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Resumo: Este artigo desenvolve uma reflexão Serviço de Saúde Dr. Cândido
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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312017000300007
492 Introdução
Este artigo desenvolve uma reflexão crítica em relação ao movimento médico-
| Américo Orlando Azevedo, Tadeu de Paula Souza |
de rua e cria um novo agenciamento para estes territórios, uma vez que passam a
compor a rede econômica do tráfico de drogas ilícitas. O crack, como elemento
agregador da população em situação de rua, gerou grandes concentrações
denominadas de “cracolândias”. Trata-se de entender como que, a partir do
fenômeno do crack, foi possível constituir um novo regime de visibilidade que
expressa a emergência por intervenções autoritárias.
Para compreender tal fenômeno, recorremos ao pensamento de Foucault
sobre a aproximação entre justiça e psiquiatria na construção das sociedades de
normalização e na ampliação e intensificação do biopoder e suas implicações no
contexto brasileiro. Foucault (2001, 2008) trata de uma reconstrução do conceito
de ‘anormal’, resultante de embates e conexões dos saberes jurídico e psiquiátrico
analisados a partir do dispositivo do exame psiquiátrico de imputabilidade penal.
A interface, entre direito penal e psiquiatria, demarca uma passagem entre um
regime estritamente disciplinar para um novo um regime de normalização.2
Foucault (2001) destaca que esse poder de normalização não se reduz nem ao
poder psiquiátrico nem ao poder jurídico nem à simples composição entre estes
dois campos. O discurso da psiquiatria penal não respeita nem às regras científicas
da psiquiatria de sua época nem as regras do direito de sua época, configurando-
se enquanto um discurso que, embora grotesco, tem o poder de verdade e o
poder de matar. Trata-se de uma nova modalidade de poder, que se atualiza
através do dispositivo do exame e põe em relação diferentes instituições, a saber,
a médica e a jurídica. Dito de outro modo, o diagrama não pertence a nenhuma
das instituições especificamente, mas responde a um diagrama coextensivo ao
todo campo social, que perpassa e redefine os limites da Psiquiatria e do Direito
na medida em que responde a uma urgência: normalizar as condutas.
O discurso do psiquiatra penal, enquanto um discurso de verdade, porque
científico, introduz uma nova estratégia jurídica, uma vez que, a partir do laudo,
condena-se menos o ato e mais o comportamento, um estilo de vida moralmente
condenável. Ao caracterizar o comportamento do sujeito desviante, o dispositivo
do laudo psiquiátrico consegue articular a esfera particular da clínica à esfera
pública do julgamento criminal, criando um novo regime de visibilidade: os
comportamentos desviantes como doença e propensão ao crime. Como afirma
sendo utilizada para validar uma prática axilar e contrária ao seu caráter reformista.
De modo geral, podemos situar a RP enquanto um movimento de resistência
a uma modalidade de poder de normalização, para a qual a IC sempre
cumpriu uma função de identificação dos anormais, e desse modo estabelecer
seu diagnóstico, prognóstico, terapêutica e pena. A IC opera o agenciamento
entre a Psiquiatria e o Direito Penal como estratégia de pôr em funcionamento
um regime de normalização das condutas. Foi em crítica a esse diagrama de
normalização que a RP institui um conjunto de dispositivos, entre eles, a Lei da
Reforma Psiquiátrica, que tem por finalidade reconstruir um novo diagrama,
que passa por uma outra relação entre a loucura e a cidade, através da diretriz da
reabilitação psicossocial. Doravante, o dispositivo da IC encontra-se agenciado
e condicionado a novos princípios e diretrizes que não eliminam a IC, mas que,
no texto da lei que regulamenta a RP, alteram sua função estratégica. A principal
alteração estratégica é a mudança de posição da IC, de um lugar de centralidade
e prioridade, para um lugar periférico de retaguarda.
Sabe-se que a Lei nº 10.2016/01 contém os trâmites utilizados para se
realizar a IC de pessoas portadoras de transtornos mentais, inserida no aspecto
legal de amparo à Reforma Psiquiátrica Brasileira.3 Entretanto, para a RPB, a
IC comparece circunscrita por uma política composta por uma série de outros
dispositivos, legais e assistenciais, que promovem a desinstituicionalização,
conferindo uma função para a IC, bem delimitada. Porém, o que ficou evidente
nessa movimentação da internação de usuários de crack e outras drogas foi a
utilização do mecanismo de IC desvinculado do contexto da Lei nº 10.216/01,
de modo a justificar a ação de internação dos usuários de crack, negando os
aspectos de salvaguarda dos direitos presentes na lei da reforma proposta, que
inclusive regula a internação de pessoas que sofrem de transtornos mentais, uma
vez que, segundo a RPB, a IC necessita de laudos individualizados.
No contexto atual da última década, em virtude do “fenômeno do crack” a
legislação da RP tem sido utilizada para justificar a internação de usuários de
drogas, contrariando a tentativa progressista contida em sua origem. Ocorre, então,
o uso de aspectos dessa lei para justificar o procedimento de IC, equiparando-se
o usuário de drogas a um portador de transtorno mental grave, baseado em laudo
médico que ateste tal situação clínica, cabendo ao juiz, posteriormente, a decisão.
Conclusão
Com sua origem enquanto movimento social e o decorrente processo histórico
de se constituir enquanto política de Atenção à Saúde Mental vigente no Brasil, a
Reforma Psiquiátrica apresenta dimensões teórico-conceituais, político-jurídicas,
técnico-assistenciais e socioculturais.
Além disso, foi possível perceber que existem também elementos desse
discurso que podem nos guiar, em relação a uma reflexão sobre o quanto as
práticas de IC têm efeitos de que são novas experiências de institucionalização,
que se inscrevem na experiência social em formatos mais sutis, uma vez que não
são diretamente reconhecidas pelos sujeitos nem definitivas em sua história de
vida, e, até por isso, expressões bem-sucedidas de ação do biopoder.
Com a intensificação da judicialização dos processos de internação de
pessoas em uso de drogas, percebemos essa emergência de fenômenos de
institucionalização que unem perspectivas clássicas de iatrogenias já conhecidas
a novos impactos e aprisionamentos da produção de políticas e de subjetividades
contemporâneas, com grande impacto na Reforma Psiquiátrica Brasileira.5
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