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O Vale do Paraíba e o Império do Brasil

nos quadros da Segunda Escravidão


Mariana Muaze | Ricardo Salles Org.

O Vale do Paraíba e o Império do Brasil


nos quadros da Segunda Escravidão
© 2015 Mariana Muaze e Ricardo Salles
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação Editorial
Isadora Travassos

Produção Editorial
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura
Victoria Rabello

Revisão
Carolina Lopes

Imagem da capa
Charles Ribeyrolles, Brazil Pittoresco

cip-brasil. catalogação na publicação


sindicato nacional dos editores de livros, rj

V243

O Vale do Paraíba e o império do Brasil nos quadros da segunda escravidão / organização Mariana
Muaze, Ricardo Salles. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2015.

isbn 978-85-421-0368-7

1. Paraíba do Sul, Rio, Vale - História. 2. Escravidão - Brasil - História. I. Muaze, Mariana.
II. Salles, Ricardo.

15-26215 cdd: 981.5


cdu: 94(815)

Imagem da capa: Ribeyrolles, Charles, 1812-1860. Brazil Pittoresco: album de vistas, panoramas, mo-
numentos.... [gravura 18]. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_icono-
grafia/icon1113654/icon1113654_20.jpg. Acesso em 18/9/2015. (Acervo: Fundação Biblioteca Nacional,
Brasil, impressa sob permissão)
Imagem da página 101: © Acervo Arquivo Nacional, ref: BR RJANRIO 4Y.0.MAP.50, impressa sob permissão.
Imagem da página 114: © Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Brasil, impressa sob permissão.
Imagem da página 161: © Acervo Biblioteca Nacional de Portugal, cota cc-219-a, impressa sob permissão.

2015
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 580 – sl. 320 – Ipanema
Rio de Janeiro – rj – cep 22420-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br – www.7letras.com.br
Sumário

Introdução11

Parte I
interpretações e grandes questões
sobre a bacia do paraíba
O Vale do Paraíba escravista
e a formação do mercado mundial do café no século XIX21
Rafael Marquese
Dale Tomich

Novas considerações sobre o Vale do Paraíba e


a dinâmica imperial 57
Mariana Muaze

A cartografia do poder senhorial:


cafeicultura, escravidão e formação
do Estado nacional brasileiro, 1822-1848 100
Rafael Marquese
Ricardo Salles

Vale expandido: contrabando negreiro, consenso


e regime representativo no Império do Brasil 130
Alain El Youssef
Bruno Fabris Estefanes
Tâmis Parron

Parte II
população e sociedade
O paradigma da extinção:
desaparecimento dos índios puris
em Campo Alegre, sul do Vale do Paraíba 159
Enio Sebastião Cardoso de Oliveira
Da colonização do Vale à formação de uma família:
uma introdução à história dos Werneck
e suas estratégias matrimoniais 176
Lucas Gesta Palmares Munhoz de Paiva

A morte do barão de Guaribu.


Ou o fio da meada 197
Ricardo Salles
Magno Fonseca Borges

Suspeitos, transeuntes, impermanentes: personagens liminares


e a dinâmica social em um microcosmo do Império 242
Camilla Agostini

“Tirando leite de pedra”:


o tráfico africano estimado a partir de dados etários  259
Heitor P. de Moura Filho

A força da escravidão ao sul do Rio de Janeiro:


os complexos de fazendas e a demografia escrava
no Vale cafeeiro na segunda metade do oitocentos 302
Thiago Campos

A formação da cafeicultura em Bananal, 1790-1830 328


Breno Aparecido Servidone Moreno

Laços cativos: uma análise demográfica da família escrava


no plantel de Luciano José de Almeida, Bananal 1854-1882 351
Camila dos Santos

O espaço disciplinar escravista das fazendas cafeeiras


e a resistência escrava: Vale do Paraíba, século xix371
Marco Aurélio dos Santos

Para matar a liberdade seria preciso fazer desaparecer


a humanidade: o jornal abolicionista 25 de Março
em Campos dos Goytacazes 392
Tanize do Couto Costa Monnerat
Parte III
capital, economia e finanças

Terra, comércio e comerciantes na vila cafeeira de Piraí  419


Vladimir Honorato de Paula

“Associação de capitalistas” ou “Associação de proprietários”:


o Banco Commercial e Agrícola no Império do Brasil,
um banco comercial e emissor no Vale do Paraíba (1858-1862) 436
Carlos Gabriel Guimarães

Modernidade, ordem e civilização: a companhia Estrada de Ferro


D. Pedro II no contexto da direção Saquarema 477
Magno Fonseca Borges
Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro Marinho

Terras, escravos, açúcar, café, ferrovias e bancos


em Campos dos Goytacazes: o rol dos negócios de
Saturnino Braga no século XIX501
Walter Luiz Carneiro de Mattos Pereira

Tortuosos caminhos: obras públicas provinciais e


o difícil escoamento das mercadorias de Cantagalo,
Campos dos Goytacazes e Macaé para o Rio de Janeiro
(século XIX)524
Ana Lucia Nunes Penha

Crédito e finanças no desenvolvimento da economia cafeeira


em Vassouras, Vale do Paraíba fluminense, durante o século XIX 545
Rabib Floriano Antonio

Sobre os autores 571


Em homenagem a Barbara Stein (in memoriam) e Stanley Stein.
Introdução

Uma ideia perpassa todos os capítulos dessa obra e preside sua elaboração:
a de que a região do Vale do Paraíba e de suas áreas adjacentes nas provín-
cias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, organizadas em torno
da escravidão, da grande propriedade rural, da produção e exportação do
café, foram centrais na conformação socioeconômica, política e cultural do
Império do Brasil. A ideia não é nova e na época mesmo já circulava o dito
de que “o Império é o café. E o café é o Vale”.
Do ponto de vista da historiografia, o café, a escravidão e o Vale cons-
tituíram-se, desde as décadas de 1920 e 1930, em foco de importantes tra-
balhos, dentre os quais se destaca a monumental História do café no Brasil,
de Afonso Taunay.1 Nos anos 1950, o assunto foi revisitado por Alberto
Lamego, logo seguido, em 1957, pelo clássico Vassouras, fruto das pesquisas
que Stanley Stein desenvolveu na região em fins dos anos 1940.2 O livro de
Stein, tratando da questão da grande propriedade rural exportadora e das
relações entre senhores e escravos por ela engendradas, permanece insu-
perável, ultrapassando todos os modismos historiográficos que se segui-
ram. Ele foi ainda inspiração direta para o trabalho de outro historiador
norte-americano, agora já um brasilianista, Warren Dean, com o seu Rio
Claro, publicado em inglês em 1976 e, no ano seguinte, em português, que
igualmente aborda os temas da monocultura de exportação, da grande pro-
priedade e da escravidão em uma região fronteiriça entre o velho e o novo
1 Em 1927, por ocasião da Exposição do Bicentenário do Café no Brasil, o periódico O Jornal, do Rio
de Janeiro, publicou um suplemento dedicado ao evento. Mais tarde, esse material foi reunido e
publicado em livro pelo Departamento Nacional do Café, com o título O café no segundo centenário
de sua introdução no Brasil, em dois volumes (Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café,
1934). Em 1929, por sua vez, Afonso d’Escragnolle Taunay iniciou a publicação, da História do café
no Brasil, em 11 volumes, que só se encerraria em 1941, também patrocinada pelo Departamento
Nacional do Café (Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1929-1941).
2 LAMEGO, Alberto. O homem e a serra. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística, 1950; STEIN, Stanley. Vassouras: a Brazilian coffee county, 1850-1900.
Cambridge, MA: Harvard University Press, 1957 (primeira edição brasileira, com o título Grandeza
e decadência do café no Vale do Paraíba. São Paulo: Brasiliense, 1961. Última edição brasileira com o
título Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990).

11
oeste paulista.3 Finalmente, cabe destacar, para a década de 1960, os livros
de Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia, de 1966, que, tratando da
cafeicultura escravista brasileira, em especial em seu momento de crise,
não deixou de conferir importância ao Vale do Paraíba, e Homens livres na
ordem escravocrata, de Maria Sylvia Carvalho Franco, de 1969, analisando a
população livre e pobre com foco no município de Guaratinguetá.4
Desde então, o Vale oitocentista e suas regiões circunvizinhas nunca
deixaram de ser frequentados pela historiografia. Nesse mesmo período,
incrementaram-se a profissionalização e a expansão do campo da História,
com ênfase na pesquisa arquivística e na elaboração de dissertações e teses
de mestrado e doutorado, e novas abordagens tiveram grande impacto
entre os historiadores. O resultado da combinação desses dois processos
tem sido a redução do escopo e do foco das pesquisas, até mesmo para tor-
ná-las viáveis nos prazos estabelecidos pelos programas de pós-graduação.
Teses, dissertações, monografias, muitas delas publicadas, livros e artigos
passaram a tratar prioritariamente de temas como as famílias escravas, a
constituição de identidades afro-brasileiras, as formas de resistência das
populações cativas, o papel social, econômico e político de pequenos pro-
prietários, produtores ou da população livre e pobre, a constituição das
fortunas, a agricultura de subsistência e inúmeros outros assuntos. Esses
estudos derramaram-se sobre uma vasta dimensão territorial, cobrindo
praticamente todos os recantos, comarcas e municípios do Império, inclu-
sive os do Vale do Paraíba. O Vale, considerado como um todo, tanto em
sua especificidade regional quanto em sua articulação central com as confi-
gurações econômicas, sociais, políticas e culturais mais amplas do Império
do Brasil, contudo, deixou de ser objeto direto ou indireto da maioria des-
ses trabalhos. Isso aconteceu tanto por uma recusa, explícita ou implícita,
em buscar grandes temas e explicações, mesmo que a partir de abordagens
mais reduzidas, quanto pela escolha de estabelecer relações entre os traba-
lhos geograficamente focados e os temas acima elencados.
O livro coletivo que o leitor tem em mãos é, em parte, fruto desse
processo. Alguns de seus capítulos abordam os temas acima mencionados
em localidades específicas do Vale do Paraíba e em regiões circunvizinhas.

3 DEAN, Warren. Rio Claro: a Brazilian plantation system, 1820-1920. Stanford: Stanford University
Press, 1976. E em português Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. São
Paulo: Paz e Terra, 1977.
4 COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: DIFEL, 1966; FRANCO, Maria Sylvia
Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: IEB, 1969.

12
Outros capítulos, no entanto, recolocam a discussão ampla sobre o Vale e
seu significado em sua conformação com o mundo do Império do Brasil.
Tanto em um caso quanto no outro, entretanto, esse livro é, ao mesmo
tempo, fonte e resultado de um trabalho coletivo de discussão e pesquisa
que diversos pesquisadores e estudiosos têm desenvolvido sobre o Vale
nos últimos dez ou quinze anos. Nesse sentido, ele visa reunir e divulgar
uma série de trabalhos que se somam na recomposição do papel do Vale do
Paraíba no século XIX brasileiro.
Esse papel diz respeito, antes de tudo, à relação do Vale com a constru-
ção e consolidação do Estado nacional. Mais uma vez, o tema não é novo,
ainda que tenha perdido terreno na nova historiografia brasileira. José
Murilo de Carvalho, em A construção da ordem (1980) e Teatro de som-
bras (1988), que afirma a autonomia do projeto da elite política imperial
frente aos grandes proprietários rurais, não deixa de reconhecer, insuficien-
temente a nosso ver, uma “dialética da ambiguidade” que marcaria a rela-
ção do Estado com esses grandes proprietários.5 Outros dois clássicos da
história política do Brasil Império assinalaram a importância da expansão
cafeeira escravista pelo Vale no processo de construção do Estado nacional:
As tropas da moderação, de autoria de Alcir Lenharo, publicado em 1976,6
e O Tempo Saquarema, de Ilmar Rohloff de Mattos, publicado em 1987.7 A
tese de Ilmar Mattos, da relação entre a cafeicultura escravista e o Estado
imperial foi retomada, desta feita em seu momento de crise, por Ricardo
Salles em Nostalgia imperial, de 1996.8 A temática do Vale do Paraíba e sua
relação com a configuração política e socioeconômica do Império voltou à
baila no livro de Jeffrey Needell, The Party of Order, publicado em 2006,9
e, mais recentemente, no livro de Tâmis Parron, A política da escravidão no

5 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro:
Campus, 1980; e Id. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Vértice, 1988. Nas novas
edições as duas partes da tese vêm novamente unificadas.
6 LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil,
1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1979.
7 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo:
Hucitec, 1987.
8 SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo
Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. A segunda edição traz o título modificado para Nostalgia
imperial: escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado (Rio de
Janeiro: Ponteio, 2013).
9 NEEDELL, Jeffrey. The Party of Order: the conservatives, the State, and slavery in the Brazilian
Monarchy, 1831-1871. Stanford: Stanford University Press, 2006.

13
Império do Brasil, de 2011.10 A centralidade do Vale do Paraíba na formação
do Império foi ainda tematizada por Mariana Muaze, em As memórias da
viscondessa, e por Ricardo Salles, em E o Vale era o escravo, ambos de 2008.11
Uma primeira questão que surge quando se busca entender o Vale do
Paraíba no século XIX brasileiro diz respeito à “definição” do que vinha a ser
essa região. O Vale do Paraíba, de um ponto de vista estritamente geográfico,
compreende as terras banhadas pelo Rio Paraíba do Sul na parte leste do atual
estado de São Paulo e oeste do Rio de Janeiro. Entretanto, já para os contem-
porâneos do século XIX, a denominação carregava outros significados: café,
grandes propriedades e proprietários rurais e escravidão. Mais ainda, a região
era percebida como esteio econômico do Império e o locus de sua classe domi-
nante. Nenhuma outra região, ao longo do Segundo Reinado, foi berço de tan-
tos títulos nobiliárquicos quanto o Vale. Essa simples designação, aliás, já era
suficiente para passar a ideia de uma região que compreendia muito mais que
sua inscrição geográfica. Nessa área, historicamente construída, as relações
políticas, econômicas, sociais e culturais emprenharam de significados o aci-
dente geográfico que lhe servia de base territorial.12 Econômica e socialmente,
esse Vale se estendia para o conjunto da província do Rio de Janeiro, para o
Oeste Velho paulista e para a Zona da Mata mineira. Ele ainda alimentava eco-
nomicamente o porto e a praça do Rio de Janeiro, e, política e culturalmente,
estava em estreita simbiose com a Corte imperial. Por isso, seguindo Orlando
Valverde, talvez o mais correto fosse falar em Bacia do Paraíba, região que
compreenderia todas essas áreas e suas configurações socioeconômicas.13

10 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011. Pelo menos três outros trabalhos recentes trataram da política imperial bus-
cando afastar-se ou mesmo criticar as teses clássicas de Ilmar Rohloff de Mattos e José Murilo de
Carvalho: DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo:
Globo, 2005; MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre polí-
tica e elites a partir do Conselho de Estado – 1842-1889. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007;
GOUVÊA, Maria de Fátima. O Império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro:
Record, 2008. Jeffrey Needell, em The Party of Order (já citado), por sua vez, critica a noção de
classe senhorial de Mattos, sem se deter na tese de Carvalho, ainda que o citando constantemente,
e adotando a terminologia de elite política para designar os dirigentes imperiais.
11 MUAZE, Mariana. As memórias da viscondessa: família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro:
Zahar, 2008; SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo: Vassouras, século XIX – senhores e escravos
no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
12 Para o conceito de região como construção histórica aplicado especificamente ao Vale do Paraíba
e, mais amplamente, à província fluminense como um todo, ver MATTOS, Ilmar R. de. O Tempo
Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1987.
13 VALVERDE, Orlando. A fazenda escravocrata de café. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro:
IBGE, v. 29, n. 1, p. 37-81, jan.-mar. 1967.

14
A noção de Bacia do Paraíba, acima esboçada, que atravessa, explícita
ou implicitamente, diversos dos capítulos desse livro, estruturou-se, his-
tórica e conceitualmente, em torno da escravidão. Não apenas a escravi-
dão remanescente do regime colonial, mas uma escravidão em interação
com a construção de Estados nacionais e com a expansão internacional
do mercado capitalista. Uma Segunda Escravidão, de acordo com o con-
ceito cunhado pelo historiador norte-americano Dale Tomich, igualmente
presente como fonte de inspiração e de debate nessa obra. Essa Segunda
Escravidão se expandiu, exatamente no momento em que a escravidão
colonial era abolida, pela Revolução Haitiana, e por guerras e reformas
em outras regiões americanas. Ela alimentou e, ao mesmo tempo, derivou
de um conjunto de tendências e acontecimentos históricos, na virada do
século XVIII para o XIX, cujo epicentro foi a Revolução Industrial e a conso-
lidação da hegemonia britânica no plano internacional. Esses acontecimen-
tos e processos levaram a reconfigurações profundas no mercado mundial,
acarretando um crescente desequilíbrio nos preços internacionais entre
produtos industrializados e agrícolas; o incremento do consumo de deter-
minados produtos, como o café e o açúcar, demandados pelo aumento da
população de trabalhadores e da classe média nas cidades da Inglaterra e da
Europa; a procura por novas matérias-primas, como o algodão. Em regiões
como Cuba, o sul dos Estados Unidos e o Brasil, a escravidão expandiu-se
numa escala maciça para atender a essa crescente demanda mundial por
essas commodities. Dessa forma, e ainda de acordo com Tomich, a Segunda
Escravidão não seria uma premissa histórica do capitalismo, pressupondo,
ao contrário, sua existência como condição para sua reprodução.14
O terceiro conceito histórico que anima muitas das discussões travadas
neste livro é o de classe senhorial. A noção, elaborada por Ilmar R. de Mattos,
entende a classe senhorial como uma formação histórica particular que
teve seus comportamento e valores moldados na escravidão, em particular
naquela praticada no Vale do Paraíba, e em íntima conexão com a constru-
ção do Estado e da ordem imperiais.15 A espinha dorsal da classe senhorial
foi constituída pelos grandes proprietários escravistas, notadamente aque-
les da região da Bacia do Paraíba, e, em especial, por aqueles que detinham,
às vezes, mais de uma centena de escravos. Eram os megaproprietários de
14 TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp,
2011. Sobre a Segunda Escravidão e o Vale do Paraíba, ver capítulo 1 adiante.
15 Ver MATTOS, 1987. Ver também SALLES, 2008; MUAZE e PARRON, 2011.

15
cativos que, em conjunto com os grandes proprietários, possuidores de 50
ou mais escravos, tinham o controle sobre mais de 70% do total da popu-
lação cativa do Vale.16 Muitos desses megaproprietários eram proprietários
de várias fazendas e outros negócios, diretamente ligados ao ramo do café,
como casas comissárias, por exemplo, além de ativos financeiros variados,
constituindo verdadeiros complexos cafeeiros.17 Constituíam-se em verda-
deiros potentados que, em alguns casos, estendiam suas redes de negócios
por mais de uma localidade e mesmo província. Entretanto, a classe senho-
rial, associada à escravidão e à grande propriedade rural, não se formava
apenas em seu fazer econômico. Formava-se, com todo um modo de vida,
um habitus, entendido como formas de ser, sentir e agir não apenas reflexi-
vas, coetâneo com o habitus aristocrático do mundo europeu do século XIX,
marcado, no entanto, pela ascensão da burguesia.18
Esses e outros conceitos históricos, bem como análises sobre temas e
localidades específicas, serão apresentados e debatidos nas três partes em
que se divide essa obra. A primeira, intitulada “Interpretações e grandes
questões sobre a Bacia do Paraíba”, está subdividida em quatro capítulos,
onde são apresentadas grandes linhas interpretativas sobre o Vale e seu
papel na configuração socioeconômica e política do Império. A segunda
parte, “População e sociedade”, se estrutura em 10 capítulos que abordam
questões como a ocupação do Vale e extermínio das populações indíge-
nas que ali viviam, a formação da cafeicultura, o papel desempenhado por
aqueles que, sem serem senhores ou escravos, não obstante pontuavam
aquele mundo, o tráfico internacional de escravos para a região, a forma-
ção de grandes complexos cafeeiros, as relações entre senhores e escravos
16 A ideia de megaproprietário está em: BORGES, Magno Fonseca. Protagonismo e sociabilidade escrava
na implantação e ampliação da cultura cafeeira: Vassouras – 1821-1850. 2005. Dissertação (Mestrado
em História Social) – Departamento de História, Universidade Severino Sombra, Vassouras, 2005;
e SALLES, op. cit. Para Vassouras, cf. SALLES, op. cit. e BORGES, op. cit. Para Bananal, ver MORENO,
Breno A. S. Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal, 1830-
1860. 2013. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Pesquisas preliminares em Piraí indicam
igual ou maior grau de concentração da propriedade escravista.
17 Para a ideia de complexo cafeeiro, ver os capítulos 2 e 9 adiante. João Fragoso e Ana Maria Lugão
Rios trabalharam também com a noção de fazendeiro capitalista, como aquele que diversificava
seus investimentos, ver FRAGOSO, João Luís; RIOS, Ana Maria L. Comendador Aguiar Vallim: um
empresário brasileiro dos oitocentos. In: CASTRO, Hebe Maria M. de; SCHNOOR, Eduardo (Org.).
Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.
18 Sobre a marca aristocrática do habitus da classe senhorial, ver MUAZE, op. cit. Sobre o conceito de
habitus em geral, ver ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1995; e ELIAS,
Norbert. O processo civilizador. São Paulo: Zahar, 1993. v. 2. (E volume 1 de 1994).

16
nos espaços definidos pelas grandes propriedades rurais. A terceira e última
parte, “Capital, economia e finanças”, composta por 6 capítulos, analisa as
relações e implicações financeiras derivadas da economia cafeeira, o papel
da tecnologia, especialmente da ferrovia na manutenção da escravidão e da
ordem senhorial, o papel econômico e financeiro da Baixada Campista na
conformação da região histórica da Bacia do Paraíba.
Alguns dos capítulos que se seguem já foram anteriormente publicados
em revistas, livros e outros espaços de divulgação. Sua reunião no âmbito de
uma mesma publicação, muitas vezes com modificações, visa salientar sua
importância e complementaridade. Em sua maioria, tais trabalhos, inclu-
sive, se desenvolveram e se alimentaram mutuamente no âmbito de discus-
sões e atividades coletivas que resultaram neste livro.
Fruto desse movimento e esforço coletivos de pesquisa, o livro visa
repor, direta ou indiretamente, a questão da centralidade do Vale do Paraíba
na configuração do Império do Brasil na agenda de debates historiográfi-
cos. Muito desse esforço foi realizado através de pesquisas individuais con-
duzidas nos âmbitos de diferentes departamentos e programas de pós-gra-
duação, institutos de pesquisa, em instituições públicas e privadas, sediadas
nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e em Binghamton,
Nova York, nos Estados Unidos.19 Uma parte significativa dessa empreitada,
que sem dúvida reflete esse esforço individual disseminado por diferentes
instituições, no entanto, resulta de trabalho coletivo que vem se desenvol-
vendo ao menos nos últimos cinco anos, tanto em nível regional no Brasil
quanto em nível internacional em diferentes redes de pesquisas.
Historiar esse trabalho e os resultados expressivos obtidos até agora
demandaria um capítulo à parte, o que foge ao escopo dessa introdução.
Cabe, contudo, nomear suas articulações e eventos mais significativos. Em
primeiro lugar, vale mencionar o Seminário Internacional O Século XIX e as
Novas Fronteiras da Escravidão, realizado no Rio de Janeiro e em Vassouras,
em agosto de 2009. Muitas das ideias debatidas aqui tiveram sua origem ou
se ampliaram e consolidaram neste evento. Em segundo lugar, não poderia
deixar de constar o grupo internacional de pesquisadores articulados em
torno da Second Slavery Research Network, que tem seu centro de animação

19 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, Universidade Federal Fluminense


– UFF, Universidade do Estado do rio de Janeiro – UERJ, Museu de Astronomia e Ciências Afins –
MAST, Universidade Severino Sombra – USS, Fundação Educacional Dom André Arcoverde – FAA,
Universidade de São Paulo – USP, Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e Universidade
Estadual de Nova York – SUNY.

17
no Fernand Braudel Center for the Study of Economies, Historical Systems,
and Civilizations, em Binghamton, EUA, e que conta com a participação
direta de alguns dos autores deste volume.
No entanto, a principal vertente formadora dos debates e ideias conti-
dos aqui é o Grupo de Pesquisas O Vale do Paraíba e a Segunda Escravidão,
que busca reunir, em seminários, simpósios, grupos de discussão e outras
formas de intercâmbio intelectual, pesquisadores e estudantes de diferen-
tes instituições que tenham por fio condutor ou pano de fundo de suas
pesquisas a região da Bacia do Paraíba do Sul no século XIX.20 O grupo
vem promovendo seminários anuais desde 2010. O primeiro deles foi rea-
lizado em Vassouras, naquele mesmo ano; o segundo, em Bananal, no ano
seguinte; o terceiro, novamente em Vassouras, em 2013; e o último, em 2014,
novamente nesta cidade. Estes dois últimos eventos foram promovidos no
âmbito do projeto de pesquisa “O Vale do Paraíba no século XIX e nas pri-
meiras décadas da República”, apoiado pela FAPERJ em seu Programa de
Apoio a Núcleos Emergentes – PRONEM, em sua edição de 2011.21 Membros
do grupo organizaram e participaram ainda de um simpósio temático no
Encontro Regional da Associação Nacional dos Historiadores, seção Rio de
Janeiro – ANPUH-Rio, em 2012, e, novamente, no Encontro de 2014.
Assim, essa iniciativa é um ponto de chegada e, ao mesmo tempo, um
ponto de partida para novas pesquisas e interpretações da escravidão e seu
papel na ascensão e queda do Império do Brasil.

Mariana Muaze
Ricardo Salles
Dezembro de 2014

20 Em seu último seminário, realizado em maio de 2014, em Vassouras, o grupo resolveu ampliar
o escopo de suas atividades e pesquisas e passou a se chamar O Império do Brasil e a Segunda
Escravidão.
21 As instituições participantes do projeto são: UNIRIO, UFF, FCRB, USS, através do antigo Centro de
Documentação Histórica de Vassouras (CDH), a Prefeitura Municipal de Piraí, através de seu Arquivo
Histórico Municipal, e, agregando-se mais tarde, o Museu Casa da Hera, do IBRAM, em Vassouras.

18
Parte I
Interpretações e grandes questões sobre a Bacia do Paraíba

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