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A FORÇA DO POVO:

BRIZOLA
E O RIO DE JANEIRO
Copyright © Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro - ALERJ

Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.6 10 de 19.2 .1998 .


É proibida a reprodução total C parcial, por qu a isq uer meios,
sem a ex pressa anu ênc ia da editora.

SUBOIRETORA GERAL DA ALER): Mayumi Sone


COORDENAÇÃO DE PROJETOS ESPECIAIS: Arl indenor Pedro de Souza

COORDENAÇÃO DO NÚCLEO DE MEMÓRIA POLíTICA


CARIOCA E FLUM INENSE: Marieta de Moraes Ferreira

COORDENAÇÃO DO VOLUME: Marieta de Moraes Ferreira

PESQUISA E TEXTOS: Amér ica Freire, Carlos Eduardo Sarmento,


Helena Bomeny, João Trajano Sento-Sé, Mari'eta de Moraes Ferrei ra,
Marly Silva da Motta e Mônica Rodrigues

ED iÇÃO DE TEXTO: Dora Rocha

ESTAGIÁRIOS E AUXILIARES DE PESQUISA: Daniela Bacta, Lidiane Monteiro Ribeiro,


Julia Oliveira Pedro de Souza, Jul iana Ribeiro de Oliveira,
Roclrigo Tannus Moreira, Rosa Maria de Souza e Daniel Gigot de Sousa

CA PA, PROJETO GRÁFICO E COMPOSiÇÃO: Leo Boechat

C JP-Brasi l. Catalogação-oa-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

B862

A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro / Organizadora Marieta de Moraes


Ferreira; Marieta de Moraes Ferreira ... [et a!. ]. - Rio de Janeiro: Alcrj ,
C PDOC/FGV, 2008.
228 p. il.
Inclui bibliogralla
ISBN 978-85-6021 3- 02 -3

1. Brizola, Leonel, 1922-2004.2. Rio de Janeiro (Eslado). 3. Histó-


ria polftica. 4. Brizol ismo. 5. Pop ulismo. I. ferreira, Mari eta de Moraes.

C DD ,320 .98 153


CDU: 98 1. 53
A FORÇA DO POVO:

BRIZOlA
E O RIO DE JANEIRO
Marieta de Moraes Ferreira
organizadora

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA


CONTEMPORÃNEA DO BRASIL - CPDOC

ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO


NÚCLEO DE MEMÓRIA POLÍTICA CARIOCA E FLUMINENSE
ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Mesa Diretora

JORGE PICCIANI
Presidente

CORONEL JAIRO
10 Vice- Presidente

GILBERTO PALMARES PEDRO FERNANDES GERSON BERGHER


2° Vice-Presidente 3° Vice-Presidente 4° Vice-Presidente

GRAÇA MATOS
10 Secretário

JOSÉ CAMILO ZITO JORGE MOREIRA DICA FABIO SILVA


2 o Secretário 3° Secretário 4 0 Secretário

RENATA DO POSTO
P Suplente

AMANDO JOSÉ PEDRO AUGUSTO EDINO FONSECA


2° Suplente 3° Suplente 4° Suplente
Sumário

Apresentação pág. 7

O Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense pág. 9

Introdução pág. 13

1. Do Rio Grande do Sul à Guanabara


Marieta de Moraes Ferreira pág.15

2. Entre o carisma e a rotina: as eleições de 1982


e o primeiro governo
Carlos Eduardo Sarmento pág.43

3. Imprensa: uma relação de amor e ódio


Mônica Rodrigues pág.68

4. Salvar pela escola: Programa Especial de Educação


Helena Bomeny pág.95

5. Novo sindicalismo e movimentos sociais


Américo Freire pág.128

6. O projeto político: a presidência da República


Marly Motta pág.151

7. A era do líder popular


João Trajano Sento-Sé pág.182

Memórias do brizolismo
Depoimentos colhidos por Mônica Rodrigues pág.202

Fontes e bibliografia pág.215


Apresentação

BRIZOLA ERA, como ele bem se definia, uma planta do deserto. Dizia
que bastava uma gota de orvalho para mantê-lo vivo. Quem, como eu, teve a
honra de conviver com esse líder extraordinário) aprendeu que a paixão pelo
Brasil era a seiva que o alimentava. Brizola falava do futuro como se menino
fosse. Pouco antes de morrer) estava em plena ativa, fazia planos sem cogitar
que a morte estivesse, como ele dizia para tudo o que estava próximo, ('coste-
ando o alambrado". Sua partida foi tão surpreendente como lhe foi a vida, e o
Brasil e a política ficam menores sem ele.
A Assembléia Legislativa do Rio é, como dizemos, o lugar da memória
do parlamento brasileiro, graças a iniciativas que recuperam a história polí-
tica do nosso povo. Na Alerj, fizemos exposições, sessões de homenagens a
Brizola e agora este livro. E foi aqui, quando esta casa não sonhava nascer,
quando o Rio era a capital da República e aqui funcionava a Câmara dos
Deputados, que Brizola teve um de seus momentos políticos mais brilhantes,
como deputado federal mais votado do país.
Fui militante do PDT, liderei sua bancada nesta Assembléia Legislativa
e fui seu representante numa época em que o brizolismo estava em plena as-
censão. Reconheço que, naquela época, o nível do debate político era outro,
havia uma efervescência muito grande que empolgava tanto a nós quanto ao
povo, que participava mais. Brizola, pela sua força indiscutível, pela bravura
reconhecida por aliados e adversários, coerência e fervor na defesa das gran-
des causas nacionalistas e trabalhistas, nos liderava. Quem lhe fazia oposição
tinha que ao mesmo tempo respeitar a sua biografia limpa.

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8 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro

Poucos políticos, nas seis últimas décadas, exerceram papel tão destaca-
do na vida pública brasileira quanto ele. Conseguiu ser uma referência para
muitos que passaram por ele. Sem nenhum exagero, eu me animo a afirmar
que Brizola, desde o retorno do exílio, além de promover o resgate de impor-
tantes ícones do trabalhismo, cassados e com os direitos políticos suspensos,
como ele, soube criar, pela via democrática seguida pelo PDT, uma escola de
formação de importantes lideranças que estão aí até hoje.
Relembrar a história de vida de Leonel Brizola na Alerj é fazer com que
as pessoas comuns, o povo, os estudantes, com quem Brizola gostava de se
relacionar, não se esqueçam da sua memória. Essa é a nossa missão) como
membros do parlamento e como amantes da boa política.

DEPUTADO JORGE PICCIANI


Presidente da Assembléia Legislativa
do Estado do Rio de Janeiro
o Núcleo de Memória Política
Carioca e Fluminense

EM MAIO DE 1997, foi firmado um convênio entre o Centro de Pesquisa


e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fun-
dação Getulio Vargas e a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
(Alerj), com o objetivo de construir um centro permanente de produção in-
telectual e de referência documental sobre a história política contemporânea
da cidade e do estado do Rio de Janeiro - o Núcleo de Memória Política
Carioca e Fluminense. Durante a fase de implantação do Núcleo, de 1997 a
1999, foram desenvolvidas duas linhas de ação interligadas. A primeira delas
consistiu na divulgação para o grande público da história do Palácio Tiraden-
tes, centro da vida política do país entre as décadas de 1920 e 1950 e atual
sede da Alerj. Para atingir esse objetivo, dois produtos foram preparados: uma
exposição multimídia permanente instalada no próprio prédio da Assembléia,
intitulada Palácio Tiradentes: lugar de memória do Parlamento brasileiro, e o
CD-Rom Palácio Tiradentes, a casa do Poder Legislativo.
A segunda linha de ação consistiu na publicação de um conjunto de
livros de depoimentos e de análise sobre aspectos significativos da história
política contemporânea carioca e fluminense. Duas coleções foram inicia-
das: Conversando sobre Política, destinada a divulgar depoimentos, e Perfil
Político, destinada a registrar biografias de políticos filiados a diferentes cor-
rentes político-ideológicas e partidárias, que tiveram participação destacada
no cenário carioca e fluminense nos últimos 50 anos. Foi lançado ainda um
volume avulso, dedicado ao jornalismo político, que sempre desempenhou
importante papel na dinâmica política do Rio de Janeiro.

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10 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro

Os cinco primeiros volumes da coleção Conversando sobre Política reú-


nem os depoimentos de José Gomes Talarico, Paulo Duque, Erasmo Martins
Pedro, Célio Borja c, num único livro, os de Hamilton Xavier e Saramago
Pinheiro. Na série Perfil Político foi publicado um livro sobre a trajetória
política de Chagas Freitas, principal líder de uma corrente política de grande
peso no Rio de Janeiro entre as décadas de 1960 e 1980. Finalmente, o volu-
me Crônica política do Rio de Janeiro reuniu entrevistas com jornalistas que
atuaram, e ainda atuam, em diferentes órgãos da imprensa da cidade, desde
seus tempos de capital federal até os de capital do estado do Rio de Janeiro.
Em junho de 1999, foi assinada a renovação do convênio entre o CPDOC
e a Alerj para dar prosseguimento às atividades do Núcleo. Nesta segunda
fase, decidiu-se preparar um conjunto de publicações com vistas a consolidar
o trabalho até então realizado. Para dar continuidade à coleção Conversando
sobre Política, foi escolhido o depoimento do desembargador Jorge Loretti,
homem público que conhece como poucos os meandros da política fluminen-
se. Para divulgar a exposição Palácio Tiradentes: lugar de memória do Parla-
mento brasileiro, foi elaborado um catálogo que oferecerá a um público mais
amplo um roteiro com textos e imagens referentes à história do palácio e da
vida política do Rio de Janeiro.
Nesta nova fase, decidiu-se também publicar livros relativos a um mo-
mento crítico da vida política do país e do Rio de Janeiro: as décadas de 1970
e 1980, marcadas pelo desgaste do regime militar e pela luta democrática. No
Rio de Janeiro, esses foram anos de profundas mudanças, causadas, entre ou-
tros fatores, pela fusão em 1975 do estado da Guanabara com o antigo estado
do Rio. Três livros trataram desses temas. O primeiro, intitulado Vozes da
oposição, reúne depoimentos de homens e mulheres que lutaram nos partidos
políticos e nos parlamentos, mas também na sociedade civil, contra o regime
militar. O segundo livro, A construção de um estado: a fusão em debate, con-
tém entrevistas com uma série de homens públicos que estiveram en1 posição
de governo antes e depois da fusão. O terceiro, Um estado em questão: os 25
anos do Rio de Janeiro, é uma coletânea de artigos assinados por especialistas,
sobre aspectos de natureza política, social, econômica e cultural do estado do
Rio de Janeiro no período 1975-2000.
No ano de 2001, foi lançada uma nova coleção, com o objetivo de di-
vulgar trabalhos acadêmicos de interesse para o Núcleo: Estudos do Rio de
Janeiro. Nela foram publicados três volumes sobre diferentes momentos da
o Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense 11

vida política carioca, a saber: Guerra de posições na metrópole: a Prefeitura e


as empresas de ônibus no Rio de Janeiro (1906-1948), de Américo Freire; O Rio
de Janeiro na era Pedro Ernesto, de Carlos Eduardo Sarmento; Rio de Janeiro:
de cidade-capital a estado da Guanabara, de Marly Silva da Motta. Em 2003,
mais um volume foi acrescentado à série: Paulo de Frontin, discursos parla-
mentares, organizado por Américo Freire. Em 2004, o depoimento de Pedro
Fernandes veio somar-se à coleção Conversando sobre Política.
Este volume, o segundo da série Perfil Político, é dedicado a Leonel
Brizola. Composto de sete artigos, não pretende esgotar a biografia do líder
trabalhista, e sim focalizar sua atuação no Estado da Guanabara, posterior-
mente estado Rio de Janeiro.
O Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense tem uma página
na internet, no endereço www.http://memoriapolitica.rj.gov.br. Nela, o usu-
ário poderá obter informações sobre todas as realizações do Núcleo, além de
um conjunto de dados importantes sobre a política carioca e fluminense.

A constituição do Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense


foi possível graças à iniciativa da Mesa Diretora da Assembléia Legislativa do
Rio de Janeiro, presidida na época pelo então deputado Sérgio Cabral Filho,
e à acolhida da Fundação Getulio Vargas, então presidida por Jorge Oscar de
Mello Flôres. Os atuais presidentes da Assembléia, Jorge Picciani, e da FGV,
Carlos Ivan Simonsen Leal, assim como seus antecessores, têm dado todo o
apoio às atividades do Núcleo. No CPDOC, as ex-diretoras Lucia Lippi Oli-
veira e Marieta de Moraes Ferreira acompanharam desde o início os esforços
da equipe. O atual diretor, Celso Castro, assegurou os recursos humanos e
materiais para o desenvolvimento das atividades. O gerente administrativo
Felipe Rente enfrentou os meandros da execução do convênio com a Alerj
com inigualável capacidade de trabalho.
Desde março de 2003, a Coordenadoria de Projetos Especiais da Alerj,
tendo à frente Arlindenor Pedro de Souza, é a responsável pelos projetos de-
senvolvidos em parceria com o CPDOC e tem demonstrado o mesmo empe-
nho que marcou a gestão da comissão anterior, composta, além de Arlindenor
Pedro de Souza, por Sérgio Ruy Barbosa Guerra Martins, Lígia Marina de Sá
Pires de Moraes, Marcos da Silva Neves e Aloysio Neves. Para a realização
12 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro

deste livro, foi fundamental a atuação de Mayumi Sone, subdiretora geral da


Alerj. Os pesquisadores Américo Freire, Carlos Eduardo Sarmento, Marieta
de Moraes Ferreira e Marly Motta, além de se revezarem na coordenação do
Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense, foram responsáveis pela
execução dos projetos no CPDOC. A pesquisadora Adelina Cruz é a encar-
regada do acompanhamento da homepage do Núcleo, e a editora Dora Rocha
responde pela supervisão geral das publicações.

MARIETA DE MORAES FERREIRA


Coordenadora
Introdução

Poucos PERSONAGENS da história política brasileira tiveram uma tra-


jetória tão rica como Leonel Brizola. Deputado estadual e federal, prefeito,
governador de dois estados diferentes, foi criador de movimentos, entidades
e partidos políticos, líder de massas, enfim, um protagonista que marcou seu
lugar nos principais eventos contemporâneos brasileiros e que tem gerado
muitas polêmicas em torno das posições que assumiu. Com tudo isso, Brizola
ainda é tema pouco explorado pela historiografia brasileira. Um levantamento
ainda que preliminar sobre figura tão instigante indica um número pouco sig-
nificativo de títulos. Esses trabalhos em geral estão voltados ou para a análise
de eventos ou conjunturas mais amplas, como o trabalhismo, o golpe militar, o
processo de abertura política, ou para aspectos particulares de sua ação políti-
ca, mas não dão conta de desvendar os elementos centrais de sua biografia.
Este livro, elaborado no âmbito do convênio entre a Alerj e o CPDOC-
FGV, integra-se ao esforço para ampliar os estudos sobre a história política
brasileira contemporânea e contribuir para o melhor entendimento da trajetó-
ria do líder trabalhista Leonel Brizola. Nossa proposta não é, nem poderia ser,
a de esgotar o assunto. Assim, não iremos explorar sua longa biografia, que se
estende de 1922 a 2004, mas sim focalizar sua atuação no Rio de Janeiro, no
período que vai de 1962, quando de sua eleição para deputado federal pelo
estado da Guanabara, até sua última candidatura, ao Senado, em 2002, pelo
estado do Rio de Janeiro. Também não pretendemos dissecar todos os aspec-
tos da carreira do líder pedetista no período mencionado, em especial seus
dois mandatos à frente do Executivo fluminense (1983-1987 e 1991-1994),
mas sim explorar alguns eixos de análise: seu ingresso na vida política do Rio,

13
14 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro

visto como palco para a consolidação de sua liderança na esfera nacional; as


eleições de 1982 e a afirmação do PDT no quadro partidário fluminense; as
relações com a mídia e com os movimentos sociais; as políticas para a educa-
ção; o projeto de conquistar a presidência da República, e as características
do líder popular.
Reunindo um grupo de pesquisadores que têm fortes interesses nos
estudos sobre a história política fluminense, este livro pretende também, em
seus sete artigos, lançar luz sobre aspectos da cultura política do estado do
Rio de Janeiro e sobre as ambigüidades da relação entre a nacionalização de
suas lideranças e as demandas regionais e locais.

MARIETA DE MORAES FERREIRA


Organizadora
1. Do Rio Grande do Sul à Guanabara

Marieta de Moraes Ferreira'

Ao SE APROXIMAR o fim de seu mandato de governador do Rio Grande


Sul (1959-1963), Leonel Brizola deslocou sua atuação de seu estado natal
para a Guanabara. Essa escolha, fundamental para sua carreira política, pode
ser classificada como "um evento biográfico!!, 1 um momento crucial na traje-
tória de um indivíduo, em que ocorrem transformações que têm conseqüên-
cias relevantes para seu futuro.
Para começar a entender esse evento, é preciso lembrar o que signi-
ficava a Guanabara no início da década de 1960. Tratava-se de um estado
criado no ano de 1960, quando a cidade do Rio de Janeiro deixou de ser Dis-
trito Federal, por força da transferência da capital do país para Brasília. Sede
da Colônia desde 1763, da Corte desde 1808, do Império desde 1822, e
capital da República desde 1889, durante muito tempo o Rio foi o palco e a
cmxa de ressonância dos empreendimentos culturais, científicos e políticos
do país. Por isso, era visto como ('um espaço fundamentalmente nacionat,
que permitia que políticos das mais variadas procedências, "independente-
mente de onde anteriormente vivessem e/ou atuassem politicamente", se
destacassem como porta-vozes de questões de interesse geral da nação 2
Ainda não foi nos primeiros anos de Brasília que o Rio teve sua posição ame-
açada. Portanto, a vinda de Brizola para o estado da Guanabara significou

'tDoutora em história, pesquisadora do CPDOC-FGV e professora do Departamento de His-


tória da UFRJ.
1 Ver Levillan (2003: 141-184). Este conceíto foi desenvolvido por BonE & Zinn (2003).

'Ver Silva (2005, 96).

15
16 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro

exatamente a possibilidade de amplificar suas ações políticas, fazendo com


que seu discurso conquista'>Se repercussão nacional e internacional.
Na verdade, esse processo começou antes da transferência física de Bri-
zola. Em 1961, quando, ainda no Sul, defendeu a posse de João Goulart na
presidência da República através da "cadeia da legalidade", Brizola deu um
passo importante na escalada em direção à política nacional. Em 1962, quan-
do lançou sua candidatura a deputado federal pela Guanabara, na legenda
do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), esse deslocamento começou a se
concretizar. A construção de uma base política no Rio de Janeiro, que então
se iniciou, teria efeitos duradouros, que sobreviveriam ao golpe militar de
1964 e a 15 de anos de exílio, e permitiriam seu retorno em grande estilo à
vida política nos anos 1980. Àquela altura, a Guanabara já não existia: era
parte do estado do Rio de Janeiro resultante de sua fusão com o antigo Esta-
do do Rio em 1975. Brizola iria governar esse estado por duas vezes. Se não
conseguiu chegar à presidência da República, isso não significa que não se
tenha transformado num líder nacional. É da formação da base política que o
conduziu a essa posição que este texto irá tratar. Antes, porém, será feito um
breve resumo do cenário político do país e da trajetória de Brizola até deixar
o governo gaúcho.'

Credenciais: petebista e nacionalista

Quando o desgaste da ditadura do Estado Novo se tornou evidente, em 1945,


o presidente Getúlio Vargas procurou conduzir ele próprio o país em direção
à democratização. Foram assim marcadas eleições e criados partidos políti-
cos. Concentrando a oposição ao governo) surgiu a União Democrática Na-
cional (UDN); reunindo os aliados de Vargas, formaram-se o Partido Social
Democrático (PSD) e o PTB. Brizola, então com 23 anos, aluno da Escola
de Engenharia da Universidade do Rio Grande do Sul, decidiu ingressar na
política filiando-se ao PTB.
Concebido pessoalmente por Vargas, o PTB tinha como objetivo ser
um espaço de participação política para setores populares, afastando-os da

3 As principais fontes deste resumo são os verbetes 'Brizola, Leonel' e 'Goulart, João' em DHBB.

~ ... __ ._-------------------------------~
Do Rio Grande do Sul à Guanabara 17

influência do Partido Comunista (PCB). O veículo primordial para sua or-


ganização foi o Ministério do Trabalho, que, pela influência que exercia nos
sindicatos, atraiu os trabalhadores para o novo partido. Também as camadas
populares urbanas eram visadas, e para atraí-las o PTB procurou capitalizar
o prestígio adquirido por Vargas com a legislação social e trabalhista imple-
mentada durante o Estado Novo. Com esse ponto de partida, o PTB definiu
seu programa e seus compromissos: defesa dos direitos dos trabalhadores,
inclusive os rurais; ampliação e eficácia da Justiça do Trabalho; planificação e
presença do Estado na gestão econômica, para garantir o desenvolvimento do
país; melhor redistribuição da riqueza e extinção do latifúndio improdutivo;
acesso à terra a todos que quisessem trabalhá-la. Ao ingressar no partido e
nele ocupar diferentes posições, Brizola comprometeu-se com esse ideário e
lutou de diferentes formas pra garantir o êxito dessas propostas.
Foi na legenda do PTB que Brizola se elegeu deputado estadual em
1947. Em março de 1950, casou-se com Neuza Coulart, irmã de João Cou-
lart, então emergente líder petebista, e em outubro do mesmo ano foi reelei-
to. No início da nova legislatura, em 1951, assumiu a liderança da bancada
trabalhista na Assembléia Legislativa gaúcha. Exerceu seu novo mandato por
cerca de um ano, até ser nomeado, em 1952, secretário estadual de Obras
do governo de Ernesto Dornelles. A despeito do desempenho limitado do
PTB gaúcho nas eleições para as prefeituras municipais e para o Legislati-
vo em 1954, foi eleito deputado federaL Ao assumir sua cadeira na Câmara
dos Deputados no início de 1955, teve seus primeiros embates com Carlos
Lacerda, da UDN. Em outubro seguinte, foi eleito prefeito de Porto Alegre,
estabelecendo como prioridade o atendimento das reivindicações das clas-
ses trabalhadoras - saneamento básico, criação de escolas e melhoria dos
transportes coletivos. Seu bom desempenho à frente da prefeitura da capital
gaúcha o credenciou para disputar com êxito o governo estadual, sempre na
legenda do PTB, em outubro de 1958. Conquistou seus eleitores graças ao
direcionamento de sua campanha para os setores populares, sendo eleito com
55% dos votos e derrotando assim as forças udenistas e pessedistas 4
À frente do governo gaúcho, Brizola deu prioridade ao desenvolvimento
industrial, baseado em investimentos do capital privado nacional e do governo

4 Ver Bandeira (1979).


18 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro

estadual. Nessa opção estava implícita a luta contra o capital estrangeiro. Fiel a
essa orientação, em maio de 1959 encampou a Companhia de Energia Elétrica
Rio-Grandense, filial da Arnerican and Foreign Power Company (Arnforp), tor-
nando-se a partir de então uma expressiva liderança da esquerda nacionalista
brasileira. Em contrapartida, a medida gerou uma grave crise nas relações entre
o Brasil e os Estados Unidos, que explodiria mais tarde, com toda a intensida-
de, no governo de João Goulart.
Como governador, Brizola ampliou sua capacidade de ação, seja desen-
volvendo programas de dinamização para a economia gaúcha, seja criando
projetos de políticas públicas voltadas para as camadas populares, ou ainda
engajando-se em lutas de dimensões nacionais. Já na sucessão presidencial
de 1960, discordando do PSD e de setores do PTB que estavam lançando a
candidatura do general Henrique Lott, começou a planejar, em conjunto com
lideranças sindicais, a organização de uma série de greves a serem deflagra-
das para pressionar o lançamento de um candidato popular e nacionalista.
O projeto não foi adiante, e João Goulart acabou por apoiar o nome de Lott
e por aceitar disputar a seu lado a vice-presidência. O resultado da eleição é
conhecido: como não havia vinculação obrigatória, o petebista Goulart tor-
nou-se o vice-presidente de Jânio Quadros, eleito com o apoio da UDN.
Com suas iniciativas, Brizola passou a ocupar paulatinamente espaços
de destaque no PTB e na cena política nacional, posicionando-se como um
li,1
interlocutor reconhecido nas articulações e qualificando-se como uma lide-
rança emergente. Esse papel ficaria ainda mais claro a partir de 1961.

Na "cadeia da legalidade"

No dia 25 de agosto desse ano, quando Jânio Quadros renunciou à presi-


dência, teve início no país uma crise de grandes proporções. A Constituição
de 1946, então em vigor, previa a investidura do vice-presidente, que se en-
contrava em viagem oficial à China. Entretanto, os ministros militares, com
o apoio de importante parcela das Forças Armadas e de um grupo de civis
visceralmente antigetulistas, vetaram a posse de João Goulart, alegando que
ela significaria uma ameaça à ordem e às instituições. Nos dias seguintes, a
conjuntura política nacional foi polarizada pela luta entre os partidários do
veto e os defensores da legalidade, chegando a haver reais possibilidades de
um confronto armado.
Do Rio Grande do Sul à Guanabara 19

Foi nesse contexto que o governador Brizola articulou o principal foco


de resistência ao veto a Coulart, liderando no Rio Crande do Sul uma cam-
panha de alcance nacional. A ocupação das rádios Cuaíba e Farroupilha per-
mitiu ao governo gaúcho formar a "cadeia da legalidade", que integrou 104
emissoras dos estados do Rio Crande do Sul, Santa Catarina e Paraná, e
passou a transmitir os sucessivos discursos de Brizola exortando a população
a se mobilizar em defesa da Constituição. Em discurso de 28 de agosto de
1961, por exemplo, declarava ele em tom inflamado:

"Não pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam!
Que nos chacinem, neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição
de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada tanto
aqui como nos transmissores. O certo, porém, é que não será silenciada sem
balas. Tanto aqui como nos transmissores estamos guardados por fortes con-
tingentes da Brigada Militar."5

Informado da extensão da crise, Coulart apressou a volta, chegando


a Paris no dia 28 de agosto com a intenção de regressar imediatamente ao
Brasil. Recebeu, porém, um telefonema da comissão executiva nacional do
PTB, que lhe fez um apelo para adiar por dois dias o regresso, a fim de que
lhe fossem enviadas notícias mais completas sobre a situação do país, uma
vez que os ministros militares ameaçavam prendê-lo tão logo desembarcas-
se. No dia 29, o Congresso Nacional rejeitou o pedido de impedimento do
vice-presidente e começou a discutir uma solução conciliatória, que consistia
na implantação do sistema parlamentarista de governo. Insatisfeitos, no dia
seguinte os ministros militares lançaram um manífesto no qual expunham as
razões de sua oposição a Goulart. O documento acusava o vice-presidente de
incentivar {'agitações nos meios sindicais" e de entregar postos-chave nos sin-
dicatos a "agentes do comunismo ínternacional", o que o tornava uma ameaça
à segurança nacional e à manutenção da hierarquia nas Forças Armadas.
Além disso, o manifesto ressaltava a admiração expressa por Coulart pelas
comunas populares durante sua visita à China Popular.

5 Sitc do PDT: http://vvw,v.pdt.org.brlpersonalidades/brizola_historia_l.asp (discurso de Brizo-


la), acesso em 5/2/2007.
20 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro

Ao mesmo tempo em que os ministros militares reiteravam sua posição,


as forças favoráveis à posse do vice-presidente ampliavam sua articulação e
ganhavam novas adesões. Ainda no dia 30, os governadores do Paraná, Ney
Braga, e de Goiás, Mauro Borges, aderiram ao movimento pela legalidade,
declarando-se dispostos a usar armas contra as forças que se opunham à pos-
se de Goular!. O mesmo fez o general Machado Lopes, comandante do IH
Exército, com sede no Rio Grande do Sul, ao anunciar oficialmente, através
da "cadeia da legalidade", que aderira ao movimento. Os demais comandan-
tes regionais inclinaram-se a acompanhar essa posição. O apoio à posse de
Goulart também crescia entre estudantes, intelectuais e sindicatos de traba-
lhadores, que deflagraram várias greves. A situação política se radicalizava.
No mesmo dia 30, o ministro da Guerra nomeou o general Osvaldo Cordeiro
de Farias para o comando do III Exército, destituindo Machado Lopes. En-
quanto Brizola conclamava a população gaúcha a defender o Rio Grande do
Sul, Machado Lopes advertia que, se Cordeiro de Farias desembarcasse em
Porto Alegre, seria preso. A dissensão no Rio Grande do Sul colocou o país
sob ameaça de guerra civil.
Enquanto isso, Goulart aproximava-se do território brasileiro, fazendo
uma primeira escala em Nova York no dia 30 de agosto. Nessa cidade, con-
cedeu entrevista à imprensa em que declarou que seguiria para a Argentina
e chegaria ao Brasil pelo Rio Grande do Sul. Impedido de desembarcar em
Buenos Aires, viu-se obrigado a rumar para Montevidéu. Na capital uru-
guaia, reuniu-se com Tancredo Neves e Hugo de Faria, que haviam recebido
a missão de convencê-lo a aceitar o regime parlamentarista de governo, con-
dição para a retirada do veto dos ministros militares. Mesmo contando com
o apoio de setores que rejeitavam essa fórmula conciliatória e defendiam sua
posse dentro do regime presidencialista, Goulart aceitou a proposta a fim de
encerrar, sem derramamento de sangue, a crise que inquietava o país. Em 10
de setembro, desembarcou em Porto Alegre, onde foi recebido com enorme
manifestação popular. No dia seguinte, o Congresso aprovou, por 253 votos
contra 55, a Emenda Constitucional n° 4, que instituiu o parlamentarismo,
limitando os poderes presidenciais. A seguir foi divulgado um comunicado
que afirmava que as Forças Armadas acatavam a forma parlamentarista de
governo e davam total garantia ao desembarque de Goulart em Brasília, bem
como à sua investidura na presidência.
Do Rio Grande do Sul à Guanabara 21

Uma vez em Brasília, Goulart não quis ser empossado logo no dia se-
guinte, pois, segundo suas próprias palavras, desejava se inteirar melhor dos
acontecimentos e se recuperar das duras críticas feitas por alguns de seus
familiares por ter aceito tomar posse nas condições impostas. Referia-se a
ninguém menos que Brizola, que havia feito declarações contundentes contra
sua postura conciliadora.
O desenrolar desses acontecimentos, do dia 25 de agosto até 7 de se-
tembro, quando João Goulart foi empossado na presidência da República,
colocou Brizola no centro das atenções, projetando seu nome para além da
esfera estadual e transformando-o de fato numa liderança nacional.

No governo parlamentarista

Ao assumir a presidência, João Goulart procurou desarmar seus opositores


ampliando a base política do governo. Sem abrir mão de sua relação com
setores de esquerda, buscou o apoio do centro, praticando uma política de
conciliação baseada no diálogo com os diversos partidos representados no
Congresso. Coerente com essa orientação, o primeiro gabinete parlamen-
tarista, chamado de ((união nacional", foi composto por uma representação
equilibrada da maioria dos partidos, sob a chefia do pessedista Tancredo
Neves. Mais uma vez, desde os primeiros momentos, essa política de con-
ciliação teve em Brizola um crítico radical. Na sua avaliação, Goulart já se
havia equivocado ao aceitar a emenda parlamentarista e assumir o governo
com suas atribuições reduzidas. Por isso mesmo, durante toda a vigência do
parlamentarismo, Brizola iria lutar pela realização do plebiscito previsto na
Emenda Constitucional n° 4 e pelo retorno ao presidencialismo.
Além de buscar a conciliação, Goulart tinha um programa de governo
que colocava como pontos centrais reajustes salariais periódicos compatíveis
com os índices inflacionários, uma política externa independente, a naciona-
lização de algumas subsidiárias estrangeiras, e as chamadas reformas de base
(agrária, bancária, administrativa, fiscal, eleitoral e urbana). As reformas que
o PTB já levantara como bandeira desde 1958 pareciam finalmente próximas
de uma implementação. E Brizola se colocava como um líder disposto a ace-
lerar o processo de mudanças na sociedade brasileira.
Os objetivos de Goulart, inicialmente formulados de modo genérico,
foram sendo delineados mais claramente através de sua atuação no governo.
22 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro

o presidente reafirmava a necessidade de mudanças no país, na esperança


de que o Congresso solucionasse problemas como os da reforma agrária, do
abuso do poder econômico e da disciplina do capital estrangeiro. No que diz
respeito especificamente à reforma agrária, em novembro de 1961 Goulart
destacou a necessidade de alterar o princípio constitucional que exigia inde-
nização prévia em dinheiro pelas terras desapropriadas. A seu ver, o pagamen-
to das terras poderia ser feito em títulos da dívida pública. Esse ponto de vista
não era porém compartilhado pelos nomes mais significativos de seu ministé-
rio, o que demonstrava a precariedade da política de alianças sobre a qual se
baseava o governo, e as dificuldades enfrentadas na busca de um consenso.
A realização de uma reforma agrária colocava problemas de difícil so-
lução, como o de definir que tipo de reforma deveria ser feita: a quem be-
neficiaria e em que nível, em detrimento de que forças sociais e políticas.
Era preciso saber também quais os instrumentos jurídicos disponíveis para
executá-la, e que alianças fazer para tornar seus custos sociais viáveis. Com
o objetivo de melhor responder a essas questões, o governo encarregou o
ministro da Agricultura de organizar um grupo de trabalho para elaborar um
anteprojeto. O grupo atendeu à orientação conciliadora do gabinete, discu-
tindo soluções alternativas àquela proposta pelo presidente, que era apoiada
pelas forças de esquerda. Essas discussões, no cômputo final, mostraram-se
pouco frutíferas.
Nesse contexto de dificuldades para o avanço das propostas reformis-
tas, Brizola articularia, em 1962, a Frente de Mobilização Popular (FMP),
com a finalidade de congregar as forças políticas antiimperialistas e pró-re-
formas. 6 O governador gaúcho reuniu representantes de organizações como
o recém-criado Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), órgão não-oficial
de coordenação do movimento sindical, o Pacto de Unidade e Ação (PUA), a
União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas (UBES), além de parlamentares da Frente Parlamentar Na-
cionalista (FPN) e líderes de entidades camponesas e feministas. Ao men-
cionar os objetivos do movimento, afirmou que o povo desejava <llibertar-se
dos seus espoliadores, da miséria e do atraso, do latifúndio e da exploração"?

6 Ver verbete 'Frente de l\iIobilização Popular' em DHBB.


7 Última Hora, 22 de março de 1962, p. 4.
Do Rio Grande do Sul à Guanabara 2J

Com iniciativas dessa natureza, Brizola conquistava cada vez mais espaços
na política nacional e assumia a liderança das forças radicais de esquerda.
Outro tema que colocou Brizola no centro dos acontecimentos foi o do
controle do capital estrangeiro no país. Em outubro de 1961, o Ministério
das Minas e Energia apresentou a proposta de cancelar todas as conces-
sões de jazidas de ferro feitas ilegalmente ao grupo norte-americano Hanna
Company. Esse contexto de acirramento das lutas nacionalistas estimularia
ainda mais o governador do Rio Grande do Sul a avançar com sua política dc
nacionalização, efetivando a desapropriação, em fevereiro de 1962, dos bens
da Companhia Telefônica do estado, subsidiária da firma norte-americana
International Telephone & Telegraph (ITT). Esse fato repercutiu na impren-
sa nacional e internacional, intensificando o debate em torno da nacionaliza-
ção das concessionárias de serviço público. Com essas iniciativas, Brizola se
capacitava a competir com Goulart na liderança das forças de esquerda e das
lideranças sindicais, e mesmo dentro do PTB.
Nessa primeira fase do governo Goulart, destacou-se também a nova
orientação dada à política externa brasileira. Assim, em novembro de 1961, o
Brasil restabeleceu relações diplomáticas com a União Soviética, interrompi-
das desde 1947, no governo Dutra. A justificativa para a medida eram as am-
plas possibilidades representadas pelo mercado soviético para as exportações
brasileiras. Ainda de acordo com essa orientação, o governo Goulart rechaçou
as sanções contra Cuba propostas pelos Estados Unidos, assim como os pre-
parativos para a intervenção armada naquele país sob a cobertura da Orga-
nização dos Estados Americanos (OEA). Na Conferência de Punta dei Este,
realizada entre 22 e 31 de janeiro de 1962, o chanceler brasileiro San Tiago
Dantas defendeu a neutralidade em relação a Cuba, enfrentando a oposição
dos Estados Unidos, que procuravam impor suas pretensões aos países da
América Latina.
A posição do governo brasileiro, ainda que apoiada por significativos
setores sociais, criou uma situação de desentendimento com \iVashington,
dificultando as relações entre os dois países. Em março de 1962, novamente
coerente com a Iinlia adotada na política externa, a delegação brasileira en-
viada a Genebra para participar da Conferência de Desarmamento definiu a
posição do Brasil como dc potência não-alinliada, desvinculada de qualquer
bloco político-militar. Brizola se manifestou favoravelmente à política externa
24 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro

independente, mas novamente discordou da política oficial brasileira de con-


ciliar com os Estados Unidos na condução da questão cubana, por ocasião da
visita do presidente João Goulart àquele país em abril de 1962.
Ao findar o primeiro semestre de 1962, o gabinete Tancredo Neves, que
se caracterizava por uma prática política de compromisso e de tentativa de
união nacional, perdeu a razão de ser. Diante dos obstáculos enfrentados para
pôr em prática seu programa de governo e para superar as graves dificuldades
econômicas que enfrentava, Goulart começou uma campanha pelo retorno
ao presidencialismo, alegando a necessidade de ter um Executivo forte. A
pretexto de atender à exigência legal de desincompatibilização para concorrer
às eleições de outubro de 1962, no dia 26 de junho todos os membros do
gabinete pediram demissão.

Na campanha do plebiscito

A renúncia de Tancredo Neves e a indicação feita por Goulart do nome de


San Tiago Dantas para o cargo de primeiro-ministro fizeram eclodir nova
crise. O ex-chanceler era apoiado pelos setores nacionalistas e de esquerda do
Congresso e pelo movimento sindical, mas as bancadas do PSD e da UDN
se uniram para vetar sua indicação) em virtude exatamente de seu desempe-
nho à frente do Ministério das Relações Exteriores. Pressionado pelas forças
conservadoras, Goulart indicou então o pessedista Auro de Moura Andrade,
presidente do Senado, que teve seu nome aprovado no dia 3 de julho de 1962.
Apenas o PTB votou contra essa indicação.
Enquanto o nome de Aura de Moura Andrade era homologado pelo
Congresso, os líderes sindicais Dante Pelacani, Domingos Álvares e Luís
Tenório de Lima se reuniam em São Paulo com dirigentes dos sindicatos
filiados à Federação dos Metalúrgicos e ao Fórum Sindical de Debates para
preparar uma greve geral em todo o país, em desagravo a San Tiago Dantas e
em apoio ao presidente Goulart. Seu objetivo era também obter um gabinete
e um primeiro-ministro favoráveis ao programa de reformas. Diante de tantas
pressões, e da recusa do presidente em aceitar o gabinete que propunha, Aura
de Moura Andrade acabou por renunciar.
Em 10 de julho, finalmente, Goulart indicou o pessedista gaúcho Bro-
chado da Rocha, ex-secretário de Justiça do governo Brizola. Aprovado pelo
Do Rio Grande do Sul à Guanabara 25

Congresso, o novo primeiro-ministro prometeu antecipar para dezembro de


1962 a realização do plebiscito que decidiria sobre a continuidade do regi-
me parlamentarista, previsto anteriormente para o início de 1965. Um dos
líderes do movimento em favor da volta ao presidencialismo, Brizola apoiou
essa decisão.
No gabinete Brochado da Rocha, o PTB adquiriu maior participação no
poder. Ainda que pertencente aos quadros do PSD, o novo primeiro-ministro
tinha ligações com os petebistas. Tinha também desempenhado importante
papel na encampação da subsidiária da ITT no Rio Grande do Sul, o que lhe
dava prestígio nos meios nacionalistas. Mais próximo do PTB e dos grupos
de esquerda, o novo gabinete pretendia obter poderes especiais para legislar
sobre as reformas, além de conseguir a restauração do presidencialismo. 8
Em agosto, Brochado da Rocha cumpriu sua promessa, apresentando
projeto que fixava a data do plebiscito em dezembro de 1962. Os udenistas,
liderados por Carlos Lacerda, então governador da Guanabara (1961-1965),
atacaram a proposta, acusando Goulart de estar comprometido com os co-
munistas. Brizola liderava os setores esquerdistas, ameaçando o Congresso
com intervenção armada caso este não apoiasse a realização do plebiscito
em dezembro.
Outra iniciativa de Brochado da Rocha, ainda no mês de agosto, foi
solicitar oficialmente que o Congresso delegasse poderes ao governo para
legislar sobre temas como o monopólio da importação de petróleo e deri-
vados, o comércio de minérios e materiais nucleares, o controle da moeda
e do crédito, o Estatuto do Trabalhador Rural, os arrendamentos rurais, a
desapropriação por interesse social e a criação de um órgão executor da
política de reforma agrária. Essa delegação de poderes tinha a intenção
explícita de acelerar a execução de medidas em lento processo de discussão
nas duas casas do Congresso e, de outro lado, induzir o Poder Legislativo
a encaminhar ele próprio as medidas prioritárias, se quisesse evitar que o
Executivo o fizesse em regime de urgência. Enquanto os empresários pau-
listas e grande parte dos parlamentares se manifestaram contra a delegação
de poderes requerida pelo primeiro-ministro, o CGT comprometeu-se a

B Ver verbete 'Partido Trabalhista Brasileiro' em DHBB.


26 A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro

defender o programa do novo gabinete e a trabalhar pela volta ao regime


presidencialista, sob a condição de que fossem atendidas suas reivindica-
ções fundamentais, como a revogação da Lei de Segurança Nacional, a
concessão de 100% de aumento no salário mínimo e a implementação das
reformas de base. O CGT reivindicava ainda a realização do plebiscito no
dia 7 de outubro de 1962, data fixada para as eleições legislativas, sob pena
de deflagrar uma greve geral no mês seguinte.
A despeito dos esforços de Brizola e do PTB para sustentar as iniciativas
de Brochado da Rocha, em 14 de setembro, não tendo conseguido que o Con-
gresso aprovasse seu projeto, o primeiro-lninistro renunciou. No dia seguinte
o CGT decretou uma greve geral, recebendo o apoio de setores militares na-
cionalistas, Diante desse quadro, o Congresso cedeu às pressões e em 15 de
setembro aprovou a Lei Complementar nO 2, que estabeleceu a realização do
plebiscito em 6 de janeiro de 1963. Goulart obteve permissão para constituir
I",' imediatamente um conselho de ministros provisório, sem autorização prévia
'"
"
do Congresso, e encarregou Hermes Lima de organizar, como primeiro-mi-
nistro, o gabinete que vigoraria até 6 de janeiro. Vencida a campanha pela
antecipação do plebiscito e organizado o ministério, Goulart iria lançar-se à
campanha pelo retorno ao presidencialismo, para a qual contou, mais uma
vez, com a ajuda de Brizola.
Paralelamente a esses movimentos, desenrolavam-se os preparativos
para as eleições de outubro de 1962, quando seriam renovados parte do Sena-
do, a Câmara dos Deputados, as Assembléias Legislativas estaduais, as Câ-
maras Municipais e parte dos governos estaduais e municipais. As eleições
de 1962 tinham um significado especial, pois representavam a possibilidade
de o governo ampliar sua base de sustentação no Congresso e assim reunir os
recursos políticos necessários para dar encaminhamento às reformas de base
pela via constitucional. Nesse contexto, a luta pelo voto tornou-se acirrada.
Tentando sustar o avanço dos candidatos de esquerda e vinculados ao esque-
ma de sustentação do governo Goulart, as forças oposicionistas articularam,
através do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que havia sido
fundado em 1959 com o objetivo de combater a propagação do comunismo
no Brasil, toda uma rede de financiamento para seus candidatos. Em contra-
partida, o governo e as forças de esquerda envidaram esforços para neutrali-
zar a ação dos grupos conservadores.

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