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Livro que reuú ne textos e falas de Humberto Maturana, organizada por Cristina Magro e Victor Paredes. A primeira parte
transcreve duas confereê ncias de Maturana na Universidad de La Frontera, em Temuco, no Chile. Os capíútulos seguintes
transcrevem textos publicados por Maturana em perioú dicos.
APRESENTAÇÃO
“De 1950 para caú , o mundo acadeê mico e intelectual participou de um feú rtil debate desencadeado pelo amplo projeto das
Cieê ncias Cognitivas, que acabou por transbordar as fronteiras da academia e influenciar amplamente outros domíúnios,
como a arte e o mundo dos negoú cios. Esse projeto caracterizou-se por uma forte unificaçaã o disciplinar inspirada nas leis
da natureza, que fez com que, nele, a idealizaçaã o e a abstraçaã o do objeto de estudo fossem vistas como indispensaú veis.
Sua instauraçaã o se deu mediante o compromisso teoú rico de se aceitar que, para entender a mente humana, em
particular a cogniçaã o e a linguagem, era necessaú ria e suficiente a postulaçaã o de níúveis de anaú lise abstratos com
caracteríústicas computacionais, autoê nomos, separados dos domíúnios bioloú gico e cultural e tambeú m independentes entre
si, o que haveria de descortinar a esseê ncia mesma desses fenoê menos. Na eú poca, o maciço apoio aà s pesquisas de cunho
tecnoloú gico e computacional para as investigaçoã es na aú rea visava sobretudo ao desenvolvimento de tecnologia
automatizada para aplicaçoã es diversas.” P.7
“Na neurofisiologia, na imunologia, na neuropsicologia, na geneú tica, em todos os domíúnios nos quais seus fenoê menos de
interesse de algum modo puderam ser formulados em termos cognitivos, os cientistas se aplicaram em implementar os
preceitos do cognitivismo, um modelo explicitamente concebido a partir das cieê ncias da natureza – e naã o das cieê ncias
do homem.” P. 7-8
“As pressoã es advindas das tentativas de atender aà ambiçaã o de uma cieê ncia uú nica nos moldes delineados pelas Cieê ncias
Cognitivas acabaram por expor fragilidades irreparaú veis do projeto. Nesse contexto, foram feitas propostas alternativas
com inspiraçaã o distinta da do cognitivismo, como o conexionismo. Aleú m disso, reflexoã es que antecederam o advento do
cognitivismo e seus desdobramentos posteriores passaram a ser reavaliadas, como eú o caso das teorias de auto-
organizaçaã o e a teoria da autopoiese, que reapareceram como alternativas relevantes para alguns dos impasses teoú ricos
que conhecemos hoje.” P. 8
“[...] um redirecionamento das investigaçoã es em diversas aú reas participantes daquele projeto produziu reflexoã es
teoú ricas e epistemoloú gicas que possibilitaram um salto qualitativo na redescriçaã o das relaçoã es entre a biologia humana,
a linguagem, a cogniçaã o e os fenoê menos ditos mentais e psicoloú gicos em geral – como a razaã o, a conscieê ncia e a emoçaã o.
Essa reorientaçaã o apontou para a necessidade de se levar em conta a experieê ncia dos seres humanos como seres
histoú ricos e contingentes que vivem na linguagem, o que naã o era possíúvel dada a perspectiva formal abstrata assumida
nos primeiros anos das Cieê ncias Cognitivas, em funçaã o dos pressupostos fundamentais das cieê ncias naturais,
habitualmente ligadas aà busca ou aà postulaçaã o de leis a priori ou princíúpios de necessidade que fazem parte da
existeê ncia de algo.” P. 8
“A consideraçaã o da fenomenologia bioloú gica, a tomada de nossa experieê ncia enquanto seres humanos como um foco do
qual nossas explicaçoã es naã o devem se desviar, a conceituaçaã o da linguagem e da cogniçaã o como atividades que
observamos no espaço de interaçoã es em que vivemos, e naã o como propriedades intríúnsecas do humano, saã o aspectos
comuns a esses estudos.” P. 9
“Na Biologia do Conhecer naã o haú a preservaçaã o e a busca das condiçoã es a priori estabelecidas nesses termos. [...] A
autonomia e a identidade dos seres vivos saã o uma questaã o central para esse modelo. Essas caracteríústicas saã o tratadas
aqui como resultantes de um modo de organizaçaã o peculiar aos seres vivos – a organizaçaã o autopoieú tica –, que eú
operacionalmente fechada aà informaçaã o ou a instruçoã es do meio, com o qual todo ser vivo estaú em permanente
congrueê ncia e muú tua modulaçaã o.” P. 11
“Maturana entoa estabelece uma níútida distinçaã o entre teorias comprometidas com a explicaçaã o das coereê ncias da
experieê ncia e teorias comprometidas com a manutençaã o de princíúpios explicativos.” P. 13
“Deixamos aqui, portanto, o convite de Humberto Maturana para compreendermos o conhecer, atentando para nossa
experieê ncia cotidiana como seres bioloú gicos que (con)vivem na linguagem, e para todas as implicaçoã es que essa
perspectiva traz para nossa compreensaã o do que chamamos conhecer e agir no mundo, incluindo aíú a construçaã o de um
futuro melhor.” P. 14
Reflexões epistemológicas
- afirma que para explicar o fenoê meno do conhecer eú necessaú rio explicar o ser humano, e propoã e tomar como ponto de
partida o observador observando e o observar;
“[...] o ser humano eú observador na experieê ncia, ou no suceder do viver na linguagem. [...] A explicaçaã o se daú na
linguagem. O discurso que explica algo daú -se na linguagem. [...] noú s, seres humanos, existimos na linguagem.” P. 25
[...] normalmente se pensa que explicar refere-se a como a coisa eú , independentemente da pessoa. Mas se paramos para
ver o que acontece, descobrimos que o explicar e a explicaçaã o teê m a ver com aquele que aceita a explicaçaã o.” P. 27
“De fato, haú tantos explicares diferentes quantos modos de escutar e aceitar reformulaçoã es da experieê ncia.” P. 27
- o autor define dois caminhos distintos para o explicar: o caminho da objetividade sem pareê nteses e o caminho da
objetividade entre pareê nteses:
objetividade sem parênteses objetividade entre parênteses
objetividade a seco caminho explicativo da objetividade
a existeê ncia eú independente do observador; assumo que a existeê ncia depende do observador; o maú ximo que eu
posso fazer refereê ncia a algo independente de mim; posso fazer eú descrever as caracteríústicas da conscieê ncia;
uma afirmaçaã o cognitiva eú vaú lida porque faz refereê ncia a tenho que explicar como faço o que faço;
uma realidade independente do observador; uma afirmaçaã o cognitiva eú vaú lida pelas coereê ncias
tolera outras refereê ncias aà realidade; operacionais que a constituem;
domíúnio das ontologias transcendentes; respeita outras respostas, pois compreende a natureza
bioloú gica que promove diferentes formas de conhecer;
domíúnio das ontologias constitutivas;
“Quero dizer o seguinte: vivemos em uma linguagem de objetos; falamos de objetos. Isso eu naã o posso desfazer, naã o
posso nem explicar. Mas reconheço, sim, que naã o tenho nenhum fundamento para supor que possa fazer refereê ncia a
seres que existiam independentemente de mim. Reconheço que a existeê ncia depende do que eu faço. Ponho a
objetividade entre pareê nteses para indicar isso, e ao mesmo tempo aceito que tenho que explicar o objeto, tenho que
explicar como surge o objeto. Uso uma linguagem de objetos, falo de substantivos. Se voceê s quiserem colocar isso de
outra forma: falo do observador, da experieê ncia, da linguagem; todos saã o seres, entes. Falo deles, lido com seres. Como eú
que lido com seres se na experieê ncia naã o posso distinguir entre ilusaã o e percepçaã o? Como se explica isso em
circunstaê ncias nas quais naã o posso supor que tenho a capacidade de me referir a esses seres independentes de mim?” p.
32
“No caminho da objetividade entre pareê nteses, meu escutar eú diferente, porque aqui escuto reformulaçoã es da
experieê ncia, com elementos da experieê ncia, que eu aceito. Quer dizer, escuto com o criteú rio de aceitaçaã o de
reformulaçaã o da experieê ncia com elementos da experieê ncia.” P. 32
“A objetividade entre pareê nteses naã o significa subjetividade, significa apenas ‘assumo que naã o posso fazer refereê ncia a
entidades independentes de mim para construir meu explicar’.” P. 33
“Cada vez que eu digo: ‘Isto eú assim, objetivamente falando’, o que estou dizendo eú : ‘todos voceê s teê m que fazer o que eu
digo, porque a validade do que eu digo naã o depende de mim – eú proú pria daquilo que eu indico. Se voceê s naã o veem, estaã o
limitados.’ Profissionalmente; emocionalmente... estaã o limitados.” P. 34
“Nesse outro caminho explicativo, o da objetividade entre pareê nteses, a situaçaã o eú diferente. EÉ diferente porque naã o
posso pretender um acesso privilegiado no explicar, pois sei que, como ser humano, como ser vivo, naã o posso distinguir
entre ilusaã o e percepçaã o. Desse modo, qualquer afirmaçaã o minha eú vaú lida no contexto das coereê ncias que a constituem
como vaú lida.” P. 34
(na objetividade entre pareê nteses) “A realidade eú uma proposiçaã o explicativa.” P. 35
“Na objetividade entre pareê nteses haú tantas realidades quantos domíúnios explicativos, todas legíútimas. Elas naã o saã o
formas diferentes da mesma realidade, naã o saã o visoã es distintas da mesma realidade. Naã o! Haú tantas realidades – todas
diferentes, mas igualmente legíútimas – quantos domíúnios de coereê ncias operacionais explicativas, quantos modos de
reformular a experieê ncia, quantos domíúnios cognitivos pudermos trazer aà maã o.” P. 36
“[...] se tenho uma discordaê ncia com outra pessoa, essa outra pessoa estaú num domíúnio de realidade diferente do meu. EÉ
taã o legíútimo quanto o meu, que eú diferente. Pode ser que naã o me agrade, mas naã o me agradar eú um ato responsaú vel de
minha predileçaã o, naã o eú um ato de negaçaã o da legitimidade desse outro domíúnio de realidade.” P. 36
(no domíúnio da objetividade entre pareê nteses) “[...] a negaçaã o do outro [...] eú necessariamente responsaú vel. Eu nego o
outro porque naã o me agrada o domíúnio da realidade em que estaú , e naã o porque esteja equivocado. Isso eú de fundamental
importaê ncia no domíúnio das relaçoã es humanas.” P. 37
“Ser ecumeê nico quer dizer naã o importar que o outro pense de maneira diferente, porque sempre podemos criar um
espaço no qual as diferenças naã o entrem em consideraçaã o.” P. 39
“No caminho explicativo da objetividade entre pareê nteses, nossa corporalidade eú nossa possibilidade, porque nos
damos conta de que aquilo que podemos fazer, podemos fazer na medida em que o fenoê meno do conhecer eú um
fenoê meno do vivo.” P. 40
Domínios ontológicos
- o domíúnio das ontologias constitutivas faz refereê ncia aà s condiçoã es de constituiçaã o daquilo de que falamos;
“Chomsky eú o modelo mais claro do sistema de descriçaã o das regularidades da linguagem [Maturana o trata como sendo
do caminho da objetividade sem pareê nteses]. A escola de Jacobson estaú mais voltada para o caminho da objetividade
entre pareê nteses, porque trata a linguagem de um modo mais proú ximo do espaço das coordenaçoã es de açaã o [...].” p. 44
“[...] as emoçoã es surgem como disposiçoã es corporais que especificam domíúnios de açaã o. E isso eú compreensíúvel
biologicamente. As emoçoã es saã o apreciaçoã es do observador sobre a dinaê mica corporal do outro que especifica um
domíúnio de açaã o. Nessas circunstaê ncias, nada ocorre nos animais que naã o esteja fundado numa emoçaã o.” P. 45
“Eu penso que nem todas as relaçoã es humanas saã o relaçoã es sociais. Penso que haú diferentes tipos de relaçoã es e
interaçoã es humanas, dependendo da emoçaã o que as fundamenta.” P. 46
- o autor identifica as relaçoã es sociais e as relaçoã es de trabalho: as relaçoã es sociais saã o baseadas no amor, na aceitaçaã o
do outro, enquanto as relaçoã es de trabalho se caracterizam pela hierarquia, pela autoridade;
“Eu digo que quando algueú m diz isto, estaú se referindo a relaçoã es humanas fundadas sobre uma emoçaã o fundamental
que eú a aceitaçaã o muú tua, a da aceitaçaã o do outro na conviveê ncia, e para essa emoçaã o temos uma palavra, uma palavra
importante, que eú amor. [...] Uso esta palavra, primeiro, porque a encontramos cotidianamente. Noú s falamos de amor
toda vez que nos encontramos numa situaçaã o na qual as pessoas, junto com outras pessoas, em sua relaçaã o com os
objetos, se conduzem aceitando o outro como tal, junto de si.” P. 47
“[...] o social eú uma dinaê mica de relaçoã es humanas que se funda na aceitaçaã o muú tua. Se naã o haú aceitaçaã o muú tua e se naã o
haú aceitaçaã o no outro, e se naã o haú espaço de abertura para que o outro exista junto de si, naã o haú fenoê meno social. As
relaçoã es de trabalho naã o saã o sociais. As relaçoã es de autoridade naã o saã o relaçoã es sociais. Os sistemas hieraú rquicos, como
um exeú rcito, por exemplo, naã o saã o sistemas sociais: saã o uma maquinaria de um tipo no qual cada pessoa deve fazer algo,
mas naã o saã o um sistema social.” P. 47
“Ainda, digo tambeú m que na medida em que as emoçoã es fundam os espaços de açaã o. Sim, naã o haú nenhuma atividade
humana que naã o esteja fundada, sustentada por uma emoçaã o, nem mesmo os sistemas racionais, porque todo sistema
racional, aleú m disso, se constitui como um sistema de coereê ncias operacionais fundado num conjunto de premissas
aceitas a priori. E essa aceitaçaã o a priori desse conjunto de premissas eú o espaço emocional. E quando se muda a
emoçaã o, tambeú m se muda o sistema racional.” P. 47
“Naã o haú preocupaçaã o pelo outro se o outro naã o pertence ao domíúnio de aceitaçaã o no qual se estaú , o domíúnio social no
qual se estaú .” P. 48
“Por isso eú que uma argumentaçaã o sobre o respeito, a eú tica, os direitos humanos naã o convence a ningueú m que jaú naã o
esteja convencido. Porque naã o eú a razaã o que justifica a preocupaçaã o pelo outro, mas eú a emoçaã o. Se estou na emoçaã o de
aceitaçaã o do outro, o que lhe acontece tem importaê ncia e presença para mim. [...] Mas se estas pessoas naã o pertencem
ao meu espaço de aceitaçaã o muú tua, naã o pertencem ao domíúnio social no qual estou, o que lhes aconteça naã o me toca.” P.
49
“[...] tambeú m haú eminentes neurofisiologias como John Eccles, que propoã e que na face interna do hemisfeú rio cerebral, na
aú rea somaú tica suplementar, existem ceú lulas que se conectam com a conscieê ncia universal. Algo assim como o prana
hindu.” P. 63
- o autor diz que eú possíúvel mostrar como surgem os fenoê menos da conscieê ncia ao se mostrar como surge a linguagem;
“Eu naã o posso dizer que a fisiologia explica a conduta, mas posso dizer que, sob tais e tais condiçoã es fisioloú gicas, o
resultado eú a conduta.” P. 64
“A hora naã o estaú no reloú gio. A hora estaú na relaçaã o do observador com o reloú gio observado.
Da mesma maneira, o mirar da salamandra estaú no espaço de disfunçaã o do observador, porque a salamandra estaú
fazendo uma correlaçaã o interna.” P. 65
“Noú s naã o nos aproximamos da descriçaã o de uma realidade em si sob nenhuma circunstaê ncia, e sim configuramos
realidades.” P. 68
METADESIGN
Os sistemas vivos
As condições de existência
“Os sistemas vivos saã o sistemas determinados estruturalmente, ou seja, saã o sistemas tais que tudo o que lhes acontece a
qualquer momento depende de sua estrutura — que eú como eles saã o feitos a cada instante. Os sistemas determinados
estruturalmente saã o sistemas tais que qualquer agente que incida sobre eles apenas desencadeia neles mudanças
estruturais determinadas neles proú prios.” P.188
“[...]a partir de nosso viver cotidiano sabemos tambeú m que, ao escutarmos algueú m, o que ouvimos eú um acontecer
interno a noú s, e naã o o que o outro diz, embora o que ouvimos seja desencadeado por ele ou ela.” P 188
“Naã o haú duú vida de que gostaríúamos que o outro ouvisse o que dizemos, mas isso naã o acontece, a menos que venhamos
interagindo recursivamente um com o outro por um períúodo suficientemente longo para nos tornarmos
estruturalmente congruentes, resultando em sermos capazes de comportamento coerente no conversar um com o
outro. Quando isso acontece, dizemos que compreendemos um ao outro.” P. 188-189
“Sistemas vivos saã o sistemas autopoieú ticos moleculares. Enquanto sistemas moleculares, os sistemas vivos saã o abertos
ao fluxo de mateú ria e energia. Enquanto sistemas autopoieú ticos, sistemas vivos saã o sistemas fechados em sua dinaê mica
de estados, no sentido de que eles saã o vivos apenas enquanto todas as suas mudanças estruturais forem mudanças
estruturais que conservam sua autopoiese.” P. 189
Domínios de existência
“Os sistemas vivos existem em dois domíúnios operacionais: o domíúnio de sua composiçaã o, que eú onde sua autopoiese
existe e de fato opera como uma rede fechada de produçoã es moleculares, e o domíúnio ou meio no qual eles surgem e
existem como totalidades em interaçoã es recursivas. O primeiro eú o domíúnio no qual o observador os veê em sua anatomia
e fisiologia, e o segundo eú onde o observador os distingue como organismos ou sistemas vivos. Esses dois domíúnios naã o
se intersectam, e naã o podem ser deduzidos um do outro, apesar da composiçaã o do sistema vivo, enquanto um sistema
autopoieú tico, por sua constituiçaã o como uma totalidade delimitada ou singular, tornar possíúvel o outro enquanto um
domíúnio no qual ele opera como tal totalidade ou entidade discreta. Ou seja, uma vez que os dois domíúnios de existeê ncia
dos sistemas vivos (ou das entidades compostas em geral) naã o se intersectam, naã o haú entre eles nenhuma relaçaã o
causal [...].” p. 190
“Nessas circunstaê ncias, o que eú fundamental notar, depois de tudo o que eu disse em relaçaã o aà existeê ncia dos sistemas
vivos, eú que tudo o que ocorre em ou com um sistema vivo eú operacionalmente subordinado aà conservaçaã o do modo de
viver que o define e o realiza no domíúnio no qual ele funciona como um todo ou uma totalidade. Ou, em outras palavras,
a corporalidade, que eú onde a autopoiese do sistema vivo de fato ocorre, eú a condiçaã o de possibilidade do sistema vivo,
mas o modo de sua constituiçaã o e realizaçaã o contíúnua eú em si continuamente modulada pelo fluir do viver do sistema
vivo no domíúnio no qual ele funciona como uma totalidade. [...] Portanto, a corporalidade e o modo de funcionar como
uma totalidade saã o intríúnseca e dinamicamente entrelaçados. De modo que nenhum deles eú possíúvel sem o outro, e
ambos se modulam mutuamente no fluir do viver. O corpo se transforma de acordo com o modo do sistema vivo
(organismo) funcionar como um todo, e o modo do organismo funcionar como um todo depende da maneira pela qual
funciona a corporalidade.” P. 191
O meio
“O meio, enquanto o espaço no qual um sistema funciona como um todo, tem uma dinaê mica estrutural independente da
dinaê mica estrutural dos sistemas que ele conteú m, apesar de ser modulado pelos seus encontros com eles. Portanto, o
meio e os sistemas que ele conteú m estaã o em mudanças estruturais contíúnuas, cada um de acordo com sua proú pria
dinaê mica estrutura!, e cada um modulado pelas mudanças estruturais que eles desencadeiam um no outro atraveú s de
seus encontros recursivos. Nessas circunstaê ncias, todos os sistemas que interagem com um sistema vivo constituem seu
meio. Aleú m disso, de acordo com a dinaê mica recursiva das interaçoã es recíúprocas acima descritas, todos os sistemas em
interaçoã es recursivas mudam juntos, congruentemente.” P. 192
Os seres humanos
O linguajar
“A linguagem eú um modo de viver juntos num fluir de coordenaçaã o consensual de coordenaçoã es consensuais de
comportamentos, e eú como tal um domíúnio de coordenaçoã es de coordenaçoã es de açoã es. Assim, tudo o que noú s seres
humanos fazemos, noú s fazemos na linguagem. Entaã o, os objetos surgem na linguagem como modos de coordenaçaã o de
nossos afazeres na linguagem; os diferentes mundos que vivemos surgem na linguagem como diferentes domíúnios de
afazeres nas coordenaçoã es de nossos afazeres na linguagem; os diferentes domíúnios de afazeres que vivemos como
diferentes tipos de atividades humanas, sejam eles concretos ou abstratos, manipulaú veis ou imaginados, praú ticos ou
teoú ricos, ocorrem como domíúnios de coordenaçoã es consensuais de coordenaçoã es de açoã es em diferentes domíúnios de
açoã es que surgem em nosso viver na linguagem. Assim, o linguajar eú nosso modo de existir como seres humanos.” P.
192-193
“[...] no curso de nossa histoú ria vivemos na conservaçaã o de cada mundo que vivemos como se ele fosse a proú pria base de
nossa existeê ncia, e assim fazemos numa dinaê mica de conservaçaã o, cujo resultado eú que todos noú s começamos a mudar
em torno da maneira de viver conservada que o mundo conservado implica.
Mas o que necessitamos para permanecermos seres humanos naã o eú muito diferente nos diferentes mundos que
vivemos. A diferença eú no tipo de ser humano que nos tornamos em cada um deles, porque nos tornamos um tipo ou
outro de ser de acordo com a maneira como vivemos.” P. 194-195
IDENTIDADE
“A identidade de um sistema, isto eú , o que define um sistema como um sistema de um tipo particular, naã o eú uma
caracteríústica intríúnseca a ele. A identidade de um sistema eú constituíúda e conservada como uma maneira de funcionar
como um todo nas interaçoã es recursivas do sistema no meio que o conteú m.” P. 195
“Em noú s, seres humanos, a cultura em que vivemos constitui o meio no qual somos realizados como seres humanos, e
nos transformamos em nossas corporalidades no curso da histoú ria de nossa cultura, de acordo com a identidade
humana que surge e que eú conservada nessa cultura. Mas, ao mesmo tempo, como seres humanos que vivem em
conversaçoã es, somos seres reflexivos que podem se tornar conscientes da forma que vivem e do tipo de seres humanos
que se tornam. E ao nos tornarmos conscientes, podemos escolher o curso que nosso viver segue de acordo com nossas
prefereê ncias esteú ticas, e vivemos de uma forma ou de outra conforme a identidade humana que conservamos. Desse
modo, nossa identidade humana eú tanto constituíúda quanto conservada numa dinaê mica sisteê mica definida pela rede de
conversaçoã es da cultura que vivemos. Portanto, podemos ser Homo sapiens sapiens, Homo sapiens amans, Homo
sapiens aggressans ou Homo sapiens arroggans, de acordo com a cultura que vivemos e conservamos em nosso viver,
mas ao mesmo tempo podemos deixar de ser seres humanos de um tipo ou de outro ao mudarmos de cultura,
dependendo da configuraçaã o de emoçoã es que daú aà cultura que vivemos seu caraú ter particular.” P.195-196
Emoções e racionalidade
“[...] usamos diferentes tecnologias como diferentes domíúnios de coereê ncias operacionais conforme o que queremos
obter com nosso agir, isto eú , usamos diferentes tecnologias de acordo com nossas prefereê ncias ou desejos. Portanto, saã o
nossas emoçoã es que guiam nosso viver tecnoloú gico, naã o a tecnologia em si mesma, ainda que falemos como se a
tecnologia determinasse nosso agir, independentemente de nossos desejos. Afirmo que podemos ver isto na histoú ria
tecnoloú gica de nossos ancestrais. Realmente, afirmo que, se formos cuidadosos, poderemos ver que diferentes
procedimentos tecnoloú gicos foram usados por nossos ancestrais ao longo de milhares de anos, e que as mudanças
tecnoloú gicas que fizeram estavam relacionadas a mudanças em seus desejos, em seu gosto ou suas prefereê ncias
esteú ticas, independentemente de como sua forma de viver tenha mudado a partir daíú.” P.197
“[...] o sistema nervoso naã o funciona com informaçaã o sobre o meio ou com representaçoã es deste. Tudo o que o sistema
nervoso faz como componente do organismo eú gerar nele correlaçoã es senso-efetoras que daraã o origem ao
comportamento do organismo no curso de suas interaçoã es com o meio. Aleú m disso, as correlaçoã es senso-efetoras que o
sistema nervoso gera modificam o fluir da atividade das mudanças do sistema nervoso, e o fluir da atividade do sistema
nervoso muda aà medida que muda sua estrutura.” P. 199-200
“Chamo esta dinaê mica histoú rica de mudanças estruturais coerentes do organismo e do meio, bem como sua condiçaã o de
congrueê ncia dinaê mica estrutural, de acoplamento estrutural.” P. 200-201
“[...] devido aà natureza do acoplamento estrutural entre organismo e meio, qualquer dimensaã o de interaçaã o estrutural
do organismo e do meio, que se acopla com o fluir de mudanças estruturais do sistema nervoso, pode tornar-se uma
dimensaã o sensorial, e uma expansaã o do espaço comportamental do organismo.” P. 77201
Tecnologia e realidade
A tecnologia
“A tecnologia eú uma operaçaã o em conformidade com as coereê ncias estruturais de diferentes domíúnios de açoã es nas
quais uma pessoa pode participar como ser humano.” P.203
“Naã o haú duú vida de que enquanto sistemas determinados estruturalmente existimos em nossa dinaê mica estrutural. Naã o
haú duú vida de que enquanto sistemas determinados estruturalmente existimos em contíúnua mudança estrutural e nossa
estrutura pode ser manipulada intencionalmente com vistas a algumas consequeê ncias pretendidas em nosso viver.” P.
205
“Assim, uma vez que nossas emoçoã es especificam o domíúnio relacional no qual instamos a cada instante, eú nosso
emocionar — e naã o nossa razaã o — que define o curso do nosso viver individual, bem como o curso de nossa histoú ria
cultural.” P. 206
“Este papel central das emoçoã es na definiçaã o do curso da histoú ria naã o eú peculiar a noú s como seres culturais. Na verdade,
eú a natureza do processo evolutivo acontecer isto na constituiçaã o de linhagens atraveú s da conservaçaã o reprodutiva de
modos de viver que saã o de fato definidos pelas prefereê ncias relacionais ou escolhas dos organismos.” P. 206
“A evoluçaã o bioloú gica naã o estaú entrando numa nova fase com o crescimento da tecnologia e da cieê ncia, mas a evoluçaã o
dos seres humanos estaú seguindo um curso cada vez mais definido por aquilo que escolhemos fazer face aos prazeres e
medos que vivemos em nosso gostar ou naã o gostar daquilo que produzimos atraveú s da cieê ncia e da tecnologia. EÉ por isto
que a pergunta pelo que queremos eú a pergunta central, e naã o a pergunta sobre a tecnologia ou a realidade.” P. 206
Realidade
“A noçaã o de realidade estaú mudando, mas naã o nosso viver com relaçaã o a ela. A realidade eú uma proposiçaã o que usamos
como uma noçaã o explicativa para explicar nossas experieê ncias. Aleú m disso, a usamos de modos diferentes de acordo
como nossas emoçoã es. EÉ por isso que haú diferentes noçoã es de realidade em diferentes culturas ou em diferentes
momentos da histoú ria. Ainda, vivemos do mesmo modo, enquanto fundamento da validade de nossa experieê ncia, aquilo
que cono-tamos com a palavra real quando naã o a estamos usando como um argumento. Ou seja, vivemos o "real" como
a presença de nossa experieê ncia. Eu vi... eu ouvi... eu toquei... De fato, eú por isso que afirmo que eú uma condiçaã o
fundamental em nossa existeê ncia como sistemas determinados estruturalmente naã o podermos distinguir, na proú pria
experieê ncia, entre o que chamamos de nossa percepçaã o do viver cotidiano e ilusaã o. A distinçaã o entre percepçaã o e ilusaã o
eú feita a posteriori, desva-lorizando-se uma experieê ncia em relaçaã o a uma outra aceita como vaú lida, sem saber se mais
tarde ela seraú ou nao desvalorizada em relaçaã o a alguma outra. Na verdade, eú por isso que as realidades virtuais saã o
chamadas realidades.” P 206-207
Expansões da realidade básica
“Em virtude de seu funcionamento como uma rede fechada de relaçoã es variaú veis de atividades, o sistema nervoso naã o
tem limitaçoã es intríúnsecas para lidar com a expansaã o da realidade baú sica do organismo que ele integra. Nem tem
qualquer limitaçaã o para lidar com dimensoã es sensoriais inusitadas, que podem surgir nas vidas dos organismos se seus
domíúnios de interaçoã es se expandirem como uma consequeê ncia de alguma mudança estrutural no meio.” P. 208-209
“[...] se o modo de viver que define a identidade de classe de um sistema vivo particular naã o eú conservado, o sistema vivo
desaparece como um sistema vivo daquele tipo, e um novo aparece num novo espaço relacional.” P. 209
Desejos e responsabilidades
“Noú s, seres humanos, sempre fazemos o que queremos, mesmo quando dizemos que somos forçados a fazer algo que
naã o queremos. O que acontece nesse uú ltimo caso eú que queremos as consequeê ncias que iraã o se dar se fizermos o que
dizemos que naã o queremos fazer. Isto eú assim porque nossos desejos, conscientes e inconscientes, determinam o curso
de nossas vidas e o curso de nossa histoú ria humana, O que conservamos, o que desejamos conservar em nosso viver, eú o
que determina o que podemos e o que naã o podemos mudar em nossas vidas. Ao mesmo tempo, eú por isso que
frequentemente naã o queremos refletir sobre nossos desejos. Se naã o vemos nossos desejos, podemos viver sem nos
sentirmos responsaú veis pela maior pane das consequeê ncias do que fazemos.
Os artistas, poetas da vida cotidiana, saã o algumas dessas pessoas que podem estar, e frequentemente estaã o, conscientes
do curso que a existeê ncia humana estaú seguindo. Isto eú particularmente evidente nos escritores de ficçaã o cientíúfica, que
revelam um futuro que surge de suas extrapolaçoã es das coereê ncias de nosso presente relacional. Ao mesmo tempo, os
artistas podem estar, e frequentemente estaã o, conscientes daquilo que estaú faltando em nossas relaçoã es humanas atuais,
tais como o amor, a honestidade, a responsabilidade social e o respeito muú tuo — mas os trabalhos nos quais eles
revelam ou evocam o que veem saã o frequentemente desprezados como sendo utopia. Mas, em ambos os casos, naã o eú o
meio que eú central para o trabalho dos artistas, e sim o que eles querem fazer. O meio eú sempre um domíúnio de
possibilidades que podem ser usadas com maior ou menor conhecimento do que pode ser feito com elas, mas eú sempre
uma questaã o de dedicaçaã o e esteú tica algueú m conseguir ou naã o usaú -las como deseja. O que me interessa, todavia, eú o
objetivo, o emocionar que o artista quer evocar.” P. 212-213
Reflexões
“A tecnologia naã o eú a soluçaã o para os problemas humanos, porque os problemas humanos pertencem ao domíúnio
emocional, na medida em que eles saã o conflitos em nosso viver relacional que surgem quando temos desejos que levam
a açoã es contraditoú rias. EÉ o tipo de ser humano, Homo sapiens amans, Homo sapiens aggressans ou Homo sapiens
arrogans, no momento em que tivermos acesso a uma nova tecnologia, seja como usuaú rios ou observadores, o que iraú
determinar como a utilizaremos ou o que veremos nela.” P. 213
“Cada cultura eú definida por uma configuraçaã o particular de emocionar, que guia as açoã es de seus membros, e eú
conservada por essas açoã es e pelo aprendizado, da configuraçaã o do emocionar que a define, por parte das crianças. Se a
dinaê mica sisteê mica de constituiçaã o e conservaçaã o de uma cultura eú quebrada, a cultura se acaba.” P. 213-214
“As culturas saã o redes fechadas de conversaçoã es, conservadas geraçaã o apoú s geraçaã o atraveú s do aprendizado das
crianças que nelas vivem. Como tais, as culturas mudam se mudar a rede fechada de conversaçoã es que as crianças
aprendem enquanto vivem nela, e uma nova rede fechada de conversaçoã es começar a ser conservada geraçaã o apoú s
geraçaã o atraveú s de seu viver. Pode-se dizer que, em termos sisteê micos gerais, o que eú conservado em um sistema ou nas
relaçoã es entre os membros de um grupo de sistemas eú o que determina o que pode ou naã o mudar no sistema ou no
grupo de sistemas.” P. 215
“A internet, com toda a sua riqueza como uma rede, naã o eú algo basicamente diferente de outros sistemas de interaçoã es
que facilitam o uso de bibliotecas e museus. Sem duú vida, a interconectividade atingida atraveú s da internet eú muito maior
do que a que vivemos haú cem ou cinquü enta anos atraveú s do teleú grafo, do raú dio ou do telefone. Todavia, noú s ainda
fazemos com a internet nada mais nada menos do que o que desejamos no domíúnio das opçoã es que ela oferece, e se
nossos desejos naã o mudarem, nada muda de fato, porque continuamos a viver atraveú s da mesma configuraçaã o de açoã es
(de emocionar) que costumamos viver, Certamente, eu hoje sei mais sobre o que eú dito e sobre o que estaú ocorrendo no
domíúnio da globalizaçaã o do fluxo de informaçaã o, mas naã o eú a informaçaã o que constitui a realidade que vivemos. A
realidade que vivemos surge momento apoú s momento atraveú s da configuraçaã o das emoçoã es que vivemos, e que
conservamos com nosso viver instante apoú s instante. Mas se sabemos disso, se sabemos que a realidade que vivemos
surge atraveú s de nosso emocionar, e sabemos que sabemos, devemos ser capazes de agir de acordo com a conscieê ncia
de nosso querer ou naã o querer a realidade que estamos trazendo aà maã o no nosso viver. Ou seja, devemos nos tornar
responsaú veis por aquilo que fazemos.” P. 215-216
Notas
- Roman Jakobson (1896-1982), linguista e críútico literaú rio russo-americano. Seu primeiro trabalho, em linguíústica
estruturalista, contribuiu para o desenvolvimento da Escola de Praga da Linguíústica, que argumentava em favor de uma
eê nfase histoú rica no estudo dos sons da fala. Jakobson participou de algumas das Confereê ncias Macy de ciberneú tica, e
desenvolveu um modelo da comunicaçaã o humana;
- Karl von Frisch (1886-1982), zooú logo vienense. Preê mio Nobel de Medicina em 1973 por suas descobertas relativas aà
organizaçaã o e elicitaçaã o de padroã es individuais e sociais de comportamento. Seu trabalho pioneiro em percepçaã o
quíúmica e visual dos peixes e abelhas levou-o a descrever detalhadamente o modo como as abelhas se orientam e se
comunicam;