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Resumo
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Liberdade e Corpo no pensamento de Michel Foucault – Da crítica ao humanismo a
uma genealogia de corpos históricos
Abstract
Body and Freedom at Michel Foucault's thought – From the criticism of humanism to a
genealogy of historical bodies
This research project seeks to study the relationship between the notions of
Freedom and Body in Foucault's thought, to understand that they identify a
proper motion in Foucault's ethics that goes from critique of humanism, as a
negative emergence point on the issue of freedom, to the constitution of a
genealogy of subjects as a discursive-political field on which freedom is though
in close relation to subjectivities of historical bodies. Therefore, this hypothesis
is structured to explore, above all, how Foucault, rejecting humanism in The
order of things, passes, at the power and subject genealogies, to assume
definitions of political Freedom and Freedom that can be recognized as ethic
notions that go through the different genealogy histories developed by him,
specially, the ones carried out at Le Collège de France lectures.
Keywords: freedom, body, humanism, subject, resistence, genealogy.
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PROJETO DE PESQUISA
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tanto nas investigações arqueológicas propriamente ditas (História da loucura, O
nascimento da clínica, As palavras e as coisas), quanto na reflexão “teórica”
convocada em A arqueologia do saber. Resumidamente, foram três as frentes de
investigação:
Em primeiro lugar, a análise de algumas práticas reguladoras do saber
médico (grande internamento e medicalização) que culminam na
caracterização do postulado antropológico das ciências humanas
(analítica da finitude);
Depois, a fundamentação teórico-prática desta análise crítica que vem
efetivar o saber como espaço político, já que expõe o enraizamento
discursivo do postulado antropológico segundo a operação enunciativa.
Nessa fundamentação, o caráter eminentemente regulador da
antropologia é subvertido à medida que conceitos como de enunciado e
de materialidade repetível do enunciado recusam a natureza significativa do
signo a fim de forjar a crítica das instaurações discursivas sobre o
homem.
Na última parte do trabalho, procuramos mostrar, com mais detalhe,
que essa operação de distanciamento das unidades significativas em
favor de um certo modo originário do discurso é, no fundo, uma
estratégia tomada da atitude experimental da filosofia nietzschiana.
Creditamos a Nietzsche essa maneira de Foucault lidar com o saber e a
verdade. Interrogando-se mais profundamente sob a dimensão política
da arqueologia, conduzi a discussão a uma postura experimentalista em
Foucault. No movimento concomitante do homem como norma de
verdade e da sua subversão crítica pelo saber, enxergamos a operação
singular do conceito de vontade de verdade como a grande estratégia
subjacente da arqueologia. Foi fundamental, neste ultimo momento,
movimentar a leitura foucaultiana do tema da origem e da interpretação
nietzschiana.
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histórica na França. De um modo preciso, Foucault compartilha com esta
tradição a idéia de uma história da justificativa dos padrões de racionalidade
que presidem a verdade científica. Essa orientação essencial o filósofo herdou
de autores como G. CANGUILHEM, A. KOYRÉ, J. CAVAILLÉS e G.
BACHELARD. Com eles, Foucault compartilha o interesse comum pela história
epistemológica das ciências. Avaliamos, com base no importante trabalho de
Roberto MACHADO, os limites entre epistemologia e arqueologia de modo a
sustentar uma posição mais intermediária do pensador francês entre estes
campos.
Do ponto de vista da interlocução com os leitores de Foucault, procurei
reunir alguns elementos que surgem, esporadicamente, a respeito de dois tipos
de leituras feitas da arqueologia. Na primeira, trata-se de uma conjectura a
respeito dos primeiros trabalhos do filósofo que veio a difundir uma opinião
comum sobre arqueologia: ela desenvolveria um método autorreferencial ou
criptonormativista (maneira de explicitar que as formações discursivas
determinam regularidades cujas regras se autorregulam) Na segunda leitura, a
arqueologia é um semiestruturalismo já que, acatando o pressuposto da
autonomia das estruturas, contudo almejando à condição de um trabalho
histórico, ela é um estruturalismo que contradiz o princípio de que parte
(encontrar regras a-históricas para explicar a mudança histórica). A
consequência destas leituras é que o surgimento da genealogia do poder adviria
desse duplo esgotamento teórico-metodológico. As leituras preponderantes de
J_P. SARTE, J. HABERMAS e A. HONNETH bem como a de H. DREYFUS, e P.
RABINOW que, em que pese suas nuanças e diferentes fins, concordam no
resultado geral: Foucault incorre no paradoxo de uma teoria sobre a sociedade
que esvaziaria o próprio social.
Não pretendi ter esgotado este debate, mas o desenvolvimento mesmo
do trabalho houve por responder a estas críticas, sobretudo, porque ele apoia
outra leitura da arqueologia: permite explicitar a politização de problemas não
pensados como questões propriamente políticas; como por exemplo, a grande
descoberta foucaultiana de que nosso humanismo teórico se solidifica nos
imperativos éticos do saber médico clássico e moderno. Portanto, o
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doutoramento me permitiu o desenvolvimento do que chamei de uma
arqueologia política dos saberes em Foucault. Com efeito, se a arqueologia tem
uma opção política a ser explicitada, ela poderia ser sintetizada como
antiautoritária: seja na formulação especifica da doença mental como tributária de
jogos de exclusão racionalmente ratificados, seja depois na microfísica do poder
que articula certas redes de saber a tecnologias de poder particulares às
sociedades modernas. Um mesmo viés antiautoritário aí se percorre: no interior
da análise de problemas epistemológicos, vemos se denunciar tipos de domínio
exercidos sobre nós.
Se podemos, doravante, compreender que a arqueologia é uma política
do saber enquanto uma prática histórica que desvela, ao nível do enunciado,
que espécie de domínios se exerce sobre a formação do sujeito, a questão que
ora se me apresenta é com respeito à consistência da ideia de liberdade no
pensamento foucaultiano: como pensar a questão da liberdade diante do
quadro de uma arqueologia política e da analítica do poder? Aprofundando o
estudo de As palavras e as coisas pude descobrir um viés que articularia a
temática de modo a torná-la apreensível tanto como problema teórico e ético
quanto como questão de fundo que vem se adensando no pensamento de
Foucault: a liberdade é um tema que nasce de uma crítica especifica ao
humanismo sartreano e que se elabora, como prática de liberdade, ao longo do
pensamento de Foucault, como uma genealogia de corpos históricos.
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Foucault, diante das grades históricas de saberes-poderes que ele descreveu, às
vezes caracterizadas como rentes a um determinismo discursivo-político
radical, teria lugar um sentido positivo de liberdade. O problema da Liberdade
para o pensamento foucaultiano está configurado, portanto, diante de uma
exigência basilar que este pensamento mesmo produz: o que a liberdade pode
significar como noção ética e práxis histórica se a historicidade do sujeito parece,
no interior do pensamento foucaultiano, como enformado por assujeitamentos
ou descrito como processos históricos de subjetivações? Em suma, a proposta se
pergunta de que modo se pode erigir o sentido da liberdade para as
subjetividades históricas que foram tão profundamente formuladas pelo
pensamento foucaultiano.
A hipótese que levanto nesta pesquisa defende que Foucault não só
afirmou um sentido positivo para a Liberdade, como para compreendê-la é
necessário tomar como ponto de ancoragem o desenvolvimento da ideia de
corpo, ou mais exatamente, é necessário ter em conta que Foucault realiza uma
genealogia de corpos históricos, o que significa defender, em larga medida, uma
linha de interpretação que admite que a prática histórica de Foucault está
fundamentalmente ligada a subjetivações corporais. Por este caminho de
compreensão, seria necessário mostrar que a historicidade dos corpos é que dá
lugar à ideia de liberdade como práticas de liberdade (FOUCAULT, 2001a, p.
1527). A hipótese, portanto, entende que liberdade e corpo são termos
indissociáveis da própria realização da prática de liberdade. Ela tem por fim
formar um quadro de referências para o entendimento e aprofundamento da
singularidade filosófica da ética foucaultiana. Tendo em vista esta problemática
da liberdade e de como ela está organizada numa genealogia de corpos
históricos, nossa pesquisa obedece a um duplo e complementar movimento.
De um lado, consideramos os trabalhos de Foucault no chamado período
da arqueologia do saber, mais especificamente, em As palavras e as coisas [1966]
(ETAPA 1).1 Dessa arqueologia das ciências humanas, devemos extrair as
principais formulações e implicações acarretadas pela crítica foucaltiana ao mito
humanista do homem em relação à questão da liberdade. Nessa frente de
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estudo, investigaremos como, partindo da prática de historiador das ciências,
ao modo da epistemologia histórica francesa (CANGUILHEM 1967, 1977,
1986,1989, 2006), Foucault inaugura um novo campo histórico-filosófico de
problemas com relação ao conhecimento: uma reflexão crítica sobre o estatuto
de racionalidade das ciências humanas, tema culminante de As palavras e as
coisas. A problemática principal nesta primeira abordagem da pesquisa é a
relação de reciprocidade complexa entre Homem e Liberdade, isto é, à medida
que Foucault caracteriza o Homem como campo epistêmico no qual as
empiricidades do viver, trabalhar e falar desconstituem o homem como
portador de uma essência, a Liberdade se define como uma possibilidade em
negativo.
A liberdade aparece, por assim dizer, “historicizada” na epistèmé
moderna, sendo, pois, destituída como noção fundamental do ser do Homem.
Se assim ocorre, ela surge, na interpretação do arqueólogo das Ciências
Humanas, como uma imagem correlata de Deus pela qual ser livre é o mesmo
que manter uma imagem teologizada de Deus, embora o Homem, para a
arqueologia, seja efetivamente uma permanente reduplicação empírico-
transcendental. Daí a formulação foucaultiana, que necessita ser compreendida
menos como uma crítica ao existencialismo e mais como a descoberta
arqueológica de como o Homem pode ser livre, que diz: “fazia-se do homem
objeto de conhecimento para que o homem pudesse tornar-se sujeito de sua
própria liberdade e de sua própria existência” (FOUCAULT, 1999, p. 444).
A compreensão, assim, da liberdade, ao menos no seu sentido negativo,
requer que se investigue este homem-conhecimento da epistèmé moderna. O
Homem como campo epistemológico que se reduplica em empiricidades
transcendentais e no qual se formula uma Liberdade em negativo está
fundamentada na reflexão arqueológica sobre as Ciências Humanas. Um
resultado forçoso dessa reflexão, ou que está acoplado a ela, é a crítica ao
humanismo compreendida como a crítica ao postulado antropológico
(FOUCAULT, p. 443) constantemente propalado por Foucault em As palavras e
as coisas como condição, mais ou menos ilusória, de uma consciência do
homem. Expressões como “quimeras dos novos humanismos” (FOUCAULT,
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1999, p. XXI), “boa vontade fatigada dos humanismos” (1999, p. 361), o homem
e “sua retumbante inexistência” (1999, p. 444), o humanismo como “tarefa de
funcionário” (FOUCAULT, 1999, p. 452) indicam que esta crítica vai
produzindo a necessidade de Foucault explicar-se sobre a que resultado
chegaria o decreto, aparentemente inevitável a partir de As palavras e as coisas,
da morte do sujeito.
Tal situação exigiu do pensador a elaboração de uma ampla genealogia
do sujeito, isto é, demandou uma “critica radical do sujeito humano” na qual o
próprio sujeito deveria aparecer constituído “no interior mesmo da história”
(FOUCAULT, 2005, p. 10). Esta genealogia se traduzirá em uma política do
saber, ou seja, política acerca das condições histórico-discursivas que situam os
sujeitos implicados nos gestos, experiências, saberes-poderes e discursos ditos
científicos ou jogos de verdade. De outro lado, portanto, nesta pesquisa trata-se
de analisar um segundo movimento que concerne à questão da liberdade: a
relação entre o sujeito e as relações de poder colocada por diferentes trabalhos
de Foucault, especialmente a partir dos anos 1970, os quais realizam uma
história política da subjetividade, isto, é história política de corpos históricos.
Por este lado, de posse dessa discussão, no interior da chamada analítica
do poder, a questão da Liberdade se ligará a uma genealogia do sujeito e do
poder que, conforme a hipótese, é uma genealogia de corpos históricos. Em A
arqueologia do saber toda uma explicitação teórica em torno do sujeito foi
convocada. Foucault insistirá, por exemplo, que o sujeito é para o pensamento
arqueológico sempre a posição de sujeito já que a análise discursiva deve ser
capaz de identificar, a partir de que espaço vazio, um indivíduo se converteu
em sujeito (FOUCAULT, 2002, p. 108). Diferentemente, desde 1972, não se trata
mais de assumir a estratégia de definir um sujeito como posição vazia e
anônima, mas de exercer uma prática histórica de como aconteceram estas
subjetivações corporais. A Liberdade, nesta opção voltada a práxis de sujeitos
históricos, transforma-se em nova ideia. Ela não será mais definida apenas em
termos negativos, mas sim a partir de duas relações entre sujeitos que se
estabelecem enquanto relações de poder: a relação de sujeitos entre si e a
relação do sujeito consigo mesmo.
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Com efeito, na relação de sujeitos entre si (ETAPA 2), Foucault
determinará a ideia de uma liberdade política como a possibilidade de
modificação estratégica em uma dada relação de poder. Por esta via, a liberdade
é definida como uma resposta estratégica em função do tipo de relações de
poder que se estabelece, isto é, como forma tática e refletida diante de uma
relação de poder em específico. Esta liberdade política se concretiza no próprio
pensamento foucaultiano quando, de modo tático, o pensador se põe a analisar
genealogicamente a emersão de todos aqueles corpos históricos que se
“assujeitaram” na história. Liberdade deixa, portanto, de ser percebida sob o
horizonte da crítica do Homem como portador de uma condição de ser livre e
passa a nova necessidade, inaugurada na analítica do poder e desenvolvida na
genealogia do sujeito,do conhecimento das relações de “assujeitamentos” de
corpos.
Tal genealogia de corpos históricos se realiza nitidamente a partir do
curso Teorias e Instituições Penais dado entre os anos de 1971-1972 no Collège de
France. Podemos dizer que a formulação de uma liberdade política está atrelada
à percepção de que o poder não tem uma substância em absoluto, mas, como
modos históricos de relações entre indivíduos, o poder deve ser analisado como
“relações de poder por meio de afrontamentos estratégicos” (FOUCAULT,
2001a. p.1044). A liberdade política, assim, tem por cerne a relação de poderes
entre sujeitos que, explicitamente no artigo O sujeito e o poder (1982), se define
conforme à ideia de conduzir condutas (FOUCAULT, 2001a. p. 1036)
Embora seja necessário colocar à prova a presente hipótese, um exemplo
importante dessa subjetivação de corpos pode ser oferecido com o chamado
corpo neurológico, noção que Foucault estuda no contexto da história
genealógica da psiquiatria no curso O poder Psiquiátrico (1973-1974). A ligação
entre o poder e o corpo é, no fundo, o modo pelo qual a genealogia foucaultiana
ajusta o elemento-sujeito ao corpo, a forma segundo a qual o poder se estreita
em direção a uma singularidade somática, isto é, esta ligação é o que faz do
corpo um corpo “subjetivado” (p. 70). É o conceito de função-sujeito que
estrutura tal relação. Este conceito se define como a função exercida sobre um
corpo que vem a ser individualizado. Daí esta ideia no curso de 1973-1974 de
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uma singularidade somática que não é o corpo dado previamente em sua
realidade individual, mas o próprio corpo em ajuste disciplinar promovido por
uma individualização corporal que uma função-sujeito realiza. Dito de outro
modo, o poder disciplinar é individualizante porque é um devir de “assujeitar”
corpos, um devir que sobre a singularidade somática já exerce uma função de
subjetivação disciplinada, um assujeitamento:
“(...) o poder disciplinar (...) fabrica corpos sujeitados, vincula
exatamente a função-sujeito ao corpo. Ele fabrica, distribui
corpos sujeitados; ele é individualizante [unicamente no sentido
de que] o indivíduo [não é] senão o corpo sujeitado. (...)
(FOUCAULT, 2006, p. 69).
Por sua vez, na relação do sujeito consigo mesmo, (ETAPA 3), trata-se da
liberdade ética, ou mais exatamente, de uma dimensão em que o sujeito, numa
dada relação consigo mesmo, constrói a si mesmo como sujeito ético. A
caracterização desta liberdade ética é dependente da primeira porque
pressupõe que o sujeito da liberdade política mantenha uma dimensão de
resistência que é uma dimensão adquirida como limite político. Ela abre para a
possibilidade de um si mesmo em face das próprias relações de poder. A
liberdade ética, chamada por Foucault de práticas de liberdade, é um
empreendimento de atualização, de saída para presente, de todo trabalho
genealógico que o pensador realizou com a Ética antiga, principalmente, em
História da Sexualidade II - Uso dos Prazeres (1976), História da Sexualidade III -
Cuidado de si (1984) e nos cursos Segurança, Território, População (1977-1978) e
Hermenêutica do sujeito (1981-1982).
Tais práticas de liberdades estudadas na Ética antiga presentificam para
o pensamento a realização heterotópica de um corpo não assujeitado, portanto,
de um corpo ético como o cuidado refletido consigo mesmo, ou melhor, como
um corpo-resistência. Então, por fim, e como consequência do cruzamento e
dependência conceitual entre Liberdade política e Liberdade ética (ETAPA 4),
estudaremos, de modo particular, os corpos-resistência como definidores
positivos da ideia de Liberdade em Foucault.
Recoloquemos o problema central. Como compreender a questão da
Liberdade para um pensamento que, desde o seu princípio, descreveu grades
históricas de saberes e poderes que fazem emergir sujeitos assujeitados?
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Responderíamos com Foucault: admitindo: “a liberdade é a condição ontológica
da ética. Mas a ética é a forma refletida que a liberdade assume” (FOUCAULT,
2001a. p. 1031). Para muitos comentadores, a formulação soa enigmática e, por
vezes, portadora de efeito retórico, mas nela se concentra o movimento que o
próprio pensamento ético de Foucault realizou: pensar a Liberdade sem o
Homem requer que se pratique a história de sujeitos que nela acontecem, o que
significa que estabelecer uma crítica ao humanismo - - decorrente de sua
arqueologia das ciências humanas – requisitou do pensamento de foucaultiano
que ele propusesse uma genealogia de sujeitos que são corpos históricos. Para
parafrasear Foucault, a liberdade política, como reconhecimento de relação de
poder entre sujeitos, é a condição de existência para percebermos que são
relações estratégicas, mas tais estratégias, é uma liberdade ética, isto é, contêm,
para cada historicidade dos corpos-sujeitos descritos, um rasgo de resistência
característica daquela relação. A relação de poder e a insubmissão da liberdade
não se cindem.
Em suma, Liberdade e Corpo se deslocam de uma crítica ao humanismo
para uma genealogia de corpos históricos. Este déplacement é um recorte de
pesquisa, mas que corresponde a um movimento do pensar foucaultiano que
leva em frente um projeto de análise de importante alcance e relevância no
interior do na tradição da Ética: a investigação que expõe a fundamental
questão de como se dá a produção histórica, política e ética de relações entre
sujeitos, portanto de liberdades, conforme os seus corpos nos diferentes jogos
de veridição estudados pelo pensador francês.
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A presente pesquisa pretende realizar, sobretudo, uma análise das
noções de Liberdade e Corpo no pensamento de Foucault. Para tanto, iremos
pautar-nos num campo de múltiplas referências que privilegiarão alguns
aspectos nodais do pensamento foucaultiano sempre voltados para a questão de
pensar o movimento que vai da crítica ao humanismo, como ponto de emersão
em negativo da questão da liberdade, à constituição de uma genealogia de
sujeitos como campo político-discursivo em que a liberdade é pensada em
estreita relação a subjetivações de corpos históricos. Tendo em vista tal
horizonte, fazemos seguir o encaminhamento desta investigação sob algumas
especificações conceituais que, articuladas entre si, são essenciais ao
desenvolvimento desta pesquisa.
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de um dado tipo de pensamento que triunfou durante certo
período. Mas Foucault não nos diz o que seria o mais
importante: a saber, como cada pensamento é construído a
partir de suas condições, como os homens passam de um
pensamento a outro. Seria preciso, para tanto, fazer intervir a
práxis, logo, a história, e é precisamente o que ele recusa. Certo,
sua perspectiva permanece histórica. Ele distingue épocas, uma
após a outra. Mas ele substitui o cinema pela lanterna mágica, o
movimento por uma sucessão de imobilidades. (SARTRE, 1989,
p. 74).
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homem reduplicado nas empiricidades, especialmente no falar 2 oferecesse ao
pensamento a liberdade como o correlato atualizado de Deus na forma da morte
de Deus.
Assim, a crítica ao humanismo em Foucault não é um anti-humanismo e
negação simples da subjetividade, não é uma história suspensa na aventura
iconoclasta sem fundamento moral. Trata-se da experimentação da diferença
que, ao diagnosticar a invenção recente do homem, encontra no nosso
humanismo um nível mais profundo de alienação pelo controle do discurso que
nós somos. Ou se quisermos, nas palavras do arqueólogo das Ciências
Humanas: “O “humanismo” do Renascimento, o “racionalismo” dos clássicos
podem realmente ter conferido um lugar privilegiado aos humanos na ordem
do mundo, mas não puderam pensar o homem”. (FOUCAULT, 1999, p. 438-
439), isto é, a arqueologia é o pensamento sobre o pensar o homem.
Vale dizer que esta etapa é indissociável da própria recepção de As
palavras e as coisas no meio intelectual francês e suas contraofensivas que vai
desde a crítica dos sartreanos (ERIBON, 1996 p. 101-110), passando pela
importante intervenção à época de Canguilhem (1967) e chegando às respostas
formuladas por Foucault de modo mais teórico, sobretudo de método, em A
arqueologia do saber. Tão bem recebido quanto criticado, aqui sobretudo no
círculo sartreano e nos meios de esquerda dos anos 1960, o livro de 1966 não
pode passar incólume pela crítica que estabelece ao humanismo. Sem dúvida,
este tema, que não nasce no livro mas já na tese auxiliar de Foucault (Introdução
à Antropologia de Kant), é ponto obrigatório de reflexão, se queremos
compreender todo empreendimento ético e político que virá nos anos 1970
(KANT, 1994).
2 Num artigo de 1982, Foucault caracterizará o estudo feito sobre o sujeito em As palavras e as
coisas como “modos de investigação que buscam aceder o estatuto de ciência” e, neste caso,
teríamos três modos de objetivação: do sujeito falante, produtivo e do ser vivo (FOUCAULT,
2001a. p. 1042). Uma passagem pouco desenvolvida pelos estudiosos de Foucault tematiza,
ainda que circunstancialmente, a questão da liberdade em relação ao sujeito falante. Lemos: “A
linguagem está ligada não mais ao conhecimento das coisas, mas à liberdade dos homens: “A
linguagem é humana: à nossa plena liberdade deve sua origem e seus progressos; ela é nossa
história, nossa herança”. No momento em que se definem as leis internas da gramática,
estabelece-se um profundo parentesco entre a linguagem e o livre destino dos homens. Ao
longo de todo o século XIX, a filologia terá profundas ressonâncias políticas” (FOUCAULT,
1999, p. 402).
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Para nossos fins, a articulação do estudo deste contexto da crítica
foucaultiana ao humanismo e suas reverberações contextuais tem um objetivo
preciso: ser uma espécie de estratégia, também ela crítica, para marcar algo
muito especifico em Foucault. Era urgente para seu pensar que qualquer
suspeita de recusa à história fosse dirimida, mas não por novos ataques a Sartre,
nem pela conceituação de um aparato metodológico novo. Por meio da própria
prática histórica, Foucault haveria de mostrar, enfim, que sua filosofia era
comprometida com uma práxis eminentemente histórica. Ora, não é de se
espantar que aqui a apropriação do procedimento genealógico nietzschiano
apareça como o motor desta empreitada. As datas não são meras coincidências:
temos a conhecida interpretação da genealogia em 1971 em Nietzsche, a
genealogia, a história (FOUCAULT, 2000, p. 1004-1024). Todavia, deve-se
destacar, embora quase nunca mencionadas, as Lições sobre a vontade de saber
(FOUCAULT, 2011) primeiro curso de Foucault no Collège de France nas quais,
ao mesmo tempo que se apropria da genealogia, o pensador lê numa grade
genealógica o homem socrático do conhecimento. Assim, será fundamental para
a pesquisa o estudo deste curso que apresentamos como leitura de fundo da
virada para a genealogia de corpos históricos.
A crítica ao humanismo de As palavras e as coisas, em suma, terá central
desdobramento no pensamento de Foucault na história do sujeito ético, como
uma história da relação consigo mesmo, notadamente a história do homem do
desejo. Contudo, antes desse eixo da ética em Foucault, já se nota que
desvencilhar-se do nosso humanismo é abrir a possibilidade para outra ética,
para essa ética atrelada à história de nossas diferenças que se ocultaram, mas
também se afirmaram, na artimanha dos padrões normativos em que o homem-
norma reinava como imagem revivida do Deus morto e mortificada do último
homem. Daí a necessidade de organizarmos, na especificação desta etapa, um
estudo sobre o sentido político da liberdade na recusa conceitual e
contextualmente complexa, do humanismo.
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A Liberdade política se liga a este ponto de reflexão decisivo a partir de
1976 com a publicação de A vontade de saber de que a Liberdade não é exterior ao
poder (p. 91). É a explicitação de que o poder é compreendido como correlações
de forças, que ele não tem um termo predominante na rede, que se forma em
um domínio, que atua como jogo e afrontamento de lutas, com pontos de apoio
múltiplos, que o poder é, inclusive, num rompante nominalista de Foucault,
definido como “um nome dado a uma situação estratégica complexa numa
sociedade determinada (p.89). Enfim, pensar a Liberdade Política é, de certo
modo, conferir o alcance dos posicionamentos feitos por Foucault no
dispositivo de sexualidade que, em geral, defendeu: “que lá onde há poder há
resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em
posição de exterioridade em relação ao poder”. Doravante, ele pode concluir
que as próprias correlações de poder “não podem existir senão em função de
uma multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de
poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a
preensão. Esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder”
(p. 92).
A liberdade política em Foucault emerge como uma investigação dentro
dos trabalhos em que se preocupou em investigar “os modos de objetivação que
transforma os seres humanos em sujeitos”. (FOUCAULT, 2001b. p. 1042). Esta
investigação consiste:
em tomar as formas de resistências nos diferentes tipos de
poder como ponto de partida. (...); em utilizar esta resistência
como catalisador químico que permite colocar em evidência as
relações de poder, de ver onde elas se inscrevem, de descobrir
seus pontos de aplicação e os métodos que elas utilizam.
(FOUCAULT, 2001a., p, 1044).
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violência e pelo consentimento (idem, p. 1054-1055). A especificidade das
relações de poder está na percepção de que o poder é “um modo de ação de
alguns sobre outros” e, assim, compreende-se que o poder “existe apenas em
ato, mesmo se com certeza ele se inscreve num campo de possibilidade
dispersa, apoiando-se sobre estruturas permanentes” (FOUCAULT, 2001a, p.
1055).
Este ato no qual o poder é exercido está composto do seguinte
movimento: “que o “outro” (aquele sobre o qual a relação de poder se exerce)
seja bem reconhecido e mantido até o fim como sujeito da ação; e que se abra,
diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos,
invenções possíveis”. (Ibidem, p. 1055). É a partir destes dois elementos que o
poder exige (o outro como subjetividade reconhecida e mantida e um campo de
possibilidades da ação) que Foucault pode declarar:
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onde há poder e vice-versa. “Aqui onde as determinações estão saturadas”,
afirma ele, “não há relações de poder: a escravidão não é uma relação de poder
(...)”, porque uma relação de poder pressupõe a possibilidade de se deslocar e,
até mesmo, de escapar daquela estratégia relacional de poder (FOUCAULT,
2001a., p. 105).
Em outros termos, a Liberdade política é conjectural porque, recusando
um simples face a face da Liberdade e do Poder (Ibidem, p. 1539; p. 1057), ela
surge como uma complexidade: é condição de existência do poder e também
aparece como condição prévia (préalable) a ele “já que é necessário que haja
liberdade para que o poder se exerça (...)” Trata-se de uma ousada posição esta
de Foucault. Para que o poder se exerça, a Liberdade é considerada o suporte
que o mantém atuante e distinto da “coerção pura e simples da violência”
(Ibidem, p. 1057). Outrossim, ao mesmo tempo que considera esta espécie de
fatalismo de convivência entre o poder e a Liberdade, fatalismo segundo o qual
eles nunca se opõem de fato, mas se reafirmam mutuamente, Foucault
considera que a Liberdade é uma constante insubmissão ao poder. Como
compreender que a Liberdade é tanto condição prévia, o que mantém as
relações de poder, mas ainda assim, uma forma de insubmissão?
É que, neste ponto, desloca-se a questão clássica da servidão voluntária
como problemática central da Liberdade. Uma outra problemática passa a ser
exigência desta compreensão genuinamente foucaultiana segundo a qual o
exercício de poder como um modo de ação sobre ações dos outros: ser livre
como ação política não é um conteúdo ou uma forma universal do dever, nem
uma destinação existencial do sujeito, desde o que seria sempre necessário
explicar, de algum modo, a servidão voluntária; a pergunta constante da
Liberdade, inaugurada por Kant, seria: “quem nós somos neste momento
preciso da história? (...) Sem dúvida, o problema filosófico o mais infalível é o
da época presente, do que nós somos neste momento preciso” (FOUCAULT,
2001a., p. 105-1051).
Se não há Liberdade sem o poder é porque aquela é um exercício de luta
contra os assujeitamentos, portanto, como constante pergunta, sempre reposta,
pelo que nós somos num tempo e espaço determinados. Tal luta não é um
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“antagonismo essencial” do Poder versus Liberdade, mas “seria necessário falar
de um “agonismo” – de uma relação que é ao mesmo tempo de incitação
recíproca e de luta; menos uma oposição termo a termo que as bloqueia uma em
face da outra senão uma provocação permanente” (Ibidem, p. 1057). Em suma,
a prática política da Liberdade é uma conjectura sobre como se forma o sujeito,
ou melhor, sob qual relação agonística o sujeito é individualizado.
Para esta etapa, em andamento nos nossos estudos, a liberdade política
será estudada como modificação estratégica investigada prioritariamente por
Foucault nos cursos dados no Collège de France. 3 Como proposição de recorte,
proponho nesta etapa o estudo de dois eixos que recobrem o entrecruzamento
daquelas estratégias táticas de poder e que vinculam saberes jurídicos e
médicos. Assim, os cursos estudados nesta etapa serão prioritariamente: Teorias
e Instituições Penais 1971-1972 (FOUCAULT, 2015a), A sociedade punitiva 1972-
1973 (FOUCAULT, 2015b), O poder psiquiátrico 1973-1974 (FOUCAULT, 2006),
Os anormais 1974-1975 (FOUCAULT, 2001d).
21
Podemos dizer, a título de indicação do caminho pesquisa, que a noção
de Liberdade política está atrelada aos trabalhos nos quais Foucault estudou a
relação entre sujeito e os jogos de verdade nas práticas coercitivas, como a
psiquiatria e o sistema penitenciário. Com ela, Foucault faz a descrição crítica
de como sujeitos passivos se formam como “consequência de um sistema de
coerção” (FOUCAULT, 2001a. p. 1538). Ora, com O uso dos prazeres, mas
também com todo trabalho com a ética antiga sobre os gregos e romanos, algo
novo ocorre: o pensador passa a se interessar pelo trabalho ético antigo que é o
interesse pela “maneira pela qual o sujeito se constitui de um modo ativo, pela
prática de si (...)” (Ibidem, p. 1538).
Entre outros, o que queremos marcar, nesta etapa de estudo, é uma
confusão por vezes cometida por certo senso comum já formado sobre o
pensamento ético e político de Foucault. Quando retorna aos gregos e aos
romanos e pretende, como se sabe, estudar a ética antiga num amplo projeto da
história do homem do desejo (os tomos II e II de História da sexualidade é este
estudo ambicioso na relação entre a ética e a subjetividade), Foucault não
comete um egipcianismo malgré tout; ou, para melhor expressar, a estética da
existência não é a retomada de uma espécie de ponto de vista supra histórico
pelo qual se reabilitaria de volta a prática ética da liberdade como cuidado de si.
Foucault, questionado precisamente a esse respeito, ironiza: “´ Esquecemos
infelizmente o cuidado de si, eis agora aqui o cuidado de si, é a chave para tudo
´. Nada é mais estranho a ideia de que a filosofia é desviada num momento
dado e que ela esqueceu algo, e que ele existe, em algum lugar na sua história,
um princípio, um fundamento que seria necessário redescobrir” (FOUCAULT,
2001b., p. 1542).
Mas, então, Foucault realiza tão-só um trabalho de caracterização
histórico-filosófico da ética antiga e das suas práticas de Liberdade? Qual seria a
relevância para os próprios estudos sobre as práticas coercitivas e seus sujeitos
passivos desta viagem à Grécia e à Roma, estudadas em alguns importantes
trabalhos? De fato, o conjunto de trabalhos que envolve a formação do sujeito
nas práticas de si é um vasto trabalho histórico e filosófico foucaultiano de
como se dão os jogos de verdade na antiguidade clássica pela cultura de si.
22
Devemos, entretanto, considerar que não se trata de mera coincidência o
fato de Foucault tematizar o tema da Liberdade política justamente no mesmo
período deste “retorno” aos antigos, isto é, principalmente na sua última
década de vida (1974-1984). Se, por um lado, não se trata de um egipcianismo,
por outro, perguntamos: os sujeitos históricos que se formaram ativamente nas
práticas de si possuem, para Foucault, alguma reverberação ou algum
agenciamento estratégico sobre a liberdade ética no bojo mesmo das sociedades
modernas e de suas práticas coercitivas? O contato com a cultura de si, com os
textos prescritivos da ética antiga, fez com que Foucault abrisse precisamente a
questão da Liberdade como, ao mesmo tempo, política e ética. De certo modo,
ela passa de uma à outra quando indica a possibilidade de que nas próprias
relações de poder se abrem as resistências:
Mesmo quando a relação de poder está completamente
desequilibrada, quando realmente podemos dizer que um tem
todo o poder sobre o outro, um poder não poderia se exercer
sobre o outro senão na medida em que resta a este último a
possibilidade de se matar, saltar pela janela ou matar o outro.
Isto quer dizer que que, nas relações de poder, há forçosamente
possibilidade de resistência, pois se não houvesse possibilidade
de resistência – de resistência violenta, de fuga, de artimanhas,
de estratégias que invertem a situação – não haveria
absolutamente relações de poder (FOUCAULT, 2001b., p. 1539).
Podemos, então, aventar que a pesquisa deve entender a Liberdade ética como
a caracterização histórica conforme a qual a ética antiga é a prática refletida da
liberdade para os gregos; estes que ativamente se formaram como sujeitos de si
a si. E neste ponto não podemos deixar de ressaltar que a Dietética antiga, tanto
entre os gregos como entre os romanos, se define como campo das práticas
corporais de formação da conduta de si. Contudo, a Liberdade ética é também
para Foucault uma dimensão ativa do presente das resistências às relações de
poder. Em suma, se se trata de fazer face ao poder, às coerções das relações de
poder, não como o outro do poder, mas como mecanismo coextensivo ao
próprio poder desde o qual se ativa e se subverte a relação encarando as
diversas mobilidades, então, agenciar os distintos níveis e estratégias sob a
quais elas acontecem aparece como a dobra sobre si mesmo. O sujeito como
devir-outro em sujeitos, que são corpos na história, permite que vislumbremos
23
a Liberdade ética como esta resistência sem termo cuja preocupação prática é
fazer emergir, nas capturas dos corpos, o dado diferencial.
Para esta etapa, faremos um aprofundamento da relação de derivação
que há entre Liberdade política e Liberdade ética particularizando o estudo ao
estatuto que a violência desempenha no pensamento de Foucault. Antes de
publicar Vigiar e Punir em 1975, Foucault recusa a noção de violência no início
do curso de 1973-1974 O Poder Psiquiátrico. Neste curso ele retoma o ponto de
chegada de História da loucura que tinha sido o nascimento da instituição
psiquiátrica. Contudo, a continuidade do trabalho histórico do nascimento da
doença e do doente mental exigirá uma descontinuidade. A analítica do poder
recusa algumas ideias ora consideradas fechaduras enferrujadas, dentre elas, a
ideia de violência. Resumindo, a violência é recusada porque, no limite, todo
poder é exercido sobre o corpo:
Tomando em suas ramificações últimas, em seu nível capilar,
onde ele toca o próprio indivíduo, o poder é físico e, por isso
mesmo, violento, no sentido de que é perfeitamente irregular,
não no sentido de que é desenfreado, mas ao contrário, no
sentido de que obedece a todas as disposições de uma espécie
de microfísica dos corpos” (FOUCAULT, 2006, p. 19).
É bastante interessante que não se trata para Foucault de dizer que não
existe violência no poder. Trata-se de destituir a dicotomia poder versus
violência cujo fim é deslegitimar um “alguém” que se arrogaria o direito de
dizer o que é violento ou não no poder, ou de dizer o que é o poder violento e o
poder não violento. Ora, a violência identificada a esta espécie de substrato
desenfreado, irregular, etc não poderia participar do jogo racional do poder.
Mas as táticas de poder justamente são violentas, não porque elas aparecem
como contingência racionalmente distribuída ali e aqui, mas porque seu cálculo
é ser esta irregularidade para microfisicamente atingir os corpos.
Que liberdade de resistência se reconhece aí? A liberdade de resistir de
que existe um dado preexistente ao poder que o legitima ou o deslegitima como
sendo violento ou não. A violência, então, pode ser definida como aquilo que as
táticas de poder fizeram e fazem dela: a violência de um crime qualquer
afetava, para a teologia jurídica dos dois corpos do rei, o corpo do soberano. À
pessoa do soberano afetada deveria ser respondida com violência corporal
24
direta no ritual do suplício, conforme o crime praticado. Diferentemente, a
violência sobre a alma das disciplinas é de outro tipo. É uma violência
disciplinar de produção de um corpo quadriculado como tão bem mostra Vigiar
e Punir.
O que se abre como Liberdade ética é, pois, um dado diferencial da
relação de poder como microfísica de corpos. Como se sabe, o nascimento da
psiquiatria para a história tradicional enxerga na libertação dos acorrentados de
Bicêtre justamente a ascensão do humanismo médico. Foucault percebeu muito
claramente, por exemplo, que a grande cena de cura de Pinel sobre um certo
enfermo que padecia por estar dominado por preconceitos religiosos
(FOUCAULT, 2006, p. 13-16) efetivamente em nada se assemelhava a uma cura
médica enquanto trabalho diagnóstico ou nosográfico, ou ainda a consideração
de um processo patológico. Tratava-se, não do estabelecimento de um domínio
de objetividade científica, mas de um embate entre duas vontades que vão
organizando um campo de batalha da qual se espera a vitória da vontade
médica sobre a do doente mental. A violência aí justamente é vista na própria
vitória que a vontade médica acaba por impor ao doente mental.
25
pressuposto metodológico, porque é o procedimento da história genealógica
que orienta a percepção de corpos-resistência. Tudo se passa, pois, como se
apenas a militância de Foucault na história, como genealogista de corpos
históricos (do louco, do condenado, dos corpos sexuais etc), pudesse definir o
sentido positivo da Liberdade, agora sem necessidade de adjetivações.
Ser livre é, para o pensamento foucaultiano, resistir corporalmente nas
relações discursivas/políticas e históricas, de poder. Entre poder e a história,
estão os corpos como alvo exercício do poder, mas também de resistência. Se se
descreve tais corpos, se realizamos, com Foucault, uma genealogia de corpos
históricos, realizamos também uma genealogia de resistência em corpos, de
corpos-resistência, ou então, uma genealogia das práticas de resistência
corporais.
Esta etapa de pesquisa se concretizará pelo estudo de dois grandes
arquivos de sujeitos-corpos a que Foucault se dedicou estudar: o caso Pierre
Rivière (FOUCAULT, 1977) e o caso Herculine Barbin (FOUCAULT, 1982),
ambas autobiografias analisadas por Foucault nos anos 1970 com diferentes
propósitos, mas resultados similares. Delas será possível extrair o
entrecruzamento altamente profícuo da história com a individualidade corporal
já que, nestas vidas paralelas nada memoráveis para a História, a Liberdade
ética como dimensão de resistência está inteiramente orientada pela exigência
de ser sujeito de uma relação de enfretamento de si a outrem, portanto prenhe
da liberdade política: num caso e noutro, tornar-se de modo imposto um
criminoso ou o sujeito de uma identidade sexual é uma espécie de démi-
subjectivation já que não se repagina um sujeito sem os resquícios do velho
sujeito. Rivière e Barbin, o parricida monstruoso e a hermafrodita suicida,
quando se narram em seus discursos de devires–outros, constituem para e na
história dois corpos-resistência que só o bas-fond característico de uma
genealogia de corpos históricos pode manifestar.
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edital, estão previstos os seguintes resultados:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
28
bibliográfica que realizei, sobretudo em língua portuguesa, francesa e inglesa,
ao presente arquivo.
______. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... –
um caso de parricídio do século XIX, apresentado por Michel Foucault. Rio de
Janeiro, Graal, 1977.
______. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 1984.
______. Resumo dos cursos de Collège de France (1970-1982). Trad. Andrea Daher.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
______. História da Sexualidade III: o cuidado de si. Trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque. 10. ed. Graal: Rio de Janeiro, 1998.
_______. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
______. Raymond Roussel. Trad. Manoel Barros da Motta e Vera Lucia Avellar
Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999a.
_______. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da
Costa Albuquerque. 8. ed. Graal: Rio de Janeiro, 1999b.
29
______. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 6. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2002.
______. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 11. ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2004c.
______. História da loucura na Idade Clássica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. 8.
ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
30
OUTRAS OBRAS DE INTERESSE AO PROJETO
______. Michel Foucault, uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
31
MACHADO, R. Archéologie et épistémologie. In: Michel Foucault philosophe.
Reencontre internationale Paris 9, 10, 11 janvier 1998. Paris: Éditions du Seuil, 1989.
p. 15-31.
Acesse: http://lattes.cnpq.br/9888987549331365
1) Formação
Pós-Doutoramento
2) Histórico profissional
Faculdade de Direito de Itu – Professor horista (CLT) – Filosofia; Ética; História do Direito ( Itu, 2005 – 2010)
Colégio Maria Montessori – Professor Convidado – Filosofia (São Paulo, 2010 – 2010)
32
Professor convidado do mestrado em Ensino, Ciência e Tecnologia da Sustentabilidade (2011 –
2011);
Professor convidado do mestrado interinstitucional UNIFESP/UFAC: Múltiplos olhares sobre o
fenômeno educativo (2013 – 2013 – campus São Paulo);
Conferencista convidado: Dançar com o pensamento: encontros sobre Corpo e Filosofia (Centro
de Referência da Dança de São Paulo, 2014 – 2015);
Coordenador do Programa de Extensão: Fórum permanente de Direitos Humanos (2010 – 2014
campus Diadema);
Coordenador do Programa de Extensão: Núcleo Dança Arte Filosofia (DAAFI 2014 – Atual)
Coordenador do curso de Extensão: abordagens do Balé: pensamentos e vivências corporais no
ensino de arte (2012 -2012);
Membro do GT Filosofia Francesa da Associação Nacional de Pós graduação em Filosofia
(2014- atual)
Avaliador de cursos de Filosofia do Instituto Nacional e Pesquisas Educacionais “Anísio
Teixeira”/ MEC (2011 – Atual).
3) Produção bibliográfica
Artigos completos publicados em periódicos
7. SILVA JUNIOR, N., AMBRA, P. E. S., RIBEIRO, CARLOS EDUARDO, SANTOS, A. G. S., CARVALHO
NETO, S.
Construções do corpo na razão diagnóstica do DSM e da psicanálise. A Peste: Revista de Psicanálise e
Sociedade. , v.1, p.80 - 88, 2010.
33
]
Artigo aceito
2. SILVA JUNIOR, N., SANTOS, A. G. S., RIBEIRO, CARLOS EDUARDO, AMBRA, P. E. S., CARVALHO
NETO, S. Construções do corpo na razão diagnóstica da psiquiatria e da psicanálise In: Corpo para que te
quero? Usos, Abusos e Desusos.1 ed.Rio de Janeiro : Appris, 2012, v.1, p. 265-273.
6) Indicadores quantitativos
Produção bibliográfica
Artigos completos publicados em periódico................................................. 8
Artigos aceitos para publicação........................................................... 2
Capítulos de livros publicados............................................................ 2
Orientações
Orientação concluída (dissertação de mestrado - co-orientador)............................ 1
Orientação concluída (trabalho de conclusão de curso de graduação)........................ 2
Orientação concluída (iniciação científica)............................................... 2
Orientação em andamento (dissertação de mestrado - orientador principal).................. 2
Citação
https://scholar.google.com.br/citations?user=fmWzDrUAAAAJ&hl=pt-BR
https://scholar.google.com.br/citations?user=fmWzDrUAAAAJ&hl=pt-BR
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