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Nambaqui: arqueologia do litoral brasileiro MADU GASPAR ANCOR TENT Madu Gaspar Sambaqui: Arqueologia do Litoral Brasileiro Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro Claudia Regina Plens Sumario right © 2000, Madu Gaspar ‘Todos os direitos reservades. A reproducie nao-aurorizada desta publicagio, Introdugéo 7 no todo ou em parte, constitui violagde do copyright. (Lei $.988) Breve historia da pesquisa em sambaqui 11 2000 \ A ecupagio do litoral brasileiro 39 Direitos para esta edigio contratados com: ayes _. . Jorge Zahar Editor Lida. Tipo de ocupagaio: némades ou sedentarios? 42 rua México 31 sobreloja ae . . 20031-144 Rio de Faneiro, RJ Tempo de ocupagao dos sambaquis 44 tel: (21) 240-0226 / fax: (21) 262-5123 - . aoe email: jze@zahar.com. be Tecnologia, arte e dominio do mar 48 Sambaquis préximos, moradores vizinhos 56 Capa: Carol $4 © Sérgio Campante Hlustragio da capa: Materiais encontrados em sambaquis . . no Rio de Janeiro. Foro de Beto Barcellos Atividades nos sambaquis Vinhet : 4 obre vn Vinheta da colegio: ilastracia de Debret ¢ indicios de mudanca social 61 Composicao eletrénica: Top Textos Edigaes Graficas Leda. Ritual funerario 68 Impressio: Hamburg Donnelley Gréfica Editora Organizagio social: bando, tribo ou chefia? 71 Cronologia 80 CIP. Brasil. Catalogagio-na-fonte Sindlicara Nacional dos Editores de Livros. RJ . . —— Referénetas e fontes 83 Gaspar, Mads _ . G232s— Sambagui: arqueologia do Tieoral brasileiro / Madu Sugestoes de leitura 86 Gaspar, — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2000 cil. — (Descobrindo o Brasil} {nelui bibliografia Co re at autora 89 ISBN 85-71 19-530-8 Sobre 4 89 1. Brasil = Antiguidades. 2. Sambaquis - Brasil. [. ‘Titulo. HL Série Ilustragoes, (entre p.48-49) CDD 98b 99-1615, CDYU 981 Agradecimentos 88 Créditos das ilustracées 1. Sambaquis da Figueirinha-l ¢ 11, SC. Foto da autora, 2. Destruigao do sambaqui Pernambuco-Il, Foto de 1953, extraida de Arquivos de Biologia e Tecnologia, vol.IX, de J. Bigarella, G. Tibureius e A. Sobonski. 3. Plataforma feita de conchas. Foto da autora, 4, Lagoa do Camacho. Foro da autora. 5, Materiais encontrados em sambaquis do Rio de Janeiro. Foto de Beto Barcellos. G. Rocha para preparar laminas. Foto da autora. 7. Acompanhamento funerario. Foto da autora. 8 ¢ 9, Esculturas feiras em pedra. Colegao Padre Rohr, IPHAN, SC. Foto Peter Pilles ¢ Paul Fish. 10 ¢ 11. Escultura representando homem. Exposigao do Museu Nacional, RJ. Fotos de Beto Barcellos ¢ Paulinho Muniz (publicada em Ciéncta Hoje das Criangas). 12. Mortos em posigio feral. Foto da autora. 13, Sepulturas. Foro da autora, 14, Inicio da escavagao do Jabuticabeira-I1. Foto da autora. 15. Arquedtogo expondo esqueleto. Foto da autora. 16 e 17. Registro de informagées. Foto da autora. Introdugdo A arqueologia ¢ a ciéncia que estuda as culturas a par- tir do seu aspecto material, construindo suas inter- pretacdes através da andlise dos artefatos, seus arranjos 4 espaciais e sua implantacao na paisagem. Em seus pri- mérdios, concentrava-se principalmente no estudo de grupos pré-histéricos ¢ dedicava-se especialmente 4 formacio de colegdes que constituiram os importan- tes museus de histéria natural. Os objetos eram esco- thidos devido ao seu apelo estético e por remeterem a culturas distantes no tempo ou no espago. Atualmente, o campo de estudo da arqueologia no esta mais demarcado pelo surgimento da escrita, tendo se voltado também para a andlise de sociedades histéricas. No Brasil, inclui entre os seus temas de interesse aspectos do modo de vida da corte portu- guesa no Rio de Janeiro, da vida nos quilombos e nas aldeias indigenas. Incorpora desde informagées ad- vindas de documentos escritos ¢ da tradicao oral até dados provenientes da cultura material. De forma inovadora e criativa, constréi uma interpretagdo que “7s MADU GASPAR desvenda interessantes aSpectos do cotidiano dos stg- mentos sociais estudados. Entretanto, 0 investimento maior dos pesquisa- dores brasilciros tem sido no estudo de culturas pré- histéricas. Esse interesse vem da época do Império, quando importante trabalho cientifico foi realizado pelo paleontélogo dinamarqués Peter Wilhelm Lund (1801-80). Suas pesquisas na regiao de Lagoa Santa, em Minas Gerais, coincidem com o momento em que se discutia a antigtiidade da humanidade. Com suas descobertas, inaugurou um tema de referéncia para a arqueologia brasileira. Trata-se da antigiiidade da ocu- pagao de nosso territério ¢ da coexisténcia de grupos humans coma fauna extinta. Até hoje, um acalorado debate envolve a comunidade de arquedlogos. Alguns propdem que o Brasil j4 se encontrava ocupado ha mais de 40 mil anos, porém apenas datas mais recen- tes sio amplamente aceitas; considera-se que a refe- réncia cronoldgica para o inicio da ocupagao do ter~ ritério brasileiro seja de 12 mil anos. A pesquisa arqueoldgica brasileira tem se dedica- do também ao estudo sistematico da ocupagao da cos- ta por pescadores ¢ coletores que se instalaram na faixa litoranea por volta de 6.500 anos AP’. O principal ves- AP significa “antes do presente”, que, por convengio, ¢ 1950, Trata-se de uma mengio a descoberta da técnica de datagao através do Carbono 14, que se deu em 1952, Assim, “8. SAMBAQUI tigio desse grupo é um tipo de sitio denominado sam- bagui, tema de interesse cientifico desde a segunda metade do século passado, Sambaqui é uma palavra de etimologia Tupi, lingua falada pelos horticultores € ceramistas que ocupavam parte significativa da costa brasileira quando os europeus iniciaram a coloniza- a0. Tamba significa conchas ¢ ki amontoado, que sao as caracterfsticas mais marcantes desse tipo de sitio. Trata-se de denominagio amplamente utilizada pelos pesquisadores e que denota a capacidade de observa- cao e sintese dos falantes Tupi. Qs sitios sao caracterizados basicamente por se- rem uma elevacao de forma arredondada que, em al- gumas regides do Brasil, chega a ter mais de 30m de altura (Fig.1). S40 construidos basicamente com res- tos faunisticos como conchas, ossos de peixe e mami- feros. Ocorrem também frutos ¢ sementes, sendo que dererminadas dreas dos sitios foram espagos dedicados ao ritual funerario e ld foram sepultados homens, mu- Iheres e criangas de diferentes idades. Contam igual- © evento mencionado ocorren 6.500 anos antes de 1950, As referénctas cronolégicas obridas através de mérodos fisicos séio sempre acompanhadas de suas respectivas margens de erro, que so expressas com o sinal positive ¢ o negative (4). Para muitos © nascimento de Cristo é a principal referéncia cronoldgica ¢ © tempo € dividido encre antes ¢ depois de Cristo. A data mencionada acima equtivale a 4.550 anos aC. -9- MADU GASPAR mente com intimeros artefatos de pedra e de osso, marcas de estacas ¢ manchas de fogueira, que com- pdem uma intrincada estratigrafia. Os restos que mais sobressaem na composi¢éo dos sambaquis sio as con- chas de berbigéo ou véngole, cujo nome cientifice ¢ Anomalocardia brasiliana (Gmelin, 1971), diferentes espécies de ostras, a almejoa ou Lucina pectinara (Gme- lin, 1971) € os mariscos. Sambaqui @ 0 objeto deste livro, que pretende apresentar o modo de vida dos pescadores, coletores ¢ cagadores que ocuparam o litoral brasileiro. Para me- Thor entendimento do tema serao apresentadas as dife- rentes maneiras como este tipo de sitio foi historica- mente percebido pela pesquisa cientifica. Inicialmente ele foi considerado um fendmeno natural tal como os concheiros, depois foi entendido como um local de descarte de restos de cozinha de bandos de coletores e, atualmente, é considerado o resultado de ordenado trabalho social que tinha por objetivo, entre outras coi- sas, construir um imponente marco paisagistico, Para compor o quadro de referéncia, serio tam- bém apresentadas as estratégias de obtengao de recur- sos dos sambaquieiros, a partir das informagées rela- cionadas com a implantacdo na paisagem e decorrentes do estudo das indtistrias. Forma, dimensao, contetido € artanjo espacial dos sitios serao articulados para re- construir 2 paisagem social da época. A analise das da- tagdes radiocarbénicas forneceré a indispensavel di- +10 SAMBAQUI mensao temporal. Como as pesqulisas atuais caracteri- zam os sambaquiciros como uma sociedade muito mais complexa do que havia sido proposto atéa década de 80, especial arencao sera dada ao ritual funerario, que é extremamente elaborado, ¢ a arte em pedra, que produziu esculturas de impressionante beleza., Desde o inicio da arqueologia brasileira a ocupa- ao do Hitoral tem despertado a atengao de pesquisa- dores, sendo significativo o interesse cientifico pelo estudo desse tipo de sitio arqueoldgico. Um levanta- mento recente indica que, entre teses, artigos € apre- sentagées em congressos, mais de mil eftulos sobre o tema estio disponiveis. Eum grande investimento, principalmente se levarmos em conta que a arqueo- logia brasileira teve um desenvolvimento tardio ¢ que s40 restritos os meios de divulgacao. O projeto pio- neiro de arqueologia, segundo os moldes da pesquisa moderna, foi implantado em meados da década de 60. Porém, apesar da dedicacao dos estudiosos, varios aspectos da sociedade sambaquieira permanecem en- cobertos sob o véu do excessivo empirismo que ainda caracteriza a disciplina. Breve historia da pesquisa em sambaqui Em seu inicio (1870-1930), a arqueologia brasileira caracterizou-se por uma grande efervescéncia. Os te- “a. MADU GASPAR mas investigados cram os achados de Lagoa Santa, os sambaquis do sul do pais e as culturas do baixo Ama- zonas. A questo que orientava 0 estudo dos samba- quis era estabelecer se os sitios eram decorrentes de fenémenos nacurais ou artificiais. A primeira tendén- cia, denominada comumente de “nattralista”, consi- derava que os sambaquis eram resultados do recuo do mar e da ac3o do vento exercida sobre as conchas lan- gadas 4 praia. A presenca de inegaveis vestigios hu- manos, como esqueletos, era explicada como resulta- do de naufragios. Jé os “artificialistas” sustentavam que eram resultado da agio humana ¢ propunham diversas explicagdes sobre 0 actimulo de restos faunis- ucos. A indoléncia atribuida aos indigenas foi acio- nada para explicar o comportamento do grupo pré- historico: a preguiga teria sido a conduta que os levou a acumular restos de comida. O debate era acalorado ¢ tinha ampla repercussao. Lima Barreto, em Triste fim de Policarpa Quaresma, descreveu a formacio de sambaquis, ¢ o imperador Pedro I acompanhou escavacées realizadas em Sao Vicente, assistindo a retirada de esqueletos. O Museu Nacional, sob a diregao de Ladislau Neto, enviou va- rias misses ao litoral sul brasileiro, resgatando inti- meros objetos de sambaquis que estavam sendo des- trufdos. Com a realizagio de pesquisas em varios sitios ea descoberta de muitos indicios de atividade huma- na, a corrente “nacuralista” perdeu totalmente a sua +125 SAMBAQUE forga. Porém, até a década de 1940, alguns pesquisa- dores ainda discutiam a origem dos sambaquis. Como decorréncia de achados nitidamente rela- cionados com a agao humana, surge a corrente “mis- ta”, que percebe os sambaquis como uma combinagio de elementos naturais ¢ humanos. Muitos pesquisa- dores, como Roquete Pinto, que integravam a cor- rente “naturalista” passaram a apoiar a “mista”, Tra- ta-se de uma perspectiva bastante atual, muito embo- ra nao tenham sido feitas reflexdes sobre os processos naturais que auxiliaram a formac4o dos sitios, Uma versio dos principios delineados pelos naturalistas ainda tem respaldo no senso comum. Muitas pessoas acreditam que os sambaquis s4o a prova cabal da su- bida das aguas ocasionada pelo dilttvio — ja que esta seria a tinica explicagao possivel para a concentracao de conchas e ossos de peixe em locais relativamente distantes do mar —-, como se o sambaqui fosse uma espécie de “ralo” do mundo. A corrente “artificialista” retine duas maneiras distintas de perceber os sambaquis, ¢ elas até hoje nor- teiam as pesquisas. A primeira considera que os sam- baquis, devido A grande quantidade de restos faunis- ticos que os compéem, so o resultado da acumulacao casual de restos de cozinha. A outra, em decorréncia da presenga de muitos sepultamentos, supde que sao monumentos funerarios. As distintas maneiras de per- ceber os sitios apontam para fungées diferenciadas +13. MADU GASPAR dos assentamentos: a idéia que estd por tras da pri- meira vertente € que o sambaqui era local de moradia e, da segunda, que era cemitério. Apesar de o foco do debate rer sido a matureza da formacao dos sambaquis, algumas importantes con- tribuigdes j4 despontavam desde o final do século: ob- servagdes pontuais sobre o processo de formagao dos sitios, implantagao ambiental, composigao, cronolo- gia, subsisténcia e caracteristicas fisicas da populagao. Alguns desses temas sao atuais ¢ foram sistematizados recentemente, outros foram totalmente descartados. Uma das principais questées que dominavam as cién- cias sociais entre o final do Império ¢ 21 Guerra Mun- dial dizia respeito 4 diversidade da espécie humana. A nogao de “raga”, posteriormente descartada como categoria cientifica, foi plenamente incorporada pela arqueologia e pela antropologia fisica brasileiras. Fox ram os estudos sobre “raga” que resultaram na criacko da categoria “Homem de Lagoa Santa”, que tinha sua correspondente no litoral denominada “Hlomem de Sambaqui”. A triade era completada com os “Boto- cudos”, indios levados para exibicio ¢ andlise na Eu- ropa no final do século XIX. Essa linha de pesquisa desembocou em uma produgio extremamente descri- tiva, voltada para a caracterizagao de tipos humanos, € 86 recentemente foi substituida por pesquisas que enfocam o modo de vida de grupos pré-histéricos e a genética de populagdes antigas. Por outro lado, os -14- SAMBAQUE estudos que correlacionam a implantagao dos sitios, especialmente no que se refere 3 distancia da linha de costa atual, com a cronologia de ocupagao dos sam- baquis foram intimeras vezes retomados e ainda sao objeto de discussao. Um desdobramento da corrente “naturalista” re- sultou ainda em importantes contribui¢gdes para o en- tendimento dos sambaquis. A idéia inicial de que os sambaquis eram resultado da agao de forgas naturais é substituida pela nocdo de que os sitios demarcam processos natusais, ou seja, de que sao um bom indi- cador para estabelecer a variagio do nivel do mar du- rante os ultimos 10 mil anos. As reflex6es remontam ao inicio do século, com os estudos de Ricardo Krone (1908) no vale do Ribeira. Para ele, os sambaquis an- tigos estavam mais afastados da costa atual, neles pre- dominando as ostras, ao passo que os mais modernos situavam-se préximos do litoral, sendo compostos ba- sicamente de conchas de berbigao. Krone propés, as- sim, de maneira pioneira, que a linha da costa nao cra estavel € sugeriu gue os sitios poderiam auxiliar no estabelecimento da variagao do nivel do mar. Esses estudos tiveram desenvolvimento significativo, a pat- tir da década de 70, com as pesquisas voltadas para o entendimento da evolug’o costeira. Os geomortélogos, por saberem que a base da die- ta das sambaquiciros eram os alimentos procedentes do mar, acham que esse grupo vivia proximo a linha 15. MADU GASPAR, da costa. Dessa forma, a distribuigao espacial dos s{- tios, tanto 3 beira-mar como a quilémesros de distan- cia, informaria sobre os movimentos costeiros. Trata- se de um indicador discutfvel para alguns estudiosos, mas, independente disso, as pesquisas trouxeram im- portantes resultados para a arqueologia. Datagées ra- diocarbénicas de amostras provenientes de samba- quis, apesar de nao terem sido coletadas segundo os principios da pesquisa arqueoldgica, fornecem um importante referencial sobre o periodo de construgio dos sitios. Por outro lado, a andlise da evolugdo cos- teita tem resultado também em uma indispensdvel re- constituicao ambiental, permitindo que se tenha uma nogio da feicio dos Jocais escolhides pelos samba- quieiros para crigir os sitios. As alteragdes que ocor- reram no litoral brasileiro apdés a década de 60, como construgio de estradas, surgimento de cidades de grande porte, drenagem de amplas dreas ¢ outras drds- ticas intervencoes, alteraram totalmente a paisagem e¢, sem um estudo detalhado de caracterizagao do pa- Icoambiente, é impossivel saber quais os critérios que orientaram os sambaquiciros na escolha de locais de construgao dos sitios. Até a década de 1950, a pesquisa em sambaquis caracterizava-se por trabalhos pontuais que nao per- mitiam © entendimento da ocupagio litorinea. Co- lecionadores publicaram algumas notas sobre acha- dos; foram realizadas algumas escavagdes em Sao Pau- 165 SAMBAGUI lo; uma primeira sintese, apoiada no estudo de varias colegées ¢ sitios, foi delincada pelo arquedlogo argen- tino Antonio Serrano. No primeiro manual de ar- queologia brasileira, publicado em 1934, a referéncia aos sambaquis limita-se a reportar o debate entre as diferentes correntes, apesar da impressionante dimen- sdo dos sitios e da riqueza e diversidade dos materiais recuperados. As pesquisas de arqueologia consideradas moder- nas comecaram na década de 50, quando foram ob- tidas as primeiras datacdes radiocarbénicas ¢ feitas as primeiras andlises sistematicas de sitios. Importantes pesquisadores franceses ¢ americanos, como Anette Emperaire, Joseph Emperaire, Alan Bryan e Wesley Hurt, vieram ao Brasil estudar os dois grandes temas da arqueologia brasileira e colaboraram na forma¢io de especialistas locais. Ao mesmo tempo, pesquisado- res brasileiros também dedicaram-se a entender a ocu- pac&o do litoral: Castro Faria, do Museu Nacional, escavou o enorme sambaqui de Cabeguda, Santa Ca- tarina; Paulo Duarte, do Institute de Pré-Histdria de Sao Paulo, trabalhou em sitios do litoral paulista; e Loureiro Fernandes, da Universidade do Parana, ana- lisou os do Parana. Os grandes sambaquis do litoral catarinense ¢ as esculturas em pedra e em osso eram os temas preferencialmente abordados. E também nessa década que a intelectualidade brasileira da inicio a um intenso movimento visando 17. MADU GASPAR proteger os sambaquis, que desde 0 século XVI vi- nham sendo destruidos sistematicamente, j4 que as conchas eram utilizadas para a fabricagao da cal (Fig.2).O empenho de Castro Faria, J. Loureiro Fer- nandes e Paulo Duarte resultou na promulgagio, em 1961, da lei que protege os sitios arqueoldgicos bra- siJeiros. A partir de entao, o padre Alfredo Rohr inicia uma severa campanha de preservagio dos sambaquis de Santa Catarina, e até hoje a sua perseverante atua- cao é lembrada pelos mineradores de conchas. A década de 1960 caracteriza-se pelo fortaleci- mento das instituigées de pesquisa ¢ conta também com contribuigées significativas de amadores, com destaque especial para o trabalho sistematico de Gui- Iherme Tiburtius, que acompanhou o desmonte de varios sambaquis e formou a magnifica colegao de ob- jetos que atualmente integra o Museu do Sambaqui de Joinville, criado especialmente para recebé-la. Além dos artefatos, Tiburtius deixou intimeros cro- quis que mostram a disposigao de objetos encontra- dos. Alguns desses desenhos sio, até hoje, as unicas informagdes existentes sobre certas estruturas (ver pa- gina seguinte). Sua contribuigao ¢ inegavel mas, infelizmente, Ti- burtius foi vitima da discriminagao sofrida pelos ama- dores quando comecou o processo de profissionaliza- ga0 dos pesquisadores. Em um momento em que nao +18 - SAMBAGUE Sepuitamento com elaborada parafemalia ritual que inch varias esculturas em pedra. Croquis de Guilherme Tiburtius. havia diferencas significativas entre “profissionais” e “amadores”, a categoria de “arquedlogo profissional” foi construida no bojo da campanha de protecao dos sitios € em oposi¢’o aos “amadores”. Abriu-se af um abismo entre arquedlogos ¢ interessados em desven- dar 0 passado. “Amadores” foram proibidos de con- tinuar o trabalho de coleta de dados, € sitios foram toralmente destrufdos sem que houvesse qualquer tipo de registro. Por outro lado, os “arquedlogos” de- senvolveram uma linguagem restrita a comunidade cientifica, sem qualquer compromisso com a divul- gacao dos resultados de pesquisa para a sociedade bra- sileira. Outros paises resolveram o conflito entre pro- fissionais ¢ amadores de maneira mais criativa, atrain- do o interesse da populagao, que auxilia na fiscaliza- Gio de sitios arqueoldégicos, participa em pesquisas ¢ financia estudos. Em contrapartida, ha todo um em- penho em traduzir o conhecimento para um publico +19. MADU GASPAR maior, algo que s6 no in{cio da década de 90 comegou a ser feito no Brasil. Com o desenvolvimento das pesquisas, lentamen- te ampliou-se o atimero de sitios analisados. Samba- quis si0 escavados no Parana, no Espirito Santo e no Recdncavo Baiano. O dentista Sales Cunha inicia, no Rio de Janeiro, os trabalhos de patologia dentaria, inaugurando uma linha de pesquisa que, nas décadas seguintes, apresentaria contribuigdes importantes so- bre o modo de vida dos sambaquieitos. A Amazénia zornou-se objeto de estudo de Betty Meggers ¢ Clif. ford Evans, casal de americanos que tem importancia capital na arqueologia brasileira. Acumulou-se conhe- cimento e, a partir de 1965, a disciplina passou pot uma significativa renovagio. Dois grandes projetos foram tracados e tiveram grande repercussao na ma- neira de fazer arqueologia no Brasil, deixando pro- fundas marcas tanto no que se refere 4 perspectiva tedrica e metodologia adotadas quanto aso ciabilidade entre profissionais, Trata-se do Programa Nacional de Pesquisa (Pronapa), iniciado em 1965 ¢ coordenado por Clifford Evans e Betty Meggers, e da Missio Fran- co-Brasileira, criada em 1973 ¢ coordenada por Anet- te Laming-Emperaire. O Pronapa, apoiado pelo Smithisonian Institu- tion e pelo Instituto do Patriménio Histérico e Are tistico Nacional (iPHAN), que esteve ativo até 1970, teve como objetivo principal tragar uma visio geral + 20+ SAMBAQUL da ocupagao do territério nacional. A Missio Fran- co-Brasileira, criada por convénio entre o Centre Na- tional de la Recherche Scientifique, da Franca, o Mu- seu Nacional ¢ a Universidade Federal de Minas Ge- rais, concentrou-se na regido de Lagoa Santa, estu- dando os antigos cagadores € as pinturas e gravuras feicas nas cavernas € pareddes. Esses dois projetos tiveram papel preponderante na estruturag’o institucional ¢ intelectual dos arqued- logos brasileiros. O Pronapa incorporou arquedlogos j4 formados ou em formagio em quase todas os esta- dos, criando, assim, uma ampla rede de pesquisadores no cerritério brasileiro. A filiagao a um dos progra- mas, ou o no-alinhamento, era o divisor de 4guas durante esse perfodo. O Pronapa estava volrado para a criagao de uma seqiiéncia cronolégica da ocupagao do territério bra- sileiro, e a atengao dos pesquisadores recaiu princi- palmente em sitios ceramicos. Jd a Missa0 Franco Bra- sileira dedicou-se ao estudo sistematico de regides de Minas Gerais e, mais tarde, do Piaui. Os sarnbaquis, em certo sentido, ficaram 4 margem do interesse aca- démico durante esse periodo. Nao era um tema pri- vilegiado pelos coordenadores da Missao Franco-Bra- sileira, embora no passado os pesquisadores tivessem apresentado importantes contribuigdes sobre o assun- to. Em decorréncia da estratégia de pesquisa adotada +215 MADU GASPAR pelo Pronapa, sé no Parand ¢ Rio de Janciro o estudo de sambaquis teve algum destaque. Pesquisas foram: desenvolvidas paralelamente aos dois grandes projetos, sendo também fortemente in- fluenciadas pela perspectiva difundida pelo Pronapa, preponderante até o final da década de 80. Nao havia qualquer tipo de debate sobre a maneira de abordar sitios volumosos como os sambaquis. Até mesmo pes- quisadores nao filiados ao programa consideravam pequenas sondagens suficientes para obter uma amos- tragem representativa desse tipo de sitio. Em alguns trabalhos, parece mesmo que o objetivo era analisar o material procedente da escavagao sem que houvesse qualquer tipo de reflex4o sobre a relagio entre a co- lecio recuperada c a totalidade do sitio. O esquema interpretativo susteptava que as diferentes camadas que integram os sambaquis cram os restos de suces- sivos episddios de ocupagio por parte de bandos de coletores némades e que os moluscos eram a base de sua dieta alimentar. A principal preocupagao da arqueologia brasileira até o final da década de 80 foi estabelecer mudangas culturais através do tempo. A disciplina era marcada pela criagao de intimeras fases ¢ tradig6es, instrumen- tos conceituais para delimitar transformagGes sociais consideradas importantes. Como esse sistema preva- leceu por mais de duas décadas, a abordagem de sitio € 0 esquema interpretativo praticamente confundi- +22. SAMBAQUE ram-se com a maneira de fazer arqueologia. As dife- rengas observadas nos artefatos ¢ na composicao fau- nistica das camadas que integram os sambaquis foram consideradas evidéncias de diversidade cultural asso- ciadas 4s camadas de ocupagdo. A evolugao costeira ditada pela oscilagao do nivel do mar forneceu a amar- ragio ambiental para elaboragdo dos esquemas inter- pretativos, cm um momento no qual ainda nao esta vain disponiveis estudos regionais sistematicos sobre as mudangas que ocorreram na costa brasileira. Apoiando-se em anilises de sitios isolados no espago — pontos distantes do litoral, tal como no Espirito Santo e no Rio Grande do Sul -—, foram criadas int- metas fases ¢ algumas tradicSes sem que fosse produ- zida uma inteepretagdo compreensivel da sociedade sambaquicira. Por outro lado, algumas pesquisas isoladas come- gavam a investigar a ordenagao espacial de estruturas internas aos sitios. Estudava-se a distribuigao de fo- gueiras, de marcas de cabanas e de sepultamentos, aplicando-se os ensinamentos da arqueologia francesa na tentativa de dar conta do complexo emaranhado de vestigios. Retomando uma das vertentes da corrente deno- minada “artificialista”, que considera os sambaquis uma espécie de depdsivo de restos de cozinha — “a lata de lixo da pré-histéria”, como ironizou Paulo Duarte —, investiu-se de maneira significativa na +23- MADU GASPAR andlise dos restos faunisticos. A principio, essa linha de pesquisa deteve-se exclusivamente na necessdria identificacao da fauna, tarefa que resultava em infin- daveis listas de especies. No momento seguinte, as lis- tas foram substituidas pela contabilidade dos restos ja identificados, com o que se procurava estabelecer a atividade econémica preponderante. Inicialmente contavam-se conchas ¢ ossos, ¢ posteriormente, bus- cava-se a correlagio entre os restos faunisticos ¢ a quantidade de alimento que cles representavam. Tra- ta-se de um avango significativo. Abandonava-se 0 impacto visual causado pelas conchas, que se conser- vam muito bem e que, devido 4 cor e ao volume, des- tacam-se na matriz sedimentar. As caracteristicas des- se material sugeriam que a atividade que sustentava a populacao era a coleta de moluscos. O objetivo era estabelecer a dieta alimentar dos sambaquieiros, em- bora muitos pesquisadores supusessem que estavam estudando a economia do grupo, uma economia que prescindia de relagées sociais, pois os sitios continua- vam _a ser percebidos como unidades isoladas. Os estudos sistematicos dos restos alimentares também apoiaram-se significativamente na perspec- tiva amplamente difundida pelo Pronapa e, nesse con- texto, foi elaborado um esquema de referéncia que perdurou até o inicio da década de 90, Os sambaquis teriam sido ocupados por bandos de coletores de mo- luscos. As alteragdes ambientais correlacionadas com +24. SAMBAQUI mudangas do nivel do mat, e/ou decorrentes do es- gotamento dos bancos de moluscos, os levaram a mo- dificar sua base econdmica, tornando-os predominan- temente pescadores. E claro que mais uma vez a po- sigio dos sitios em relacdo ao litoral foi acionada para sustentar o modelo proposto. A cada etapa da evolucdo econémica atribuiram-se diferentes fases ¢ tradicées, Atualmente a arqueologia brasileira vem se trans- formando de maneira significativa, processo que, en- tre outras coisas, esta relacionado com os desdobra- mentos da globalizagao. Pesquisadores acompanham os debates ¢ avangos que ocorrem nos Estados Uni- dos, Inglaterra ¢ Franga, principais centros de influén- cia da comunidade cientifica. E ainda dificil estabe- lecer um marco divisor, porém ele estd em algum mo- mento no final da década de 80 ¢ inicio da de 90, periode em que sao elaboradas diversas teses. O ar- quedlogo André Prous publicou importante sintese sobre a Arqueologia brasileira, ¢ a Sociedade de Ar- queologia Brasileira, criada em 1980, foi ampliada e democratizada. Os diversos workshops organizados por Edna Morley, do IPHAN, foram um importante mecanismo de incorporagao dos avangos realizados por pesquisadores americanos das escolas do Arizona ede Michigan. Nessa linha, o congresso sobre “Teoria e métodos”, organizado por Marisa Afonso e Renato Kipnis, realizado em 1995 na Universidade de Sao +25. MADY GASPAR Paulo, é um marco. Expoentes da arqueologia brasi- leita ¢ profissionais americanos € franceses sentaram- se lado a lado para um debate proveitoso. Pela pri- meira vez, arquedlogos estrangeiros vieram ao Brasil nao apenas para ensinar mas também para se informar dos resultados de pesquisas desenvolvidas por brasi- leiros. Finalmente, a arqueologia brasileira comegou a abandonar o excessivo empirismo que sempre a ca- racterizou, voltando-se para a resolugao de determi- nadas questOes. Temas como domesticagio de vege- tais, sedentarismo, identidade social, territorialidade e organizacao social passaram a compor 0 cenario cientifico. No que se refere aos sambaquis propriamerte di- tos, eles voltam a receber a atengdo dos arquedlogos: varias teses abordam o tema € importantes projetos sio delineados. A propria representagao dos constru- tores de sambaquis altera-se. Eles nfo sao mais per- cebidos como um bando de coletores de moltuscos, némades em busca de alimentos. Discute-se comple- xidade social, especula-se sobre a presenga de chefes, enfoca-se o elaborado ritual funerdrio, debate-se a presenga de especialistas dedicados 4 confecgao de ¢s- culturas ¢ destaca-se a grandiosidade dos sitios como resultado de um orquestrado trabalho social. Rempe- se com o corolario de pré-nogées que correlacionavam os sambaquieiros a figura do “primitivo” desenhada no final do século passado, nogio estruturadora do +26. | i SAMBAQUI pensamento arquecldgico que chegou a propor que as famosas esculturas de pedra € osso nao poderiam ser obra desse povo. Atualmen alguns trabalhos enfocam conjuntos de sitios, buscando entender a articulagéo das unida- des ¢ sua devida caracterizacao. Como os sambaquis apresentam dimensées diferentes, discute-se a hierar- quia entre os assentamentos; dado que muitos sitios proximos estiveram ativos concomitantemente, trata- se da complementaridade entre eles. A idéia € que os sitios isolados nao tém significado sociolégico ¢ que 0 conjunto de sambaquis ¢ a unidade minima de ocu- pacio do litoral. E um salto qualitative na pesquisa, pois embora se soubesse que trocas eram recorrentes na pré-histéria, e até mesmo estruturadoras da vida cotidiana, insistia-se em tratar os sambaquis como se estivessem flutuando no espago e no tempo. Nesse sentido, embora muita atengao tenha sido dada ao estudo da dieta, pouco fora escrito sobre relagSes eco- némicas, unidades de produgao ¢ relagdes de trocas. As pesquisas sobre sistema de assentamento inaugu- fam uma vertente ainda pouco explorada, mas que deverd fornecer explicagées inteligiveis para a varie- dade de sitios encontrados no litoral brasileiro. A segunda vertente da corrente “artificialista” ga- nha forga: os sambaquis parecem ter sido uma espécie de monumento. Os sitios sio considerados marcos paisagisticos, importante referéncia espacial para os -27- MASU GASPAR seus construtores, que podiam avist4-los a grande dis- tincia. Estudam-se as regras de sua construgao como se fosse um enorme artefato, tal qual uma igreja que domina uma varzea ou uma mansao que sobressai no povoado. Investiga-se a sua implantagao, o mimero de pessoas envolvidas em sua construgao ¢ 0 tempo necessario para essa tarefa. Pesquisadores, apds exaus- tivos trabalhos, caracterizam alguns sitios como local de moradia e outros, como cemitério, apontando para a existéncia de um todo articulado. Discutem-se mi- gragio ¢ a ocupagio do litoral brasileiro. Com a retomada da corrente denominada “mis- 1a”, iniciam-se investigagdes sobre os processos de for- maco natural que resulraram na feigio atual dos sam- baquis. A idéia é que, apés o abandono do sitio pelo grupo que o construiu, o local tenha passado por inu- meros processos naturais e culturais que determina- ram sua feigdo atual. Tais fendmenos precisam ser in- vestigados para que se possa saber 0 que o sambaqui pode informar sobre 0 modo de vida de seus cons- trutores. Apds o abandono pelos sambaquiciros, os sitios passaram por intimeras intervengdes de outros grupos culturais: horticulcores ali fizeram suas rogas, aproveitando a concentracio de matéria orginica; os colonizadores portugueses erigiram algumas de suas igrejas ¢ de seus fardis sabre tais locas, pontos estra- tégicos para o dominio da paisagem natural ¢ social. Com o desenvolvimento econdémico do pais, os sam- +28 + SAMBAQUI baquis foram intensamente minerados para o fabrico da cal ¢ pavimentagao de estradas, dando lugar as ci- dades litoraneas. No que se refere aos processos naturais, € preciso ter claro que os vestigios passiveis de estudo sio ape- nas aqueles que se preservaram, ¢ que os sitios nao guardam indicios de todos os aspectos da vida social. Sao diferentes processos de preservagio. Os vegetais praticamente inexistem mas, sob algumas condigGes, a madeira e a fibra podem ser encontradas pelos ar- quedlogos. Apesar de nio serem abundantes, certa- mente foram matetiais que integraram o cotidiano desses grupos sociais. Nao ha uma tnica referéncia ao uso de plumas, masa arte plumaria € tio valorizada pelos indios brasileiros que € possivel supor que esse material tenha sido amplamente utilizado. Processos naturais, ainda sob investigagéo, também resultaram em camadas endurecidas como concreto e que foram confundidas com indicio de abandono do sitio. Essas camadas concrecionadas apresentam o mesmo tipo de material que ocorre no restante do sitio, inclusive se- pultamentos humanos, sem que se saiba, ainda, como se den sua formagao. Atualmente arquedlogos assumem postura bas- tante diversa ¢ a sociabilidade entre pesquisadores nao tem mais como principal balizador os territérios de pesquisa: s40 os temas de andlise que comegam a de- lincar os grupos. Percebe-se que estudar sambaquis ¢ +295 MADU GASPAR tarefa de cnormes proporgées ¢ que apenas grupos de cientistas ¢ projetos de longa duragao podem analis4- los em toda a sua complexidade. As informagées pri- marias n&o sao mais guardadas a sete chaves, iniciam- se visitas cientificas durante os trabalhos de campo e sitios sao wransformados em museus abertos. Em Sa- quarema, no Rio de Janeiro, uma experiéncia reno- vadora envolve a arquedloga Lina Kneip e a comuni- dade local, que juntas garantiram a preservagao de um sambaqui ¢ 0 transformaram em praga de visitagdo publica. A renovagao por que passa a arqueologia bra- sileira rem sérios reflexos na maneira de perceber e abordar os sambaquis. O enfoque atual langa nova tuz sobre a ocupacdo pré-histérica do litoral e permite tracar o modo de vida da sociedade sambaquicira. A ocupacio do litoral brasileiro A partir do inicio da década de 1990, 0 estudo dos sambaquis recebe novo impulso, permitindo melhor delinear o modo de vida do povo que colonizou o litoral brasileiro. Pesquisadores que se dedicaram de maneira significativa ao estudo da evolucdo da dieta alimentar desses grupos sé conseguiram sugerir que teria havido uma mudanga da coleta de molusco para pesca. Modernas técnicas de andlise em zooarqueolo- gia demonstraram que a pesca sempre foi uma ativi- dade importante no sistema de subsisténcia, apesar + 30+ eNO Na SAMBAQUE de os restos deixados por cla serem muito menos vo- lumosos do que os que resultam da coleta de molusco. Imagine vocé a quantidade ¢ 0 tipo de restos que so- bram de um churrasco de peixe ¢ agora imagine o que sobra de uma mariscada. Agora, faga o raciocinio inverso: pense O que esses restos representam em ter- mos de alimento consumido. Pois € esse 0 exercicio que os arquedlogos fazem, Para complicar ainda mais, imagine que o peixe consumido poderia ser de pe- queno porte; nesse caso quase nada fica como teste- munho do grande banquete. O que importa aqui nao é se houve ou nao tal mudanga social, mas sim res- saltar que as duas atividades — coleta de molusco ou pesca — implicam forte dependéncia do ambiente aquatico. Isso é um indicio de que esse grupo ja estava habituado a exploragao das Aguas ¢ que teria desen- volvido o seu modo de vida ha muito tempo (ver abaixo). Resultado da coleta de uma catadora de berbigao durante 50 minutos. O primeiro monte séio as conchas coletadas vivas e com carne; 0 segundo, as coletadas mortas; o terceiro, a parte comestivel obtida nessa atividade. -31- MADU GASPAR Os pesquisadores que estudam a evolugio do li- coral brasileiro informam que por volta de 7 mil anos AP o mar estava recuado e que esse ambiente, hoje coberto pelas Aguas. pode ter sido 0 local de moradia dos primeiros sambaquiciros. Infelizmente, nao ha pesquisas voltadas especificamente para o tema que investiguem locais propicios para ocupagao remota. Sabe-se que as oscilagdes marinhas tém especificida- des regionais, cabendo investigar dreas onde possam haver sitios mais antigos, locais elevados que nao fo- ram cobertos pelo mar ou aguas tranqiiilas que pos- sam guardar sitios submersos. Ha também, junto 4 costa, sftios sobre morros. Se fossem estudados e da- tados, forneceriam novas pistas sobre o in{cio do pro- cesso de colonizagao do fitoral brasileiro. Trés hipd- Leses se apresentam: ou os mais antigos sitios conhe- cidos foram construfdos por uma populacao que ja tinha o habito de explorar ambientes costeiros; ou essa populagao veio de um ambiente semelhante ao en- contrado na costa do Brasil; ou desenvolveu o seu modo de vida no litoral ha muito tempo. O inicio do processo de colonizagio de uma re- gio € um tema de maior interesse. Saber de onde vieram os primeiros habitantes, qual rota percorre- ram, as dificuldades encontradas, o contato com ou- tros grupos € um assunto instigante que s6 pode ser tratado, em toda sua complexidade, quando jd se dis- poe de uma grande quantidade de informagao sobre +32. SAMBAQUE a regiao enfocada — situagao que. infelizmente, ainda nao € a da ocupagao costeira. Em estudo realizado nos anos de 1992 ¢ 1993, sistematizei as informagées bibliogrificas « os dados contidos no cadastro de sitios do [PHAN e obtive im- portantes informagées sobre 958 sambaquis. Este nu- mero € uma pequena parcela daqueles ainda remanes- centes, pois ha areas no Brasil que nunca foram visi- tadas por arquedlogos. A questio que me orientou foi saber se os sitios arqueolégicos denominados samba- qui s4o 0 vestigio deixado por grupos sociais que com- partilhavam a mesma tradigao culrural ou se repre- sentam diferentes realidades sociais. O objetivo era delimitar a regiao ocupada pelos sambaquiciros para entender 0 processo de colonizagao do litoral. Considerei que a unidade social representada pe- los sambaquis poderia ser identificada através da ca- racterizagio do sitio, um espago diferenciado que, pelo seu volume, destaca-se na paisagem. No samba- qui ocorreria a associagao espacial de trés importantes dominios da vida cotidiana: o espago da moradia, o local dos mortos ¢ 0 de acumulagao de restos faunis- ticos relacionados com a dicta de seus construtores. Era um lugar particular, resultado da concentragao de material organico que certamente tinha implicagdes no desenrolar do dia-a-dia. Outros materiais pode- riam ter sido usados, mas a escolha recaiu sobre aque- les intrinsecamente relacionados ao consumo alimen- +33. MADU GASPAR tar. Ressalto que 0 espaco em quest4o é um lugar bas- tante peculiar, construfdo principalmente com con- chas de moluscos € apresentando condigées especiais no que se refere a textura, relevo e odores. Muita coisa ja foi dita sobre esse espago construl- do: que 0 cheiro de ostra ¢ de marisco em decompo- sigdo era insuportavel; que os mosquitos infernizavam a vida das pessoas; ¢ que o actimulo de matéria orga- nica criaria condigées favoraveis para a proliferagdo de doengas. Segundo essa dtica, os sambaquiciros te- riam deliberadamente criado um local desagradavel. Porém, antes de tudo, ¢ preciso deixar claro que a percepgao é formada culturalmente ¢, portanto, ¢ re- lativa; o cheiro de frutos do mar poderia nao ser de- sagradavel para quem vivia da pesca. Tomando essa tripla associagao espacial -—- local de actimulo de restos faunisticos, de moradia e de ce- mitério —- como elemento caracterizador desse tipo de sitio, trabalhei com a idéia de que os construtores formavam um grupo étnico, no sentido de que se tra- tava de uma populagio cujos membros se identifica- vam e cram identificados como tais, constituindo por- tanto uma categoria distinta das outras que Ihes eram contemporaneas. Inspirada no estudo de Marcel Mauss (1974) sobre as sociedades esquimé, considerei que era o caminho para reconhecer 0 que o autor de- nominou de “individualidade coletiva”. Mauss, ao analisar a sociedade esquimé, separa magistralmente simples variagées regionais de tragos +34. SAMBAQUE fundamentais recorrentes. Centra-se na morfologia social, ou seja, lida com o substrato material das so- ciedades, com as formas que elas assumem ao se es- tabelecerem no solo, o volume ea densidade da po- pulagao, a maneira como esta se distribui, bem como 0 conjunto de coisas em que se assenta a vida coletiva. Dessa forma, identifica os elementos-chaves que ca- racterizam as idiossincrasias dessa populagio; mostra que, na realidade, uma série de elementos articulados (implantagao, densidade populacional, composigao de sexo ¢ estado civil, composigao da pirdmide de ida- de, ocupagao sazonal, utilizacao de dois tipos de mo- radia etc.) é que fazem um esquim6 sentit-se como tal ¢ ser identificado como esquimd, Ao estudar as fronteiras da unidade representada pelos sambaquis, considerei que elas sé podem ser es- tabelecidas pelo arquedlogo, j4 que nao ha individuos remanescentes para informar como sambaquieiros se percebiam € como percebiam os outros. A etnia pré- histérica sé ganha consisténcia a partir do contraste com outros conjuntos de vestigios que lhe sio con- temporaneos. O estudo de outros conjuntos delinea- dos para a pré-histéria brasileira indicou que os as- pectos aqui ressaltados sao exclusivos da sociedade sambaquieira. Essa reflexdo parte do principio de que 0 espaco € um aspecto estruturador da vida em sociedade, de que existe uma estreita relagdo entre o que uma coisa éeo lugar no qual esta situada. O lugar é, erm si mes- +35. MAQU GASPAR mo, parte do ser do objeto. Essa premissa é particu larmente reveladora no caso do sambaqui, locus de ritual funerdrio, o que fornece a este mesmo espago uma dimensao sagrada. Trata-se de uma organizacao cognitiva do univer- s0 que pée em relacdo trés elementos que, para rmuitas outras culturas, estio necessariamente em espacos dis- tintos. Refiro-me a estreita assoctagdo entre os mora- dores. os mortos € os restos faunisticos, configurando uma légica particular de construgao do espago. A rotina que acabou por criar pequenas monta- nhas nao foi regida, como muitas vezes se quer supor, pela razio pratica idealizada pela sociedade moderna. Nada explicaria o hdbito de transportar moluscos in- reiros a0 invés de apenas a parte comestivel. Pescado- res atuais da Regiao dos Lagos (RJ) continuam cole- tando mariscos mas, ao invés de transportd-los com casca para o local de consumo, os aferventam na pré- pria praia ¢ af mesmo sao liberadas as carapagas. Transportam muito menos volume ¢ peso, as carapa- cas retornam para as dguas ¢ o restante de carne que fica preso na concha ainda acaba por alimentar pe- quenos peixes. As catadoras de berbigio da praia do Sonho ¢ da Passagem da Barra, em Santa Catarina, usam as conchas de berbigio para elevar o piso de seus terrenos, pavimentar buracos da rua e da calgada, ou seja, as cascas recebem o destino ditado pelos cos- tumes sociais da populagao atual (Fig.3). Se a inten- - 36+ | g 2 4 : 3 a 2 ; : 2 a 2 2 4 2 a z 2 a : SAMBAQUI gio dos sambaquieiros era fazer um aterro para ga- rantir uma plataforma seca para moradia, como fazem as catadoras de Santa Catarina, nada justifica que este habito renha se mantido apés atingir certa quantidade de material e que, em alguns casos, ultrapassasse os 30m de altura. Esta reflexéo tem como objetivo assinalar que a maneira de ordenar 0 espaco é também uma idiossin- crasia de cada sistema sociocultural. Sob esta ética, os préprios sambaquis sao artefatos tais como as nossas casas, barracos, palicios e estédios de esporte. Como no caso dos esquimés, acumular restos faunisticos, morar nesse espago peculiar ¢ ai enterrar os seus mor- tos é que fazia um sambaquieiro se perceber ¢ ser per- cebido como tal. A partir dessa perspectiva, estudei a bibliografia © constatei que © litoral sul e sudeste do Brasil foi ocupado por grupos que compartilhavam a mesma tradigdo cultural, muito embora os vestigios deixados por eles apresentem particularidades regionais. Sam- baquis ocorrem também no litoral baiano, em Ala- goas, Piaui, Maranhao ¢ Pard. Ha muito tempo sao conhecidos os sambaquis do baixo Amazonas e recen- temente foram descobertos sitios no Xingu. Porém, os estudos no Norte e Nordeste so pontuais ¢ nao permitem estabelecer corrclagdes seguras com os do licoral sul. -37- | i MADU GASPAR Ressalto que ¢ tarefa dificil delinear a unidade so- cial com as informagoes disponiveis, j4 que em alguns sitios foram abertos apenas pequenos pocos-testes ¢, com uma amostragem diminuta, nio se pode carac- terizar um sambaqui. Esse tipo de sitio nao é um es- paco homogéneo. Ao contrdrio, apresenta diferengas marcantes em seu conteido. As informagbes cadas- trais, porém, registram abundancia de restos faunfs- ticos ¢ indicam que a grande maioria dos sambaquis era também o espago do ritual funerario. Nao aceito a explicagao corrente de que tais sitios sejam resultado da maior oferta de fauna marinha que caracterizou algumas regides nos ultimos 10 mil anos. Considero que essas condigdes ambientais propicia- ram o desenvolvimento de sociedades que se apoia- vam na exploragaéo de recursos aquaticos, mas a maior oferta desses recursos nao explica o habico cultural de acumular restos faunisticos. Trata-se de intenso tra- balho social que, em algumas regides, resultou na construgio de verdadeiras montanhas. Nao cabe aqui discutir os eventos que ocorrem em outros continentes. Também nao ha dados sufi- cientes para estabelecer correlagdes seguras entre os sitios do Sul e do Norte do Brasil. No entanto é ne- cessario assinalar que, em termos estruturais, um mes- mo conjunto de regras estava operando nos diversos sambaquis brasileiros. Esse conjunto de normas dita- va que os restos faunisticos deviam ser acumulados, -38- | ‘RASS N SAMBAQU! que ali era o espago dos mortos ¢, na maioria dos ca- sos, era também o espaco da moradia. Os sambaquis que est4o ao norte da baia de Todos os Santos apresentam ceramica muito caracterfstica, cuja argila foi acrescida de fragmentos de conchas para dar melhor consisténcia aos vasilhames. Essas ce- ramicas integram o conjunto denominado de tradicao Mina, as pesquisas indicando uma longa seqiiéncia cronoldgica, que teve inicio aproximadamente 7.000 anos AP. Trata-se da cerfmica mais antiga das Amé- ricas, produzida por uma sociedade que obtinha o seu sustento explorando recursos aquaticos. Quando fo- rem intensificados os estudos na regido do baixo Ama- zonas ¢€ litoral do Salgado, sera desvendada uma rea- lidade extremamente complexa que ainda nao pode ser delincada. Deixando de lado os sambaquis da regiao norte e nordeste por falta de estudos detalhados e apoian- do-me nas 238 datagSes que séo amplamente aceitas pelos pesquisadores, é certo que por volta de 6.500 anos AP os sambaquieiros j4 estavam ocupando o li- toral do Parana ¢ dali teriam partido seguindo dois cixos: um em diregao ao norte e outro, ao sul do pats. No sul ha sambaquis até Torres, Rio Grande do Sul, € para o norte os sitios ocorrem numa faixa continua até a Bahia, sendo que estudos sistematicos restrin- gem-se ao norte do Rio de Janeiro. -39- MADU GASPAR Essas sao as informacées disponiveis sobre a dis- tribuigao espaco-temporal dos sambaquis. Fica cla- ro que muita pesquisa ainda tem que ser feita para que se possa falar, com mais seguranga, do processo de colonizag4o do fitoral brasileiro. Alguns estudio- sos consideram que, no mesmo periodo em que os sambaquis estavam ativos, o litoral também era ocu- pado por outros grupos sociais, que deixaram tes- temunhos distintos. Esses sitios receberam varias denominagées, tais como “sambaquis sujos”, “acam- pamentos para coleta de moluscos” e “tradigao Ttai- pu”. Porém, considero que eles compartitham uma série de caracteristicas dos sambaquis €, portanto, podem ser acomodados nas diferencas que existem no préprio sistema de assentamento ¢ nas variagdes que ocorreram durante o processo de colonizacao, que abrangeu mais de 5 mil anos ¢ uma extensa faixa litoranea. Alguns estudiosos dos caracteres genéticos im- pressos nos ossos humanos provenientes dos sitios de Santa Catarina argumentam que teria havido signifi- cativo fluxo génico, ou seja, teria ocorrido considera- vel grau de reproducao entre os sambaquieiros e ou- tras populagdes. Os resultados da pesquisa paleoge- nética, para alguns pesquisadores, reforcam a hipétese da existéncia de diversidade cultural entre os povos do litoral. Porém, essa diversidade pode estar relacio- «40. ee SAMBAGU! nada & funcionalidade dos sitios, & ampla variabilida- de regional ¢ ecoldgica e 2 longa duragio dessa tradi- gio cultural. Mesmo a diversidade genética proposta parece razodvel no caso de um sistema que se expan- diu por uma extensa regiao durante muito tempo. Como é sabido, populasao, Ifngua ¢ cultura nao se sobrepGem exatamente como gostariam os pesquisa- dores. A cultura deve ser pensada como entidade di- namica e sempre em mudanga. Grupos sociais devern sempre ter entrado em contato com outros através de casamento, trocas ¢ outros tipos de relagio sem, ne- cessariamente, mudar seus costumes sociais de uma maneira significativa. Com essa proposta estou sugerindo uma certa ruptura com o esquema de andlise adotado desde os primeiros estudos de sambaquis na pré-histéria bra- sileira. Considero que tragos culturais podem variar no tempo ¢ espago, como de fato variam, sem que isso afete a identidade social do grupo. Essa perspec- tiva percebe a cultura como algo essencialmente di- namico e perpetuamente reelaborado. Os estudiosos que defendem a concomitancia de grupos sociais dis- tintos, em uma mesma drea e no mesmo perfodo, ain- da nao investigaram as regras de sociabilidade entre grupos sociais diferentes que compartilhavam reas muito préximas, explorando os mesmos recursos € construindo o mesmo tipo de sitio. “416 MADU GASPAR Tipo de ocupacdo: némades ou sedentarios? O estudo do ambiente encontrado no entorno dos sitios fornece informagdes sobre estratégias de sobre- vivéncia que nem sempre ficam registradas nos sam- baquis. Os sambaquieiros nao contavam com sofisti- cados meios de armazenamento de alimentos ou de circulagio de mercadoria. Para garantir o abasteci- mento do grupo, estabeleciam seus assentamentos em locais estratégicos onde pudessem obter alimentos to- dos os dias e durante o ano inteiro. Pesquisa realizada na Regido dos Lagos, Rio de Janeiro, indicou que os locais prediletos de implan- taco dos sitios sao dreas de intersecao ambiental. Pré- ximos de enscada, canal, rio, laguna, manguezal e flo- resta, dos sambaquis era possivel alcangar rapidamen- re os diferentes ambientes. Se o mar estivesse bravo ou se 0 peixe nao encostasse, o alimento poderia ser conseguido nas lagunas ou no mangue. As matas ga- rantiam uma eventual caga e uma série de frutos € sementes. A ocupag’o de pontos estratégicos permitia © acesso a diferentes ambientes e, assim, o estabeleci- mento de uma populagéo sedentaria. Pesquisadores que achavam que os sambaquiciros eram némades apoiavam-se na iddia de que a base de sua dicta alimenrar era o molusco e que a coleta in- tensiva terminava por exaurir esses recursos. Como conseqiiéncia, 0 grupo era obrigado a deslocar-se & +42. SAMBAGUE procura de novos locais de coleta. Ja se demonstrou que parte significativa da dicta apoiava-se na pesca € sé com a industrializagdo da atividade pesqueira é que esse recurso comega a se tornar escasse. Embora per tenga ao senso comum a idéia de que o inverno no sul do pais é uma estagio pouco piscosa. a pesquisa que realizei com os pescadores da lagoa do Camacho, em Jaguaruna, Santa Catarina, indicou que mesmo em tempos criticos ¢ razodvel a produgao de pescado, muito embora as espécies capiuradas nao tenham co- locagao ou bom prego no mercado (Fig. 4). Complementa esse raciocinio 0 fato de que nem todas as andlises de restos faunisticos constataram a presenga de indicios de exaustio de bancos de molus- cos ¢, a julgar pelas aldcias de pescadores contempo- rancos que ainda ocupam as mesmas regides e por sua ja referida produtividade, nao h4 motivos para supor que o ambiente apresentasse restrigdes tao severas que iornassern o nomadismo uma estratégia de sobrevi- véncia, O mar, que vem sendo explorado sistemati- camente durante milénios, s6 agora comega a dar mostras de cansago: as fazendas de camario e as de ostras sao alguns indicadores do fendmeno que ocorre no final do século xx. Por outro lado, 0 estudo de perfis de vinte sam- baquis, tanto no Rio de Janeiro como em Santa Ca- tarina, nao indicou evidéncias claras de abandono. Mesmo sitios que durante a construgao parecem con- -43- MABU GASPAR tar com uma camada considerada estéril — tal qual a identificada no sambaqui do Forte, Rio de Janeiro ou no Saquarema, Parana — apresentam dois pacotes de material arqueolégico que foram acumulados inin- terruptamente. Caso tivesse havido abandono em de- terminado momento, 0 tempo necessdrio para cons- trugio das camadas separadas pelo nivel estéril seria suficiente para indicar que 0 sitio foi habitado por um grupo sedentario. Por outro lado, no proprio sam- baqui do Forte, foram identificadas fogueiras estru- turadas na camada que havia sido considerada estéril. Assim, é preciso saber se, de fato, houve abandono do sitio ou entender qual a légica construtiva que for- mou uma camada arenosa onde conchas e ossos de peixe estZo ausentes. A posigéo central dos sambaquis em relagdo aos recursos, a inexisténcia de hiatos na estratigrafia dos sitios ¢ as particularidades do ambiente litoraneo in- dicam tratar-s¢ de unt grupo sedentario e€ que se man- tinha por longos perfodos em seu territério. Tempo de ocupacio dos sambaquis Durante os anos 1994-95, levando em conta que os sambaquis foram construfdos por grupos sedentarios, investiguei o tempo de sua permanéncia nos sitios. Para saber a duragao da ocupacdo dos sambaquis +44. AHERN SAHARA SAMBAQUE analisei todas as datagdes existentes c, dos 147 sitios datados, apenas 28 apresentam mais de duas data- g6es. Sao dados esparsos ¢ de natureza distinta, e nem todos referem-se acs momentos iniciais ¢ finais da ocupacdo. Apesar dessas restrigdes, os dados indi- cam um longo perfodo de atividade dos sambaquis. Indicam também que a grande maioria funcionou por mais de cem anos, ininterruptamente. Alguns estive- ram ativos durante mais de mil anos, periodo sur- preendente ¢ inesperado para o que se considerava um bando de coletores némades (ver grafico e tabela as p.46 e 47). As dezoito datagées provenientes do sambaqui Ja- buticabeira-Il, em Jaguaruna — associadas ao estudo sistematico de 200 metros de perfil, aliadas a abertura de trincheiras em diferentes pontos do sambaqui e a escavagio de uma pequena area -~-, nao revelaram um unico indicio de que o sitio tivesse sido abandonado. E, de fato, surpreendente que um sambaqui estivesse ativo durante mais de mil anos; todavia os dados sdo incontestaveis. Os estudos realizados nos sambaquis I]ha da Boa Vista-I, II, Ill ¢ IV, no Rio de Janeiro, também indicam que os scus moradores la permaneceram por pelo me- nos 350 anos. Nao se trata de informacées isoladas, pois estudos em andamento em mais cinco sitios, em Santa Catarina, também apontam para longos perio- dos de atividade dos assentamentos. +45. “eiSojoarbie wad sepeziyn styep se eyuecwicoe orb ous ep weE ew 2 epRMio lo} OBSEZIETEHA B ADE] Eied “OPSEIED Buin ap srew io weIuNo anb sinbeqwes so euasaidly ‘ope| o@ eubed ap coypi6 oe waBue nap anb sane, oe wm Baws Tose [ee a aA ~ a wee oeer ig ore if ae, AREER RSET aE 7 we . ons oat Dt ~ gaa Teo Tiga Face isor [ince Serie | auiz [area tb anee | ioee f seze ‘pPPe. + id ‘One . cd 3567 OR, Sr ae war Te Perr les aunt | uaant f wim | wim} uaint é wai | was f wun | ain { usin] weusn | uzun] wan! HNN NNR Peernmmmeeonamnnens SS BINIDY SIV VIVO sviaylaawaaial sviva ~ ‘YOUNY SIVA Wi¥e 5 © 8 3 t S : a © 8 = 4 * + z : © 8 . |, 5 + g . © 2 ® { : » © # Bi nrerbned : : » o z $ =—__———» 2 Y wt : |» 2 a> ? a} : n—t— * Beto . ——— * #e—-> « »— ’ Ho ° nO . © - i i g a 5 8 i § a 5 q a 8 smbequies sop ogdednoo ap odway. MADU GASPAR Tecnologia, arte e dominio do mar A ocupagao de ilhas, algumas distantes da costa, ¢ a grande quantidade e diversidade de restos de fauna aquatica demonstram grande intimidade com o mar. Os sambaquieiros certamente dispunham de algum tipo de embarcagio para garantir as rotineiras idas ¢ vindas entre os diferentes pontos do continente ¢ as ilhas. A presenca de peixes grandes entre os restos fau- nisticos, inclusive diferentes espécies de tubarao, in- dica destreza ¢ familiaridade com as aguas. Suspeita-se que pescavam em dguas profundas. Os ossos humanos guardam informagées sobre esse modo de vida, e a robustez que caracteriza essa populagao parece estar relacionada ao uso de embar- cago, sendo que o habito de mergulhar também dei- xou seus tracos. Além das canoas, deviam existir ar- madilhas para pesca ¢ redes de arrasto mas, como o espago préprio de tais objetos ¢ a dgua, nao se tem vestigio de sua presenga entre os materiais recupera- dos nos sitios. Nos sambaquis € encontrado um eficiente arsenal tecnolégico para a captura de pescado, formado por uma variedade de pontas dsseas que cram presas 4 ex- tremidade de hastes de madeira, algumas com a fun- ¢40 de perfurar o animal cacado, outras com a extre- midade arrebitada para auxiliar na fixagao do peixe tal qual uma farpa de arpao. Os materiais escolhidos -48. ‘i ASEAN 1. Observe 0 tamanho ¢ a proximidade dos sitios. Sambaquis da Figucirinha-I e Il, SC. a als Haeneaenerten nee mnsanarenenp narra hunter “ozenb ap sease] 3 osso 3 eipad wa so}!2y Souope ‘seyouod ap sasopedse ‘osso 3p seyuod ‘souewny sosso 204 ]3Uel dP Oly OP sinbequies Wa soper]uosUA steLfazeUI SO SOpenuasqo 49S wiapod wabejuou essay -G ASO Cp ae LE sc. depositou as conchas no terreno e criou uma a0 4. Mesmo durante o inverno a lagoa do Camacho fornece alimento ‘a0 focal. s £ = 5 A ° 3 @ aus s = Ss & £ 2 a s < u 3 = D a 3, A catadora de berbig: para a populag: 6. Rocha utilizada para preparar as laminas de machado de pedra polida, Sambaqui IIhote do Leste, RI 8 9. Esculturas feitas cm pedra, Colegao Padre Rohr, IPHAN, SC. 10 ¢ 11, Escultura representando homem, recuperada na Ilha do Desterro, sitio Pantano do Sui. Exposigao do Museu Nacional, RJ. 7. A lamina de machado é parte do acompanhamento funerario. Sambaqui tlhote do Leste, RJ. a | 2 2 oe g 2 : | ‘ / 4 : 2 : 2 2 ZS : ' : 2 2 | : z S | i a | ZB | 12. No sambaqui Jabuticabeira-ll, SC, 05 mortos eram sepultados em posic&o fetal em pequenas covas ovaladas. 13. Observe o grande ntimero de sepulturas; em algumas covas havia mais de um individuo. Sambaqui Jabuticabeira-Il, SC. 14. Inicio da escavacdo do sambaqui Jabuticabeira-li, SC. 15, 0 arquedlogo usa espatula de bambu para expor um dos frageis esqueletos. Sambaqui Jabuticabeira-Il, SC. 16 e 17. Todas as informagies sdo registradas através de desenhos e Fotografias. race A URN SAMBAQU! para fabricagao desses artefatos sto espinhos de peixe, espordes de raia e ossos longos de aves ¢ de mamiferos, camo macacos, porcos-do-mato ¢ veados. Em alguns sitios, anzdis de osso complementam o acervo voltado para a captura de peixe. Pequenos blocos ¢ lascas de quartzo eram preparados através da percussdo direta ¢ bipolar, garantindo fios cortantes para inuimeras ta- refas. Conchas resistentes eram usadas para raspar ¢ rouitas foram transformadas em adornos, Belos pin- gentes ou contas arredondadas indicam destreza na fabricagao de pegas delicadas e valorizacio das super- ficies nacaradas das carapacas de moluscos. Dentes de porco-do-mato, tubarao ¢ jacar¢é também foram transformados em pingentes que adornavam colares e, em virtude do comportamento agressivo desses ani- mais, deviam ser importantes insignias na vida coti- diana (Fig.5). O arsenal tecnoldgico contava também com ob- jetos para triturar e moer alimentos. Pesados almofa- rizes feitos em pedra estavam relacionados com o pro- cessamento de vegetais. Um artefato sugestivamente denominado quebra-coquinho, entre outras funcées, facilitava o consumo de diferentes tipos de nozes, Em- bora certamente fossem uma importante fonte de ma- téria-prima ¢ de alimento, os vegetais tém baixa pre- servagdo nos sambaquis, podendo ser encontrados apenas quando esto carbonizados ou em camadas com bastante agua. Nos niveis submersos do samba- +49. MADU GASPAR qui de Sernamberiba, no Rio de Janeiro, foi encon- trado um fragmento de madeira que parece ser parte de uma langa. De l4 também provém uma série de pequenas estacas de madeira que foram encontradas alinhadas. No sambaqui Espinheiros-II, em Santa Ca- tarina, encontraram-se trangados que poderiam fazer parte de uma cesta ou armadilha para capturar peixe. A importancia do reino vegetal para os samba- quieiros j4 foi detidamente analisada e 0 estudo dos carvées demonstrou que uma grande quantidade e di- versidade de madeiras cram manuseadas por esses gru- pos, que exploravam, de maneira sistematica, o en- torno dos sitios. Galhos ¢ troncos caidos, madeiras ja mortas, eram usados para as fogueiras. Ha indicios de que realizavam manejo de plantas ¢ provavelmente protegiam algumas espécies apreciadas para consumo ou fabricagdo de artefatos ~~ pratica plausivel em se tratando de um grupo sedentario que ocupou os sitios durante grande intervalo de tempo. A alta freqiiéncia de caries, aliada a um desgaste especifico dos dentes observado na populagao que construiu o sitio Coron- dé, no Rio de Janeiro, também revela a importancia dos vegetais na dieta alimentar. O estudo dos dentes indica clevado consumo de carboidrato, ¢ suspeita-se que esteja relacionado ao cultivo de mandioca. Ainda sobre a industria litica, um ntimero signi- . ficative de pequenos scixos arredondados ¢ encontra- do nos sitios. Alguns, de tanto serem usados, ficaram = 50° SAMBAQUI desgastados e apresentam pequenas depressées na pat- te central ou mossas nas extremidades. Sao marcas de- correntes do uso repetitive para lascar outras pedras, fixar estacas no solo ou quebrar coquinhos. Algumas pedras nao apresentam nenhum trabalho ou marca de uso e sua fuinc&o nao pode ser determinada. Outras fazem parte da paraferndlia mortuaria e foram esco- thidas provavelmente devido 4 forma ¢ ao peso. A su- perficie homogénea ¢ alisada pela agao da agua e da areia pode ter sido fonte de inspiracao para o desen- yolvimento da técnica do polimento, arte em que os sambaquieiros eram eximios. A destreza em lidar com as pedras esta manifesta tanto nos pingentes como nas esculturas. Um esqueleto evidenciado no sambaqui de Guaiba, em Guaratiba, no Rio de Janeiro, contava com um belo colar com dois pingentes: uma plaqueta feita em concha ¢ a outra em pedra. Esta apresenta forma ovalada, com 20cm de comprimento e 10cm de largura maxima, e foi insistentemente polida até que ficasse com a espessura de 0,5cm. O dedicado trabalho resultou em uma pega de forte apelo estético. Rodelas com cerca 10cm de di&metro ¢ 4em de es- pessura também eram fabricadas e indicam o persis- tente trabalho de perfurar matéria-prima to resisten- te quanto o diabdsio ou o gnaisse. Um desses abjetos foi encontrado no sambaqui Jaburicabeira-Il ¢ fazia parte do acompanhamento funerério. -51- MADU GASPAR Seixos de formato quadrangular eram também es- colhidos para a fabricagao de laminas de machado e, se necessdrio, afinados através de lascamento, o gume sendo finamente polido. Os locais para preparacao de laminas de machados sao denominadas oficinas de polimento. Sao diques de diabdsio ou basalto que apresentam conjuntos de marcas correspondentes 4 preparagdo do lado, da face ¢ do gume da lAmina. Geralmente estio préximos da agua, elemento que, junto com a areia, agilizava a obtengao do polimento desejado. Considerando que existe um niimero muito maior de sambaquis (que ultrapassa a casa do milhar) do que de oficinas de polimento (que nao chega a trés dezenas) e que quase todas as colegdes proceden- tes de sambaquis contam com laminas polidas de ma- chado tipologicamente semelhantes, acho que a pro- dugao desse artefato restringia-se a determinadas areas. Infelizmente, a inexisténcia de pesquisas que trarem, em detalhe, da produg4o e da circulagao de tais pegas impede que s¢ avance sobre o tema (Figs.6 e7). A habilidade dos sambaquieiros ficou registrada nas esculturas de pedra ¢ osso conhecidas como z06- liros (zoo=animal, lito=pedra); sio objetos que im- pressionam pela beleza € pelo equilibrio de formas. O vids extremamente reducionista da arqueologia brasileira fica bem expresso no termo escolhido para designar essas magnificas esculturas, que também sio feitas em osso e que nao se restringem a representar +525 SAMBAQUE animais. Rodas dentadas, especie de engrenagens, e pecas falicas também integram esse universo, além de peixes, aves, homens e figuras geométricas. André Prous (1977) estudou detidamente essas esculturas € informa que sio conhecidas mais de duas centenas, medindo entre 10 e 43cm, ¢ que a quase totalidade dos artefatos apresenta uma pequena cavidade de for- ma oval em sua parte ventral. Prous identificou dois conjuntos de pegas segundo suas principais categorias estilisticas: esculturas geométricas ¢ objetos variados que incluem representagées naturalistas de animais. Alguns animais sao facilmente reconheciveis € passi- veis de identificacao zooldégica, podendo ser estabele- cida a espécie. Raia, tubario, baleia, boto, linguado, peixe-cofre, parati, enchova, enxada, martim-pesca- dor, pingtiim, albatroz, coruja, urubu-rei, morcego, atu, jabuti, tamandua, cutia, rartaruga, jacaré e um felino estio entre os animais escolhidos para serem retratados em pedra e em osso {Figs.8, 9, 10 ¢ 11). Como o restante do contetide dos sambaquis — artefatos dsseos, liticos, restos alimentares, esqueletos humanos —, muitas estatuetas também foram encon- tradas nos sitios. As esculturas que representam ani- mais referem-se, em sua grande maioria, a seres que esto presentes no registro arqueolégico na forma de restos alimentares. As excegdes séo alguns animais voadores (morcego, albatroz e uma ave que parece urubu-rei) ¢ um animal que se aproxima do taman- + 53> MADU GASPAR dud. Nesse sentido, as representagées parecem fazer mengio ao dominio alimentar, os seres representados diferenciando-se da totalidade da dieta por serem ani- mais que tém mobilidade. Como foi apontado por Prous, as estatuetas referem-se “a um mundo animado do qual os vegetais € os moluscos estéo excluidos”. Sao bichos que nadam, correm, voam e que podem ser surpreendidos copulando. Por compartilhar destas caracteristicas ¢ que os préprios homens também es- to af representados. © fato de a grande maioria das esculturas apre- sentar a cavidade na parte ventral leva a pensar que estao referidas ao dominio da reproducio e da ferti- lidade. A reprodugdo, de maneira bem explicita, esta mencionada na escultura que mostra pdssaros copu- lando ea fertilidade, no objeto que apresenta um casal de peixe no momento da desova. A categoria abundantemente representada é a dos animais marinhos, Sao também os que recebem tra- tamento mais realista, possibilitando identificar 0 gé- nero e até mesmo a espécie, Nas palavras de Castro Faria, apresentam “apreciavel corregio anatémica”. Sa0 0 que o senso comum chama de “peixe”. J4 os animais terrestres sé podem ser identificados, com to- tal seguranga, em um caso. As aves, salve uma repre- sentagao fiel de albatroz, so geralmente simples evo- cagdes. +54. SAMBAGUI Essa arengao dedicada aos “peixes” aponta para o ambiente a que o grupo estava mais ligado ¢ é a chave para entender a maneira como os proprios samba- quieiros deviam se perceber Ao invés de “coletores de moluscos”, como havia sido proposto pelos pes- quisadores, dada a grande quantidade de conchas, € mais provavel que eles se percebessem como pescado- res, senhores do mar. Como 0 albatroz, tinham uma grande familiaridade com Aguas distantes da costa. A intimidade com o mar, que sé recentemente vem sendo desvendada, justifica 0 cuidadoso twata- mento dado ao albatroz. Trata-se de uma ave de alto- mar que nao freqiienta o litoral brasileiro e que, por set um animal tipico de mares distantes, recebeu um tratamento mais detalhado, transformando-se assim em um simbolo do dominio do mar. No litoral catarinense foram encontradas gravuras polidas feitas em paredées de granito que delineiam formas humanas e desenhos geométricos. Os painéis esto em locais de dificil acesso, em ilhas distantes da costa ¢ voltados para mar aberto. O estudo realizado por André Prous indicou que as ilhas que receberam a decoragao estio dispostas em intervalos de 20 a 25km, como se cada uma fosse um ponto maritimo de uma etnia continental. E sempre dificil correlacionar grafismos com ves- tigios de solo mas, cm decorréncia da localizagio dos -55- MADU GASPAR paincis, que foram feitos por eximios navegadores, nao seria surpresa se fossem obra dos sambaquieiros. A iatimidade com o ambiente aquatico esd re- gistrada também na propria implantacao dos sitios na paisagem, geralmente em locais que se debrugam so- bre as 4guas como os apartamentos com vista para o mar. Sambaquis préximos, moradores vizinhos O arranjo espacial dos sambaquis na paisagem ¢ as suas dimensdes informam um pouco mais sobre a or- ganizagao social desse povo. Sintetizei os dados dis- poniveis sobre 62 sitios da Regiao dos Lagos e obtive varias informagées sobre o sistema de assentamento desse grupo social. Ao estudar as técnicas empregadas na fabricacao de artefatos, bem como marcas de uso ¢ formas recorrentes nestas industrias, observei alta similaridade na forma final e na maneira de fazer os objetos. Essa andlise, associada ao estudo do préprio processo de construcio dos sitios, evidenciou uma cultura material produzida por pessoas que circula- vam entre os sitios € que viajavam pelo fitoral de uma maneira capaz de disseminar e manter o modo de re- solver os seus problemas ¢ fazer suas coisas. A andlise da distribuicao espacial dos sitios e 0 estudo dos restos fauinisticos indicaram também que + 56° SAMBAQUI os assentamentos estavam t4o préximos que ocorria a sobreposigao de dreas de captagao de recursos, Como alguns sitios estavam ativos simultaneamente € como nao ha nos ossos humanos indicios de dispu- tas sistematicas nem arsenal tecnoldgico voltado para a guerra, considerei que a sobreposigio de territérios aponta para a exploragdo conjunta do ambiente, Os recursos existentes nos ambientes aquaticos tém ca- racteristicas que favorecem esse tipo de sociabilidade. Como ocorre nas tradicionais aldeias de pescadores, a pesca pode ser realizada por um ntimero significa- tivo de pessoas, pois, se o cardume nfo for capturado, continua o seu ciclo de vida esd estard disponivel na proxima estagdo. O peixe pode ser cercado em con- junto € sua concentracao propicia a interagao social. A andlise da distribuigio espacial dos sitios indi- cou, ainda, que a ocupagio da drea se deu através de concentragoes de sitios e nao através de sitios isolados. Esses agrupamentos de sitios sio as unidades que tém significado para a vida social dos sambaquieiros. O espacamento entre os sitios, o fluxo ¢ a interacao entre pessoas ¢ a sobreposigao de territérios de exploragio indicam a articulagao dos diferentes sambaquis. Embora nao haja quantidade significativa de si- tios datados que permita tratar o tema coma desejavel precisao, as informag6es disponiveis para a Regido dos Lagos sugerem que os agrupamentos funcionariam “57. MADU GASPAR com um nttmero minimo de trés sitios, os maiores adensamentos podendo conter até o dobro de sam- baquis. Ao crescer em demasia, a comunidade prova- velmente se subdividia: um pequeno grupo poderia se juntar a um agrupamento jé existente ou mesmo iniciar a construgao de outra comunidade, dando continuidade ao povoamento do litoral brasileiro. No interior das comunidades, observei ainda uma maior concentragao de sitios em alguns pontos. Os sitios tém alta visibilidade ¢ a proximidade entre eles € de tal ordem (500m em média) que permitia con- trole visual ¢ comunicacao gestual entre seus mora- dores. Esses assentamentos compunham o nucleo de interagio da comunidade. A possibilidade de comu- nicagao visual provavelmente esta relacionada & ex- ploragdo conjunta dos grandes corpos de agua, pois no seria surpresa se existisse um sistema de comuni- cacio algo semelhante ao vigente hoje entre os pes- cadores da regiao. A distancia entre os sitios sugere dois tipos de in- teracdo social: relagSes rotineiras entre os moradores de sitios que compunham o niticleo e relacdes mais esporddicas entre sambaquis mais distances. A posicdo mais isolada de alguns assentamentos implicava des- locamentos de seus habitantes para entrar em contato com os habitantes de outros sitios distantes e com o nucleo da comunidade (ver mapa 4 pagina seguinte). - 58> SAMBAQUT ESQUEMS DE INTERACAO CARACTERISHICA DE AGRUPAMENTO De Sivsas EM Caso Frio, RI relacdo rotineira {comunicacao visual} = = = = relacdo esporécica Ora, se a visibilidade dos sftios era um importante valor para esse grupo que se empenhou na construgdo de marcos paisagisticos ¢ se as industrias, tanto de fa- bricagdo de artefatos como do préprio sitio, indicam que a circulagio de pessoas cra uma pratica rotineira, € bem provavel que os sambaquis que integravam os niicleos das comunidades fossem locais privilegiados fa trama social desse grupo. O estudo da implantagao dos sitios na paisagem indicou ainda o tipo de local escolhido pata edificagao dos sambaquis. Eram preferidos pontos de intersegZo ambiental, préximos do mar, da lagoa, do canal, do manguezal, da restinga e da floresta. Os sftios eram +59.

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