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A noite e o esquecimento
Num tempo em que só existia o dia, por ainda não ter sido criada
a noite, morreu Jama, o primeiro homem da Criação, deixando Jami,
a mulher primordial1, inconsolável e desamparada.
Os deuses, compadecidos com o seu terrível sofrimento, pergun-
5 tavam-lhe amiúde2 o que era feito dele, na esperança de que já o
tivesse esquecido, mas a sua resposta era sempre a mesma, por
estar privada da noção de tempo:
– Jama morreu hoje mesmo.
Os deuses decidiram então conferenciar, tentando descobrir uma
10 forma de pôr termo à tristeza e à aflição de Jami. Foi deste modo
que criaram a noite, por acharem que a existência do dia não era
bastante e por saberem que o sono é o filho dileto3 da noite. Talvez
assim a pobre Jami pudesse ser bafejada pelo esquecimento
noturno que liberta a alma dos tormentos que a assolam4.
15 Ao fazerem este raciocínio, demonstraram a sua sabedoria e a
sua experiência, proporcionando condições à pobre viúva para dar
tréguas ao seu constante pesar.
Jami dormiu profundamente durante uma noite inteira, a primeira
de todas de que há notícia, e, na manhã seguinte, parecia estar já
20 resignada com a perda do ente amado.
Quando os deuses lhe perguntavam que era feito do
companheiro morto, pondo-a à prova, ela respondia com uma
resignada tristeza:
– Já morreu há algum tempo. É assim a vida.
25 Observando a mudança de atitude de Jami depois desse sono
reparador, um dos deuses comentou:
– Percebo agora por que se diz que o passar dos dias e das
noites consegue aplacar o sofrimento causado pelas grandes
perdas.
José Jorge Letria, Lendas e contos indianos, AMBAR, 2006