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Kelly Silva
Andreza Ferreira
Resumo
Introdução
No sítio eletrônico do governo de Timor-Leste, na sessão referente às
características do país, há, de forma ilustrativa e representativa, um mapa nacional
com todos os distritos coloridos de formas diferentes. Neste mapa, cada distrito é
identificado por um padrão distinto de tais, tecido produzido artesanalmente por
mulheres ao longo de todo país13. Assim, na extremidade direita do mapa, perto da
inscrição Jaco, podemos perceber as características dos tais de Lautém, com barras
acastanhadas; em Ataúro, por sua vez, podemos perceber características do tais
vegetal, conhecido como rapin hirik14.
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A associação de diferentes padrões de tais a distintas regiões e, ao mesmo
tempo, a cobertura de todo território nacional com este tecido parece ser uma das
expressões mais agudas dos processos pelos quais o tais tem sido alçado à condição
de símbolo nacional. Para tanto, é preciso objetificá-lo, transformando-o em um
significante de conteúdos, de representações, de ideias e valores os quais ele passa
a ressoar, a evocar, desde que manipulado em determinadas condições.
Este artigo procura reconhecer e analisar os mecanismos pelos quais o tais tem
sido produzido como um símbolo da nação de modo a corroborar para a própria
sedimentação da mesma. Trata-se de um processo de longa duração, iniciado
mesmo durante a colonização portuguesa, quando se organizavam feiras e
publicações nas quais a arte indígena era exposta e associada a diferentes regiões
do Império (Silva e Sousa 2015). Atualmente, esse processo é alimentado e
intensificado por práticas de governo da kultura (Silva 2014) voltadas ao
reconhecimento, preservação e salvaguarda de saberes locais classificados como
patrimônio nacional e à geração de renda para mulheres e demais coletivos sociais.
Imagem 1 – ―Mapa de Timor-Leste com distritos representados por tais disponível no site do
governo de Timor-Leste15.
Universidade Nacional Timor Lorosa‘e (UNTL), registrado sob o protoloco CAPES/AULP 54/2014,
para o deslocamento de Andreza Ferreira a Dili, em 2014, e da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Distrito Federal (FAP -DF), para apresentação de parte deste texto na VI Reunião da Associação
Portuguesa de Antropologia, ocorrida em Coimbra em junho de 2016. Agradecemos imensamente estas
três instituições. Por fim, agradecemos ainda a Daniel Simião e a Sara Morais pelas várias ocasiões de
diálogo que permitiram a construção dos argumentos que aqui propomos.
15
Fonte: site de timor-leste : http://timor-leste.gov.tl
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Compreendemos símbolos na acepção de Pierce (1999), ou seja, como signos
cuja capacidade representativa advém de uma relação estabelecida com a coisa
representada por força de convenção. Nesse sentido, cabe-nos investigar os
mecanismos pelos quais esta convenção tem sido construída e qual é a sua
substância. Inspiradas por Strathern (1984), tomamos por objetificação os
processos pelos quais determinados fenômenos são produzidos enquanto objetos,
coisas, assim compreendidos desde o ponto de vista da ontologia ocidental
hegemônica e desencantada (ao menos enquanto projeto explicitado). Certos
fenômenos são considerados objetos por serem desprovidos de autoconsciência,
agência e movimento próprio; são também considerados depositários passíveis da
ação humana (e não sujeitos dessas ações), sendo dissociados, do ponto de vista
ontológico, delas. A retirada dos artefatos de seus contextos locais de produção e
manejo – que quase sempre implica extração de certos significados e eficácia a eles
atribuídos – faz parte deste processo de objetificação.
Em certa medida, a representação tem como base a objetificação (Mitchell apud.
Keane, 2007). Fenomenologicamente, a ideia de representação sugere que existe
uma realidade distinta e anterior ao modo como narramos ou representamos a
mesma. Ela envolve uma distinção entre o que seja modelo e o que é (ou seria) a
realidade. Um dos efeitos mais profundos desse modo de apreender o mundo,
segundo Mitchell (apud. Keane 2007, 11), seria a distinção entre corpo e alma,
material e imaterial, matéria e espírito.
Para fins de nossa análise, é importante também mobilizar a ideia de
ressonância, tal como formulada por Gonçalves (2005). O autor sublinha que os
objetos eleitos como símbolos de uma região ou uma nação não são escolhidos ao
acaso. Eles são eleitos em razão de seu potencial de ressoar, de evocar valores e
imagens os quais se pretende celebrar e associar à comunidade. O tais, em
contextos leste-timorenses, é um objeto detentor de múltiplos significados e intensa
vida social, sendo ainda um importante artefato de contemplação estética com
poder de agência. As práticas envolvidas em sua elaboração, manejo e valorização
fazem dele um forte candidato a símbolo e patrimônio nacional (Ximenes 2012).
Isso porque os saberes envolvidos em sua elaboração são, mais ou menos,
compartilhados pelas diferentes populações que habitam as fronteiras leste-
timorenses, ao mesmo tempo em que seus distintos padrões estéticos nos falam das
diferenças existentes no interior dessas mesmas fronteiras. Desse modo, o tais
ressoa unidade (de saberes) e diversidade (de padrões estéticos), ingredientes
fundamentais dos repertórios nacionais pós-coloniais.
Tomamos como objeto de análise as práticas institucionais de organizações não-
governamentais como a Timor AID e a Alola voltadas à coleção e divulgação do
tais e dos saberes implicados em sua produção,16 bem como facetas da exposição A
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Em outro trabalho Ferreira (2015) discute certas dinâmicas contemporâneas de produção do tais em
Díli para comercialização.
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Nossa Herança, organizada e exibida pelo Arquivo Museu da Resistência.
Argumentamos que práticas institucionais como colecionamento, cursos,
exposições, publicações, etc. são tecnologias de governo que trabalham para
objetificação do tais, aumentando sua amplitude semiótica de modo a fazer dele
um signo para valores e ideias nacionais. Estes fatos são produzidos por
narrativas e dinâmicas de representação e agenciamento de várias ordens, assim
configuradas tendo em conta os públicos a que se destinam e os efeitos desejados.
Junto a isso, destacamos que a objetificação do tais (e possivelmente de outros
artefatos) é condição para aumento de sua amplitude semiótica. Certos suportes de
comunicação investem em uma maior contextualização do tais, explorando suas
dinâmicas de produção e consumo locais a fim de inscrevê-los como parte de
práticas (como as trocas matrimoniais e fúnebres) que caracterizam rotinas ditas
tradicionais. Outros suportes, porém, investem em narrativas que nada falam da
vida social local do tais de modo a, imediatamente (sem mediações), inscrevê-lo na
ordem narrativa nacional, relacionando-o com projetos de desenvolvimento em prol
da igualdade de gênero e crescimento econômico, por exemplo.
As informações e interpretações produzidas ao longo do artigo são produto de
investimentos de pesquisa particulares. Por um lado, têm como base o trabalho de
campo realizado por Andreza Ferreira, em Díli, entre setembro e dezembro de
2014, no qual abordou-se novas dimensões da vida social do tais (Ferreira 2015).
De outro, as análises aqui esboçadas são produto de investimentos de pesquisa de
longa duração, sob liderança de Kelly Silva, a respeito das práticas de governo da
kultura envolvidas na invenção, transposição e subversão da modernidade em
Timor-Leste (Silva 2014, 2016).
O artigo segue estruturado em duas seções, seguidas de uma conclusão. Na
primeira, analisamos as pautas políticas que orientam as práticas de governo do tais
(e da kultura) pelas ONGs acima referidas, assim como divulgadas na rede mundial
de computadores e em outros suportes. A seguir, discutimos as práticas
institucionais que trabalham pela objetificação do tais, quais sejam, as coleções de
tais, as publicações de ONGs e exposições sobre o tais. Intenta-se identificar as
variáveis pelas quais estes tecidos são descritos e interpretados. Por fim, na
conclusão, potencializamos nossas hipóteses a partir de explorações em torno da
ideia de ressonância.
Cabe ressaltar, de antemão, a inexistência de procedimentos burocráticos
instalados no Estado leste-timorense para a salvaguarda de patrimônios imateriais;
os saberes e fazeres relacionados ao tais ainda não estão titulados formalmente
enquanto patrimônios nacionais. Contudo, oficiosamente, o reconhecimento do tais
como patrimônio nacional já existe por meio dos múltiplos investimentos
realizados pelo Estado e organizações não-governamentais na promoção e
valorização destes tecidos e dos saberes implicados em sua confecção.
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I - O governo do tais para o desenvolvimento da kultura e empoderamento das
mulheres
A página eletrônica da Timor Aid na internet, por sua vez, logo de saída nos
informa que seus esforços de governo do tais são parte de seus programas sobre
kultura e patrimônio cultural, financiados, inclusive, com apoio da União Européia
e realizados em parceria com instituições nacionais e internacionais:
A Timor Aid está engajada na preservação e promoção do
patrimônio cultural de Timor-Leste, particularmente
salvaguardando a tradição dos tecidos tradicionais, chamados de
tais na língua tétum. Em anos recentes, o trabalho tem sido
apoiado por meio de um projeto cultural de larga escala em ambos
Timor-Leste e Oeste. Na Busca por um Terreno Comum:
Tradições Culturais Têxteis na Ilha de Timor – sua Preservação,
Promoção e o Desenvolvimento de Capital Social Cultural foi
uma parceria entre a Fundação Alola, no Timor-Leste, e Yayasan
17
Utilizamos a grafia kultura para indicar seu uso, nos contextos em que é mobilizada dentro deste
artigo, enquanto categoria de governo.
18
(Tradução livre do original em inglês disponível em
https://www.facebook.com/alolafoundation/photos/a.384504978350147.1073741833.24719968874734
4/498924010241576/?type=1&theater)
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Tafean Pah no Timor Oeste, com um engajamento internacional
de Tropenmeseum (agora Museu das Culturas Mundiais) em
Amsterdã. Este programa foi financiado pela União Européia
durante três anos, de 2012-2015. (Tradução livre do original em
língua inglesa disponível em:
http://www.timoraid.org/cultural.php)
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II – Objetificando o tais. Colecionamento, exibições e reclassificações.
A vida social do tais tem sido marcada por algumas rotas e desvios (Appadurai,
2008). Sua rota mais usual, desde o ponto de vista de seus padrões de uso locais,
estava vinculada à circulação dentro do regime de dádiva. Seu desvio mais
conhecido, por sua vez, esteve relacionado à circulação dentro do regime de
mercado20. Contudo, esforços de recolha, classificação e colecionamento de tais
para fins de conhecimento de suas variações têm se caracterizado como padrões de
desvio bastante usuais, com algum papel na objetificação destes artefatos.
O fenômeno do colecionamento de têxteis tradicionais está longe de ser novo.
Constitui parte da história de interação entre populações leste-timorenses, chinesas,
indianas e europeias desde há muito, alimentando toda sorte de narrativas
orientalistas. Agora, contudo, o colecionamento de tais é colocado a serviço da
construção nacional em Timor-Leste. Também é importante pontuar que o
colecionamento de tais reúne tecidos que foram feitos e circularam enquanto
dádivas em trocas rituais.
A Alola e a Timor Aid (e possivelmente outras instituições) têm se esforçado na
recolha e sistematização de tais e de conhecimentos implicados na produção dos
mesmos em todo território leste-timorense. Esses esforços deram origem a
coleções. Em sua página eletrônica, a Timor Aid afirma, por exemplo, ter uma
coleção de 160 tais. A instituição planeja colocar sua coleção online de modo a
fomentar pesquisas que permitam reconhecer e conectar os tais de Timor-Leste a
outros têxteis da região e do mundo. É, pois, a partir dessas coleções que são
elaborados catálogos e exposições nos quais os tais são objetificados a partir de
narrativas classificatórias que discutiremos a seguir.
De todo modo, parece-nos que a construção de coleções participa da
objetificação do tais na medida em que exige a desconexão do mesmo de seu
20
Muito resumidamente, o regime de troca de dádiva pode ser descrito como aquele em que, por meio
do intercâmbio de bens, palavras e gestos, as pessoas negociam relações que estão fora do ato da
transação (Strathern, 1992). Nesse regime, pessoas e coisas são tratadas como pessoas, sendo os
objetos de valor suportes para produzir e reproduzir relações de longo prazo. De certo modo, existe
uma unidade, consubstancialidade entre o objeto que circula e as pessoas que o fazem circular. Tal fato
faz desses objetos coisas animadas e inalienáveis, sendo depositários de certo tipo de agência. O valor
das coisas é medido por seu rank e não por preço. As partes envolvidas nas trocas são mutuamente
dependentes e figuram uma diante das outras de forma assimétrica (Gregory, 1982). O dom é
frequentemente visto como obrigatório. De outro lado, grande independência entre os atores envolvidos
nas operações de troca e a presença de moeda como um meio de quantificar o valor são as principais
características do regime de mercado (commodity). Em comparação com o regime de dádiva, em
operações informadas pelo regime de mercado as relações entre as pessoas são experimentadas como
relações entre coisas. Não há consubstancialidade entre as coisas trocadas e aqueles que a fazem
circular, de modo que são pensadas como alienáveis, inamimadas e objetos passivos da ação humana
(Strathern, 1984). O valor das coisas é mensurado pelo preço e sua equivalência a este preço deve ser
imediata (Gregory, 1982: p. 41-70).
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universo de criação, uso e circulação original - com o qual, contudo, o tecido
continua sendo associado para esforços de classificação – a fim de sobrevalorizar
suas características estéticas, vertidas em expressões culturais da região ou da casa
dentro da qual foi elaborado. Quando tornado peça de uma coleção o tais é
apreendido em sua materialidade e além dela, em um sentido particular: ele é
tomado como símbolo de um distrito, de uma aldeia ou casa, por contraste a outros.
Certas funções práticas dele são encerradas – o uso como vestimenta – e outras
inauguradas – certo tais como símbolo, como representação convencionada de
certo distrito ou subdistrito. Ele é desprovido de agência e tornado objeto da ação
ou símbolo/modelo daqueles que o criaram ou circularam. O tais é também
secularizado, destituído de funções ou significados místicos a partir do momento
em que entra em uma coleção, embora sua feitura seja elaborada como legado dos
ancestrais.
No interior de uma coleção, o tais é tomado como alegoria daquelas que o
produziram. Serão as coleções experimentadas como índices da diversidade de
populações, línguas e outros agentes que compõem o país? Eis a questão. Uma
análise das classificações e narrativas a respeito do tais presentes em catálogos de
coleções e exposições podem nos oferecer algumas pistas para responder estas
questões.
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municipalidades acima referidas.21 Os catálogos têm como base informações
produzidas ao longo de aproximadamente 10 anos de pesquisa sobre estes artefatos.
É interessante ressaltar que a Timor-Aid tem lançado seus livros sobre tais em
inglês, tétum, malaio e português. Contudo, nem sempre simultaneamente.
Um olhar panorâmico sobre cada uma dessas publicações, editadas pelo design
e artista David Palazón, revela um grande cuidado estético. Nelas, imagens,
fotografias, têm hegemonia sobre as palavras. Há mais imagens do que palavras em
ambas as publicações. Um livro é de autoria de Joana Barrkamann e outro de
Rosália M. Soares; ambas são apresentadas como experts da tecelagem tradicional
leste-timorense. Em cada uma destas publicações, os variados saberes têxteis são
apresentados como reflexo de variações culturais e dinâmicas históricas
particulares.
Assim, por exemplo, as características técnicas e estéticas dos tais de Covalima
são relatadas como produto do entrelaçamento de legados de populações Tétum,
Bunak e Kemak, que se fixaram em suas fronteiras em diferentes períodos.
Destaca-se, ainda, que os tais desta região sofreram influência dos tecidos indianos
que nela também circulavam. No catálogo de Lautém podemos identificar a mesma
narrativa, com o adendo de que se sugere que nas zonas de fronteira entre Baucau e
Lautém haveria tais com influências diversas.
Os tais são descritos tendo em conta as seguintes categorias: Técnicas de
produção, a saber, tingimento, costuras, acabamentos, manutenção e
armazenamento; motivos; estrutura do tecido (tecido de homem e tecido de
mulher); usos (como os homens usam e como as mulheres usam) e; hierarquia dos
tecidos.
Discutem-se também as formas de transmissão do conhecimento dos padrões de
tecelagem. Ressalta-se então o papel das mulheres na produção deste artefato e
como se dá a transmissão de conhecimento dos mesmos: no caso de Lautém, por
exemplo, indica-se ser usual cortar um pedaço da ponta do tecido feito para se
arquivar o padrão de tecelagem nele presente e assim salvaguardar o motivo, o
desenho da família. No livro de Covalima, por sua vez, registra-se a prática de
tatuar o corpo com padrões de tecelagem para preservação da memória do mesmo e
sua reprodutividade.
Se em um primeiro momento as publicações inscrevem diferentes padrões de
tais a distintas fronteiras distritais, a seguir as autoras lançam mão de variáveis
classificatórias de escala menor: evocam-se padrões e saberes subdistritais e, a
seguir, padrões e saberes próprios a casas, linhagens ou até a pessoas diferentes. Ao
mesmo tempo, os catálogos dignificam algumas das detentoras dos saberes
envolvidos na produção do tais, identificando-as pelo nome e inserindo nas
publicações grandes fotografias das mesmas (Soares 2015, 20,36).
21
Em razões de restrições técnicas, não necessariamente os saberes de todos os subdistritos
são contemplados.
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Os padrões de descrição dos tais presentes nas publicações indicam a autoria
dos tecidos. Afirma-se, por exemplo, na descrição de um tais originário de Tutuala
(Soares 2015, 25):
Também cabe observarmos que ikat não é uma categoria nativa e sim uma
categoria de análise usada por pesquisadoras de tecidos para designar o tipo de tear
utilizado. Por oposição, a palavra futus, por exemplo, que descreve uma técnica de
tingimento, é uma categoria nativa e também é utilizada como recurso analítico. É
interessante ressaltar que nestas obras categorias nativas e de análise convivem sem
distinções.
Evidenciam-se ainda as denominações locais para diferentes tipos de tais e seus
usos preferenciais, bem como os modos pelos quais a produção, uso e circulação
dos tecidos são estruturados e estruturam relações de poder e hierarquias sociais.
Neste contexto, chama atenção o fato de que a presença de motivos de origem
europeia é experimentada como fonte de desvalorização dos têxteis em Lautém
(Soares 2015, 17, 36, 38) em contraponto ao que se passa em Oecusse, onde a
influência cristã transborda os desenhos do tais, e é fonte de grande valor, como é
possível constatar em outro livro de Barrkman (2013).
Em diferentes partes dos textos de ambas as publicações ressalta-se, contudo,
que em cada um dos distritos aos quais elas se referem encontram-se tais de outros
distritos. Este fato é apresentado como produto da circulação do tais em diferentes
redes de troca pelo país, sobretudo em rituais de ciclo de vida como casamento e
morte. Assim, são indicados, mas não aprofundados, os contextos e situações em
que, preferencialmente, os tecidos circulam.
Antes de passar para análise do próximo documento, registremos recorrências
das formas de descrever e classificar o tais presentes nos catálogos acima: os
saberes são primeiramente diferenciados por tradições distritais e subdistritais; há
proeminência de fotografias sobre textos como fonte de conhecimento sobre o tais;
privilegiam-se descrições e análises sobre as características estéticas e técnicas do
tais e somente secundariamente se fala de seus usos; nenhuma das publicações
tematiza os significados simbólicos locais do tais, assim como sua percepção como
uma segunda pele, sua associação ao universo feminino e ao que é frio, à ideia de
vínculo e proteção (McKinnon, 1991), embora se cite que o acesso ao tais se dá por
meio de trocas rituais de dádivas.
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A arte futus e a nossa herança – catálogos e exposições
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Imagem 2, legenda ― Exposição Nossa Herança em D li, foto dispon vel em facebook da Alola‖ 22
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Fonte: facebook Alola : https://www.facebook.com/alolafoundation/?fref=ts
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Imagem 3- ― Tais oriundo de Tutuala, foto dispon vel em facebook da Alola‖23
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catálogos citados neste artigo. Neste sentido, o tais da figura 3, de Tutuala em
Lautém, do grupo Fataluku, além de estar na exposição e no catálogo de A Nossa
Herança, aparece também na página 34 do catálogo A Arte de Futus. Assim, é
relevante observar como há uma organização e reorganização destes tais por parte
das ONGs e das autoras dos textos de acordo com as narrativas que se quer
construir ou com os efeitos que se deseja produzir sobre os objetos junto aos
expectadores.
Se por um lado as narrativas do catálogo (e da exposição) dão dignidade ao
ponto de vista nativo, sugerindo que os saberes relacionados à produção dos
artefatos exibidos são legados dos ancestrais, ao assim fazê-lo também colocam em
segundo plano reflexões sobre a historicidade destes saberes. Essa tática narrativa
contribui para legitimação da inscrição desses saberes e artefatos em um registro
nacional. Isso porque a nação, enquanto comunidade moral, procura se legitimar
em narrativas e s mbolos primordiais, ―que estão fora da história, e ao mesmo
tempo a fundam. Nesse empreendimento, o que se objetiva como tradição é a forma
ideologizada da história (LiPuma 2005).
A ausência de detalhes de origem, significado e função dos tais expostos em ―A
Nossa Herança‖ pode ainda ser interpretada como parte da metanarrativa da
exposição que enfatiza a ideia do que seria comum, passível de reconhecimento
como sendo parte e herança de todos. Neste contexto, discursos que enfatizam a
diferença podem ser contraprodutivos à construção nacional, ao objetivo de
―desenvolver um sentido de unidade e identidade nacionais e devolver a todos os
timorenses a dignidade e o bem-estar a que há muito têm direito‖ (Cat logo 2014)
Não por acaso, o espólio todo da exposição é denominado nossa herança,
patrimônio de todos os leste-timorenses, e alegoria de suas diferenças por oposição
aos estrangeiros a quem o catálogo era também destinado. Assim, o nós a quem faz
referência ao falar de nossa herança é produzido como efeito de sublimação das
diferenças que marcam a história social dos artefatos bem como do efeito de
contraste induzido junto aos estrangeiros que visitam a exposição e que não podem
considerá-la como nossa herança.
Mas é curioso atentar ao fato de que a exposição combinou, de forma sensível
ao expectador, objetos que evidenciavam diversidade e unidade cultural leste-
timorense, aspectos essenciais para a construção nacional. Para isto, além de
objetos de diversas regiões, estiveram em destaque objetos que eram identificados
como atemporalmente relevantes, plasmando uma herança comum. Essa herança
comum pode ser lida como efeito do potencial de ressonância dos artefatos nela
expostos, os quais remetem concomitantemente às ideias de diferença e unidade.
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Considerações finais: Mapas, museus, exposições e catálogos em mútua
ressonância
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Referências Bibliográficas
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