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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Marina Carmello Cunha

Sobre o valor das coisas: como a China revela a materialidade do mundo.

Ensaio teórico apresentado ao


Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, da Universidade
Estadual de Campinas, para a
finalização da disciplina Indivíduo,
Sociedade e Cultura na China
Contemporânea

Docente: Profa. Dr. Rosana Pinheiro-Machado

Campinas
2017
Difícil papel o de falar de um país onde nunca estive e que pouco conheço. Fato
é que este país, ainda que tão distante, está em nós, sobre nossos corpos, dentro de
nossas casas, em nossas cidades. Em todo lugar se escuta: “a China faz todas as nossas
coisas”, “tudo é feito na China”, “a China afetou nossa indústria”, entre outras
afirmativas de quem tem vivido a entrada massiva de mercadorias produzidas em
fábricas chinesas. Em meu campo de pesquisa da tese de doutorado que desenvolvo no
âmbito do programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unicamp, tenho
percorrido alguns setores fabris da indústria têxtil, como confecções e tecelagens, onde
escuto histórias de encomendas perdidas para as fábricas chinesas devido ao preço, de
confecções que pararam de fabricar para terceirizar serviços na China ou que reduziram
os funcionários em mais de 90% nos últimos anos, atribuindo tal acontecimento a uma
soma de fatores que incluem a recente crise econômica que tomou o Brasil e,
principalmente, o crescimento econômico chinês. Há menos de 30 anos vimos pipocar
nos centros das cidades brasileiras as famosas lojas de 1,99 e o crescimento dos
camelódromos, onde se encontram produtos falsificados de todas as maiores marcas do
mundo em meio a mercadorias de “procedência desconhecida”. Na grande maioria das
vezes, ao analisar esses objetos sendo vendidos, podemos ler em suas etiquetas ou
impresso em seus corpos: made in China. Estes produtos chegam à grande maioria das
casas brasileiras.

Refletindo sobre o momento que temos vivido, principalmente no Brasil, em


relação à produção e o consumo de mercadorias, tentarei neste texto, fazer uma
aproximação à China através dos indícios materiais que se mostram cotidianamente,
revelando alguns aspectos deste distante país. Como suporte dessa aproximação, trago
alguns autores que discutem vieses históricos, sociais e antropológicos referentes ao
consumo na China, à conformação de um “sujeito neoliberal” e às possíveis questões
referentes a discussão das relações sujeito-objeto, são eles: Rosana Pinheiro-Machado,
Deborah Davis, Ngai Pun, Li Zhang, Pierre Dardot e Christian Laval.

Depois de uma grande virada e da abertura econômica da China, o resto do


mundo parece ter percebido as mercadorias e as coisas que nos cercam. A materialidade
tem tomado uma maior dimensão na vida urbana cotidiana, permeando nosso
posicionamento diante do consumo e possibilitando o entendimento de processos pelos
quais, antes, pouco se tinha interesse. O exagero, a produção em larguíssima escala e a
diferente noção de trabalho e direitos humanos parece, ao mesmo tempo, chocar e
seduzir. No entanto, de qualquer forma, parece que essa enorme diferença no
entendimento de um sistema de produção da China em relação ao sistema que
conhecemos nos países ocidentais, tem revelado e colocado em destaque a
materialidade da mercadoria, mostrando-nos um mundo que nos foi ocultado durante
todo o desenvolvimento da indústria até agora. Pensando nisso, gostaria de refletir
sobre as transformações recentes na China que têm modificado o modo de se relacionar
com as coisas em todo o mundo.

Se fosse possível que a história da produção das coisas e da formação do sujeito


urbano contemporâneo no chamado Ocidente tivesse sua larga trajetória apresentada
em um fragmento acelerado de um filme, este pedaço ligeiro se chamaria China. Não é
dizer que a China tenha uma curta trajetória neste contexto, ou diminuir sua
importância em todo o processo a caminho do que configura hoje nossa conturbada
sociedade, nem mesmo deixar de lado toda sua singularidade, mas é afirmar que este
enigmático país condensa em sua história recente (ou de 40 anos para cá) a maioria dos
percalços e desafios pelos quais os países ocidentais passaram durante um tempo mais
estendido e de mudanças processuais no que se refere à industrialização, privatização e
à conformação do “sujeito neoliberal” (DARDOT; LAVAL, 2016).

A abertura econômica da China, guiada pelas mãos de Deng Xiaoping, que


assumiu a presidência em 1977, teve rápidas consequências no país. A indústria, antes
de produção local e pertencente ao Estado, foi gradualmente sendo privatizada e
estimulada pelo próprio governo a produzir muito. Tal estímulo, rapidamente aceito
pela população, ocasionou um grande fenômeno migratório das populações rurais para
as cidades, que viajaram e continuam viajando afim de trabalhar nas crescentes
indústrias. Este movimento migratório que já vinha se intensificando, por exemplo, no
Brasil, em fins do século XIX (SANTOS, 2005), ocasionando o enorme crescimento de
cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, principalmente por causa do desenvolvimento
da indústria, trazendo à tona a problemática da urbanização acelerada, o surgimento
dos cortiços e favelas como alternativas para abrigar populações sem recursos, recém
chegadas a essas cidades. O que o Brasil já vive há mais de cem anos, a China tem
enfrentado há menos de quarenta, porém com igual ou maior intensidade, como se cem
anos brasileiros tivessem sido comprimidos para servir em quarenta anos chineses. O
movimento migratório é apenas um dos acontecimentos decorrentes da abertura
econômica que aqui utilizamos para tornar palpável a relação de tempo comprimido que
observamos diante das leituras feitas sobre o país. Podemos ainda levantar, falando
sobre a configuração das cidades, a temática da casa própria e do boom imobiliário,
levando em conta que em menos de 20 anos, a China se transformou de um país de
regime predominantemente de moradias públicas, para um país com uma das maiores
incidências de propriedades privadas do mundo, mesmo que novas leis de propriedade
tenham sido criadas apenas em 2007. Esta mudança brusca e a intensa busca pela
distinção social está transformando as paisagens das cidades chinesas em um curto
período, o que já vinha ocorrendo em outros países de economia aberta há algum tempo
(ZHANG, 2012).

A seguir, entenderemos como se deu essa mudança estrutural chinesa em


relação à produção e comércio de mercadorias e em que isso acarretou na configuração
dos sujeitos, seus desejos e entendimento da vida urbana.

A posição ocupada pela China no mundo hoje, é, em grande parte, consequência


das reformas de Deng, que

(...) instaurou um programa de mudanças que ficou conhecido como ‘as


quatro modernizações’: agricultura, indústria, defesa e ciência e tecnologia.
Na área da educação, ele promoveu reformas universitárias e, assim,
milhares de jovens entraram na universidade e/ou foram estudar no exterior.
O conhecimento científico e a técnica, relegados nos anos maoístas,
passaram a ser vistos como parte fundamental do desenvolvimento. Dentre
as reformas econômicas e políticas, Deng desfez o sistema de comunas e
promoveu a abertura econômica para a economia de mercado, a qual foi
realizada aos poucos, inicialmente, por meio da abertura de zonas especiais
(PINHEIRO-MACHADO, 2013, p.129).

Durante o seu governo, o país teve valores tradicionais gradualmente


modificados, já que era preciso reestruturá-lo economicamente de forma acelerada
para que o sistema governamental e a ordem social não entrassem em colapso. Assim,
acompanhando as reformas empregadas e a abertura econômica, o enriquecimento, a
prosperidade e a distinção social foram se tornando o grande objetivo social da
população chinesa. Tais valores seguiram sendo estimulados e mantidos nas lideranças
seguintes do Partido Comunista Chinês.

Assim, instaurou-se uma nova era no país, radicalmente oposta à ideologia


anterior, na qual o enriquecimento passou a ser um valor não apenas
aceitável, mas moralmente valorizado. E sua estratégia, no final das contas,
parece ter dado certo (PINHEIRO-MACHADO, 2013, p.130).

A consolidação desta nova era transformou os meios e os fins da busca pela


felicidade e satisfação do sujeito chinês, o que já não viria a ocorrer por meio do
sacrifício coletivo e dos ideais socialistas, mas sim pela conquista de uma vida com
conforto material e distinção social. Desse modo, de um modelo coletivo de
crescimento, onde o mais importante para o país era o mais importante para o sujeito,
a China vive um movimento de individualização (ZHANG, 2012). O enriquecimento e o
crescimento de poder de consumo tem provocado o crescimento de uma nova classe
média, que tem criado e provocado novos meios e modos de consumo, perturbando as
antigas formas de ordem social, sendo fundamentalmente ligada às reformas de
mercado e à liberação econômica do país. Essa classe emergente é, portanto, de
composição bastante heterogênea e vive um intenso sentimento de insegurança, já que
as mudanças sociais têm ocorrido de forma rápida e aparentemente instável. (ZHANG,
2012). Este novo grupo, sem normas culturais pré-estabelecidas, tem seu prestígio
simbólico e cultural altamente contestado, o que avigora ainda mais a necessidade de
situar seu local através de valores materiais e estéticos. É esta nova classe ascendente
que tem modificado substancialmente o modo de consumo e vida dentro da China e
que, em ressonância aos intensos movimentos de reforma dos últimos quarenta anos,
expõe um retrato exagerado do sujeito neoliberal que tem se consolidado globalmente.

Neste sentido, devemos pensar se a configuração desse neoliberalismo depende,


como antes se pensava, de um posicionamento governamental e econômico de um país.
Segundo Dardot e Laval (2016), esta já não é mais uma doutrina econômica ou
ideológica, mas sim uma “racionalidade global”, que tem transformado sistemas e
relações sociais de forma profunda, atravessando todas as esferas dos sujeitos. Para
estes autores, ainda, na lógica neoliberal que impera em nossa vida contemporânea,
somos governados à maneira como governamos a nós mesmos, ou seja, a economia e a
ordem tornam-se uma forma de disciplina pessoal, constituindo um “sujeito
empresarial” (DARDOT; LAVAL, 2016). Nesse processo, o indivíduo é inteiramente
responsável por seu sucesso ou insucesso em relação aos objetivos estabelecidos
socialmente e todas as atividades que cerceiam a vida são consideradas um
investimento pessoal, constituintes do que podemos chamar de um empreendedorismo
de si.

Em relação à China, “nesse contexto de empreendedorismo, o lucro privado, a


liberdade e o consumo são tendências recentes de contextos urbanos” (PINHEIRO-
MACHADO, 2013, p.142), mas que já se apresentam de forma intensa no desejo e
esforço de ser empresário e dono de seu próprio caminho. Nesse sentido, Pinheiro-
Machado afirma que

a vontade de trabalhar para si próprio é uma ânsia por poder e enri-


quecimento, mas também o desejo de controlar o próprio destino, de guiar
a própria vida e de se diferenciar como um indivíduo autônomo na
sociedade, rompendo com a lógica engessadora do igualitarismo horizontal
das décadas precedentes, tão fortemente presente na memória da
população (PINHEIRO-MACHADO, 2013, p.142)

Esses novos valores têm transformado a China em um dos países com maior
consumo interno de mercadorias, para além de seu já conhecido poder de exportação e
domínio do mercado global. Esta nova noção de consumo está vinculada a uma
aparência de sucesso, um modelo higienista e um comportamento público estimulado
pela própria forma de produção de bens e da necessidade de interação com outros
países, tornando o modo de vida nas cidades chinesas, em certa medida, globalizado.
Essa mudança de comportamento tem sido chamada por alguns autores, como Deborah
Davis, de uma “revolução do consumo” (2000). Essa revolução deixa a impressão de
liberdade, uma vida guiada pela “escolha do consumidor”, uma escolha livre. Segundo
Pun Ngai, o processo de extração da mais-valia é ocultado e reprimido pela valorização
do consumo e ideologias neoliberais de autotransformação e valorização de si. Sendo,
além disso, o consumo o grande representante da democracia e do poder de decisão
individual (Ngai, 2003). Se durante o período Maoísta o consumo foi suprimido em favor
da construção socialista, da infraestrutura industrial da nação e do fortalecimento dos
valores familiares, a partir das reformas de Xiaoping, presencia-se uma enorme
mudança de valores baseada no consumo e a caminho de certa independência da
estrutura familiar.1

No entanto, para alcançar tal status social, realizar o sucesso do poder de


compra, ser dono de seu próprio caminho e empresário de si, o meio encontrado pelo
povo chinês e, em certa medida, imposto pelo governo, é o trabalho intenso. Essa
característica, fortemente criticada por diversos órgãos defensores dos direitos
humanos, é defendida em declarações do Ministério das Relações Exteriores chinês,
como uma característica histórica de seu povo, “um povo que sempre trabalhou muito”.
Essas críticas são consideradas invasivas pelo governo chinês e tangenciam assuntos
internos que não dizem respeito a órgãos internacionais. Apesar das evoluções em
relação aos direitos do trabalho dentro da China e das lutas sociais, dilatadas por
inúmeras greves e protestos por todo o país, o que parece é que realmente o povo
chinês não se preocupa em trabalhar dentro de padrões exagerados, já que ainda quer
colaborar e se esforça pelo desenvolvimento e fortalecimento do Estado, o que, ao final,
parece ser alcançar o objetivo de uma vida próspera e materialmente preenchida.

Todo o posicionamento da China, a abertura ao comércio exterior, a moeda


desvalorizada e a mão de obra barata e desejosa de trabalho fizeram com que muitas
empresas do mundo escolhessem se instalar em território chinês, o que ocasionou um
choque econômico e de mercado que atingiu inúmeros países (PINHEIRO-MACHADO,
2013).

A indústria têxtil brasileira, em conformidade com o que tenho encontrado em


campo, foi e continua sendo uma das grandes afetadas por esse processo. Segundo a
Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT), no mês de abril de 2017,
o total de importações de vestuário vindo da China foi de 6.810 toneladas, contra 3.362
no mesmo mês de 2016, sendo que essas importações representaram 75,7% do total de
vestuário importado pelo Brasil no mesmo período (BRUNO, 2016). Este volume

1
Pinheiro-Machado cita a famosa história de “um jovem faminto que, nos anos 1960, comprou sete
agulhas e as revendeu de porta em porta, gerando lucro privado. Ele foi preso, acusado de traidor aos
princípios da revolução e reeducado no campo. Hoje é um empresário milionário, exemplo da
prosperidade chinesa” (2013, p.141).
material que atravessa oceanos até chegar aos portos brasileiros começa a nos insinuar
algo em relação a um entendimento controverso do valor das coisas. Ao passo que é a
materialidade que assegura o sucesso do sujeito neoliberal, é também ela que expõe a
incoerência dos modos de conquista dessa materialidade.

Neste caminho, segundo Pinheiro-Machado, o grande objetivo de cada cidadão


chinês é ser dono de seu próprio negócio. Assim, muitos empregados passam pouco
tempo trabalhando, apenas para juntar o dinheiro necessário para abrir uma empresa
(2013). Da mesma forma, a relação com as empresas líderes de mercado ocidentais tem
mudado, já que, com o avanço crescente da comunicação e do transporte, bem como o
baixo custo desses serviços, os produtores chineses têm aprimorado suas antigas
funções e assumido outros estágios da cadeia produtiva em direção ao consumidor final.
Ou seja, as empresas chinesas têm passado de simples montadoras, para produtoras,
integrando novas tecnologias, substituindo as atividades de baixa lucratividade pelas de
alta, investindo em design e desenvolvimento de produto e, principalmente, visando um
crescimento independente diante do mercado global e conquistando o domínio de toda
a cadeia produtiva (BRUNO, 2016).

Este grande movimento da indústria mundial em direção ao solo chinês, além de


colaborar para a formação de um pensamento neoliberal dentro da China, onde a
relação com as coisas segue mudando, tem estimulado o desejo pela experiência do
consumo. Externamente, em âmbito global, a abertura econômica chinesa fez com que
grande parte do processo produtivo da indústria têxtil fosse “revelado” a partir do
momento em que a cadeia, já bastante fragmentada e espalhada por pequenas
empresas com funções específicas, fez uma migração – ainda que processual – massiva
para a China. A mudança radical na trajetória de fabricação das mercadorias e,
especificamente, das roupas, acabou por expor fragmentos antes omissos do modo de
fazer industrialmente, o que tem provocado um grande questionamento sobre o
consumo nos países afetados por essa mudança, uma vez que ela tem afetado não só o
modo de consumir, mas a economia e a oferta de trabalho.
Os modos de fazer e consumir, vinham sendo, até então, moderados pelo
distanciamento do usuário com o processo produtivo do objeto. No entanto, mesmo
diante da distância oceânica entre produtor e consumidor final, esse processo vem
sendo gradualmente aberto, através do maior acesso à mídia e à comunicação global,
das denúncias cada vez mais recorrentes de escravidão, trabalho intenso, de processos
extremamente poluentes e até mesmo por conta da atenção voltada para a China depois
dessa centralização produtiva. Muitos são os casos como o dessa mulher, moradora de
Brasília, que recebeu, junto com suas encomendas do site de vendas de peças chinesas
Ali Express, o bilhete escrito a mão: I slave, Help me (Eu escravo, Me ajude).

Fig. 1: Imagem do bilhete postada no Facebook onde se lê: I slave, Help me (Eu escravo, Me ajude).

Tais fatos têm favorecido a criação de termos e discursos que visam, acima de
tudo, salvar a indústria da Moda dela mesma. Assim, palavras como sustentabilidade,
slow-fashion, qualidade, transparência, trabalho justo, atemporalidade, zero waste e
manualidade foram transformadas em itens de luxo, representando um “nicho de
mercado com grande potencial de crescimento” (WHITEMAN, 2015, p.19) dentro da
indústria têxtil, com o intuito de, não apenas repensar modos de consumo, mas também
de retornar a produção para as cadeias locais, estimulando a economia interna de cada
país.

Este retorno aos modos de produção ditos artesanais, com um tempo mais lento,
ainda que com incidência mínima sobre a produção global de produtos têxteis, é um
reflexo do incômodo que o volume e os modos de tratar materiais têm causado. Porém,
de outra forma, procurar outros modos de produzir e consumir é ainda assumir e buscar
suprir essa necessidade de afirmação de si através do que se pode comprar, é reafirmar
e alimentar a existência do sujeito neoliberal que se consolida na materialidade.

Neste sentido, é necessário pensar de que forma a individualização do sujeito, a


mudança na noção de público e privado, a produção e o consumo exacerbados e o
incentivo ao consumo transformam a relação com a materialidade. E para estimular esta
reflexão, a China é um “prato cheio”. Nenhum outro país é capaz, hoje, de oferecer
retrato mais claro da constituição do sujeito neoliberal, já que o condensamento e a
intensidade dos acontecimentos depois das reformas fazem saltar diante dos olhos até
as características mais inexpressivas desse sujeito, nos advertindo sobre nossa própria
realidade, onde os acontecimentos são mais pulverizados e não tão claros. Não há
também onde possamos ver com mais clareza o volume de coisas produzidas para venda
e uso globais.

Se para Deng Xiaoping, “ficar rico, definitivamente, é glorioso” (PINHEIRO-


MACHADO, 2013, p.142), ser rico já não passa apenas pela quantia de dinheiro que se
acumula, mas, principalmente, pelas coisas que nos cercam e que se têm. Desse modo,
assim como a China revela a materialidade do mundo, as coisas vindas da China revelam
inúmeros aspectos desse mundo. É no sentido definido pelo antropólogo Tim Ingold,
que consideramos a noção de coisa ao invés de objetos ou mercadorias, já, que segundo
ele, a coisa é “porosa e fluida, perpassada por fluxos vitais, integrada aos ciclos e
dinâmicas da vida e do meio ambiente” (2012). Um conceito que se adequa mais à noção
de materialidade e de relações imbricadas na configuração da sociedade nas quais
acreditamos, diante da observação dos processos produtivos e das trajetórias traçadas
por essa materialidade. As coisas também vivem, se movem e configuram um mundo.
Assim, cabe a reflexão: se “a China faz todas as nossas coisas”, “tudo é feito na China”,
quanto ela e sua materialidade nos tem revelado sobre nós mesmos?
REFERÊNCIAS

BRUNO, Flavio da Silveira A quarta revolução industrial do setor têxtil e de confecção: a


visão de futuro para 2030. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2016.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DAVIS, Debora. The Consumer Revolution in Urban China. London: University of


California Press, 2000.

INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de
materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 18, n. 37, p. 25-44, jun. 2012.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
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LINDER, Alex. Dolce & Gabbana hurts Chinese netizens' feelings with campaign
showcasing 'backward' side of Beijing. Shangai: Shangaiist, 25 abr. 2017. Disponível em:
<http://shanghaiist.com/2017/04/25/dolce-and-gabbana-offends.php>. Acesso: 08 jun.
2017.

NGAI, Pun. “Subsumption or Consumption? The Phantom of Consumer Revolution in


‘Globalizing China’”. Cultural Anthropology, v. 18, 4: 469-492, 2003.

PINHEIRO-MACHADO, Rosana. China, passado e presente: um guia para compreender a


sociedade chinesa. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2013.

SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2005.

WHITEMAN, V. Você tem pressa de que?. In Revista FFWMAG. São Paulo: Lumi 5, 2015,
nº 39, p. 19-23.

ZHANG, Li. (2012). In search of paradise: Middle-class living in a Chinese metropolis.


Cornell University Press, 2012.

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