LITERATURA
AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 10
Afonso Pinhão Ferreira
professor na UPorto
Acerca da ANTOLOGIA do pensamento
geopolítico e filosófico russo
(século IX-XXI)
C
onvidado, apresentei na Póvoa de Varzim, a
Antologia do Pensamento Geopolítico e Fi-
losófico Russo, destacando aquilo que é ób-
vio. O livro é extenso, é imenso, mas é também ex-
tensa e imensa a formação e a dimensão da Rússia,
além da sua importância geopolítica no panorama
mundial. Por isso, comecei por classificar a obra co-
mo proporcional.
Só pessoas com um trajeto curricular com qualidade
demonstrada, poderiam brindar a comunidade com
um livro trabalhoso e com contéudo tão categoriza-
do. É o caso do Doutor José Milhazes, distinto corres-
pondente e comentador de política internacional e
Comendador da Ordem de Mérito da República Por-
tuguesa, a quem se reconhece preocupação com os
destinos da sociedade humana, o que demonstra
no dia a dia, com reconhecida humildade. Formado
na Universidade de Moscovo em 1984, como muitos
dos pensadores russos que participam nesta antolo-
gia, doutorou-se em 2007, na Universidade do Porto.
O segundo autor, o Doutor João Domingues é licen-
ciado pela Universidade Autónoma de Lisboa e pós-
-graduado e Mestre em Relações Internacionais.
O livro condensa uma obra literária notável no âm-
bito histórico-social, soberbamente acreditada com
escritos argumentativos de feição político-filosófica,
razão bastante, aliás, para que me seja grata a exorta-
ção da sua leitura.
Importa declarar que quando arrecadei o convite pa-
ra apresentar a obra, não calculava nem a extensão
nem a abrangência do conteúdo temático. E, só não
optei pela pronta desistência, pela circunstância da
leitura e sequente análise se ter revelado um inco-
mensurável deleite, como ainda o facto de ter perce-
bido que poderia enriquecer os cofres da minha cul-
tura.
Certamente concordarão comigo que, é cada vez
mais patente, a existência de dois mundos diferen-
tes: um pensado e um impensado. O mundo pensa-
do está cada vez menos habitado, enquanto o im-
pensado se encontra sobrelotado. Tal circunstância
torna urgente provocar uma migração do mundo im-
pensado para o pensado, o que, certamente, só se al-
cançará promovendo a educação dos residentes do
mundo impensado. Ora, é este o propósito das mani-
festações culturais, como disso é exemplo a apresen-
tação desta coletânea.
E, quando cogitei a forma de enaltecer este ensaio
político-filosófico ora editado, afastei prontamente a
ideia de o tentar relatar, de ensaiar descrevê-lo, quer
pela exiguidade que a sensatez do tempo implica,
quer ainda porque é difícil e seria arrogante sinteti-
zar o pensamento político de um país, apresentado
com uma perspetiva sincrética. Comentar uma obra
literária não deve ser resumir o seu conteúdo, em-
prestando aos outros a nossa visão e não a que legi-
timamente pertence aos autores.
A apresentação da obra mais não seria que uma con-
ceção de cariz pessoal, certamente carregada daque-
la parcialidade que caracteriza cada um de nós. Re-
tiraria contexto ao texto, enquanto anularia a vonta-
de do futuro leitor para ajuizar, ele próprio, o pensa-
mento geopolítico e filosófico que edificou ao longo
de um milénio, a Rússia.
Ora, não relatar, não descrever ou não sintetizar o mio-
lo deste doce literário, não significa de todo que não o
tenha provado. Pelo contrário, saboreei a sua textura e
petisquei a sua profundura, numa intensa e profícua
apreciação, que fiz questão de reunir em resumo pró-
prio para consulta, se um amanhã o consentir.
“Antologia do pensamento geopolítico e filosófico
russo”: a descodificação do título implica alguma re-
flexão, o que de imediato convocou os meus senti-
dos. É indiscutivelmente elucidativo, sobretudo para
aqueles que habitualmente se passeiam pelas ruas
da leitura e que visitam amiudadamente a mãe cul-
tura. Todavia, para quem caminha nas ruelas do ime-
diatismo, é título que afasta, é etiqueta que assusta, é,
porventura, um rótulo a evitar. Dito de outra forma,
o tema só por si gera uma elite de interessados, uma
nata de leitores já consagrados, leitores que calcam
sistematicamente os terrenos da cultura, que trilham
a via da filosofia ou que percorrem a crítica da cogita-
ção política. Mas eu que li, reli e resumi o texto que li-
quefaz aquele título douto, posso garantir-vos que a
prosa é de leitura agradável, sendo o conteúdo deve-
ras aliciante, envolvente e atrativo.
Digamos que os autores conseguiram descomprimir
a complexidade do tema, dando à vivência histórica
da Rússia uma aclimatada progressividade. Verifica-
-se uma tradução onde se nota que existiu por parte
dos insignes autores, uma inquietação com o senti-
do de amaciar, embelezar e aromatizar a leitura dos
escritos e dos pensamentos daqueles que durante
mais de mil anos, tornaram a questão russa sempre
atual.
Quem ler esta obra, fará uma viagem no comboio
do tempo, onde cada pensador é um passageiro
que abre uma das muitas janelas daquele compri-
do transporte temporal. O comboio começa com a
origem do pensamento russo, sendo Nestor, o Cro-
nista nascido em Kiev em 1056, que abre a primeira
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janela, e termina com Vladimir Putin e Mikhail Gor-
batchov. Perspetiva-se outra viagem, talvez com ou-
tro meio de transporte para outros lugares e com ou-
tros passageiros, quem sabe. O comboio passa pelo
feudalismo, com uma visita panorâmica bicentená-
ria ao liberalismo depois de Pedro o Grande. Faz de-
pois uma passagem breve pelo socialismo com uma
paragem demorada no comunismo, e termina com
a aferta de um bilhete que poderá dar acesso ao eu-
rasismo enquanto poposta de futuro. Trata-se de um
passeio da Ásia à Europa e da Europa à Ásia, no com-
boio do tempo russo, em dez carruagens (leia-se ca-
pítulos), onde se abrem trinta e duas janelas (leia-se
pensadores), umas mais abertas e outras mais fecha-
das. É uma excursão arejada, com alguns ventos vin-
dos do Oriente e outros procurados no Ocidente. Por
várias vezes, os passageiros tentam avisar que a tre-
pidação sentida no trajeto do comboio pode levar ao
descarrilamento, e sugerem ideias para dar um ru-
mo certo aos carris da Rússia. Convido-vos a compra-
rem o bilhete e a embarcarem neste comboio tempo-
ral conduzido pelos maquinistas especializados, Jo-
sé Milhazes e João Domingues.
Há, de facto, múltiplos fundamentos para adquirir e
ler esta obra.
Em primeiro lugar, trata-se de um livro bem estrutra-
do e redigido, onde estão plasmadas as convicções
dos pensadores numa base antológica. Trata-se de
uma coletânea, onde há a construção de um diálo-
go que se alicerça na contraposição e contradição de
ideias dos pensadores e políticos que foram edifican-
do as diversas bases concetuais da sociedade russa.
Às ideias, estratégias, certezas e inseguranças de um
dado pensador, filósofo, escritor ou político, contra-
põem-se as de outro, às vezes totalmente antagóni-
cas. Pois bem, é precisamente esta permanente dua-
lidade o que torna o livro fascinante.
Por exemplo, lemos o moscovita e eslavófilo Alek-
sei Khomiakov e compreendemos a sua preocupa-
ção com a ocorrida imitação russa da civilização eu-
ropeia ocidental, e, depois, lemos o moscovita e oci-
dentalista Piotr Chaadaev e percebemos as vanta-
gens da assimilação da cultura europeia para o po-
vo russo. Ou seja, os autores do livro prendem os lei-
tores, ao inocularem uma enzima dialética no texto.
De facto, ao assimilarmos os argumentos que supor-
tam uma dada posição, sentimos de imediato a ne-
cessidade de conhecer os fundamentos da eventual
contraposição. Os autores autorizam e emprestam a
arte da dialética aos seus escritos, provocando os lei-
tores a uma incessante pesquisa. O livro irradia a ar-
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AS ARTES ENTRE AS LETRAS
te da dialética, sendo os conceitos, os juízos, as con-
vicções, as estratégias nos planos religioso, filosófico,
político e socioeconómico, apresentados nos escri-
tos próprios dos pensadores numa tradução assina-
lavelmente legível.
Trata-se de uma coleção de obras curtas bem esco-
lhidas e sequenciadas, que faz justiça à diversidade
que caracteriza o ser humano. Um tratado à inteli-
gência primata que nos determina, citando o filósofo
Mark Rowlands. Um compêndio onde se gladia a dis-
simulação que é própria dos seres humanos, onde
cada pensador tenta convencer o leitor da sua ver-
dade, sendo esta uma inverdade para o seu opositor,
por decerto. E é, justamente, esta procura da agulha
da verdade no palheiro da inverdade, feita ao longo
da história pelos pensadores, que gera as estratégias,
as doutrinas, as decisões, enfim, a filosofia e a políti-
ca que comanda o mundo social. E na Rússia não foi
diferente, apesar de alguns dos escritores o suporem,
querendo dar-lhe um carácter diferenciativo que va-
lorizasse a identidade nacional.
Friedrich Nietzsche, o grande pensador natural da
Prússia, escreveu com clarividência que “a astúcia é
melhor do que a violência”. Lembrei-me deste pen-
samento quando, no livro, li os escritos que nos le-
gou Nikolai Danilevski. Diga-se que é quase um trata-
do, aquela frase de alto significado. Tal sentença traz
apensa uma extrapolação política que nos diz que a
astúcia sendo para proteger da crueldade insana, vi-
ra argúcia se for para obter tranquilidade humana.
Dito de outra forma, será sagaz e eficaz a mentira que
trás a paz. Usa-se a diplomacia como via para evitar a
violência e afiançar a paz na vivência. Esta é a via de-
fendida por muitos dos pensadores russos que via-
jam neste comboio antológico, quando, a exemplo
de um passado mais espiritual e menos guerreiro, re-
comendam a expansão da Rússia pela via pacífica
em contraposição à obtida pela conquista, cujo para-
digma recai sobre os europeus ocidentalistas.
Ora, desde a ponderação havida na edificação do
Império Russo pelo príncipe Vladimir por volta do
ano 1000, no sentido de o povo russo adotar a reli-
gião cristã ortodoxa, até à “Rússia ser Putin”, o com-
boio serpenteia-se por entre a união do povo em tor-
no dos princípios espirituais, secundarizando os as-
petos estatatais (relação que só mais tarde com Pe-
dro I foi invertida), como forma de se organizarem
contra as invasões dos povos das estepes; o comboio
vagueia depois por entre os eslavófilos e os ociden-
talistas durante o Império Russo, e depois ainda en-
tre os socialistas, anarquistas, comunistas e todos os
revolucionários e ativistas que conduziram à efetiva-
ção da União Soviética; a viagem finda com a abor-
dagem da luta pelo pós-modernismo, numa contes-
tação ao liberalismo naquilo que se denomina como
a Quarta Teoria Política, sendo a primeira o liberalis-
mo, a segunda o socialismo, a terceira o nacionalis-
mo/fascismo.
Mas discorrem muitas outras motivações para en-
cetarmos a aventura de ler esta extraordinária an-
tologia, sendo que uma delas é permitir, de forma in-
dubitável, conhecermo-nos melhor, não fora a cir-
cunstância de nos pensamentos escritos se falar de
nós, ocidentais, amiudadamente. E, como é diferen-
te compreender a nossa história, a história da euro-
pa ocidental, vista por gente de fora da nossa civili-
zação; saber como nos vêem, perceber como nos jul-
gam, entender como nos admiram, enfim, percecio-
nar como nos temem. Na realidade, a civilização oci-
dental europeia, aquela que nos toca mais de perto,
é abordada reiteradamente pelos filósofos russos ao
longo da sua história, quer de forma apreciativa quer
depreciativa.
Pois bem, essas opiniões divergentes permitem co-
nhecer o passado. E só a avaliação do decorrido per-
mite evitar o irrefletido. Como seria bom que os po-
líticos fossem detentores de uma ampla cultura his-
tórico-social, pois só assim saberão avaliar o mérito
de qualquer ação, incluindo a governamental. Co-
mo exemplo, e em face disto, tem lógica questionar
se a Quarta Teoria Política onde se contesta uma vez
mais o liberalismo (tal como na Segunda e na Tercei-
ra Teoria Política), foi elaborada por conhecedores
do passado?!
Há ainda dois outros entendimentos que nos levam
a debruçarmo-nos na leitura desta antologia. É o fac-
to de ela ser, na sua essência, de caráter filosófico. Da
sua leitura sobra sempre a dúvida sobre qual teria si-
do a melhor decisão política numa dada época, pe-
rante um dado circunstancialismo. Por isso, neste li-
vro o leitor é levado a duvidar, a dar preferência à no-
breza da filosofia e a não se rever na pureza de ne-
nhuma ideologia. No meio de tantas opiniões dife-
rentes, de doutrinas falhadas, de regimes claudica-
dos, depreende-se, apesar de tudo, ser melhor dar
preferência à divergência e não nos reduzirmos a
qualquer alinhamento sem prévio entendimento. A
sua leitura leva a optar pela política do divergir, na
medida em que ela nos obriga a refletir. Por outro la-
do, parece ser melhor eleger a inconformidade ativis-
ta baseada em julgamento educado, do que a confor-
midade coletivista que resulta num enfileiramento
impensado.
Nesta viagem de mil anos do comboio russo existi-
ram muitas paragens, onde se manifestaram os “is-
mos” plenos de mecanismos de sujeição para os pas-
sageiros que no comboio foram embarcando. Pri-
meiro o feudalismo com as suas relações servo-con-
tratuais, que privilegiavam os senhores feudais. Lo-
go depois, o capitalismo que praticamente só favo-
recia alguns particulares, enquanto desprotegia a
maioria dos populares. Seguiu-se o liberalismo as-
sente em ideais tais como a igualdade e a liberdade,
que pareciam ser bons sinais, mas nada mais. Com
o comunismo, procurou-se, no essencial, uma liber-
dade sem antagonismo, assente numa igualdade to-
tal sem paralelismo. Sem classes sociais e sem pro-
priedade privada ficaram todos iguais, mas sem na-
da. Não podendo ser mais para além do viver, nem
podendo ter mais que apenas o ser, perdeu o sentido
e foi banido, até ver. Viveu-se e vive-se agora, no oci-
dente, uma outra aurora, uma ideologia menos pura,
com um pouco de tudo à mistura. Firma-se na econo-
mia livre do mercado e dá pelo nome de neoliberalis-
mo, o qual não sendo o testado liberalismo, também
está longe de ser o legado do socialismo.
LITERATURA
Depreende-se desta Antologia que a Rússia tem um
percurso narrativo que se pode equiparar a um la-
boratório de ensaios políticos. As teorias e as práti-
cas que timonaram o Império Russo, a URSS e a Fe-
deração da Rússia nas suas diversas épocas de de-
senvolvimento basearam-se em ideologias que se
foram gorando, não pelas filosofias que as sustenta-
vam, mas sim, pelos sistemas políticos que as aplica-
vam. Usualmente, na aplicação da ideologia perde-
-se a filosofia e ganha-se, habitualmente, uma mafia.
Mas, a humanidade precisa de guias, de doutrinas, de
utopias, de um farol que a oriente humana e social-
mente, com mais ou menos liderança. Numa época
superficial, consequência do empirismo da mundia-
lização, quando lemos o que pensam os filósofos da
atualidade, como o coreano Byung-Chul Hani, o es-
loveno Slavoj Zizekii, o francês Gilles Lipovetskyiii e
o nosso Eduardo Lourençoiv, entre outros notáveis
pensadores, constatamos a indiscutível falta de uma
utopia para encararmos poder vencer as forças des-
construtoras da sociedade hodierna que se infiltra-
ram tentacularmente em todas as instituições. Ora,
as utopias precisam de um diagnóstico correto e sen-
sato do presente e do passado, donde se conclui que
talvez o realismo não se oponha por completo às uto-
pias. Sem um bom diagnóstico da realidade, não se
poderá produzir uma boa utopiav.
Por fim, direi que o livro provoca o leitor, pois segue
as regras do pensamento investigacional, preferindo
abrir questões a dar respostas. Deixa-nos questões
interessantíssimas, das quais destaco: - a civilização
grega é europeia? - haverá uma Quarta Teoria Políti-
ca, ou melhor, nascerá uma nova doutrina para a vi-
vência da sociedade? - E a que sociedade nos referi-
mos? - O eurasismo tem algum sentido? - Será a Rús-
sia europeia? - Qual a próxima utopia da humanida-
de? - Qual o papel da Rússia na construção da socie-
dade do futuro?
Penso ser importante sair do presente a consultar es-
te conhecimento arquivado, uma espécie de mate-
rial desusado, mas que para além do interesse nar-
rativo, induz o conhecimento reflexivo necessário à
participação cívica na construção política do mundo
que é o nosso, no qual se insere a Rússia.
Esse ato tão íntimo que é a leitura, permite-nos eclip-
sar a angústia da ausência de tempo que desqualifi-
ca a época contemporânea e enriquece-nos o espí-
rito. Valoriza-nos através do conhecimento, auxilia-
-nos a compreender a sociedade, permite-nos viver
para além de só existir. Alguns poucos, com a escrita,
não deixam o conhecimento liquefazer-se e evitam
que se torne efémero. É o caso dos doutores José Mi-
lhazes e João Domingues, que felicito.
NOTA
i Byung Chul-Han.: A sociedade do cansaço.
Relógio d’Água Editores, 2014.
ii Zizek Slavoj.: Problemas no paraíso: o comunismo
depois do fim da história. Bertrand Editora Lda. 1.ª ed. 2015.
iii Lipovetsky G., Serroy J.: A cultura-mundo – resposta a
uma sociedade desorientada. Edições 70 Lda. 2013.
iv Lourenço E.: O esplendor do caos. Gradiva, 6.ª ed. 2012.
v Gonçalo M. Tavares.: Sobre a utopia,
alguns apontamentos. Jornal “O Público” de 08/01/2016.