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Abstract
This essay examines the early twentieth-
century interpretation of manic depressive
psychosis in Brazil, during a moment when
Brazilian psychiatry witnessed a theoretical
shift from the French to German traditions.
It calls special attention to how the problem
of hysteria was replaced by manic depressive
psychosis within this historical context.
Keywords: mania; melancholy; hysteria;
manic depressive psychosis; Brazil.
Joel Birman
Professor titular do Instituto de Psicologia/Universidade Federal do Rio
de Janeiro; professor adjunto do Instituto de Medicina Social/
Universidade do Estado do Rio de Janeiro; diretor de estudos em Letras
e Ciências Humanas e pesquisador associado do Laboratório de
Psicanálise e Medicina/Université Paris VII.
Rua Marquês de São Vicente, 250
22451-040 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
joel.birman@pq.cnpq.br
De olho no lance
A intenção fundamental deste ensaio é a de estabelecer as coordenadas teóricas por
intermédio das quais se delineou a descrição clínica da psicose maníaco-depressiva na
tradição da psiquiatria brasileira, nas duas primeiras décadas do século XX. Tal descrição
foi realizada num contexto social e histórico de amplas transformações dos discursos e
práticas de cuidados sobre a loucura no Brasil, em meio às quais outras descrições clínicas
foram também forjadas, na medida em que um outro paradigma teórico (Kuhn, 1975)
estava sendo incorporado por esse campo do saber. Por essa razão, enunciei que a descrição
clínica da psicose maníaco-depressiva se fundava em certas coordenadas teóricas, condição
de possibilidade desta e de outras descrições, formuladas nesse contexto histórico específico.
Vale dizer que tais coordenadas seriam o correlato do novo paradigma, a partir de então
inscrito no horizonte da psiquiatria brasileira.
Em decorrência disso, será necessário evocar como condição preliminar da descrição
clínica da psicose maníaco-depressiva, a transformação ocorrida no campo da psiquiatria
brasileira da época. A assunção de Juliano Moreira à direção do Hospício Nacional de
Alienados, em 1905, foi um signo eloquente de tal transformação, que, no entanto, já
havia sido iniciada algum tempo antes. Indicado para os novos poderes políticos da
República por Afrânio Peixoto, para ocupar o cargo institucional mais importante na
gestão da psiquiatria no Brasil, Juliano Moreira compartilhava com o primeiro os mesmos
pressupostos teóricos para a leitura das perturbações mentais. Foi Afrânio Peixoto que
empreendeu a leitura originária da loucura maníaco-depressiva no Brasil, no início do
século XX, baseando-se para tanto na obra de Kraepelin (Peixoto, 1905). No entanto, foi
sem dúvida Juliano Moreira que inscreveu de maneira sistemática o paradigma psiquiátrico
de Kraepelin na totalidade do campo da psiquiatria no Brasil, marcando efetivamente a
ruptura nesse campo, de forma indelével, com o que historicamente o antecedeu. Sendo
assim, um arquivo (Derrida, 1994; Foucault, 1969) da psiquiatria no Brasil foi constituído
nos seus menores detalhes, reorientando as linhas de força até então presentes na leitura
da loucura. Um divisor de águas foi assim efetivamente estabelecido na memória histórica,
na medida em que outros registros de leitura foram colocados em cena na interpretação
dessa enfermidade.
Por isso mesmo, a assunção da direção do Hospício Nacional de Alienados por Juliano
Moreira – e sua gestão efetiva até o início dos anos 1930 – foi cantada em prosa e verso por
diversos historiadores da psiquiatria no Brasil como a fundação efetiva da psiquiatria em
nossa tradição (Portocarrero, 2002; Venâncio, Carvalhal, 2005). Com efeito, devido à nova
orientação por ele empreendida no registro teórico e na prática clínica de assistência aos
enfermos mentais no Brasil, a psiquiatria teria saído decisivamente de suas indefinições
iniciais (Teixeira Brandão, 1886), num processo disparado desde os anos 50 do século XIX,
com a construção do Hospício de Pedro II (Machado et al., 1978). Enfim, os intérpretes
que se debruçam sobre o tema indicam claramente a dimensão efetiva de ruptura, nos
N.E – O presente artigo é uma reflexão crítica baseada em texto de Afrânio Peixoto, “A loucura maníaco-
depressiva”, reproduzido neste número de História, Ciências, Saúde – Manguinhos.
Esse paradigma teórico foi então incorporado de maneira sistemática por Juliano Moreira
no campo da psiquiatria brasileira, paradigma este que, desde então, dominou inso-
fismavelmente o regime de verdade de seus enunciados. Em decorrência disso, o cientificismo
e o positivismo médicos marcaram a leitura das perturbações mentais de forma inequívoca.
Nessa perspectiva, o discurso psiquiátrico passou a caracterizar-se pela presença obrigatória
de um conjunto de enunciados que, além da descrição sintomática das diferentes pertur-
bações mentais, deveria igualmente incluir aqueles oriundos da anatomia, da bioquímica,
da fisiologia e da então recente teoria da hereditariedade. Foi a constituição desses novos
registros enunciativos no campo do discurso psiquiátrico que marcou a diferença efetiva
entre este e o discurso teórico que o antecedera historicamente. Enfim, a medicalização da
experiência da loucura assumiu outras direções diante das novas coordenadas teóricas
inscritas no discurso psiquiátrico.
O campo específico da psicose maníaco-depressiva foi um dos registros clínicos no qual
essa transformação foi efetivamente realizada. Sua descrição clínica passou a ser inteiramente
empreendida segundo os imperativos das novas coordenadas teóricas, não somente porque
tais modalidades de experiência da loucura (mania e melancolia) foram então conjugadas,
por Kraepelin, como uma enfermidade única e como um tipo de psicose endógena – ao
lado da demência precoce –, mas também porque podemos reconhecer, em sua leitura,
uma disseminação eloquente daqueles enunciados discursivos na psiquiatria brasileira, no
contexto histórico em questão.
No entanto, é preciso não ser teoricamente ingênuo e atentar para outro lance que se
processa igualmente na cena constitutiva desse novo jogo de verdade e delineia suas linhas
de força. Como vimos, no novo paradigma psiquiátrico, a preocupação teórica e clínica
com a psicose maníaco-depressiva passou a ocupar o lugar estratégico que era o da histeria
no paradigma anterior. Com efeito, delineada pela concepção de Charcot, essa enfermidade
era fartamente diagnosticada anteriormente, dominando a cena asilar com altas taxas de
incidência e prevalência. Porém, com Babinski, que transformou sua concepção teórica
passando a denominá-la pitiatismo – isto é, uma construção deslavadamente mentirosa,
produzida pela sugestão e desconstruída pela persuasão –, seu campo de incidência e seus
índices de internação encolheram de maneira significativa (Roxo, 1925, p.390). Tal
encolhimento produziu, contudo, como contrapartida, a expansão efetiva da psicose
maníaco-depressiva, que teve significativamente incrementadas suas taxas de incidência e
internação.
O que estaria em jogo? Um avanço efetivo do discurso psiquiátrico como ciência que,
ultrapassando obstáculos e adquirindo novos limiares de cientificidade, pôde enfim aceder
a novos territórios de positividade? Foi esta a resposta dominante na psiquiatria brasileira
de então (Cunha Lopes, 1927), que afirmou repetida e monotonamente o diagnóstico
incorreto dos antigos histéricos, a partir de então devidamente enquadrados no campo
nosográfico da psicose maníaco-depressiva. No entanto, seria preciso analisar de maneira
crítica tal afirmação, enunciando que na suposta retificação então estabelecida, que se
propunha a corrigir a ilusão de ótica do diagnóstico anteriormente formulado, estaria em
pauta a constituição de um outro jogo de verdade sobre as perturbações mentais. Isso
porque nada é menos ingênuo do que a formulação de qualquer sistema classificatório, no
Enfermidade única
Desde a Antiguidade, a mania e a melancolia já eram consideradas perturbações da
alma e independentes. Não obstante, formulava-se igualmente uma possível relação entre
elas, seja porque pudessem se alternar, ou porque talvez pudessem estar implicadas. Essa era
a concepção dominante até o início do século XIX, tal como se evidencia na leitura de
Pinel (2005), ou na de Esquirol (1989a; 1989b).
Contudo, na segunda metade do século XIX outra concepção teórica, proveniente da
psiquiatria francesa, começou a se delinear. Em 1851 e 1854, respectivamente, Falret e Baillarger
descreveram a existência de uma mesma enfermidade, denominada loucura circular (Falret,
1851) pelo primeiro e loucura de dupla forma (Baillarger, 1854) pelo segundo. Para Falret, a
loucura circular seria caracterizada pela reprodução sucessiva e regular do estado maníaco,
do estado melancólico e de um intervalo lúcido, que poderia ter uma duração maior ou
menor, conforme o caso. Em contrapartida, para Baillarger a loucura de dupla forma seria
caracterizada pela sucessão de dois períodos, um de excitação e outro de depressão.
Em 1883 Ritti procurou articular o que delineou então como uma evidente novidade
teórica e clínica, com as leituras de Falret e de Baillarger. Passou a sustentar, na França, a
hipótese da existência de uma enfermidade única, caracterizada pela sucessão regular de
crises de mania e melancolia no mesmo indivíduo. Na Alemanha, por sua vez, diversos
autores também estudavam a nova enfermidade assim caracterizada, mas a denominaram
psicose periódica (Ey, Bernard, Brisset, 1965, p.226).
Foi Kraepelin, contudo, que em 1899, na terceira edição de seu célebre Tratado de
psiquiatria, passou a descrever minuciosamente tanto os estados de transição quanto as
no campo da psiquiatria. Para tanto, ela deveria ser naturalista e organicista, inscrevendo-
se no campo da medicina, de fato e de direito.
Nesse sentido, Kraepelin procurou realizar o esforço teórico de superar o registro da
descrição sintomática das perturbações mentais, considerado superficial e epifenomênico,
para apreender a dimensão etiológica e patogênica das ditas perturbações mentais. Seria
por esse viés que se poderia efetivamente caracterizar o campo das diferentes enfermidades
mentais. No entanto, como a psiquiatria não conseguiu realizar a mesma operação teórica
empreendida pela medicina somática – que, com o discurso da anatomoclínica, estabeleceu
a relação entre os registros do sintoma e da lesão (Foucault, 1976)1 –, coube a ela um
contorno tático para sustentar sua leitura naturalista das perturbações mentais.
Por conta disso, realizou duas operações teóricas complementares. Primeiro, procurou
remeter o registro clínico do sintoma e da síndrome àquele definido pela oposição
endógeno/exógeno, de maneira a situar o campo da etiologia de uma dita perturbação
mental no interior ou no exterior do organismo. Em seguida, no entanto, colocou
igualmente em evidência a dimensão evolutiva das perturbações mentais, visando avaliar
no registro estrito da diacronia de que modo evoluíam no tempo os campos do sintoma e
da síndrome. A esse respeito, não existe qualquer dúvida de que a grande novidade
introduzida por Kraepelin no discurso psiquiátrico foi o ponto de vista evolutivo no campo
das perturbações mentais. Tal novidade teórica foi devidamente reconhecida por diversos
autores, entre os quais podemos evocar Lacan (1975; 1966), Lanteri-Laura (1984) e Postel
(2007, p.307-327).
O que implicaria o ponto de vista evolutivo? Nada mais, nada menos do que descolar
o discurso psiquiátrico dos registros estritos do sintoma e da síndrome para lançá-lo em
direção à apreensão do processo em pauta, no caso de uma dita perturbação mental. Seria
essa a condição de possibilidade para transformar esta última numa enfermidade mental
propriamente dita, pela circunscrição de sua causalidade. Além disso, do ponto de vista
evolutivo, a operação do diagnóstico estaria intimamente articulada à dimensão do
prognóstico, de modo que diagnosticar uma doença implicaria necessariamente a
antecipação de sua evolução, bem como do possível destino do doente no futuro.
Em decorrência disso, a oposição endógeno/exógeno tinha uma funcionalidade
operacional na leitura de Kraepelin (1927). Com efeito, enquanto as enfermidades exógenas
seriam relativamente reguláveis e curáveis, as endógenas, em contrapartida, estariam fadadas
à cronicidade, uma vez que enraizadas num fundo constitucional e degenerativo. Nessa
perspectiva, a concepção de endogeneidade de Kraepelin estaria em continuidade com a
concepção de degeneração, forjada no campo da psiquiatria francesa por Morel (1859) e
Magnan e Legrain (1895).
Por isso mesmo, numa crítica aguçada ao organicismo de Kraepelin, tendo em mente
um futuro teórico possível para a psiquiatria no cenário do pós-guerra, Ey (1956) colocou
em destaque o que existia de inquietante e mesmo de perigoso no conceito de endógeno
na disciplina, no contexto de um seminário teórico voltado para o centenário de Kraepelin:
Dizer que uma psicose é endógena é afirmar que ela resulta no seu aspecto clínico de
uma organização interna da pessoa. É colocar o acento sobre a constituição biopsicológica
do indivíduo, isto é, afirmar que a estrutura genotípica sobre a qual se edificou a pessoa
e seu mundo é de uma importância maior. É afirmar ainda que a psicose não é apenas um
acidente de percurso, mas esposa a trajetória da existência e do destino do homem doente.
Enfim, é afirmar ainda e principalmente que a psicose reside essencialmente numa alteração,
senão numa alienação definitiva da pessoa (p.956).2
Todo alienado constitui um perigo permanente para o seu meio e sobretudo para ele
mesmo: um terço ao menos dos suicidas advém das perturbações mentais; os crimes
passionais, os incêndios, as agressões, os roubos e as escroquerias são cometidos por
alienados. Não se contam mais as famílias cujo membro doente causou a ruína,
desperdiçando a sua fortuna sem reflexão ou se encontrando na impossibilidade de gerir
seus negócios e de trabalhar após uma longa doença. Apenas uma parcela pequena dos
incuráveis é destinada a uma morte rápida, a imensa maioria continua a viver durante
anos e cria assim, para a família e o Estado, uma carga cada vez mais pesada, cujas
consequências repercutem profundamente na nossa vida social. É por isso que se impõe
cada vez mais ao médico, que quer estar à altura de sua tarefa, o dever de se familiarizar,
na medida do possível, com as manifestações da loucura, se bem que os limites de seu
poder sejam muito restritos, em face de um tão temível adversário (Kraepelin, 1984, p.7).
Incorporação do paradigma
Foi por intermédio da incorporação do discurso teórico de Kraepelin que a psiquiatria
brasileira se deslocou de sua referência francesa e se inscreveu decisivamente na tradição da
psiquiatria alemã, como disse acima. Juliano Moreira foi o maior responsável por tal
deslocamento teórico. Investido de poder ao assumir a direção do Hospício Nacional de
Alienados, teve a possibilidade de realizar a reconstrução do campo da assistência psiquiátrica
ao conjugar a prática clínica ali realizada com a construção de colônias para os doentes
mentais, na periferia do Rio de Janeiro. Com isso, a cartografia assistencial foi reformulada
para oferecer diferentes destinos aos pacientes ‘agudos’ e ‘crônicos’, bem como estratégias
terapêuticas de curta e longa duração.
Nesse contexto, a loucura maníaco-depressiva inscreveu-se no discurso psiquiátrico
brasileiro e nos espaços asilares, passando a caracterizar uma modalidade relativamente
frequente de doença mental. O primeiro autor a teorizar sobre a nova doença foi Afrânio
Peixoto, que posteriormente indicou, para os poderes da República, o nome de Juliano
Moreira para a gestão do Hospício Nacional de Alienados. Psiquiatra, médico legista,
romancista e, posteriormente, membro da Academia Brasileira de Letras, Afrânio Peixoto
era originário da Bahia, assim como Juliano Moreira.
Seu ensaio inicial sobre a psicose maníaco-depressiva, publicado em 1905 sob o título
“A loucura maníaco-depressiva” (Peixoto, 1905), transformou-se numa referência
fundamental sobre a dita psicose no Brasil. Teve assim ressonâncias importantes nas
produções teóricas posteriormente publicadas, não obstante as resistências que também
encontrou para se impor como referência crucial.
Como nos disse Henrique Roxo (1925, p.368) em seu Manual de psiquiatria, Peixoto
mostrou-se um “adepto da concepção germânica”. Com efeito, esse autor reconheceu sua
dívida com Kraepelin logo no parágrafo inicial de seu ensaio, de maneira ao mesmo tempo
solene e eloquente: “A concepção da loucura maníaco-depressiva é uma das sínteses gloriosas
que marcam época nos fatos da psiquiatria”. Deve-se ao Professor Emil Kraepelin” (Peixoto,
1905, p.33; grifos meus).
Logo em seguida, a concepção teórica de Kraepelin sobre a dita loucura foi condensada
em seus aspectos fundamentais, sem que Peixoto apresentasse qualquer diferença na descrição
clínica e na etiologia da loucura maníaco-depressiva. Assim, “entende-se por esta designação
uma doença mental ordinariamente hereditária, sobretudo frequente no meio-dia da vida,
manifestando-se por acessos isolados, sub-intrantes, intermitentes, de excitação ou
depressão, puros ou combinados, deixando intervalos de saúde, sem aparente lesão da
inteligência” (Peixoto, 1905, p.33).
Ao mesmo tempo, Peixoto (1905) colocou devidamente em destaque a ruptura teórica
e clínica representada pela concepção de Kraepelin em relação à tradição anterior, incluindo
o remanejamento operado em relação a Falret e Baillarger: “Tanto vale dizer que aí ficaram
compreendidas todas aquelas consideradas espécies clínicas chamadas de mania, de
melancolia, loucura de dupla forma, periódica, alterna, atípica e suas variantes de intensidade
e de manifestação clínica” (p.34). Sendo assim, o deslocamento da tradição psiquiátrica
francesa para a alemã foi sacramentado.
O deslocamento do estrito registro sintomático do acesso para o do processo foi também
sublinhado por Peixoto (1905), que nesse caso assumiu uma perspectiva essencialmente
kraepeliniana: “O que se supunha, tomando isoladamente a observação de um acesso, ou
mesmo, mais ainda, a preponderância da fase, de um acesso, como doença especial, é trazido
ao rol da síndrome clínica, aparecendo só ou acompanhado, repetindo-se ou alternando-se,
de modo a justificar o conceito, bem fundado, da loucura maníaco-depressiva” (p.33).
Essa formulação de Peixoto foi enunciada posteriormente de maneira ainda mais clara
e imperativa, colocando-se em evidência a dimensão do processo em causa e sublinhando-
se a dimensão constitucional:
a aparência diversa dos casos extremos, de máxima excitação à máxima depressão, não
importam, porque um é o mecanismo de sua produção e apenas inversas as suas
manifestações, é porque os fenômenos essenciais são constantes. É um erro supor que nos
maníacos as funções físicas se exaltam e consoantemente se deprimem nos melancólicos:
em aparência favoreça nesta suposição aos primeiros (grifos meus).
Tipos de
predominância
3. Simples – (raríssimos)
Tipos clínicos
5. Alternados: raros
Para provar estatisticamente sua formulação teórica, Peixoto (1905, p.43-44) afirmava
que, de 413 pacientes diagnosticados com loucura maníaco-depressiva no Hospício Nacional
de Alienados, 409 se inscreviam no registro da predominância, o que provaria fartamente
Crítica do paradigma
Num ensaio intitulado “Sobre a psicose maníaco-depressiva”, publicado no mesmo
ano e no mesmo periódico, Franco da Rocha (1905) resolveu responder ao artigo de Afrânio
Peixoto. Ocupando então a direção médica do Asilo-Colônia de Juqueri (no estado de
São Paulo), a resposta de Franco da Rocha constituiu efetivamente uma crítica à leitura
de Peixoto e de Kraepelin sobre a dita psicose.
Antes de mais nada, Franco da Rocha (1905) reconhecia o efeito teórico do discurso de
Kraepelin sobre a psiquiatria brasileira de então, uma vez que era um consenso, com ampla
aceitação nesse meio. Destacava ainda como a fácil incorporação da leitura desse autor
sobre a loucura maníaco-depressiva seria o signo eloquente dessa realidade.
Contudo, a decisão de escrever um artigo contra a leitura de Kraepelin visava “expor os
motivos que nos impedem de segui-lo em toda linha nessa inovação, motivos esses que,
oriundos da clínica, nos parecem por isso mesmo perfeitamente justificados.” Portanto,
sem querer “fazer frente a Kraepelin”, Franco da Rocha o contesta na leitura da psicose
maníaco-depressiva, no registro estrito da clínica (Rocha 1905, p.279).
Qual seria então o cerne do argumento crítico de Franco da Rocha? A proposição de
que a loucura periódica nem sempre se inscreveria no campo da loucura maníaco-depressiva.
Nessa perspectiva, o autor propõe uma “inversão” das “posições hierárquicas” ocupadas
por tais enunciados clínicos no discurso de Kraepelin, formulando que a loucura periódica
seria o “gênero” e a psicose maníaco-depressiva, a “espécie”, e não o oposto. Com efeito,
ao “invés de fazer como Kraepelin da expressão loucura maníaco-depressiva o gênero e da
loucura periódica a espécie, fazemos o inverso: para nós a loucura periódica, sendo
designação mais vaga, é o gênero; e a maníaco-depressiva é uma espécie com suas variedades
– circular, dupla forma, etc...”. Isso porque, para ele, existiria a mania periódica e a melancolia
periódica, mas não necessariamente a conjunção maníaco-depressiva, como pretendia
Kraepelin em sua concepção clínica. Nas situações acima enunciadas haveria efetivamente
uma psicose periódica intermitente (Rocha, 1905, p.280).
Paralelamente a isso, haveria igualmente situações clínicas nas quais a mania se
circunscreveria a um único acesso, que se desdobraria na cura completa ou na cronicidade,
materializando-se inequivocamente na demência (Rocha, 1905, p.280) Na melancolia
ocorreria algo análogo, como era o caso, aliás, para a melancolia involutiva, naquele
momento ainda não inscrita por Kraepelin no campo da loucura maníaco-depressiva.
Por último, Franco da Rocha (1905, p.286) destacava ainda outra crítica à leitura teórica
de Kraepelin. Assim, se a loucura maníaco-depressiva seria uma discenestesia, com alteração
do tônus vital e do humor, o processo em pauta não poderia ser o mesmo na fase maníaca
e na melancólica, diante da diferença clínica existente entre elas. Desse modo, o autor
“rompia com a ideia de uma patogenia única”, proposta por Kraepelin para a loucura
maníaco-depressiva e caucionada por Peixoto, defendendo a existência de diferentes
processos patogênicos. Verifica-se, desse modo, que a totalidade do edifício teórico cons-
truído por Kraepelin, em seus diferentes registros, foi colocada em questão na leitura crítica
de Franco da Rocha.
Triunfo do paradigma
Roxo (1925, p.365) criticou a nomeação da psicose maníaco-depressiva realizada por
Kraepelin – “é evidentemente uma péssima designação, pois associa em mau português
duas coisas antagônicas” – “preferindo que se mantivesse a ideia de psicose periódica,
apesar de que o uso dessa expressão podia dar uma extensão maior ao que constitui a
entidade clínica, pois há muita doença mental em que o período é consuetudinário”.
“Porém, se o uso consagrou o mau termo, para que não se produza a confusão”, “força é
repeti-lo”. Reconhece assim literalmente que a leitura de Kraepelin sobre a loucura maníaco-
depressiva foi triunfante na tradição psiquiátrica brasileira, apesar de preferir a antiga
denominação francesa de psicose periódica. Preferiu, ainda assim, inserir-se no consenso
teórico que instituiu a hegemonia do paradigma kraepelianiano no Brasil, apesar do termo
espúrio escolhido para enunciá-lo em língua portuguesa.
Contudo, não obstante essa pequena firula retórica quanto à denominação do mal em
questão, a leitura empreendida por Roxo (1925) significou a realização da perspectiva
teórica entreaberta por Kraepelin e defendida por Peixoto, o que implicou a medicalização
sistemática da loucura maníaco-depressiva. Destacava-se no trabalho de Roxo a este respeito,
em seu Manual de psiquiatria, a ‘multiplicação’ e a ‘disseminação’ de enunciados biológi-
cos em seu texto, o que fornecia subsídios cruciais à perspectiva de Kraepelin. Tal aspecto
pode ser facilmente depreendido de sua escrita, tendo em vista o destaque às múltiplas
considerações sobre a patogenia da psicose maníaco-depressiva. Enfim, o discurso teórico
de Roxo sobre tal psicose representa o triunfo incontestável do paradigma kraepeliniano
no Brasil, ultrapassando em muito o discurso teórico inicial de Afrânio Peixoto sobre a
mesma problemática.
Antes de mais nada, Roxo assumiu a veracidade científica da leitura de Kraepelin, visto
que a conjunção entre a mania e a depressão seria efetivamente predominante na experiência
clínica e que “só excepcionalmente se apresentam puras e únicas durante a vida do
indivíduo”. Além disso, ele pôde ainda afirmar que as estatísticas confirmavam fartamente
suas afirmações em nível internacional, pela autoridade de diversos pesquisadores:
Henrichen, Tralman, Thomsen, Weygandt, Meyser, Finzi, Vedrant, Laudranzi, Perazzolo e
Claus. Tanto na tradição psiquiátrica alemã quanto na italiana, diferentes pesquisadores
puderam realizar a ‘verificação’ da hipótese de Kraepelin no registro estatístico, o que
conferiria à sua leitura uma caução científica incontestável (Roxo, 1925, p.367).
hipótese, Roxo (1925) a ela aderia, pois “se atentarmos para a fisiologia, veremos que é per-
feitamente racional o que ele diz, e as nossas comparações com a excitação alcoólica e com
a hemorragia abundante demonstraram bem a razão de ser desta interpretação” (p.384).
Com efeito, a autópsia de pacientes, mortos por causas outras, mas que se encontravam
em estados maníacos ou depressivos antes do falecimento, verificariam a veracidade da
hipótese de Meynert (p.384).
Como explicar, no entanto, a passagem da fase da melancolia para a da mania, isto é,
da ‘anemia’ para a ‘congestão’ cerebral neste contexto fisiopatológico? Pela ação de um
‘reflexo vasomotor’. Com efeito, verificar-se-ia a produção de ‘uma irritação do centro
vasomotor, determinando vasoconstrição e isquemia cerebral’. Pouco tempo depois, ‘cansa-
se a vasoconstrição, cessa e se segue a vasodilatação com a congestão consequente’ (Roxo,
1925, p.385).
Considerando então a presença efetiva deste “distúrbio vasomotor cerebral”, poder-se-
ia depreender facilmente de que modo uma perturbação endócrina poderia suscitá-lo. No
que tange a esse aspecto, no entanto, seria preciso bastante atenção, pois se tal pertur-
bação endócrina for muito intensa uma “grave autointoxicação” poderia se produzir,
desencadeando-se a demência precoce. Se ela for ligeira, por sua vez, será suficiente para
provocar o dito reflexo vasomotor, podendo então ser desencadeada a psicose maníaco-
depressiva (Roxo, 1925, p.385). Vê-se, portanto, que Roxo se deslocou aqui, com muita
desenvoltura neurobiológica, de uma psicose endógena para outra, a fim de sustentar uma
leitura fisiopatológica das psicoses.
No entanto, para fundamentar ainda mais sua leitura fisiopatológica da psicose maníaco-
depressiva, Roxo deslocou-se para o discurso teórico da histologia, apossando-se agora das
pesquisas de Ramón e Cajal. Para ele, com efeito, a vasodilatação presente na mania e a
vasoconstrição presente na melancolia seriam explicadas pela ação e pela disposição das
células da ‘neuroglia’, que, colocadas ao lado dos vasos sanguíneos, emitiriam prolon-
gamentos que os apertariam e reduziriam seu calibre, ou se retrairiam significativamente,
permitindo que o vaso se dilate. Para tanto, em contrapartida, a psicose maníaco-depressiva
ainda deveria ser explicada como efeito de uma sensibilidade especial do cérebro às toxinas
internas. Haveria, assim, uma “auto-intoxicação do organismo e reação exagerada”. Numa
leitura similar, Lewis Bruce pressupunha que na fase maníaca existiria uma intoxicação
cerebral, manifesta nas taxas de ‘aglutininas’ no sangue, na modificação da flora intestinal,
no aumento do azoto na urina e na hiperleucocitose (Roxo, 1925, p.385).
Parlieu e Marbe, em contrapartida, apostavam na existência de um distúrbio da tireóide,
colocando em destaque uma gênese semelhante à doença de Basedow. Lange, por sua vez,
procurou articular a psicose maníaco-depressiva à gota, uma vez que existiria uma diminuição
da eliminação de ácido úrico na urina durante a fase depressiva. Em contrapartida, Pelcz
destacou a grande frequência com que a psicose maníaco-depressiva se associava a lesões
cerebrais. De maneira similar, Saiz e Taubert destacaram a existência de inúmeros casos de
cicatrizes no crânio dos pacientes (Roxo, 1925, p.386).
Ao examinar as fezes desses doentes, Pardo, por sua vez, considerou a possibilidade de
uma autointoxicação em decorrência do incremento da flora intestinal. Ele supôs até mesmo
que se pudesse tratar de um cocobacilo. Von Bechterew concebeu a hipótese da existência
de uma autointoxicação pela presença do indoxil na urina dos pacientes com psicose
maníaco-depressiva. Supôs, então, que a tal toxina atuaria pelo sistema vasomotor,
concordando, assim, com a hipótese de Meynert. Anglade e Joquim analisaram a relação
existente entre a psicose maníaco-depressiva e a epilepsia, indicando como em ambas a
neuroglia teria um aspecto infantil e pressupondo, assim, a semelhança dos processos
degenerativos presentes nas duas enfermidades (Roxo, 1925, p.386).
Santenoise propôs, em seguida, como patogenia a existência de um distúrbio do sistema
neurovegetativo que seria decididamente desequilibrado. Assim, na excitação maníaca
ocorreria a hiperexcitabilidade do vago. Além disso, o aumento do tônus parassimpático
precederia regularmente o aparecimento dos acessos maníacos. Em sua pesquisa, valeu-se
do exame do reflexo oculocardíaco para a investigação do tônus parassimpático e do
reflexo solar, para em seguida delinear a excitabilidade do sistema simpático. Desse modo,
teria comprovado que o reflexo solar se mostrava nulo ou invertido na mania, ao passo
que o oculocardíaco estaria acentuado nas crises maníacas e ansiosas. A experiência clínica
lhe fazia reconhecer que os indivíduos com reflexo oculocardíaco muito nítido seriam
exageradamente sensíveis aos tóxicos, de forma que a mania e a melancolia estariam na
estrita dependência de fenômenos autotóxicos, devido ao aparecimento de fases em relação
à susceptibilidade a tais substâncias, que seria paralela ao aumento de vagotonia. Nos
períodos intercalados, por sua vez, haveria a hipervagotonia. Por fim, haveria ainda uma
leucopenia acentuada e rápida após as refeições, indicando então a hipervagotonia (Roxo,
1925, p.386, 387).
Finalmente, um último registro analítico destacado por Roxo, a partir das pesquisas de
Thalbitzer, seria o de que no exame anatomopatológico existiriam múltiplas modificações
nos vasos motores que efetivamente perturbariam a nutrição cerebral e ‘afinariam’ as
fibras nervosas (Roxo, 1925, p.387).
Contudo, os discursos da anatomia, histologia, bioquímica, fisiologia, anatomia
patológica e fisiologia patológica, fartamente utilizados para a caracterização da patogenia
da psicose maníaco-depressiva, foram igualmente empregados para o estabelecimento de
seu diagnóstico diferencial em relação a outras perturbações mentais. Seria, portanto,
necessário ultrapassar o registro estrito da fenomenologia clínica e dar um passo teórico
decisivo para tornar consistente a medicalização da psicose maníaco-depressiva, como
pretendia Kraepelin.
O primeiro obstáculo a ser vencido seria o diagnóstico diferencial em relação à demência
precoce, principalmente porque a agitação e o estupor presentes na catatonia poderiam ser
confundidos com a mania e a melancolia. Para ultrapassar a leitura do registro sintomático
– indiferença afetiva, intensa afetividade, riqueza alucinatória e ausência de alucinações,
decadência da inteligência (demência) e sua preservação –, seria preciso caminhar
decisivamente em direção à leitura biológica do organismo. Dessa perspectiva, Adauto
Botelho constatou que a reação de Abderhalden seria sempre positiva na demência precoce
em relação às glândulas sexuais, ao cérebro, à tireóide e ao timo. Em contrapartida,
Juschtzchenko, Plotnikoff e Fauser verificaram que tal reação seria negativa na psicose
maníaco-depressiva, invariavelmente em relação ao cérebro e muitas vezes em relação às
glândulas sexuais. Fauser verificou ainda que ela seria igualmente negativa no que concerne
Discurso barroco
Pode-se depreender facilmente desse percurso, no então recente campo da psicose
maníaco-depressiva, que a tradição alemã da psiquiatria assumiu a hegemonia teórica na
tradição brasileira, sendo representada pelo discurso de Kraepelin. O mesmo ocorreu com
as demais entidades clínicas, num processo estratégico orientado por Juliano Moreira,
como vimos. Paralelamente, a tradição francesa da psiquiatria, perdia terreno a olhos
vistos no Brasil, deslocando-se do lugar destacado que ocupara na segunda metade do
século XIX. A partir de então, a Alemanha transformou-se na Terra Prometida da psiquiatria
brasileira, de tal modo que os profissionais brasileiros em atividade até os anos 1960 não
somente dominavam a língua alemã, como também viajavam para a Alemanha no intuito
de aprender com os mestres – como Roxo, por exemplo que, em 1913, frequentou os cursos
de Kraepelin em Munique (Roxo, 1925, p.394).
Com Roxo, o paradigma teórico de Kraepelin foi desdobrado naquilo que ele pretendia
fundamentalmente, a saber, o desenvolvimento de hipóteses patogênicas e etiológicas que
conferissem uma marca científica ao discurso psiquiátrico. Estaria aí o triunfo do paradigma
em questão na psiquiatria brasileira, que inseriu em sua escrita enunciados advindos dos
diferentes discursos biológicos, conferindo uma suposta marca de cientificidade ao discurso
psiquiátrico.
Paralelamente a isso, o discurso clínico sobre a psicose maníaco-depressiva assumiu
uma dimensão efetivamente ‘barroca’, multiplicando suas particularidades descritivas de
modo a constituir novos registros nosográficos e classificatórios. O ensaio de Adauto Botelho,
publicado em 1929 sob o título “Estados mistos da psicose maníaco-depressiva”, é o
documento mais eloquente sobre a questão (Botelho, 1929)..Como vimos anteriormente,
na citação feita por Roxo acerca do lugar da cólera na leitura de Adauto Botelho, houve o
efetivo imperativo de constituição de novas espécies e superfícies diagnósticas para a psicose
maníaco-depressiva, o que talvez tenha evidenciado a fragilidade teórica das hipóteses
etiológicas e patogênicas.
Com efeito, não obstante o frenesi de incorporar os enunciados biológicos que
fundamentariam cientificamente a leitura da psicose maníaco-depressiva, a medicalização
em questão era um santo de pés de barro, que se voltava para o barroquismo nosográfico
diante da evidente fragilidade científica dos seus enunciados biológicos. Sendo assim, o
barroquismo classificatório e nosográfico na leitura da psicose maníaco-depressiva
significou, no discurso psiquiátrico, a contrapartida da fragilidade teórica de suas formu-
lações biológicas e médicas.
Pode-se afirmar, desse modo, que foi a consolidação do paradigma teórico de Kraepelin
que conduziu o discurso psiquiátrico a diagnosticar com maior frequência a psicose maníaco-
depressiva no lugar da histeria, na população feminina internada no Hospício Nacional
de Alienados. Paralelamente, de modo complementar e em conjunção com esse processo,
a nova leitura de Babinski sobre a histeria, que substituiu a antiga concepção de Charcot,
esvaziava o amplo campo de prevalência da histeria na antiga leitura psiquiátrica.
Entretanto, cabe ainda destacar que essa inflexão teórica implicou também uma outra
direção doutrinária na psiquiatria. O peso etiológico conferido à degeneração e à consti-
tuição na leitura de Kraepelin esvaziou, em contrapartida, os fatores circunstanciais e
históricos da experiência do sujeito para o desencadeamento efetivo das enfermidades em
questão. Com efeito, a ênfase de Kraepelin na marca degenerativa da psicose maníaco-
depressiva retirava dela a incidência dos acontecimentos vividos pelo sujeito. O endógeno
era francamente dominante na leitura da psicose maníaco-depressiva feita por Kraepelin,
com todos os impasses que isso representava para a psiquiatria, conforme enunciado
criticamente por Ey nos anos 1950.
Mas o que se expulsava pela sala de jantar da psiquiatria brasileira voltava freneticamente
pela porta da cozinha, devido à ênfase que Peixoto e sobretudo Roxo conferiam aos ‘abalos
morais’, designados como causas ocasionais para o desencadeamento da psicose maníaco-
depressiva. Eram essas causas ocasionais, denominadas traumáticas, que se articulariam à
histeria, na leitura anterior de Charcot. Além disso, no campo de tais traumas, o corpo
feminino estaria significativamente mais em foco do que o masculino, uma vez que
experiências femininas como parto, puerpério e amamentação seriam as destacadas pelos
autores brasileiros. Pode-se depreender daí, sem muita dificuldade, que a substituição da
figura da histeria por aquela da psicose maníaco-depressiva, com base na nova perspectiva
kraepelianiana, visava estabelecer um paradigma psiquiátrico centrado na degeneração,
que esvaziava a dimensão histórica da experiência psíquica do sujeito. A radicalização da
dimensão biológica, no modelo psiquiátrico radicado no Brasil, conduziu, assim, nesse
contexto histórico específico, a substituição da histeria pela presença maníaco-depressiva.
Enfim, os ditos traumas e ‘abalos morais’ da experiência do sujeito foram para o ralo em
nome da causalidade degenerativa e hereditária, na leitura das perturbações mentais.
Desde os anos 1950 as tradições fenomenológica, existencial e psicanalítica retomaram
a dita causalidade centrada na história do sujeito, a ela conferindo toda a ênfase em
oposição à estrita causalidade biológica, e essas mesmas concepções foram varridas do
discurso psiquiátrico desde os anos 1980. Com isso, a enfermidade bipolar passou novamente
a ocupar o lugar da histeria, fundando-se agora em uma leitura pelo viés das neurociências.
Enfim, como dizia Marx (1967), a história se repete, não mais como tragédia, mas agora
como farsa.
Esta foi, enfim, a cena constituinte da psicose maníaco-depressiva no Brasil.
NOTAS
1
No campo psiquiátrico, essa realização ficou restrita ao empreendimento de Bayle, que no início da
década de 1920 estabeleceu a articulação causal entre a paralisia geral progressiva e a lesão anatômica
cerebral (Birman, 1978).
2
Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre.
REFERÊNCIAS
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