouicos os indigenas individualmente como tra- balhadores assalariados a um mercado capitalista auto-regulavel 1 A referida tipologia despertou-me para o problema dos projetos coloniais, para as formas de insercao do gentio, encon- tradas pelos colonos, pelos jesuftas e pela administracao colonial. ‘Aos indios caberia escolher entre o rigor da escravidao e a Protecdo dos jesuitas. Comumente, preferiam a segunda alter- nativa, porém ela mostrava-se tao destrutiva quanto a primeira. Os padres interferiam abertamente nos costumes indigenas, fazendo-os abandonar préticas perpetuadas por seus ancestrais. Os religiosos langaram-se contra os padrdes da cultura dos {Indios da costa do Brasil. A poligamia, o casamento entre primos, a antropofagia e a guerra foram duramente perseguidos e ex- tintos.entre as populagdes que viviam nas areas colonizadas. Neste sentido, os projetos coloniais minavam os pilares da tradicdo tupinamba. Os projetos coloniais sero aqui entendidos como parte de um sistema resultante da expansdo comercial européia. O cldssico estudo de Femando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, permitiu-me visualizar a absorgao do indio a0 sistema colonial, regido pelos principios do mercantilismo. A des- coberta da América deu-se no curso da abertura de novos mer- cados para o capitalismo mercantil. O escambo com os indigenas constituiu uma primeira etapa desse proceso. Em seguida, houve a necessidade de consolidar o dominio sobre 0 novo territ6rio ¢ criaram-se, entéo, condig6es préprias para o desenvolvimento de atividades econdmicas capazes de satisfazer as exig@ncias do mer- cado europeu. Durante a Idade Moderna, a colonizagio de areas recém-descobertas iniciava-se com um pequeno povoamento, que produzia para 0 seu proprio consumo. Ao longo dos anos, as atividades econémicas coloniais se dinamizavam ese articulavam a0 comércio europeu, obedecendo aos principios do capitalismo mercantil. “Ora, isto obrigava as economias coloniais a se orga- nizarem de molde a permitir 0 funcionamento do sistema de introdugio 6 exploragio colonial, 0 que impunha a adogio de formas de tra- balho compulsério ou na sua forma limite, 0 escravismo.2 © comércio colonial promovia a acumulagdo primitiva de capitais nas economias européias e exigia formas compulsérias de trabalho. Nos tr6picos, as atividades produtivas nao resistiriam ao assalariamento, pois os custos seriam muito altos e impediriam a exploragio colonial. Sem contar com a mao-de-obra livre, os colonos produziriam para o seu consumo, aniquilando as poten- cialidades de um comércio intemacional. A solucdo para o im- passe foi a introducao de escravos africanos. A escolha pautava-se nna resisténcia dos jesuftas contra a escravidao dos nativos, na baixa densidade demogrdfica e na lucratividade do trafico ne- greiro. © combate inaciano contra a escravizacio do indio e o dis- curso em torno da inadaptagio dos nativos a lavoura no impe- diram que os indios fossem empregados como forga motriz nos primérdios da exploragao da cana-de-acticar. Contudo, para No- vais, a rarefac4o demogréfica e a dificuldade de captura seriam 0s mais graves empecilhos para o emprego dos autéctones como brago forte da economia canavieira. Por outro lado, a preferéncia pelo africano revela as engrenagens do sistema mercantilista de colonizacao. Para 0 comércio metropolitano, seria mais lucrativo abastecer as colénias com escravos negros. Por intermédio dos mercadores, 0 tréfego negreiro promoveria a “acumulagio pri- mitiva de capitais” na metropole. Em compensagio, o apresa- mento de indigenas era um negécio interno da col6nia. Os ganhos provenientes desta atividade permaneceriam com os colonos. O projetos coloniais pretendiam inserir os povos indigenas no mundo mercantilista. Deste modo, a mao-de-obra nativa con- tribuiria com a expanso maritima portuguesa. Sem a arregimen- taco do indio, nao haveria forca motriz capaz de implementar fortificagbes, vilas, engenhos e plantagdes. Porém, a intervencao européia nao se restringiu ao ambito econémico. Os colonos e os Viajantes também conduziram os habitantes do Novo Mundo para dentro da cultura da Europa ocidental. Eles perderam pau- latinamente a autonomia prépria das comunidades distantes do Velho Continente e ganharam feic6es e atributos hé muito pre- sentes no imagindrio cristao. Os indios foram, entao, denomina- dos de gentios, barbaros, selvagens ¢ antropéfagos. A partir dessas 16 imagens da colonizagio nomeacdes, 0s colonizadores pretendiam ressaltar o primitivismo dos nativos e sua incapacidade de gerir a propria vida. O aban- dono dos “costumes abominéveis” justificava a intervengéo na América, consolidava a conquista e a colonizacio européias. Osconflitos entre os projetos coloniais, porém, s4o incapazes, de explicar os significados expressos pela imagem do indio. As disputas em tomo da posse dos nativos apenas elucidam as mo- tivagdes para nomeé-los de gentios, selvagens, bérbaros e demo- nfacos. De modo esquemético, podemos afirmar que os coloni- zadores denominavam os nativos de barbaros, seres incapazes de receber a conversa, para reforcar a necessidade de escravi- z4-los, enquanto os sacerdotes procuravam representé-los como gentios, cristéos em potencial, pois, do contrario, a catequese estaria ameagada. No entanto, os varios significados das imagens somente sero compreendidos por intermédio do conhecimento da teologia e da filosofia ocidental. Partindo deste principio, a principal questo da pesquisa é compreender a polissemia da repre- sentagio do indio e sua relacio com os projetos coloniais. Neste sentido, vale ressaltar que a andlise preocupou-se apenas pontualmente com a tradi¢ao indigena, pois sua atencao est4 voltada para os esterestipos forjados pelos colonizadores. No primeiro capitulo, “Gentios e religiosos”, debrugamo-nos sobre a natureza dos americanos. Os religiosos comprovaram o, pendor dos catectimenos para a cristianizacao. Para tanto, deram aos indios e aos europeus a mesma origem. Os americanos, 05 sacerdotes e colonos possuiam a mesma disposicio para receber 0s ensinamentos divinos. A semente da “verdadeira religiio” re- sidia nos coragdes dos naturais da terra, bastaria a intervengao dos padres para o florescimento do grao plantado por Deus. capitulo trata dos principios teol6gicos capazes de legiti- mar a catequese. Assim como santo Agostinho, os sacerdotes acreditavam que 0 mais repugnante dos homens seria alvo do proselitismo cristao. Para os inimigos da corrupgao e do pecado, ‘do havia impedimentos para receber os ensinamentos divinos. Os seres monstruosos teriam capacidade de entender os evange- lhos e se converter ao cristianismo. A diferenga entre 0s pagios, 0s selvagens ¢ os cristdios ndo estaria na espécie. A dissimilitude estaria mais na aparéncia do que na natureza fisica. O mito do ‘homem selvagem também viabilizou a absoryao do indio ao cris- ( introdusio v7 tianismo. Entre os catélicos, a simplicidade e 0 desprezo dos nativos pelo mundo material foram considerados indicios da sa- bedoria divina. Ao contrério dos colonos, os indigenas pauta~ vamvse pela virtude e sinceridade. Omesmo raciocinio levou um huguenotea ressaltaro pendor dos indios para o cristianismo. Jean de Léry também apostou no sucesso da conversio. Para o francés, os “selvagens americanos” eram sinceros, inocentes e virtuosos, qualidades ausentes entre 0s habitantes do Velho Mundo. A naturalidade dos indios estaria mais préxima dos ideais cristaos do que o artificialismo dos eu- ropeus. Porém, entre os protestantes, os valores atribuidos aos “selvagens americanos” possufam um forte apelo “colonialista”, pois enfatizavam a inocéncia dos nativos para denunciar as atro- cidades perpetradas pelos ibéricos no Novo Mundo. Os amerin- dios eram criancas ingénuas, e os cat6licos seres gananciosos. A imagem do indio servia, por conseguinte, aos interesses coloniais dos protestantes. Para além das querelas entre catélicos e protes- tantes, tracei uma comparacao pontual entre os religiosos dos séculos XVI e XVI e os detratores da América do século xvul. Os primeiros acreditavam na reversibilidade do barbarismo ameri- cano; 0s segundos consideravam o continente um espaco de de- gradagao e incapaz de ser recuperado. (O segundo capitulo, “Barbaros e colonizadores”, demonstra como 0 esterestipo do barbaro era difuso na tradicao ocidental Por intermédio dos teélogos medievais, 0 conceito aristotélico atravessou os mares e encontrou solo fértil nos escritos dos padres e nas narrativas dos primeiros desbravadores. No mundo colo- nial, 0 conceito sofreu uma pseudometamorfose, pois adaptou-se aos interesses dos colonizadores. O barbarismo legitimava a guer- ra justa e a escravidao do amerindio, porque os nativos eram incapazes de entender os ensinamentos divinos e de réceber a conversao. Portanto, foram forjados por Deus para servir aos europeus, usando a sua forca bruta em favor dos empreendimen- tos coloniais. Os religiosos pouco diferiram dos seculares quando repre- sentaram 05 nativos como bérbaros. Porém, entre os inacianos, a imagem do bérbaro possuia um novo significado; ndo respal- dava a escravidao, mas valorizava a catequese e ressaltava a missdoherdica dos enviados da Igreja. Com a interferéncia divina, as “bestas humanas” transformavam-se em cristdos devotos. Para 18 imagens da colonizagso tanto, os religiosos sentiam fome, enfrentavam longas caminha- das e a ira dos canibais. No Novo Mundo, eles se martirizavam, purificavam suas almas e chegavam mais préximos de Deus. Na elaboracdo do capitulo, sobretudo na andlise iconografi- ca, recorri aos historiadores do Warburg Institute. Os estudos de Erwin Panofsky e F-H.Gombrich foram fundamentais para per- ceber a difusio dos esterestipos do barbaro A comparacao entre 08 textos e as imagens permitiu-me visualizar como os “meios de comunicacao” dos séculos xvi e xvii veiculavam a imagem do indio. Realizei a pesquisa iconografica em diversas biblioteca. Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, encontrei varias nar- rativas de viagem ilustradas. Na Biblioteca Nacional de Lisboa, descobri uma série dedicada ao martirio dos padres jesuitas, nun- ca antes analisada. Na Biblioteca Nacional de Paris, consultei varios clichés e os microfilmes da colegdo editada por Theodor de Bry. Localizei na Biblioteca da Universidade de Konstanz, Alemanha, as gravuras de Sebastian Miinster e Hans Holbein. A pesquisa iconografica auxiliou-me na elaboragao do ter- ceiro capitulo, “Mulheres canibais”. A comparacao entre texto e imagem permitiu-me delimitar um problema. As descrigdes sobre © cotidiano indigena ressaltavam a participacao dos homens nas guerras, na vinganca contra os inimigos e nos rituais antropofé- gicos. Nas gravuras sobre 0 canibalismo, porém, as mulheres eram as protagonistas dos festins. Em principio, concluf, como 0s antropélogos estruturalistas, que as {ndias exerciam uma fun- So especifica durante os rituais. A partir das imagens e dos textos, entendi que as mulheres sentiam um enorme prazer em exibir e consumir os corpos fracionados dos inimigos. No entanto, considero que a énfase sobre o grupo feminino e 0 quase esque- cimento dos homens eram determinados pelo imaginario euro- peu. A misoginia presente na Europa quinhentista, sobretudo no mundo luterano, hiperdimensionou a participacao da§ indias nos rituais de canibalismo, Em diversas oportunidades, constatei ain- da similitudes entre as nativas e as feiticeiras européias. As mu- Iheres canibais possufam comportamentos e formas fisicas seme- Ihantes as das enviadas de Sata. Noquarto capitulo, “O deménio ea politica’, ademonizasao, mencionada no capitulo anterior, ganhou um aprofundamento. Nas primeiras crénicas sobre a América, 0 tema da coorte infernal era recorrente. Depois da vitéria do cristianismo, os diabos te- introdugio 19 riam deixado a Europa e se dirigido para 0 Novo Mundo. Sob a seducao demoniaca, os feiticeiros enganaram as tribos, condu- zindo-as para uma terra onde todos os desejos seriam realizados. Na busca da Terra do Sem Mal, os amerindios encontraram a morte, seja por intermédio dos castigos desferidos pelos demo- nios, seja pela fome. A intervencao européia almejava reverter 0 quadro de pentiria e libertar os “pobres americanos” da tirania do Mal. Os colonizadores criariam, portanto, um mundo harmé- nico, onde os nativos nao mais passariam fome e teriam roupas e comidas. A miséria e os deménios seriam definitivamente afas- tados. Em outros momentos, os fridios deixaram de ser vitimas e ganharam a pecha de pervertedores. Os desregramentos sexuais, © canibalismo e as superstigbes demonstravam as ligagdes entre 0 indios e Sata. As mencionadas praticas, porém, originavam-se do Diabo e nao provinham da natureza dos nativos. Os relatos. jamais demonstraram a irreversibilidade dos costumes indigenas, cabendo aos padres a tarefa de transformé-los em fiéis,aliados. Porém, a catequese enfrentou a resisténcia dos feiticeiros, agentes do Maligno. Os pajés e os religiosos lutavam por um mesmo ideal, ‘embatiam-se pelo comando religioso das aldeias. A luta contra 0 anticristo, portanto, era a condigdo sine qua non para 0 sucesso da cristianizacao do Brasil. quinto capitulo, “O indio e o renascimento portugués”, conforma uma nova abordagem do problema, a difusdo da ima- gem do indio em Portugal. Em poucas ocasides, os intelectuais Tusitanos preocuparam-se com as comunidades dos tr6picos, pois encantaram-se pelas civilizagdes do Oriente. O fascinio lusitano pela grandiosidade do Império do Centro promoveu a publicagio de varias narrativas de viagens. Nelas, os lusos enfatizavam a rigida organizacio do Estado e a obediéncia dos stiditos. Os cos- tumes amerindios, em contrapartida, nao suscitaram debates teo- logicos por parte dos membros do Colégio da Companhia de Jesus e da Inquisicao de Lisboa. Em Portugal, os religiosos no se preocuparam com os costumes desviantes, com a viabilidade da catequese, nem mesmo discutiram sobre a legitimidade da conquista. Em raros momentos, os intelectuais procuraram inserir as comunidades indigenas nas discussdes teolégicas. Em compensacio, os indios foram fartamente representados na cartografia portuguesa como homens selvagens, como canibais 20 imagens da colonizacéo como auxiliares na faina colonial. Nas cartas geogrficas, havia ainda referéncias sobre os costumes indigenas, as atividades extrativas do pau-brasil e a coergio do colonizador, demonstran- do que a realidade americana deveria constar dos mapas. O prag- matismo portugués, ressaltado por Sérgio Buarque de Holanda, novamente se afirma, pois o homem e a natureza americanos foram initroduzidos, de modo mais intenso, no Renascimento por- tugués por intermédio da cartografia: ora auxiliando 0s des- bravadores do Novo Mundo cumprir sua missao “civilizadora’, ora simbolizando os perigos que os portugueses enfrentariam no novo territ6rio, Notas 1, Scuswaurz, Stuart B, Segredos interns. S40 Paulo: Companhia das Letras, 1988. p40, 2. Nowais, Fernando A., Portugal ¢ Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), 2*ed., Sio Paulo: Hucitec, 1983. p 67 @ 92-106, A eitagio encontra-se na pS. 3. PaNOFSKY, E, Estudos de iconologia. Lisboa: Imprensa Universtéria/Estampa, 1986,; GoweRich, E-HL, lmigenes sinbilicns. Madri: Alianza, 1986; Aree flusio. 80 Paulo: Martins Fontes, 1986; La imagen ye oo. Madri: Alianza, 191. Contei ainda com o importante estudo de Mircusit, WJ-T, Iconology: Image, Tex, Ideology. Chicago: The Univ. of Chicago Press, 1986, Devo ainda dizer que as anilises iconograficas sio tributérias de um importante curso ministrado pelo prof. U- piano T. Bezerra de Menezes, durante 0 primeiro semestre de 1992 AAGRADECIMENTOS Agradeco & Coordenacio de Aperfeigoamento de Pessoal de En- sino Superior (CAPES) por me ter concedido bolsa de estudo, no programa de PICD, entre os anos de 1991 e 1994, bem como a bolsa-sandufche, que me permitiu pesquisar em arquivos e bi- bliotecas portugueses, franceses e alemaes. A Fundagao Univer- sidade Federal do Parand (UNPAR) concedeu-me auxilio nos anos de 1992 ¢ 1994. Por intermédio de minha orientadora, Laura de Mello e Souza, recebi ainda financiamento da Fundagao de Am- paro a Pesquisa do Estado de Sao Paulo ‘"APESP) para publicacao deste livro. A FAPESP também apoion a» pesquisas que realizei para o mestrado e teve uma participacdo decisiva na minha car- reira académica. O Departamento de Hist6ria da Universidade Federal do Parané concedeu-me licenea para pesquisar e redigir a tese. Por isso, no poderia deixar de agradecer aos companheiros e amigos do departamento que sempre me acolheram com tanta conside- ragdo. Nas diversas etapas do trabalho, contei com apoio de varios amigos. Durante a fase de pesquisa em Portugal, fui orientado pelo prof. dr. Francisco Bethencourt, da Universidade Nova de Lisboa. Suas sugestées e empenho foram fundamentais, nao tenho palavras para Ihe agradecer. Em Lisboa, convivi diariamente com Adriana Romeiro e Tiago Miranda. Com a companheira de via~ gem Adriana, enfrentei as saudades do Brasil e as intempéries dag terras lusas. Joaquim Caetano de Oliveira, funcionério do ‘Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, indicou-me biblio- grafia sobre a arte portuguesa do Renascimento. Em Paris, o prof. Jean-Pierre Moreau sugeriu-me a leitura’ de obras recém-publi- cadas no mercado editorial francés e americano. Minha irma, 2 imagens da colonizagio Any Raminelli, ajudou-me na pesquisa realizada na Biblioteca da Universidade de Konstanz. Pelo apoio, criticas e sugestdes, sou grato a Ana Salas, Maria Luiza Andreazza, Etelvina Trindade, Maria Fernanda Bicalho, Vania Fréis, Luciano Raposo Figueiredo, Mamio Teixeira Pinto, Andréia de Oliveira Castro e Margareth Rago. No exame de qua- lificacao e na defesa de doutorado, beneficiei-me das observagées dos professores Fernando A. Novais, Ulpiano Bezerra de Mene- zes, Gilberto Velho, Ronaldo Vainfas e Mary del Priori. Mary também auxiliou-me durante a pesquisa documental e empres- tou-me livros valiosos, sem eles a tese nao teria o atual formato. Antonia Schwinden revisou a tese e sugeriu modificagdes na for- ma de expor as argumentacdes. Laura de Mello e Souza e Ronaldo ‘Vainfas fizeram uma leitura cuidadosa da primeira versio da tese. A eles devo minha formaco e por isso dedico-thes esta tese. Agradeco ainda a Laura pela dedicac4o com que me orientou desde o mestrado. Durante todos esses anos, ensinou-me a buscar novas trilhas historiogréficas. Por fim, o reconhecimento a Beatriz e Nina pelo afeto e ‘compreensio durante esses longos anos de preparacio académica. I GENTIOS E RELIGIOSOS 1. A natureza dos amerindios O padre Simao de Vasconcelos concebeu uma epopéia ao escrever a historia da Companhia de Jesus no Brasil.! Os jesuitas, assim ‘como Ulisses, lutaram bravamente contra as diversidades donovo territério e viabilizaram a misao herdica de converter os indios causa do cristianismo. Enfrentaram as intempéries de uma via- gem maritima cheia de aventuras e aportaram em uma terra desconhegida, indspita e povoada de canibais. Ainda tiveram de resistir as longas caminhadas através das florestas tropicais, per- ‘curso povoado por ongas e cobras que tinham a natureza exética como aliada. A fome e os martirios da purificagio da alma nao faltaram aos herbis da cristandade. Os novos Ulisses nao temeram 5 possiveis monstros escondidos na densa mata e, como guer- reiros, desafiaram 0 maior rival do mundo cristéo. Em priscas eras, 0 anticristo havia dominado a América, e os padres rece- beram a misao de desbancé-lo. As mensagens do Evangelho somente chegariam aos coragdes dos gentios caso 0 poder do Mal fosse desacreditado. Deste modo, a catequese provocaria a ruina do império maligno e pela conversao promoveria a liber dade dos antigos escravos de Sata. A conquista espiritual Iutou contra um incrivel adversério, soberano por seis mil anos do vasto império da “Gentilidade Brasilica”. Durante séculos, 0 Cria~ dor permitiu o abandono do novo continente, destituindo-o de profetas, de Paraiso terreno e de seres racionais. Deus preteriu-o em favor da Europa, Asia e Africa, onde criou o homem, formou (0 Paraiso e enviou os patriarcas. A América permaneceu, até a 2 4 Jmagens da colonizacio chegada dos primeiros enviados da Igreja, sema palavra revelada, sem luz, sem fé, sem salvacao. © povoamento do novo territério “originowse” depois do ano de 1656 da criagdo do mundo. Comparado a Europa, abrigou nticleos populacionais em tempos mais recentes, pois antes do dilivio nao havia homens nessas paragens. “Esta resolucéo é certissima: consta da Sagrada Escritura, porque dos homens que viviam no mundo antes do diltivio, nenhum escapou, exceto as ito almas da Arca de Noé” (p. 82). Depois do dilivio, os homens da Arca de Noé permaneceram no mundo conhecido, pois as escriuras nao mencionam o deslocamento dos sobreviventes em direcéo ao continente recém-descoberto Portanto, declarou o padre Simao de Vasconcelos, os eventos narrados pelos naturais da terra nao mereciam crédito, Os relatos indigenas sobre a inundacéo das 4guas e o salvamento de herdis, mifticos nao passavam de invengGes. A falta de registros escritos permitiu distorcdes e promoveu o surgimento de historias adul- teradas pela fraqueza da meméria e pelos longos séculos. Para o padre Simao de Vasconcelos, os primeiros povoadores da América poderiam ser os construtores da Torre de Babel. A inviabilidade da obra provocou muita frustragio e a necessidade de procurar novas terras para se fixar. “E se assim é, sao muito antigos estes povoadores; porque a histéria da torre passou aos 131 anos depois do dilivio, na era de 1788 da criagao do mundo, 2174 antes da vinda de Cristo” (p. 91). Os hebreus, os troianos € 0s africanos também poderiam ter aportado nessas paragens e iniciado o estabelecimento de novos nticleos populacionais. No entanto, ojesuita descartou todas as possibilidades anteriormente mencionadas, em favor de uma hipétese, segundo ele, mais plau- sivel. E assim constatou que os indios nao se originaram dos antigos povos do Mediterraneo. Seus antepassados partiram de um territério mais préximo do Novo Mundo. Os amerindios provinham de uma prodigiosa ilha chamada Atlante. A ilha localizava-se na boca do mar Mediterraneo, proxima das Colunas de Hércules, e possu‘a uma extensdo agigantada, maior que a Africa e a Asia. Porém, o destino tramou contra a regio, sendo completamente inundada pelas aguas do oceano. O fenémeno ocorreu por ocasiao de um grande terremoto e alu- vido de 4guas de um dia e uma noite. Depois da catastrofe, as Aguas tomaram-se navegéveis, originando o oceano Atlantico. gentiose retigiosos 3 Alguns vestigios dessa gigantesca ilha permaneceram e denomi- naram-se de Madeira, Acores e Cabo Verde. Para 0 imaginoso jesuita, as dimensdes colossais de Atlante comprovavam a con- tinuidade entre a ilha e a América, Talvez.o encontro das terras formasse um tinico continente, tornando plausivel a origem atlan- te dos povos americanos. A existéncia de Atlante promoveu uma calorosa discussao. Muitos negavam a autenticidade do testemunho de Plato, en- quanto os defensores procuravam ind{cios para comprovar 0 des- moronamento da fabulosa civilizagao. Alguns sdbios concebiam- na como invensao € fabula. No entanto, Simao de Vasconcelos nao se incomodou com as dtividas e insistiu, confessando acre- ditar na autoridade do filésofo, chamado em seu tempo “por antonomésia 0 Divino, luz de toda a Filosofia, e de todos seus segredos, e to sério em todo seu dizer: mas também o modo com que fala, quando a segue, descrevendo-a com todas suas particularidades, da grandeza da terra, fertilidade dos sitios, seus bosques...” (p. 94). No Brasil, os nativos acreditavam que seus antepassados vieram de uma outra parte do mundo, sendo gente de cor branca. Em tempos remotos, dois irmaos e suas familias chegaram a estas bandas pelo mar e aportaram em uma baia segura e formosa, que depois foi denominada de Cabo Frio. Os novos povoadores partiram em uma viagem, fugindo da prépria patria por causa de guerras. Em solo americano, os homens comegaram a realizar diligéncias em busca de gente e noticias sobre o lugar. Porém, nada encontraram além da solidao, das feras e das aves. A frescura ea fertilidade da natureza incentivaram a permanéncia do grupo nestas paragens. Nao tardou e 0 pioneiros fundaram o primeiro povoado do Brasil, motivados pela exuberancia da paisagem. Desde entdo, os habitantes se multiplicaram e repartiram entre si as melhores terras. Porém, a unido do grupo sofreu alguns contratempos, que ocasionaram o fracionamento do nticleo ori- ginal. Uma possivel explicagao para as desavengas e o rompi- mento da unidade estaria na disputa, entre as mulheres dos ir- maos, pela posse de um papagaio. A querela provocou tantas paixdes que a familia do irmao mais velho ficou na terra, enquanto © grupo ligado ao mais moco dirigiu-se ao Sul. Os dissidentes costearam 0 litoral e chegaram a um grande rio, denominado mais tarde de rio da Prata. Simao de Vasconcelos considerou 0 %6 Imagens da colonizagio irmao mais jovem como progenitor dos habitantes da América ‘espanhola. “E este dizem foi o primeiro habitador das terras, que hoje chamamos Buenos Aires, Quito, Peru, e as demais daquelas partes” (p. 95). No entanto, a cor da pele, a Iingua e os costumes afastavam os amerindios da origem européia. Se Atlante constituit: onticleo original dos povos da América, como explicar a tez vermelha e as praticas demoniacas perpetradas pelos americanos? Nenhum dos primeiros povoadores, afirmou Vasconcelos, possufa a cor vermelho-tostada. O calor demasiado provocou a transformacao da tonalidade da pele. Tal argumento encontrou respaldo na fi- losofia € na légica dos aristotélicos, que relacionavam o clima frio A cor branca e a negra ao excesso de calor. Arist6teles atribuia a cor branca do cisne & frialdade do ventre da mae; e a negritude do corvo ao calor do ventre. Entre os dois extremos, surgem as outras tonalidades. Por outro/ado, a mudanga da cor, e logo da natureza, somente ocorreu com a persisténcia do calor. Um eu- ropeu exposto ao sol tropical permaneceria com a sua cttis ori- ginal. Os descendentes dos primeiros habitantes da América te- tiam mudado de coloragao devido aos séculos de exposic4o 20 sol e ao calor, mas nao se tornaram pretos como os africanos. Seguindo este raciocinio, o vermelho-tostado, a cor embagada dos nativos, denunciava a origem européia dos povos do Novo Mundo. Porém, argumenta o jesuita, a cor da tez dependia igual- mente dos pais, “porque se ambos tém virtude fria, geram bran- cos; se ambos célida, geram preto: e se uma fria, outra célida, geram de cor entremeia, nem perfeitamente branca, nem preta” (097). A variedade das Iinguas também chamou a atengio de Simao de Vasconcelos. Os primeiros povoadores do Brasil fala- vam um s6 idioma. Depois de longos séculos de isolamento, 0 vernéculo original se adulterou e se multiplicou. Porém, as regras da gramética, com nomes, verbos, declinacdes, conjuga- Wes ativas e passivas, permaneceram. O padre José de Anchieta ressaltou a perfeicao da fala dos nativos, comparando-a a lingua grega. Em que escolas aprenderam, no meio do sertao, tao corretas normas gramaticais? A resposta para 0 mencionado questionamento segue 0 mesmo raciocinio das transformacGes do portugués desde a sua origem no latim. Assim, as falas dos sgentios e rligiosos, 2 amerindios provém de um Gnico niicleo que sofreu mudangas ¢ corruptelas capazes de promover a diversidade lingiiistica dos povos americanos. ‘Vasconcelos encontrou caminhos engenhosos para compro- var a origem européia dos fndios. No entanto, encontrou muitos obstéculos para entender a corrupgao dos costumes, pois os na- tivos eram feras selvagens e desumanas, vivendo “ao som da natureza, nem seguem fé, nem lei, nem rei”, sendo estes os freios € 08 parametros de todo ser racional. Os indios descritos pelo religioso andavam em manadas pelos campos. A nudez dos ho- mens e mulheres os confundia com os animais, com as feras € bestas que viviam “sem empacho algum da natureza” (p. 98). Seus costumes eram isentos de leis, de jurisdicao e de reptblica. Era gente paupérrima, cujo ato de comer realizava-se sobre a terra, enquanto os alimentos provinham da ferocidade, da pres- teza no manejo dos arcos e flechas. Suas orelhas, faces e beigos andavam esburacados; orificios onde engastavam pedras de vé- rias cores ¢ tamanho. “Parecem mais brutos em pé, que racionais hhumanados; uns semicapros, uns faunos, uns sétiros dos antigos poetas” (p. 98). A humanidade ha muito tinha abandonado os filhos da América, pois estes seres comportavam-se como alimé- rias, sem politica, sem prudéncia e possuiam intimeras perver- bes, dados a preguica, & mentira, @ gula e a bebedeira. Neles, a luz da razaoha muito jé havia se extinguido. Caso ainda houvesse algum vestigio dessa chama, ela seria quase da mesma intensi- dade daquela encontrada entre as feras. ‘Simao de Vasconcelos relatou em minticia as erronias ¢ lem- brow © quanto os natives se encontravam afastados da humani- dade ¢ das regras minimas do convivio cristéo. Ao longo da narrativa, a herdica missdo dos jesuitas toriava-se cada vez mais audaciosa e quase impossfvel, pois transformar homens-feras em cristos devotos era uma tarefa ardua. A cada indicio de barba- rismo, a cada lembranca do poder de Sata sobre o gentio, ficava mais distante a construgdo de uma civilizacao crista no Brasil. Mas 08 guerreiros da fé nao se vergavam ante as intempéries da jomada e continuavam o nobre encargo de salvar as almas da danagio. A monstruosidade dos amerindios valorizava o esforgo dos padres e revelava ao mundo o empreendimento colonial dos portugueses. imagens da colonizagso F é bem que conhegam eles, e © mundo, as monstruosidades de sua natureza, para que delas mais admirem a eficécia, com que a lei de Deus de toscas pedras faz filhos de Abraio, e de rudes, € bérbaras, homens racionais: porque € cousa certa, que com a vit- tude, e boa criacao desta santa lei entre os portugueses tem visto no Brasil mudangas mui notaveis nas nagdes desta gente (p. 113). (O importante era demonstrar a notével metamorfose pro- duzida pelo cristianismo e ressaltar o longo caminho trilhado pelos colonizadores para restituir a humanidade a seres que, ha muito, perderam ou adulteraram as regras minimas de civilidade. O nascimento de um novo ser, concebido pelos religiosos e por Deus, promovia a morte de bestas-humanas e 0 surgimento de “cidadaos da cristandade”. A origem atlante do gentio, com cer- teza, somou-se aos esforcos dos padres, pois a natureza dos ame- rindios em nada diferia da dos europeus. Desse modo, padres, colonizadores e indios provém de um mesmo espaco, foram for- jados por um tinico criador, portanto possufam a5 mesmas ca- pacidades. Idéntica logica levou Wes d Evreux a definira crenga natural dos selvagens? O religioso parte do principio de que o criador concebeu 0 espfrito humano com a capacidade de reconhecer a verdadeira religiao. Todo homem possuii potencialidades para se tornar cristéo, tal pendor se encontra adormecido até o dia da revelagio; até o dia do encontro entre o gentio ea divina sabedoria. Mas somente apés a conversao, poderia ele desenvolver as se- mentes plantadas pelo Todo-Poderoso. Em contrapartida, en- quanto permanecesse sob 0 jugo tirdnico do Deménio, ficaria imerso na escuridao das trevas, padecendo fomes e necessidades, No momento em que sua alma se desprendesse do cativeiro, guiada pelos profetas de Deus, vislumbraria a luz, as artes e a8 boas ciéncias. A partir de entao, sua capacidade de aprender se multiplicaria e nasceria a esperanga de eles se civilizarem. Yves d'Evreux acreditava que os tupinamb4s possufam todas as con- dices para sofrer esta metamorfose. Depois de sentir a presenga de Deus, os nativos demonstravam as mesmas delicadezas e ama- bilidades de homens educados . Deus plantou no espirito humano as raizes e as sementes da virtude (semences des vertus), alicerces capazes de originar nascimento dos verdadeiros stiditos da cristandade. Porém, as potencialidades somente floresceriam caso se cumprissem 0s ter- _gentios e religiosos Ey mos do pacto travado entre Criador e criatura. Neste momento, os barbaros despertariam do profundo sono de uma mé crenca, acordariam de um pesadelo cujo protagonista era o proprio prin- cipe das trevas. A Deus caberia fazer arder e queimar a faisca de fogo da luz natural, esperanca que permaneceria quase extinta devido as mil superstigdes e crendices enganadoras. A pequena faisca (la petite étincelle de feu de lumizre naturelle), guardada no coragao dos homens desde 0 diltivio, era a crenca natural. A conversio e a obediéncia cega as leis divinas permitiriam aos homens alimentar 0 fogo da fé e, por conseguinte, viabilizariam o desenvolvimento dos alicerces, das artes e das ciéncias. Somente © cristdo poderia edifiear um prédio e extrair da semente uma bela drvore carregada de flores e de frutos, doutrina esta bem aprovada por Sao Joao Criséstomo, na homilia 55, a0 povo de Antioquia. Para o frade Yves d’Evreux, os selvagens sempre tiveram conhecimento de Deus, nao da Esséncia, da Unidade e da Trin- dade. Conhecer os meandros da divina sabedoria dependia da {6. Somente depois da conversio os nativos alcancariam a sua complexidade. Porém, Deus deixou na natureza vestigios, por intermédio dos quais poderiam os homens tecer algumas conje- turas. Entre os indios, denominou-se Deus de Tupan, a mesma nomeacao dada ao trovao. Ao empregar o mesmo nome no sin- gular, os naturais da terra nao se referiam aos relampagos e tr voes. Conta o frade, um velho indio informou que 0 trovao nao era um homem, pois nao seria capaz de andar de Oriente para ‘Ocidente com tanta rapidez. Ademais, se o fosse, necessitaria de um outro para concebé-lo, pois todo ser procede de um outro. E, finalizou o velho, como Tupan nao 0 é, Tupan nao é humano. Ele existe em toda a parte e criou o mundo. Antes mesmo da chegada dos europeus, os amerindios j4 conheciam 0 Criador. A religiao natural deixou rastros no coracéo dos nativos. ‘No Dililogo sobre a conversao do gentio, o padre Nobrega tam- bém abordou o tema da natureza humana e da predisposicao dos homens, sejam eles bons ou maus, para receber a revelacao. Os indios se comportavam como caes, quando se matavam e se comiam; agiam como porcos, quando perpetravam seus vicios. Mesmo assim, havia entre 03 nativos as sementes plantadas por Deus, prontas para germinar. A conversdo era 0 fogo que amo- leceria o metal e the daria a forma desejada. A forja do Senhor, 20 imagens da colonizagio continuou 0 padre, atuou sobre os seres humanos desde Addo e (0 pecado original. Todos os poves precisariam da purificagao do fogo para encontrar o verdadeiro caminho. Os portugueses, os ‘astelhanos, os tamoios e os aimorés foram originariamente bestas. No‘entanto, possuiam alma e uma bestialidade natural, dualidade que permitiria a metamorfose e 0 nascimento de cristaos devotos. ‘Muitas geracdes adoraram pedras e paus, bois e vacas, reveren- ciaram feiticeiros, diabos e se pautaram segundo preceitos err6- ‘eos. Os fil6sofos romanos alcangaram grande sabedoria endo chegaram a verdade; ao contrério, prezavam a luxtiria ea mentira. ‘Ainda que os indios jamais tivessem alcangado a sofisticacao das civilizagdes cléssicas, entregaram-se aos ferreiros de Deus. Da parte do gentio, digo, que uns e outros tudo sto ferro frio, ¢ que quando 03 Deus quliser meter na forja logo se converterao; © se estes na fragua de Deus ficardo para se meterem no fogo der- radeito, o verdadeiro ferreiro, senhor do ferro, 1& sabe o porqué, ‘mas de aparelho de sua parte tao mau o tem estes como o tinham todas as outras geracies (p 344). Os depoimentos dos padres Simao de Vasconcelos, Yves d’- Evreux e Manuel da Nobrega primam por conceber a catequese como uma retomada da evolug4o humana, Os europeus e 03 amerindios descenderiam do mesmo micleo populacional, pos- suiriam as sementes do cristianismo, carregariam consigo 08 ali- cerces da verdadeira religiao. Portanto, seguiram juntos os mes- mos caminhos até o momento da separacéo, quando os primeiros emigrantes deixaram para trés o Velho Mundo e se embrenharam por terras desconhecidas. A separacdo ocasionou 0 surgimento de homens-feras, de bestas humanas, capazes dos mais atrozes desvios. Assim como Addo e Eva sofreram punicdes pelo pecado original, os indios padecetam pelo seu isolamento e pela igno- rancia em relacdo as Santas Escrituras. O homem foi criado justo e com boa vontade. © homem e a vontade boa séo obras de Deus. “Amé vontade primeira”, comentou santo Agostinho, “que no homem precedeu todas as restantes obras més, foi menos obra que verdadeiro declinar das obras de Deus as proprias. E tais obras sao mas, por serem segundo o préprio cénon, nao segundo Deus...“ A ma vontade levou Ado para longe do.Paraiso, e a permanénciana América, no espaco das trevas, provocou danacao dos gentios americanos. Na verdade, os habitantes do Novo Mun- a primeiro acometeu a todos os homens, depois que Adao e Eva foram expulsos do Paraiso; © segundo afetou os primeiros moradores da América e suas descendéncias, pois 05 ultimos padeceram com os desmandos dos diabos, com alteragGes fisicas e comportamentais devido ao isolamento e a tardia conversdo ao cristianismo. s indios sofreram graves alteracdes na tonalidade da pele, na linguagem e, sobretudo, nos costumes. O canibalismo, anudez eas intimeras erronias perpetuadas pelos naturais do Novo Mun- do representam a segunda degeneracio, a segunda queda. Os padres teriam a missao de trazer os amerindios para 0 mesmo estadio de evolucdo onde se encontravam os europeus cristiani zados. O conhecimento das escrituras e 0 incremento da fé re- moveriam os indicios de barbarie e preparariam os nativos para aleangar 0 reino dos céus. A conversdo traria a purezae a virtude perdidas por Adao depois de ter comido 0 fruto proibido. Para santo Agostinho, Adio e Eva possufam ao mesmo tempo uma vida animal ¢ espiritual e permaneceram no Paraiso submetidos a uma rigida obediéncia aos ensinamentos divinos. Antes da que- da, viviam em estado de inocéncia; depois, em condigao de pecado e peniténcia, Em seguida ao julgamento, eles e seus descendentes receberiam 0 merecido castigo pelas faltas cometidas ao longo de suas vidas. A terceira fase da histria da humanidade , por- tanto, um acerto de contas com o criador e um retorno ao primeiro estadio. Nesta fase, ao contrério de Adao antes da maca, os ho- mens ¢ as mulheres no possuirio 0 corpo carnal.3 Na América, os religiosos desejavam conduzir o indio para a diltima etapa da evolucdo. Para tanto, os amerindios teriam de abandonar os “vis costumes”, converter-se e morrer como cristaos. Deste modo, a vida dos “selvagens americanos” seria absorvida pela temporalidade crista, dividida entre o passado, o presente € 0 futuro. A concepgao de tempo exposta pelos religiosos cons- titui uma ‘filosofia da historia, caracterizada pela Teoria do De- clinio e pela Restauracdo Futura. Os eventos descritos seguem uma l6gica fundada na queda progressiva e na ascensao final. A humanidade viveu o seu periodo glorioso no inicio dos tempos, desde entao a vida dos homens foi marcada pela decadéncia. O futuro promoveré o acirramento deste estado de coisas até o momento em que um agente externo intervier no processo. O cristianismo, por conseguinte, pretende reverter 0 quad de pro- 32 imagens da colonizacio gressiva degradacao da humanidade e implantar o reino dos céus, O futuro é um retomo a primavera dos tempos, uma volta ao mundo antes do pecado original. No entanto, em relacao a saga da humanidade, a historia dos americanos narrada pelo padre Simao de Vasconcelos possui algumas nuangas. A decadéncia das sociedades indigenas reali- zou-se de modo mais acelerado. No Novo Mundo, as perdas tomaram proporgées inigualéveis, quando comparadas deca- déncia que se abateu sobre a espécie humana do Velho Continente. ‘A natureza americana teria redimensionado os efeitos catastr6- ficos advindos com o pecado original? Nao restam diividas para o padre Vasconcelos que, em re- Iago aos habitantes da Europa, 05 amerindios sofreram um pro- cesso de degradacao muito mais acentuado. Segundo Platao, Atlante abrigava uma grande civilizacao, capaz. de rivalizar com a alta cultura grega. No entanto, os vestfgios do seu esplendor desapareceram por completo entre os indios. A escrita, a centra~ lizagao do Estado, a lingua e os costumes perderam-se nos tempos, enfraqueceram até a quase extinc4o. O teligioso destacou a mag- nitude da decadéncia dos americanos, avaliando, de modo in« reto, a forca avassaladora, o poder de destruicao e a hecatombe que acometeram as comunidades egressas da fabulosa ilha. Por que os gregos ¢ romanos rumaram em direcao ao cristianismo e 0s indios se afogaram, cada vez mais, na escuridao? A descoberta tardia do Novo Continente e a ignoréncia prolongada da Santa Escritura teriam proporcionado tal estado de decrepitude? Alguns padres acreditavam nessa hipétese, pois se perguntaram por que Deus abandonou, durante Iongos séculos, a “pobre gente” da ‘América. Caso os missiondrios tivessem chegado ao territérioem. um perfodo mais recuado, os indios nao viveriam em tal estado de degradacao? ‘As teses sobre decadéncia dos americanos se perpetuaram por lonyas décadas. Em meados do século xvi, pensadores como Buffon e De Pauw representaram 0s amerindios como seres in- feriores e incapazes de alcancar o estédio de desenvolvimento da civilizagao européia. A natureza do continente explicaria a degeneracio, a preguica e a indoléncia presentes entre os habi- tantes do Novo Mundo. Para Buffon, os nativos foram inabeis no dominio do meio hostil, a fim de reverté-lo segundo seus interesses. © homem ficou a mercé dos caprichos da maenatureza _gentios e religinsos 3 permaneceu passivo frente as potencialidades oferecidas pelos reinos animal e vegetal. Os amerindios nao se destacaram das ‘outras espécies. O espaco seria entdo dominado pelos répteis e insetos, por seres de sangue frio e de formas agigantadas. ‘De Pauw abordou o problema sob um prisma mais radical: ‘0s homens americanos nao eram animais imaturos, criancas cres- cidas; eram, sim, seres degenerados. A natureza era débil e cor- rompida: débil por estar corrompida; inferior por estar degene- rada. Somente os insetos, as serpentes e os bichos nocivos pros- peraram, tornando-se mais gordos, maiores e mais temidos. O clima seria contrario ao florescimento da sociedade e do género humano. Uma enorme catéstrofe, talvez, explicaria o estado de pentiria vivido pelos animais e homens americanos. De forma pouco clara, De Pauw aludiu a terremotos espantosos, a inun- dagGes diluvianas e & combustao incontrolével como responsaveis pela degradacao. O pensador chegou mesmo a sugerir que um "segundo diltivio” teria afetado apenas a América. A inferiori- dade dos amerindios seria o resultado da destruicao provocada pela catéstrofe, semelhante & debilidade que acometeu a Terra no momento posterior ao diltivio universal. Depois que as Aguas baixaram, constataram-se a degeneragio da fauna, 0 aniquila- mento das Arvores boas, o crescimento dos desertos, a multipli- cacao das bestas e plantas nocivas.® Desde o século XVI, surgiram intimeras explicagées para atraso das populagées americanas. No inicio, culparam os diiabos € 05 feiticeiros pelo estado de pentiria, pois atormentavam a vida dos indios e empurravam-nos para a danacdo. Os cronistas rela- taram uma verdadeira tragédia comandada pelos deménios: os liltimos induziam os nativos & morte. A fome e a pentiria dizi- maram-nos aos milhares, enquanto os filhos de Deus se alimen- tavam da melhor maneira, possu‘am belas vestes, eram temidos e admirados. O desconhecimento do cristianismo também foi apontado como responsavel pela situacao, pois os cristéos nao eram acometidos pelas intempéries relatadas pelos amerindios. s franceses, constatou 0 chefe Iacoupen, eram ricos, valentes, dominavam os oceanos e combatiam os inimigos com a pélvora. Em compensacdo, os gentios viviam errantes, sem roupas e ma- chados. Seus corpos eram frageis a doencas e nao resistiam, como os brancos, as epidemias que grassavam ao longo do litoral do Brasil.’ imagens da colonizagio No século XVII, o Diabo no mais despertava a atengao dos ‘europeus. A perseguicgo as bruxas e as lutas religiosas haviam perdido o impeto original. Deste modo, a maldade nao poderia ser empregada como alibi para explicar a pentiria vivenciada na ‘América. Os pensadores iluministas explicaram “a incapacidade dos nativos” por intermédio das catastrofes naturais. Ao contrério dos religiosos dos séculos xVI e XVII, os detratores da América indo acreditavam no poder do cristianismo para reverter 0 pro- cesso de degeneracio. Buffon e De Pauw nao se preocuparam com a capacidade dos indios em entender o Evangelho ese tornar cristaos devotos. E, assim, ndo consideravam a hipétese de re- verter a decadéncia. Nesse sentido, um mesmo problema — a degeneracao dos amerindios — foi concebido sob dois aspectos. Os religiosos acre- ditavam no declinio temporario e reversivel, capaz. de recuar com a converséo, enquanto os iluministas, particularmente Buffon e De Pauw, apontaram para a corrupsao natural dos americanos ¢ tenderam, portanto, a demonstrar a irreversibilidade do pro- cesso. Em principio, posso tracar uma antinomia entre padres ¢ fil6sofos, entre 05 séculos XVI-XVi1e 0 século XVII. Porém, 0 debate em torno da natureza do indio é muito mais amplo e faz-se mister trilhar novas veredas. 2. indio, homem natural Durante a Idade Média, a Igreja mostrou-se muito ciosa em re- lagdo aos recém-convertidos. Os pensadores cristios possufam um discurso universalista, mas na pratica accitavam aumentar 0 rebanho dentro de regras explicitas: qualquer pessoa poderia ser admitida entre os cristaos, caso aceitasse abandonar os antigos costumes e abracasse uma nova ortodoxia. Deste modo, 0 mais repugnante dos homens, seja barbaro, pagao ou herético, seria alvo do proselitismo cristo. Nao havia impedimentos para aque- Jes que se tornassem inimigos da corrupcao e do pecado. Os seres monstruosos e os homens selvagens, defendeu santo Agos- tinho, teriam capacidade de entender os evangelhos e se converter ao cristianismo. Para 0 tedlogo, a diferenga entre os monstros, ‘0s pagios ¢ 0s cristaos seria em grau, nao em espécie. A dissi- militude estaria mais na aparéncia do que na substancia moral gentios ¢ rligiosos 35 manifestada pelo fisico. No entanto, outros pensadores medievais, preferiram discutir sobre a alma do homem selvagem, sobretudo no que concerne & diferenga entre a alma animal ea alma humana. E assim, ao contrério de santo Agostinho, enquadraram os sel- vagens entre os seres com alma de animal: homens degenerados, incapazes de receber a salvacao divina e tomar decisoes. Portanto, 8 humanos poderiam aprisioné-los, domesticé-los, recorrer a sua forga de trabalho e, até mesmo, maté-los, caso fosse preciso. Em muitas ocasides, os pensadores antigos e medievais con- fundiram 0 homem selvagem com o bérbaro, sobretudo nos pe- riodos de guerra ou de revolugio. Contudo, hé uma nitida dife- renga entre ambos. Os hebreus distinguiam entre judeus, gentios e homens selvagens; o mesmo faziam os gregos e os romanos, quando atribufam particularidades aos civilizados, aos barbaros ‘aos homens selvagens. A dissimilitude pautava-se entre homens organizados por algumas leis — mesmo quando as mesmas eram consideradas falsas — (0s barbaros) e homens sem nenkuma lei (0s selvagens). Por outro lado, os selvagens caracterizavam-se por viverem isolados, solitérios, nas matas, nos desertos, sendo incapazes de conviver com seus semelhantes. Os barbaros viviam em espagos distantes e a sua presenca provocava medo, suscitava pavor apocaliptico. Em compensacao, o homem selvagem habi- tava nas proximidades, nas florestas, nas montanhas e nos de- sertos, dormindo debaixo das arvores ou nas cavernas como animal. Sobre a fusao entre o Homo sylvestris e o barbaro, Roger Bartra comentou que a nocao de barbaro entre os gregos somente se difundiu apés a guerra contra os medas. Na oportunidade, os ‘ponentes ganharam atributos semelhantes aos empregados para 08 homens selvagens. Deste modo, tempos depois, as mesmas alegorias referentes & luta travada com os centauros € com as amazonas foram transpostas para a guerra contra os barbaros, comandados por Dario e Xerxes.° Na Idade Média, os selvagens se contrapunham aos civili- yados por viverem sem controle sexual, sem 0 ordenamento do Bistado, sem a salvaco prometida pela Igreja. Muitas vezes foram eonfundidos com os agentes do deménio, devido ao seu poder de sediucao, atribuido sobretudo as mulheres selvagens, e ao seu ¢onhecimento da magia. Porém, os pensadores medievais, lem- brou Hayden White, sabiam distinguir entre o selvagem e o de- 36 imagens da colonizagio ‘moniaco. O primeiro era concebido como uma regressao ao estado ‘animal, enquanto o segundo era servo de Sata. O selvagem di- ferenciava-se dos anjos decaidos, dos diabos, por ignorar 0 pe- cado, ou melhor, por néo saber o que € pecar. Ele néo possuia faculdades racionais, n4o possufa consciéncia e estava livre dos sentimentos de culpa. Roger Bartra nao visualizou o problema da mesma forma. A teologia crista ndo podia concebé-lo como ‘um ser humano semi-animal e vinculou-o ao ambito da demo- nologia. Tratava-se, pois, de um ser semidivino como os anjos decaidos, membros das hostes satanicas. Como diabo, ele desem- penhava a funcdo de assediar, tentar e castigar os homens. Barta Jembrou ainda que as amazonas, concebidas como mulheres sel- ‘vagens, atravessavam os céus nas noites de inverno, prefigurando © voo notuzno das bruxas em direcao a0 sabé." 'No entanto, a inocéncia do homem selvagem teve grande voga a partir do século Xi. Na época, o solitdrio selvagem tor- notse o protetor das florestas e 0 amante dos bichos. O wild ‘man foi gradualmente sendo transformado em um objeto de ad- ‘miracdo e inveja. Sua imagem era 0 protétipo da liberdade e uma forma de contestar a civilizacao. A nova abordagem do tema pautava-se em uma visto bucolica da natureza, resultado do incremento das atividades agricolas: da expansdo das dreas de plantio, do crescimento da cultura ovina e da diminuigio das reas florestais.!2 Ao contrario de Hayden White e Richard Bern- heimer, George Boas procurou relativizar a voga do primitivismo na Idade Média. O homem medieval nao se interessou pelos selvagens na mesma intensidade dos antigos (greco-romancs), pois o homem medieval era o selvagem que os antigos lowva~ vam. O desinteresse também provinha da religiosidade: 0 nobre selvagem nao era um cristo, além de representar a resisténcia contra o cristianismo, pois os antigos responsabilizavam-no pelos martirios dos evangelistas. Em compensagao, os selvagens com- partifhavam o espaco com uma natureza maravilhosa. Eles viviam entre diamantes, ouro e metais preciosos, viviam em paraisos @ em ilhas fantasticas. ‘White deixou claro que 0 homem selvagem constituiu o te- ma de uma acalorada discussao. No final da Idade Média, havia das concepgoes antagonicas em torno do tema, Se a natureza fosse concebida como palco de horriveis disputas e a sociedade ‘como espago da harmonia, o homem selvagem ganharia contor- sentios ¢religiosos 7 nos de ser decaido. Nessa perspectiva, ele seria a contrapartida das normas sociais e um alerta para os perigos advindos com o fim da vida em sociedade. Se a natureza fosse entendida como reino da concérdia e do equilfbrio, a chamada natureza herbal, ea sociedade como lugar da hita do homem contra o homem, o selvagem seria representado como antitese da vida social, como antitese do artificialismo proprio da convivéncia em sociedade.# O mito do homem selvagem também revela uma antinomia muito cara ao imaginério medieval. Roger Bartra considerou-o um modelo l6gico capaz de superar a contradi¢ao entre o homem ea besta, entre natureza e cultura. A rigidez do mundo cristao no permitia pensar a continuidade entre o animal e o humano. No entanto, 0 mito retine em si caracteristicas de ambas as esferas. Ble seria uma mescla de bestialidade e de civilizagio capaz de provocar reflexes sobre a ténue fronteira entre a cultura e a na- tureza, Por conseguinte, o mito promovia uma mediago entre polos incompativeis para o imaginario cristo. Richard Bernheimer e Erwin Panofsky abordaram o tema do primitivismo a partir da iconografia. O retorno a vida simples, a volta aos tempos primevos e a necessidade de comegar tudo novamente constituem uma temética da arte renascentista. O pin- tor Piero di Cosimo concebeu sua obra como um retorno ao mundo pré-historico. Para Panofsky, o artista parece sentir as mesmas emogées de um homem primitivo. Bernheimer, por sua vez, re- lacionou o modismo ao recrudescimento da opressao por parte da cultura oficial, ou melhor, a busca do selvagem seria uma contrapartida ao refinamento e a hierarquizacao da sociedade européia.!5 No século xvi, 0 tema do primitivismo ganhou novos con- tomos, sobretudo a partir do pensamento de Michel de Montai- gne. O selvagem viveria em um estado de pureza edénica, sem fas manchas do pecado original, sendo uma antitese do mundo da corte e da cidade. A dualidade entre natureza e cultura, entre a simplicidade das comunidades americanas e a hietarquizacao da sociedade européia, tornou-se um tema candente. Uma pro- blematica semelhante a esbocada pela arte de um Piero di Cosimo Seria desenvolvida a partir dos primeiros contatos entre os fran- ‘ceses e 0 canibalismo tupinambé. Montaigne contestou o conceito de homem selvagem e inaugurou um novo debate em tomo do tema. Para 0 fildsofo, nao havia nada de bérbaroe selvagem entre imagens da colonizacso os amerindios, “sinon que chaque appelle barbarie ce qui n’est pas de son usage”. Os julgamentos realizavam-se por intermédio da ver- dade e da razio particulares ao emissor e, desta forma, qualquer costume que fosse diferente ganharia um epiteto pejorativo. Selvagens, diria Montaigne, eam os frutos da cultura e da civilizagao. Os indios tupinambas possufam a autenticidade, 0 vigore a natureza ha muito perdidos. No interesse de modificé-los, e integra-los aos princfpios da cultura ocidental, os nativos se tornavam abastardados, corrompidos e esqueciam sua simplici- dade primitiva, A ingenuidade pura e simples desses homens surpreendeu 0 fil6sofo. A sociedade encontrada pelos franceses nos trépicos encantou-o pela falta de artificialismos. Lé inexistiam trdficos, escrita, ciéncia, magistrados, nem mesmo havia a hie- rarquia politica, tZo arraigada entre os povos europeus. A pobreza ea riqueza, as marcas da diferenciacao social, eram desconhecidas desta gente. Do mesmo modo, palavras como mentira, traicio, dissimulac&o, avareza, inveja, detracdo e perdao soariam estra- nhas aos habitantes do Novo Mundo. Nem mesmo a repuiblica imaginada por Platao chegaria a tanta perfeigao. Os tupinambas sairam das mos dos deuses, pois se organizavam segundo as leis da natureza.6 O canibalismo nao desviou Montaigne do afa de transformar as sociedades indigenas na mais perfeita obra da mae natureza. © filésofo recorreu aos indios para emitir valores contrarios & sua propria sociedade e, desta forma, destruiu o mito do homem selvagem. Os canibais nao mais teriam 0 epiteto de selvagens ou de barbaros, ganhariam denominagao geral de “nacao”. A des- truigéo do mito e sua secularizacao produziram um discurso ficcional. Para Hayden White, a imagem do selvagem serviri como instrumento de critica intracultural em relagao A sociedade européia. Por isso, em Montaigne os indios perderam a pecha de demontacos, de barberos, de selvagens. Barbaros seriam os homens que comessem seus inimigos vivos, j4 que depois de morta a vitima nao mais sentiria as dores do esquartejamento e a ardéncia do fogo.”” ( tema do canibalismo em Montaigne nao promoveu uma reificagao do estado de barbarie. Antes, a antropofagia serviu de mote para uma dura critica a sociedade européia e as atrocidades cometidas durante as guerras religiosas. A luta fratricida entre gentios e religiosos * 9 cat6licos e protestantes, entre irmaos € vizinhos, ganhou a sua reprovagio. Os nativos, ao contrario dos fanéticos religiosos, rea- lizavam guerras de forma nobre e generosa. Os conflitos bélicos, argumentou 0 pensador, so endémicos entre a humanidade; além disso, entre os americanos os combates se moviam segundo la seule jalousie de la vertu, eram pautados apenas na virtude da valentia. Os territ6rios e as reservas minerais nao conduziriam 0s indios ao campo de batalha, pois a natureza satisfazia todas as suas necessidades. O raciocinio de Montaigne relacionou ho- mens naturais a necessidades naturais: 0 titero da terra produziria os viveres sem trabalho, sem fadiga, sem conflitos.!® ‘Montaigne aproximou a natureza e 0 indio, o artificialismo eo europeu. A natureza seria uma norma ¢ o attificialismo cons- tituiria sua corrupeao, sua deformacao. A Europa havia perdido vigor natural, a ingenuidade e a espontaneidade, recorrendo & dissimulagéo, 4 mentira, para manter-se enquanto sociedade or- denada. Os indios, em contrapartida, dispensavam estes subter- fiigios, estes artificios, e mantinham as comunidades na mais ‘completa harmonia. Entre os nativos do Brasil, inexistia hierarquia social, nem mesmo homens dotados de poder politico, capazes de comandar pela forca, pela opressio, uma nacao inteira. O filésofo, comentou Hayden White, nunca pregou um retorno & vida selvagem ou 0 aniquilamento da civilizacio. Mas ressaltou ‘a necessidade de pensar o artificialismo, ou melhor, de criticar ‘as convenc6es ¢ seus abusos, como forma de se aleancar a verdadeira ivilizacio e garantir a legitimidade dos impulsos naturais. Ha uma enorme similitude entre 0 pensamento de Michel de Montaigne e as argumentacoes de Etienne La Boétie nos Dis- cours de Ia servitude volontaire. Neste libelo contra o Estado e a servidio, encontra-se a mesma concepcao de natureza. Os bichos, comentou La Boétie, resistem a todas as formas de opressio im- posta pelos humanos. Os bois gemem sob 0 peso do jugo e os passaros debatem-se quando presos nas gaiolas. Os seres vivos, de modo geral, sentem o mal da sujeigao e sonham sempre com a liberdade. Por que ohomem, o tinico nascido para ser livre, ‘acostumou-se com sua condigio de servo? Que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o homem, 0 nico nascido de vyerdade para viver francamente, e fazé-lo perder a lembranca de ‘seu primeiro ser e 0 desejo de retomé-lo? Para além da desnatu- 40 imagens da colonizagio ralizagio do homem, a servidao é imposta por poucos e aceita por muitos, Por isso, ndo ha necessidade de combater o tinico tirano (0 rei), de anulé-lo, pois ele destréi a si mesmo. Para tanto, basta recusar a servidao e todo o seu império cair4 por terra. “Portanto, s40 08 proprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar, pois cessando de servir estariam quites; € 0 povo que se sujeita, que se degola, que tendo a escolha entre ser servo ou ser livre, abandona a sua franquia e aceita o jugo.." Em “Des cannibales”, Montaigne relatou as impressbes dos {indios sobre a Franca. O episédio conta que os amerindios em Ruo observaram um grande niimero de homens armados, ro- bustos, barbados e altos junto ao rei. Porém, 0 monarca era uma crianga. Como os adultos se sujeitavam a obedecer a um ser t30 frégil? Nao seria mais natural que escolhessem a um dos guardas para comandé-los, ao invés de um menino? E assim que a idéia de natureza perpassa todas as argumentacoes de Montaigne e La Boétie. © ultimo com certeza influenciou 0 pensamento de Michel de Montaigne, sobretudo em relacio aos poderes do Es- tado ea falta de naturalidade da organizagio da sociedade fran- cesa. As indagagées de ambos sempre giram em torno do absurdo dessa organizacao social. Por que os homens aceitam passiva- mente a servidio? Esta néo é natural ao ser humano. Por que a Franga necessita de tantas mentiras e dissimulacdes para manter estavel a ordem entre os stiditos? As comunidades tupinambés mantinham-se estaveis sem recorrer aos artificialismos. Oconceito denatureza como norma constitui um tema muito caro ao pensamento ocidental. Entre os gregos, o termo natureza expressava 0 padrao de valores humanos. A natureza se identi- ficava ao objetivo e contrastava com o subjetivo. O natural se opunha as leis, aos costumes, as convengées. O verdadeiro e 0 valido universalmente eram considerados como natural e se an- tagonizavam com o particular de uma nacio, perfodo ou indivi- ‘duo. O natural travava uma relacao estreita com a ordem césmica, concebida como 0 bem, como criago divina, em contraste com 08 erros humanos. No estado natural, viveriam homens na sua mais perfeita satide, enquanto no artificialismo imperavam as doengas, as disfuncdes. Por fim, a natureza ea historia constituiam pares opostos, pois a segunda promoveria a corrupgao da pri- meira2! sentios e religiosos a O homem selvagem, alertou Roger Bartra, € uma inveng4o da cultura européia, pois 0 selvagem é um habitante do Velho Mundo. A condigio de selvagem serviu aos colonizadores para classificar os nativos, sendo uma transposicio de um mito des- conhecido da realidade americana, mas capaz de dimensionar a diversidade encontrada no novo territ6rio Freqiientemente, os nativos do Brasil ganharam os atributos do Homo sylvestris. A nudez, a inocéncia, a falta de lei, de {é e de rei ligaram os ame- rindios ao mito europeu. Por vezes, os colonizadores concebiam- nos como animais, como seres destituidos de intelecto e impré- prios para a vida em sociedade. A nudez, os desregramentos se- xuais, a inexisténcia de um poder centralizado, o desprezo pelo trabalho, o canibalismo e o desconhecimento de Deus os integra- ‘vam a uma natureza selvagem, palco de horriveis disputas, onde repartiam 0 espago com as feras. Em outros momentos, a solidariedade, a higiene, 0 cuidado com as criangas, a ingentiidade e a inocéncia aproximavam-nos do reino da concérdia e do equilibrio, a chamada natureza herbal. Nestes principios, as comunidades indigenas contrapunham-se A cobica e A gandncia dos colonizadores. Assim como Michel de Montaigne, os jesuitas valorizaram a simplicidade das comuni- dades brasilicas, pois a fraternidade e o desprezo pelos bens ‘materiais eram atributos relevantes ao cristianismo. Os religiosos ndo recorreram ao homem natural para criticar a sociedade eu- ropéia, mas reconheceram nos nativos indfcios dos tempos pri- mevos e da providéncia divina. 3. Indios cristios, colonos-tutelados™ ‘Anatureza do amerindio fazia dele um cristao em potencial. Em seu coracio, existia a semente da “verdadeira religiso” plantada por Deus. Aos padres, caberia cultivar 0 grao e esperar o flores- cimento da £6. As erronias presentes entre as comunidades ame- ricanas seriam dissipadas e os nativos encontrariam 0 caminho do Céu. Diferentemente de Buffon e De Pauw, os missionArios acreditavam na “evolugio” dos negros da terra. A decadéncia das comunidades pouco interferiu na missao heréica dos jesuitas. A decrepitude comprovava o esplendor dos primeiros tempos ¢ a origem européia dos amerindios. Os trabalhos de catequese imagens da colonizacto nao atuariam sobre a natureza dos natives, mas sobre a degene- 1acao promovida pelos séculos de isolamento, pelos desmandos de Sata e pela longa permanéncia na América. Contudo, logo apés 0 descobrimento do Brasil, muito antes da chegada dos inacianos, outros testemunhos verificaram a Viabilidade de trans- formar os incolas em crist4os devotos. Na carta de Pero Vaz de Caminha, os vestigios do primiti- vismo, da primavera dos tempos, ainda permaneciam entre os habitantes da Terra de Santa Cruz. Os nativos pareciam inocentes ¢ dispostos a abracar a causa do cristianismo. Os esforgos da catequese nao tardariam a dar frutos, pois a gente é “boa e de boa simplicidade e gravar-se-A neles, ligeiramente, qualquer cu- nho que thes queiram dar’”2 Em varias passagens da carta, 0 escrivao destacou o pendor dos indios para a doutrina. Depois de uma curta temporada entre os incolas, os portugueses resol- veram testar a sua devosio a cruz. Antes de erguer o santo lenho, ‘9s brancos beijaram-no e acenaram para os indios fazer o mesmo. Eles nao hesitaram em se aproximar, e logo reverenciaram o sim- bolo do cristianismo. Nosso Senhor, comentou Caminha, conce- beu-os com bons corpos e bons rostos, em nada diferindo dos ‘homens de boa indole. No entanto, 0 novo territério era despro- vido de recursos, nele inexistiam vacas, cabras, ovelhas e 0 trigo. Nem por isso, a caréncia promoveu a degradacao de seus mo- radores, pois exibiam uma aparéncia saudavel, um andar rijo e nédio, capazes de provocar a inveja dos portugueses. No primeiro ano de permanéncia no Brasil, o padre Manuel da Nobrega concebia os nativos como pagina em branco, acre- ditando na maleabilidade e flexibilidade espiritual do gentio. Os indios desejavam aprender a doutrina, abracar o cristianismo e abandonar os maus costumes de matar e comer care humana. ‘Os meninos demonstravam muito amor aos sacerdotes, sabjam as. oragées e ensinavam uns aos outros. Na festa do Espfrito Santo, havia uns seiscentos ou setecentos catectimenos prontos para 6 Latismo, todos haviam prometido viver sob 0s preceitos da doutrina25 O irmado Pero Correia, por sua vez, impressionou-se com a devogao de uma india. Em uma noite, a nativa resolveu pregar pelas ruas de Sao Vicente, demonstrando tanto fervor que provocou confusdo entre homens e mulheres: “E € de maneira que algumas destas indias assim doutrinadas so espelho nao tdo-somente a seus parentes ¢ parentas, mas a muitas das mu- Bentios e religiosos 6 Iheres de Portugal que cé hé.’* A inclinagao dos natives para cristianismo constitui um tema recorrente nas primeiras corres- pondéncias trocadas entre os padres da Companhia de Jesus. Para José de Anchieta, os ibiraiaras se destacavam entre os povos do litoral pela sua razdo, inteligéncia e mansidao dos cos- tumes, pois mesmo antes da chegada dos religiosos jé regiam as suas vidas segundo alguns preceitos cristaos. A tribo reverenciava a um 86 senhor e demonstrava horror pela ingestao de carne humana. Os guerreiros contentavam-se com uma tinica esposa; ‘caso a companheira praticasse 0 adultério, sofreria a pena capital. roubo era castigado com veeméncia. Diante do chefe, os cri- minosos sofriam 0 peso da chibata manejada por um algoz. A idolatria e a feiticaria também eram desconhecidas entre os mo- radores. Tudo isso levava Anchieta a ressaltar a probidade dos costumes e as facilidades da catequese entre os ibiraiaras: estes indios “avantajam-se a muitissimos outros nos bons costumes, de maneira que parecem muito proximos da lei da natureza. $6 parece neles digno de repreensdo matarem As vezes na guerra os cativos e guardarem as cabecas dekes como troféus.”2” A argu- mentacdo do sacerdote se coaduna com os preceitos defendidos por santo Agostinho e os defensores da converso do gentio. A lei da natureza promoveria a aptidao dos amerindios & catequese. Assim, bastaria a intervengao dos religiosos para fazer arder a chama da fé. Por vezes, os padres entusiasmavam-se com os milagres da catequese. Os indios participavam das prociss6es e ladainhas, escutando os padres sempre que eram conclamados. Sabiam to bem a doutrina na sua lingua quanto os portugueses e demons- travam tanta devocao que emocionavam os jesuitas2* O padre Rui Pereira considerava o Brasil um paraiso na Terra, pois no espiritual e no corporal “ndo ha mais que pedir”. A terra concedia as melhores iguarias; se em Portugal havia galinhas, c4 encon- trayam-se em maior abundancia e a pregos mais baixos. Os car- neiros, o vinho e o po estavam sempre presentes & mesa. Nestas paragens, 0 solo era dadivoso e concedia aos moradores tudo que fosse,plantado. “Finalmente, quanto ao de dentro e de fora = indios e portugueses —, nao se pode viver sendo no Brasil quem quiser viver no parafso terreal.” Os padres e uns poucos seculares conceberam o indio como cristio em potencial. A solidariedade entre os indigenas constituia imagens da colonizacso um ponto importante nos relatos dos séculos Xvi ¢ Xvil. Assim como o homem selvagem, os indios pouco se importavam com as coisas materiais: 0 ouro, as terras e os bens no representavam valor de troca. Quando os europeus visitavam algumas chocas, ‘0s moradores, depois das cordiais saudagées, abordavam os vi- sitantes com familiaridade e confianca. Os nativos logo se apo- deravam do seu chapéu. Cada um deles experimentava ec exaltava a beleza do adorno. As espadas, contou d’ Abbeville, eram reti- radas da cintura dos soldados e serviam como brinquedos em lutas imagindrias entre inimigos invisiveis. Porém, 0s nativos, depois de passar em revista os mais diferentes objetos, devolviam todos os pertences ao dono. Os selvagens eram muito generosos, pelo menos tanto quanto a natureza o permitia ser, concluia 0 capuchinho. Os presentes ofertados pelos cristios recebiam aten- ‘sdo especial dos natives, pois consideravam-nos preciosidades. Contudo, em relagio aos produtos locais, ou seja, cacas, frutas, peixes, mostravam-se totalinente liberais. Ademais, quase nao possuifam outros bens. F esta generosidade nao se resumia apenas aos de uma aldeia entre si, mas compreendia os individuos de quaisquer outras tribos, excegao feita aos inimigos® (Os amerindios ainda participavam do calendério religioso da Igreja. As missas, as procissdes e as festas dos santos sempre contavam com a alegria e a espontaneidade dos novos catect- menos. Os recém-convertidos nao se furtavam a confissio, pois, tao logo os padres tomaram conhecimento da lingua nativa, co- megaram a ouvir os pecados dos dedicados pupilos. Porém,.a missao dos religiosos nem sempre alcangou os fins almejados. Os colonos pouco contribuiram para levar a cabo a conversao dos brasis, pois estavam mais inclinados para as realizagdes no mundo material. Durante os primeiros séculos da colonizacio, inumeraveis testemunhos duvidaram da viabilidade de cristianizar os nativos. Qs colonos procuraram ressaltar os atributos barbaros e bestiais dos indios, para reforcar sua natureza servil e concebé-los como escravos naturais. Um século depois da chegada dos jesuitas, 0 padre Anténio Vieira ainda lutava pela conversao do gentio, acre- ditando no seu pendor para o'cristianismo. Em algumas passa- gens, o sacerdote destacou os gestos de devogio e os beneficios provenientes da administracao dos religiosos. Em 1660, o sacer- dote escreveu uma carta aoreid. Afonso Vie exaltou a intervencao sentios e religiosos. 5 dos padres junto aos nheengatbas. Na América, escreveu 6 reve- rendo padre, a cristandade vencia sem sangue, sem ruinas, sem ‘guerra e sem despesas — o mesmo nao ocorria na Europa sacu- dida pelas guerras religiosas. Muitas nacdes estavam inclinadas a perceber os mistérios da fé e a obedecer aos preceitos da lei de Cristo. Porém, nenhum povo estava mais disposto para a salva- do, mais livre de impedimentos do que os habitantes do Mara- nhao. Os nheengafbas mantinham comércio com os holandeses € todos os anos carregavam mais de vinte navios com peixe-boi. O bom relacionamento entre natives e flamengos colocava em perigo o dominio lusitano sobre as capitanias do Norte. De muitas maneiras, os administradores portugueses procuraram em vao dissolver esta temerosa alianga. Por fim, recorreram ao padre Ant6nio Vieira para dissuadir os indios a manter a paz. Dois indios partiram para as terras dos nheengafbas sem a esperanca de retornar vivos. Dias depois, voltavam com uma resposta fa- vordvel, gragas enorme estima que devotavam ao Pai Grande. A partir da resposta favoravel, Vieira tornar-se-ia 0 protetor da tribo.e o avalista da paz entre os colonos e os amerindios do ‘Maranhao. Somente a sua presenga poderia remediar os agravos cometidos pelos portugueses. “Debaixo da mao do padre”, co- ‘mentou o principal dos nheengaibas, “de quem jé de hoje adiante nos chamamos de filhos, néo haveré que nos faca mal” 2! A hist6ria da pacificacao da tribo por um jesuita nos remete a dois problemas. Inicialmente, destaca a crenga na converséo do gentio, mesmo sendo eles seres animalescos e perigosos. Assim ‘como santo Agostinho, o sacerdote acreditava no poder de trans- formacao da palavra revelada. Todos os seres humanos traziam consigo os germes do cristianismo e, portanto, bastaria a inter- vengao de um religioso para acender a fé. Por outro lado, a énfase na catequese e na adaptacao do gentio aos interesses coloniais remete as querelas entre os jesuitas € os colonos. Os portugueses ‘enfrentaram-no com a guerra e com a sujeicéo. Para castigar os desagravos perpetrados pela tribo, os lusos colocavam os brasis ‘na boca de suas pecas de artilharia e explodiam os “pobres dia- bos”. O resultado do enfrentamento nao favoreceu aos coloniza- dores, pois o emprego das armas motivou-os a perpetuar os le- vantes e a travar uma alianga com os holandeses. Os religiosos fagraram-se vitoriosos onde os colonos haviam fracassado. Os ‘ensinamentos divinos mostraram sua eficiéncia onde os canhées, 6 imagens da colonizagio ea pélvora falharam. Ao contrario dos colonizadores, os nativos traziam consigo 0s vestigios da primavera dos tempos, as semen- tes do cristianismo. Elementos essenciais para a catequese. Na América, os atlantes sofreram graves alteragdes na to- nalidade da pele, na linguagem e, sobretudo, nos costumes. Para Simao de Vasconcelos, as imimeras erronias perpetuadas pelos nativos evidenciavam a degeneracdo, a decrepitude da natureza criada por Deus. No entanto, o proceso de degradacao nao seria irreversivel, a humanidade americana se livraria do triste destino caso ouvisse os ensinamentos da doutrina. A suprema missao dos religiosos seria trazer os amerfndios para o mesmo grau de evolucéo dos europeus cristianizados. O conhecimento das es- ctituras ¢ 0 incremento da f€ apagariam os indicios de barbérie € preparariam os nativos para alcangar o reino dos céus. A con- verso traria a pureza e a virtude perdidas por Adio. A otigem do indio e as sementes do cristianismo viabiliza- vam 0 trabalho da catequese, que os transformaria em cristaos devotos e auxiliares nos empreendimentos coloniais. Os nativos seriam abnegados colonos sob a tutela dos padres da Companhia de Jesus. Porém, a teologia crista e a concepcao da natureza defen- dida pelos padres nao constitufam as tinicas matrizes culturais capazes de conceber os indios como cristaos em potencial. Omito do homem selvagem também forneceu subsidios para os euro- peus englobarem os amerindios no imaginario ocidental. Ao contrario dos detratores da natureza humana amerindia, 0 francés Jean de Léry concebeu os tupinambas como 0 elo per dido entre o homem civilizado ea natureza. O calvinista francés ehabitante da Franga Antartica é um exemplo curioso de analista dedicado a compreender o universo dos povos indigenas radi- cados na baia de Guanabara. Léry atribuiu ao bom clima a apa- réncia robusta dos amerfndios, destacou que poucos eram coxos, disformes, aleijados ou doentios, e viviam 120 anos. A atmosfera amena talvez explique a boa forma mantida pelos incolas. Na Amética, inexistiam as geadas, os frios excessivos e a vegetacao permanecia verdejante durante todo 0 ano. Um outro fator ainda contribuiria para manutencao da sua satide, pois, segundo o fran- @s, 08 natives pouco se preocupam com as coisas deste mundo. Oclima ea maneira descontrafda de viver promoviam aexisténcia de homens de corpos perfeitos e mais fortes e menos sujeitos & moléstia do que 0s europeus. Sua velhice nio representava a igentios ¢ religiosos ” decrepitude, pois apénas alguns membros da tribo possu‘am ca- belos brancos ou grisalhos. Para Léry, as fontes lodosas e pesti- lenciais, que abasteciam as cidades européias, causavam 0 enve- Ihecimento precoce dos seus moradores. As éguas envenenadas corrofam 0s ossos e debilitavam a medula, enquanto os tupinam- bas bebiam na fonte da juventude (fontaine de iovence). O clima da cidade ainda proporcionava a difusio de sentimentos hostis. Entre os citadinos, grassavam a desconfianca, a avareza, a inveja, as intrigas e as paixées desconhecidas das comunidades indigenas. (Os nativos nao obedeciam aos preceitos do habito de comer. Entre eles, inexistia hora para jantar ou cear; a ingestao dos ali- mentos era guiada pela fome, pela nécessidade de recompor as energias. Bebiam em excesso, mas se tornavam sébrios no comer. Durante o repasto, rigorosas regras impediam qualquer conversa ‘ou rwido capaz de perturbar os comensais. Depois das refeicées, procuravam lavar a boca e as mAos, trazendo-as sempre limpas. As criancas se alimentavam de certas farinhas mastigadas, canes macias e leite mateo. Ao contrério das mulheres européias, as {indias no abandonavam seus rebentos e carregavam-nos quando trabalhavam na lavoura. As americanas eram incapazes de deixar seus filhos sob a tutela das amas. Assim como os animais, nutriam, ¢ defendiam os filhotes contra todos os perigos. Deste modo, Léry destacava a educagao natural existente entre as comunidades tupinambés, em contraposicao aos artificialismos da criacdo eu- ropéia. O antagonismo entre natureza e cultura presente no pensa- mento de Michel de Montaigne também se encontra nos relatos de viagens do huguenote. A nudez das indias despertou a sua atencao, pois dedicou ao tema algumas interessantes considera- ses. Para Léry, as indias resistiam em vestir roupas, pois alega- vam 0 incémodo de retirar as vestimentas na hora dos banhos. A pratica era to arraigada entre as mulheres que chegavam a tomar doze banhos em um iinico dia. Durante a faina didria, preferiam enfrentar o calor do sol, esfolar a pele na terra e nas, pedras do que suportar um tecido sobre o corpo. As fémeas se deleitavam com a nudez e néo se envergonhavam na presenca dos brancos e dos prisioneiros. Porém, seu corpo nu, diria francés, nao incitava a luxtiria e@ lascivia. As roupas, os penteados eos aderecos usados pelas mulheres européias expressavam mais, 8 imagens da colonizasio sensualidade do que a nudez habitual das nativas. E, desse modo, © huguenote demonstrou, mais uma vez, a contradicao entre a simplicidade e o artificialismo. A oposicio toma, porém, sua forma mais explicita nos co- mentérios sobre a antropofagia entre os tupinambas, O caniba- lismo das comunidades indigenas, que tanto provocou repulsa os europeus, recebeu um tratamento diferenciado na narrativa do calvinista. Entre os cristaos, lembrou Jean de Léry, existiam criaturas mais abomindveis e despreziveis do que entre os indios. A antropofagia tupinamba era movida pela vinganca, enquanto 08 cristdos devoram seus semelhantes e parentes guiados pela fome. Nao haveria, portanto, necessidade de atravessar o Atlan- tico para presenciar episédios to monstruosos. Durante 0 cerco de Sancerre, os “civilizados” ingeriram os seus parentes mortos para remediar o prolongado jejum. O huguenote negou, assim, & antropofagia as dimensdes do canibalismo, pois o consumo de came humana nao possufa um carter alimenticio; era, sim, um sinal de vinganca. Em Histoire memorable de la ville de Sancerre, Jean de Léry contou os epis6dios ocorridos no forte de Sancerre, durante um cerco comandado pelos catdlicos. Entre os meses de janeiro e agosto de 1573, os huguenotes permaneceram isolados na forta- leza, sem os suprimentos adequados para um enfrentamento tio longo. No dia 21 de julho, os refugiados tomaram conhecimento de um caso de canibalismo. Ao descrever a hist6ria dramatica do cerco, Léry procurou comparar 0 repasto antropofagico entre 08 tupinambas ¢ 0 canibalismo entre os cristéos. © primeiro ga- nharia contornos carnavalescos, ¢ o segundo seria duramente recriminado por ser um canibalisino alimentar, um incesto ali- mentar, pois envolvia a ingestéo da came de um parente morto. Os infanticfdios imputados 4s bruxas também mereceram uma Passagem na narrativa. Do mesmo modo, serviram para atenuar as priticas antropofégicas presentes na América. Qu melhor, os. crimes praticados pelos catdlicos e pelas bruxas justificavam o panquete cansbal perpetuado pelos moradores da baia de Guana- ara Em relacio 8 religiosidade, Léry acreditava que as guerras, as perseguicées ao inimigo, a vinganca, a antropofagia cram in. dicios do desconhecimento de Deus. No entanto, a atenuante Para esta grave falta seria a sinceridade, a inocéncia e a virtude gentios religiosos. ” ha muito perdidas pelos cristéos. Como os discfpulos de Loyola, acreditava que nas trevas americanas brotava uma semente do cristianismo. Deste modo, defendeu uma concepedo de hist6ria que se caracterizava pela crescente degeneragao do ser humano. O selvagem representava a infancia, e o cristao a decrepitude da humanidade# O novo conceito de homem selvagem, esbocado por Léry e aperfeicoado por Montaigne, demonstra a fadiga de individuos e geracdes perante os costumes ditos civilizados. Ele transfor- mou-se em uma forma de protesto, cuja intencSo era atingir e denunciar a estilizacao dos costumes civilizados. Em Montaigne, reflete a tenso entre natureza e cultura, entre autenticidade e artificialismo, entre moral natural e moral regulada. O mito e a contestagdo somente tomaram corpo no século XVill, no pensa- mento de Jean-Jacques Rousseau. Porém, a imagem do indio em Jean de Léry nao seria, exclusivamente, fruto dos contatos cul- turais, da comparacdo entre a sociedade européia e as comuni- dades indigenas, do confronto entre natureza e cultura A.valorizacao das comunidades indigenas trazia conotacdes colonialistas, pois atenuar a antropofagia entre os indios servia como arma contra 0s catélicos espanhéis. Conceber os amerindios como bons selvagens era uma forma engenhosa para denunciar as atrocidades praticadas pelos espanhéis no Novo Mundo. Os indios seriam ingénuos, inocentes, vivendo segundo as regras da mae-natureza, enquanto os invasores trariam a maldadee a ava- reza proprias da civilizacao. As narrativas de viagem de Jean de Léry e Urbain Chaveton — participante da invasao francesa na Florida — constituiriam parte de uma politica colonialista dos huguenotes. Os catélicos dominavam a América, enquanto os protestantes permaneciam alijados da expansao maritima euro- péia. No final do século xv1, o mito do homem selvagem trans plantado para a realidade americana perderia em parte suas ca~ racteristicas medievais, para ganhar contornos adequados as, guerras religiosas e coloniais Enfim, o mundo colonial trouxe a0 mito do homem selvagem novos elementos, promotores de uma verdadeira metamorfose. Em Michel de Montaigne, a imagem do tupinambé nao trava um didlogo com a realidade colonial. As intrigas e as disputas pela posse das comunidades pouco interessaram ao filésofo. O cotidiano amerindio concedeu-lhe elementos para criticar a so- 50 ‘imagens da colonizac3o ciedade francesa do século xvi. O simbolismo expresso por sua imagem se contrapée a hierarquia ea estilizacao da vida francesa. Para além da critica intracultural, Jean de Léry concebeu 0 indio € 0 mito do selvagem como parte de uma politica colonial e antiespanhola. Em sua narrativa de viagem, a conversio toma-se um problema capital, pois os huguenotes procuravam levar a palavra revelada onde os ibéricos praticavam atrocidades. O pro- jeto colonial da Franca Antartica nao se preocupava apenas com a posse do territério, mas também com a criagéo de uma comu- nidade pautada na obediéncia dos princfpios cristaos. A sinceri- dade, a virtude e a harmonia presentes entre os tupinambés cons- fituiam a base para conversao das almas perdidas. Catélicos e huguenotes, enfim, concebiam os natives como colonos-tutelados em potencial, como cristios em potencial. A procura de um ancestral comum entre os amerindios e os euro- peus levou o padre Simao de Vasconcelos a encontrar em Atlante uma legitimacdo imaginosa para a catequese. A natureza dos incolas era idénea, bastava a intervencao dos padres para trans- forma-los em cristaos devotos. Esta argumentacio forneceu sub- sidios 8s disputas travadas entre os colonos e os jesuitas, entre a converséo e a escravidao. Na verdade, o sucesso do estabele- cimento de uma sociedade cristi nos trépicos contrapunha-se aos projetos coloniais destinados a manter os indigenas sob a tutela de um senhor de escravos. Durante as primeiras décadas do século xvu, a Igreja, particularmente por intermédio das bulas papais, decretou a incompatibilidade entre a servidao e a cate- quese. Os enfrentamentos entre jesutas e colonos no Rio de Ja neiro ¢ a expulsdo dos padres em Sao Paulo demonstram a in- vViabilidade da convivéncia harménica entre projetos coloniais, antagénicos. A énfase na religiéo natural, na semente do cristia- nismo plantada pelo Criador no coragéo de cada criatura e a hist6ria do povoamento da América constitufam armas poderosas para enfrentar as teses aristotélicas dedicadas a provar a debili- dade mental dos amerindios. Na América, o mito do homem selvagem e o pendor do nativo para 0 cristianismo tornaram-se poderosos argumentos em favor da intervencao dos religiosos na realidade americana Depois de receber os ensinamentos divinos, os naturais da terra seriam colonos-tutelados e estariam aptos a exercer um impor- tante papel na sociedade colonial. Junto aos religiosos, exerceriam gentios e religiosos 1 © papel de aliados do colonialismo. Tais pressupostos foram em- pregados pelos padres contra os escravistas; assim como os pro- testantes recorreram a inocéncia dos americanos para contestar a conquista espanhola sobre 0 Novo Mundo. Enfim, a repre- sentacio do indio como gentio, como cristo e colono-tutelado seria 0 principal trunfo dos religiosos para permanecerem ‘no comando das comunidades amerindias. Notas 1. Vasconcxtos, Simso de. Crdnicn de Companhia de jesus (1668). 38 ed; Intro- dugdo de Serafim Leite. Petropolis: Vozes/INix, 1977, v1. Sobre 0 tema ver P. 49-91. Sobre a origem dos amerindios ver: HooGeN, Margareth T, Ezrly Anthro- ology in the Sixteenth and Seventeenth Centuries. Filadélfia: University of Pennsyl- vvania Press, 1971; Sot, Jacques, Les mythesclirétiens de la Renaissance aux Luraizrs. Paris: Albin Michel, 1979; HuooussT0N, Lee E., Origins of the America Indians ‘Austin: The University of Texas Press, 1967. 2. Evniix, Yves d’ L'Histire ds choses plus memorables avenues en Maragnan. edigdo de Ferdinand Denis. Pris, MOCXV. p 64-5; 68; 278-80. 3, Didlogo sobre a conversio do gentio do Pe. Manuel da Nobrega, in: Cartas dos primeias jesuttas do Brasil. EdigSo e notas pelo padre Seratim Leite 8. S80 Paulo: Comissio do wv eentenério da cidade de Sio Paulo, 1954, vit, p317-15. +4. AcosTRaHO, Santo. A cidade de Deus: contra os pagios. Trad. de Oscar Paes ‘Leme, 24ed., Petrépolis: Vazes/Sao Paulo: Federagio Agostiniana Brasileira, 1990, 47-53. A citacio esté na p.148. 5. Op. cit, p.147-8. Ver também o importante estudo de BoAS, George. Essays on the Primitioism and Related ders in the Middle Ages. 2¥ed., Nova York: Octagon Books, 1966, pA5-53. 6. Sobre teoria do deckinio e da restauragao future ver: Lovljoy, Arthur & Boas, George. Prinitcism and Related Ideas in Antiquity. Com ensaios suplementares de WE Albright e PE, Dumont. 2 ed., Nova York: Octagon Books, 1973, p3. 7, Sobre o assunto ver: ABseviLts, Claude d’, Histoire de la mission d2s Peres capucines en Visle de Maragnan. Paris: L'impFimérie de Francois Huby, 1614, p2. 8, Sobre a degeneragio na América ver: Geral, Antonello. La disputa del Nuevo ‘Murdo; hstria de una polémica 1750-1900. México: Fondo de Cultura Econémica, 1960, pA e 49-73 9, Evmaux, Yves d’L'Hisoire des choses plus memorables advenues en Maragnan. Paris: Frangois Huby, uncwy, p.9-10 e 348-53, 10. Barta, Roger. El salvaje en el espe. México: Universidade Nacional Au- tonoma de México, 1992, p22. 11, Wine, Hayden. Tropics of Discourse: Essays in Cultural Criticism Baltimore: John HopKins University Press, 1982, cap. Bartro, R, op. cit, cap. 12, Sobre o Homem Selvagem ver: BERNHEMER, Richard. Wild Men in the Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Pres, 1951, p 38-46 e 144; Kar. 2 imagens da colonizagio rn, laude. Monsins, dominios encntamentos no fm da ade Média. Sto Paul: Martins Fontes, 1984, 21830. 18. Boas, George. op. cy 233. 14, Wine, Hayden, op. ct, 173. 15. Basted, R, opi, Parry, Erwin, Estudos donk. Lisboa: mprensa Univeritéia/Estampa, 1986. pll-68;Bersimer, op. ct, pid 16. MoxTalcst, Michel de. capitulo 31: “Dex candbalea” In: Eons (1580). Paris Soc Les Beles Lettres, 1546, volt, p81 17. We, Hayden. op. itp 176 18. Monica, M, op. ct p98, 19. Wate, H, op. ety 176 2 La Bots Benne, Discurso ds serio woluntra (157), Tra. de Laymest Garcia dos Santos. So Paulo: Brasiiense, 1982, p19 1 2. Lawson, A. de Bons, George op. cit pled © 103-6, 22. Barra, R., op. cit., p.13. bi ‘ 23. Oconceitodecolonaetutelados referee submisstodos indo acs pales. Por intermiéio da catequese os religions criaiam tm exéreito cape de ui on empreendimentoscolonias Stuart B. Schwartempregou tm conceto seme Ihante quando ae refere & intengio dos padres em constitu urn campesnato Sndigen Porém, considero que's intengho dos jsttes nfo era apenas formar tumcampesnato mas empregaros naive nos ris variado serviges, SCHWARTZ Stat hy mln tra uo Fl: Compan dae Ltn, 198, pas « 2A. Casta, Pero Vaz de. A carta de Pera Vas de Canin. S30 Poul: Fundo de Pesquisa do Musou Pausia da Univeridade de Sto Pau, 1975, p76, 25, Cata do Pe Mansel da Nobrega a Azpilcueta Navaro, Carles do princas fests do Bras, vi, p29. 26. Carta do i Peo Corea 0 Pe. Belclor Nunes Bare, Cartas ds princes esas do Bras, vi, p.22. 27. Cara do I. José de Anchiela a0 Pe. Inicio de Loyola. Caras ds prince jets do Brot vit pl? 2B Carta trimesral de maio de 1556 pelo i José de Anchieta. Cares des princi jess do Bros, pO 29. Carta do Pe. Roi Perera aos padres © mos de Portugal. Cats dos prineios estes do Bras vi, p 295-6. 30. ADBEVILE, C, op. cit, 252-3. 5, Vita, Antinio. Carta a0 Rei D. Afonso vIn: Obras esos. Lisbos Live $4 da Chet, 1951, vs, Carta, p 196-220 sop HSTROANG Frank Lege te see, p52, 5, 72,101,102, 108 38. Ly, Jan de sore um voyage fu nl tere du Bri vs, p12; 1369, sie vs ped, 9991 3h, Dus, |. & da Siva, Os dexobrinents a problemi eur. Lisbox Presenc, 198, p.255.9;LestmNCaNT, Frank Le Iuguenol et le stage, 52,5 72 101,102, 108 © 127. an Le cami, Lesteingant comenta a Tests 20 ‘onbaliano — pronovido pela fome —edceagio da antropolagia—promovida pels vingange,p.12h42 ¢ 1438, 0 BARBAROS E COLONIZADORES termo barbaro originou-se na Grécia para denominar os povos vizinhos e destacar a superioridade da civilizacio grega. Arist6- teles procurou sistematizar o problema luz da escravidaonatural concebeu os bérbaros como uma espécie humana inferior. A relacdo entre eles e os gregos remete aos vinculos de submissao do corpo a alma, das feras aos homens. A natureza criou-os para desempenhar tarefas menores sob comando de um tutor. A an- tinomia entre gregos e barbaros inclui aspectos da linguagem e da politica: da centralizagao e descentralizacao do poder; da exis- téncia e inexisténcia da polis; da capacidade e incapacidade de dominar a lingua grega. O termo ainda contrasta a polis @ vida natural e destaca a cidade como espago propicio para o desen- volvimento das potencialidades humanas, enquanto 0 barbaro vive imerso no caos, em um mundo sem normas, sem regras. Entre os gregos dos séculos VII e VI, recorria-se ao vocabulo para nomear os estrangeiros. A partir do século IV, 0 tema do barbarismo tomou-se mais complexo e vinculou-se a uma idéia de superioridade grega, relegando a um segundo plano o legado cultural das civilizacdes alheias a oikumene. No periodo helenss- tico, a cultura grega espalhou-se por um vasto territério e detinha os padroes de humanidade, pois somente os gregos denascimento possuiam os atributos prOprios de um verdadeiro ser humano. ‘Assim, as regras civis da polis e o dominio do veméculo marcaram 0s limites entre 0 humano e o animal, entre a razio e a irracio- nalidade, entre o grego e 0 barbaro. O conceito recebeu inimeros significados ao longo dos tempos. As comunidades assim deno- minadas nem senipre foram as mesmas. Os citas, 08 persas, 0s germanos e os normandos receberam dos gtegos e dos cristios 53 5A imagens da colonizagio ‘a mesma nomeacao. O termo ainda alterou-se e ganhou novos sentidos ao sabor das conjunturas. A filosofia aristotélica impregnou o pensamento de Alberto Magnus e Tomés de Aquino, sendo eles os seus principais difu- sores durante a Idade Média. No mundo cristéo, a antinomia recebeu outras coloragdes, mas preservava o mesmo principio. A partir do século vi d.C., barbarus equivalia a paganus. O termo ndo era apenas atribuido aos descrentes, aos alheios & palavra revelada, mas aos homens indiferentes verdadeira razao. Os pagaos viviam no pecado e violavam os princfpios revelados por Cristo, pois subsistiam no limbo, sem luz, sem f6, sem salvacao. Nas trevas, os ndo-cristéos conviviam sob o signo da agressio, da guerra intermindvel. Neste sentido, os tedlogos reafirmavam, a antinomia por intermédio do confronto entre verdade e falsa revelagao, entre cristaos e enviados de Sata, entre Deus e Diabo. Na baixa Idade Média, o terms referia-se aos mais diversos povos ainda nao convertidos, sendo eles seres humanos imper- feitos. Porém, os pagios traziam consigo a luz da razo natural, Juz revelada somente por intermédio da conversao e do abandono de praticas contrarias a palavra do Senhor. Somente os cristos conheciam 0 caminho da verdade, somente eles vivian em con- c6rdia e harmonia. Em contrapartida, os barbaros travavam lutas intermindveis e combates fratricidas, inviabilizando a vida em comum, a vida na cidade de Deus! barbarismo atravessou 0 Atlantico e encontrou solo fértil nas nartativas de viagens. Barbaros eram os indios de corpos nus, barbaros eram os canibais na faina de esquartejar corpos e devorar a came do inimigo. Barbaros eram os guerteiros e seus ‘embates eternos, seres sem Lei, sem Rei, sem Fé. A vinganca tupinambé marcou a fronteira entre 0 cristo e 0 selvagem, de- monstrando o limite ou a inviabilidade da catequese. O indio barbaro constitui um cliché de enorme sucesso na iconografia ‘européia: os “antipodas” ora massacram uns aos outros em cam- pos de batalha, ora saboreiam em assembléia 0 repasto canibal. O biirbaro saltou dos escritos de Aristételes e santo Tomas de Aquino e mergulhou nos relatos sobre 0 cotidiano amerindio. aristotelismo pouco se alterou durante o longo percurso, rece- bendo apenas algumas adaptagbes. As guerras, a nudez, 0 cani- balismo ea falta da centralizacao politica sempre foram costumes pr6prios dos barbaros. Estas praticas e desvios disseminaram-se birbaros e colonizadores 55 pelas cartas jesuiticas, pelas narrativas de viagens € pelas pri- meiras hist6rias do Brasil. Portanto, a maneira de identificar um barbaro nao se alterou. O indio encontrava-se no limbo; como ‘um pago, era um ser decaido, capaz de ver a luz divina apenas por intermédio da palavra revelada. Porém, o simbolismo ex- presso pelas imagens do indio vinculava-se a0 processo de co- Jonizagao, que concebia 0 barbarismo sob uma nova tonalidade. ‘A imagem do indio dialogava nao apenas com o legado cristao, mas sobretudo com os embates préprios ao mundo colonial. © conceito aristotélico demonstrou ter uma enorme vitali- dade quando percorreu épocas to distintas. Erwin Panofsky de- senvolveu importantes estudos sobre as migracdes de temas entre 08 perfodos greco-romano e medieval. O historiador realizou im- portantes trabalhos nesta linha e introduziu 0 conceito de pseu- dometamorfose, ressaltando as transformagdes softidas por temas fe motives cléssicos durante a Idade Média e 0 Renascimento. Depois de comentar as alteragdes ocorridas nas imagens classicas, acrescenta: “Disto resultou aquilo a que gostaria de chamar uma “pseudometamorfose’: algumas figuras renascentistas revestiram- se de um significado que, apesar do seu aspecto cléssico, nao tinha estado presente nos seus protétipos classicos, embora ti- vesse sido pressagiado na literatura classica.”?O caminho trilhado por Panofsky permite esbogar uma problemética do maior inte- esse: o embate entre 0 legado cristio e a tealidade colonial, ou melhor, entre o aristotelismo medieval e o Novo Mundo. No entanto, ao contrario de Panofsky,ndo recorro as imagens pictéricas do barbaro produzidas na Idade Média para depois comparé-las a iconografia sobre a América. Em compensagio, pretendo observar como os atributos do barbaro impregnaram as representagées dos amerindios e explorar como 0 conceito atuow no ambito colonial, ou melhor, entender em que conjun- turas os colonizadores recorreram ao cliché para descrever os nativos. As guerras, 0 canibalismo e a nudez sustentaram mo- ralmente a conquista, a catequese, a guerra justa e a escravidio. ‘Aintervengao européia realizou-se em nome da cruz e da espada, ‘em nome dos princfpios cristdos, em nome da expansao da cris- tandade. A relacao entre os projetos coloniais e as representagoes do indio constitui a pedra angular para se compreender a ico- nografia européia dedicada aos amerindios. % imagens da colonizagio 1. Dos esterestipos As guerras entre os selvagens povoam as imagens pictoricas pro- duzidas entre os séculos XVI e XVII. A cartografia, a pintura e a literatura de viagem reproduzem em detalhes a ferocidade dos combates travados entre os nativos da costa do Brasil. A visao européia muitas vezes aproxima os indios aos turcos, aos citas e aos normandos, pois o barbarismo atenua as fronteiras culturais dos povos ainda nao cristianizados. Por vezes, os barbaros, os pagaos, os homens selvagens e as bruxas tém suas identidades confundidas, quando funcionavam como um contraponto aos principios da ortodoxia. Em Combatset triomphes, obra anterior ao ano de 1576, Etienne Delaune concebeu gravuras capazes de ilustrar a fuséo de varios esteredtipos presentes na cultura ocidental. O artista retratou ba- talhas entre animais e homens; entre centauros, faunos e guer- relros; entre camponeses; entre indios Deste modo, tragou uma hist6ria da guerra desde a Antigiiidade. Sua gravura intitulada Combat d'hommes et danimaux retrata cavalo, camelo, elefante, leo, lobo, aguia, cachorro, centauro, monstros ao gosto medieval e homens em pleno combate. Os humanos portam langas, macas, machados, arcos, flechas e se misturam em um duelo confuso. Os trajes indicam uma anarquia temporal, pois o embate se trava enire guerreiros mouro, romano, medieval e outros despidos de qualquer vestimenta, Em outra gravura, os camponeses medievais também ganharam uma mengio do artista: cavaleiros de feigoes clemoniacas, homens, mulheres e criangas se agridem mutuamen- te Em toda a obra, Delaune retratou embates muito semelhantes, apenas as roupas e os instrumentos de guerra determinam a identidade dos guerzeiros. Os camponeses europeus e os ame- tindios possuem expressdes e comportamentos quase idénticos. A agressividade, os gestos e os rostos so incapazes de definir a origem e a época das disputas. Em Mélée de guerriers nus, Delaune retratou amerindios nus em combate. Os instrumentos de guerra sao variados: muitas vezes, empregam macas, facas, arcos e flechas, mas recorrem igualmente a gravetos e pedagos de 4rvores com raizes, demons- trando o primitivismo e a rusticidade do confronto. Porém, os amerindios langam mao de recursos bélicos menos ortodoxos, pois arranham e mordem os oponentes com a firia propria dos birbaros e colonizadores 7 canibais. O impeto primitivo destréi as regras basicas da guerra ¢ induz os indios a morder maos, bracos, coxas e pernas do inimigo, em uma disputa animalesca. O artista ainda compés seres com semblantes demoniacos, quais morcegos, com orelhas pontudas, dentes afiados e proeminentes (fig. 1). Etienne Delaune nunca atravessou o Atlantico, nunca pre- senciou um combate em terras americanas. Para compor a gra- vura, recorreu ao texto e a imagem produzidos por André Thevet em La cosmographie universelle (1575). O cosmégrafo descreveu a guerra entre os selvagens em seus detalhes, desde a preparacdo do suprimento alimentar até © combate entre hordas rivais. Os indios, comentou Thevet, preferem atacar as aldeias durante a noite, quando esto desprotegidas e vulnerdveis. Os nativos sur- preendem um povoado depois de muito observar e aguardar 0 momento oportuno. Seguem a noite sorrateiramente pelas fl estas, como raposas, e esperam o tempo que for necessério, até surgir uma boa oportunidade para deflagrar o conflito. Inicial- mente, espalham fogo pelas cabanas e obrigam a tribo a sair para © patio, melhor oportunidade para aniquilar os rivais. As mu- Iheres e as criancas nao sio poupadas do massacre. No campo de batalha, os nativos recorrem a flechas, lancas, magas e espadas de pau para atingir 0s oponentes. Empregam também escudos de couro (rondelle de cuir de bestes) para proteger-se das armas de guerra. Nao dispensam outros recursos menos ortodoxos, como as mordidas: “mesmes quand ils sont renversez par terre, prennent leurs ennemis par les jambes a belles dents, et aux parties honteuses, sls les peuvent attraper”# Enfim, a guerra entre 0s selvagens ndo possui regras, qualquer recurso ¢ valido durante o enfrentamento: massacrar mulheres e criangas, morder e atingir os inimigos nos pontos fracos.5 Em La cosmographie universelle, hé algumas ilustragées dedi- cadas a0 combate entre os fndios. Uma delas descreve as fases da luta entre os maragajés e os tabajaras. Ao fundo e a esquerda, 08 invasores munidos de lancas e flechas esperam, préximos da floresta, o momento oportuno para o combate. Do lado direito, artista retrata cabanas ardendo em fogo, enquanto os amerindios apontam armas contra os oponentes que nao conseguem perma- necer dentro da choca em chamas e decidem enfrentar os algozes. No primeiro plano, ocorre 0 enfrentamento nos mesmos moldes concebidos por Etienne Delaune: indios nus e munidos de uten- 58 imagens da colonizagio sitios de guerra se engalfinham como animais. Muitas flechas e magas sioempregadas, mas o combate trava-seno corpo-a-corpo* (ig. 2). A ilustraggo da Cosmographie traduz com fidelidade os relatos de Thevet sobre a guerra entre os tupinambés. Em contrapartida, a representaco da guerra amerindia, segundo Delaune, enfatiza os aspectos primitivos, ressaltando a precarie- dade dos instrumentos bélicos e a falta de regras durante 0 combate. Para tanto, recorre 4 multiplicagéo das mordidas e aos instrumentos de guerra nao convencionais, como troncos de arvores € gravetos, elementos ausentes da gravura original. A aparéncia dos guerreiros também simboliza a marginalidade, pois o artista retrata-os como deménios-morcegos. Na imagem da guerra presente na obra de Thevet, somente dois indios mordem a mao e 0 brago dos oponentes. Estes seres nao possuem orelhas pontudas e dentes afiados. Deste modo, E. Delaune ressaltou o barbarismo, criando elementos ausentes da gravura e do texto do cosmégrafo. O ar- tista idealizou a obra distante dos trépicos, e assim promoveu 0 recrudescimento e a valorizacao dos atributos selvagens do com- bate. Na gravura, os indios comportam-se segundo os cénones aristotélicos e trazem as marcas dos estere6tipos do barbaro. Em Combats et iriomphes, os guerreiros representam as varias moda lidades de barbarismo, inchtindona mesma classificagao 0 mouro, © romano, o homem selvagem, o centauro, o sétiro, o camponés Pagao e 0 amerindio. Pela guerra, Delaune une seres das mais diversas procedéncias, mesclando suas identidades e transfor- mando-os em seres marginais & cristandade. ‘O mesmo cliché encontra-se em uma 4gua-forte de autoria ” de Jean Mignon, intitulada de Luta entre homens nus. Nela, a guerra primitiva ganha uma nova concepgio de arte, demons- trando a vitalidade do tema: bragos, pernas e troncos misturam-se ‘em uma “desordem pict6rica”. A composicdo enfatiza o contraste entre o claro e © escuro, ressaltando 0 movimento dos guerreiros. Os corpos nao se revelam por inteiro, havendo partes ocultas, na penumbra, sem definigao. Mais uma vez, os natives agarram- se, arranham-se, mordem-se e pisam nos oponentes derrubados. Alguns empregam macas para atingi-los, enquanto outros recor- rem somente & forca dada pela natureza, pois no possuem os artefatos proprios de uma guerra. A luta nao se trava entre duas 8 bérbaras e colonizadores » hordas, mas entre individuos. Jean Mignon criou uma imagem eminentemente barroca e retrata os indios de maneira original” ‘As cenas de guerra entre os nativos multiplicam-se nos pri- meiros relatos de viagem publicadosna Europa a partir demeados do séculoxvi8 Na colegio “Grandes viagens”, ilustrada e editada por Theodor de Bry, ha intimeras imagens dedicadas as batalhas entre os nativos. Os brancos também aparecem no meio dos con- frontos, portando e disparando armas de fogo. Fm uma gravura, De Bry retrata uma aldeia em pleno combate, cercada por centenas de guerreiros munidos de arco e flecha. O povoade possui uma palicada de forma circular. No interior do cercado, os indios defendem a tribo e apontam flechas para os inimigos, alguns deles encontram-se caidos e alvejados mortalmente. Na fortifica- so nativa, quatro cabanas protegem mulheres e criangas, que demonstram, pelos movimentos, o temor em relacao ao desfecho do evento. O ilustrador ainda acrescenta & composicao cranios humanos suspensos par varas dispostas junto a palicada, sendo este um indicio do canibalismo2 O gosto pela guerra € segura- mente um dos principais elementos do barbaro americano. Na colecao “Grandes viagens”, os europeus poucas vezes tomam parte nas ilustracdes; as atrocidades da conquista ndo mereceram destaque do artista. Hans Staden, por exemplo, foi retratado junto aos tupinambas em diversas gravuras, porém a sua figura expressa a submissdo aos antrop6fagos. Em raros mo- mentos, os portugueses, os franceses e os holandeses aparecem ‘como cruéis invasores, como senhores das terras do Nove Mundo. O conflito bélico e a antropofagia constituem atributos dos bér- baros. Os espanhéis, no entanto, recebem um destaque especial € aparecem queimando os nativos ainda vivos, langando bebés aos caes ou decepando maos e pés dos amerindios, Theodor de Bry era protestante e natural de Liége; exilou-se na Alemanha devido as suas opinides favordveis a0 protestan- tismo e contrérias 2 intervengdo espanhola em sua terra natal. De fato, a elaboracao das imagens da América esta vinculada a interesses afetivos, financeiros e politicos, pois Theodor de Bry era um ativista contra o dominio espanhol no Novo Mundo. A colecao pretende ainda incentivar a colonizagao protestante do novo continente e arranhar a hegemonia espanhola na Europa. As atrocidades denunciadas comprovam a incapacidade dos ca- t6licos, sobretudo dos ibéricos, de lancar as sementes do cristia~ Co imagens da colonizagio nismo em territérios do além-mar. A bandeira defendida pelo editor é compartilhada pelas grandes companhias maritimas in- glesas e holandesas que financiavam os primeiros empreendi- mentos coloniais."? Enfim, os crimes de guerra aproximam os espanhéis e os amerindios: ambos encaacées do barbarismo, promotores de guerras e de atrocidades, sendo incapazes de con- duzir os destinos do Novo Mundo. As gravuras denunciam a guerra, a antropofagia, o barbarismo, e evidenciam o fardo im- posto aos protestantes. Eles seriam os verdadeiros enviados de Deus e promotores da cristianizacao. Deste modo, as primeiras imagens da América clamam pela colonizagao como forma de reverter a selvageria e implantar no novo territ6rio uma “civili- zacao". A cartografia portuguesa do século xvi também elegeu a guerra e 0 canibalismo como motivos apropriados para caracte rizar a Terra de Santa Cruz. A imagem do Brasil se confunde com indios nus, segurando artefatos bélicos ou em pleno festim canibal. Muitas vezes, hé nos mapas as seguintes inscricdes: Ca- nibales, Brasil canibales e Canibales carnibus vivente. Os habitantes da colénia americana portam cocares e tangas de penas ou en- contranvse despidos de qualquer vestimenta, trazendo nas méos arcos e flechas. Os indios, por vezes, carregam 0 pau-brasil em direcao ao litoral, em mengo a primeira atividade econémica da colénia. ‘Um mapa portugués dos primeiros anos do século xviretrata a costa leste da América do Sul e evidencia uma cena de antro- pofagia. Nela, 0 corpo de um homem branco foi atravessado por um longo espeto e encontra-se em pleno cozimento. Um nativo, nu, de pele marrom e barba, ajoelha-se junto a uma fogueira e cuida dos preparativos do festim canibal. Certamente, o desenho nao surgin da observacdo direta do evento, pois os tupinambis recorriam ao moquém, ao invés do espeto, quando assavam os inimigos. A barba do nativo confirma a desinformagao do artista, pois as crénicas relatam que os indigenas arrancam todos os élos do corpo e impedem a formagao de barba.!" No atlas de Diogo Homem, datado de 1558, encontram-se indios reunidos em tomo de uma fogueira, muitos deles com- pletamente nus, outros com tangas e cocares de penas. Sobre o fogo, ha pernas e bragos humanos da mesma cor dos amerindios. A ilustragao ainda acusa um costume estranho a etnografia i bérbaros e colonizadores a digena, pois sobre uma Arvore existem outros fantos membros pendurados. Entre 1565 e 1568, Diogo Homem ainda produziu duas novas cartas e representou novamente cerim6nias antropo- fagicas. No primeiro mapa, o indio canibal assa um homem branco inteiro; no segundo, um homem nu e barbado ajoelha-se perto de uma fogueira, sob a qual cozinham dois bracos, uma pera ‘e uma cabeca, suspensos por dois espetos. A tonalidade da pele da vitima assemelha-se 4 dos indios.l? O cartografo distingue, entio, dois tipos de vitimas da antropofagia e retrata brancos € indios como repasto canibal. Por outro lado, concebe os nativos com barbas e retrata espetos ao invés de moquém. Estas formas sao recorrentes na iconografia européia e desconhecidas das nar- rativas de viagens. As representacies do canibalismo também contrariam os relatos coevos, pois apresentam um s6 indio as- sando partes do corpo humano. No entanto, a antropofagia é um cerimonial e exige a participagdo de toda a comunidade. A ine- xisténcia do ritual denota que a morte do inimigo nao ocorreu como resultado da vinganca, mas motivada pela gula, pela ne- cessidade de comer e sobreviver. Em 1551, publicou-se em Portugal 0 primeiro livro sobre 0 Brasil, Carlas dos jesuftas do Oriente e do Brasil — 1549-1551. O texto dedicado aos amerindios intitula-se Copia de unas cartas ‘embiadas del Brasil, sendo as primeiras correspondéncias dos je- suitas. As cartas escritas pelo padre Manuel da Nobrega e outros religiosos relatam os esforcos da catequese e mencionam 0 cani- balismo. © cartégrafo Diogo Homem poderia ter recorrido as descrigdes dos costumes indigenas, particularmente ao ritual an- tropofagico narrado pelos religiosos, para elaborar as imagens contidas nos mapas. Na primeira edicao portuguesa das cartas jesuiticas, o catibalismo foi abordado em algumas passagens, que poderiam perfeitamente auxiliar a confec¢io das cartas geo- grificas: "E logo depois de morto, cortam o dedo polegar: porque com ele atirava as flechas, e as demais partes sao feitas em pe- dacos, para as comer assadas ou cozidas.” Em outro trecho acres- centa: “(...) um chefe determinou com toda a tribo comer quantos, brancos ali viessem aportar”." Os padres da Companhia ainda descrevem a visita de um religioso a uma aldeia, logo depois da morte de uma moga (una muchacha). Os nativos, demonstrando simpatia pelo branco, convidam-no a entrar em uma cabana. La a imagens da colonizagio 0 jesuita teve a oportunidad de ver um tacho onde cozinhavam a cabeca e as entranhas da vitima Entretanto, as cartas jesuiticas pouco, ounada, influenciaram a concepgio do cartégrafo em relagao ao Brasil, pois nio ha si- militude entre 0 texto dos jesuitas e as imagens presentes na cartografia, ou melhor, nao hé similitude entre as descrigdes rea- lizadas pelos religiosos ¢ os desenhos presentes nos mapas. Diogo Homem nao péde consultar outros autores, pois somente em 1576 os escritos de Gandavo vieram a ptiblico. Quais seriam entio ‘as matrizes das imagens do cartégrafo? A tradicao oral, as his- t6rias de marinheiros e desbravadores do Novo Mundo? Também haveria a possibilidade de o artista reproduzir desenhos e esbocos encontrados em cartas anteriores, recorrendo a figuras presentes nos mapas do Caribe, terra dos canibais As cartas maritimas Iusitanas datadas do final do século xVI tepresentam o ritual antropofagico com maiores detalhes. O and- nimo Bartolomeu Lasso — Petrus Plancius — produzit um mapa do Brasil, entre 1592 ¢ 1594, onde retratou um homem deitado em uma mesa de abate e seu algoz cortando-o em pedagos com © auxilio de uma grande faca. O cartografo parece conhecer me- Ihor o ritual antropofagico, apesar de ainda recorrer a dois ele- mentos desconhecidos da etnografia indigena: o instrumento cor- fante e a mesa de abate. A vitima encontra-se presa pela cintura Por uma corda. Dois indios seguram as extremidades da mesma, enquanto um terceiro prepara-se para acertar o cranio do inimigo com uma maga. A continuidade da cena acontece quando omorto se encontra sobte a mesa de abate onde ocorre o esquartejamento. Na carta, ha as seguintes inscrigdes: Tabajares, Margajates, Que- tacates e Tupinambés, demonstrando conhecimento sobre os no- mes dos grupos indigenas. Em 1596, Bartolomeu Lasso reprodu- ziu, mais uma vez, a alegoria do canibalismo. Desta vez, os mem- bros retalhados so colocados em um moquém. Durante o século XVI, intimeros artistas retrataram os cos- tumes dos indios tupinambas. As imagens produzidas por Hans Burgkmair (1516-1519), Albrecht Diirer (1515) e as colegdes diri- sidas por Giovanni Battista Ramusio (1556) Theodor de Bry (1593) comprovam o grande interesse despertado pelos amerin- dios. Em compensacio, a vida cotidiana dos habitantes do Brasil Pouco estimulou a imaginacgo dos lusitanos. Em Portugal, os bitbaros e colonizadores 6 editores publicaram pouquissimos volumes sobre a colénia ame- ricana. Em raras ocasiGes, os pintores e desenhistas dedicaram-se ‘ao tema. A indiferenca em relagdo aos habitantes dos trépicos talvez explique 0 descompasso entre 0 conhecimento pratico e a cartografia. Os artistas lusos preferiam recorrer aos desenhos pinturas produzidosna Alemanha, por exemplo, do que consultar as correspondéncias dos jesuitas residentes no Brasil.!> Comumente, os mapas portugueses retratam costumes in- digenas amplamente difundidos no Velho Mundo. As cartas de Américo Vespticio ganharam intimeras edicdes ¢ assim apresen- taram aos europeus as primeiras imagens dos amerindios. Neste sentido, creio queas cenas de canibalismo presentes na cartografia portuguesa ndo provém da observacao da realidade americana. ‘As cartas jesuiticas e as cronicas nao forneceram elementos para a representagio do indio e do canibalismo. Porém, a origem de muitos clichés empregados pelos cart6grafos lusos se encontra nos mapas produzidos na Alemanha. Hans Holbein elaborou em 1532 0 Novus orbis regionum (fig3). No mapa da América do Sul, encontram-se trés indios envolvidos com o fracionamento de corpos e um moquém em plena fungao, assando varios membros humanos. A cena ainda contém uma cabana composta de galhos de drvores, onde os nativos penduram pernas e cabecas.# Em 1554, Sebastian Miins- ter desenhou homens na faina de fracionar corpos humanos ou assé-los inteiros com o auxilio de grandes espetos. Os elementos figurados por Holbein e Minster so idénticos aos encontrados nos mapas de Diogo Homem e Bartolomeu Lasso. Diogo Homem concebeu seus mapas entre as décadas de 1550 e 1560, enquanto Lasso produziu-os na década de 1590. Os clichés reproduzidos na cartografia lusitana demonstra a relagio entre as alegorias alemas e 0s cartégrafos portugueses. Por sua vez, Holbein e Minster poderiam ter recorrido as gravuras de Sebastian Brant e Lorenz, Fries para compor as pré- ticas antropofagicas. No final do século XV, 0 primeiro compés uma cena de canibalismo e representou homens nus e barbados a comer as visceras e os membros de um cadaver. Os seres nao eram amerindios, mas personagens das fébulas de Esopo. Jé Fries, entre 1525 e 1527, retratou uma mesa sacrificial americana, em tomo da qual homens com cabeca de cachorro fracionam uma vitima. Na ilustracdo, encontram-se trés elementos recorrentes 64 imagens da colonizagso na cartografia alema e lusitana: a mesa sacrificial, membros de- cepados e pendurados e a machadinha suspensa, pronta para cortar mais uma parte do corpo. Uma anélise mais consistente sobre a influéncia alema na cartografia portuguesa requereria ‘uma vasta pesquisa. No momento, interessa enfatizar que as cenas de canibalismo presentes nos mapas lusos nao se originaram do contato com a realidade americana.1? Para além do desconhecimento dos rituais antropofagicos, 05 portugueses nem sempre obedeceram ao protétipo tupinamba pata figurar os incolas da Terra de Santa Cruz. Em 1529, Diogo Ribeiro confeccionou uma carta denominada Tera Brasilis. No cen- tro do territério, dois homens cobertos com panos esvoacantes seguram langas. Os nativos ganham formas européias e distan- ciam-se dos indios descritos pelas narrativas de viagem. Préximo, hé uma outra referéncia ao imaginario cristo, um pastor apas- centa uma cabra e segura um cajado. Em um outro mapa, en- contra-se um guerreiro de formas perfeitas e fisico musculoso, semethante a um romano. Veste uma saia e enfeites de penas de duas tonalidades. Ele ainda segura uma langa e um escudo com as insfgnias de Portugal. O soldado tem a pele clara e foge com- pletamente do modelo do “selvagem americano” e simboliza a presenca portuguesa no além-mar. Do outro lado do Atlantico, no territério africano, hd um homem de pele negra, com os mes- ‘mos trajes e aderegos, sendo igualmente um aliado do império colonial portugués.1® Os guerreiros e os pastores retratados por Diogo Ribeiro destoam dos relatos de viagens e evidenciam a migracao para a América de motivos oriundos do imaginario medieval. Na cartografia, os estere6tipos s4o to poderosos que quase aniquilam a experiéncia dos lusos no ultramar, relegando a0 esquecimento a observacao dos colonos radicados no Brasil. Os descobrimentos portugueses pouco interferiram nos de- bates teol6gicos e filos6ficos.” O mesmo ocorreu em relacio as imagers presentes nos mapas, pois os relatos sobre o Novo Mun- do passaram despercebidos dos eruditos lusitanos. Ao retratar 08 indios, os lusitanos recorrem aos esterestipos difundidos na Europa além-Pirineus, desprezando o conhecimento produzido por intermédio da observacao da realidade. No entanto, durante ‘oséculo V1, os cartégrafos lusos eram disputados por varios reinos, sendo eles os mais informados sobre o territ6rio do além-mar. Fic.1 Indios de semblantes demonfacos travam combate. Etienne Delaune. Mélée de guerriers nus (detalhe). Cliché da Biblioteca Nacional de Paris. Fic2 Os maragajs e 0s tabajaras mordem-se durante a guerra, André Thevet. Cosmogmphie universelle. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Fic3 Cenas de canibalismo na América. Hans Holbein. Novus orbis regionum. Acervo da Biblioteca da Universidade de Konstanz. Fic4 No Canada, os nativos empregam machados e armas de fogo para liquidar os brancos. Autor desconhecido. Acer- vo da Biblioteca Nacional de Lisboa. no Paraguai. Autor desconhe- jonal de Lisboa. FiG7 A mulher tupi constitu uma alegoria da domesticagio dos ine Fe. Sactiffcio do padre Francisco Pinto pelos tapuias do Ma- digs. Albert Eckhout. In: Valladares, €, op- cit) ranhio. Autor desconhecido. Acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa. Fic8 A mulher tapuia € uma alegoria da selvageria e do canibalismo. Albert Eckhout. (ln: Valladares, C., op. cit) Darbaros e colonizadores 6 ‘Os descompassos entre 0 conhecimento empitico e a pro- dugio pictérica, entre texto e imagem, permitem também visua- lizar a difusdo dos esterestipos. Em 1557, duas edicées do livro de Hans Staden viriam a publico em Marburg e Frankfurt. A primeira seria ornada com as gravuras feitas pelo proprio autor, ‘enquanto a segunda, a de Frankfurt, continha novas ilustragées. Os desenhos de Staden sao amplamente conhecidos, pois acom- panham quase todas as edigdes posteriores da obra. Contudo, 0 mesmo nao ocorre com a edicao frankfurtiana. Em sua folha de rosto, Staden apresentava-se nu e barbado, sentado sobre uma pedra, enquanto um nativo, vestido com roupas esfarrapadas, retalha um corpo humano deitado sobre uma mesa de abate. O indio estilizado desfere um golpe com um machado no corpo da vitima, e um de seus companheiros segura uma perna. Em outra gravura, dois indios batem com macas em uma mulher vestida com roupas européias. Os algozes portam longas camisas amarradas por cordas na cintura. A vitima encontra-se no meio de uma fogueira, sendo observada por um Diabo. O ‘iltimo possui dois grandes chifres, corpo peludo, ventre dilatado, seios de mulher e pés caprinos. A imagem demoniaca aparece novamente em um novo cenério. Nesta ilustracao, Sata é repre- sentado com pés de ave, coxas com penas e corpo peludo. Seu rosto éhumano, mas sobre a cabeca hé quatro chifres. Um homem. bem vestido e barbado ajoelha-se em frente ao deménio que esté sentado em uma espécie de trono. Na cena, ainda encontram-se quatro homens seminus.2° Por acaso, encontrei a origem da tiltima gravura. Ela faz parte de um incunabulo alemao, possivelmente datado de 1475, ¢ intitulado: “Cena exética. Viajante reverenciando o rei-monstro do lugar.” A prética de reutilizar figuras em contextos diferentes era muito comum no século xv1, sendo mais uma evidéncia da forca dos esterestipos. Além disso, nas imagens da edigio de Frankfurt, encontram-se elementos completamente desconheci- dos do relato de Hans Staden. Seu texto é extremamente rico em detaihes sobre 0 cotidiano indigena. Em nenhum momento, re- feriu-se a bruxas e a diabos. O editor nao se incomodou com 0 descompasso e incluiu imagens demonfacas completamente es- tranhas a narrativa de viagem. Porém, o texto e a imagem com- pletam-se na leitura do livro. O leitor tomaria conhecimento dos costumes exéticos, dos rituais de canibalismo, e, imediatamente, ry imagens da colonizasio 0s relacionatia com as préticas demoniacas. O editor talvez tenha promovido a unio entre texto e imagem motivado por dois prin- cipios: os amerindios seriam concebidos como demoniacos, por isso nada mais natural do que os representar ao lado de Sata no interesse de facilitar a comunicagao entre o texto e oleitor, recorreu ‘a imagensbem ao gosto da época, quandoas bruxas eos deménios rondavam a imaginagéo européia?! ‘A difusio dos esteredtipos do barbaro e do demonfaco cons- tituj uma forma de absorver a diversidade cultural encontrada no Novo Mundo. O indio seria integrado ao imaginario ocidental, recebendo portanto uma classificacao e um valor. Contudo, a maneira de visualizar o indio vincula-se igualmente ao mundo colonial e as disputas em torno da conquista, da catequese e do emprego dos incolas como mio-de-obra. © barbaro seria entéo ‘um escravo ou um cristaoem potencial. Mais uma vez, as querelas entre colonos e jesuitas permitem aprender como o conceito aristotélico ganhou novas coloracdes no ambito colonial. 2. A natureza barbara ‘A guerra e a antropofagia compdem o perfil do barbaro. A cruel- dade e a sevicia so sentimentos proprios a seres irracionais jincapazes de conter sua natureza animal. Os te6logos espanhéis, consideravam os canibais como indbeis para distinguir e perceber as rigidas categorias do mundo natural, ou melhor, a divisto entre os homens e os animais. Os indios desprezavam-nas e com- portavam-se como se a carne humana fosse um alimento qualquer. Arist6teles j4 concebia os bérbaros como uma espécie humana inferior. A natureza destinou esses individuos a funcao de obe- decer, sendo portanto escravos naturais. Os barbaros devem per tencer esujeitar-sea um senhor, capaz de gui4-los eencaminhé-los, segundo os principios da razao. As atividades desempenhadas por eles néo diferem daquelas executadas pelos animais domés- ticos, ajudando a seu amo com a forca fisica e empregando 0s, atributos naturais para o bem da vida civil. Anatureza, completa © fildsofo, dotou os escravos cle um corpo robusto e perfeito para as atividades manuais, 0 mesmo nao ocorreu com a constituicéo corporal dos homens livres.” Para os te6logos, a origem da es- cravidao civil encontra-se na espiritualidade imperfeita do ho- birbaros e colonizadores 7 ‘mem, pois antes da queda no existira servidao. © pecado pro- moveu a hierarquizacao da sociedade humana e a existéncia de homens livres e escravos. Na Espanha, os contatos com 0 Nove Mundo geraram um importante debate em tomo da natureza dos amerindios. As ar- gumentagoes de Las Casas contra Septilveda demonstram, com maestria, como se deu a ruptura entre o pasado e as experiéncias americanas. Em Democrates secundos, Septilveda defendeu os se- guintes pontos: os indios eram culturalmente inferiores aos es- panhéis, por isso mereciam um tutor; as heresias por eles per- petradas eram de origem natural. Las Casas refutou tanto um quanto 0 outro, denominando-os de andtema, pois pressupunham, ‘uma antropologia cujas formas culturais fossem disposicbes na- tas. As proposicoes de Las Casas eram respaldadas por um co- nhecimento pormenorizado das diversas formas culturais encon- tradas no mundo antigo e modemo. Deste modo, 0 religioso pode comprovar a hipétese de que o mundo americano poderia ser explicado por esquemas familiares, ou seja, a partir de pres- supostos aristotélicos, desde que antes se adequassem os termos da classificacao. Lancando mao de uma arguciosa ret6rica, Las Casas con- testou o caréter barbaro dos indios e a legitimidade da submissa0 dos amerindios aos espanhéis, obedecendo literalmente a teoria aristotélica de escravidao natural. Porém, em seguida, desman- telou essas teses apoiadas na inferioridade biolégica e psicolégica dos barbaros. A denominagao “barbarismo” representava tanto uma classificacdo quanto uma valoragao de carater cultural, ex- pressando diferengas entre culturas. Comentou ainda que 0 en- tendimento do presente a partir de modelos antigos devia ser precedido de uma critica hist6rica. No caso das teorias aristoté- licas, lembrou que o fildsofo defendia a idéia de que todas as nacdes ndo gregas eram barbaras. Las Casas igualmente contestou a teoria do meio de Hipé- crates, empregada com o intuito de provar a inferioridade dos amerindios. O dltimo acteditava que as acdes humanas eram determinadas pelo clima, topografia, vegetacdo e conjuncao das estrelas. No entanto, na logica de Las Casas, 0 meio nao poderia mudar a disposicao do homem. Suas qualidades ou erros pode- riam variar conforme o espaco circundante. Assim, se todos pos- sufam o mesmo equipamento mental, pois todos eram filhos de 8 imagens da colonizagio Deus, determinados locais poderiam favorecer 0 seu desenvol- vimento, enquanto outros os camuflariam ou os retardariam. As conclusdes sobre a determinacao do meio sobre 0 homem per- mitem entender o cuidado do sacerdote em descrever o ambiente da América, como também constatar que os povos indigenas ‘exam bem servidos pela natureza, sendo portanto aptos a receber a “nobre alma”, prontos para se converter ao cristianismo. ‘A argumentacio do religioso contra Sepiilveda conduziu a outros caminhos. Partindo do meio, Las Casas comprovou que © mesmo nao era o responsavel pelo barbarismo, e que 08 pro- cedimentos pouco civilizados eram determinados pela cultura. ‘A diferenga entre os homens nao se resumiria ao ambito psico- logico: explicava-se pela variedade de habitos, costumes, tradi- Ges. As formas culturais, criadas pelos homens, mudariam no tempo e, assim, cresceriam em complexidade e em qualidade. O tempo passaria e as comunidades humanas avancariam em di- regio a verdadeira civilizacao e ao estédio final de tudo. Viver ‘cada um destes patamares permitiria ao homem ter um enten- dimento cada vez maior do mundo. No entanto, a capacidade de apreensio da realidade seria um dom divino, pois 0 Criador era o responsavel por esta caracteristica eminentemente humana. No estédio final da escalada, encontrar-se-ia o cristianismo, a forma mais complexa do mundo cultural, a verdadeira scientia. Deste modo, 0 defensor dos amerindios encontrou uma justifi- cativa para a conquista, munindo-a de um milenarismo. Em suma, ‘0s amerindios nao seriam inferiores aos espanhéis, nem incapazes de viversem a sua tutela, mas nao avancariam na escala évolutiva som 0 cristianismo.? O debate em torno da natureza do indio foi motivado por uma deniincia contra as atrocidades cometidas pelos espanhdis.. Em 1511, 0 dominicano Antonio de Montesinos denominou de cruel a servidao A qual os espanhéis reduziram as populacbes, indigenas da América. Durante um sermio, 0 frei repreendeu com veeméncia 0 comportamento dos brancos e considerou-os to pecadores quanto os mouros € turcos, O rei Femando im- ptessionou-se com os acontecimentos americanos e designou dois juristas para avaliarse a Espanha tinha direitos sobre a soberania dominio da América. Ao longo de quatro décadas, os letrados espanhéis debateram o assunto: poderiam os conquistadores to- mar as terras ¢ transformar os nativos em escravos? Na década bérbaros e colonizadores o de 1530, Vasco de Quiroga partiu do princfpio de que a condicio de barbaro inviabilizava 0 direito de propriedade.* Deste modo, os debates entre Las Casas e Septilveda envol- viam também 0 problema da posse das terras americanas. Os defengores do conceito de escravidao natural procuravam legiti- mar a conquista e as guerras contra os amerindios. As interven- ‘Ges bélicas teriam 0 mesmo sentido das cruzadas contra o infiel. A partir deste pressuposto, os ibéricos teriam todo o direito de reduzir 05 nativos & escravidao e confiscar suas terras. 3. Legitimando a guerra justa No Brasil, 0 debate em tomo da escravidao indigena envolveu 08 jesuitas e os colonos. Por principio, os religiosos defendiam a potencialidade dos indios para teceber a convers4o; ao contrario dos senhores de engenho, que enfatizavam a inviabilidade da catequese e a adequacio dos nativos para o trabalho escravo. Para os colonos, os silvicolas confundiam-se com feras brutas, Os cactés eram homens cruéis e pouco respeitavam as relacées de parentesco, pois os pais vendiam os filhos e os irmaos comer- cializavam seus parentes sem nenhum pudor. Em 1571, as mar- gens do rio Sao Francisco, uma india caeté resgatada trazia con- sigo uma crianca. Para se livrar do seu choro insistente, a mulher resolveu atiré-la nas correntezas do tio. Por muito pouco, seu rebento nao se afogou. Gabriel Soares de Sousa relatou o epis6dio para enfatizar a debilidade do sentimento maternal entre o grupo. Em outro momento, narrou a histéria de uma india que trazia seu filho nas costas, quando se dirigia A roca para colher man- dioca. A mae enfadou-se com 0 choro do menino e resolveu enterré-lo vivo. Os portugueses perceberam a crueldade e logo procuraram resgaté-lo. Com vida, a crianga recebeu o batismo e sobreviveu durante seis meses. Entre 05 tupinaés, o sentimento matemal era ainda mais débil, pois as mulheres gravidas dos inimigos matavam suas crias e depois comiam-nas.5 Maior atrocidade cometiam as indias quando seus maridos se encontravam enfermos. Para promover o seu restabelecimento, as esposas matavam os filhos e com eles alimentavam 0 doente, enquanto durasse a convalescenca. Nos casos de inexisténcia de uma prole, as mulheres muniam-se de arco e flechas e saiam a 70 imagens da colonizagio caga de uma crianca saudavel. Somente o frescor da infancia seria o remédio adequado para recupetar 0 esposo debilitado. A in- gestéo de criancinhas significava absorgao de uma forca vital, capaz de recobrar a satide de um guerreiro. Segundo os teste- munhos arrolados, 0 amor maternal e a preservacio da famflia pouco representavam para as comunidades nativas, sendo mais ‘um exemplo da selvageria encontrada entre os brasis.2° Os indicios do barbarismo nio se restringiam ao mundo familiar. As atroci- dades contra os inimigos faziam dos silvicolas personagens saidos dos bestirios medievais. ‘A sede de vinganca era hereditéria entre os silvicolas, fa- zendo-os percorrer longas jornadas, atravessando matas, desertos e serras, para capturar os inimigos e ingeri-los em um repasto canibal. Gandavo descreveu os naturais do Brasil como homens ‘bem dispostos e de boa estatura. A guerra fazia parte de seu cotidiano, pois nao temiam a morte e enfrentavam qualquer pe- Igja. Porém, eram pouco afeitos ao trabalho e viviam descansados, preocupando-se somente em comer, beber e matar os “contrdrios”. Para os colonos, a desonestidade, o vicio e a huxdria eram am- plamente aceitos pelas tribos. Em contrapartida, as comunidades recusavam-se a colaborar nos empreendimentos coloniais e ga- har seu sustento por intermédio do trabalho. Os indios preferiam vender uns aos outros para obter mercadorias do que labutar nos engenhos e nas propriedades administradas pelos lusos: “Es- {es indios nado possuem nenhuma fazenda, nem procuram adqui- tiela como os outros homens, somente cobigam algumas coisas que so deste Reino — isto é, camisas, pelotas, ferramentas..."” Deste modo, garantia Gandavo, o comércio se restringia toca entre cativos e mercadorias de procedéncia européia. ‘O pendor indigena para as disputas intertribais facilitou 0 dominio portugués sobre onovo territério. Os colonos se aliavam a uma tribo, para depois incentivé-la a capturar os inimigos. Por intermédio dessa estratégia, os engenhos e fazendas recebiam novos escravos, Os brancos ainda procuravam satisfazer as ne~ cessidades dos empreendimentos agricolas fomentando ataques contra as tribos consideradas hostis. A guerra justa seria entdo um mecanismo para submeter ao cativeiro um numero maior de nativose burlar as restricOes impostas pela legislacao indigenista. ‘A guerra justa era considerada um contra-ataque, resposta a uma ofensiva anteriormente levada a cabo pelos indigenas. Nas barbaros e colonizadores a atas da Camara de Sao Paulo, encontrei um bom exemplo para ilustrar a reacao paulista contra a morte de varios homens brancos fe uns tantos indios cristdos. Em 1588, a Camara requereu a0 procurador do Conselho, senhor capitao Jerdnimo Leitao, 0 con- sentimento para fazer guerra contra 0 gentio do sertéo. Além das mortes, os colonos ainda mencionaram a destruicao de muitas fazendas e igrejas, onde quebraram uma imagem de Nossa Se- nhora do Rosério dos Pinheiros. Por tudo isso, 0s indios mereciam ‘um castigo, caso contrério os levantes se perpetuariam e logo a capitania estaria despovoada. A entrada pelo sertéo resultaria emaprisionamento demuitosnativos, que seriam repartidos en- tre 0s moradores. A desforra contra os inimigos no procurava apenas intimidar as futuras investidas. Ou melhor, a protecao do territ6rio nao seria o tinico alvo dos paulistas, pois o requerimento ao Conselho mencionava a necessidade de escravos por parte dos moradores da regidio. Neste sentido, a guerra justa seria um estratagema dos colonos para angariar maior muimero de cativos destinados ao trabalho na lavoura e & protecao da vila Junto aos holandeses, os indios da serra da Capoaba se re- belaram contra os colonos. Os “invasores” assaltaram o litoral com 0 apoio dos potiguares, conhecedores da geografia local. Os ‘mesmos indios ainda destrufram engenhos na regio da Paraiba, provocando grandes prejuizos e mortes. Matias de Albuquerque, capitao-geral e governador de Pernambuco, solicitou permissio para “dar guerra” ao gentio indémito. O pedido foi analisado por quatro desembargadores. Em 26 de fevereiro de 1626, as autoridades redigiram um parecer contraditério. Afonso Garcia Tinoco considerou que os ataques as propriedades cram passiveis de punicdo. Em relacao aos indios da serra da Capoaba, lembrou que muitos deles eram convertidos, sendo vassalos de Sua Ma- jestade. Por isso, ndo poderiam perder a liberdade. Ignacio Fer- Teyra também ressaltou os beneficios advindos com o batismo declarou ilegal o cativeiro: Sua sentenca ressaltou a gravidade do delito, considerando-o um crime de lesa-majestade. Porém, o rei usaria de piedade e concederia o perdao geral. A pena capital somente recairia sobre os cabegas da traigio. Os doutores Luis d’Araujo de Barros e Dinis de Mello e Castro conceberam como justa a guerra contra os indios da serra da Capoaba. Os rebeldes seriam capturados e repartidos entre os moradores conforme a resolucao de Sua Majestade.” n imagens da colonizagio Por diversas vezes, os barbaros do sertao assaltaram os mo- radores das capitanias do Cear4, Rio Grande ¢ Paraiba, promo- vendo moztes, incéndios e latrocinios, Os colonos procuraram temediar a situacdo, matando e prendendo os revoltosos. Porém, nem sempre alcangaram sucesso contra os indios. Motivados pela falta de seguranca, 03 brancos abandonavam o sertio, tornando impossivel a manutencao das capitanias do Rio Grande e Ceara, Um diltimo recurso ainda foi empregado contra as ameacas dos gentios. Os colonos recorreram aos experientes paulistas para afugent4-los. Depois da chegada da gente de Sao Paulo, os bar- baros foram totalmente extintos, deixando as capitanias livres de todo o perigo. Porém, a principal recompensa almejada pelos famosos cacadores de indios seria o butim de guerra, os cativos. ‘Aos paulistas, foi negada a permisséo de tomar escravos. Desde entao, recusavam-se a continuar a guerra. Para resolver 0 impasse, os colonos indagavam aos prisioneiros se queriam con- tinuar vivos, ainda que escravos, ou morrer como homens livres. Ea carta dirigida a administragdo metropolitana acrescentou: Se dermos vista & piedade catélica, sobre a salvacio das almas que na terra mais relevante, cuido que nos dird, que menos mal é a servidao, por meio da qual se alcanga o batismo, e a doutrina, para a vida eterna (...) as capitanias do Rio Grande ¢ Cears, se hao podem conservar sem a total ruina do gentio, e que esta se nao pode obrar senao por meio dos paulistas, e estes néo hao de exectitar sem o interesse dos prisioneiros. Agora se necessério, julgar que é menos dano, a ruina total destas capitanias, destes ‘rassalos del Rei, efilhos da igreja, ou a serviddo de alguns tapuias barbaros, tiranos e rebeldes...° episédio descreve uma inversdo curiosa, pois os colonos ‘empregaram a catequese como forma de legitimar a escravidio. Nesse sentido, o discurso escravista mistura-se as coisas da fé: a vida a conversao tornaram-se argumentos em favor do cativeiro dos tapuias. Os apelos dos colonos do Norte nio deixam diwvida sobre a ilimitada criatividade dos colonizadores, pois emprega- vam qualquer subterftigio para convencer as autoridades colo- niais sobre a necessidade do cativeiro. Muitas vezes, os portugueses nao recorriam aos beneficios da guerra justa para cativar os nativos. No Rio de Janeiro, em +1645, Gaspar Brito Fernandes mostrou-se menos ardiloso do que 08 colonos do Norte. Seu pedido para empreender guerra contra birbaros ¢ colonizadores os nativos se respaldava na impossibilidade de comprar escravos negros. Para evitar a ruina da capitania do Rio de Janeiro e per- mitir 0 incremento do comércio do acticar, el Rei deveria consentir na captura e aprisionamento do gentio. No entanto, os prisionci- 0s permaneceriam em liberdade, recebendo umsalério ¢ 05 en- sinamentos dos padres da Companhia de Jesus. A guerra seria ‘apenas um meio para reunir os incolas e trazé-los até o litoral! ‘Os colonizadores recorreram, assim, aos costumes indigenas para legitimar a guerra, 0 aprisionamento e 0 cativeiro. No Oci- dente, hé muito os barbaros eram considerados seres inferiores, homens destituidos de intelecto e aptos para os trabalhos mais duros, Os padres procuraram em vao reverter a pratica. Recor- reram A teologia, aos ensinamentos divinos e A piedade crista dos seculates. Os depoimentos arrolados até entsio provam que co esterestipo do barbaro serviu aos interesses dos colonizadores, serviu de aval para a conquista e sujeicdo das tribos que, de algum modo, impediram o florescimento das atividades coloniais. Enfim, a cultura indigena se prestou a respaldar a colonizacao: ‘0s colonos recorreram aos “costumes abomindveis” para legitimar a conquista. 4, O barbaro e o martir Os padres da Companhia de Jesus nao destoaram dos colonos escravistas quando retrataram os costumes indigenas, nem dis- pensaram o prot6tipo aristotélico para descrever os nativos. De- pois de alguns anos de convivio com os naturais da terra, o padre ‘Manuel da Nobrega concluiu que a conversao pelo convencimen- to era invidvel. Por intermédio da palavra, jamais os missionérios alcancariam suas finalidades. Nobrega insistii na catequese por meios pacificos durante longos anos e depois encontrou na su- jeic’o 0 caminho apropriado para persuadir o gentio a abracar © cristianismo. E assim comentou: “Entendo por experiéncia 0 pouco que se podia fazer nesta terra na conversao do gentio por falta de no serem sujeitos, e ela ser uma maneira de gente de condicéo mais de feras bravas que de gente racional e ser gente servil que se quer por medo e sujeicio.”®? Para sacerdote, 0 combate ao “triste e vil gentio” se faria por duas medidas: re- pressdo implacavel ags costumes intolerdveis e concentracao dos ” imagens da colonizagio convertidos em aldeamentos organizados pelos religiosos. A transferéncia dos indios se realizaria por meio de guerras. Os ataques portugueses promoveriam a destruicao total das comu- nidades ea conseqiiente perda de autonomia dos silvicolas. Desse modo, os “selvagens” tornar-se-iam carentes e prontos a aprender as coisas da fé. Somente a guerra, a disperso e 0 abandono da organizacao tribal viabilizariam o projeto de catequese. A sujeicao oferecia uma outra vantagem: os indios “pacificados” seriam o brago forte para o engrandecimento da Coroa e dos empreendi- mentos coloniais. ‘As desventuras da catequese motivaram os padres a conce- ber os indios como barbaros, como seres destituidos de entendi- mento. A guerra seria o tiltimo recurso capaz de obrigar as co- munidades ind{genas a obedecer aos preceitos cristdos. A imagem do indio barbaro carregava, porém, outros séntidos. O esteredtipo estava presente na correspondéncia dos jesuitas, nas cartas anuais, nos relatérios enviados ao rei e a Roma. Muitas vezes, as pri- meiras hist6rias da Companhia de Jesus eram ilustradas com cenas americanas, com os indios expressando a agressividade propria de um barbaro. Os jesuitas difundiam essas imagens, mesmo sendo contrérios a escravidao e defensores da catequese dos americanos. O protétipo do barbaro era um mecanismo de legitimagao das teorias aristotélicas e, no entanto, os missiondrios incentivavam a sua permanéncia. Em 1610, em Bordeaux, seria editada a Seconde partie de Uhistoire des choses plus memorable advenues tant en Indes Orientales, que autres pais de la decouverte des Portugais. Em sua folha de rosto, encontrei varias gravuras sobre o martirio de padres. Os indios ameacam os religiosos com arcos e flechas. Os missionérios $30 perfurados por lancas, decepados por espadas, enforcados e ar- rastados pelo chao. A ilustracdo ainda mostra cabecas cortadas ecorpos fracionados, bem ao gosto do século xvil.*3 Poderia ainda mencicnar uma edicio, publicada em 1675 por Mathias Tanner, em Praga, intitulada: Societas lesus usque ad sanguinis et vitae pro- fusionem militans™ A obra é ricamente ilustrada e reine cenas de marlirios de padres em todo o mundo. A estrutura do livro obe- dece a uma légica geogréfica. Na Europa, Africa, Asia e América, os inacianos enfrentariam a resisténcia e 0 desagravo dos oposi- tores. Na Escécia, porexemplo, em 1615, 0 padre loannes Ogilbeus Scotus seria morto de modo cruel. A gravura retrata-o em um birbaros e colonizadores B cadafalso, enforcado, enquanto o algoz perfura seu ventre e extrai as entranhas. Carrascos encapuzados, machados, afogamentos e corpos fracionados dominam os desenhos da edicio. ‘Aparte dedicada a América ganhou uma gravura composta de alguns clichés também presentes nas narrativas de viagem. M. Kiissel representou criangas com trajes longos e amarrados na cintura. Ao contrario dos anjos barrocos, 0s pequenos ame- rindios possuem asas de morcego e montam em jacaré, onga, dragio e monstros. A contrapartida aos filhos de Sata seria uma mulher tendo em maos o Santo Evangelho e envolta por feras € diabinhos. Entre os mértires do Novo Mundo, houve seis portu- ‘gueses sacrificados no Brasil. Alguns deles nao foram identifica dos e morreram entre 1554 e 1633, todos vitimas das atrocidades brasilicas. Mathias Tanner mencionou 0s nomes dos seguintes padres: Pedro Correa e Joa Sousa, mortos em 1554 entre os carijés; Francisco Pinto, falecido em 11 de janeiro de 1608, em Ibiapanae; e Antonio Bellavia Siculus, em Pernambuco, em 4 de agosto de 1633, assassinado com um fuzil. Tanner aproximava, assim, os crimes perpetrados pelos indios do Brasil, indiciando que as atrocidades ocorridas na colonia seriam semelhantes a tantas outras envolvendo jesuitas em varios continentes. ‘A voga dos martirios ainda produziu outras gravuras en- volvendo os amerindios. Na Biblioteca Nacional de Lisboa, en- contrei uma série de imagens de religiosos, jesuitas e dominica- nos, em varias partes do mundo. Os pagios torturam dois rel giosos no Japao introduzindo instrumentos pontudos debaixo das unhas. No Canad, os nativos empregam machados e armas de fogo para liquidar os brancos (fig.4). Os padres Roque Gonzales e Afonso Rodrigues encontram-se préximo a uma capela quando 08 indios do Paraguai os atingem mortalmente (fig-5). Os padres Bernardo Rau, Lourenco Ybanez, Bartolomeu Alvarez e Miguel Urtea sio esquariejados e vitimas de um ritual antropofagico.* Osacrificio dos religiosos posstii os mesmos elementos presentes na historia de sao Tomé. O apéstolo percorreu os continentes, pregou a mensagem divina entre os gentios e em Meliapur, {ndia, foi sacrificado por um bramane. No local, permanecia uma cruz talhada em pedra, com marcas do seu sangue. (Os jesuftas seguiram a mesma saga do mitico sio Tomé. As intempéries da viagem e os sofrimentos provocados pelos gentios aproximam 0 santo dos membros da Companhia de Jesus. A 7% imagens da colonizagio énfase nas atrocidades perpetradas pelos naturais da terra refor- sava.a urgente e indispensavel intervengao crista nos trépicos. A. cruz'e a espada viabilizariam a construgio de um novo mundo € conteriam 0 avango da barbarie e da opresséo demoniaca sobre os amerindios. O capuchinho Claude d’Abbeville indagou-se so- bre a razao para Deus abandonar, por tanto tempo, a pobre gente do Maranhao, deixando-a sob 0 dominio das trevas.* Os europeus nao permitiam que os natives americanos per manecessem mais tempo na escuridao e alheios a palavra do Senhor. As cartas jesuiticas descrevem em exaustio 0s sofrimentos dos irmaos e 0s contratempos da catequese; todo 0 esforgo era pouco frente a grandeza do projeto de conversio do gentio. A fome, os animais selvagens os canibais atormentavam o coti- diano dos religiosos e valorizavam a missio e os votos dos envia- dos de Deus. A morte do padre Francisco Pinto, sacrificado pelos tapuias no Maranhic, foi representada em duas ocasides: na edi- fo de Mathias Tanner e na gravura, supostamente holandesa, encontrada na Biblioteca Nacional de Lisboa.” A violéncia dos nativos e o martirio dos padres, temas dominantes nas gravuras, revelam uma nova faceta do barbarismo no mundo colonial. A partir dessas imagens, analisarei os motivos que levaram os ina- Gianos a difundir o esterestipo do barbaro. Na gravura da Biblioteca Nacional de Lisboa, o padre Fran- cisco Pinto encontra-se sentado no chao, seguro por um nativo, ‘enquanto outros tantos apontam flechas contra o religioso. Uma flecha encontra-se espetada no seu peito, seu semblante expressa © sofrimento proprio dos mértires cristdos (fig. 6). Na edicio de Praga, os indios possuem feicSes orientais e os cabelos amarrados ao modo japonés. Ao invés da fecha, os nativos ameacam 0 sacerdote com machados. O médrtir permanece deitado sobre a terrae 0 seu corpo esta disposto em forma de cruz, sugerindo 0 sacrificio de Jesus Cristo, A morte do jesuita nao se perpetuou apenas nas imagens visuais. Varios testemunhos narraram os episédios da serra Ibiapaba. O padre Manuel Gomes relata que o mértir estava rezando © oficio divino em uma pequena choupana, quando os tapuias descarregaram sobre a sua cabeca um pau roligo. Os golpes se xepetiram varias vezes, desfigurando o religioso: “langando-lhes fora os olhos, fizeram mitidos pedacos 0 casco da cabeca”. O jesuita Luiz Figueira também narrou o evento: 06 selvagens dei- ‘birbaros e colonizadores 7 taram-no em forma de cruz e deram tantas pancadas sobre a cabeca que o fizeram em pedacos, “quebrando-Ihe os queixos € amassando-Ihe as cachages e olhos; 0 qual pau cheio de sangue trouxe como reliquia...”. O sacrificio do religioso é ainda narrado por Antonio Vieira: Estando o padre Francisco Pinto ao pé do altar para dizer missa, sem Ihe poderem valer os poucos indios cristdos que o assistiam ‘com flechas e pratazanas, que usavam de paus mui agudos e pe- ssados, Ihe deram trés feridas mortais pelos peitos e pela cabeca, ‘eno mesmo altar onde estava para oferecer a seus 0 sacrificio do ‘corpo e sangue de seu Filho, ofereceu e consagrou o de seu pro- prio corpo e sangue, comegando aquela agao sacerdote, e consu- mado sacrificio® A morte do padre Francisco Pinto causou grande comogao entre os membros da Companhia de Jesus. Os demais martires da causa jesuitica nao receberam o mesmo destaque. Os padres mencionados por Mathias Tanner pouco despertaram a atencao dos jesuitas radicados no Brasil. Enfim, 0 padre Pinto seria 0 simbolo da causa inaciana, simbolo do desprendimento, da ab- negacao dos discipulos de Loyola. O seu sacrificio serviria de estimulo para os futuros religiosos, sendo portanto uma bandeira ‘em prol da expansio do cristianismo. Assim como Jesus Cristo sao Tomé, o mértir veio ao mundo para guiar 0s indios pelos caminhos da doutrina. Os designios divinos moveram-no em diregao aos trépicos, com a misao de libertar os americanos do jugo demonfaco. Desse modo, a fé livraria os indios da danacao infernal, liberté-los-ia das trevas, mesmo que custasse a vida de ‘um religioso. O sacrificio do sacerdote concede ao tema do bar- barismo uma nova faceta, pois o bérbaro constitufa um obstaculo no caminho dos missiondrios. one Os jesuftas desbravaram sertées, enfrentaram animais peri- gosos € nativos cruéis para levar a Iz além das fronteiras da cristandade. O controle dos corpos e dos prazeres tornava-se uma demonstragdo de f& e um alimento espiritual. Somente a privacao do conforto, as intempéries dos trépicos e as ameacas dos canibais os conduziriam ao céu e a verdade. O martirio era ‘© caminho da perfeicao e da purificacio espiritual. Desse modo, as imagens do martirio e do vil gentio concedem ao tema do barbarismo uma nova significagéo. O barbaro torna-se, entao,

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