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Invencivel Paixão

Jesse's Lady - CHE 25


Veronica Sattler

Virgínia e Carolina do Sul, 1792 e 1793. Bonita e rebelde, ela


desafiou seu tempo com a força do amor! Brianna Devereaux
regressou à recém-libertada América mais esfuziante e independente
do que nunca. De caráter indomável, ela enfrentou os desafios de
uma época turbulenta com uma paixão que poucos podiam igualar.
Jesse Randall era o único homem de espírito tão indómito quanto o de
Brianna. E, juntos, ousaram satisfazer os desejos de seus corações,
vivendo um amor vibrante e selvagem como as terras do Novo Mundo!

Disponibilização Do Livro Rosangela


Digitalização Joyce Revisão:Cris
1
Andrade
Obs: Este Livro também foi
Lançado Na
Coleção Clássicos Da Literatura
Romântica :
“CLR - Lady Indomável”

Sinopse 2: Jesse Randall: tutor, carcereiro, inimigo odioso, suave amante


1972. Charleston, Carolina do Sul. Os Estados Unidos ainda saboreiam
sua recém-conquistada liberdade. Brancos, índios, escravos negros se
defrontam na terra dourada e promissora. Brianna Deveraux deixa o
convento francês onde foi educada e volta para a mansão de seus pais,
com o coração vibrando de ansiedade, sentindo-se livre como seu país.
Mas alis seu destino está selado por um testamento absurdo: para herdar
a fortuna da família deve aceitar a tutela de Jesse Randall até casar-se,
num prazo exíguo de quatro meses! Uma imposição odiosa que revolta a
mulher de espírito indomável e temperamento ardente. Como cumprir uma
cláusula que a tornará para sempre cativa se já se apaixonou e se
entregou de corpo e alma a um homem que ignora os anseios de seu
coração?

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CAPÍTULO UM

Paris, verão de 1792.

Um risinho abafado. Um típico e evidente risinho abafado.


Novamente o mesmo som, agora mesclado ao ruído das águas que
vinham de uma fonte cristalina, o único barulho que feria o silêncio do pátio
interno da Abadia de Panthémont.
Era meados de julho e o ar quente e úmido pairava por sobre os
canteiros repletos de plantas, o orgulho da abadessa, a bondosa madame
Méziêres.
O som foi ouvido mais uma vez, seguido por um suspiro claramente
feminino.
— Brianna! Desça logo daí! Ainda acabaremos sendo pegas desta vez!
A resposta para tal chamado foi uma risada sonora vinda do fundo do
pátio. Se houvesse alguém no interior do convento olhando para o muro que
fazia divisa com a propriedade de monsieur Fourney, dono de uma imponente
cerejeira que costumava dar frutas excelentes no verão, poderia agora avistar a
fonte de tanta alegria.
Equilibrando-se ali no alto, uma jovem de uniforme preto segurando um
lenço repleto de cerejas preparava-se para dar um salto certeiro.
— Já estou indo, Aimée. Um... dois... três!
Segundos depois a jovem estava no chão, o vestido preto rodado ao redor
de seus joelhos. Levantou-se com extrema agilidade e entregou o produto de
seu crime à amiga que agora deixava seu esconderijo, atrás de um arbusto.
— Já não aguentava mais a comida sem graça do colégio — comentou
Brianna, fazendo uma careta. — E eu que pensei que vocês, os franceses,
fossem verdadeiros mestres da arte culinária!
— Ei, não me ponha no meio dessa história — respondeu Aimée,
balançando a cabeça. — Lembre-se de que sou uma cigana e os ciganos
costumam ter... como posso dizer... gostos bem mais exóticos. E o fato de ter
sido abandonada num convento francês quando era bebé não faz de mim uma
francesa!
Brianna sorriu para a amiga.
— Bem, Aimée, cigana, francesa, ou seja lá o que for, acho melhor
escondermos logo essas cerejas porque lá vem a irmã Marie, sem dúvida com
algum recado de nossa querida madame...
Aimée olhou para trás e avistou uma freira baixinha e rechonchuda se
aproximar rapidamente, o rosto redondo corado de tanto esforço.
— Brianna! Aimée! Ah, aí estão vocês, meninas travessas! Estou
procurando por ambas há horas! Por que nunca estão onde deveriam estar?
Brianna levou as mãos para trás, a fim de esconder as cerejas roubadas.
— Olá, irmã Marie. Aimée e eu estávamos apenas tomando um pouco de
ar fresco. Que calor, não é?

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A freirinha olhou-a com muita desconfiança.
— Madame deseja vê-las imediatamente. Venham comigo, por favor.
E novamente a irmã Marie estava em movimento, vi-rando-se e seguindo
o caminho pelo qual tinha vindo, a saia rodada enorme fazendo um ruído
característico. Brianna e Aimée trocaram olhares espantados e resolveram
segui-la, não sem antes esconder o lenço cheio de cerejas atrás de uma pedra.
Muitos minutos depois, ao atravessar os corredores escuros e úmidos do
convento, Brianna tentava adivinhar o que teria acontecido de tão grave, já que
era evidente que estavam sendo conduzidas aos aposentos particulares da
abadessa e não à sala habitual onde as alunas eram recebidas. Ela só estivera
ali duas vezes durante os sete anos em que vinha estudando na abadia. Na
primeira vez, fora informada da morte de sua irmã. Na segunda, no ano
anterior, soubera que sua mãe... De súbito, Brianna sentiu um aperto no
coração. Será que outra desgraça havia ocorrido? "Não seja boba", pensou.
"Não deve ter acontecido nada de grave". De qualquer maneira, o aperto no
peito não desapareceu.
Finalmente, a irmã Marie abriu uma pesada porta de carvalho e as
meninas entraram numa linda sala oval, ricamente mobiliada. Uma mulher
alta e magra, toda vestida de branco, sentada a uma mesa em estilo Luís XIV
levantou-se para recebê-las.
— Brianna, minha querida, aproxime-se, por favor. E você também,
Aimée, porque o que eu tenho a dizer diz respeito a ambas.
Ao fazer uma mesura diante da abadessa, Brianna deixou escapar um
suspiro de alívio e começou a relaxar. Seja lá o que fosse ouvir, não iria ser
assim tão ruim. Afinal, nenhuma notícia trágica de família envolveria também
Aimée. Provavelmente madame iria fazer algum comentário a respeito das
últimas provas e a história acabaria morrendo por ali mesmo.
— A senhora mandou nos chamar, madame Méziêres?
A abadessa estudou-a com seus olhos castanhos e gentis, então voltou a
atenção à irmã Marie, que aguardava ordens mais adiante. Um ligeiro aceno de
cabeça foi suficiente para que a freirinha desaparecesse, fechando suavemente
a porta atrás de si.
— Sentem-se, minhas filhas — pediu a madame, apontando para duas
cadeiras em frente à escrivaninha.
As duas meninas obedeceram imediatamente. O silêncio que reinava no
aposento era quebrado apenas pelo relógio que soava três badaladas.
Ainda de pé, a abadessa abriu uma gaveta de onde retirou um envelope
grande e branco. Com um suspiro de resignação, olhou para Brianna.
— Recebi notícias de sua casa, minha filha.
A voz de madame era tão solene, pausada e grave que, imediatamente,
Brianna compreendeu. Não importava que Aimée também tivesse sido
chamada àquela sala. Algo de terrível havia acontecido. Algo que certamente
envolvia...
— Papai! — ela exclamou, completamente horrorizada. — Aconteceu algo
a meu pai?
A abadessa estudou aqueles olhos verdes que a encaravam com tanto
desespero, então fez que sim com a cabeça.
— Ele está muito doente, minha querida. Ah, Brianna, como eu queria
poder lhe dar essa notícia de forma um pouco menos traumática... Acabei de

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receber esta carta escrita pelo padre da sua família, o frei Edouard Gérard...
— Frei Edouard! Quer dizer que frei Edouard lhe escreveu? Isso significa
que papai não teve nem condições de...
Um soluço sentido engoliu o resto de suas palavras e seus olhos se
encheram de lágrimas.
Aimée levantou-se a fim de confortar a amiga.
— Coragem, mon amie. Ele ainda está entre nós... Quero dizer, pelo
menos, até esse momento...
Madame Méziêres balançou a cabeça novamente.
— Hum... Ao que parece, nossa pequena cigana acabou de ter outro de
seus famosos pressentimentos... — Encostou a mão no ombro de Brianna. —
Aimée está certa, minha filha. Pelo menos na época que o frei Edouard
escreveu essa carta, seu pai estava vivo, embora gravemente enfermo.
Infelizmente, com todas as dificuldades que os correios têm atravessado por
causa da revolução e das várias guerras envolvendo a França...
— A senhora quer dizer que meu pai estava vivo quando essa carta foi
escrita — soluçou Brianna. — Mas... quando isso aconteceu? Trinta dias?
Sessenta? A uma hora dessas, ele já pode estar morto e...
Parou de falar e olhou para Aimée, que fez que não com a cabeça.
Madame Méziêres continuou a falar, com voz pausada.
— O frei Edouard escreveu essa carta há seis meses, minha filha.
— Seis meses! — exclamou Brianna. — Meu Deus! Meu pai deve estar
morrendo e aqui estou eu apodrecendo nesse solo estrangeiro... nessa prisão
horrível!
A abadessa não se mostrou chocada com aquela súbita explosão.
Conhecia bem o temperamento forte e determinado de sua jovem pupila
americana, inconformada com o fato de se submeter a um rígido programa de
educação que incluía o aprendizado de comportamento irrepreensível e boas
maneiras. Dando um suspiro resignado, madame curvou-se e colocou as duas
mãos em seus ombros.
— Olhe para mim, Brianna.
Como se estivesse envergonhada de suas palavras, ela obedeceu.
— Você só tem dezessete anos — continuou a abadessa. — É tão jovem
ainda... mas já teve sua cota de perdas e de sofrimento nessa vida... Está
lembrada de que fui eu quem lhe deu a notícia e rezou a seu lado por ocasião
do falecimento de sua irmã?
— Claro! — exclamou Brianna, zangada de novo. — E eu nem pude ir
para casa quando isso aconteceu. Meus pais me fizeram ficar aqui e...
Ela se levantou, esquivando-se do toque de madame.
— Em primeiro lugar, eles deram um jeito de se livrar de mim, me
tratando como se eu fosse uma espécie de filha adotiva...
— Minha querida...
— Não! É verdade! Meus pais me mandaram para cá, mas não fizeram o
mesmo com Deirdre! Eu pedi a eles, cheguei mesmo a implorar para que
contratassem um tutor que pudesse me ensinar em casa, mas ninguém quis
me ouvir! Eles me obrigaram a vir para esse lugar horrível e... — Parou de
falar, os olhos cheios de remorso. — Ah, madame, me perdoe, por favor. A
senhora sabe que, de muitas maneiras, eu tenho sido feliz aqui. Jamais
conheci uma pessoa tão bondosa quanto a senhora, mas, mas...

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— Mas o problema é que você possui um espírito livre e indomável que
não se conforma em estar confinada dentro das quatro paredes desse
convento, não é?
Sem dizer nada, Brianna fez que sim com a cabeça. Duas lágrimas
caíram de seus olhos e escorreram-lhe pelo rosto.
— Mesmo assim — continuou a abadessa —, você deve saber que, ao
mandá-la pára cá, seus pais estavam visando apenas a seu próprio bem.
Assim que chegou aqui, você parecia... me desculpe a expressão, uma tigresa
selvagem! — Madame sorriu. — Uma criança desobediente demais para ser
educada numa casa governada por um pai e uma mãe que tentavam ser
firmes, mas cujos corações cheios de bondade os impediam de tomar atitudes
mais drásticas. É verdade, Brianna. Seus pais sempre a amaram muito, mas
segundo a carta que sua mãe me enviou antes de sua chegada, tanto amor fez
com que Deirdre se transformasse numa doce e meiga mocinha, enquanto que,
no seu caso, a mesma generosidade de sentimentos acabou criando uma alma
rebelde, indisciplinada e...
— Por favor, madame, me poupe de tantas recriminações! — exclamou
Brianna, zangada de novo.
— Ah, me perdoe mais uma vez... Meu Deus, parece que eu estou sempre
lhe pedindo perdão! — Seu tom de voz era amargo.
— Quando Deirdre sucumbiu ao sarampo, não recebi sequer permissão
para voltar ao meu país e participar da cerimônia fúnebre! Meu Deus, como
isso me fez sofrer...
— Não se esqueça de que seus pais não podiam expô-la ao mesmo vírus
que levou sua amada primogênita, minha filha. — A voz da abadessa era suave
e paciente. — Havia uma epidemia na cidade. Você não percebe que o fato de
mantê-la em segurança na França foi um gesto de carinho e proteção por parte
de ambos?
Brianna enxugou as lágrimas com a palma da mão e permaneceu em
silêncio, como se estivesse considerando as palavras da abadessa.
A velha madame continuou a falar, mantendo o mesmo tom gentil e
persuasivo.
— Tanto isso tudo é verdade que, quando sua mãe faleceu tão
repentinamente no ano passado, seu pai mandou chamá-la e...
— Certo! — exclamou Brianna, a voz cheia de desafio. — Ele mandou me
chamar. Mas como eu estava do outro lado do mundo, só cheguei uma semana
depois do enterro!
Madame Méziêres balançou a cabeça solenemente.
— Como eu já disse diversas vezes, minha pequena, você já suportou
muito sofrimento e muita dor nessa vida. Mas, por outro lado, gostaria que
soubesse que seu pai realmente a adora e que foi terrível para ele mandá-la de
volta para cá, após aquele mês em que ficou a seu lado. Afinal, você era tudo
que lhe restava na vida e...
— Ele ainda tinha Honoré!
— Vamos deixar Honoré fora dessa história, Brianna. Seu pai e esse
rapaz nunca foram muito chegados. É isso mesmo. No que diz respeito a
Etienne Devereaux, você é a única pessoa que lhe restou neste mundo e só foi
visando a seu próprio desenvolvimento intelectual que ele continuou a mantê-
la aqui, mesmo privando-se de sua companhia. — A abadessa fez uma pausa,

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então, percebendo que sua bela pupila se acalmara ligeiramente, continuou. —
Você tem um coração de ouro, Brianna Devereaux. Como jamais poderei
esquecer das noites em claro que passou ajudando suas colegas doentes
durante a epidemia de tifo que tivemos há seis meses? E dos inúmeros
animaizinhos que salvou no decorrer de todos esses anos em que passou aqui?
Meu Deus, essas velhas paredes ainda guardam o som dos passarinhos
voando com as asinhas que você tratou, dos cachorrinhos felizes cujas
patinhas você deu um jeito de curar, do riso de felicidade do nosso velho
porteiro, quando você saiu debaixo de uma tempestade para procurar seu
gatinho que havia fugido e acabou encontrando-o no meio da rua tremendo de
medo e de frio...
Brianna sorriu ao lembrar-se de tudo aquilo.
— Eu só fiz minha obrigação, madame.
— Não. Você fez o que fez porque tem as sementes da caridade cristã em
seu coração. A compaixão e a humanidade são suas maiores virtudes. — A
abadessa sorriu. — Peço perdão, minhas filhas. Aqui estou eu, fazendo um
sermão parecido com aqueles que o nosso querido frei Katzier faz todos os
domingos, durante a missa. — Ela se levantou e olhou para a pequena cigana.
— Você deve estar se perguntando, cara Aimée, por que foi chamada para
participar desta conversa.
A garota fez que sim com a cabeça. Madame Méziêres fez um gesto com o
envelope branco que ainda segurava nas mãos.
— É o desejo de Etienne Devereaux que Brianna volte à América
definitivamente e que você passe a ser sua dama de companhia. — A velha
madame sorriu. — A idéia me parece muito boa e oportuna, uma vez que você
não tem família conhecida... e muito menos vocação para a vida religiosa...
As duas meninas se abraçaram, gritando de alegria ao mesmo tempo.
— Ah, madamel — exclamou Brianna, momentos depois. — Que notícia
maravilhosa! Aimée e eu somos como duas irmãs!
— É verdade! — concordou a cigana. — Tenho certeza de que vou adorar
a América! Mas é claro que jamais me esquecerei da senhora e de todos aqui
do convento!
— Bem, meninas, também não me esquecerei de ambas enquanto viver.
Mas agora é melhor voltarem a seus quartos e começar a arrumar suas malas,
porque deverão embarcar no navio que partirá de Le Havre amanhã bem cedo.
Podem ir. Encontraremo-nos na capela às seis, para as orações do final da
tarde.
Brianna e Aimée fizeram uma reverência diante da abadessa e viraram-se
para deixar a sala. Estavam quase chegando à porta de carvalho quando a voz
de madame se fez soar novamente.
— Brianna?
— Oui, madamei
— Suco de limão é excelente para remover as manchas que as cerejas de
monsieur Fourney deixaram em seus dedos.

CAPÍTULO DOIS

Charleston, Carolina do Sul, final do verão de 1792.

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Jesse Randall bocejou e espreguiçou-se lentamente, seu corpo forte e
musculoso ocupando quase todos os espaços da cama onde se encontrava.
Seus olhos azuis claros e brilhantes, o ponto alto de seu rosto anguloso e
atraente, pousaram na bonita moça loira um tanto espremida a seu lado.
— Você me parece muito pensativa hoje, Kathie. Aconteceu alguma
coisa?
Kathie Carver olhou para o homem ali deitado e sentiu um arrepio de
prazer ao lembrar-se das coisas que ele havia feito em seu corpo na noite
passada. Jesse Randall é um cavalheiro. Jamais encontrei alguém assim. De
súbito, a moça franziu a testa e desviou o olhar.
— Ora, meu bem — insistiu ele. — Eu sei que você está preocupada com
alguma coisa. Vamos, pode me falar.
— É que eu... Não, esqueça, por favor. Não... é nada. Jesse estendeu o
braço e tocou de leve nos seios fartos da jovem Kathie. A moça sentiu outro
arrepio de prazer, ainda mais intenso do que o primeiro. Aquele homem a
deixava completamente louca.
— Kathie, nós nos conhecemos há mais de dois anos. Se houver alguma
coisa que eu possa fazer para ajudá-la...
— Agora já é muito tarde, Jesse! — ela deu um soluço alto e as lágrimas
começaram a escorrer por seu rosto. —Jack McNulty prometeu que iria se
casar comigo... mas fugiu! Eu... não sei o que fazer!
A súbita explosão trouxe mais soluços e lágrimas sentidas.
Jesse olhou para os seios desenvolvidos da moça e perguntou, com voz
suave:
— Você está grávida?
— E... estou.
— E tem certeza de que a criança é mesmo de McNulty?
Lá embaixo, na sala de estar do hotel Cisne Negro, o velho relógio tocou
sete badaladas.
— Certeza absoluta! — Kathie Carver fez uma pausa para assoar o nariz
com um lenço que Jesse lhe oferecia. — Jack foi o único homem que... que
frequentou minha cama nestes últimos meses. Posso ser uma garota sem a
mínima classe, mas não sou uma vagabunda!
Jesse reprimiu um sorriso e observou a moça levantar-se e começar a se
vestir. Era verdade. Katie Carver era pobre, não tinha família e ganhava a vida
servindo as mesas do hotel, onde ocupava um pequeno quarto nos fundos.
Era, porém, de uma honestidade a toda prova. Ao contrário de suas duas
colegas de trabalho, Abigail e Jane Ann, havia sempre se recusado a receber
um centavo sequer dos homens a quem eventualmente prestava favores
sexuais. Sim, acreditava que ela soubesse exatamente de quem era o filho que
crescia em seu ventre. Balançou a cabeça tristemente. A pobre moça não havia
sido a única a sucumbir ao charme do galante e sedutor Jack McNulty. Ele
conhecia o homem, ou melhor, já o tinha encontrado muitas vezes nos bares
da cidade. Pelo que ficara sabendo, o garboso irlandês havia seguido para o
oeste a fim de fugir de um bando de credores que tentavam em vão reaver o
dinheiro que tinham lhe emprestado. Não. Jack McNulty jamais voltaria para
se casar com Katie Carver. De uma forma ou de outra, até que o fato não era
tão mau assim. Ele seria um péssimo marido para qualquer mulher. Jesse se
levantou.

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— Kathie?
A moça virou-se para ele. Os olhos estavam inchados e vermelhos, mas
as lágrimas já tinham desaparecido.
— Sim?
— Você tem idéia do que vai fazer da vida de agora em diante?
Ela balançou a cabeça e as lágrimas voltaram a aparecer.
— Não! Eu não sei o que vai ser de mini!
Jesse vestiu-se rapidamente, então aproximou-se dela e encostou a mão
de leve em seu ombro.
— Você aceitaria ajuda de um amigo?
— Ajuda... sua?
— Exatamente.
— Ah, mas...
— Eu sei o que você vai dizer, meu bem, mas me ouça primeiro, está
certo?
Ela fez que sim com a cabeça.
— E... está certo.
— Você precisa pensar no bebê, Kathie. Compreender que, daqui a
poucos meses, não estará mais sozinha nesse mundo. Mas o que vou lhe
propor não é caridade. É um trabalho honesto e honrado.
— Trabalho?
— Sim. Conheço uma família nessa região que está precisando da ajuda
de uma empregada de confiança, já que a mulher está a espera de mais um
filho. O trabalho envolveria principalmente o cuidado com as outras crianças
da casa, um casal de gémeos que acabaram de completar dois anos de idade.
Tenho certeza de que, se eu falar com Melanie e seu marido Jonathan, o
emprego será seu. Então, quando seu filho nascer, poderá criá-lo ali,
juntamente com os outros meninos. Que acha da idéia?
Kathie Carver arregalou os olhos castanhos, que agora tinham um ligeiro
brilho de esperança.
— Você... você está falando sério?
— Claro que estou. Por acaso sou homem de brincar com esse tipo de
coisa?
— Então... é evidente que eu aceito!
— Ótimo. — Jesse tirou uma carteira do bolso. — Vou lhe deixar algum
dinheiro e...
— Não! — protestou ela. — Por favor, Jesse, não faça isso.
Ele sorriu.
— Digamos que isso seja um empréstimo. Você poderá me pagar depois
de ter recebido um ano de salário. Se não aceitar, o resto da minha oferta
também será nula — Jesse viu a garota franzir a testa, então acrescentou: —
Kathie, você precisa me deixar ajudá-la. Pela criança que vai nascer, está bem?
— Jesse...
— É pegar ou largar, meu bem. Como pode ver, também sou um homem
muito teimoso!
A moça deu um suspiro resignado.
— Estou vendo... Obrigada, Jesse. Eu aceito. Mas tenha certeza de uma
coisa. Vou pagar tudo de volta, centavo por centavo!
Ele abriu a boca para fazer um comentário, quando ouviu-se uma batida

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na porta.
— Psiu, Kathie, sou eu, Jane — soou uma voz feminina do outro lado. —
Os hóspedes estão reclamando da demora do café da manhã! Venha logo!
Rapidamente, Kathie vestiu um avental e deu um abraço em Jesse.
— Você é o melhor homem do mundo. Muito obrigada! Dizendo isso,
atravessou o quarto correndo e abriu a porta. Sorrindo, Jesse observou-a
descer a escadaria apressadamente.
— Cuide-se. — Ele ainda teve tempo de dizer. — E cuide do bebê
também!
— Ah, que maravilha... então nossa linda Kathie fez uma encomenda à
cegonha...
Jesse virou-se em direção àquela voz e viu Jane Ann Simms recostada na
porta de seu próprio quarto, a poucos metros do de Kathie. Havia um sorriso
irónico em seus lábios cheios.
— Nunca pensei que você fosse capaz de engravidar uma boboca como
Kathie Carver. Ela não passa de uma...
— Já chega, Jane.
A moça ajeitou a touca branca que cobria seus cachos ruivos e
aproximou-se dele, os quadris balançando provocativamente.
— Pensei que você tivesse um gosto um pouco mais apurado, meu caro
Jesse. Que gostasse de mulheres sofisticadas e...
— Cale-se! — A voz dele estava impregnada de desprezo. — Você não
passa de uma abelhuda da pior espécie, mocinha. Agora, trate de escutar bem
o que vou lhe falar. Nada, mas nada mesmo do que ouviu a respeito de Kathie
Carver deverá escapar dessa sua boca, entendeu?
A garçonete ruiva percebeu que ele não estava para brincadeiras.
— Entendi.
— Fique sabendo que Kathie é uma moça decente, que vale cem vezes
mais que você. Não permito que seu nome seja jogado na lama, ficou claro? E,
para seu governo, não sou o pai da criança da qual você tomou conhecimento
de forma tão deselegante. Mas isso não é importante porque, se souber que
andou dando com a língua nos dentes, vou me comportar como se fosse e você
vai ter de se ver comigo! — Os olhos azuis estavam brilhantes de raiva. —
Entendeu, mocinha?
— Entendi, sim. Eu... eu não estava bisbilhotando, juro. Vim apenas
procurá-lo para lhe entregar isso. — Ela lhe estendeu um envelope. —
Mandaram entregar agora mesmo.
Jesse apanhou o objeto em questão, reconhecendo o selo familiar.
— Então quer dizer que você ficou um tempo atrás da porta do quarto da
Kathie antes de bater, não é?
— Eu... eu... não, Jesse. É que eu não quis incomodá-lo, só isso...
— Bem, trate de ficar com a boca fechada como eu mandei, senão vai me
ver incomodado de um jeito que a fará se arrepender do dia em que nasceu!
— Não vou falar nada. É uma promessa.
— Agora vá cuidar de suas obrigações e suma da minha frente.
— Já estou indo.
Jesse observou-a se afastar, então abriu o envelope e leu em voz baixa:
Jesse,Encontraremo-nos no Cisne Negro às duas, conforme o combinado.
Aquela carta de Colúmbia da qual lhe falei foi seguida por uma segunda.
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Precisamos conversar e decidir o que fazer.
Carlisle.
Jesse sorriu. James Carlisle era um de seus melhores amigos havia anos,
tendo sido também advogado de seu pai durante muito tempo. O velho Carlisle
era um homem íntegro e sério, que costumava ir sempre direto ao assunto.
O que será que ele quer comigo agora?
Jesse Randall esperava, sinceramente, que aquele encontro não fosse lhe
trazer problemas. Guardou a carta no bolso e dirigiu-se a seu próprio quarto,
localizado em outra ala da pensão.

CAPÍTULO TRÊS

— É um prazer de conhecê-lo, senhor.


— Não, não, Aimée — corrigiu Brianna. — É um prazer conhecê-lo, não
de conhecê-lo. Vamos, tente de novo, mom amie.
Um suspiro resignado escapou dos lábios da jovem cigana.
— É um prazer... conhecê-lo, senhor. — Então, vendo a aprovação nos
olhos de Brianna, deu um largo sorriso. — Três bon, nést-ce pas?
— Oui, quero dizer, sim, Aimée, você foi muito bem. Agora vamos
tentar...
— Por favor, Brianna — implorou a garota, voltando a falar em sua
língua nativa. — Estamos treinando há várias horas e sinto que minha cabeça
vai explodir se eu pronunciar mais uma sílaba em inglês. Que tal des-
cansarmos um pouco? Além disso, já é quase hora do almoço e eu estou
morrendo de fome!
— Está bem, Aimée. Você merece um descanso, depois de tanto esforço.
Aliás, gostaria de lhe dar os parabéns. Você tem feito grandes progressos!
A cigana fez uma careta.
— E verdade — prosseguiu Brianna. — Seu inglês melhorou muito desde
que começamos a treinar, no dia de nosso embarque. Três semanas dentro
daquele navio pelo menos serviram para alguma coisa!
— Mas às vezes eu ainda sinto muita dificuldade em formular uma
frase...
— Ouça, eu tive uma idéia. O que você acha de só falarmos inglês de
agora em diante?
Aimée arregalou os olhos.
— O quê? Inglês o tempo todo? Pelo amor de Deus, Brianna. Por acaso
está querendo me deixar maluca? Ainda não me sinto preparada!
— Então é melhor tratar de se sentir logo, porque dentro de pouco tempo
estaremos em casa!
As duas meninas conversavam num dos melhores quartos do hotel Cisne
Negro, enquanto esperavam um representante da família Devereaux para
acompanhá-las ao palacete da família.
Aimée se levantou.
— Você deve estar morrendo de saudade de todos, não é mesmo?
— E como... — Brianna deu um suspiro. — Ah, minha querida Aimée, o
que será que o futuro nos reserva? O que será de nossas vidas aqui na
América?
Os olhos da cigana ficaram nebulosos.
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— Eu não sei...
— Não sabe... ou não quer dizer?
— Eu realmente não sei, mon amie. Só acho que muitas surpresas nos
esperam... e nem todas agradáveis.
Brianna também se levantou.
— Surpresas? Que tipo de surpresas?
Uma batida na porta interrompeu a conversa. Era uma criada do hotel,
informando que o almoço já está servido.
— Graças a Deus — comentou a cigana, no momento em que a moça se
retirou. — Mais um minuto e eu já iria desmaiar de fome.
Brianna deu um sorriso.
— Meu Deus, como você é exagerada...
— Chegamos aqui ontem de manhã e eu já me apaixonei pela cozinha
americana. Nunca pensei que fosse encontrar pratos tão deliciosos no Novo
Mundo!
— Espere até provar a comida preparada lá em casa.
Ah, que saudade das tortas de maçã que nossa cozinheira Helen assava
todas as manhãs...
— Já estou com água na boca. Bem, me espere aqui que já vou buscar
nosso almoço.
Brianna observou a amiga sair, então apanhou um livro que madame
Méziêres havia lhe dado de presente na hora da partida. Mal começara a
leitura quando a porta se abriu novamente e uma agitada Aimée retornou, os
olhos arregalados.
— Brianna, você nem imagina o que aconteceu! Acabei de ver um deus!
O livro foi fechado na hora.
— Você o quê? Por favor, Aimée, trate de se acalmar e me conte o que
aconteceu!
A cigana jogou-se numa poltrona.
— Bem, talvez ele não seja exatamente um deus, porque seu sorriso era
muito humano. Mas acredite em mim, o homem era magnifique.
— Mas que homem, Aimée? De quem você está falando?
— Eu... o vi passando pelo corredor. Mon Dieu, que visão celestial! Vou
lhe dizer uma coisa, mon amie. Se soubesse que os homens americanos eram
tão bonitos e másculos teria vindo para cá há muito mais tempo, nem que
fosse a nado!
Brianna começou a rir.
— Não acredito no que estou ouvindo! Que fim levou a garota bem
comportada que ouvia os sermões do frei Katzier todos os domingos com a
maior atenção?
— Você está rindo de mim porque não viu o homem, isso sim. Por causa
dele, eu me esqueci até do almoço!
— O quê? Esqueceu-se do almoço? Sacré bleu, o caso está me parecendo
muito grave!
— Não deboche de mim, Brianna. Você vai ter a mesma reação quando se
encontrar com ele!
Ela deu um suspiro desanimado.
— Bem que eu gostaria de poder andar por aí livremente como você,
Aimée. Juro que não estou conseguindo aguentar essa prisão. Primeiro,

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aqueles sete anos passados no convento, depois semanas e mais semanas no
mar e agora só Deus sabe quanto tempo mais ficaremos presas nesse quarto
apertado, esperando que o enviado da família nos leve para casa! Pelo menos
você tem a liberdade de andar por aí, enquanto eu sou obrigada a ficar
trancada aqui dentro, bancando a dama recatada... Aimée olhou bem dentro
dos olhos de Brianna.
— Você está falando sério? Gostaria mesmo de estar no meu lugar e
experimentar a liberdade de ir e vir?
— Mais é claro que sim! Ah, como seria bom se eu pudesse... — Ela
arregalou os olhos verdes. — Ei! Já entendi! Por acaso você está sugerindo que
troquemos de lugar?
— Claro, mon amie. Não vai ser nada difícil.
— E só não exagerarmos!
— Sem dúvida. Uma ou duas horas serão o bastante.
— Temos quase o mesmo corpo!
— E essa touca vai esconder seus cabelos e quase todo o seu rosto!
De súbito, o quarto começou a ferver de atividade, as duas meninas
tirando vestidos, remexendo gavetas, abrindo e fechando armários.
— Vou carregar no sotaque francês — disse Brianna, fazendo um coque
nos cabelos. — Que tal?
— Uma excelente idéia! O pessoal do hotel não vai desconfiar de nada!
Deixe-me ajudá-la a colocar minha touca... Isso, perfeito. Agora olhe-se no
espelho.
Brianna deu dois passos para trás e estudou seu reflexo no grande
espelho em cima da cómoda. Sorriu, satisfeita. Maravilhoso. Ninguém iria
reconhecê-la. Virou-se para Aimée, os olhos verdes brilhando de entusiasmo.
— Já estou indo. Mal posso esperar para ver esse tal deus com sorriso
muito humano!
— Ah! Então você confessa que ficou curiosa para conhecê-lo, não é?
— Eu não disse que não tinha ficado. Deseje-me boa sorte, Aimée.
— Boa sorte, mon amie.
Brianna ainda tinha um sorriso nos lábios quando saiu do quarto e
atravessou o longo corredor. Porém, ao descer a escadaria, começou a sentir
sua coragem desaparecer como fumaça ao vento. Diminuiu a velocidade de
seus passos. E se a touca não fosse suficiente para ocultar-lhe os cabelos e
parte do rosto? E se o dono do hotel se lembrasse de que sua dama de
companhia era mais baixa? E se...
Pare com isso, sua covarde, ordenou a si mesma. Você não está fazendo
nada de errado!
Levantou a cabeça e continuou seu caminho. Mal podia esperar para ver
o homem que tanto impressionara Aimée Gitane.
Entrou na sala de estar, lotada de hóspedes que riam e tomavam suas
bebidas recostados num enorme bar de madeira. Homens, em sua maioria. A
insegurança voltou para assombrá-la. Levou a mão à cabeça a fim de verificar
se a touca estava no lugar.
O proprietário do hotel aproximou-se dela.
— Posso ajudá-la, senhorita? Deseja alguma coisa?
Ela respirou fundo e começou a falar, carregando no sotaque francês.
— Mais oui, monsieur. A srta. Devereaux deseja que o almoço seja

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servido no nosso chambre, non?
Timothy Barnes, o dono do Cisne Negro, deu seu melhor sorriso. Ali, bem
à sua frente, encontrava-se uma das mulheres mais bonitas que já vira. Uma
autêntica beldade francesa, não importava que fosse uma simples criada de
quarto.
— Claro, imediatamente, mademoiselle. — Virou-se para o outro lado e
chamou. — Jane Ann! Depressa! Traga uma bandeja com dois almoços!
Brianna engoliu em seco ao perceber que todas as cabeças masculinas
da sala haviam se voltado em sua direção.
Abaixou a cabeça ligeiramente a fim de esconder o rosto.
O proprietário do hotel estava lhe dizendo alguma coisa.
— Como, monsieur?
— Jane Ann, a copeira, já vai lhe trazer as bandejas. Venha, sente-se
aqui enquanto espera, por favor.
— Eu... hã... merci, monsieur.
Brianna estava se dirigindo ao local indicado, quando uma voz masculina
soou atrás dela.
— Será que eu poderia lhe fazer companhia, senhorita?
Ela virou-se rapidamente... e sentiu que o sangue lhe fugia do rosto. O
deus americano de Aimée! Só podia ser ele. Porque ali, à sua frente,
encarando-a, estavam os olhos azuis mais encantadores que já havia visto. E
seus outros traços, então. Desde o nariz reto, que lembrava o de uma estátua
grega, ao maxilar firme e masculino, o homem era um estudo de proporções
perfeitas. A boca firme e bem-feita que lhe sorria mostrava dentes muitos
brancos, que faziam contraste com sua pele bronzeada e os cabelos muito
pretos e fartos. Então, emoldurando-lhe o sorriso e fazendo com que os joelhos
de Brianna começassem a tremer como geléia, havia um par de covinhas
incrivelmente masculinas e charmosas. Sentindo-se embaraçada diante de
tanta beleza, ela abaixou a cabeça. E foi obrigada a encarar o corpo do deus.
Que conseguia ser ainda mais deslumbrante do que o rosto. Os ombros
grandes e fortes tinham músculos aparentes mesmo sob a bonita jaqueta de
montaria, a cintura era fina e marcada, as coxas... Mon Dieu, pensou ela,
abaixando a cabeça. O que madame Méziêres diria, se soubesse que estou
olhando para as partes tão íntimas de um hbmem? Então o deus voltou a
falar, dando-lhe a oportunidade de se recompor.
— Ah, perdão, mademoiselle, eu ainda não me apresentei. É claro que
uma dama não pode aceitar a companhia de um cavalheiro, sem as devidas
apresentações. Sou Jesse Randall, a seu dispor.
E, dizendo isso, curvou-se diante dela com uma elegância de fazer inveja
a qualquer nobre francês.
— Eu... hã... muito prazer, monsieur Randall — respondeu ela, tentando
carregar no sotaque francês. — Sou Bri... Brielle... Brielle Gitane... e estou
muito feliz em conhecê-lo.
— Gitane — ele murmurou. — Um nome cigano... engraçado, a senhorita
não me parece uma cigana. Seus olhos são verdes e sua pele é tão clara...
Brianna desejou que o chão se abrisse a fim de engoli-la.
— É que... hã... minha famille foi forçada a trocar de identidade... A
revolução, monsieur entende, não é?
Jesse fez que sim com a cabeça.

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— Sim, ouvi qualquer coisa a respeito do que vem acontecendo em sua
terra natal. Quer dizer que a senhorita e a dama para a qual trabalha estão
fugindo da revolução?
— Ah, mais non, monsieur. Ela é americana. Está voltando à América
porque já completou os estudos.
Ele lhe deu um sorriso e não disse nada. Estaria desconfiado de alguma
coisa? Finalmente a copeira Jane Ann apareceu com uma bandeja cheia de
pratos e Brianna deixou escapar um suspiro de alívio. Agora poderia deixar
todas aquelas mentiras de lado e voltar para o refúgio seguro de seu quarto.
— Ah, aí vem nosso almoço, monsieur. Muito obrigada pela companhia
e...
— Eu levo a bandeja para a senhorita — ele a interrompeu. — Deve estar
muito pesada.
— Non, non, não é preciso. Pode deixar que eu mesma a levo. Um
cavalheiro não faz esse tipo de serviço e...
Mas Jesse já havia tirado a bandeja das mãos de Jane e dispensado-a
com um aceno de cabeça.
— Bobagem, senhorita. Vamos lá. Poderia me indicar o caminho?
Brianna conhecia um homem decidido quando via um. Não adiantava
tentar fazê-lo mudar de ideia.
— Hã... claro. É por aqui.
Dirigiu-se para a escada com passos incertos, amaldiçoando o momento
em que resolvera tomar parte daquela farsa. Não havia imaginado que aquele
homem pudesse mexer tanto com suas emoções. Na verdade, jamais sonhara
que pudesse haver no mundo algum homem mais bonito e atraente do que
aquele.
— E... esse é... meu quarto, monsieur Randall — disse ela por fim,
parando em frente à porta. — Eu... nem sei como agradecer.
Jesse lhe deu um sorriso que a deixou com as pernas ainda mais
bambas.
— Foi um prazer ajudá-la. — Ele estendeu-lhe a bandeja. — Posso lhe
fazer um convite, mademoisellel
— Um... convite?
— Sim. Gostaria de jantar comigo hoje?
Ela engoliu em seco.
— N... não creio que seja possível, monsieur. Não sei quais são os planos
de mademoiselle para essa noite. Mas... mas quem sabe possamos nos ver
mais tarde, oui?
Jesse fez que sim com a cabeça e lhe sorriu de novo. De um modo ou de
outro, parecia saber que Brianna não tinha a mínima intenção de vê-lo de
novo, embora seus olhos azuis não guardassem sinal de ressentimento. Cur-
vou-se diante dela com respeito, então virou-se e seguiu seu caminho.
Segundos depois, Aimée abria a porta e a encontrava ali fora, parada,
trêmula da cabeça aos pés.
— Ei, o que aconteceu? — perguntou a cigana, assustada.
— Aimée — ela balbuciou, com voz fraca. — Acabei de falar com o deus
americano!
CAPÍTULO QUATRO

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— Estou lhe dizendo, Jesse, Jefferson e Hamilton não estão se entenden-
do! Alguma coisa precisa ser feita, e logo, ou o presidente acabará aceitando a
demissão de Jefferson... e aí, o que vai ser de nós?
James Carlisle terminou de falar e deu uma longa tragada em seu
charuto. Era um homem forte e atarracado de estatura mediana, olhos
acinzentados sempre alertas e uma boca cheia de dentes absolutamente
intactos, apesar de seus sessenta e um anos de idade. Cabelos brancos como
algodão emolduravam um rosto arredondado e inteligente, que agora inclinava-
se em direção a seu companheiro de mesa, a voz lembrando o sussurro do
vento:
— Pinckney está querendo uma resposta ainda hoje.
Jesse Randall franziu a testa, um tanto aborrecido.
— Eu não gosto de ser pressionado, James.
James Carlisle deu um suspiro. Conhecia Jesse Randall desde o dia em
que nascera. Fora seu padrinho de batismo e, devido à morte trágica de seus
pais quando o mesmo mal completara nove anos, acabara desempenhando um
papel de protetor durante toda a sua adolescência. Sabia que Jesse odiava
pressão, mas o assunto era urgente demais!
— Olhe, meu caro, eu detesto parecer assim tão insistente, mas é que fui
governador...
— Exatamente isso — interrompeu Randall. — O governador. E é aí,
James, que surge meu primeiro problema. Charles Pinckney sempre esteve ao
lado dos federalistas. Aliás, acho que Hamilton nunca teve um aliado tão fiel
no sul. Então, por que nosso bom governador, de súbito, parece tão
interessado em Jefferson e seus amigos republicanos?
O velho mexeu-se na cadeira.
— Bem, é que tem havido alguns comentários... Olhe aqui, Jesse, não
vamos entrar em detalhes agora. O que importa realmente é que Pinckney
resolveu passar para o outro lado e nós precisamos tirar vantagem do fato.
Você não percebe que Jefferson é a única esperança que esse país tem contra
aquele sanguinário do Hamilton e seus federalistas fanáticos por dinheiro e
tradição?
Jesse sorriu e tomou um gole da cerveja que a copeira Jane tinha
acabado de servir.
— Concordo com você. Jefferson é nossa única esperança. Aliás, vou
propor um lanche. Ao humanismo... e a uma república democrática.
James Carlisle levantou seu próprio copo, acrescentando:
— E ao triunfo de Jefferson e sua crença nas virtudes do homem comum.
Jesse concordou com a cabeça e ambos fizeram uma pausa a fim de
tomar suas bebidas, seu silêncio contrabalançado pelos sons que vinham dos
quatro cantos da sala. O Cisne Negro vivia lotado, não só de hóspedes, mas
também de homens de negócios que vinham provar os pratos deliciosos do
restaurante do hotel. Perto da lareira, a copeira Jane flertava com dois rapazes
bem vestidos. Mais ao centro, a futura mamãe Kathie Carver servia refrescos
para um senhor de aparência distinta e sua esposa.
— Então — continuou Carlisle por fim, colocando o copo vazio em cima
da mesa —, devo assumir que sua resposta a Pinckney é sim? Que pelo menos
irá a Colúmbia ouvir o que ele tem a dizer?
Jesse observou-o atentamente.

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— Tudo bem. Mas com uma condição.
— Que condição? — O olhar do velho estava cheio de esperança. — Pode
falar.
— Quero que fique muito claro que não pretendo ter nenhum
envolvimento direto nesse caso. Aliás, não sei por que tanta insistência no meu
nome, já que não tenho nenhum treinamento diplomático formal.
O velho fez sinal para uma das copeiras, pedindo a conta.
— Sei disso. Mas o que todo o estado também sabe é que você fez um
enorme sucesso ao acompanhar o presidente no ano passado, durante sua
visita à Carolina do Sul.
Jesse Randall deu de ombros.
— Ora, aquilo não foi nada. Só fui chamado para a tarefa porque meu
pai e o presidente foram colegas na infância.
— E saiu-se muitíssimo bem, colaborando no fechamento de vários
acordos benéficos para nós. Sua habilidade diplomática impressionou todos
aqueles que realmente detêm o poder e já está mais do que na hora de parar
de ser modesto!
A copeira chegou com a conta e, antes que Jesse pudesse esboçar
alguma reação, o velho tirou algumas moedas da carteira e colocou-as sobre a
mesa. Então, ignorando os protestos do amigo, apanhou o chapéu na cadeira
ao lado e levantou-se.
— Tenho alguns negócios a fazer no centro da cidade. Você me
acompanha?
Jesse concordou com a cabeça.
— Claro. Vamos lá.
Atravessaram a sala apinhada e saíram para a rua, onde soprava um
vento quente de fim de verão. Jesse ajeitou seu chapéu e virou-se para o velho
amigo.
— Olhe, James, você falou sobre minhas "habilidades diplomáticas".
Mas, por favor, me escute com atenção.
— Não tenho o mínimo interesse pela arte da política, nesse ou em outro
estado. Irei a Colúmbia para conversar com nosso governador conforme
prometi, mas, quando começar a lhe fazer perguntas, queira Deus que ele
tenha as respostas corretas, caso espere alguma ajuda de mim!
Naquele momento, um relincho suave quebrou o silencio daquela gostosa
tarde e os dois homens viraram-se em direção ao estábulo do hotel, a poucos
metros dali.
— É sua égua Cigana, não é? — comentou Carlisle, com um sorriso nos
lábios.
— Sim — respondeu Jesse, satisfeito. — Ela nunca perde a oportunidade
de me cumprimentar, quando me vê.
— Vocês, os Randall, sempre adoraram animais, não é? Seu finado pai,
que Deus o tenha, foi o maior criador de cavalos puro-sangue que a Carolina
do Sul já teve. E, pelo visto, você segue a tradição da família.
Chegaram ao estábulo, onde Cigana esperava seu dono com impaciência.
Jesse acariciou-lhe o pescoço aveludado e, tirando um torrão de açúcar do
bolso, ofereceu-lhe a guloseima que foi logo devorada.
Os dois homens montaram em seus cavalos e seguiram seu caminho em
direção ao centro da cidade de Charleston. Mal haviam dobrado uma esquina,

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quando uma reluzente charrete preta parou a seu lado e uma cabeça exibindo
uma cabeleira castanha protegida por um enorme chapéu de palha apareceu
na janela.
— Ora, ora, quem vejo por aqui! Jesse Randall! Você tem andado tão
sumido ultimamente...
— Ah, como vai, Mary? — cumprimentou Jesse, dando-lhe um sorriso
sem entusiasmo. — Você conhece meu amigo James Carlisle, não conhece?!
O velho tocou a aba de seu chapéu em sinal de respeito e Mary Lucas,
dando-lhe um sorriso brevíssimo, voltou rapidamente a atenção ao homem que
lhe interessava no momento.
— Você é mesmo terrível, Jesse! Não compareceu à noite musical no mês
passado! Perdeu um concerto e tanto!
Jesse tentou encontrar uma desculpa rápida.
— É que eu tenho andado muito ocupado, Mary.
Mary Lucas virou-se para a mulher sentada a seu lado, tocava seu braço
com um pequeno leque.
— O que foi, Kelly?
A tal mulher cochichou qualquer coisa em seu ouvido.
— Ah, sim, é claro. — Mary Lucas voltou a atenção aos dois homens. —
Vocês conhecem a Kelly, a irmã de meu falecido marido, não é? — Antes que
ambos pudessem cumprimentá-la, a fogosa viúva continuou. — Bem, ela
acabou de me lembrar que precisamos nos apressar. Vai haver um leilão de
escravos daqui a pouco e estamos precisando de algumas camareiras novas lá
para casa... É claro que não vamos comparecer, vocês compreendem. Afinal,
nenhuma moça de boa família sai por aí, assistindo a leilões desse tipo, não é
mesmo? Meu irmão George fará os lances enquanto tomamos chá na casa de
Loui-se Tuttle. Bem, precisamos ir andando. Até breve, Jesse. Venha me
visitar qualquer hora dessas. Até logo, sr. Carlisle.
O velho James Carlisle observou a charrete se afastar e sorriu.
— Mary Lucas é apaixonada por você e não faz a mínima questão de
esconder.
Jesse Randall, porém, não tinha nem sombra de sorriso em seus lábios.
— Sei disso. Mas prefiro morrer a me relacionar com ela. Você sabe que
os Lucas são os maiores proprietários de escravos dessa região, não sabe?
— Claro que sei. Eu os desprezo tanto quanto você.
— A escravidão é a maior vergonha da humanidade, James. Meu pai não
se cansava de dizer isso e todos os Randall sempre compartilharam da mesma
opinião. Nossas ideias liberais já nos causaram problemas aqui no sul, mas
ainda sonho com o dia em que todos os homens da face da terra serão livres e
felizes!
—Também tenho o mesmo sonho, meu jovem.
Ambos continuaram seu caminho. Dez minutos depois, checavam ao
centro da cidade, geralmente sossegado aquela hora, hoje apinhado de gente,
cavalos e charretes. O motivo de tanta confusão era o leilão de escravos ao
qual Mary Lucas se referira, que, pelo visto, já começara.
Bem no centro da praça haviam erguido um palanque de onde o leiloeiro,
um homem atarracado e bem vestido, comandava seu lucrativo negócio. Seus
olhos pretos e estreitos estavam voltados para o negro a seu lado, o homem
mais alto e mais forte que Jesse já vira na vida. Era jovem, devia ter uns vinte

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e cinco anos no máximo e os músculos aparentes mesmo sob as roupas
rasgadas falavam de um corpo condicionado a força por anos de trabalho
pesado e desumano.
Um pouco atrás deles, vigiados por um brutamontes barbudo, havia mais
uns dezoito ou vinte negros e negras de vários tamanhos e idades. Mas o que
realmente chamou a atenção de Jesse naquele momento foi o último homem
da direita, um negro alto e forte exatamente igual àquele que ia ser leiloado.
Gêmeosl Eram a imagem exata um do outro! A semelhança, porém, limitava-se
à parte externa. Enquanto o escravo ao lado do leiloeiro parecia tímido e um
pouco hesitante, o outro era um estudo de raiva e desafio. Tinha a cabeça
erguida, exibindo um rosto orgulhoso e determinado.
O leiloeiro apanhou um pedaço de papel e começou a falar.
— Bem, senhores, aqui temos Festus, um excelente escravo, dócil,
obediente e muito trabalhador apesar da cegueira...
Naquele momento, sob os olhares espantados de todos os presentes, o
irmão de Festus deu um passo à frente e exclamou:
— Ninguém vai me separar do meu irmão!
0 brutamontes barbudo e mais três capangas apressaram-se para contê-
lo.
— Meu Deus — cochichou Jesse. — Os irmãos vão ser vendidos
separadamente e um deles é cego! Isso é uma desumanidade insuportável!
— É verdade — respondeu o velho. — Mas nem com toda a influência do
nome Randall você poderá impedir esse leilão.
— Sei disso. Infelizmente não tenho o poder de acabar com essa pouca
vergonha. Mas há uma coisa, uma coisa imediata, que eu posso fazer para
ajudar os dois infelizes.
— O quê, caro amigo?
— Comprar os irmãos, ora essa.
Carlisle pareceu aliviado.
— Pelo menos você está agindo de um modo um pouco mais racional. Por
um instante, pensei que fosse subir ao palanque e matar os responsáveis por
esse leilão com as próprias mãos.
— Bem que eu gostaria de poder fazer isso... Ah, como gostaria...
— E o que pretende fazer depois de comprá-los?
— Libertá-los, é claro. Você acha que um Randall manteria escravos em
suas terras?
— Ora, Jesse, eu sei que você vai lhes dar a liberdade. Mas, e depois?
— Depois vou oferecer-lhes trabalho. Não parece uma ótima idéia?
O velho ainda não parecia muito convencido.
— Não sei não, mas talvez você tenha problemas nesse leilão. A cidade
toda sabe de suas convicções anti-escravagistas. Há muita gente por aqui que
ficaria muito intrigada se você começasse a dar lances. Acabariam descon-
fiando de seus propósitos e forçariam o preço a alturas ridículas, apenas pelo
prazer de atrapalhar a sua boa ação.
— Tem razão — concordou Jesse. — É melhor pensarmos logo em algo
porque o negócio já vai começar.
— Deixe que eu faço os lances, amigo. Se você for embora agora,
ninguém vai desconfiar de nada. Que tal?
Jesse lançou-lhe um olhar cheio de agradecimento.

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— Aqui está um outro motivo pelo qual sou seu amigo, James. Sempre
admirei homens que conseguem raciocinar depressa numa situação tensa e
complicada. Vejo você mais tarde em sua casa, está bem? E boa sorte!
Virou a cabeça da égua Cigana e afastou-se dali.
— Aceita uma xícara de café da Jamaica, Jesse? — ofereceu Johanna
Carlisle com sua voz doce e meiga que lembrava uma brisa de primavera. —
Acabei de coar e ele ainda está quentinho.
Jesse sorriu para a plácida senhora de cabelos grisalhos que tanta paz
lhe transmitia.
— Aceito, sim. Muito obrigado.
— Você também precisa provar a torta de limão que assei agora há
pouco, receita de minha amiga Amy Gardner. Venha, sente-se aqui que eu já
vou servir.
Jesse sentou-se à mesa ao lado do fogão e observou sua madrinha
arrumar seus quitutes numa bandeja. Ah, como ela fora dedicada e paciente
com ele e com seu irmão Garrett durante aqueles anos terríveis e solitários que
haviam se seguido à trágica morte de seus pais... Devia muito à família
Carlisle. Era um enorme débito de gratidão, que jamais poderia ser pago.
Estava começando a comer a torta de Johanna, quando a porta da frente
se abriu.
— Jesse! Johanna! Onde estão vocês?
— Aqui na cozinha, querido!
Jesse se levantou imediatamente e observou James Carlisle entrar, o
rosto vermelho e suado. Parecia bastante nervoso.
— Como foram as coisas, James?
O velho balançou a cabeça com desânimo.
— Péssimas. Os lances foram tão altos, que não consegui comprá-los.
Jesse pensou no sofrimento dos dois infelizes e sentiu seu coração se
contrair de dor. Então, para seu grande espanto, James Carlisle caiu na
risada.
— Enganei um bobo, Jesse. É claro que os comprei. Estão ali fora,
esperando para conhecê-lo.
Jesse deixou escapar um suspiro de puro alívio.
— Graças a Deus. Você contou que vou libertá-los agora mesmo?
— Não. Achei que você gostaria de lhes dar a notícia pessoalmente.
— Então vamos lá conversar com eles?
— Claro.
Momentos depois, o velho abria a porta da frente de sua casa e Jesse se
via cara a cara com os dois maiores negros que já vira na vida.
— O senhor é nosso novo dono? — perguntou um deles, o irmão do cego
Festus.
Jesse Randall balançou a cabeça.
— Não.
O negro pareceu confuso.
— Mas esse senhor aqui nos disse...
— Você é um ser humano, amigo. E seres humanos não devem ter donos.
Sou contra a escravidão, provavelmente a maior vergonha da humanidade. Eu
pedi a meu advogado que comprasse vocês dois para libertá-los em seguida.
Aliás, ele vai cuidar da documentação agora mesmo e, dentro de alguns

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minutos, vocês dois serão homens livres.
O gigante deu um passo à frente, uma expressão de incredulidade em
seu rosto.
— O senhor está brincando, não está?
— Não. Não costumo brincar com coisas sérias. Comprei você e seu
irmão a fim de libertá-los, muito embora espere que aceitem meu convite para
trabalhar nas minhas terras por um salário justo, é claro.
Os dois negros, rindo e chorando ao mesmo tempo, se uniram num
abraço comovente.
CAPÍTULO CINCO

Jesse olhou com satisfação para a enorme extensão de terra em volta de


sua casa recém-construída. Uma bela propriedade, da qual muito se or-
gulhava. Havia planejado pessoalmente cada detalhe e fizera questão de
acompanhar as obras de perto, fiscalizando o trabalho de todos os operários.
No momento, encontrava-se em cima do telhado juntamente com o mestre-de-
obras Josiah Puroy, que o chamara para verificar o acabamento final de uma
das chaminés.
— Está perfeito, Josiah. Aliás, como eu já sabia que iria ficar. Foi um
prazer trabalhar com você durante todos esses meses.
O mestre-de-obras, um homem calvo de meia-idade, estendeu-lhe a mão.
— O prazer foi todo meu. Nunca imaginei que um fidalgo como o senhor
pudesse arregaçar as mangas e participar do trabalho com tanta facilidade.
Jesse agradeceu o elogio e estava prestes a seguir Josiah Puroy na árdua
tarefa de descer do telhado, quando avistou uma enorme figura surgindo da
porta da cozinha, à esquerda.
— Vulcan! — chamou ele. — O tubo condutor está funcionando bem?
O irmão de Festus levantou a cabeça e levou a mão aos olhos, a fim de
proteger-se do sol.
— Perfeitamente, patrão. O velho Bob fez um serviço e tanto!
Jesse deu um sorriso de satisfação. Não se arrependia nem por um
instante de ter contratado Vulcan como capataz da fazenda, muito embora sua
atitude tivesse provocado a demissão de quatro de seus melhores empregados
brancos, que se recusavam terminantemente a receber ordens de um negro,
não importando que fosse um homem livre. Não, uma inteligência como aquela
não podia ser desperdiçada, pensou ele, pulando para o chão. Na verdade, os
dois irmãos eram extremamente rápidos para aprender embora Festus, com
seu problema de visão, tivesse algumas limitações. Mas, era um excelente fer-
reiro e vinha apresentando um ótimo trabalho.
De súbito, o ruído de cascos de cavalos contra o solo chegou a seus
ouvidos, interrompendo-lhe os pensamentos. Momentos depois, um casal de
cavaleiros aparecia a distância e, mesmo sem poder ver seus rostos, Jesse
adivinhou imediatamente quem eram os visitantes.
Não falava com seu irmão Garrett nem com a mulher dele, a jovem e
bonita Christie, desde que voltara de Charleston, tendo preferido dirigir-se logo
para a fazenda juntamente com Vulcan e Festus a fim de estabelecê-los o mais
cedo possível em sua nova vida. Agora, ao vê-los se aproximar, percebia que
sentira falta da companhia de ambos.
— Vulcan! — ele gritou para o empregado. Vá chamar Festus, por favor.

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Há algumas pessoas que quero que vocês dois conheçam!
— É para já, patrão!
Enquanto o negro se afastava correndo, Jesse acenava para o irmão e a
cunhada que se aproximavam.
— Venham logo, vocês dois! Já estava mais do que na hora de vocês
aparecerem!
Diminuindo o galope, os recém-chegados aproximaram-se do enorme
terraço que circundava a sede da fazenda.
Garrett, um homem alto, forte e musculoso, era muito parecido com
Jesse. A diferença eram os olhos, verdes em lugar dos azuis do irmão.
— Escute só, Christie. Do jeito como ele está falando, até parece que
fomos nós que chegamos há vários dias sem nem parar para uma visitinha!
— Ora, Garrett, tenho certeza de que nosso vizinho favorito teve seus
motivos para manter-se afastado. — Christie Randall sorriu e aceitou a ajuda
de Jesse para desmontar do cavalo. Ela era uma jovem lindíssima, de corpo e
de alma. — Afinal de contas, todo mundo sabe que meu querido cunhado é um
homem de inúmeros compromissos. Como vai, Jess?
— Melhor agora por ver vocês dois. Estava morrendo de saudade!
Após calorosos cumprimentos, Jesse os conduziu até a varanda, onde
havia um único e pequeno banco de madeira.
— Peço desculpas pela falta de mobília. Os sofás e poltronas que
encomendei ainda não chegaram e... — ele parou falar, ao ver que seus dois
empregados se aproximavam. — Ah, aí estão Vulcan e Festus. Gostaria muito
que os conhecessem.
Os negros subiram os degraus da varanda, um pouco embaraçados.
Jesse sorriu para eles e virou-se para o irmão e a cunhada.
— Christie, Garrett, esses são meus dois novos amigos e, encontrando a
pequena e delicada mão que o tocava, apertou-a sem demora.
— O prazer é todo meu, sra. Randall.
— E meu também — acrescentou Vulcan, fazendo um gesto com a
cabeça em direção a Christie.
Então Garrett cumprimentou Festus e as apresentações foram
concluídas.
— Seu irmão é o melhor homem do mundo! — exclamou Vulcan, com
orgulho. — O senhor nem imagina o que ele fez por nós.
— Então nos conte, por favor — pediu Christie, com um sorriso nos
lábios. — Estou curiosa!
Os dois negros, falando quase que ao mesmo tempo, trataram de pôr o
casal a par de todos os acontecimentos. Quando finalmente pediram licença e
se afastaram a fim de cumprir suas obrigações, Garrett e Christie tinham
lágrimas nos olhos.
— Ele tem razão, meu irmão. Você é mesmo o melhor homem do mundo.
— Bobagem, Garrett — retrucou Jesse. — Se estivesse no meu lugar,
você teria feito exatamente a mesma coisa.
Os três se sentaram no banco de madeira. Mais adiante, o ruído típico de
um martelo batendo no metal lhes dizia que Festus voltara ao trabalho.
— Um dia, a escravidão será abolida em todos os países do mundo —
comentou Christie, os olhos cheios de esperança. — E essa mancha na história
da humanidade será apagada.

22
— Queira Deus que isso não demore a acontecer. — Garrett deu um beijo
no rosto da mulher e virou-se novamente para o irmão. — Ah, já ia me
esquecendo. Chegou ontem lá em casa uma carta endereçada a você.
— Uma carta? — Jesse apanhou o envelope que o irmão tirava do bolso
e lhe estendia e o examinou com cuidado. — Engraçado, seja lá quem for o
remetente, ainda não tem meu endereço novo. Vocês se importam se eu abrir
agora?
— Claro que não. — Garrett deu um sorriso maroto. — Aliás, se você não
o fizer agora mesmo, Christie vai ficar muito desapontada. É que ela está
morrendo de curiosidade de saber quem foi que lhe escreveu...
A moça arregalou os olhos muito azuis.
— Eu? Curiosa? Como tem coragem de dizer uma coisa dessas? Quem
estava morrendo de curiosidade era você!
Garrett começou a rir.
— Tudo bem, tudo bem, você tem razão. Mas é que eu não perco a
oportunidade de ver esse lindo rostinho cheio de indignação...
Jesse abriu o envelope com cuidado.
— É de Etienne Devereaux — ele revelou, com voz grave. — O pai de
Deirdre.
Christie notou um brilho de tristeza nos olhos do cunhado e observou-o
abaixar a cabeça e ler a mensagem contida na misteriosa carta.
"Meu querido Jesse,
Pensei muito antes de lhe enviar essa mensagem. Não temos nos visto
ultimamente porque estou preso a uma cama desde o começo do ano. Na
verdade, estou apenas ditando essas palavras. Quem as escreve é meu bom
amigo, o padre Edouard Gérard, já que estou muito fraco para fazê-lo. Por
motivos que prefiro discutir pessoalmente, peço que venha me ver em minha
residência. Agradeceria se viesse logo, porque temo que meu tempo neste mundo
esteja se esgotando e estou precisando de sua ajuda.
Um abraço,
Etienne Devereaux."

Fez-se um longo momento de silêncio, quebrado apenas pelo canto dos


pássaros da região. Finalmente, Jesse levantou a cabeça e olhou para Christie.
— Garrett conheceu bem Etienne Devereaux e sua filha Deirdre. Mas
você... se lembra de ter ouvido esses nomes?
A linda moça balançou a cabeça.
— Não... Acho que não.
— Talvez então você se lembre de eu ter lhe falado a respeito de uma
garota... com quem ia me casar?
Christie se lembrava, sim. E agora, olhando para o rosto triste de Jesse,
compreendia tudo.
— Ela morreu antes que vocês pudessem se casar, não foi?
— Exatamente. De sarampo, numa noite quente de verão, há sete longos
anos. Ela só tinha dezesseis anos na época. Muito jovem para se casar, diziam
seus pais, embora eu não concordasse. De qualquer modo, concordei em
esperar até o dia de seu décimo-sétimo aniversário, quando então o padre
Edouard celebraria nossa união... — Ele abaixou a cabeça. — Mas Deus não
permitiu que isso acontecesse.

23
— E depois? — perguntou Christie. — Você continuou a manter contato
com os Devereaux?
— Sim. Costumava visitá-los de vez em quando e nos escrevíamos
sempre que possível. A sra. Devereaux, infelizmente, faleceu no ano passado.
Eu estava na Europa na época e só fiquei sabendo da notícia meses depois.
— Gostaria de saber o que Etienne quer com você — comentou Garrett,
intrigado. — Por que você não vai até lá agora?
— É o que pretendo fazer. Vocês me dão licença?
— Mas é claro que sim. Seja lá o que for, deve ser mesmo muito urgente.
Jesse se levantou.
— Bem, vou me preparar para a partida. Garrett, pretendo deixar a
fazenda sob os cuidados de Vulcan, mas, se alguma coisa acontecer e ele não
for capaz de resolver, será que você...
— Claro que sim, irmão. Virei aqui todos os dias, embora tenha a
impressão de que não haverá nada para eu fazer. Esses dois irmãos não
podiam ser mais espertos e inteligentes. Agora, acho melhor você se apressar.
O velho Etienne deve estar mesmo muito mal.
Garrett observou Jesse desaparecer no interior da casa e virou-se para a
mulher.
— Às vezes, eu fico preocupado com Jesse. Sete longos anos já se
passaram desde a morte de Deirdre... e ele ainda não se interessou de verdade
por nenhuma outra mulher. Bem, é claro que companhia feminina não lhe
falta, mas...
— ... Mas ele só tem casos passageiros e nunca mais pensou em se
casar.
— Exatamente. Seu namoro com Deirdre pode ter sido breve, mas ele foi
apaixonado por ela e talvez, até hoje, não tenha se recuperado da dor da
perda.
— Como era essa moça, Garrett?
O irmão de Jesse deu um suspiro.
— Um raio de sol. Deirdre era linda, meiga e doce. Acho que só conheci
uma mulher que fosse mais bonita do que ela: você.
Christie sorriu ao ouvir o elogio e deitou a cabeça no ombro do marido.
— Será que, um dia, Jesse encontrará alguém que substitua Deirdre em
seu coração?
— Eu não sei, Christie querida. Não sei mesmo.

CAPÍTULO SEIS

A primeira impressão que Jesse Randall teve do palácio da família


Devereaux, uma propriedade conhecida por Le Beau Château, foi que nada
tinha mudado desde a última vez em que lá estivera, havia dois anos.
Localizado no alto de uma colina, a construção era uma réplica perfeita dos
castelos da região de Bordeaux, na França, onde o velho Etienne nascera e
passara a infância.
Agora, ao aproximar-se da imponente porta de carvalho, não pôde deixar
de sentir um aperto no coração. Fora ali que Deirdre, sua doce e meiga
Deirdre, a mulher com quem desejara passar o resto de seus dias, havia
nascido... e fechado os olhos para sempre.

24
Um empregado aproximou-se para recebê-lo. Jesse o reconheceu imedia-
tamente. Era Serge Montelle, um velho francês a serviço dos Devereaux havia
mais de três décadas.
— Olá, monsieur Randall — cumprimentou ele, com seu sotaque carre-
gado. — Que bom que veio. O senhor está sendo aguardado com ansiedade.
Jesse desceu de sua égua Cigana.
— Olá, Serge. Como vão as coisas por aqui?
— Infelizmente, não muito bem. Monsieur Devereaux está gravemente
enfermo e os médicos não sabem mais o que fazer. Todos nós estamos deses-
perados.
Jesse balançou a cabeça tristemente.
— Posso imaginar...
A pesada porta se abriu, dando passagem a uma mu-lher de meia-idade,
os cabelos grisalhos escondidos sob uma touca branca. Era Glória Delaney, a
dama de companhia de Aileen Devereaux trouxera da Irlanda na época de seu
casamento, vinte e cinco anos atrás.
— Boa tarde, sr. Randall. Tenha a bondade de entrar.
Jesse acenou com a cabeça para o velho Serge que levava Cigana para os
estábulos, então virou-se para a mulher.
— Boa tarde, sra. Delaney. É um prazer revê-la.
— Queira me acompanhar, por favor. Infelizmente, não temos nem um
momento a perder. O sr. Devereaux está muito mal.
— Claro.
Ele a seguiu através de longos corredores e grandes salões, até chegarem
a um quarto espaçoso, repleto de móveis em estilo Luís XV. Ao lado da enorme
cama no centro, havia uma figura toda vestida de preto, que Jesse reconheceu
imediatamente como sendo o frei Edouard, o padre da família.
— Entre, meu filho — pediu o velho religioso ao vê-lo. Então, abaixou a
cabeça e murmurou para o doente ali deitado. — Etienne, há alguém aqui que
quer vê-lo.
Dizendo isso, afastou-se e foi postar-se diante da lareira, mais adiante.
Jesse aproximou-se da cama, o ruído de seus passos abafados pelo
grosso tapete que forrava o chão. Não estava preparado para a voz débil que
chegou-lhe aos ouvidos.
— Brianna, minha querida... É você, enfante?
E menos preparado ainda para ver o rosto magro e pálido do moribundo
que tentava encará-lo.
— Não, meu amigo, sou eu, Jesse Randall.
O pobre doente pareceu se animar com a notícia.
— Ah, que bom que chegou antes dela, mon ami. O que eu tenho a lhe
dizer é muito importante e, como meu tempo é bastante curto...
— Que nada, Etienne. Você ainda vai viver muito e...
— Não, mon fils, não tente me enganar. Sempre fomos muito honestos
um com o outro, não é? — Ele deu um sorriso fraco. — Sei que estou
morrendo, mas isso não me deixa triste. Minha Aileen, com certeza, está à
minha espera no paraíso, de braços abertos... — Fez uma pausa, respirando
fundo para ganhar forças. Era evidente que só o ato de falar já lhe custava
muito. — Você sabe, meu filho, que eu teria dado tudo para tê-lo na família.
Quando Deirdre se foi, Aileen e eu sofremos duplamente porque, além de

25
perdê-la, sabíamos que também estávamos perdendo você.
Jesse sentiu um nó na garganta. Sabia do carinho que os pais de Deirdre
tinham por ele e o sentimento era recíproco. Não sabia explicar o motivo, mas
gostava dos Devereaux como se eles fossem sua família.
— Mas talvez — continuou o velho — ainda haja um jeito de ligá-lo a nós,
embora eu não vá estar aqui para ver os acontecimentos...
Mais adiante, Jesse ouviu o frei Edouard recitando as palavras em latim
da hora final:
— Ed cum spiritu tuo...
— Tome conta dela, meu filho. Por favor, tome bem conta dela... —
sussurrou Etienne Devereaux e então, com um ar de esperança no rosto,
fechou os olhos para sempre.
— Etienne? — chamou Jesse, já sabendo que não iria receber nenhuma
resposta.
Afastou-se ligeiramente da cama, as palavras do velho francês ainda
ecoando em sua mente, quando um homem de aparência distinta,
provavelmente o médico da família, entrou no quarto correndo. Examinou o
paciente e, vi-rando-se para o frei Edouard, balançou a cabeça tristemente. O
religioso fez o sinal da cruz e continuou a recitar suas orações em latim.
Jesse deixou o quarto, sentindo uma enorme sensação de vazio dentro da
alma. Etienne Devereaux estava morto. Era como se, pela segunda vez,
estivesse ficando órfão de seu pai. Mais adiante, recostada numa parede,
Glória Delaney, soluçava baixinho.
De súbito ouviu-se um grito horrível, vindo aparentemente do hall de
entrada do palácio. Momentos depois, uma figura vestida de verde despontava
no início do corredor, os cabelos úmidos por causa da chuva que havia
começado a cair.
— Papai! Espere por mim! Você ainda não pode ir embora!
Era Brianna Devereaux, que acabava de voltar para casa.
Entrou no quarto correndo, as paredes vibrando com sua voz
desesperada.
— Não vá embora, papai! Não vá! Não vá!
Atirou-se em cima do corpo imóvel estendido na cama, os soluços cada
vez mais desesperados. Gentilmente, o frei Edouard, que a vira nascer, a
tomou nos braços e fez com que ela se afastasse da cama.
— Não fique triste, minha filha. Finalmente, seu pai, sua mãe e sua
amada irmã Deirdre estão juntos de novo.

CAPÍTULO SETE

O tique-taque lento e pausado do enorme relógio da biblioteca do terceiro


andar contrastava com o ritmo forte e intenso da chuva que caía lá fora.
Jesse olhava pela janela, as costas viradas para a sala. Georges Simpson,
o advogado dos Devereaux, havia chegado logo após a dramática cena no
quarto, e pedido para que ele o esperasse ali. Agora, olhando para o imenso
jardim florido coberto pelas águas, sentia-se satisfeito por poder passar alguns
momentos a sós, a fim de refletir sobre os últimos acontecimentos.
Ela era mais alta, e os olhos, verdes em vez de castanhos. De qualquer
modo, eram bastante parecidas e...

26
Jesse fechou os olhos, tentando pensar em outra coisa. Mesmo após sete
longos anos, a dor ainda não havia desaparecido por completo.
Etienne Devereaux. A morte de seu velho amigo mexera demais com suas
emoções... mas além daquilo, havia as estranhas palavras pronunciadas na
hora final. O que ele quisera dizer com "talvez ainda haja um jeito de ligá-lo a
nós, embora eu não vá estar aqui para ver os acontecimento..."? E quem era a
pessoa de quem deveria cuidar? Quanto mistério...
— Ah, sr. Randall, peço desculpas por tê-lo mantido à minha espera. —
Era o advogado Georges Simpson que entrava na biblioteca. — Sente-se, por
favor, que o Frei Edouard não deve demorar a chegar.
Jesse virou-se para o recém-chegado.
— Frei Edouard também vai participar desta conversa?
— Sim. Ele virá para cá assim que tiver acabado de confortar a pobre
órfã.
— A órfã... — murmurou Jesse. — a filha caçula, aquela que estava na
França, não é?
— Exatamente. Brianna Devereaux. A pobrezinha deve ter levado um
choque muito grande.
— Sem dúvida. Ela passou todos esses anos num colégio interno, não é?
O advogado fez que sim com a cabeça.
— Seus pais a mandaram para lá porque não conseguiam educá-la.
Uma criança rebelde e malcriada, desde que aprendeu a falar. Como pode
perceber, o exato oposto da irmã, que era a criatura mais doce do mundo...
Ansioso para mudar de assunto, Jesse tirou duas cigarrilhas do bolso e
ofereceu uma delas ao homem à sua frente, que aceitou-a imediatamente.
Então, respirou fundo e fez a pergunta que não parava de martelar em sua
cabeça.
— O que está acontecendo, Georges? Antes de fechar os olhos para
sempre, Etienne me disse algumas coisas muito estranhas...
O advogado acendeu a cigarrilha num castiçal.
— Peço um pouco de paciência, senhor. Assim que o bom frei Edouard
chegar, todas as suas dúvidas serão esclarecidas.
Jesse virou-se novamente para a janela e observou a chuva cair lá fora.
Estava começando a ficar nervoso.
Momentos depois, a porta se abriu e o religioso entrou, os olhos um
pouco vermelhos.
— Desculpem a demora, senhores. É que a caçulinha da família estava
precisando de muito consolo... — Aproximou-se de Jesse e lhe deu um sorriso.
— É um prazer vê-lo de novo, meu jovem, embora a ocasião seja de tanta
tristeza. Seja bem-vindo mais uma vez a Le Beau Château. Você fez falta por
aqui, bem mais do que possa imaginar.
Os três se acomodaram num enorme sofá em frente à lareira de mármore
de Carrara, que um empregado acendera há pouco a fim de espantar a
umidade trazida pela chuva.
— Obrigada, frei — agradeceu Jesse, dando uma tragada em sua
cigarrilha. — Olhe, eu não quero parecer impaciente, mas acho que há algo de
muito estranho acontecendo por aqui e, como Simpson me disse que o senhor
poderia esclarecer tudo, gostaria que...
— Ah! — interrompeu o religioso, levantando uma sobrancelha e virando-

27
se para o advogado. — George, acho que você se equivocou... Infelizmente, nós
dois, de acordo com a última vontade de Etienne, estamos proibidos de falar
qualquer coisa até a leitura do testamento e, já que o enterro será realizado
depois de amanhã...
— Depois de amanhã! — exclamou Simpson. — Mas, e o corpo? Estamos
no final do verão!
O bom frei tratou de desfazer a preocupação do advogado com um aceno
de mão.
— Tudo já foi providenciado, George. Há bastante gelo estocado no
armazém do sub-solo. Um mensageiro já foi enviado para avisar os parentes e
amigos, que deverão estar aqui na hora das cerimônias fúnebres.
Jesse concordou com a cabeça.
— Muito bem, bon père, mas ao menos será que o senhor poderia me
dizer o que eu tenho a ver com o testamento de Etienne? Jamais pretendi
aceitar qualquer bem do meu velho amigo e...
— Meu caro Jesse — interrompeu o padre novamente. — Eu tinha
certeza absoluta de que sua reação seria essa. Bem, uma coisa posso lhe
adiantar. Sim, você foi citado no testamento e terá de estar presente à leitura,
logo após o funeral. E não, você não ficará com algum bem de Etienne... — O
velho religioso fez uma pausa, como se estivesse analisando suas palavras. —
Bem, pelo menos não ficará com nenhum bem material...
— Mas então, por que...
— Calma, meu filho. Com o tempo, ficará sabendo de tudo. Seja paciente,
eu lhe imploro. Dentro de dois dias, tudo estará esclarecido.
Jesse levantou as duas mãos.
— Bem, acho que não tenho escolha, não é? Olhe, acho que tive uma
idéia. Como o enterro só vai ocorrer daqui a dois dias, vou aproveitar para ir a
Colúmbia, amanhã de manhã. O governador Pinckney quer falar comigo. Creio
que essa pequena viagem não chegue a atrapalhar os preparativos da
cerimônia, não é?
Por um breve instante, Jesse pensou ter visto um ar de desapontamento
no rosto do padre. Estaria enganado?
— Não, não, claro que não. Pode ir. Quer dizer que o governador quer
falar com você, não é? Engraçado... Pensei que não se interessasse por
política.
— E não me interesso mesmo, mon père. De qualquer modo, se Pinckney
mostrou interesse em me ver, não posso deixar de atender seu pedido. — Jesse
se levantou. — Bem, cavalheiros, estou muito cansado. Se não se in-
comodarem, gostaria de descansar um pouco.
— Ora, mas é claro — disse frei Edouard. — Você poderá ocupar o
mesmo quarto de hóspedes que os Devereaux costumavam lhe reservar,
sempre que vinha visitá-los. Vou pedir para que alguém o acompanhe até lá.
Ambos estavam caminhando em direção à porta, quando esta se abriu
dando passagem a um homem alto e moreno, que Jesse nunca tinha visto
antes. Vestia-se com roupas caras e tinha cabelos fartos muito bem penteados.
O padre balançou a cabeça.
— Olá, Honoré. Estava tentando adivinhar quando é que iria aparecer. —
Virou-se para Jesse. — Jesse Randall, gostaria de lhe apresentar...
— Sou Honoré Dumaine, senhor — disse o estranho, interrompendo o

28
religioso. Havia um sorriso irônico em seus lábios. — E tenho motivos para
suspeitar que sou o único, e bastardo, filho de Etienne Devereaux.
— Como vai, Dumaine? — cumprimentou Jesse, com um aceno de
cabeça. Então, virou-se para o padre. — Pode deixar que eu acho o caminho do
quarto de hóspedes, mon père.
Ambos observaram o bastardo entrar na biblioteca e aproximar-se do
advogado. O padre, visivelmente aborrecido, deu um suspiro e voltou a atenção
a Jesse.
— Ah, estamos com sorte. Aí vem a moça que poderá acompanhá-lo a
seu quarto.
A moça em questão era Aimée, que tinha acabado de colocar Brianna na
cama, após servir-lhe uma xícara de chá de ervas, receitado pelo médico.
Frei Edouard colocou a mão em seu ombro.
— Por favor, minha filha, acompanhe esse cavalheiro até o quarto de
hóspedes. É a última porta, no final desse corredor.
— Oui, mon père.
Foi quando Aimée olhou para o homem o qual deveria acompanhar. E
sentiu que o mundo começava a rodar à sua volta. O deus americano que vira
no Cisne Negro! Não era possível! O que ele estaria fazendo ali? Abaixou a
cabeça completamente embaraçada.
— Hã... venha comigo, monsieur.
Jesse despediu-se do padre e seguiu a moça aos seus aposentos.
Pouco depois, ele estava confortavelmente instalado no quarto de
hóspedes. Enquanto esperava o banho que a garota francesa lhe preparava,
espreguiçou-se diante da lareira acesa que mantinha o ambiente agradavel-
mente aquecido. Lá fora a chuva continuava a cair com força. Olhou em volta e
percebeu que nada havia mudado desde que estivera ali, pela última vez. Era
um quarto bem masculino decorado em tons de azul e cinza.
Tomou um gole do conhaque que um copeiro havia lhe servido. Por que
Etienne Devereaux o havia citado em seu testamento? E que segredo o frei
Edouard estaria guardando?
Fato estranho também havia sido a aparição daquele tal de Honoré
Dumaine. Tinha certeza absoluta de que seu velho amigo francês jamais
mencionara a existência de um filho. Bem, talvez tal omissão se devesse à
ilegitimidade do rapaz. Os Devereaux não seriam os únicos a esconder um
filho nascido fora dos laços sagrados do matrimónio.
Tomou outro gole de conhaque, apreciando sua quali-dade. Certamente a
bebida viera da França, como quase tudo naquele palácio.
Pensou na filha caçula de Etienne, a jovem Brianna. Vira a garota de
relance no quarto do pai agonizante, mas, mesmo assim, reparara na sua
beleza. Uma criança rebelde, desde que aprendeu a falar, dissera Georges
Simpson. Sorriu para si mesmo. As pobres freiras de Paris deviam ter tido
muito trabalho com ela.
Recostou a cabeça na poltrona, tentando se concentrar na viagem do dia
seguinte. Droga. Se James Carlisle não tivesse intercedido pessoalmente, teria
mandado o governador para o inferno. Detestava política e as intrigas e
falsidades daquele meio. O que será que Pinckney queria com ele? Bem, seja lá
o que fosse, pretendia escutá-lo com atenção, dar um jeito de esquivar-se de
qualquer compromisso sério e voltar o quanto antes a sua casa recém-

29
construída. Aquela fazenda era o seu lugar.
Uma batida na porta interrompeu seus pensamentos.
— Sim?
— Seu banho está pronto, monsieur — soou uma voz com carregado
sotaque francês.
Ele se levantou, espreguiçando-se de novo.
— Obrigado. Já estou indo.

CAPÍTULO OITO

Esquivando-se do sol forte do meio dia, Jesse Randall virou a cabeça da


égua Cigana em direção à Sede do governo da Carolina do Sul. Uma cons -
trução um tanto modesta, havia sido erguida no ano de 1786, quando a cidade
de Colúmbia fora escolhida para ser a nova capital do estado, em lugar da
aristocrática Charleston.
Trinta minutos depois, ele era conduzido ao gabinete do governador
Pinckney, que parecia aguardá-lo com ansiedade.
— Sr. Randall, muito obrigado por ter vindo. Fez uma boa viagem?
— Fiz sim, obrigado — respondeu Jesse, achando que aquele tipo de
conversa amena era mesmo o único jeito de iniciar uma negociação
complicada. É isso mesmo, governador. Mantenha as coisas nesse nível por
enquanto. Precisamos de tempo para nos acostumar um com o outro. —
Minha égua Cigana é excelente.
— Ah, sim, mas é claro. Vocês, os Randall, têm fama de possuir
belíssimos cavalos. Os melhores do estado, talvez de todo o país.
Bom, muito bom, meu caro. Elogie bastante o homem ao qual está
prestes a pedir alguma coisa.
— O senhor é muito gentil, governador.
— Bem, vamos nos sentar. Aceita alguma coisa? Um refresco, talvez? Ou
algo mais forte?
Jesse acomodòu-se no sofá que o homem lhe indicava.
Invencível Paixão
— Não, muito obrigado.
O governador sentou-se numa poltrona ali ao lado.
— Bem, o senhor deve estar se perguntando o porquê de eu ter lhe
pedido para vir até aqui. Por isso, gostaria de ir direto ao assunto.
Jesse respirou fundo.
— Pois não governador.
— Meus auxiliares e eu estamos precisando de sua ajuda. Ficaríamos
muito gratos se fosse para a Virgínia como nosso emissário, a fim de persuadir
Thomas Jef-ferson a não entregar seu cargo de secretário de Estado.
Ele não esperava por aquilo.
— Quer dizer que Jefferson está mesmo querendo entregar o cargo? Tem
certeza?
— Certeza absoluta. Meus informantes me disseram que o secretário está
tão aborrecido por causa das diferenças com Hamilton, que até chegou a
escrever o rascunho de sua carta de demissão.
Jesse mexeu-se no sofá, sentindo-se desconfortável.
— O que o fez achar que eu tenho a força necessária para fazer com que

30
Jefferson desista de seus planos?
O governador sorriu. Estava esperando por aquela pergunta.
— O senhor pertence a uma das melhores famílias desse país. É um
jovem brilhante e capaz, conhecido por suas habilidades diplomáticas. O
senhor poderia ser o portador de várias cartas escritas pelos homens mais
ricos e influentes dessa região, todas elas oferecendo-lhe apoio e solidariedade.
Tenho certeza de que Thomas Jefferson teria um enorme prazer em recebê-lo.
Jesse ficou pensativo durante alguns instantes, então resolveu
perguntar:
— Governador, por que tanto interesse na permanência de Thomas
Jefferson como secretário de Estado, se o senhor sempre foi um federalista?
Era evidente que Pinckney não estava preparado para um ataque tão
frontal. Levantou-se e, tirando um cachimbo do bolso, começou a andar de um
lado para o outro.
— Randall, posso lhe chamar assim, não é?, você está sendo muito direto
comigo e, goste ou não do fato, não posso deixar de admirar seu estilo. —
Parou de andar e olhou bem dentro dos olhos de Jesse. — Por isso, vou fazer
uma coisa que nunca fiz antes. Falar de assuntos pessoais, com alguém que
não seja da minha família.
Ele voltou a sentar-se, acendeu o cachimbo e continuou a falar, os olhos
fixos no rosto de Jesse.
— Sim, é verdade que, até há muito pouco tempo, eu fui um federalista.
E por que não deveria ser? Como proprietário de terras e inúmeros outros
bens, sempre tive interesse em investir num governo federal forte e
centralizado. — O governador fez uma pausa. — Mas, há menos que um ano,
meu primo e eu fizemos uma viagem juntos a Filadélfia e a Nova York.
Conversamos com muita gente, inclusive com o próprio presidente. E fiquei
absolutamente encantado com o que vi. Ah, Randall, o progresso... A
mentalidade do povo do norte é completamente diferente da nossa. Eles já
estão voltados para o futuro. É como se estivessem preparando o país para
uma nova era... — O governador fez uma pausa. — E nós, aqui do sul, ainda
nos comportamos como se estivéssemos no começo do século. Thomas
Jefferson e suas ideias avançadas são a esperança da América, meu jovem. É
por isso que ele não deve entregar seu cargo de secretário de Estado.
Fez-se um longo momento de silêncio, quebrado apenas pelo
tiquetaquear de um enorme relógio em cima da lareira. Então, numa fração de
segundos, Jesse Randall tomou sua decisão. A saída de Thomas Jefferson do
governo seria desastrosa para a América. Além disso, Jesse sempre sentira
muita curiosidade de conhecê-lo.
— Muito bem, senhor. Eu irei ao estado da Virgínia. O governador
Pinckney, parecendo aliviado, abriu-se num largo sorriso.
— Muito obrigado, amigo.
Ambos continuaram a conversar a respeito de detalhes da viagem,
quando ouviu-se uma batida na porta.
— Pode entrar — disse o governador, visivelmente aborrecido com a
interrupção.
A porta abriu-se e Honoré Dumaine entrou.
— Ah, é você, Dumaine. — Pinckney aproximou-se dele. — Quero lhe
apresentar o homem do qual lhe falei, o sr. Jesse Randall.

31
O recém-chegado deu um sorriso que nem chegou a seus olhos.
— Nós já nos conhecemos.
Surpreso com a novidade, Pinckney olhou para Jesse, que tratou de
explicar:
— Estou hospedado na casa de Etienne Devereaux, que tem... tinha
relações com o sr. Dumaine.
— Devereaux... ah, sim, soube da notícia essa manhã. Pobrezinho. Pelo
que eu me lembre, ele não era tão velho assim. Eu acho que...
Com sua voz impaciente, Honoré o interrompeu:
— Seu secretário me disse que o senhor queria me ver, governador.
Estou às suas ordens.
Pinckney franziu a testa, aborrecido com o jeito brusco do homem.
— Ah, certo. Eu queria que conhecesse o sr. Randall, para que não
fossem completos estranhos quando embarcassem juntos para a Virgínia...
quero dizer, agora que você concordou em ir. Bem, mas como já se
conheciam... Pode ir, Dumaine. Falo com você mais tarde, está bem?
Como era evidente que estava sendo dispensado, Honoré fez uma mesura
e saiu da sala.
— Sujeito estranho — comentou o governador, observando-o se afastar.
— Você o conhece bem?
— Não. Eu o vi ontem de relance, no palácio dos Devereaux. Engraçado
que Etienne nunca mencionou o seu nome, durante todos esses anos de
amizade.
— Isso não me causa surpresa. O boato que corre é que Etienne
engravidou uma prima distante, que acabou cometendo suicídio logo após o
nascimento do filho. Parece que ele já tinha se casado com Aileen na época...
Bem, você sabe como essas histórias correm. De qualquer maneira, se existe
um homem estranho nesse mundo, esse alguém é Honoré Dumaine. Às vezes
fico tão irritado com ele, que sinto vontade de esganá-lo. O problema é que foi
um grande amigo meu que o recomendou e eu fico sem saber como me livrar
do sujeito. Bem, mas pode ser que ele lhe seja útil na viagem. Apesar de
esquisito, uma coisa não se pode negar. O homem é um trabalhador
incansável.
Momentos depois, Jesse Randall despedia-se do governador, com a
promessa de que voltaria à sede do governo dentro de alguns dias, a fim de
marcar a data da partida.
Assim que o visitante saiu da sala, o governador Pinckney abriu-se num
largo sorriso. Fizera a escolha certa. O jovem Jesse Randall havia sido a
escolha perfeita para o que tinha em mente.

CAPÍTULO NOVE

O sol começava a se pôr, tingindo o céu rcom suas cores vívidas, quando
Jesse atravessou os portões do palácio dos Devereaux e dirigiu-se aos
estábulos. Pela vigésima vez, desde que deixara a capital, pensou nos
acontecimentos e nas revelações daqueles dois últimos dias.
Pinckney. Ainda não tinha certeza das reais intenções do governador,
mas a curiosidade no assunto o convencera a participar do caso. Não sabia se
seria capaz de convencer um homem como Thomas Jefferson do que quer que

32
fosse, mas não custava tentar.
Também havia o tal do Honoré Dumaine, o filho bastardo. Por que tinha
a impressão de que ele não era confiável? E por que, durante todos aqueles
anos, não houvera uma só palavra a seu respeito? Que Etienne houvesse
evitado o assunto, podia compreender. Mas... e os outros membros da família?
Nem frei Edouard, nem o advogado Georges Simpson, muito menos os
empregados jamais deixaram escapar algo sobre a existência do rapaz. Mesmo
ele morando na região. Muito estranho para dizer o mínimo.
E finalmente, havia o testamento de Etienne. Pelo que pudera entender,
ele iria ser citado e deveria estar presente na hora da leitura. Por que frei
Edouard e o advogado da família estavam tão misteriosos e reticentes?
Bem que Jesse Randall gostaria de ter as respostas.
Anoitecia quando Brianna conduziu o garanhão favorito de seu pai, o
premiado Le Duc, aos estábulos do palácio. Havia sido bom cavalgar pela
imensa propriedade dos Devereaux, com seus bosques e campinas tão frescos
por causa da chuva do dia anterior. Ah, como sentira falta daquela paisagem
mágica, onde passara a primeira infância...
Momentos depois, deixava o animal em sua baia e estava saindo dos
estábulos quando ouviu, mais do que avistou, um cavaleiro se aproximar das
portas abertas. Tentando adivinhar quem seria o recém-chegado, deu dois
passos à frente e observou-o desmontar de sua égua.
Não era possível. Ela só podia estar sonhando. O "deus" .americano que
conhecera no Cisne Negro! Mas o que aquele homem estaria fazendo ali? Por
um momento insano, pensou em se esconder, mas então percebeu que não
tinha outra alternativa a não ser enfrentar a situação. Afinal, era provável que
ele nem a reconhecesse.
Percebendo a presença de alguém naquele estábulo escuro, Jesse olhou
em volta.
— Olá, quem está aí? É você, Serge?
Sem fazer barulho, uma sombra apareceu em seu campo de visão. Era a
filha caçula de Etienne, Brianna Devereaux.
— Acho que Serge já se recolheu — disse ela, com sua voz suave. — Quer
que eu mande chamá-lo?
Jesse não respondeu de imediato. Ficou ali, parado, observando a linda
jovem à sua frente. Seus cabelos eram longos, da cor do cobre, os olhos muito
verdes, e o rosto de uma beleza excepcional. E o corpo, então?! Provocante,
sensual, parecia encerrar uma porção de doces promessas.
— Não, obrigado — ele respondeu por fim. — Não será preciso. Eu
mesmo costumo guardar meu cavalo. Como está se sentindo no dia de hoje,
mademoiselle Devereaux?
Brianna deu um suspiro de alívio. Graças a Deus ele não a reconhecera
do hotel. O engraçado, porém, era que sabia seu nome.
— Nós já nos conhecemos, senhor?
Jesse sorriu e deu um passo à frente.
— Sim, mas não a culpo se não se lembrar. Nós nos vimos num péssimo
momento... ontem, no quarto de seu pai. Gostaria de me apresentar. Sou Jesse
Randall, um grande amigo de seus pais... e, no passado, de sua irmã também.
Enquanto falava, Jesse percebeu que não tirava os olhos de sua boca.
Jamais conhecera lábios tão sensuais na vida. Era estranho, mas podia jurar

33
que já vira aquele rosto antes...
Enquanto o "deus" americano falava, Brianna percebeu que,
inexplicavelmente, seus joelhos ficavam trémulos. Não precisava se preocupar.
Ele não a tinha reconhecido. Então por que estava tão nervosa, a ponto de não
conseguir se controlar? Será que precisava falar alguma coisa? Ele havia lhe
feito alguma pergunta? Ela já não mais sabia dizer. A única certeza que tinha
era das batidas descompassadas de seu coração.
Jesse estava confuso. Aquela moça era a irmã de Deirdre, o grande amor
de sua vida, e, por um instante, foi o rosto da amada que viu à sua frente,
fazendo com que as lembranças voltassem a assombrá-lo, como se fossem
fantasmas.
Então, sem conseguir se controlar mais, fez uma coisa da qual iria se
arrepender amargamente durante muitos e muitos dias. Abaixou a cabeça e,
cobrindo os lábios da moça com os seus, enlaçou-lhe a cintura, abraçando-a
com força.
A primeira reação de Brianna foi a de absoluta incredulidade. Não era
possível que tamanho absurdo estivesse ocorrendo. Então, uma raiva enorme
tomou conta dela. E outro sentimento também: medo. Estava ali, sozinha
naquele estábulo com um homem desconhecido que havia acabado de agarrá-
la.
Mon Dieu! Ainda vou ser estuprada aqui nesse chão de feno, um dia
depois da morte do meu pai!
Tal pensamento lhe deu forças para reagir e ela começou a se debater
com desespero. Jesse Randall largou-a imediatamente.
— Peço um milhão de desculpas, mademoiselle Devereaux. — Respirou
fundo, tentando explicar algo que nem ele próprio conseguia entender. — Acho
que perdi a cabeça e...
— Bâtard ! — ela exclamou em francês, finalmente achando forças para
falar. — Sedutor de garotas indefesas! Covarde!
E, virando as costas, saiu correndo dali.
Em silêncio, Jesse observou-a ir, tentando controlar suas emoções.
Finalmente, passou a mão pelos cabelos e murmurou:
— Meu Deus, o que foi que eu fiz?
Brianna entrou em seu quarto, dando graças a Deus por não ter
encontrado ninguém durante o percurso. Ainda trémula, dirigiu-se ao terraço
a fim de tomar um pouco de ar. O perfume das flores chegou-lhe às narinas,
acalmando ligeiramente seus nervos em frangalhos. Ao longe, um cachorro
começou a latir.
Pensou em Jesse Randall. Quem era aquele homem? Ele dissera
qualquer coisa a respeito de ser muito amigo de seus pais, de Deirdre e...
Então, numa fração de segundo, ela compreendeu tudo. Claro! Como não
percebera aquilo antes? Jesse Randall era o homem que ia se casar com sua
irmã! Agora, tudo lhe vinha à mente com uma clareza impressionante. Lem-
brava-se de uma tarde no colégio, quando o carteiro lhe entregara uma carta
de Deirdre, onde ela lhe falava do homem maravilhoso que tinha conhecido e
com o qual pretendia se casar.
Lentamente, Brianna voltou ao quarto e deitou-se na cama. "Você precisa
conhecê-lo, mon coeur", Deirdre havia escrito, "ele é o homem mais bonito, mais
doce e mais gentil que existe. Eu o amo tanto, que acho que vou explodir de

34
felicidade."
Só que sua irmã não sabia o quanto se enganara. Gentil? Doce? Aquele
estuprador barato? Tudo bem, ele podia ser bonito, muito bonito, se quisesse
ser sincera, mas suas qualidades terminaram por aí.
De súbito, uma dor profunda e aguda invadiu-lhe a alma, lembranças
antigas voltando-lhe à mente. O ressentimento, enterrado nas profundezas de
seu ser, subiu a tona, fazendo com que ela se recordasse da angústia sentida
quando criança, sabendo que havia sido mandada para longe enquanto que
Deirdre recebia permissão para ficar em casa. Não que não amasse a irmã. Ela
simplesmente a idolatrava e passara anos de sua vida desejando imitá-la.
Entretanto, por mais que se esforçasse, jamais conseguira atingir seu intento.
Ah, mamãe! Ah, papai! Por que não me deixaram ficar aqui, a seu lado?
Agora, vocês partiram para sempre e aqui estou eu, completamente sozinha no
mundo...
Ela começou a chorar, soluços altos sacudindo seu corpo, e, uma hora
depois, quando Aimée entrou no quarto escuro, encontrou-a adormecida, o
rosto ainda molhado das lágrimas.

CAPÍTULO DEZ

O ar na biblioteca estava quente e pesado, apesar de todas as janelas


estarem abertas a fim de espantar o calor de agosto. Também, não era para
menos. Devia haver pelo menos quarenta pessoas ali dentro.
Brianna olhou em volta. Passara tantos anos fora do país, que não
conhecia muitos dos presentes reunidos naquela sala para ouvir a leitura do
testamento de seu pai.
A porta se abriu e o advogado Georges Simpson entrou, carregando uma
enorme pasta cheia de papéis. Atrás dele, vinham frei Edouard... e Jesse
Randall.
O "deus" americano vestia preto, como todos os outros que haviam
assistido às cerimónias fúnebres. E como estava bonito e atraente! Ele era,
sem sombra de dúvida, o homem mais impressionante que já conhecera. Pare
com isso, ordenou a si mesma, esse tal de Jesse Randall é desprezível. Trate de
esquecê-lo.
Observou-o disfarçadamente ocupar uma poltrona vaga e virou-se para
frei Edouard, que se aproximava dela.
— Brianna, ma chère, como está se sentindo, enfante? Se houver alguma
coisa que eu possa fazer para ajudá-la nesse momento tão difícil de sua vida...
Ela forçou um sorriso.
— O senhor já fez muito, frei Edouard. Jamais vou me esquecer das
lindas palavras de conforto que disse na hora do sermão. Mas, de qualquer
maneira, agradeceria se ficasse aqui ao meu lado, até o final da leitura. O
religioso tomou a mão dela nas suas e apertou-a com força.
— É claro que eu fico, ma petite. Coragem, Brianna. Daqui a pouco,
tudo estará acabado.
Georges Simpson ocupou seu lugar atrás de uma escrivaninha e,
limpando a garganta, conseguiu ganhar a atenção de todos na sala. O silêncio
que caiu foi tão grande, que até o tique-taque do relógio de parede pôde ser
ouvido.

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— Senhores e senhoras, estamos aqui reunidos para a leitura do
testamento de Etienne Alexandre Dumaine Devereaux, cujo corpo acabou de
ser enterrado e cuja alma encontra-se junto ao Senhor Todo-Poderoso. Deverei
ler o texto em minhas mãos exatamente como me foi ditado, sem adicionar ou
subtrair qualquer palavra. Peço não ser interrompido durante os trabalhos.
Todas as dúvidas e perguntas que surgirem serão respondidas ao final. Está
bem claro?
Recebendo vários acenos de cabeça como resposta, o advogado iniciou a
leitura do texto, cujos primeiros parágrafos tratavam dos bens deixados para
os empregados.
— Para Glória Delany, a dama-de-companhia que minha amada Aileen
trouxe da Irlanda, deixo uma fazenda nos arredores da cidade, a quantia de
mil dólares americanos por ano, mais um aumento de cinquenta por cento em
seu salário mensal.
Ouviu-se um murmúrio vindo dos fundos da biblioteca, onde estavam os
empregados.
— Para Prenshaw, meu mordomo inglês... Brianna tentava localizar cada
empregado, assim que
seu nome era mencionado. Não conhecia o tal Prenshaw. Com certeza
fora contratado enquanto ela estava na França. Curioso seu pai escolher um
inglês como mordomo, quando todos os que trabalhavam para os Devereaux
eram franceses ou irlandeses.
— Para Villiers, meu incansável jardineiro, deixo a quantia de três mil
dólares americanos...
Os olhos de Brianna continuavam a passear pela biblioteca, quando
finalmente avistou Honoré Dumaine sentado numa cadeira. Seu meio-irmão!
Jamais gostara dele. Na verdade, só o vira poucas vezes, mas ele fizera questão
de ser extremamente indelicado e antipático em todas as ocasiões em que se
aproximara dela e de Deirdre.
— ...para minha muito amada filha Brianna Marie Liscarroll
Devereaux...
Ao ouvir seu nome, ela voltou imediatamente a atenção ao advogado
Georges Simpson.
— ...deixo todos os meus bens que incluem 120 mil acres de terra
produtiva, cinco fazendas, cavalos de raça, milhares de cabeças de gado, o
palácio da família conhecido por Le Beau Château e toda a sua mobília, mais a
quantia de um milhão de libras inglesas, depositada no Banco da Inglaterra.
Ela, e só ela, deverá herdar toda a minha fortuna, com a seguinte condição.
Ouviu-se um murmúrio vindo dos quatro cantos da sala e Brianna
segurou a mão de frei Edouard, sentado a seu lado.
— Com a seguinte condição — repetiu o advogado. — Que ela se case até
o dia trinta e um de dezembro de 1792 e, enquanto isso, concorde em ficar sob
a tutela do sr. Jesse Randall, ex-noivo de minha finada filha Deirdre Alice, que
deve, juntamente com Père Edouard Gérard, auxiliá-la na tarefa de escolher
um marido que a ame e respeite.
Os murmúrios ficaram ainda mais intensos. Brianna levou a mão na
boca. Honoré não conseguiu conter uma exclamação de raiva, mas o advogado
ignorou tudo aquilo e continuou:
— Caso ela se negue a obedecer minhas ordens, ficará apenas com Le

36
Beau Château, mais a quantia de mil dólares americanos por ano, e o resto de
meus bens irá para Honpré Dumaine, provavelmente meu filho ilegítimo, que,
por outro lado, já recebeu sua cota de herança, na forma de cem mil dólares
que lhe dei de presente no ultimo Natal.
O advogado continuou a falar, mas Brianna não conseguira ouvir mais
nada. Estava tão tonta, que mal percebeu quando Honoré deixou a biblioteca,
gritando:
— Eu sou o filho de Etienne Devereaux! Seu único filho homem! Não vou
me contentar com algumas migalhas! Pela honra de minha mãe, ele, me deve
muito!
A confusão estava armada. Como a leitura já tivesse chegado ao fim, o
dr. Simpson pediu para que todos se retirassem, com exceção de Brianna,
Jesse e frei Edouard. Quando finalmente a paz voltou a reinar ali dentro,
Brianna olhou para o padre, os olhos cheios de lágrimas.
— Por quê? Por que ele fez isso comigo? Mon Dieu, frei Edouard, meu
pai devia me odiar...
— Que nada, ma petite. Ele te amava muito e...
— Amava! Ora, frei, isso é ridículo! Como é que um pai que ama sua filha
de verdade pode mandá-la para o outro lado do mundo a fim de que seja
criada por um bando de estranhos?
Jesse Randall e Georges Simpson aproximaram-se dela, o rosto cheio de
piedade. O advogado tentou encostar a mão em seu ombro, mas ela esquivou-
se do toque e continuou, a voz ainda mais furiosa.
— Não só fui obrigada a assistir a morte de minha família toda do outro
lado do mundo, como também, agora que volto para casa, recebo a notícia de
que sou obrigada a me casar até dezembro próximo! Isso não é absolutamente
ridículo, como também impossível! Não conheço ninguém por aqui! Como vou
arranjar um marido em quatro meses?
O advogado limpou a garganta.
— Sei que é muito difícil, srta. Devereaux, mas tente entender. Esse
testamento foi escrito em janeiro, quando a saúde de seu pai começou a
declinar com uma velocidade espantosa. Na época, nós achamos...
— Que Deus o levaria a qualquer momento — completou o padre. — Ele
acabou melhorando ligeiramente depois disso, mas nunca mais teve condições
de alterar a data em questão.
— Podemos conversar melhor sobre isso durante o jantar de hoje à noite
— ofereceu o advogado. — Tenho certeza de que conseguiremos pensar em
algo e...
— Jantar! — exclamou Brianna, cada vez mais zangada. — Meu mundo
está desmoronando e vocês pensam em comida? — Levantou-se, correu para a
porta e, antes de sair da biblioteca, ainda gritou: — E quero lhe dizer uma
coisa! Ainda sou muito jovem para me casar!
Quando a porta se fechou atrás dela, frei Edouard balançou a cabeça
tristemente.
— Pobre criança... Eu já desconfiava que ela fosse reagir dessa maneira...
— Virou-se para Jesse. — Mas e você, meu filho? Pretende aceitar a difícil
missão que lhe foi praticamente imposta?
Jesse ficou em silêncio durante alguns instantes. Olhou para o testa-
mento de Etienne Devereaux em cima da escrivaninha e sentiu que sua

37
garganta ficava seca. Apenas umas poucas folhas de papel, que podiam mudar
o destino de muita gente.
— Sem dúvida, meu bom frei Edouard. Jamais poderia decepcionar um
homem como Etienne, nem deixar de atender seu pedido final.
O padre e o advogado pareceram aliviados.
— Eu sabia que você não iria decepcionar, Jesse. Brianna não podia
estar em melhores mãos.
— Vamos tomar um conhaque? — ofereceu o advogado, dirigindo-se para
o armário onde ficavam as bebidas.
— Não, obrigado — recusou Jesse. — Acho que vou descansar um
pouco. Nós nos veremos no jantar, está bem? — Ele piscou os olhos, uma ideia
surgindo em sua cabeça. — Tenho uma viagem marcada para a Virgínia dentro
de alguns dias, onde devo me encontrar com Thomas Jefferson. O que os
senhores acham de eu convidar a srta. Devereaux para me acompanhar?
Pensem um pouco. Se ela quiser arranjar um marido dentro de tão pouco
tempo, terá de ampliar seu círculo de amizades.
O bom religioso abriu-se num largo sorriso.
— Você é mesmo um homem esperto, meu filho. Meu querido amigo
Etienne, que Deus o tenha, fez uma excelente escolha.

CAPÍTULO ONZE

— Você vê quanta desgraça se abateu sobre mim, Aimée? E agora, o que


vai acontecer?
Brianna estava no quarto, mais precisamente em frente ao espelho,
examinando os estragos que o pranto sentido haviam feito em seu belo rosto.
— Calma, chèrie, calma — pediu a cigana. — Tudo vai acabar se
ajeitando...
— Duvido. Imagine só que absurdo! De agora em diante, ele vai ser meu
tutor! Ah, Aimée, eu estou perdida... O homem que me atacou no estábulo vai
tomar conta de mim!
— Você contou alguma coisa a frei Edouard?
— Não. A única pessoa que sabe daquela história é você. Não tive
coragem de me abrir com mais ninguém. Oh, Aimée, o que eu faço agora?
— Eu vou lhe dizer exatamente o que deve fazer, amie. Comece a aplicar
essas compressas nos olhos para diminuir o inchaço e as olheiras e deixe-me
ajudá-la a escolher um vestido bem bonito para o jantar.
Brianna apanhou uma cestinha cheia de chumaços de algodão e fez o
que lhe foi sugerido.
— Não estou com a mínima vontade de comer. Como posso pensar em
comida, quando tenho até o fim do ano para encontrar um namorado e me
casar com ele?
Aimée ficou pensativa durante alguns instantes.
— Se eu fosse você — disse ela finalmente — não me preocuparia tanto
com esse pequeno detalhe. As coisas vão se resolver naturalmente, antes
mesmo que você possa se dar conta.
Brianna afastou-se do espelho, fazendo com que alguns chumaços de
algodão caíssem ao chão.
— Aimée! Eu já ouvi esse tom de voz! Você está prevendo algo, não está?

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— Eu... hã... o que eu estou prevendo é que já está na hora de
escolhermos um vestido para você usar no jantar. Pena que seja obrigada a
usar um dos três pretos, mas a cor a favorece bastante e...
— Pare com isso, Aimée. Você previu algo, não previu?
— Brianna, eu...
— Por favor, mon amiel Depois de tudo isso que está acontecendo, uma
palavrinha sua seria muito bem-vinda. Você não vai me falar nada?
Aimée deu um sorriso.
— Tudo bem, tudo bem, se eu lhe falar, você concorda em se vestir e
descer para o jantar?
Brianna não precisou pensar duas vezes.
— Concordo! Agora, me conte logo o que está prevendo!
Aimée Gitane ficou séria.
— Olhe, eu não posso lhe dar nenhum detalhe, mas, desde que deixamos
a França e embarcamos no Liberte, tenho tido uma visão. Na verdade, ela é um
pouco nebulosa, mas é sempre a mesma... e é você quem está no centro dela.
Brianna segurou a respiração e esperou que a cigana continuasse.
— Você está numa sala escura, correndo sérios perigos, quando um
homem alto e forte, o homem da sua vida, chega e a salva das garras do
inimigo... esse homem é extremamente bonito e atraente e usa um anel em
forma de águia...
Brianna perguntou, os olhos arregalados:
— E quem era esse homem?
Aimée fechou os olhos. Quando voltou a abri-los, eles brilhavam como
duas estrelas.
— Por que você não olha para as mãos de Jesse Randall na hora do
jantar?
Brianna franziu a testa, surpresa e confusa.
— Você está insinuando que ele possa ser...
— Eu não estou insinuando nada, ma chère. Só gostaria de lhe fazer
uma sugestão. Tente conhecer melhor o homem que seu pai escolheu como
seu tutor. Talvez você tenha uma surpresa.
— Mas eu...
— Agora, que tal escolhermos seu vestido? Meu favorito é o preto de
tafetá. O que você acha?
Jesse Randall estava em seus aposentos, preparando-se para o jantar.
Como sua vida mudara naquelas quarenta e oito horas! Ganhara, da noite
para o dia, a tutela da filha caçula de Etienne Devereaux. A mesma garota que
quase seduzira no estábulo. Maldição! Por que não controlara suas emoções?
Por que agira daquele modo, como se fosse um tarado qualquer? Tinha de dar
um jeito de compensar seu erro. Não podia decepcionar meu velho amigo
francês por nada nesse mundo.
Mas Brianna Devereaux não era seu único problema. Não podia se
esquecer da viagem ao estado da Virgínia, dali a alguns dias. Olhou para o
relógio. Dois minutos para as sete. Como o jantar era servido às oito, ainda
tinha tempo para escrever uma carta para Isaac, seu mordomo, contando-lhe
que teria de se ausentar por muitas semanas. De repente, uma ideia lhe veio à
cabeça. Sim, seria muito ter um dos gémeos negros a seu lado durante a
viagem. Preferia ter a companhia de ambos, já que seu físico avantajado

39
espantaria eventuais bandidos que costumavam infestar as estradas. Não
queria expor Brianna a nenhum risco. Entretanto, a fazenda não podia ficar
tanto tempo sem um capataz, então ele tinha de se contentar apenas com
Festus. Isaac poderia levá-lo até Le Beau Chatêau sem problemas. Sorriu ao se
lembrar do dia em que vira o negro em cima de um cavalo. Ninguém mais
adivinharia que se tratava de um homem com deficiência visual.
Apanhando uma pena e um pedaço de papel, sentou-se à mesa do quarto
e começou a escrever.
Impecavelmente vestido com uma jaqueta azul-mari-nho, calças cinzas
de montaria e botas pretas de cano alto, Jesse seguiu um dos criados do
palácio ao grande salon, onde os aperitivos seriam servidos antes do jantar.
Frei Edouard e Georges Simpson levantaram-se para recebê-lo.
— Ah, pontual como sempre — exclamou o padre, olhando para o relógio
que começava a tocar as oito badaladas. — Se todos os meus paroquianos
chegassem na hora nas missas de domingo, minha vida seria muito mais fácil.
Jesse sorriu e aceitou o conhaque que o mordomo Prenshaw lhe oferecia.
— A pontualidade sempre foi uma das regras básicas da minha vida,
meu bom frei.
Georges Simpson aproximou-se dele com um envelope nas mãos.
— Etienne me deixou essa carta para ser entregue a Brianna logo após a
leitura do testamento. Como ela saiu da biblioteca abalada daquele jeito, não
pude fazê-lo.
Jesse ficou satisfeito. Que bom que Etienne tivera forças para escrever
algumas palavras de despedida à filha.
— Então aproveite para entregar agora. Brianna vai ficar muito satisfeita.
— Por que eu ficaria satisfeita? — perguntou uma voz feminina, vinda da
entrada do grande salon.
As três cabeças masculinas viraram-se naquela direção e o que seus
olhos viram os deixou boquiabertos.
Ali, junto à pesada porta trabalhada do salão, estava
Brianna Devereaux, sua postura fazia com que Jesse se lembrasse de
uma estátua esculpida pelos gregos, para celebrar a beleza feminina. Os
cabelos acobreados caíam soltos por seus ombros, esplendidamente
brilhantes. O vestido preto que usava havia sido inspirado na Revolução
Francesa e tinha linhas menos sóbrias e mais suaves. A única jóia que usava
era um colar de pérolas, que pertencera à sua mãe. Estava tão bonita e
elegante, que Jesse sentiu um nó na garganta.
Que coisa impressionante. Ela consegue ser ainda mais bonita do que
Deirdre. E eu pensei que isso fosse algo impossível.
— Ah, Brianna, minha querida — chamou frei Edouard por fim,
quebrando o silêncio. — Venha, ma petite. Nosso amigo Georges Simpson tem
algo para lhe dar. Uma carta de seu pai.
Ela se aproximou dos três com a elegância de uma rainha.
— Uma carta de meu pai?
— Exatamente — confirmou o advogado. — Etienne ordenou que ela lhe
fosse entregue após a leitura do testamento.
Brianna apanhou o envelope que lhe era estendido, então colocou-o em
cima de uma mesinha.
— Cavalheiros, será que poderiam...

40
— Claro — respondeu Jesse, já caminhando em direção à porta. — Fique
à vontade. Estaremos à sua espera na sala de jantar.
Frei Edouard fez que sim com a cabeça.
— Leve o tempo que quiser, chèrie.
Momentos depois, deixada a sós com a carta, Brianna hesitou antes de
abri-la.
Ah, papai, será que você vai me dar outra terrível notícia'? Já não basta
as que eu recebi?
Então, enchendo-se de coragem, abriu o envelope e leu em.voz baixa:
Minha querida filha,
Quando você ler esta carta, eu já terei partido desse mundo, mas lhe
imploro, não chore por mim, porque acredito de todo coração que estou indo ao
encontro de minha adorada Aileen e de sua irmã no paraíso. Já que estou
doente há muito tempo e a morte é inevitável, estou lhe dando ordens expressas
para abandonar o luto a partir de hoje. Você sempre foi uma garota tão vibrante,
tão cheia de joie de vivre, que não posso permitir que você se cubra com a cor da
dor e da angústia.
Agora, minha Brianna, gostaria de falar sobre o testamento. Minha única
tristeza de partir agora é saber que a deixarei sozinha, por isso fiz o possível
para solucionar o problema da melhor maneira possível. Frei Edouard, é claro,
estará disposto a ajudá-la no que for preciso. Conte sempre com a ajuda de
nosso caro amigo. Ele é um homem de Deus e lhe dará todo o apoio do mundo.
E, é claro, em assuntos legais, conte sempre com os préstimos do velho Simpson.
Ele é um advogado inigualável. Mas há uma outra pessoa que eu quero lhe
deixar como tutor, até que você possa ter a proteção de um marido. Jesse
Randall é o homem com quem sua irmã Deirdre iria se casar. Você não chegou a
conhecê-lo na época, mas, posso lhe garantir que se trata de uma das pessoas
mais espetaculares que já surgiram nesse mundo. É forte, inteligente, sensível,
honrado e possui uma coragem indiscutível. Talvez você não saiba mas ele
salvou, em duas ocasiões diferentes, a minha vida e a de sua mãe. Por isso
tudo, eu lhe imploro que aceite minha escolha. Tente conhecê-lo bem, Brianna.
Você vai compreender que eu não podia ter feito escolha melhor.
Também gostaria de lhe pedir perdão por minhas instruções de que se
case até o fim desse ano. Pode parecer um gesto ditatorial e talvez seja mesmo,
mas ainda sou um velho que acha que uma mulher não está a salvo nesse
mundo a menos que tenha um bom marido a seu lado. Acredito que no futuro
tudo vai acabar mudando mas, por enquanto, eu me sentiria muito mais feliz e
tranquilo se soubesse que não está sozinha. Que Deus... e você possam me
perdoar se eu estiver errado.
Por último, minha querida, um aviso muito importante. Não confie em
Honoré. Ele é um homem movido pela ambição, ganância, egoísmo e amargura.
Como você sabe, eu o reconheci legalmente como meu filho ilegítimo, embora a
verdade deva ser contada. E embaraçoso lhe falar sobre esse tipo de assunto,
mas acontece que ele pode ser meu... como também pode não ser. Jamais terei
certeza absoluta. A mãe dele, minha prima Suzanne Du-maine, nunca foi uma
pessoa estável mentalmente falando, mas era linda e jovem e passou anos de
sua vida correndo atrás de mim. Nunca alimentei esse interesse, muito pelo
contrário. Fazia o possível para que ela desistisse de mim. Mas ela estava
determinada e, um dia, numa festa na casa de seus pais... acabei me deixando

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seduzir. Eu era muito jovem e inexperiente e ela, mais velha que eu, muito mais
vivida, tendo passado um bom tempo em Paris e em Versailles, na corte do rei.
Não estou tentando me desculpar, sei que foi uma grande fraqueza da minha
parte. De qualquer modo, apesar da minha inexperiência naquela época, soube
que não tinha sido seu primeiro amante.
Logo depois disso, conheci e me apaixonei perdidamente por sua mãe e ela
por mim. Nós nos casamos em pouco tempo e, deixando a Europa para sempre,
nos estabelecemos aqui no Novo Mundo.
Já estávamos instalados na América, quando soube que, nesse ínterim,
Suzanne tinha tido um filho, um filho que dizia ser meu, e que esperava que eu
me casasse com ela. Quando soube, porém, que eu já havia me casado com sua
mãe, Suzanne cometeu o suicídio. Só não matou o filho porque uma criada
chegou a tempo e conseguiu salvá-lo. Não é preciso dizer o quanto eu me senti
culpado com tudo isso. Reconheci o menino como meu filho ilegítimo e lhe dei
todo o apoio financeiro possível, embora ele tenha sido criado pelos avós
maternos. Honoré, porém, cresceu me odiando. Os pais de Suzanne, Charles e
Mi-chelle Dumaine, acreditavam que eu a seduzira e que me recusara a casar
com ela quando soubera da gravidez e passaram o resto de suas vidas
contando essa história para o neto. Quando eu soube de tudo isso e, procurei,
contei-lhe toda a verdade, ele não acreditou em mim. A amargura já tinha
tomado conta de todo o seu ser. Por isso, me escute com atenção, Brianna. Não
confie em Honoré Dumaine! Ele é um homem muito perigoso!
E agora, ma chère, é hora de lhe dizer adeus. Lembre-se sempre de que eu
te amei, te amo e te amarei muito mais do que se poderia dizer em palavras.
Guarde dentro de você essa sua enorme joie de vivre e seja muito feliz. É o meu
último e melhor desejo em relação a você.
Adieu.
Seu pai.

Ao terminar a leitura da carta, Brianna ficou olhando para as páginas


escritas, os olhos verdes cheios de lágrimas. Não sentia mais aquela raiva
dentro do coração. Ao modo deles, seus pais a haviam amado. Podia não
concordar com os seus métodos e decisões ao longo dos anos, mas percebia
agora que ambos tinham se preocupado muito com seu bem-estar.
Bem, papai, vou tentar não desapontá-lo. E que Deus me ajude!
Jesse Randall, Georges Simpson e frei Edouard levantaram-se quando
ela entrou na enorme sala de jantar, cuja mesa comportava cinquenta pessoas.
— Brianna, minha filha, sente-se aqui — pediu o religioso, puxando-lhe
uma cadeira a seu lado. — Espero que tenha encontrado conforto nas palavras
de seu pai.
— Mais oui, mon père — ela respondeu, lançando então um olhar de
desculpas a Jesse e ao advogado. — Perdão, cavalheiros. Fiquei tanto tempo
em Paris que o francês me vem à cabeça automaticamente, como se fosse uma
língua nativa.
Simpson sorriu para ela.
— Não precisa se desculpar, Brianna, mas, se estou bem lembrado, sou o
único nesta sala que não entenderia você. Sei que o sr. Randall fala um
excelente francês.
Ela sorriu e virou-se para Jesse.

42
— É mesmo? Parlez-vouz français, monsieur Randall?
— Oui — respondeu ele, devolvendo-lhe o sorriso. — Mas eu gostaria que
começasse a me chamar de Jesse.
Dieu, como aquele homem era bonito... Não era de se admirar que
Deirdre tivesse ficado tão louca por ele.
— Sim, é claro... Jesse.
0 mordomo Prenshaw se aproximou para servir a entrada, um delicioso
potage creme de cresson, um creme de batatas, e, só de olhar para o prato,
Brianna sentiu água na boca. A comida de Le Beau Chatêau era famosa em
todo o estado, já que o chef principal, Henri Lavelle, havia trabalhado para o
próprio rei Luís XVI, anos antes da revolução.
— Ah! — exclamou frei Edouard, tomando uma colherada. — A própria
perfeição. A cozinha dos Devereaux se iguala às melhores cozinhas do mundo
e, acreditem em mim, já jantei na corte de todos os países da Europa!
— Eu sonhava com as delícias de Henri todas as noites quando estava na
França — comentou Brianna. — E com os doces de Mathilde também.
— Como era a comida no colégio? — perguntou o advogado. Ela ficou
pensativa, então acabou respondendo.
— Vamos dizer que as boas irmãs estavam mais interessadas em
alimentar nossas almas do que nossos corpos.
Os três homens não conseguiram segurar o riso.
—Bem —, continuou Brianna, aproveitando aquele momento de
descontração para reverter as coisas a seu favor — será que haveria um jeito
de mudar a cláusula do testamento relativa ao meu casamento? Talvez eu pu-
desse ter um pouco mais de tempo e...
— Não — interrompeu Georges Simpson. — Infelizmente, seu pai deixou
ordens expressas para que nada fosse mudado.
Jesse tomou um gole do excelente Bordeaux que Prenshaw lhe servia.
— Eu tive uma idéia, Brianna. Posso lhe chamar pelo primeiro nome, não
posso?
Ela fez que sim com a cabeça.
— Claro que pode. Mas que idéia foi essa?
— De como fazer para fisgar um marido.
Os olhos verdes de Brianna faiscaram de raiva. Tinha prometido a si
mesma que iria tentar controlar seu temperamento explosivo, mas aquilo era
demais.
— O quê? Fisgar um marido? Por acaso eu sou um pescador que fisga
alguma coisa? Mais respeito comigo, por favor!
Frei Edouard achou melhor intervir.
— Calma, calma, ma petite, eu tenho certeza de que Jesse não quis
ofender você e...
— É claro que não quis ofendê-la, Brianna. Mas a verdade precisa ser
encarada, quer você queira ou não. Estamos no mês de agosto. Se você não
estiver casada até o dia trinta e um de dezembro, toda a fortuna dos
Devereaux passará para as mãos de Honoré Dumaine. Por isso, antes de mais
nada, precisamos ser práticos, rápidos e objetivos. Não concorda comigo?
A vontade de Brianna naquele momento era atirar o prato de sopa no
rosto daquele homem insolente. Na verdade, já havia tomado atitude
semelhante no colégio de madame Méziêres umas quatro ou cinco vezes,

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quando provocada pelas colegas. Pena que agora precisasse manter a pose de
moça bem-comportada.
Seus lábios trémulos se contorceram num sorriso irónico.
— Muito bem, então. Já que você parece ser tão favorável à praticidade, à
rapidez e à objetividade, pode me dizer exatamente qual foi a ideia que lhe
surgiu na cabeça?
Jesse tomou mais um gole de vinho.
— Eu já comentei com os cavalheiros aqui presentes que tenho negócio
urgentes a tratar na Virgínia com o secretário de Estado. Será que você
gostaria de me acompanhar e conhecer um dos nomes mais importantes de
nosso tempo, Thomas Jefferson?
Brianna não conseguiu esconder o espanto.
— O quê? Thomas Jefferson, o Thomas Jefferson de verdade mesmo, em
carne e osso? Mon Dieu! Eu conheci as filhas dele! Foram minhas colegas no
colégio! É claro que quero ir! Foi ele quem escreveu nossa Declaração de
Independência! Será um prazer enorme conhecê-lo! — De súbito, seu rosto
ficou sério. — Mas tem certeza de que eu posso ir mesmo? Quero dizer, se é
uma visita de negócios, pode ser que eu acabe atrapalhando e...
— Não, Brianna — interrompeu Jesse, feliz com aquela súbita explosão
de alegria. Ela mudava de humor com incrível facilidade. — Você não vai
atrapalhar. E como sei que Martha, a filha mais velha de Jefferson, está
morando com o pai e já que vocês se conhecem, tudo vai ser arranjado da
melhor forma possível. Deixe tudo comigo.
Um copeiro apareceu para tirar a travessa de sopa e Prenshaw serviu o
segundo prato, um gostoso salmão grelhado a Liscarrol.
— Você vai precisar de vestidos de luto novos para se apresentar na casa
de Jefferson — lembrou o advogado. — Vou separar uma quantia bem
substanciosa para que você possa tomar as devidas providências.
— Ah, não! — respondeu Brianna, alegremente. — Nada de luto a partir
de agora. Ordens expressas de meu pai, escritas na carta que acabei de ler.
— Que bom! — exclamou o padre. — Isso quer dizer que você vai poder
usar cores alegres, mais apropriadas para a sua idade e seu estado de espírito!
Jesse deu um sorriso.
— É verdade. Mas Brianna fica linda de qualquer jeito, não importa que
cor de roupa esteja usando.
Tal elogio tão inesperado fez com que ela ficasse vermelha na hora.
Tentando esconder seu embaraço, abaixou ligeiramente a cabeça... e foi aí que
reparou em algo que a deixou apalermada. Jesse Randall usava um anel na
mão direita. Em formato de uma águia. A visão de Aimée Gitane! Será que...
Não, não era possível. Jesse não podia ser o homem de sua vida, não
importava o quanto fosse bonito. Ainda não confiava totalmente nele, apesar
das palavras de seu pai. Achava-o arrogante, até um pouco grosseiro. Não.
Aimée realmente devia estar enganada. Jamais poderia ter algo de mais sério
com Jesse Randall. Jamais.
De qualquer modo, sentiu que, de repente, a sala tinha ficado quente
demais. Olhou para o terceiro prato que Prenshaw estava prestes a servir,
assado à Ia Devereaux, e percebeu que seu estômago ficava revirado. Precisava
desesperadamente de um pouco de ar fresco.
Levantou-se imediatamente.

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— Cavalheiros, se me derem licença, eu vou me retirar. O dia hoje foi
difícil para mim e estou muito cansada. Além disso, não sinto mais fome
alguma.
Os três homens também se levantaram.
— Você está bem, Brianna? — perguntou Jesse, tocando-lhe o ombro de
leve.
Aquele toque fez com que ela ficasse ainda mais tonta.
— Eu... hã... estou, obrigada. Ou melhor, vou estar, assim que
descansar um pouco. Boa noite, senhores.
E tratou de sair da sala rapidamente. Jesse observou-a se retirar, então
levantou uma sobrancelha, intrigado.
— Será que eu a ofendi quando disse que ela era linda, não importava
que cor estivesse usando?
Frei Edouard voltou a se sentar, pronto para atacar o assado à Ia
Devereaux.
— Que nada, meu amigo. Já que você vai conviver de perto com Brianna,
precisa saber de uma coisa a seu respeito. Ela é a garota mais imprevisível
desse mundo!
CAPÍTULO DOZE

Os dias foram se passando sem que Jesse e Brianna tivessem muita


oportunidade para se encontrar. Conforme prometera, Georges Simpson
liberara uma enorme verba para a confecção de um guarda-roupa novo para
que a jovem herdeira Devereaux pudesse se apresentar aos ilustres homens do
país em grande estilo. As duas melhores costureiras do estado foram
chamadas a Le Beau Chatêau e Brianna se viu obrigada a passar horas no
salão de costura, escolhendo tecidos e fazendo provas.
Jesse, por sua vez, voltou a se encontrar com Pinckney diversas vezes,
para que ambos pudessem traçar os planos necessários para a missão na
Virgínia. Quanto mais pensava no assunto, mais interessado ficava na viagem.
A única nuvem que maculava seu céu muito azul era Honoré Dumaine. As
coisas seriam muito mais agradáveis sem a presença do filho ilegítimo de
Etienne Devereaux, mas não havia nada que pudesse fazer a respeito.
Pretendia manter os dois olhos bem abertos em relação a ele. Não conseguia
confiar no rapaz, principalmente depois de ter ouvido as ameaças feitas após a
leitura do testamento. Tinha um sexto sentido muito desenvolvido e esse não
parava de alertá-lo sobre a necessidade de tomar muito cuidado com Honoré
Dumaine. Somente quando um bilhete de seu mordomo Isaac, avisando que já
estava a caminho, chegou às suas mãos, Jesse começou a relaxar.
Dez dias depois do enterro de seu pai, Brianna estava na cozinha do
palácio, tomando uma xícara de chá com Glória Delaney, após ter feito a prova
em três vestidos de gala. Era difícil dizer qual deles era o mais bonito e
sofisticado.
O relógio havia acabado de soar as quatro badaladas. O jantar só seria
servido às oito e, como Brianna não tivesse mais nenhum compromisso
marcado para aquele dia, decidiu cavalgar pela propriedade da família.
A criada irlandesa, porém, não gostou muito da ideia.
— Em vez de andar a cavalo, por que você não aproveita esse tempo livre
para aprender as artes da costura e do bordado? Uma moça prendada precisa

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saber essas coisas!
Brianna não conseguiu conter o riso.
— Eu? Aprender a bordar e a costurar? Deus me livre! As freiras lá no
colégio, em Paris, faziam questão que fôssemos verdadeiras artistas com a
agulha, mas eu sempre dava um jeitinho de escapar das aulas e ia colher
cerejas na propriedade de monsieur Fourney, o vizinho da abadia!
A velha criada balançou a cabeça com desânimo.
— Ah, Brianna, Brianna, quando é que você vai tomar jeito? Quando é
que vai crescer?
Ela se levantou e sorriu.
— Nunca, srta. Delaney. Nunca mesmo! Glória Delaney observou-a sair
da cozinha.
Pobre sr. Randall. Ainda vai ter muito trabalho com essa menina.
Brianna caminhava em direção aos estábulos com passos rápidos,
sentindo-se de súbito mais animada. Gostava da vida ao ar livre. Gostava de
sentir o sol batendo em seu rosto, de sentir o vento desmanchando-lhe os
cabelos. Gostava de ser livre. Era isso mesmo. A liberdade era a palavra-chave
de sua vida, um bem precioso que ninguém, muito menos Jesse Randall, iria
lhe roubar.
Entrou nos estábulos, os olhos levando algum tempo para se acostumar
à escuridão. E foi aí então que ouviu um som, miados débeis vindos lá do
fundo, onde Serge estocava o feno. Lembrou-se imediatamente do que Aimée
havia lhe contado naquela manhã. Uma das gatas da fazenda havia dado à luz,
dois ou três dias atrás!
Esquecendo-se completamente da cavalgada, aproximou-se dos gatinhos
recém-nascidos, tomando cuidado para não assustá-los. Ficou encantada com
o que viu. Eram três bolinhas fofas, cuja penugem começava a aparecer. Dois
deles eram rajados e o outro, preto e branco.
— Onde está a mamãe de vocês? — ela perguntou, ajoelhando-se no
chão.
Então, sem ter tempo para que pudesse fazer algum outro movimento,
um ruído à esquerda chamou-lhe a atenção e, de trás de um outro monte de
feno, uma gata rajada de porte elegante surgiu, trazendo na boca um quarto
gatinho, preto como o carvão.
— Olá — disse-lhe Brianna sorrindo. Não tenha medo de mim. Como
você é bonita! A gravidez deve ter lhe feito muito bem!
A gata mãe permaneceu onde estava, sua cria preta ainda na boca,
enquanto observava a intrusa humana que entrara em seus domínios.
Brianna continuou ajoelhada no chão, com medo de assustá-la. Os
minutos se passaram, gata e mulher olhando-se com profundo respeito, até
que o filhotinho emitiu um miado muito fraco, fazendo com que sua mãe
finalmente tomasse uma atitude. Veio se aproximando de mansinho e,
chegando à frente de Brianna, depositou com muito cuidado, quase que
cerimoniosamente, sua carga preciosa no chão. Deu-lhe algumas lambidas,
então se afastou ligeiramente e, sentando-se, continuou a observar.
O gatinho começou a miar, mas o som era tão fraco, que Brianna mal
ouviu. Com muito cuidado estendeu a mão em direção à pequena criatura,
mantendo um olho em sua mãe. A gata deu-lhe o que pareceu ser um miado
encorajador e o filhote imediatamente virou-se em direção ao som, mas, ao dar

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um passo, tropeçou e caiu para o lado.
De súbito, Brianna percebeu que havia algo de muito errado por ali.
Talvez tal percepção se devesse a algum sexto sentido muito apurado, ou talvez
pelos anos em que passara na abadia, tratando dos animais. Não sabia dizer
ao certo. Só sabia, com certeza absoluta, que havia algo de errado com aquele
gatinho recém-nascido e que sua mãe estava pedindo ajuda.
Lentamente, tomando muito cuidado, Brianna apanhou o bichano. Mais
adiante, os outros filhotes brincavam uns com os outros, rolando no feno
macio. A gata mãe permaneceu firme no lugar, observando a cena com olhos
muito atentos.
Brianna levantou o recém-nascido e colocou-o junto ao peito. Foi só
quando o sentiu relaxar, que começou a examiná-lo. E não demorou muito
para compreender o problema. No lugar de dois olhinhos alertas e brilhantes,
havia apenas duas pequenas cavidades cobertas pelo que. parecia ser um
líquido branco e viscoso.
O gatinho era cego.
— Ah, meu pobrezinho — murmurou ela, com tristeza no coração. — Eu
não posso ajudar você... Seu problema não é uma perninha quebrada, que
pode ser corrigida em pouco tempo... É algo que não tem cura... — Acariciou-
lhe a cabeça e olhou para a gata que continuava a observá-la. — Você me
confiou seu bebé doente e eu lhe prometo tomar conta dele com todo o
carinho. Não vou decepcioná-la!
A gata deu um miado, e então finalmente levantou-se, aproximou-se dos
outros filhotes e deitou-se ao lado deles. Imediatamente, os três começaram a
mamar.
Então Brianna tomou sua decisão. Tinha de tirar o gatinho doente dali.
Deixá-lo no celeiro significaria sua morte certa. Aliás, não entendia como ele
conseguira sobreviver por tanto tempo. Os animais em geral costumavam
destruir suas crias quando essas nasciam inválidas ou com problemas.
Aconchegando o fúhotinho contra o peito novamente, deixou o celeiro com
passos lentos. Chegando perto da porta, ainda virou-se mais uma vez. O que
viu a deixou mais tranquila e de consciência limpa: uma gata serena e
maternal amamentando seus filhotes, como se também tivesse tomado uma
decisão.
Brianna estava seguindo seu caminho em direção à casa, o gatinho aina
aconchegado junto a seu peito, quando o som de vozes vindas ali de perto fez
com que ela parasse.
— Isaac, você não imagina como estava sentindo a sua falta! Mais um dia
sem sua abençoada presença e eu ficaria maluco de verdade!
Era Jesse que, relaxado e bem-humorado, conversava com mais duas
pessoas.
Curiosa a respeito da identidade dos recém-chegados, ela deu alguns
passos à frente. Não conseguiu reprimir um sorriso. Ambos pareciam ser um
estudo de contrastes. Um era baixo, pálido e franzino, seus cabelos aloirados
muito bem penteados, as roupas impecáveis. O outro era o maior negro que ela
já vira na vida, sua camisa não conseguia ocultar a largura dos músculos de
seus ombros e braços.
— Festus, como vai? — ela ouviu Jesse cumprimentar. — Eu pensei que
os homens completassem seu processo de crescimento com a idade de vinte e

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um anos, mas posso jurar que você ficou ainda mais alto desde o último dia
que o vi!
O negro sorriu.
— É, sr. Jesse, acho que foram os bons tratos da sra. Christie. Ela nos
manda uma cesta enorme de frutas, pães e doces todos os dias!
Jesse caiu na risada e, de repente, ao virar-se para a esquerda, avistou
Brianna ao longe, observando-os. Ela estava tão linda, que, por alguns
momentos, sentiu seu coração bater com mais força. A verdade tinha de ser
encarada. Aquela menina-mulher mexia com suas emoções. E aquilo não era
nada bom. Era seu tutor. Seu dever era protegê-la. Arrumar-lhe um bom
marido. Um bom marido. Tal pensamento o encheu de tristeza. Limpou a
garganta.
— Ei, Brianna! — ele gritou. — Venha conhecer esses cavalheiros.
Ela se aproximou, e Jesse acrescentou:
— Eles vão nos acompanhar em nossa viagem a Virgínia. — Fez um gesto
em direção ao homem loiro. — Srta. Brianna Devereaux, este é Isaac Sommers,
o melhor mordomo desse lado do continente... e do outro lado também.
— Senhorita... — cumprimentou o homem fazendo uma mesura diante
dela. Seu sotaque inglês era forte e carregado.
— Como vai? — Brianna sorriu e ajeitou o gatinho em um dos braços, a
fim de estender-lhe a mão. — Seja bem-vindo a Le Beau Château, sr.
Sommers.
— Isaac, por favor. — O mordomo olhou para a pequena carga que ela
trazia. — Pelo que vejo a senhorita gosta muito de gatos, não!?
— Gosto, sim. De todos os animais. Só que esse aqui, infelizmente,
apresenta um problema.
Jesse colocou um braço no ombro de Festus.
— É mesmo? Que problema?
— Acabei de descobrir que esse gatinho é cego. O negro deu um passo à
frente.
— Tem certeza, senhorita?
Dando um sorriso, Jesse apresentou rapidamente Festus a Brianna,
acrescentando no final:
— O sr. Liberdade é um funcionário extremamente competente, apesar
de seu pequeno problema. Como o seu gatinho, ele também é cego.
Brianna, um pouco embraçada, olhou para Jesse antes de voltar a
atenção ao negro à sua frente.
— É um prazer conhecê-lo, sr. Liberdade. Seja também bem-vindo a Le
Beau Château.
— Obrigado, senhorita. Mas me chame apenas de Festus.
— Só se vocês dois me chamarem de Brianna. O negro pareceu
envergonhado.
— Ah, eu não sei se devo e...
— O mundo está mudando, messieurs — soou uma voz feminina que
vinha se aproximando. — Hoje em dia, na França, as pessoas só se tratam de
citoyen, ou cidadão Fulano-de-Tal!
Todos se viraram para a cigana, muito bonita num vestido vermelho e
branco que as costureiras tinham feito especialmente para ela.
— Aimée! — chamou Brianna. — Venha, você também precisa conhecer

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esses cavalheiros.
Assim que as apresentações terminaram, o gatinho começou a miar,
como se estivesse chamando a atenção para sua presença.
Fez-se um momento de silêncio. Então, Festus estendeu a mão, pedindo:
— Será que eu poderia segurá-lo um pouco?
Brianna ergueu o filhotinho com as duas mãos e colocou-o na palma
enorme e aberta do negro. Então, com um carinho comovente, o ex-escravo
começou a acariciá-lo. O miado parou, dando lugar a um ronronar calmo e
relaxado.
— Você tem muito jeito com animais — comentou Aimée. — Por que não
fica com o gatinho?
Fez-se um momento de um embaraçoso silêncio, então Brianna lhe
explicou que tanto Festus quanto o filhote eram cegos.
— Ora, mas qual é o problema? — perguntou a cigana. — Tenho certeza
absoluta de que nosso amigo jamais deixou que esse pequeno incômodo
atrapalhasse sua vida.
Todas as cabeças se viraram para Aimée.
— É verdade — confirmou Jesse. — Festus é tão capaz e independente,
que ninguém diria que tem problemas de visão. Mas como você podia saber
disso?
A cigana ficou vermelha.
— Hã... Digamos... Digamos que eu tenha facilidade de conhecer as
pessoas, só de olhar para elas. — Virou-se para o negro. — Bem, vai ficar ou
não com o gatinho, Festus?
Ele parecia confuso.
— Bem... eu não sei...
— Eu posso ajudá-lo no princípio. Que tal?
Festus ainda hesitou.
— Posso fazer uma pergunta?
— Claro. Pergunte o que quiser.
— De que cor é o gatinho?
— Preto — responderam quatro vozes ao mesmo tempo.
O ex-escravo deu um sorriso de orelha a orelha.
— Então está decidido. O bichano é meu!
Ouviu-se um coro de risos. Quando esses cessaram, Aimée acrescentou:
— Eu tenho um recado para lhes dar. Foi por isso que vim até aqui.
— Recado? — perguntou Brianna. — De quem?
— De monsieur Dumaine. Ele esteve aqui há uma hora e perguntou pelo
senhor, monsieur Randall. Como eu falei que o senhor não estava no palácio,
ele pediu que eu lhe dissesse que a partida será na quarta-feira, dois dias
antes do previsto. Daí, virou as costas e foi embora. — Aimée deu de ombros.
— Homem estranho, aquele. Não gostei do sujeito desde o primeiro momento
em que o vi.
— Também não o suporto — concordou Brianna. — Mas o que ele tem a
ver com a nossa viagem à Virgínia?
— Aimée — chamou Jesse. — Já que você está aqui, por que não leva
Isaac e Festus para o palácio e pede a Prenshaw que lhes sirva um lanche e
arrume seus quartos?
— Claro. Com prazer. — Ela segurou o braço do negro e sorriu para

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Isaac. — Por aqui, cavalheiros! É uma alegria tê-los em Le Beau Château!
Brianna observou-os se afastar, então virou-se para Jesse.
— Bem...
— Bem, o quê?
— Ora, Jesse, é evidente que você queria falar comigo em particular, ou
não os teria mandado para o palácio. É algo a respeito de Honoré, não é?
— Hum... Ao que parece sou o tutor de uma garota muito astuta. Sim,
Olhos Verdes, infelizmente, é sobre seu meio-irmão.
— Você também não gosta dele.
Era uma afirmação, não uma pergunta.
— Você é astuta de verdade... Sim, eu também não gosto dele. Há algo
naquele homem que me deixa arrepiado...
— Engraçado. Ele também me provoca arrepios! Acho que ninguém gosta
dele. — Ela abaixou a cabeça. — Nem meu pai gostava.
— Faço uma idéia... Mas, infelizmente, Brianna, tenho uma má notícia
para lhe dar.
— Má notícia?
— Sim. Ele irá conosco para a Virgínia.
Brianna arregalou os olhos.
— O quê?
— É isso mesmo. Ordens expressas do governador Pinckney.
De repente, a magia daquela viagem desapareceu por completo.
— Às vezes — disse ela — ele vinha passar algum fim de semana aqui
conosco. Só tenho lembranças desagradáveis daqueles dias. Tome cuidado,
Jesse. Honoré pode ser mau e traiçoeiro.
— Sei disso, Brianna. Por isso, durante nossa estadia na Virgínia, vou
fazer o possível para mantê-lo longe de você. Agora, acho melhor voltarmos ao
palácio, porque nossos hóspedes estão à nossa espera.
Eles começaram a caminhar em direção de Le Beau Château, o sol de
final do verão batendo em seus rostos...

CAPÍTULO TREZE

—Acorde, chèrie, acorde! — Aimée encostou a mão no ombro de Brianna


e sacudiu-o gentilmente. — Já está na hora! Levante-se, sua preguiçosa!
Brianna virou-se para o outro lado e cobriu a cabeça com um travesseiro
de penas. Ainda estava morrendo de sono, mal conseguia abrir os olhos...
— Vá embora, sua cigana tirana! Quero dormir mais um pouco!
Impossível que já tenha amanhecido!
— Ah, mas já amanheceu, sim senhora! — Aimée abriu a pesada cortina
de veludo e os primeiros raios de sol do dia entraram nos aposentos. —
Monsieur Randall quer que estejamos prontas às sete e meia!
Dando um suspiro desanimado, Brianna tirou o travesseiro de cima da
cabeça e sentou-se na cama. Não tinha dormido bem aquela noite. O que
atrapalhara seu sono havia sido um sonho muito estranho que tivera, e que já
se repetira várias vezes, em que estava numa caverna escura, de pé junto à
entrada, observando o céu preto como o carvão. De súbito, a escuridão da
noite era quebrada por um pontinho de luz que lembrava uma estrela, então a
pequena claridade ia aumentando, aumentando, aumentando, até chegar à

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frente de Brianna e revelar seu formato. Era uma águia prateada e, sempre
nessa hora, ela acordava assustada e banhada de suor. Esfregou os olhos,
ainda bastante sonolenta.
— Hum... Bom dia, Aimée. — Ela então reparou na bandeja de prata, ali
ao lado, cheia de quitutes deliciosos. O aroma de chocolate quente entrou-lhe
nas narinas, dando-lhe um pouco mais de disposição. — Ah, obrigada! Aqui
estou eu, reclamando por levantar de madrugada, enquanto você teve de
levantar muito mais cedo para preparar meu café da manhã...
— Levantar cedo tem suas vantagens — revelou a cigana, sorrindo. —
Comi três croissants quentinhos assim que Mathilde os tirou do forno!
Brianna começou a comer as delícias que havia na bandeja. Costumava
sentir muita fome pela manhã.
— Hum... Que maravilha. É uma pena que Mathilde não nos acompanhe
à Virgínia. Vou sentir falta de seus quitutes divinos.
— Eu também.
— Bem que ela podia ir no lugar de Honoré, não é? Ah, como eu gostaria
que ele desistisse dessa viagem!
— Também não gostei nada da ideia de seu meio-irmão viajar conosco. É
um homem mau.
— Sei disto. Na carta que me escreveu, meu pai pediu que tomasse muito
cuidado com ele.
Aimée deu um sorriso maroto.
— Você se lembra quando ele veio aqui outro dia, trazendo um recado
para monsieur Randall?
— Sim, eu me lembro.
— Pois bem, primeiro ele olhou com uma cara muito estranha... então,
me fez uma proposta indecente!
Brianna quase engasgou com o chocolate quente que tomava.
— O quê? Aquele suíno!
— Ora, ma chérie, mas eu me vinguei! Quando ele chegou, eu estava na
cozinha ajudando nossa querida Mathilde a bater um bolo e minhas mãos
estavam sujas de chocolate. Aí, acidentalmente, é claro, eu esbarrei em sua
camisa imaculadamente branca... e ela ficou cheia de marcas marrons!
Os olhos de Brianna brilharam de alegria.
— Você fez isso?
— Pode apostar que sim. Mas minha vingança não parou por aí. Comecei
a me desculpar feito uma louca, me ofereci para lavar a camisa e me aproximei
dele de novo a fim de inspecionar o dano e... coloquei minhas duas mãos em
seu peito, deixando minha marca registrada no linho branco! Você precisava
ver o olhar que ele me lançou. Se ódio matasse, o bom père Edouard teria
outro corpo para abençoar!
As duas amigas caíram na risada.
— Pena que eu não estava lá para ver a cena! — exclamou Brianna,
tomando fôlego. — Bem feito para aquele almofadinha metido a galã!
— Agora, aposto que ele vai pensar duas vezes antes de se meter a
engraçadinho comigo!
Entre risos e conversas Aimée ajudou Brianna a fazer sua toilette matinal
e a colocar os últimos vestidos nas enormes malas compradas especialmente
para a ocasião.

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— Vou pedir para Herbert e Pierre virem para cá a fim de apanhar a
bagagem — disse a cigana por fim. — Acho que já estamos um pouco
atrasadas.
Brianna estudou seu reflexo no grande espelho em cima da cómoda.
Estava linda.
— Boa idÉia. Enquanto isso, vou descer e avisar os outros de que já
estamos prontas.
— Ótimo.
Ela deixou o quarto, cantarolando uma música francesa que aprendera
na escola. Porém, a canção morreu em seus lábios, no momento em que foi
entrando no salão principal do palácio. Ali, em frente a um enorme quadro a
óleo de Deirdre, estava Jesse.
Obviamente perdido em lembranças e pensamentos, ele não a viu. E ela
então aproveitou para estudá-lo com cuidado. Dieu, como Jesse era perfeito!
Ninguém devia ter o direito de ser bonito aquele jeito. Não era de se admirar
que ficasse sempre constrangida em sua presença. Que mulher não ficaria?
Ele continuava a olhar o retrato, e Brianna imaginou avistar uma sombra
de dor em seu rosto. Claro. Deirdre havia sido sua noiva. Fora quase sua
mulher. Ela era uma moça linda, meiga e doce, o sonho de qualquer homem
com um pingo de sangue nas veias.
Brianna conhecia bem a história daquele quadro. Fora um presente de
seu pai, no décimo-sexto aniversário da irmã. Deirdre lhe escrevera contando
das inúmeras viagens a Filadélfia com sua mãe, onde passara horas sentada
no ateliê do sr. Peale, o mais conceituado artista do país. Quando o quadro
ficara pronto, o próprio pintor fora entregá-lo em Le Beau Château, onde se
hospedara por duas semanas. Brianna não conhecera a irmã com aquela
idade, mas a expressão suave de seu rosto e o sorriso doce captados pelo
artista eram os mesmos de quando a vira pela última vez. De qualquer modo,
era muito estranho vê-la ali, tão cheia de vida, usando um vestido que ela
nunca conhecera.
O que Brianna fez em seguida foi algo que não pôde explicar, nem mesmo
quando se questionou horas depois, e muitas vezes depois disso. Aproximou-
se de Jesse com passos lentos e perguntou:
— Você a amou muito?
Ele virou-se para ela, surpreso e assustado. Não havia percebido que não
estava sozinho naquele salão. As emoções desapareceram de seu rosto como
que por magia.
— Não vamos lembrar o passado, Brianna, está bem? Você e Aimée já
estão prontas? Já estamos um pouco atrasados.
Ela engoliu em seco.
— Eu... quero dizer... sim, estamos prontas. Aimée já foi pedir para que
os empregados apanhassem nossa bagagem.
— Ótimo. Quanto antes partirmos, melhor. A viagem que nos espera é
muito longa e cansativa.
Brianna afastou-se dali, amaldiçoando a própria estupidez Droga! No
espaço de poucos minutos a seu lado, ele conseguira fazê-la sentir-se uma
perfeita idiota. E o que ela fizera de errado? Nada! Afinal de contas, também
amara Deirdre Ela era sua irmã. E estava morta havia sete longos anos O que
havia de mau em perguntar aquilo?

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A resposta lhe veio de repente, entre uma e outra batida de seu coração.
Mon Dieu! Como não pensara naquilo antes?
Jesse Randall ainda devia ser apaixonado por sua irmã.

CAPÍTULO CATORZE

O longo percurso começou tranquilo, graças à temperatura amena de


setembro. As estradas, devido à falta de chuvas, estavam firmes e o sol do
início do outono emprestou um ar de férias aos primeiros dias da viagem.
Duas grandes carruagens que haviam pertencido a Etienne Devereaux
levavam os passageiros. Numa delas iam Brianna, Aimée e frei Edouard
Gérard, que, na última hora, resolvera juntar-se ao grupo. Na outra, seguiam
Jesse, Honoré, Festus e o mordomo Isaac Sommers.
A paisagem era deslumbrante. Camélias gigantes, oliveiras e árvores
cheias de flores perfumavam o ar, tornando o percurso ainda mais agradável.
Frei Edouard contou às garotas que, no ano anterior, durante sua visita
anual a Colúmbia, o presidente Washington havia se referido àquele lugar
como uma "floresta virgem onde via-se uma ou outra casa". Brianna sentia-se
feliz com o fato de a região continuar intata, porque ali passara os momentos
mais felizes de sua infância, cavalgando por entre os carvalhos e cerejeiras,
procurando e encontrando inúmeros bichinhos pelo caminho.
A noite, os viajantes paravam em redes de fazenda ou em hospedarias
modestas, previamente arranjadas pelo escritório do governador Pinckney. Às
vezes, a casa em questão era suficientemente grande para abrigar o grupo
todo, mas em uma ou outra ocasião, o espaço disponível era tão pequeno que
só as garotas dormiam em camas confortáveis. Os homens eram obrigados a
se contentar com os celeiros, o feno macio servindo de travesseiro.
No sétimo dia, ao acordarem, os viajantes perceberam que o céu estava
cheio de nuvens escuras e ameaçadoras. Passava ligeiramente da uma da
tarde, quando finalmente uma tempestade violenta desabou, deixando os
cavalos tensos e assustados. Estudando o mapa da região, Jesse Randall
descobriu que, a meia-hora do local onde se encontravam, havia uma abadia
onde poderiam se refugiar.
— Uma abadia nesse fim de mundo! — exclamou Aimée, maravilhada. —
O que será que os monges fazem durante as laudes, as primas e as vésperas?
Cantam e rezam para as árvores e para os animais?
Frei Edouard sorriu e, levantando a mão, deu uma puxada suave nos
cabelos ondulados da cigana.
— Não, minha filha. Eles devem cantar as maravilhas do amor a Deus.
— Como será esse lugar? — perguntou Brianna, curiosa.
— Certamente, muito simples — respondeu o religioso. — Mas aposto
que iremos encontrar muita paz e sinceridade junto àquela gente.
Frei Edouard não poderia estar mais certo. Menos de trinta minutos
depois, quando as duas carruagens transpuseram os portões de madeira que
protegiam uma modesta construção de pedra, os viajantes tiveram a certeza de
que haviam chegado a um porto seguro.
Ao paraíso, talvez.
Três monges guardaram os cavalos nos estábulos, enquanto que outros
quatro conduziam os recém-chegados a quartos pequenos, mas limpos e

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agradáveis. Toalhas e roupas secas foram logo providenciadas e um dos re-
ligiosos anunciou que o almoço seria servido dali a quinze minutos onde então
poderiam conhecer o abade-mor, um senhor de muita idade.
A refeição servida num salão um tanto rústico foi simples e bem
preparada, um assado acompanhado por legumes variados, plantados pelos
próprios religiosos na horta que havia nos fundos da abadia. O abade-mor, pa-
dre Paul, como frei Edouard e Etienne Devereaux, era um émigré francês que
revelou-se um anfitrião gentil e simpático, seu voto de silêncio esquecido na
presença de hóspedes visitantes.
Terminado o almoço, os viajantes foram novamente conduzidos a seus
aposentos por monges silenciosos usando grossos mantos de lã e segurando
velas brancas nas mãos. Quando Brianna e Aimée entraram no quarto que
deveriam compartilhar, um monge chamado irmão Theo-dore fez uma mesura
rápida diante de ambas, não sem antes entregar um pedaço de papel dobrado
à cigana.
— O que é isto? — perguntou Aimée. — Um bilhete para mim? Quem
será que mandou?
Mas o irmão Theodore já tinha desaparecido no corredor estreito e
escuro.
— Bem, é melhor você abrir logo — avisou Brianna. — Pode ser algo
importante.
A cigana aproximou-se de uma vela acesa em cima de uma mesa de
madeira e abriu o bilhete.
— É de frei Edouard. Parece que ele quer me ver agora mesmo, nos
estábulos da abadia.
Aquilo não deixava de ser um pouco estranho.
— Ora, mas o que ele estaria fazendo nos estábulos a essa hora? —
perguntou Brianna, intrigada.
— Não faço ideia, mas acho melhor ir até lá e descobrir. Você vem
comigo?
— Se você não se incomodar, Aimée, prefiro ficar aqui. Estou um pouco
cansada e não vejo a hora de experimentar essa cama. Deve ser bem dura,
mas é melhor do que nada!
— Então já estou indo. Até mais.
— Até mais.
Brianna observou-a sair do quarto e jogou-se ém cima da pequena
enxerga perto da janela. Estava certa. Era dura de verdade.
Momentos depois, de olhos fechados, ainda tentando se acostumar ao
desconforto de seu colchão, ela percebeu que a porta do quarto se abra
novamente.
— Aimée? — ela chamou. — Já voltou? O que frei Edouard queria?
— Não é Aimée, chèrie. Sou eu, seu meio-irmão. O filho bastardo de seu
pai.
Brianna pulou da cama como se o lençol estivesse em chamas.
— Honoré! O que veio fazer aqui?
—Ter uma conversinha bem íntima com você... Uma conversinha
incestuosa, digamos assim...
De repente ela compreendeu o que se passava. Honoré pretendia
estuprá-la. Abriu a boca para gritar, mas, antes que qualquer som saísse de

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sua garganta, ele atirou-se em cima dela e cobriu-lhe os lábios com os seus,
beijando-a com violência. Com uma força que nem sabia que tinha, Brianna o
empurrou, os olhos brilhando de ódio.
— Seu... bastardo!
Ele deu uma risada medonha.
— Sim, eu sou um bastardo... graças a seu pai, que prometeu casamento
à minha mãe para depois abandoná-la!
— Não é verdade!
— Claro que é! — Ele empurrou-a para a cama e, tapando-lhe a boca
com uma das mãos, começou a cariciar-lhe os seios com a outra. Ao sentir
aquele toque, Brianna achou que fosse vomitar. — Vou fazer amor com você,
minha querida. E quando todos descobrirem o que aconteceu, seus planos de
casamento irão por água abaixo... Afinal, quem vai querer se casar com uma
moça que não é mais virgem?
Brianna tentava de debater, mas Honoré era tão forte, que era impossível
livrar-se dele. Pensou em Aimée. Sua amiga já deveria estar voltando e... Mas
era evidente! Frei Edouard jamais mandara aquele bilhete! Fora um artifício
sujo para afastar a cigana do quarto! Louca da vida, Brianna tentou morder-
lhe a mão.
— Vagabunda! — ele exclamou, rasgando-lhe a blusa. — Banque a
valente e vai ver o que lhe acontece! Eu acabo com você!
Um ruído vindo da porta trouxe-lhe uma nova onde de esperanças.
Talvez Aimée estivesse voltando...
— Mas o que é isso?
Era Jesse que entrava no quarto.
Surpreso, Honoré largou sua vítima e pulou da cama, pronto para o
ataque. Mas o bastardo não era páreo para Jesse Randall, que o derrubou com
um soco certeiro na mandíbula.
Honoré Dumaine caiu no chão, ao lado da enxerga de palha.
Então Jesse a abraçou e as lágrimas começaram a escorrer no rosto dela.
— E... Ele... ele... queria... me estuprar — Seus soluços foram ficando
cada vez mais altos e sentidos. — Disse que...
— Shh... Eu sei, minha pequena, eu sei. Ele fez com que ela deitasse a
cabeça em seu ombro e começou a acariciar seus cabelos. — Mas está tudo
bem agora. Ninguém vai machucá-la, eu juro.
Finalmente, quando sentiu que ela estava um pouco mais calma, Jesse
ajudou-a a deitar-se na cama e cobriu-a com uma manta.
— Bem, agora vou ter de livrar-me desse... — Ele olhou para Honoré,
ainda inconsciente no chão. — ... idiota e decidir o que fazer com ele. Você
acha que ficará bem sozinha?
Naquele instante, Aimée e o frei Edouard, ambos ofegantes e vermelhos
apareceram na porta.
— Brianna! — gritou a cigana. — Mon dieu, o que aconteceu por aqui?
Père Edouard e eu viemos correndo quando descobrimos que... — Parou de
falar ao ver Honoré caído no chão.
O padre, apesar de seu tamanho avantajado, ajoelhou-se diante do meio-
irmão de Brianna com extrema agilidade e tomou-lhe o pulso.
— Ele está vivo. — Virou-se para Jesse. — O que houve, meu filho?
— Eu lhe conto enquanto o levamos para seus aposentos, frei Edouard.

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Aimée, cuide de Brianna. Talvez você encontre alguém na cozinha que esteja
disposto a fazer um chá para a senhorita que está tendo uma "pequena
indisposição". Fale "pequena indisposição", está bem? Acima de tudo, não
quero que ninguém saiba do que aconteceu por aqui essa noite. Até mesmo
uma tentativa frustrada de estupro poderia causar danos à reputação de
Brianna. E isso não pode acontecer de maneira alguma.
— Tentativa de estupro?! — exclamou Aimée, abraçando a amiga. —
Aquele vagabundo! Ah, ma petite!
Quando Jesse e o padre saíram com a carga, Brianna sentou-se na cama
e enxugou as lágrimas que teimavam em escorrer por seu belo rosto.
— Sua visão se concretizou, Aimée. Eu corri perigo e Jesse me salvou.
— Não, ma père! Não pode ser! Ele não tem condições morais de
continuar conosco! Só Deus sabe o que poderá tentar de novo! Por favor,
mande-o embora!
Brianna e frei Edouard tomavam café da manhã numa sala junto à
varanda da abadia. Havia parado de chover e os viajantes já se preparavam
para partir.
O bom religioso deu um suspiro resignado e segurou o rosto de Brianna
com as duas mãos.
— Enfant, é claro que nós examinamos todas as alternativas. Se essa
visita a Thomas Jefferson fosse um acontecimento social, já teríamos nos
livrado de Dumaine há muito tempo. Acontece que o governador Pinckney faz
questão da presença dele no tal encontro. Mas eu lhe garanto que seu tutor
está tomando todas as medidas necessárias para que episódios lamentáveis
como esse jamais voltem a ocorrer. Ele...
Exatamente naquele momento, Jesse entrou na sala. Atrás dele vinha
um cambaleante Honoré, seguido de perto por Festus. Mas o que deixou
Brianna mais assustada foi o estado físico de meio-irmão. Seu rosto estava
coberto de manchas roxas e ele parecia andar com muita dificuldade. Ela
observou Jesse e o negro o acompanharem até a carruagem e voltou a atenção
a frei Edouard.
— Pèrel O que será que aconteceu? Sei que Jesse acertou um soco no
queixo dele... mas, e todas aquelas marcas?
— Todas aquelas marcas — respondeu Jesse, voltando à sala — foram o
resultado de uma pequena... hã... discussão que monsieur Dumaine e eu
tivemos ontem à noite.
Brianna levou a mão à boca.
— Você... você bateu nele? Jesse caiu na risada.
— Não sem antes de lhe dar todas as oportunidades de fazer a mesma
coisa comigo. Se estivéssemos em outro lugar, poderíamos ter resolvido nossas
pequenas diferenças com um duelo de pistolas. Porém, como estamos numa
casa de Deus, não pude permitir tal prática. Os punhos me pareceram mais
adequados.
Então, olhando bem para o rosto de Jesse, Brianna reparou em dois
cortes perto da sobrancelha esquerda e um outro no queixo. Balançou a
cabeça lentamente.
— Posso saber... o que ficou resolvido?
— Claro. Infelizmente, seu meio-irmão vai ter de seguir viagem conosco,
mas ele ficará o tempo todo na carruagem ao lado de Festus e só sairá de lá

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com ordens minhas. Assim que chegarmos, ele não deverá nem entrar nos
locais onde você vai estar. Quando isso for impossível, digamos durante os
jantares de gala que Jefferson certamente vai nos oferecer, ele ficará espremido
entre frei Edouard e eu. — Jesse deu um sorriso. — Essas medidas lhe deixam
mais tranquila, minha pequena?
Brianna balançou a cabeça.
— Sim, mas ele ainda pode tentar alguma coisa... na calada da noite, por
exemplo...
— Nós já conversamos sobre isso. Fiz questão de deixar claro a seu meio-
irmão que, se ele vier a encostar um só dedo em você, é a justiça dos índios
cheroqui, meus grandes amigos, que ele vai ter de enfrentar.
Frei Edouard ficou curioso.
— Por acaso os índios têm alguma espécie de punição específica para
esse tipo de comportamento?
— Sem dúvida, meu bom frei.
— E o que eles fazem quando enfrentam uma situação como essa?
Jesse não demorou um segundo para responder:
— Eles castram o molestador.
E, dando um sorriso, pediu licença e foi andando em direção à
carruagem.
CAPÍTULO QUINZE

O palacete de Thomas Jefferson havia sido erguido numa clareira no topo


de uma montanha, cercada por uma densa floresta.
— Nosso anfitrião possui uma vasta extensão de terra, onde planta trigo,
tabaco e algodão — informou Jesse, enquanto a carruagem seguia pela estrada
ladeada por árvores enormes.
— Monsieur Jefferson é um homem muito rico — comentou Aimée.
—É verdade — respondeu Jesse —, embora haja famílias muito
abastadas aqui na região. — Ele virou-se para Brian-na. — Os Devereaux
certamente possuem mais dinheiro e propriedades do que nosso caro
secretário de Estado.
Aimée sorriu para a amiga.
— Ouviu essa, Brianna? Isso quer dizer que você é milionária!
Ela deu de ombros.
— Eu? Milionária? Que nada. Por acaso se esqueceu daquela cláusula do
testamento? Sem casamento, sem fortuna. — Fez uma pausa, então
acrescentou: — Quer saber de uma coisa? Duvido muito que apareça alguém
que me desperte algum interesse em tão pouco tempo. Duvido mesmo.
Aimée lançou-lhe um olhar estranho.
— Às vezes, ma chérie, não enxergamos o que acontece bem diante dos
nossos olhos...
Brianna ajeitou-se no banco.
— O que está querendo dizer com isso, amiel
— Nada, nada... Acho que pensei alto, só isso.
Já era final de tarde quando os viajantes se aproximaram da residência
de Thomas Jefferson. Acostumada a Le Beau Château e a outros lugares do
mesmo nível, Brianna achou a construção pequena, mas mesmo assim
impressionante pela elegância de suas linhas. Qual foi sua surpresa quando

57
Jesse lhe informou que o próprio Thomas Jefferson havia sido seu principal
arquiteto.
— Que coisa incrível! — exclamou ela. — Como é que um dos homens
mais importantes e ocupados do nosso país encontra tempo para desenhar
sua própria residência?
— Monsieur Jefferson deve ser um homem de muitos talentos —
observou Aimée.
Os visitantes estavam se aproximando do jardim da frente, quando
avistaram um homem montado num belo garanhão dando ordens a dois
rapazes. Assim que avistou os recém-chegados, o cavaleiro fez sinal para que
seus empregados fossem recebê-los.
Ambos correram em direção às duas carruagens, acenando alegremente.
— Olá — exclamou um deles. — Vocês devem ser os hóspedes da
Carolina do Sul! Fizeram boa viagem?
— Sejam bem-vindos a esta casa! — acrescentou o outro.
— Podem deixar as carruagens e os cavalos conosco!
Os dois criados, Brianna notou, não deviam ter mais do que quinze ou
dezesseis anos. Usavam roupas de trabalho e estavam descalços.
Foi aí então que o homem a cavalo aproximou-se dos viajantes e não
houve mais dúvida quanto à sua identidade. Thomas Jefferson era um homem
alto e forte, seu rosto anguloso acentuado por um nariz longo, uma boca fina e
um queixo forte, que indicava uma grande força de vontade. Os cabelos eram
ruivos, a pele salpicada de sardas, mas eram os olhos que chamavam a
atenção de qualquer pessoa que o visse. Eram muito azuis, emoldurados por
cílios longos e grossos.
— Sr. Randall, eu presumo — ele disse a Jesse, que descia da
carruagem. — Seja bem-vindo a esse lar.
Jesse fez uma mesura diante dele.
— Muito obrigado, senhor. É uma honra conhecê-lo pessoalmente.
Os outros também foram descendo e as apresentações começaram.
— Esta é a jovem herdeira da qual lhe falei, senhor. A srta. Brianna
Devereaux.
— Ah, sim, a mocinha que foi educada na Abadia de Panthémont junto
com minhas filhas... Muito prazer, senhorita.
Ela curvou a cabeça.
— O prazer é todo meu, senhor.,
— E este é o frei Edouard Gérard...
Terminado o cerimonial, os recém-chegados foram conduzidos aos
aposentos que deviam ocupar durante sua estada.
Enquanto Aimée ficava para trás a fim de orientar os empregados quanto
à bagagem de Brianna, esta foi conduzida a seu quarto por uma linda jovem de
cabelos escuros e olhos castanhos, que deveria ter mais ou menos a sua idade.
— Sou Sally Hemings — apresentou-se a jovem. — Estarei sempre à sua
disposição nesta casa, srta. Devereaux.
— Muito prazer, Sally — respondeu Brianna, dando-lhe um sorriso. —
Trabalha aqui há muito tempo?
Sally Hemings deu um suspiro cheio de resignação.
— Sim, eu trabalho aqui já há algum tempo. Mas não é só isso. Digamos
que eu também... pertenço a essa casa.

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Brianna levantou uma sobrancelha.
— Pertence a essa casa? Não estou entendendo. Como assim?
A jovem abaixou a cabeça, como se estivesse envergonhada.
— Eu... sou uma escrava, srta. Devereaux.
Foi como se Brianna tivesse levado uma facada no coração.
— E... escrava?
O diálogo de ambas foi interrompido por uma vozinha aguda que gritava:
— Mamãe! Mamãe!
Virando-se, Brianna avistou um menino pequeno aproximar-se correndo,
equilibrando-se em suas duas perni-nhas gorduchas. Devia ter uns dois ou
três anos de idade. Tinha olhos azuis, cabelos ruivos e sardas no rosto e, ao
alcançar as saias da jovem morena, esta estendeu os braços e o pegou no colo,
dizendo:
— Thomas! O que você está fazendo aqui? Por que não está na cozinha
com Lucy? Não sabe que não pode ficar correndo por aí? E por falar nisso,
onde está Lucy?
Mas a criança, tendo encontrado quem queria, limitou-se a levar o
polegar à boca e a observar Brianna com seus olhinhos espertos.
Sally deu um suspiro e virou-se novamente para Brianna, que sorria
para o menino.
— Este é meu filho, srta. Devereaux. Seu nome é Thomas Jefferson
Hemings.
Brianna não conseguiu conter um grito de espanto.
— Meu Deus!
— Peço desculpas, eu não quis chocá-la — a jovem apressou-se em dizer.
— Mas eu creio que acabaria descobrindo a verdade mais cedo ou mais tarde.
Todos aqueles que se hospedam nessa casa algum tempo descobrem, de um
modo ou de outro.
Respirando fundo a fim de recuperar a compostura, Brianna estendeu a
mão e acariciou os cabelos ruivos do menino.
— Sou eu que devo me desculpar pela minha reação. Seu filhinho é
lindo. — Voltou a sorrir para ele. — Como vai, Thomas? Quer ser meu amigo?
Naquele instante, uma mulher alta de pele escura surgiu no topo da
escada.
— Thomas, onde está você, seu diabinho? Ah! Achei-o, finalmente! — Ela
correu em direção ao trio, cumprimentou Brianna com um aceno de cabeça e
pegou a criança nos braços. — Não fique brava, Sally. Eu estava tão ocupada
na cozinha, que, quando me dei conta, esse menino travesso tinha
desaparecido! Ele fica mais levado a cada dia que passa!
— Está tudo bem, Lucy — respondeu a jovem mamãe. — Ele está mesmo
terrível ultimamente. Quase se perdeu de mim ontem à tarde, quando eu
comprava tecidos para as novas camisas do sr. Jefferson. — Ela virou-se para
o filho. — Agora seja um bom menino e volte para a cozinha com Lucy, ouviu?
Com um sorriso nos lábios a criança deixou-se levar pela eficiente
escrava, e Sally e Brianna ficaram a sós novamente.
— Então você é a amante de Thomas Jefferson? — perguntou Brianna,
após um momento de hesitação.
Sally Hemings concordou com a cabeça.
— Sim. Sou sua amante... e sua escrava.

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— Mas, você é branca! E os escravos são...
— Negros? Nem sempre. Às vezes, nós parecemos brancos. Aqui no
estado da Virgínia, a lei diz que todos os filhos de uma mãe escrava também
são escravos. Meu pai era um nobre inglês que veio para cá, fez o que quis com
minha mãe e voltou para a Inglaterra, deixando no ventre de minha mãe a
marca de sua passagem. E a pobrezinha era... ainda é uma escrava.
Brianna estava tendo dificuldades em entender e aceitar tanto absurdo.
— Então... então quer dizer que o pequeno Thomas...
— E escravo também — completou a jovem morena.
— Mas... mas... ele também é filho de Thomas Jefferson!
Sally fez que sim com a cabeça, com uma expressão de profunda tristeza
em seus olhos castanhos.
— Infelizmente, srta. Devereaux, é assim que as coisas funcionam por
aqui. — E, como se quisesse encerrar o assunto, continuou a falar, num tom
de voz eficiente e profissional. — Bem, espero que goste dos seus aposentos.
Há um quarto de vestir aqui ao lado, que pode ser ocupado por sua
empregada. Vou providenciar para que uma cama seja arrumada para ela.
— Aimée não é uma empregada — avisou Brianna. — É minha dama de
companhia.
Sally ficou pensativa durante alguns instantes.
— Claro que não! Aimée é minha amiga! Nós, os Devereaux, somos
radicalmente contra a escravidão!
— Então, se ela não é escrava, não importa o que seja... empregada,
dama de companhia, amiga... A moça é livre e isso já diz tudo... Bem, fique à
vontade, srta. Devereaux. Vou mandar alguém trazer-lhes toalhas limpas e
preparar-lhe um banho.
— Eu lhe fico muito grata por isso — respondeu Brianna.
— Qualquer coisa que quiser pedir, é só puxar essa cordinha. Com
licença.
E, fazendo uma mesura, Sally Hemings virou-se e desapareceu no longo
corredor.
CAPÍTULO DEZESSEIS

— Sally é escrava, Aimée! Sua pele é tão branca como a minha, seu in-
glês é perfeito...
— Seu francês também é excelente — acrescentou Aimée —, embora
tenha um certo sotaque.
— Ah, então você já falou com ela?
— Conversamos brevemente a respeito dos horários das refeições e de
outros aspectos da rotina dessa casa. Aliás, ela me disse que Martha está
vindo de um lugar chamado Edgehill, com seu marido, e estará aqui na hora
do jantar.
Brianna deu um sorriso.
— Que bom! Vai ser ótimo vê-la novamente. Agora que conheci seu pai, é
fácil entender porque ela é tão alta! Mas, voltando a falar sobre Sally Hemings,
de onde vem seu francês tão perfeito?
— Parece que ela morou em Paris com sr. Jefferson quando ele
trabalhou lá, alguns anos atrás.
Brianna levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.

60
— Olhe, Aimée, eu não consigo entender. Ela é branca, bonita, educada,
mãe de seu filho... mas é sua escrava! Não posso acreditar num absurdo
desses. Estou chocada de verdade. Como é que o homem que escreve o mais
famoso tratado de liberdade de todos os tempos, nossa Declaração de
Independência, pode manter escravos em sua propriedade? E, além disso, uma
escrava branca, que é obrigada a satisfazê-lo... na cama? Ah, Aimée, eu não
devia ter vindo para cá... Que decepção, meu Deus...
Alguém bateu na porta, avisando que o jantar seria servido dentro de
meia-hora.
— Precisamos nos arrumar — disse Aimée. — Estamos atrasadas. Goste
ou não de seu anfitrião, você vai ter de ser simpática e tratá-lo da melhor
maneira possível. Já decidiu que vestido vai usar?
Brianna jogou-se numa poltrona aconchegante que ficava num canto do
aposento.
— Estou sem a mínima vontade de descer para esse jantar. Por mim,
ficaria aqui, trancada nesse quarto, até a hora da partida.
— Impossível, chérie. Seria o máximo da deselegância.
— Quer saber de uma coisa, Aimée? Para mim, o máximo da
deselegância é manter uma escrava branca em casa e obrigá-la a...
— Shhh... abaixe um pouco seu tom de voz, Brianna. Já pensou se
alguém escuta você falar desse jeito? Olhe, vamos nos vestir logo, está bem? E
nada de fazer cara feia para nosso anfitrião. Afinal, goste ou não dele, você
está hospedada na sua casa! Bem, mas agora vamos ao que interessa. Se me
permite uma sugestão, que tal aquele vestido de tafetá verde que foi feito
especialmente para essa viagem? Na minha opinião, é o mais bonito que você
tem.
Exatamente meia hora depois, Brianna chegava a um dos salões do
palacete, conduzida por um criado impecavelmente uniformizado. Porém, ao
passar pela pesada porta trabalhada, seu coração deu um salto. Ali adiante,
sentado numa poltrona em frente à lareira, estava Ho-noré Dumaine. Jesse, de
pé ao seu lado, parecia observá-lo com atenção. Aquela era a primeira vez que
ficava cara a cara com seu meio-irmão desde o terrível incidente na, abadia e a
situação era bastante constrangedora.
Assim que a viu, Honoré se levantou e caminhou em mia direção. Estava
vestido formalmente com uma sobrecasaca azul-marinho, calças cinza e uma
camisa, com acabamento em rendas, imaculadamente branca. Nos pés,
calçava sapatos de salto alto vermelhos, iguais aos usados pela aristocracia
francesa do infeliz e trágico an-cien regime. Trazia nas mãos uma bengala
ornamentada com a cabeça prateada de um lobo.
— Ah, Brianna, ma petite — disse frei Edouard — seu irmão pediu
permissão para lhe dizer algumas palavras e seu tutor e eu concordamos
desde que isso acontecesse, é claro, em nossa presença.
Antes que ela pudesse abrir a boca para dizer o que quer que fosse,
Honoré Dumaine deu mais dois passos à frente e, tomando-lhe as duas mãos,
começou a falar com a voz cheia de angústia:
— Brianna, será que algum dia, você poderá me perdoar? Eu devia estar
insano, completamente louco!
— Realmente, seu procedimento foi indesculpável — respondeu Brianna,
com voz trémula.

61
— Olhe, Brianna — continuou Honoré —, eu quero que saiba que
sempre amei muito nosso pai... e que senti sua morte imensamente. Ah, como
eu tinha ciúme.de você e de sua falecida irmã, criadas em meio a tanto carinho
e amor... Como eu queria fazer parte daquela família tão unida... Mas eu não
podia! Não podia porque era um filho bastardo! Um indesejado, cuja mãe
cometera o suicídio!
Brianna engoliu em seco.
— Mas, Honoré, nós sempre tentamos nos aproximar de você! Fazíamos
de tudo para recebê-lo bem em Le Beau Château!
— Eu sei, você tem toda razão! Toda a razão deste mundo! Mas já
naquela época eu estava tomado por um ódio tão grande, que me deixava
completamente cego!
— E agora? Por que essa súbita mudança? O que o fez mudar de idéia?
— O que me fez mudar? Ora, Brianna, meu comportamento bestial
naquela abadia! Acabei tomando consciência de todas as barbaridades que
cometi durante todos esses anos! Resolvi então procurar nosso confessor
comum, frei Edouard, e ele me sugeriu que eu conversasse com você e lhe
implorasse seu perdão.
De súbito, Honoré Dumaine ajoelhou-se diante dela.
— Por favor, ma soeur, em nome do nosso querido pai, eu peço que me
perdoe. Perdoe meu terrível comportamento que nasceu da dor e do desespero!
Ah, eu sinto tanta vergonha do que fiz!
Brianna ficou ali, parada, sem saber o que dizer. Olhou para frei
Edouard, que parecia tão espantado quanto ela. Então, seus olhos pousaram
em Jesse, de pé junto à janela. Tentou adivinhar o que ele estaria achando
daquela história, mas não conseguiu. Seu rosto era uma máscara desprovida
de qualquer emoção.
— Por favor, Brianna — Honoré continuava a implorar. — Deus permita
que você possa me perdoar... Você sempre foi tão generosa...
Ela nunca havia passado por uma situação tão difícil.
— Eu... eu... está bem, Honoré, eu vou lhe perdoar. Agora, levante-se,
por favor. Você não deve... — Virou-se para o padre, o rosto cheio de
desespero. — Frei Edouard, faça com que ele se levante!
— Sim, sim. Honoré... — disse o bom velhinho, vindo em seu auxílio e
ajudando o homem ajoelhado a se levantar. — Vamos pôr uma pedra sobre
esse assunto, está bem? De agora em diante, não se fala mais nisso!
Honoré Dumaine tomou novamente as mãos de Brianna nas suas e
levou-as aos lábios.
— Ah, minha irmãzinha querida, tão linda e tão cheia de bondade... —
ele ofereceu-lhe o braço. — Posso acompanhá-la até o salão de música, onde
os drinques estão sendo servidos?
Frei Edouard observou-os se afastar, depois virou-se para Jesse que
havia assistido à cena toda sem dizer uma palavra.
— O que achou disso tudo, meu filho?
Ele olhou para a porta vazia, com uma expressão estranha no rosto.
— Não sei não, ma père. Esse homem ainda não conseguiu me convencer
totalmente...
Thomas Jefferson, impecável num smoking cinza-chumbo, recebeu Jesse
e frei Edouard na entrada do salão de música, em cujo centro havia um

62
enorme piano austríaco.
— Entrem, cavalheiros, entrem, por favor. Gostaria de apresentá-los aos
meus outros convidados.
Além de Honoré e Brianna, havia no salão cinco pessoas que Jesse não
conhecia. Assim que as apresentações foram feitas, ele soube que a moça
muito alta de pé junto ao sofá era Martha Jefferson Randolph, a filha mais
velha de seu anfitrião, casada com o cavalheiro de cara fechada a seu lado,
Thomas Mann Randolph. Havia também um vizinho de Jefferson, um
fazendeiro chamado Walker e um outro hóspede do palacete, monsieur Fauble,
um émigré francês. Finalmente, Jesse foi apresentado a um homem baixo, de
cabelos crespos e escuros, testa alta e olhos castanhos muito alertas, que
faziam lembrar os olhos de uma raposa.
— Meu caro rival em público e na política — Jefferson estava dizendo. —
Aaron Burr.
Então aquele era o famoso Aaron Burr, pensou Jesse. Não imaginava
encontrá-lo ali. Ambos não tinham os mesmos anseios e ideais, embora suas
diferenças não chegassem a ser tão sérias quanto as de Jefferson e Hamilton.
De qualquer modo, o jantar prometia ser bem interessante.
Martha Randolph aproximou-se de Brianna com um sorriso nos lábios.
— Meu Deus, há quanto tempo! Você não mudou nada!
— Nem você, Martha. Continua a mesma garota que conheci na abadia!
— Que nada. Acabei de ter um bebé e meu peso subiu muito!
Dois copeiros apareceram oferecendo aperitivos e canapés e, pouco
depois, o mordomo entrou no salão informando que o jantar já iria ser servido.
Os convidados foram conduzidos a um salão enorme, cheio de espelhos,
onde havia uma magnífica mesa de mogno sobre a qual reluziam talheres de
prata, taças de cristal e a mais bonita e sofisticada louça chinesa que Brianna
já vira na vida.
O jantar começou tranquilo e sem problemas, os convidados degustando
deliciosas ostras frescas vindas de Maryland, de barco. Somente quando o
segundo prato, um gostoso arroz com ervas finas, foi servido, é que a confusão
começou. Honoré Dumaine parecia fascinado com Aaron Burr e vice-versa.
Espantada, Brianna percebeu que seu meio-irmão não parava de apoiar os
comentários que Burr fazia para provocar Jefferson, mas sempre de um modo
muito sutil que lhe deixava espaço para escapar, quando pressionado. Por que
será que ele estaria agindo daquele modo? Seja lá qual fosse a missão
designada pelo governador Pinckney, ela certamente não envolvia o
antagonismo a Thomas Jefferson!
O que será que Honoré tem na cabeça? Brianna bem que gostaria de
descobrir.
— Senhor — Jefferson estava dizendo a Burr, no momento em que o
terceiro prato, um lombo de porco com legumes, chegou à mesa —, o sistema
financeiro desenvolvido e implantado por Alexandre Hamilton tem apenas dois
objetivos. O primeiro é confundir...
— Confundir? — repetiu Aaron Burr, levantando uma sobrancelha. —
Ora, senhor francamente...
— Confundir, sim — enfatizou Jefferson. — Para que o povo não consiga
entendê-lo, muito menos questioná-lo.
— Mas é claro — veio o comentário de Honoré Dumaine. — Só se

63
confundirão aqueles que não tiverem inteligência e educação necessárias para
compreendê-lo.
Jesse olhou para ele, os olhos brilhando de raiva e indignação.
— Honoré, por acaso está querendo dizer que os cidadãos da América
que, por falta de oportunidade, não puderam se desenvolver culturalmente,
mereçam não entender o complicado sistema financeiro de nosso secretário do
Tesouro?
Honoré Dumaine mexeu-se na cadeira, como se estivesse pouco à
vontade.
— Não, não é nada disso. Acho apenas que o povo não devia se meter em
assuntos que não lhe dizem respeito e...
— Assuntos que não lhe dizem respeito? — repetiu Jesse, indignado. —
Ora, Honoré, não seja ridículo. O povo tem todo o direito de saber o que o
governador faz com o dinheiro que recebe dos contribuintes!
O clima, que já era tenso, continuou inalterado até o término do jantar.
Brianna sentia-se como se as paredes estivessem se fechando em torno dela e
deu graças a Deus quando a sobremesa surgiu numa bandeja de prata. O
pesadelo estava no fim.
O mordomo então voltou à sala, anunciando que os licores e conhaques
seriam servidos no salão de música. Brianna aproveitou o momento para
aproximar-se de sua ex-colega Martha e lhe disse baixinho:
— Será que você se incomodaria se eu me recolhesse agora? A viagem me
deixou exausta.
— Claro que não, querida Brianna. Vá descansar um pouco. — Martha
Randolph bateu palmas duas vezes e de súbito Sally Hemings apareceu, tão
silenciosa que era
Invencível Paixão como se houvesse surgido do nada. - Sally, acompanhe
E antes que alguém pudesse dar por sua falta, Bnanna seguhi Sally
através do longo corredor.
CAPÍTULO DEZESSETE

Brianna estava deitada em sua cama, tentando relaxar. Seus esforços


porém, estavam sendo totalmente inúteis.
Sentia-se tensa e irritada e aquele jantar só havia contribuído para piorar
seu estado de espírito. Fechou os olhos, esperando que o sono viesse. Não veio.
Ah, que vontade de sair um pouco, de respirar o ar fresco da noite... Mas ela
era Brianna Devereaux, uma rica herdeira que não tinha permissão para sair
sem companhia. E Aimée estava dormindo profundamente. A pobrezinha devia
estar exausta e não seria justo acordá-la.
Então ela teve uma ideia. O disfarce que usara no Cisne Negro! Claro!
Como não havia pensado naquilo antes? Levantou-se correndo e, abrindo o
armário ocupado pela cigana, encontrou o vestido que usara naquele dia. Uma
enorme sensação de euforia invadiu-lhe a alma e ela quase tropeçou no quarto
escuro. Brianna Devereaux não podia ir a lugar nenhum, mas Brielle Gitane
não devia obediência a ninguém.
Vinte minutos depois, escondendo uma mecha de cabelo dentro da touca
branca, "Brielle Gitane" surgiu dos fundos da casa e ganhou os jardins floridos
e bem cuidados de seu anfitrião. Sentindo-se exultante, respirou fundo,
tentando reconhecer o perfume de tantas árvores e plantas que por ali
64
cresciam. Era uma moça livre de novo. Por pouco tempo, infelizmente, mas
livre, de qualquer maneira.
Começou a passear pelas alamedas iluminadas pela luz da lua e deixou
que o pensamento voasse longe. Estava vivendo um momento mágico e foi
como se o tempo tivesse deixado de existir. Há quantas horas estava naquele
jardim? Uma? duas? Três? Não fazia idéia e tampouco isso a preocupava. Seja
lá o que fosse acontecer em sua vida daquele dia em diante, não importava na-
quele instante. Pretendia viver aqueles momentos de pretensa liberdade na
mais completa paz.
De súbito, um ruído estranho vindo ali de perto chamou-lhe a atenção.
Alguém parecia caminhar em sua direção.
— Quem está aí? — perguntou uma voz muito familiar.
Era Jesse!
Ela ainda tentou se esconder atrás de uma árvore, mas foi alcançada por
uma mão forte que segurou-lhe o braço.
A expressão no rosto de Jesse Randall quando a viu foi de absoluta
incredulidade.
— Ora, ora, mas o que temos aqui! A criada que conheci no Cisne Negro,
em Charleston! O que está fazendo no estado da Virgínia, chérie?
Pensando rapidamente, Brianna respondeu, carregando no sotaque
francês:
— Eu... eu... estou agora a serviço de monsieur Fauble, um dos hóspedes
dessa casa. Vim para ajudar... na preparação do jantar. Meu arroz com ervas
finas é três bon.
Jesse sorriu.
— Ah, sim, mas que coincidência... Seu nome é Brielle, não é?
— Oui, monsieur — respondeu ela, tentando adivinhar se ele estava
mesmo engolindo a história. — É um prazer vê-lo de novo.
— O prazer é todo meu, chérie.
Então, dando um passo à frente, ele a tomou nos braços e a beijou.
Foi-se o jardim, foi-se a casa, foi-se a noite. Agora, a única coisa que
importava a Brianna era o calor que emanava de todos os seus poros,
deixando-a tonta de prazer e acabando com o pouco bom senso que ainda lhe
restara. Ela se sentia no paraíso. Havia a língua de Jesse fazendo coisas
incríveis em sua boca, havia um corpo forte e masculino colado no dela, havia
o perfume cítrico de sua água de colónia, havia as mãos que tocavam-lhe os
seios... Uma vozinha vinda dos confins de seu cérebro lhe dizia que tudo aquilo
era uma loucura, que Jesse era seu odiado tutor, mas era como se ela
estivesse dominada por uma estranha força que acabava com todo o qualquer
raciocínio lógico. Não protestou quando ele a deitou gentilmente na grama do
jardim, nem ao perceber vagamente que ele levantava-lhe o vestido. Tudo
aquilo parecia tão certo, tão maravilhoso, tão natural...
— Ah, chérie, você foi feita para dar e receber prazer — sussurrou ele,
livrando-se de suas calças. — Venha comigo, vou levá-la ao paraíso...
A dor que Brianna sentiu em seguida pareceu tirá-la de seu estranho
estado de torpor.
— Pare! — ela ainda pediu, mas Jesse já mergulhara fundo em seu
corpo, movendo-se num ritmo alucinante, até que um grito animal escapou de
sua garganta e tudo estava acabado.

65
Tudo acabado, não. Tudo estava apenas começando. Durante os embates
amorosos, a touca branca havia caído e agora Jesse Randall percebia quem era
Brielle Gitane na verdade. Uma raiva cega tomou conta de sua alma.
— Sua irresponsável! — ele gritou. — Veja só o que aconteceu!
Ela tentou se levantar, os olhos verdes faiscando de ódio.
— Quem é o irresponsável nessa história, sr. Randall?
Aquelas palavras devolveram a Jesse um pouco de seu bom senso
perdido e ele a abraçou com força.
— Calma, calma, Brianna. O que aconteceu foi um erro, mas tudo vai
acabar bem.... Você... está sentindo dor?
Ela fez que não com a cabeça. Jesse afastou-se a fim de vestir-se
novamente, então voltou a tomá-la nos braços.
— Por que este disfarce?
— Ora, Jesse, será que é tão difícil assim de entender? Eu queria poder
respirar um pouco! Gozar de alguns minutos de liberdade, sem ter alguém
atrás de mim, vigiando meus passos!
Ele levantou a mão e acariciou-lhe os cabelos.
— O mundo é um lugar muito perigoso, Brianna. Você ainda é uma
criança e...
— Não, Jesse. Não sou mais uma criança. E não é o mundo que é
perigoso. São certas pessoas que moram nele! — Ela se levantou. — Meu pai
devia estar louco quando o escolheu para tomar conta de mim! Completamente
louco!
— Brianna, eu...
Mas ela já tinha virado as costas e desaparecido em meio à escuridão.
Jesse Randall enterrou a cabeça nas mãos, absolutamente desesperado.
Havia se metido numa enorme enrascada!
E agora, o que vai ser de mim?
Exausta e ofegante, Brianna chegou a seus aposentos sem que ninguém
a visse. Verificou o quarto de dormir e deu graças a Deus quando percebeu
que Aimée dormia o sono dos justos. Despiu-se rapidamente e deitou-se em
sua cama, tentando se acalmar um pouco. Porém, por mais que tentasse, a tão
sonhada tranquilidade não vinha. Uma dorzinha monótona entre suas pernas
não parava de lembrá-la dos momentos de horror vividos havia pouco tempo
tinham sido muito reais.
Olhou em volta. O quarto iluminado pela luz das velas continuava o
mesmo. Quem havia mudado era ela. E como havia mudado... Deixara de ser
uma menina. Transformara-se numa mulher. Mas o processo de transição fora
tão traumático! O que acontecera não podia ser chamado de um ato de amor.
Fora mais um ato de... luxúria, paixão e desejo. Sua virgindade estava perdida
para sempre. E agora? O que seria dela? Haveria alguém naquele país que
concordaria em tomá-la como esposa? E frei Edouard? O que diria, se
soubesse?
— Ah, minha Nossa Senhora! — ela gritou. — O que vai acontecer? Santa
Mãe de Deus, me ajude! Estou tão confusa e perdida!
Segundos depois, uma assustada Aimée estava a seu lado.
— O que foi, Brianna? Aconteceu alguma coisa? Vamos, fale comigo!
Você teve algum pesadelo?
Os soluços de Brianna, porém, impediam qualquer conversa.

66
— Por favor, chérie, não chore! — pediu Aimée, abraçando-a com
carinho. — Vamos, sente-se aqui e me conte o que aconteceu. Duas cabeças e
dois corações pensam melhor que um de cada, não é?
— Ah, Aimée! — ela conseguiu finalmente dizer, entre um soluço e outro.
— O que aconteceu é tão horrível, que eu nem posso lhe contar!
— Claro que pode. Olhe, respire fundo algumas vezes, lente se acalmar
um pouco e então me conte. Se não se abrir comigo, vai se abrir com quem?
Sou sua melhor amiga, já se esqueceu disso?
Brianna encostou a cabeça no travesseiro.
— Aimée, eu... eu... perdi a virgindade esta noite!
A cigana não podia ter ficado mais espantada.
— Meu Deus, Brianna! Quem foi o animal? Honoré Dumaine? Aquele
bastardo!
— Não, não foi Honoré. Foi... Jesse Randall! Meu tutor... O homem que
devia me proteger!
— Não!
Um pouco mais calma, Brianna lhe contou tudo, desde o inocente
passeio de "Brielle Gitane", até a trágica volta a seu quarto.
Aimée ouviu a história toda em silêncio. Quando a amiga terminou seu
relato, ela levantou a mão e acariciou-lhe os cabelos ruivos em desalinho.
— A perda da virgindade é algo que acontece mais cedo ou mais tarde na
vida de uma mulher, Brianna. Você está triste assim porque não aconteceu do
modo romântico com que nós, as garotas, costumamos sonhar. Se fosse sua
noite de núpcias...
— Só que não era, Aimée! Ah, meu Deus, o que eu faço quando ela
acontecer de verdade? O que vou falar ao meu marido? Ninguém vai querer se
casar comigo e...
— Brianna! Não mude de assunto!
— Eu não estou mudando de assunto, Aimée.
— Claro que está. Não interessa a reação do seu futuro marido, seja ele
quem for. Interessa quais são seus verdadeiros sentimentos em relação a Jesse
Randall!
— O quê? Meus sentimentos em relação a Jesse Randall? Ora, Aimée, eu
o odeio!
— Será que odeia mesmo, chériel
— É claro que sim!
— Bem, querida, você está exausta agora. Por que não dorme um pouco?
Os problemas ainda existirão amanhã, mas é provável que você passe a
enxergá-los de outro modo...
— Eu estou muito triste, Aimée. A dor do meu coração é tão grande...
— Sei disso. Mas sei também que essa dor vai acabar se transformando
em alegria, fazendo de você a mais feliz das mulheres.
— O que está querendo dizer com isso, Aimée?
— Estou querendo dizer que você vai viver um grande amor, desses que
todas nós sonhamos na vida. Agora trate de dormir um pouco, está bem?
Brianna abraçou a cigana.
— Ah, mon amie, o que eu faria sem você?
CAPÍTULO DEZOITO

67
Thomas Jefferson, sentado numa poltrona de sua biblioteca, degustava o
conhaque que Jesse lhe trouxera de presente.
— É realmente uma delícia, meu caro. Um dos melhores que já provei.
Que paladar suave...
Jesse sorriu.
— Fico contente que tenha apreciado, senhor.
O secretário de Estado observou-o com olhos atentos.
— Bem, o senhor me disse que queria me fazer um pedido... Estou às
suas ordens.
Jesse mexeu-se na cadeira. A hora da verdade tinha chegado.
— Sim, senhor. Aliás, o pedido não é só meu. É de centenas de
fazendeiros e homens de negócios da Carolina do Sul, que concordam comigo
quanto ao desastre iminente que sua saída do governo representaria para
nosso país.
Thomas Jefferson examinou o líquido dourado em seu copo.
— Por que diz isso, meu caro sr. Randall?
— Por um motivo muito simples. Como já disse um velho amigo meu,
James Carlisle, o senhor é a única esperança da América contra a posição
federalista de Alexander Hamilton e seu bando de amigos milionários de
narizes empinados. Só sua permanência no poder poderá salvar o partido
republicano e a democracia nesse país.
Thomas Jefferson colocou a taça de cristal em cima de uma mesa, e
levantando-se aproximou-se da janela.
— Sabe, meu amigo, vou lhe contar algo que ninguém sabe. Em maio
desse ano, eu fiz exatamente aquilo que você veio até aqui pedir para eu não
fazer. Mandei a Washington minha carta de demissão.
— O senhor... o quê?
— Calma, calma, eu disse que mandei a carta. Não disse que o
presidente a aceitou. Na verdade, a recusa de sua Excelência foi motivo de
uma enorme troca de correspondência entre nós. No final, ele acabou me con-
vencendo a mudar de ideia. Pelo menos por enquanto.
Jesse sentiu um grande alívio dentro do peito. Enquanto Thomas
Jefferson estivesse no poder, a América estaria a salvo das garras ambiciosas
de Alexander Hamilton e de seus amigos ricos e esnobes.
Ambos continuaram a conversar durante algum tempo. Falaram sobre
viagens, música e arquitetura, então o secretário de Estado pediu licença a fim
de resolver alguns negócios urgentes.
— Continuaremos nossa conversa durante o jantar, sr. Randall. É um
prazer ter um hóspede tão ilustre e inteligente aqui em casa.
Minutos depois, Jesse voltava a seu quarto a fim de escrever uma carta
ao governador Pinckney, quando ouviu vozes femininas vindas do final do
corredor. Não demorou a reconhecê-las. Eram de Brianna e Aimée, que faziam
comentários a respeito do bebê de Martha Jefferson Randolph.
— É a cara do avô — comentou a cigana. — Igualzinho!
— Os cabelos são da mesma cor — acrescentou Brianna. — E aposto que
os olhos também serão azuis.
— Martha está muito feliz, não é?
— É verdade. Ela está tão bem-disposta, que ninguém diria que acabou
de dar à luz!

68
Sabendo que ainda não tinha sido visto, Jesse observou as duas garotas
que se aproximavam. Sentiu um aperto no peito. Como Brianna estava
bonita... Era como se ela embelezasse a cada dia, deixando a infância para trás
e transformando-se numa mulher de verdade.
Não. Ela já era uma mulher. Fora ele quem a fizera assim.
Então, Brianna o viu. E seu belo rosto ficou tenso. Fez um sinal para
Aimée e ambas passaram por ele sem ao menos cumprimentá-lo. Certamente a
cigana já sabia de tudo. Não podia culpá-las por estarem com raiva dele. Sua
atitude havia sido imperdoável.
Bem, precisava dar um jeito de consertar a bobagem que havia feito.
Arranjar um bom marido para Brianna seria o primeiro passo.
Mas então por que a ideia de vê-la casada o deixava tão inquieto?

CAPÍTULO DEZENOVE

Brianna ainda estava um pouco trémula quando chegou ao pomar nos


fundos da casa de Thomas Jefferson. Não esperava encontrar Jesse Randall
logo pela manhã. Talvez as coisas ficassem um pouco mais fáceis se seu tutor
não fosse um homem tão atraente e bonito.
— Você foi muito corajosa — cumprimentou Aimée. — Passou por ele e
nem piscou os olhos. Meus parabéns!
— Só porque você estava ao meu lado, me dando coragem. Ah, Aimée, eu
não sei o que faria sem a sua abençoada presença! Você é a minha salvação!
A cigana sorriu e acenou para os dois homens que se aproximavam.
— Olhe, Isaac e Festus estão chegando com a cesta de palha. Vamos ver
quem consegue apanhar mais maçãs!
Brianna pareceu esquecer o incidente de momentos atrás e apressou-se
em cumprimentar o mordomo e o ex-escravo.
— Isaac! Festus! Vocês estão bem? — Seus olhos então se voltaram para
uma pequena sombra que seguia os passos do negro. — Como está o gatinho?
— Olá, srta. Brianna. Nosso amiguinho não podia estar melhor!
Ela abaixou-se para acariciar o animalzinho cuja saúde e bons cuidados
podiam ser confirmados pelo fato de ter triplicado de tamanho desde o dia em
que Festus decidira cuidar dele.
— Como vai, bichano lindo? Você também vai nos ajudar a colher
maçãs?
— Acho que ele vai ajudar a espantar os passarinhos — isso sim — disse
Festus, mostrando os dentes muitos brancos.
— Espero que ele jamais seja encorajado a caçar qualquer avezinha,
Festus. Detesto gatos que avançam em passarinhos.
— Eu também, srta. Brianna. Juro que esse gatinho jamais será um
caçador! É uma promessa que será cumprida!
Rindo e conversando, os quatro foram andando até as macieiras
carregadas do pomar. A cesta de palha foi logo enchida, então Brin una
avistou uma árvore mais adiante carregada com frutas de uma coloração um
pouco diferente. Não teve dúvidas. Cantarolando alegremente, correu para lá.
Eram maçãs esverdeadas, como ela nunca tinha visto. Estava tão
entretida na tarefa de colhê-las, que levou um susto ao ouvir a voz masculina,
bonita e profunda, que soou atrás dela:

69
— É um prazer vê-la assim tão feliz, ma soeur.
O susto foi tão grande que a maçã recém-colhida caiu no chão.
— Honoré! — ela exclamou, alarmada. — Posso saber o que está fazendo
aqui?
— Peço desculpas se a assustei, chérie. Não tive a mínima intenção de
fazê-lo.
Ele vestia roupas brancas, apropriadas para uma manhã de sol. Estava
elegante como sempre, mas o sorriso estranho em seus lábios fez com que
Brianna sentisse um arrepio, apesar do calor que fazia.
— Eu... hã... você quer falar comigo? — Ela forçou um sorriso. — É que
estou muito ocupada, colhendo maçãs para a torta que teremos de sobremesa
no jantar.
— Você está sozinha aqui no pomar? — ele perguntou, com ar casual.
— Claro que não! — ela respondeu apressadamente. — Isaac, Festus e
Aimée estão logo ali adiante.
Um só grito meu e eles virão correndo, ela teve vontade de acrescentar.
Apesar da recente reconciliação, ainda não confiava naquele homem que se
dizia seu meio-irmão. Honoré Dumaine parecia tão estranho...
Ele deu um passo à frente.
— Está gostando de sua estada nessa casa, ma petite. Disfarçadamente,
Brianna deu um passo para trás.
— Claro que sim. Quem parece não estar gostando nada dessa visita é
você, que passa o tempo todo provocando nosso anfitrião. Essa história de
você concordar com tudo o que Aaron Burr fala é irritante! Se era para tratar
Thomas Jefferson desse jeito, por que o governador Pinckney fez tanta questão
de mandá-lo para cá?
Honoré Dumaine soltou uma sonora gargalhada.
— Não se preocupe com isso, ma petite. As mulheres não devem encher
suas lindas cabecinhas com esse tipo de problema. Deixe isso para nós,
homens experientes.
Dizendo isso, deu mais um passo à frente e, estendendo a mão, tocou de
leve em seus cabelos. Horrorizada, Brianna esquivou-se daquele contato.
— Acontece que essa "linda cabecinha" pensa, meu caro Honoré. Fran-
camente, seu comportamento está sendo imperdoável! Você devia tratar nosso
anfitrião com um pouco mais de respeito! É o mínimo que se espera de um
convidado e...
— Ora, Brianna, chega desse assunto monótono. O dia está lindo, assim
como minha querida irmãzinha. Que tal falarmos sobre coisas mais
agradáveis? Nós dois, por exemplo. Aposto que...
— A senhorita está muito ocupada, sr. Dumaine. Deixe-a em paz, por
favor.
Era Festus que se aproximava, uma expressão de poucos amigos no
rosto. Ao ver o negro, Honoré deu um sorriso de puro desdém e teria
respondido alguma coisa desagradável, se Brianna não o tivesse interrompido
com firmeza.
— Monsieur Dumaine já estava indo embora, Festus. — Virou-se para o
meio-irmão. — Tenha um bom dia, Honoré. Como meu amigo Festus já lhe
disse, estou muito ocupada. Com licença.
— Seu "amigo"? Minha cara irmã, vou lhe dar um conselho. Lembre-se

70
de que não está mais na França e sim, na América. Aqui, os negros ainda são
considerados seres inferiores e não devem ser tratados com tanta con-
sideração. — Ele fez uma mesura diante dela. — Com licença, ma soeur.
Brianna sentiu que o sangue fervia em suas veias.
— Pois fique sabendo, Honoré Dumaine, que seres inferiores são aqueles
que trazem preconceitos e maldade em seus corações! Agora, suma da minha
frente!
Ela ainda tremia de ódio quando o meio-irmão se afastou, o mesmo
sorriso irónico nos lábios.
— Peço desculpas por ele, Festus. Honoré é um dos homens mais
desagradáveis que conheço. Nem consigo acreditar que o sangue dos
Devereaux corre em suas veias.
— Não ligue para ele srta. Brianna. — Festus deu um sorriso. — Pessoas
como o sr. Dumaine não me incomodam. Agora vamos voltar a colher nossas
maçãs? Isaac e a srta. Aimée estão à nossa espera!
— Vamos — respondeu Brianna, sentindo-se feliz de novo. — Mas só com
uma condição.
— Que condição?
— Que você pare imediatamente com essa história de me chamar de
senhorita. De agora em diante, sou só Brianna!
O negro engoliu em seco.
— Olhe, a senhorita já me pediu isso uma vez, eu tentei, mas acho que
não vou conseguir. Moças brancas devem ser chamadas de senhora ou
senhorita. Eu não passo de um negro e...
— A cor da pele não determina o caráter das pessoas, Festus. Tudo bem.
Você é negro, sim. Mas, qual é o problema? Não é por isso que deve se sentir
inferior às outras pessoas. Eu gostaria muito que você fosse meu amigo. Meu
amigo de verdade.
Uma expressão de genuína felicidade iluminou o rosto do ex-escravo.
— Ser seu amigo é uma honra enorme que eu não posso recusar...
Brianna. Agora, vamos voltar a colher maçãs?
— Vamos!
Rindo, ambos voltaram à tarefa em questão.
De volta a seus aposentos, Brianna espreguiçou o corpo dolorido na
cama. Aimée tinha saído a fim de pedir a uma das criadas que lhe preparasse
um banho. Massa-geou os músculos doloridos do braço direito. Colher maçãs
não era uma tarefa fácil. Nem tão divertida quando apanhar cerejas do jardim
de monsieur Fourney!
Fechou os olhos, lembrando-se do colégio com certa nostalgia. Como
estaria madame Méziêres? Sentia falta dela e de seus sábios conselhos.
— Seja muito feliz, minha filha — ela lhe dissera em Le Havre, na hora do
embarque. — Caminhe em direção à maturidade com passos lentos e serenos.
Grossas lágrimas começaram a escorrer por seu rosto. Era como se tudo
tivesse dado errado em sua vida desde o momento em que pisara em solo
americano. Seu pai fechara os olhos para sempre, sem que ao menos tivesse
tido tempo para se despedir. Depois, tivera a má sorte de conhecer Jesse
Randall. Seu tutor. O homem que deveria protegê-la.
O homem que a deflorara quase que à força. Ela não sabia o que iria ser
de sua vida dali em diante. Corria o mês de setembro. Teria de estar casada

71
até o fim do ano, senão toda a fortuna dos Devereaux acabaria caindo nas
mãos desonestas de Honoré Dumaine. O que será que ele faria com tanto
dinheiro? Com certeza iria comprar centenas de escravos e...
Não! Aquilo não podia acontecer. O dinheiro que pervencera a seu pai,
sendo usado para comprar seres humanos? Não! Mil vezes, não!
Precisava dar um jeito de encontrar um marido o quando antes. Um
homem que não se importasse com o fato de não ser mais virgem. Um homem
bom, que tivesse caráter. E do qual ela gostasse, nem que fosse um pouquinho
apenas.
O problema era saber se alguém assim existia. E se existisse, onde
encontrá-lo?
CAPÍTULO VINTE

Durante o resto de seus dias no palacete de Thomas Jefferson, Jesse e


Brianna tentaram evitar a companhia um do outro ao máximo, ele passando
quase que o tempo todo ao lado de seu anfitrião conversando sobre política e
arquitetura, ela e Aimée junto a Martha Randolph e seu adorável bebê recém-
nascido. Era um arranjo muito satisfatório para ambos e, se alguém reparou
naquele súbito afastamento, não fez comentário algum.
Na última noite, porém, como Thomas Jefferson tivesse planejado um
grande jantar de despedida para seus hós-i pedes da Carolina do Sul, o
reencontro seria inevitável. Agora, Brianna encontrava-se diante do enorme
espelho em seu quarto, estudando seu reflexo. Pela centésima vez em muitos
dias, desde seu desastroso e infeliz en-i contro com Jesse Randall no meio do
jardim, ela procurou] por alguma coisa em seu rosto, algum sinal que poderia
revelar a perda de sua inocência. Não encontrou nada A imagem que tinha era
a de uma garota alta, magra usando um lindo robe em chemise azul bem claro
que valorizava ainda mais seu belo corpo. Os cabelos ruivo estavam presos
num coque no alto da cabeça, deixando à mostra seu rosto ligeiramente corado
graças aos dias de sol forte da Virgínia. Achou-se parecida com a mãe. Fechou
os olhos, sentindo uma grande tristeza no coração. Ah, que saudade dela... e
como tudo teria sido diferente se ela ainda estivesse nesse mundo! Mas a hora
de Aileen Devereaux já havia chegado e a verdade, por mais dolorosa que
fosse, precisava ser encarada. Brianna estava sozinha no mundo. Claro, tinha
amigos como Aimée e irei Edouard, mas só ela poderia resolver seus próximos
problemas.
Ela e sua coragem.
— Estamos atrasadas — soou a voz de Aimée, interrompendo-lhe os
pensamentos. — Vamos indo?
Brianna abriu os olhos e respirou fundo.
— Vamos.
— Ótimo. Já estava ficando com medo de que você fosse desistir de com-
parecer a esse jantar.
— Se eu pudesse, Aimée, ficaria aqui, trancada nesse quarto, com o
maior prazer. Mas sei que não posso. Nosso anfitrião iria se ofender.
— É claro que iria. — Aimée ajeitou, seus cabelos escuros diante do
espelho. — E eu, chérie? Como estou?
— Linda como sempre. Esse vestido amarelo é o mais bonito de seu
guarda-roupa! Hum... Mas acho que está faltando alguma coisa. Um colar,

72
talvez.
— Eu... não trouxe nenhuma jóia, Brianna. — Ela deu um sorriso sem
graça. — Aliás, eu nunca tive uma jóia na vida.
— Pois então está na hora de ter uma. — Brianna apanhou uma caixa
em cima da cómoda e entregou-a à cigana. — Abra, chérie. Veja se você gosta.
— Mas... esse colar pertenceu a Deirdre! — exclamou Aimée, verificando
seu conteúdo. — Não posso ficar com ele!
— Deirdre era minha única irmã, Aimée. Ela se foi, mas Deus colocou
você no meu caminho, para que eu tivesse forças para viver. O colar é seu.
Aceite-o como um símbolo de nossa eterna amizade.
As duas moças se abraçaram.
Quinze minutos depois, com o colar de ouro de Deirdre Devereaux
faiscando no colo de Aimée Gitane, ela e Brianna entraram no salão de
música, onde já se encontravam todos os hóspedes de Thomas Jefferson.
Jesse, junto à lareira apagada, conversava com frei Edouard, muito
embora seu pensamento voasse longe. Sentiu o coração bater com mais força
no momento em que avistou Brianna Devereaux, ao lado da cigana. Como ela
era bonita! Certamente a mulher mais bonita que já conhecera, com exceção
de uma. Deirdre. Balançou a cabeça lentamente. Não. Se quisesse ser bem
sincero consigo mesmo, tinha de admitir que Brianna era ainda mais bonita do
que sua ex-noiva. Lembrou-se do dia em que a vira em Le Beau Château,
segurando o gatinho nas mãos. Ela parecia uma princesa saída de um conto
de fadas. Um anjo ruivo, em cujo coração havia doses iguais de força, bondade
e coragem.
Uma mulher de carne e osso, que conhecera o amor da pior maneira
possível. Desolado, murmurou um palavrão.
— Como? — perguntou frei Edouard, tomando um gole de conhaque. —
Você disse alguma coisa, meu filho?
Jesse ficou vermelho como um pimentão.
— Hã... Não, meu bom frei, eu não disse nada... ah, olhe, nosso anfitrião
está nos chamando. Acho que o jantar já vai ser servido. Estou com bastante
fome. E o senhor?
Frei Edouard levou a mão à sua proeminente barriga, em direção do
estômago.
— Mais um minuto e acho que acabaria desmaiando. Não sei por que,
mas o ar da Virgínia aumentou meu apetite ainda mais! Alorsl Vamos jantar!
Thomas Jefferson ofereceu o braço à Brianna e juntos deixaram o salão
de música. Enquanto caminhavam em direção à sala de jantar ela aproveitou
para dar uma boa e última olhada numa das mais famosas residências do sul
da América, talvez de todo o país. Com cuidado, observou os tapetes, os
enfeites feitos a mão, os inúmeros objects d'art que decoravam os corredores,
tentando guardar tudo na memória para, um dia, poder contar a seus filhos e
netos. Olhou também para seu anfitrião. Jamais se esqueceria daquele nariz
longo e reto, da boca bem feita e do queixo forte e determinado.
Porém, ao virarem à esquerda a fim de entrar na sala onde aconteceria o
jantar, ela avistou uma moça escondida atrás de uma coluna, observando o
cortejo com olhos cheios de tristeza: era Sally Hemings, a escrava branca de
Thomas Jefferson. E foi aquela imagem patética que a acompanhou até o final
da noite.

73
A entrada servida estava magnífica, um delicioso filé de salmão grelhado
com arroz branco. Além dos convidados presentes no primeiro jantar do
palácio, havia muitos outros amigos ao redor da mesa, três dos quais prós-
peros e solteiros fazendeiros da região. Por um momento, Brianna tentou
adivinhar se Jesse havia pedido a seu anfitrião que os convidasse, dando
assim início à temporada de caça a um marido. Era provável que sim, já que
estava sentada entre dois deles, sendo que o terceiro encontrava-se bem à sua
frente.
O da esquerda, Jonathan Chillingham, era um homem de cabelos
escuros e olhos azuis, que passou pelo menos uma hora lhe falando a respeito
de sua fazenda, onde morava com uma irmã solteira que não pudera compa-
recer ao jantar por causa de uma "terrível dor de dente". O da direita chamara-
se David Whiteside, um viúvo recente de uns quarenta anos de idade, que não
parecia preocupado em esconder o fato de que estava procurando uma esposa,
a fim de que essa cuidasse de seus oito filhos, as idades variando de dois a
quinze anos. O sr. Whiteside era gordo, careca, tinha um rosto muito vermelho
e sua conversa era monótona e desinteressante. Brianna foi simpática e
educada com ele, mas decidiu não fazer nada para encorajá-lo.
O convidado à sua frente era o coronel Jeremy Grenfield, um homem com
cara de bobo que passou o jantar inteiro com os olhos fixos em seu decote.
Como os três pretendentes não fossem exatamente príncipes encantados,
Brianna decidiu ignorá-los e voltou a atenção a seu anfitrião, que contava a
Aimée as circunstâncias em que escrevera a Declaração de Independência da
América.
— Passei a noite inteira em claro, srta. Gitane. Quando o dia amanheceu,
pensei que fosse explodir de tanta felicidade. Eu havia colocado no papel tudo
o que meu coração queria e desejava... Nada é tão importante quanto o direito
à vida e à liberdade...
Brianna tomou um gole de vinho que um criado tinha acabado de lhe
servir. Estava delicioso, na verdade, o jantar todo estava ótimo... mas havia
algo que ela não conseguia engolir. As palavras de seu anfitrião. Direito à vida
e à liberdade... Liberdade? E por acaso Sally Hemings e seu filho eram livres?
Por acaso eram livres as centenas de escravos que trabalhavam em suas
terras? Bem que ela tentou morder a língua. Bem que tentou se controlar,
fazer alguma coisa para dominar seu temperamento forte. Mas não conseguiu
nem uma coisa nem outra. Quando se deu conta, tinha o rosto voltado para
Thomas Jefferson e lhe perguntava, com voz firme:
— Já que o senhor prega tanto noções como a justiça e a liberdade, por
que não liberta todos os seus escravos?
Fez-se um silêncio de morte naquela enorme sala de jantar. Thomas
Jefferson, um dos homens mais importantes e poderosos do país, ficou branco
como um fantasma. Sua filha Martha, num misto de espanto e incredulidade,
levou a mão à boca. Honoré Dumaine e Aaron Burr sorriram ironicamente,
sem fazer barulho. Jesse, o rosto lívido de fúria, fez menção de se levantar,
mas o olhar de frei Edouard lhe pedindo calma o fez recuar em seus propósitos
e ele voltou a sentar-se.
Mais tarde, Brianna só teria uma vaga idéia dos acontecimentos que se
seguiram. Seu pedido de licença e retirada do salão, os olhares perplexos, os
cochichos no momento em que ela virara as costas.

74
Só foi tomar consciência do que tinha feito quando saiu para o jardim, a
fim de tomar um pouco de ar fresco. Ela, Brianna Devereaux, tivera a audácia
de confrontar um dos homens mais poderosos do país. Dieu, o que dera em
sua cabeça?
— Srta. Devereaux?
Ela virou-se ao som daquela voz suave e viu Sally Hemings se
aproximando apressadamente.
— Olá, Sally. Eu... eu...
— Sim, eu sei. Eu vi tudo. É por isso que vim aqui, para lhe falar.
— Você... você viu tudo? Mas como?
— Ah, eu peço perdão, senhorita, mas sei de tudo que acontece nessa
casa. Costumo ouvir atrás das portas... Sei que é algo muito feio, mas tenho
permissão do próprio sr. Jefferson para fazê-lo.
— Então você ouviu o que eu disse?
— Ouvi, sim. E é sobre isso que gostaria de lhe falar.
— Tudo bem — respondeu Brianna e as duas mulheres começaram a
andar pelo jardim iluminado por uma linda lua de prata.
— Em primeiro lugar — disse Sally, após alguns momentos, gostaria de
lhe dizer que fiquei admirada com sua coragem. Meus parabéns.
Brianna deu um sorriso desanimado.
— Obrigada. Acho que todo mundo naquela sala está querendo me
matar, mas eu falei o que sentia. Sabe, Sally, sou um pouco diferente das
outras moças desse país. Fui criada na França, onde acontece uma grande
revolução que com certeza vai mudar os destinos de toda a humanidade. Sou
uma pessoa muito radical no que se refere à liberdade. Eu odeio a escravidão.
É uma chaga aberta que envergonha o mundo inteiro, algo completamente
intolerável. Minha família inteira sempre pensou dessa maneira.
As duas moças pararam de andar e sentaram-se num banco de madeira.
— A senhorita vai me achar uma perfeita idiota, mas eu tenho de lhe
dizer uma coisa.
— O quê, Sally? Vamos, pode falar.
— Eu morei na França durante algum tempo com o sr. Jefferson, onde
ele representava o governo americano.
— Sim, eu sei.
— Mas o que a senhorita não sabe é que eu podia ter obtido minha
liberdade... mas não tive coragem de fazê-lo.
Brianna arregalou os olhos ao ouvir aquilo.
— Obtido sua liberdade? Como assim?
— A escravidão já tinha sido abolida na França quando eu estava lá.
Tudo o que tinha a fazer era me recusar a voltar para casa e fixar residência
em Paris.
Brianna não acreditava no que ouvia.
— Mas então... por quê?
Os olhos de Sally Hemings pareciam implorar por um pouco de
compreensão. Continuando num tom de voz quase que inaudível, ela explicou:
— Se eu ficasse lá, teria de deixá-lo.
Então Brianna compreendeu tudo. A moça à sua frente era tão
apaixonada por Thomas Jefferson que desistira da própria liberdade para ficar
com ele. Realmente, ela jamais ouvira história parecida em toda a sua vida.

75
Tocou de leve o ombro dela.
— Deve ter sido uma decisão muito difícil para você, Sally. Acho que, no
fundo, você é mais corajosa que eu.
— Ah, senhorita, eu...
— Não me chame mais de senhorita, por favor. Eu gostaria muito de ser
sua amiga... e as amigas se tratam pelo primeiro nome.
— Muito obrigada... Brianna. Agora, se me dá licença, tenho de voltar
para casa. Meu filho está sozinho no quarto e eu tenho medo que ele acorde a
qualquer momento.
— Eu volto com você. — Brianna se levantou. — Obrigada por ter vindo
conversar comigo.
Num impulso, Sally a abraçou.
—Não deixe que ninguém intimide você, Brianna. Jamais!
Pouco depois, já em seu quarto, Brianna ainda tinha dificuldade em
compreender a decisão de Sally Hemings. A moça abrira mão de sua liberdade
por amor a um homem. Será que ela própria, Brianna Devereaux, no lugar da
outra, teria tido a mesma atitude? Seu corpo todo vibrou num sonoro não.
Tirou o vestido e deitou-se na cama, usando apenas as roupas de baixo.
Aimée ainda não tinha voltado. Era provável que o jantar ainda fosse se
estender por mais algum tempo. Melhor assim. Queria ficar um pouco sozinha
a fim de refletir sobre os últimos acontecimentos.
Algo um tanto impossível, porque, dois minutos depois, ouvia-se uma
batida forte na porta.
— Brianna! Quero falar com você!
Era Jesse. E, pela maneira que falava, estava tomado por uma fúria
animalesca.
— Vá embora! — ela respondeu. — Quero dormir!
— Você não vai dormir antes de me ouvir! — Ele abriu a porta e a fechou
novamente, com violência, arrancando lascas de madeira das extremidades.
Brianna sentou-se na cama imediatamente, protegendo o corpo seminu
com os braços.
— Como ousa entrar no meu quarto desse jeito?
Jesse aproximou-se dela com passos rápidos.
— Eu ouso entrar aqui porque sou o tutor de uma cabeça-dura irrespon-
sável, cujo comportamento indesculpável quase causou o fracasso de uma
missão diplomática da maior importância! — Ele se abaixou e ambos ficaram
cara a cara. — Eu ouso entrar aqui porque essa mesma garota ofendeu
profundamente um dos homens mais poderosos e influentes dessa nação, um
homem em cuja casa está hospedada! Francamente, Brianna, sua grosseria foi
além de todos os limites! Estou tão bravo com você que deveria esbofeteá-la!
De súbito, ela se levantou numa reação tão violenta quanto a dele.
— Não me ameace, Jesse Randall! Você pode não ter gostado do que eu
falei na hora do jantar, mas o fato é que eu falei e, mais importante do que
tudo, falei porque tinha razão! O mesmo homem importante e influente, em
cuja casa estou hospedada, escreveu um dos artigos mais bonitos e
comoventes sobre a liberdade humana, ficou conhecido no mundo todo por
causa disso, mas tem a coragem de manter em sua propriedade centenas de
escravos negros!
— Brianna...

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— E uma escrava branca também! Sally Remings, uma moça fina e culta,
cuja pele é tão clara quanto a nossa! Você sabia que ela lhe deu um filho? Pois
bem, esse pobre menino também é um escravo! Como é que você tem coragem
de ficar aí, questionando meu comportamento, se tudo que eu fiz foi procurar
algum tipo de resposta para tanta hipocrisia?
Jesse deu um passo para trás. Sabia que Brianna tinha razão. Ambos
compartilhavam do mesmo horror à escravidão. Por outro lado, encontrava-se
naquela casa em missão diplomática e a última coisa que poderia pensar em
fazer era antagonizar seu anfitrião.
— Brianna, você sabe o que eu penso a respeito da escravidão. É a
prática mais odiosa da humanidade. Mas quer saber também o que aconteceu
naquela sala depois que você se retirou? Aaron Burr, um dos homens mais
perigosos do país, começou a questionar Jefferson a respeito de seus pontos de
vista contraditórios. Ela jamais teria feito isso, se você não tivesse tocado no
assunto primeiro!
— Pois fique sabendo que eu não me arrependo de nada do que falei!
Thomas Jefferson que trate de rever os seus pontos de vista contraditórios e
pare com tanta hipocrisia!
— Você é uma irresponsável, Brianna! Irresponsável e mal-educada! As
freiras da abadia não lhe deram educação?
— Elas me deram outra coisa, sr. Jesse Randall. Capacidade de pensar
por mim mesma. Capacidade de me revoltar contra as injustiças desse mundo!
Agora, se me dá licença vou dormir porque estou muito cansada!
Ele ainda estava branco de raiva.
— Acontece que eu não terminei, mocinha!
Brianna levantou a cabeça. Não tinha mais medo dele.
— Saia do meu quarto, Jesse. Agora mesmo. Se você não sair, começo a
gritar e num minuto, frei Edouard estará aqui para enxotá-lo!
— Não se esqueça de que sou seu tutor!
— Sei disso. Mas o fato de ser meu tutor não lhe dá o direito de entrar
em meu quarto a essa hora da noite, como se fosse um molestador sexual!
Agora, fora daqui! Fora!
— Você ainda vai se arrepender! — exclamou ele, antes de virar as costas
e deixar o quarto, batendo a porta, com força, atrás de si.

CAPÍTULO VINTE E UM

De dentro da carruagem que descia a encosta da montanha, Aimée


observava Jesse mais adiante, que seguia o caminho em seu próprio cavalo.
Um pouco atrás dele ia Brianna, montada no garanhão Le Duc. Ambos mal
haviam trocado duas palavras durante toda a manhã. Era como se se
odiassem. Só que ela sabia que a verdade era bem outra.
Frei Edouard, a seu lado, fez um comentário engraçado e ela riu. Bendita
hora em que embarcara naquele navio e viera para a América! Fizera amigos
de verdade entre o pessoal de Brianna. Era como se, pela primeira vez na vida,
ela tivesse encontrado um lar de verdade, onde as pessoas a aceitavam sem
reservas.
Estranho, mas era como se se sentisse mais à vontade naquelas terras
do que a própria Brianna, que ali nascera. Sua amiga parecia uma alma

77
perdida, vagando de um lado para o outro, incerta de seu destino. Ah, mas as
recompensas viriam. Tinha certeza daquilo. Brianna Devereaux iria encontrar
felicidade, talvez até mais cedo do que sequer poderia imaginar.
O sol iluminava os cabelos de Brianna, enquanto conduzia o cavalo Le
Duc pela estrada cheia de pedregulhos. Desde o momento em que havia
deixado a casa de Thomas Jefferson em meio a um coro de despedidas,
agradecimentos e votos de boa sorte, vinha pensando em seu lar. Sim, Le Beau
Château era seu lar de verdade, mas o que poderia esperar da vida assim que
lá chegasse? Paz? Serenidade? Segurança? Não tinha assim tanta certeza.
Houvera um tempo, quando estava na França, que tinha imaginado que a
chave de sua felicidade, que o segredo de seu bem-estar, estaria na volta ao
lugar onde nascera. Ago-ra percebia que as coisas não eram bem assim.
Eu era uma pessoa completamente diferente naquela época. De um modo
ou de outro, a vida parecia ser tão mais simples... Agora, depois de tudo que
aconteceu, o que vai ser de minú
Sentia que havia passado o ponto, como mesmo aquele oficial do navio
Liberte o chamara?, o ponto do qual não existia mais volta. Era um lugar, um
ponto da viagem que, depois de ter sido alcançado, não permitira uma volta
porque essa seria bem mais longa e os suprimentos, insuficientes.
De alguma forma ou de outra, ela sabia que havia passado seu próprio
ponto de retorno. Mas retorno de onde? De sua infância? Mas então, por que
ainda sentia tanta insegurança?
Havia perdido a virgindade. Precisava arranjar um marido e se casar até
o final do ano. Eram tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, que sua
cabeça parecia prestes a explodir. Ah, se frei Edouard soubesse que tinha
acontecido nos jardins da casa de Thomas Jefferson...
Meia hora depois, Jesse ordenou uma parada, para que os cavalos
pudessem tomar água e descansar. Estava confuso e atormentado como o
diabo. Tinha experiência com as mulheres. Sabia lidar com elas muito bem.
Tinha sempre a palavra certa para ser dita na hora certa na ponta da língua.
Então, por que se sentia tão perdido no que se referia à Brianna Devereaux?
Observou-a disfarçadamente, enquanto tomava uma xícara de chá
recostado numa árvore. Ela conversava com Aimée, as duas sentadas numa
enorme pedra na margem de um rio. A brisa fresca balançava seus longos
cabelos da cor do cobre. Que mulher aquela... Não. Ainda era uma menina.
Tinha apenas dezessete anos, mas em seu peito havia uma audácia e uma
coragem jamais vistas. Fechou os olhos, lembrando-se dos momentos pas-
sados a seu lado, naquele jardim banhado apenas pela luz da lua. Ah, que
vontade de fazer aquilo de novo, que vontade de levá-la para a cama e...
Abriu os olhos novamente e murmurou um palavrão. Não. Não podia
fazer aquilo. Era seu tutor. O responsável por seu bem-estar e segurança. E,
além de tudo aquilo, precisava arranjar-lhe um marido. Um marido... Tal
pensamento lhe trouxe uma dor tão forte no coração que durou o dia todo.
A longa viagem de volta a Le Beau Château transcorreu sem transtornos.
O tempo esteve bom durante toda a semana, os dias ensolarados e as noites
um pouco mais frescas, anunciando o outono que chegava.
Embora Honoré Dumaine não tivesse causado mais problemast Jesse
sempre mantinha o olho nele. Não confiava no meio-irmão de Brianna e fazia
questão de ficar bem atento principalmente durante a noite, quando paravam

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para dormir em algum lugar.
Pensando bem, até que Jesse não tinha motivos para se queixar. A
viagem havia sido produtiva. Pelo visto, Thomas Jefferson não iria abandonar
seu posto de secretário de Estado. O presidente Washington não aceitara seu
pedido de demissão. Aliás, o próprio Jesse escrevera uma carta ao presidente,
parabenizando-o por sua atitude. Se Jefferson deixasse o governo, o país
estava perdido.
Porém, se as negociações foram boas, o mesmo não podia ser dito a
respeito de sua vida pessoal. Seu coração e mente eram um emaranhado de
emoções confusas e contraditórias. Era o tutor de Brianna Devereaux. Pre-
cisava arranjar-lhe um marido, um homem decente que a amasse e respeitasse
até o fim de seus dias. Mas quem não fazia idéia. O pior de tudo era que o fato
de vê-1o casada o deixava triste e deprimido. Por quê? Será que estava
começando a se apaixonar por Brianna Devereaux a menina-mulher que
parecia ter o sol no coração?
CAPÍTULO VINTE E DOIS

Os viajantes já haviam retornado a Le Beau " Château dois dias atrás,


quando Georges Simpson deu uma última olhada num documento em suas
mãos. Estava sentado à escrivaninha da biblioteca de Etienne Devereaux, onde
o relógio acabara de tocar onze badaladas.
À sua frente, sentada numa bela poltrona em estilo Luís XIII, estava uma
mulher de uns vinte e sete ou vinte e oito anos, embora, fisicamente,
aparentasse ser mais jovem. Era seu comportamento seguro e confiante que
denunciava sua verdadeira idade, acrescido de uma pose e uma cultura
adquiridas apenas pela experiência.
Laurette Mayfield era viúva, tendo perdido o marido, muito mais velho do
que ela, havia alguns anos. Naquela época, pensara ter uma situação
financeira segura, a fortuna e a idade do falecido tinham sido os principais
motivos que a haviam levado ao altar. Porém, maus investimentos e o amor
pelas coisas caras e luxuosas acabaram deixando a viúva se não na miséria,
bem perto dela. Forçada a vender sua propriedade em Richmond a fim de
pagar os credores, pegara a pequena quantia que sobrara e saíra pela região,
oferecendo seus serviços como dama-de-companhia ou governanta de uma
família de fino trato.
Havia sido aí então que Georges Simpson ouvira falar dela. A moça era
educada e experiente, certamente seria uma boa professora, que poderia
ensinar a Brianna Devereaux a arte de administrar um palácio do nível de Le
Beau Château. Sim. A jovem herdeira poderia aprender muito com a viúva
Mayfield.
Tirou os óculos e examinou-a com cuidado. Uma tarefa muito agradável
na verdade, porque a moça à sua frente tinha uma beleza impressionante.
— Então, sra. Mayfield, os termos de seu... emprego aqui em Le Beau
Château são aceitáveis?
A viúva deu um sorriso que deixou o advogado vermelho. Seus cabelos
eram escuros, os olhos azuis, o nariz arrebitado e a boca cheia e sensual.
Realmente, Georges Simpson estava muito impressionado.
— Claro, sr. Simpson. São mais do que generosos. Sei que vou adorar
meu trabalho aqui nessa casa.
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— Faço votos que esteja correta, minha cara senhora. Brianna Devereaux
é ainda muito jovem, mas possui um temperamento um pouco difícil. Mesmo
assim, não creio que haverá problemas entre ambas. Ela precisa se casar até o
final deste ano, senão será privada de uma grande fortuna. Tenho certeza de
que ela seguirá todos os seus conselhos, a fim de conseguir um bom marido
em tempo hábil.
— Gostaria muito de conhecê-la, senhor. — A viúva deu outro daqueles
sorrisos magníficos. — Quando poderei fazê-lo?
O advogado se levantou, ouvindo som de vozes no corredor.
— Dentro de cinco segundos, minha senhora.
Naquele momento, Brianna e frei Edouard entraram na biblioteca, rindo
de uma piada contada por esse último. Simpson imediatamente ajudou a se
levantar e voltou a atenção aos recém-chegados.
— Brianna, frei Edouard, que bom que foram tão pontuais. Sabem me
dizer se o sr. Randall...
— Eu estou aqui — anunciou Jesse e todas as cabeças se viraram para
ele. Brianna sentiu um friozinho na espinha. Seu tutor tinha os cabelos
ligeiramente em desalinho, como se tivesse acabado de descer de seu cavalo.
E estava ainda, se possível, mais bonito e atraente do que antes.
Acenou com a cabeça em direção a ela e ao frei Edouard, então
aproximou-se da escrivaninha e estendeu a mão a Simpson.
— Que prazer em revê-lo, amigo. Pena que não pude conversar com você
antes. Depois que cheguei de viagem, tenho passado o tempo todo trancado no
meu quarto, escrevendo cartas e relatórios. Mas recebi seu recado a respeito...
— Foi aí que ele olhou pela primeira vez para a moça de rosto doce ao lado do
advogado. — ... dos negócios que presumo que iremos discutir agora.
Aproveitando a chance, o advogado fez as apresentações, terminando
com as palavras:
— O sr. Randall, sra. Mayfield, é o tutor de Brianna.
Jesse fez uma mesura diante dela, que abriu-se num sorriso encantador.
— Sr. Randall, será um enorme prazer trabalhar a seu lado durante
esses próximos meses.
— O prazer será todo meu, sra. Mayfield — respondeu ele, impressionado
com sua beleza.
Seguiu-se uma conversa animada. Frei Edouard falava de qualquer coisa
a respeito de seus conhecidos em Rich-mond, mas Brianna mal ouvia. Estava
muito mais interessada em estudar sua nova tutora. A tal viúva estava tão
bem vestida e parecia ser tão segura de si, que ela acabou sentindo vergonha
da própria aparência. Usava um vestido velho de algodão, escolhido
especialmente naquela manhã porque finalmente conseguira convencer a
criada Mathilde a lhe ensinar a fazer pão. Agora, ao ver a sofisticada mulher à
sua frente, lamentava não ter tido tempo de trocar de roupa e pentear os
cabelos. A única coisa que fizera fora tirar o avental sujo de farinha e lavar as
mãos.
Georges Simpson passou a meia-hora seguinte explicando-lhe quais
seriam as tarefas da viúva naquela casa, mas, novamente, Brianna mal
escutou suas palavras. Balançando a cabeça de vez em quando para mostrar
que estava prestando atenção, tentava ouvir a conversa de Laurette Mayfield e
Jesse Randall, que, pelo visto, já estavam se tratando pelo primeiro nome.

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— Tenho certeza de que Brianna adoraria levá-la para conhecer a casa e
os jardins — o advogado Simpson estava dizendo. — Le Beau Château é uma
propriedade belíssima e...
— Ah, muito obrigada por ter oferecido, senhor — interrompeu a viúva
—, mas Jesse já se ofereceu para fazer isso. Vamos dar uma volta juntos
agora. — Ela aceitou o braço que ele lhe oferecia e virou-se para Brianna. —
Minha querida criança, já que é muito importante que você aprenda a lidar
com os criados, peça a dois deles que levem minha bagagem a meu quarto.
Seja uma boa menina, está bem? — E, voltando a atenção a Jesse, continuou
a falar: — Agora, voltando à arquitetura desse palácio, você estava me dizendo
que...
Brianna observou-os deixar a biblioteca, então, virando-se para o
advogado e para frei Edouard, exclamou, revoltada:
— Vocês só podem estar brincando!
— M... mas B... Brianna querida — gaguejou Georges Simpson. —
Brincando sobre o quê?
— Sobre essa mulher, ora essa!
O advogado voltou a sentar-se prevendo confusão. Conhecia o brilho
daqueles olhos verdes de gata.
— Você está se referindo à sra. Mayfield?
— A própria!
Frei Edouard, acostumado àquelas súbitas explosões, interveio
rapidamente.
— Calma, ma petite, calma. Você ainda não teve tempo de conhecê-la.
Como pode querer julgá-la de forma tão apressada?
— Ora, frei, o senhor também teve oportunidade de ver com seus
próprios olhos! Ela se apoderou de Jesse como se ele fosse sua propriedade!
O bom religioso ficou pensativo durante alguns instantes, percebendo, de
súbito, a verdade por trás daquelas palavras. Então Brianna Devereaux...
Aquilo não deixava de ser muito interessante!
— Além disso — continuou ela — a mulher me chamou de criança! Isso é
ridículo! Como é que eu posso suportar uma coisa dessas! É muito absurdo!
Imagine só, uma mulher que tem de estar casada até o final do ano ser tratada
assim, como se fosse um bebé!
— Brianna, minha querida pequena, eu...
— Tudo bem, frei Edouard, tudo bem. Não se preocupe. Não pretendo ter
outra daquelas minhas famosas crises de nervos. Vou aguentar essa viúva e
fazer tudo o que ela mandar, porque esse é o jeito mais fácil de conseguir um
marido e me livrar dela e de Jesse Randall para sempre. Mas, assim que eu
estiver casada e tomar posse de toda a fortuna dos Devereaux, expulso os dois
daqui e jamais olharei para eles novamente! Jamais!
Então, com os olhos verdes ainda brilhando de raiva, Brianna deixou a
biblioteca, batendo a porta com força atrás de si.
Alguns dias depois, Brianna estava sentada em cima de um monte de
feno, em frente à baia de Le Duc. A posição em que se encontrava podia não
ser exatamente apropriada para uma dama, mas pouco se importava.
Um miado à sua esquerda fez com que olhasse para o lado. Era a gata
que havia dado a luz no mês passado.
— Olá, mamãe gata! Como estão os seus gatinhos? Pode ficar tranquila,

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porque o pobrezinho que nasceu cego está sendo muito bem cuidado por
Festus!
A gata deitou-se a seus pés. Brianna acariciou-lhe a cabeça distrai-
damente, pensando nos acontecimentos dos últimos dias.
Laurette Mayfield. A viúva estava deixando-a maluca. Passava o dia
inteiro dando-lhe ordens, dizendo faça isso, faça aquilo. Era como se fosse a
dona da casa dando ordens a uma criada. O incrível é que ela conseguia ser
ainda pior do que Jesse Randall.
— Antes de morrer seu pai me falou da vontade de ter você sob os
cuidados de uma mulher que soubesse administrar uma casa — Georges
Simpson havia lhe dito. — Só estou cumprindo seus últimos desejos.
Ah, papai, se você soubesse como tudo isso está atrapalhando a minha
vida...
Porém, o que mais a aborrecia em Laurette Mayfields era o fato de que a
viúva passara a maior parte do tempo ao lado de Jesse.
E ele, do lado dela. Ambos pareciam encontrar um grande prazer na
companhia do outro. Ficara louca da vida com o que acontecera naquela
manhã. Jesse havia interrompido uma aula de piano a fim de convidar a linda
morena para dar um passeio a cavalo com ele. E ela tivera o desplante de
aceitar! Era como se a mulher estivesse lá, passando férias e não trabalhando!
Que os dois fossem para o inferno!
Levantou-se, sentindo-se triste e cansada. Era melhor voltar a Le Beau
Château, pedir para que lhe preparassem um bom banho e descansar um
pouco, antes que sua tutora voltasse com novos tormentos.
Então, ao sair do estábulo e sentir o sol do outono em seu rosto, ela
avistou Jesse e Laurette voltando do passeio. Na verdade, não estavam
montados em seus cavalos, mas andando lentamente lado a lado, puxando as
rédeas dos animais. Vinham tão juntos um do outro, que era como se fossem
dois pombinhos apaixonados. Sentiu um aperto no coração. Será que havia
alguma coisa entre ambos? Jesse Randall e Laurette Mayfield... estariam
namorando?
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Os dias dourados do outono foram se passando rapidamente e todos os


moradores de Le Beau Château começaram a mostrar sinais de preocupação
com o fato de Brianna Devereaux ainda não ter conseguido encontrar um
marido.
Georges Simpson liberou uma quantia fabulosa para a confecção de um
vestido de noiva e um enxoval completo, e novamente as melhores costureiras
do estado foram convocadas. O trabalho na sala de costura, mais uma vez,
começou a todo vapor.
Laurette Mayfield, com a ajuda de Jesse, passou a fazer contatos com os
fazendeiros vizinhos que tinham filhos em idade de se casar. Dois viúvos de
meia-idade também foram contatados, já que a situação era um tanto
desesperadora. Então, durante a hora do chá, Brianna começou a receber
muitas visitas, geralmente de mulheres acompanhadas de seus filhos ou
parentes. Ela fazia o possível para ser simpática, sorria e conversava o tempo
todo, mas não conseguia tirar da cabeça a ideia de que era um pedaço de
carne sendo disputado numa feira livre. Tal pensamento a enchia de tristeza,

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mas não havia nada que pudesse fazer a respeito. Querendo ou não, precisava
se casar. Não podia suportar a ideia de perder a fortuna da família para
Honoré Dumaine, que certamente a gastaria comprando centenas de escravos
negros. Aquilo era tão inconcebível que justificaria até um casamento sem
amor.
Até o próprio Honoré, por mais incrível que pudesse parecer, resolveu
colaborar. Insistindo que queria reparar seu abominável erro cometido durante
a viagem, começou a aparecer frequentemente em Le Beau Château, sempre
acompanhado por algum amigo ou conhecido. Seu meio-irmão a vinha
tratando com tanta consideração que ela começou a acreditar sinceramente
que ele tinha o desejo de ajudá-la de verdade, mesmo com isso perdendo sua
herança. De qualquer modo, a imagem do pedaço de carne numa feira livre
não lhe saía da cabeça.
Apenas frei Edouard e Aimée pareciam não ter pressa quanto a escolha
do candidato. Brianna sentia-se aliviada com isso, já que às vezes tinha a
impressão de que o mundo estava conspirando para casá-la com o primeiro
homem que aparecesse em sua porta. Quanto ao padre e a cigana, ambos
pareciam estar sempre cochichando pelos cantos, cochichos esses que
cessavam imediatamente quando alguém aparecia, principalmente se esse al-
guém fosse a própria Brianna. Ela não fazia ideia sobre o que eles
conversavam.
Jesse Randall, por sua vez, sentia-se particularmente ansioso para que
sua tarefa terminasse logo. Precisava voltar à sua própria fazenda e cuidar de
seus negócios. A ideia de ver Brianna casada ainda o incomodava, mas não
havia nada que pudesse fazer a respeito. Precisava arranjar-lhe um bom
marido e voltar a cuidar de sua própria vida. Sentia falta de sua casa, da casa
que ajudara a construir com seu esforço e trabalho, mas sabia que tudo estava
bem por ali. Recebia sempre cartas de seu irmão Garrett dizendo-lhe que as
coisas não podiam estar melhores e, qual fora sua surpresa, quando chegara-
lhe às mãos um bilhete escrito por Vulcan! Havia alguns erros e a letra ainda
era incerta, mas Jesse conseguira ler tudo perfeitamente. Sua cunhada
Christie o estava alfabetizando!
Quanto a Brianna, as coisas continuavam na mesma. Recebia seus
pretendentes com educação, conversava com eles e a coisa acabava morrendo
por ali mesmo. Não houvera nenhum que lhe tivesse chamado a atenção de
um modo mais particular. Um dia, Glória Delaney ouviu um deles referindo-se
a ela como "aquela garota de gelo".
A situação estava bem complicada. O tempo ia se passando... E nada de
a garota de gelo encontrar seu príncipe encantado.
Uma tarde, Aimée e frei Edouard a convidaram para um passeio no
campo, longe de Le Beau Château. Aliviada por ter a oportunidade de passar
uma tarde gostosa livre de visitas e da companhia sempre desagradável de
Laurette Mayfield, ela não hesitou em aceitar.
— Vamos colher uma porção de cerejas! — exclamou a cigana,
entusiasmada. — Como nos velhos tempos da abadia!
Como nos velhos tempos da abadia. Deixara a França havia poucos
meses, mas era como se fosse há uma eternidade. Não passava de uma
garotinha quando embarcara no Liberte. Agora era uma mulher.
O passeio lhe fez bem e ela começou a se sentir um pouco mais feliz e

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relaxada.
— Que bom que a sra. Mayfield resolveu tirar essa tarde para cavalgar
com o sr. Jesse, não é? — comentou Aimée, entregando-lhe uma cesta de
palha.
— É verdade — murmurou ela, sem muito ânimo.
— Pobre enfante! — exclamou frei Edouard. — A viúva não está lhe
dando sossego!
A cigana colocou duas cerejas na cesta e uma na boca. Estava doce como
mel.
—Falando nela, adivinhem só quem vem se aproximando...
— Ah, não! — Brianna reclamou, levando a mão não muito limpa à boca.
— Era o que me faltava!
O padre levantou a mão a fim de acenar para Jesse Randall e Laurette
Mayfield que vinham chegando.
Brianna, por sua vez, virou as costas e continuou a apanhar as cerejas.
— Veja bem onde pisa — alertou Aimée. — A chuva de ontem à noite
deixou o solo molhado em certos lugares onde a drenagem não é muito boa. A
terra parece seca, mas está encharcada por baixo.
Brianna concordou com a cabeça e continuou seu trabalho. Ruídos de
cascos de cavalos contra o solo foram ouvidos, seguidos pela voz melodiosa de
Laurette Mayfield.
— Ah, que trio laborioso!
— Como está passando essa tarde, madamel — cumprimentou o padre,
ajudando-a a descer do cavalo.
— Bem, obrigada, frei Edouard, e o senhor?
— Melhor impossível. Aqui estou eu, ao lado de minhãs duas amigas,
colhendo cerejas que, ainda hoje, serão transformadas num delicioso licor de
minha própria fabricação!
— Mas que maravilha! — exclamou Jesse, também descendo de sua
égua. — Mal posso esperar para provar essa delícia!
Frei Edouard sorriu.
— Os índios da região chamam esse tipo de fruta de ghigau, que quer
dizer "mulher amada". Ela simboliza a fertilidade feminina.
A viúva ajeitou a saia de veludo, evitando cuidadosamente uma cesta
cheia de cerejas no chão.
— Muito interessante, meu caro frei. — Então, fez um sinal com a cabeça
em direção a Aimée, depois virou-se para Brianna. — Minha criança, você
ainda não nos cumprimentou. Por acaso o gato comeu sua língua?
Brianna endireitou-se e virou o corpo lentamente.
— Boa tarde, Laurette. Boa tarde, Jesse!
Mais uma vez, ela sentiu-se em desvantagem. Usava um vestido velho de
gola alta e mangas compridas, muito apropriado para um passeio no campo
onde havia insetos de vários tipos. Os cabelos estavam protegidos por um
lenço e, ao comparar-se à viúva, sentiu-se o próprio patinho feio ao lado do
cisne. Jesse, então, nem de falava. Estava elegante como sempre, suas botas
pretas brilhando tanto que podiam ser usadas como espelho.
— Francamente, Brianna — a viúva estava dizendo — você devia tomar
mais cuidado com suas roupas. Por que saiu de casa sem um avental? Além
disso, minha querida, você está com uma mancha vermelha ridícula na ponta

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do nariz!
Brianna levou a mão ao rosto automaticamente, mas, no mesmo
instante, Jesse aproximou-se dela oferecendo-lhe um lenço de linho. Ela
engoliu em seco.
— O... obrigada. — Limpou a mancha o mais rápido que pôde e
devolveu-lhe o lenço. — É difícil colher cerejas sem se sujar, não é?
Aimée, que observava a cena toda, virou-se de súbito para a viúva.
— Essas frutas estão uma delícia, sra. Mayfield. Não quer experimentar
algumas?
E, estendendo a mão manchada de vermelho, ofereceu-lhe três
suculentas cerejas.
Imediatamente, Brianna lembrou-se da história que a cigana havia
contado sobre o bolo de chocolate e da camisa branca de Honoré Dumaine e
levou a mão à boca, a fim de conter o riso.
Enquanto isso, Laurette Mayfield dava vários passos para trás,
absolutamente horrorizada com a oferta. Cerejas manchavam!
De súbito, as botas da viúva encontraram o solo encharcado ao qual
Aimée havia se referido... e aterrizou no chão. Água cheia de lama espirrou
para todos os lados.
Jesse e frei Edouard apressaram-se para ajudá-la a se levantar.
— Minha roupa está arruinada! — ela quase berrava. Acabei de comprá-
la e vou ter de jogá-la no lixo!
Brianna permaneceu atrás de Aimée, fazendo o possível para não cair na
risada. A cena era ridícula! O lindíssimo chapeu que a viúva usava ainda há
pouco jazia agora no chão, todo sujo de lama. Respingado de lama estava
também seu belo rosto. Bem feito! Quem mandava ter criticado o nariz de
Brianna momentos atrás?!
Devagar, Aimée também se aproximou para ajudar, mas a desastrada
mulher a impediu:
— Fique longe de mim, sua idiota! Nunca mais ouse me oferecer nada na
vida!
Fingindo uma angústia que estava longe de sentir, Aimée abaixou a
cabeça.
— Por favor, madame, deixe-me acompanhá-la ao palácio e ajudá-la a
lavar suas roupas. Conheço um ótimo jeito de limpar o veludo e...
— Ajudar-me? Por acaso ficou maluca, menina? Você vai fazer todo o
serviço por mim, isso sim!
A cigana mordeu os lábios para não rir.
— Oui, madame, é claro.
— Vou com vocês — disse o padre. — Fui convidado para jantar na casa
de um dos meus paroquianos e não quero chegar atrasado. Sabem como é...
comida é algo muito sério!
Todos riram, com exceção da viúva que parecia ter pressa em montar em
seu cavalo e sumir dali.
— Pode deixar que eu levo as cestas para o celeiro — ofereceu Brianna.
— Depois eu volto para casa a pé.
— De jeito nenhum — protestou frei Edouard. — Olhe só para aquelas
nuvens mais adiante. Acho que teremos uma tempestade dentro de pouco
tempo.

85
— É verdade — concordou Jesse. — Eu levo Brianna na garupa de meu
cavalo. Agora, quanto ao senhor e Aimée, sugiro que se apressem. Onde está a
charrete que os trouxe até aqui? Ah, já vi, debaixo daquela árvore. Essas
nuvens estão ficando muito escuras e a tempestade pode desabar antes do
esperado.
Uma infeliz Laurette já estava a caminho de Le Beau Château em seu
cavalo, frei Edouard e a cigana subiram na charrete e Brianna olhou para
Jesse com uma expressão irónica, no rosto.
— Ela devia tomar um banho de rio. Aposto que água fresca e cristalina
resolveria seu problema.
— Brianna — disse Jesse, num tom de voz usado para convencer uma
criança pequena. — Não sei se você percebeu, mas Laurette Mayfield é uma
dama que não costuma tomar banhos de rio.
— Ah, pardon, monsieur. Eu não tinha me dado conta de que sua
preciosa viúva era uma mulher assim tão fina e educada...
— O quê? Preciosa viúva? Pelo amor de Deus, Brianna, posso saber do
que você está falando?
— Ora, Jesse, por acaso pensa que sou alguma idiota que nasceu ontem?
Pensa que não percebo o jeito como se olham?
Ele encostou as duas mãos em seus ombros. Ao longe, um raio
assustador cortou o céu.
— Minha cara Brianna, gostaria de lhe dizer uma coisa. Embora não
seja absolutamente da sua conta, fique sabendo que não tenho nada com a
sra. Laurette Mayfield!
Ela balançou a cabeça.
— Acho difícil acreditar.
— Acontece que pouco me importa o que você acredita ou não. Agora,
vamos sair logo daqui, antes que essa chuva toda desabe sobre nós.
Outro raio riscou o céu escuro, seguido pelo ruído ameaçador de um
trovão. Um vento forte começou a soprar de repente e Jesse teve de gritar para
poder ser ouvido.
— Vamos sair daqui agora mesmo! Teremos de correr para casa, embora
eu deteste cruzar um campo aberto onde a possibilidade de cair raios é maior!
Pela primeira vez na vida, Brianna obedeceu sem contestar. Subiu na
égua rapidamente, levando consigo a cesta de frutas.
— E se fôssemos pela floresta?
Jesse fez que não com a cabeça.
— Seria ainda mais perigoso do que pelo campo. As árvores costumam
atrair os raios!
Então ela teve uma idéia. Claro! Como não pensara naquilo antes?
— Jesse! Eu conheço um lugar perfeito! Um abrigo seguro aqui perto,
onde poderemos nos refugiar. Vamos, é por ali!
Sem tempo para questionar a sabedoria da decisão, Jesse seguiu na
direção indicada. Qualquer coisa era melhor do que atravessar o campo ou a
floresta durante uma tempestade. As primeiras gotas já começavam a cair,
grossas e pesadas.
O abrigo ao qual Brianna se referira era uma casinb: de pedra construída
numa clareira ao lado do rio. Havi também um estábulo nos fundos, o lugar
perfeito pai< a égua Cigana descansar.

86
— De quem é essa casa? — perguntou Jesse, descendo do animal e
ajudando Brianna a fazer o mesmo.
— Era do velho Jacques Légrand, um empregado que meu pai trouxe da
França. Ele morreu quando eu ainda era criança.
— E quem mora aqui agora? Algum outro empregado?
— Pelo que eu saiba, ninguém. A casa está completamente vazia.
Eles deixaram o estábulo e entraram na casa de pedra. O lugar parecia
arrumado e limpo.
— Mas se não há nenhum morador, como é que tudo está tão em ordem?
Havia até feno fresco nos estábulos!
— Acho que o velho Serge e seus filhos usam a cabana quando vêm
pescar no rio.
Jesse olhou em volta. Havia uma lareira ao centro da pequena sala e ele
conseguiu acendê-la.
— Graças a Deus — comentou Brianna. — Já estava ficando com frio.
Meus dentes estão até batendo uns nos outros.
Lá fora, a tempestade caía com tanta violência, que parecia sacudir a
casinha.
— Venha, fique aqui perto do fogo, antes que você apanhe um resfriado.
Brianna sentou-se num sofá.
— Queira Deus que Aimée e frei Edouard tenham chegado em casa em
segurança.
Ele sentou-se ao lado dela. Também estava com frio.
— Devem ter chegado. Eles saíram bem antes de nós.
A chuva continuava a cair, lançando lençóis de água sobre a terra. Lá
dentro, o fogo crepitava, aquecendo corpos... e corações.
— Obrigado por ter nos trazido para cá, Brianna. Estaríamos com sérios
problemas se você não tivesse tido essa ideia.
Ela ficou contente com aquelas palavras. Jesse raramente a elogiava. Era
como se só abrisse a boca para criticar seus atos.
— Eu vinha muito aqui quando o velho Jacques estava doente. Trazia-lhe
doces e frutas e ficava lhe fazendo companhia.
— Você tem um coração de ouro, Brianna. — Ele deu um sorriso. —
Claro que também é rebelde como o diabo, mas isso não diminui em nada suas
outras virtudes.
Ela riu para disfarçar o embaraço.
— O quê? Você, Jesse Randall, me fazendo elogios? Xi... Acho que deve
estar doente, ardendo em febre!
Brianna e Jesse nunca souberam ao certo de quem partiu a iniciativa.
Quando se deram conta, estavam um nos braços do outro, as bocas coladas, a
respiração ofegante, o desejo incendiando-lhes a alma.
Finalmente, Jesse afastou-se um pouquinho, o suficiente para sussurrar
em seu ouvido palavras doces de carinho.
— Ah, Brianna, como eu te quero... Olhos Verdes, você está no meu
pensamento dia e noite...
Foi como se um raio houvesse explodido e Brianna nunca soube se esse
viera da tempestade que caía lá fora ou da que sacudia-lhe o próprio ser. Só
tinha certeza de uma coisa. Desejava aquele homem com uma fúria
impressionante. O fogo crepitava na lareira, o som misturando-se ao de suas

87
próprias respirações. Ele a tomou nos braços.
— Venha comigo, Olhos Verdes. Vou fazer amor com você... ensinar
você... lhe dar todo o prazer do mundo...
Jesse a levou para o único quarto da casa e deitou-a gentilmente na
cama. Despiu-a sem pressa, murmurando palavras de desejo e encorajamento.
— Só Deus sabe o quanto tentei resistir, minha querida... Só Deus sabe o
quanto tentei me manter afastado... Mas cada vez que eu olhava para você,
meu autocontrole e minhas boas intenções desapareciam como fumaça ao
vento... Você e linda... perfeita... Sabia disso, Olhos Verdes? Sabia o quanto a
desejava?
Ela estava nua agora e ele abaixara a cabeça, a fim de tomar um mamilo
rosado na boca. Seus seios eram perfeitos. Cheios e firmes, o sonho de
qualquer homem que tivesse um pingo de sangue nas veias.
— Você tem certeza? — ele ainda perguntou, encarando-a com rosto
sério. — Olhos Verdes, você quer que eu continue?
Os olhos dele eram azuis, tão azuis...
Como resposta, Brianna levantou os braços e, enlaçando-lhe o pescoço,
puxou-o para junto de si.
—Ah, Brianna, minha Brianna querida...
Não havia mais volta. Jesse livrou-se de suas próprias roupas
rapidamente e os dois corpos nus se fundiram num longo abraço. Foi como se
o tempo tivesse parado de existir. Não havia mais tempestade, nem
relâmpagos. A única coisa que existia era um desejo louco, que os estava
levando às raias da loucura. As mãos de Jesse pareciam estar em todos os
lugares ao mesmo tempo nos seios de Brianna, em seu ventre, em suas coxas,
nos lugares mais secretos. E ela retribuía-lhe as carícias, sem medo, nem
pudor. Quando ambos não conseguiam mais aguentar, ele a penetrou e ela
soltou um grito de prazer. Só de prazer. Não de dor. Ficaram parados por
alguns instantes, mas então sentiram que precisavam de mais. Guiados pelo
desejo frenético, começaram a se mover, lentamente a princípio, Jesse
determinando o ritmo e Brianna seguindo-o em perfeita harmonia.
Lá fora, a tempestade continuava a cair com fúria, mas os dois amantes
dentro do chalé estavam preocupados com a própria tempestade que sacudia
seus corpos, unindo-os num elo de fogo. Então, quando Brianna achou que
não fosse mais aguentar, que estava prestes a desfalecer, sentiu algo explodir
dentro dela, uma força que a mandava para as estrelas, deixando o universo a
seu pés.
Jesse ouviu seus gritos no instante em que era capturado pelos mesmos
ventos da paixão. Continuaram abraçados durante muito tempo, os espasmos
estremecendo seus corpos e suas almas.
Então, finalmente, as respirações foram voltando ao normal, mas eles
permaneceram ali, parados, vivendo a beleza única daquele momento mágico,
em toda a sua glória.
Em silêncio, Jesse e Brianna voltaram a Le Beau Château, o
comportamento de ambos era uma grande evidência de como haviam sido
marcados pelo que havia acabado de acontecer.
Brianna estava tão confusa, que preferia não pensar em seus atos e nas
consequências futuras. Era melhor deixar para examiná-los quando estivesse
um pouco mais calma. Agora, já era o bastante lidar com as próprias emoções

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que estavam dentro dela após aquela incrível tarde de paixão. As marcas do
amor de Jesse ainda estavam em sua pele. Se fechasse os olhos, ainda podia
sentir o calor de seus beijos, a doçura de suas carícias. Ah, que homem
incrível era Jesse Randall...
O próprio Jesse também não sabia o que fazer com as emoções
desencontradas que sacudiam-lhe o ser. Uma coisa, porém, era certa. Jamais,
em toda a sua vida, fizera amor como havia acabado de fazer agora, com
Brianna. Não só a experiência fora completamente diferente, como também
superara qualquer coisa que já tinha experimentado. Em primeiro lugar,
nunca desejara uma mulher com tamanha intensidade. E sua experiência com
o sexo oposto não era pequena. Ao contrário. Havia tido incontáveis amantes,
umas mais, outras menos experientes. Mas jamais encontrara tanta paixão
numa só pessoa! Claro que sabia que Brianna era uma garota forte e de-
terminada, aquilo era de conhecimento geral. Só que nada, nada mesmo, o
havia preparado para os momentos que acabara de viver. Quem poderia sequer
imaginar uma coisa daquelas? Havia poucas semanas, ela não passava de
uma tímida e assustada virgem! E hoje... Balançou a cabeça, tentando pensar
em outra coisa. Senão acabaria fazendo uma bobagem, ali mesmo a caminho
de Le Beau Château.
Tal fato o levava a pensar em uma outra coisa. O que fazer quando
chegasse perto dela de novo? Certamente o desejo iria voltar para consumi-lo!
Não. Aquela situação não podia continuar. Tinha de arrumar-lhe um marido...
e logo!
Mas o problema é que ele estava tentando... e até agora, nem sombra de
casamento à vista. Os melhores partidos da região já tinham sido convidados
ao palácio. Homens, dos vinte aos cinquenta anos, apareciam para tomar chá
ou jantar em Le Beau Château.
E nada.
Jesse Randall realmente não sabia o que fazer.
Finalmente, quando ambos entraram em casa após deixar a égua cigana
aos cuidados de Serge, parecia não haver ninguém no hall de entrada. Já era
tarde e todos deviam estar reunidos na sala de jantar.
O que eles não sabiam era que estavam sendo observados por Aimée que,
escondida nas sombras, tinha um sorriso maroto nos lábios.

CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Brianna e Aimée tomavam o café da manhã no quarto, sentadas a uma


mesa debaixo da janela. A frente delas havia uma bandeja de prata, os
quitutes de Mathilde dando-lhes água na boca.
— Você não imagina o que eu acabei de ouvir na cozinha — comentou
Aimée, passando manteiga num pedaço de pão quentinho. — Jesse
conversando com Glória Delaney a respeito dos pratos a serem oferecidos
durante a festa. E que pratos! O suficiente para alimentar um exército inteiro!
Brianna deu de ombros e tomou um gole de chocolate quente. A xícara
de porcelana de Sèvres era uma das mais finas do mundo.
— Ah, então pelo visto, vamos ter outra feira livre, onde o pedaço de
carne vai ser exposto...
— Pare com isso, Brianna. A viúva está dizendo que vai ser uma festa

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tão bonita, que marcará para sempre a sociedade da Carolina do Sul. Um baile
chérie, três chic, em homenagem à linda herdeira dos Devereaux. Eu, se fosse
você, minha querida, relaxaria... e me divertiria a valer!
— Detesto bailes, Aimée.
— Eu sei, eu sei. Mas não se esqueça de que o tempo está se esgotando.
Você não quer que a fortuna da família caia nas mãos não muito honestas de
Honoré Dumaine, quer?
— É claro que não.
— Então, vamos torcer para que o príncipe encantado esteja presente
nessa festa!
— Na feira livre, você quer dizer.
— Ah, Brianna, você não tem jeito mesmo... — A cigana apanhou mais
um pedaço de pão, passou manteiga e levou-o à boca. — Você não está
comendo nada. Por quê?
— Estou sem fome. Como posso pensar em comida, quando estou sendo
posta à venda, como se fosse uma mercadoria qualquer?
— Não exagere, chérie. Escute só o que estou dizendo. Esse baile vai
revelar muitas coisas...
— O quê, por exemplo?
— Bem, digamos que não seja exatamente um baile à fantasia, mas a
máscara de muita gente poderá cair por terra.
Brianna começou a roer um biscoito sem a mínima vontade.
— Não estou entendendo uma só palavra. Importa-se de ser um pouco
mais clara?
— Não posso dizer mais nada por enquanto. As coisas ainda estão
confusas na minha cabeça. Mesmo assim, sei que esse baile será muito
importante em sua vida!
Brianna não conseguia se empolgar com o tal baile, por mais que
tentasse. A verdade era cruel, mas tinha de ser encarada. Jesse Randall, o
homem que a levara ao paraíso na viagem mais fantástica que jamais expe-
rimentara, estava organizando aquela festa com um único objetivo em mente:
arranjar-lhe um marido... e livrar-se dela o quanto antes.
Le Beau Château fervilhava de tantas atividades, todos os criados
preparando o palácio para o baile que apresentaria a srta. Brianna Devereaux
à sociedade da Carolina do Sul, dali a duas semanas. Janelas foram lavadas,
móveis foram polidos, o chão foi encerado até brilhar como espelho, tapetes
foram limpos, cortinas foram trocadas. Laurette Mayfield e Brianna passaram
horas reunidas com Prenshaw, Glória Delaney, Henri e Mathilde, escolhendo
cardápios, arranjos de flores e outros detalhes. Lá fora, os jardineiros
trabalhavam incansavelmente cortando a grama, arrumando canteiros, me-
lhorando vasos e plantas.
Na sala de costura, a grande mudança aconteceu quando Brianna
ordenou que seu vestido de noiva fosse transformado em traje de baile. Ela e
Aimée, arrumando o sótão dias atrás, haviam encontrado um baú cheio de
roupas de Aileen Devereaux, inclusive o vestido belíssimo que usara no dia de
seu casamento. Ao vê-lo, Brianna tomara sua decisão. Era com ele que iria se
casar, não importava quem fosse seu noivo.
Às vezes, ela fechava os olhos à noite e tentava imaginar quem seria o tão
esperado príncipe encantado e o que fazia naquele momento. Por mais que

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tentasse, nenhuma imagem lhe vinha à-cabeça.
Então, finalmente, chegou o tão esperado dia. A tarde já vinha caindo e
Brianna encontrava-se perto de uma das janelas de seu quarto, usando um
robe de seda, Aimée atrás dela, arrumando-lhe os cabelos.
A cigana examinou seu trabalho com olhos críticos.
— Hum... Perfeito. Este coque no alto da cabeça ficou glorioso. Agora,
deixe-me ajudá-la se vestir.
Brianna olhou para ela e sorriu.
— Nada disso. Pode deixar que eu me visto sozinha. Agora, trate de
completar a sua própria toilette^ porque, hoje à noite, você também tem de
brilhar. Mal posso esperar para vê-la em seu vestido de seda lilás!
Aimée sorriu.
— Lembra-se de como madame Mayfield ficou furiosa quando descobriu
que meu vestido iria ser daquela cor? Era ela própria quem queria usar algo
naquele tom!
— Claro que me lembro. E caio na risada a toda hora! Ah, Aimée, como
aquela viúva é antipática. Não simpatizei com ela desde o primeiro instante em
que a vi!
— Nem eu! Bem, então já vou indo acabar de me arrumar. Tem certeza
de que pode se arranjar sozinha?
— Claro que sim. Agora trate de se apressar, senão acaba se atrasando.
Quem sabe se hoje você não encontra seu príncipe encantado!
Quando a porta se fechou atrás de Aimée, Brianna foi até sua cama,
onde seu vestido de baile branco e marfim havia sido estendido. Sentiu um
arrepio de satisfação ao ver as centenas de pérolas que adornavam o decote e a
saia rodada. Era uma verdadeira obra de arte!
Será que os convidados iriam achá-la bonita? Será que Jesse iria achá-la
bonita?
Tentou tirar seu tutor da cabeça, no momento em que ele ali surgiu. Não
conseguiu. Jesse Randall... seu tutor e seu amante. O homem que lhe
ensinara o que era prazer e paixão. O homem que a vinha evitando desde
aquela tarde gloriosa, havia quinze dias. Bem, se pensasse com clareza, veria
que as coisas teriam mesmo que ser daquele jeito. Quanto mais longe ficasse
dele, melhor. Em breve estaria casada e com certeza Jesse voltaria para sua
fazenda, onde trataria da própria vida. Era provável que nunca mais se vissem.
Então, ela esqueceria para sempre que um dia o conhecera.
Será?...
Olhou pela janela. Estava escuro lá fora. Se não se apressasse, iria
acabar se atrasando para a própria festa.
Dando um suspiro resignado, vestiu duas anáguas armadas, calçou os
sapatos cor de marfim e finalmente, apanhou o traje em cima da cama. Cinco
minutos depois, estudava seu reflexo no enorme espelho em cima da cómoda.
Ficou satisfeita com o que viu. O vestido era realmente lindo, madame
Savronièrre, a chefe das costureiras, tinha caprichado de verdade em sua obra.
No pescoço, usava apenas um colar de pérolas, que combinava com os
brincos. Sabia que estava bonita. Fosse quem fosse o futuro noivo que a
esperava lá embaixo, certamente não ficaria desapontado com sua aparência.
Pensando nisso, o motivo real daquele baile voltou-lhe à cabeça. A feira livre. O
pedaço de carne à venda. Não. Tinha de dar um jeito de esquecer, de riscar

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aquilo da mente. Precisava se divertir um pouco. Afinal, aquela festa estava
acontecendo em sua homenagem. Além disso, poderia acabar conhecendo um
homem interessante, atraente e charmoso que pudesse amá-la e respeitá-la
como um ser humano pensante e independente.
De súbito, a linda face refletida no espelho adquiriu um ar de profunda
tristeza. Que nada. Não existia homem algum na face da Terra que tratasse as
mulheres como seres humanos iguais a eles. Aquilo não passava de pura
ilusão. Eram todos uns perfeitos idiotas como Thomas Clendenny, ou o irmão
de Marietta Stokes, como era mesmo o nome dele? Ah, sim, Percy, ou ainda
Geoffrey Lavella, muito bonito e elegante, mas com o cérebro de uma minhoca.
Retardada, o que era pior. Ou ainda...
Uma batida na porta interrompeu-lhe os pensamentos, fazendo-a voltar à
realidade. Achando que fosse Aimée e curiosa para vê-la em seu belo vestido
lilás, ela respondeu:
— Entrez.
Não era sua amiga cigana. Era frei Edouard, vestido com sua melhor
batina, os cabelos muito bem penteados, a barba impecável. Notava-se que
tomara bastante cuidado com a aparência naquela noite.
Olhou para Brianna, o rosto cheio de orgulho.
— Ma petite, você está absolutamente deslumbrante. Só lamento que
Etienne e Aileen não estejam aqui, para ver tanta beleza.
Aproximando-se para cumprimentá-lo, Brianna respondeu:
— Talvez eles estejam nos vendo, lá do céu, mon bon père.
— Tem toda razão, minha filha. — O padre sorriu e estendeu-lhe uma
caixa de veludo. — Isso aqui é para você, minha querida. É uma jóia que
pertenceu à sua mãe. Seu pai lhe deu de presente no dia em que você nasceu.
Era uma das jóias que estavam no cofre, que você só receberia no dia de seu
casamento. Mas, como soube qual seria seu traje, convenci nosso amigo
Georges Simpson a deixar que você a usasse essa noite...
Curiosa, Brianna apanhou a caixa e abriu-a. Ali dentro, em cima do
veludo preto, estava o mais deslumbrante broche de pérolas que ela já tinha
visto.
— Ah, frei Edouard, que maravilha! Muito obrigada!
— Você vai encantar todos os homens dessa festa, ma chérie. Eles vão
ficar absolutamente deslumbrados! Agora, deixe-me ajudá-la a colocar o
broche. Isso... perfeito.
Brianna se olhou de novo no espelho. A linda jóia acrescentara um toque
especial ao vestido, deixando-o ainda mais bonito.
— Bem — continuou o padre — acho que chegou a hora. Os músicos já
estão tocando e você já deve descer. Pode me dar a honra de acompanhá-la ao
salão de baile?
— Claro! mas precisamos ver se Aimée já está pronta.
— Tudo já foi providenciado, ma petite. Falei com Georges Simpson e ele
concordou em acompanhá-la até lá. E, já que Jesse Randall e madame
Mayfield estão sendo os anfitriões, só resta esse humilde confessor para ser
seu acompanhante.
Ao deixar seus aposentos ao lado do padre, Brianna não conseguiu
deixar de sentir uma pontada de angústia causada por aquelas últimas
palavras. Frei Edouard era realmente seu confessor e ela não se confessava

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desde... desde... Não. Não iria pensar naquilo agora. Claro, tinha de procurá-lo
e contar-lhe o que acontecera entre ela e seu tutor, mas não naquele momento.
Quem sabe no dia seguinte.
Ou então no próximo...
Semana que vem, talvez.
Brianna aceitou uma taça de champagne que Paul Martindale lhe
oferecia. O rapaz era simpático, agradável e, quando se deu conta, ela estava
se divertindo a valer a seu lado. Havia outros homens igualmente interessan-
tes, uns ricos, outros nem tanto, mas todos eram unânimes em dizer que ela
era a moça mais bonita da festa. Os músicos começaram a tocar um minueto.
Brianna ria de um comentário bem-humorado que Paul Martindale fizera,
quando Honoré Dumaine surgiu a seu lado e, tirando-lhe a taça da mão,
convidou-a para dançar. Ela preferia continuar a conversa com o rapaz, mas
não havia como recusar o convite do meio-irmão.
— Está gostando da festa, ma soeurl — perguntou ele, movendo-se ao
som da música.
— Naturelmente — respondeu Brianna virando a cabeça e vendo algo que
preferia não ter visto.
Ali, mais adiante, lindíssima num vestido também marfim, Laurette
Mayfield parecia muito entretida no que parecia ser uma conversa muito
íntima com o homem mais bonito da festa. Seu tutor, Jesse Randall. Desviou o
olhar rapidamente. Não. Recusava-se a deixar que aqueles dois estragassem o
baile em sua homenagem. Eles que fossem para o inferno!
Percebendo que ela olhava para a viúva. Honoré perguntou:
— Você está bem, Brianna? Não está aborrecida porque madame
Mayfield escolheu um vestido da mesma cor que o seu, está? — Como a meia-
irmã não dissesse nada, ele continuou. — Aposto que ela sabia que você iria
usar marfim e resolveu imitá-la. Só para lhe causar irritação. Ah, as
mulheres... sempre tão inimigas umas das outras!
— Pouco me importa a roupa que ela escolheu para usar — respondeu
Brianna, sem muita vontade.
— De qualquer forma, você não precisa se preocupar com ela. A linda
madame não vai roubar nenhum de seus pretendentes, porque é evidente que
já achou seu próprio príncipe encantado. Jesse Randall, seu querido e gentil
tutor!
De repente, Brianna sentiu que toda a sua alegria sumia no ar, como que
por magia. Por quê? Não sabia dizer, tampouco a resposta lhe interessava. A
única coisa da qual tinha certeza era de que sua garganta estava irritada e
seus lábios, completamente ressecados.
— Por favor, Honoré, você se importa se pararmos um pouco para
descansar? Estou morrendo de vontade de tomar um pouco de água.
Honoré Dumaine levantou uma sobrancelha, como se estivesse muito
surpreso.
— Será que abusou da champagne, chèrie? Mas é claro, vamos
descansar um pouco.
Ele a pegou pelo braço e a conduziu até um canto meio deserto do salão,
as únicas pessoas presentes um grupo de senhores de idade falando sobre o
passado. Procurando por um copeiro, mas não encontrando algum, Honoré
pediu licença, prometendo voltar logo com o copo de água.

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Brianna ficou olhando em volta, enquanto esperava. Mais adiante, Aimée,
muito bonita em seu vestido lilás, conversava alegremente com um grupo de
rapazes. Ficava feliz em ver a amiga se divertindo. Ela era um amor e merecia
toda a felicidade do mundo. De repente, Brianna avistou Honoré rodopiando
no salão. Estava dançando com Laurette Mayfield! Lá se foi meu copo de água,
pensou, dando um suspiro desanimado. Que grande meio-irmão eu fui
arranjar...
Estava disposta a encontrar um copeiro por si mesma, quando uma voz
masculina muito conhecida soou atrás dela.
— Você está deslumbrante, Brianna. Mesmo aí, parada e sozinha num
canto, exala beleza e charme por todos os poros.
Ela virou-se e viu Jesse, que, sorridente, lhe estendia um copo de água.
— Seu querido meio-irmão me disse que você estava com sede —
continuou ele, com um sorriso enigmático nos lábios.
— Obrigada — respondeu ela, aceitando o copo e esvaziando-o quase que
de um gole só.
— Pelo visto, você estava mesmo com sede!
— Minha garganta arranhava um pouco — ela explicou, sem muita
vontade de continuar a conversa. Ele que fosse entreter a fogosa viúva!
— Brianna?
— Sim?
— Você sabia que é a moça mais bonita do salão?
Ela não queria estar no jogo dele.
— Não.
Brianna deu um sorriso irónico.
— E você deve estar muito contente com isso, não é? Assim, eu arranjo
logo um marido e você se livra dessa carga pesada que lhe impuseram, contra
sua própria vontade!
— Você não é uma carga pesada, pode acreditar. — Ele segurou seu
braço e ambos começaram a andar. — Ao contrário. É bem leve...
— Ei! Posso saber para onde você está me levando?
— Para o meio do salão, ora essa. Não acha que já está na hora de
dançarmos um pouco juntos?
— Eu já estava pensando que você não fosse me convidar. Afinal de
contas, estava tão entretido com outra pessoa...
Ele riu.
— Eu apenas quis deixá-la mais à vontade para que pudesse conhecer
melhor seus convidados... Já se interessou por algum deles?
A idéia da feira livre voltou-lhe à mente.
— Não é da sua conta.
— Hum... Pelo visto, seu humor não anda dos melhores. Vamos,
querida, faça uma cara mais feliz. Essa noite é sua!
Enquanto Jesse e Brianna continuavam a dançar, dois pares de olhos
observavam-nos atentamente.
— Minha querida Laurette — saudou Honoré, aproximando-se
novamente da viúva. — Se seu olhar fosse uma espada, a pobre garota estaria
morta a uma hora dessas!
— O quê? — perguntou a moça, um tanto surpresa.
— Estou falando a respeito de minha meia-irmã. Você está louca da vida

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porque ela não pára de dançar com Jesse Randall, não está?
Laurette Mayfield deu-lhe um sorriso irónico.
— Eu não pensei que fosse assim tão óbvio, sr. Dumaine.
— Por favor, eu já pedi para que me chamasse apenas de Honoré. E, para
sua informação, fique sabendo que não é tão óbvio. Digamos que eu tenha
meus sérios motivos para ser um homem muito observador, só isso.
Intrigada, Laurette deixou de olhar para o casal que vinha observando
havia vinte exatos minutos.
— Não estou entendendo o que quis dizer.
— Então já vou explicar. — Ele tomou seu braço e a conduziu a um local
mais sossegado, longe dos músicos. — Eu tenho um plano que, caso dê certo,
irá solucionar todos os nossos problemas.
A viúva estava muito curiosa.
— Plano? Mas que plano é esse? Vamos, fale logo!
— Com prazer. E mais do que evidente, cara Laurette, que você está
muito interessada num rico fazendeiro da região de Charleston, que atende
pelo nome de Jesse Randall. Certo?
Não podia negar.
— Certo.
— E é evidente também que eu quero ficar com toda a fortuna dos
Devereaux, já que sou o único filho homem de Etienne. Porém, existe uma
pessoa que está em nosso caminho, atrapalhando os planos de ambos. Minha
descabeçada meia-irmã Brianna Devereaux.
A viúva fez que sim com a cabeça e Honoré continuou:
— Meu plano é fazer com que nenhum homem aqui presente queira se
casar com ela... ao mesmo tempo em que Jesse Randall seja obrigado a sumir
de sua vida para sempre.
— Parece perfeito, Honoré. Mas como fazer para colocá-lo em prática?
— Ouça com atenção, cara Laurette. Olhe só para ambos, rodopiando
alegremente pelo salão. Há quanto tempo eles estão juntos? Uns vinte
minutos, talvez? Trinta? Algo um tanto exagerado, não é?
— Ainda não entendi onde você está querendo chegar.
— Então vou ser mais claro. Digamos que todos os convidados dessa
festa, os pilares da sociedade da Carolina do Sul, comecem a desconfiar do fato
de que Jesse Randall seja alguma coisa a mais do que simplesmente tutor de
Brianna Devereaux.
Os olhos da viúva brilharam. Estava muito interessada naquela história:
— Continue, por favor.
— Com prazer. Assim que todos souberem ou mesmo desconfiarem que
ambos são amantes, Brianna se tornará uma espécie de ovelha negra, com a
qual nenhum homem decente desse país irá sequer pensar em se casar.
Quanto a Jesse Randall, não lhe restará outra alternativa senão se afastar
dela, a fim de tentar preservar o que restar de sua reputação, se é que restar
alguma, bem entendido. E aí, o rico fazendeiro de Charleston será todo seu. E
a fortuna dos Devereaux... toda minha. O que achou do meu plano, minha
cara Laurette?
A viúva deu um sorriso irónico.
— Maravilhoso! Ah, essa herdeira cabeça-dura não perde por esperar...
quer saber de uma coisa? Não gosto nem um pouco dela. Nem dela nem da tal

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Aimée Gitane que a segue por todos lugares como se fosse uma sombra...
— Bem, do jeito como as coisas vão acontecer, a pobre cigana será a
única companhia que Aimée terá pelo resto de seus dias.
Laurette Mayfield voltou a olhar para o salão. Brianna e Jesse ainda
dançavam e não pareciam prestes a parar tão cedo.
— Mas... o que poderemos fazer para que as pessoas comecem a
desconfiar desses dois pombinhos apaixonados?
— Ora, isso é fácil. É só espalharmos o boato agora mesmo. Você faz a
sua parte em meio às senhoras e eu me encarrego dos cavalheiros. Dentro de
pouco tempo, a reputação da minha cara meia-irmãzinha estará
completamente destruída, Jesse Randall implicado no processo até o pescoço.
Bem? Que acha disso tudo?
A viúva passou a mão pelos cabelos, num gesto coquete.
— Meu amigo Honoré Dumaine, seu plano é digno de um gênio. Um
génio maligno a meu ver... mas sempre um génio. Agora, se me der licença,
tenho uma novidade muito importante para contar a todas as senhoras pre-
sentes nessa festa magnífica...
Honoré fez uma mesura diante dela.
— Esteja à vontade, senhora...
Laurette Mayfield deu um sorriso e, afastando-se, caminhou em direção a
um grupo de damas de certa idade que representavam o creme de la creme da
ainda muito conservadora sociedade da Carolina do Sul.
Tudo aconteceu no espaço de uma hora. No salão de baile, cavalheiros
que conversavam a respeito de guerras e caçadas de súbito se viram muito
interessados nas últimas fofocas.
— Você sabia — corria o boato — que a linda herdeira e seu tutor são
amantes? Parece que ela precisa arranjar um marido por causa de uma
cláusula no testamento de seu pai, mas é evidente que, depois do casamento,
a pouca vergonha vai continuar! Não é o fim do mundo? Não existe mais
decência nessa terra...
Os comentários passavam de grupo para grupo, cada vez mais picantes e
audazes.
— Parece que ela já está grávida! Seu futuro marido terá de dar um nome
ao bastardo...
— Ah, se Etienne e Aileen estivessem vivos e soubessem no que se
transformou sua caçulinha...
— É isso que acontece quando uma garota inexperiente e ingénua cai nas
mãos de um tutor sem escrúpulos...
— Não se pode confiar em mais ninguém nesse mundo. E eu que pensei
que Jesse Randall fosse um homem honrado...
Então, de repente, Brianna começou a perceber um movimento estranho
no salão. Era como se todos estivessem indo embora ao mesmo tempo!
Aproximou-se de frei Edouard, confusa e surpresa.
— Que coisa estranha, mon père. São apenas dez e meia e os convidados
já estão se retirando, muitos deles sem nem sequer se despedir de mim! Paul
Martindale, que passou muito tempo conversando comigo, acabou de sair. Não
é muito esquisito?
O bom padre, que passara as últimas duas horas deliciando-se com os
quitutes divinos de Henri e Mathilde, olhou em volta, tendo no rosto uma

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expressão de espanto.
— Mon Dièul Será que a comida estava estragada? Não, não pode ser
isso... Afinal, comi de tudo e aqui estou eu, passando muito bem, por sinal...
Naquele momento, uma preocupada Glória Delaney aproximou-se de
ambos. Brianna reparou que a criada irlandesa estava trémula.
— Frei Edouard, Jesse Randall quer falar com o senhor imediatamente. É
muito urgente!
— O que aconteceu? — perguntou o padre. — Alguém ficou doente ou
coisa parecida?
— Antes fosse isso, meu bom frei. Parece que os criados andaram
ouvindo uns rumores que... bem, não posso dizer mais nada. Venha comigo,
por favor.
Uma espantada Brianna observou Glória Delaney e frei Edouard se
afastarem rapidamente. Rumores? Mas que diabo estaria havendo por ali?
Continuou ali, no meio do salão, completamente impotente, vendo os
convidados restantes se retirarem.

CAPÍTULO VINTE E CINCO

Na manhã seguinte, enquanto esperavam que Jesse, Brianna, Laurette e


Georges Simpson chegassem para uma reunião convocada às pressas, Aimée e
frei Edouard tentavam entender a enorme catástrofe que se abatera sobre Le
Beau Château, na noite anterior.
— Uma das criadas, Suzette, jura que ouviu a própria Laurette contar a
uma das senhoras convidadas que Jesse e Brianna eram amantes — contou a
cigana, num misto de revolta e indignação. — E parece que Prenshaw ouviu a
mesma coisa partindo de Honoré Dumaine!
Frei Edouard coçou a barba, pensativo.
— É, ma petite, tudo leva a crer que ambos resolveram se unir a fim de
prejudicar nossa Brianna...
— Ah, aqueles dois ratos! Eles não valem o que comem!
— Aimée, você já ouviu falar naquele ditado que diz que há males que
vêm para bem?
— Sim, já, mas...
— Acontece que eu acabei de ter uma idéia. Uma idéia fantástica que
pode transformar o fracasso no mais absoluto sucesso!
— Continuo não entendendo, bon père.
— Então me ouça com atenção. Vou lhe contar tudo o que estou
pensando, para que possa me ajudar quando a hora chegar.
Os dois abaixaram a cabeça e conversaram em sussurro durante vários
minutos, até serem interrompidos pela chegada de Jesse, Brianna e do
advogado Simpson.
Brianna já tinha sido informada de toda a desgraça. A uma hora
daquelas, metade da Carolina do Sul estaria a par das últimas novidades. Até
a tarde, era provável que a outra metade também estivesse achando que ela
era amante de seu belo e atraente tutor Jesse Randall.
O pior de tudo era que os comentários correspondiam exatamente à
realidade. Que ironia do destino! Ainda bem que a única pessoa que sabia de
tudo era Aimée.

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O advogado olhou em volta.
— Bem, estão todos aqui?
— Madame Mayfield também foi convidada a comparecer — respondeu o
padre.
— Laurette mandou um bilhete dizendo que pede desculpas, mas uma
terrível dor de cabeça a está mantendo em seus aposentos — explicou Jesse.
Frei Edouárd não pareceu surpreso.
— Eu já esperava por isso.
Jesse Randall levantou uma sobrancelha.
— Por que diz isso, ma père?
— Num instante você ficará sabendo, mas antes, gostaria de fazer uma
pergunta. Alguém por aqui está sabendo do paradeiro de Honoré Dumaine?
— Acabei de saber que ele partiu para Filadélfia — informou Jesse. —
Uma viagem de última hora, ao que parece.
O padre deu de ombros.
— Isso também não me surpreende em nada!
Brianna, que tinha acabado de se sentar num sofá, levantou-se.
— Não estou entendendo, frei Edouard. O que...
— Sente-se, minha filha, sente-se. Vamos com calma. Uma coisa de cada
vez. — O padre respirou fundo. — Meus caros amigos, como todos aqui
infelizmente estão sabendo, um boato horrível a respeito da honra de nossa
querida Brianna espalhou-se pelos salões de Le Beau Château ontem à noite.
Agora, o que não sabem é de onde partiu a calúnia. — Ele fez uma pausa. —
Parece que quem começou essa história toda foi Laurette Mayfield.
Surpresa, raiva e indignação apareceram ao mesmo tempo no rosto de
todos os presentes.
— Aquela víbora! — exclamou Brianna. — Bem que eu achei que ela não
era digna de confiança!
— Não foi só ela, ma petite. Ao que tudo indica, há um outro vilão nesta
história.
— Quem? — perguntou ela, cuja resposta podia bem adivinhar.
— Seu meio-irmão Honoré Dumaine.
Ouviu-se um murmúrio vindo dos quatro cantos da sala. Georges
Simpson parecia visivelmente abalado.
— Meus amigos, ainda não estou entendendo nada. Claro, os motivos de
Dumaine para fazer o que fez são mais do que óbvios. Mas, e a viúva Mayfield?
Por que ela iria arriscar seu emprego nesta casa instigando esse terrível
escândalo?
Brianna virou-se para Jesse, enquanto respondia:
— É que talvez ela tivesse um outro emprego em mente... Ocupar a
posição de esposa de um próspero fazendeiro da região, por exemplo...
— Bem — disse Simpson, sentando-se à escrivaninha de Etienne
Devereaux — vamos deixar de lado os motivos por enquanto. O que importa é
que temos um problema enorme pela frente, que precisa ser resolvido o mais
rápido possível. Só não sei como!
— Honoré venceu — constatou Brianna. — Paul Martindale me disse
ontem que viria me visitar no próximo fim de semana. Um mensageiro acabou
de chegar com um bilhete, onde ele desmarca o compromisso. Não adianta
mais. Nenhum homem deste Estado vai querer se casar comigo. A fortuna dos

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Devereaux passará toda para as mãos de Honoré.
Frei Edouard limpou a garganta, captando a atenção de todos os
presentes naquela sala.
— Não necessariamente, ma petite. Há uma outra possibilidade, a única
aliás, que poderá salvar sua reputação... bem como sua herança.
— E que possibilidade é essa, mon père?
O padre desviou o olhar para Jesse Randall, que, de pé perto de uma das
janelas, ouvia a conversa em silêncio. Depois, encarou Brianna com o rosto
sério e compenetrado.
— Casar-se com Jesse Randall imediatamente.
O silêncio que seguiu a declaração do padre pareceu ecoar nos ouvidos
de Brianna. Sem ainda acreditar no que tinha acabado de ouvir, olhou para
todos os presentes, como se quisesse a confirmação de que aquilo não se
tratava de uma alucinação. E Jesse?! Ele continuava em silêncio, perto da
janela, como se seu nome nem tivesse sido mencionado! Será que tinha ficado
surdo? Finalmente, ela voltou os olhos para o bom frei.
— O senhor só pode estar brincando!
— Ah, não, querida Brianna! — exclamou o advogado, levantando-se e
aproximando-se do padre. — A idéia é excelente! O casamento de vocês dois,
os protagonistas do escândalo, servirá para calar a boca de todos os ca-
luniadores! Além disso, nem precisa ser um casamento de verdade. Vocês se
casam, esperam alguns meses até que o falatório termine e aí eu dou um jeito
de conseguir uma anulação. O senhor foi brilhante, frei Edouard. Sim-
plesmente brilhante!
O padre olhou para os dois interessados.
— Bem, Jesse, Brianna, vocês concordam com a solução?
— Não.
— Sim.
As respostas conflitantes vindas de cantos diferentes da sala foram dadas
exatamente ao mesmo tempo. Ao ouvir o "sim" de Jesse, Brianna virou-se para
ele, os olhos verdes arregalados. Será que seu tutor tinha ficado louco?
Mas antes que pudesse dizer alguma coisa, Aimée aproximou-se dela e
tomou-lhe as duas mãos.
— Brianna, você precisa concordar! Casando-se com o sr. Randall, a
fortuna passa automaticamente para suas mãos. Você não vai deixar Honoré
Dumaine rir por último, vai?
Em silêncio, Brianna começou a considerar as palavras da amiga. Então,
Jesse afastou-se da janela e pediu a atenção de todos.
— Eu acho que a proposta de frei Edouard faz muito sentido. Se Brianna
e eu nos casarmos, as línguas ferinas se calarão imediatamente. Além disso,
devo confessar que parte desse escândalo aconteceu por minha culpa.
Brianna sentiu um aperto no estômago. Meu bom Deus! Será que ele uai
contar a todos os presentes que nós dois...
— Se eu não tivesse dançado com Brianna durante tanto tempo... —
continuou Jesse —, talvez Honoré e Laurette não tivessem tido a idéia de fazer
o que fizeram.
Brianna deixou escapar um sorriso de alívio.
— O mínimo que eu posso fazer é oferecer-lhe minha proteção e meu
nome — ele estava lhe dizendo. — Agora, Brianna, se aceitar meu pedido, eu

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gostaria que aceitasse uma outra proposta minha e, disso eu não posso abrir
mão. Quero voltar imediatamente para a minha fazenda logo após a cerimônia.
Já estou muito tempo ausente e não posso adiar mais o meu retorno.
A sala começava a girar à sua volta.
— Mas... mas... quem vai cuidar de Le Beau Château enquanto eu estiver
fora?
— Ora, minha cara, todos nós que o fizemos durante a doença de seu pai
— respondeu Simpson. — Pode acreditar, a tarefa não é difícil.
— E o fato de você sair de cena durante algum tempo vai ajudar a esfriar
os boatos — lembrou o padre. — Longe dos olhos, longe da mente, não é?
— Então, Brianna, o que você decide? — perguntou Aimée, cheia de
esperanças.
Ela estava tonta. O ar lhe faltava. Era como se as paredes estivessem se
fechando em torno de si. Mesmo com a cabeça girando, sentia que todos os
olhares estavam voltados em sua direção. Uma porção de palavras vieram-lhe
à mente: casamento, anulação, luxúria, desejo, amor, Le Beau Château,
dinheiro, fofocas, ganância, maldade, traição... finalmente, quando pensou que
não fosse aguentar mais, olhou para todos os rostos ansiosos à sua volta e deu
a resposta que, de um modo ou de outro, sabia que iria acabar dando, já que
não lhe restava outra alternativa.
— Muito bem, amigos. Eu aceito.
Brianna andava a esmo pelos jardins de Le Beau Château, seu coração
cheio de emoções conflitantes e estranhas. Sabia que devia estar aliviada pelo
fato de ter tido o problema de casamento solucionado, mas ela podia estar
sentindo tudo naquele momento... menos alívio. Amanhã, a uma hora dessas,
serei uma mulher casada. A mulher de Jesse Randall. Meu Deus... O que vai
ser de mim?
— Olá, Brianna!
Ela virou-se ao som daquela voz e, pela primeira vez naquele dia, deu um
sorriso feliz.
— Olá, Festus.
O negro vinha se aproximando com o gatinho Miau em seu ombro direito.
— Como você sabia que era eu? — perguntou ela, estendendo-lhe a mão
para acariciar o bichano.
— Ah, eu conheço o seu perfume! — explicou ele. — Mas agora eu
gostaria que você me contasse por que está com essa carinha tão desanimada!
— É quem disse que estou com cara desanimada, Festus?
— Eu mesmo! Não se esqueça de que nós, os cegos, vemos algumas
coisas que as outras pessoas não conseguem ver!
— É verdade, você tem razão. Estou mesmo bastante desanimada. O
casamento é um passo muito sério na vida de qualquer pessoa... Além disso,
Jesse e eu não temos quase nada em comum. Você sabe qual foi o verdadeiro
motivo desse casamento? O negro pareceu embaraçado.
— É, eu andei ouvindo alguns comentários... Mas vá se animando,
Brianna. Você vai se casar com um dos melhores homens do mundo!
— Você gosta muito dele, não é?
— Se eu gosto dele? Daria a vida pelo sr. Jesse. Você ficou sabendo como
foi que nos conhecemos?
— Fiquei, sim. Ele me contou. Acho que qualquer homem de bem teria

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feito a mesma coisa.
— Ah, mas o problema é que não existem muitos homens de bem no
mundo ultimamente! Principalmente homens brancos, aqui nos estados do sul
do país!
Falaram sobre os horrores da escravidão, sobre a liberdade, sobre o
amor. Então, quando o negro pediu licença para cuidar de suas obrigações,
Brianna ficou a sós novamente, pensando nas coisas que haviam sido ditas.
Para Festus, Jesse era um herói, uma espécie de deus em forma de
homem. Aquilo era fácil de ser explicado. Claro, ele havia comprado o negro e
lhe dado a liberdade. Mas... até que ponto aquela bondade toda era
verdadeira? Era engraçado, mas todas as pessoas à sua volta falavam
maravilhas dele. Sua irmã Deirdre, seu pai, frei Edouard. Até Aimée parecia
gostar dele. E ela? Quais seriam seus verdadeiros sentimentos em relação
àquele homem? Será que um dia, acabaria sucumbindo a seu charme? Ou me-
lhor... será que já não tinha sucumbido?
Não! Não podia permitir aquilo. Apaixonar-se por Jesse Randall
significaria desistir das duas coisas que mais prezava na vida: liberdade e
independência.
Além de tudo, sabia que ele jamais poderia amá-la. Deirdre ainda não lhe
saía da cabeça. E provavelmente jamais iria sair.
Tudo bem. Casaria-se com ele. Mas daria um jeito de cair fora daquela
armadilha o quanto antes. E que Deus a ajudasse.
Laurette Mayfield tamborilava os dedos no tampo da mesa, revelando
todo nervosismo que sentia.
— É isso mesmo, cavalheiros. Vocês não podem me despedir, já que meu
contrato garante meu trabalho nesta casa pelo período de um ano!
— Mas sra. Mayfield — protestou Georges Simpson, olhando
nervosamente para Jesse e para frei Edouard ambos um pouco mais adiante.
— Em vista do que aconteceu durante o baile ontem à noite e, considerando-se
todas as evidências...
— Evidências? Que evidências? Eu fui vítima de uma cilada, será que
não percebem? Ninguém pode provar nada contra mim e...
— Laurette. — Era Jesse que atravessava a biblioteca e chegava perto
dela. — Você iria receber a quantia de dez mil dólares por seus serviços, não é?
— Exatamente — respondeu a viúva.
Ele tirou um envelope do bolso e colocou-o sobre a mesa.
— Essa é uma carta para o meu advogado em Charleston, instruindo-o
para depositar essa quantia em seu nome, no banco de sua preferência. Isso,
se concordar em deixar Le Beau Château... e não voltar mais.
Aquilo pareceu deixar a viúva ainda mais irritada.
— O quê? Você está me pagando para se livrar de mim? Mas eu pensei
que nós dois...
— Cavalheiros — interrompeu ele, voltando-se para o padre e o
advogado. — Será que poderiam nos dar licença por alguns momentos? A sra.
Mayfield e eu precisamos conversar a sós.
— Claro, claro — os dois se apressaram em responder. — Podem ficar à
vontade, já estamos saindo.
Segundos depois, quando ficaram sozinhos na biblioteca, Laurette deu
dois passos à frente e confrontou Jesse, os olhos brilhando de raiva.

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— Por quê, Jesse? Por que está fazendo isso comigo?
— Sou eu que lhe faço a mesma pergunta, cara Laurette. Por quê?
Ela recostou-se na mesa e ajeitou a saia de veludo preto.
— Ora, eu pensei que meus motivos fossem aparentes. — Sua voz ficou
mais meiga e suave. — Achei que você estava disposto a passar mais tempo
comigo... e dei um jeito para que isso acontecesse.
Jesse estudou-a por alguns instantes, então deu um suspiro.
— Você achou errado, Laurette.
— O quê? Eu achei errado? Depois de tudo o que aconteceu entre nós?
Ele balançou a cabeça.
— Nunca houve nada entre nós?
Ele balançou a cabeça.
— Nunca houve nada entre nós, Laurette. Claro, por você, teria havido.
Mas eu nunca entrei no seu jogo. Você realmente é uma mulher belíssima,
mas eu soube resistir aos seus encantos.
— Então não resista mais, meu querido. — Ela passou a língua pelos
lábios, num gesto carregado de sensualidade. Estou apaixonada por você,
Jesse Randall. Juntos, poderemos viver uma linda história de amor e...
— Pare com isso, Laurette.
A viúva tocou seu braço de leve, mas ele esquivou-se daquele toque
abruptamente.
— Parar por quê, meu bem? Pense um pouco. Você é um homem livre.
Também sou uma mulher livre. Por que não nos unimos e desfrutamos de toda
a beleza que a vida tem para nos oferecer?
— Você está enganada, Laurette.
— Enganada? Como assim?
— Não sou mais um homem livre.
— Não? Posso saber o motivo?
— Sem dúvida. — Ele deu um sorrisinho. — Veja só, vou entrar para o
rol dos homens sérios. Estou noivo. Meu casamento com Brianna Devereaux
será realizado amanhã de manhã.
Laurette Mayfield levou a mão à boca, a fúria estampada em seu rosto.
— O quê? Você vai se casar com aquela... com aquela fulaninha? Não
posso acreditar! Pelo amor de Deus, ela não passa de uma criança magricela
sem a mínima graça! Você é homem demais para aquela menina malcriada que
pensa que é gente! Você não pode...
— Já chega, Laurette. Você está falando da mulher com quem vou me
casar amanhã.
— Mulher? Ela não é uma mulher, Jesse! É uma criança recém-saída das
fraldas!
— Acalme-se, Laurette. Você está muito nervosa e...
— Nervosa? Eu estou louca da vidal Olhe aqui, Jesse Randall, quero que
me escute com a maior atenção. Você não vai se livrar de mim com tanta
facilidade. Tenho um contrato de trabalho, que garante minha permanência
junto à sua querida noivinha até o ano que vem. Isso quer dizer que vocês vão
ter de me aguentar ainda durante um bom tempo!
— Laurette, por favor, seja razoável...
— Eu pensei que você fosse se casar comigo... e me dar seu nome!
— Não. Meu nome vai para Brianna Devereaux, que precisa da minha

102
proteção, depois de tudo que você andou espalhando a seu respeito. — Ele deu
um sorriso irônico. — Quem mandou ter a língua comprida, cara Laurette?
Os olhos da mulher brilharam de raiva.
— Você vai se arrepender por ter brincado comigo, Jesse Randall, ah, se
vai! Você e sua querida noivinha! Vou atormentar a vida de ambos! Vou fazer
de tudo para separar vocês dois!
— Chega! — ele gritou. — Quero que me escute, Laurette. Vou me casar
com Brianna, dando-lhe, desse modo, minha inteira e completa proteção. Se
você ousar aborrecê-la ou incomodá-la com qualquer coisa, é a mim que terá
de prestar contas. Ficou claro?
E, sem esperar pela resposta, virou as costas e deixou a biblioteca, sem
fechar a porta atrás de si.
Laurette observou-o ir embora, a mente cheia de planos.
Então você acha que ganhou a parada, Jesse Randall. Isso mostra o
quanto está longe de me conhecer. Pretendo fazer de sua vida um inferno tão
grande, que você vai se arrepender do dia em que seu caminho cruzou com o
meu. Você e aquela malcriada de olhos verdes!

CAPÍTULO VINTE E SEIS

O casamento foi realizado às dez horas da 'manhã seguinte na capela de


le Beau Château. A noiva usou o vestido de sua mãe e, tendo Aimée e Glória
Delaney como madrinhas, foi conduzida ao altar por Georges Simpson onde o
noivo, ladeado pelos padrinhos Isaac e Festus, a aguardava.
A celebração conduzidapor frei Edouard foi um pouco estranha, os
noivos, principalmente a noiva, agindo como se estivessem tomando parte de
uma farsa. Na verdade, as únicas pessoas que se comportavam como se a ceri-
mónia fosse para valer eram a criada irlandesa, o padre e Aimée Gitane, cujos
olhos brilhavam de felicidade.
Depois, todos se dirigiram ao palácio, onde foram feitos brindes em
homenagem aos noivos.
Aimée ajudou Brianna a trocar de roupa e, a uma hora da tarde, depois
de uma comovente despedida entre a noiva e o padre, a cigana e o padre e
outra entre a noiva e Glória Delaney, o grupo partiu para a fazenda de Jesse,
nos arredores da cidade de Charleston, a um dia de viagem de Le Beau
Château.
Infelizmente, apesar de todos os seus esforços, Jesse Randall não
conseguiu se livrar de Laurette Mayfield. Apoiada pelo contrato de trabalho
que lhe garantia um ano de permanência junto a Brianna, a viúva exigiu fazer
parte do grupo que acompanhava os noivos à sua nova moradia, embora
tivesse optado por seguir viagem em sua própria carruagem.
O percurso foi feito sem maiores problemas, embora um pequeno
incidente tivesse servido para quebrar a monotonia das longas horas sobre as
selas. Eram seis da tarde. O tempo ainda estava bom e eles resolveram parar
numa clareira, a fim de fazer um piquenique. Uma toalha foi estendida na
grama, sobre a qual cestas de pães, doces e frutas foram arrumadas. Todos
pareciam estar se divertindo, quando um pequeno animal pareceu surgir do
nada e pulou no colo da viúva Mayfield.
O grito que se seguiu foi tão alto, que Brianna teve a impressão de que o

103
estado da Carolina do Sul inteiro conseguiu ouvi-lo.
— Socorro! Tirem esse monstro de cima de mim! Socorro!
— Bon-Bon! — exclamou Aimée, levantando-se para apanhar o
animalzinho. — Você devia ficar na carruagem! Quem mandou sair de lá?
Quanto mais a viúva se debatia, mais o animal grudava nela.
— Socorro! Estou sendo atacada por um monstro horrível!
— Calma, calma, madame Mayfield — pedia Aimée, fazendo força para
segurar o riso. — Bon-Bon é apenas um filhote de gambá, tão inofensivo
quanto um gatinho!
Os gritos ficaram cada vez mais altos.
— Gambá? Pelo amor de Deus, tirem essa coisa imunda de cima de mim,
de uma vez! Meu vestido vai ficar arruinado! Socorro!
No momento em que Aimée conseguiu pegá-lo, Laurette Mayfield já
estava em estado de choque.
— Vocês soltaram esse gambá em cima de mim de propósito! Ah, mas
vão me pagar! Todos vocês! Ah, se vão!
Ela voltou correndo para a sua carruagem e então Aimée, Jesse e
Brianna caíram na risada.
— Isso foi tão divertido quanto o dia em que madame caiu naquela poça
de lama! — disse a cigana, acariciando seu animalzinho de estimação.
— Onde arranjou esse gambá? — perguntou Jesse, com lágrimas nos
olhos de tanto rir. A cena, realmente, havia sido muito engraçada.
— Foi frei Edouard quem me deu, como presente de despedida. Parece
que a glândula que provoca o mau cheiro foi removida, de modo que ele é
mesmo inofensivo quanto o gatinho Miau de Festus!
— Frei Edouard? E onde foi que o bon père arranjou um gambá? —
perguntou Brianna, curiosa.
— Uns amigos da paróquia lhe deram de presente. Falem a verdade.
Bon-Bon não é lindo?
— Linda foi a cena que eu acabei de ver! — respondeu Brianna, feliz da
vida. — Essas coisas lavam a nossa alma... Com todos nós em volta daquela
toalha, Bon-Bon foi escolher justamente Laurette!
— Bem, acho que já está na hora de seguirmos viagem — disse Jesse. —
O sol já se escondeu e ainda temos um longo caminho pela frente.
A toalha foi removida, as cestas guardadas e, quinze minutos depois, o
grupo voltava a seguir seu caminho em direção à cidade de Charleston.
Chegaram à fazenda de Jesse Randall à tarde do dia seguinte, onde
foram recebidos calorosamente por Vulcan Liberdade. Os gêmeos negros se
abraçaram e as apresentações foram logo feitas.
Brianna sentiu um aperto no coração ao ouvir as palavras "minha
mulher, Brianna Devereaux Randall", no momento em que estendia a mão ao
gigante negro. Era a primeira vez que alguém a chamava por seu nome de
casada e aquilo, vindo da boca de Jesse, teve um efeito estranho sobre ela.
Estranho e contraditório.
Emoções conflitantes invadiram-lhe a alma: alegria, raiva, medo,
insegurança, satisfação. Mas deixaria para lidar com elas depois. Agora, sua
atenção estava voltada para Vulcan Liberdade, que contava ao patrão o que
tinha acontecido na fazenda durante a sua ausência.
— O senhor nem acredita, sr. Jesse. A srta. Christie esteve aqui quase

104
todos os dias, arrumando os móveis que vinham chegando. E que móveis!
Camas, sofás, mesas, cadeiras, tudo da melhor qualidade!
Jesse sorriu para o empregado e virou-se para Brianna.
— Vamos entrar e dar uma olhada nas coisas. Se você achar que está
tudo em ordem, poderemos prosseguir com a mudança. Se não, passaremos
alguns dias na casa de meu irmão Garrett, até que tudo se arranje. De qual -
quer modo, vou ter mesmo de dar uma chegada até lá, a fim de cumprimentá-
los e pedir para que Christie ceda alguns empregados para nos ajudar. O que
você acha?
Ele estava lhe pedindo sugestões, consultando-a como se fosse a dona da
casa. O que, legalmente, ela realmente era. Pelo menos, enquanto a farsa
durasse.
— Por mim, tudo bem.
— Vamos entrar, logo — Laurette Mayfield estava dizendo. — Chega de
tanta conversa mole, porque estou exausta! — Ela virou-se para Vulcan. —
Não fique aí parado, homem, pegue logo a minha bagagem e a leve para
dentro!
O negro ficou surpreso com os maus modos da viúva, mas sequer piscou
os olhos.
— Sim, senhora.
Uma só olhada para a casa confirmou o que o negro dissera sobre a
eficiência da cunhada de Jesse. Brianna ficou encantada com a beleza do
lugar, não só com a decoração fina e sofisticada, mas a qualidade do desenho
da construção. Sabia que fora o próprio Jesse quem planejara tudo, detalhe
por detalhe. Mais um item para o rol de qualidades de seu querido maridinho.
O problema era que, de repente, a lista estrava ficando muito extensa.
Aimée também ficou de boca aberta com o que viu. Até Laurette, com
todo seu mau humor, não conseguiu disfarçar murmúrios de admiração ao ver
os belos móveis, os enfeites, os tapetes, os candelabros de cristal. O que mais
chamou a atenção da viúva, no entanto, foram as janelas amplas, que mais
pareciam um tributo à graça e à claridade.
Jesse não podia estar mais satisfeito ao ver os resultados finais de um
ano de trabalho duro. Os móveis encomendados nas melhores lojas de
Newport, Boston, Filadélfia e Nova York eram lindos de verdade e haviam sido
arrumados com extremo bom gosto por sua cunhada Christie Randall.
— Está tudo perfeito — disse Brianna, entusiasmada. Aquela casa,
embora muitas vezes menor, era tão luxuosa quanto Le Beau Château. — Vai
ser muito agradável morar aqui.
Por pouco tempo. Até que as pessoas esqueçam e eu possa arranjar uma
anulação para esse casamento de mentira e voltar para minha casa, que é meu
lugar, ela acrescentou para "si mesma.

CAPÍTULO VINTE E SETE

Assim que Isaac, Vulcan e Festus descarregaram a bagagem e todos se


acomodaram em seus respectivos quartos, Jesse despediu-se de Brianna,
dizendo que iria visitar o irmão e a cunhada.
— A fazenda deles fica a poucos quilómetros daqui. Devo estar de volta
na hora do jantar e é muito provável que ambos me acompanhem. Aposto que

105
vão ficar loucos para conhecê-la!
Se quisesse ser bem sincera consigo mesma, Brianna reconheceria que
também estava com muita vontade de conhecer os familiares de Jesse.
— Tudo bem, Jesse. Vá com cuidado!
— Você não vai dar um beijo de despedida em seu marido?
A resposta veio rápida:
— Não.
Ele deu de ombros.
— Tudo bem, como quiser.
Conforme havia prometido, Jesse voltou às sete da noite, seguido pelo
que parecia ser uma verdadeira caravana de empregados trazendo uma
infinidade de pratos prontos em travessas de prata. Numa outra carruagem,
vinham Christie, Garrett e os dois filhinhos do casal.
Assim que o pequeno exército dos Randall adentrou à cozinha e a área de
serviço, Aimée correu para o enorme quarto onde Brianna descansava após ter
feito sua toilette.
— Brianna, Brianna, você precisa descer imediatamente! Nunca vi tanta
comida junta! E que pessoal simpático!
Ela sentou-se na cama espaçosa, onde vinha tentando, sem sucesso,
relaxar há quase uma hora.
— Mas do que está falando, Aimée? Quem está lá embaixo?
— O irmão e a cunhada de Jesse, os dois filhos pequenos do casal e uma
porção de empregados! Ah, Brianna, você precisa ver como ela é bonita!
— Ela quem, Aimée? Acalme-se, por favor! Você está muito agitada!
A cigana respirou fundo e continuou a falar com ai mesma intem-
pestividade:
— A cunhada de Jesse. Parece que seu nome é Christie. Que mulher
linda, Brianna. E simpática, também. Aliás, o marido dela é tão bonito quanto
o irmão. Nunca pensei que, numa só família, pudesse haver dois homens tão
lindos!
Brianna se levantou e sentando-se diante de uma cô-l moda, começou a
pentear os cabelos. Foi aí, então, quel viu ao lado de Aimée, o gambá Bon-Bon.
— Sinto muito Aimée, mas acho bem mais prudentel você esconder seu
bichinho de estimação no seu quarto| durante o jantar. Pode ser que os
empregados novos se assustem e...
Uma batida leve e delicada na porta interrompeu-lhe as palavras. As
duas mulheres se entreolharam. Quer seria? Jesse, talvez?
— Quem é? — perguntou Brianna, terminando de arrumar o cabelo.
— Sou eu, Christie Randall. Espero não estar atrapalhando, mas Jesse
me mandou subir para ver se eu podia ajudar em alguma coisa.
— O que Christie não contou foi que, se Jesse não tivesse feito aquele
pedido, ela teria subido de qualquer forma já que estava morrendo de
curiosidade para conhecer aquela noiva cujo estranho casamento lhe fora
explicado cuidadosamente durante a viagem.
— Por favor — lhe pedira Jesse. — Só não lhe conte que você já sabe de
tudo.
Brianna lançou um último olhar para seu reflexo no espelho. Satisfeita
com o que viu, fez um sinal para que \Aimée abrisse a porta. Quando a cigana
o fez, ela viu uma mulher de extraordinária beleza ali parada, um sorriso

106
afetuoso brincava em seus lábios.
— Entre, por favor — convidou Brianna, olhando com admiração para
aquela beldade loira cujos olhos azuis eram os mais lindos que já vira na vida.
Seu rosto, além de perfeito, irradiava simpatia e Brianna compreendeu,
naquele instante, que iria gostar daquela mulher.
— Obrigada. Eu sou Christie, sua cunhada. Minha nossa, Jesse me
falou que você era bonita, eu só não imaginava o quanto! — Ela estendeu-lhe
as duas mãos. — Seja bem-vinda à família!
Havia tanta bondade vinda daquela mulher, que, pela primeira vez, desde
que chegara naquela casa, Brianna começou a relaxar. Então, ela percebeu de
súbito que, seja lá o que fosse acontecer naquela terra estranha, ela teria uma
amiga, talvez até, uma aliada que a ajudaria a resolver seus problemas. As
duas não tinham muita diferença de idade e, além disso, Christie conhecia
bem Jesse!
Brianna retribuiu-lhe o cumprimento.
— Muito obrigada!
— Já conheci Aimée — continuou a bela Christie. — Que maravilha você
poder contar com a companhia de uma amiga de tanto tempo! Que bom que
ela pôde vir da França com você!
Então ela avistou o gambá no colo de Aimée e pareceu levar um susto.
— Ora, vejam só o que temos aqui! Esse bichinho é o que eu estou
pensando que é?
Brianna deu um sorriso um tanto sem graça.
— Bem... sim e não. Quero dizer, sim, Bon-Bon é um gambá e não, ele
não faz o que os outros gambás costumam fazer.
Naquele instante o som de sapatinhos ecoando pelo corredor pôde ser
ouvido e a porta do quarto, que estava semi-aberta, abriu-se completamente,
dando passagem a um menininho de um ano e pouco de idade, que correu
para Christie com suas perninhas gorduchas e enterrou a cabeça em sua saia.
— Adam, seu menininho travesso! O que está fazendo aqui, sozinho, sem
Millie?
— Estou aqui, sra. Christie — explicou logo uma garota ruiva e sardenta,
aproximando-se da porta. Devia ter mais ou menos uns quinze ou dezesseis
anos e trazia nos braços um bebé coberto com uma manta cor-de-rosa. — Peço
desculpas, senhora. Eu estava fazendo a pequena Marijen dormir, quando esse
diabinho escapou de mim!
— Tudo bem, Millie — tranqúilizou-a Christie. — Eu queria mesmo que
as crianças conhecessem sua nova tia. Essa é a esposa do sr. Jesse, a sra.
Brianna Devereaux Randall
A garota ruiva fez uma mesura diante dela.
— Muito prazer, senhora.
— Olá, Millie — respondeu Brianna com um sorriso nos lábios, mas sua
atenção logo se voltou para o menino que puxava a saia da mãe.
— Mamãe, Adam comeu tudo!
— Comeu mesmo, meu querido? Você comeu todos os legumes e todo o
peixe do seu prato?
A pequena cabecinha fez que sim vigorosamente.
— Bem — continuou a orgulhosa mamãe. — Então agora você vai
ganhar seu prémio. Mas antes, venha dizer olá à sua nova tia, Brianna. — Ela

107
apanhou a mãozinha do filho e se aproximou da cunhada.
O menino olhou para a moça à sua frente que tinha olhos verdes
parecidos com os seus e sorriu, mostrando duas lindas covinhas no rosto.
— Olá, tia Brianna.
— Esse é meu filho, Adam Jeremy Randall — apresentou sua mãe, o
mesmo sorriso orgulhoso nos lábios.
— Olá, Adam! Você é tão lindo quanto sua mamãe! Ao ouvir sua mãe
mencionada, o jovem Adam virou-se novamente para ela.
— Adam comeu todo o peixe!
E, dizendo isso, ergueu os bracinhos e lançou um olhar cheio de
esperança a Christie.
Esta riu e, tirando um bombom do bolso da saia, entregou-o ao filho.
O menino comeu o docinho avidamente, então olhou para Aimée que
segurava o pequeno gambá nas mãos.
— Gatinho! Gatinho!
A cigana sorriu com ternura.
— Não, ele não é um gatinho. É Bon-Bon. Você quer me ajudar a lhe dar
comida? — Ela olhou para Christie. — Eu posso levá-lo comigo para o meu
quarto, madame! Eu ia mesmo dar comida ao bichinho e... mantê-lo fora de
circulação, durante algum tempo. Não precisa se preocupar. Bon-Bon é
completamente inofensivo. Também não passa de um bebe!
Christie Randall olhou para o filho.
— Adam, esta é a srta. Aimée. Você quer ir com ela alimentar seu
amiguinho?
O garoto sorriu com sua carinha de anjo.
— Gatinho! Gatinho!
E, segurando rapidamente a mão que Aimée lhe estendia, deixou o
quarto ao lado da cigana.
Quando eles se foram, Christie fez sinal para que Millie lhe entregasse o
bebé e dispensou-a com um sorriso. Então, dirigiu-se novamente a Brianna.
— E essa é minha filha, Marijen.
Brianna olhou para aquele rostinho adormecido, onde se viam alguns
fios de cabelos loiros.
— Mas que menina linda! E que nome bonito e diferente!
— Foi uma homenagem que fizemos à minha mãe, Jennifer Trevellyan, e
à mãe de Garrett, Marianne Randall. Adam Jeremy recebeu esse nome por
causa do avô paterno.
— E seu pai, Christie?
— Bem, se tivermos outro filho, ele receberá o nome dele. Papai está
muito bem de saúde, graças a Deus. Mora numa fazenda no estado da
Virgínia, onde eu passei a infância. Mas, como é muito apegado a mim e aos
netos, está sempre aqui para nos visitar. — De repente, Christie ficou séria. —
Soube que perdeu seu pai há pouco tempo. Eu sinto muito.
— Obrigada — respondeu Brianna, sentindo uma pontada de tristeza no
coração. Ainda doía falar sobre a morte de Etienne Devereaux, de quem nem
pudera se despedir.
Naquele instante, uma voz feminina e esganiçada vinda da porta do
quarto interrompeu a conversa das duas cunhadas.
— Brianna! Aquela besta horrível ainda está nesta casa! Exijo provi-

108
dências imediatas!
Christie e Brianna olharam para a irada viúva, que parecia espumar de
raiva. Então a mulher de Garrett fez uma cara de absoluto espanto!
— Laurette Mayfield? Você por aqui? — virou-se para Brianna, a testa
franzida. — O que essa mulher está fazendo na sua casa?
— Vocês já se conheciam? — Brianna perguntou com apreensão.
— Infelizmente já — respondeu Christie. — Mas juro que a culpa não foi
minha.
Brianna explicou rapidamente qual era o papel da viúva em sua vida.
— Meu Deus! — exclamou a mulher de Garrett, arregalando os olhos
muito azuis. — E você não pode fazer nada para livrar-se dela?
— Não! — Laurette Mayfield encarregou-se de responder. — Tenho um
contrato de trabalho que garante rainha permanência junto à herdeira
Devereaux pelo período de um ano. Agora, se quiser saber, sra. Randall,
também tive um enorme desprazer em revê-la!
Quando a viúva bateu a porta atrás de si, Christie exclamou, revoltada:
— Mas que azar! Com tanta gente no mundo, foram escolher exatamente
essa bruxa para ficar ao seu lado!
— Gostaria de saber, Christie, quais foram as circunstâncias em que
vocês se conheceram.
— Ela era minha vizinha na Virgínia. Tentou conquistar Garrett de todas
as maneiras quando ainda éramos noivos e, ao ver que não iria conseguir,
começou a dar em cima do meu pai! O negócio dela é arranjar um marido rico
que a sustente, seja ele quem for!
— Meu Deus! — Brianna exclamou horrorizada. — E pensar que uma
mulher dessas está morando debaixo do meu teto!
— Olhe, Brianna, escute meu conselho: mantenha os olhos bem abertos
no que se refere a essa bruxa. Ela é do tipo que não teria escrúpulos em tentar
alguma coisa com um homem casado. Para ela, basta que ele tenha uma boa
conta corrente. E eu tremo só de pensar que, a uma hora dessas, ela pode
estar lá embaixo conversando com nossos maridos!
Um pensamento então atravessou a mente de Brianna. O meu marido
não é um marido de verdade. É uma grande farsa.
Olhou para o relógio, a fim de verificar se ainda teria algum tempo antes
do jantar. Meia hora. Tempo suficiente para se abrir com Christie Randall,
uma mulher em quem confiara desde o primeiro momento em que a vira.
— Christie — ela começou, tentando escolher as palavras certas. — Há
algumas coisas a respeito de meu relacionamento com Jesse que eu gostaria
que você soubesse.
E, de forma reduzida, Brianna lhe contou tudo a respeito do casamento
temporário, do testamento, das intrigas, de Honoré Dumaine e Laurette
Mayfleld.
Christie olhou-a com olhos que falavam de respeito e admiração. Sentia-
se feliz por Brianna tê-la escolhido como confidente, embora já soubesse da
verdade.
— Brianna, muito obrigada pela confiança que teve em mim. Agora,
quanto à sua situação, não pense que o fato de ser casada de verdade ou não
com Jesse muda meus sentimentos em relação a você. Eu a adorei no
momento em que entrei por aquela porta. Pode contar comigo em tudo o que

109
precisar!
Brianna deixou escapar um suspiro de alívio. Sorriu para a mulher à sua
frente, que segurava um lindo be-bezinho nos braços.
— Sou eu quem devo agradecer. Muito obrigada, Christie. Como é bom
poder ganhar uma amiga...
A pequena Marijen abriu os olhinhos e a orgulhosa mamãe olhou para
ela.
— Acho que já está na hora de amamentá-la de novo. Minha filhinha é
muito gulosa!
Brianna ficou surpresa.
— Você amamenta o bebê? Na França, as mulheres de boa família não
costumam fazer isso.
— Nem as daqui. Mas eu jamais deixaria de ter o prazer dessa
intimidade com meus filhos. O ato de amamentar um bebê é algo tão sublime,
mas tão sublime, que todas as mães deveriam experimentar. E não acredito
nessa história que os seios da mulher ficam caídos, quando amamentam. Isso
é uma grande bobagem. Garrett disse que, depois de eu ter amamentado Adam
Jeremy, eles ficaram mais bonitos ainda!
Brianna sorriu, tomando sua decisão. Se um dia tivesse um bebé, se um
dia Deus a abençoasse com um filho, ela o amamentaria exatamente como
Christie fazia.
Mas o problema era que ela não tinha um casamento de verdade, nem
um marido de verdade. Então, quem iria ser o pai de seu filho?
A luz de uma vela iluminava o rosto suave de Christie Randall no
momento em que ela se aconchegou nos braços do marido Garrett. Lá fora, os
grilos cantavam, dando seu adeus aos últimos dias quentes do ano. Garrett
sorriu e deu um beijo na testa da bela mulher.
— Um centavo para saber no que você está pensando, meu amor.
Christie deu um suspiro.
— Você sempre sabe quando meu pensamento está longe, não é?
— É que eu conheço bem minha mulher.
— É verdade, Garrett. Você conhece sua mulher de todos os modos
possíveis...
Ele riu e a abraçou com ainda mais força.
— Mas agora me conte, querida. O que a está deixando assim tão
preocupada?
Outro suspiro.
— Nada de sério, meu amor. E que eu só estava pensando, depois
dessas horas maravilhosas que passamos juntos nessa cama, num outro
marido e numa outra mulher, cujo casamento promete ser muito diferente do
nosso...
— Você está se referindo a Jesse e a Brianna?
— Sim. Ah, Garrett, os dois são ótimas pessoas! E merecem mais da vida
do que esse casamento que não é casamento de verdade!
Garrett sentou-se na cama e estudou o rosto da mulher com cuidado.
— Você gostou muito de Brianna, não é?
— E como... Já a considero como se fosse minha própria irmã.
— Devo dizer que também fiquei muito bem impressionado. Não só a
garota é linda — ele sorriu —, não tão linda quanto você, é claro, mas também

110
tem algo dentro da cabeça... substância, digamos assim. E força. Vi isso dentro
de seus olhos e nas coisas que ela falou durante o jantar. Tudo isso serviu
para que eu confirmasse essa minha impressão.
Christie sorriu.
— Brianna defendeu abertamente o direito das mulheres e dos negros
voto. Sabe que eu também já havia pensado nisso? A idéia me parece muito
boa...
Garrett caiu na risada.
— Ora, vejam só! Os dois irmãos Randall se casaram com mulheres
radicalmente liberais!
— Mas é esse exatamente o problema, Garrett. Jesse e Brianna não estão
casados de verdade!
— Não esteja tão certa disso, querida!
Christie ergueu-se na cama, apoiou-se nos cotovelos e perguntou,
intrigada:
— Como assim?
— Eu acho que Jesse está apaixonado por ela.
— Ele lhe disse isso?
— Ah, não! Meu irmão é um homem muito reservado no que se refere a
esse tipo de coisa. Mas ele é meu irmão, não se esqueça disso. E eu o conheço
melhor do que qualquer pessoa nesse mundo. E, nesse momento, eu diria,
sem medo de errar, que Jesse está apaixonado por Brianna Devereaux. De
verdade.
— Por que pensa assim, querido?
— Por que ele não pára de falar nela. É Brianna isso, Brianna aquilo.
Talvez Jesse ainda nem tenha se dado conta do fato, mas que existe muito
amor em seu coração, ah!, isso existe.
Christie considerou as palavras do marido com muita atenção.
— Bem, se Jesse está realmente gostando dela, agora o problema muda
de figura. E Brianna? O que ela está sentindo a respeito dele? Eu não faço
idéia...
— Eu também não, querida. Só tenho certeza de uma coisa. Ela ainda é
muito criança e vai ter de amadurecer um pouco até saber exatamente o que
quer da vida. Talvez o processo ainda seja longo e um pouco lento... — Ele deu
um beijo na boca da mulher. — Pobre Jesse... Não gostaria de estar na pele
dele nesse instante...
— E onde então você gostaria de estar? — Christie perguntou, com a voz
cheia de segundas intenções.
— Onde estarei para sempre, meu amor. Nos braços da mulher adorada
com quem me casei.
CAPÍTULO VINTE E OITO

Brianna andava de um lado para o outro do enorme quarto, nervosa e


impaciente, Olhou para o relógio. Cinco para as nove e Jesse ainda não tinha
chegado. Pela centésima vez, seus olhos se desviaram para uma luzinha fraca
vinda de baixo da porta do quarto ao lado. Estivera lá duas horas antes e
encontrara uma criada, arrumando a cama. Quando perguntara à moça quem
deveria ocupar tal quarto, ela limitara-se a dar de ombros, dizendo que
trabalhava para a sra. Christie Randall e que não sabia de nada a respeito dos

111
moradores daquela casa.
Mas que coisa aborrecida. Quem iria ocupar aquele quarto, em nome de
Deus? Certamente não seria Aimée, cujos aposentos ficavam no final do
corredor. Muito menos Laurette Mayfield, que havia escolhido um quarto em
outro andar. Mas então...
Uma batida leve na porta interrompeu-lhe os pensamentos.
— Brianna, ainda está acordada?
Ela atravessou o quarto correndo.
— Sim, Jesse.
— Posso entrar? Quero dizer... você está decentemente vestida?
— Claro que estou. Vamos, entre logo.
A porta se abriu, dando passagem a seu marido, seu marido de mentira,
é claro. Ele usava as mesmas roupas da hora do jantar, mas abrira alguns
botões da camisa, revelando uma parte, muito sensual, do peito musculoso e
bronzeado. Estava tão atraente, que Brianna engoliu em seco.
— Bem, eu recebi o recado que você queria falar comigo - ele foi logo
dizendo. — Estou às suas ordens.
Com certeza as coisas seriam bem mais fáceis se Jesse Randall não fosse
lindo daquele jeito... Só de olhá-lo, Brianna perdia o fôlego, quanto mais
concatenar as idéias e lhe dizer o que pretendia... Respirando fundo, ela
começou:
— Sim, é claro que eu queria falar com você. Em primeiro lugar, para
saber por que fui instalada nesse quarto, já que é evidentemente o melhor de
toda a casa. Em segundo, para saber onde você vai dormir.
Ela estava irritada até não poder mais, embora não conseguisse entender
bem o motivo.
Jesse respirou fundo, demonstrando um certo cansaço.
— Sim, você tem razão. Esse é realmente o melhor quarto da casa. O
maior, o que oferece mais conforto.
— Então por que fui instalada nele?
— Ora essa, pela razão mais simples do mundo. Você é a dona da casa,
não é?
A resposta fez com que Brianna arregalasse os olhos. Não esperava por
aquilo.
— Bem, Jesse, eu espero que você não tenha se esquecido de nosso
pequeno acordo. Estamos casados, sim, mas é apenas um acordo temporário
e...
— Eu me lembro muito bem, cara Brianna. Estamos casados, mas não
somos marido e mulher de verdade. Você não precisa ficar me lembrando disso
de cinco em cinco minutos!
Ela abaixou a cabeça, um tanto embaraçada.
— Eu... não gostaria de dividir o mesmo quarto com você, Jesse.
Ele deu uma risada exageradamente alta.
— E quem disse que vamos fazer isso? O quarto que vou ocupar é esse aí
ao lado. Mandei fazê-lo para poder transformá-lo, mais tarde, no quarto do
bebê, que uma mulher de verdade poderia me dar no futuro! Se você estava
preocupada com isso, espero que esse arranjo a deixe mais tranquila!
Brianna ficou vermelha, uma porção de emoções desencontradas
tomando conta de sua alma. Então Jesse ia mesmo ocupar aquele outro

112
quarto. Graças a Deus. Mas então, por que sentia aquela estranha sensação
de vazio no peito? Devia estar dando pulos de alegria. Ele não iria aborrecê-la!
O que tinha vontade de fazer, entretanto, era sentar-se naquela cama enorme e
chorar. O porquê daquilo? Não fazia a mínima idéia!
— Bem, eu estou muito cansado e pretendo me recolher agora — disse
ele. — Há mais alguma coisa que você queira falar comigo?
Ela ficou mais vermelha ainda. Estava se sentindo uma perfeita idiota.
— Acho... acho que não.
— Ótimo. — Ele tirou uma chave do bolso e colocou nas mãos de
Brianna. — Pode trancar a porta depois que eu sair, madame. Assim, sua
honra estará a salvo.
E, dando um sorriso cheio de ironia, fez uma mesura e deixou-a sozinha.
Sozinha para se lamentar da decisão que tomara!
Os dias foram se passando e, quando se deu conta, Brianna percebeu
que realmente estava gostando de morar naquela bela fazenda. Numa tarde,
teve uma enorme surpresa quando, na hora do chá, Jesse lhe deu carta
branca para que terminasse a decoração da casa. Tal autorização foi
acompanhada por uma generosa quantia colocada em suas mãos, para que
pudesse realizar um bom trabalho.
— Não se preocupe com os gastos — foi o que ele lhe disse. — Compre o
que gostar, não importa quanto custe.
Brianna aceitou a tarefa em questão na hora. Na medida em que foi se
envolvendo na escolha dos tecidos, ! papel de parede, e na compra de objetos
de arte, tapetes e enfeites vindos da Filadélfia, de Boston e de vários países da
Europa, ficou ainda mais entusiasmada. Aimée a ajudava, dava palpites e as
duas passavam horas arrumando, planejando e criando. Laurette Mayfield,
sempre que possível, era deixada de lado. Suas sugestões, quando emitidas,
eram sempre ignoradas.
Quanto ao relacionamento com seu marido, Brianna tinha de admitir
uma coisa. Ele estava sendo corretíssi-mo. Tratava-a com carinho e
consideração, era gentil e atencioso... ejamais tentara insinuar-se para ela.
Aporta de seu quarto continuava fechada, sem que Jesse jamais fizesse
alguma tentativa para abri-la ou arrombá-la. Ao contrário. Quem, de vez em
quando, sentia vontade de abri-la e lhe fazer uma visitinha à noite era a
própria Brianna, que, deitada em sua cama enquanto o sono não vinha, ficava
olhando para a luzinha fraca vinda das frestas da porta do quarto do marido,
tentando adivinhar o que ele ficava fazendo acordado até tão tarde.
No decorrer da dia, Jesse trabalhava na fazenda, passando horas e horas
em suas plantações, cuidando para que tudo estivesse sob controle.
Empregados novos foram contratados para as tarefas domésticas, de modo que
os copeiros e as criadas de Garrett e Christie Randall puderam voltar para
casa.
Duas semanas depois de sua chegada à fazenda, Brianna estava
terminando de tomar seu café da manhã sozinha, já que Aimée tinha pedido
licença e se retirado mais cedo, dizendo de forma um tanto misteriosa, que
tinha algumas coisas para fazer. Jesse desaparecera ainda mais cedo,
mandando um recado pelo mordomo Isaac de que não iria estar presente ao
desjejum. No instante em que deixava de lado sua xícara de chocolate quente,
Jesse apareceu na porta da sala com um sorriso nos lábios.

113
— Bom dia, Brianna.
Ela o olhou de forma um tanto desconfiada.
— Bom dia, Jesse.
— Você já tomou seu café?
— Já. Por quê?
— Será que você poderia me acompanhar? Tenho uma coisa para lhe
mostrar.
Parecia haver tanta ternura no rosto dele, que ela não hesitou em aceitar
seu convite. Levantou-se imediatamente.
— Claro, vamos.
Saíram juntos de casa e, quando finalmente percebeu que estavam se
encaminhando aos estábulos, Brianna ficou ainda mais curiosa, tentando
imaginar o que ele teria ém mente. Mas Jesse permaneceu calado o tempo
todo, a sombra de um sorriso ainda em seus lábios.
Ele a conduziu até uma das baias e Brianna se viu olhando para o cavalo
mais bonito que já vira na vida. Era todo cinza. E tinha o focinho, as orelhas e
as patas de uma tonalidade cinza mais escuro, enquanto que a cabeça e o rabo
eram brancos como a neve. Pelo formato do corpo, era provável que tivesse
ascendência árabe, embora seu tamanho gigantesco indicasse outra
procedência.
Jesse sorriu para ela.
— Esse é Relâmpago, Brianna.
— Jesse, ele é magnífico! — Estendeu a mão para acariciar-lhe o
pescoço, então recuou, perguntando: — Posso fazer isso? Ele é manso?
— Vá em frente — respondeu Jesse. — Ele ainda não estava
completamente domado quando chegamos, mas tenho passado horas a seu
lado e fiquei espantado com a velocidade com que ele aprende o que lhe é
ensinado.
Ela então voltou a estender a mão e acariciou-lhe o pescoço macio, e
começou a rir quando o animal cheirou a palma de sua mão, como se estivesse
à procura de algo para comer.
— Ah, Jesse, olhe! Aposto que se eu tivesse trazido um torrão de açúcar
da cozinha, ele teria adorado! Por que você fez tanto segredo em mostrá-lo para
mim?
Jesse cumprimentou dois empregados que haviam acabado de aparecer a
seu lado e sorriu para Brianna.
— Ora, se eu tivesse dito alguma coisa, iria estragar completamente a
surpresa do presente!
Ela ficou de queixo caído, tentando adivinhar se tinha ouvido direito.
Presente? Mas para quem?
Percebendo a confusão em que sua resposta a havia colocado, Jesse
apressou-se em explicar:
— Relâmpago é meu presente para você, Brianna. Se você o aceitar, é
claro.
— Se eu aceitar? — Num gesto impensado, ela atirou-se nos braços dele.
— Mas é claro que sim! Foi o melhor presente que já recebi na vida! Jamais
podia imaginar uma coisa dessas! Muito obrigada mesmo!
Após um breve momento de hesitação, Jesse retribuiu-lhe o abraço.
— Fico contente que tenha gostado, querida!

114
Foi aí que ele viu que os olhos dela brilhavam tanto, que era como se
soltassem faíscas, fazendo de seu rosto um quadro de graça e beleza
inigualáveis. Sentiu um nó na garganta, sem entender o exato motivo.
— O animal já está pronto, sr. Jesse — avisou um dos empregados.
Jesse agradeceu o homem e virou-se para Brianna, dizendo:
— Bem, vamos dar uma volta?
Ela olhou para as próprias roupas.
— Mas... mas eu não estou adequadamente vestida e...
— Pois vai estar num momento — soou a voz de Aimée vinda de detrás
dela.
Brianna, quando virou-se, viu que a cigana se aproximava de ambos com
um pacote grande nas mãos e sorria enquanto dizia:
— Isso tudo foi tão divertido, que valeu a pena ter tomado meu café da
manhã às pressas. Você pode se trocar no reservado ali adiante.
— Isso é uma conspiração! — exclamou ela. — E hoje nem é o dia do
meu aniversário!
— Falando nisso, Brianna — perguntou Jesse. — Quando é que você
completa dezoito anos?
— No dia dois de abril. Agora, com licença porque vou me trocar!
Momentos depois, ela voltava completamente vestida para um passeio a
cavalo. Jesse ajudou-a a montar no animal, então subiu na própria égua
Cigana e ambos saíram do estábulo.
Mal tinham andado um quilómetro, Brianna reparou que havia um
grande companheirismo entre os dois cavalos e mencionou o fato a Jesse.
— É verdade, eles se adoram — confirmou ele. — E há uma história por
trás dessa amizade.
— Pode me contar, que eu estou muito curiosa — pediu ela, sentindo-se
feliz como há muito tempo não se sentia.
O cavalo conseguia ser ainda melhor do que Le Duc, o garanhão de
Etienne Devereaux.
— Bem — começou Jesse. — Relâmpago é uma espécie de filho adotivo
de cigana.
— Filho adotivo?
— Sim. Há pouco mais de um ano, nós cruzamos Cigana com o lindo
garanhão de Christie, Trovão.
— E aí?
— O cruzamento foi bem-sucedido, mas houve muitas complicações
durante o parto e o potrinho acabou morrendo.
Brianna sentiu um aperto no coração.
— Coitadinho!
— Ao mesmo tempo em que Cigana entrou em trabalho de parto —
continuou Jesse —, Charles Trevellyan, o pai de Christie, chegou aqui com um
problema nas mãos um potro recém-nascido lindo, cuja mãe não havia resis-
tido ao parto e morrera.
— E o recém-nascido era Relâmpago?
— Exatamente. O pobrezinho tinha entrado numa profunda depressão,
recusava-se a comer o que quer que fosse e estava com todas as costelas
aparentes. Estávamos desesperados, sem saber o que fazer, quando
Cigana, que também não podia estar mais deprimida, acabou adotando-o.

115
Após um dia na mesma baia, ambos começaram a se recuperar com uma
velocidade espantosa. Depois disso, passaram a não se desgrudar mais. Diante
disso, o pai de Christie resolveu me dar o animal de presente.
— Que história linda! — exclamou Christie, encantada. — Charles
Trevellyan deve ser uma excelente pessoa!
— Para dizer a verdade, gostaria muito que você o conhecesse um dia
desses. Vou lhe escrever uma carta dizendo quem é a atual proprietária de
Relâmpago. Aposto que ele vai ficar muito feliz!
— É mesmo? E por quê?
— Porque, pelo que estou sabendo, Christie adorou você desde o
primeiro instante em que a viu, e já escreveu ao pai falando a seu respeito.
Eles continuaram o passeio. Jesse sentia uma alegria no coração como
há muito não experimentava. Se quisesse ser bem sincero consigo mesmo,
admitira que estava encantado com a mulher que cavalgava a seu lado.
Durante aqueles dias em sua fazenda, aprendera a conhecê-la melhor e
gostara das descobertas feitas. Seria muito triste vê-la partir, quando chegasse
a hora da anulação.
Brianna, por sua vez, também estava se divertindo a valer. Aquela era a
primeira vez, desde que conhecera Jesse, que se sentia perfeitamente à
vontade a seu lado. Era muito boa a sensação que tinha ao senti-lo tratando-a
como um ser pensante e lhe dando a consideração e o respeito merecidos.
Passaram horas e horas passeando, a conversa girando em torno de
vários assuntos. Falaram sobre suas infâncias, famílias, viagens e amigos.
Falaram sobre seus sonhos, suas aspirações de vida, seus desejos.
Quando finalmente voltaram para casa, eles estavam exaustos, mas
muito, muito felizes. Jesse deu ordens ao mordomo Isaac para que dois
banhos fossem preparados e, ao acompanhar Brianna até a porta de seu
quarto, sentiu algo estranho no peito, uma sensação de perda, como se ainda
não estivesse pronto para deixá-la.
Não deixava de ser uma grande ironia do destino. Ali estava a mulher que
lhe dera o maior prazer na cama que sentira em toda a sua vida, a mulher que,
legalmente, era sua esposa, mas na qual não podia tocar. Ah, e como queria
tocá-la... Todas as fibras de seu corpo gritavam que a desejava, mas sabia que
precisava fazer de tudo para se controlar, principalmente naquele dia. Não
podia correr o risco de quebrar a magia daquelas horas que haviam passado
juntos, não podia estragar aquele novo relacionamento que parecia estar
nascendo entre eles. Fosse lá o quanto lhe custasse, só havia uma coisa a
fazer: sair dali, voltar a seu quarto, ficar sozinho com seus próprios sentimen-
tos. Deixá-la em paz.
— Tenha um bom descanso, petite — ele disse com voz suave, olhando
bem dentro daqueles olhos verdes que o encaravam.
— Obrigada, Jesse. Desejo o mesmo para você.
Ah, ele estava tão perto dela... Olhava para aqueles lindos olhos azuis e
sentia vontade de se afogar neles. Como Jesse era atraente... Que rosto
perfeito! Pela centésima vez, chegou à conclusão de que Deus não fora justo
em dar tanta beleza a um só homem. A vontade de jogar-se em seus braços era
tanta, que ela tentou disfarçar, dizendo:
— Muito obrigada por tudo, Jesse! Eu agradeço por Relâmpago, que é o
cavalo mais bonito que já vi em minha vida, e agradeço também por esse dia

116
tão agradável que você me proporcionou! Não me lembro de ter me divertido
tanto na vida!
— Também passei um dia esplêndido, Brianna.
Ficaram em silêncio durante algum tempo, ambos lutando contra
vontades e desejos vindos do fundo de suas almas. Finalmente, Jesse encostou
a mão em seus ombros, então abaixou a cabeça.
Muitos anos depois, ele ainda iria se lembrar do momento mágico e
arrebatador daquele beijo. Havia a recordação daquele dia, havia a maciez
daqueles lábios, havia a doce dor que ele continha, uma dor que falava de
desejos há muito tempo contidos.
Brianna, por sua vez, também foi envolvida pela beleza daquela hora, o
prazer de sentir o calor do beijo de Jesse levando-a ao paraíso.
Mas então, quando as coisas pareciam ter apenas começado, ele se
afastou, olhando bem dentro dos olhos dela e disse suavemente:
— Descanse bem, minha querida.
E, virando as costas, entrou em seus aposentos. Brianna observou-o
fechar a porta atrás de si e murmurou, baixinho:
— Descanse bem... meu marido.
Levou a mão à boca, ao tomar consciência do que tinha acabado de falar.
Então, a imagem de Sally Hemings apareceu em sua mente. A mulher que
amava tanto, que desistira da própria liberdade para não ter de se afastar do
dono do seu coração.
Não! Não podia amar daquele jeito! Não podia deixar que aquilo
acontecesse. Não! Mil vezes, não!
Aimée aproximou-se dela sorrindo.
— Olá, Brianna. Gostou do passeio? , Ela virou-se para a cigana.
— Hã... Oi, Aimée. Você me ajuda a tomar meu banho? Aimée Gitane
observou o rosto da amiga com todo o
cuidado e respondeu:
— Ah, mais oui, chérie. Só que acho que o banho em questão deveria ser
gelado.
CAPÍTULO VINTE E NOVE

O tempo foi se passando, novembro trazendo chuvas, dezembro


anunciando que o frio e o inverno não tardariam a chegar.
A vida na fazenda de Jesse Randall ia correndo sem problemas. Georges
Simpson costumava escrever com frequência, contando como iam as coisas em
Le Beau Château.
"O falatório por aqui já está diminuindo", o advogado contara, "mas
mesmo assim, sugiro que vocês esperem ainda mais uns oito ou nove meses
até pedir a anulação do casamento".
Brianna passava os dias decorando a casa e fazendo de tudo para se
livrar da presença sempre incômoda e desagradável de Laurette Mayfield.
Geralmente, à tarde, dava longos passeios a cavalo, ela cavalgando Relâmpago,
Aimée o garanhão Le Duc.
Às vezes, as moças eram acompanhadas pelo gémeos Vulcan e Festus,
que haviam se tornado amigos inseparáveis da cigana. Risos e piadas estavam
sempre presentes durante os passeios e, quando voltavam aos estábulos a fim
de deixar os cavalos, os quatro tinham o queixo dolorido de tanto rir. O alvo

117
preferido e mais constante das brincadeiras nunca mudava: Laurette Mayfield.
A viúva com aquele jeito antipático e maus modos, era a vítima perfeita das
gozações dos amigos.
O gambá Bon-Bon era constantemente colocado em seu armário, fazendo
com que ela tivesse crises histéricas que duravam horas. Nessas ocasiões,
Brianna e Aimée tinham de se esconder no jardim a fim de poderem rir mais à
vontade.
Se Brianna quisesse ser bem sincera consigo mesma, veria que não havia
motivos para queixas. Tinha Aimée, Vulcan e Festus, amigos maravilhosos
para todas as horas. E tinha também Christie e Garrett Randall, sempre
prontos a ajudá-la no que fosse possível.
E ainda havia Jesse.
Adorava sua companhia. Os dois saíam de vez em quando para um
passeio a pé ou a cavalo, riam e conversavam bastante. Ele continuava firme
em seu propósito de respeitá-la e conquistá-la aos poucos e a ligação de ambos
era puramente fraternal. Não que não houvesse desejo. Havia sim. Um desejo
forte, desesperado, violento. Mas que os dois faziam de tudo para abafar.
Numa noite, Brianna jazia na cama imensa, incapaz de dormir. A luz
vinda por baixo da porta de ligação entre seu quarto e o de Jesse, indicava que
ele ainda estava acordado. Incapaz de se conter, levantou-se decidida a lhe
fazer uma visita. Mal tocou na maçaneta, o rosto de Sally Hemings voltou para
assombrá-la, alertando-a para os riscos de se amar demais. O amor era uma
prisão, um sentimento negativo que anulava as pessoas, destruindo-lhes seu
bem mais precioso: a liberdade.
Brianna voltou para a cama imediatamente.
Uma semana depois, num dia inexplicavelmente quente para dezembro,
ela resolveu dar um passeio a cavalo sozinha, já que os "irmãos liberdade"
estavam muito ocupados com o trabalho na fazenda e Aimée tinha ido à cidade
fazer compras.
Montada em Relâmpago, ela atravessou os campos outrora verdejantes,
agora desprovidos de vegetação. Mas logo viria a primavera e o ciclo natural da
vida começaria outra vez, tão antigo quanto o mundo.
Cavalgava a esmo, os pensamentos voando longe. Então, de súbito,
percebeu que aquilo não era verdade.
Não estava andando a esmo. Estava procurando por Jesse, tentando
encontrá-lo pelo caminho. Fora por isso que tinha seguido aquele determinada
trilha, a que levava a uma de suas plantações! Mas como você é idiota,
Brianna Devereaux! É desse jeito que preza tanto sua preciosa liberdade?
Continuou o passeio, impressionada com a própria fraqueza, tentando
controlar as batidas do seu coração.
Então, quando menos esperava, ouviu o ruído de cascos contra a terra
batida. Olhando para trás, avistou um grupo de cavaleiros que se
aproximavam.
Eram seis ao todo e ela não levou nem dois segundos para reconhecer
Jesse e Garrett na frente, seguidos de perto por Christie e mais três pessoas
que não conhecia.
Conforme o grupo foi se aproximando, foram justamente aqueles três que
lhe chamaram a atenção. Usavam roupas estranhas e tinham uma espécie de
chapéu de penas na cabeça. Deviam ser índios! Como havia passado muitos

118
anos na Europa, nunca tivera a oportunidade de conhecê-los pessoalmente.
Christie foi a primeira a cumprimentá-la.
— Olá, Brianna querida! Que bom encontrá-la aqui! E Relâmpago, como
vai?
— Que surpresa agradável — acrescentou Garrett, sorrindo-lhe com
ternura. — Tudo bem com você?
Ela também sorriu para Garrett e a esposa.
— Eu estou ótima. Estou feliz por vê-los!
Jesse aproximou-se dela.
— Brianna, gostaria de lhe apresentar três grandes amigos, que são
como se fizessem parte da família. — Fez um gesto em direção dos três índios
que esperavam atrás dele. — Este é Urso-Risonho, esta é sua esposa Lula, este
é o filho do casal, Jasper, e o bebê é o caçula, Robert.
Foi só aí que Brianna reparou que a mulher trazia uma criança pequena
no colo, coberta por uma manta de várias cores.
— Muito prazer, sra. Randall — cumprimentou a índia, cuja pele bem
escura contrastava com os olhos cor-de-mel. Olhos que, estranhamente,
pareciam penetrar no fundo da alma das pessoas, arrancando-lhes os segredos
mais incríveis. — Já ouvi falar muito a seu respeito!
O inglês dela era perfeito, o sotaque arrastado dos sulistas dando-lhe
uma graça especial.
— Por favor, me chame apenas de Brianna — respondeu ela, ainda não
muito acostumada ser tratada pelo nome de casada.
O índio que lhe fora apresentado como Urso-Risonho aproximou-se dela
com seu cavalo e estendeu-lhe a mão.
— Que prazer conhecê-la, Brianna. Você é tão bonita quanto tínhamos
ouvido dizer.
O inglês dele também era perfeito. O jovem Jasper lhe deu um sorriso
tímido. Devia ter uns treze ou quatorze anos.
— Olá, senhora.
Brianna retribuiu o cumprimento dos três e estava abrindo a boca para
perguntar aonde eles estavam indo, quando Garrett encarregou-se de
responder:
— Nós estávamos indo para o acampamento cheroqui, onde seremos os
padrinhos de Jasper.
— Padrinhos?
—Sim. De batismo. É um costume indígena batizar o menino apenas
quando ele chega à adolescência. Aí, o jovem recebe um nome que o
acompanhará durante o resto de sua vida. Então, daqui a pouco, nosso Jaspei
será oficialmente chamado de Jasper Flecha-Escura! Por enquanto, ele ainda é
só Jasper!
— E você e seu marido estão convidados a nos acompanhar —
acrescentou Urso-Risonho.
— Claro, Brianna! — exclamou Christie. — Você não vai poder participar
da cerimónia porque, ao contrário de Jesse, Garrett e de mim, não é membro
honorário da tribo cheroqui, mas os convidados de fora são sempre bem-
vindos!
A cabeça de Brianna começou a rodar. O quê? Jesse, membro honorário
da tribo cheroqui? E Garrett e Christie também? Mas que história maluca era

119
aquela? Ela sabia que o marido era amigo dos índios, mas jamais imaginara
que...
Vendo em seu olhar hesitação e choque também, Jesse resolveu
responder por ela:
— Nós agradecemos muitíssimo, Urso-Risonho, mas Brianna está muito
ocupada ultimamente, por causa de um baile que vamos dar no final do ano.
Quanto a mim, também tenho alguns compromissos urgentes, que vão impos-
sibilitar meu comparecimento. De qualquer modo, Brianna e eu gostaríamos
de desejar nossos sinceros votos de felicidade ao querido amigo Jasper Flecha-
Escura!
— Nós entendemos — disse Lula, olhando para Brianna. — Uma mulher
no seu estado não deve se cansar muito. Quem sabe, numa outra ocasião um
pouco mais calma, você nos faz uma visita.
— Claro — respondeu Brianna, sentindo-se aliviada. Baile de fim de ano!
Que ótima desculpa Jesse havia inventado! Sorriu para a índia. — Com o
maior prazer. E parabéns ao jovem Jasper Flecha-Escura!
Seguiram-se as despedidas, Urso-Risonho e Lula repetindo que tinham
tido uma enorme alegria em conhecer a jovem esposa de Jesse Randall e o
grupo partiu, deixando ambos a sós.
— Eu não sabia que você era membro honorário da tribo dos índios
cheroqui — ela comentou, observando os amigos de Jesse se afastarem. — Que
pessoal simpático!
Jesse olhou para ela. Com o vento batendo em seus cabelos, ela
conseguia ficar ainda mais bonita. Como sentia vontade de pegá-la nos braços,
deitá-la ali mesmo no chão e fazer-lhe amor por várias horas... Sabia, no en-
tanto, que aquilo era impossível. Um só passo em falso poderia mandá-la de
volta para casa, onde daria um jeito de convencer Georges Simpson a anular o
casamento mais cedo. E aquilo não estava em seus planos. Era um risco que
ele não pretendia correr.
Foi só quando voltavam para casa lado a lado, que algo dito pela índia
Lula entrou finalmente na cabeça de Brianna. Uma mulher no seu estado não
deve se cansar muito. Estado? Mas que estado?
Será que...?
Confusa e assustada, começou a fazer algumas contas. Há quanto tempo
sua menstruação viera pela última vez? Se não estava enganada, quando
ainda morava em Le Beau Château.
Mon Dieu!
De repente, a alegria de estar cavalgando ao lado de Jesse desapareceu
completamente. A tarde, antes tão linda, perdeu toda a graça. O colorido do
céu tornou-se subitamente cinza.
Deus meu, não posso estar grávida. Não posso! Santa Mãe do Senhor,
não permita que isso aconteça. Por favor! Eu imploro!
Que advogado nesse mundo iria lhe conceder uma anulação de
casamento, se ela carregava no ventre um filho de Jesse Randall? Nenhum!
A voz dele soou, interrompendo-lhe os pensamentos.
— Sabe de uma coisa, Olhos Verdes? Você está muito parecida com
Deirdre ultimamente. A diferença é que ela nunca usava os cabelos soltos,
como os seus.
Jesse havia dito a coisa errada na hora errada, deixando Brianna ainda

120
mais angustiada. Ele ainda amava sua irmã Deirdre, a dama perfeita, a
mulher que todo homem sonhava em ter como esposa... Ela, por sua vez, não
passava de uma garotinha rebelde, que não fazia outraycoisa a não ser criar
confusão. Não! Não podia estar grávida! Mil vezes, não!
Notando algo de estranho em seu rosto, ele perguntou:
— Aconteceu alguma coisa, Brianna? Você não está se sentindo bem?
Ela fez força para esconder as lágrimas e respondeu, com voz fria e
desinteressada:
— Estou um pouco indisposta, só isso. Importa-se se apressarmos
nossos cavalos e voltarmos para casa?
Ele franziu a testa, tentando adivinhar o que dissera de errado.
— Não. Claro que não. Vamos lá! — E esporeou Cigana, que saiu em
desabalada carreira tendo em seu encalço um Relâmpago não menos veloz.

CAPÍTULO TRINTA

Naquela mesma noite, Brianna encontrava-se na banheira azul e branca


que Jessel importara da França com muita dificuldade, devido ai revolução
que continuava a sacudir o país. Aimée, ajoelhada ali ao lado, juntou mais um
balde de água quentel e perfumada àquela que já envolvia e relaxava os
músculos doloridos da amiga.
— Você não está mais pensando naquele monte de bobagens, está? —
perguntou a cigana, esfregando-lhe as costas.
— Aquilo não é um monte de bobagens, Aimée.
— Claro que é. Agir de maneira impulsiva agora só vai tornar as coisas
piores do que já estão, nest ce pasl
Brianna respirou fundo.
— Por favor, Aimée, eu gostaria de ficar um pouco sozinha agora. Será
que você poderia me dar licença?
A cigana se levantou.
— Oui, mon amie.
Brianna esperou que ela se afastasse, então afundou-se na banheira,
deixando que a água quente acalmasse seus nervos. Depois do jantar,
chamara Aimée até seu quarto e lhe falara do incômodo atrasado, das
estranhas palavras da índia Lula e de seu medo de estar grávida. A cigana
então lhe dissera que tal desconfiança já tinha lhe passado pela cabeça.
— Não posso ficar aqui de jeito nenhum, se estiver mesmo grávida —
dissera Brianna. — E sabe por quê? Porque Jesse vai ficar ao meu lado por
causa do bebê! Nós dois vamos estar presos um ao outro para sempre, num
casamento profundamente infeliz! Pelo amor de Deus, Aimée, você precisa me
ajudar a fugir para Le Beau Château, que é o meu lugar. Por favor!
Ao ouvir aquelas palavras, Aimée sentira um friozinho na barriga. Em
algum lugar, num futuro muito próximo, perigos horríveis esperavam Brianna
se ela saísse da fazenda. Daquilo tinha certeza. E, embora não soubesse
precisar mais detalhes, temia que a desgraça em questão pudesse acontecer
durante a fuga que estava sondo planejada.
Porém, não era aquilo que deixara a cigana mais preocupada. Aimée
podia jurar que Brianna estava se apaixonando, se é que já não houvesse se
apaixonado por Jesse líandall. Era aquilo que vivia falando com frei Edouard

121
cm Le Beau Château. O religioso também concordava que .Jesse e Brianna
eram perfeitos um para o outro.
— Etienne morreu desejando que os dois se casassem — explicara o
religioso. — Foi por isso que nomeou Jesse como tutor da filha. E eu lhe
prometi que faria o que estivesse a meu alcance para aproximá-los.
Ambos tinham tudo para ser felizes. Juntos, poderiam atingir a suprema
felicidade, aquela rara cumplicidade que poucos casais conseguem na vida.
Para isso, só faltava uma coisa: que eles deixassem cair a venda que tapava
seus olhos e os impedia de ver a verdade.
Brianna ainda estava recostada na banheira, os olhos fechados, quando
uma voz muito conhecida interrompeu-lhe os pensamentos.
— Brianna? Você está aí? Posso entrar? A porta está aberta, então eu
presumo...
Jesse, porém, não demorou a perceber que tinha presumido errado. Ela
não estava "decentemente" vestida, como imaginara. Encontrava-se completa-
mente nua na banheira, o rosto rosado por causa da água quente, os cabelos
presos num coque no alto da cabeça. Seus olhos verdes estavam brilhantes e
alertas.
— Parece que já entrou, Jesse Randall! O que quer por aqui?
Ele levantou as mãos, num gesto de impotência.
— Sinto muito, Brianna, mas a porta estava aberta. Por isso, pensei...
— Seja lá o que pensou, sr. Randall, pensou errado.! Mas agora, já que
está aqui, que tal abrir a boca e me dizer o que quer?
Jesse olhou para ela, sentindo um nó na garganta. Brianna era linda...
Parecia um quadro, representando um estudo de sedutora inocência.
Brianna tinha pensado em gritar, em expulsá-lo dali. Mas então, por que
não o fizera? A resposta lhe veio rápida. Não tivera coragem. Ali, parado perto
da porta, usando uma camisa aberta no peito, ele parecia um tributo à beleza
masculina. Não era possível! Ninguém nesse mundo tinha o direito de ser tão
bonito.
— Brianna — ele começou, com voz pausada, limpando a garganta. Deu
um passo à frente e começou tudo de novo. — Brianna, eu vim para me
desculpar.
Aquilo a pegou de surpresa.
— Para se desculpar?
— Sim. Fiz um comentário sobre Deirdre hoje à tarde e tenho a impres-
são de que você se ofendeu com isso. Estou certo?
Ela balançou a cabeça lentamente.
— É... está.
Jesse ajoelhou-se a seu lado.
— Eu juro que não tive a mínima intenção de ofendê-la, Brianna.
O fato de vê-lo assim tão próximo fez com que seu coração disparasse. A
fim de esconder as emoções que sentia, disse a primeira coisa que lhe veio à
cabeça.
— Está bem, você não quis ofender-me, mas ainda ama Deirdre. Você
ainda está ligado a um fantasma!
Ele franziu a testa, como se estivesse estudando a possibilidade. Então,
fez que não com a cabeça.
— Isso não é verdade, Brianna. Eu juro.

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Ela deu um sorriso irônico.
— Jura mesmo?
Tal ironia pareceu aborrecê-lo.
— Claro que sim. E agora, vou lhe fazer uma proposta. Por que não tenta
ser uma mulher de verdade? Uma mulher de verdade conseguiria afastar
qualquer espírito!
— Jesse, eu...
Ela nunca terminou sua frase. Numa fração de segundo, ele colava os
lábios aos seus, levando-a ao paraíso.
— Ah, Brianna, minha doce e adorável garota... Como eu quero você... só
você...
Ela também queria. Sentiu vagamente que dois braços fortes a tiravam
da banheira e a deitavam com extremo cuidado na cama e ouviu a voz rouca
de desejo que lhe perguntava:
— Brianna querida, embora isso me custe mais do que minha própria
vida, eu preciso perguntar. Você quer que eu continue? A escolha é sua, minha
doce mulher. Não quero que você me odeie no futuro por causa disso...
Se ela queria que ele continuasse? Mas era evidente que sim! Estendeu-
lhe os braços, puxando-o para junto de si.
— Oh, Jesse, há quanto tempo eu estou esperando por esse momento...
eu já não aguentava mais!
Ele pensou que fosse explodir de tanta alegria. Abraçou-a com força,
depois se afastou ligeiramente a fim de deliciar-se com aquele corpo nu que se
oferecia para sa-tisfazê-lo. Que seios lindos... Pareciam estar um pouco
maiores que da última vez que os vira. Mais cheios... mais maduros...
— Ah, Brianna, minha doce Brianna, você é mais bonita do que podem
dizer minhas pobres palavras....
Abaixou a cabeça, tocando seu corpo com os lábios e a língua, deixando-
a tonta de tanto prazer.
— E seus cabelos, então, minha pequena... Fico com pletamente louco
quando olho para eles.... Eu pensei que não houvesse ninguém nesse mundo
que mexesse tanto com minhas emoções quanto Deirdre, mas você mexe dez
vezes mais...
A simples menção do nome da irmã despertou um es tranho sentimento
dentro dela. Uma espécie de ciúme doentio, algo destrutivo que começou a
despertar umj porção de dúvidas em sua alma. E fez uma pergunta, da qual
iria se arrepender amargamente mais tarde.
— Você... você fazia essas coisas com Deirdre?
A sensação que Jesse teve era de que haviam jogado um balde de água
gelada em seu rosto. Levantou a cabeça olhando para ela em silêncio durante
incontáveis minutos, antes de responder, com um alto e sonoro:
— Não! — Ele parecia furioso. — Brianna, há alguém aqui nessa casa
muito ocupado em caçar fantasmas... esse alguém não sou eu! — Caminhou
com passos largos em direção à porta, mas, antes de sair, ainda virou-se para
ela e gritou: — Vou lhe dizer uma coisa. Jamais desejei uma mulher como
desejo você, mas parece que meus sentimentos não são recíprocos. Por isso,
cara madame, vou deixá-la sozinha... ao lado dos seus fantasmas! Boa noite!
O sol ainda não tinha nascido quando duas figuras a cavalo seguiam a
trilha que levava para o norte. Uma delas montava um enorme garanhão cinza,

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a outra, um de cor marrom. De vez em quando, ambas olhavam para trás,
como se tivessem medo de alguma coisa.
— Ninguém deve estar nos seguindo, mon amie — disse Aimée. —
Ninguém nos viu deixando o estábulo e Jesse só vai voltar de Charleston à
noite.
— Mas, e se Laurette não acreditar no bilhete que deixamos, dizendo
que iríamos devolver Bon-Bon à floresta? E se ela mandar Isaac e Vulcan atrás
de nós?
— Ora nem pense nisso! Ela vai ficar tão feliz em se livrar do bichinho,
que não vai imaginar nada! — Ela sorriu ao olhar para dois olhinhos
inquiridores que a observavam de dentro de uma cesta de palha. — Além
disso, Vulcan também foi para Charleston, já esqueceu?
— Ah, é? Eu não sabia.
— Pois não precisa se preocupar, chérie. Ninguém vai nos seguir. Vamos,
trate de relaxar um pouco, por favor.
Brianna bem que tentou... mas foi impossível. Respirou fundo, as
lembran-ças dos dias anteriores voltando-lhe à mente.
As coisas haviam piorado no domingo, quando levantara-se da cama a
fim de ir à igreja. Mal tocara os pés no chão e o quarto começara a girar à sua
volta. A tontura persistira, fazendo com que perdesse o café da manhã e a
missa. Depois passara, voltando novamente à noite... e nas manhãs seguintes.
Não havia mais dúvidas. Ela estava mesmo grávida.
Então, vieram as difíceis discussões com Aimée. Havia sido a única vez
durante toda a história da amizade de ambas em que houvera problemas entre
elas. A princípio, Aimée tinha simplesmente se recusado a ajudá-la a fugir, e
muito menos acompanhá-la nessa fuga.
— Já iria ser uma enorme loucura duas mulheres fugindo à noite pela
estrada deserta. — Agora, com uma delas grávida, o perigo aumenta dez vezes
mais!
Brianna, porém, não se dera por vencida. Pedira, implorara, chorara,
ameaçara... E então, Aimée acabara cedendo, muito a contragosto.
— Acho que nem Deus iria aguentar sua teimosia! — exclamara a cigana,
desesperada. — Nem sua insistência!
E agora as duas se encontravam a caminho de Le Beau Château.
A parte mais difícil do plano havia sido conseguir um mapa confiável que
mostrasse a rota entre a fazenda de Jesse e Le Beau Château. Elas sabiam que
Isaac tinha indicações seguras do percurso, mandadas por Jesse quando este
o chamara ao palácio Devereaux, juntamente com Festus. Mas como apanhar
o tal mapa sem despertar suspeitas? Não iria ser nada fácil!
Finalmente, tiveram uma ideia. Contaram ao mordomo Isaac que uma
grande amiga havia escrito uma carta, dizendo que estava pensando em lhes
fazer uma visita, mas não sabia como fazer para chegar à fazenda. Aquilo
funcionara perfeitamente! Isaac lhes entregara o mapa, sem suspeitar de nada.
Agora, ao seguir em direção às montanhas Oconee, território dos índios
cheroqui, conforme as instruções, Brianna sentia na alma uma porção de
emoções desencontradas. Medo, alívio, arrependimento. Iria encontrar a paz
em Le Beau Château? O que diria frei Edouard e Georges Simpson quando
soubessem de sua gravidez? E se Jesse fosse buscá-la? Haveria um jeito de
anular o casamento, agora que havia um bebé a caminho? Seria capaz de criar

124
um filho sem o apoio de um marido? A lista das dúvidas era interminável.
Mesmo assim, de um modo ou de outro, Brianna sentia-se grata por ter tantos
problemas na cabeça. Assim, podia afastar do pensamento um par de olhos
azuis que não paravam de assombrá-la.
As duas viajantes conseguiram cobrir uma boa parte do caminho naquele
dia, interrompendo o percurso apenas quando os enjoos de Brianna tornavam-
se mais intensos.
A tarde as encontrou nos arredores das montanhas Oconees, onde
encontraram exatamente o lugar que o mapa mostrava que iriam encontrar,
uma cabana deserta onde Isaac e Festus tinham passado a noite a caminho de
Le Beau Château.
— Vou acender a lareira — disse Aimée. — Estou exausta e faminta!
Aliás, você deve estar com o dobro da minha fome e do meu cansaço!
Brianna sentou-se na beirada de uma enxerga de palha. Estava cansada,
sim. Mas não podia nem pesar em comida. Estava enjoada até não poder mais.
De qualquer forma, as duas amigas estavam quase chegando à feliz,
conclusão de seus planos. Mais um pouco e chegariam ao paraíso seguro de Le
Beau Château. Quando já tinha escurecido totalmente, a fumaça saía pela
chaminé e ambas conversavam despreocupadamen-te, fazendo planos para o
futuro. Tudo parecia tranquilo e seguro. O que Brianna e Aimée não sabiam,
porém, era que, a uma certa distância dali, do alto de uma colina, quatro pares
de olhos observavam e esperavam.

CAPÍTULO TRINTA E UM

— Mas já é muito tarde! — exclamou Jesse. — Para onde elas teriam ido?
Meu palpite é que se perderam. Vulcan, eu sei que você está muito cansado
depois da viagem até Charleston, mas...
— Não diga mais uma só palavra, sr. Jesse. Já estou de novo em cima do
cavalo.
— É melhor usarmos outros animais. Jesse voltou a atenção para
Laurette Mayfield. — Você tem certeza de que elas não disseram para onde
iriam?
A viúva balançou a cabeça.
— A única coisa que eu posso dizer é que havia um bilhete debaixo da
minha porta essa manhã, onde elas diziam que iam devolver aquele gambá
ridículo à floresta. — Ela deu de ombros. — Olhe, Jesse, se eu fosse você, não
ficaria assim tão preocupado. Essas duas garotas nunca passaram de umas
irresponsáveis, sem nenhum juízo na cabeça. Estão sempre atrasadas para
isso ou aquilo. Você vai ver. Provavelmente se distraíram com alguma coisa,
perderam a hora, mas estarão entrando por aquela porta no momento em que
menos esperar. Por que não vamos agora até a biblioteca e tomamos uma taça
de vinho? Ou um conhaque, se preferir. — A viúva estendeu o braço e tocou de
leve no ombro de Jesse. — Fazia tempo que eu queria ficar um pouco a...
Ele esquivou-se daquele contato com certa violência.
— Trate de beber sozinha, Laurette. Eu vou procurar minha mulher! Não
vê que estou quase morto de tanta preocupação?
Ele e Vulcan estavam quase chegando à porta, quando Isaac, descendo a
escadaria correndo, pediu para que esperassem.

125
— O que foi, homem? — perguntou Jesse, impaciente. — Fale logo! As
duas devem estar correndo perigo a uma hora dessas!
— Mas é realmente sobre elas que eu quero falar, senhor! — O mordomo
estava pálido e sem jeito. — Acho que sei o que aconteceu!
Isaac Sommers tinha agora toda a atenção de Jesse.
— Do que está falando, homem?
— Betsy, a criada encarregada do quarto da sra. Randall, acabou de me
dizer que vários objetos de uso pessoal e roupas de sua esposa sumiram... Aí,
fomos verificar o quarto de Aimée Gitane... e constatamos a mesma coisa!
Jesse ficou branco ao ouvir aquilo, o alarme estampado em seu rosto.
— Tem certeza?
O mordomo fez que sim com a cabeça.
— E, o que é o pior, acho que eu as ajudei nesse plano maluco de fuga...
— Mas para onde elas poderiam estar fugindo? — perguntou Laurette,
intrigada.
— Para Le Beau Château, madame. A residência dos Devereaux. Infeliz-
mente, fui eu quem lhes mostrou o mapa.
— Mas isso é impossível! — berrou a viúva. — Duas meninas, viajando
sozinhas por aquelas montanhas perigosas... Como teve coragem de fazer isso,
Isaac?
— Acho que fui enganado, madame. Elas me disseram que iriam mandar
o mapa a uma amiga e...
— Vulcan! — A voz de Jesse lembrou o estalido de um chicote. — Vá
voando à casa de Garrett. Conte-lhe o que aconteceu e diga que já estou a
caminho de Le Beau Château. Ele conhece o caminho. Vocês dois pro-
vavelmente vão me alcançar dentro de poucas horas, já que pretendo ir mais
devagar a fim de procurar por alguma pista que possa ter sido deixada. Ah, se
o hóspede de meu irmão, o índio Urso-Sorridente ainda estiver lá, peça-lhe que
venha junto. Ele conhece essas montanhas como ninguém!
Quando os dois se foram, Laurette lançou a Isaac um olhar cheio de
tédio. Bocejando, foi caminhando até a escada com passos lentos, dizendo:
— Estou morrendo de sono, Isaac. Mande alguém levar o meu jantar no
quarto, está bem? Ah, e não se esqueça da taça de vinho.
Jesse conduzia seu cavalo com cuidado ao longo da estrada escura, sua
mente cheia de dúvidas. Por que ela fugira? Por quê? A resposta era-lhe de
vital importância. Porém, mais importante do que ela era o fato de conseguir
encontrá-la sã e salva.
Alguma coisa devia ter acontecido recentemente. Mas o quê? Tentou se
lembrar da última vez em que havia falado com ela. Fora na noite do banho.
Depois disso, Brianna o evitara completamente.
Por Deus, por que ela fizera aquilo? Por que aquela tentativa de fuga tão
fora de propósito? Que motivos poderia levar uma jovem a cometer tal in-
sanidade? Desejo de viver uma louca aventura, talvez? Provavelmente não. A
razão deveria ser outra. Mas qual?
Então, de repente, se lembrou de uma conversa que tivera na semana
anterior na fazenda de seu amigo Jonathan, quando aproveitara para visitar
Kathie Carver, a antiga empregada do Cisne Negro, em Charleston. A garota
estava enorme, agora, mas feliz da vida por ter um lugar decente para
trabalhar e para criar o bebê.

126
— Vou passar o resto da minha vida agradecendo o que fez por mim,
Jesse — ela lhe dissera. — Se não tivesse arranjado esse emprego, o que iria
ser de mim? Certamente seria obrigada a fugir para algum lugar e...
Então, Jesse lembrou-se da figura da moça na cama de seu quarto no
Cisne Negro, os seus seios mais fartos e mais cheios do que antes. A imagem
na sua cabeça mudou e agora era Brianna que via na banheira. Seus seios
estavam...
Mas era evidente! Não havia mais dúvidas! Só existia uma razão pela
qual ela teria feito aquilo!
Brianna carregava um filho no ventre.
O filho dele!
Imediatamente, Jesse foi tomado por uma porção de emoções. Em
primeiro lugar, veio a alegria. Depois o medo. Ela estava em algum lugar
daquela estrada escura, sua única companhia era uma moça igualmente frágil
e impotente.
Virou-se para um dos homens que cavalgava a seu lado.
— Urso-Risonho, em que lugar aqueles renegados foram vistos pela
última vez?
— Infelizmente a poucos quilómetros daqui.
— E você tem certeza de que Homem-Sedento-de-Sangue ainda é o líder
deles?
O índio cheroqui fez que sim com a cabeça. Quando Garrett, os irmãos
Liberdade e ele alcançaram Jesse uma hora atrás, Urso-Risonho lhe avisara
que um pequeno grupo de índios renegados vinha causando grande confusão
na área. Homem-Sedento-de-Sangue era um bandido que ganhava a vida, se é
que as coisas podiam ser colocadas daquela maneira, sequestrando mulheres
e crianças indefesas e vendendo-as como escravas. Não importava se eram
brancas, negras, ricas ou pobres. Só se importava em vendê-las e ter lucro.
Agora, vendo a preocupação nos olhos de seu irmão branco, o índio acres-
centou, como se quisesse confortá-lo:
— Lembre-se Jesse. O bando é pequeno. Apenas quatro homens, quando
foram vistos pela última vez.
Jesse fez que sim com a cabeça. Eles eram cinco, embora Festus não
fosse capaz de ajudá-los, em caso de problemas. A principal razão pela qual o
negro juntara-se ao grupo era o fato de que nenhum dos outros conseguira
fazê-lo mudar de ideia e ficar em casa.
Jesse virou-se novamente, desta vez para o irmão:
— Garrett, a esse passo, quanto tempo você acha que levaremos para
alcançar aquela cabana deserta no meio do caminho?
— Menos de uma hora, eu diria. Acho que chegaremos lá quando o dia
estiver amanhecendo. É provável que as duas tenham passado a noite no local
e estejam pensando em partir novamente assim que o sol nascer.
— Então vamos apertar o passo! — decidiu ele. — Precisamos chegar à
cabana antes que elas tenham a oportunidade de seguir viagem!
Enquanto seu cavalo disparava pela estrada escura, os outros seguiam-
no de perto, Jesse concentrou-se no caminho, apagando da mente qualquer
pensamento negativo que pudesse distraí-lo. Precisava encontrá-la. A salvo! E
iria conseguir. Aí então, ela iria ouvir algumas verdades e...
Não. De súbito, aqueles lindos olhos verdes surgiram em seu

127
pensamento, deixando a sua garganta ainda mais seca.
Seja gentil com ela, seu imbecil. Isso é, se ela deixar. Mas em primeiro
lugar, você precisa encontrá-la!
Com essa ideia na cabeça, Jesse Randall continuou seu caminho.

CAPÍTULO TRINTA E DOIS

Brianna sentou-se na cama, sufocando um grito na garganta. Estava


ensopada de suor. Havia acabado de ter um pesadelo horrível, que parecera
tão real... Olhou para a enxerga ali ao lado, onde Aimée ainda dormia. Que
coisa estranha... Estava completamente acordada agora, mas uma terrível sen-
sação de que ainda havia algo de errado naquela cabana permanecia em sua
cabeça.
— Aimée, acorde, por favor. Eu...
Suas palavras foram cortadas por uma mão que tapava-lhe a boca. Ao
mesmo tempo, sentiu-se imobilizada por dois braços fortes que a apertavam
como se fossem uma barra de ferro. Tomada pelo terror, observou uma sombra
gigantesca aproximar-se de Aimée e dominá-la da mesma forma. Sua amiga
soltou um grito, que foi logo silenciado.
O homem que a segurava era forte e musculoso, mas Brianna fez de tudo
para se livrar dele. Esperneou, mordeu, se debateu. Tudo inútil. Com muita
facilidade, ele a tomou nos braços e levou-a para fora do quarto. Por trás dela,
ruídos semelhantes diziam que Aimée dava trabalho ao seu raptor.
De súbito a porta se abriu e ela foi recebida pelo vento frio da noite. A
mão que segurava sua boca foi retirada, mas os braços que a imobilizavam
continuaram no mesmo lugar.
A lua cheia iluminava o campo e Brianna pôde ver perfeitamente vários
cavalos mais adiante, onde dois homens estranhamente vestidos esperavam
com muita ansiedade. índios!
Ela começou a gritar,. recebendo um tapa no rosto por isso.
— Bâtard! — ouviu Aimée exclamar com fúria.
O raptor jogou a cigana no chão, dando-lhe um violento chute nas
costelas. Aimée soltou um grito de dor.
— Diga à sua amiga que eu, Homem-Sedento-de-Sangue, parle françaisl
— berrou o criminoso. — Já lutei ao lado dos franceses contra os ingleses!
Foi aí que Brianna conseguiu ver seu rosto. Estava coberto por cicatrizes
assustadoras. Os cabelos muito escuros, presos num rabo-de-cavalo, exibiam
uma porção de penas multicoloridas. Era um rosto vindo do próprio inferno e
Brianna teve de respirar fundo algumas vezes, antes de dizer:
— Aimée... — A visão de sua amiga no chão, gemendo de dor, fez com
que as lágrimas escorressem por seu rosto. — Ele disse... ele disse...
Então, naquele momento, o som de um mosquete cuspindo fogo encheu o
ar, o breve zumbido de sua bola cessando ao bater na parede de ali detrás.
Brianna, misericordiosamente, se viu solta dos braços de ferro de Homem-
Sedento-de-Sangue, que apressou-se em se abaixar, perto dos cavalos dos
índios. Apavorados, seus homens faziam o mesmo.
Uma voz forte e masculina vinda de algum lugar soou, falando uma
língua que Brianna não entendeu. Era como se o homem estivesse dando
ordens, ou coisa parecida. Aí ela ouviu Homem-Sedento-de-Sangue dar uma

128
risada horrível e responder algo na mesma língua.
O mosquete cuspiu fogo novamente, a bola acertando uma árvore a
distância. Então a voz forte e masculina do homem invisível soou mais uma
vez, berrando algo que pareceu assustar Homem-Sedento-de-Sangue, que co-
meçou a discutir com os próprios companheiros. Pouco depois, os quatro
montavam em seus cavalos e desapareciam de vista.
Quando o ruído dos cascos contra o solo não pôde mais ser ouvido e só
havia os gemidos de Aimée e os soluços sentidos de Brianna, várias figuras
surgiram de trás de uma árvore, de outro lado da clareira. Barulho de passos
foram ouvidos e então dois braços fortes levantavam Brianna do chão com
muita suavidade.
— Você está bem, Olhos Verdes? — A voz dele estava carregada de
preocupação. — Alguém a machucou?
Agora que tudo estava acabado, ela desabou num choro violento.
— Minha querida, se eles machucaram você eu, eu...
— N... não, não eu... e sim, Aimée! — Ele levantou a cabeça e viu que a
cigana era socorrida por Vulcan, que a tomara em seus braços enormes. — Ah,
Jesse, foi uma coisa horrível... Aquele monstro chutou Aimée! — Mais soluços,
que começaram a sacudir seu corpo. — Ela deve estar muito mal.
— Vulcan, como está Aimée? — perguntou Jesse no momento em que
Garrett, Festus e Urso-Risonho se aproximaram. O índio segurava um
mosquete nas mãos e olhava para todos os lados com olhos muito alertas.
Afinal, os renegados podiam voltar a qualquer momento.
— Acho que ela quebrou algumas costelas, sr. Jesse!
— Podem ficar tranquilos, mes amies — balbuciou ela com voz trémula,
tentando levantar a cabeça. — Ainda não foi dessa vez que eu morri!
— Abaixe a cabeça! — ordenou Vulcan. — Você não tem juízo, Aimée
Gitane?
Jesse olhou para a esposa que agora sorria apesar das lágrimas que
ainda havia em seus olhos.
— Ela está viva, graças a Deus! — Brianna respirou fundo. — Eu achei
que pudesse estar morta...
— Não, vocês não estão mortas — disse Jesse, acariciando-lhe o rosto
molhado. — Mas poderiam estar. — Aí então ele viu a marca do tapa numa das
faces. — Você também foi atacada! Miseráveis!
Brianna viu os olhos azuis de Jesse escurecerem de tanta indignação.
— Jesse, quem eram eles? Quero dizer, sei que eram índios, mas...
— São um bando de renegados de várias tribos — explicou Urso-
Risonho. — Eles raptam mulheres e crianças e as vendem como escravas!
— Escravas!
Havia tanto horror na voz de Brianna que ela voltou a tremer com tanta
violência, que Jesse a abraçou com muito mais força.
— Calma, calma, está tudo bem agora. Você está a salvo...
— Você acha que está em condição de viajar durante algumas semanas?
— perguntou Garrett. — Sua amiga está precisando de alguns cuidados e o
acampamento de Urso-Risonho não fica muito longe daqui. Sua mãe é uma
excelente curandeira que com certeza vai ter um enorme prazer em atendê-la.
Brianna olhou para a cigana, ainda nos braços fortes de Vulcan
Liberdade.

129
— Se Aimée puder ir, eu também vou poder. Festus deu um sorriso, seus
dentes muito brancos fazendo contraste com a negritude de seu rosto.
— E assim que se fala!
— Bem, então vamos indo. — Garrett desapareceu por detrás de uma
árvore, de onde reapareceu puxando as rédeas de Relâmpago e Le Duc. Os
dois cavalos estavam prontos para ser montados.
Urso-Risonho apareceu com dois casacos para as garotas, já que havia
esfriado bastante eo grupo seguiu novamente seu caminho.
Jesse insistiu para que Brianna fosse com ele montada em Relâmpago,
até ter certeza absoluta de que ela estivesse bem.
Durante o percurso, ele lhe explicou a estratégia que envolvera o resgate.
Usando seus contatos, Urso-Risonho soubera que os renegados não usavam
armas.
Como suas vítimas eram sempre mulheres e crianças indefesas, essas
não eram necessárias. O mosquete havia sido usado pára assustá-los e
amedrontá-los. Então, fora só o índio garantir ao bando, em sua própria língua
que eles estavam cercados e, após ameaças e negociações, um acordo havia
sido alcançado: os renegados poderiam sair dali impunes, se as mulheres
fossem deixadas em paz.
— Mas, e agora? — perguntou Brianna, preocupada. — Eles vão
continuar a agir e atacar mulheres e crianças indefesas?
— Não. Não é somente por causa de Aimée que estamos indo para o
acampamento cheroqui. Urso-Risonho vai pedir para Flecha-Longa, seu pai e
cacique da tribo, que tome providências enérgicas contra Homem-Sedento-de-
Sangue e seu bando de marginais.
— Mas vocês disseram que eles iriam sair impunes e...
— Não, Brianna. Nós os deixamos ir naquele momento porque você e
Aimée corriam sério perigo de vida. Nenhuma promessa foi feita para o futuro.
Homem-Seden-to-de-Sangue vai pagar, sim. E muito caro!
Enquanto seguiam seu caminho, Brianna lembrou-se novamente da
visão de Aimée. Aquela era a segunda vez que Jesse Randall a salvava. A
primeira havia sido naquela abadia perdida na floresta, a caminho da casa de
Thomas Jefferson, quando Honoré Dumaine tentara estuprá-la.
Sim. Jesse Randall podia ser seu marido de mentira, não havia dúvidas
quanto aquilo. Mas, se era seu marido de mentira... uma coisa tinha de
admitir: ele era seu salvador de verdade.

CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

Começava a nevar no momento em que o grupo entrou no acampamento


cheroqui. Eram flocos grandes que caíam suavemente já que não havia vento,
mas Brianna aconchegava-se cada vez mais ao corpo de Jesse, feliz por estar
na segurança de seus braços. Quando levantava a cabeça de vez em quando,
via várias cabanas de madeira e, aqui e ali, algumas pessoas com cocar de
penas na cabeça sentadas no chão. Mais adiante, avistou outra cabana, aquela
bem maior do que, as outras.
— E onde Flexa-Longa mora — explicou Jesse. — É para lá que Urso-
Risonho está nos levando.
A pequena procissão avançou em direção à cabana do cacique, Urso-

130
risonho à frente, seguido por Festus, Vulcan e Aimée, Jesse e Brianna e, por
fim, Garrett conduzindo Le Duc e o cavalo que Jesse usara a princípio.
Ao se aproximarem da entrada, o jovem Jasper Fle-cha-Escura apareceu
e, após uma ligeira conversa com o pai, voltou a desaparecer no interior da
cabana.
Urso-Risonho desceu de seu cavalo e fez um sinal para que os outros
fizessem o mesmo. Jesse e Brianna tinham acabado de desmontar, quando
viram duas pessoas se aproximando. A primeira era a mulher de Urso-Risonho
e mãe de Jasper Flecha-Escura, a índia Lula. A outra, uma senhora de idade
de corpo enorme e postura imponente. Então, uma terceira pessoa surgiu
atrás deles:
Um homem alto, de cabelos parcialmente raspados, trazendo um enorme
cocar na cabeça. Vestia uma túnica de linho bordada e calçava sapatos feitos
de pano. Seu rosto mostrava uma força impressionante.
Brianna o ouviu trocando algumas palavras com Urso-Risonho em língua
indígena, então este virou-se para eles.
— Meu pai, o cacique Flecha-Longa lhes dá as boas-vindas e os convida a
ficarem na cabana, até que o chalé de hóspedes esteja pronto. — Fez um gesto
em direção à senhora de idade à sua esquerda. — Esta é minha mãe, Mulher-
do-Fogo-Branco. Ela gostaria de ver a garota machucada.
Vulcan, que ainda segurava Aimée nos braços, aproximou-se da
curandeira. Ela entrou na cabana e fez um sinal para que o negro a seguisse.
Então, Lula deu um passo à frente, dizendo:
— Vamos entrar, amigos. Está fazendo muito frio aqui fora.
Quando todos já tinham entrado, Jesse fez com que Brianna se sentasse
num banco de madeira encostado na parede. Olhando em volta, ela viu vários
objetos de decoração em estilo europeu, que poderiam ser encontrados em
quaisquer casas pertencentes a boas famílias.
— Os cheroqui têm uma cultura muito eclética em vários aspectos —
explicou Jesse, notando seu espanto. — Eles costumam adaptar os
instrumentos e acessórios dos homens brancos às suas próprias necessidades.
— Está bem quentinho aqui dentro — comentou ela, olhando para um
fogão de ferro mais adiante.
Jesse sorriu.
— Quer saber de uma coisa? Garrett e eu fomos até a Filadélfia a fim de
adquirir esse e outros tantos fogões para o pessoal do acampamento. E nós
tivemos o enorme prazer de conhecer seu inventor, antes que ele morresse.
— E quem foi esse homem? — perguntou Brianna, curiosa.
— Benjamin Franklin. Preciso lhe falar sobre ele qualquer hora dessas.
— Jesse fez uma pausa e olhou bem dentro dos olhos de sua esposa. — Como
está se sentindo, minha pequena?
Ela deu um sorriso suave.
— Muito melhor, obrigada, embora um pouco cansada. — Olhou para o
que parecia ser uma cozinha, onde Lula mexia numa panela da qual saía um
aroma delicioso. — E faminta também, se pensar bem.
—Aimée também deve estar morrendo de fome — comentou Vulcan,
aproximando-se deles. — Aliás, como sempre!
Pouco depois, a curandeira Mulher-do-Fogo-Branco aparecia na sala,
anunciando que Aimée não tinha quebrado nenhuma costela e que ficaria boa

131
em pouco tempo.
— A pequena só precisa de um pouco de descanso.
— Viva! — exclamou Vulcan, feliz da vida.
— A garota é forte de verdade — acrescentou Festus, sorrindo.
Naquele momento, Lula chegou da cozinha, trazendo nas mãos um pote
de ferro bem quente.
— Fiz uma sopa de cogumelos, amigos. Espero que vocês gostem.
Todos se reuniram em volta de uma grande mesa de madeira, com
exceção de Aimée, que tomou sua sopa recostada num sofá. De vez em quando
Vulcan se levantava, a fim de verificar se ela estava precisando de alguma
coisa.
Após o jantar, uma índia ainda bem jovem apareceu na cabana,
informando que o chalé dos hóspedes estava pronto.
Logo, Brianna viu-se novamente em meio ao frio e a neve, enquanto
seguia, juntamente com Jesse, Garrett e os gémeos Vulcan e Festus, a
indiazinha que os conduzia a seus novos aposentos, com uma tocha nas mãos.
Por insistência da curandeira Mulher-do-Fogo-Branco, Aimée havia
permanecido na cabana do cacique, para que pudesse receber cuidados mais
adequados.
O chalé dos hóspedes, na verdade, eram duas cabanas pequenas lado a
lado, ambas construídas com grossas toras de madeira. Quando percebeu que
Garrett e os irmãos Liberdade eram conduzidos à cabana da esquerda, e ela e
Jesse, à da direita, Brianna sentiu um aperto no coração. Chegara o tão
temido momento de ficar a sós com ele, quando explicações a respeito de sua
estranha fuga seriam exigidas. Mordeu os lábios, sentindo-se fraca e insegura.
A indiazinha abriu a porta do chalé e Brianna entrou numa sala de bom
tamanho, onde havia um fogão de ferro parecido com o visto na cabana do
cacique Flecha-Longa. Ali, ao lado, uma tina cheia de água quente e pilhas de
cobertores garantiriam o conforto e o bem-estar dos hóspedes. Certificando-se
de que tudo estava em ordem, a índia desejou-lhes boa-noite e se retirou, com
um sorriso nos lábios.
Jesse esperou que a porta se fechasse atrás dela, então voltou a atenção
para Brianna. Ela estava pálida e parecia muito tensa. Era fácil adivinhar o
motivo. Só havia uma coisa que podia fazer para tornar aquele momento um
pouco menos difícil.
Estendeu o braço e tocou seu ombro de leve. Estava rígido.
— Por que você não toma um banho, Brianna? Por que não relaxa um
pouco, enquanto eu vou me refrescar no riacho aqui perto?
— O riacho? Nesse frio? Jesse, você vai ficar doente!
Ele riu.
— Eu? Doente? Claro que não. Já mergulhei nesse rio em dias muito
mais gelados. E acredite em mim. A sensação é ótima! — Jesse lhe deu um
beijo na testa. — Até mais tarde, Olhos Verdes.
Brianna observou-o se afastar.
Estava a salvo por enquanto. Mas o que diria, quando ele voltasse? Jesse
iria exigir uma explicação e ela não sabia o que fazer.
Respirando fundo, tirou as roupas, prendeu os cabelos num coque e
entrou na tina. A água quente envolveu-lhe o corpo, relaxando os músculos
cansados. Fechou os olhos, tentando não pensar na tragédia que quase

132
ocorrera. Inútil. O rosto diabólico de Homem-Sedento-de-Sangue não lhe saía
da cabeça. O que Urso-Risonho dissera? Que ele sequestrava e vendia crianças
e mulheres como escravas. Apesar do calor da água, um arrepio intenso fez
com que seu corpo tremesse. Se Jesse e seus amigos não tivessem chegado a
tempo... Deus misericordioso, eu fiz uma loucura. Não só quase destruí minha
vida, como também a vida de Aimée. E a do bebé que carrego no ventre.
Jesse tinha todos os motivos do mundo para ficar furioso. Ela mesma
estava furiosa com sua própria falta de juízo. Se Homem-Sedento-de-Sangue a
vendesse como escrava, era provável que ninguém mais a encontrasse. Oh,
que horror!
Ela estava tão entretida em seus pensamentos, que levou um susto
quando a porta da cabana se abriu e Jesse entrou. Quanto tempo teria ficado
ali, naquela tina? Uma hora? Duas? Não sabia dizer. A água, porém, já estava
começando a esfriar.
Ele aproximou-se dela. Tinha um sorriso nos lábios.
— Olá, Brianna. Você estava certa. O riacho parecia ter gelo em vez de
água.
Ela ficou ainda mais embaraçada. Não só iria ter de confrontá-lo agora...
como também teria de fazê-lo completamente nua! Maldição! Por que não saíra
antes daquela tina?
Deu um sorriso sem graça.
— Hã... espero que você não fique doente.
Jesse ajoelhou-se ao lado da tina de madeira e perguntou, com voz tão
suave, que Brianna sentiu um nó na garganta.
— Por quê, Olhos Verdes?
Ela estava envergonhada demais para responder. Abaixou a cabeça em
silêncio, sentindo-se confusa e assustada. Jesse repetiu a pergunta.
— Por quê?
A hora da verdade tinha finalmente chegado.
— Eu... queria voltar para minha casa, Jesse. Precisava... me esconder
em Le Beau Château de qualquer jeito.
Ele estendeu o braço e acariciou-lhe a nuca descoberta, num gesto cheio
de sensualidade.
— Você queria se esconder em Le Beau Château... por causa do nosso
bebê?
O susto foi tão grande, que Brianna olhou para ele, sem conseguir emitir
qualquer resposta. Um lindo par de olhos azuis encarou-a de volta, olhos que
pareciam ler o que se passava dentro de sua alma. Naquele instante, então,
compreendeu que não podia mais lhe esconder a verdade. Fez que sim com a
cabeça, as lágrimas escorrendo por seu rosto.
Jesse deu um suspiro e aproximou-se dela ainda mais.
— Ah, minha pequena, mas por que fugir por causa disso? Uma criança
é uma bênção, não algo de que se possa envergonhar!
Os olhos verdes brilharam de indignação.
— Uma criança que nasce fora do casamento é motivo de vergonha, sim!
— Ei — protestou Jesse. — Mas nós somos casados!
— Não! — A negativa veio como um grito desesperado. — Não somos
casados de verdade! Você sabe tão bem quanto eu que nosso casamento foi
uma farsa!

133
— Ora, Brianna, mas não se esqueça de que frei Edouard oficializou a
cerimônia. Para todos os efeitos, somos marido e mulher de verdade e...
— Não importa o que todos pensam, Jesse. O importante na verdade é
que nós dois sabemos que tudo não passou de um plano para que eu pudesse
receber minha herança. Nosso casamento não foi consumado, será que não se
lembra?
Os olhos azuis de Jesse brilharam sob a luz das velas que iluminavam a
cabana.
— Bem, minha querida, esse é um tipo de problema que pode ser
facilmente resolvido...
Então, com a agilidade de um tigre, ele a tirou da tina de madeira e
deitou-a na cama, sobre as cobertas.
Ela ficou tensa a princípio, então os lábios de Jesse colaram-se aos dela e
aí não havia mais tensão nem medo, só um grande prazer que tomava conta de
todo seu corpo.
Estendeu os braços e, enlaçando-lhe o pescoço, entregou-se às sensações
mágicas que só ele sabia despertar.
— Olhos Verdes — ele murmurou, a boca passeando por suas faces,
testa, pálpebras e têmporas. — Só Deus sabe o quanto eu te quero... minha
Brianna adorada...
As mãos de Jesse pareciam estar em todo o seu corpo, tocando,
provocando, acariciando, proporcionando-lhe um prazer indescritível. Nada
parecia escapar de seus dedos ávidos. Então ele se livrava de suas próprias
roupas, murmurando, com voz rouca.
— Minha doce e querida Brianna... mãe do meu filho... você é a mulher
que assombra meus dias e minhas noites, mas agora você está aqui e eu vou
levá-la ao paraíso... Você também me quer, mulher amada?
Ela olhou para Jesse com os olhos nebulosos de paixão.
— Eu quero, Jesse... Vamos juntos ao paraíso... Agora!
— Agora! — ele repetiu, cobrindo o corpo dela com o seu e penetrando-a
rapidamente. Não podia esperar um só segundo a mais.
Brianna deu um grito de prazer ao senti-lo dentro de seu corpo, mas de
repente aquilo já não era suficiente e ela queria mais e mais... Jesse começou
a se mover dentro dela e Brianna seguiu-lhe o ritmo, ajustando-se aos mo-
vimentos dele, até que seus corpos parecessem um só, seguindo um mesmo
caminho encantado. Sentindo que o clímax se aproximava, ela agarrou-se a
Jesse com mais força, fazendo com que ele a penetrasse ainda mais fundo, até
que o universo explodisse para ambos em fragmentos de puro êxtase.
Só algum tempo depois que eles puderam pensar ou falar alguma coisa
que tivesse sentido. Quando sua respiração finalmente voltou ao normal, Jesse
afastou-lhe os cabelos cor de cobre da testa e olhou bem dentro de seus olhos.
— Minha querida Brianna, você me pertence agora e eu quero ficar a seu
lado durante o resto de nossas vidas... Esse também é o seu desejo, Olhos
Verdes?
Brianna olhou para aquele lindo par de olhos azuis que a encaravam... e
foi aí então que se deu conta de algo que sacudiu seu coração, sua mente e
sua alma. Amava Jesse Randall. E era um amor profundo, apaixonado, sem
reservas. Agora era sua mulher de verdade e ele lhe pedira para ficar a seu
lado para sempre. Mas... e ele? Será que o sentimento era recíproco?

134
Vagamente, lembrava-se de Jesse ter falado qualquer coisa a respeito do bebê
que ela trazia no ventre. Seria aquela a razão do seu pedido?
Era provável. Mas não podia mais deixá-lo. Já não pensava mais naquela
possibilidade. Os laços eram fortes demais. Então, respondeu da melhor
maneira que pôde, rezando para que ele não lesse a verdade em seus olhos.
— Sim, meu marido. Eu ficarei a seu lado para sempre.
Um novo dia estava prestes a amanhecer e Jesse, acordado, observava a
mulher que dormia em seus braços. Sentindo-se feliz, lembrou-se dos últimos
acontecimentos, das horas alucinantes que haviam passado juntos. Tinham se
amado novamente e a experiência fora ainda mais gratificante e enriquecedora.
Ela se mexeu e ele lhe deu um beijo nos cabelos perfumados. Brianna se
entregara de corpo e alma, de uma forma ampla e total, sem nenhuma reserva.
Por quê? Pelo bebê que iria nascer, talvez?
Gentilmente, com muito cuidado, Jesse encostou a mão em seu ventre.
Um bebê! Dali a alguns meses, na metade do ano seguinte, ele seria pai. E ali,
a seu lado, estava a mulher encantadora que iria lhe dar o presente mais
precioso de toda a sua vida. Ela era tão bonita, tão cheia de vida... Claro, era
teimosa também, impulsiva, cabe-ça-dura... mas ele a amava de todo coração.
Amava. Tal constatação lhe veio de repente e ele compreendeu que sua
mente apenas aceitava algo do qual já sabia havia muito, muito tempo. Amava
Brianna De-vereaux com tanta intensidade que chegava a assustar!
Olhou para a bela adormecida a seu lado. Ela era perfeita. Como
nenhuma outra. Havia amado sua irmã, Deirdre, mas o que sentira pela
primogênita dos Devereaux não se comparava ao que sentia agora pela
caçulinha da família. Sentia que podia morrer por ela e pelo filho que
carregava em seu ventre.
Tanto amor, porém, teria de ficar preso dentro de seu coração. Era
preciso sufocá-lo, custasse o que custasse. Como poderia lhe falar a respeito
de seus verdadeiros sentimentos, já que aquilo iria deixá-la mais assustada
ainda?
Querida Brianna, minha amada mulher, aceite o amor que eu lhe dedico,
mesmo que só venha a saber de sua existência num momento mais
apropriado. Muito obrigado por ter acolhido minha semente em seu corpo.
Você vai me dar um filho, o maior presente que um homem pode receber nessa
vida. E em troca, lhe darei o meu amor, do qual você saberá na hora certa.
Enquanto isso, minha adorada, vou lhe tratar com todo o carinho e respeito do
mundo e quem sabe, um dia, ah, como vou rezar por isso, pode ser que você
aprenda a me amar também...
Jesse sorriu ao terminar aquela prece silenciosa para sua mulher.
Daquele momento em diante jurou que iria mimá-la, agradá-la, satisfazer
todos os seus caprichos, enfim, fazer o que estivesse ao seu alcance para fazê-
la feliz. Então, se a sorte estivesse a seu lado, ela poderia aprender a amá-lo e
eles viveriam felizes para sempre. Como seus pais, como Etienne e Aileen
Devereaux, como Garrett e Christie.
Com aquele pensamento na cabeça, Jesse deitou-se e mergulhou num
sono gostoso e profundo.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Brianna penteava os cabelos em frente ao espelho da suíte master da


135
fazenda de Jes-se, agora também ocupada pelo dono da casa. O quarto ao
lado, conforme o planejado havia tempo, estava sendo transformado num
berçário, um lindo lugar à altura do herdeiro que iria nascer.
Dali a pouco, Aimée a estaria chamando para ajudar a embrulhar os
presentes de Natal que aconteceria dali há uma semana.
Natal... Nascimento de Cristo. Época de amor e de perdão. Levou a mão
ao ventre, sentindo que as lágrimas apareciam em seus olhos. Seu futuro bebÊ
ainda se formava dentro de seu ventre, mas ela já o amava com uma
intensidade assustadora. Fechou os olhos, as lágrimas agora escorrendo por
seu rosto, molhando-o todo. Se ao menos...
Tentou afastar tal pensamento da cabeça. Era inútil. Jesse jamais
chegaria a amá-la. Deirdre ainda estava viva em seu coração e ele não a
esqueceria enquanto vivesse. Tinha de se conformar com o fato. Ele a vinha
tratando com todo o respeito e consideração do mundo, mas o motivo era um
só: o bebé. Não podia se iludir. O coração de Jesse Randall já tinha uma dona:
Deirdre Devereaux, que fechara os olhos para sempre havia sete anos.
Como é que ela, Brianna, uma simples mortal, poderia competir com
uma morta? Era impossível!
Abriu os olhos novamente, tentando se convencer de que sua vida era
boa, que não tinha motivos para se queixar. Tinha muito mais dinheiro do que
jamais poderia gastar. Estava casada com um homem maravilhoso, do qual
teria um filho dentro de alguns meses. Amigos fantásticos, como Aimée e os
gémeos Liberdade, estavam sempre a seu lado, prontos para ajudá-la no que
quer que fosse. Só faltava uma coisa para que a felicidade fosse completa: o
amor de seu marido.
Que tortura horrível! Amar um homem com tanta intensidade e não
poder lhe revelar tal sentimento. Saber que o amor não era recíproco, e ainda
assim, rezar para que um dia as coisas mudassem.
Vinham fazendo amor com uma frequência impressionante. Às vezes, o
desejo era tanto que não havia tempo nem para chegarem na cama. Acabavam
se amando no chão, na banheira, às vezes no próprio estábulo, depois de uma
cavalgada. Porém, por mais arrebatadora que fosse a experiência, havia
sempre a angústia do depois. Ficava ali, aconchegada no seu abraço, sabendo
que se entregara de corpo e alma a um homem que a desejava fisicamente,
apenas. Um homem, porém, que ela amava de todo coração.
Ah, o amor... Que sentimento estranho e conflitante... Ela o amava sim.
E queria que Jesse a amasse também. Mas não podia se esquecer de Sally
Hemings, a mulher que desistira da liberdade pelo amor de um homem. A
mulher que escolhera viver os horrores da escravatura a deixar o eleito de seu
coração. Então, até que ponto amor e sofrimento andavam juntos?
Deus cheio de misericórdia, como a vida écomplicada... Como é
complicado o processo de transição da juventude para a maturidade... Como
era gostoso o tempo em que minha única preocupação era fugir das aulas de
bordado do colégio interno e ir colher cerejas no jardim de monsieur Fourney,
ao lado de Aimée...
Uma batida na porta interrompeu-lhe os pensamentos
— Sra. Randall?
Ela apanhou um lenço e enxugou rapidamente os olhos e o rosto cheio de
lágrimas.

136
— Entre, por favor.
Era Betsy, uma das criadas.
— A srta. Gitane está à sua espera na biblioteca, sra. Randall.
Dando um suspiro resignado, Brianna se levantou.
— Diga a ela que já estou indo.
Dias depois, numa manhã, Jesse Randall trabalhava em seu escritório,
quando alguém bateu na porta. Tentando adivinhar quem seria àquela hora,
levantou a cabeça è disse:
— Pode entrar.
Era Laurette Mayfield. A viúva aproximou-se de sua escrivaninha,
balançando provocativamente os quadris. Usava um lindo vestido de veludo
verde, cujo decote na frente deixava muito pouco à imaginação.
— Bom dia, Jesse.
Ela era a última pessoa que ele queria ver naquele momento. Verificava
um balanço que um de seus administradores lhe apresentara e, em sua
cabeça, só havia lugar para contas e cálculos.
— Bom dia, Laurette.
Ela molhou os lábios.
— Eu gostaria de falar com você. Poderia me dar alguns instantes de sua
atenção?
— Estou muito ocupado, agora. Por favor, seja breve!
A viúva encarou o lindo homem à sua frente. Certamente, o mais
atraente dentre todos os homens que conhecera. Maldita hora em que
resolvera se casar com aquela magricela sem graça! Quanto desperdício...
Como gostaria de poder separar aqueles dois!
— Infelizmente, Jesse, tenho uma reclamação a fazer.
— Reclamação?
— Sim. A respeito de sua mulher.
Jesse deu um suspiro cheio de desânimo. Como aquela viúva era
aborrecida e sem graça...
— O que foi dessa vez, Laurette?
— Bem, meu caro, como você está cansado de saber, fui contratada pelo
dr. Georges Simpson para dar a Brianna noções sobre administração
doméstica. A garota, porém, não podia estar mais relapsa! Tem acordado muito
tarde, está sempre muito sonolenta e parece nem se importar com o fato de
que teremos uma grande festa daqui há alguns dias!
Ele recostou-se em sua cadeira.
— Laurette, é evidente que Brianna está sempre sonolenta. Além disso,
fui eu mesmo quem sugeriu que ela se levantasse bem depois do nascer do sol.
Devido a seu estado, eu acho que Brianna tem todo o direito de...
— Estado? — A viúva levantou uma sobrancelha, um tanto desconfiada.
— Que estado, Jesse?
Ele deu um sorriso maroto.
— Ora, eu pensei que você soubesse.
— Que eu soubesse... do quê?
— Você não sabia que Brianna está grávida? Que traz no ventre um filho
meu?
A viúva sentiu que o sangue lhe fugia do rosto.
— O quê? Brianna, grávida? Mas há rumores em todos os cantos,

137
inclusive em Le Beau Château que o casamento de vocês não passava de uma
grande farsa e...
— Como pode ver, então, minha cara Laurette, tais rumores não podiam
ser mais falsos. A verdade é que minha mulher espera um filho meu e tem tido
enjoos matinais frequentes, que a obrigam a ficar na cama por mais tempo.
Por isso, deixe de aborrecê-la com esses assuntos de administração doméstica
e cuide de sua própria vida. Ficou claro?
A viúva ouviu aquelas palavras em estado de choque.
Grávida? Aquela magricela? Não tinha perdido as esperanças de
conquistar Jesse, mas agora havia uma criança na história...
— Deseja mais alguma coisa, Laurette?
Ela ainda estava aturdida demais para raciocinar com clareza.
— Como?
— Eu perguntei se você deseja mais alguma coisa. Se não desejar, queira
se retirar, por favor. Como já disse, estou muito ocupado.
Fervendo de ódio, Laurette Mayfield virou as costas e deixou o escritório,
batendo a porta com força atrás de si.
Era véspera de Natal e as coisas estavam tranquilas na fazenda de Jesse.
Os criados haviam recebido alguns dias de folga, a fim de que pudessem
passar as festas com as próprias famílias. Brianna, Jesse, Aimée e os irmãos
Liberdade iriam se juntar a Garrett e Christie Randall, para o almoço do dia
vinte e cinco.
Brianna penteava os cabelos com uma linda escova dourada que a cigana
lhe dera de presente e sabia que, naquele momento, sua melhor amiga estava
em seu quarto, experimentando o vestido cetim vermelho que havia lhe dado.
Seus olhos se deslocaram para o pequeno pacote em cima da cómoda,
embrulhado com um papel de seda branco. O presente que comprara para
Jesse. Será que ele iria gostar? Passara horas tentando decidir o que lhe dar,
até finalmente se decidir por uma das coisas mais preciosas que tinha, um
livro de poesias de um homem chamado John Donne, que vivera no século
dezesseis. Havia comprado o exemplar no ano anterior e, para isso, tivera de
gastar três meses da mesada que seu pai costumava enviar para o colégio em
Paris. Mas valera a pena. A poesia de John Donne valia ouro em pó.
De súbito a porta se abriu e Jesse entrou, com um lindo sorriso nos
lábios.
— Bon Noèl, madame! Está fazendo um frio incrível lá fora, mas eu
trouxe uma coisa que vai nos aquecer!
Ela se levantou.
— Bon Noel, monsieur. Posso saber o que você tem aí nas mãos?
— É um presente de frei Edouard, que acabou de ser entregue pela
charrete do correio. Uma garrafa do mais delicioso licor de cerejas do mundo!
Ela molhou os lábios, sentindo água na boca.
— Que bom! Adoro licor de cerejas!
— Ele também nos mandou uma carta, Brianna. Abra-a, enquanto eu
sirvo a bebida.
Brianna apanhou o envelope, rasgou-o e leu em voz alta:
"Meus queridos filhos.
A feliz notícia da chegada do bebé para a metade do próximo ano alcançou
meus ouvidos E eu fiquei mais emocionado e satisfeito do que estas modestas

138
palavras podem expressar.
É uma pena, mas não vou poder comparecer à grande festa que vocês vão
oferecer. De qualquer modo, pretendo vê-los o mais breve possível a fim de poder
abraçá-los pessoalmente.
Até lá, que a alegria, a paz e as bênçãos de Deus estejam convosco.
Um grande abraço do amigo, Frei Edouard.

— Ah, Jesse! — exclamou Brianna. — Ele não vai estar presente à nossa
festa! Que pena! Sinto tanta saudade dele!
Jesse entregou-lhe um cálice de licor.
— Eu sei, querida. Também sinto falta do bom frei. Então, façamos um
brinde a ele agora! — Ele levantou seu próprio cálice. — Ao nosso querido
amigo, que ele viva por muitos anos em perfeita saúde ao nosso lado e ao lado
do nosso filhinho! — Ele olhou bem dentro dos olhos de Brianna, o azul
refletindo o verde, e acrescentou: — E agora, façamos um brinde para nós
dois, querida. Que Deus permita que nosso casamento seja longo e muito feliz!
Ambos beberam o licor, as palavras de Jesse ecoando em seus ouvidos.
Não fizeram comentários a respeito, mas o brilho em seus olhos refletia o que
ia em seus corações.
Depois de terem esvaziado seus cálices, Jesse colocou-os em cima da
cómoda e tomou Brianna nos braços.
— Venha, minha querida, venha comigo porque o fogo da paixão está
ardendo dentro de mim.
Ela riu, jogando a cabeça para trás.
— É um homem de muitos apetites, sr. Jesse Randall!
Ele a deitou na enorme cama que ocupava o meio do quarto.
— Eu diria que o apetite da minha mulher é igualzinho ao meu... Ah,
Brianna, minha querida e inesquecível Brianna...
Ela ainda teve forças para se lembrar do livro de poesias de John Donne.
— Ei, Jesse, eu ainda não lhe dei o seu presente de Natal!
Jesse, porém, não parecia nem um pouco interessado naquilo.
— Mais tarde, minha querida, mais tarde.
Então, mais tarde, bem mais tarde, na verdade, depois de uma viagem
fantástica ao paraíso, Brianna, parecendo uma gata saciada, levantou ligeira-
mente a cabeça e perguntou:
— E agora, eu posso entregar o meu presente?
Jesse olhou para aqueles lindos olhos verdes ainda nebulosos de tanta
paixão e tentou compreender como é que conseguira viver antes de conhecê-la
Logo, minha querida. Logo quando você não tiver mais medo, eu vou
poder lhe falar do meu amor por você. E então voaremos juntos e
alcançaremos alturas nunca antes sonhadas.
— Você já me deu o melhor presente que um homem pode receber,
minha linda mulher. — Ele tocou-lhe um dos seios com a ponta dos dedos. Foi
um toque levíssimo como o roçar das asas de uma borboleta. — Um filho...
Brianna fechou os olhos, sentindo o desejo, mais uma vez, tomar conta
do seu ser. Mas precisava lhe entregar aquele livro de uma vez por todas!
Usando de toda sua força de vontade, ela se levantou e apanhou o pacote
em cima da cômoda. Sentindo uma certa vergonha por estar nua diante dele, e
um certo medo de que o presente não fosse apreciado, ela entregou-lhe o livro

139
com dedos trémulos.
Jesse tomou sua mão esquerda que estava livre, levou-a aos lábios, então
aceitou o pacote e começou a abri-lo.
Quase soltou um grito.
— Você andou confabulando com Garrett!
— Garrett? Mas por quê? Eu...
— Ora, Brianna, então como é que você iria me presentear com o livro do
meu autor favorito?
— A... autor favorito? Jesse! É verdade? Você não está falando isso só
para me agradar?
A fim de provar que não estava mentindo, ele começou a declamar alguns
versos que decorara quando mais jovem e nunca mais esquecera.
Brianna ficou encantada.
— Então é verdade! Meu Deus, que coisa maravilhosa! Eu adoro John
Donne. É o poeta que povoou meus sonhos...
— Pelo que vejo, minha querida esposa é uma mulher muito culta. A
poesia de Donne não é nada fácil de se compreender.
— E eu não sei disso? Ele vive brincando com as palavras que possam ter
mais de um sentido. Olhe aqui. — Ela abriu o livro numa determinada página
e leu em voz alta: — "Nós morremos e acordamos, saciados por esse amor." —
Ela olhou para Jesse. — Como é que alguém pode acordar, depois de ter
morrido?
Ele começou a rir.
Brianna franziu a testa, intrigada.
— Ei! Posso saber o que falei de tão engraçado! Eu realmente não
entendi essa parte. Cheguei até a perguntar para uma das freiras do colégio, a
professora de literatura, irmã Pauline, mas ela também não soube me explicar,
então...
— Ah, minha querida — Jesse a interrompeu. — Uma freira não é
exatamente a melhor pessoa para lhe dar esse tipo de esclarecimento...
— Olhe, Jesse, eu não estou entendendo nada. Quer parar com tanto
mistério e ser um pouco mais claro?
Jesse segurou o rosto dela com as duas mãos.
— Minha querida garotinha inocente, o que você e sua professora de
literatura não sabem, ou talvez, no caso de irmã Pauline, ela tenha fingido que
não sabia, é que, na Inglaterra do século passado e até antes, na época da
rainha Elizabeth I, a palavra "morrer" referia-se à morte do... desejo físico,
após a clímax...
Brianna arregalou os olhos.
— Não!
— É verdade — Jesse sorriu. — Mas não é só isso. Sabe o que mais?
Naquela época, eles também acreditavam que o prazer dos amantes encurtava
a vida!
Ela ficou ainda mais assustada.
— Jesse! Isso não é realidade, é?
Ele caiu na risada.
— Claro que não é verdade. Aliás, o que acontece é justamente o
contrário. Esse tipo de atividade não encurta a vida e sim, a prolonga...
Brianna bateu palmas.

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— Viva! Que bom que vivemos nesse tempo! As pessoas daquela época
eram um pouco ignorantes, não é?
— Com certeza, daqui a uns cem ou duzentos anos, nossos
descendentes vão dizer a mesma coisa a nosso respeito... Bem, mas agora, é a
minha vez de lhe dar o meu presente. — Jesse pulou da cama e, apanhando as
calças jogadas no chão, tirou uma pequena caixa de couro de um dos bolsos.
Então, ajoelhando-se em frente à Brianna, estendeu-lhe o objeto. — Para você
— minha doce e querida mulher, mãe do meu filho.
Por um instante, ao ver a ternura estampada nos olhos dele, ela sentiu
uma certa esperança de que Jesse pudesse estar aprendendo a amá-la. Mas
então, as palavras exa-tas ditas por ele voltaram-lhe à mente: "Para você,
minha doce e querida mulher, mãe do meu filho." Claro. Jesse Randall jamais
a amaria. O único motivo para tratá-la com tanta consideração era o bebé.
Aquilo não iria mudar nunca!
Apanhou a caixinha de couro e abriu-a.
— Meu Deus!
Ali, sobre o veludo preto, havia o par de brincos de esmeralda mais lindo
que já vira. Duas pedras exatamente iguais eram circundadas por duas fileiras
de brilhantes, que faiscavam sob a luz do fogo que vinha da lareira.
Ela olhou para ele, os olhos cheios de lágrimas.
— Jesse, que jóia maravilhosa! Nunca vi nada parecido antes! Eu nem
tenho palavras para agradecer algo tão lindo!
— Esse brincos nem chegam as pés da mulher que vai usá-los. Você não
quer colocá-los agora? Mal posso esperar para ver o brilho das esmeraldas
refletindo no verde dos seus olhos.
Brianna foi até o espelho da cómoda e fez o que seu marido lhe pedia.
Então, virou-se para ele, com um sorriso nos lábios.
— Que tal? Gostou? Estou bonita?
Não havia naquele país alguém que pudesse ser comparada a ela, ainda
que de longe. Nem Deirdre. Nem Christie Randall, cuja beleza excepcional
sempre o deixara encantado.
— Você está deslumbrante, Brianna. E o motivo não são os brincos. É
você mesma. — Ele estendeu os braços. — Venha, minha mulher querida. Eu
te quero de novo...
Amaram-se durante a noite inteira e só muito, muito mais tarde, quando
o dia já estava amanhecendo é que eles resolveram dormir.

CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Brianna encostou sua xícara de chocolate quente sobre o pires com


tanta força que a porcelana de Sèvres quase rachou.
— Mas isso é um absurdo! É algo completamente fora de propósito! Pelo
amor de Deus, Laurette, eu não posso fazer uma coisa dessas!
— Infelizmente, Brianna, não há outro jeito. É sua obrigação de anfitriã
receber bem todos os convidados.
Ela olhou para a viúva, louca da vida.
— Como é que eu vou poder receber Honoré Dumaine aqui, em casa,
depois de tudo o que ele me fez?
— Ora, Brianna, não podemos recusar um pedido do governador

141
Pinckney. Honoré está hospedado na casa dele e foi Sua Excelência em pessoa
que pediu para que seu meio-irmão fosse incluído na lista de convidados!
Ela fez uma careta.
— Pois Sua Excelência cometeu uma enorme gafe. É falta de educação
convidar alguém para a festa dos outros!
— Pode ser. Mas não se esqueça de que Pinkney é um homem importante
e influente e não seria conveniente hostilizá-lo. Talvez Jesse venha a precisar
dele no futuro, não é? Afinal, nunca se sabe.
Brianna ficou pensativa durante alguns instantes, tentando adivinhar se
não haveria algo de errado por ali. Honoré Dumaine havia espalhado aqueles
boatos a seu respeito e a respeito de Jesse em Le Beau Château, mas muita
gente dizia que a viúva também estava envolvida naquele plano sujo até o
pescoço. Será que ambos estariam tramando alguma coisa novamente? Com
aqueles dois, todo cuidado era pouco.
— Laurette, não haveria alguma outra razão pela qual você queira que
Honoré Dumaine esteja presente nesta festa?
Naquele momento, Jesse entrou na biblioteca, seguido pelo mordomo
Isaac. Brianna, virando-se para ele, não notou que a viúva Mayfield ficara
vermelha.
— Olá, minha querida. — Ele sorriu e se aproximou dela. — Tudo em
ordem para a festa dessa noite?
— Olá, Jesse — respondeu ela. — Tudo em ordem, sim. Exceto por um
probleminha de última hora.
— É mesmo? O que aconteceu?
— Nada demais — a viúva tratou de responder. — Brianna está
exagerando e...
— Não é exagero, Jesse! — ela interrompeu. — O governador Pinckney
mandou dizer que vai trazer uma pessoa que está hospedada em sua casa.
Sabe quem? Honoré Dumaine!
Jesse não pareceu ficar muito satisfeito. Virou-se para Laurette Mayfield,
a testa franzida.
— Hum... Você sabia disso, Laurette?
— Eu... hã... só soube agora há pouco, quando um mensageiro chegou
com uma carta. O que estava dizendo para Brianna é que não há jeito de nós
nos esquivarmos desta obrigação. Afinal, o governador é...
— Droga! — exclamou Jesse, virando-se para Brianna. — Maldito! Nunca
pensei que o governador pudesse ser tão mal-educado! Olhe, minha querida, a
decisão é sua. Se você não quiser Honoré Dumaine nessa casa, ninguém me
fará recebê-lo aqui. Nem Sua Santidade, o Papa.
Laurette tentou intervir.
— Eu acho que não se pode contrariar o governador e...
— Cale-se, Laurette. A decisão é de Brianna.
Ela deu de ombros.
— Olhe, eu não me importo que ele venha. Vai haver tanta gente nessa
festa, que nem vou reparar em sua presença.
— Tem certeza, querida?
— Claro que ela tem certeza — respondeu a viúva. — Agora, Brianna, que
tal voltar para seu quarto e descansar um pouco? Você não vai querer estar
cansada na hora do baile, não?

142
Achando realmente que havia algo de muito errado por ali, afinal a viúva
jamais se preocupara com sua saúde, Brianna se levantou. Estava cansada de
verdade. Os preparativos para aquela festa pareciam não ter mais fim.
Jesse tocou de leve em seu braço.
— Laurette tem razão, querida. Sua saúde e seu bem-estar são mais
importantes do que tudo. Quanto aos problemas de última hora, como
acomodações para os convidados que quiserem passar a noite aqui, pode ficar
sossegada que Isaac e eu resolveremos. Agora, já para o quarto, madame. Não
a quero nem um pouco cansada hoje à noite.
Brianna sorriu para ele, concordando com a cabeça. Engraçado como
estava mais calma ultimamente. Se fosse há alguns meses, a simples menção
do nome de Honoré Dumaine teria lhe causado uma explosão de fúria. Agora,
porém, estava simplesmente aborrecida. Seria a gravidez?
Jesse encostou a mão em seu ventre.
— Ele já se mexeu, querida?
Ela olhou para aqueles olhos azuis que a encaravam com tanta ternura e
sentiu um nó na garganta.
— O dr. Baldwin Barrett disse que ainda é muito cedo para isso. E quem
disse que vai ser ele? Não sei se você sabe, mas as crianças do sexo feminino
também costumam nascer de vez em quando.
Jesse deu-lhe um beijo na testa.
— Desde que ela seja o reflexo exato da mãe, eu não me importo que
tenhamos uma menina. Agora, já para o quarto, minha doce e querida sra.
Randall!
Os convidados começaram a aparecer por volta das sete horas da noite.
Conforme o combinado, Christie Randall chegara bem mais cedo, a fim de
ajudar Brianna como anfitriã.
Toda a sociedade de Charleston estaria presente. Os Middleton, os
Rutledge, os Carlisle, enfim, “la creme de la creme” do estado havia aceitado o
convite dos Randall. Infelizmente, Thomas Jefferson enviara uma carta dizendo
de sua impossibilidade de comparecer, mas iria mandar sua filha Martha e seu
genro Thomas Mann Randolph em seu lugar, para representá-lo. O sogro de
Garrett, o rico fazendeiro Charles Trevellyan, que passara as festas na casa do
genro e da filha, também havia sido convidado. Os Lee, da Virgínia, velhos
amigos de Jesse e Garrett, estavam na Carolina do Sul visitando parentes e
tinham igualmente confirmado a presença.
Estava escuro lá fora, mas a sede da fazenda de Jesse Randall brilhava
sob a luz de uma infinidade de velas acesas. A casa nunca estivera tão bonita e
enfeitada.
Na suíte master, Brianna esperava pacientemente que Aimée acabasse de
fechar todos os colchetes de seu vestido.
— Voilà, madame — exclamou a cigana, entusiasmada. — Você está uma
beleza! Agora, olhe-se no espelho!
Enquanto Brianna estudava seu próprio reflexo, Jesse entrou no quarto e
não conseguiu conter um assobio de admiração.
— Meu Deus, Brianna! Você está tão linda, que vai fazer com que todas
as convidadas morram de inveja!
— Ora, Jesse, não seja exagerado — respondeu ela, virando-se para ele.
— Se as convidadas sentirem inveja de mim, é por causa do marido que eu

143
tenho.
Aimée, achando que talvez estivesse sobrando naquele quarto, resolveu
pedir licença.
— Até já, mes amiesl Agora é minha vez de me embonecar. Quem sabe
se, nessa festa, eu encontro o meu príncipe encantado.
— Já está mais do que na hora de você achar esse príncipe — disse
Jesse, sorrindo. — Pena que eu não tenha outro irmão para lhe apresentar...
A cigana jogou um beijo para os dois e deixou os aposentos.
Jesse esperou que a porta se fechasse, então tirou uma caixa de couro do
bolso, parecida com a outra do dia de Natal.,
— É para você, minha querida.
Brianna olhou para a caixa, surpresa.
— Para mim? Mas Jesse, o Natal já passou e meu aniversário é só em
abril! Por que...?
— Abra, Brianna — pediu ele, com voz doce e suave.
Ela fez o que lhe foi pedido... então levou a mão à boca, absolutamente
deslumbrada. Ali dentro, havia uma gargantilha de esmeraldas e diamantes
cujo desenho combinava perfeitamente com os brincos que recebera dias atrás.
Era uma jóia que retratava graça, beleza e classe, em perfeita harmonia.
— Jesse... -— ela murmurou. — Eu nunca vi algo tão lindo na vida...
— Pois eu já vi. Uma mulher muito mais linda. Brianna Devereaux
Randall. Você a conhece?
Ela riu, mas havia lágrimas em seus olhos.
— Jesse... Muito obrigada!
— Agora vire-se, meu amor. Vamos ver como ele fica em você.
Ela se virou e o lindo colar foi colocado em seu devido lugar. Então, ele
abaixou a cabeça e beijou-lhe a nuca.
— Vá se olhar no espelho, querida.
Ela fez o que ele lhe havia pedido, mas tudo o que viu, ou melhor, tudo o
que queria ver era o reflexo de Jesse atrás de si. Aquele homem usando uma
casaca azul-marinho deixava-a completamente sem fôlego. Era o homem que a
levava ao paraíso à noite, o homem que povoava seus sonhos durante o dia. O
pai de seu filho. Ah, se ao menos ele a amasse, nem que fosse só um
pouquinho...
A voz de Jesse interrompeu-lhe os pensamentos.
— Bem, o que achou?
Brianna virou-se para ele e correu para os seus braços,
— O que eu acho é que me casei com o homem mais maravilhoso que já
pisou neste mundo!
O salão de baile brilhava de luzes e de cores, as jóias das senhoras da
alta sociedade do sul do país faiscando sob as centenas de velas acesas.
Brianna e Jesse eram o centro das atenções, enquanto abriam caminho
entre mais de duzentos convidados, muitos dos quais haviam estado presentes
naquela fatídica festa em Le Beau Château, meses atrás. O falatório de-
saparecera por completo eo jovem casal fazia um sucesso absoluto.
— Estão todos comentando a respeito da beleza do baile — Christie
contou a Brianna, levando-a para um canto. — E da sua beleza também! Eles
têm toda a razão, querida. Você está lindíssima!
Brianna sorriu, satisfeita...

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— Eu? Lindíssima? Olha só quem fala!
As horas foram se passando e nada do governador Pinckney e seu
desagradável hóspede chegarem. Brianna estava achando que não iriam mais
aparecer e estava dando graças a Deus por isso, quando Aimée tocou seu
braço de leve, avisando:
— Não se assuste quando vir a cara de ódio de seu marido, chérie. Ele
me mandou preveni-la de que o governador acabou de nos dar a honra de sua
presença... e que, em vez de um, tomou a liberdade de trazer dois convidados!
Brianna olhou para a direção que Aimée lhe apontava disfarçadamente e
viu o governador Pinckney, o qual não conhecia pessoalmente, ao lado de dois
homens que já havia tido a infelicidade de conhecer: Honoré Dumaine e Aaron
Burr! Um dos maiores inimigos de Thomas Jefferson!
— Sacré bléul — ela exclamou para a amiga, falando em francês para que
ninguém entendesse. — Que horror! Que homem sem educação! Ter trazido
Honoré já foi o fim do mundo. Agora, convidar por conta própria esse outro e
nem avisar... é um comportamento imperdoável! Acho que ele é maluco!
— Oui, concordo com você, mon amie, mas parece que seu marido está
tentando levar a história da melhor maneira possível. Ele me disse que vai
fazer tudo para manter os cavalheiros em questão bem longe de você, para que
não possam aborrecê-la. — A cigana fez uma pausa. — Acredite em mim,
chérie. Jesse Randall se preocupa tanto com você que chega a comover!
— Claro — Brianna apressou-se em responder. — Já se esqueceu de que
carrego o filho dele no ventre?
— Não é por isso, mon amie. Escute o que estou dizendo e...
Aimée, entretanto, não pôde continuar. Andando em sua direção vinham
Jesse Randall e os três convidados.
— Tente sorrir — ela cochichou para Brianna. Não importa que esse três
sejam uns bastardos, Honoré, é claro, no sentido literal da palavra. Você é a
grande anfitriã da noite e tem obrigação de recebê-los bem.
— Governador Pinckney, permita-me apresentar minha mulher, Brianna
Devereaux Randall — disse Jesse, tocando de leve em seu ombro. — Minha
querida, este é Charles Pinckney, nosso digníssimo governador.
— Governador, estou encantada por tê-lo aqui, em minha casa — mentiu
ela. — Que prazer enorme poder conhecê-lo pessoalmente.
Charles Pinckney fez uma mesura e, tomando a mão de Brianna, levou-a
aos lábios.
— Sra. Randall, o prazer de estar aqui é todo meu. A notícia de sua
beleza chegou até meu palácio, mas a senhora é ainda mais bonita do que eu
tinha imaginado.
— Obrigado, senhor.
— Bem, eu gostaria de dizer agora que espero que a senhora e seu
marido me perdoem pela liberdade que tomei, trazendo dois convidados para
esta bela festa.
Aquilo foi dito com tanto charme e simpatia, que Brianna não se sentiu
nem um pouco surpresa com o fato de aquele homem ter sido eleito
governador de um importante estado da união.
— Como sei que a senhora conhece ambos — ele continuou — as
apresentações não serão necessárias. De qualquer maneira, volto a apresentar
meu sincero pedido de desculpas.

145
Assim que o governador terminou seu discurso, Honoré Dumaine e Aaron
Burr se aproximaram. Burr foi o primeiro a cumprimentá-la.
— Antes de mais nada, sra. Randall, gostaria de lhe apresentar meus
sinceros parabéns por seu recente casamento. Estou honrado por vê-la de
novo.
— Muito obrigada, sr. Burr. Seja bem-vindo à nossa casa.
— Também estou muito feliz por revê-la irmãzinha — soou a voz sempre
desagradável de Honoré Dumaine, que agora se aproximava dela. — Você está
linda. Sabe o que todos estão dizendo? Que você e Jesse formam o casal mais
bonito de toda a Carolina do Sul.
Ela forçou um sorriso.
— Olá, Honoré. Você está sendo muito gentil. — Então, ela se virou para
Charles Pinckney. — Ah, governador, já ia me esquecendo. Esta é minha
querida amiga, mademoiselle Aimée Gitane.
Terminadas as apresentações, Jesse, conforme o prometido, tratou de
levar os cavalheiros em questão para uma outra sala, de modo que não
perturbassem Brianna. Ele não a queria ao lado de Honoré Dumaine por nada
nesse mundo. Não confiava no filho ilegítimo de Etienne Devereaux, não
importava o que ele fizesse para se redimir.
No final do jantar, na hora do licor e dos charutos, uma conversa política
animava os convidados na biblioteca.
Tudo começou quando Thomas Mann Randolph, após anunciar que seu
sogro estava prestes a renunciar a seu cargo de novo, especulou quem seria o
próximo presidente da América, quando o mandato de Washington chegasse
ao fim. Ouvindo aquilo, várias pessoas se juntaram ao grupo e foram sugeridos
nomes como Adams, Madison e Jefferson.
Honoré Dumaine entrou na roda sugerindo Aaron Burr como candidato.
Como era de se esperar, este último exultou de alegria, deixando claro para
Jesse o tamanho de seu ego e de sua ambição.
O próprio Jesse tocou no nome de Jefferson, dizendo que o secretário de
Estado provavelmente seria imbatível. Honoré Dumaine balançou a cabeça,
indignado.
— Pois eu espero que ele nunca se candidate.
Jesse fez sinal para que um dos copeiros servisse mais uma rodada de
licores e conhaques.
— Cavalheiros, acho que estamos sendo um pouco prematuros. Na hora
certa, e quando o país estiver pronto, Jefferson será chamado e não hesitará
em responder ao clamor público. Tenho a impressão, no entanto, que isso não
vai acontecer tão cedo.
A conversa foi interrompida quando Brianna, Laurette e Aimée entraram
na sala, anunciando que a orquestra iria começar a tocar.
Enquanto todos se dirigiam ao salão de baile, Aimée reparou nos olhares
furtivos trocados pela viúva Mayfield e Honoré Dumaine.
— Acho que eles estão tendo um caso — a cigana cochichou para
Brianna. — Bem que eu estava desconfiada de que havia algo entre ambos.
Brianna deu um sorriso.
— Laurette e Honoré juntos? Meu Deus, eles se merecem!
Os músicos começaram a tocar uma melodia que Brian-na não conhecia.
Era um ritmo diferente e estranho que ela jamais ouvira antes. Apanhando

146
uma taça de champagne que um copeiro servia, aproximou-se de Jesse, a testa
franzida.
— Que música é essa, querido?
Um lindo sorriso iluminou seu rosto, os olhos azuis brilhavam de
felicidade.
— É um ritmo novo que está fazendo um grande sucesso na Europa,
mais precisamente na corte de Viena, na Áustria.
— E como se chama esse ritmo? — ela perguntou, curiosa.
— Chama-se valsa!
CAPÍTULO TRINTA E SEIS

Os meses de chuva do inverno da Carolina do Sul se foram, dando lugar


a uma primavera ainda mais chuvosa. Porém o sol brilhava nos corações dos
moradores da fazenda de Jesse Randall, que, cheios de felicidade, se
preparavam para a chegada do filho de Brianna.
O relacionamento dos futuros pais era muito bom. Ambos sentiam-se
perfeitamente à vontade um com o outro, tendo estabelecido uma
cumplicidade raramente vista entre os casais.
O segredo dos dois, porém, continuava a ser guardado a sete chaves.
Nenhum deles ainda tivera a coragem de confessar seu amor ao outro.
Aimée andava preocupada com o fato.
— Eu sei que você o ama — a cigana lhe disse, um dia. — Por que não
lhe conta a verdade de uma vez por todas?
— E quem disse que eu o amo? — rebateu Brianna, revoltada.
— Ora, ora, eu conheço você melhor do que a mim mesma. Você ama
Jesse Randall com tanta intensidade, que seria capaz de dar a vida por ele.
Então, por que não lhe dizer isso?
Brianna deu um suspiro desanimado.
— Bem, eu não consigo mesmo esconder nada de você. Também, com
esse seu sexto sentido tão apurado...
— Sexto sentido! Bah! Não é preciso ter sexto sentido algum para
perceber uma coisa dessas, Brianna. É algo tão evidente, que qualquer pessoa
perceberia sem a mínima dificuldade! Agora, eu volto a repetir. Que mal há
em...
— Aimée, pelo amor de Deus! É claro que há todo o mal do mundo! Como
eu lhe poderia confessar meu amor, se sei que ele jamais vai poder me amar?
Jesse ainda ama Deirdre e com certeza vai continuar amando-a até o fim da
vida! Se eu lhe contasse sobre meus sentimentos, sabe o que ele iria sentir por
mim? Pena! Ah, Aimée, isso eu não posso suportar... Eu seria sempre aquela
pobrezinha da Brianna, apaixonada por um marido que nunca conseguiu
esquecer sua irmã...
— Nunca ouvi tanta bobagem junta, Brianna! E quem disse que ele
também não a ama? Jesse vive chamando você de nomes carinhosos como
Olhos Verdes, minha querida, minha doce mulher...
— Sim, mas ele nunca disse para mim: "Brianna, eu te amo!" Nunca!
Nem no calor da... — Ela ficou vermelha naquele momento. — ... da paixão.
— Mas, Brianna, a atitude dele em relação a você, seu comportamento,
suas ações... você não percebe que isso vale muito mais do que mil palavras?
Do que mil declarações de amor?
147
Lágrimas amargas surgiram nos olhos de Brianna.
— É por causa do bebê, Aimée. Só por causa do bebê. Jesse me trata
bem porque trago no ventre o filho dele.
A cigana abraçou-a com carinho.
— Ah, ma chérie, eu tenho certeza absoluta de que você está enganada
nesse assunto... Sinto em minha alma, mas não sei como fazê-la mudar de
idéia... Não chore, querida. Tudo vai acabar se resolvendo. Eu lhe prometo!
— Não, Aimée, eu não acredito em você. Estou condenada a viver ao lado
de um homem que adoro, mas, que jamais esquecerá minha irmã.
Jesse também teve seus momentos de angústia durante aquele período.
Às vezes, perguntava-se o quê sua mulher sentia por ele na verdade. Ela o
tratava bem, estava sempre sorridente e gentil, mas parecia um pouco distante
e reservada, como se ainda tivesse medo de se entregar a uma grande paixão.
Precisava dar um jeito de se declarar, de lhe dizer o quanto a amava, sem
no entanto assustá-la. Um dia, quando a primavera já se despedia e o verão
vinha anunciando sua chegada, ele teve uma ideia. Na manhã seguinte, iriam
seguir viagem até o acampamento dos índios cheroqui, onde Brianna seria
reconhecida como irmã honorária, isso é, membro especial da tribo. Como
haviam sido convidados para passar a noite ali, Jesse esperava poder ocupar a
mesma cabana que da outra vez, o mesmo cenário onde tinham consumado
seu casamento, para então se declarar. Seria o lugar perfeito! Ele não podia
mais esperar. Brianna precisava saber da verdade sem demora.
O destino, porém, parecia estar tramando contra o jovem casal.
No dia seguinte, um pouco antes da partida, Jesse recebeu um recado de
Garrett, dizendo que estava tendo problemas com um dos cavalos de sua
fazenda.
— Preciso ir até lá — ele disse a Brianna. — Mas não devo demorar.
Assim que eu voltar, iremos para o acampamento, está bem?
— Está bem — respondeu Brianna, um pouco desapontada. Ela estava
ansiosa para chegar logo às terras dos índios cheroqui, onde sabia que uma
linda cerimónia a aguardava. A fazenda de Garrett ficava a uma boa distância
e Jesse só estaria de volta lá pelo meio-dia ou uma hora da tarde.
Estava na biblioteca tentando se concentrar num livro, quando foi
interrompida por Laurette Mayfield que chegou com a correspondência na
mão.
— Olá, Brianna. Há algumas cartas para você.
Ela apanhou os envelopes que a viúva lhe estendia e examinou-os
distraidamente.
— Obrigada, Laurette.
A moça sentou-se numa poltrona a seu lado.
— A que horas Jesse vai chegar, Brianna.
— Acho que só depois do meio-dia. Por quê?
— Porque eu acabei de ter uma excelente idéia. O que você acha de
pegarmos uma das carruagens e darmos uma volta pelo campo? O dia está tão
lindo e você poderia se distrair um pouco. Que tal?
Como Laurette jamais havia feito convite parecido, Brianna teria ficado
intrigada, caso não tivesse acabado de abrir um dos envelopes, que continha
uma carta de Thomas Jefferson. A alegria que a mensagem lhe trouxe foi
tamanha, que a estranheza de tal atitude lhe passou despercebida.

148
— Olhe, Laurette! Que maravilha! Jefferson finalmente aceitou nosso
convite para vir nos visitar! Ele deve chegar na segunda semana de agosto! Não
é o máximo?
— Que bom para você — respondeu a viúva. Ele continua sendo um
homem muito importante, embora tenha deixado o cargo de secretário de
Estado há vários meses.
— Ora, Laurette, Jesse e eu o convidamos porque gostamos dele e não
pelo cargo que ocupa ou deixou de ocupar. Thomas Jefferson é um homem de
bem e sentimos um grande prazer com a sua companhia. — Brianna afastou
os cabelos do rosto, o gesto revelando os brincos de esmeralda que usava
diariamente. — Espero que, um dia, ele venha a ser presidente deste país. A
América só tem a lucrar com isso.
A viúva olhou para as jóias com uma pontinha de inveja, então desviou o
olhar dizendo:
— Claro, claro, agora, quanto ao nosso passeio, o que você achou da
idéia? Posso mandar aprontar a carruagem?
— Como? — perguntou Brianna, examinando o resto das cartas.
— Estou falando do passeio que acabei de sugerir, Brianna! Meu Deus,
onde você está com a cabeça? Posso mandar aprontar a carruagem ou não?
— Ah, bem, sim, Laurette, faça isso — ela respondeu distraidamente,
abrindo uma carta de Glória Delaney, a criada irlandesa de Le Beau Château.
— Ótimo. Já estou indo, então.
Se Brianna não estivesse tão entretida lendo as últimas novidades do
palácio onde crescera, teria visto o brilho diabólico nos olhos de Laurette
Mayfield.
CAPÍTULO TRINTA E SETE

Uma hora depois, a lustrosa carruagem preta deslizava pela estrada que
levava para o oeste, do outro lado das plantações de Jesse.
Laurette dispensara o cocheiro e fizera questão de ir conduzindo o
veículo de transporte.
— Vai ser mais divertido irmos só nós duas — ela dissera a Brianna. —
Você não acha?
Brianna não achava nada, mas não quisera discutir com a viúva. Agora,
vendo-a tão calada e estranha, ela começava a desconfiar do fato de que havia
alguma coisa errada por ali.
Ia abrir a boca para pedir que voltassem, quando de súbito Laurette
puxou as rédeas e a carruagem parou, dando um tranco. Imediatamente
alguma coisa se movimentou atrás de um arbusto ao lado da estrada e, no
momento em que Brianna olhou naquela direção e descobriu do que se
tratava, soltou um grito de horror e espanto.
Ali adiante, parecendo tão diabólico quanto da primeira vez em que o
vira, estava Homem-Sedento-de-Sangue, o índio renegado que tentara
sequestrá-la naquela terrível noite em que fugira da fazenda de Jesse, ao
descobrir que estava grávida!
Outro movimento vindo do mesmo lugar revelou que ele não estava
sozinho. Saindo das sombras, mais quatro índios apareceram, três dos quais
ela reconheceu. O quarto homem trazia um mosquete nas mãos e de seus
olhos pretos emanava tanta maldade, que Brianna sentiu um arrepio de puro

149
horror.
— Vocês se esconderam muito bem. — Brianna de súbito ouviu Laurette
Mayfield dizer. — Por um momento, pensei que houvessem se esquecido de
nosso compromisso.
Sentindo que sua cabeça rodava, Brianna olhou para a viúva, tentando
entender o que estava se passando por ali.
— Eu não falho nunca — veio a resposta ríspida de Homem-Sedento-de-
Sangue. — Pensei que soubesse disso!
Laurette Mayfield deu de ombros, dizendo com voz cheia de ironia.
— O que eu sei é que você falhou em sua primeira tentativa de
sequestrá-la. — Ela apontou para Brianna com a mão coberta por uma luva
preta. — Ao que parece, você não é tão infalível assim!
A cabeça de Brianna ainda rodava, mas ela usou de toda sua força de
vontade para se acalmar e tentar raciocinar com um pouco mais de clareza.
Ali estava Laurette, sentada a seu lado, conversando com Homem-
Sedento-de-Sangue, como se... como se...
—Ai, meu Deus! — ela exclamou, levando a mão à boca, a realidade
finalmente atingindo-a com a força de um raio assustador.
Laurette Mayfield estava com eles!
A viúva virou-se para ela, um brilho de satisfação em seus olhos escuros
e malévolos.
— Então a pequena cabeça-de-vento finalmente compreendeu a natureza
do nosso jogo...
Brianna estava desesperada.
— Laurette, mas por que...
— Cale-se, sua vagabunda!
— Pelo amor de Deus, eu...
— Deus não vai ajudar você no lugar para onde vão levá-la, minha cara.
— Ela soltou uma risada horrível. — Por isso, vá desistindo de chamar seu
nome!
Brianna não podia fraquejar. Tinha de enfrentar aquela situação de
cabeça erguida, custasse o que custasse.
— E posso saber para onde vão me levar?
Laurette deu de ombros, como se pouco tivesse se importando com
aquilo.
— Bem, quanto a seu destino, eu realmente não sei qual vai ser ele,
exceto que será em algum país muito distante, em outras terras, em outro
continente, com certeza... Veja, minha querida. — ela fez um gesto em direção
a Homem-Sedento-de-Sangue, que observava as duas em silêncio, o rosto
diabólico desprovido de emoções. — Aquele índio e seus amigos são
comerciantes de carne humana. Sabe o que é isso? Eles vendem gente.
Ganham a vida sequestrando mocinhas ingénuas e inocentes como você para
depois vendê-las num dos vários mercados clandestinos que infestam esse
país. E é exatamente isso que vai lhe acontecer. Alguém vai comprar você
como escrava e levá-la para algum lugar bem distante onde ninguém, muito
menos seu amado Jesse Randall, possa encontrá-la!
Laurette Mayfield ainda falava mais alguma coisa, mas Brianna já não
ouvia suas palavras. Não era só nela que tinha de pensar agora. Era no bebé
também! Uma angústia terrível invadiu-lhe a alma. Não só ela iria ser vendida

150
como escrava, como a mesma coisa iria acontecer com o seu bebê!
Santa Mãe de Deus, não! — ela gritou para si mesma, no momento em
que Homem-Sedento-de-Sangue aproximou-se da carruagem e arrancou-a
dali.
E então, de súbito, tudo começou a girar à sua volta com ainda mais
intensidade e ela ouviu um grito de mulher vindo de longe. Aí, o manto negro
da inconsciência caiu diante de seus olhos, e Brianna não pôde ver mais nada.
— Ela desmaiou — disse Laurette, no momento em que Homem-
Sedento-de-Sangue a retirava da carruagem. — Tanto melhor. Nossa tarefa vai
ficar muito mais fácil. Olhe, vou tirar o chapéu dela enquanto seus homens
levam a carruagem até a margem do rio. Seu marido precisa acreditar que
houve um terrível acidente e que nós duas caímos na água. Nossos chapéus
devem ficar sobre aquelas pedras, juntamente com a carruagem virada e os
cavalos. Desse modo, todos vão pensar que morremos afogadas nesse rio!
Homem-Sedento-de-Sangue e seu bando de índios renegados começaram
a se mexer, a fim de fazer o serviço.
A mercadoria daquele dia era de excelente qualidade. Uma moça linda
daquelas, apesar de grávida, deveria valer uma quantia fabulosa. Homem-
Sedento-de-Sangue chegou à conclusão de que estava com muita sorte.
Jesse, exausto, o rosto cheio de desespero, o corpo rígido, observou o
irmão e o índio Urso-Risonho descerem de seus cavalos, abatidos e
desanimados.
— Vocês não acharam nada? — perguntou ele, com voz fraca.
— Nada. Nada mesmo — respondeu Garrett, a voz sombria. — Mas
Urso-Risonho mandou Lula e Vulcan seguirem em direção à estrada do rio.
— Você acha que ela caiu no rio, não acha? — perguntou Jesse, a voz
amarga e furiosa.
— Jesse, eu...
— Desculpe, Garrett, eu não quis descontar em você o meu desespero. É
que eu... — Passou a mão pelos cabelos, num gesto nervoso. Estavam naquela
procura havia aproximadamente dez horas. A princípio, as buscas se deram à
luz do sol. Quando começara a escurecer, eles tiveram de acender tochas e
continuaram a vasculhar toda a área em volta da propriedade. Já passava da
meia-noite e não houvera nem um sinal de a carruagem ter seguido por
nenhuma das estradas exaustivamente procuradas. Onde estava Brianna? —
Ah, meu irmão, eu estou apavorado... Minha vida não vale nada sem a mulher
que eu amo mais do que a mim mesmo! O que eu faço se ela tiver morrido? O
que eu faço se ela não aparecer mais?
Quando o mordomo Isaac Sommers o informara de que Brianna havia
saído com Laurette Mayfield, ele ficara um pouco aborrecido. Depois, porém,
ao perceber que as duas não apareciam e ao constatar que havia algo de
errado naquela história, compreendera que, fosse lá o que tivesse acontecido,
aquilo jamais teria algo a ver com uma fuga. Laurette iria ser a última pessoa
nesse mundo a quem Brianna iria pedir ajuda para fugir!
Então tal fato o deixava com alternativas ainda mais tétricas. Um
acidente, ou qualquer coisa do género, deveria ter acontecido. Jesse balançou
a cabeça com força, tentando esquecer tal desgraça. Não, meu Deus, por mi-
sericórdia, fazei com que. ela esteja bem. Que ela esteja bem e... viva.
Vendo o olhar de desespero do irmão, Garrett deu um passo à frente e

151
encostou a mão no ombro dele.
— Você nunca desistiu das coisas com facilidade, meu irmãozinho.
"Meu irmãozinho" era o modo carinhoso como Garrett o chamara durante
a infância, principalmente após a morte trágica de seus pais, quando ele
tentava animá-lo em seus momentos de tristeza e de intensa dor. Era isso
mesmo que ele fazia agora, atingir o fundo de sua alma e lhe mostrar que,
apesar de tudo, ainda havia esperanças.
De súbito, Jesse compreendeu que possuía uma sobra de energia vinda
dos confins de seu coração que lhe daria forças para prosseguir. A qualquer
preço que fosse.
Forçou um sorriso que o deixou com o rosto de menino dos outros
tempos e perguntou, com voz suave.
— E quem disse que eu estou desistindo?
Naquele momento, um assobio estridente cortou o ar, vindo da direção
da estrada do rio
— É o sinal da minha mulher Lula — anunciou Urso-Risonho e os três
homens montaram rapidamente em seus cavalos. O que o índio não
acrescentou, porém, era que o sinal em questão, código dos cheroqui, indicava
problemas ou desgraça por parte daquele que o enviava.
Pouco tempo depois, Jesse, Garrett, Urso-Risonho, Lula e Vulcan
examinavam a carruagem virada nas margens do rio. Garrett ajudou o índio e
o negro a desatre-larem o frenético cavalo ainda preso às rédeas, enquanto
Jesse abaixava-se para apanhar um chapéu caído ao lado das rochas.
— Acho que isso pertence à viúva Mayfield — ele quase sussurrou,
olhando em volta para ver se conseguia encontrar mais alguma coisa. A lua
minguante não estava sendo de muita ajuda no que se referia à iluminação.
O desespero voltou para assombrá-lo, com ainda mais intensidade do
que antes. Atrás dele, ouviu a voz suave do irmão tentando acalmar a
apavorada égua que puxava a carruagem. Ah, mas não ia desistir. Não ia
mesmol Garrett tinha razão. Não era homem de perder as esperanças com
tanta facilidade, mesmo quando ainda muito jovem. Não era agora que as
coisas iriam mudar.
— Olhem! — exclamou Lula, revirando a área de cima a baixo. Acho que
já vi Brianna usando esse chapéu! Só pode ser dela!
Jesse aproximou-se correndo, sentindo um nó na garganta ao ver o
chapéu de palha enfeitado com um lenço amarelo que a mulher sempre usava.
Era um de seus favoritos.
Agora, a água e a lama o haviam estragado comple-amente. Tomou nas
mãos o objeto sem forma que a índia Lula lhe estendia, o corpo trêmulo, o
coração estraçalhado. Mesmo assim, recusava-se a acreditar no pior. Não
acreditava que ela estivesse morta. E isso não se devia ao fato de Garrett tê-lo
encorajado ainda há pouco. De uma maneira ou de outra, ou por causa do
enorme amor que sentia por Brianna, ou por causa do grito de arrependimento
que rasgava-lhe o corpo ao se lembrar de que nunca dissera nada a ela sobre o
seu amor, ele pressentia que aquele não era o fim. Não era só Aimée Gitane
quem tinha um sexto sentido muito apurado. Ele também possuía uma
intuição forte, que a maior parte das pessoas não tinham. E era exatamente
essa intuição que lhe dizia que Brianna, sua muito amada esposa, estava viva.
A força que emanava dela era tão grande e vital que ele teria sentido a perda,

152
caso o fim tivesse mesmo chegado. Não. Ela ainda vivia. Tinha tanta certeza
quanto do fato de se chamar Jesse Alexander Randall. Virou-se para seus
companheiros:
— Pessoal, vamos voltar à fazenda. Precisamos descansar um pouco,
comer alguma coisa e apanhar cavalos novos e descansados. Mais tarde,
quando o dia já tiver nascido, eu vou voltar. Aqueles que quiserem podem me
acompanhar, embora eu compreenda perfeitamente se não vierem.
Cinco horas depois, Garrett, Vulcan, Urso-Risonho e Lula, ao lado de
Jesse, voltaram ao rio a fim de recomeçarem as buscas. E estavam a seu lado
novamente quando a semana terminou, sem que houvesse alguma novidade.
Quinze dias então se passaram e o cacique Flecha-Escura mandou cinquenta
de seus melhores homens ajudarem seu irmão de sangue a procurar a mulher
amada. Os bravos índios vasculharam a região toda, montanhas, florestas,
cavernas escuras das quais ninguém sabia da existência... e nada. Às vezes,
Jesse sentia que as esperanças o abandonavam, mas então, lembrava-se de
que os corpos não haviam sido encontrados e isso lhe dava forças para
continuar. Se Brianna e Laurette Mayfield tivessem se afogado no rio, a uma
altura daquelas eles já teriam descoberto.
Então, um dia, quase um mês depois do desaparecimento misterioso,
eles tiveram uma idéia. Na verdade, tal idéia partiu de Aimée Gitane, com a
ajuda de Vulcan. O negro conhecia um homem, também ex-escravo, que
morava numa cabana no meio da floresta, não muito longe das plantações de
Jesse. Esse homem tinha um cachorro que, segundo o dono, era o melhor
farejador da região. Vulcan foi visitá-lo e, contando-lhe a história toda, pediu-
lhe o animal emprestado. O negro não hesitou em ajudar os aflitos e, indo a
casa de Jesse, pediu que Aimée fosse até o quarto de Brianna e de Laurette a
fim de apanhar algumas roupas de ambas. A cigana escolheu luvas, vestidos e
sapatos e, ao abrir o armário da viúva, deu por falta de vários objetos de uso
pessoal. Era como se ela houvesse arrumado uma mala antes de partir. E,
falando nisso, onde estava a mala que ela guardava no fundo do baú? Será que
tudo não fora cuidadosamente planejado pela ardilosa viúva? Aimée levou a
mão à boca. Mon Dieu... Não é possível...
Correu para a porta, gritando:
— Jesse! Vulcan! Subam até aqui correndo! Quando ambos surgiram
ofegantes, na porta do quarto, ela lhes deu a notícia, falando com voz agitada:
— Ela ainda deixou muitas roupas, provavelmente para despistar, mas
sei que há vestidos e objetos de uso pessoal que estão faltando nesse armário.
Além disso, a mala sumiu!
Jesse abraçou Aimée e, pela primeira vez, lhe deu um estalado beijo no
rosto, que a deixou vermelha.
— Aimée, você é um gênio! Não houve acidente nenhum! Foi tudo uma
grande armação! Laurette quis dar um jeito de prejudicar Brianna, mas ela
ainda deve estar viva! Viva! — Virou-se para o negro, a seu lado. — Vulcan, vá
buscar Garrett e Urso-Risonho e conte-lhes o que Aimée descobriu. Diga-lhes
para trazer o mosquete, porque talvez precisaremos dele. O cão farejador de
seu amigo está pronto?
— Está — respondeu o negro, ainda mais agitado que Jesse.
—Então vamos para os estábulos apanhar os cavalos. Quanto antes
chegarmos ao rio, melhor!

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Brianna acordou sentindo um grande desconforto, uma dor intensa que
parecia irradiar de todos os seus poros. Mal havia pregado os olhos durante
aquele mês de cativeiro. Quando finalmente conseguia dormir, seu sono era
tão terrível e agitado, que ela acabava acordando ainda mais exausta e
nervosa.
Os dias e as noites eram terríveis. Era forçada a cavalgar durante horas a
fio, por estradas e trilhas esburacadas, pântanos infestados de mosquitos e,
nas poucas horas em que a deixavam dormir, como naquele momento, ela o
fazia no chão duro, tentando, sem sucesso, encontrar um pouco de conforto e
bem-estar. Sua barriga estava enorme e qualquer posição em que se deitasse
era extremamente desconfortável. Seus pulsos e tornozelos estavam
machucados e doloridos devido às cordas grossas usadas para amarrá-los,
principalmente o tornozelo esquerdo, agora preso ao solo por uma pesada
corrente. Tentou mudar de posição, fazer alguma coisa para tentar encontrar
um pouco mais de conforto, quando sentiu uma pontada aguda no ventre.
Soltou um grito de dor e de susto, então a pontada voltou a incomodá-la, ainda
mais forte do que a anterior.
Santa Mãe de Deus, não é possível... Será que...
Virou-se novamente e a dor retornou, dessa vez com uma violência
assustadora.
Deus misericordioso, sua mente gritou, em profundo desespero.
— Meu bebê vai nascer agora, nesse lugar horrível!

CAPÍTULO TRINTA E OITO

Brianna entrava e saía de seu estado de consciência, enquanto dores


terríveis castigavam-lhe o corpo. Já não tinha a mínima noção da hora, nem se
era noite ou dia. Só sabia com certeza que havia entrado em trabalho de parto
muito tempo atrás. Na verdade, mais de doze horas tinham se passado desde o
instante em que fora forçada a chamar por Laurette e implorar auxílio. A viúva
não parecia muito disposta a ajudar, mas, sabendo que seus próprios planos
dependiam do bem-estar da criança, assim como da sobrevivência da mãe,
concordara em lhe prestar socorro, depois de certa relutância. Mas mesmo
assim, exigira um régio pagamento pelos serviços prestados. Dando um sorriso
cheio de maldade, Laurette retirara os brincos de esmeralda e diamantes das
orelhas de Brianna e os guardara dentro do decote de seu vestido, a fim de
escondê-los dos olhares gananciosos dos índios renegados escondidos numa
tenda.
Então, após contar a Homem-Sedento-de-Sangue o que estava aconte-
cendo, a viúva sentara-se a seu lado e esperara. Sua única assistência, já que
ela própria não tinha filhos e não sabia como agir nessas horas, havia se
resumido em molhar os lábios de Brianna com um paninho de vez em quando
e colocar um cobertor indígena debaixo de seu corpo quando a bolsa de água
se rompera.
No entanto, ficara ao lado dela quase o tempo todo e, apesar de tudo,
Brianna sentia-se feliz por ter companhia naquela hora tão difícil de sua vida.
De dentro da tenda, vinham as vozes dos renegados, rindo, bebendo e jogando
sem parar.
Durante todas essas horas intermináveis, era difícil saber o que era

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sonho e o que era realidade. Conforme as dores foram ficando mais intensas,
sua mente começou a pregar-lhe peças estranhas, como se a loucura tivesse
tomado conta de todo o seu ser. Falava coisas sem sentido, delirava e debatia-
se, o suor escorrendo por seu rosto. Laurette Mayfield escutou-a falar algo a
respeito de uma tal Sally não-se-do-quê, que tinha amado tanto que preferira o
amor à liberdade. Também chamou pela mãe e pela irmã, dizendo em seguida
várias coisas incompreensíveis. Então, a viúva pegou algo que entendeu
direitinho:
— Ele não me ama, Aimée! — ela gritava. — Jesse só quer o filho! Ele me
trata bem por causa do bebê! Só do bebê! Ah, meu Deus do céu, não permita
que meu filho seja escravizado! Oh, mamãe, como é mesmo a palavra em
dialeto irlandês que quer dizer liberdade? Saor... é isso mesmo... Menina ou
menino, vai se chamar Saor... Liberdade... O dom mais precioso que alguém
pode ter na vida... Ah, Jesse, meu amor, por que você não me ama do jeito
como eu te amo?
Laurette Mayfield ouviu tudo aquilo com um sorriso de satisfação nos
lábios. Pela primeira vez em muitos meses, sentiu que a dor de ter sido
rejeitada por Jesse se acalmava ligeiramente. Então, ele não amava aquela
boboca desmiolada. Bem-feito! Só ficava com ela por causa do filho que iria lhe
dar! Claro. Só podia ser aquela a verdadeira causa de um homem lindo como
Jesse Randall ficar ao lado de uma pirralha magricela. Bem, se quisesse ser
muito sincera, aquilo não iria fazer grande diferença. Afinal, já existia outra em
sua vida... e que maravilhoso era aquele!
Dando uma última olhada para a garota que parecia estar inconsciente
de novo, Laurette levantou-se e se afastou dali. A noite sem lua estava escura,
iluminada apenas pela fogueira que os renegados tinham acendido e em volta
da qual estavam agora. Mas a viúva os ignorou e aproximou-se de dois outros
homens mais adiante, de pé junto aos cavalos.
— Alguma novidade? — perguntou Homem-Sedento-de-Sangue. — A
criança resolveu nascer?
— Não — respondeu Laurette. — E nem sei se vai resolver tão cedo. Eu
não entendo nada dessas coisas. Nunca tive filhos, nem sobrinhos. Como vou
saber a hora certa de uma mulher dar à luz?
— Bem, é melhor o negócio se resolver logo, ou então teremos problemas.
Não temos muito tempo a perder. O navio do traficante de escravos não deve
demorar a zarpar. Além disso, tenho certeza de que todos os índios cheroqui
estão atrás de nós!
Assim que Homem-Sedento-de-Sangue se afastou, Laurette virou-se para
a pessoa que estivera conversando com o índio.
— Não importa o que ele diga, não é, meu querido? Nós conseguimos! E
que bela vitória foi a nossa!
Honoré Dumaine deu-lhe um lindo sorriso e estendeu-lhe os braços.
— Tem toda razão, Laurette. Tem toda razão...
Ela encostou a cabeça em seu ombro.
— Senti tanta falta sua, meu amor! Já estava ficando maluca de andar
com esses índios mal-encarados, em meio a essa floresta escura! Você
demorou tanto a chegar, que eu não aguentava mais de saudade!
— Andei muito ocupado, minha doce Laurette... O governador Pinckney
está me dando cada vez mais trabalho e, além disso, ainda tenho meus

155
negócios particulares com Aaron Burr... Sabe como é dura a vida de um
homem importante, não é?
A viúva abriu-se num largo sorriso.
— E você é um dos homens mais importantes que conheço. Se Burr for
eleito presidente da América, certamente vai chamá-lo para ocupar a secretaria
de Estado... ou algo equivalente!
— É possível, minha querida. É possível... — Ele lhe deu um beijo na
testa e acariciou-lhe os cabelos escuros. — Agora me diga uma coisa, meu
bem... conseguiu arranjar aquelas ervas que lhe pedi?
Laurette deu um sorriso irónico.
— As ervas venenosas, você quer dizer?
— Claro que são as ervas venenosas! — ele exclamou, furioso. Então, seu
tom de voz ficou mais suave. — Ah, eu peço perdão, querida, mas você sabe
como isso é importante para o meu... quero dizer, para o nosso futuro...
— Sem dúvida — concordou Laurette. — Mas o problema é que eles
estão sendo terrivelmente teimosos quanto à isso. Homem-Sedento-de-Sangue.
— Ela sentiu um arrepio ao dizer aquele nome. — Me deixa nervosa! Não gosto
dele! Bem, ele me disse que só nos entregará as ervas, se a mercadoria
embarcar em segurança no navio do traficante.
Honoré Dumaine fez que sim com a cabeça.
— E por falar nisso, como vai a nossa mercadoria? Será que esse bebé
vai nascer logo ou não? Homem-Sedento-de-Sangue tem razão quando diz que
não temos tempo a perder. O que ouço por aí é que a tribo inteira dos cheroqui
está espalhada pela região, ajudando Jesse Randall na procura, embora eu
presumo que eles estejam somente à procura dos corpos.
Laurette soltou uma risada cheia de maldade e abraçou o amante com
mais força.
— Deixe que eles procurem o quanto quiserem. Os renegados apagaram
todas as marcas deixadas pelo caminho. Agora, quanto à vagabunda, sua
querida irmãzi-nha, acho que o negócio não deve demorar. Dentro de pouco
tempo, ela e seu bebê estarão a bordo de um navio a caminho do oriente, onde
será vendida a um marajá milionário ou a um xeique igualmente privilegiado.
Aí, ela será declarada legalmente morta e toda a fortuna da família Devereaux
irá diretamente para suas mãos!
— Exatamente, cara Laurette.
— Então, depois de algum tempo, eu apareço novamente, minha
memória finalmente recuperada, dizendo que fui salva por uma família de
pescadores e que vi Brianna se afogar a meu lado. Daí, você me pede em
casamento e seremos felizes para sempre! Ah, meu amor, vai ser tão bom
passar o resto da vida a seu lado, desfrutar da fortuna dos Devereaux...
Honoré Dumaine curvou a cabeça e cobriu os lábios da amante com os
seus. A viúva podia não ser exatamente uma companhia brilhante, mas, pelo
menos por enquanto, estava servindo para ajudar seus planos.
Um grito horrível e agudo cortou o ar da noite, fazendo com que ambos,
assustados, se separassem.
— Mas que diabo! — exclamou ele. — O que será que foi isso?
— Ao que parece, meu amor você está prestes a ganhar um sobrinho...
Outro grito, ainda mais pavoroso do que o primeiro. Até Laurette, em
meio a toda sua maldade, se compadeceu da pobre garota.

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— Vou até lá dar uma olhada no que está acontecendo.
Ao se aproximar da jovem que jazia no chão, após ter se despedido do
amante, Laurette Mayfield não conseguiu reprimir um grito de horror. Ali, em
meio a uma poça de sangue escuro sobre o cobertor embaixo das coxas
abertas de Brianna, havia uma forma humana ensanguentada que emitia sons
débeis, quase inaudíveis.
Um gemido saído da garganta de Brianna chamou a atenção da viúva
que, finalmente, pareceu sair de seu estranho estado de torpor e tomou uma
atitude. Apanhando uma faca que estava jogada ali adiante, limpou-a num
pedaço de pano e cortou o cordão umbilical da melhor maneira que conseguiu.
Então, lutando contra a náusea que revirava seu estômago, apanhou o bebê,
um menino, e enrolou-o numa manta que havia deixado ali perto, para quando
chegasse a hora.
— Brianna — ela chamou baixinho, ajoelhando-se diante da cansada
mamãe. — Você está me ouvindo? Acabou de ganhar um lindo menino!
Escutando tais palavras, Brianna abriu os olhos com muita dificuldade.
— Meu... meu filho? — ela sussurrou, passando a língua pelos lábios
muito ressecados.
— Sim, seu filho... como mesmo que você decidiu chamá-lo? Saor? Nome
estranho, não acha? Se fosse uma menina, poderia chamá-la de Sara.
Brianna estendeu os braços e segurou seu filho pela primeira vez. Seu
filho e filho de Jesse Randall, o homem que mais amava no mundo. Sim, o
nome Saor seria muito apropriado, apesar das condições subumanas em que
tinha nascido. Sorriu ao olhar para seu rostinho vermelho e enrugado e
aconchegou a cabeça do bebé junto ao peito. Observou a cabeça do menino
virar freneticamente, o instinto lhe dizendo que a hora do alimento vinha che-
gando. Por fim, ele achou-lhe o mamilo e começou a mamar. Uma enorme
sensação de prazer invadiu-lhe a alma e o corpo, ao pensar que, de seu peito
saía a seiva da vida que mataria a fome de seu filho. Então, exausta, Brianna
Devereaux Randall fechou os olhos e dormiu.
Os algozes de Brianna lhe permitiram um dia de descanso antes de
levantarem acampamento e partirem. Na verdade, ela achou que aquilo só se
deveu ao fato de os índios renegados terem bebido tanto uísque na noite an-
terior, que tiveram de tirar umas horas para dormir e esperar que o efeito do
álcool desaparecesse. Sentindo dores horríveis pelo corpo todo, ela foi colocada
em seu lugar habitual junto à sela de Homem-Sedento-de-San-gue. Só que,
daquele momento em diante, haveria um embrulhinho em seus braços para
lhe dar forças para prosseguir. Passava horas e horas olhando para ele, ten-
tando esquecer o fato de que cavalgava ao lado de um terrível renegado com
uma cicatriz no rosto, que pretendia vendê-la como escrava dali a pouco
tempo. Vestida com uma camisola velha de Laurette, ela fazia o possível para
aguentar aquela horrível provação que Deus havia colocado em seu caminho.
Nunca abria a boca para reclamar, mas rezava muito, principalmente para a
Virgem Maria, Mãe de Deus. Afinal, quem melhor que Ela para compreender as
angústias e aflições de uma mãe prestes a ser separada de seu único filho?
As semanas foram se passando, já que o tempo que haviam perdido por
causa do nascimento do bebé fizera com que se desencontrassem do
traficante, que partira em seu navio sem sua preciosa carga. Ao saber do acon-
tecido, Homem-Sedento-de-Sangue ficou tão furioso que, avançando em cima

157
de Brianna, deu-lhe um tapa tão forte no rosto, que o pequeno Saor quase lhe
caíra dos braços. Mesmo assim, Brianna recusou-se a derramar uma lágrima
sequer, mostrando uma coragem raramente vista entre as mulheres. Isso fez
com que os índios renegados começassem a encará-la com um pouco mais de
respeito, embora ninguém houvesse desistido da ideia de vendê-la para outro
traficante de escravas brancas.
Um mês se passou, um tempo de grande sofrimento para Brianna, cuja
exaustão e falta de alimento adequado haviam feito seu peso cair
drasticamente. Um dia, o grupo resolveu montar acampamento perto de um
rio, um lugar que ela achou vagamente familiar. Após receber permissão para
descer do cavalo, Laurette acompanhou-a até a água e entregou um sabonete
perfumado.
— Vamos, tome um banho — disse-lhe a viúva. — Você está cheirando
mal.
Brianna aceitou a oferenda e olhando para os lados a fim de ver se não
havia algum índio por perto, começou a tirar as roupas.
— Ande logo — ordenou Laurette. — E veja se não gasta muito sabonete.
É o último que tenho.
— O quê? É o último? Quer dizer que você tinha mais?
— É claro que sim. Ou você acha que eu ia passar sem sabonete
perfumado durante esse tempo todo? E não pense que resolvi virar boazinha
de uma hora para a outra, minha querida. Só estou lhe dando esse pequeno
presente porque você estava começando a incomodar com o seu cheiro, e,
além, disso, deverá estar apresentável na hora em que Homem-Sedento-de-
Sangue quiser vendê-la. Afinal, quem vai querer comprar uma mulher imunda
como você? Ah, é melhor você também dar um banho no menino.
— Ora, Laurette, eu venho fazendo isso o tempo todo, com a água que
vocês nos dão para beber. — Brianna entrou na água, fria como o gelo. — Além
disso, como vou poder banhar meu bebê nesta água gelada?
— Homem-Sedento-de-Sangue quer vocês dois limpos, ouviu bem? Trate
de lhe obedecer!
Ela então teve uma ideia.
— Aposto como os traficantes de escravos iriam odiar um bebê doente e
com febre. Será que você poderia esquentar um pouco de água na fogueira que
os homens estão acendendo?
A viúva deu um suspiro resignado.
— Tudo bem, tudo bem, eu vou falar com Homem-Sedento-de-Sangue.
Agora, trate de sair logo daí e enxugue-se. Vista esta camisola nova, porque a
outra está cheirando tão mal que vai ser queimada.
Brianna fez o que lhe foi mandado e entregou-lhe a barra de sabonete.
— Sabe de uma coisa, Laurette? Acho que estou reconhecendo esse
lugar. Não foi onde tive meu filho? Que estranho! Estamos andando em
círculos? Não estou entendendo nada e...
— Cale a boca! — exclamou a viúva. — Isso não é problema seu. Você
não passa de uma mercadoria, ouviu bem? Uma mercadoria que não pode
emitir opiniões! Agora ande logo e vista-se. Já está escurecendo, será que não
percebe?
Brianna vestiu a camisola que Laurette lhe entregava e começou a rezar
baixinho. Por favor, meu Deus, não permita que eu abandone a esperança.

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Estamos voltando para o mesmo lugar de onde viemos. Que Jesse não tenha
desistido de me procurar!
Talvez o fato houvesse acontecido, como frei Edouard teria dito, porque
Deus sempre ouve as preces sinceras das pessoas de bem, ou talvez tenha sido
apenas obra do destino, mas, naquela mesma noite, após Brianna e o bebê
terem adormecido, ouviu-se um som além da fogueira acesa pelos renegados e,
de súbito, Jesse Randall apareceu. O tumulto foi geral. índios se levantaram
correndo, a fim de apanhar suas armas. Jesse, porém, emitiu um assobio, que
fez com que Homem-Sedento-de-Sangue fizesse um sinal para que seus
companheiros desistissem. O que Jesse dissera, em código cheroqui, era que
tinha vindo desarmado e que queria fazer um negócio que seria muito lucrativo
para ambas as partes.
Naquele momento, Laurette, ouvindo a confusão, saiu de sua tenda e
gritou, ao reconhecer a figura alta junto à fogueira.
— Jesse!
Ele fez que sim com a cabeça, sorrindo ironicamente.
— Sim, sou eu, Laurette. Finalmente, achei você. Não precisa se
preocupar, porque não vim aqui para lutar. Quero apenas fazer um negócio.
— Que tipo de negócio? — perguntou Homem-Sedento-de-Sangue, na
língua dos índios cheroqui, aproximando-se dele.
— Em primeiro lugar, eu quero saber se meu filho e minha mulher
passam bem. Onde estão eles?
Vários pares de olhos se voltaram em direção à tenda ao lado da de
Laurette, respondendo-lhe a pergunta. Ele continuou a falar, com cuidado.
— Nesse caso, meus amigos, eu gostaria de fazer uma boa oferta por
ambos.
Jesse deu outro assobio e, das sombras da noite, surgiu uma figura
enorme e imponente.
— Festus! — exclamou a viúva, reconhecendo o negro.
— Esse homem é meu escravo — continuou ele, apostando no fato de
que Laurette não entendia uma só palavra da linguagem cheroqui — E minha
proposta é a seguinte: trocar esse poderoso e forte homem por minha mulher e
a criança.
Os olhos frios do renegado estudaram o negro à sua frente. E não
demorou muito para descobrir a verdade.
— Ei! Esse escravo é cego! — Homem-Sedento-de-Sangue cuspiu no
chão. — Você está me achando com cara de idiota?
Impassível, Jesse fez que não com a cabeça.
— Não, é claro que eu tinha todas as intenções do mundo de lhe contar
a verdade. Mas — ele encostou a mão no ombro do gigante negro — como pode
ver, trata-se de um homem muito forte, que, apesar do defeito físico, é um
excelente ferreiro. Sem dúvida ele vale muito mais do que uma mulher fraca e
um bebê, não é?
Homem-Sedento-de-Sangue deu mais uma olhada na montanha de carne
negra à sua frente, depois aproximou-se de seus companheiros, a fim de
conversar com eles. Ouviu-se uma nervosa troca de palavras, então o chefe dos
renegados voltou a atenção a Jesse, que esperava a resposta.
— Meus amigos e eu queremos o negro... e você também. Como é, aceita
vir conosco?

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Jesse deu um sorriso que não lhe chegou aos olhos. Então Brianna
estava mesmo viva! Estaria bem? E o bebê? Por que ela não aparecera ao ouvir
o som de sua voz?
Encarou Homem-Sedento-de-Sangue com olhos gelados.
— Você não acha que eu viria até aqui desarmado e sem proteção
alguma, acha? — Ele fez um gesto em direção à floresta. — Atrás dessas
árvores, há um verdadeiro exército de homens, a maioria índios cheroqui da
tribo de Flecha-Longa. Se eu não aparecer dentro de pouco tempo, eles estarão
prontos a atacar. — Jesse observou o renegado olhar para a floresta. — Você
deve estar se perguntando a troco de quê eu vim sozinho e sem armas, quando
há um batalhão atrás de mim. A resposta é simples. Não quis pôr em risco a
vida da mulher e da criança. Além disso, antes de negociar o que quer que
seja, quero ver minha mulher e o bebê, a fim de me certificar de que estão
mesmo bem. Qual é a sua resposta?
O chefe dos renegados afastou-se novamente a fim de confabular com os
amigos. Voltou momentos depois, com a resposta pronta, na ponta da língua.
— Meus irmãos e eu não confiamos em você. Achamos que, se lhe
dermos a mulher e a criança, não haverá nada que o impeça de mandar seus
aliados atrás de nós, por pura vingança.
— Isso não vai acontecer. Dou minha palavra. Eu só quero minha mulher
e meu filho.
— Negativo.
— Eu estou pedindo, Homem-Sedento-de-Sangue.
— Já disse que não! Mil vezes não!
— É a sua última palavra?
— Sim! Agora, suma daqui ou sua mulher e seu filho morrem da pior
forma possível!
A partir daí, as coisas se sucederam de forma tão intempestiva, que
Homem-Sedento-de-Sangue nem se deu conta do que estava acontecendo.
Num momento estava ali, parado, negociando com o homem branco que apare-
cera para resgatar a mulher e o filho. No outro, era imobilizado pelo negro
gigante, que espetava suas costas com um facão afiado. Mas se ele era cego...
— Ei! Esse não é Festus, é Vulcan! — exclamou Laurette, horrorizada.
— É isso mesmo — confirmou Jesse, virando-se para o grupo de
renegados. Se derem um só passo, seu chefe morre!
Completamente impotentes, Homem-Sedento-de-Sangue e seu bando de
arruaceiros viram o acampamento ser invadido por centenas de índios
cheroqui armados, dez dos quais, sob as ordens de Jesse, colocando-se em
volta da tenda onde estava Brianna e o bebê, a fim de protegê-los.
Brianna abriu os olhos, espantada e confusa. Aquela era a primeira vez
que dormia bem desde o dia do sequestro e, em meio a sonolência que ainda
sentia, percebeu que a tenda se abria e uma figura masculina vestida de preto
entrava.
Não. Não era possível. Sua mente estava lhe pregando peças! Era só o
que lhe faltava. Ia ser vendida como escrava e ainda por cima estava ficando
louca!
— Brianna! Minha Brianna querida!
Não dava para entender. Como? Alucinações falavam? Então o homem à
sua frente não era produto de sua imaginação. Era seu marido que viera salvá-

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la!
— Oh, Jesse! Graças a Deus!
Lá fora, os índios cheroqui da tribo de Flecha-Longa não tinham a
mínima dificuldade em exterminar Homem-Sedento-de-Sangue e seu bando de
renegados.
Mas ali, dentro da tenda, o casal em prantos que se abraçava não parecia
muito interessado no que acontecia no resto do mundo.
— Nós... nós temos um filho — sussurrou Brianna quando finalmente foi
capaz de falar. Eu lhe dei o nome de Saor, que quer dizer liberdade.
Os três continuaram abraçados durante muito tempo, até que os amigos
de Jesse entraram na cabana, anunciando que as maldades daquele bando de
renegados estavam encerradas para sempre.
E foi aí que a comemoração de verdade começou.

CAPÍTULO TRINTA E NOVE

— Mas não foi culpa minha! — exclamou Laurette Mayfield, apavorada.


— Jesse Randall apareceu por aqui com um exército de índios e levou Brianna
e o bebê! O que você queria que eu fizesse? Lutasse contra eles?
Honoré Dumaine a encarou com os olhos cheios de ódio. Não lembrava
em nada o amante terno e gentil de outrora.
— Sua vagabunda inútil!
— Não foi culpa minha, Honoré, eu juro!
O bastardo estava transtornado de tanta fúria.
— Você não passa de uma imprestável! Odeio você!
— Pelo amor de Deus, mon coeurl O que está acontecendo com você?
Será que já se esqueceu de tudo que fomos um para o outro?
Num gesto de raiva, Honoré a empurrou fazendo-a perder o equilíbrio.
— O que está acontecendo comigo? Será que perdeu o juízo? Eu perdi a
minha última chance de me apossar da fortuna da família Devereaux, isso sim!
Será que, além de maldosa, você também é burra? Sua vagabunda de terceira
categoria!
— Mas eu já falei que não foi culpa minha! Eles chegaram aqui ontem à
noite, mataram o bando todo e só não me mataram também porque consegui
fugir sem que ninguém me visse! Eu me escondi atrás de uma árvore e...
— Cale-se, sua imbecil! Não aguento mais ouvir sua voz!
Ele se afastou dela e foi conversar com o único índio do bando de
Homem-Sedento-de-Sangue que tinha conseguido sobreviver, escondendo-se
com Laurette atrás de uma árvore. A viúva observou os dois gesticularem ner-
vosamente e tentou adivinhar o que falavam. Como Honoré tinha mudado...
Onde estava aquele amante ardente que tanto prazer lhe dava na cama? Ah,
ele lhe fizera tantas promessas... E agora? O que iria acontecer?
A resposta veio antes do que esperava. Num determinado momento,
Honoré apontou para ela e para o índio, concordando com a cabeça, tirou um
pacote do bolso. Laurette logo percebeu do que se tratava. As ervas venenosas
que Honoré tanto queria! Então, atónita, viu o amante montar em seu cavalo,
enquanto o índio aproximava-se dela com uma expressão estranha nos olhos.
E aí compreendeu tudo tinha sido trocada pelo veneno!
— Honoré! — ela ainda gritou. — Aonde você vai? E eu? Volte!

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O renegado, porém, calou suas palavras com um beijo na boca.
— Agora você é minha, meu bem. Vamos nos divertir um pouco? Aposto
que você vai gostar das coisas que pretendo fazer em seu corpo...
Eles estavam no quarto da casa da fazenda de Jesse, onde Brianna tinha
dormido por mais de dezoito horas consecutivas. Então, um médico veio
examiná-la e examinar o bebé e o diagnóstico havia sido o melhor possível.
Mãe e filho, apesar de todas as privações sofridas, passavam bem. O bom
doutor havia acabado de se retirar, deixando marido e mulher a sós. A
felicidade que sentiam era tanta, mas tanta, que pareciam estar flutuando no
ar. Ambos tinham dificuldade para compreender que aquilo tudo estava
mesmo acontecendo. Parecia um sonho... Um sonho maravilhoso e
inesquecível...
— Eu tenho uma coisa para lhe dizer, Brianna — Jesse lhe disse,
enlaçando-lhe a cintura.
Seu rosto agora descansado abriu-se num largo sorriso.
— É mesmo? O que é?
Jesse Randall disse então as palavras que estavam presas em sua
garganta havia tanto, tanto tempo.
— Eu te amo, Brianna Devereaux Randall. Eu te amo!
A princípio, ela pensou que não tivesse ouvido direito, que aquelas
palavras fossem produto do sonho no qual ela ainda parecia flutuar. Não era
possível! Será que...
— O que foi que você disse, Jesse?
— Eu disse que te amo, mulher da minha vida! Como nunca pensei que
fosse amar ninguém! Eu te amo! Eu te amo!
Ela começou a gritar, rindo e chorando ao mesmo tempo.
— Eu também te amo, Jesse! Descobri a verdade há vários meses... mas
não tive coragem de lhe confessar! Meu Deus, eu pensei que o amor fosse
sinônimo de prisão e falta de liberdade, mas percebi a tempo o quanto estava
enganada! O verdadeiro amor liberta, não prende!
— Também penso da mesma maneira, querida. Mas por que você não
me contou antes?
— Porque tive medo. Achei que você ainda não houvesse esquecido
Deirdre. Ela era tão bonita, tão perfeita, que...
— Ah, minha princesa, que bobagem! A afeição que eu senti por sua
irmã, que era uma mulher extremamente culta e inteligente, terminou muito
antes daquele dia mágico em que eu a conheci. O amor que me liga a você é
infinitamente maior ao que um dia me ligou a ela...
— Eu pensei que você só me tratasse bem por causa do bebê...
— Ah, Brianna, Brianna, minha doce e ingênua mulher... É claro que eu
queria o bebê. Mas queria você dez vezes mais!
Abraçados, os dois caíram na cama, beijando-se, acariciando-se,
livrando-se das próprias roupas. O desejo era tanto, que não podiam mais
esperar. Sabendo que ela estava tão pronta quanto ele, Jesse a penetrou,
levando-a a alturas nunca antes atingidas.
Quantas horas ficaram ali, abraçados, curtindo os doces momentos de
depois, nunca souberam dizer. Era como se o tempo houvesse parado,
marcando para sempre aqueles momentos tão preciosos de suas vidas.
— Eu te amo, Brianna — disse Jesse, conseguindo finalmente achar sua

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voz. — Eu te amo com toda a minha alma e meu coração.
Ela sabia que aquilo era verdade. E retribuía-lhe aquele sentimento com
uma intensidade que chegava a doer. Como amava aquele homem que
finalmente lhe ensinava que amor e liberdade eram sinónimos. Ela era uma
mulher livre, como sempre desejara ser.
Jesse e Brianna adormeceram um nos braços do outro, sentindo uma
felicidade que nunca pensaram poder existir.

CAPÍTULO QUARENTA

Corria o mês de agosto e a fazenda de Jesse Randall estava mergulhada


num rodamoinho de atividade, por causa do grande baile que aconteceria dali
a alguns dias.
Brianna e Jesse Randall sentiam que tinham muitas coisas a comemorar
naquele fim de verão de 1793, e todos aqueles que os rodeavam sentiam o
mesmo. A felicidade em seus corações era tão grande que contagiava amigos e
parentes que vinham visitá-los.
Era tempo de celebração, era tempo de amor. Era tempo de paz.
Thomas Jefferson confirmara novamente sua presença e seria recebido
como convidado de honra da festa. Sua filha Martha e o genro Thomas Mann
Randolph também eram esperados com muita ansiedade.
Frei Edouard também escrevera dizendo na longa carta ao casal, dizendo
que nem uma catástrofe mandada pelos céus iria impedi-lo de comparecer ao
lar dos Randall. Novamente, a nata da sociedade da Carolina do Sul e da
Virgínia diria presente no que já estava sendo chamado de acontecimento
social do ano. Jesse e Brianna estavam ficando conhecidos como os mais
glamourosos anfitriões do sul do país. Os convites para suas fêtes eram
disputados por todas as personalidades de destaque da região.
Se havia uma só nuvem estragando aquele céu azul, ela se chamava
governador Charles Pinckney que tinha, mais uma vez, pedido para levar
Honoré Dumaine à festa, como seu convidado. Sem saber como negar, Jesse e
Brianna acabaram dizendo que sim.
Laurette Mayfield nunca mais fora vista. Na noite do resgate, a viúva dera
um jeito de fugir e ninguém sabia qual teria sido seu fim. Jesse no entanto,
ainda sonhava com o dia em que pudesse encontrá-la, a fim de metê-la atrás
das grades pelo resto de sua vida. Porém, no dia do baile, tais pensamentos
estavam longe da mente de quem quer que fosse. Lá em cima, em seu quarto,
Jesse e Brianna passavam alguns momentos com seu filho Saor, antes que
uma das criadas aparecesse para colocá-lo no berço.
— Acho que os olhos dele vão continuar azuis, como os seus — comentou
Brianna, estudando o rosto do bebê. Ele era a cara do pai.
Jesse deu um sorriso.
— O que eu acho é que ele está muito gorduchinho, isso sim. Se Saor
continuar a mamar desse jeito, vou ser obrigado a lhe arranjar uma dieta!
Uma batida na porta interrompeu a risada de ambos. Era a criada a fim
de levar o bebê para o quarto dele e avisar que os primeiros convidados já
estavam chegando.
Quando a moça se retirou com o menino nos braços, Jesse abraçou a
mulher e sussurrou, com voz rouca.

163
— Por mim, eu ficaria aqui, a seu lado, e esqueceria essa história de
festa. Que tal deixarmos os convidados lá embaixo e nos divertirmos um
pouco?
— Sr. Randall, comporte-se! — Ela caiu na risada. — Vamos descer
agora, Jesse. Quando o último convidado for embora, nós voltaremos para cá...
e aí teremos todo o tempo do mundo.
Marido e mulher deixaram o quarto de mãos dadas.
Chegando ao salão de baile, começaram a cumprimentar os inúmeros
amigos que estavam ali para prestigiá-los. Então, um convidado muito especial
fez com que Jesse e Brianna dessem gritos de alegrias e corressem para
abraçá-lo.
— Frei Edouard! Que saudade!
— Meus filhos! Nesse tempo todo de separação, não houve um só dia em
que eu não tenha pensado em vocês! Como vai o bebê?
— Vai muito bem — responderam os dois ao mesmo tempo.
— Ele é a cara de Jesse! — contou Brianna. — É a criança mais linda
que eu já vi!
— Nós queremos que ele seja batizado pelo senhor — acrescentou Jesse.
— É só marcarmos a data!
Outros convidados foram chegando, mais risos, mais abraços.
Às nove horas da noite, mais de trezentas pessoas lotavam o lar dos
Randall participando de uma festa de extraordinária beleza. Os músicos
tocavam, copeiros e copeiras circulavam entre os convidados servindo bebidas
e delícias da melhor qualidade.
Na biblioteca, o governador Pinckney conversava animadamente com
James Carlisle e sua mulher Johanna. Honoré Dumaine, tomando sua quinta
taça de vinho, aguardava ansioso a chegada do convidado de honra, Thomas
Jefferson. Tudo era alegria, tudo era riso e divertimento.
Como fazia questão de continuar a amamentar o filho, uma hora depois,
Brianna subiu até o quarto a fim de cumprir a doce obrigação materna.
Quando a criada voltou a fim de colocar o pequeno Saor no berço pouco
depois, ela foi até a frente do espelho examinar seu próprio reflexo, antes de
voltar à festa. O que viu foi uma moça bonita, transpirando felicidade e saúde.
Christie tinha razão. O ato de amamentar não estragara seu corpo e seus
seios. Ao contrário. Havia-os deixado ainda mais bonitos. Passou uma escova
nos cabelos soltos que emolduravam seu belo rosto e estava pronta para
descer novamente, quando um barulho estranho vindo do terraço que dava
para o jardim chamou-lhe a atenção.
Mon dieu, será que há alguém aí?
Então a porta de vidro se abriu com violência e o que Brianna viu fez com
que levasse a mão à boca, no mais completo espanto.
Ali, à sua frente, estava uma mulher que lhe parecia vagamente familiar,
mas cujo estado lastimável dificultava o reconhecimento. Cabelos
incrivelmente sujos estavam colados num rosto que mais parecia uma massa
de feridas e cicatrizes. O corpo, coberto por trapos rasgados, revelava maus
tratos e pouquíssima comida. Estava descalça e trazia uma faca nas mãos.
Então, de súbito, Brianna soltou um grito horrível. A criatura que havia
invadido seu quarto era...
— Laurette! Meu Deus, o que fizeram com você?

164
Um som que nem parecia humano saiu da garganta da viúva e ela
começou a soluçar.
— O culpado de tudo foi Honoré! E aquele índio chamado Leão-Maldoso!
— O quê? Honoré fez isso? Pelo amor de Deus, Laurette, conte-me o que
aconteceu!
— Você se lembra da noite do resgate? Pois bem, eu e aquele índio
conseguimos nos esconder. Porém, no dia seguinte, Honoré apareceu e ficou
tão furioso com o fato de você ter escapado, que me vendeu para Leão-
Maldoso! Ele me vendeu da mesma forma que nós iríamos vender você. Só que
no meu caso, foi mil vezes pior, porque eu não tinha nenhum bebê para me
proteger!
A cabeça de Brianna girava.
— Laurette... então Honoré estava com você naquele plano imundo? Ele
também quis me sequestrar?
— É claro que sim.. Seu meio-irmão planejou tudo, detalhe por detalhe, a
fim de poder ficar com a fortuna dos Devereaux...
— Não!
— Pode acreditar em mim... Ele é um homem louco, completamente
louco, cuja mente só sabe tramar e fazer o mal...
— Mas Laurette, se você foi vendida ao índio, como conseguiu escapar?
A viúva soltou uma risada pavorosa, que falava mais de loucura do que
de maldade.
— Eu o matei... aproveitei um momento de distração daquele porco
imundo e cravei essa faca nas costas dele... Ah, chérie, que prazer enorme
senti fazendo isso... então, vim para cá assim que pude, porque precisava
muito lhe falar!
Naquele instante, um tumulto lá fora avisava que a carruagem de
Thomas Jefferson acabava de chegar. A viúva correu para o terraço, então
voltou a encarar Brianna.
— Falar? Mas o quê, Laurette? Eu não estou entendendo nada!
— Olhe, eu tenho pouco tempo para explicar. Ouça com atenção.
Jefferson, seu marido e talvez outros convidados estejam correndo enorme
perigo!
O sangue de Brianna fugiu-lhe do rosto.
— Perigo?
— Sim. Você sabe pelo quê Honoré Dumaine me vendeu? Por um
punhado de ervas venenosas, que deverão ser colocadas na bebida de Thomas
Jefferson nessa noite! Foi tudo planejado para que a culpa recaisse sobre seu
marido. Honoré também forjou cartas e documentos sugerindo que Jesse é um
agente duplo, simpatizante da causa de Hamilton e dos federalistas. Isso tudo
seria deixado aqui nessa noite para que pudessem ser facilmente achados,
quando Jefferson morresse!
Quando se deu conta, Brianna corria para a porta em desespero.
— Fique aqui, Laurette. Vou mandar alguém cuidar de você. Agora,
preciso descer antes que aconteça uma tragédia!
Ela desceu a escadaria com tanta velocidade, que quase tropeçou nos
degraus. Ao entrar no salão de baile, avistou, ali ao longe, Jesse estender uma
taça de vinho ao ilustre visitante.
— Não tome essa bebida, sr. Jefferson! — ela gritou. — Há veneno nesse

165
copo.
Quando Honoré ouviu tais palavras, compreendeu imediatamente que
seu plano fora descoberto. Então, tirando uma pistola do bolso, agarrou
Brianna a fim de usá-la como escudo humano.
Ouviram-se gritos, muitos gritos, e a taça de Jefferson caiu no chão.
Então, a voz medonha de Honoré ecoou pela sala inteira.
— Todos quietos! Se ficarem exatamente onde estão, a sra. Randall não
será machucada. Vou levá-la como refém até Charleston, onde pretendo deixá-
la assim que conseguir embarcar para fora do país!
Involuntariamente Jesse deu um passo à frente, fazendo com que o
bastardo também levantasse a pistola para a cabeça de Brianna.
— Não tente bancar o engraçadinho, ou eu meto uma bala na testa de
sua mulher!
Sentindo-se completamente impotente, Jesse recuou. Não havia nada a
ser feito. Aquele homem era completamente insano!
Brianna, imóvel, lançou-lhe um olhar que lhe pedia calma. Afinal,
Honoré prometera libertá-la, não é? Mas então, lembrou-se das palavras de
Laurette dizendo que havia sido ele o mentor intelectual do seu sequestro. Se
Honoré pretendia vendê-la naquela época, poderia muito bem tentar a mesma
coisa agora!
Meu Deus, não! Não permita que isso aconteça!
Com os olhos cheios de terror, pensou em Jesse, em seu filhinho Saor!
Não! A vida não podia ser tão cruel com ela! Não!
Então, de súbito, como num sonho, ela sentiu que ele a largava. Ainda
sem entender o que acontecia, ouviu o barulho da pistola cair no chão. Virou-
se, assustada, e viu o corpo de Honoré que jazia logo ali, a faca de Laurette
Mayfield enterrada em suas costas. A viúva tinha um sorriso feliz em seus
lábios. Atônita, Brianna observou-a debruçar-se sobre o cadáver e sussurrar
baixinho:
— Que pena que eu tive de fazer isso, mon amour. Eu te amava tanto...
Você foi o melhor homem que eu tive na vida...
Então, Jesse corria para abraçar a mulher, enquanto que os convidados
começavam finalmente a reagir ao choque do que tinha acontecido. Mulheres
gritavam, homens corriam, alguém desmaiou. Em meio a todo esse tumulto,
ninguém percebeu quando Laurette Mayfield apanhou a pistola do chão,
apontou-a para a própria cabeça e puxou o gatilho.

EPÍLOGO

Brianna e Jesse estavam em Le Beau Château, a fim de descansar por


alguns dias e se refazer do susto terrível vivido naquela noite de horror. Ambos
passeavam a pé pela alamedas floridas e arborizadas, quando ele virou-se para
ela, dizendo:
— Sabe que dia é hoje, meu amor?
— Sei — respondeu ela. — Hoje faz um ano que meu pai foi enterrado.
— E faz também um ano do dia em que realmente nos conhecemos!
Que ano fora aquele. Um ano de descobertas, de medo, de aventuras e de
emoção. Uma ano de amor.
Agora, era tempo de alegria. A dor e a tristeza já haviam ficado para trás.

166
Dois dias atrás, quando haviam chegado a Le Beau Château, Brianna e Jesse
haviam levado o pequeno Saor à colina onde os corpos de Etienne, Aileen e
Deirdre Devereaux descansavam em paz. Ficaram algum tempo ali, rezando
por suas almas e Brianna deixara três buques de flores brancas diante do
túmulo. As lágrimas, porém, não apareceram para assombrar sua alegria.
Ficara sabendo, no dia do batizado de Saor, que o último desejo de seu pai
havia sido satisfeito. De onde estivesse, ele certamente estaria abençoando seu
casamento com Jesse, algo tão forte e mágico que era como se os deuses
tivessem conspirado para uni-los desde o começo dos tempos!
Agora, andando lado a lado, de mãos dadas, eles compreendiam que
jamais haviam conhecido tanta felicidade.
— Eu te amo, Jesse — ela sussurrou, encostando a cabeça em seu
ombro. — Nunca pensei que pudesse gostar de alguém com tanta intensidade.
Às vezes, eu acordo no meio da noite, achando que você não é real, que tudo
isso não passa de um sonho...
— Nossa história de amor é mesmo um sonho, Brianna querida. Mas um
sonho que se tornou realidade.
— Sabe para quem eu escrevi outro dia? Para madame Méziêres, a
diretora do colégio em Paris. Contei a ela o quanto sou feliz e lhe disse que, se
um dia ela quiser visitar a América, nós a receberemos em casa de braços
abertos!
— Você gostava muito dela, não é?
— E como! Ela foi uma segunda mãe para mim e para Aimée, que,
pobrezinha, nunca teve uma família.
Jesse deu um sorriso.
— É verdade que Aimée nunca teve uma família... As coisas, porém,
estão começando a mudar.
Brianna olhou para ele, espantada.
— Como assim?
Jesse fez um gesto com a cabeça em direção a uma árvore mais adiante.
— Olhe só o que temos ali. Nossa querida Aimée Gitane, fazendo um
piquenique com Vulcan Liberdade. Há um bom tempo que eu venho achando
que esses dois estão namorando... O que você acha?
Brianna caiu na risada.
— Você é mesmo muito observador, querido. Aimée me contou ontem.
Vulcan a pediu em casamento.
Jesse arregalou os olhos.
— É mesmo? E ela?
— Aceitou, é claro. Os dois estão muito apaixonados. Você sabe que ela
está lhe ensinando francês? E Vulcan está aprendendo com uma facilidade
incrível!
— Vamos lá falar com eles?
— Claro.
Vulcan levantou-se ao vê-los se aproximar.
— Olá, patrão. Olá, Brianna. Aceitam um croissant de queijo? Foi Aimée
que preparou com a ajuda de Mathilde.
Jesse aceitou o salgado oferecido e deu uma mordida.
— Hum! Que delícia! Aimée é uma cozinheira e tanto, não é?
Vulcan deu um sorriso malicioso.

167
— Não é só na cozinha que ela é boa...
Aimée ficou vermelha.
— Vulcan! Pare com isso! Onde estão seus modos?
Os quatro caíram na risada.
Então, Jesse voltou a ficar sério.
— Vulcan e Aimée, Brianna acabou de me contar que vocês pretendem se
casar.
— Isso mesmo — confirmou o negro. — E o senhor e Brianna serão os
padrinhos. Quero dizer, se aceitarem o convite.
Jesse franziu a testa, fingindo estar muito pensativo.
— Bem, eu aceito... mas padrinhos costumam presentear os noivos... e
eu estou tentando adivinhar qual seria o presente ideal para vocês...
— Não, não! — exclamou o ex-escravo. — Nós não queremos presentes!
Queremos ter apenas a honra de tê-los a nosso lado, no momento em que frei
Edouard celebrar a cerimónia! Por favor, esqueça essa história de presente e...
— Já sei! — interrompeu Jesse. — Acabei de pensar em algo. Decidi o
que vou dar ao lindo casal.
Brianna estava curiosa.
— Vamos, Jesse, fale logo! O que você tem em mente?
Ele encostou o braço no ombro do negro.
— Você é um grande amigo, Vulcan. Você e seu irmão Festus estiveram a
meu lado nos momentos mais difíceis de minha vida. Tudo que lhes der vai ser
pouco, diante do que fizeram por mim.
Vulcan sorriu, os dentes muito brancos fazendo contraste com a pele
escura.
— Que nada, patrão. O senhor já me deu o bem mais precioso que existe
nesse mundo: a liberdade!
A curiosidade de Brianna ainda não tinha sido satisfeita.
— Ei, vocês dois, querem parar com esse falatório todo? — Virou-se para
o marido. — Jesse, qual é o presente que você vai dar para Aimée e Vulcan?
Pare com esse suspense todo!
Jesse deu um sorriso.
— Eu estava pensando em algo como terras...
— Terras? — Aimée balançou a cabeça. — Não, não precisa, Jesse. Não
queremos presente algum, apenas a honra e a alegria de termos vocês como
amigos pelo resto de nossas vidas!
— Já está decidido, Aimée. Nosso presente de casamento será um bom
pedaço de minhas terras, para que vocês comecem a montar sua própria
fazenda.
— Mas patrão, eu...
— Nada de "mas", Vulcan Liberdade. Eu só espero que, mesmo com sua
própria fazenda para cuidar, ainda tenha tempo de ser meu capataz! Não
posso de me dar ao luxo de perder o melhor funcionário que alguém jamais
sonhou em ter!
Aimée virou-se para Brianna.
— Ah, ma chérie, seu marido perdeu o juízo! Eu juro que não quero
presente algum e...
— Esqueça, Aimée. Jesse tem toda a razão. Vocês dois são amigos
maravilhosos, sem os quais nossas vidas não seriam as mesmas. Uma fazenda

168
só é pouco, comparada com o tamanho da afeição e do carinho que sentimos
por vocês.
A cigana a abraçou.
— Muito obrigada, mon amie, muito obrigada! O destino juntou nossas
vidas, que estarão unidas para sempre, até o fim de nossos dias!
Os quatro amigos se abraçaram, rindo e chorando ao mesmo tempo.
— Ei! Posso saber o que está acontecendo aqui? Estou ouvindo soluços e
risadas!
Era Festus que vinha se aproximando, o gato preto em seu ombro.
Ambos eram amigos inseparáveis.
— Venha participar de nossa alegria! — exclamou Brianna, segurando o
braço do negro e fazendo-o aproximar-se do grupo.
— Meu irmão — Vulcan começou a contar, enxugando uma lágrima. — O
patrão vai me dar uma fazenda de presente de casamento!
O cego mal acreditou no que ouvira.
— Uma... fazenda! Meu Deus! Patrão, eu...
— Vou pedir um favor a vocês dois, irmãos Liberdade. Não me chamem
mais de patrão. Sou seu amigo. Amigo para sempre, ouviram bem?
Os cinco continuaram ali, conversando durante muito tempo, fazendo
planos para o futuro.
Quisera Deus ou o destino, que suas vidas se cruzassem e continuassem
a trilhar os mesmos caminhos, até a hora final.
— Olhem! — exclamou Aimée, apontando para o telhado de Le Beau
Château, onde uma águia enorme havia pousado.
Todos, com exceção de Festus, voltaram os olhos naquela direção.
— Uma águia pousou no telhado — Brianna explicou ao negro cego. —
Uma linda e imponente águia que, segundo a lenda contada pelos índios
cheroqui, é o símbolo máximo da liberdade!

Fim

169

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