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A onça e a memória

Felipe Süssekind

1.
Dois vaqueiros passaram o dia todo trabalhando numa fazenda que ficava numa
região próxima ao rio Paraguai, no Pantanal sul. A fazenda ainda era nova, e não tinha
nenhuma casa construída. No final da tarde, eles pararam de trabalhar, acenderam o
fogo para cozinhar e armaram um pequeno barraco de lona, onde colocaram suas redes
de dormir. Enquanto montavam o acampamento, começaram a ouvir uma espécie de
som grave vindo da direção de um corixo (um braço de rio) próximo, e o mais velho
deles, que era um caçador experiente, identificou imediatamente o esturro da onça-
pintada.
Durante todo o tempo em que preparavam sua comida, eles ouviram o barulho da
onça vindo do outro lado do rio, e quando anoiteceu o som mudou de direção e se
tornou mais próximo. O vaqueiro mais velho tinha apenas um antigo revólver 22. O
mais jovem, que estava desarmado, resolveu improvisar uma zagaia (uma espécie de
lança usada na caça), amarrando um facão que tinha levado a um pedaço de pau.
Depois do jantar, eles alimentaram a fogueira do lado de fora do barraco com
bastante lenha, para se assegurar que a onça não ia se aproximar, e foram se deitar. O
velho caçador assegurou ao jovem que ela não ia atacar se eles ficassem quietos e não
mexessem com ela. Depois disso, ouviram-na rondando o lugar até tarde, mas estavam
tão cansados do trabalho que acabaram dormindo.
Quando acordaram, o sol já estava saindo. Foi aí que perceberam que a onça tinha
vindo até o acampamento durante a noite. Ela tinha passado ao lado das redes em que
estavam dormindo e chegou a remexer na lenha que sobrou da fogueira. O jovem
vaqueiro comentou aliviado: “bem que o senhor falou que ela não mexe com a gente”, e
o caçador mais velho comentou que ela não estava com fome, e que ainda bem que
nenhum deles roncava, porque a onça é atraída pelo ronco.

O caçador da história era Seu Inácio, que foi quem me narrou o caso. Eu estava na
fazenda Santa Sofia, localizada na bacia do rio Miranda, no Mato Grosso do Sul, para
acompanhar as atividades de um projeto de pesquisa e conservação de onças-pintadas 1,
e já tinha ouvido falar nele. Seu Inácio tinha sido capataz de uma fazenda vizinha, e era
um exemplo do tipo de caçador mais tradicional no Pantanal, um vaqueiro que tocava a
fazenda do patrão e tinha se especializado na caça, criando seus próprios cães para
perseguir as onças que atacassem a criação. Como era um bom caçador e tinha cães de
qualidade, costumava ser procurado também por outros fazendeiros da região que
estivessem tendo problemas com predadores. Na época em que o projeto de pesquisa
sobre as onças se estabeleceu na região, em 2007, ele já tinha ido trabalhar como
capataz em outra parte do Pantanal. Conheci-o em setembro de 2008, quando fez uma
visita à fazenda Santa Sofia.

1 Em pesquisa de campo para um trabalho de doutorado em antropologia pelo Museu Nacional, UFRJ
(Süssekind 2010). Optei aqui por alterar utilizar nomes fictícios para as pessoas citadas e também para as
fazendas.
Algumas semanas depois desse primeiro encontro, visitei a fazenda para onde seu
Inácio havia se mudado, no Pantanal do Nabileque. Ele queria me mostrar restos de
alguns bezerros mortos pela onça, e fomos dar uma volta de cavalo. Depois de mais ou
menos uma hora de cavalgada, apontou três ossadas diferentes espalhadas num trecho
de cem metros de campo, acompanhando a vegetação fechada de um capão. Ele contou
que tinha levado os cachorros naquelas ‘carniças’, mas que a onça tinha escapado
atravessando o rio Paraguai logo depois de comer cada um dos bezerros.
As onças são caçadoras de tocaia, que observam sua presa sem se deixarem ver, e
isso traz uma dimensão específica para a experiência de quem divide o espaço com elas,
uma sensação particular que marca a paisagem, que confere ao lugar uma qualidade
própria. Na história de seu Inácio, no início deste texto, ele e o outro vaqueiro entram
em uma relação predador-presa com a onça, um jogo de espreita, de espera, de ver quem
observa e quem é observado. De fato, eles não chegam a vê-la em nenhum momento. A
presença dela é percebida, primeiro, a partir dos sons, e depois a partir dos rastros que
deixa em volta do local onde dormiam; é uma presença fantasmagórica, reconstituída
através de indícios.

2.
Indagado sobre como tinha aprendido a caçar, seu Inácio explicou que aprendeu com
o avô, que matava onça na zagaia. Ele narrou como ajudava o avô, e a história era
muito semelhante a outras que eu já tinha ouvido na região. O tema, que se repetiu em
pelo menos três outras entrevistas minhas, envolvia um narrador que abre uma picada
para preparar o terreno onde acontece a luta entre o zagaieiro e a onça.
Um bom exemplo é o depoimento de um vaqueiro antigo, já aposentado, que
entrevistei na cidade de Miranda, o qual reproduzo a seguir:
E o senhor já viu caçada na zagaia?
Vi só uma vez. Foi aqui mesmo, no Nabileque, mas era um poconeano. Eu esqueci o
nome dele, chamavam ele muito de ‘gato’. Era baixinho, um pouco mais baixo que eu,
mas era troncudinho, assim; tinha muita força. Cachorro tava acuando a onça, e ele
falou: “Vai limpando aí pra mim, vai roçando”. Eu era bem mais novo, e ele falava:
“vai roçando aí, meu filho, não tenha medo não, eu estou aqui firme”. E eu com a foice
cortando, e ele falava: “corta bem baixinho, bem rentinho, vai limpando tudo”. E a
onça lá, os cachorros trabalhando ela. De vez em quando ela dava um bufo, e eu com
um medo danado, mas fui roçando.
Ele falou: “Pode sair da frente, que agora ela vem”. E aí ele mandou o cachorro
mestre. O cachorro dava aquela avançada, e depois corria pro lado dele. E foi a hora
que ela veio em cima dele. Só que ele firmou a zagaia nela, e quando ele empurrou,
assim... parece que ela mesma se ferra. Eu sei que ela deu uma 'gatanhada' ali. Ele
empurrou e o bicho caiu de lombo, e ele deu um salto pra lá, seguro no cabo da zagaia,
deu aquele salto. Mas pegou mesmo no pé do pescoço, bem no sangrador. Foi uma só.
O bicho esperneando ali, não fez mais nada. De certo alcançou o coração logo, porque
aquilo corta dos dois lados e tem ponta, a zagaia. Eu falei: “eu não tento pegar na
zagaia, não”.
O papel dos zagaieiros, que eram contratados pelos proprietários rurais para
desonçar determinadas regiões a serem ocupadas por fazendas, foi explorado por
Guimarães Rosa no conto “Meu tio o Iauaretê” (1961). O conto se desenrola em uma
atmosfera tensa, uma espécie de jogo complexo entre presa e predador que envolve o
visitante branco e o onceiro. Aquele que dormir primeiro, morre, o que nos remete de
novo à nossa história inicial. Não por acaso, o personagem é um bugre, mestiço de pai
branco e mãe índia; a zagaia, essa lança rústica de cabo de madeira e ponta de ferro,
remete diretamente a uma herança indígena.
Em muitos casos, entretanto, o elemento indígena é ocultado ou mesmo visto de
forma negativa no universo das fazendas pantaneiras. Um exemplo disso é o
depoimento da cozinheira de uma fazenda em que estive. Ela era filha de uma índia
terena, mas não se identificava como índia, e relatou que o pai, um vaqueiro de
Miranda, não deixou que a língua indígena fosse ensinada dentro de casa. Um antigo
funcionário dessa mesma fazenda, já aposentado, também era filho de uma terena e de
pai gaúcho, e tinha sido criado numa aldeia guarani antes de ir trabalhar como
empreiteiro e capataz de comitiva. Ele sabia falar guarani, mas não se lembrava de
nenhuma palavra da língua terena.
Outro exemplo interessante para articular o tema dos zagaieiros com o da
mestiçagem é o de seu Celestino, um conhecido caçador que viveu na região do
Pantanal do Miranda, filho de uma índia Bororo com um homem branco de Cuiabá. Ele
já havia falecido quando comecei a pesquisa, mas tive a oportunidade de fazer uma
entrevista com seu genro, para quem perguntei:
É verdade que nos tempos antigos o pessoal matava onça na zagaia?
Matava. Meu sogro chegou aqui na fazenda Miranda Estância, na época, só pra
matar. Veio com outro caçador, só pra matar onça. Ele matou duzentos e oitenta onças.
Quando acuava no chão, ele pegava na zagaia. Quando subia, atirava.
E aonde foi que ele aprendeu?
Ele aprendeu com o sogro dele, muito tempo atrás, quando ele era solteiro ainda. O
sogro dele, diz que tinha um ditado, assim, que para casar com a filha dele tinha que
pegar uma onça na zagaia. (risos) Ele gostava da filha dele, e aí teve que encarar o
velho e pegar uma onça na zagaia. (Ent. 2008)
A partir de um extenso trabalho bibliográfico sobre o grupo indígena Guató, que
antigamente habitava o alto rio Paraguai e o São Lourenço, Oliveira (1996) afirma, de
forma semelhante que, para esses índios, a caçada de onça “[f]az parte também de uma
espécie de rito de passagem dos jovens (...), pois cada onça caçada poderia dar direito
a uma esposa.” (1996: 109). O autor afirma ainda, a esse respeito, que “[p]ara os
homens, quanto mais onças caçadas, maior o seu status de caçador” (idem).
Os Guató são conhecidos por terem sido exímios caçadores de onças. Sasha Siemel,
um caçador lituano que ficou famoso nos EUA com as narrativas de suas caçadas, relata
em seu livro autobiográfico Tigrero! (1953) o aprendizado do manejo da zagaia com um
índio chamado Joaquim Guató. Pereira da Cunha (1949), militar brasileiro que
acompanhou Theodore Roosevelt em caçadas no Pantanal em 1913, descreve como um
casal desses índios era capaz de enfrentar a onça apenas com a zagaia e com flechas,
usando o artifício de imitar o esturro do felino para atraí-lo.
É importante ressaltar, entretanto, que essas duas referências aos zagaieiros são
feitas por autores ligados a um tipo de caçada muito presente na história pantaneira, os
“safáris” que atraíam visitantes ricos à região na primeira metade do século XX. O
desenvolvimento das armas de fogo e a intensificação dos métodos de manejo de gado,
nessa época, amplificaram a eliminação de onças e tornaram o processo cada vez mais
sistemático, levando à extinção da espécie em muitas áreas do Pantanal.
A legislação de caça é regulamentada no Brasil desde 1967, quando a atividade foi
declarada proibida para qualquer espécie da fauna silvestre nativa, e foi modificada pela
última vez em 1988, estabelecendo punições mais severas para os caçadores. Na prática,
no entanto, não há até hoje uma política efetiva do governo voltada para o manejo e a
conservação dos animais silvestres, e muitos proprietários rurais pantaneiros continuam
a reivindicar o direito de abater os animais que ataquem o gado. Isso faz com que a
caçada tradicional seja apontada por especialistas como a principal ameaça para a
conservação da população da onça pantaneira atualmente.
O encontro entre caçador e onça evocado pelo tema dos zagaieiros remete, por outro
lado, a um tipo de caça artesanal ligado, como vimos, ao passado indígena dessa região.
Minha intenção aqui é tomar essa memória como uma pista para discutir alguns
aspectos do encontro entre biólogos e caçadores locais, especificamente em relação ao
caso ao projeto de conservação da onça-pintada que acompanhei. O traço indígena
reaparece adiante em algumas situações envolvendo maus entendidos ou problemas
ligados a uma espécie de “choque cultural” presente neste encontro.

3.
A primeira das situações a que me refiro aconteceu na fazenda Santa Sofia. Cheguei
à fazenda, em abril de 2008, com o intuito de acompanhar a captura de uma onça-
pintada. Depois de capturada, a onça ia receber um colar equipado de sistema de rádio e
GPS, e passaria a ser monitorada pelos pesquisadores, interessados em estudar seus
movimentos e hábitos alimentares. A equipe envolvida na atividade de captura era
composta por seis pessoas: o biólogo que coordenava o projeto, dois biólogos de campo,
dois veterinários, e um guia de campo. Este último, seu Mariano, era um antigo morador
da região com experiência como caçador, e era o principal responsável pelos cuidados
com os cães onceiros envolvidos na captura.
Seu Mariano caçava onças em uma fazenda da região do Pantanal do Miranda até o
final dos anos 1980. Quando a fazenda começou a explorar o turismo ecológico, ele
passou a trabalhar como guia, e depois estabeleceu uma parceria com o biólogo que
coordenava o projeto na Santa Sofia. A caçada tradicional, com cães farejadores, tem
sido um dos métodos mais eficazes utilizado por biólogos desde os primeiros estudos
sobre o tema desenvolvidos no Pantanal, no final dos anos 1970 (Schaller 2007). No
caso da captura para a pesquisa científica, a bala da espingarda é substituída pelo dardo
anestésico da arma de ar comprimido, e o objetivo é estudar e conservar, e não eliminar
os animais. Ao envolver a utilização de cães de caça e a assimilação de conhecimentos
nativos, é interessante, neste caso, como uma tradição ligada à eliminação das onças
pode ser redefinida como algo ligado à sua preservação.
Uma onça havia sido perseguida no dia anterior a minha chegada na Santa Sofia,
sendo acuada pelos cães algumas vezes, mas ela não tinha subido, e no final havia
escapado, deixando dois cachorros mortos e outros dois feridos durante a perseguição.
As tentativas de colocar as coleiras de rádio nas onças pela equipe do projeto já se
estendiam há dois meses, mas nenhuma havia sido capturada até então, o que trazia uma
tensão muito grande para os responsáveis. Seu Mariano estava muito chateado com os
últimos acontecimentos. Refletindo sobre o assunto, ele observou que as onças tinham
se afastado porque era época da cheia, e a maior parte do gado tinha sido retirado da
fazenda. “Elas vão onde está o gado”, comentou.
Ele atribuía os problemas ocorridos nas capturas também ao período da quaresma,
em que estávamos, e é esse o detalhe da história que quero chamar atenção aqui. Seu
Mariano me explicou que é costume dos antigos não caçar, além de não comer carne
vermelha nessa época do ano. Afirmou que, se alguém sai para caçar na quaresma nada
dá certo, e que na sexta-feira santa os mais velhos nem acendem fogo, preparando toda
a comida daquele dia na véspera. As evidências apresentadas por ele de que não se devia
caçar incluíam os problemas com os cães e também o mau funcionamento das duas
armas de ar-comprimido que seriam usadas para anestesiar as onças, as quais tinham
dado problema ao mesmo tempo. Ele comentou que uma delas havia inclusive
disparado acidentalmente no laboratório, quebrando o vidro da janela, mas que não
insistia nesse tema com os biólogos porque eles eram da cidade e não acreditavam
nessas coisas.
Essas considerações do caçador a respeito da quaresma podem ser relacionadas a um
tema muito amplo proveniente da literatura sobre os povos indígenas da Amazônia e do
Brasil Central, que é o tema do azar na caça. O tema foi abordado por Mauro Almeida
(2007) em relação aos povos ribeirinhos da Amazônia, onde há, assim como no
Pantanal, uma mistura de elementos indígenas e católicos. Na Amazônia, o azar na
caça é designado genericamente pelo termo panema. Almeida descreve panema como
um conceito abstrato, uma força “como a gravidade”, algo que pode ser experimentado
e sentido no corpo, e que é um “componente generalizado da ontologia de caçadores
da planície amazônica” (2007: 9). O conceito parece se aplicar bem ao caso em
questão:
Não se trata propriamente de infelicidade ocasional, má sorte, azar, mas de uma
incapacidade de ação, cujas causas podem ser reconhecidas, evitadas e para as quais
existem processos apropriados. (...) [O caçador] acredita que ele próprio ou um dos
instrumentos de que se utiliza, a linha, o anzol, a carabina, estejam‘epanemados’.
(Almeida 2007: 8)
O argumento de Seu Mariano de que os biólogos não acreditam nessas coisas, no
caso analisado aqui, aponta um contraste entre duas formas de apreensão do mundo e da
vida animal em particular. A adesão a esses diferentes modos de entender (ou acreditar)
apareceria ainda em outras situações ligadas ao contato entre cientistas e pantaneiros,
que dizem respeito a certos mal-entendidos que observei durante o trabalho de campo.
Um primeiro exemplo é o caso relatado por um dos biólogos de campo do projeto.
Era comum que os cavalos da fazenda fossem encontrados pela manhã com uma espécie
de trança na crina, o que deixava alguns vaqueiros bastante ressabiados, pois
consideravam que aquelas tranças eram obra do saci. O biólogo me explicou de forma
convincente que as tranças eram fruto da ação dos pequenos morcegos vampiros que se
embolavam na crina dos animais, mas esta explicação não parecia deixar os vaqueiros
da fazenda menos preocupados.
“Eu não deixo criança andar meio-dia” – dizia Dona Lita, esposa do capataz da
fazenda. O perigo era que as crianças fossem levadas pelo saci louro, criatura que os
adultos não vêem, mas que reconhecem por um piado agudo que não é de nenhum
pássaro. O biólogo que coordenava a pesquisa sobre as onças, ao ouvir essa história,
disse, em tom de brincadeira, que ia “colocar coleira nesse saci”. Vanderlei, outro
funcionário da fazenda que escutava a conversa, respondeu à provocação afirmando que
ele estava “igual o cara que o saci deixou amarrado no campo”. Quando questionado a
respeito dessa descrença do biólogo, Vanderlei me disse que não se deve duvidar dessas
coisas, e comentou que "a pessoa que é estudada, que tem estudo, é mais pela ciência.
Só que tem muitas coisas que na cidade não tem, você não vê. Essas coisas anormais
assim não acontecem na cidade. Você só vê onde é sossegado, onde é tranqüilo” (ent.
2008)
Um dos campeiros da fazenda, Raul, citou em entrevista uma criatura chamada
Maozão, um ser sobrenatural sobre a qual eu já havia lido na etnografia de Banducci
(2007), pesquisador que trabalhou no Pantanal da Nhecolândia. O campeiro definiu-o
como um “pai do mato”, um “protetor”, que surge quando alguém quer abrir uma
clareira na floresta ou então numa caça desmedida, quando o caçador quer levar mais
porcos do que pode comer. Seres desse tipo podiam ser encontrados, de acordo o relato
do jovem vaqueiro, principalmente em certos capões como o aguaçuzá, um tipo de
mato onde, segundo ele, os bichos e o gado bagual se abrigam quando são perseguidos.
Raul contou ainda a seguinte história:
Diz que há muito tempo, a bisavó do meu pai foi pega a laço. Ela se perdeu, aí ficou
quase um ano assim, e a turma procurando. Mas aí um dia, saíram cedo e viram que
num capão, tinha um gado parado. A turma só com cavalo bom mesmo, de pegar bem
pego. E ela tava sentada, bem quebrando coco no coxo. Era ela, a bisavó do meu pai.
Ficou selvagem, bagual duma vez! Mas diz que corre duro! O cavalo suou pra dar nela.
Só um cara que alcançou, quase entrando no capão. Jogou laço, cerrou nela e puxou,
mas ela vinha de unha e pé. Aí jogaram outro laço, e juntou todinho o pessoal e pegou
ela. Aí trataram, levaram na igreja, tudo, e ela voltou ao normal.
“Bagual” é o termo que designa o gado selvagem pantaneiro, hoje em dia muito raro
ou mesmo ausente nesta região do Pantanal. O bagual pode ser apontado ora como
índice de atraso, ora como símbolo da autenticidade da pecuária pantaneira. A doma do
gado selvagem, ou "bagualhação", faz parte das tradições locais, e representava um
desafio e uma prova de coragem para os vaqueiros. Na narrativa, a menina “corre
duro” e é “pega no aço”, como o gado selvagem. O interessante aqui é ele dizer que
a criança ficou “bagual de uma vez”, estendendo um termo usado para o gado a
um ser humano.
Os casos que acabo de citar eram, em sua maior parte, temas de brincadeiras durante
o período em que estive na fazenda. Minha intenção é levar esses casos a sério, como
elementos de uma diferença constitutiva das relações entre pantaneiros e cientistas. Eu
poderia dizer que eles pertenciam a culturas diferentes, mas neste caso cairia na
armadilha de pressupor que ambos compartilham uma mesma natureza, da qual cada um
possui uma visão relativa. O problema deste argumento é que eu estaria escolhendo um
lado, na medida em que compartilho a “crença” na natureza ocidental moderna como
uma realidade objetivamente acessível pela ciência, e que, como os cientistas, não
‘acredito’ na existência do saci, nem do maozão, como criaturas que podem ser
encontradas na mata. O desafio que se coloca, neste ponto, é o de se tratar esse encontro
de modo a dissolver a assimetria inicial e tratar os dois lados no mesmo plano.

4.
Procurei expor ao longo deste artigo uma série de aspectos do que seria uma
herança ou memória indígena que se faz presente no Pantanal. Essa dimensão da
memória aparece no tema dos zagaieiros ligada a um tipo de conhecimento específico
proveniente da caça, a um engajamento entre caçador e onça situado numa relação de
predação. Nos temas do azar na caça e na história do Maozão, essa reminiscência surge
ligada a uma economia ontológica em que o domínio moral não é algo exclusivamente
humano. O traço indígena aparece, por fim, na reversibilidade entre bicho e gente,
manso e brabo, evocada pela história da menina selvagem.
A figura do Maozão pode ser aproximada do tema do Caipora analisado por
Almeida (2007). Caipora é o protetor ou dono dos animais com o qual os seringueiros
da Amazônia interagem. Almeida argumenta, a partir dos aspectos de reciprocidade
envolvidos na relação com esses seres, que “Caiporas são partes de redes”, e que essas
redes envolvem “conexões não hierarquizadas de pessoas, animais, instrumentos de
caça, partes da floresta e partes da casa” (2007: 12). Assim como o conceito de
panema, o Caipora está inserido no que Almeida chama de uma “economia ontológica
da caça” (2007), a partir da qual "pessoas, animais, instrumentos e seres da floresta"
são conectados numa mesma trama.
O contraste entre pensamento científico ocidental e pensamento indígena remete ao
célebre tema de Lévi-Strauss do pensamento selvagem. O contraste neste caso é entre
um conhecimento científico marcado pelos ideais de objetividade e um pensamento
regido pela lógica do sensível. Há uma inversão da importância dada às qualidades
sensíveis, como cor, textura, cheiro, etc, em relação à ênfase nas qualidades ditas
“primárias” com os quais o pensamento civilizado, ou científico, trabalha.
O trabalho de Mauro Almeida (2007) propõe, de forma mais radical, que o confronto
que se anuncia no horizonte não é epistemológico, mas sim ontológico, e procura
caracterizar uma ontologia animista como alternativa para se pensar o processo da vida,
o desdobramento criativo dos organismos no mundo, humanos e não humanos. Nesse
sentido, o traço indígena pode ser tratado não como uma herança, uma sobrevivência,
no sentido de algo que não é mais, mas sim como um índice, um rastro, e nesse sentido,
um vir a ser ou devir indígena (nos termos de Deleuze e Guattari). Ao pensarmos em um
contraste entre a onça como objeto do conhecimento científico e a onça como objeto de
um conhecimento local pantaneiro, vemos que a própria ideia de que ambos falam da
mesma onça é suspeita, na medida em que pressupõe um mesmo fundo comum para
diferentes culturas.
A palavra “objeto” talvez também não seja muito adequada neste caso, já que é a
ontologia naturalista que tende a reduzir a onça a um objeto, um recurso, algo que pode
ser manejável, uma coisa. Essas relações, no entanto, me parecem se tornar mais
complexas se pensarmos nos termos da antropologia da ciência de Bruno Latour (1991),
numa aproximação sugerida pela referência de Almeida à noção de “rede” (2007: Op.
Cit). Latour descreve dois processos paralelos relativos ao fazer científico. O primeiro,
que chama de “purificação”, remete ao fluxo, digamos, do campo ao artigo científico, à
produção de dados estatísticos, gráficos, dados mensuráveis, a partir do que é observado
no campo. Mas este é apenas um dos lados da ciência. O argumento dele é que,
enquanto o que sai do campo são seres purificados, objetivos, o que acontece nas
práticas científicas, dentro do laboratório é uma produção incessante de híbridos, de
misturas. Essa questão dos híbridos poderia ser pensada, nesse sentido, como uma
espécie de contrafluxo animista da própria ciência, o interior do laboratório sendo o
lugar da mistura, do engajamento intersubjetivo, pessoal, perceptivo, onde objetos e
sujeitos não estão previamente separados.
Partindo da antropologia simétrica de Latour, Isabelle Stengers estabelece ainda uma
distinção interessante entre as ciências de campo e as ciências de laboratório,
argumentando que as primeiras se movem numa ordem da narrativa, enquanto as
segundas remetem à ordem da prova. O campo pode ser tomado, nesse sentido, como
lugar do encontro, da mistura, não só lugar do encontro entre culturas, mas lugar onde
onças, gado, cães e outros animais podem ser tomados como agentes ativos e não
objetos passivos. A partir daí seria possível pensarmos numa ciência que não se separa
de saída do modo de conhecimento dos caçadores, uma ciência que leve em conta o
comportamento individual imprevisível de cada onça, assim como sua astúcia e
capacidade de improviso.

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