Vous êtes sur la page 1sur 336

CADERNOS IPPUR

Publicação semestral do Instituto de Pesquisa e Planejamento


Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Edi tor
Pedro Abramo O CADERNOS IPPUR é um periódico
semestral, editado desde 1986 pelo Instituto
Editor Adjunto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regio-
Carlos B. Vainer nal da UFRJ. Dirige-se ao público acadêmico
Conselho Editorial interdisciplinar formado por professores,
Ana Clara Torres Ribeiro pesquisadores e estudantes interessados na
Fania Fridman compreensão dos objetos, escalas, atores e
Hermes Magalhães Tavares práticas da intervenção pública nas dimen-
Pedro Abramo sões espaciais, territoriais e ambientais do
Rosélia Perissé Piquet desenvolvimento econômico-social. É dirigi-
do por um Conselho Editorial composto por
Conselho Científico
professores do IPPUR e tem como instância
Aldo Paviani (UNB) de consultação um Conselho Científico inte-
Bertha Becker (UFRJ)
grado por destacadas personalidades da pes-
Celso Lamparelli (USP)
quisa urbana e regional do Brasil. Acolhe e
Inaiá Carvalho (UFBA)
Leonardo Guimarães (FIJN) seleciona artigos escritos por membros da
Lícia do Prado Valladares (IUPERJ) comunidade científica em geral, baseando-
Maria Brandão (UFBA) se em pareceres solicitados a dois consulto-
Maurício de Almeida Abreu (UFRJ) res, um deles obrigatoriamente externo ao
Milton Santos (USP) in memoriam corpo docente do IPPUR. Os artigos assina-
Neide Patarra (UNICAMP) dos são de responsabilidade dos autores, não
Roberto Smith (UFCE) expressando necessariamente a opinião do
Tânia Bacelar de Araújo (UFPE) corpo de professores do IPPUR.
Wrana Maria Panizzi (UFRGS)

IPPUR / UFRJ
Prédio da Reitoria, Sala 543
Cidade Universitária / Ilha do Fundão
21941-590 Rio de Janeiro RJ
Tel.: (21) 2598-1676
Fax: (21) 2598-1923
E-mail: cadernos@ippur.ufrj.br
http:\\www.ippur.ufrj.br
CADERNOS IPPUR
Ano XIX, Nos 1 e 2
Jan-Dez 2005
Indexado na Library of Congress (E.U.A.)
e no Índice de Ciências Sociais do IUPERJ.

Cadernos IPPUR/UFRJ/Instituto de Pesquisa e Planeja-


mento Urbano e Regional da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. – ano 1, n.1 (jan./abr. 1986) –
Rio de Janeiro : UFRJ/IPPUR, 1986 –

Irregular.
Continuação de: Cadernos PUR/UFRJ
ISSN 0103-1988

1. Planejamento urbano – Periódicos. 2. Planejamen-


to regional – Periódicos. I. Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional.

Apoio
EDITORIAL
apresentação do editor brasileiro

O número dos Cadernos IPPUR que os leitores têm em suas mãos é um desses
presentes de magos ou reis; um presente que após percorrer mares, desertos, flo-
restas, cidades agitadas e tranqüilas, povoados ribeirinhos e perdidos nos picos do
mundo, chega como um tesouro; um presente que, ao girar o mundo, foi adquirindo
suas cores, seus odores e, no nosso caso de acadêmicos e interessados nos temas do
urbano e do regional, suas idéias. Sim, leitor, convido-o a abrir este número especial
dos Cadernos IPPUR como se abre um tesouro; com a curiosidade da descoberta
do desconhecido, com a avidez de quem conhece e deseja conhecer mais. Leitor,
convido-o a dar uma volta por esse planeta pelas mãos de nossos pares distribuídos
pelo mundo e reunidos pelas visíveis e generosas mãos de Bruce Stiftel e Vanessa
Watson, que editaram e coordenaram o material que deu origem aos Diálogos que
publicamos neste número especial. Obrigado Bruce, obrigado Vanessa por esse
trabalho do relojoeiro suíço, que, com precisão e paciência, monta uma máquina
que permite o diálogo dos tempos com os espaços. Também devemos agradecer a
confiança do GPEAN (Global Planning Education Association Network), que tomou
a iniciativa de promover os Dialogues, da ANPUR (Associação Nacional dos Progra-
mas de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional), que detém
os direitos em língua portuguesa, e dos editores, que nos deram a autorização para
este número especial, e, evidentemete, dos autores.

Nesse percurso de trazer os Diálogos para os Cadernos IPPUR, contamos com o


apoio decisivo do Prof. Carlos B. Vainer, Diretor do IPPUR, que nos apresentou o
projeto de publicação com a esperança de contribuir para um diálogo mais abran-
gente e transformador da nossa realidade; e que, dadas as dificuldades para preparar
este número especial, nos apoiou também como editor adjunto. Cabe agora ao
leitor, no silêncio da leitura individual ou na polifonia de uma leitura em voz alta e
coletiva, dialogar com os autores deste número especial…
PREFÁCIO
para a edição brasileira

A decisão da ANPUR de lançar o primeiro volume dos Diálogos em Planejamento


Urbano e Regional como edição especial dos Cadernos IPPUR é um mais do que
bem-vindo marco no processo de cooperação global entre escolas de planejamento
urbano. A concepção dos Diálogos em Planejamento Urbano e Regional surgiu de
uma conversa entre dez representantes de associações de escolas de planejamento
em Xangai em 2001. O que eles buscavam era permitir que os planejadores urbanos
dos mais diversos países e idiomas tivessem acesso mais facilmente aos resultados
das pesquisas realizadas no exterior, para que daí surgisse uma maior integração e
enriquecimento de seus trabalhos. Os artigos foram escolhidos por cada uma das
nove associações integrantes da Global Planning Education Association Network
(GPEAN) e então selecionados por um comitê editorial internacional. O volume
inaugural em língua inglesa foi publicado pela Routledge (Taylor and Francis Group)
em 2005, dando início a uma série bienal que estará disponível em edições impressas
e digitais. O que se planejava, desde o início, era a publicação de edições traduzidas
em outros idiomas. Este volume, apresentando o conteúdo de Diálogos 1 em portu-
guês, representa a primeira dessas traduções a ser publicada.

A produção do conhecimento na área de planejamento urbano e regional tem sido


limitada pela existência das diferentes fronteiras nacionais e lingüísticas. Considerações
de ordem legal, institucional e cultural têm sido freqüentemente subestimadas nessa
área porque o grau de sua variação no interior de nações individuais costuma ser
relativamente limitado. Esforços no sentido da promoção de intercâmbio de idéias
entre planejadores, acelerados na década passada e evidenciados pelo primeiro
Congresso Mundial de Escolas de Planejamento, realizado em Xangai em 2001,
sugerem que o valor potencial da comparação entre os diferentes trabalhos é bastante
significativo. Ao mesmo tempo, o idioma e os custos na obtenção das publicações
estrangeiras limitam o acesso ao conhecimento produzido em outros lugares do
mundo. A série Dialogues busca oferecer uma amostra dos melhores trabalhos produ-
zidos em cada uma das comunidades de planejadores do planeta para acadêmicos
de outras comunidades. Se argumentamos que essa pequena amostra de artigos
pode contribuir tanto, é porque acreditamos que o nível atual de acesso e diálogo
internacional é tal que uma série de livros apresentando parte do que de melhor foi
produzido na área de planejamento em cada uma das comunidades contribuirá,
decisivamente, para a sugestão de modelos e oferta de novos recursos aos acadêmicos.
Os artigos foram selecionados por cada associação de escolas de planejamento através
de comitês editoriais. As formas de escolha variaram nas diferentes associações,
algumas delas indicando os melhores artigos em determinados periódicos, outras
acatando sugestões de membros de suas diretorias. Após essa etapa, o comitê edi-
torial do GPEAN reviu todos os artigos submetidos pelas associações e escolheu
aqueles que seriam incluídos nesse livro. O objetivo foi selecionar exemplos do que
melhor se produziu na área de planejamento urbano e regional, incluindo artigos
de cada um dos continentes. Aqui você não encontrará visões consensuais, seja em
âmbito nacional ou regional, a respeito de questões do planejamento. Pelo contrário,
os artigos aqui incluídos ilustram as preocupações e o discurso das comunidades de
planejadores do mundo todo. Eles proporcionam uma rápida incursão nas teorias e
métodos utilizados por acadêmicos da área de planejamento em todo o mundo e,
nesse sentido, são representativos de fontes que poderão estimular explorações
futuras.

O GPEAN, de uma forma geral, e o projeto Diálogos, especificamente, beneficiaram-


se do incansável apoio da ANPUR. Carlos Vainer, Geraldo Costa, Cristina Leme,
Heloisa Costa e Ana Fernandes representaram a ANPUR no GPEAN, enquanto
Marco Gomes representou a ANPUR no Comitê Editorial Internacional dos Diálo-
gos 1. Esses representantes refletiram o grande entusiasmo da diretoria da ANPUR
para a promoção da cooperação internacional entre escolas de planejamento, cujo
início remonta à metade dos anos 90 e que envolveu diversas pessoas. Desde que
se tomou a decisão de lançar uma edição em português dos Diálogos 1, o projeto se
beneficiou das inexauríveis energias de Pedro Abramo e Andrea Pulici. Somos gratos
a eles, ao Comitê Editorial dos Cadernos IPPUR e aos colegas brasileiros (bem como
aos outros falantes de português) que utilizarão esse trabalho e que, assim, nos
levarão um passo adiante no sentido do estabelecimento de um diálogo rico dos
planejadores e acadêmicos da área através das fronteiras internacionais.

Bruce Stiftel
Vanessa Watson
CADERNOS IPPUR
Ano XIX, Nos 1 e 2 SU MÁ R IO
Jan-Dez 2005 Diálogos em Planejamento
Urbano e Regional, 9
Prefácio, 13
Artigos, 15
Bruce Stiftel, Vanessa Watson , 17
C O LABO R AR A M NE ST E NÚ M E R O Introdução: A construção da integração global
Bruce Stiftel das Escolas de Planejamento
Vanessa Watson Jill Grant, 17
Uso misto na teoria e na prática: a
experiência canadense com a implantação de
um princípio de planejamento
SEC R E T ÁR I O
Glen Searle , 17
João Carlos de Paula Freire Legado incerto: os estádios olímpicos de
Sydney
T R AD U Ç ÃO
Sonia Schwartz Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim
O’Riordan, Dick Cobb , 17
REVISÃO DA TRADUÇÃO E REVISÃO TÉCNICA Projetando paisagens holísticas
André Dumans Guedes Jiantao Zhang, 17
Gestão da renovação e preservação urbana
PROJETO GRÁFICO E REVISÃO na China: o caso de Xangai
Claudio Cesar Santoro Karen Umemoto, 17
C APA Caminhando com sapatos alheios: desafios
epistemológicos no planejamento participativo
André Dorigo
Lícia Rubinstein Scott A. Bollens , 17
Planejamento urbano e conflito intergrupal:
ILU STRAÇÃO DA C APA confrontando um interesse público dividido
Foto da direita: Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein,
Thomas L. Harper, 17
Foto da esquerda: Além de rótulos: planejamento pragmático em
conflitos de turismo ambiental com várias
partes interessadas
Vanessa Watson, 17
A utilidade das teorias normativas de
planejamento no contexto da África
subsaariana
Leonie Sandercock, 17
Debatendo o preconceito: a importância das
histórias e de sua narração na prática do
planejamento
Raine Mäntysalo, 17
Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento
Diálogos em Planejamento Urbano e Regional 1

Diálogos em Planejamento Urbano e Regional oferece uma seleção dos melhores


estudos em planejamento urbano de cada uma das associações de escolas de pla-
nejamento do mundo. Os artigos premiados apresentados aqui ilustram as preocu-
pações e o discurso da comunidade de estudiosos do planejamento e fornecem
uma mirada na teoria e prática do planejamento por acadêmicos ao redor do mundo.
Todos aqueles interessados em planejamento urbano e regional acharão esta coleção
valiosa por abrir novos caminhos para a pesquisa e o debate.
Contextualizados pelo capítulo introdutório escrito pelos editores, estes artigos
debruçam-se sobre questões locais, mas refletem também três problemáticas inter-
nacionais: a primeira, a relação entre planejamento e economia, é discutida em
situações que vão desde usos mistos do solo urbano no Canadá, passando pelos
estádios olímpicos em Sydney, até os efeitos das forças de mercado no espaço urbano
em Buenos Aires. Questões relacionadas ao meio ambiente e conservação, a segunda
problemática, são levantadas em artigos sobre a biodiversidade na Grã-Bretanha;
as dificuldades em equilibrar conservação e regeneração em Xangai; e os efeitos do
zoneamento ecológico-econômico na Amazônia brasileira. A terceira problemática,
a natureza do processo de planejamento e tomada de decisão, é levantada através
da participação e comunicação em Belfast, Jerusalém, Johannesburgo e Canadá;
através da aplicação da teoria normativa do planejamento à África; e através do uso
da narração de histórias como meio de alcançar o entendimento mútuo. O capítulo
final questiona a habilidade da Teoria Crítica do Planejamento em reconhecer a
presença do poder no processo de planejamento.
Este livro é publicado em associação com a Global Planning Education Associa-
tion Network (GPEAN) e as nove associações de escolas de planejamento que ela
representa, que selecionaram estes artigos com base em concursos regionais.

Editores: Bruce Stiftel é professor de planejamento urbano e regional na Univer-


sidade do Estado da Flórida, EUA. Vanessa Watson é professora do Programa de
Planejamento Urbano e Regional e vice-diretora da Escola de Arquitetura, Planeja-
mento e Geomática da Universidade de Cape Town, África do Sul.

Colaboradores: Henri Acselrad, Scott A. Bollens, Dick Cobb, Paul M. Dolman, Leo-
nardo Fernández, Jill Grant, Thomas L. Harper, Tazim B. Jamal, Juan D. Lombardo,
Andrew Lovett, Raine Mäntysalo, Tim O’Riordan, Leonie Sandercock, Glen Searle,
Stanley M. Stein, Bruce Stiftel, Karen Umemoto, Mercedes DiVirgilio, Vanessa Watson
e Jiantao Zhang.
10

Diálogos em Planejamento Urbano e Regional


Artigos premiados pelas Associações de Escolas de Planejamento mundiais

Esta série bienal é publicada em associação com a Global Planning Education Asso-
ciation Network (GPEAN). Os nove membros da GPEAN são:

a Association of African Planning Schools (AAPS)


a Association of Collegiate Schools of Planning (ACSP), nos EUA
a Association of Canadian University Planning Programs (ACUPP)
a Association of European Schools of Planning (AESOP)
a Association of Latin American Schools of Urbanism and Planning (ALEUP)
a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e
Regional (ANPUR), no Brasil
a Australia and New Zealand Association of Planning Schools (ANZAPS)
a Association for the Development of Planning Education and Research (APERAU)
a Asian Planning Schools Association (APSA)

Conselho editorial internacional

Sigmund Asmervick
Professor de Uso do Solo e Planejamento de Paisagens, Universidade Agrícola da
Noruega, Europa [AESOP]

Marco A. A. de Filgueiras Gomes


Professor de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Brasil [ANPUR]

Thomas Harper
Professor de Design Ambiental, Universidade de Calgary, Canadá [ACUPP]

Alain Motte
Professor honorário, Universidade de Aix-Marseille-III, França [APERAU]

Roberto Rodriguez
Professor de Urbanismo, Universidade Simón Bolívar, Venezuela [ALEUP]

Bruce Stiftel
Professor de Planejamento Urbano e Regional, Universidade do Estado da Flórida,
EUA [ACSP]
11

Vanessa Watson
Professora de Planejamento Urbano e Regional, Universidade de Cape Town, Áfri-
ca do Sul [AAPS]

Angus Witherby
Diretor do Centre for Local Government (Centro para o Governo Local), Universi-
dade de New England, Austrália [ANZAPS]

Anthony Yeh
Professor de Planejamento Urbano, Universidade de Hong Kong [APSA]
PREFÁCIO

Diálogos em Planejamento Urbano e Regional começou como uma conversa entre


líderes de dez associações de escolas de planejamento urbano em Xangai, em 2001.
A intenção era melhorar o acesso a estudos “estrangeiros” para planejadores urbanos
trabalhando em cada uma das nações e línguas do mundo e, conseqüentemente,
promover a integração, a interfertilização (cross-fertilization) e a crítica. Os artigos
foram indicados por cada uma das nove associações membros da Global Planning
Education Association Network (GPEAN) e então escolhidos por um comitê editorial
internacional. Este é o volume inaugural em língua inglesa do que será uma série
bienal disponível em edições eletrônicas e impressas. Traduções em outras línguas
serão disponibilizadas de acordo com a possibilidade de financiamento.
Os estudos em planejamento urbano têm sido restringidos pela limitada
comunicação através das fronteiras nacionais e lingüísticas. Considerações legais, ins-
titucionais e culturais têm sido freqüentemente assumidas como dadas nos estudos de
planejamento urbano, porque o grau de variação entre eles pode ser limitado no
interior de cada nação. Esforços para promover o intercâmbio internacional nos estudos
de planejamento, intensificados na última década e reforçados pelo Primeiro Congresso
Mundial de Escolas de Planejamento, ocorrido em Xangai em 2001, sugerem que o
valor potencial do trabalho comparativo é bastante alto. Ao mesmo tempo, a língua e
os orçamentos das bibliotecas limitam o acesso aos estudos de planejamento de outras
partes do mundo. A série Diálogos busca oferecer uma amostra dos melhores estudos
em planejamento urbano de cada uma das comunidades de planejamento do mundo
para estudiosos de outras regiões. Se uma pequena amostra de artigos pode ter tal
impacto, acreditamos que, considerando o nível de acesso atual, uma série de livros
contendo alguns do melhores estudos de planejamento de cada comunidade será
poderoso em sugerir modelos e guiar estudiosos a novos recursos.
As submissões foram escolhidas por cada associação de escolas de planejamento
através de comitês editoriais. Métodos de escolha específicos variaram segundo a
associação, algumas selecionando os melhores artigos em determinados periódicos,
outras analisando sugestões abertas do seu corpo docente. O Comitê Editorial Inter-
nacional analisou, então, todos os artigos enviados pelas associações e selecionou
aqueles a serem incluídos neste volume. O objetivo era separar exemplos dos me-
lhores estudos em planejamento urbano e regional, incluindo trabalhos de todas as
regiões do mundo. O leitor não encontrará aqui perspectivas consensuais, nacionais
ou regionais, sobre planejamento. Ao contrário, os artigos apresentados ilustram as
preocupações e o discurso das comunidades de estudos de planejamento ao redor
14 Prefácio

do mundo. Eles fornecem uma breve mirada nas teorias e métodos de uso por
acadêmicos de todo o mundo e são sugestivos de fontes que podem conduzir a
importantes investigações futuras.
Cada volume bienal será publicado em inglês e comercializado mundialmente
em edições impressas e eletrônicas pela Routledge. Com o apoio de organizações
nacionais e multilaterais, traduções dos artigos serão disponibilizadas em outras lín-
guas através do endereço eletrônico da GPEAN (www.gpean.org). A expectativa é
de ampla cobertura em bibliotecas universitárias pelo mundo, compra individual
por estudiosos do planejamento, assim como referência em cursos de doutorado.
As nove associações membros da GPEAN são: Association of African Planning
Schools (AAPS), Association of Collegiate Schools of Planning (ACSP), nos EUA;
Association of Canadian University Planning Programs (ACUPP), Association of Euro-
pean Schools of Planning (AESOP), Association of Latin American Schools of Urba-
nism and Planning (ALEUP), a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa
em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR), no Brasil; Australia and New Zealand
Association of Planning Schools (ANZAPS), Association for the Development of Plan-
ning Education and Research (APERAU) e Asian Planning Schools Association (APSA).
Somos gratos aos nossos colegas do Comitê Editorial Internacional: Sigmund
Asmervick, Marco Gomes, Tom Harper, Alain Motte, Roberto Rodriguez, Angus
Witherby e Anthony Yeh; e aos membros dos nove comitês editoriais nacionais e
regionais: Tunde Agbola, Peter Bikam, David Brown, Fermin Carreño, Jeremy
Dawkins, K. D. Fernando, Michael Ginder, Mike Gillen, Phillip Harrison, Michael
Hibbard, Debra Howe, Irene Layrisse de Niculescu, Lik Meng Lee, Alberto Lovera,
Frank Marcano, Barrie Melotte, A. Mosha, Yukio Nishimura, Ken Odero, Mark Orange,
Daniel Phiri, Rosa Maria Sanchez, Luis Jaime Sobrino, Andrejs Skaburskis, Ian Skelton,
Alison Todes e Zhiqiang Wu. Esses especialistas trabalharam com a difícil tarefa de
escolher entre muitas submissões de alta qualidade. À Helen Ibbotson e a seus
colegas da Routledge, cujo apoio foi muito além do usual à medida que o projeto
evoluía. Nossa gratidão às equipes dos vários periódicos nos quais capítulos deste
livro foram inicialmente publicados, que nos deram assistência com os textos, gráficos
e permissões, incluindo: Huw Alexander, Robin Bloxsidge, Pilar Espíndola, Katie
Halliday, Patsy Healey, Kim Henderson, Rene Kane, Sarah King, Allison LaBott,
Peter Link, Peter Marino, David Shaw, Ginny Smith e Ian Thompson; assim como J.
P. John Peter, Shawn Lewers e Deden Rukmana, da Universidade do Estado da
Flórida, que nos ajudaram com muitos dos desafios que o projeto ofereceu. Tina
Behet, Ramiro Berardo e Heather Portorreal fizeram competentes traduções essen-
ciais ao trabalho. Muitos dos líderes das associações de escolas de planejamento
ofereceram memória histórica, incluindo David Amborski, Jay Chatterjee, Andréas
Faludi, David Forkenbrock, Klaus Kunzmann, Cristina Leme, Johanna Looye, Hans
Mastop e Martin Smolka. O projeto avançou, em parte, com financiamentos conce-
didos à ACSP e à ANPUR pela Fannie Mae Foundation e pelo Lincoln Institute of
Land Policy. Os erros, claro, são nossos.

Bruce Stiftel Vanessa Watson


Tallahassee, EUA Cape Town, África do Sul
Ar tigos
Introdução:
A construção da integração global
das Escolas de Planejamento

Bruce Stiftel e Vanessa Watson

No outono de 1985, Patsy Healey da me representa um passo significativo


Universidade de Newcastle e Klaus nesse movimento.
Kunzmann da Universidade de Dort-
mund sentaram-se em um restaurante Healey and Kunzmann estavam nos
em Atlanta, EUA, para discutir a viabi- EUA para o vigésimo sétimo encontro
lidade de uma nova associação pan- anual da Association of Collegiate Schools
européia de escolas de planejamento of Planning (ACSP). Esse era apenas o
urbano. Sem que eles soubessem, con- sexto encontro do tipo, em que traba-
versas similares sobre a importância das lhos acadêmicos eram apresentados ao
comunidades acadêmicas para o plane- invés de se realizarem as habituais dis-
jamento estavam ocorrendo no Brasil cussões de tópicos institucionais que
naquele mesmo período; outras haviam desafiavam os programas das universi-
se realizado recentemente na França. dades. Assim como a Association of
Como conseqüência, essas conversas Canadian University Planning Programs
produziram um crescimento significativo (ACUPP), iniciada no Canadá em 1974,
na comunicação entre os professores de a ACSP começara como um veículo
planejamento urbano do mundo intei- para que os coordenadores e diretores
ro. Hoje em dia, o Movimento de Esco- de departamentos compartilhassem tá-
las de Planejamento (Planning Schools ticas e desenvolvessem projetos comuns
Movement) pode facilitar o crescimento direcionados à promoção do planeja-
e o amadurecimento do conhecimento mento da educação dentro das univer-
no planejamento urbano de formas ini- sidades. Mais tarde, no final da década
magináveis vinte anos atrás. Este volu- de 1970, a liderança da ACSP discutiu

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIX, Nos 1-2, 2005, p. 1-14
2 Introdução: A construção da integração global das Escolas de Planejamento

a possibilidade de ultrapassar essas fron- desse incentivar a inovação na prática


teiras e trabalhar diretamente na me- profissional tendo como base um conhe-
lhoria da qualidade acadêmica na área. cimento realista e empiricamente fun-
O presidente da ACSP, Ed McClure, o damentado, mas que fosse ao mesmo
vice-presidente, Jay Chatterjee, assim tempo teoricamente balizado. Será que
como outros presentes precisaram in- isso poderia ocorrer na Europa? Healey
sistir muito para convencer os líderes e Kunzmann achavam que sim.
eleitos de que um congresso acadêmico
independente e um jornal dedicado ao Quinze meses depois, 12 especialis-
planejamento da educação seriam viá- tas europeus em planejamento se reuni-
veis. Ambos os projetos começaram em ram com Healey e Kunzmann no castelo
1980. Em meados da década de 1980, Cappenberg, no vale do Ruhr, na Ale-
a ACSP já contava com 86 escolas- manha, para fundar a Association of
membros, seu próprio jornal, com cerca European Schools of Planning (AESOP):
de 800 assinantes, e, juntamente com Dieter Bökermann, da Universidade
o instituto profissional nacional, partici- Técnica de Viena; Andreas Faludi, da
pava do credenciamento de escolas de Universidade de Amsterdã; Dieter Frick,
planejamento (Chatterjee, 1986). da Universidade Técnica de Berlim;
Jean-Claude Hauvuy, da Universidade
Portanto, quando Healey e Kunz- de Paris VIII; Luigi Mazza, da Politécnica
mann reuniram-se em um jantar em de Milão; Giorgio Piccinato, do Instituto
1985, já tinham observado, durante de Arquitetura da Universidade de Ve-
vários dias, apresentações, compara- neza; Willy Schmid, do Instituto Federal
ções e questionamentos de 348 pesqui- de Tecnologia da Suíça; René Perrin, da
sadores de planejamento urbano (ACSP, Universidade de Tours; e Gerd Hennings
2000a, p. 5-3). O impacto foi óbvio. Um e Michael Wegener, da Universidade de
fórum que possibilitava uma discussão Dortmund. Kwasi Ardakwa, de Gana,
séria sobre a pesquisa e a pedagogia no também participou dos debates. O grupo
planejamento sem os incessantes apelos concluiu que uma sociedade pan-euro-
por uma política de relevância imediata péia de especialistas em planejamento
que caracterizam a maioria das conven- poderia promover maior valorização do
ções de profissionais, em um campo planejamento como disciplina e permi-
baseado na prática, como é o caso do tir que comunidades nacionais de pla-
planejamento urbano, estava levando a nejadores do continente aprendessem
melhorias significativas no projeto da umas com as outras. Programas para
pesquisa e da qualidade da teoria. Tudo intercâmbio de especialistas poderiam
indicava que seria possível estabelecer ser realizados, e um jornal poderia ser
uma disciplina de planejamento regio- desenvolvido. Foram selecionados re-
nal e urbano que pudesse sustentar um presentantes e, nos meses seguintes,
desenvolvimento contínuo de idéias, preparados os papéis da incorporação,
que pudesse se manter nas avaliações de forma que, em outubro de 1987,
de desempenho da universidade e pu- quando a afiliação formal foi aberta, 77
Bruce Stiftel e Vanessa Watson 3

escolas de planejamento de 21 países sília, Warama Parizza, da Universidade


tornaram-se membros fundadores. Na- Federal do Rio Grande do Sul, em Porto
quele novembro, cerca de 100 especia- Alegre, e Guillerme Varella, da Universi-
listas se reuniram em Amsterdã, no dade Federal de Pernambuco, em Reci-
primeiro congresso da AESOP, presidi- fe. Eles reconheceram que, se as escolas
do por Andreas Faludi. Foram necessá- quisessem manter sua independência,
rios apenas dois anos para que uma elas teriam de se reunir. Em São Paulo,
associação pan-européia de especialis- intitularam-se membros do conselho pro-
tas em planejamento passasse da teoria visório da nova associação de programas
para a prática (Kunzmann, 1998). de planejamento urbano e comprome-
teram-se a preparar os regimentos.
No Brasil, 1985 foi um ano de gran-
des pressões sociais pela redemocrati- Em 1986, Smolka organizou, no Rio
zação. Como conseqüência de cerca de de Janeiro, um encontro aberto de es-
20 anos de ditadura militar, as escolas pecialistas em planejamento, que resul-
de planejamento do país se achavam tou na criação formal da Associação
pressionadas, de um lado, por iniciati- Nacional de Pós-graduação e Pesquisa
vas que postulavam um controle tecno- em Planejamento Urbano e Regional
crático da urbanização e, de outro, pelos (ANPUR). Com a presença de 40 pes-
que defendiam uma interpretação crítica soas, o grupo discutiu os regimentos em
da realidade social da vida urbana. O uma reunião que só se encerrou às três
Conselho Nacional de Desenvolvimento horas da madrugada. Prevaleceu a idéia
Urbano buscava uma agenda nacional de que o currículo escolar deveria ser
clara para as cidades e almejava que as determinado nas escolas e de que o pla-
cinco escolas de planejamento urbano nejamento deveria ter uma identidade
desempenhassem papéis significativos. que não pudesse ser manipulada pelas
Nas escolas, nem todos estavam satis- autoridades. Como resultado, em 1988,
feitos com as orientações sugeridas. quando a ANPUR realizou seu primeiro
Quando o Conselho propôs uma avalia- encontro nacional oficial em Teresópolis,
ção do estado da arte no que diz respeito foi preparada para responder a um novo
a tecnologia, planejamento e ambiente programa governamental de avaliação
construído, as escolas perceberam que de todas as escolas de pós-graduação
precisavam reagir. que estabeleceria os futuros níveis de
financiamento (Smolka, 2004).
Lúcio Grinover, da Universidade
Federal de São Paulo, tomou a iniciativa Em meados da década de 1980, as
de reunir representantes dos cinco pro- escolas de planejamento da França pas-
gramas de pós-graduação em planeja- saram por fases bem estressantes. Já em
mento do Brasil. Do encontro, em São 1982, as reformas institucionais nacio-
Paulo, participaram Martim Smolka, da nais produziram um desafio à autoridade
Universidade Federal do Rio de Janeiro, dos planejadores urbanos, levando a
Ricardo Fariet, da Universidade de Bra- uma redução no escopo dos aspectos
4 Introdução: A construção da integração global das Escolas de Planejamento

sociais das políticas públicas anterior- lhor conhecimento que pudesse estabe-
mente atribuídas aos planejadores e a lecer posições mais fortes dentro das
redefinições nas universidades que re- universidades levaram as escolas de pla-
legavam o planejamento a um status nejamento, em três continentes, a criar
menor. Sete programas de planejamen- ou fortalecer associações escolares inde-
to da França reagiram a esses desafios pendentes. No final da década de 1980,
com a criação de uma associação em o Movimento das Escolas de Planejamen-
maio de 1984. A Association for the De- to era uma idéia cujo momento havia
velopment of Planning Education and chegado.
Research (APERAU) foi fundada pelos
institutos de planejamento das universi- Desde 1990, o número de associa-
dades de Aix-Marseille III, Grenoble II, ções vinculadas às escolas de planeja-
Lyon II, Paris VIII, Paris XII, Tours e o mento urbano não pára de crescer. A
Instituto de Estudos Políticos de Paris, Asian Planning Schools Association
para promover a disciplina, contemplar (APSA) foi formada em 1993, após o
os objetivos das escolas e facilitar a coo- bem-sucedido congresso pan-asiático
peração com as entidades profissionais em Tóquio, convocado por Sadao Wa-
(Motte, 1991). tanabe, da Universidade de Tóquio, em
1991, e um evento similar em Hong
As forças dos anos 1980 que moti- Kong foi convocado por Anthony Yeh,
varam a criação da AESOP, da ANPUR e da Universidade de Hong Kong, em
da APERAU, e estimularam uma subdi- 1993. Entre seus sócios fundadores, a
visão da ACSP são consistentes, embora APSA contava com 19 escolas de 15
regionalmente distintas. Enquanto as países.
idéias da revolução de Reagan-Thatcher
se desenvolviam e suplantavam o key- A Australian and New Zealand As-
nesianismo, o planejamento urbano so- sociation of Planning Schools (ANZAPS)
freu uma pressão considerável em muitos começou com uma resolução tomada
países. As escolas relacionadas à profis- em 7 de julho de 1995 em um encontro
são vivenciaram uma diminuição de pro- nacional das escolas de planejamento
cura por parte dos estudantes e uma australianas promovido por Jeremy
redução de oportunidades de trabalho Dawkins, da Universidade de Tecnolo-
financiado. Ao mesmo tempo, as univer- gia em Sydney. Esse ímpeto associativo
sidades se mostravam cada vez mais foi fomentado em duas reuniões pro-
atentas à produtividade de cada unida- movidas por Martin Payne e Greg Mills,
de, e muitas escolas de planejamento da Universidade de Sydney, e C. Tong
foram criticadas e até mesmo ameaçadas. Wu, da Universidade de Tecnologia de
Os incentivos para que se organizassem Queensland, em 1994. Os vários parti-
e enfrentassem os desafios nacionais li- cipantes desses encontros acreditavam
gados à profissão de planejador e, ao que o pequeno tamanho das escolas de
mesmo tempo, para que se realizasse planejamento da Austrália requeria a
uma integração para promover um me- realização de uma melhora na sua co-
Bruce Stiftel e Vanessa Watson 5

municação com as autoridades de pla- uma reunião de Ph.Ds, financiada, em


nejamento do país. Queriam, também, parte, pela fundação dinamarquesa
encontrar uma maneira de fornecer Danida. À equipe da escola de plane-
dados à revisão da política educacional jamento da Universidade de Dar es
sendo realizada pelo Royal Australian Salaam, inclusive Tumsifu Nnkya, jun-
Planning Institute. A ANZAPS optou por taram-se Kofi Diaw, da Universidade de
uma organização menos formal do que Komasi, em Gana, e Vanessa Watson,
as outras associações de escolas de pla- da Universidade da Cidade do Cabo.
nejamento existentes à época: ela não Discutiram a freqüente inadequação dos
possuía uma constituição, nem represen- currículos das escolas de planejamento
tantes eleitos ou critérios de afiliação da África ao contexto africano e procu-
formais, mas se orgulhava de seu status raram utilizar o financiamento da Danida
como uma rede de pares. em prol de esforços para abordar tais
assuntos através de uma rede de espe-
A Associação Latino-Americana de cialistas em planejamento. O financia-
Escolas de Urbanismo e Planejamento mento da Danida não foi obtido, mas,
(ALEUP) começou em 1999 com cinco por meio de contatos com outras asso-
escolas-membros na Argentina, no Mé- ciações de escolas de planejamento, sur-
xico e na Venezuela. Entretanto, Roberto giu a idéia do modelo ANZAPS de rede
Rodriguez, da Universidade Simón Bolí- de pares, e, em 2002, 16 escolas em
var (Venezuela), promoveu um encontro 10 países aceitaram ser membros fun-
em Caracas, convocado com o objetivo dadores da Association of African Plan-
de fundar uma associação, projeto que ning Schools (AAPS).
vinha sendo debatido informalmente
desde 1995. Antonio Ruiz Tenorio, da Dezenove anos após o jantar de Hea-
Benemérita Universidade Autônoma de ley e Kunzmann em Atlanta, a AESOP
Puebla; Lucia Andrade, da Universida- possui 141 membros participantes e as-
de Autônoma de Aguacalientes; Alberto sociados em 29 países, atrai em média
Villar, da Universidade Autônoma do Es- 400 especialistas a seu congresso anual,
tado do México; Juan Lombardo, da patrocina o European Planning Studies
Universidade Geral de Sarmiento; e Ro- e serve de canal para o intercâmbio de
driguez buscaram um mecanismo para estudantes e especialistas da União Eu-
lidar com o vácuo existente na comuni- ropéia e para o aperfeiçoamento curri-
cação entre fronteiras nacionais e entre cular. Acredita-se que suas convenções
especialistas em planejamento das Amé- de alunos de doutorado, no verão, inicia-
ricas Central e do Sul. das em 1991, tenham produzido grandes
avanços na união de culturas acadêmi-
Uma nova associação para unir as cas de vários países da Europa e de vários
escolas de planejamento na África sub- grupos de idiomas.
saariana foi criada há apenas dois anos,
como resultado das discussões iniciadas A ANPUR cresceu e atualmente pos-
em 1999, em Dar es Salaam, durante sui 32 membros institucionais. Seu mais
6 Introdução: A construção da integração global das Escolas de Planejamento

recente congresso bianual, em maio de atrai cerca de 100 participantes. A ALEUP


2003, atraiu 550 pessoas a Belo Hori- conta com 10 escolas-membros e patro-
zonte. A associação publica a Revista Bra- cina dois congressos anuais. Os líderes
sileira de Estudos Urbanos e Regionais, de 16 escolas-membros da ACUPP se
tem estimulado uma identidade nacio- reúnem todos os anos simultaneamente
nal entre os alunos de planejamento ur- à realização do congresso do Instituto de
bano, tem aberto canais internacionais Planejadores do Canadá. A AAPS pos-
para os especialistas em planejamento do sui 16 escolas-membros.
Brasil e influenciou ações do governo
relativas ao vestibular na área de plane- Nesses últimos 19 anos, as associa-
jamento. ções das escolas de planejamento co-
meçaram a realizar alguns trabalhos em
A APERAU possui 23 membros em conjunto. Em 1991, a AESOP e a ACSP
quatro países francófonos. Ela promove concretizaram, juntas, um congresso na
um congresso anual, coordena pesqui- Inglaterra. Em 1997, a ANPUR enviou
sas e representa as escolas de planeja- uma delegação de 27 especialistas ao
mento da França junto a universidades congresso da ACSP na Flórida. Em
e autoridades governamentais envolvi- 2001, quatro associações de escolas de
das no credenciamento, organização planejamento se juntaram para promo-
escolar e integração européia. ver o primeiro Congresso Mundial de
Escolas de Planejamento (World Plan-
A ACSP conta com 99 escolas-mem- ning Schools Congress), em Xangai.
bros e afiliadas nos EUA, publica o Jour- Esse bem-sucedido congresso, organi-
nal of Planning Education and Research, zado pela Universidade de Tongji, atraiu
atrai cerca de 900 pessoas a seu con- 650 especialistas em planejamento de
gresso anual, realiza uma convenção cerca de 250 escolas de planejamento
bianual de administradores e uma con- em 60 países.
venção anual para alunos de doutora-
do, participa do credenciamento de Em Xangai, os líderes de 10 associa-
escolas e possui comitês ativos em di- ções de escolas de planejamento encon-
versas áreas de interesses institucionais traram-se para trocar informações sobre
e curriculares da faculdade. suas organizações e discutir o potencial
para uma cooperação maior. Compar-
A APSA possui 19 escolas-membros tilharam informações e discutiram ob-
em 13 países, realiza um congresso bia- jetivos comuns e possíveis ações futuras.
nual e recentemente levou 199 pales- Essas discussões foram cordiais, nortea-
trantes a Hanói. A ANZAPS possui das por um espírito de boa vontade e
departamentos ativos em 12 universi- pela sensação de que se realizavam ali
dades da Austrália e da Nova Zelândia objetivos históricos, e revelaram diferen-
e está cogitando uma expansão até a ças consideráveis entre as associações:
Papua Nova Guiné e a outras ilhas na- nacionais e multinacionais; formais e
ções do Pacífico. Seu congresso anual informais; velhas e novas, dotadas de
Bruce Stiftel e Vanessa Watson 7

vultuosos ou parcos financiamentos. Na Grécia, os delegados do GPEAN ela-


Avaliaram o potencial para futuros con- boraram um programa de ações, che-
gressos mundiais, mecanismos para co- garam a conclusões sobre os princípios
nexões na internet e outros métodos de para a operação da Rede e selecionaram
comunicação eletrônica, publicação de os representantes. Dez meses depois, em
trabalhos coletivos, comunicação entre Belo Horizonte, Brasil, simultaneamente
pessoas com funções semelhantes nas ao Congresso da ANPUR, foi elaborado
várias regiões, defesa da visibilidade do um regimento, ratificado por todas as
planejamento e intercâmbio de estu- nove associações fundadoras. O regimen-
dantes. No encerramento, os líderes to do GPEAN estabelece dois comitês:
concordaram, unanimemente, com o um comitê de coordenação, atualmen-
que ficaria conhecido como Declaração te presidido por Angus Witherby, da
de Xangai, assinada por representantes ANZAPS, e um Comitê de Diretrizes do
de 10 associações na cerimônia de en- Congresso Mundial (World Congress
cerramento do Congresso de Xangai. Steering Committee), co-presidido por
Esta é a declaração: Louis Albrechts, da AESOP, Johanna
Looye, da ACSP, e Zhiqiang WU, da
Os representantes de associações APSA. Juntas, as associações reunidas
educativas de planejamento, nacio- no GPEAN representam cerca de 350
nais e internacionais, reunidos na escolas de planejamento em seis conti-
Universidade de Tongji, em Xangai, nentes.
concordaram com o objetivo de
aumentar a comunicação mútua As conversas entre os profissionais
para melhorar a qualidade e a visi- dos vários países representados no Con-
bilidade do planejamento e do en- gresso Mundial revelaram que boa parte
sino do planejamento. Para alcançar do trabalho dos especialistas em plane-
esta meta, decidiu-se estabelecer jamento não é conhecida fora de seus
uma rede global de associações de países de origem. Os benefícios da ex-
ensino do planejamento e comitês pansão de nossos debates acadêmicos
para planejar o segundo Congresso em uma escala global foram considera-
Mundial de Escolas de Planejamen- dos potencialmente muito substanciais.
to e desenvolver uma rede de co- Debates “face a face” representavam um
municação total. passo importante, mas outros métodos
seriam igualmente valiosos. Os repre-
sentantes deixaram Xangai com a espe-
Em seguida, a Declaração de Xangai rança de encontrar novas maneiras de
foi formalmente endossada por nove das expandir o compartilhamento do co-
associações, e todas enviaram represen- nhecimento publicado. Em Volos, a idéia
tantes ao primeiro encontro da Global foi aperfeiçoada; em Belo Horizonte, a
Planning Association Network (GPEAN), Routledge foi escolhida como editora,
concomitante ao Congresso da AESOP e um conselho editorial internacional foi
em Volos, Grécia, em julho de 2002. nomeado.
8 Introdução: A construção da integração global das Escolas de Planejamento

Cada associação formou seu pró- compostos por uma variedade de pers-
prio comitê editorial e estabeleceu suas pectivas e numerosos projetos de pes-
próprias propostas. A maioria das asso- quisa dinâmicos. Nos EUA, por exemplo,
ciações solicitou indicações abertas, e há cerca de 800 departamentos de pla-
um júri escolheu as opções a serem nejamento de horário integral, e o Guia
apresentadas. Em algumas associações, da ACSP lista 36 áreas de estudo (ACSP,
isso significava apresentar o vencedor de 2000b). Isso significa 22 departamentos
uma competição de prestígio, tal como de horário integral por área de estudo
as premiações de trabalhos nas compe- no país inteiro. Muitas vezes, para um
tições da AESOP, da Chester Rapkin e debate eficaz, isso é insuficiente. É óbvio
da JAPA. A APSA selecionou suas indi- que esses números são ainda menores
cações entre os trabalhos apresentados em outros países. A comunicação atra-
em seu congresso em Hanói em 2003. vés de fronteiras está aumentando o ta-
A APERAU decidiu não fazer indicações manho dos grupos de investigadores que
para este primeiro volume, mas se com- estão cientes dos trabalhos dos outros,
prometeu a fazer indicações para o Vo- e, como conseqüência, os debates estão
lume Dois a ser publicado futuramente. cada vez mais ricos.
Na rodada final, o conselho editorial
internacional escolheu os trabalhos que Como se trata de profissão com tradi-
serão publicados entre os indicados por ções amplamente divergentes e extensas
oito associações. conexões interdisciplinares, são signifi-
cativas as diferenças que atravessam
Olhando retrospectivamente para a fronteiras nacionais. As comparações in-
história das várias associações, o primeiro ternacionais nos obrigam a reavaliar
Congresso Mundial de Escolas de Pla- nossas decisões nacionais sobre a estru-
nejamento e o nascimento do GPEAN, tura e a natureza de nossa disciplina e a
fica claro que o Movimento das Escolas compreender melhor o motivo por que
de Planejamento se prestou para diver- decidimos fazer o que fazemos e o modo
sos objetivos institucionais e acadêmicos como o fazemos.
importantes. O planejamento do co-
nhecimento e do ensino tem sido fraco Como se trata de profissão envolvi-
por causa do relativo isolamento das da com estruturas institucionais e legais
várias escolas e dos vários grupos nacio- nacionais, muitas vezes nosso conheci-
nais de professores de planejamento. A mento não apresenta uma diversidade
cooperação, a princípio nacional e regio- de variáveis relevantes. A comunicação
nal, e atualmente global, nos fortaleceu através de fronteiras nacionais pode au-
e pode nos fortalecer mais ainda. mentar a diversidade do nosso conheci-
mento e, portanto, problematizar o que
Como se trata de profissão cujos freqüentemente tomamos como dado.
praticantes não são numerosos, para nós
tem sido difícil manter discussões amplas Finalmente, dada a extensão das di-
sobre nosso conhecimento – debates ficuldades que as escolas de planejamen-
Bruce Stiftel e Vanessa Watson 9

to freqüentemente enfrentam ao expli- está em harmonia com as necessidades


car seus objetivos e justificar suas estru- de todas as associações. Conscientemen-
turas de custo dentro das universidades, te, adotamos princípios de intercâmbio.
o crescimento da cooperação internacio- Esses primeiros passos nos incumbem,
nal nos permitirá obter novas idéias sobre como colegas, a responsabilidade de
a forma de apresentar nossas realizações investigar um futuro comum.
e metas aos líderes institucionais.
Quantas vezes, em Oxford, Toronto,
A cooperação internacional traz di- Xangai e Leuven, locais de congressos
ficuldades, é claro. As visões e os recur- de várias associações, colegas demons-
sos dos vários grupos de especialistas em traram surpresa ao ouvirem abordagens
planejamento são tão diferentes quanto alternativas usadas na pesquisa dos mes-
as culturas que eles representam. Sécu- mos tópicos que eles próprios estavam
los de história colonial deixaram uma investigando, por pessoas de quem ja-
ampla gama de preocupações sobre a mais tinham ouvido falar. Quantas vezes
exportação de visões hegemônicas. To- ouvimos reclamações sobre a existência
davia, no GPEAN, a experiência inicial de jornais desconhecidos por estudantes
da cooperação indica que esses temores e professores de outros países. Freqüen-
não precisam dominar nossas intera- temente, ouvimos queixas sobre as limi-
ções. Nele, o espírito do desenvolvimen- tações impostas ao nosso intercâmbio
to tem sido de cooperação e diplomacia. internacional, em razão da diferença de
Caminhamos vagarosamente em dire- idiomas e de sistemas educacionais. O
ção ao reconhecimento da necessidade projeto do Dialogues é um passo peque-
de respeitar os diferentes recursos, con- no, porém significativo, para a atenuação
cepções e decisões culturais das várias do isolamento global no conhecimento
associações. Assumimos apenas o que do planejamento.

Temas globais
Os trabalhos deste volume apontam al- minha opinião, a crescente percepção
guns temas-chave no conhecimento do de que trabalhamos com questões pró-
planejamento internacional atual. De ximas e equivalentes torna interessante
maneira significativa, embora essas con- e necessária a tarefa de reunir essas con-
tribuições venham de diferentes partes tribuições regionais.
do mundo e apesar de alguns autores
evidenciarem a particularidade de seus Três temas centrais são identificados
contextos, parece que certos temas e aqui. O primeiro tem a ver com o relacio-
preocupações relacionados ao planeja- namento entre planejamento e econo-
mento são comuns a vários países. Na mia. O artigo de Grant focaliza uma
10 Introdução: A construção da integração global das Escolas de Planejamento

estratégia de planejamento contemporâ- termos de processos de ecossistema, de


nea e comum: uso misto do solo urbano resistência à mudança, de regulamen-
visando a cidades mais sustentáveis, efi- tação da qualidade ambiental e de di-
cientes e acessíveis. Ao utilizar material nâmicas da agregação de espécies e
empírico de cidades canadenses, a au- populações individuais. O artigo de
tora descobre que, embora as diretrizes Zhang, dedicado a refletir sobre a rápida
ambientais e jurídicas tenham sido alte- mudança do cenário urbano de Xangai,
radas para facilitar a mistura de usos do analisa o simples problema de equacio-
solo, importantes barreiras econômicas nar a necessidade de preservação com
e culturais continuam a fomentar a sepa- a administração da regeneração urbana.
ração do uso do solo e de agrupamen- Utilizando estudo de caso, Zhang mos-
tos sociais. Searle também investiga uma tra como a incompleta estrutura de po-
tentativa do planejamento de intervir lítica de preservação urbana da China,
em uma economia urbana. O autor ana- aliada à inexistência de uma base teórica
lisa o impacto da construção de dois para esforços de preservação, resultam
grandes estádios para os Jogos Olímpi- em instrumentos de planejamento pouco
cos de Sydney, Austrália. Com a justifi- eficazes, em dificuldades de neutralizar
cativa de que trariam maiores benefícios pressões tanto do mercado quanto de
econômicos para a cidade, ambos foram outros departamentos de governos lo-
construídos em parceria com o governo. cais, e em interpretações diversas sobre
Ao comentar a falta de viabilidade finan- o modo como agentes diferentes mu-
ceira dos estádios e os questionáveis im- dariam a paisagem.
pactos dos investimentos, Searle aponta
para a crescente subordinação do pla- O terceiro tema reúne artigos basi-
nejamento às forças de mercado em um camente concernentes à natureza dos
contexto de incerteza econômica e su- processos de planejamento e de tomada
jeito, portanto, a processos de planeja- de decisão. Um tópico importante pre-
mento que são mais reativos, imediatos sente em todas essas contribuições é o
e imprevisíveis nas suas conseqüências. que diz respeito às preocupações relati-
vas à administração e compreensão de
O segundo tema refere-se ao am- processos de busca de consenso nas to-
biente e à preservação. O artigo de madas de decisão em contextos caracte-
Dolman, Lovett, O’Riordan e Cobb des- rizados por interesses diversos e por uma
creve uma abordagem “paisagística cada vez maior diversidade cultural.
total” da administração rural na Grã-Bre-
tanha que assegure a preservação e a Umemoto e Bollens começam, am-
melhoria da biodiversidade nas terras bos, seus textos com um mesmo enfo-
cultivadas. Valendo-se da emergente que: o problema da participação em
disciplina da ecologia da paisagem, os situações em que há diversidade cultural,
autores avaliam a maneira como a es- assim como comunicação entre episte-
trutura e a justaposição de elementos mologias baseadas em diferentes cultu-
da paisagem afetam suas funções em ras. Ambos abordam a profissão de
Bruce Stiftel e Vanessa Watson 11

planejador nos EUA; no entanto, utilizam planejamento de diferença, comunica-


material empírico sobre esforços de pla- ção e consenso. Sandercock defende a
nejamento entre culturas diferentes de utilização de histórias no planejamento:
diversas partes do mundo: Umemoto, do como uma forma de obter compreensão
Havaí, e Bollens, de três cidades “pola- mútua (principalmente entre pessoas
rizadas” – Belfast, Jerusalém e Johannes- com pontos de vista diferentes); como
burgo. Os autores chamam a atenção uma forma de comunicação e debate;
para a necessidade de planejamento para como uma forma de persuasão e de de-
acomodar diferenças e desenvolver mé- finição de políticas; e como uma forma
todos e epistemologias que reconciliem de ensino. As histórias, sugere a autora,
pontos de vistas diferentes sobre o mun- podem formar a base de uma epistemo-
do. Jamal, Stein e Harper oferecem a logia e de uma metodologia que sejam
teóricos e praticantes de planejamento particularmente apropriadas ao plane-
uma forma de contornar dilemas multicul- jamento no mundo contemporâneo. O
turais e de interesses múltiplos. Analisam artigo de Mantysalo pretende criticar a
como uma abordagem neopragmática atual posição hegemônica na teoria do
do planejamento colaborativo em uma planejamento: a teoria do planejamento
situação que envolve o turismo voltado crítico, que se apóia em Habermas na
para a natureza em uma região remota sua dimensão teórica e que estimulou
do Canadá poderia evitar conflitos entre ações de planejamento “colaborativas”
diferentes interesses. O neopragmatismo e “comunicativas”. O autor questiona se
sugere uma abordagem interativa e fun- a Teoria do Planejamento Crítico pode
damentada no conhecimento sobre o de fato ser considerada um novo para-
planejamento em situações de conflito, digma no planejamento e conclui que
em que as categorias e definições de essa teoria deveria ser encarada apenas
termos não são impostas, mas se defi- como uma teoria que oferece legitimida-
nem com o passar do tempo por meio de parcial no planejamento participati-
do debate. Watson trata esse assunto sob vo. Essa teoria não consegue reconhecer
uma perspectiva diferente e indaga até a presença do poder em todas as ações
que ponto as teorias normativas do pla- de planejamento e não consegue estru-
nejamento relacionadas à comunicação, turar os aspectos da organização, da for-
à diversidade cultural, relacionadas a matação e da resolução de problemas
uma forma urbana igualitária, são apro- fundamentais para qualquer processo
priadas no muito diferente contexto da de planejamento.
África. A autora chega à conclusão de
que, embora tenham méritos, todas essas Esta coletânea de artigos, que sur-
teorias se baseiam em conceitos sobre giu de processos de seleção regionais e
cultura, economia e lugar que não se globais, cria uma oportunidade de aná-
sustentam. lise para o que a comunidade do pla-
nejamento atualmente considera ser um
Dois outros artigos trazem importan- “bom conhecimento”. O conselho edi-
tes contribuições teóricas aos temas de torial internacional de Dialogues não
12 Introdução: A construção da integração global das Escolas de Planejamento

estabeleceu um critério padrão para a inclui-se o de Sandercock, que sugere o


seleção pelas associações, mas, à medida uso de histórias como forma de obter e
que os artigos estavam sendo reunidos, apresentar um conhecimento localizado.
ficou claro que havia pontos comuns no
processo de classificação. Seguindo o que foi descrito, uma
terceira característica do “bom conheci-
Em primeiro lugar, todos os traba- mento” apresentado aqui é a presença
lhos são contemporâneos e abordam de uma familiaridade com debates teó-
questões regionais prementes e atuais ricos mais amplos existentes nos respec-
no planejamento. Portanto, não é sur- tivos campos postos em questão. Todos
preendente o fato de muitas das contri- os artigos selecionados indicam um só-
buições dos EUA, Canadá e Europa lido conhecimento da literatura relevan-
demonstrarem preocupação com os te e uma compreensão da necessidade
processos de tomada de decisão no pla- de poder enquadrar debates atuais e,
nejamento em relação às crescentes so- em seguida, levá-los adiante. Para al-
ciedades multiculturais em que interesses guns autores, a reunião de tais debates
das mais diversas ordens se fazem pre- significou transpor idiomas e divisões
sentes, o que seria o caso das áreas para geográficas, mas com certeza são gran-
onde se destinam os grandes fluxos mi- des as vantagens para a investigação de
gratórios do mundo atual. Similarmente, idéias fora de seus contextos originais.
não causa surpresa o fato de que nessas
partes do mundo que estão vivencian- Um último ponto a ser explorado
do mudanças e rápido crescimento ur- aqui diz respeito ao grau de interação e
bano existam preocupações sobre a de diálogo existente nas (e entre as) re-
capacidade de o planejamento poder flexões a respeito do planejamento nas
enfrentar as fortes e freqüentes forças várias partes do mundo. Defendemos que
do mercado global para proteger a he- tal integração no conhecimento deve ser
rança local e os recursos ambientais, incentivada porque, além de permitir
para criar cidades mais acessíveis e sus- compreender melhor a complexidade e
tentáveis e para acomodar os pobres. a diversidade das situações nas quais os
planejadores se vêem, expõe o maior
Uma segunda característica se refere número possível de idéias e debates.
à capacidade de poder fundamentar um Uma maneira simples de medir esse grau
argumento em uma análise de prática de interação é examinar as referências
concreta e relacionar essa análise a um bibliográficas citadas por vários autores
debate teórico mais amplo. Tal prática e o grau de regionalização ou globaliza-
pode servir de exemplo para um argu- ção dessas fontes. Um rápido exame das
mento mais geral que esteja sendo apre- fontes bibliográficas utilizadas pelos au-
sentado ou pode, ela mesma, gerar tores neste volume indica que, embora
novas propostas teóricas. Muitos dos arti- possa haver temas e assuntos comuns
gos usam essa metodologia para produ- que os associem, a integração de tradi-
zir uma nova compreensão. Entre outros, ções intelectuais e de idéias é parcial.
Bruce Stiftel e Vanessa Watson 13

Estes artigos revelam que os autores que consultam trabalhos que não este-
tendem a consultar basicamente fontes jam escritos em inglês.
locais. Isso ocorre com autores de regiões
com muitas publicações para especialis- É em relação à superação de tais
tas em planejamento, com marketing barreiras que o projeto editorial do
eficiente, com redes de distribuição da GPEAN deve desempenhar um papel
literatura sobre planejamento e com importante. A meta é disponibilizar o
maiores concentrações de especialistas melhor conhecimento de qualquer idio-
em planejamento. A América do Norte ma para falantes do inglês e utilizar web-
e a Europa se enquadram nesse crité- sites e editores para tornar acessível o
rio, assim como a América do Sul (onde conteúdo de livros não escritos em inglês.
o planejamento faz parte de uma área A promoção e a distribuição desse mate-
de urbanismo mais ampla). Nesses as- rial através das estruturas organizacionais
pectos, além de precisarem buscar das nove associações de escolas de plane-
aprendizado intelectual e oportunidades jamento que compõem o GPEAN ajuda-
de publicação em outros locais, os au- rão a disponibilizar esse amplo material
tores de regiões menos equipadas em em partes do mundo onde normalmente
geral têm poucas opções. A África, por não estaria disponível e ajudarão, como
exemplo, não possui um jornal supra- se espera, a estabelecer vínculos intelec-
nacional dedicado ao planejamento; tuais que integrarão e enriquecerão o
quanto à Austrália e à Nova Zelândia, a grupo de especialistas em planejamento.
situação é apenas um pouco melhor.
Isso fomenta um grau de integração Em um cenário global, o crescimento
(unidirecional), mas não incentiva os do Movimento de Escolas de Planeja-
autores de regiões com farta literatura a mento pode reduzir os problemas cau-
fazer o mesmo, a não ser que estejam sados pelo isolacionismo acadêmico no
recorrendo a pesquisas dessas partes do planejamento urbano e fazer com que a
mundo. Os artigos de Bollens e de Ume- profissão de planejador urbano se torne
moto pertencem a essa categoria. mais forte, mais consciente e mais prós-
pera. Este volume representa um passo
Os autores também utilizam fontes significativo na muito jovem história da
locais quando as barreiras de idioma os cooperação entre as escolas de planeja-
impedem de ter acesso a outras obras mento do mundo. Esperamos que estes
literárias. O artigo de Zhang, original- trabalhos sejam estimulantes para vocês
mente escrito em mandarim, é um bom e que revelem novas direções seja em
exemplo dessa transposição de barrei- um nível bibliográfico, metodológico, teó-
ras, permitindo ao autor fazer uso da rico ou substantivo, novas direções que
extensa literatura inglesa sobre adminis- produzirão, direta ou indiretamente,
tração da herança. Porém, são poucas melhorias no seu próprio trabalho, mu-
as evidências de que autores de língua danças em suas escolas e avanços na prá-
inglesa pesquisam trabalhos produzidos tica do planejamento urbano em suas
em outros idiomas e, menos ainda, de comunidades.
14 Introdução: A construção da integração global das Escolas de Planejamento

Referências

ACSP (Association of Collegiate Schools of KUNZMANN, K. R. AESOP: raumplanung


Planning). Executive Committee Back- in Europa vernetzt. Reprint 33. Dort-
ground Notebook. Tallahassee, 2000a. mund: Universität Dortmund, Facultät
Raumplanung, 1998.
__________. Guide to Undergraduate
and Graduate Education in Urban and MOTTE, A. Education in town and regional
Regional Planning. Tallahassee, 2000b. planning in France. Trabalho apresen-
tado no Joint Congress of the Associa-
APERAU (Association pour la Promotion tion of European Schools of Planning
de l’Enseignement et de la Recherche en and the Association of Collegiate Schools
Aménagement et Urbanisme). Disponível of Planning, England, Oxford, July
em: <http://www.aperau.org/organismes. 1991.
htm/. Acesso em: 13 jul. 2004.
RODRIGUEZ, R. Correspondência eletrôni-
ASIAN P LANNING S CHOOLS ASSOCIATION . ca, 10 jan. 2004.
Asian planning schools association.
Disponível em: <http://www.apsaweb. SMOLKA, M. Entrevista por telefone. 23
org>. Acesso em: 14 jan. 2004. jan. 2004.

C HATTERJEE , J. Presidential address. WITHERBY, A. Correspondência eletrônica,


Journal of Planning Education and Re- 11 mar. 2004.
search, 6, p. 3-8, 1986.
Uso misto na teoria e na prática:
a experiência canadense com a
implantação de um princípio de
planejamento
Jill Grant

No início do século XX, as cidades norte- 1991; Calthorpe, 1993). Nas discussões
americanas começaram a segregar o uso teóricas, os proponentes prometem
do solo, a regulamentar indústrias noci- ganhos sociais e econômicos por meio
vas e a criar distritos com objetivos úni- do uso misto; em exercícios experimen-
cos. O planejamento urbano em seus tais de design, várias abordagens utilizam
primórdios buscava garantir a segurança os usos mistos; e, na prática do planeja-
e a eficiência por meio do distanciamen- mento, um crescente número de juris-
to e isolamento de atividades conside- dições implanta zonas de uso misto.
radas incompatíveis. Porém, no final do
século, essa filosofia da separação tinha Este artigo examina o uso misto, na
mudado por completo e os planejadores teoria e na prática, em nove cidades do
defendiam o uso misto do solo para Canadá, mostradas na Figura 1. Come-
obter vigor e sustentabilidade. No plane- ço pela investigação das premissas de sua
jamento contemporâneo, o “uso misto” implantação. Os proponentes do uso
se tornou um mantra e seus benefícios misto consideram a separação dos usos,
passaram a ser vistos como incontestá- nas tentativas de planejamento de cidades
veis. Poucos questionam suas premissas modernas do século XX, como não-natu-
ou tentam esclarecer o seu significado. rais. As técnicas do novo planejamento
O uso misto constitui uma premissa in- tratam a mistura como necessária e de-
tegral dos populares paradigmas do sejável; todavia, elas muitas vezes não
Novo Urbanismo e do desenvolvimento indicam com nitidez suficiente os objetivos
sustentável (Bernick e Cervero, 1997; propostos ou as estratégias apropriadas.
Berridge Lewinberg Greenberg Ltd., Eu analiso os significados do uso misto

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIX, Nos 1-2, 2005, p. 1-25
2 Uso misto na teoria e na prática

para trazer maior clareza às discussões e 1995), mas será que o uso misto deu
sugerir que os vários níveis de uso misto certo nas cidades canadenses? Este arti-
indicam objetivos e estratégias diferentes. go examina alguns dos problemas e
obstáculos encontrados no Canadá e
Os planejadores canadenses mobi- tenta explicar por que alguns planeja-
lizaram-se cedo e com determinação ao dores e muitos incorporadores perma-
apelo do uso misto. Eu revisei as expe- necem céticos à idéia do uso misto.
riências canadenses na promoção do Embora as estratégias do uso misto te-
uso misto através da regeneração de nham revitalizado muitos distritos anti-
áreas antigas e decadentes da cidade e gos e decadentes e possam acrescentar
em projetos de áreas inabitadas 1. Os novas dimensões a grandes projetos de
Novos Urbanistas insinuam que o pla- áreas inabitadas, nem todos os mora-
nejamento canadense está muito mais dores das cidades e nem todos os usos
adiantado do que o da América (Wight, se beneficiam com tais mudanças.

Figura 1: Locais de cidades canadenses mencionadas neste artigo.

1
O Social Sciences and Humanities Research Council do Canadá forneceu recursos para a
recente pesquisa sobre o impacto do Novo Urbanismo na prática do planejamento canadense
(1999-2001). Esse projeto abrange uma extensa revisão dos documentos do planejamento,
visitas aos locais das construções nos subúrbios e entrevistas com planejadores,
incorporadores e corretores de imóveis de algumas cidades canadenses. A pesquisa para o
parque industrial de Halifax foi subsidiada pela Canada Mortgage e pela Housing Corporation,
sob os termos do External Research Program. Os pontos de vista expressos são da autora e
não representam o ponto de vista oficial das agências de financiamento.
Jill Grant 3

Premissas: teoria do uso misto

A aglomeração, a poluição e, de modo cada de 1960, os ativistas da comuni-


geral, as condições urbanas deficientes dade e os planejadores progressistas
levaram ao planejamento de cidades viam o planejamento dos bairros e o uso
modernas no início do século XX. Em misto para o centro urbano como es-
meados da década de 1920, o zonea- tratégias desejáveis.
mento firmou-se como uma estratégia
para separar usos considerados in- Na década de 1980, o apoio ao uso
compatíveis quanto à sua proximidade. misto tinha se tornado cada vez mais
Durante boa parte do século, os planeja- comum na literatura (ver, por exemplo,
dores desempenharam um importante Van der Ryn e Calthorpe, 1986) e um
papel ao manterem os usos do solo se- tópico popular de discussão em encon-
parados de acordo com locais determi- tros de profissionais. O uso misto recon-
nados no ambiente urbano. quistou prestígio com a sua promessa
de restaurar a vitalidade, a qualidade
No entanto, em meados do século, ambiental, a igualdade e a eficiência na
mudanças nos meios de transporte e nos cidade pós-industrial. Seus proponentes
padrões econômicos tinham transfor- apontavam muitos benefícios:
mado as cidades norte-americanas. En-
quanto as áreas suburbanas cresciam, — a mistura produz um ambiente ur-
os antigos e decadentes distritos centrais bano ativo o tempo todo e otimiza
se deterioravam. Os governos do pós- a utilização da infra-estrutura;
guerra reagiram com esquemas de reno-
vação urbana projetados para restaurar — as unidades residenciais menores,
áreas decadentes dos centros das cida- pós-baby-boom, podem ter uma
des. Dez anos após o início dos projetos variedade maior de opções (em vez
de renovação, os céticos começaram a de casas de centro de terreno);
desafiar as premissas de planejamento
modernas dominantes. — a mistura de tipos de casas poderia
aumentar o potencial de compra e
Em 1961, Jane Jacobs, influente a igualdade, ao reduzir o ágio que
crítica, publicou seu importante livro The as áreas segregadas e exclusivas des-
Death and Life of Great American Cities. frutam;
Ela argumentava que uma mistura har-
mônica de usos diversos produz bairros — os planejadores, ao proverem ha-
vibrantes e bem-sucedidos. Enquanto bitações perto de zonas comerciais
a renovação urbana continuava, seu e de serviços urbanos, poderiam di-
impacto ficou mais evidente, e os co- minuir a dependência de idosos e
mentários de Jacobs pareciam cada vez crianças a carros;
mais coerentes. Nos últimos anos da dé-
4 Uso misto na teoria e na prática

— o fato de as pessoas morarem perto O segundo nível de mistura de usos


de lugares onde possam fazer com- implica o aumento da diversidade de
pras, trabalhar ou se divertir, pode- usos dentro do tecido urbano por meio
ria reduzir o número de carros e de de um incentivo a usos mistos compatí-
deslocamentos de veículos, aumen- veis. Usos compatíveis não geram confli-
tar o fluxo de pedestres e, por con- tos e podem gerar sinergias. Por exemplo,
seguinte, aliviar as conseqüências o acréscimo de usos residenciais de den-
ambientais associadas à utilização de sidade alta em distritos comerciais e em-
automóveis. presariais pode ser compatível, porque
quem mora perto dessas áreas pode dar
Portanto, os usos mistos fazem parte preferência a esses estabelecimentos ou
de uma estratégia que visa ao desen- trabalhar neles. A presença desses resi-
volvimento sustentável e de uma teoria dentes poderia vitalizar a área após o
de condição urbana voltada para a vita- horário de expediente e, dessa maneira,
lidade econômica, o equilíbrio social e criar novas oportunidades de negócios.
a qualidade ambiental. A flexibilidade para permitir tal mistura,
dizem seus defensores, possibilitará aos
A mistura de usos do solo parece mercados restaurar condições comuns
ser um conceito relativamente simples. na cidade pré-regulada.
No entanto, ao examinarmos os objeti-
vos e as estratégias usadas pelos que O terceiro nível de mistura pressupõe
defendem a mistura, descobrimos, pelo a integração de usos segregados. O agru-
menos, três níveis conceituais. No pri- pamento de categorias de uso nas cer-
meiro, os proponentes sugerem um canias pode exigir a suplantação de
aumento da intensidade dos usos do obstáculos de regulamentação. Por exem-
solo. Dentro de uma determinada cate- plo, as jurisdições freqüentemente exigem
goria de uso do solo, em geral residen- separação ou barreiras entre a indústria
cial, os planejadores podem ampliar a pesada e outros usos urbanos. Tais sepa-
gama de escolhas disponíveis. Em vez rações refletem preocupações sobre im-
de diferenciar zonas por densidade ou pactos ambientais, barulho ou tráfego.
tipos de moradias, poderíamos encora- Nas cidades maiores, os padrões econô-
jar uma mistura de estruturas e locações. micos (mais do que as regulamentações
Isso causaria um aumento da densidade dos órgãos públicos) contribuem também
total. Além disso, se acreditarmos que para o desenvolvimento de áreas espe-
as famílias escolhem o tipo de moradia ciais (por exemplo, um “distrito de ves-
tendo como base estágios de ciclos de tuário”). Embora a integração de alguns
vida ou de níveis de renda, poderíamos usos segregados seja desejável e possí-
então argumentar que a mistura de tipos vel, o termo “compatível” evidencia que
de residências reúne famílias diferentes nem todos os usos se prestam à mistura.
(Vischer, 1984). Esse é o objetivo da mis-
tura social de usos, um conceito popu- O que os planejadores, em geral,
lar na década de 1970. querem dizer com “uso misto”? Embora
Jill Grant 5

o termo apareça com freqüência na lite- simultaneamente às pressões pela mis-


ratura de planejamento, ele raramente é tura (Dear, 1992; Hornblower, 1988;
definido (Molinaro, 1993). Em seu texto Rural and Small Town Research, 1992).
sobre o assunto, o Urban Land Institute A experiência mostra que os habitantes
(1987) sugere que um projeto de uso de comunidades estabelecidas podem
misto se desenvolve de acordo com um fazer objeções à mistura, em especial em
plano coerente com três ou mais usos relação aos usos considerados mais “in-
de produção-renda funcional e fisica- compatíveis” ou passíveis de aumentar
mente integrados. Projetos de revitaliza- as densidades urbanas (Clark-Madison,
ção urbana em larga escala dominaram 1999; McMahon, 1999; Pendall, 1999).
a renovação urbana entre as décadas de
1960 e 1980: por exemplo, Marina City, Provavelmente, o Novo Urbanismo
em Chicago; The Watergate, em Washing- é o mais importante movimento para o
ton; e Scotia Square, em Halifax, apre- estabelecimento do uso misto no pla-
sentavam uma mistura de escritórios, nejamento norte-americano dos últimos
comércio varejista, hotéis, lazer e resi- anos. Com raízes no planejamento de
dências, em um ambiente voltado para cidades neotradicionais de Andres Duany
o pedestre (Collier, 1974; Urban Land e Elizabeth Plater-Zyberk (1992, 1996),
Institute, 1987). Esses megaprojetos, que Katz (1994) e Krieger (1991) e influen-
caracteristicamente deslocaram distritos ciado por conceitos de desenvolvimento
de uso misto anteriores que se tornaram voltados para o trânsito de Peter Cal-
obsoletos ou foram julgados feios em thorpe (1993), o Novo Urbanismo tor-
razão da devastação causada pelo tempo, nou-se o verdadeiro credo da década
compartilhavam a filosofia de aumentar de 1990. Seus defensores participavam
a diversidade enquanto aumentavam a de conferências e programas de rádio e
densidade e a intensidade. de televisão para descrever suas con-
cepções (Hume, 1991; McInnes, 1992),
As tentativas de misturar usos reve- enquanto a imprensa disseminava a
lam temores significativos em relação à expressão (por exemplo, Adler, 1994;
mistura. As pessoas não desejam certos Anderson, 1991; Paved Paradise, 1995).
usos do solo perto delas. Na década de Extensivamente promovido em jornais,
1980, a adoção de zoneamento de uso workshops e congressos pelas organiza-
misto e a provisão da intensificação ur- ções profissionais, o Novo Urbanismo
bana produziram uma reação do públi- passou a dominar os princípios do pla-
co. As agências que precisavam achar nejamento do final do século XX. Muitas
locais para asilos, orfanatos, clínicas, lo- comunidades revisaram suas políticas,
cais para depósito de lixo, edificações de seus planos e seus regulamentos, para
alta densidade ou prisões usualmente incorporar os conceitos.
encontravam resistência dos moradores.
Até mesmo parques e playgrounds, às As duas correntes do Novo Urba-
vezes, não eram bem-vindos. O fenô- nismo têm visões diferentes sobre o uso
meno do “não no meu quintal” cresceu misto. O projeto de bairro tradicional de
6 Uso misto na teoria e na prática

Duany e Plater-Zyberk (TND) envolve a diferentes para o uso misto (Katz,


intensificação e mistura de usos compa- 1994). A abordagem do TOD é compa-
tíveis de forma harmônica (Bressi, 1994; tível com os métodos de preenchimento
Duany e Plater-Zyberk, 1994). Para in- urbano e a revitalização. O modelo TND
tensificar os usos, o TND incentiva a cons- funciona melhor com o desenvolvimen-
trução de apartamentos sobre garagens, to de áreas inabitadas em novos locais
unidades residenciais sobre lojas em cen- no subúrbio. Os que estão comprome-
tros de cidade diversificados, mas com tidos com a sustentabilidade urbana
prédios baixos e códigos de zoneamento (com uso eficiente da infra-estrutura e
que permitam às pessoas trabalhar em impactos ambientais menores) preferem
suas casas. Duany e Plater-Zyberk (1994) o TOD. Outros argumentam que a abor-
afirmam que, além de indústrias, os dis- dagem do TND parece ser mais prática,
tritos especiais acomodam outros usos porque a maioria do crescimento ocorre
que não podem ser integrados a bairros. na periferia urbana.

O desenvolvimento orientado para Quando os planejadores e projetistas


o trânsito (TOD) concentra as constru- contemporâneos falam do uso misto, não
ções em núcleos associados a estações defendem uma miscelânea de usos. Os
de trânsito (Bernick e Cervero, 1997; proponentes do uso misto contemporâ-
Berridge Lewinberg Greenberg Ltd., neo estimulam a comunidade planejada,
1991; Calthorpe, 1993; Kelbaugh, com seus núcleos de usos compatíveis
1989, 1997; Nelessen, 1993). Usos co- que visam incentivar o ato de caminhar
merciais, empresariais, de lazer e residen- e a utilização de meios de transporte
ciais de alta densidade são alocados nas (Bernick e Cervero, 1997; Calthorpe,
proximidades das estações. As constru- 1993; Nelessen, 1993), ou sugerem o
ções de edificações de densidade baixa que o Urban Land Institute (1987) chama
se dispersam em direção aos limites do de “projetos de multiusos” (vários usos
núcleo, dentro de um perímetro de cinco dentro de um ou mais prédios) em áreas
minutos de caminhada. Assim, o TOD centrais. Os usos mistos fazem parte do
cria uma estrutura de espaço urbano com programa “Crescimento Inteligente”,
conglomerados de usos posicionados em promovido por organizações tais como
um gradiente de densidade a partir das o Urban Land Institute (O’Neill, 2000;
estações de trânsito. Esse conceito mos- Urban Land Institute, 1998), a American
trou ser popular como justificativa para Planning Association (APA, 2001) e o
a revitalização de cidades cujos sistemas Congress for the New Urbanism (CNU,
de trânsito eram bons ou estavam me- 2001). O guia da APA sobre as melhores
lhorando. No entanto, ele pouco tem a práticas de desenvolvimento indica a
dizer sobre as opções de integração dos mistura mais harmônica que o mercado
usos industriais. pode suportar (Ewing, 1996), embora
reconheça que este talvez não tolere
Portanto, esses dois modelos do uma mistura muito grande.
Novo Urbanismo propõem estratégias
Jill Grant 7

Os usos comerciais, empresariais, Encorajado por teorias como o de-


institucionais, residenciais e de varejo são senvolvimento sustentável e o Novo
destaque em discussões sobre usos mis- Urbanismo, o discurso profissional atual
tos. As atividades industriais não apare- (presente, por exemplo, em jornais, li-
cem tanto, embora alguns planejadores vros e congressos) trata o zoneamento
prometam um lugar para elas. Como de uso misto como um “princípio de
disse Berridge Lewinberg Greenberg planejamento” estabelecido especial-
Ltd. (1991, p. 22): mente para as áreas centrais e “centros
urbanos” (“town centers”). Segundo
Embora alguns usos não sejam com- Berridge Lewinberg Greenberg Ltd.
patíveis com outros, particularmente (1991, p. 22-23), a “mistura de usos
com usos relacionados à indústria do solo urbano é uma condição necessá-
pesada ou a usos desagradáveis ou ria, mas não suficiente, para uma cidade
barulhentos, muitas indústrias novas e ambiente melhores (...) Promover a
são de pequena escala e limpas. Em expansão do uso misto é o princípio de
relação a barulho e emissões, as in- uso do solo mais fundamental”. Para que
dústrias que satisfazem os critérios os distritos permitam, incentivem e in-
ambientais de “bom vizinho” deve- tensifiquem os usos mistos – em geral,
riam receber permissão para fazer combinações de usos residenciais, comer-
parte do tecido urbano local. ciais, institucionais e de espaço aberto –,
muitas cidades revisaram os regulamen-
No entanto, poucos subúrbios ou vi- tos de zoneamento nas décadas de 1980
larejos inspirados no Novo Urbanismo e 1990 (Tomalty, 1997). Apesar de as
apresentam um componente industri- zonas de uso único não terem desapa-
al. Refletindo as dificuldades relativas à recido, cada vez mais aparecem como
mistura de usos, Ewing (1996) propõe anacrônicas. A próxima seção analisa o
relegar a indústria a locais “inofensivos”. modo como o uso misto tornou-se dou-
Os planejadores vêem os usos industriais trina no Canadá e seu impacto na prá-
como menos desejáveis e, talvez, incom- tica do planejamento.
patíveis com outros usos na cidade pós-
industrial.

Promessas: a experiência canadense


O uso misto no centro da canadenses. Seu livro, adotado na maio-
cidade ria das escolas de planejamento, perma-
neceu na lista das “leituras obrigatórias”
Jane Jacobs (1961) exerceu uma grande dos planejadores durante décadas (Mar-
influência no planejamento do Canadá. tin, Filion e Higgs, 1988). Jacobs mu-
Embora escrevesse sobre as cidades dara-se para Toronto na década de
americanas, ela sensibilizou os ativistas 1970 e engajara-se, por completo, no
8 Uso misto na teoria e na prática

debate canadense. A escolha do momen- sificação de usos até a década de 1990


to mostrou-se auspiciosa, porque um (Berridge Lewinberg Greenberg Ltd.,
grupo composto por prefeito e conselhei- 1991). Apoiados pelo governo local, os
ros reformistas assumiu o controle da ad- planejadores da cidade procuraram
ministração da cidade em 1972 (Gordon ajustar o crescimento para não desor-
e Fong, 1989; Sewell, 1993). Levando denar os subúrbios. O planejamento do
em consideração as recomendações de uso misto do solo ao longo de vias de
Jacobs, o conselho iniciou a mudança do trânsito e no centro urbano fazia parte
planejamento dentro da cidade. da estratégia de intensificação e reurba-
nização (Municipality of Metropolitan
Em Toronto, os projetos de desen- Toronto, 1987, 1991, 1992).
volvimento de áreas já ocupadas (infill
projects) mostram a influência de Jacobs. A experiência de Toronto influenciou
Em 1974, o bairro de St. Lawrence, uma outras cidades. Vancouver seguiu o
região industrial que precisava ser revi- exemplo com projetos de uso misto ao
talizada, forneceu uma oportunidade longo de sua orla. Conferências e jornais
para testar as idéias do uso harmônico profissionais promoviam o interesse pelo
de Jacobs (Gordon e Fong, 1989). Fi- uso misto e pela mistura social de usos.
nanciado pelo governo, o projeto bus- Na década de 1980, uma crescente po-
cava a promoção de usos residenciais, lítica ambiental conservadora apoiou os
comerciais e institucionais que fossem ao mercados desreguladores. Em meados
mesmo tempo rentáveis e atraentes do da década de 1980, muitas comunida-
ponto de vista da demanda. Embora, des canadenses tinham acrescentado
no início, os consultores tivessem acon- zonas de “uso misto” às leis relacionadas
selhado a instalação de indústrias leves ao uso do solo de seus centros urbanos.
nas proximidades de Parliament Street, O uso misto tornou-se um princípio do
no final os usos industriais foram excluí- planejamento.
dos, porque a equipe do governo temia
desestabilizar o distrito industrial em King Outras municipalidades canadenses
e Parliament. Enquanto tomava forma, esperavam seguir o exemplo de Toronto
o projeto recebeu muitos elogios e pu- e Vancouver por meio da regeneração
blicidade. de bairros antigos e decadentes. Elas
realizaram mudanças nos zoneamentos
Durante as décadas de 1970 e 1980, de distritos comerciais para possibilitar
os bairros mais antigos de Toronto esti- o uso misto. Embora Toronto e Vancou-
veram muito em voga (Caulfield, 1994). ver tenham vivenciado uma rápida
A gentrificação desses bairros mudou mudança quando os usos residenciais e
seu caráter, aumentou a base de impos- comerciais deslocaram distritos indus-
tos e expulsou os moradores que per- triais antigos, muitas cidades menores
tenciam à classe dos trabalhadores. pouco se beneficiaram dos esforços para
Distritos tais como Cabbagetown e a orla revitalizar seus bairros centrais. Algumas
vivenciaram uma regeneração e inten- comunidades, como Halifax e Vancou-
Jill Grant 9

ver, podem estar voltadas para o mar, desenvolvimento urbano, crescia o in-
localizando-se na orla, ou para antigos teresse pela adoção das idéias do Novo
distritos industriais transformados em Urbanismo (City of Calgary, 1998; Isin
áreas de entretenimento ou residenciais e Tomalty, 1993; Tomalty, 1997). O
através de iniciativas federais e munici- Novo Urbanismo oferecia uma teoria de
pais. No entanto, para a maioria das ci- conceito urbano que abrigava as predis-
dades, o crescimento continuou a ser posições de grupos influentes na prática
canalizado para áreas da periferia, en- do planejamento canadense, principal-
quanto os centros das cidades pouco a mente nos grandes centros. Durante a
pouco se tornavam irrelevantes. As inicia- década de 1990, cidades como Calgary,
tivas governamentais não conseguiram Vancouver, Ottawa, Toronto, Waterloo,
mudar os padrões de desenvolvimento Winnipeg e Edmonton revisaram seus
urbano (Tomalty, 1997). planos para incorporar conceitos do
Novo Urbanismo e do desenvolvimento
Entre o final da década de 1980 e o sustentável. A administração da província
início da década de 1990, desenvolveu- de Ontário elaborou relatórios que des-
se um grande interesse pelos temas creviam o Novo Urbanismo e patrocinou
ambientais. Maurice Strong, um proemi- competições de projetos para ilustrar seu
nente canadense, participou do World potencial (Government of Ontario, 1995,
Commission on Environment and De- 1997; Warson, 1994). Organizações
velopment de 1987 e desempenhou um como a Federation of Canadian Munici-
papel fundamental na promoção do “de- palities, o Canadian Institute of Planners,
senvolvimento sustentável”. Enquanto o o Canadian Institute of Transportation
Plano Verde do governo federal (Gov- Engineers, a Canadian Urban Transit
ernment of Canada, 1990) apresentava Association e a National Roundtable on
um programa de responsabilidade am- Environment and Economy defendiam
biental, a Royal Commission (1992) re- o desenvolvimento voltado para o trân-
planejava a orla de Toronto. Agências sito com núcleos de uso misto (Berridge
como a Health Canada, a Environment et al., 1996; National Roundtable,
Canada e a Canada Mortgage and Hous- 1997; Transportation Association of
ing Corporation iniciaram programas Canada, 1998). O jornal dos profissio-
para incentivar a sustentabilidade nas co- nais de planejamento canadense, o Plan
munidades canadenses. Os planejadores Canada, publicou artigos que incenti-
começaram a reavaliar suas práticas de vavam o Novo Urbanismo e o desen-
modo que elas pudessem se adequar a volvimento sustentável em metade de
parâmetros de sustentabilidade (Grant, seus números de 1992 e 1993 e em
1997; Grant, Joudrey e Klynstra, 1994; todos os números de 1994 a 1996. Os
Paehlke, 1991; Pomeroy, 1999). editores de artigos de destaque do Plan
Canada se referiam aos subúrbios tra-
Ao mesmo tempo que os planeja- dicionais em termos negativos (por
dores canadenses se preocupavam com exemplo, Wight, 1995, 1996). Durante
a redução dos impactos ambientais do vários anos, os congressos do Canadian
10 Uso misto na teoria e na prática

Institute of Planners apresentavam ses- conhecidos como “The Kings” 3, em


sões sobre o Novo Urbanismo. Portanto, “áreas de reinvestimento” (City of To-
na década de 1990, a prática dos pla- ronto, 1998; Porte, 1998). Antigos pré-
nejadores canadenses se realizou num dios de tijolos serão transformados em
contexto em que o Novo Urbanismo edifícios residenciais. Em Ville Saint-Lau-
dominava o discurso e se deixou im- rent, em Montreal, uma antiga pista de
pregnar de questões relativas à respon- vôo tornou-se o local para uma “nova
sabilidade ambiental. cidade,” Bois Franc (Hutchinson, 1998;
Sauer, 1998). O projeto procurou re-
Diante do inequívoco apoio dos gru- produzir características dos bairros mais
pos profissionais ao Novo Urbanismo, antigos de Montreal; no entanto, as pro-
os planejadores, em todo o Canadá, postas para permissão de lojas de con-
adequaram planos e regulamentos a ele veniência em Bois Franc enfrentaram a
(Pomeroy, 1999). As cidades maiores oposição dos moradores. Os esforços
contrataram consultores para trabalhar para desenvolver planos urbanísticos
com as equipes dos órgãos públicos para abrangentes que incentivem a intensifi-
examinar planos e regulamentos com o cação e o uso misto podem encontrar
objetivo de redirecionar suas políticas de resistência.
acordo com as novas idéias (por exem-
plo: Bogdan, 1992; Greenberg e Gabor, Embora o preenchimento de áreas
1992; Lewinberg, 1993). O Novo Urba- centrais com novos usos mistos traga
nismo (com sua retórica de desenvolvi- benefícios, também envolve custos. Al-
mento sustentável) trouxe uma lógica guns usos são descartados. Por exemplo,
revitalizante para a prática do planeja- em Halifax, dois bares foram obrigados
mento 2. a fechar apesar de as políticas de zonea-
mento terem permitido sua existência
Hoje, cidades em todo o Canadá como parte da mistura de usos. Na dé-
incentivam o uso misto e defendem seus cada de 1990, os moradores de um
benefícios em bases sociais, econômicas novo prédio residencial no centro se
e ambientais. O uso misto é ainda mais opuseram, com sucesso, à renovação da
comum nos distritos antigos e decaden- licença de um bar, alegando que o es-
tes e é especialmente utilizado como tabelecimento (que já existia antes de
uma estratégia de regeneração de pro- eles se instalarem no bairro) arruinava
priedades deterioradas. Dessa maneira, sua tranqüilidade. Em outra ocasião, o
por exemplo, Toronto planeja transfor- senhorio de um prédio de multiusos
mar distritos industriais abandonados, recusou-se a renovar o contrato de uma

2
Nos EUA e na Austrália ocorriam processos similares. Por exemplo, a American Planning
Association começou a divulgar o “crescimento inteligente” que apresenta o uso misto. No
entanto, a abordagem americana dá menos atenção aos assuntos ambientais.
3
Quando o projeto do rio St. Lawrence foi iniciado em 1974, os planejadores se preocupavam
com a viabilidade, a longo prazo, da área industrial em King e Parliament. No período de uma
década, essa área também sucumbiu à desindustrialização.
Jill Grant 11

boate depois da reclamação de barulho Investigamos essa questão em um


feita por um novo inquilino. Quem se estudo de caso do Burnside Industrial
opuser ao uso misto poderá utilizar outros Park na região de Halifax, na Nova Scotia
mecanismos no caso de o zoneamento (Grant, Joudrey e Klynstra, 1994). Esse
facilitar uma mistura considerada “in- parque industrial, um local limpo, relati-
compatível”. vamente tranqüilo e com uma espetacu-
lar vista da bacia do rio Bedford, abriga
Em Toronto e Vancouver, a “desin- 1.200 empresas. Nossa análise revelou
dustrialização” abriu espaço para a revi- amplas oportunidades para um preen-
talização de áreas antigas e decadentes. chimento residencial. No entanto, en-
Os empregos em fábricas estão deixan- trevistas com proprietários de negócios,
do a cidade e levando a classe trabalha- administradores de parques, conselhei-
dora com eles. Algumas cidades estão ros locais e planejadores revelaram uma
ficando mais gentrificadas com a trans- considerável relutância em aceitar a mis-
formação de antigos bairros industriais tura de usos. Os entrevistados receavam
em bairros residenciais mais caros. 4 Ao que a presença de moradores viesse a
mesmo tempo, o custo das moradias desestabilizar o ambiente de negócios
subiu, as taxas de desocupação diminuí- com reclamações sobre barulho, tráfego
ram e os sem-teto se tornaram uma e riscos. Em relação aos investimentos,
grande preocupação. A revitalização os donos de negócios se sentiam mais
soluciona os problemas de algumas re- confiantes sabendo que o zoneamento
giões decadentes, mas, em contraparti- restringia o uso misto e limitava a incer-
da, gera outros. teza sobre o futuro. Descobrimos que
no parque industrial a perspectiva da
A mistura de usos do solo nos bairros mistura de usos industriais com residen-
antigos e decadentes tornou-se parte de ciais era tão mal vista quanto no centro
uma estratégia para substituir usos in- urbano.
dustriais em extinção. Embora muitas
fontes sugiram que a indústria está mu- Em resumo, a intensificação e o de-
dando para se tornar mais limpa e si- senvolvimento de áreas já ocupadas (infill
lenciosa e que, portanto, não precisa development) são populares entre os
mais ser segregada, na maioria dos casos planejadores canadenses; o estilo TOD
continua indesejada. Relegadas à peri- do Novo Urbanismo influencia o desen-
feria, as áreas industriais continuam a volvimento em cidades grandes como
oferecer uma quantidade significativa de Toronto, Vancouver e Calgary. Todavia,
oportunidades de trabalho. Seu isola- ele não se tornou a forma dominante
mento e seu distanciamento das vias de de crescimento, e os usos industriais não
trânsito podem forçar os trabalhadores participam da mistura. As áreas inabitadas
a utilizar carros para chegar a elas. Po- continuam baratas, principalmente em
deria uma estratégia de aumento do uso regiões de crescimento lento. Interesses
misto em parques industriais ser viável? poderosos incentivam o desenvolvimento

4
Zukin (1989) documenta o mesmo processo em Nova York.
12 Uso misto na teoria e na prática

urbano. Além disso, os canadenses te- nas discussões sobre planejamento (Chi-
mem zonas residenciais de alta densi- dley, 1997; Hygeia, 1995; MacDonald
dade e de baixo custo e permanecem e Clark, 1995).
ligados a seus carros; eles resistem à in-
tensificação (Tomalty, 1997). Na próxima A pesquisa revelou diversas dificul-
seção, revisarei brevemente o planeja- dades na hora de pôr em prática esse
mento de novas áreas inabitadas do plano de uso misto, pelo menos nos
Canadá para avaliar se os planejadores primeiros anos dos projetos. A Carma
estão implantando nelas o uso misto. investiu milhões de dólares em estrutu-
ras comerciais que não pôde vender; em
vez disso, arrenda as propriedades, em-
Uso misto nos subúrbios bora enfrente altas taxas de desocupa-
ção. Na praça, a propriedade para fins
Em 1997, o Congresso para o Novo comerciais está praticamente vazia. Uma
Urbanismo promoveu sua muito divul- escola particular propôs mudar-se para
gada convenção em Toronto. Os adep- o prédio, mas desistiu depois de ter sofri-
tos do Novo Urbanismo elogiaram a do oposição dos moradores. A incorpo-
cidade, seus bairros e os projetos pro- radora cancelou projetos de construção
postos, ou em andamento, no Canadá de apartamentos em cima de lojas do
(Everett-Green, 1997). Por volta de centro da cidade, porque o valor de
2000, cerca de 30 comunidades subur- mercado dos aluguéis não cobriria os
banas denotavam influência do Novo custos da construção; o mesmo sucedeu
Urbanismo. A primeira delas a começar com os apartamentos construídos sobre
a construção, a McKenzie Towne, em garagens. A construção da estação para
Calgary, projetou o desenvolvimento de um trem local está longe de se tornar
cerca de 2.400 acres. Em meados do realidade, e os moradores estão preo-
ano 2000, a incorporadora Carma tinha cupados com a duração da viagem de
construído dois bairros (ou vilarejos) e ônibus até a cidade.
um “centro da cidade”. Projetado com
a consultoria de Andres Duany e des- Os representantes da Carma desco-
crito como uma comunidade de uso briram que os construtores conseguiam
misto, McKenzie Towne apresenta diver- vender casas sofisticadas e caras com
sos tipos de construções, desde aparta- menos facilidade em locais onde a mistu-
mentos a casas de centro de terreno, e ra de tipos de moradia era maior. Assim,
imóveis comerciais de bairro na praça diminuíram a mistura no segundo vila-
do vilarejo. Consistente com os planos rejo. Com base na experiência de Cal-
de Calgary (City of Calgary, 1995a, gary, onde o crescimento é alto e o
1995b), McKenzie Towne planeja uma mercado de moradias é muito restrito,
parada de trem no centro da cidade. a Carma afirma que o Novo Urbanismo
Durante a década de 1990, McKenzie atrai um pequeno segmento do merca-
Towne obteve uma avaliação positiva da do. Os moradores gostam dos detalhes
imprensa e despertou muito interesse arquitetônicos e dos espaços públicos,
Jill Grant 13

mas os compradores preferem bairros dias (Figura 2). No verão de 2000, vá-
homogêneos com casas unifamiliares. rios subúrbios de Toronto apresentavam
comunidades “inspiradas na tradição”,
As formas do TND apresentam um com ruelas atrás das casas e uma mistura
custo de construção e preservação maior de tipos de edificações. No entanto, de
do que o das construções tradicionais, modo geral, esses subúrbios caros não
mas não geram ágio para as vendas. incluem usos comerciais.
McKenzie Towne está se tornando áreas
de moradias para os que vão comprar Comissionada pela província de On-
seu primeiro imóvel, uma vez que os tário em meados da década de 1990 e,
mercados de “ascensão” procuram posteriormente, vendida para grupos
construções e misturas mais convencio- particulares, a maior comunidade do
nais. Sendo assim, o subúrbio oferecerá Novo Urbanismo é Cornell. O projeto
moradias compráveis 5, mas as principais mostra a influência de Duany e Plater-
finalidades da mistura inicialmente pre- Zyberk (1,500-Acre Housing Project,
vista não se materializarão. Em fases 1996; Introducing the Invisible Garage,
subseqüentes dos projetos, a Carma 1996). Com 11 bairros, Cornell se apro-
decidiu abandonar o conceito TND e veita do vernáculo arquitetural de Toronto;
adotar a incorporação convencional. A segundo Duany, se o código permanecer
incorporadora verificou que, até mesmo simples, ela se parecerá com a estimada
em áreas de grande crescimento, a mis- Cabbagetown (Bentley Mays, 1997).
tura pode ser perigosa para os objetivos Apesar de o trem não chegar a Cornell,
da corporação. há conexões de ônibus.

Nos subúrbios de Toronto, o Novo As comunidades do Novo Urbanis-


Urbanismo está proliferando. Seguindo mo em Ontário lutam para atrair inqui-
a fusão da cidade com seus subúrbios linos comerciais (Toronto Life, 1996),
no final da década de 1990, o foco do porém atraem apenas um pequeno seg-
desenvolvimento pode estar se afastan- mento do mercado. Como uma Nova
do dos bairros antigos e decadentes. No Forma Urbana, elas constituem um risco
próspero Markham, a nordeste da cida- para os investidores. A experiência ini-
de, as autoridades locais parecem empe- cial de alguns construtores pode afugen-
nhadas na mudança de regulamentos tar outros incorporadores, na medida
para promover o Novo Urbanismo em que o uso misto e as ruelas nos fun-
(Hutchinson, 1998). Nesses subúrbios dos das casas não estão agradando os
mais afluentes, embora as construções compradores.
freqüentemente imitem características
de bairros do início do século XX, está “No cenário Novo Urbanista supre-
incluída uma mistura de tipos de mora- mo, os proprietários de casas moram ao

5
Em Calgary, casas que custam menos de $150.000 são consideradas “compráveis”, embora
a maioria das famílias talvez não tenha condições de comprar uma casa desse valor.
14 Uso misto na teoria e na prática

Figura 2 : Mistura suburbana em Markham. Frades-de-pedra na faixa


ajardinada ao longo das ruas estragaram a imagem de “cidade
antiga”.

lado de inquilinos. Os comerciantes nobra de mercado para promover a ven-


moram em cima de suas lojas” (Hutchin- da de casas estreitas em lotes pequenos.
son, 1998, p. 120). Essa situação não
se aplica aos projetos canadenses. A partir de entrevistas com planeja-
Quando encontramos apartamentos e dores e afirmações em planos canaden-
casas, a maioria está ocupada por pro- ses, os planejadores das crescentes
prietários; poucos imóveis são alugados. municipalidades suburbanas parecem
As lojas, com falsos segundos andares, satisfeitos com o Novo Urbanismo e
são arrendadas a franqueados. Essas seus preceitos (ver também Pomeroy,
novas “cidades” correm o risco de se 1999). Esses planejadores incentivam os
tornarem caricaturas de uma comuni- incorporadores a experimentar elemen-
dade real: um parque temático de uma tos do Novo Urbanismo; estão ajustando
cidade “antiga” (Saunders, 1997). Em o planejamento e as regras de zonea-
alguns subúrbios, o Novo Urbanismo mento para promover a flexibilização e
significa pouco mais do que alguns en- estão tentando convencer os engenhei-
feites exagerados e varandas na frente. ros e outras pessoas da administração
Reduzido a alguns poucos elementos es- local a cooperar. Por quê? O Novo Ur-
senciais, o conceito representa uma ma- banismo parece ser inovador. Reage ao
Jill Grant 15

mercado, ao permitir que os incorpora- de um artigo do Plan Canada chamou


dores maximizem ganhos; vale-se de os céticos do Novo Urbanismo de “efeti-
valores importantes no planejamento, vamente antiurbanos e favoráveis a uma
tais como eficiência, igualdade (poten- subforma mais baixa de vida urbana
cial de compra), amenidades e meio real” (Wight, 1995, p. 20). 6 Se o peso
ambiente, mesmo que não consiga rea- da profissão defende um paradigma
lizar tudo o que promete. Diante da particular, quem o desafia pode se sentir
contínua expansão, os planejadores marginalizado.
crêem que são poucas as alternativas
para promover o Novo Urbanismo. Se
o uso misto promete vitalidade, eficiên- Perspectivas: metas e
cia e igualdade, como podem os plane- ba rre i ra s
jadores se opor a ele?
As pesquisas conduzidas por planejado-
Nossas entrevistas revelaram, entre- res nas cidades de Waterloo (1998) e
tanto, que os planejadores de comuni- de Calgary (1998) indicam que a maio-
dades de crescimento lento se mantêm ria das áreas suburbanas acomoda um
céticos sobre os potenciais benefícios do uso misto limitado. Por exemplo, muitas
Novo Urbanismo no desenvolvimento permitem a existência de creches, biblio-
do subúrbio (embora eles apresentem tecas, igrejas, prestadores de serviços,
suas premissas nos documentos). Con- sapateiros, restaurantes, comércio vare-
centram-se na tentativa de impedir uma jista e clínicas médicas, mas não admitem
maior deterioração dos bairros antigos clínicas de recuperação, hospedarias, fi-
e decadentes enquanto administram o leiras de casas geminadas, hospitais, in-
crescimento na periferia. Vêem o “velho dústrias ou supermercados. No entanto,
urbanismo” (isto é, os bairros existentes) algumas comunidades estão retirando
como carente de apoio. Acreditam que usos permitidos de suas listas: por exem-
as pessoas fazem escolhas conscientes plo, em Montreal, o Conselho pode al-
quando compram casas: os fãs dos su- terar o zoneamento residencial para
búrbios querem espaço, um toque rural limitar a instalação de templos de ora-
e separação de outros usos. Nesse cená- ção (Fischler, 2000). 7
rio, os usos mistos estão mais bem situa-
dos no centro urbano. Os planejadores Qual é a mistura apropriada? Sabere-
que mantêm tais concepções se mos- mos quando a encontrarmos? No início
tram cautelosos ao expressá-las, porque da década de 1990, Toronto estabeleceu
temem o desdém dos proponentes do a meta de um emprego para cada 1,5
Novo Urbanismo. Por exemplo, o editor morador (Municipality of Metropolitan

6
Os gurus do movimento, tais como Andres Duany e James Kunstler, são mais intolerantes
ainda, como demonstram de imediato as discussões na lista de e-mail do Pro-Urb.
7
A diversidade étnica traz uma proliferação de pequenas congregações religiosas. Moradores
que descobrem a instalação de uma casa de oração em suas tranqüilas ruas podem não
aceitar o barulho e o aumento de tráfego dela decorrentes.
16 Uso misto na teoria e na prática

Toronto, 1991), mas indicará isso o tipo A Figura 3, por exemplo, mostra uma
de mistura a ser produzido ou os usos a mistura de tipos e tamanhos de casas
serem permitidos? Será que o número em terrenos estreitos, embora o padrão
de armazéns em um bairro é um bom de casas em centro de terreno ainda seja
indicador da mistura comercial e resi- a norma. Em parte, o custo é respon-
dencial (IBI Group, 2000)? Se não for, sável por esse processo (especialmente
qual seria ele? Dada a falta de especifi- nas comunidades que crescem com ra-
cidade em nossas prescrições sobre o uso pidez), da mesma forma que retornos
misto, como podemos estabelecer me- maiores orientam os interesses de de-
tas que nos permitirão saber se atingi- senvolvimento. Todavia, a determinação
mos, com sucesso, os nossos objetivos? dos planejadores em alcançar eficiência
e sustentabilidade claramente acentua
Que grau de mistura estamos vendo a tendência. No entanto, deveríamos
nas comunidades canadenses? Na rea- perceber que, no Canadá, a maioria das
lidade, encontramos evidência de po- novas moradias permanece agrupada
tencial para uma intensidade maior, por tipo e ocupação nos projetos para
potencial relacionado mais à presença os subúrbios e zonas urbanas. A mistura
de lotes menores do que à mistura social. é a exceção, não é a regra.

Figura 3: Mistura “esquelética” em um subúrbio de Calgary.

Como parte da mistura de usos, al- crescente diversidade de usos? A com-


gumas áreas antigas e decadentes apre- posição urbana certamente mudou, só
sentam um número maior de unidades que os usos residenciais e de lazer substi-
residenciais do que apresentavam há 10 tuíram, grandemente, os usos industriais.
anos atrás. Será que isso reflete uma Encontramos uma mistura diferente.
Jill Grant 17

Alguns usos do solo urbano, tais como de novos negócios, residências ou locais
prisões e indústria pesada, não parecem de lazer (Schmandt, 1999). Os distritos
estar bem integrados no tecido urbano. anteriormente decadentes se tornam
As barreiras reguladoras podem estar zonas comerciais e de lazer muito divul-
caindo, mas o mercado prefere um grau gadas para atrair turistas e acomodar os
de segregação de uso. endinheirados (Gottdiener, 1997; Ward,
1998).
O desenvolvimento de áreas já ocu-
padas (infill development) e o uso mis- Figura 4 . Uso misto em uma antiga
to mostraram-se populares em Toronto zona industrial em Toronto.
e Vancouver, onde a imigração maciça
produziu grande crescimento e diferen-
tes populações. Por exemplo, no centro
de Toronto, uma mistura de usos resi-
denciais, empresariais e varejistas está
revitalizando antigos bairros industriais
(Figura 4). O uso misto permite o au-
mento do estoque de moradias, a facili-
tação do deslocamento e a redução de
custos em um mercado residencial limita-
do. Nessas cidades, mais pessoas podem
buscar estilos de vida urbanos, e já exis-
tem bons sistemas de deslocamento para
facilitar a vida sem carros. Ken Green-
berg chamou Toronto de “modelo do
Novo Urbanismo” e deu a entender que
as políticas de impostos canadenses não
incentivam as pessoas a abandonar a
cidade, como ocorre nos EUA (Home-
scaping, 1997). Entretanto, a mistura
afeta, para melhor e para pior, os bairros
antigos e decadentes. A gentrificação
contribui para novas formas de segre-
gação espacial fundamentada na classe.
Ao preencher os espaços abandonados Com sua promessa de caráter e sus-
pela indústria que deixou sua base, a tentabilidade, o Novo Urbanismo for-
mistura facilita a transformação em uma nece uma teoria para justificar o uso
cidade pós-industrial. Confrontados com misto no Canadá atual. O conceito do
a escolha de terrenos vazios ou acres de TOD aparece amplamente em planos
estacionamento em distritos anterior- de cidades maiores, mas tem afetado a
mente produtivos, as autoridades muni- prática de maneira mais lenta. Até mesmo
cipais recebem, de bom grado, projetos o plano de Toronto de intensificação ao
18 Uso misto na teoria e na prática

redor das estações do metrô enfrentou economia de uso misto provou ser inviá-
resistência local. Na maioria das comu- vel na nova cidade suburbana. O con-
nidades, os núcleos de uso misto, com ceito de uso misto aparece em planos
escritórios comerciais e moradias para locais, mas não influencia a prática em
várias famílias se desenvolvem tipica- um mercado não-receptivo.
mente em entroncamentos de autovias:
o fenômeno da “cidade da periferia” Portanto, embora, nos últimos anos,
descrito por Garreau (1991). Os bondes muitas barreiras de engenharia e de pla-
dos subúrbios do início do século XX nejamento tenham caído e planejadores
fornecem um modelo de TOD que mui- e autoridades do desenvolvimento eco-
tos planejadores esperam ver, mas as nômico local recebam bem a mistura, a
realidades dos padrões de propriedade hesitação tem como origem as barreiras
da terra, as preferências dos consumi- culturais que os planejadores não con-
dores e as taxas de crescimento urbano seguem superar com facilidade. As pes-
dificultam a sua implantação atualmente. soas querem segurança, previsibilidade
e tranqüilidade em seus ambientes. Elas
Com o desenvolvimento de subúr- temem a mistura. O sucesso do zonea-
bios projetados em cidades afluentes, mento no século XX reflete essa reali-
Leung (1995) sugere que o resultado dade (Foglesong, 1986; Moore, 1979).
do Novo Urbanismo pode simplesmen- Somente um pequeno segmento da
te ser mais uma expansão pitoresca; o população aceita os riscos do investi-
autor observa que a mistura faz parte mento em projetos de uso misto. Quan-
do pacote do enclave fechado e privile- do os custos são modestos, os projetos
giado. Encontramos poucos exemplos de uso misto têm grande dificuldade em
de “novas cidades” de bom tamanho e sair do papel. Enquanto a experiência
da gama de opções sugerida pelo estilo mostrar que o uso misto diminui a absor-
TND do Novo Urbanismo. Em função ção pelo mercado, os construtores e os
do limitado mercado para a mistura em incorporadores o evitarão. Apesar de as
densidades altas, esses projetos só alcan- barreiras culturais permanecerem, as
çam o sucesso em áreas de crescimento barreiras econômicas resultantes limita-
e custo altos. Essas situações não se con- rão a experiência com o uso misto aos
figuram em boa parte do Canadá. Em poucos mercados que apresentarem al-
áreas menos afluentes, os construtores guma chance de sucesso.
enfeitam as “magrelas casas de início”
com toques arquitetônicos do Novo O uso misto é um meio ou um fim?
Urbanismo. As lojas da rua principal dos Seus proponentes o citam como um
novos subúrbios, como McKenzie Towne meio para a integração social, o vigor
(Calgary), dão a impressão de uso misto, econômico e a melhora ambiental; con-
porém o segundo andar é enfeitado tudo, a experiência canadense com o
com janelas falsas (Figura 5). O incor- uso misto é desencorajadora. Os distri-
porador excluiu apartamentos e escri- tos de uso misto estão ficando cada vez
tórios sobre o espaço varejista porque a mais segregados, e o potencial de compra
Jill Grant 19

não melhorou. Os esforços para misturar portamentos sociais mudam, nós alte-
usos não estancaram a perda de vitali- ramos as cidades onde vivemos. A mis-
dade econômica da maioria das cidades tura de usos reflete vários fatores, tais
canadenses. A terra está sendo consu- como as crenças culturais, os meios de
mida com muita rapidez, a quilometra- produção, a tecnologia do transporte, a
gem percorrida está aumentando e não tecnologia da segurança e o nível de ri-
vemos um fim para o consumismo. Em queza. Assim como a cidade industrial
suma, estamos obtendo pouco sucesso era diferente da cidade medieval, a cidade
nos objetivos propostos com o uso misto. pós-industrial será diferente da cidade
Mesmo assim, os planejadores continuam industrial. Como planejadores, nós ava-
a defendê-lo. Talvez o considerem intrin- liamos as práticas atuais em relação aos
secamente bom apesar de suas conse- objetivos da comunidade e ajustamos
qüências. políticas e regulamentos para ajudar
moradores a alcançar seus objetivos. A
As cidades são artefatos dinâmicos experiência canadense com a implanta-
moldados pela intervenção humana. ção do uso misto serve como um feed-
Como nossos valores culturais e com- back importante nesse processo.

Figura 5. Frentes falsas em lojas de McKenzie Towne, um subúrbio de Calgary.


20 Uso misto na teoria e na prática

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a meus dois assis- planejamento de parque industrial.


tentes de pesquisa, que facilitaram este Devo muito aos dois. Agradeço também
trabalho. Jaime Orser trabalhou nos úl- a meus colegas que leram versões iniciais
timos dois anos no estudo das cidades deste trabalho e aos críticos anônimos
canadenses e preparou o mapa. Darrell que me obrigaram a detalhar e a eluci-
Joudrey participou da pesquisa sobre dar meus argumentos.

Referências

1,500-ACRE HOUSING PROJECT SET FOR TO- BERRIDGE L EWINBERG GREENBERG D ARK
RONTO AREA. Financial Post Daily, Cornell, GABOR; COSBURN PATTERSON WARDMAN ;
11 Oct. 1996. p. 5. GLATTING JACKSON KERCHER ANGLIN LOPEZ
RINEHART. The Integrated Community:
ADLER, J. The new burb is a village. A Study of Alternative Land Develop-
Newsweek, 26 Dec. 1994. p. 109. ment Standards. Ottawa: Canada Mort-
gage and Housing Corporation, 1996.
AMERICAN PLANNING ASSOCIATION. Senate
committee may consider community BOGDAN, J. The design of Queensville
character act. Disponível em: http:// new town. Plan Canada, 32(3), p. 14-
cw2k.capweb.net/planning>. 2001. 15, 1992.

ANDERSON , K. Oldfangled new towns. BRESSI, T. Planning the American dream.


Time, 20 May 1991. p. 52-55. In: Katz, P. (Ed.). The New Urbanism.
New York: McGraw-Hill, 1994.
BENTLEY MAYS, J. The high priest of New
Urbanism. The Globe and Mail, 8 Mar. CALTHORPE, P. The Next American Me-
1997. p. C17. tropolis. New York: Princeton Architec-
tural Press, 1993.
BERNICK, M.; CERVERO, R. Transit Villages
in the 21st Century. New York: McGraw- CAULFIELD, J. City Form and Everyday
Hill, 1997. Life: Toronto’s Gentrification and Criti-
cal Social Practice. Toronto: University
B ERRIDGE L EWINBERG GREENBERG L TD . of Toronto Press, 1994.
Guidelines for the Reurbanisation of
Metropolitan Toronto. Toronto: Munici- CHIDLEY, J. The new burbs. Maclean’s,
pality of Metropolitan Toronto, 1991. 21 July 1997. p. 16-21.
Jill Grant 21

CITY OF CALGARY. Calgary Transportation DEAR, M. Understanding and overcom-


Plan. Calgary: Author, 1995a. ing the NIMBY syndrome. Journal of the
American Planning Association, 58(3),
__________. Sustainable Suburbs Study: p. 288-300, 1992.
Creating More Fiscally, Socially and
Environmentally Sustainable Commu- DUANY, A.; PLATER-ZYBERK, E. The second
nities. Calgary: Planning and Building coming of the American small town. Plan
Department, 1995b. Canada, 32(3), p. 6-13, 1992.

__________. Summary Report: Transit- __________. The neighborhood, the dis-


oriented Suburban Community Design. trict and the corridor. In: KATZ, P. (Ed.).
A Survey of Municipalities in Canada The New Urbanism. New York: McGraw-
and the USA. Calgary: Planning and Hill, 1994.
Building Department, New Communi-
ties Planning, 1998. __________. Neighborhoods and suburbs.
Design Quarterly, 164, p. 10-23, 1996.
CITY OF TORONTO. Tracking the Kings: A
Monitor Statement on the King-Parlia- EVERETT-GREEN, R. Model cities for the
ment and King-Spadina Reinvestment next millennium. The Globe and Mail,
Initiative. Toronto: City of Toronto Urban 31 May 1997. p. C21.
Development Services, 1998.
EWING, R. Best Development Practices:
CITY OF WATERLOO. West side nodes zon- Doing the Right Thing and Making
ing study discussion paper. Waterloo, ON: Money at the Same Time. Chicago: APA
City of Waterloo Development Services, Planners Press, 1996.
1998.
FISCHLER, R. More on Storefront Churches.
CLARK-MADISON, M. Urban on the rocks: Disponível em: <planet@listserv.acsu.
Neighborhood juries still out on smart buffalo.edu>. 2000.
growth The Austin Chronicle, 18(35).
Disponível em: <http://www.auschron. FOGLESONG, R. Planning the Capitalist
com/issues/_vol18/issue35/pols.htm>. City: The Colonial Era to the 1920s. Prin-
1999. ceton, NJ: Princeton University Press,
1986.
COLLIER, R. Contemporary Cathedrals.
Montreal: Harvest House, 1974. GARREAU, J. Edge City: Life on the New
Frontier. New York: Anchor Books, 1991.
CONGRESS FOR THE NEW URBANISM. Smart-
ening up Growing Smart. Disponível GORDON, D.; FONG, S. Designing St. Law-
em: <http://www.cnu.org/cnu_updates/ rence. In: GORDON, D. (Ed.). Directions
Smar tening-notes-wkshops.pdf>. for new Neighbourhoods: Learning from
2001. St. Lawrence. Conference proceedings
22 Uso misto na teoria e na prática

(unpaginated). Toronto: Ryerson Poly- rebels who call themselves the New Ur-
technical Institute, School of Urban and banists. Financial Post, 10(25), p. 24-
Regional Planning, 1989. 26, 1997.

GOTTDIENER, M. The theming of America: HORNBLOWER, M. Not in my backyard you


Dreams, Visions, and Commercial Spaces. don’t. Too often, that’s the answer to a
Boulder, CO: Westview Press, 1997. community in need. Time, 27 June 1988.
p. 58-59.
GOVERNMENT OF CANADA. Canada’s Green
Plan. Ottawa: Environment Canada, HUME, C. They dare to critique our cities:
1990. Designer wants suburbs that work. To-
ronto Star, 31 Aug. 1991. p. K10.
GOVERNMENT OF ONTARIO. Making Choices:
Alternative Development Standards. HUTCHINSON , B. Good porches make
Guideline, Planning Reform in Ontario. good neighbors. (A back-to-basics move-
Toronto: Queen’s Printer for Ontario, ment called New Urbanism is threatening
1995. the suburban model). Canadian Busi-
ness, 26 June 1998. p. 120-123.
__________. Breaking Ground: An Illus-
tration of Alternative Development HYGEIA CONSULTING SERVICES; REIC LTD.
Standards in Ontario’s New Communi- Changing Values, Changing Communities:
ties. Toronto: Queen’s Printer for On- A Guide to the Development of Healthy,
tario, 1997. Sustainable Communities. Ottawa: Can-
ada Mortgage and Housing Corpora-
GRANT, J. Next generation neighbour- tion, 1995.
hoods: Finding a focus for planning res-
idential environments. Canadian Journal IBI GROUP. Greenhouse Gas Emissions
of Urban Research, 6(2), p. 111-134, from Urban Travel: Tool for Evaluating
1997. Neighbourhood Sustainability. Ottawa:
Canada Mortgage and Housing Corpo-
GRANT, J.; JOUDREY, D.; KLYNSTRA, P. Next ration and Natural Resources Canada,
Door to the Factory: Housing People in 2000.
Modern Industrial Parks (Report). Ottawa:
Canada Mortgage and Housing Corpo- INTRODUCING the invisible garage: The
ration, External Research Program, 1994. New Urbanists are mounting a savage
attack on subdivisions. Toronto Life, Oct.
GREENBERG, K.; GABOR, A. The integra- 1996, p. 77-80.
tion of urban design and planning. Plan
Canada, 32(3), p. 26-28, 1992. ISIN , E.; TOMALTY, R. Resettling Cities:
Canadian Residential Intensification Ini-
HOMESCAPING: there’s a revolution occur- tiatives. Ottawa: Canada Mortgage and
ring in town planning and it’s led by Housing Corporation, 1993.
Jill Grant 23

JACOBS, J. The Death and Life of Great MCMAHON , E. Cooperation instead of


American Cities. New York: Vintage confrontation (from Planning Commis-
Books, 1961. sioners Journal, 33). Disponível em:
<http://www.plannersweb.com/trends/_
KATZ, P. Preface. In: __________. (Ed.). 1coop._html>. 1999.
The New Urbanism. New York: McGraw-
Hill, 1994. MOLINARO, J. Agree on how to disagree or
how to have useful discussions (from Plan-
K ELBAUGH , D. (Ed.). The Pedestrian ning Commissioners Journal, 12). Dis-
Pocket Book: A New Suburban Design ponível em: <http://www.plannersweb.
Strategy. New York: Princeton Architec- com/_trends/__1coop. html>. 1993.
tural Press, 1989.
MOORE, P. Zoning and planning: The
__________. Common Place: Toward Toronto experience, 1904-1970. In:
Neighborhood and Regional Design. ARTIBISE, A.; STELTER, G. (Ed.). The Usa-
Seattle: University of Washington Press, ble Urban Past. Toronto: Macmillan,
1997. 1979.

KRIEGER, A. Andres Duany and Elizabeth MUNICIPALITY OF METROPOLITAN TORONTO.


Plater-Zyberk: Towns and Town Making Housing Intensification (Metropolitan
Principles. New York: Harvard Graduate Plan Review Report No. 4). Toronto:
School of Design, 1991. Author, 1987.

LEUNG, H. L. A new kind of sprawl. Plan __________. Guidelines for the Reurban-
Canada, 35(5), p. 4-5, 1995. ization of Metropolitan Toronto. Toronto:
Author, 1991.
LEWINBERG, F. Reurbanization: The con-
text for planning growth. Plan Canada, __________. The Liveable Metropolis
33(2), p. 10-14, 1993. (Municipality of Metropolitan Toronto,
Draft Plan). Toronto: Author, 1992.
MACDONALD, D.; CLARK, B. New Urban-
ism in Calgary: McKenzie Towne. Plan NATIONAL ROUNDTABLE ON THE ENVIRON-
Canada, 35(1), p. 20-22, 1995. MENT AND THE ECONOMY. The Road to
Sustainable Transportation in Canada.
MARTIN, L.; FILION, P.; HIGGS, E. S. A sur- Ottawa: Author, 1997.
vey of the preferred literature of Canadian
planners. Plan Canada, 28(1), p. 6-11, NELESSEN, A. C. Visions for a New Ameri-
1988. can Dream: Process, Principles, and an
Ordinance to Plan and Design Small
MCINNES, C. Drawing happiness into the Communities. Chicago: APA Planners
blueprints. The Globe and Mail, 27 Apr. Press, 1993.
1992. p. A17.
24 Uso misto na teoria e na prática

O’NEILL, D. J. The Smart Growth Tool SCHMANDT, M. The importance of history


Kit. Washington, DC: Urban Land Insti- and content in the postmodern urban
tute, 2000. landscape. Landscape Journal, 18(2),
p. 152-165, 1999.
PAEHLKE, R. C. The Environmental Effects
of Urban Intensification. Toronto: Ontario SEWELL, J. The Shape of the City: Toron-
Ministry of Municipal Affairs, 1991. to Struggles with Modern Planning. To-
ronto: University of Toronto Press, 1993.
PAVED paradise. Fifteen ways to fix the sub-
urbs. Newsweek, 15 May 1995. p. 40-53. TOMALTY, R. The Compact Metropolis:
Growth Management and Intensification
PENDALL, R. Opposition to housing NIMBY in Vancouver, Toronto, and Montreal.
and beyond. Urban Affairs Review, 35(1), Toronto: ICURR Publications, 1997.
p. 112-136, 1999.
TRANSPORTATION ASSOCIATION OF CANADA.
POMEROY, S. Professional Attitudes To- Achieving livable cities (Briefing). Ottawa:
wards Alternative Development Stand- Author, Nov. 1998.
ards. Toronto: ICURR Publications, 1999.
URBAN LAND INSTITUTE. Mixed-use Devel-
PORTE, D. Toronto – an urban design opment Handbook. Washington, DC:
approach (from Urban Design Quarterly, Author, 1987.
66). Disponível em: <http://_ww2.rudi.
net/ej/udq/66/internat_1.htm>. 1998. __________. Smart Growth: Economy,
Community, Environment. Washington,
ROYAL COMMISSION ON THE FUTURE OF THE DC: Author, 1998.
TORONTO WATERFRONT. Regeneration: To-
ronto’s Waterfront and Sustainable City. VAN DER RYN, S.; CALTHORPE, P. Sustain-
Toronto: Ministry of Supply and Services able Communities: A New Design Syn-
Canada, 1992. thesis for Cities, Suburbs and Towns. San
Francisco: Sierra Club, 1986.
RURAL AND S MALL T OWN RESEARCH AND
STUDIES P ROGRAMME. Guidelines for ac- VISCHER, J. Community and privacy: plan-
tion: Understanding Housing-related ners’ intentions and residents’ reactions.
NIMBY. Sackville, NB: Mount Allison Plan Canada, 23(4), p. 112-121, 1984.
University, 1992.
WARD, S. V. Selling Places: The Marketing
SAUER, L. Creating a “signature” town: and Promotion of Towns and Cities, 1850-
The urban design of Bois Franc. Plan 2000. London: E&FN Spon, 1998.
Canada, 34(9), p. 22-27, 1998.
WARSON , A. Born-again urbanism in
SAUNDERS, D. Ye new Olde town. The Canada. Progressive Architecture (P/A),
Globe and Mail, 8 Mar. 1997. p. C17. p. 51-52, Nov. 1994.
Jill Grant 25

WIGHT, I. New Urbanism vs. conventional DEVELOPMENT [Brundtland Commission].


suburbanism. Plan Canada, 35(5), p. 20- Our Common Future (Report). New
22, 1995. York: Oxford University Press, 1987.

__________. In search of grander humane ZUKIN, S. Loft Living: Culture and Capi-
visions. Plan Canada, 36(4), p. 3-4, 1996. tal in Urban Change. Rutgers, NJ: Rutgers
WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT AND University Press, 1989.

Resumo Abstract
Este artigo investiga a teoria e a prática This article explores the theory and
do uso misto desde sua origem, nas críti- practice of mixed use, from its origins in
cas de Jane Jacobs, às recentes prescri- the critiques of Jane Jacobs to the re-
ções do Novo Urbanismo. Aproveitando cent prescriptions of New Urbanism.
as experiências no Canadá, onde o uso Drawing on experiences in Canada,
misto já tinha sido firmemente estabele- where mixed use has become firmly es-
cido como um princípio de planejamen- tablished as a key planning principle, we
to básico, nós identificamos alguns dos identify some of the problems and barriers
problemas e obstáculos encontrados por encountered in seeking mix in several
aqueles que propõem o uso misto em cities. We find that mixed use promises
várias cidades. Descobrimos que o uso economic vitality, social equity, and en-
misto promete vitalidade econômica, vironmental quality, but it cannot readily
igualdade social e qualidade ambiental, deliver such benefits in a context where
mas não consegue proporcionar tais be- cultural and economic forces promote
nefícios prontamente em um contexto em separation of land uses.
que as forças econômicas e culturais pro-
movem a separação dos usos do solo.

Palavras-chave : uso misto; Canadá; Keywords : mixed use; Canada; land


usos do solo. uses.

Jill Grant é professora e diretora da Escola de Planejamento da Universidade de


Dalhousie (Canadá). Sua pesquisa é focada em ambientes residenciais e no con-
texto cultural do planejamento comunitário. É editora do Plan Canada, o periódico
do Instituto Canadense de Planejadores (CIP, em inglês), e integra os conselhos
editoriais do Journal of the American Planning Association e da revista Landscape
and Urban Planning. Seu artigo sobre usos mistos ganhou um CIP Award for Impact
on the Profession.
Legado incerto: os estádios
olímpicos de Sydney

Glen Searle

Por ter sediado os Jogos Olímpicos de neiras básicas. Eles competiriam com
2000, Sydney recebeu um legado de estádios do estado preexistentes, todos
estádios grandes e modernos que su- construídos recentemente ou ampla-
prirão as necessidades esportivas pós- mente modernizados nos últimos 15
olímpicas durante décadas. Esse legado anos, e enfrentariam a realidade das li-
sempre foi menos importante do que o gas desportivas nacionais que, por razões
objetivo básico de fornecer instalações históricas e culturais locais, atraem pú-
para acomodar, com conforto, os pró- blicos pequenos a jogos em Sydney. São
prios jogos. Mas, para obter a aprova- muito poucos os grandes eventos nos
ção dos moradores, o governo do estado estádios para compensar a diminuição
de New South Wales, provedor dos lo- de receita. Essa situação foi preponde-
cais e das instalações olímpicas, decla- rante para forçar os governos locais a
rou que essa herança lhes traria grandes buscar propostas para um desenvolvi-
benefícios. A situação pós-olímpica ad- mento urbano de porte ao redor dos
quiriu especial importância porque os dois estádios olímpicos. Foi elaborado
dois novos estádios olímpicos exigiam o esboço de um plano diretor para o
um financiamento significativo do setor Parque Olímpico e foram examinadas
privado, que, por sua vez, dependia de propostas de desenvolvimento.
um número substancial de espectado-
res após o encerramento dos Jogos. Este artigo analisa o processo de
desenvolvimento dos estádios olímpicos
O contexto local ameaçava a viabi- de Sydney e suas conseqüências pós-
lidade desses dois estádios de duas ma- olímpicas. Ao fazê-lo, ilustra várias das

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIX, Nos 1-2, 2005, p. 1-26
2 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

novas preocupações presentes no campo competição com uma infra-estrutura do


do planejamento, entre elas os possíveis estado já existente e o modo como o de-
riscos de parcerias público-privadas no senvolvimento urbano pode ser direcio-
desenvolvimento de infra-estrutura urba- nado por tentativas posteriores para
na especializada, os problemas relativos compensar os custos de infra-estrutura
a tais parcerias em situações em que há especializada.

As cidades e a construção de estádios

Quase todas as análises acadêmicas de rios dos subsídios (Baade, 1996; O’Kaer,
desenvolvimento de cidades e estádios 1974). Todavia, a construção de estádios
têm sido feitas a partir de exemplos dos com subsídios das cidades tornou-se
EUA. O contexto norte-americano en- mais importante porque, desde a dé-
volve ligas desportivas nacionais com cada de 1970, a ênfase em programas
públicos imensos em todos os jogos, e políticos locais se deslocou da redistri-
as franquias de ligas móveis são comuns. buição para o desenvolvimento econô-
Entretanto, a experiência norte-ameri- mico (Euchner, 1993). Nesse período,
cana fornece lições para as análises de surgiu uma lógica de desenvolvimento
cidades e estádios da Europa e de outras mais ampla. Enquanto os benefícios do
regiões desenvolvidas. desenvolvimento econômico decorren-
tes da presença de um time na cidade
Um tópico capital diz respeito à ex- podem não ser quantificáveis, “cidades
tensão do desenvolvimento econômico que possuem times e os perdem prova-
gerado pelo estádio. Em geral, essa é a velmente enfrentarão problemas com
principal razão apresentada para justifi- sua imagem” (Zimbalist, 1992).
car os grandes subsídios, pagos por con-
tribuintes, usados na construção de De modo mais geral, as cidades têm
grandes estádios das cidades dos EUA progressivamente incorporado a cons-
que visam manter ou atrair franquias trução de estádios como um compo-
móveis de times de beisebol, futebol e nente central de estratégias econômicas
basquete (Rich, 2000a). No entanto, a locais e de desenvolvimento urbano
literatura acadêmica tem raramente mais amplas. Por exemplo, Indianápolis
identificado os impactos positivos do adotou uma estratégia de desenvolvi-
desenvolvimento econômico gerados mento econômico destacando locais de
pela construção de estádios nos EUA, esportes no centro, procedimento que,
em especial se levados em considera- no entanto, não produziu mudanças sig-
ção os subsídios oferecidos pelas cidades nificativas no desenvolvimento econô-
para os novos estádios (Baade, 1996; mico real (Rosentraub et al., 1994). Em
Rich, 2000a). Os donos de equipes e Cleveland, o complexo formado por um
os jogadores são os principais beneficiá- novo estádio passou a ser visto como
Glen Searle 3

parte da estratégia de revitalização do Nesse sentido, o papel das elites das


centro da cidade (Sidlow e Henschen, cidades pode ser vital. Rich (2000b)
2000). Para o grupo cívico Renaissance, sugere que a construção de estádios atrai
de Detroit, o novo estádio era parte in- políticos porque a possibilidade de ga-
tegrante da reconstrução da cidade rantir uma franquia de esportes é das
(ibid.). poucas coisas que a elite econômica
deseja; muitas vezes, os políticos de-
Inversamente, ao desviarem impos- monstram muito menos entusiasmo pela
tos que poderiam ter sido gastos na resolução das outras necessidades da
infra-estrutura social e nos serviços, os cidade. Para garantir a construção do
subsídios para os estádios podem causar estádio, a cooptação da mídia pode ser
impactos negativos no desenvolvimento fundamental também (Rich, 2000b).
urbano. Em Cleveland, a abertura do
Sports Complex recebeu isenção de im- Se examinarmos a relevância da
postos, que, de outra forma, teriam ido experiência dos EUA para a construção
para escolas e para o governo local (Bar- de estádios em Sydney e em outros luga-
timole, 1994). Em Birmingham (Grã- res, precisamos levar em consideração
Bretanha), o financiamento pela cidade o contexto particular da competição dos
da National Indoor Arena produziu efei- estádios entre as cidades americanas.
tos similares (Beazley, Loftman e Nevin, Em geral, nos EUA, as ligas desportivas
1997). constituem monopólios em que a oferta
de times é menor do que a demanda
Tal como sugerido, a provisão de sub- (Zimbalist, 2000, p. 57). Além disso, as
sídios para a construção de estádios nos franquias de times são comerciáveis e,
EUA tem sido um processo muito ques- portanto, potencialmente móveis entre
tionado. Nesse aspecto, as relações entre as cidades. Esses fatores produzem as
diferentes grupos de interesse, políticos condições para as cidades disputarem
e proprietários são cruciais (Rich, 2000a). franquias por meio de subsídios para
Como Sidlow e Henschen argumentam, novos estádios. Além disso, na competi-
a decisão de construir um estádio com ção por estádios nos EUA, outros fato-
recursos públicos representa res de caráter mais geral devem ser
considerados. Por exemplo, a nova tec-
muitas vezes a conclusão de anos de nologia permitiu que a construção de
reivindicações feitas por diversos gru- estádios maximizasse oportunidades
pos de interesse, ou seja, diversas para geração de receitas provenientes
propostas vagando na conjuntura de suítes de luxo, camarotes do clube,
política básica, políticos preocupados concessões, fornecimento de comida e
com suas reputações e legados, e bebida, símbolos, estacionamento, pro-
acontecimentos que criam uma opor- paganda e atividades temáticas. Os
tunidade para uma idéia se tornar um novos estádios podem incorporar essas
fato concreto. (Sidlow e Henschen, características e assim obter uma vanta-
2000, p. 168) gem imediata sobre instalações mais
4 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

antigas (ibid.). O potencial para uma rápi- cente, basicamente para abrigar um es-
da obsolescência decorrente de mudan- túdio de televisão. Os 150 milhões de
ças nas preferências do público a respeito dólares australianos em capital de con-
das “maneiras de assistir” aos jogos é tam- trapartida foram complementados por
bém significativo. Os estádios cobertos e 100 milhões de dólares australianos
a grama artificial são agora menos po- pagos pela Seven em troca de 25 anos
pulares do que os estádios abertos tradi- de direito de venda de ingressos, de as-
cionais (Rich, 2000b, p. 224). sentos especiais e da exploração do
nome e dos símbolos (Maiden, 2001).
Como mostrarão os estudos de caso O estádio foi inaugurado em 2000. To-
de Sydney neste artigo, na Austrália, os davia, com o malogro da captação de
tópicos relacionados a subsídios públi- atividades fora da temporada e uma
cos, competição entre estádios e desen- lotação menor do que a esperada, a
volvimento urbano têm se destacado receita ficou bem abaixo das expectati-
nos projetos de estádios recentes. Os li- vas. Seu primeiro ano financeiro gerou
mites políticos aos subsídios públicos uma receita de 22,5 milhões de dólares
também foram amplamente discutidos. australianos em vez dos 55 milhões que
O maior estádio da Austrália construído tinham sido previstos (ibid.). Houve
nos últimos anos, além do principal es- uma perda de 41,2 milhões de dólares
tádio olímpico de Sydney, é o estádio australianos anterior ao pagamento dos
Colonial, em Melbourne, com 52 mil impostos, e o valor do estádio foi de-
assentos. Abrangendo 220 hectares, foi preciado de 220 milhões para 156 mi-
inicialmente concebido como um está- lhões (Maiden e Milovanovic, 2001).
dio para futebol e rúgbi financiado pelo Para evitar a liquidação, além de uma
estado (Maiden, 2001) e como primei- remuneração anual futura aos proprie-
ro projeto do plano de revitalização das tários, a Seven pagou 75 milhões de
Docklands pelo governo de Victoria. O dólares australianos para arrendar e
governo alegava que uma revitalização administrar o estádio durante 23 anos
integrada da área ao redor do estádio (Sydney Morning Herald, 26 out.
seria essencial para a Austrália (Office 2001). Por outro lado, o principal está-
of Major Projects, 1997). Um plano al- dio de Melbourne, o Melbourne Cricket
ternativo para o estádio foi elaborado, Ground (MCG), está sendo remodelado
e a garantia de 30 jogos da Liga de Fu- para os Jogos do Commonwealth de
tebol da Austrália (AFL) todos os anos 2006, pelo governo de Victoria, a um
permitiu que o projeto fosse financiado custo de 400 milhões de dólares aus-
por grupos privados (Chandler, 1999). tralianos, obra que aumentará a capa-
O consórcio formado por investidores cidade de 96 mil para pouco mais de
particulares, entre eles a News Corp e a 100 mil espectadores (Australian Finan-
rede nacional de televisão Seven, que cial Review, 15 ago. 2001). Essa situa-
detinha os direitos de transmissão da ção de perdas do setor privado diante
AFL, ganhou a concorrência para cons- da revitalização levada a cabo com fi-
truir o estádio e regenerar a área adja- nanciamento estatal de estádios que
Glen Searle 5

competem um com o outro se asseme- Financial Review, 19 out. 2001). Em


lha às histórias dos estádios olímpicos de Canberra, o custo da renovação do Es-
Sydney descritas a seguir. tádio Bruce partiu de uma estimativa
inicial de 27,3 milhões de dólares aus-
No caso do estádio Colonial, o setor tralianos, com uma contribuição de 12,3
privado teve de arcar com os custos. Por milhões do governo nacional, e atingiu,
outro lado, as reformas de dois estádios ao final, 60 milhões de dólares australia-
relacionados aos Jogos Olímpicos, em nos, com um passivo dos contribuintes
Adelaide e Canberra, envolviam subsí- do território totalizando 64 milhões
dios do governo e geraram seus próprios (Harris, 2001). As expectativas de que
custos políticos. Ambas as reconstruções haveria pelo menos seis mil assentos co-
envolviam excesso de gastos na refor- bertos extras foram frustradas, tendo
ma dos estádios para as competições de sido construídos apenas 1.600. O fiasco
futebol dos Jogos Olímpicos de 2000. do Estádio Bruce foi um fator prepon-
Em Adelaide, os custos da renovação derante na demissão do Primeiro Minis-
do Estádio de Futebol de Hindmarsh tro logo após os Jogos Olímpicos (Sydney
subiram de 8,5 milhões de dólares aus- Morning Herald, 18 out. 2000). Tais re-
tralianos, previstos inicialmente, para 30 percussões políticas foram evitadas na
milhões, arcados pelo governo do es- construção das instalações olímpicas de
tado (Weekend Australian, abr. 2000, Sydney, embora, como veremos a seguir,
p. 22-23). Como conseqüência, ocorre- elas também tenham enfrentado suas
ram as demissões do ministro de Turismo próprias dificuldades.
e do secretário de Gabinete (Australian

O desenvolvimento da baía de Homebush e os


estádios olímpicos
Em 1993, Sydney venceu a disputa mo” e seguindo o exemplo dos governos
para sediar os Jogos Olímpicos de 2000. da Grã-Bretanha (Thatcher) e dos EUA
A proposta para os Jogos Olímpicos (Reagan), o novo governo acabou com
basicamente propunha novos estádios várias empresas estatais, inclusive aba-
e outros locais de instalações. As princi- tedouros e fábricas de tijolos na baía de
pais instalações seriam construídas no Homebush.
local de um abatedouro público de 760
hectares na baía de Homebush, perto A revitalização do local da baía de
do braço do rio Parramatta no porto de Homebush, que abrigava também um
Sydney, a 14 km do centro da cidade grande e antigo arsenal federal, fora pro-
(Figura 1). O local ficara disponível com posta em vários planos de governo do
a eleição de um governo estadual neoli- início da década de 1970 (Homebush
beral (Liberal-National) em 1988. Como Bay Corporation and Property Services
parte de uma filosofia de “estado míni- Group, 1994). Em 1973, o governo in-
6 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

vestigou possíveis locais para instalações do arsenal), os estudos do governo cria-


de esportes internacionais em Sydney, ram opções de uso para o local. Nas
então restritos ao antigo Sydney Cricket duas opções, foram incluídas áreas de
Ground (SCG). A baía de Homebush esportes e exibições, de uso industrial e
foi selecionada por vários motivos, entre de parque. Em 1983, o relatório de uma
eles seu tamanho e sua localização me- consultoria recomendava a baía de
tropolitana central, a predominância de Homebush como local para a primeira
propriedade pública e sua relativa falta indústria de tecnologia de ponta de
de desenvolvimento. O plano elaborado Sydney e para um parque empresarial
para o governo propunha usos esporti- de ponta. Isso levou o governo a trans-
vos internacionais em dois locais. Em formar as áreas vazias no terreno dos
1982, baseados na possibilidade do fe- abatedouros no parque tecnológico Aus-
chamento do abatedouro e da transfe- tralia Centre, sob administração do setor
rência da prisão de Silverwater (ao lado privado.

Figura 1: Estádios de Sydney e centros de esportes mencionados no texto


Glen Searle 7

Em 1996, o Departamento de Plane- Services Group, 1994). A estratégia in-


jamento elaborou um esboço do Plano cluía o estabelecimento de um complexo
Ambiental Regional (Homebush Bay de esportes central com um estádio, um
Corporation and Property Services centro de atletismo e um parque aquá-
Group, 1994). Além de destinar quase tico com capacidade para acomodar as
a metade do local a um parque, esse principais competições internacionais,
projeto incorporaria o Parque Bicenten- além de instalações recreativas adicio-
nial, que, na época, estava sendo cons- nais. As instalações da Royal Agricultural
truído pelo governo em terras públicas Society seriam transferidas de uma zona
residuais a leste dos abatedouros. Uma central antiga e decadente para as pro-
zona central de esportes foi criada no ximidades do complexo de esportes da
que seria o limite sul do Parque Olímpi- cidade central e passariam a fazer parte
co, onde recentemente fora construído de uma zona central de exibições e de
um centro de esportes do governo. A esportes. Foi proposta a construção de
área para a vila de esportes foi sugerida moradias no local do arsenal e ao longo
em dois locais diferentes nas proximi- da margem ocidental da baía. A quan-
dades. Os usos industriais (inclusive o tidade de solo industrial incluído era sig-
Australia Centre) foram destinados para nificativamente maior do que a do plano
o centro do local e ao longo da mar- de 1988. Juntamente com a designa-
gem ocidental da baía de Homebush. ção de duas áreas de comércio e varejo
Dois anos depois, em 1988, o estado adjacentes à zona de esportes, isso visa-
preparou um plano para a sua malsuce- va à geração de retorno financeiro para
dida proposta para sediar os Jogos Olím- o governo, de acordo com a filosofia de
picos de 1996. Reduziu a quantidade venda maciça de bens estatais caracte-
de áreas industriais e de parques prevista rística de seu viés neoliberal. Em 1990,
no plano de 1986, aumentou significati- foi concluído um plano diretor que in-
vamente as áreas destinadas a esportes corporava elementos-chave da estraté-
(atualmente zonas de esportes e de exi- gia de 1989, entre eles se destacando a
bições) e incluiu uma grande área de mo- presença de locais para os principais es-
radias perto da principal zona de esportes. portes internacionais, de novas instala-
Tudo isso refletia o fato de que a pro- ções para a Royal Agricultural Society e
posta privilegiava a baía de Homebush de um centro de comércio/varejo.
como área principal para locais de es-
portes e acomodações. Para ajudar a vencer a disputa pelos
Jogos Olímpicos de 2000, o governo do
O governo começou, então, a prepa- estado começou a construir, em tempo
rar uma estratégia para que Sidney ven- para a apresentação da candidatura, um
cesse a disputa pelos Jogos Olímpicos de centro aquático internacional para as
2000. Em 1989, foi elaborada uma es- competições de natação e salto orna-
tratégia de desenvolvimento para a re- mental e um estádio para as provas de
gião da baía de Homebush e cercanias atletismo (utilizável também, durante os
(Homebush Bay Corporation e Property Jogos, como uma pista de aquecimento)
8 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

no local do abatedouro. O antigo cen- um maior desenvolvimento comercial/


tro de esportes do governo dispunha de varejista.
um estádio de hóquei e de basquete e
de outros locais para esportes em am- As novas instalações a serem cons-
bientes fechados, também incorporados truídas para os Jogos seriam o principal
à proposta para os Jogos Olímpicos. Em estádio olímpico, um coliseu (que seria
1992, o plano diretor foi especialmente replanejado como o SuperDome para
revisado para incorporar as exigências os principais eventos em ambientes fe-
da proposta de Sydney para sediar os chados), um pequeno campo ao ar livre
Jogos Olímpicos de 2000 como uma e locais fechados que, no fim, abrigariam
opção para o desenvolvimento. Essa foi o Royal Agricultural Show em Sydney,
a conclusão de uma década de planos um complexo de quadras de tênis e
de reformas para o maior local impro- uma área para a prática de arco e flecha.
dutivo de Sydney. Todos eles (com ex- A proposta também incluía um velódro-
ceção do de 1983) continham áreas mo na baía de Homebush, que, ao final,
para as principais modalidades de espor- foi construído em Bankstown. Propu-
tes como um elemento central associa- nha utilizar os já existentes Exhibition
do a várias combinações de indústrias, Centre (Centro de Exibições) e Enter-
parques e moradias. tainment Centre (Centro de Lazer) no
Darling Harbour para vários eventos em
Na ocasião, Sydney venceu a dis- ambientes fechados. As novas instala-
puta pelos Jogos Olímpicos, e o plano ções para competições de remo, eqües-
diretor foi o ponto de partida para o tres, de vôlei de praia, de tiro ao alvo e
complexo olímpico na baía de Home- de mountain bike seriam construídas em
bush. A vitória trouxe implicações signi- outras partes de Sydney. A transferên-
ficativas para a revitalização da baía. Ela cia das instalações da Royal Agricultural
impulsionou a reforma em uma escala Society para a baía de Homebush libe-
que provavelmente não seria possível rou suas antigas instalações no centro
de outra maneira. Sem os Jogos Olímpi- da cidade. Mais tarde, naquela mesma
cos, é quase certo que uma nova linha década, esse local seria oferecido, com
de trem para a baía de Homebush não sucesso, e mediante vultuosos subsídios
teria sido construída. A vitória direcio- do governo, à empresa Fox Studios,
nou a reforma para a construção de lo- para que instalasse aí seu primeiro estú-
cais olímpicos, de uma grande área dio de produção fora dos EUA (Searle
residencial e de um parque regional que e Cardew, 2000). A proposta de revita-
ajudou Sydney a reivindicar o nome de lização do complexo de tênis de White
“Jogos Verdes” para os Jogos Olímpicos City, com a construção de novas mora-
de 2000. As áreas industriais dos planos dias, após a transferência do Tennis New
anteriores desapareceram. Como discuti- South Wales (NSW) para o novo com-
do mais adiante, desde os Jogos Olímpi- plexo no Parque Olímpico foi frustrada
cos o planejamento vem encaminhando por uma forte oposição dos moradores
a natureza da revitalização da área para locais.
Glen Searle 9

Os estúdios da Fox, um parque te- porte à proposta de Sydney 2000 como


mático a eles associado e instalações de os “Jogos Verdes”, totalmente compro-
varejo e de lazer podem ser entendidos metida com o desenvolvimento ecolo-
como resultados significativos, mesmo gicamente sustentável. Esse viria a ser
que não previstos na proposta vitoriosa um fator crucial para a vitória da candi-
de Sydney para sediar os Jogos Olímpi- datura de Sidney (Olympic Coordina-
cos. A proposta, em si, compreendia três tion Authority, 1996, p. 14). Após os
grandes iniciativas de desenvolvimento Jogos, o governo estadual elaborou um
urbano na baía de Homebush. A pri- plano diretor para grandes desenvolvi-
meira era a construção da Vila dos Atle- mentos de uso misto no Parque Olím-
tas em 84 hectares ao norte do Parque pico, que será discutido mais adiante.
Olímpico, como passaria a ser conhecido
o local do complexo na baía de Home- O governo estadual procurou se
bush. A vila deveria ser construída de assegurar da existência de mecanismos
acordo com rígidos princípios de desen- para efetuar a construção e a operacio-
volvimento ecologicamente sustentável nalização dos locais olímpicos desde o
(DES), especialmente no que diz respei- início. Em 1992, nos estágios finais da
to à utilização de energia solar através proposta, a Homebush Bay Develop-
de painéis fotovoltaicos em todas as re- ment Corporation foi investida da fun-
sidências, à água reciclada e à reutili- ção de coordenadora do planejamento
zação de água proveniente de chuvas. do uso do solo e do local de desenvol-
Após os jogos, a vila se tornaria o centro vimento da baía de Homebush e assu-
do novo subúrbio de Newington abri- miu a propriedade das terras públicas
gando em média 5.000 pessoas, o que na área do Parque Olímpico. Foi elabo-
aliviaria a expansão urbana de Sydney. rado um instrumental de planejamento
ad hoc, o Sydney Regional Environ-
A segunda importante iniciativa de mental Plan No. 24 - Homebush Bay
desenvolvimento urbano da proposta (SREP 24), para permitir que a Devel-
foi a criação do maior parque urbano opment Corporation preparasse e ado-
de Sydney, o Millennium Parklands, tasse diretrizes condizentes com o plano
entre o Parque Olímpico e o rio Parra- diretor para o desenvolvimento e a con-
matta, nos 450 hectares restantes das servação do solo na área.
terras do abatedouro e do arsenal. O
parque abrigaria habitats de terras pan- Após a vitória da proposta em 1993,
tanosas e de pasto recuperados do solo a Development Corporation foi resta-
industrial degradado, o resto de mata belecida como Órgão de Coordenação
nativa ameaçada, pistas de ciclismo e das Olimpíadas (Olympic Coordination
trilhas. Visando maximizar a utilização de Authority) (OCA) em 1995, para en-
transporte público pelos espectadores, tregar as instalações e locais de esportes
a terceira iniciativa foi a construção de para uso durante os Jogos Olímpicos e
uma linha de trem para o Parque Olím- Paraolímpicos de 2000 e administrar o
pico. Todas essas iniciativas davam su- desenvolvimento da baía de Homebush.
10 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

A SREP 24 passou a ser lei. A State En- Desde o início, o governo do estado
vironmental Planning Policy No. 38 - de New South Wales previu um peque-
Olympic Games (Sepp 38) foi criada para no lucro com os Jogos como uma de-
facilitar a construção de todas as instala- monstração de sua boa administração.
ções olímpicas. A Sepp 38 fixou diretrizes A proposta olímpica do governo estima-
para o desenvolvimento do local, inclu- ra que os custos brutos da oferta para
sive a exigência de que todo o desenvolvi- sediar os Jogos Olímpicos seriam de 1,7
mento fosse ecologicamente sustentável. bilhão de dólares australianos, subscri-
Também dispensou os principais proje- tos pelo governo. Foi previsto um lucro
tos olímpicos da obrigatoriedade de pre- de 15 milhões de dólares australianos,
parar declarações de impacto ambiental. mais tarde corrigido para 6 milhões. Em
Deu ao ministro para Assuntos Urbanos 1996, os custos finais de capital estimado
e Planejamento permissão para aprovar para as Olimpíadas tiveram um acrésci-
a construção das instalações olímpicas. mo de cerca de 375 milhões de dólares
O governo do estado de New South australianos em relação ao orçamento
Wales não queria que o conselho local, da proposta de 1992, mas, ainda assim,
o qual, de outro modo, teria sido a auto- afirmava-se que, dado o legado que os
ridade a conceder aprovações, pudesse Jogos deixariam para New South Wales,
retardar a construção dos locais olímpicos esse incremento representava “uma rela-
com prazos finais inegociáveis. Na ver- ção custo-benefício válida para o dinheiro
dade, o governo local foi excluído de im- dos contribuintes” (Olympic Coordina-
portantes estágios de planejamento para tion Authority, 1996, p. 43). No fim, a
os Jogos Olímpicos e, até mesmo, privado escalada dos custos foi compensada por
de informações mais detalhadas sobre o aumentos no valor previsto da receita,
processo (Dunn e McGuirk, 1999, p. 29). principalmente pela elevação dos pre-
Um novo plano diretor foi publicado em ços de ingressos, pela venda de direitos
1995. Sob a SREP 24, esse plano e os de transmissão por televisão para os EUA
documentos de apoio sobre estratégias e por uma contribuição maior do que a
paisagísticas, ambientais e de transporte esperada do setor privado para os custos
forneciam esquemas de infra-estrutura do estádio principal. Para manter baixos
de transportes e diretrizes para design os custos do governo, os dois maiores
urbano, acessibilidade, e meio ambiente novos locais – o estádio principal e o
para a construção das instalações do Par- SuperDome – utilizaram um significati-
que Olímpico para os Jogos de 2000. vo aporte financeiro do setor privado.
Em 1998, a SREP 24 foi revisada para Como este artigo analisa agora, essa
incluir o planejamento para o período estratégia continha alguns riscos para os
pós-olímpico e permitir que o ministro investidores privados e, ao final, para
aprovasse novos planos diretores (Olym- os estádios públicos já existentes.
pic Coordination Authority, 2001a).
Glen Searle 11

Estádio Austrália

Esperava-se que a inexistência de um mil unidades em um fundo (que mais


estádio que comportasse mais de 45 mil tarde chegariam a 34.400, para levan-
espectadores em Sydney viabilizasse a tar 344 milhões de dólares australianos),
proposta de um estádio após os Jogos, o que concederia aos portadores o direi-
embora, desde o início, tivesse sido to de comprar ingressos para os eventos
manifestada a preocupação de que um olímpicos e assentos em outras compe-
novo estádio tornaria o já existente es- tições de esportes no estádio até 2031
tádio público Sydney Football Stadium (Weekend Australian, 27-28 jan. 1996).
um “elefante branco” (MacDonald, Para acomodar os portadores dessas
1992; Byrne, 1995). A proposta olím- unidades, a capacidade do estádio seria
pica estimava que o custo de um está- aumentada para 110 mil espectadores
dio com 80 mil assentos seria de 307 para os Jogos e, mais tarde, reduzida
milhões de dólares australianos, incluin- para 80 mil. Como a emissão seria total-
do os 15 milhões de financiamento do mente subscrita por cinco financeiras, a
setor privado. Por volta de 1995, o go- proposta do consórcio oferecia poucos
verno imaginava que metade do custo riscos para o governo (Australian Finan-
seria levantado junto ao setor privado cial Review, 24 jan. 1996).
e, por isso, alocou 185 milhões de dólares
australianos para o estádio no orçamen- No entanto, a emissão não deu certo,
to do governo para o biênio 1995-96 principalmente porque não haviam sido
(Australian Financial Review, 24 jan. assinados contratos para jogos de futebol
1996). Para alcançar esse objetivo e e de rúgbi após o término das Olimpíadas
minimizar custos e riscos para o estado, (Moore, 1998). Só foram levantados
o governo pediu ao setor privado que 108 milhões de dólares australianos, o
apresentasse propostas para projetar, que deixou um rombo de 236 milhões
construir, operacionalizar e manter o (Sydney Morning Herald, 10 abr. 1997).
estádio até 2031 através de um arren- A preocupação com a possibilidade de
damento do OCA. milhares de assentos vazios nos princi-
pais eventos olímpicos no estádio impeliu
A proposta vencedora para o con- o Comitê Organizador dos Jogos Olím-
sórcio do Estádio Austrália excedeu as picos de Sydney (Sydney Organising Com-
expectativas do governo. Consistia em mittee for the Olympic Games) (SOCOG)
construir o estádio com uma contribui- a agir, após um ano de debates voltados
ção de apenas 135 milhões de dólares para a busca de uma solução para o pro-
australianos do governo. Quase todo o blema. O comitê decidiu que os subscrito-
resto do custo total de 463 milhões seria res do Estádio Austrália poderiam vender
levantado por uma inovadora emissão seus assentos olímpicos remanescentes e
de papéis públicos de 300 milhões de que o próprio SOCOG venderia então
dólares australianos. Seriam emitidas 30 quaisquer assentos ainda não vendidos
12 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

(Australian Financial Review; Sydney do estado não justificava tais medidas


Morning Herald, 19 dez. 1997). (McGregor, 1999), o governo estadual
recusou-se a fornecer ajuda financeira
Como essa medida não resolvia a (Sydney Morning Herald, 16 mar.
questão dos assentos vazios dos subscri- 2001). Contudo, o governo contribuiu
tores após os Jogos, ela ameaçava a via- com 8 milhões de dólares australianos
bilidade financeira do Estádio Austrália. para a reforma do estádio, a um custo
Um plano de reestruturação financeira, total de 68 milhões, para ser usado pela
aprovado pelos portadores dos papéis Australian Football League (AFL) (Aus-
em 1998, foi o primeiro passo para resol- tralian Rules) (Sydney Morning Herald,
ver o impasse. Isso envolvia 17.200 dos 16 mar. 2001). Para evitar a liquidação,
22.950 títulos de propriedade do estádio o maior credor do Estádio Austrália con-
ainda não vendidos, que seriam compra- cordou então em estender o empréstimo
dos pelo Estádio Austrália de subscritores de 125 milhões de dólares australianos
por 20,6 milhões de dólares australianos quando o time de futebol americano de
com fundos emprestados pelos próprios Sydney pertencente à AFL concordou
subscritores (Carr, 1998). Esses títulos em jogar seus três principais jogos no
seriam então vendidos às principais ligas estádio pelos próximos sete anos, além
de esportes – a união de rúgbi, a liga de dos jogos da pré-temporada e das finais
rúgbi e as Australian Rules (liga de futebol domésticas do campeonato (Australian
americano) –, para que elas, por sua vez, Financial Review, 7 set. 2001).
pudessem vendê-los. Os portadores de
títulos poderiam comprar ingressos para Os problemas do Estádio Austrália
os jogos da liga no estádio. resultam não apenas da escassez de
grandes eventos apropriados para uma
Após a abertura do Estádio Austrália arena com 80 mil assentos em Sydney,
em 1999, alguns jogos finais importan- mas também da competição por esses
tes – partidas internacionais ou interes- eventos, que é acirrada por estádios já
taduais da liga de rúgbi, da união de existentes ou reformados. A principal
rúgbi e de futebol – foram realizados no competição provém do Sydney Cricket
estádio. No entanto, o estádio perma- e do Sports Ground Trust (SCSGT), uma
neceu vazio boa parte do tempo. Sim- agência governamental dirigida pelo
plesmente, não havia em Sydney, todos Ministério de Esportes e Recreação. Essa
os anos, tantos jogos de futebol relevan- agência controlava o Sydney Cricket
tes ou concertos de rock. O Estádio Ground (SCG) e o adjacente Sydney
Austrália teve um déficit de 24 milhões Football Stadium (SFS), localizados a
de dólares australianos no primeiro ano, dois quilômetros do centro da cidade.
1998-99, 11 milhões de dólares austra- Cada local acomodava cerca de 40 mil
lianos em 1999-2000 e quase o mesmo espectadores.
montante no ano seguinte (Australian
Financial Review, 7 set. 2001). Alegando Na década de 1980, utilizando fun-
que a forte economia internacionalizada dos próprios e empréstimos e subven-
Glen Searle 13

ções do governo, o SCSGT, sob a dire- Fazenda (Auditor-General, 1987, 1988;


ção do politicamente bem relacionado Byrne, 1995), e a construção do SFS,
ex-ministro do Trabalho e ex-prefeito no fim, custou aos contribuintes do es-
Pat Hills, iniciou a reforma e a expansão tado mais de 80 milhões de dólares aus-
de seu antigo campo de críquete e do tralianos (Byrne, 1995).
local de esportes. O SCG era o principal
local da cidade para jogos de críquete e Quando a decisão do estádio olím-
jogos da união de rúgbi e da liga de pico foi anunciada, o Trust tratou de
rúgbi. A partir de 1980, foram construí- assegurar ao SFS e ao SCG todos os
dos camarotes particulares, a capacidade jogos que podia. Em 1997, assinou um
geral foi ampliada aos poucos, atingin- contrato entre a NSW Rugby Union,
do 42 mil lugares em 2000 (Auditor- com seus populares 12 superjogos in-
General, 1981; Auditor-General, 1985; ternacionais, e o SFS por nove anos.
Audit Office of N.S.W., 2001), e o confor- Os jogos de futebol internacionais já ti-
to dos espectadores foi aumentado pela nham sido garantidos ao SFS até 2009.
supressão de áreas onde eles assistiam Em 1999, o Trust renovou um contrato
aos jogos de pé, de modo que fosse pos- com a equipe da AFL de Sydney, obri-
sível a competição com outros locais e gando-a a jogar sete jogos por ano du-
com a crescente cobertura da televisão. rante dez anos no SCG (Carr, 1999).
De modo geral, aumentou nos últimos
No entanto, para o Estádio Austrá- anos, para os espectadores, a atrativi-
lia, a principal competição vinha do SFS, dade ao SCG e ao SFS, pela grande
aberto pelo SCSGT no antigo Sports melhora do acesso para carros após a
Ground em 1987. O SFS foi construí- abertura da rodovia que liga o aeroporto
do com uma capacidade total de 42 mil à cidade, antes do início dos Jogos Olím-
assentos. Para financiar o custo de 58 picos, e pela construção do complexo
milhões de dólares australianos, o Trust de lazer da Fox Studios nas proximida-
usou uma técnica subseqüentemente des (Kennedy, 2001).
adotada, com modificações, pelo Está-
dio Austrália. Títulos de propriedade VIP Quanto ao Estádio Austrália, uma
e corporativos do complexo SCG-SFS, competição adicional surgiu de outro
que concediam aos portadores o direito local moderno e controlado pelo esta-
de acesso a todos os eventos do local do, o Estádio Parramatta, a oeste da baía
por toda a vida, foram vendidos. A ren- de Homebush. Esse estádio foi aberto
da proveniente da venda de títulos foi em 1986, a um custo de 15 milhões de
usada para financiar a construção (Au- dólares australianos, financiado pelos
ditor-General, 1986). Porém, em uma governos federal e de New South Wales
agourenta antecipação dos problemas (Auditor-General, 1986). O estádio foi
financeiros do Estádio Austrália, os construído com capacidade total de 30
novos títulos não foram vendidos na mil assentos. A construção do estádio
proporção necessária. O Trust precisou se deu no interior de um processo muito
fazer um empréstimo no Ministério da contestado, que exigiu um ato especial
14 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

do parlamento para superar uma objeção 1999c). Essa capacidade também per-
legal bem-sucedida do grupo Friends of mitiria que Sydney tivesse boas chan-
Parramatta Park community (Amigos da ces de sediar os principais jogos da
comunidade do Parque Parramatta) (Fit- Rugby Union World Cup de 2003. No
zallen et al., 1982). Embora, entre os es- entanto, tais eventos ainda são raros. Por
tádios competidores, o Parramatta tenha outro lado, a capacidade pós-Olimpía-
a menor capacidade, ele é visto talvez das de 80 mil lugares do Estádio Aus-
como o de maior sucesso. Por seu tama- trália talvez seja, na realidade, pequena
nho e pela disposição de seus assentos, demais para os grandes eventos. O jogo
responsáveis pela criação de uma atmos- anual de rúgbi entre as equipes da Aus-
fera que sugere um público maior do que trália e da Nova Zelândia atraiu, duas
o efetivamente presente, atrai em torno vezes, 107 mil ou mais espectadores ao
de 10 a 15 mil pessoas, o que o torna Estádio antes dos Jogos Olímpicos. Com
atraente para as ligas nacionais de clubes a capacidade agora reduzida aos 80 mil
de futebol e de rúgbi (Cowley, 1997). lugares, a ARU pode considerar a hipó-
Mostrou-se também um local apropriado tese de manter o jogo no MCG, que é
para eventos ocasionais, tais como lutas maior (Dennis, 2000).
pela disputa de títulos internacionais de
boxe e concertos de rock internacionais O segundo fator que enfraquece a
(como o de Paul McCartney). viabilidade do Estádio Austrália e que
ajuda a explicar a escassez de grandes
Essa experiência reflete dois fatores públicos a eventos de esporte são a na-
que enfraquecem a viabilidade, a longo tureza das ligas desportivas nacionais da
prazo, do Estádio Austrália. O primeiro Austrália e a posição de Sydney nelas.
é o número relativamente pequeno de Na América do Norte, o mercado é su-
espectadores em quase todos os jogos ficientemente grande para viabilizar a
de futebol ou outros eventos apropria- construção de estádios grandes (muitas
dos para estádios em Sydney. Nessa vezes com uma ajuda significativa dos
cidade, o número de eventos suficien- contribuintes locais) para times de ligas
temente grandes para o SFS ou o SCG de futebol, beisebol, basquete e hóquei
são poucos, certamente menos de um no gelo, sejam essas ligas americanas ou
por mês. canadenses-americanas. Na Europa, o
futebol domina de tal maneira o cená-
São esporádicas as oportunidades rio esportivo que qualquer cidade média
que tem o Estádio Austrália para atrair consegue atrair multidões aos grandes
para Sydney eventos que anteriormente estádios construídos para as ligas nacio-
teriam sido desviados da cidade porque nais de futebol.
ela não possuía um estádio suficiente-
mente grande para acomodar um nú- Na Austrália, nação de 19 milhões
mero mínimo viável de espectadores, de habitantes, as principais afluências de
como o concerto dos Três Tenores e o espectadores a estádios de esportes ao
show dos Bee Gees (Dennis, 1999a, ar livre ficam divididas entre o futebol
Glen Searle 15

australiano, o rúgbi, o futebol e o crí- O comparecimento aos jogos do time


quete. Para os dois últimos, os grandes da AFL em Sydney é maior, embora,
públicos se limitam a jogos internacio- na maioria dos jogos, não exceda à ca-
nais, porém apenas poucos jogos inter- pacidade do SCG. O futebol é um es-
nacionais são realizados em Sydney porte secundário na Austrália, e, por isso,
anualmente. O futebol australiano pre- os jogos da liga nacional em Sydney in-
domina fora de New South Wales e de variavelmente atraem menos de 10 mil
Queensland. Em Melbourne, a sua po- pessoas. Como conseqüência, os jogos
pularidade permite ao MCG receber re- não-finais da liga nacional, que exigem
gularmente mais de 50 mil espectadores a capacidade do Estádio Austrália, são
nos jogos da liga nacional. Em Sydney, os poucos jogos da AFL vendidos ao
a principal liga nacional de esportes é a SCG. Portanto, diferentemente do prin-
liga do rúgbi, mas o apoio de seus es- cipal estádio dos Jogos Olímpicos de
pectadores é muito menor do que o da Atlanta, que foi convertido em um es-
AFL em Melbourne. Em Sydney, o com- tádio da liga nacional de beisebol, o
parecimento médio aos jogos da NRL é Estádio Austrália não pode contar com
relativamente modesto, e públicos com os jogos regulares da liga nacional para
mais de 20 mil espectadores são raros. sustentá-lo.

O SuperDome
Os problemas do Estádio Austrália, e como sucedeu com o estádio principal,
suas origens, são amplamente refletidos o governo, para reduzir os custos e os
na história do SuperDome, que foi cons- riscos da Olimpíada para o estado, alme-
truído para acomodar os jogos de bas- java atrair o financiamento do setor pri-
quete e as competições de ginástica dos vado. Para estimular as perspectivas do
Jogos Olímpicos. Com capacidade para SuperDome após os jogos, mas em desa-
21 mil assentos, é o maior estádio fecha- cordo com os objetivos do DES para as
do da Austrália. Assim como o Estádio construções olímpicas, o governo cons-
Austrália, sua construção se deu em um truiu um estacionamento adjacente, com
esquema do tipo “construção-posse- espaço para 3400 vagas, a um custo de
operação-transferência”, o que permi- 63 milhões de dólares australianos.
tiu que o SuperDome fosse erigido e
administrado pela empresa Abigroup Assim como o Estádio Austrália, a
em troca de um período de concessão longo prazo a viabilidade do SuperDome
de 30 anos. O governo estadual contri- depende de sua capacidade de competir
buiu com 142 milhões do custo total de com uma instalação estadual menor, no
197 milhões de dólares australianos, e caso o Sydney Entertainment Centre
a Abigroup entrou com o resto (Olympic (Centro de Lazer de Sydney). Este último
Coordination Authority, 1999). Assim acomoda 10 mil assentos e está localizado
16 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

nas proximidades de Darling Harbour, Olímpico, passou a competir com o


no CBD sul de Sydney. O Centro foi SuperDome, porque era a sede da se-
aberto em 1983, a um custo total de gunda equipe nacional de basquete de
construção de 49,5 milhões de dólares Sydney. Em meados de 2000, o En-
australianos para o estado (Auditor- tertainment Centre estava vencendo vir-
General, 1983). Constituiu o primeiro tualmente todos os grandes eventos em
investimento estadual para a revitaliza- ambiente fechado que aconteciam em
ção da área de Darling Harbour, que Sydney (Sydney Morning Herald, 30
estava sendo proposta há vários anos e maio 2000). Após nove meses de fun-
que entrou em ação com o estabeleci- cionamento, os prejuízos operacionais do
mento da Darling Harbour Authority no SuperDome foram estimados em cinco
ano seguinte. milhões de dólares australianos por ano
(Moore, 2000b).
Desde a sua inauguração, em 1999,
o SuperDome não conseguiu desviar A situação preocupava o governo em
públicos do Entertainment Centre. Quase razão do substancial investimento de di-
nenhum dos eventos em ambientes fe- nheiro dos contribuintes no SuperDome.
chados em Sydney exige uma capaci- Visando atrair negócios para o Super-
dade de mais de 10 mil assentos. Os Dome, o governo contratou um grupo
promotores preferem levar seus shows de consultoria para investigar a possibili-
para o Entertainment Centre a realizá- dade de banir shows ao vivo do Enter-
los no quase vazio SuperDome (Sydney tainment Centre e incentivar a realização
Morning Herald, 23 ago. 2000). O pú- de convenções e de outros eventos si-
blico prefere a localização central do milares naquele local (Sydney Morning
Entertainment Centre e a variedade de Herald, 6 jun. 2000). Com um contrato
locais para jantar, beber e dançar, após firmado com a Abigroup, o governo re-
os shows, nas proximidades, especifi- ceberia sete milhões de dólares austra-
camente em Chinatown e no CBD lianos da Abigroup se eliminasse shows
(Moore, 1999). O potencial de renda ao vivo do Entertainment Centre após
proveniente das ligas nacionais de bas- a expiração da licença original de ope-
quete e de hóquei no gelo, que sustenta ração do Centro em 2003 (Australian
nos EUA locais como o SuperDome, Financial Review, 6 jun. 2000). No en-
não existia em Sydney. Não havia hóquei tanto, o grupo de consultoria decidiu a
no gelo, e, embora a equipe nacional de favor do Centro (Sydney Morning Her-
basquete Sydney Kings tivesse sido trans- ald, 1 nov. 2000).
ferida do Entertainment Centre para o
SuperDome, a média de público que Ao mesmo tempo, o terceiro maior
ela atraía era de apenas quatro ou cinco ambiente fechado de Sydney, o Hordern
mil espectadores por uma dúzia de jogos Pavilion, estava sendo reformado a um
por temporada. Além disso, um outro custo de 27 milhões de dólares australia-
local financiado pelo estado, o State nos (Dennis, 1999b). Ele fazia parte do
Sports Centre, no outro lado do Parque antigo e decadente complexo da Royal
Glen Searle 17

Agricultural Society e tinha, como o Um futuro mais promissor para o


SCG e o SFS, a vantagem de estar SuperDome parecia residir, em parte,
perto do complexo de lazer dos estú- na criação de uma região urbana vi-
dios da Fox. O pavilhão reformado seria brante no Parque Olímpico, a fim de
“vendido como alternativa para o En- equiparar sua localização com as de seus
tertainment Centre e o SuperDome, competidores. Os novos planos para o
bem como para outros locais menores” Parque Olímpico, discutidos na próxima
(ibid.). seção, indicam tal possibilidade.

O Parque Olímpico após o plano diretor para as


Olímpiadas

Uma das principais funções do OCA era uma ala do Museu Australiano (NSW) e
garantir que as instalações desportivas um centro de educação de terceiro grau
para as Olimpíadas seriam usadas ade- (Moore, 2000b).
quadamente após o encerramento dos
Jogos. Antes mesmo dos Jogos, esse as- Os empresários locais aparentemente
sunto poderia ser tratado juntamente consideraram as propostas insuficientes
com uma outra função importante do e, para tentar impor seus argumentos,
OCA: assegurar o desenvolvimento eco- formaram uma associação, a Sydney
nômico ordenado da área da baía de Olympic Park Business Association. Essa
Homebush. A estratégia metropolitana associação queria que o OCA fizesse vá-
de 1998 (Department of Urban Affairs rias recomendações no trabalho de re-
and Planning, 1998) foi apresentar, pela visão do desenvolvimento da baía de
primeira vez, o Parque Olímpico como Homebush a ser submetido ao governo.
um grande núcleo de desenvolvimento Entre elas, recursos do governo para
econômico. Como primeiro passo em di- mais estacionamentos de carros próxi-
reção a essa meta, em maio de 2000, o mos aos locais de eventos, a construção
OCA divulgou, entre empresários locais, de mais um hotel, de clubes, de cinemas
um trabalho com opções de desenvolvi- e de lojas, e subsídios contínuos, espe-
mento para a baía de Homebush. Esse cialmente para as principais rotas de
trabalho trazia propostas para transfor- ônibus que atravessariam Sydney para
mar a baía de Homebush em um centro chegar aos principais eventos do Parque
de excelência para esportes, com uma Olímpico (Moore, 2000a, 2000c). Procu-
universidade de esportes e um centro de rando estabelecer uma semelhança com
medicina esportiva. Propunha também o esquema de revitalização de Darling
ampliar o papel da área como centro cul- Harbour na década de 1980 (Lawson,
tural e de lazer, com um complexo de 2000), logo após os Jogos, o governo
salas de cinema, um centro aborígine, afirmou que responderia aos problemas
18 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

dos locais do Parque Olímpico por meio punha que o futuro desenvolvimento
de uma “intensificação de atividade” ao seria orientado por uma estrutura com-
redor da baía de Homebush. posta por diversos distritos. Dentre esses
distritos se destacariam uma “vibrante”
Outro aspecto a ser considerado diz região central ao redor da estação de
respeito às receitas provenientes de arren- trem, uma área de grandes eventos (o
damentos que o governo deveria receber Estádio Austrália e o SuperDome), outra
com a intensificação do uso do Parque de feiras ou exibições, o Australia Centre
Olímpico, o que compensaria os custos (parte do antigo abatedouro remode-
constantes da preservação e da adminis- lado como um parque de negócios), e
tração do Parque e de seus espaços de ainda o Brickpit Edge, o Participation
esportes públicos. O OCA já havia perce- Precinct (que incluía o Centro de Es-
bido, em 1999, que o potencial de de- portes, o Centro de Tênis, o Centro de
senvolvimento da baía de Homebush Hóquei, o Centro de Atletismo e o Par-
poderia compensar os custos de pre- que Aquático) e o Bosque. O plano vi-
servação a longo prazo, em resposta à sava aumentar o número de empregos
estimativa do auditor geral de que a ad- para, pelo menos, 10 mil, concentrados
ministração e a manutenção do Parque no centro da cidade. O desenvolvimen-
Olímpico custariam cinco milhões de to residencial também ficaria mais fácil,
dólares australianos por ano (Audit Office com a intenção de desenvolvimento de
of N.S.W., 1999). O orçamento do esta- um núcleo populacional de três mil pes-
do para 2001 destinou 50 milhões de soas que contribuiria para a massa vital
dólares australianos para que a nova das atividades varejistas do centro da
Sydney Olympic Authority (que substi- cidade e com a permissão para a cons-
tuiu o OCA) custeasse as despesas pós- trução de edificações de até 30 andares
olímpicas no Parque e naqueles locais no centro. O plano previa um núcleo
utilizados durante os Jogos Olímpicos destinado ao comércio varejista dentro
(Moore, 2001). do centro da cidade, oferecendo restau-
rantes, lanchonetes, cafés e outros ser-
Submetido ao Gabinete, o trabalho, viços para visitantes, trabalhadores e
com suas opções, obteve uma resposta moradores. Antevia também o poten-
positiva. No início, em 2001, o OCA pe- cial para uma instituição cultural de porte
dira a quatro escritórios de arquitetura e no limite sul de Brickpit. Uma via de
design urbano que elaborassem proje- transporte rápido da área para o centro
tos de usos e concepções alternativas para regional de Parramatta proposta ante-
o Parque Olímpico. Após analisá-los, o riormente foi incorporada ao plano.
OCA preparou então um esboço para Acima de tudo, o esboço do plano pres-
um Plano Diretor Pós-Olímpico, que foi supunha que as áreas inabitadas ou mal
publicado em junho de 2001 (Olympic utilizadas no Parque Olímpico, tais como
Coordination Authority, 2001a). estacionamentos de carros ao ar livre,
gerassem oportunidades para desenvol-
O esboço do plano diretor pressu- vimentos adicionais.
Glen Searle 19

Poderia argumentar-se que o plano Juntamente com a publicação do


não conseguiu aproveitar elementos ima- esboço do plano inicial, no qual se ba-
ginativos contidos nas quatro propostas seou, o OCA requisitou propostas para
elaboradas. Ele representava essencial- o desenvolvimento comercial do Parque
mente uma tábua rasa promovida pelos Olímpico. A avaliação das propostas seria
incorporadores, contendo pouco mais feita em conformidade com o esboço
do que controles do uso do solo e de do plano diretor (embora tudo indicasse
densidades. Até mesmo esses não se- que ele seria generosamente interpre-
riam inalteráveis: o plano foi divulgado tado – ver Moore, 2001), com o retorno
como um esboço para que as propos- financeiro para o OCA, com a capaci-
tas dos incorporadores não fossem re- dade para realizar o projeto, com os ris-
jeitadas com a justificativa de que elas cos para o OCA e com as preocupações
não estavam de acordo com o plano relativas ao desenvolvimento ecologica-
diretor final (Moore, 2001). O Royal mente sustentável (inclusive o impacto
Australian Institute of Architects criticou no transporte público) (Olympic Coor-
o plano por ignorar diversos princípios dination Authority, 2001b).
de design que estavam nos quatro ce-
nários propostos. Entre eles, as ligações Portanto, os estádios e os outros lo-
com as áreas adjacentes, que reduziam cais construídos para os Jogos Olímpi-
o enorme tamanho do local com a in- cos na baía de Homebush parecem ser
trodução de uma grade de ruas, e o pla- capazes de promover o desenvolvimen-
nejamento, em conjunto, dos distritos e to de um importante centro metropo-
das áreas vizinhas. Criticou também a litano não imaginado na época da
ênfase do esboço do plano diretor no proposta de candidatura dos Jogos de
atual potencial comercial da região, à Sydney (embora o varejo geral e o de-
custa de seu potencial a longo prazo senvolvimento comercial tivessem sido
como uma nova comunidade sustentável propostos no plano diretor de 1990).
(Royal Australian Institute of Architects, Esse empreendimento terá um impacto
2001). Todavia, o esboço do plano di- positivo nos destinos do Estádio Austrá-
retor revisado (Government Architect’s lia e do SuperDome. No entanto, os
Design Directorate e Urban Design parâmetros do esboço de 2001 não
Group, 2002) manteve a estrutura geral garantem que surgirá o bairro vibrante
do esboço inicial. Destacou ainda mais e harmônico do tipo que atrai clientes a
os usos associados ao esporte e ao lazer locais rivais.
no centro da principal zona do estádio
e, para estabelecer um limite proemi- Em termos de planejamento estra-
nente e reduzir o potencial de barulho tégico, um centro comercial importante
e de outros conflitos com as principais na baía de Homebush poderia reduzir
atividades do local, transferiu as edifica- o potencial de expansão da região do
ções com mais andares das cercanias da Parramatta (Figura 1), centro regional
estação de trem para a principal aveni- há muito destinado pelo governo para
da de entrada do centro. a região oeste de Sydney. A região do
20 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

Parramatta não se desenvolveu tão rápi- Apesar de variar em seus graus de


do quanto fora previamente imaginado, intenções estratégicas de longo prazo, a
e a meta do governo atual requer uma revitalização metropolitana resultante
duplicação do número de empregos exis- dos Jogos Olímpicos tem outros desdo-
tentes para 80 mil (Department of Urban bramentos importantes. A revitalização
Affairs and Planning, 1998). É bem pro- de antigos locais de exibições vazios com
vável que os empregos comerciais na a abertura da Fox Studios decorreu de
baía de Homebush venham a depender uma oferta oportunista feita à empresa
da utilização de carros, uma vez que, fora pelo governo do estado. A revitalização
das ocasiões especiais, o serviço de trens proposta para transformar o antigo
é esporádico, apesar de haver potencial Complexo de Tênis de New South Wales
para um serviço melhor se o desenvolvi- em moradias está sendo muito comba-
mento comercial se tornar significativo. tida, e o resultado é incerto. Por outro
O desenvolvimento residencial de den- lado, a construção de um hotel novo
sidade alta proposto apresenta vantagens foi prometida na proposta para os Jogos
de planejamento estratégico por ajudar e foi encorajada no CBD por meio de
a política de consolidação urbana do bônus de planejamento do conselho da
governo e tirar proveito das excelentes cidade. A construção de nova linha de
possibilidades de recreação, da vista para trem e da rodovia aeroporto-CBD foi
o mar e do acesso por trem. Também apressada pela vitória da proposta para
pode ser argumentado que o último pla- sediar os Jogos Olímpicos, mas estava
no diretor reconhece apropriadamente de acordo com os objetivos de planeja-
o potencial sinergístico dos locais olímpi- mento estratégicos. O mesmo ocorreu
cos para gerar lazer e atividades relaciona- em relação ao desenvolvimento do Mil-
das ao esporte, embora o planejamento lennium Park. A Vila Olímpica, em si, é
direcionado para promover o potencial um ponto de destaque da estratégia de
turístico da área como local para os Jogos consolidação urbana do governo (De-
Olímpicos de 2000 esteja virtualmente partment of Planning, 1995).
ausente.

Conclusão
A construção de novos e grandes estádios únicos ou esporádicos. Em Sydney, o
foi um elemento integrante da proposta tema principal tem sido o enorme ta-
de candidatura de Sydney (bem-suce- manho dos estádios necessários para as
dida, no final das contas) aos Jogos multidões dos Jogos Olímpicos. Nessa
Olímpicos de 2000. No entanto, a ine- cidade, eventos que atraem multidões
xistência de eventos, pré e pós-Jogos, são raros. Com exceção de alguns pou-
reflete os riscos de construção de infra- cos jogos e concertos, outros estádios
estrutura especializada para eventos modernos, já existentes antes das Olim-
Glen Searle 21

píadas, podem absorver quase todos os serviços devem ser fornecidos com um
jogos que são viáveis no mercado de grau maior de inovação e de eficiência
Sydney. Nesse aspecto, o tamanho e a (Hunt, 1994). A experiência das rodo-
estrutura das ligas desportivas nacionais vias público-privadas em Sydney revela
têm sido fundamentais, porque a quan- que um tópico importante é a tendência
tidade de jogos da temporada regular de o governo permitir que os lucros do
da liga nacional capazes de atrair multi- fornecimento da infra-estrutura sejam
dões maiores do que a capacidade dos apropriados pela iniciativa privada, ao
estádios pré-olímpicos é muito pequena. passo que os riscos resultantes são socia-
lizados (Quiggin, 1997). As pressões
A experiência de Sydney mostra exercidas pelos operadores do estádio
também que as parcerias entre estado olímpico de Sydney para limitar a com-
e setor privado não eliminam obrigato- petição estatal (no caso do SuperDome)
riamente tais riscos. As decisões do se- e para impelir o estado a construir um
tor privado não garantem lucros. No setor de lazer mais atraente represen-
caso dos estádios olímpicos, as expecta- tam, em essência, tentativas de sociali-
tivas do investidor privado estavam zação, pós-construção, de alguns dos
muito longe da realidade. As perspecti- riscos emergentes. Os resultados finais
vas do Estádio Austrália previam que, dos projetos de infra-estrutura público-
em 2002, haveria 42 jogos de futebol privados, em Sydney, variam entre os
no estádio com uma freqüência média que são muito lucrativos (as rodovias) e
de 40 mil espectadores (Moore, 1998), os que sofreram grandes perdas (a linha
previsão muito distante da realidade dos de trem para o aeroporto e os estádios
sete ou oito jogos que devem ser reali- olímpicos). Uma conclusão possível é
zados lá em 2002. Para os investidores, que a infra-estrutura que obtém um flu-
ficou mais difícil encontrar uma solução xo constante de renda sob condições de
para esse mau julgamento porque o monopólio, como, por exemplo, as vias
estado possui instalações que competem urbanas, constitui uma aposta mais po-
entre si. Esse fato redundou na relutância sitiva do que uma infra-estrutura sob
do governo em fazer concessões favorá- condições de oligopólio, em especial
veis aos estádios do Parque Olímpico. onde a renda tem altos e baixos.

O caso dos estádios olímpicos de A construção e a administração do


Sydney levanta, portanto, a questão Estádio Austrália e do SuperDome po-
central de os projetos público-privados dem ilustrar também a natureza e os
serem justificados em relação aos riscos problemas do planejamento em uma
potenciais para o governo. As principais era pós-moderna. A construção deles foi
vantagens residem na economia de gas- uma resposta a uma oportunidade de
tos públicos em um contexto atual de atrair, para Sydney, um evento global
contenção fiscal e redução de débitos especial incentivado pela oportunidade
(Quiggin, 1997; Searle, 1999). Também de os Jogos Olímpicos gerarem um de-
se argumenta que a infra-estrutura e os senvolvimento econômico e um perfil
22 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

global para investimentos adicionais. do planejamento ao desenvolvimento


Todavia, não constavam do plano aná- econômico, a necessidade de parcerias
lises de planejamento sobre a possibili- com o setor privado para atingir resul-
dade de, a longo prazo, as necessidades tados e o incerto ambiente competitivo,
recreativas e de lazer de Sydney exigi- com todas as suas implicações, levam a
rem esses investimentos. Além disso, a um processo de planejamento que é
construção de estádios e de outros locais mais reativo, mais de curto prazo e mais
no Parque Olímpico gerou um signifi- imprevisível nas suas conseqüências.
cativo desenvolvimento urbano ferro- Esses elementos fazem parte do preço
viário nas proximidades, em grande pago pelos que se dispõem a participar
parte não previsto na ocasião da disputa no jogo de competição entre cidades.
pelos Jogos. A crescente subordinação

Referências

AUDIT OFFICE OF N.S.W. The Sydney __________. Report of the Auditor-Gen-


2000 Olympic and Paralympic Games eral under the Public Finance and Au-
– review of estimates. Sydney: Audit dit Act 1983, 1985-86. Sydney: N.S.W
Office of N.S.W., 1999. Government Printer, 1986.

__________. New South Wales Auditor- __________. Report of the Auditor-Gen-


General’s Report for 2001. Sydney: eral under the Public Finance and Au-
Audit Office of N.S.W., 2001. dit Act 1983, 1986-87. Sydney: N.S.W
Government Printer, 1987.
AUDITOR-GENERAL. Report of the Audi-
tor-General… for the period ended __________. Report of the Auditor-Gen-
30th June 1981. Sydney: N.S.W Gov- eral under the Public Finance and Au-
ernment Printer, 1981. dit Act 1983, 1987-88. Sydney: N.S.W
Government Printer, 1988.
__________. Report of the Auditor-Gen-
eral… for the period ended 30th June BAADE, R. A. Professional sports as cata-
1983. Sydney: N.S.W Government lysts for metropolitan economic devel-
Printer, 1983. opment. Journal of Urban Affairs, 18,
p. 1-17, 1996.
__________. Report of the Auditor-Gen-
eral under the Public Finance and Au- BARTIMOLE, R. If you build it, we will stay.
dit Act 1983, 1984-85. Sydney: N.S.W The Progressive, p. 28-31, June 1994.
Government Printer, 1985.
Glen Searle 23

B EAZLEY , M.; L OFTMAN , P.; N EVIN , B. DEPARTMENT OF PLANNING. Cities for the
Downtown redevelopment and com- 21st Century. Sydney: Department of
munity resistance: an international per- Planning, 1995.
spective. In: JEWSON, N.; MACGREGOR, S.
(Ed.). Transforming Cities: Contested DEPARTMENT OF URBAN AFFAIRS AND PLAN-
Governance and New Spatial Divisions. NING. Shaping Our Cities. Sydney: DUAP,
London: Routledge, 1997. 1998.

BYRNE, A. Power games: fair play fears DUNN, K. M.; MCGUIRK, P. M. Hallmark
in the battle to build Sydney’s Olympic events. In: CASHMAN , R.; HUGHES, A.
stadium. Sydney Morning Herald, 25 (Ed.). Staging the Olympics: The Event
Mar. 1995. and its Impact. Sydney: University of
New South Wales Press, 1999.
CARR, M. Investors attack stadium board.
Australian Financial Review, 10 Sep. EUCHNER, C. C. Playing the Field: Why
1998. Sports Teams Move and Cities Fight to
Keep Them. Baltimore: Johns Hopkins
__________. Sports wars to find winning University Press, 1993.
turf. Australian Financial Review, 29 Oct.
1999. FITZALLEN, L. et al. Parramatta Stadium
and the Law. Sydney: Law School, Mac-
CHANDLER, M. “Hello, darling and here’s quarie University, 1982.
your Megaplex”. Australian Financial
Review, 10 Nov. 1999. GOVERNMENT ARCHITECT’S DESIGN DIREC-
TORATE AND URBAN DESIGN GROUP. Draft
COWLEY, M. Sydney’s sporting heart. Sydney Olympic Park Post Olympic
Sydney Morning Herald, 3 Apr. 1997. Master Plan. Sydney: Department of
Public Works and Services, 2002.
DENNIS, A. New arena for inter-city ri-
valry. Sydney Morning Herald, 13 Mar. HARRIS, T. ACT stadium shocker. Austral-
1999a. ian Financial Review, 3 Oct. 2001.

__________. Barns battle in $250m. fight HOMEBUSH BAY CORPORATION AND PROPERTY
for concert cash. Sydney Morning Her- S ERVICES GROUP. Urban design studio
ald, 22 May 1999b. brief: the future redevelopment of
Homebush Bay and the XXVII Olympiad
__________. A capital event. Sydney 2000 AD Sydney, Australia. Sydney:
Morning Herald, 9 June 1999c. Property Services Group, 1994.

__________. Rugby plea: don’t shrink the HUNT, A. Providing and financing urban
stadium. Sydney Morning Herald, 23 infrastructure. Urban Policy and Re-
Aug. 2000. search, 12, p. 118-123, 1994.
24 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

KENNEDY, A. Homebush Bay looking iso- vive Olympic site. Sydney Morning Her-
lated as Sydney turns back to Moore ald, 19 June 2001.
Park roots. Sydney Morning Herald, 14
Apr. 2001. OFFICE OF MAJOR PROJECTS. Agenda 21
Quarterly, Melbourne: Office of Major
LAWSON, M. Homebush works on post- Projects, Department of Infrastructure,
games agenda. Australian Financial Re- 13, p. 7, 1997.
view, 25 Oct. 2000.
O’KAER, B. A. Subsidies of stadiums and
MAC DONALD, J. Off the beat. Sydney arenas. In: NOLL, R. G. (Ed.). Govern-
Morning Herald, 4 Nov. 1992. ment and the Sports Business. Washing-
ton DC: Brookings Institute, 1974.
MAIDEN, M. Stokes carries the colonial team.
Sydney Morning Herald, 26 Nov. 2001. OLYMPIC COORDINATION AUTHORITY. State of
play – a report on Sydney 2000 Olym-
MAIDEN, M.; MILOVANOVIC, S. Colonial Sta- pics planning and construction. Sydney:
dium facing collapse. Sydney Morning OCA, 1996.
Herald, 23 Nov. 2001.
__________. Development fact sheet:
MCGREGOR, C. Making history. Sydney Sydney SuperDome. Sydney: OCA,
Morning Herald, 30 Jan. 1999. 1999.

MOORE, M. Stadium is still looking for __________. Sydney Olympic Park draft
someone to pay for it. Sydney Morning post Olympic Masterplan. Sydney: OCA,
Herald, 30 July 1998. 2001a.

__________. Domebush home to future __________. Sydney Olympic Park: re-


fun. Sydney Morning Herald, 16 July quest for proposals for commercial de-
1999. velopment. Sydney: OCA, 2001b.

__________. Millions sought to “save” QUIGGIN, J. Private and public owner-


Games site. Sydney Morning Herald, 30 ship and urban transport. Urban Policy
May 2000a. and Research, 15, p. 56-58, 1997.

__________. Superdoom. Sydney Morn- RICH, W. R. (Ed.). The Economics and


ing Herald, 10 June 2000b. Politics of Sports Facilities. Westport:
Quorum, 2000a.
__________. What do we do with Olym-
pic Park? Sydney Morning Herald, 26 __________. Conclusion. In: __________.
Oct. 2000c. (Ed.). The Economics and Politics of
Sports Facilities, Westport: Quorum,
__________. Call for new dreams to re- 2000b.
Glen Searle 25

R OSENTRAUB , M. S. et al. Sport and Policy and Research, 18, p. 355-376,


downtown development strategy: if you 2000.
build it, will jobs come? Journal of Ur-
ban Affairs, 16, p. 221-239, 1994. SIDLOW, E. L.; HENSCHEN, B. M. Building
ballparks: the public-policy dimensions of
ROYAL AUSTRALIAN I NSTITUTE OF ARCHI - keeping the game in town. In: RICH, W. R.
TECTS. Draft post Olympic Masterplan. (Ed.). The Economics and Politics of
Architecture Bulletin, p. 5-6, Oct./Nov. Sports Facilities. Westport: Quorum, 2000.
2001.
ZIMBALIST, A. Baseball and Billions: A
SEARLE, G. New roads, new rail lines, new Probing Look Inside the Big Business of
profits: privatisation and Sydney’s recent Our National Pastime. New York: Basic
transport development. Urban Policy Books, 1992.
and Research, 17, p. 111-121, 1999.
__________. The economics of stadiums,
SEARLE, G.; CARDEW, R. Planning, eco- teams, and cities. In: RICH, W. R. (Ed.).
nomic development and the spatial out- The Economics and Politics of Sports
comes of market liberalisation. Urban Facilities. Westport: Quorum, 2000.

Resumo Abstract
Os dois principais estádios para os Jogos The two main stadiums for the Sydney
Olímpicos de Sydney foram construídos Olympic Games were developed by the
pelo setor privado, com a ajuda do estado private sector with state assistance to
para reduzir custos governamentais e ris- reduce government costs and risks. In
cos. No período posterior aos Jogos, os the post-Olympic period, both stadiums
dois estádios têm tido grandes perdas de have experienced major revenue short-
receita, sendo então ameaçada sua viabi- falls which threaten their viability. This
lidade. Essas perdas são causadas pela has been caused by competition from
competição de antigos, embora meno- pre-existing, though smaller, state-owned
res, estádios do governo e pela falta de stadiums and lack of potential major
eventos e competições esportivas impor- sporting and other events. In part to help
tantes. Em parte para ajudar os estádios the Olympic stadiums, the government
olímpicos, o governo elaborou um plano has produced a master plan for a major
diretor para promover um desenvolvi- urban development: Olympic Park. The
mento urbano de porte no Parque Olím- article illustrates the risks of partnership
pico. Este artigo busca apontar os riscos development of specialized infrastructure,
26 Legado incerto: os estádios olímpicos de Sydney

de parcerias de desenvolvimento de and the way in which special events can


infra-estrutura especializada e o modo lead urban development.
como eventos especiais podem direcio-
nar o desenvolvimento urbano.

Palavras-chave : Jogos Olímpicos; Keywords : Olympic Games; Sydney;


Sydney; instalações esportivas. sporting facilities.

Glen Searle é professor sênior em planejamento urbano na Universidade de


Tecnologia, Sydney (Austrália). Foi gerente substituto de políticas do Departamento
de Planejamento de New South Wales e pesquisador sênior do Departamento Bri-
tânico do Meio Ambiente. Editor de artigos do Urban Policy and Research, sua
pesquisa direciona-se principalmente à economia política do planejamento recente
de Sydney e, secundariamente, ao funcionamento urbano de aglomerados indus-
triais de economia avançada.
Projetando paisagens holísticas

Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e


Dick Cobb

Este trabalho avalia a potencialidade da construídas a partir da história social e


implantação da abordagem da paisa- da moralidade, das preferências pessoais
gem holística à administração rural para e de ideais, e da implementação de po-
obtenção de benefícios ambientais, con- líticas agrícolas, florestais e de conserva-
servação da biodiversidade e amenidade. ção. A cultura e a biota se entrelaçam
Descrevemos novos desenvolvimentos através da administração individual do
metodológicos que incorporam o soft- solo, da interpretação social e da con-
ware SIG (Sistemas de Informações dução de políticas. O resultado é uma
Geográficas), bem como técnicas de vi- combinação de influências que resulta
sualização no processo de desenvol- em uma composição de características
vimento e representação de cenários que podem ser amadas ou detestadas.
futuros de paisagens desejadas a fazen- O que não existe, no momento, é um
deiros e partes interessadas. Ilustramos projeto consciente e premeditado de pai-
essas descrições por meio de um estudo sagens holísticas que vá além dos limites
de caso, em Oxfordshire, que avaliou definidos por uma única propriedade e
as restrições socioeconômicas e as opor- que una cultura e ecologia de modo cria-
tunidades para a biodiversidade e para tivo e objetivo para produzir benefícios
a valorização da paisagem. específicos. Matlass (1997) cita John
Dower (1944, p. 95-96), o arquiteto dos
O conceito de paisagem possui vá- parques nacionais da Inglaterra e do País
rias origens. Meinig (1979), Cosgrove de Gales. Dower procurava uma “equi-
(1984) e Matlass (1997) procuram mos- pe experiente de amantes da paisagem”
trar que as imagens da paisagem são para determinar as características e a

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIX, Nos 1-2, 2005, p. 1-40
2 Projetando paisagens holísticas

tipologia da beleza e da associação cultu- e a administração de habitats e de outros


ral em paisagens protegidas. Ele acredi- elementos da paisagem para gerar be-
tava que grupos que se auto-intitulavam nefícios ambientais específicos, ameni-
defensores da paisagem assumiriam a dades e biodiversidade (Cobb, Dolman
defesa do design da paisagem holística, e O’Riordan, 1999). Há um crescente
que a próxima geração estaria ansiosa reconhecimento da importância de tal
por apoiar. Matlass (1997) sugere que, abordagem para alcançar a conservação
por trás desse apelo, há uma preferência da biodiversidade. Por outro lado, onde
pela ordem e pelo controle da ecologia indivíduos de uma espécie vagueiam por
da paisagem e da estética que gera re- toda a paisagem, a administração que
sultados predeterminados. visa atingir uma população regional viá-
vel requer mais do que uma abordagem
Apesar da adoção de técnicas apa- baseada no local. De modo geral, uma
rentemente objetivas, tal como a Análise combinação obtida por resultados quase
da Natureza da Paisagem (CC, 1987, insignificantes e por uma inexistência de
1996), a apreciação e o design da pai- dinâmicas de caminhos de interferências
sagem permanecem impregnados por apropriados está gradativamente enfra-
valores e continuam subjetivos. Além quecendo o valor da biodiversidade de
disso, essas técnicas se mostram propen- muitos locais considerados essenciais e
sas a uma preservação reativa de paisa- levando a uma ênfase na restauração e
gens culturais relativamente recentes em na criação de blocos e redes extensas
vez de uma valorização obtida com uma de habitat (por exemplo, Kirby, 1995;
mudança visionária. Em contrapartida, CNP, 1997; Dolman e Fuller (2003).
a emergente disciplina quantitativa da Essa ênfase é complementada pela de-
ecologia da paisagem avalia a maneira signação estatutária de paisagens contí-
como a estrutura e a justaposição de guas como as das Áreas de Proteção
elementos da paisagem afetam suas fun- Especial e das Áreas de Conservação
ções no que se refere a processos de ecos- Especial sob a Diretiva de Pássaros e a
sistemas, a resistência a mudanças e a Diretiva de Habitat e Espécies da Co-
regulação da qualidade ambiental e da munidade Européia (CEC, 1979 e 1992
dinâmica dos conjuntos de espécies e de respectivamente). Além disso, a última
populações individuais (Dunning, Daniel- diretiva enfatiza explicitamente medidas
son e Pulliam, 1992; Forman, 1995; Fry rurais mais amplas e uma extensa res-
e Sarlov-Herlin, 1995). Essa disciplina tauração do habitat como meios para
fornece uma base vaticinadora para a recuperar o estado de conservação fa-
elaboração de “paisagens holísticas”. vorável (Andrews, 1994). A ênfase em
medidas de restauração em grande es-
A abordagem da “paisagem holísti- cala também é proveniente dos Planos
ca” pode ser definida como um processo de Ação da Biodiversidade (DoE, 1994,
de planejamento integrado que supera 1995) e do desenvolvimento dos Perfis
divisas de propriedades e otimiza a de Áreas Naturais da English Nature.
quantidade, a localização, a configuração
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 3

No entanto, várias restrições impe- et al., 1998; MacFarlane, 2000a). Como


dem a realização e a implantação da demonstramos a seguir, ao ligar dados
abordagem da paisagem holística. Uma SIG ao software de visualização, tornou-
delas é a relutância dos que elaboram se possível modelar e apresentar, de um
leis e políticas em desafiar os direitos de modo que lhes era compreensível, tendo
propriedade individual. Conseqüente- como base uma perspectiva campo a
mente, os instrumentos de planejamen- campo, um futuro possível de várias fa-
to e os esquemas agroambientais não zendas para proprietários e administra-
conseguem garantir a cooperação que dores.
ultrapassa divisas entre fazendeiros vizi-
nhos, exceto quando há condutas vo- Também surgiram outras oportuni-
luntárias (Cobb, Dolman e O’Riordan, dades para realçar as perspectivas para
1999; MacFarlane, 2000b). Essa é uma a elaboração da paisagem holística. A
deficiência séria, porque a dependência introdução da Rural Development Re-
de adoções voluntárias, descoordenadas gulation (RDR) (CEC, 1997) representa
e ad hoc, de prescrições agroambientais mais um importante redirecionamento
não assegura a conservação da biodiver- da política da CE, por distanciar-se da
sidade ou da paisagem nem, tampouco, Common Agricultural Policy (Política
sua restauração ou valorização. Isso é agrícola comum) de apoio à produção
ilustrado pela substancial erosão de agrícola intensa que reduziu de maneira
amenidades estéticas e da biodiversida- substancial a diversidade de espécies e
de dentro de paisagens cultivadas que de habitats contidos nas paisagens culti-
permanecem em alguns casos, apesar das vadas (por exemplo, Kleijn e Verbeek,
estipulações dos Environmental Sensi- 2000; Siriwardena et al., 2001). Esse
tive Area e/ou National Park (por exem- desenvolvimento potencialmente radical
plo, Buckingham, Chapman e Newman, gera muitas oportunidades para a res-
1999; RSPB, 2001). Relacionado a isso, tauração planejada de paisagens.
está a usual insuficiência de leis de direi-
tos de propriedade. Sob as leis britânicas Com o objetivo de deslocar a base
comuns não existe responsabilidade além de apoio para obter o desenvolvimento
da posse, embora a coletividade da pai- rural sustentável, a RDR combina nove
sagem não possua um status legal formal medidas rurais existentes. A política de
(O’Riordan e Sayer 1999). integração de medidas ambientais na
sustentabilidade está presente no Trata-
Um outro impedimento foi a inexis- do de Amsterdã da União Européia.
tência, até recentemente, de um meca- Desde a aprovação desse tratado, em
nismo de visualização do futuro aspecto 1997, a Comissão Européia tem consis-
da paisagem integrada “no horizonte”. tentemente procurado alinhar estes dois
A sofisticada tecnologia SIG foi reconhe- objetivos fundamentais com a política
cida como uma ferramenta eficaz na ela- agrícola. Para a RDR ser aceita como pro-
boração de futuras escalas paisagísticas grama de desenvolvimento rural regio-
(por exemplo, Harms, 1995; Swetnam nal, todos os Estados Membros precisam
4 Projetando paisagens holísticas

ampliar as bases das medidas agroam- reflorestamento e esquemas de aposen-


bientais. Além disso, através da “modula- tadoria precoce. Cada uma dessas me-
ção”, os Estados Membros podem agora didas atrai subvenções de até 50% da
redirecionar até 20% de pagamentos de Comissão, e o Estado Membro fornece
subsídios à produção existente para “me- a outra metade. O Quadro 1 apresenta
didas de acompanhamento”, tais como estimativas iniciais para o orçamento da
programas agroambientais mais amplos, RDR para a Inglaterra.

Quadro 1: Estimativa preliminar de orçamento RDR para a Inglaterra.

Na Inglaterra, durante o período de sete anos 2000-2006, o equivalente a 1,6


bilhão de libras esterlinas foram injetados em esquemas RDR por meio de finan-
ciamentos do England Rural Development Plan (Plano de Desenvolvimento
Rural da Inglaterra) (Maff, 2000). No período 2000-2003, na revisão de gastos
abrangentes da Grã-Bretanha, cerca de 1 bilhão de libras esterlinas foram des-
tinadas a medidas RDR inicialmente objetivadas no England Rural White Paper.
Os gastos agroambientais absorveram cerca de 75% do total do England Rural
Development Plan, subindo de 90 milhões de libras esterlinas, em 2000, para
150 milhões em 2006-2007. Espera-se que a modulação dê uma renda de 50
milhões de libras esterlinas em rendimento deslocado na mesma época, com
financiamento similar do Tesouro. Para análise adicional, ver Rutherford e Hart
(2000).

Mais recentemente, o governo da Grã- da prática e, também, das metas dos se-
Bretanha criou um novo departamento, tores agrícolas da cadeia de alimentos
o Departamento para o Ambiente, Ali- (por exemplo, Ends, 2001, p. 33; Eve-
mentos e Assuntos Rurais (Defra), que rett, 2001).
assumiu as responsabilidades do antigo
Maff. Isso representa um deslocamento Já é possível unir dados SIG e ferra-
concomitante da ênfase em direção a mentas de visualização a cenários inte-
uma política rural que gere benefícios grados de paisagens ecológicas e cênicas
mais amplos. Ao mesmo tempo que os holísticas. Os fazendeiros já podem ver
preços da produção caem em toda a como se afiguraria uma paisagem consi-
indústria agrícola britânica, o setor de deravelmente diferente e, também, bus-
criação torna-se caótico após a ocorrên- car recursos para criá-la coletivamente.
cia de casos de encefalite espongiforme Segue-se uma primeira tentativa de mos-
bovina e de febre aftosa. Essa situação trar como tal oportunidade pode ser
provocou renovados apelos para uma aproveitada.
reavaliação fundamental da estrutura,
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 5

O estudo da região oeste de Oxfordshire


Para investigar o que seria necessário para o futuro e suas posições em
para alcançar uma paisagem agrícola relação à participação em esquemas
contígua, foi preciso descobrir um pe- de subvenções agroambientais;
daço de terra que pudesse ser adminis- — desenvolver e implantar uma me-
trado como um todo. O National Trust 1 todologia para avaliação ecológica
sugeriu a propriedade de Buscot e Coles- padrão de um pedaço de campo
hill como local apropriado. Essa proprie- contíguo;
dade está localizada nas divisas entre — incorporar informações obtidas com
Oxfordshire, Gloucestershire e Wiltshire essa avaliação a outros dados físicos
(Figura 1). Engloba terras na área inun- em um banco de dados SIG;
dável do Alto Tâmisa e parte da Cadeia — desenvolver quatro cenários plausí-
de Montanhas Midvale e abrange 11 fa- veis para paisagens futuras na área
zendas, em um total de três mil hectares. de estudo, em cooperação com um
Essas fazendas são arrendadas e desfru- grupo de agências de administração
tam de bastante liberdade em suas ad- da terra, abrangendo a conservação
ministrações individuais. Entretanto, no da vida selvagem, amenidades, pla-
momento de negociar e renovar acor- nejamento, área florestal e adminis-
dos de arrendamento, o National Trust tração da terra em geral;
pode oferecer incentivos e diretrizes para — produzir mapas em formato grande
a administração ambiental na fazenda. (A0) e visualizações em 3D, produ-
Isso representa uma oportunidade ex- zidas por computadores, da paisa-
traordinária para uma integração da ad- gem atual e dos cenários, para
ministração que ultrapassa divisas de fornecer visões de mudanças poten-
fazendas. Conseqüentemente, amplia- ciais da paisagem e permitir que di-
mos a área de estudo para incluir um ferentes métodos de visualização
adicional de 23 fazendas independen- sejam comparados;
tes, contíguas à propriedade do National — interpretar e resumir visualmente be-
Trust, procedimento que estendeu a nefícios ambientais e ecológicos da im-
área total de estudo para cerca de 110 plantação das diversas prescrições de
quilômetros quadrados. cenários em uma escala de paisagem;
— avaliar as respostas de proprietários
Nossos objetivos de pesquisa podem de terras e de administradores da
ser resumidos da seguinte maneira: área em relação aos cenários alter-
nativos e identificar implicações po-
— obter a participação de fazendeiros tenciais para as futuras economias e
na pesquisa e identificar suas práticas administrações das fazendas, caso
de administração atuais, seus planos cada cenário seja adotado.

1
O National Trust é o órgão responsável pela conservação do patrimônio histórico e natural.
Seria o equivalente, na Inglaterra, ao que no Brasil é o Instituto de Patrimônio Histórico e
Natural (IPHAN). N. da Rev. da T.
6 Projetando paisagens holísticas

Figura 1: Mapa mostrando a localização da área de estudo.


Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 7

Metodologia: pesquisas com fazendeiros,


características da paisagem e habitat da vida selvagem

A área de estudo é formada por 34 e campos dentro da paisagem cultivada.


fazendas. Entre os fazendeiros, apenas Os limites de campos foram identificados
três se recusaram a participar e nenhum em mapas OS de escala 1:25000 e todas
desses casos representava uma quanti- as divisas foram visitadas e classificadas
dade significativa de terras. Realizamos por tipos (terra cultivada/mudança de
três grupos de entrevistas com eles. Após colheita/margem do campo/cerca e cerca
o contato inicial, visitamos as 31 fazendas viva). Em cada um dos 745 limites de
incluídas no estudo para explicar o ob- campos rodeados por cerca viva, foram
jetivo e a metodologia do projeto e, ao registrados o padrão e a composição de
mesmo tempo, para identificar as terras espécies de arbustos com a utilização da
administradas por eles e a natureza de escala DAFOR, a estrutura física da cerca
suas atividades. O segundo grupo de en- (altura e largura em metros, espaçamen-
trevistas, realizado em abril e maio de to em uma escala comum que variava
1998, novamente nas 31 fazendas, vi- de zero, cerca inteira, a cinco, predomi-
sava à coleta de dados socioeconômicos nância de vazios), e os tipos de colheitas
pormenorizados e, em seguida, às res- adjacentes e de vegetação marginal.
postas relacionadas às iniciativas agroam-
bientais, às tendências sobre opções Pesquisas ecológicas pormenorizadas
paisagísticas futuras e ao potencial de adicionais se concentraram em indicado-
colaboração que transpõe divisas de res de grupos selecionados; plantas com
propriedades. Na conclusão do estudo, flores, pássaros e borboletas. A abundân-
foi feita uma visita final ao subconjunto cia e a composição de pássaros e borbo-
desses fazendeiros para avaliar suas res- letas de cercas vivas foram registradas a
postas aos cenários de paisagens visua- partir de um subconjunto de 98 seções
lizados. de cercas vivas independentes com 50
metros, para estratificação da estrutura,
Foram identificadas e pesquisadas, do tipo de colheita adjacente e do tipo
para incorporação no banco de dados de fazenda (reconhecimento de cinco ca-
SIG, características paisagísticas básicas tegorias com base na administração da
nos 110 quilômetros quadrados da área fazenda e nos níveis de aplicação de pes-
de estudo. Os bosques foram registrados ticidas: orgânicos, de conversão ou tran-
e classificados. Locais onde a preserva- sição, aráveis convencionais, mistura
ção da natureza era importante (Sites convencional de cultivo e criação de ani-
of Special Scientific Interest - SSSIs e mais, diário convencional). As espécies
County Wildlife Sites) foram identifica- foram registradas segundo a metodolo-
dos em registros do condado. Grande gia de Green, Osbourne e Sears (1994)
parte da pesquisa se concentrou na ca- para pássaros de cercas vivas e segundo
racterização e no mapeamento de cercas técnicas padronizadas para monitoração
8 Projetando paisagens holísticas

de borboletas cortadas transversalmente da cerca viva. A composição das espé-


(Pollard, 1977). Cada seção de cerca foi cies de plantas nas áreas marginais foi
visitada duas vezes para a pesquisa dos pesquisada nas adjacências dos cultivos
pássaros (maio e junho) e três vezes para orgânicos e convencionais (fossem eles
a das borboletas (junho, julho e agosto); realizados de forma intensa ou não). Os
os registros para cada seção eram reuni- resultados dessas pesquisas caracterizam
dos nas visitas. A composição das espécies os recursos de vida selvagem da paisa-
foi, então, relacionada às características gem agrícola existente, e suas análises
da cerca viva, inclusive sua estrutura e mostram os efeitos de administrações
administração, à composição do arbusto diversas na composição e abundância
e à composição da vegetação marginal das espécies.

A estrutura das fazendas dentro da área de estudo

De modo geral, as 31 fazendas estuda- Nos últimos cinco anos, essa estru-
das variavam de propriedades ocupadas tura vem mudando. As duas fazendas
pelos donos a arrendadas, de tamanhos com mais de 700 hectares aumentaram
e métodos operacionais diversos. Nas de tamanho; seis fazendas na faixa de
11 fazendas do National Trust, todos os 300-700 ha e cinco na de 100-300 ha
fazendeiros, exceto um, possuem terras também se expandiram. Neste último
fora da propriedade que administram. grupo, comparadas a duas na faixa de
Um dos fazendeiros possui um substan- 300-700 ha, quatro das cinco compra-
cial pedaço de terra ao sul da proprieda- ram mais terras. Três outras fazendas do
de, cinco outros possuem terras alugadas grupo de 300-700 ha também utilizaram
e próprias adicionais, e os quatro restan- contratos de exploração para incremen-
tes alugam outras fazendas e campos. tar suas atividades. Nas duas maiores
O primeiro grupo de entrevistas forne- operações, uma adota uma política de
ceu as informações apresentadas na Ta- expansão rápida mediante a compra de
bela 1. qualquer terra disponível na região (mais
de mil hectares foram comprados entre
1993-1998) e a outra está se ampliando
Tabela 1 : Perfil das 31 fazendas. por meio de contratos de exploração.
As fazendas menores não aumentaram
Número de de tamanho. As circunstâncias da admi-
Tamanho (ha)
fazendas nistração individual estão claramente in-
50-100 3 fluenciando a mudança estrutural.
100-300 13 Em relação à classificação das fazen-
300-700 13 das em toda a área de estudo, 10 são
700 + 2 basicamente de cultivo, 12 apresentam
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 9

uma mistura de cultura, produção de Em relação à economia, enquanto


leite e de carne, uma se concentra no 14 fazendas obtêm toda a sua renda
cultivo da terra e na criação de porcos com a própria exploração ou com a de
(acrescentando valor ao alimentar a cria- atividades relacionadas (diversificação na
ção com boa parte dos produtos culti- fazenda), outras 14 tiram mais de 50%,
vados), uma cultiva uma parte da terra, e apenas uma aufere 25%. Em termos
mas basicamente se dedica à produção de lucratividade, quando pesquisadas
de leite e de carne, e duas possuem uma em 1998, 26 fazendas obtiveram lucro
alta proporção de terras em descanso a nos cinco anos anteriores, três tiveram
longo prazo (uma delas possui um pasto perdas no último ano, e duas apresen-
adicional para alimentar um rebanho de taram resultados mais mistos.
ovelhas).

A reação dos fazendeiros às medidas ambientais

Durante o segundo conjunto de entre- da paisagem. Apesar disso, a maioria


vistas, os fazendeiros responderam a mantinha uma atitude pragmática em
uma série de afirmativas sobre explora- relação ao subsídio público para medi-
ção agrícola, conservação, paisagem, das ambientais e de conservação; embo-
direitos de propriedade e temas econô- ra oito acreditassem que a conservação
micos rurais, classificando-os em uma ainda poderia ser alcançada na ausência
escala que variava de “concordo plena- de suporte público, a grande maioria (22
mente” a “discordo inteiramente”. A em 31) achava que o subsídio público
Tabela 2 resume essas respostas. Dos 31 era necessário. No entanto, resta uma
respondentes, 20 concordaram que a intransigente minoria que rejeitou as
terra privada deveria ser administrada preocupações com a paisagem e a bio-
no interesse da zona rural e da paisagem diversidade ou com qualquer obrigação
(somente sete discordaram). A sugestão moral em relação à proteção das neces-
de que o investimento na conservação sidades mais amplas das sociedades. Em
significava uma perda de tempo e de muitas circunstâncias, são esses fazendei-
esforços, exceto se gerasse lucro, foi rejei- ros que controlam as maiores áreas e
tada por 18 respondentes (apenas nove que buscam implacavelmente uma polí-
concordaram). A afirmativa mais categó- tica de expansão. Além disso, uma pro-
rica, a de que a única preocupação dos porção substancial de fazendeiros sentia
usuários da terra é a lucratividade, foi que tanto as medidas ambientais e de
também rejeitada pela maioria. Isso in- conservação quanto a agricultura susten-
dica que, além das demandas imediatas tável infringiam seus direitos de proprie-
de seus negócios, a maior parte dos fa- dade e, portanto, a liberdade para
zendeiros sente uma certa responsabili- administrar “suas terras” como bem qui-
dade ou preocupação pela conservação sessem.
10 Projetando paisagens holísticas
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 11

Questões específicas sobre a adoção fazer na próxima década. Isso se deve,


de medidas agroambientais geraram as em parte, às deteriorantes circunstâncias
seguintes respostas. Dezesseis fazendeiros econômicas, mas é resultado também
disseram que considerariam a opção. dos direitos de propriedade, oportuni-
Entre eles, seis já estavam no CS (Plano dades, disponibilidade de fundos de in-
de administração rural) e três eram mem- vestimento e variações nos padrões dos
bros do ESA (Plano de área ambiental- mercados de alimentos. Descobrimos
mente sensível). Dez fazendeiros disseram que dois fazendeiros criadores de animais
que não participariam de medidas agro- tinham iniciado o caminho para a pro-
ambientais adicionais, embora um deles dução orgânica na crença de que o ágio
estivesse no CS e três estivessem no ESA. do leite orgânico neutralizaria a queda
do preço do leite. Um deles considerava
Entre os 15 fazendeiros que admiti- seriamente a conversão total para a pro-
ram a participação em políticas mais dução orgânica, embora a falta de ga-
amplas de administração da paisagem, rantias no esquema transicional de ajuda
cinco estavam no CS e quatro no ESA. estivesse fazendo com que ele protelasse
Entre os sete que não estavam inclinados sua decisão.
a se envolver em uma opção paisagística
mais ampla, um deles estava no CS e Em geral, os entrevistados não pla-
três no ESA. Um dos fatores que poderia nejavam fazer algo muito diferente na
estar interferindo nessa resposta é o rela- próxima década. Procurariam ser mais
cionamento entre dono da terra e arren- eficientes, intensificariam o que fosse viá-
datário. Nas fazendas do National Trust, vel, contratariam mão-de-obra e maqui-
quatro fazendeiros possuíam alguma nário de acordo com as oportunidades
terra no CS e dois fazendeiros qualificados e necessidades que surgissem, talvez re-
entraram para o ESA. Quatro não se can- duzissem a quantidade de mão-de-obra
didataram para o CS e um fazendeiro contratada, e procurariam manter a vida
não entrou para o plano do ESA. Sem selvagem e aqueles aspectos que asse-
outros vínculos a programas e instituições gurassem as amenidades de suas proprie-
estatais, dois fazendeiros entraram para dades quando fosse possível. Partindo
o CS e seis para o ESA. Dezoito não acei- disso, as conclusões do estudo foram:
taram nenhuma das opções do CS e três
dos qualificados não aderiram ao ESA. — nenhum fazendeiro planejava largar
Aluguéis mais baixos e pressões exercidas o negócio;
pelos donos da terra podem ter influído. — a mão-de-obra provavelmente di-
minuiria em 10%;
— em função de mudanças na admi-
Futuros projetos de admi- nistração do campo, previa-se uma
nistração dos fazendeiros pequena perda da vida selvagem,
mas ela seria inexpressiva;
Todos os fazendeiros entrevistados se — a paisagem total provavelmente não
mostravam incertos sobre o que poderiam ficaria muito diferente.
12 Projetando paisagens holísticas

Condição ecológica da paisagem

De modo geral, a área de estudo conti- A área de estudo continha 42 km2


nha uma grande variedade de habitats de campos cultiváveis, a maioria deles
de vida selvagem, cujas características, intensamente aproveitada até os limites
no entanto, eram invariavelmente não- do campo, sem virtualmente nenhum
agrícolas, tais como bosques antigos ou habitat de vida selvagem. As faixas que
rios protegidos em virtude de políticas circundavam campos cultivados conven-
e programas estatais. Em contraste, a cionalmente possuíam poucas espécies
fazenda, em si, estava biológica e eco- de plantas floríferas, mas as relativas aos
logicamente empobrecida, apesar da campos orgânicos, ou em processo de
conservação superficial de alguns “as- conversão, apresentavam um número
pectos paisagísticos” esteticamente significativamente maior de espécies (Ta-
agradáveis. bela 3).

Tabela 3 : A riqueza de espécies de plantas vasculares nas faixas de terra que


circundavam os campos de cinco fazendas com administrações diferentes.
Convencional / Convencional /
Convencional /
Orgânico Convertendo tradicional intensivo Anova
intensivo
(fazenda 1) (fazenda 2)
F =50,17,
6,8a 0,3 (40) 6,1a 0,3 (48) 4,2b 0,2 (48) 3,8b 0,3 (36) 2,4c 0,2 (48)
p<0,001
Nota : Para cada fazenda/categoria de administração, a média e o erro padrão da riqueza de
espécies de plantas por quadrats 2 de m2 são fornecidos. Os dados foram coletados em
uma estrutura de amostragem aninhada; com 5-7 faixas não cultivadas replicadas para
cada fazenda e uma média de 7 quadrats por faixa. Tamanhos de amostras em parên-
teses correspondem ao número de quadrats. Os resultados das análises de variância
(incorporando faixas como um fator aninhado dentro da categoria da fazenda) e teste de
comparação múltipla subseqüente são apresentados; médias de categorias que compar-
tilham a sobrescrição comum não diferem significativamente (teste de Tukey, p>0,05).
“a”, “b” e “c” indicam subconjuntos homogêneos identificados pelo teste de Tukey de
comparação múltipla.

Embora tenham sido identificados ção era feita por uma faixa de grama,
422 km de cercas vivas na área de estu- por uma cerca ou por uma mudança
do, um adicional de 138 km de divisas de tipo de lavoura. Na área de estudo,
de campos não as possuía, e a delimita- muitas cercas estavam em condições

2
Área pequena e usualmente retangular preservada especialmente para o estudo da vegetação
ou de animais. N. da Ed.
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 13

ruins, por terem sido cortadas muito (desvio padrão = 1,5, n = 97) por seção
rentes e com muita freqüência; das 745 de 50 metros. As cercas que circundam
cercas vivas pesquisadas, 44% eram os campos orgânicos cultivados da área
cortadas todos os anos, 38% possuíam de estudo apresentavam um número
menos de 2 m de altura e 12% apre- de espécies de plantas significativamente
sentavam intervalos “abundantes” ou maior do que as margens adjacentes de
“predominantes”. Como conseqüência, campos cultivados convencionalmente
houve grande redução de seu valor e (Tabela 4). A Tabela 5 mostra a freqüên-
interesse ecológico como habitats de vida cia da ocorrência de 14 espécies de bor-
selvagem. boletas registradas durante a pesquisa.
As espécies mais abundantes tendiam a
Embora houvesse uma moderada ser as predominantemente associadas à
diversidade de árvores e de espécies de agricultura (por exemplo, pierídeos). Até
arbustos dentro das cercas vivas (média mesmo as consideradas nacionalmente
de 5,0 espécies de arbustos por 50 me- onipresentes, tais como a inachis io, a
tros, desvio padrão = 2,2, n = 97), a pironia ithonius e a maniola jurtina, não
riqueza de espécies de categorias asso- eram comuns na paisagem, embora es-
ciadas era geralmente baixa, com uma pécies mais raras como a polyommatus
média de 9,2 espécies de plantas vas- icannus e a lycaena phlaes fossem re-
culares nas margens (desvio padrão = presentadas por apenas alguns registros.
5,1, n = 97), apenas 2,5 espécies de Isso enfatiza a degradação ecológica da
pássaros (desvio padrão = 2,0, n = 93) paisagem agrícola atual.
e somente 2,0 espécies de borboletas

Tabela 4 : A riqueza de espécies de plantas vasculares de margens-cercas em


relação à administração de campos adjacentes.

Convencional Convencional Convencional


Orgânico Convertendo Anova
Cultivável Mista Gado

F =3,06,
12,9a 3,8 (15) 8,5a,b 5,4 (13) 6,1b 2,9 (8) 8,3a,b 5,6 (28) 8,5a,b 5,7 (14)
p=0,0217

Nota : Para cada categoria de administração, são fornecidos a média e o erro padrão da riqueza
das espécies de plantas de margens por seção de 50 metros; os tamanhos de amostras
em parênteses são os números das seções replicadas. Os resultados das análises da
variância e teste de comparação múltipla subseqüente são apresentados; as médias que
compartilham uma sobrescrição comum não diferem significativamente (teste de Tukey,
p>0,05). “a” e “b” indicam subconjuntos homogêneos identificados pelo teste de Tukey
de comparação múltipla.
14 Projetando paisagens holísticas

Tabela 5 : Graduação de abundância de espécies de borboletas registradas em


seções de cercas vivas durante trabalho de pesquisa. Cada cerca viva
recebeu três visitas. Foi utilizada uma metodologia padronizada.
Número de seções de cercas
Espécies vivas onde as espécies foram
registradas (total = 98 seções)
Aglais urticae 53
Pieris rapae 38
Pieris napi 28
Pararge aegeria 15
Pyronia ithonius 12
Aphantotpus hyperantus 10
Maniola jurtina 8
Inachis io 8
Pieris brassicae 7
Ochlodes venatus 5
Polygonia c-album 2
Polyommatus icanus 2
Lycaena phlaes 1
Vanessa atlanta 1

Construção e visualização do banco de dados SIG


Com a utilização de Arc/Info SIG (Esri, divisas de campos e de cercas, limites
1997), foi criado um banco de dados das fazendas e zonas inundáveis. Essas
de mapa digital para a área de estudo. informações sobre a situação atual foram
Foram utilizadas duas fontes principais: subseqüentemente modificadas para
mapas vetoriais com escalas digitais criar camadas de mapas equivalentes
1:2500 (Land-Line®) e dados de ele- para os diferentes cenários. Em algumas
vação Land-Form Panorama®, ambos circunstâncias, as mudanças eram tão
fornecidos pelo Ordnance Survey (OS). pequenas que foi possível copiar direto
Dentro do SIG, foi necessária uma con- os arquivos existentes e fazer as alterações
siderável edição de dados do Land-Line. necessárias por meio de edição e reco-
Primeiro, para criar polígonos fechados dificação manuais. Nos casos mais com-
que definissem cada campo através da plexos, foram utilizados macros SIG (isto
combinação de vários detalhes de linhas é, seqüências de comandos) elaborados
contidos nos dados do Land-Line (Ord- para implementar conjuntos de opera-
nance Survey, 1997) e, segundo, para ções (por exemplo, para gerar faixas de
anexar características da pesquisa eco- separação de tamanhos diferentes ou
lógica e do questionário do fazendeiro. selecionar divisas de campos para res-
Foram criadas coberturas vetoriais que tauração ou plantação de cercas).
incluíam cobertura da terra, tipos de
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 15

Métodos de visualização

Para mostrar características atuais e pos- jo de Kelmscott e do rio Tâmisa. Esse


síveis paisagens futuras foram utilizadas mapa foi especificamente elaborado
duas abordagens. A primeira envolvia para exibição em tons de cinza e, em-
uma série de grandes mapas coloridos bora as gradações e categorias sejam
(tamanho A0). A Figura 2 apresenta um diferentes da versão colorida maior, ele
extrato do mapa da atual cobertura da de fato ilustra o grau de detalhamento
terra para uma área ao redor do vilare- geográfico incluído no banco de dados.

Figura 2: Parte de um dos mapas de tamanho A0 da cobertura atual,


ressombreada para exibição em tons de cinza.
16 Projetando paisagens holísticas

Para complementar os mapas, foram duzidos, os arquivos VRML ficam com-


criadas visualizações em 3D para regiões- pletamente independentes do software
chave dentro da área de estudo. Acha- SIG e podem ser visualizados com um
va-se que essas visualizações seriam navegador da web adequadamente ca-
necessárias porque é difícil obter uma pacitado. A Figura 3 mostra a aparência
noção da paisagem em um mapa 2D. de um modelo para a área de Kelmscott,
Isso se deve a influências topográficas e com a utilização do Cosmo Player e do
aos efeitos de exibição e textura de ca- Netscape. Os controles na parte de baixo
racterísticas tais como prédios, árvores da janela do navegador podem ser usa-
e cercas. Foram investigados vários mé- dos para movimentos sobre a paisagem.
todos de construção de modelos em 3D, É possível também ligar uma série de
mas, no fim, foi selecionada uma abor- panoramas para criar um tour virtual.
dagem baseada na Virtual Reality Mod- Na nossa pesquisa, essa última caracte-
elling Language (VRML), justificada em rística provou ser muito útil na demons-
função dos custos, da facilidade de gera- tração de objetivos.
ção de dentro do SIG e da flexibilidade
de visualização mediante a utilização de Para atingir uma velocidade razoá-
tomadas facilmente disponíveis (por vel de resposta aos controles no mo-
exemplo, um Cosmo Player) para nave- mento de visualizar paisagens VRML em
gadores padrões para a internet, como, um computador portátil, é necessário
por exemplo, o Internet Explorer e o fazer concessões em outros aspectos.
Netscape. Como está aparente no primeiro plano
da Figura 4, vários componentes da pai-
O VRML é um padrão aberto para sagem (por exemplo, limites de campos,
ambientes virtuais em 3D na internet. árvores e prédios) foram representados
Uma “palavra” VRML consiste numa de uma maneira simplificada e simbóli-
série de arquivos que juntos descrevem ca. Optou-se por dar a algumas carac-
a geometria e as características de objetos terísticas menores e estreitas (como, por
em uma cena em 3D (Hartman e Wer- exemplo, margens de campos e zonas
necke, 1996; Doyle, Dodge e Smith, de separação) menos realismo, mas cores
1998). Vários programas SIG podem fortes para que pudessem ficar bem vi-
agora gerar VRML a partir de bancos síveis. Essa resolução foi importante
de dados de mapas; no nosso estudo, para enfatizar mudanças potenciais às
utilizamos os instrumentos de autoria paisagens e permitiu que elementos dos
Pavan que funcionam com o software modelos VRML (em que não houvesse
MapInfo (Smith, 1997). Para detalhes legendas) fossem prontamente relacio-
sobre o modelo de construção VRML, nados aos mapas coloridos.
ver Lovett et al. (2002). Após serem pro-
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 17

Figura 3: Vista de um modelo VRML para a área de Kelmscott visualizada com a


utilização de um Cosmo Player e Netscape.

Figura 4: Uma vista fixa dentro de um modelo VRML simplificado, apropriado


para visualização em um computador portátil.
18 Projetando paisagens holísticas

Quatro cenários de paisagens futuras

Foram imaginados quatro cenários de em sua formulação original. São forne-


paisagens futuras da área de estudo. Um cidas derivações de prescrições porme-
deles, chamado cenário “Natureza da norizadas para os cenários “Natureza da
paisagem”, avaliava medidas para real- paisagem” e “Preservação da biodiver-
çar o visual e o valor das amenidades sidade” nos Quadros 2 e 3 respectiva-
da paisagem. Um cenário alternativo mente. As principais prescrições de
concentrou-se na preservação e, até administração e de mudanças da paisa-
certo ponto, na restauração da biodiver- gem associadas a cada cenário são assim
sidade dentro da paisagem. Esse cená- resumidas:
rio da “Preservação da biodiversidade”
foi dividido em duas variáveis. O cenário Cenário 1 – (Os negócios de sempre).
básico se apoiava em prescrições gene- Foi baseado nos planos do fazendeiro
ralizadas que poderiam ser efetivadas para futura administração da terra. As
através de cooperação cruzada. Uma principais fontes de informação foram
segunda versão incorporava, para a fa- uma pesquisa ecológica padrão e o
zenda e para a localização, prescrições questionário destinado aos fazendeiros
adicionais específicas que exigiriam ne- sobre estratégias de exploração agrícola
gociação individual de acordos de ad- atuais e passadas e reações às propostas
ministração para a sua implantação. Para incluídas na Agenda 2000 (CEC, 1997).
comparar e avaliar esses três cenários Em suas respostas, poucos fazendeiros
possíveis das paisagens futuras deseja- indicaram que estavam planejando
das, investigamos também as prováveis grandes mudanças nas suas operações
mudanças que ocorreriam na inexistên- de cultivo, nenhum deles pretendia dei-
cia de uma coordenação da paisagem xar de produzir leite e apenas cinco afir-
holística. Esse cenário foi chamado de maram que abandonariam a produção
paisagem “os negócios de sempre”. de carne (mais como resultado das difi-
culdades provenientes da crise da en-
Esses três cenários pró-ativos foram cefalite espongiforme bovina do que das
basicamente desenvolvidos por meio de mudanças gerais na política agrícola). Por
meticulosas discussões com diversas or- conseguinte, nesse cenário, as mudanças
ganizações das partes interessadas e por de paisagens foram relativamente sutis.
meio de prescrições adicionais incorpora-
das a partir de recomendações específi- Principais mudanças na paisagem:
cas para as localizações nos documentos
publicados e na orientação do planeja- — limitada conversão de terra cultivada
mento. Esses cenários, ainda em forma- em pastos em várias fazendas;
to de texto e ainda não visualizados com — criação de faixas de separação e
o uso de SIG, foram então validados margens de campos ampliadas em
por grupos de representantes envolvidos uma fazenda.
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 19

Cenário 2 – (Natureza da paisagem). Principais mudanças na paisagem:


Concentrou-se na maximização das ame-
nidades visíveis. O cenário foi montado — conversão de campos em pastos
a partir de discussões com organizações melhorados nas margens de rios se-
de partes interessadas e informações em lecionados;
diversos documentos, entre eles, planos — novos bosques deciduais para escon-
de autoridades locais, avaliações da na- der áreas urbanas;
tureza da paisagem do Countryside — plantação de árvores como pontos
Commission (Comitê Rural), planos da lineares ao longo de estradas, rios e
paisagem do National Trust e provisões riachos;
do ESA. Como a biodiversidade agrega — restauração de cercas vivas e substi-
importante valor ao conjunto das ame- tuição de algumas cercas por cercas
nidades, as propostas incluíam alguma vivas;
administração da preservação, porém — criação de uma área aberta ao redor
concentradas na aparência superficial, do topo da colina de Badbury, de
e não nas prescrições ecologicamente um sítio arqueológico e de um mi-
eficazes. rante.

Quadro 2 : Fontes para prescrição do Cenário 2 – Natureza da paisagem.


Carac terí sti c a Pres crição

Vale do Tâmis a e área inundável (norte do Tâmisa e sul para elevação de solo)
Pasto aumentar área de prados e pasto permanente perto de rios (3);
aumentar área de pasto permanente extensivamente administrado
para fortalecer a natureza da paisagem (2).
Paisagens do Tâmisa preservar a vista que se tem do rio do caminho de sirga(3);
corredores de rios como uma importante fonte de espaço aberto (4);
o Tâmisa possui uma característica de paz e tranqüilidade enquanto
corre entre prados remotos (5).
Salgueiros preservar e administrar a poda de árvores, e criar novas árvores
podadas ao longo de margens de rios e valas para realçar a
qualidade da paisagem (1, 2, 3, 5)
Margem de rio definir a margem de rios com mais árvores ou mudanças na
vegetação (3);
administrar pequenos bosques e soutos negligenciados (5).
Choupos da Lombardia interromper fileira de árvores ordenadas ao longo de margens
inundáveis e árvores remanescentes a serem incorporadas a novos
bosques (3).
Cercas Melhorar a qualidade da paisagem por meio da restauração de
cercas vivas (1, 2).
Continua
20 Projetando paisagens holísticas

Quadro 2 : (Continuação).
Vale do ri o Col e (corre em direção norte através da área de estudo e se junta ao Tâmisa a
oeste de Lechlade)
Pasto mais prados de água a serem desenvolvidos ao longo de áreas inundáveis
do rio (2, 6).
Vale do rio delinear curso do rio com mais salgueiros, árvores e outras vegetações
ribeirinhas (3, 7).
Bosques não fechar a abertura do vale do Cole com novas áreas de bosques criadas (7);
corredores de rios trazem uma contribuição significativa para a natureza da
paisagem, formando também “cadeias verdes” entre áreas abertas (4).
Oxford Clay Val e (entre a área inundável e a Cadeia de Montanhas Midvale)
Terras de fazenda preservar e realçar a qualidade da paisagem por meio da restauração de
ondulantes cercas (1, 2, 3, 6);
cercas-chave administradas para se tornarem mais substanciais, além de
mais árvores de cercas vivas (3).
Vale de cadeias definir riachos nos vales com árvores para formar uma paisagem mais
de montanhas, distinta (3);
áreas de colinas, concentrar mais em bosques com muita folhagem e mais variedade;
basicamente eliminar algumas das florestas coníferas; mais plantação de árvores em
bosques declives mais altos (3).
Bosques mais áreas de bosque para realçar a paisagem e esconder edificações
modernas (3).
Cadeia de Mont anhas Mi dvale (faixa de calcário coralino entre Faringdon e Highworth;
escarpa ao norte, contemplando o vale do Tâmisa e o Oxford Clay Vale; declive mais suave ao
sul através do Lowlands Vale até Downs)
Bosques floresta conífera de Badbury Hill a ser derrubada ao redor das escarpas da
montanha e substituída por um pasto (3);
a paisagem possui um caráter moderado de floresta, e uma boa
administração florestal acentuará esta característica (3, 5);
encorajar a plantação de novas florestas para realçar a paisagem (3, 5, 7);
mais cobertura florestal ao redor de Faringdon para suavizar o limite
urbano (2, 6).
Cercas restauração de cercas vivas da fazenda inteira (1, 3, 5, 6).
Lowl and Vale (basicamente entre Kimmeridge e Gault Clays, ao sul da Cadeia de Montanhas
Cercas replantio de cercas e plantio de árvores dentro de cercas vivas para
restaurar a paisagem (1, 3, 5);
recriar paisagens de cercas vivas e de árvores de cercas vivas pós-
cercamento e realizar boas práticas de administração de cercas vivas
(cercas podadas com árvores) (5, 7).
Bosques ampliar os bosques ao redor de Watchfield e Shrivenham (7);
encorajar o plantio de novas áreas de bosques (em parte para compensar a
perda de tantos olmos) (5, 7).
Corredor A420 ocultar e realçar com mais cercas e árvores (3, 7).
Continua
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 21

Quadro 2 : (Continuação).
R eferênci as
1. Countryside Stewardship in Oxfordshire; supplement to The Countryside Stewardship
Scheme, 1998, Ministry of Agriculture, Fisheries and Food.
2. Proposals for the future of the Upper Thames Tributaries Environmentally Sensitive Area
1999 - 2004: a consultation document, 1998, Ministry of Agriculture, Fisheries and Food.
3. Landscape Plan for Buscot & Coleshill Estate - report for the National Trust, Thames and
Chiltern Region, 1996, Bronwen Thomas.
4. Swindon Borough Local Plan - Deposit Draft 1994; List of Proposed Modifications, 1998,
Swindon Borough Council.
5. Vale of White Horse Local Plan - Deposit Draft 1995, Vale of White Horse District Council.
6. Whole Farm Plan, Stones Farm, Sherborne Estate, 1996, National Trust Estates
Department, Cirencester.
7. Forest Implementation Plan - Faringdon-Shrivenham Framework Plan, 1996, Great Western
Community Forest/Vale of White Horse District Council.

Cenário 3a – (Preservação da biodiver- Habitats & Species Directive priority)


sidade). Foi projetado para divulgar os (prioridades da EC Habitats e da
substanciais benefícios da conservação e Species Directive);
da biodiversidade. Baseava-se em discus- — restauração de cercas vivas; preen-
sões minuciosas com organizações esta- chimento, por plantação, de cercas
tutárias e não-estatutárias, entre elas a degradadas e nova plantação de
English Nature, as County Wildlife Trusts cercas vivas ao longo de todas as
locais e o RSPB, complementadas por divisas de campos que atualmente
literatura científica e perícia da equipe de não possuem uma cerca viva;
pesquisadores. As propostas também — faixas de separação ao redor de ria-
refletiam ações na Cadeia de Montanhas chos e valas, de pasto não melhorado
Midvale, no Tâmisa e na Avon Vales Na- ou de habitat de arbusto ou charco
tural Area Profiles, que aplicaram pres- não administrado; largura de 10 m
crições relevantes no plano do CS e em terra cultivável e 5 m em pasto
recomendações atualizadas para o ESA melhorado;
do Alto Tâmisa à área de estudo como — margens sem plantações ao redor de
um todo. Um acordo abrangente foi acei- todos os campos cultiváveis restantes.
to para todos os habitats.
Cenário 3b – (Preservação da biodiver-
Principais mudanças de paisagem: sidade suplementada). Incorporou todos
os componentes do Cenário 3a, junta-
— reversão de zona sujeita a inunda- mente com várias medidas para locais
ções ao longo dos rios principais e específicos na área de estudo. As impli-
criação de extensos pastos alagados, cações paisagísticas dessa opção foram,
pântanos e áreas não administradas; portanto, as mais substanciais dos qua-
— criação de bosques ribeirinhos (EC tro cenários.
22 Projetando paisagens holísticas

Principais mudanças na paisagem: 50 m em volta de locais de vida sel-


vagem determinados;
— todos os elementos do Cenário de — conversão de campos ao redor de
preservação da biodiversidade bá- nascentes na Cadeia de Montanhas
sico, mais: Midvale para tornar o pasto mais
— criação de faixas de separação de acidentado.

Quadro 3 : Fontes para prescrição dos Cenários 3a e 3b.


Cenári o 3a – Preservação da bi odiversi dade

Carac terís tic a Presc ri ção


Apl ic ável em todos os lugares
Campos faixas não cultivadas ao redor de campos, mais conservação de faixas para
cultiváveis unir e separar habitats de vida selvagens (prioridade fundamental para
BBONT, objetivo básico para EN e prioridade para RSPB) (1, 2, 3, 4, 5, 6);
faixa de 3 m de pasto ao longo de cercas podadas anualmente; entrada
baixa (conservação da margem) para faixa de colheita de 6 m (prioridade
fundamental para BBONT - prescrição detalhada concordada com EN) (4, 6).
Cercas restauração na fazenda inteira (1);
restaurar rede de cercas: replantio de cercas perdidas e preenchimento de
cercas descontínuas (prioridade fundamental para BBONT, objetivo básico
para EN) (4, 6);
mínimo de 2 m de altura x 2 m de largura, preferência para cercas largas,
podadas em rotação (prioridade para BBONT, objetivo básico para EN) (4, 6);
uso de espécies nativas para aberturas e cercas novas (prioridade para
RSPB) (3, 5);
número maior de árvores de cercas vivas (especialmente carvalho, freixo e
salgueiro, onde apropriado) (objetivo básico para EN) (4).
Faixas de faixa de separação não-produtiva de pelo menos 5 m (10 m para terra
separação ao cultivável) de valas e riachos para habitat de vida selvagem (primeira
longo de todos os prioridade para BBONT, prioridade fundamental para EN e prioridade
cursos de água para RSPB) (4, 5, 6, 7);
Dentro da faixa encorajar variedade de habitat: arbustos, juncos, um pouco de grama
cortada (em julho); cercamento pode ser apropriado mas não exigido para
cultivável; preservar em terra de pasto alguns lugares para permitir acesso
dos animais (primeira prioridade para BBONT, prioridade fundamental
para EN) (4, 6).
Vale do Tâmi sa e área i nundável
Terras de fazenda reversão de terra cultivável e de pasto inundável em extensos pastos (feno
inundáveis e pasto no verão – extensa inundação no inverno); (prioridade para
BBONT, prioridade fundamental para EN e prioridade para RSPB) (1, 4, 5,
6, 7);
aumento e proteção para pastos alagados (mantendo ou subindo níveis de
água onde for possível) (1, 3, 6, 7).
Bosques novos bosques inundáveis em margens de rios (dominados por salgueiros,
inundáveis alnos e freixos); (primeira prioridade para BBONT) (3, 6).
Continua
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 23

Quadro 3 : (Continuação).
Val e do rio Col e
Pasto pastos mais extensos em planície inundável (prioridade para BBONT,
prioridade fundamental para EN) (4, 6).
Bosques novos bosques inundáveis nas margens do rio (dominados por salgueiros,
alnos e freixos) a serem criados para aumentar a diversidade de habitats
(primeira prioridade para BBONT) (3, 4, 6).
Cadeia de Montanhas M idval e
Campos incentivar mais colheitas de plantações de primavera para aumentar
cultiváveis habitats para pássaros e flores de primavera (especialmente ervas
cultiváveis) (objetivo básico para EN, prioridade fundamental para RSPB)
(1, 3, 4);
exploração menos intensa da fazenda (reduzir o uso de agrotóxicos) (2, 4).
Val e do Whi te Hors e
Pasto restaurar pasto extensor nas áreas mais baixas, onde se agregam os
maiores benefícios ecológicos (prioridade alta para EN) (4).
R eferênc ias
1. Countryside Stewardship in Oxfordshire; supplement to The Countryside Stewardship
Scheme, 1998, Ministry of Agriculture, Fisheries and Food.
2. Midvale Ridge Natural Area Profile, 1997, English Nature.
3. Thames and Avon Vales Natural Area Profile, 1997, English Nature.
4. English Nature 1997: interview with Keith Payne, conducted by Paul Dolman, 7 October
1997.
5. RSPB 1997: interview with Frank Fuller and David Gibbons, conducted by Paul Dolman, 7
October 1997.
6. BBONT 1997: interview with Iain Corbyn, conducted by Paul Dolman, 23 July 1997.
7. Proposals for the future of the Upper Thames Environmentally Sensitive Area 1999 – 2004:
a consultation document, 1998, Ministry of Agriculture, Fisheries and Food.

Cenári o 3b – Preservaç ão da biodi versidade – s uplement ada

Carac teríst ic a Pres cri ção


Apl ic ável em todos os l ugares
Terras de fazenda mais plantações orgânicas em toda a área de estudo (prioridade menor
para BBONT).
Bosques plantio adicional de bosques ajudaria habitat selvagem (prioridade menor
para BBONT, prioridade baixa para EN).
Árvores de plantio de mais árvores nos pastos (prioridade menor para BBONT).
bosques
Locais de vida todas as áreas de vida selvagem teriam uma zona de separação restaurada
selvagem ao redor, especialmente as adjacentes a charcos existentes; zona de
separação obrigatória de até 50 m (prioridade fundamental para BBONT);
grama permanente e margem de arbustos criadas ao redor de locais de
bosques seminaturais designados (prioridade para EN).
Continua
24 Projetando paisagens holísticas

Q uadr o 3 : (Continuação).
C a de ia de M ont a n ha s M idva l e
Enchentes de campos com enchentes deveriam ser administrados extensivamente,
primavera permitindo o aumento da qualidade da água e a diversidade da fauna e da
flora (precisa ser em pasto não-cultivável (prioridade alta para EN).
Pasto restauração de pasto permanente seminatural, embora haja pouco interesse
de conservação em pasto na área de estudo (prioridade baixa para EN);
reconstrução de pasto ácido de terra cultivável (objetivo para CS).
Bosques promover administração de bosques que vá restaurar um atributo mais
natural, especialmente em solos mais secos: menos coníferas, mais
carvalhos e bétulas (sobretudo dentro de bosques seminaturais já
existentes[“antigos”]) (prioridade objetiva para MVR, prioridade baixa
para EN).
R efe rê nc i as
BBONT: interview with Iain Corbyn, conducted by Paul Dolman, 23 July 1997.
EN: interview with Keith Payne, conducted by Paul D olman, 7 October 1997.
CS: Countryside Stewardship in Oxfordshire: supplement to The Countryside Stewardship
Scheme, 1998, Ministry of Agriculture, Fisheries and Food.
MVR: Midvale Ridge Natural Area Profile, 1997, English Nature.

Implicações dos cenários para administração de


cobertura do solo e da fazenda

A futura composição da paisagem re- colas ou não-produtivos. Isso enfatiza as


sultante da implantação de cada um dos conseqüências altamente assimétricas
cenários é resumida na Tabela 6. Com para fazendeiros individuais, mesmo
isso temos a área agregada para as dife- com a adoção de uma prescrição abran-
rentes categorias de cobertura do solo, gente para toda a paisagem. Por exem-
assim como a mudança líquida compa- plo, cinco propriedades teriam mais de
rada à situação anterior. Para cada fazen- 60% de sua terra produtiva alterada por
da de cada cenário, utilizou-se o banco cenários de biodiversidade, enquanto
de dados SIG para calcular a quantida- uma propriedade na área inundável do
de de pasto cultivável e melhorado que Tâmisa “perderia” quase toda a terra
é retirado da produção ou transformado para o charco. Na pesquisa final das fa-
em pasto extensivamente utilizado. A zendas, foram mostradas a cada fazen-
Tabela 7 resume esses resultados para deiro as mudanças exatas para suas
mostrar o número de fazendas afetadas propriedades, como ilustradas na Fazen-
por diferentes graus de conversão de da 162, na Tabela 8.
suas terras produtivas em usos não-agrí-
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 25

Tabela 6 : Extensão de diferentes tipos de coberturas em cada cenário. A área de


terra ocupada por tipo de cobertura é mostrada em hectares, com as
mudanças líquidas em relação à área atual mostradas em parênteses.
Preservação da
Uso Os negócios Natureza da Preservação da
biodiversidade
atual de sempre paisagem biodiversidade
suplementada
Campo cultivável 4.147 3.955 3.844 3.092 3.031
(- 192) (- 303) (- 1.055) (- 1.116)
Pasto melhorado 2.803 2.964 2.976 1.952 1.902
(+ 161) (+ 173) (- 851) (- 901)
Rústico / Pasto não 124 142 124 95 149
melhorado (+ 18) (- 29) (+ 25)
Bosques 169 169 169 169 169
Todos os bosques 474 474 609 528 528
(+ 135) (+ 54) (+ 54)
Terras ribeirinhas apenas - - - (+ 54) (+ 54)
Faixa de separação 0 5 0 146 143
(+ 5) (+ 146) (+ 143)
Margem de campo 0 9 0 420 403
(+ 9) (+ 420) (+ 403)
Reversão de charcos e 5 5 5 1.330 1.330
de áreas inundadas (+ 1.325) (+ 1.325)
Arbustos 27 26 27 26 103
(+ 76)
Água ou margem de rio 113 113 113 112 112
Estrada, trilha ou beira 157 157 157 157 157
Edificação 27 27 27 27 27
Outros 178 178 173 170 170
Total 8.224 8.224 8.224 8.224 8.224

Tabela 7 : Impactos de cenários em todas as fazendas na área produtiva,


mostrando o número de fazendas que experimentariam perdas
percentuais diferenciadas de terra produtiva (definida como cultivável
ou de pasto melhorado).
0% 1-20% 21-40% 41-60% 61-80% 81-100%
Os negócios de sempre 25 6 0 0 0 0
Natureza da paisagem 14 17 0 0 0 0
Preservação da biodiversidade 0 16 8 2 4 1
Biodiversidade – suplementada 0 16 8 2 4 1
26 Projetando paisagens holísticas

Tabela 8: Mudanças de usos de terra propostos para a Fazenda 162. As áreas são
mostradas em acres e não em hectares, e as distâncias são mostradas
em jardas. Os dados foram convertidos a unidades imperiais porque
continuam sendo mais familiares aos fazendeiros.
Preservação da
Natureza da Preservação da
biodiversidade –
paisagem biodiversidade
suplementada
Acres % Acres % Acres %
Cultivável -11 1 -86 8 -101 9
Pasto melhorado -5 0,4 -181 15 -215 18
Rústico /Pasto não
-21 2 +25 2
melhorado
Margens de campos +47 4 +43 3
Bosques +16 1
Faixas de separação para
+23 2 +22 2
cursos de água
Separação por arbusto ao
redor de locais +8 1
determinados
Restauração de área
+218 19 +218 19
inundada
Restauração de cercas vivas 7.000 yd 7.000 yd

Validando os cenários
Antes de apresentar os cenários aos fa- Council; Wiltshire Wildlife Trust e Royal
zendeiros, foi realizado um procedimento Society for the Protection of Birds. Os
final de validação com as partes interes- participantes tomaram conhecimento das
sadas nos escritórios da ESRC em Swin- bases da pesquisa, examinaram o mate-
don. Isso ocorreu sob a forma de um rial interpretativo que resumia as impli-
workshop de um dia inteiro, com a pre- cações ecológicas de cada cenário, viram
sença de 11 pessoas que representavam os modelos VRML projetados por um
as seguintes organizações: National Trust; computador portátil, revisaram os mapas
Northmoor Trust; English Nature; Coun- de formato grande e discutiram suas rea-
tryside Agency; National Farmers’ Union; ções. Em relação à abordagem total do
Farm and Conservation Agency; três con- estudo e às técnicas usadas, as reações
selhos distritais locais; Oxfordshire County foram:
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 27

— todos os participantes ficaram entu- terminados locais e diretrizes de pla-


siasmados com a qualidade dos ma- nejamento deveriam ser incluídos;
pas, com a clareza dos cenários e
com o potencial da abordagem da — o potencial de visualização da realida-
paisagem integrada; de virtual dos futuros cenários paisa-
gísticos em 3D foi apreciado; contudo,
— houve uma ampla concordância de achou-se que os modelos VRML pre-
que os mapas em 2D eram precisos cisavam de detalhes adicionais e de
e particularmente eficazes na descri- realismo em locais específicos, para
ção da mudança do presente para que fossem imediatamente reconhe-
o futuro; no entanto, para melhorar cidos pelos moradores do local.
a interpretação, a topografia e de-

Reações dos fazendeiros aos cenários


Em junho de 1999, foram efetuadas das prescrições. Todos os fazendeiros
visitas finais aos fazendeiros, 18 meses viram também um resumo de como a
após os questionários iniciais da pesqui- sua fazenda seria afetada pelos cenários
sa. Em razão do limitado tempo da pes- (para exemplos, ver Tabela 8). Depois,
quisa e das dificuldades em programar em uma entrevista discursiva sem obje-
visitas durante o período da colheita, tivos determinados, investigamos suas
nem todos os fazendeiros foram entre- reações às prescrições e sua disposição
vistados nessa fase do projeto. Em vez em cooperar para uma paisagem basea-
disso, investigamos as reações de 17 dos da no planejamento. Cada entrevista
31 fazendeiros, tendo o cuidado de in- durou cerca de duas horas.
cluir todas as fazendas que seriam subs-
tancialmente afetadas pela proposta de Entre os 17 fazendeiros entrevista-
reversão de áreas de charco e todos os dos, nenhum deles rejeitou, por com-
fazendeiros que, no início, se mostraram pleto, as propostas para qualquer uma
menos inclinados a participar da admi- das possíveis paisagens e nenhum se
nistração da paisagem holística. No iní- opôs firmemente a redirecionar suas
cio de cada entrevista, mencionávamos administrações para uma paisagem in-
suas respostas prévias para ver se a situa- tegrada abrangente. Por exemplo, três
ção financeira ou os planos de adminis- fazendeiros se defrontaram com a pers-
tração haviam mudado. Em seguida, pectiva de uma redução de 75% de terra
apresentávamos os cenários de paisa- cultivável em áreas ribeirinhas potencial-
gens futuras em mapas gerados com mente inundáveis, porém estavam pre-
dados SIG, respaldados por material vi- parados para contemplar essa mudança
sual e textos que interpretavam e resu- com um espírito de boa vontade, condi-
miam os principais benefícios ecológicos cionado, é óbvio, a um pacote compen-
28 Projetando paisagens holísticas

satório adequado. Apenas dois fazendei- — é preciso que haja uma força séria
ros continuavam a ter sérias restrições, por trás de tudo isso, logo, é preciso
que basicamente se restringiam à natu- que o supervisor do projeto inter-
reza “predeterminada” das prescrições. vencionista tenha a capacidade de
ter uma visão de conjunto do que
Todos os 17 entrevistados tinham está em questão.
tido perda de receitas nos 18 meses ante-
riores, três estavam enfrentando grandes
dificuldades e a perspectiva pouco en- Incentivos de administração
corajadora de terem que demitir mão- e custos dos cenários
de-obra. Nenhum deles via qualquer
previsão de segurança de renda e três A reação a faixas de separação ao redor
deles não pretendiam deixar a fazenda de riachos e as prescrições para margens
para membros da família. Nenhum dos de campos foram totalmente favoráveis.
entrevistados manifestava muito entusias- Todos os fazendeiros se prontificaram a
mo pelos novos esquemas da agrodiver- participar de tais acordos, com o nível
sidade; simplesmente não confiavam na correto de incentivos, embora a maioria
capacidade do governo ou da CE em preferisse considerar apenas as cercas e
levá-los adiante. A incerteza do financia- as margens de campos selecionadas.
mento do Maff para esquemas transicio- Com a reforma adequada de pagamen-
nais de apoio econômico propostos era tos de incentivos agrícolas, esse elemento
um fator adicional na limitação de opções das prescrições poderia ser obtido em
entre a comunidade agrícola. um acordo abrangente (por exemplo,
através de pagamentos a áreas cultivá-
Um fazendeiro resumiu o sentimento veis reestruturadas), sem desencadear
de quase todos os outros em relação à transações substanciais e custos de su-
adoção de mais esquemas agroambien- pervisão do projeto.
tais:
Por outro lado, a proposta para res-
— os recursos pecuniários precisam ser taurar terras úmidas e pastos extensos e
garantidos; promover inundação sazonal de terra
— o comprometimento dos agentes anteriormente seca e cultivável dentro
precisa ser de longo prazo, ou seja, da área de charco apresentou enormes
é necessário que haja vontade polí- dificuldades. O resultado implicaria em
tica e apoio financeiro para condu- uma perda de subsídios para as áreas
zir o projeto até o fim; cultiváveis, pequena no caso da renda
— em geral, as fazendas dispõem de proveniente da criação de animais,
menos dinheiro para gastar nesse tipo menos oportunidades para produção de
de esquemas, com menos mão-de- pasto seco e uma maciça reestruturação
obra livre para a preservação neces- dos bens de capital. Os animais teriam
sária. Dinheiro nem sempre significa de ser cuidados em instalações novas, e
um incentivo razoável; os depósitos de grãos existentes teriam
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 29

de ser transformados em cooperativas pela conversão de terra cultivável che-


locais. Esse grau de mudança exigiria garia a 5 mil libras esterlinas por ano.
financiamento a longo prazo e uma es- Só haveria ganho se, em reconhecimento
treita cooperação entre os planejadores dessa perda, a plantação de um bosque
e as agências do empreendimento para na área cultivável libertada recebesse
que as novas e reformadas edificações uma subvenção. Para o cenário de pre-
pudessem ser localizadas e projetadas servação da biodiversidade, as perdas
adequadamente. anuais causadas pela diminuição de terras
cultiváveis chegariam a 19,5 mil libras
Um fazendeiro reagiu à perspectiva esterlinas, as da produção de leite, a 90
de restauração de área inundável com mil libras esterlinas, e as da produção
as seguintes perguntas: que tamanho de de carne, a 7,5 mil libras esterlinas, que
máquina eu deveria comprar agora? totalizariam 117 mil libras esterlinas.
Quantas vacas eu deveria ter? Que tipo Para o cenário de preservação da bio-
de instalação para a ordenha eu deve- diversidade suplementada, as perdas
ria projetar? Quantas pessoas eu passa- anuais seriam de 135 mil libras esterli-
ria a empregar? Estas são dúvidas típicas nas. O fazendeiro calculou, pelo menos,
dos que se sentem muito inseguros, 50 mil libras esterlinas de custos de capi-
entretanto constituem aspectos funda- tal envolvidos na reestruturação subse-
mentais relacionados à administração e qüente. O pacote total de compensação
às finanças para a abordagem de qual- para cada uma das 31 fazendas partici-
quer plano de administração de paisa- pantes não podia ser calculado, pois os
gem integrada. Curiosamente, no fim fazendeiros não tinham uma idéia clara
da entrevista, esse fazendeiro, diante da do conjunto de perdas de receita e de
perspectiva de transformar metade de ativos como resultado da reestruturação
suas terras em um charco, não ficou do cenário.
muito contrariado. “O importante é ter
o meu próprio sustento, não necessaria- Todos os fazendeiros reconheciam
mente produzir alimentos”, ele refletiu. que, para implantar tais cenários, seria
Um outro comentou: “Já efetuei rotações imprescindível uma mudança de filoso-
corretas. Coloquei estrume na terra. Se fia. Durante as entrevistas, os fazendeiros
eu tiver condições de fazê-lo, gostaria não demonstravam muito entusiasmo
de começar algo assim. Toda explora- pelos esquemas dos agroambientes e não
ção agrícola vai ser difícil nos próximos os consideravam confiáveis. No entanto,
anos. É provável que haja uma enorme todos acreditavam que, se houvesse um
pressão para fontes de renda diversas.” diálogo verdadeiro, seria possível traba-
lhar em conjunto para alcançar um obje-
O Quadro 4 resume as conseqüên- tivo comum. “Creio que os fazendeiros
cias da conversão da administração em agiriam em prol de seus próprios interes-
cada um dos três cenários para esse fa- ses”, disse um deles, “mas se dedicassem
zendeiro. Para o cenário da natureza da bastante tempo à discussão dos tópicos,
paisagem, a perda de renda causada haveria mais cooperação e menos ações
30 Projetando paisagens holísticas

individualistas”. De modo geral, os fazen- de as novas paisagens só serem justificá-


deiros preferiam um menu de elementos veis se puderem tornar-se acessíveis ao
voluntários e inevitáveis a qualquer pa- público. Essa é sempre uma questão de-
cote predefinido e rígido. licada, não se fazendo presente ante-
riormente, embora a implementação de
Mais do qualquer outro, o tema que direitos de passeios ampliados possa,
dividiu os respondentes foi a possibilidade entretanto, vir a mudar essa situação.

Quadro 4 : Fazenda 162: exigências de compensação anual possível para três


cenários de paisagem.
Perdas de renda produtiva em cada cenário (valores em £ p.a.).

Cenários 3b: Preservação da


2: Natureza da 3a: Preservação da
biodiversidade –
Perdas paisagem biodiversidade
suplementada
Perda cultivável 1.500 19.500 22.500
Perda/leite 2.400 90.000 103.500
Perda/carne — 7.350 8.750
Total 3.900 116.850 134.750

A “perda” da terra para a produção nos cenários 3a e 3b iria para as margens de campos (47
e 43 acres respectivamente), faixas de separação (23 e 22 acres) e charco na área inundável
(218 acres em ambos os casos). É difícil calcular como essas mudanças causarão impactos na
fazenda como um todo. Cerca de 20% da fazenda serão revertidos em áreas de charco. Isso
trará oportunidades para pastos extensos, não para a produção de leite ou de carne. O fazen-
deiro está convertendo a fazenda para a produção orgânica gradualmente, com as atividades
(leiteiras e de corte) sendo partes fundamentais da abordagem da fazenda integrada. Portan-
to, a compensação precisaria avaliar todas as mudanças em exigências de capital. A operacio-
nalização da fazenda seria permanentemente alterada no capital investido em edificações para
a produção de leite e maquinário. Edificações para a produção de carne não seriam mais
fonte de renda. Em teoria, a compensação do nível da margem bruta permitiria que o restante
das operacionalizações da fazenda cobrisse os custos de produção necessários, mas uma mu-
dança radical na operacionalização da fazenda requereria uma compensação adicional para
acomodar a mudança de estilo de vida na fazenda, se os benefícios públicos supostos a fluir
pelas mudanças viessem a ser efetivados.
Cerca de 40% de todo o pasto seria perdido. O rebanho leiteiro diminuiria em uma pro-
porção equivalente. Em termos práticos, o fazendeiro estaria buscando compensação para
investimentos anteriores nas edificações para a produção de leite, no maquinário de silagem e
nas instalações de armazenamento e de armazenamento de excremento/lixo.
A administração de fazendas por uma única família e acordos de compensações seriam
necessários (com conseqüentes aumentos nos custos da administração) para acomodar a ope-
racionalização do esquema. Este exemplo mostra algumas das questões básicas que precisa-
riam ser indagadas.
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 31

Discussão

Vinculando a ecologia da produz uma variedade de estruturas


paisagem ao desenvolvimento dentro da paisagem a qualquer época
do cenário e, portanto, aumenta a diversidade da
fauna. Similarmente, os estudos ecoló-
No estudo de Oxfordshire, os interessa- gicos anteriores revelam que as margens
dos na preservação consultados durante de campos não pulverizadas procuradas
o desenvolvimento do cenário buscaram para esses cenários abrigariam densi-
prescrições generalizadas para aumentar dades mais altas de espécies de plantas
a quantidade e a qualidade do habitat floríferas, de animais invertebrados e de
de vida selvagem existente na paisagem. pássaros (Sotherton, 1991; Wilson,
Aproveitando análises de dados de pes- 1994; Feber, Smith e MacDonald, 1996;
quisas ecológicas e estudos publicados, Kleijn e Verbeek, 2000), entre eles, es-
pudemos demonstrar benefícios ecoló- pécies familiares aos fazendeiros tais
gicos substanciais com a implementação como o perdiz comum – agora raro na
desses cenários. maioria das paisagens cultiváveis (Potts
e Aebischer, 1993). Embora, nesses ce-
Por exemplo, nos cenários da Pre- nários, a perspectiva de aumento da
servação da biodiversidade (3a e 3b), biodiversidade seja clara e inequívoca,
as cercas seriam podadas em rodízio de os prognósticos são essencialmente qua-
2-3 anos, para fornecer uma variedade litativos. Por exemplo, não é possível
de estruturas na paisagem a qualquer quantificar o número de espécies que
época, e não poderiam ter menos de 2 m poderiam ser obtidas, principalmente
de altura e 2 m de largura. No trabalho onde a futura composição, as dinâmicas
de pesquisa de campo, foi encontrado dos nutrientes e a trajetória de sucessão
um número significativo de tocas de ratos dos recém-criados habitats forem tão in-
silvestres e de musaranhos comuns nas certas quanto as do vale inundável.
cercas mais largas, além de uma varie-
dade de espécies de pássaros essencial- Alternativamente, os cenários podem
mente relacionada à altura e à largura ser elaborados para fornecer resultados
da cerca (embora a variedade dos arbus- quantificáveis para espécies emblemáti-
tos, na verdade, causasse efeitos secun- cas ou presentes no Biodiversity Action
dários). Um estudo realizado por Green, Plan. Em um exemplo, a ocorrência de
Osbourne e Sears (1994) concluiu tam- modelos de espécies com base SIG foi
bém que as cercas mais altas abrigavam relacionada a dados espaciais sobre pai-
uma densidade maior da maioria das sagens conhecidas para prognosticar
espécies de pássaros, apesar de algumas padrões de alteração de distribuição de
espécies, como, por exemplo, o pintar- trepadeiras em cenários conflitantes de
roxo e o verdelhão, preferirem as cercas bosques e criação de faixa de separação
mais baixas. A poda rotativa de cercas na fragmentada paisagem de bosques
32 Projetando paisagens holísticas

de East Anglia (Swetnam et al., 1998). presentaria um aumento de 28% nas


Em outro trabalho recente, modelos de reservas de cercas vivas. Assim como os
regressão múltipla relacionaram dados benefícios diretos das faixas adicionais
de pesquisas de duas espécies de pássa- de habitat de vida selvagem, a criação
ros de fazendas, a cotovia e o verdelhão, dessa rede ampliará a conectividade e
a aspectos da administração agrícola, tais poderá reduzir o isolamento de trechos
como a extensão de cereais de prima- de habitat individuais, aumentando,
vera, a existência de campos orgânicos pois, o valor ecológico das cercas vivas
e as características de limites de campos. e das margens existentes.
Esses foram então usados para prognos-
ticar a quantidade alterada das espécies Similarmente, embora a implemen-
de pássaros visadas em cenários diferen- tação local de faixas de separação indi-
tes da administração da fazenda, tanto viduais ao redor de valas e riachos
na área de estudo inicial de Oxfordshire possam beneficiar afluentes isolados, ela
quanto na área do projeto de restaura- pouco pode fazer para beneficiar rios
ção de habitat da English Nature (Brad- que recebem água de muitos riachos.
bury et al., 2000; Wilson et al., 2000; Por outro lado, a implementação inte-
Whittingham et al., 2000). grada em todo o represamento pode
trazer benefícios adicionais, tais como
menor carga de sedimentos, água de
Benefícios adicionais da melhor qualidade e melhora nos fluxos
abordagem da paisagem de torrentes e repercussões na biodiver-
integrada sidade, na sua utilidade e na recreação
(Muscutt et al., 1993; Edwards e Dennis,
Um princípio está claro; quanto mais 2000). Conseqüentemente, os benefí-
fazendas vizinhas cooperarem na admi- cios resultantes da administração de um
nistração, mais a escala e também o tipo fazendeiro podem ser ampliados ou, ao
de benefícios poderão crescer de modo contrário, reduzidos pelas ações de seus
significativo e crescente. Um modelo vizinhos e, por conseguinte, o valor de
hipotético de viabilidade de população uma faixa de separação individual pode
indica que algumas espécies só ocuparão aumentar com o estabelecimento de um
a paisagem se a presença de trechos de acordo de cooperação.
habitat forem superiores a uma freqüên-
cia limite – portanto, as medidas que
visam a um aumento da quantidade Construindo paisagens
podem alterar a qualidade (revisado por consensuais
Dolman e Fuller, 2003; ver também
Harrison, 1994; Peterken, 2000). Mais Apesar da preocupação de que os ob-
especificamente, nos cenários 3a e 3b jetivos da administração voltados para
do estudo atual, 117 km de limites de amenidades e os para a preservação da
campos seriam replantados (média de biodiversidade possam ser conflitantes,
1,4 km por km2), procedimento que re- os participantes do workshop percebe-
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 33

ram uma substancial convergência da restaurado pode ter uma qualidade


Paisagem da natureza em direção a as- melhor em função de uma redução de
pectos da paisagem da Preservação da efeitos marginais e de um aumento das
biodiversidade. Além disso, os que pri- oportunidades de ocupação. Enquanto
vilegiavam as amenidades reagiram po- isso, o valioso habitat preexistente pode
sitivamente aos benefícios adicionais ser protegido de uma degradação maior.
proporcionados pelas prescrições eco- Para mais discussões sobre o equilíbrio
lógicas mais rígidas das paisagens da bio- entre redes de corredores, ver Kirby
diversidade, depois de elas terem sido (1995) e Dolman e Fuller (2003).
interpretadas e apresentadas com a aju-
da de imagens. Parece haver um grande Tal divergência contribui para enfati-
potencial para o consenso entre duas zar o valor da formulação e visualização
partes interessadas conflitantes com a vi- explícitas de cenários futuros possíveis
sualização do cenário. para a paisagem. A apresentação de
cenários em mesas-redondas serve para
Um outro tema que surgiu durante estimular o debate e as discussões entre
a validação das partes interessadas foi o as partes interessadas, para identificar
trade-off ecológico entre prescrições áreas de concordância e pontos de di-
generalizadas aplicadas a toda a paisa- vergência e para fornecer uma base para
gem versus a focalização localizada de um diálogo que objetive um cenário
recursos. Por exemplo, a restauração de consensual.
cercas vivas e de margens de campos
cultiváveis não pulverizadas propiciava
a formação de habitats de vida selvagem Visualização de cenários a
muito mais amplos e uma conectividade fazendeiros
maior. Todavia, apesar das diversas ava-
liações teóricas realizadas, os supostos No início do estudo, menos da metade
benefícios do corredor de redes rara- dos fazendeiros dessa paisagem do oeste
mente foram estudados no campo (Har- de Oxfordshire teria cooperado para
rison e Bruna, 1999), embora a função uma integração ecológica e cênica da
deles vá diferir muito entre as espécies. paisagem. Esses dados se referem às
O direcionamento de novos habitats entrevistas que ocorreram antes de os
para uma rede de faixas estreitas pode mapas SIG e os modelos VRML serem
diluir a qualidade dos habitats criados exibidos. Por outro lado, durante a roda-
através de uma localização subótima e da final de entrevistas e de apresentação
de uma configuração linear que amplia- dos cenários, nenhum dos fazendeiros
riam a exposição a efeitos marginais rejeitou nem mesmo a mais extrema das
danosos. Por outro lado, é possível obter paisagens integradas propostas. Dos sete
benefícios maiores por meio da alocação fazendeiros (24%) que, nas entrevistas
desses mesmos recursos em blocos con- iniciais, mais relutavam em aceitar e coo-
tíguos, adjacentes a locais de interesse perar para uma paisagem integrada,
de conservação já existentes. O habitat apenas um não se entusiasmou quando
34 Projetando paisagens holísticas

apresentado aos cenários no final do es- maiores benefícios possíveis se encontra-


tudo. Esse fazendeiro administrava uma ria numa posição favorável para negociar
operação lucrativa e de grande escala. a proposta da “paisagem total”.
Os outros seis reconheceram o valor do
conceito quando examinaram as visuali- As reações dos fazendeiros terão sido
zações e as interpretações, embora todos significativamente influenciadas pela de-
exigissem a confirmação de que o pacote terioração das rendas das fazendas, mas
de incentivos seria adequado. Concluí- o resultado indica também que, quando
mos que um meticuloso encarregado visualizações de alta qualidade foram
pelo projeto, que direcionasse a admi- apresentadas, os fazendeiros puderam
nistração para uma lucratividade maior, ver que, em relação à paisagem como
poderia negociar o contrato da “paisa- um todo, a responsabilidade deles era
gem integrada”. A conclusão aqui é que fundamental (O’Riordan et al., 2000).
um planejador assíduo objetivando os

Conclusão: perspectivas para a elaboração de


paisagens integradas

É importante reconhecer também que Caso a Rural Development Pro-


as ferramentas para uma visualização da grammes incorpore a modulação vol-
paisagem em 3D a partir do banco de tada para paisagens e não apenas para
dados SIG melhoraram rapidamente e fazendas, haverá então um espaço real
agora permitem mais realismo e interativi- para uma abordagem interativa e co-
dade do que na época do estudo de Ox- munitária no design da paisagem. Não
fordshire (ver, para exemplos, Sheppard, há dúvidas de que as ferramentas estão
2000; Woolley, 2000; Dockerty et al., chegando. Há igualmente um incentivo
2001). Outros desenvolvimentos signi- maior à reunião de todos os interesses
ficativos estão relacionados a dados ne- relevantes para um diálogo construtivo.
cessários para tais utilizações, como, por Além disso, a atmosfera dos tempos fa-
exemplo, maior disponibilidade de foto- vorece as abordagens participativas no
grafia aérea de alta resolução em grande planejamento e no design da paisagem.
parte da Grã-Bretanha (Jones, 2000) e Este estudo evidencia que, de fato, é
a planejada divulgação de novos produ- possível aguçar a imaginação e gerar um
tos para mapas pela Ordnance Survey senso coletivo de comando da paisa-
no outono de 2001. A última incluirá gem. Para promover a viabilidade de tal
dados da Digital National FrameworkTM conceito, precisamos participar de um
com polígonos de divisas e maior codi- debate mais amplo em relação à plausibi-
ficação de características, o que deverá lidade e à eficácia do design da paisagem
simplificar muitos aspectos da constru- integrada, e incentivar as autoridades
ção do bancos de dados SIG. locais e as principais agências a coordenar
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 35

suas políticas e prescrições de adminis- convertê-las em estimulantes adminis-


tração. Todas essas circunstâncias favo- trações de paisagens integradas basea-
ráveis revelam que, certamente, está na das em princípios de sustentabilidade e
hora de apropriar-se de uma ou de duas de aumento da biodiversidade.
iniciativas de administração da terra e

Agradecimentos
Esta pesquisa foi financiada por uma Charitable Trust. A Ordnance Survey
subvenção do ESRC (subvenção No. L (http://www.ordsvy.gov.uk) generosa-
320 25 32 43) dentro do programa da mente forneceu mapeamento vetorial
Global Environmental Change (Mudan- Land-Line® elevação da Land-Form
ça ambiental global). Suporte adicional Paisagem® livre de custos para os objeti-
foi fornecido pelos Arkleton Trust, o Er- vos do projeto. A pesquisa ecológica de
nest Cook Trust e o Esmee Fairbairn campo foi conduzida por Sophie Lake.

Referências
ANDREWS, J. A New Force in Nature Con- __________. The Countryside Character
servation: The Habitats and Species Di- Programme. Cheltenham: Countryside
rective 92/43/EEC. A Report to The Commission, 1996.
Wildlife Trusts. Lincoln: RSNC, 1994.
CEC. Council Directive 79/409/EEC on
BRADBURY, R. B. et al. Habitat associa- the Conservation of Wild Birds. Brussels:
tions and breeding success of yellow- Commission of the European Commu-
hammers on lowland farming. Journal nities, 1979.
of Applied Ecology, 37, p. 789-805,
2000. __________. Directive 92/43 on the Con-
servation of Natural Habitats and Wild
BUCKINGHAM, H.; CHAPMAN, J.; NEWMAN, R. Fauna and Flora. Brussels: Commission
The future for hay meadows in the Peak of the European Communities, 1992.
District National Park. British Wildlife, 10,
p. 311-318, 1999. __________. Council Regulation 1757/
1999 on the Support of Rural Develop-
CC LANDSCAPE ASSESSMENT, A COUNTRYSIDE ment. Brussels: Commission of the Eu-
COMMISSION APPROACH. CCP 423. Chel- ropean Communities, 1997.
tenham: Countryside Commission, 1987.
36 Projetando paisagens holísticas

CNP. Wild by Design: An Exploration of virtual reality technologies for modelling


the Potential for the Creation of Wilder urban environments. Computers Envi-
Areas in the National Parks of England ronment and Urban Systems, 22, p.
and Wales. London: Council for National 137-155, 1998.
Parks, 1997.
DUNNING, J. B.; DANIELSON, B. J.; PULLIAM,
COBB, D.; DOLMAN, P. M.; O’RIORDAN, T. H. R. Ecological processes that affect
Interpretations of sustainable agriculture populations in complex landscapes.
in the UK. Progress in Human Geogra- Oikos, 65, p. 169-175, 1992.
phy, 23, p. 209-235, 1999.
EDWARDS, A. C.; DENNIS, P. The landscape
COSGROVE, D. Social Formation and ecology of water catchments: integrated
Symbolic Landscape. London: Croom approaches to planning and manage-
Helm, 1984. ment. Landscape Research, 25, p. 305-
320, 2000.
DOCKERTY, T. D. et al. Climate Change
Impacts on Landscape: New Approaches ENDS. ENDS Report 316; May 2001.
to Visualising Rural Landscape Change. London: Environmental Data Services
Norwich: University of East Anglia, Jack- Ltd., 2001.
son Environment Institute (@uea.ac.uk).
2001. (JEI Working Paper). ESRI. Understanding SIG: The Arc/Info
Method Version 7.1. Cambridge: Pear-
DOE. Biodiversity: The UK Action Plan. son Professional, 1997.
London: HMSO, 1994.
EVERETT, S. Conservation news: land and
__________. Biodiversity: The UK Steer- agriculture. British Wildlife, 12, p. 369-
ing Group Report. London: HMSO, 371, 2001.
1995. V. 2 (Action Plans).
FEBER, R. E.; SMITH, H.; MACDONALD, D.
DOLMAN, P. M.; FULLER, R. J. The proc- W. The effects on butterfly abundance
esses of species colonisation in wooded of the management of uncropped edges
landscapes. In: HUMPHREY, J. K. et al. of arable fields. Journal of Applied Ecol-
(Ed.). The Restoration of Wooded Land- ogy, 33, p. 1191-1205, 1996.
scapes: Forestry. Edinburgh: Forestry
Commission, 2003. FORMAN, R. T. T. Land Mosaics: The Ecol-
ogy of Landscapes and Regions. Cam-
DOWER, J. The landscape and planning. bridge: Cambridge University Press,
Journal of the Town Planning Institute, 1995.
30, p. 92-102, 1944.
FRY, G. L. A.; SARLOV-HERLIN, I. Land-
DOYLE, S.; DODGE, M.; S MITH, A. The scape design; how do we incorporate
potential of web-based mapping and ecological, cultural, and aesthetic values
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 37

in design principles? In: GRIFFITHS, G. H. Nature, 1995. (English Nature Science,


(Ed.). Landscape Ecology: Theory and Report No. 10).
Application. Aberdeen: IALE-UK, 1995.
p. 51-60. KLEIJN, D.; VERBEEK, M. Factors affecting
the species composition of arable field
GREEN, R. E.; OSBOURNE, P. E.; SEARS, E. boundary vegetation. Journal of Applied
J. The distribution of passerine birds in Ecology, 37, p. 256-266, 2000.
hedgerow during the breeding season
in relation to characteristics of the hedge- LOVETT, A. A. et al. Visualising sustaina-
row and adjacent farmland. Journal of ble agricultural landscapes. In: FISHER, P.;
Applied Ecology, 31, p. 677-692, 1994. UNWIN, D. (Ed.). Virtual Reality in Ge-
ography. London: Taylor & Francis,
HARMS, W. B. Scenarios for nature de- 2002.
velopment. In: SCHOUTE, J. F. T. et al.
(Ed.). Scenario Studies for the Rural MACFARLANE, R. Achieving whole-land-
Environment. Dordrecht: Kluwer Aca- scape management across multiple land
demic Publications, 1995. p. 391-403. management units: a case study from the
Lake District Environmentally Sensitive
HARRISON, S. Metapopulations and con- Area. Landscape Research, 25, p. 229-
servation. In: EDWARDS, P. J., MAY, R. M.; 254, 2000a.
WEBB, N. R. (Ed.). Large-Scale Ecolo-
gy and Conservation Biology. Oxford: __________. Building blocks or stumbling
Blackwell Scientific Publications, 1994. blocks? Landscape ecology and farm-
p. 111-128. level participation in agri-environmental
policy. Landscape Research, 25, p. 321-
HARRISON , S.; BRUNA, E. Habitat frag- 331, 2000b.
mentation and large-scale conservation:
what do we know for sure? Ecography, MAFF. England Rural Development Plan,
22, p. 225-232, 1999. 2000-2006. London: Ministry of Agri-
culture, Fisheries and Food, 2000.
HARTMAN, J.; WERNECKE, J. The VRML 2.0
Handbook: Building Moving Worlds on MATLASS, B. Moral geographies of the
the Web. New York: Addison-Wesley, English Landscape. Landscape Research,
1996. 22, p. 141-156, 1997.

JONES, A. UK imaging – putting you in MEINIG, D. W. (Ed.). The Interpretation


the picture. GI News, 1, p. 43-45, 2000. of the Ordinary Landscape. New York:
Oxford University Press, 1979.
KIRBY, K. J. Rebuilding the English Coun-
tryside: Habitat Fragmentation and MUSCUTT, A. D. et al. Buffer zones to im-
Wildlife Corridors as Issues in Practical prove water quality: a review of their po-
Conservation. Peterborough: English tential use in UK agriculture. Agriculture,
38 Projetando paisagens holísticas

Ecosystems and Environment, 45, p. 59- farming and England’s countryside.


77, 1993. Ecos, 21, p. 69-75, 2000.

OPIE, J. (Ed.). Americans and Environ- SHEPPARD, S. R. J. Visualisation software:


ment. New York: Harper and Row, bring GIS applications to life. GeoEu-
1971. rope, 9, p. 28-31, 2000.

ORDNANCE SURVEY. Land-Line User Guide: S IRIWARDENA, G. M. et al. Changes in


Reference Section. Southampton: Ord- agricultural land-use and breeding per-
nance Survey, 1997. formance of some granivorous farmland
passerines in Britain. Agriculture Ecosys-
O’R I O RD AN , T.; S AY ER , M. Climate tems and Environment, 84, p. 191-206,
Change, Water Management and Agri- 2001.
culture. PA99-05, CSERGE, Norwich:
University of East Anglia, 1999. S MITH , S. A dimension of sight and
sound. Mapping Awareness, p. 18-21,
O’RIORDAN, T. et al. Designing and im- Oct. 1997.
plementing whole landscapes. Ecos, 21,
p. 57-68, 2000. SOTHERTON, N. W. Conservation head-
lands: a practical combination of inten-
PETERKEN, G. F. Rebuilding networks of sive cereal farming and conservation. In:
forest habitats in lowland England. Land- FIRBANK, L. G. et al. (Ed.). The Ecology
scape Research, 25, p. 291-303, 2000. of Temperate Cereal Fields. 32nd Sym-
posium of the British Ecological Society
P OLLARD, E. A method for assessing with the Association of Applied Bio-
changes in the abundance of butterflies. loSIGts. Oxford: Blackwell Scientific
Biological Conservation, 12, p. 1115- Publications, 1991. p. 373-397.
1134, 1977.
SWETNAM, R. D. et al. Applying ecologi-
POTTS, G. R.; AEBISCHER, N. J. Population cal models to altered landscapes. Sce-
dynamics of the grey partridge Perdix nario testing with GIS. Landscape and
perdix 1793-1993. Monitoring, model- Urban Planning, 41, p. 3-18, 1998.
ling and habitat management. Ibis, 137,
Suppl. 1, p. 29-37, 1993. WHITTINGHAM , M. J. et al. Ecological
Modelling to Predict the Response of
RSPB. Wading Upstream: The Success of Farmland Bird Species to Habitat Res-
Agri-Environment Schemes for Breed- toration: A Case Study. A Report to
ing Waders. Sandy, Royal Society for the English Nature. Sandy: RSPB, Univer-
Protection of Birds, 2001. sity of Oxford & CEH, 2000.

RUTHERFORD, A.; HART, K. The new Rural WILSON, P. Managing field margins for
Development Regulation: fresh hope for the conservation of the arable flora. In:
Paul M. Dolman, Andrew Lovett, Tim O’Riordan e Dick Cobb 39

BOATMAN, N. (Ed.). Field Margins: Inte- port to English Nature. Sandy: RSPB,
grating Agriculture and Conservation. University of Oxford & CEH, 2000.
BCPC Monograph No. 58. Farnham:
BCPC Publications, 1994. p. 253-258. WOOLLEY, K. Photorealistic imaging of
GIS data. Geoinformatics, 3, p. 12-15,
WILSON, J. D. et al. Designing Lowland 2000.
Landscapes for Farmland Birds. A Re-

Resumo Abstract
A abordagem da paisagem holística é A whole landscape approach is critical to
essencial para assegurar a conservação e ensuring conservation and enhancement
o aumento da biodiversidade em terras of biodiversity in farmed landscapes.
cultivadas. Embora os esquemas agroam- Although existing agrienvironmental
bientais existentes sejam limitados por schemes are constrained by property
divisas de propriedades e decisões vo- boundaries and voluntary take up, the
luntárias, o potencial para a adoção da potential for adopting a whole landscape
abordagem da paisagem holística na ad- approach to planned countryside man-
ministração do planejamento rural é pre- agement is currently favoured by a num-
ferido atualmente por uma série de ber of factors. These include economic
fatores. Entre eles, a incerteza econômica uncertainty in some agricultural sectors;
em alguns setores agrícolas, a introdução the introduction of a reformulated rural
de políticas de desenvolvimento rural development policy; increased understan-
reformuladas, uma maior compreensão ding of relationships between biodiversity
dos relacionamentos entre a biodiversi- and management; and the introduction
dade e a administração, e, finalmente, a of geographical information systems tech-
introdução da tecnologia SIG (Sistemas nology that allows future landscapes to
de Informações Geográficas), que per- be visualised to stakeholders. We report
mite que futuras paisagens possam ser on ecological and socio-economic aspects
visualizadas pelas partes interessadas. of whole landscape planning in a study
Descrevemos os aspectos socioeconômi- covering 31 neighbouring farms in west
cos e ecológicos de um planejamento de Oxfordshire. A baseline was first compiled
paisagem holística em um estudo que that included information on property
abrange 31 fazendas vizinhas no oeste boundaries; land cover; relationships
de Oxfordshire. Primeiro reunimos dados between hedge and field margin man-
sobre divisas de propriedades, cobertura agement and key taxa; and farmer so-
da terra, relações entre a gestão de mar- cio-economics and attitudes towards
gens de campos e fronteiras e categorias agri-environmental measures, conserva-
taxonômicas chaves, nível socioeconômico tion and sustainable agriculture. We then
do fazendeiro e seu posicionamento em developed future scenarios of integrated
40 Projetando paisagens holísticas

relação a medidas agroambientais, con- whole landscapes management, desig-


servação e agricultura sustentável. Em se- ned to deliver amenity, environmental
guida, desenvolvemos futuros cenários da and biodiversity benefits. These scena-
administração de paisagens holísticas inte- rios were presented and interpreted to
gradas, elaborados para criar amenidade farmers, conservation and amenity
e benefícios ambientais da biodiversi- stakeholders with the aid of GIS-based
dade. Esses cenários foram interpretados maps and three-dimensional virtual re-
e apresentados a fazendeiros e partes in- ality visualisations. We report farmers
teressadas na preservação e na ameni- responses and discuss the potential for
dade, com a ajuda de mapas com base implementing whole landscape plan-
SIG e visualizações tridimensionais de ning.
realidade virtual. Relatamos as respostas
dos fazendeiros e discutimos o potencial
de implantação do planejamento da pai-
sagem holística.

Palavras-chave : paisagismo; sistemas Keywords : landscape studies; geo-


de informação geográfica; abordagem graphic information systems; whole
da paisagem holística. landscape approach.

Paul M. Dolman é professor em ecologia da Universidade de East Anglia (UK).


Seu principal interesse sempre foi em conservação da biodiversidade e diagnóstico
das conseqüências de mudanças ambientais e no uso do solo. Especialista em aná-
lises de população, ecologia espacial e da paisagem, também desenvolve projetos
interdisciplinares, como o trabalho apresentado neste volume.

Andrew Lovett é professor sênior em ciências ambientais na Universidade de East


Anglia (UK). PhD pela Universidade College Wales, Aberystwyth (UK), sua pesquisa
envolve sistemas de informação geográfica, epidemiologia ambiental e disposição
de resíduos perigosos.

Tim O’Riordan é professor de ciências ambientais na Universidade de East Anglia


(UK). Terminou extensa pesquisa em paisagens e atualmente trabalha com gover-
nança para o desenvolvimento sustentável. É membro da UK Sustainable Develop-
ment Comission, deputy lieutenant do Condado de Norfolk e membro da British
Academy, sociedade para o progresso das humanidades e das ciências sociais.

Dick Cobb é professor em ciências ambientais e pesquisador do Centro de Risco


Ambiental da Universidade de East Anglia (UK). Sua pesquisa envolve políticas
agrícolas e rurais, legislação ambiental e responsabilização (accountability).
Gestão da renovação e
preservação urbana na China:
o caso de Xangai

Jiantao Zhang

Alguns estudos (Ruan, 1995, p. 37-42; desenvolvimento socioeconômico rápi-


1996, p. 208; 2000, p. 214-221; Wang, do. Na maioria das cidades, a preserva-
1996) demonstraram vários problemas ção se submete às considerações do
gerais relacionados à administração da desenvolvimento urbano ou da renova-
regeneração e da preservação urbana na ção urbana, que, no entanto, são vistos
China. As autoridades do planejamen- como as principais tarefas dos governos
to não contam com legislações regionais locais (Geng, 1996; Ruan, 1995, 1996).
nem com políticas que lhes permitam O público desconhece o valor da pre-
controlar as mudanças nas áreas urbanas. servação e está mais interessado nas
Também não possuem instrumentos de questões práticas relacionadas a seus in-
planejamento nem apoio financeiro su- teresses imediatos, em especial, a rege-
ficiente para assegurar a implantação de neração. (Ruan, 2000, p. 26-42).
planos de áreas de preservação local
(Dong, 1999, p. 24-25; Wang, J., 1996, Na China, não foi desenvolvida ne-
p. 15-16; Wang, J., Ruan e Wang, L., nhuma política nacional para instruir os
1999, p. 70-81; Yuan, 1999). A prote- governos locais sobre a administração da
ção do caráter da área de preservação regeneração e da preservação urbana.
precisa ceder às prioridades locais de de- As próprias autoridades locais do plane-
senvolvimento econômico e de regene- jamento decidem e adotam medidas, ou
ração urbana. Assim como as áreas seja, suas áreas urbanas são administradas
urbanas de outros países em desenvol- por meio do sistema de controle do de-
vimento, as da China também enfren- senvolvimento local. De acordo com a
tam grandes pressões exercidas pelo Elaboração dos Regulamentos de Planos

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIX, Nos 1-2, 2005, p. 1-32
2 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

Urbanos (Ministry of Construction of Xangai é o centro econômico e o


China, 1991), as autoridades locais do maior porto da China. Contribui com um
planejamento deveriam elaborar Planos oitavo da renda nacional e um quarto
Detalhados de Controle Local, que cons- do total das exportações do país. Além
tituiriam a base para o sistema de zonea- de sua contribuição econômica, é um
mento que administra áreas urbanas. Na importante centro cultural. É a mais im-
prática da administração de áreas urba- portante cidade da história moderna e
nas, algumas cidades, tais como Pequim, contemporânea da China (ibid., p. 155),
Xangai e Suzhou, adotaram o sistema possui a maior e mais valiosa herança
de zoneamento baseado nos Planos De- arquitetônica da história moderna do
talhados de Controle Local, enquanto país e é uma das 99 Cidades Históricas
outras, tais como Nanjing, Wuhan e e Culturais da China. Assim como outras
Luoyang, adotaram um sistema discri- cidades chinesas, desde meados dos
cionário baseado nos Planos Locais anos 1980, Xangai vem vivenciando um
Abrangentes (Wang, J., Ruan e Wang, rápido desenvolvimento socioeconômi-
L., 1999, p. 112-175). A regeneração co e, por causa dele, uma importante e
e a preservação urbana na China, por- imensa regeneração urbana. Por esse
tanto, constituem tópicos do planeja- motivo, a cidade foi escolhida como es-
mento local, e suas execuções variam tudo de caso para esta pesquisa.
entre as diversas autoridades locais. De
modo geral, para proteger o caráter da Este trabalho tem dois objetivos:
área, essas autoridades tentam controlar primeiro, desenvolver uma estrutura
mudanças nas áreas urbanas. No entanto, metodológica para o estudo da admi-
limitadas por condições práticas, as admi- nistração da regeneração e da preser-
nistrações das autoridades encarregadas vação urbana na China e, segundo,
da regeneração e da preservação urbana aplicar essa estrutura à prática da admi-
têm sido insuficientes e ineficazes. nistração e avaliar essa prática.

Estrutura teórica
As proposições de Conzen a respeito da ças. As duas linhas estão intimamente
administração do panorama urbano vinculadas e podem ser consideradas o
foram desenvolvidas por pesquisadores fundamento daquele conceito de admi-
do Grupo de Pesquisa Morfológica Ur- nistração de Conzen, que passou a ser
bana a partir de duas linhas de pesquisa. a maior preocupação na morfologia
Uma examina os agentes responsáveis urbana geográfica (Whitehand, 1992,
por mudanças na paisagem urbana, e a p. 3). São consistentes com a doutrina
outra investiga o papel do planejamento conzeniana de que o panorama da cida-
público na administração dessas mudan- de representa as experiências acumuladas
Jiantao Zhang 3

de sucessivas gerações. Nesses estudos, é a mudança individual. As fontes de


esses panoramas são muito mais conce- dados das autoridades locais do plane-
bidas como transmissores de sinais sobre jamento, inclusive as propostas de pla-
as sociedades que as criaram do que nejamento e construção, são as fontes
artefatos físicos e padrões específicos. O principais. Elas são complementadas
panorama da cidade e as gerações que pela análise da troca de correspondên-
a criam são sintetizadas e, dessa maneira, cias e por entrevistas com agentes dife-
passam a fazer parte da geografia social rentes. Tal abordagem, aliada à adoção
(ibid., p. 2). de fontes de dados das autoridades lo-
cais, constitui, em grande parte, uma con-
Os estudos da administração do tribuição de Whitehand, cujo trabalho é
panorama da cidade se concentram nas visto (Denecke e Shaw, 1988b, p. 6)
mudanças da paisagem urbana, nos como uma substancial e inovadora ex-
processos das mudanças e nos agentes tensão dos estudos morfogenéticos de
responsáveis por elas. Conseqüente- Conzen. Larkham utilizou os métodos
mente, vários elementos são estudados: e as fontes de Whitehand na análise da
mudanças, agentes, inter-relacionamen- mudança da paisagem urbana e na ad-
tos e interações entre agentes, planeja- ministração das mudanças dessas pai-
mento da mudança e implantação de sagens. O trabalho desses pesquisadores
políticas de planejamento e, por último, ampliou de maneira considerável o con-
processos das mudanças. Esses elemen- ceito inicial de administração do pano-
tos são identificados e posteriormente rama da cidade idealizado por Conzen.
investigados e avaliados. Os processos
de tomada de decisão são remontados, Atribuindo uma ênfase particular às
e as políticas administrativas, os proce- discussões sobre preservação, os estudos
dimentos e a implantação são exami- sobre administração do panorama da
nados. Esse tipo de estudo fornece, cidade foram realizados, com sucesso,
portanto, uma compreensão fundamen- em núcleos comerciais, em áreas resi-
tal da evolução das mudanças da pai- denciais, ou nesses dois tipos de áreas
sagem urbana, das sociedades e das (por exemplo, Barrett, 1993; Jones e
atividades que geraram essas mudan- Larkham, 1993; Larkham, 1986, 1990,
ças. Além do mais, como as administra- 1996; Larkham et al., 1988; Larkham e
ções das mudanças efetuadas pelas Lodge, 1997; Vilagrasa, 1992; Vilagrasa
autoridades do planejamento são tam- e Larkham, 1995; Whitehand, 1984,
bém examinadas, essa análise fornece 1989, 1990, 1992; Whitehand e Carr,
uma diretriz aos futuros processos de 1999; Whitehand, Larkham e Jones,
tomadas de decisão e de administração 1992; Whitehand, Morton e Carr, 1999).
das paisagens urbanas. Esses estudos fornecem não só uma
compreensão da mudança da paisagem
Nesse tipo de estudo, o principal urbana nas áreas, mas também uma aná-
método utilizado é o do estudo de caso lise dos vários agentes responsáveis por
pormenorizado, e a unidade de análise essas mudanças e da eficácia do controle
4 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

exercido pelas autoridades do planeja- Inspirado pelo conceito de adminis-


mento nas mudanças e na administra- tração do panorama da cidade, o estudo
ção das áreas. Portanto, eles constituem da administração da regeneração e da
uma base essencialmente metodológica preservação urbana se concentra nas
a partir da qual é possível formular teo- mudanças das áreas urbanas, nos agen-
rias e recomendações de políticas para tes responsáveis pelas mudanças e nos
a prática da administração da regene- processos das mudanças (Figura 1).
ração e da preservação urbana.

Figura 1: O arcabouço da pesquisa


O conceito de Conzen de
gestão do panorama urbano

Agentes responsáveis pela Gestão da mudança


mudança na paisagem urbana na paisagem urbana

O estudo da gestão da área urbana

Agentes responsáveis Mudança nas áreas


Processo de mudança
pelas mudanças de conservação

Identificação de mudanças na área de conservação e


avaliação da gestão da mudança

As mudanças e os agentes, basica- gação é a análise dos arquivos de dados


mente incorporadores e arquitetos das relacionados às propostas de planeja-
mudanças, são examinados em termos mento e construção das autoridades lo-
de número, tipos, características exter- cais do planejamento. Eles são as fontes
nas e inter-relacionamentos. Essas inves- principais e são complementados por
tigações identificam o que aconteceu na pesquisas de campo e entrevistas com
área urbana e os responsáveis pelo que participantes-chave.
ocorreu. O principal método de investi-
Jiantao Zhang 5

A investigação dos processos de mu- urbanas, como os agentes afetaram as


danças enfatiza as interações entre agen- mudanças e como elas foram administra-
tes diferentes e as implicações dessas das. Por conseguinte, ele avalia a eficácia
interações, assim como as políticas pú- da administração. Em razão da necessi-
blicas de administração das mudanças. dade de investigar ocorrências espaciais
Essas são as questões-chave do estudo bem grandes durante um longo perío-
da administração da regeneração e da do, os métodos mais adequados para esse
preservação urbana. As políticas de ad- tipo de investigação são os que adotam
ministração, os procedimentos e suas mudanças individuais como unidades de
implantações são examinados, e os pro- análise. As fontes de dados das autori-
cessos de tomadas de decisão e de mu- dades locais e as entrevistas com agentes
dança são reconstituídos. Assim, esse (ao refletirem sobre mudanças históricas
método de estudo identifica as maneiras contemporâneas ou recentes) são as
como ocorreram mudanças nas áreas principais fontes para essa investigação.

Metodologia de pesquisa
Yin (1994, p. 1) afirma que existem cinco controle que um investigador exerce
tipos de estratégias de pesquisas (Tabe- sobre eventos comportamentais autên-
la 1) e que a escolha de uma determina- ticos; e (iii) se o foco está em fenômenos
da estratégia depende de três condições: históricos ou contemporâneos.
(i) o tipo de pergunta da pesquisa; (ii) o

Tabela 1 : Situações relevantes para diferentes estratégias de pesquisa.


Requer controle
Forma da
sobre eventos ligados Foca eventos
Estratégia questão da
ao comportamento contemporâneos?
pesquisa
dos agentes?
Experimento Como, por quê Sim Sim
Quem, o quê,
Survey onde, quantos, Não Sim
quanto
Análise de Quem, o quê,
Não Sim/Não
arquivo onde
História Como, por quê Não Não
Estudo de caso Como, por quê Não Sim
Fonte : Yin (1994, Figura 1.1).
6 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

O principal objetivo desta pesquisa freqüentemente considerada mais con-


é explicar como a estrutura proposta sistente, e, por conseguinte, o estudo
pode ser aplicada ao estudo da definição total é considerado como mais atraente
e da administração da regeneração e (Herriott e Firestone, 1983, apud Yin,
preservação urbana na China. A pesquisa 1994, p. 45). Xangai conta com 11 áreas
se concentra na prática do planejamento de preservação. Essas áreas apresentam
urbano contemporâneo, composto por características e formatos urbanos que
operações e processos complexos que vivenciaram tipos diferentes de pressão
não podem ser controlados pelo pesqui- por desenvolvimento. A mudança de
sador. A aplicação e o teste da estrutura seus tecidos urbanos foi administrada de
proposta precisam ser traçados ao longo acordo com suas situações específicas
do tempo e precisam investigar, a fundo, (SMUPB, 2000, p. 8-12; SUPDI, 1999,
contextos da vida real, em vez de cir- p. 4-10; Wang, Y., 1998, p. 5-17). A
cunstâncias controladas deliberadamen- metodologia adotada neste trabalho foi
te. Por isso, o estudo de caso é proposto a da abordagem conzeniana ao estudo
como uma estratégia apropriada para a da mudança na administração da pai-
pesquisa. sagem urbana. Tais estudos foram reali-
zados em áreas comerciais e residenciais.
Em geral, a pesquisa de estudo de Em função dos diferentes tipos de casos
caso pode ser classificada em dois tipos: estudados na pesquisa anterior, estudos
estudo de caso único ou estudos de de casos múltiplos foram a opção pre-
casos múltiplos (também chamados de ferida para esta pesquisa. Por conseguin-
estudos de caso comparados) (Yin, te, duas áreas de preservação de Xangai,
1994, p. 14). A utilização de um estudo que representam tipos diferentes de áreas
de caso único deveria atender a três urbanas, foram escolhidas como áreas de
condições básicas (ibid., p. 38-41): (i) o estudo de caso para este trabalho.
caso possui um conjunto de condições
que satisfazem os critérios para testar Estudos de casos pormenorizados
uma teoria bem formulada; (ii) o caso é (Larkham, 1996, p. 166-167; White-
extremo ou singular e seu estudo pode hand, 1981, p. 146) de projetos indivi-
propiciar descobertas específicas que duais de desenvolvimento dentro das
não poderiam ser obtidas na avaliação áreas de preservação selecionadas cons-
de outros casos; e (iii) o caso dá ao pes- tituem a base para a pesquisa, que exa-
quisador a oportunidade de observar e minou todos os processos de projetos
analisar um fenômeno, um aconteci- de desenvolvimento específicos: “por
mento ou um incidente anteriormente que” e “como” ocorreram mudanças nas
inacessíveis. A preferência por estudos áreas, como elas afetaram as caracterís-
de casos múltiplos resulta do fato de que ticas dessas áreas e como as autoridades
cada caso individual representa uma locais do planejamento administraram
análise “total” que pode produzir conclu- essas mudanças e protegeram o ambien-
sões separadas e completas (ibid., p. 49). te do local. Dessa forma, a escolha de
A evidência obtida em casos múltiplos é estudos de caso de projetos de desen-
Jiantao Zhang 7

volvimento se baseou em diferentes es- incorporadores e a análise das propostas


calas e tipos de projetos de desenvolvi- de planejamento aprovadas. O pesqui-
mento e de incorporadores encontrados sador tentou entrevistar os encarrega-
nas áreas de preservação do estudo de dos dos casos e os incorporadores de
caso. Nessa parte da pesquisa, os prin- todos os projetos de desenvolvimento
cipais métodos utilizados foram as en- contidos no estudo de caso.
trevistas com encarregados do caso e

Estudos de casos

A Área de Preservação de Si fícios muito altos quando diversos pré-


Nan (APSN) dios de escritórios foram construídos ao
longo do lado leste da rua Mid Huaihai.
Foram selecionados três projetos de A construção do Central Plaza foi a pri-
desenvolvimento na área de Si Nan meira de um grupo de prédios altos. Foi
(APSN): o primeiro era um único pré- iniciada em 1994 por uma empresa de
dio comercial novo iniciado por um in- Hong Kong em um local onde havia um
corporador particular; o segundo era a prédio histórico que originalmente fora
substituição de fileiras de casas Li-Long a sede do Conselho Municipal da Colo-
modernas iniciada por uma empresa em nização Francesa e que, após 1949, fora
parte pública, em parte privada; e o ter- ocupado por uma escola, já transferida
ceiro era a ampla substituição de anti- para um novo local. Esse prédio, de
gas casas Li-Long, em 23 quarteirões, 1909, em estilo neoclássico, foi classifi-
por um incorporador particular. cado como SMEMB (construção muni-
cipal excelente e moderna de Xangai)
O P ROJETO DO CENTRAL PLAZA em 1993.

O primeiro caso é o do projeto do Cen- Antes de apresentar formalmente a


tral Plaza (Figura 2), um edifício novo e proposta, o incorporador manteve lon-
com muitos andares, que exigia a altera- gas negociações sobre os detalhes do
ção e a demolição parcial de um prédio plano com os encarregados do caso no
histórico. Os detalhes do projeto foram SMUPB. Dado o limitado tamanho do
obtidos em uma entrevista com Fan local, o novo prédio teria de ser erguido
Zhang (2000), um encarregado do caso dentro da área de proteção do prédio
do SMUPB responsável pelo projeto. histórico. Porém os Regulamentos de
Juntamente com outras áreas de preser- Preservação de Prédios Históricos Mo-
vação de centros comerciais de Xangai, dernos (SMPC, 1991) haviam disposto
durante a década de 1990, a APSN vi- que nenhum prédio, nenhuma alteração
venciou o impacto da construção de edi- ou acréscimo poderiam ser aprovados
8 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

naquela área. No entanto, por ser o pri- favoráveis. O projeto de construção foi
meiro grande projeto de investimento aprovado no início de 1997 como um
urbano estrangeiro no distrito de Luwan, caso especial, e as condições específicas
o governo local esperava que fosse um estipuladas pelos encarregados do caso
sucesso e, por isso, pediu ao SMUPB que deveriam ser obedecidas.
aprovasse a proposta com condições

Figura 2: O Central Plaza

Fonte: Fotografia do pesquisador (2000).

Entre as condições vinculadas à deveria ser projetado para contrastar e


aprovação da proposta do novo prédio, realçar o prédio histórico.
o SMUPB exigiu que a nova construção
não tocasse o prédio histórico, cuja fa- No entanto, após avaliar minucio-
chada deveria ser mantida intacta. O samente o local e os desenhos iniciais, o
SMUPB permitia a demolição ou alte- incorporador continuava preocupado
ração da estrutura interna do prédio com a possibilidade de não obter um
histórico de acordo com a função e a lucro adequado em função da limitação
natureza do projeto proposto, mas esti- do tamanho do local e do coeficiente
pulava condições para a nova estrutura de aproveitamento do solo (CAS). Se-
interna e para a sua decoração. O novo guiram-se negociações adicionais com
prédio poderia ter vários andares, mas o SMUPB, e o Bureau alterou suas con-
Jiantao Zhang 9

dições iniciais para permitir a demolição edifício novo com a construção histórica.
da parte dos fundos do prédio histórico Esse caso foi relevante como uma ex-
e sua união com a nova construção. A periência da prática do controle sobre
fachada e o telhado da parte não-demo- desenvolvimentos que envolvem a coe-
lida seriam preservados, e os cartazes e xistência de prédios históricos e novos
letreiros nela afixados seriam retirados nas áreas de preservação de Xangai.
para recuperar sua aparência original. Todavia, após a realização das alterações,
a decoração interna do prédio histórico
A proposta pormenorizada final também foi modernizada e, por isso, não
para esse projeto foi aprovada pelos combinava com o estilo de sua aparên-
encarregados do caso no SMUPB em cia externa. Como conseqüência, depois
1997. Aquiescendo às condições de pla- desse caso, o SMUPB passou a contro-
nejamento modificado, o incorporador lar não apenas a aparência externa, mas
gastou RMB 1 30 milhões na alteração do também as características internas de
prédio histórico para integrá-lo, como prédios históricos em projetos de alte-
um pódio, ao novo edifício de escritórios ração ou, até mesmo, de reconstrução.
(se tivesse sido demolido e se um pódio
totalmente novo tivesse sido construído, Nesse caso, o incorporador desem-
o custo teria sido de RMB 4 milhões). penhou um papel importante nas deci-
Para atender às condições impostas às sões relacionadas às características do
alterações pelo SMUPB, o incorporador novo prédio e à demolição parcial do
convidou um escritório de arquitetura prédio histórico. Quanto ao projeto, a
dos EUA, que seria auxiliado por arqui- principal preocupação era a sua lucrati-
tetos de Xangai, para elaborar o projeto. vidade. O governo do distrito de Luwan
Ele procurou e utilizou materiais que também estava envolvido em função de
fossem iguais ou semelhantes aos da seu interesse no desenvolvimento eco-
construção original do prédio. nômico da área. Os encarregados do
caso no SMUPB se mostraram desfavo-
Segundo o encarregado do caso ráveis às propostas dos consultores e do
(Zhang, F., 2000), quanto à preserva- incorporador, mas, sob pressão do in-
ção parcial de uma edificação SMEMB corporador e do governo do distrito de
como parte de um prédio novo, o in- Luwan, cederam às propostas e só con-
corporador e seus consultores tinham seguiram assegurar a preservação da
feito o possível para manter as caracte- fachada do prédio histórico. Na realida-
rísticas originais do prédio histórico e de, quaisquer que fossem os esforços
integrá-lo ao estilo e à aparência do do SMUPB, as características originais e
novo prédio. A construção atendeu às o valor histórico do prédio em questão
exigências de conservar a aparência da teriam sido perdidos após a demolição
parte preservada do prédio histórico e parcial e a alteração do uso do solo.
de harmonizar o estilo e a aparência do Além disso, a construção de um prédio
1
O RMB é a unidade monetária usada na República Popular da China. Um RMB equivale a
aproximadamente US$ 0,122.
10 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

alto mudou a disposição interna original Após uma análise inicial, a Shui On
do terreno, e o imponente volume e a Company aceitou a recomendação. No
fachada de vidro da nova construção entanto, em virtude da crise econômica
criam um grande contraste com as edi- da Ásia, o início do projeto foi adiado
ficações de tijolos baixas das proximi- até 1998. Naquele ano, a Shui On Com-
dades. Portanto, esse projeto alterou pany convidou a firma de consultoria
consideravelmente o panorama da cida- de design norte-americana SOM para
de e as características da APSN. ser sua consultora de planejamento para
o projeto. A Shui On Company propôs
O PROJETO DE REGENERAÇÃO DA ÁREA então que as antigas edificações residen-
DE T AI P ING QIAO ciais fossem convertidas em usos comer-
ciais, que todas as fachadas, telhados e
O segundo caso é o projeto de regene- materiais originais fossem preservados
ração da área de Tai Ping Qiao, um e que partes das estruturas internas e
exemplo de desenvolvimento em gran- da decoração fossem alteradas.
de escala, envolvendo 23 quarteirões e
um grupo de prédios históricos. Os por- Além da proteção do grupo de pré-
menores do projeto foram basicamente dios tradicionais, a empresa propôs tam-
obtidos em entrevistas com Wenhai bém a criação de um grande lago
Zhang (2000), uma encarregada do artificial no centro da área para melhorar
caso no SMUPB responsável pelo pro- a paisagem. De acordo com o incorpo-
jeto, e com Qing Guo (2000), um mem- rador, para ressarcir o investimento na
bro mais graduado da equipe da Shui preservação e na construção do lago e
On Company, a empresa responsável ainda obter lucro, teriam de ser cons-
pelo desenvolvimento do projeto. A área truídos prédios residenciais e comerciais
de Tai Ping Qiao consistia essencialmen- altos na parte restante da área. Apesar
te em antigas casas Li-Long muito dete- de um desenvolvimento menos intenso
rioradas, que, na década de 1990, da pequena área preservada e do lago,
exigiam substituição imediata. Porém, o a maior parte seria ocupada por um de-
local do Primeiro Congresso, que fora senvolvimento maciço. Dentro da área
classificado como SMEMB em 1989, do projeto, o CAS para os diferentes
estava dentro dessa área. De acordo com edifícios individuais variava entre 4,0 e
as rigorosas exigências de preservação 6,0, e a densidade de construção, entre
das edificações classificadas como 30% e 70%. Isso dava uma média CAS
SMEMB, as construções antigas teriam de 4,18 e uma média de densidade de
de ser preservadas e só seriam permitidas construção de 43% na área do projeto.
alterações internas. Em 1996, o governo Embora a média de densidade de cons-
do distrito de Luwan recomendou que a trução proposta fosse menor do que a
Shui On Company (de Hong Kong) rea- densidade de construção antes da re-
lizasse o projeto de regeneração da área generação, a média CAS proposta era
de Tai Ping Qiao, uma área que englo- 2,5 a 3 vezes maior do que a anterior à
bava o local do Primeiro Congresso. regeneração. Na primeira proposta da
Jiantao Zhang 11

SOM, o panorama da área projetada dois a três andares para um centro de


mudaria consideravelmente após a re- cidade com prédios muito altos seme-
generação, de uma tradicional área de lhantes aos de Hong Kong e de outras
densidade alta com casas Li-Long de metrópoles internacionais (Figura 3).

Figura 3:

Ciente da necessidade de regene- veis ao lago nos regulamentos de zonea-


ração e dos esforços para preservar pré- mento local 2 de Xangai. Outro motivo
dios no local do Primeiro Congresso, o que os levou a aceitar essa proposta
SMUPB aprovou a proposta, com con- (ibid.) foi o fato de eles não considera-
dicionantes, em 1998. Durante as ne- rem boas as probabilidades de implan-
gociações, os encarregados do caso tação do projeto. Dada a sua intensidade
pediram à Shui On Company que re- e o tamanho da área incluída, o tempo
duzisse a densidade de construção em para conclusão do projeto seria muito
sua proposta (Zhang, W., 2000). Após longo e os encarregados do caso não
pequenas modificações, a Shui On tinham certeza de que haveria recursos
Company conseguiu convencer os res- e demanda suficientes para justificar o
ponsáveis pelo planejamento a aprovar projeto. Por isso, era bem provável que
a densidade proposta, considerando os a Shui On Company retornasse ao
benefícios oriundos do surgimento de SMUPB para modificar sua proposta
um espaço aberto – que seriam aplicá- durante aquele longo período.
2
Item 20, Seção 3, Apêndice 2, do Technical Directions of City Planning and Administration
(Land-use and Building Administration) (SMG, 1994).
12 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

As propostas para regenerar os Shui On Company decidiu mudar esses


prédios residenciais tradicionais foram prédios de estilo moderno para um es-
elaboradas pela consultoria de design tilo nacional tradicional e está discutindo
norte-americana Wood/Zapata e inicia- esse assunto com os responsáveis pelo
das em 1999. Dividiu-se a área do proje- planejamento.
to em dois grupos de prédios, as antigas
e preservadas edificações Li-Long, inclu- Nesse caso específico, a pressão pela
sive o local do Primeiro Congresso, e os regeneração foi o principal motivo para
novos prédios modernos. As mudanças o governo do distrito de Luwan iniciar
de usos envolviam os dois grupos: o o projeto de reconstrução da área de
primeiro, para atender basicamente às Tai Ping Qiao. Contudo, o incorporador,
exigências de preservação do SMUPB, a Shui On Company, foi o agente prin-
abrigaria restaurantes, pubs e outros pré- cipal no projeto. A lucratividade era a
dios comerciais de pequena escala; o sua maior preocupação. Defrontando-
segundo seria destinado a prédios co- se com a necessidade de regeneração,
merciais maiores. A Shui On Company o SMUPB só podia aprovar as propos-
enfatizou que o contraste entre as tradi- tas da empresa relacionadas a prédios
cionais e pequenas casas Li-Long e os altos. No entanto, conseguiu impor o
modernos prédios comerciais era pro- Plano de Preservação para manter as
posital, ou seja, serviria para realçar o fachadas das antigas casas Li-Long no
panorama histórico. Embora os respon- local do Primeiro Congresso. De acordo
sáveis pelo planejamento se mostrassem com a proposta de planejamento apro-
reticentes e preocupados com o impacto vada, após a regeneração, a área de Tai
das atividades comerciais propostas no Ping Qiao, atualmente uma área residen-
solene local do Primeiro Congresso cial tradicional com antigas casas Li-Long,
(ibid.), a discussão sobre o estilo arqui- passará por uma extraordinária mudan-
tetônico foi considerada subjetiva. As ça morfológica no tecido da construção,
autoridades locais do planejamento ge- nos usos do solo e nos padrões de pla-
ralmente demonstravam reserva sobre nejamento da cidade, e se tornará um
tais assuntos, a não ser que nos planos moderno centro comercial ocupado por
aprovados constassem exigências por- edifícios altos.
menorizadas em relação ao estilo. De
acordo com o Plano de Preservação O PROJETO DE H UIHAI F ANG
para o local do Primeiro Congresso 3, os
prédios de nove andares propostos pela O terceiro exemplo é o de Huihai Fang,
empresa deveriam ser reduzidos para projetado para substituir quatro fileiras
prédios de seis andares, para limitar sua de casas Li-Long comuns por modernos
altura como pano de fundo para o local. prédios de apartamentos públicos com
Ao ver a reação bastante positiva às mo- seis andares. Os detalhes do projeto
dificadas casas Li-Long tradicionais, a foram basicamente obtidos em entre-
3
O Plano de Preservação e a Restauração do Local do Primeiro Congresso do Partido Comu-
nista Chinês (SUPDI, 1996).
Jiantao Zhang 13

vistas com Zhihao Ren (2000), encarre- e o concluíram em março de 1999. Em


gado do caso no SMUPB responsável junho de 1999, a primeira família mudou
pelo projeto, com Xianhong Li (2000), de volta para os novos prédios; daquele
responsável pelo planejamento no Bu- total de 220 famílias, 217 regressaram
reau de Planejamento Urbano do Distrito ao local.
de Luwan, e com Xingjian Fan (2000),
vice-presidente da empresa Yong Ye O projeto Huaihai Fang pretendia
Company, responsável pelo projeto. O reconstruir os apartamentos originais,
projeto foi executado pela Yong Ye cada um deles compartilhado por várias
Company, uma empresa em parte pú- famílias, em unidades maiores e unifa-
blica, em parte privada que pertence ao miliares. Em função da exigência de
Bureau de Habitação, órgão do governo construções maiores, os novos prédios
do distrito de Luwan. Teve início como deveriam ter seis andares e sua profun-
uma experiência de regeneração das tra- didade seria maior do que a original.
dicionais moradias Li-Long no distrito de Após a reconstrução, o CAS da área do
Luwan em 1997. Em virtude dos gran- projeto aumentou de 1,1, originalmente,
des investimentos envolvidos e da ausên- para 2,1, e a razão da distância de luz
cia de lucro, o setor privado não estava solar 4 entre os prédios ficou em 0,86,
muito interessado em tais projetos. Por não satisfazendo à exigência do mínimo
isso, as autoridades governamentais do de 0,90 5 nos regulamentos de zoneamen-
distrito de Xangai, que enfrentavam pres- to local de Xangai. Não apenas a densi-
sões de moradores locais, costumavam dade, mas também o estilo arquitetônico,
entregar esse tipo de trabalho a empresas mudaram após a reconstrução – as tradi-
público-privadas. Assim, o governo do dis- cionais casas Li-Long foram substituídas
trito de Luwan entregou o projeto a Yong por prédios modernos. Substituições se-
Ye Company. melhantes ocorreram em outros proje-
tos de regeneração do mesmo tipo, tais
As edificações originais da área do como o da rua Shenping e o da rua
projeto eram as modernas casas Li-Long Yueyang. Depois de sua conclusão, foi
de três andares construídas em 1932. apresentada uma proposta para apro-
Um total de 220 famílias morava nos vação retrospectiva do projeto, que foi
prédios. Sem apresentar uma proposta aprovado pelo SMUPB em dezembro
de planejamento, os próprios arquitetos de 1999.
da Yong Ye Company prepararam a
demolição e o plano de reconstrução. Os responsáveis pelo planejamento
Iniciaram o projeto em junho de 1998 (Ren, 2000; Li, 2000) acharam que o

4
A razão da distância da luz solar é uma exigência técnica para manter a distância norte-sul
mínima entre dois prédios vizinhos, de forma a assegurar a luz do sol necessária no prédio
ao norte. A razão é igual à distância norte-sul entre dois prédios dividida pela altura do edifício
ao norte. Detalhes sobre isso podem ser encontrados na Seção 4 de Technical Directions of
City Planning and Administration (Land-use and Building Administration) (SMG, 1994).
5
Item 28, Seção 4, das Direções de 1994.
14 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

projeto tinha danificado o ambiente da e o design dos prédios novos, embora


área de Huaihai Fang porque alterara o panorama e os aspectos relacionados
muito o tecido de construção original. ao caráter da área fossem ignorados
A Yong Ye Company pensava diferente pelos moradores.
(Fan, 2000). O principal objetivo desses
projetos era melhorar as condições de O projeto Huaihai Fang é um caso
vida dos moradores. Limitados por re- específico. Foi iniciado em razão da ne-
cursos insuficientes e pelo tamanho dos cessidade de regeneração. A Yong Ye
terrenos, seria impossível duplicar o es- Company executou o projeto sem utili-
paço para cada família e, ao mesmo zar consultoria e sem submeter propos-
tempo, preservar as características ori- tas de planejamento e construção ao
ginais da área. A empresa manteve o SMUPB. Portanto, a empresa foi o único
padrão original do terreno e fez o pos- agente a decidir sobre as características
sível para manter as características ori- dos quatro prédios de apartamentos do
ginais das construções, imitando o estilo projeto, e o SMUPB não conseguiu
arquitetônico e o desenho da fachada exercer controle sobre seu desenvolvi-
nas novas edificações. O projeto custou mento. Embora o padrão do terreno
RMB 45 milhões à empresa, e até o ano original tenha sido mantido no projeto,
de 2000 ainda havia um déficit de RMB o estilo tradicional das casas Li-Long,
17 milhões. Segundo a empresa, os es- com três andares, foi substituído por
critórios de arquitetura estrangeiros, por prédios totalmente diferentes, de estilo
não estarem familiarizados com a ar- moderno e com seis andares, e o pano-
quitetura local, não seriam os mais ade- rama da área também foi modificado.
quados para elaborar projetos em que O projeto implicava na construção de
houvesse preocupação com o vernáculo prédios novos e altos, e a razão da dis-
arquitetural tradicional, porque seus de- tância da luz solar não satisfazia às exi-
senhos poderiam afastar-se desse estilo. gências técnicas dos regulamentos de
Os responsáveis pelo planejamento zoneamento local de Xangai. No entan-
eram considerados muito idealistas na to, considerando o projeto um plano de
busca dos objetivos de preservação e, regeneração não-lucrativo iniciado pelo
na verdade, pouco conhecedores das governo do distrito de Luwan para be-
dificuldades no trabalho de preservação neficiar os moradores do local (Ren,
que impediam que outros se envolves- 2000), o SMUPB aprovou a proposta,
sem nesse trabalho. Comparadas aos apesar de ela ter sido submetida após a
conflitantes pontos de vista dos responsá- conclusão do projeto.
veis e da Yong Ye Company, as opiniões
dos moradores, obtidas pelo pesquisa-
dor em entrevistas informais, eram bas- A Área de Preservação de
tante simples. Quase todos estavam Heng Shan (APHS)
satisfeitos com o projeto, e alguns até
mesmo o consideravam melhor do que A APHS é maior do que a APSN e apre-
esperavam. A maioria apreciava o estilo senta muito mais projetos levados a cabo
Jiantao Zhang 15

pelo governo e por instituições do que esse aspecto em consideração, o gover-


a APSN. Como área residencial tradicio- no municipal negociou com o SMUPB
nal de moradores mais ricos, nela a im- para obter condições favoráveis para a
plantação de projetos tinha algumas proposta de um edifício alto. O SMUPB
características diversas das outras áreas, aceitou aprovar a construção do prédio,
principalmente no que diz respeito aos mas exigiu que a altura não ultrapas-
centros comerciais. Os projetos gover- sasse o limite estipulado nas exigências
namentais eram diferentes dos privados de preservação das três vilas.
porque o controle das autoridades locais
do planejamento sobre eles parecia ser Em 1998, o hotel Xingguo começou
mais complicado do que o controle sobre a discutir propostas pormenorizadas
os outros tipos de projetos. Vejamos os para a construção de sua extensão com
exemplos. os responsáveis pelo planejamento. Para
satisfazer os critérios de preservação das
UM NOVO PROJETO DE três vilas, os responsáveis pelo planeja-
DESENVOLVIMENTO DO GOVERNO mento exigiram que o novo prédio fi-
casse fora do jardim onde elas estavam
A construção de um arranha-céu para situadas. Dessa forma, o único lugar dis-
a ampliação do hotel Xingguo, a casa ponível para a construção era a área de
de hóspedes do SMG localizada no serviço dos fundos na parte norte do
lado ocidental da rua Xingguo, é um jardim. De acordo com os critérios de
exemplo de projeto desenvolvido pelo preservação das três vilas, o novo prédio
governo. teria de estar afastado delas por uma
distância de, pelo menos, 150 m. Limi-
Responsável pela hospedagem da tado pelos rígidos critérios, o hotel só
maior parte do governo municipal, o poderia ser reformado. Por conseguin-
hotel era deficitário há muito tempo. te, os responsáveis pelo planejamento
Para compensar o déficit, além dos em- não estipularam outras exigências sobre
preendimentos do governo, o hotel pre- o formato do prédio, mas estabeleceram
cisava obter mais renda com outros cláusulas minuciosas sobre sua fachada.
negócios, logo, novas instalações para Os arquitetos da Hawk Architectural
hóspedes precisariam ser construídas. Consulting dos EUA e do Huadong Ar-
Por isso, o hotel propôs a construção de chitectural Design Institute obedeceram
um novo prédio com vários andares. No às condições impostas pelos responsá-
entanto, o hotel tinha três conjuntos de veis pelo planejamento, e, no fim, a
casas, vilas classificadas como SMEMB, construção agradou com seu estilo sim-
cuja preservação poderia entrar em con- ples e elegante, seus materiais e cores e
flito com a proposta de construção de sua harmonia com as casas protegidas
um prédio de vários andares. Levando (Figura 4).
16 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

Figura 4

UM NOVO PROJETO DE Xangai, assim definidos: um local na rua


DESENVOLVIMENTO PARA A ÁREA DE Mid Huihai, um na rua Julu e um na
N ANJING , PERTENCENTE AO COMANDO rua Yuqing, todos dentro da APHS.
DA F ORÇA A ÉREA C HINESA Dada a natureza do título de proprie-
dade do local, o projeto na rua Yuqing
Além dos projetos do governo local, foi negado; os outros dois foram apro-
outros foram realizados como, por vados.
exemplo, os empreendidos pelas Forças
Armadas. Um deles foi o da área de Nan- O projeto na rua Mid Huihai, uma
jing, pertencente ao Comando da Força casa de hóspedes do Comando da área,
Aérea da China. foi iniciado em 1989 e antecedeu ao da
rua Julu. Considerando as característi-
A origem dos projetos remonta a cas de densidade baixa, prédios baixos
1986, quando o SMG chegou a um e muita área verde, o SMUPB mostrou-
acordo com o Comando da Força Aérea se muito cauteloso ao lidar com a pro-
local para permitir que este último es- posta e, antes de tomar uma decisão,
colhesse três locais para o projeto em descreveu o projeto para o vice-prefeito
Jiantao Zhang 17

responsável pelo desenvolvimento ur- longas negociações e modificações, a


bano. Após a aprovação do projeto pelo proposta foi aprovada no final de 1997.
vice-prefeito, o SMUPB estabeleceu con- Mas, em 1998, o governo central pro-
dições para a proposta. A altura do novo mulgou uma ordem proibindo as Forças
prédio não poderia exceder 24 m, o li- Armadas de conduzir empreendimentos
mite superior para prédios de gabarito comerciais. Conseqüentemente, o pro-
médio. Visando controlar o impacto do jeto precisou ser encerrado, e a proposta
projeto nos arredores, as condições para aprovada foi abortada. Em vista disso,
o estilo da construção e da fachada, para o Comando da área propôs erigir al-
o lay-out do terreno e para o trânsito guns prédios temporários no local para
foram minuciosamente detalhadas, arrendá-los e, em seguida, construir
embora, na época, aquela não fosse apartamentos particulares quando hou-
uma área de preservação nem, tampou- vesse financiamento. Em razão da gran-
co, houvesse um plano de preservação de preocupação dos moradores com o
para o local. Apesar da estrita obediência projeto naquele local, os responsáveis
às condições do planejamento, muitos pelo planejamento determinaram con-
moradores do local fizeram comentários dições minuciosas sobre as construções
negativos ao SMUPB, por considerarem temporárias propostas, exigiram que
o projeto deselegante e por degradar a elas fossem construídas como edificações
paisagem do local. permanentes e que não fossem arren-
dadas a donos de pequenos negócios,
Em 1995, o Comando da área pro- uma vez que isso poderia prejudicar as
pôs a construção de um novo hotel para características da área. Depois de todas
serviços comerciais externos no local. Ao as condições terem sido aceitas, a pro-
tomarem conhecimento da proposta, os posta foi aprovada em abril de 1998.
moradores, temerosos de que, além de Durante a construção, um dos prédios
degradar a paisagem e o ambiente do desobedeceu à condição que exigia uma
local, o hotel gerasse problemas ambien- distância mínima para proteger uma
tais de barulho, de tráfego, de luz e de árvore antiga, fato que foi divulgado nos
sinalizações, pediram ao governo do dis- meios de comunicação locais. Após in-
trito de Xuhui e ao SMUPB que se opu- vestigarem o fato, as autoridades mul-
sessem firmemente à proposta. A pedido taram o Comando da área.
do Comando da área e para facilitar a
aprovação da proposta e convencer os A RECONSTRUÇÃO DE UMA CASA EM
moradores a aceitá-la, os responsáveis CENTRO DE TERRENO NA RUA JULU
pelo planejamento no SMUPB explica-
ram a eles as exigências impostas pelo Bem em frente a esse projeto, no outro
SMUPB e prometeram um rígido con- lado da rua Julu, havia uma casa parti-
trole sobre elas. Para manter a promes- cular de centro de terreno. Ela serve de
sa, os responsáveis pelo planejamento comparação para o projeto das Forças
estipularam condições criteriosas sobre Armadas.
a proposta e seus pormenores. Após
18 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

A casa era originalmente comparti- nasse o problema da sombra que o edi-


lhada por várias famílias. Em 1999, um fício proposto projetaria nos prédios do
empresário de Taiwan comprou a casa fundo, porque, nesse aspecto, a propos-
e propôs restaurá-la. Como ela estava ta não cumpria determinações impor-
muito danificada, não poderia ser mini- tantes dos regulamentos de zoneamento
mamente reformada ou alterada. Assim, local. Após a modificação do lay-out do
o proprietário pediu ao SMUPB permis- prédio proposto, o problema foi solucio-
são para reconstruí-la por completo. nado e a proposta foi aprovada em 1997.
Considerando que a área compunha-
se de um grupo de casas semelhantes, O PROJETO DA CONSTRUÇÃO DO
os encarregados do caso exigiram que SHOPPI NG S HEN DA
ela fosse reconstruída exatamente igual
à casa original e que a nova estrutura Além dos tipos de desenvolvimento urba-
fosse mais forte e durável. Após con- no supracitados, os projetos comerciais
cordar com essas condições, o proprie- e institucionais também eram importan-
tário contratou arquitetos para elaborar tes na APHS. A construção do shopping
um desenho meticuloso da casa, e a Shenda é um exemplo de desenvolvi-
proposta satisfatória foi aprovada em mento urbano comercial.
dezembro de 1999.
A construção seria ao norte de uma
O PROJETO DOS APARTAMENTOS DE edificação classificada como SMEMB,
D I N GXI AN G uma casa histórica de estilo escandinavo
repleta de características criativas (Wu,
Diferente dos casos anteriores de projetos 1997, p. 119). Por esse motivo, o SMUPB
residenciais ocupados por proprietários, estabeleceu condições rigorosas para a
os projetos residenciais especulativos altura e a aparência da construção. Após
constituem um outro exemplo de desen- receber a proposta, em abril de 1996,
volvimento urbano importante. Os apar- os encarregados do caso realizaram mui-
tamentos Dingxiang são um deles. tas rodadas de negociações com o incor-
porador, com os arquitetos responsáveis
Esse projeto ficava dentro de uma pelo projeto e com especialistas em pla-
área residencial de classe social alta, nejamento e arquitetura, para discutir a
constituída por prédios modernos e altos, proposta e as respectivas condições de
na divisa oeste da APHS. A proposta de planejamento. Cientes da situação es-
construção de um prédio com 31 anda- pecial do projeto, o incorporador e os
res destinado aos apartamentos foi rece- arquitetos cooperaram com os encar-
bida pelo SMUPB em maio de 1997, e, regados do caso. Como a altura do pré-
em relação ao estilo, altura e aparência, dio da proposta inicial excedia um pouco
ele estava de acordo com os outros pré- o limite das condições do planejamento,
dios da área. Os encarregados do caso os encarregados realizaram análises com
concordaram com a proposta geral, mas instrumentos de avaliação para investigar
exigiram que o incorporador solucio- se a altura era viável. Após averiguações,
Jiantao Zhang 19

estipularam um novo limite de altura e a proposta já atendia à condição de li-


exigiram que ele fosse obedecido. Sob mite de altura, a casa esconderia total-
essa condição, o formato do edifício pro- mente o prédio, logo, qualquer que
posto foi projetado para aumentar gra- fosse o seu estilo, ele não afetaria a visão
dativamente de sul para norte e alcançar da casa histórica se as pessoas a olhas-
o limite de altura exato. Nesse formato, sem de frente. Essa concepção era pro-
a construção alcançaria o CAS mais alto blemática, uma vez que, como a maioria
imposto pelo limite da altura, e o seu das pessoas veria a casa histórica da rua
CAS ainda ficaria abaixo do limite nas onde simultaneamente veriam o prédio,
condições do planejamento. Além da al- o estilo deste evidentemente afetaria o
tura, o estilo arquitetônico foi um outro da casa.
foco da proposta. Em geral, havia duas
maneiras de harmonizar edifícios novos A proposta foi aprovada em 1996;
e antigos: por imitação ou por contraste. contudo, em virtude da falta de verbas,
Um projeto ao sul da casa escandinava a construção ficou parada durante qua-
utilizou pináculos para combinar com tro anos, e o prédio inacabado prejudi-
ela, procedimento que foi amplamente cou bastante a paisagem da cidade
criticado por ser considerado uma imi- (Figura 5).
tação absurda da casa e por estragar seu
valor arquitetônico e o panorama da- OS PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO
quela área (Ma, 1999). Os responsáveis URBANO DO HOSPITAL H UASHAN
pelo planejamento tinham o mesmo
ponto de vista sobre o design daquele Esses projetos são um exemplo de de-
projeto. Após avaliarem as dificuldades senvolvimento institucional dentro da
da imitação do estilo característico da- APHS.
quela casa, concordou-se que o prédio
proposto poderia ser em estilo moderno, Em razão da falta de espaço, o hos-
um background que contrastasse ligei- pital Huashan foi dividido em duas alas:
ramente com o da casa histórica. O estilo uma para pacientes ambulatoriais e uma
do prédio proposto deveria ser simples para pacientes internados. Foram colo-
e discreto. Na proposta, todas essas con- cadas em dois locais separados, mas pró-
dições foram atendidas. ximos um do outro. A ala para pacientes
ambulatoriais localizou-se em frente ao
De modo geral, os encarregados do hotel Xangai, no mesmo quarteirão, o
caso ficaram satisfeitos com esse projeto, que causava transtornos a ambos. No
pois, além de manterem um bom relacio- final da década de 1980, chegaram a
namento com o incorporador e os ar- um acordo; o hotel pagaria ao hospital
quitetos, a proposta obedeceu a todas a quantia necessária para realocar os
as condições de planejamento. Eles residentes do departamento dos pacien-
acharam também que o resultado das tes internados, de forma que o depar-
condições impostas ao estilo arquitetô- tamento dos pacientes ambulatoriais
nico não era tão óbvio, porque, como poderia juntar-se ao dos pacientes inter-
20 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

nados no mesmo bloco, o hotel ficando de pacientes internados, em 2000 outro


então com o terreno anteriormente utili- prédio de 21 andares foi construído.
zado pelo departamento dos pacientes Dadas as funções e as características es-
ambulatoriais. Com base nesse acordo, peciais desses prédios para pacientes, os
o hospital Huashan pediu ao Shangai responsáveis pelo planejamento não
Architectural Design Institute que elabo- fixaram condições específicas para as
rasse um projeto para unificar as duas propostas. Exigiram apenas que elas obe-
alas. Esse projeto foi aprovado pelo decessem aos critérios de zoneamento
SMUPB no início da década de 1990. geral. Embora estivessem suficiente-
Ele dividia o hospital em três partes: mente distantes da linha vermelha da rua
pacientes internados, pacientes ambu- Changle, que se situava ao sul dos pré-
latoriais e suporte técnico. De acordo dios, mas porque a largura dessa rua era
com o projeto, um edifício de 18 andares muito pequena quando comparada à
foi construído em 1993 para acomodar imponente altura dos prédios, as pessoas
pacientes, no lugar onde os pacientes que passavam por ela ainda achavam que
deslocados anteriormente costumavam os prédios eram opressivos (Figura 6).
ficar. Em virtude do número crescente

Figura 5 :

Fonte: Fotografia do pesquisador (2000).


Jiantao Zhang 21

Figura 6 :

Fonte: Fotografia do pesquisador (2000).

De acordo com o projeto, além dos terreno, classificada como uma das 162
prédios para pacientes internados, a ala edificações SMEMBs em 2000. Os arqui-
de suporte técnico atual permaneceria no tetos que estavam planejando os prédios
meio, e a ala para pacientes ambulato- para a nova ala de pacientes ambulato-
riais seria colocada mais ao norte, em um riais reconheceram as qualidades da casa
local onde havia um comércio varejista e a preservaram no projeto, embora
e edificações residenciais. Nesse local, naquela ocasião ela ainda não tivesse
havia uma casa residencial de centro de sido classificada como SMEMB. Como
22 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

o projeto do hospital fora um plano de- exigências impostas pelos responsáveis


talhado e controlado no início da déca- pelo planejamento, o projeto pormeno-
da de 1990, recentemente foi elaborado rizado da construção ainda estava em
um plano de construção pormenorizado deliberação.
para a futura construção de uma ala
ambulatorial. De acordo com as regu- A implantação do projeto do hospital
lamentações para a preservação de pré- Huashan se estendeu por um período re-
dios históricos modernos de 1991, não lativamente longo, 10 anos, e ainda está
havia nenhum projeto aprovado na em andamento. O encarregado do caso
área de proteção daquela SMEMB. (Wang, B., 2000) relatou ao autor que,
Devido à função e às necessidades espe- dada a sua função especial, o SMUPB
cíficas dos prédios do hospital, os encar- poderia apenas exigir que o hospital cum-
regados do caso permitiram que os novos prisse algumas condições de planejamen-
prédios tocassem aquela SMEMB, desde to básicas, embora os prédios muito altos
que não a danificassem e que o estilo, o já tivessem arruinado o panorama da-
formato, a cor, o material e a aparência quela área (Figura 7). Essa era a situação
dos novos prédios satisfizessem as condi- geral dos desenvolvimentos urbanos ins-
ções de planejamento. Após todas essas titucionais com funções especiais.

Figura 7 :

Fonte: Fotografia do pesquisador (2000).


Jiantao Zhang 23

Conclusões

Com base nas investigações minuciosas ção era bem visível nos centros comer-
sobre os processos de mudanças de ciais. Os arquitetos desempenhavam um
paisagem urbana nas áreas de preser- papel menos importante nas mudanças
vação investigadas, diversos tópicos da paisagem, e suas principais influências
merecem uma discussão mais ampla. se concentravam nos aspectos visuais
dessas mudanças. Não havia uma grande
O primeiro grupo está relacionado distinção entre arquitetos nacionais (basi-
aos agentes diretos da mudança da pai- camente locais) e arquitetos estrangeiros
sagem urbana, particularmente os que quanto à falta de respeito às paisagens
as iniciam. Seus diversos motivos resul- existentes em seus projetos.
taram em mudanças nos diferentes tipos
de paisagem da cidade e nas suas parti- O segundo grupo está relacionado
cularidades: os projetos destinados a à administração das autoridades locais
usos particulares pareciam mais sensí- do planejamento e ao controle das mu-
veis às características da paisagem exis- danças na paisagem urbana das áreas
tente do que os projetos comerciais e de preservação. Os traços de adminis-
especulativos. Essa situação ficou óbvia tração da paisagem urbana nas áreas de
na comparação entre projetos em áreas preservação eram imperceptíveis. Os
comerciais e áreas residenciais. Entre os responsáveis pelo planejamento tenta-
projetos destinados a usos particulares, ram e, na verdade, conseguiram exercer
alguns iniciados pelo governo e por ins- um certo controle sobre essas mudan-
tituições especiais, como os da APHS, ças, embora, em muitos casos, os resul-
eram mais conflitantes com as paisagens tados não fossem tão ideais quanto os
existentes do que outros projetos priva- pretendidos. Vários fatores contribuí-
dos, especialmente os residenciais. Os ram para essa situação.
incorporadores domésticos (basicamente
locais) demonstravam mais compreen- Em primeiro lugar, as autoridades
são e respeito pelas paisagens existentes locais do planejamento não possuíam
do que os do sudeste asiático (a maioria uma estratégia administrativa coerente.
composta por incorporadores especulati- Parecia não haver um objetivo de pre-
vos cuja preocupação maior era o lucro). servação a longo prazo, e, em muitos
Os últimos influenciaram o panorama casos, os responsáveis pelo planejamen-
da cidade e as características das áreas to tomavam decisões baseadas em edi-
de preservação de Xangai (principal- ficações individuais. Isso acontecia
mente as dos núcleos comerciais) com principalmente nos centros comerciais
a introdução de elementos estrangeiros, e pode ter sido causado pelas caracte-
isto é, edifícios altos e projetos em larga rísticas dessas áreas. A diversidade de
escala completamente diferentes da pai- novos projetos intensificou a incoerên-
sagem urbana local existente. Essa situa- cia na administração dessas áreas. Nas
24 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

áreas residenciais, cujas paisagens eram pressões econômicas e da regeneração,


relativamente mais coerentes, as parti- assim como a interferência de outros
cularidades da área foram mais consi- setores dos governos locais e de alguns
deradas. As edificações históricas mais incorporadores, afetaram significativa-
especiais e protegidas, algumas com pla- mente as decisões dos responsáveis pelo
nos de preservação específicos e proteção planejamento, tais como a da construção
legal, receberam muito mais atenção do do Central Plaza na APSN e as de vários
que os prédios comuns. projetos governamentais na APHS.

Em segundo lugar, os instrumentos Finalmente, havia discrepâncias


de planejamento destinados à adminis- entre as políticas declaradas pelas auto-
tração eram insuficientes. A legislação ridades locais do planejamento, as priori-
local de Xangai não fornecia regulamen- dades para a administração da paisagem
tos pormenorizados e viáveis para o e o que se via na prática. Essas discre-
controle das áreas de preservação. Com pâncias foram causadas por vários fato-
exceção dos prédios classificados como res: as políticas e as prioridades eram
SMEMB, os prédios das áreas de pre- gerais demais para serem implementa-
servação só podiam ser protegidos pelas das; as leis eram insuficientes e ineficazes
leis de zoneamento comum. A incapa- e não havia apoio para essas políticas e
cidade das autoridades locais do plane- prioridades; as pressões externas e as in-
jamento em controlar letreiros nas áreas terferências afetavam o controle dos pro-
de preservação é conseqüência direta jetos que, por sua vez, também eram
de uma legislação local deficiente. Além influenciados por outros agentes. Por
disso, havia poucas políticas e planos de conseguinte, em vez de objetivos de pla-
preservação pormenorizados para apoiar nejamento coerentes, em muitos casos,
a administração. Em função da inexis- as paisagens urbanas pareciam ser sub-
tência de apoio legal e político, muitas produtos do desenvolvimento urbano.
vezes os responsáveis pelo planejamento Apesar de todos esses motivos, as auto-
só podiam contar com o bom senso, e, ridades locais do planejamento exerce-
por isso, os resultados eram limitados. ram influências, embora não por meio
de uma administração coerente e eficaz,
Em terceiro lugar, como as medidas nas mudanças nas áreas de preservação.
atuais são insuficientes para permitir a
monitoração e assegurar a implantação O terceiro grupo está relacionado às
de condições de planejamento, o con- percepções, aos inter-relacionamentos
trole do desenvolvimento em áreas de e às interações de agentes diferentes,
preservação é menos restritivo e eficaz. particularmente de incorporadores e
responsáveis pelo planejamento. Agen-
Em quarto lugar, as pressões externas tes diferentes possuíam percepções di-
e os fatores não-administrativos interfe- ferentes das áreas e das mudanças da
riram no controle e na administração paisagem. As percepções dos incorpo-
das autoridades do planejamento. As radores provêm basicamente de seus
Jiantao Zhang 25

interesses no desenvolvimento e de seu apesar de essas comunicações nem sem-


conhecimento da área, interesses inti- pre serem aceitas. Os incorporadores e
mamente vinculados às suas origens. os arquitetos desempenharam papéis
Isso se refletia em suas propostas de vitais na interação com outras partes,
desenvolvimento. As percepções dos embora os responsáveis pelo planeja-
responsáveis pelo planejamento basea- mento e os moradores se mostrassem
vam-se basicamente na paisagem exis- ora reativos ora passivos. Na maioria dos
tente e eram mais conservadoras do casos, a mudança final estava em con-
que a dos incorporadores. Similarmente, sonância com a proposta do incorpora-
as percepções dos moradores, principal- dor e do arquiteto. As exigências dos
mente nas áreas residenciais, eram tam- responsáveis pelo planejamento consti-
bém muito limitadoras em relação à tuíam uma parte menor da mudança.
paisagem existente e fundavam-se nos Em alguns poucos casos, elas eram cru-
próprios interesses e nas próprias con- ciais para as mudanças e, às vezes, até
cepções sobre o local. Dois exemplos mais importantes do que as propostas
revelaram as percepções dos morado- dos incorporadores e arquitetos. Qual-
res: o do projeto da área que pertencia quer que fosse o caso, como os morado-
ao Comando da Força Aérea da China res influenciavam as mudanças por meio
na rua Mid Huihai, em que os morado- do sistema de controle das autoridades
res se mostraram veementemente con- locais do planejamento, suas opiniões só
trários aos novos empreendimentos, e influenciaram as mudanças indiretamen-
o de Huihai Fang, em que os moradores te e não obtiveram resultado concreto.
ficaram satisfeitos com a regeneração. Todas as mudanças foram conseqüência
Sem sombra de dúvida, havia diferenças de complicadas interações entre múlti-
entre as percepções dos moradores. plas partes e, em muitos casos, foram
devidas mais a reconciliações entre par-
As percepções de cada agente dire- tes do que a objetivos do planejamento
cionavam suas atitudes e ações no desen- ou da administração.
volvimento da mudança. As verdadeiras
mudanças da paisagem urbana resul- Alguns fatores acarretaram dificul-
taram de interações entre diferentes dades específicas para o controle do
agentes e, na maioria dos casos, eram desenvolvimento urbano. O governo e
diferentes da percepção inicial de cada os incorporadores das Forças Armadas
grupo. As autoridades locais do plane- costumavam exercer forte pressão sobre
jamento incentivaram o primeiro con- as autoridades locais do planejamento,
tato com os incorporadores antes da e, em alguns casos, os responsáveis pelo
apresentação das propostas formais. planejamento tiveram de transigir com
Uma maior comunicação também foi in- eles. Em alguns casos específicos, em
centivada, e, na maioria dos casos, os lugar de seu legítimo papel de executo-
responsáveis pelo planejamento tiveram res do controle do planejamento, os res-
muitos contatos com incorporadores, ponsáveis pelo planejamento atuaram
arquitetos e outras partes envolvidas, como mediadores entre incorporadores
26 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

e moradores. Por intermédio do governo se dirigindo para o século XXI, Xan-


local, alguns incorporadores e especu- gai precisa não apenas de prédios
ladores também exerceram, direta ou modernos e altos para mostrar sua
indiretamente, pressão sobre as autori- modernidade, mas também de anti-
dades locais do planejamento. Como gas áreas e prédios típicos para apre-
essa pressão estava intimamente relacio- goar sua longa história e cultura (...).
nada às prioridades da economia e da
regeneração local, afetava muito as po- Estudos anteriores (Dong, 1999,
líticas e as ações das autoridades locais p. 24-25; Geng, 1996; Ruan, 1995,
do planejamento. Além disso, os morado- 1996; Wang, J., 1996, p. 15-16; Wang,
res, às vezes, pressionavam essas autori- J., Ruan e Wang. L., 1999, p. 70-81;
dades para que as mudanças realizadas Yuan, 1999) argumentavam que, apesar
não ficassem tão distantes de suas expec- das dificuldades, as políticas de áreas de
tativas. Como mencionaram os respon- preservação podem sobreviver às pres-
sáveis pelo planejamento, essas situações sões do desenvolvimento econômico, da
ocorreram cada vez mais e se tornaram regeneração urbana e da renovação em
uma tendência. outras cidades da China. Aqui, argu-
menta-se que os estudos de casos locais,
Quaisquer que fossem os motivos como, por exemplo, o projeto de Xin
por trás de suas ações, os envolvidos nas Tian Di, sustentam que as políticas da
mudanças da paisagem urbana tendiam área de preservação de Xangai podem
a dar mais atenção à preservação. Alguns sobreviver às pressões do desenvolvi-
incorporadores começaram a perceber mento econômico, da regeneração e da
a importância de respeitar os arredores renovação urbana, embora isso não sig-
de seus projetos e pretendiam transfor- nifique uma sobrevivência absoluta.
mar a preservação em propaganda para Como foi constatado em estudos anterio-
eles. Os moradores reconheceram a res e nos atuais estudos de casos sobre
importância do panorama da cidade e Xangai, na China, a sobrevivência das
de sua qualidade no ambiente em que políticas das áreas de preservação está
viviam. As autoridades locais do plane- intimamente associada a vários fatores.
jamento deram um passo em direção a
um planejamento eficaz da regeneração O primeiro é a localmente variável
e da preservação urbana. Acima de pressão do desenvolvimento econômico
tudo, a preservação passou a fazer parte e da regeneração urbana sobre a pre-
de um consenso local. Como um repór- servação urbana, que foi constatada em
ter escreveu (Ma, 1999): muitas cidades da China e em diferentes
partes dessas cidades. Como se poderia
Após a imensa regeneração do centro esperar, nos locais onde a pressão do de-
de Xangai, o foco do planejamento senvolvimento econômico é grande, e
deslocou-se para a preservação e não combatida por completo, na melhor
restauração dos prédios históricos de das hipóteses, as políticas de preserva-
Xangai e áreas (...) como uma cidade ção podem ceder a formas de proteção
Jiantao Zhang 27

cosmética. Nos locais onde as pressões sibilidade de conversão do tecido de


de desenvolvimento são menores, a pre- construção das áreas. Por exemplo, no
sença de uma política de preservação projeto de regeneração de Tai Ping
clara e conhecida pode incentivar a sua Qiao, quase todas as antigas casas Li-
sobrevivência (embora a deteriorada Long estavam muito deterioradas, e sua
condição física de muitos prédios e a falta preservação era impraticável (Zhang, W.,
de recursos possam dificultar bastante a 2000). Por conseguinte, a sobrevivên-
adoção de medidas positivas e de res- cia das políticas de preservação de áreas
tauração). O segundo fator são as fre- sob pressão do desenvolvimento eco-
qüentemente divergentes atitudes dos nômico, da regeneração urbana e da
governos locais em relação às áreas de renovação continua a ser uma tarefa es-
preservação e de regeneração urbana. pinhosa para as autoridades do plane-
Os estudos de casos revelaram que as jamento e para os governos locais na
autoridades locais do planejamento ten- China.
taram controlar a implantação de proje-
tos nas áreas de preservação e proteger Nas duas últimas décadas, a China
as suas características originais, enquanto passou por um rápido desenvolvimento
outros departamentos dos governos lo- socioeconômico. Semelhante à situação
cais tenderam a buscar o desenvolvi- de muitos outros países asiáticos, a re-
mento urbano e econômico mesmo à generação urbana em larga escala está
custa da preservação urbana. Isso tam- sendo realizada na maioria das cidades
bém foi constatado em outros estudos chinesas, o que ameaça seriamente o
(Geng, 1996; Ruan, 1995, 1996). O vernáculo arquitetural dessas cidades.
terceiro fator é a falta de consenso sobre Para proteger sua herança cultural e
as áreas de proteção e preservação entre características, a China estabeleceu um
os governos locais, os profissionais do sistema de preservação urbana no final
planejamento das localidades, o público da década de 1980. No entanto, a es-
em geral, os incorporadores e outras trutura política nacional do sistema é
partes envolvidas. Por exemplo, embora bastante incompleta, e a prática da pre-
no projeto de Huaihai Fang os responsá- servação urbana varia entre as diferentes
veis pelo planejamento local consideras- autoridades locais. Como o estudo da re-
sem que os prédios históricos mereceriam generação e da preservação urbana está
ser preservados, os moradores locais, o apenas começando e não possui uma
governo do distrito e o incorporador base teórica, o equilíbrio entre regene-
achavam exatamente o oposto e, por ração urbana e preservação tornou-se
isso, pressionaram pela demolição dos uma tarefa difícil para as autoridades do
prédios originais. O último fator é a plau- planejamento da China.
28 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

Referências

BARRETT , H. Investigating townscape the Shui On Company responsible for


change and management in Urban Con- the planning of Tai Ping Qiao Regenera-
servation Areas: the importance of de- tion Project, on 05/12/2000, about the
tailed monitoring of planned alterations. Tai Ping Qiao Regeneration Project and
Town Planning Review, 64 (4), p. 435- the Xin Tian Di Project, 2000.
456, 1993.
JONES, A. N.; LARKHAM, P. J. The Charac-
DENECKE, D.; SHAW, G. (Ed.). Urban His- ter of Conservation Areas. Report com-
torical Geography: Recent Progress in missioned from “Plan Local” for the
Britain and Germany. Cambridge: Cam- Conservation and Built Environment
bridge University Press, 1988a. Panel. London: Royal Town Planning
Institute, 1993.
__________. Introduction. In: DENECKE, D.;
SHAW, G. (Ed.). Urban Historical Geog- LARKHAM, P. J. Conservation, Planning
raphy: Recent Progress in Britain and and Morphology in West Midlands Con-
Germany. Cambridge: Cambridge Uni- servation Areas, 1968-84. Unpublished
versity Press, 1988b. PhD thesis. Birmingham: University of
Birmingham, 1986.
DONG, L. Bei Jing Jiu Cheng Bao Hu
Mao Dun Fen Xi Ji Dui Ce Jian Yi (The __________. Conservation and the man-
analysis and suggestion to solve prob- agement of historical townscapes. In:
lems in the conservation of Beijing’s Old SLATER, T. R. (Ed.). The Built Form of
City). Cheng Shi Gui Hua (City Plan- Western Cities. Leicester: Leicester Uni-
ning Review), 23 (2), p. 23-28, 1999. versity Press, 1990.

FAN, X. J. The researcher’s interview with __________. Conservation and the City.
Mr. Xingjian Fan, the Deputy General London: Routledge, 1996.
Manager of the Yong Ye Company, on
10/11/2000, about the Huaihai Fang LARKHAM, P. J. et al. The Management of
Project, 2000. Change in Historical Townscapes: A Dis-
cussion of Current Research. School of
GENG, H. B. Jiu Cheng Geng Xing Xue Geography, University of Birmingham
Shu Yan Tao Hui Zong Shu (Summary Working Paper Series No. 42. Birming-
of the Urban Renewal Conference). ham: University of Birmingham, 1988.
Cheng Shi Gui Hua (City Planning Re-
view), 20 (1), p. 10-11, 1996. LARKHAM, P. J.; LODGE, J. Testing UK con-
servation in practice: the case of Chartist
GUO, Q. The researcher’s interview with Villages in Gloucestershire. Built Environ-
Mr. Qing Guo, a senior staff member of ment, 23 (2), p. 121-136, 1997.
Jiantao Zhang 29

LI, X. H. The researcher’s interview with ronment). Xangai: Xangai Scientific and
Mr. Xianhong Li, a planning officer of Technological Press, 2000.
the Luwan District Urban Planning Bu-
reau, on 08/11/2000, about the Tai Ping SLATER, T. R. (Ed.). The Built Form of
Qiao Regeneration Project and the Western Cities. Leicester: Leicester Uni-
Huaihai Fang Project, 2000. versity Press, 1990.

MA, M. L. Liu Xia Wen Hua, Liu Xia Li SMG (Xangai Municipal Government).
Shi, Liu Xia Yin Fu…Ju Jiao Shang Hai Technical Directions of City Planning and
Feng Mao Jian Zhu Bao Hu Gong Administration (Land-use and Building
Cheng (Save the culture, save the his- Administration). Xangai: SMG, 1994.
tory, save the melody… focus on town-
scape and building conservation projects SMPC (Xangai Municipal People’s Con-
in Xangai). Wen Hui Daily (Wen Hui gress, the local legislation authority of
Bao), p. 6, 24 Apr. 1999. Xangai). Excellent Modern Historic Build-
ing Preservation Regulations. Xangai:
MINISTRY OF CONSTRUCTION OF CHINA. SMPC, 1991.
Urban Plan Making Regulations. Bei-
jing: Ministry of Construction of China, SMUPB. Shang Hai Shi Li Shi Jian Zhu
1991. He Feng Mao Di Qu Bao Hu Yu Li Yong
Ji Zhi Yan Jiu (The Study of the Mecha-
REN, Z. H. The researcher’s interview nism of the Preservation and Utilization
with Mr. Zhihao Ren, a planning officer of Xangai’s Historic Buildings and Town-
of the SMUPB responsible for the scape Areas). Xangai: SMUPB, 2000.
Huaihai Fang Project, on 23/10/2000,
about the project, 2000. SUPDI. Yi Da Hui Zhi’ Di Qu Jian She
Feng Mao Bao Hu Yu Gai Zhao Gui Hua
RUAN, Y. S. Dang Jin Jiu Cheng Gai Zao (The Preservation and Restoration Plan
Zhong De Yi Xie Wen Ti (Some prob- for the Site of the First Chinese Com-
lems in present old city regeneration). munist Party Congress). Xangai: SUPDI,
Cheng Shi Gui Hua Hui Kan (Urban 1996.
Planning Forum), 101, p. 57-58, 1995.
__________. Shang Hai Shi Li Shi Wen
__________. Jiu Cheng Gai Zao He Li Hua Ming Cheng Bao Hu Gai Jian Yu
Shi Ming Cheng Bao Hu (Urban renewal Fa Zhan Guan Xi Ji Chu Yan Jiu (The
and historic city conservation). Cheng Study of Relationships between the
Shi Gui Hua (City Planning Review), 20 Conservation, Regeneration and Devel-
(1), p. 8-9, 1996. opment of the Historic Cultural City
Xangai). Xangai: SUPDI, 1999.
__________. Li Shi Huan Jing Bao Hu De
Li Lun Yu Shi Jian (The theory and prac- VILAGRASA, J. Recent change in two his-
tice of the conservation of historic envi- torical city centres: an Anglo-Spanish
30 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

comparison. In: WHITEHAND, J. W. R.; __________. Rebuilding Town Centres:


LARKHAM, P. J. (Ed.). Urban Landscapes: Developers, Architects and Styles. Uni-
International Perspectives. London: versity of Birmingham Department of
Routledge, 1992. Geography Occasional Publication, No.
19, Birmingham: University of Birming-
VILAGRASA, J.; LARKHAM, P. J. Post-war re- ham, 1984.
development and conservation in Britain:
ideal and reality in the historic core of __________. Development pressure, de-
Worcester. Planning Perspectives, 10 (2), velopment control and suburban town-
p. 149-172, 1995. scape change: case studies in South-east
England. Town Planning Review, 60 (4),
WANG, B. The researcher’s interview with p. 403-420, 1989.
Mr. Bing Wang, a planning officer of the
SMUPB responsible for the develop- __________. Townscape management:
ment projects of Huashan Hospital, on ideal and reality. In: SLATER, T. R. (Ed.).
20/12/2000, about the project, 2000. The Built Form of Western Cities. Leices-
ter: Leicester University Press, 1990.
WANG, J. H. Li Shi Wen Hua Ming Cheng
Bao Hu Nei Rong Ji Fang Fa (The con- __________. The Making of the Urban
tent and methodology of historic cultural Landscape. Oxford: Blackwell, 1992.
city conservation). Cheng Shi Gui Hua
(City Planning Review), 20 (1), p. 15- WHITEHAND, J. W. R.; CARR, C. M. H. The
17, 1996. changing fabrics of ordinary residential
areas. Urban Studies, 36 (10), p. 1661-
WANG, J. H.; RUAN, Y. S.; WANG, L. Li 1677, 1999.
Shi Wen Hua Ming Cheng Bao Hu Li
Lun Yu Gui Hua (The Theory and Plan- WHITEHAND, J. W. R.; L ARKHAM , P. J.
ning of the Conservation of Historic (Ed.). Urban Landscapes: International
Cultural Cities). Xangai: Tongji Univer- Perspectives. London: Routledge, 1992.
sity Press, 1999.
WHITEHAND, J. W. R.; L ARKHAM , P. J.;
WANG, Y. H. Shang Hai Li Shi Feng Mao JONES, A. N. The changing suburban
Di Duan Bao Hu Ce Lue Yan Jiu (The landscape in Post-war England. In:
study of tactics in the conservation of WHITEHAND, J. W. R.; L ARKHAM , P. J.
historic districts in Xangai). Unpublished (Ed.). Urban Landscapes: International
Master’s thesis. Xangai: Department of Perspectives. London: Routledge, 1992.
Urban Planning, Tongji University, 1998.
WHITEHAND, J. W. R.; MORTON , N. J.;
WHITEHAND, J. W. R. (Ed.). The Urban CARR, C. M. H. Urban morphogenesis
Landscape: Historical Development and at the microscale: how houses change.
Management. Papers by M. R. G. Environment and Planning B: Planning
Conzen, London: Academic Press, 1981. and Design, 26 (4), p. 503-516, 1999.
Jiantao Zhang 31

WU, J. Shang Hai Bai Nian Jian Zhu Shi: Hua (City Planning Review), 23 (2), p. 41,
1840-1949 (The History of Xangai’s Ar- 1999.
chitecture: 1840-1949). Xangai: Tongji
University Press, 1997. ZHANG, F. The researcher’s interview with Mr.
Fan Zhang, a planning officer of the SMUPB
YIN, R. K. Case Study Research: Design responsible for the Central Plaza Project,
and Methods. 2. ed. CA, Thousand Oaks: on 14/11/2000, about the project, 2000.
Sage, 1994.
ZHANG, W. H. The researcher’s interview
YUAN, X. Qian Yi Wo Guo Li Shi Jie Qu with Ms. Wenhai Zhang, a planning officer
Bao Hu De She Hui Jing Ji Ji Chu He of the SMUPB responsible for the Tai Ping
Cao Zuo Guo Cheng (The socio-eco- Qiao Regeneration Project and the Xin
nomic basis and operation of China’s his- Tian Di Project, on 27/11/2000, about the
toric district conservation). Cheng Shi Gui two projects, 2000.

Resumo Abstract
Em primeiro lugar, este trabalho visa This paper aims first, to develop a me-
desenvolver uma estrutura metodoló- thodological framework for the study of
gica para o estudo da administração da the management of urban regeneration
regeneração e da preservação urbana and conservation in China; and second,
na China; e, em segundo lugar, avaliar to evaluate current management prac-
a prática da administração atual. Xangai tice. Shanghai has been chosen as a
foi escolhida como estudo de caso por- case study, as it has experienced large-
que vem realizando uma regeneração scale urban regeneration and its urban
urbana em grande escala e seu sistema conservation system is relatively advan-
de preservação urbana é relativamente ced. China has experienced rapid socio-
avançado. Nos últimos 20 anos, a China economic development during the last
vivenciou um rápido desenvolvimento two decades. Similar to the situation in
socioeconômico. Semelhante à situação many other Asian countries, large-scale
de muitos outros países asiáticos, a re- urban regeneration has been under-
generação urbana vem sendo realizada taken in most Chinese cities and this has
na maioria das cidades chinesas, pondo seriously threatened the traditional and
em risco o vernáculo arquitetural dessas vernacular built environment of those
cidades. Para proteger sua herança ar- cities. To protect its built heritage and
quitetônica, no final da década de 1980, environment, China established an urban
a China estabeleceu um sistema de pre- conservation system in the late 1980s.
servação. No entanto, a estrutura política However, the national policy framework
nacional é bastante incompleta, e a prá- of the system is largely incomplete and
tica da preservação urbana varia entre the urban conservation practice varies
32 Gestão da renovação e preservação urbana na China: o caso de Xangai

as diversas autoridades locais. O equilí- between different local authorities. The


brio entre regeneração e preservação balance between urban regeneration
urbana tornou-se uma tarefa bem difícil and conservation has become a hard
para as autoridades do planejamento da task for China’s local planning authori-
China. Além disso, nesse país, o estudo ties. Furthermore, the study of China’s
da regeneração e da preservação urba- urban regeneration and conservation is
na está apenas iniciando e não possui only at a beginning and lacks a theoreti-
um embasamento teórico. cal foundation.

Palavras-chave : renovação urbana; Keywords: urban renewal; urban con-


conservação urbana; China. servation; China.

Jiantao Zhang é graduado pela Universidade de Liverpool (UK) e atualmente é


pós-doutorando no Departamento de Planejamento Urbano da Universidade de
Tongji (China). Sua pesquisa envolve morfologia e projeto urbanos, análise de
políticas urbanas, conservação e regeneração urbana. É membro do International
Seminar on Urban Form.
Caminhando com sapatos
alheios: desafios epistemológicos
no planejamento participativo

Karen Umemoto

Nas cidades metropolitanas, a diversidade de planejamento de governos munici-


cultural mudou o mundo do planeja- pais e de agências que elaboram políticas
mento. Os planejadores estão confron- estão se tornando cada vez mais diferen-
tando-se com uma crescente variedade tes, especialmente na suas composições
de tópicos com dimensões culturais ex- raciais e étnicas. Para os planejadores,
plícitas, tais como a prestação de serviços essa diversidade traz muitos desafios. Um
públicos em diversos idiomas, a permis- dos mais difíceis é elaborar e facilitar pro-
são para utilização de simbologia não- cessos de planejamento que possam aco-
inglesa nas vitrines das lojas, a instalação modar essas diferenças culturais, porque
de templos religiosos e a preservação de exige que os planejadores ampliem seu
locais sagrados, para citar apenas alguns conhecimento para englobar outros
(Edelstein e Kleese, 1995; Jennings, mundos epistemológicos – como cami-
1994; Saito, 1998). Como a presença nhar com os sapatos de outra pessoa.
de pessoas de backgrounds culturais Além de ser difícil (e alguns diriam ser
diferentes é cada vez maior nas institui- impossível), essa habilidade raramente
ções de planejamento, a diversidade é enfatizada no treinamento profissional.
cultural também fica visível nos proces-
sos de planejamento. Em cidades como Neste artigo, eu delineio alguns dos
Los Angeles e Nova York, os planejado- desafios epistemológicos envolvidos na
res entram em contato com um núme- facilitação de processos de planejamen-
ro cada vez maior de grupos culturais to participativos em ambientes multicul-
que se comunicam em mais de uma cen- turais. Os desafios epistemológicos são
tena de idiomas. Além disso, as equipes os que surgem em função da existência

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIX, Nos 1-2, 2005, p. 1-32
2 Caminhando com sapatos alheios

de vários pontos de vista enraizados na ção de controvérsias que surgem em


história e na cultura. De modo geral, virtude das diferenças nas epistemolo-
compreendemos que existem normas gias. 2 A tarefa de mediar paradigmas
culturais, valores e formas específicas de culturais divergentes representa um con-
interpretar o mundo que, se não forem junto maior de desafios que os especia-
compreendidos, poderão dificultar a listas em planejamento já começaram a
participação de grupos historicamente investigar (Forester, 1999; Healey,
marginalizados, até mesmo nos mais 1999). No momento, apresento os desa-
bem-intencionados esforços do plane- fios epistemológicos que os planejado-
jamento. Este artigo investiga desafios res enfrentam quando trabalham com
específicos relacionados à necessidade comunidades com identidades culturais
de se fazer com que as “vozes das re- distintas e não-ocidentais e aproveito di-
giões fronteiriças” sejam ouvidas 1, para versos exemplos de um projeto realizado
que possamos aproveitar melhor a ri- na comunidade havaiana de Papakōlea.
queza proporcionada por nossas diver- Começo com uma breve discussão do
sidades. Os desafios delineados a seguir conceito de cultura, da virada acadêmica
estão associados à acomodação de epis- em direção aos temas da epistemologia
temologias múltiplas em processos de e da relevância de temas epistêmicos
planejamento que não abordam o igual- para o planejamento em uma sociedade
mente importante tópico da reconcilia- multicultural.

Cultura e epistemologia
Há uma crescente sensibilidade em re- várias áreas principais: teorias da dife-
lação à cultura e à diferença cultural no rença no planejamento, diversidade nos
estudo e na prática do planejamento. A processos de planejamento, modelos
recente literatura sobre diversidade no para planejamento em sociedades mul-
planejamento pode ser organizada em ticulturais e impacto do planejamento e

1
Essa frase foi retirada de um capítulo do livro de Leoni Sandercock (1998b) que possui o
mesmo título.
2
Se aceitarmos que a cultura é um conceito construído e dinâmico, a declaração de reivindicações
é ao mesmo tempo política e transformadora. É política no sentido de que a definição de
reivindicações culturais resulta em vitórias e derrotas tangíveis dentro da política existente. E
é transformadora porque está enraizada nas leis e normas que governam as instituições e
nos incentivos e desincentivos que freqüentemente moldam a definição de cultura. Depen-
dendo da maneira como os conceitos culturais são definidos, a partir de seus pontos de
vistas respectivos alguns poderão melhorar ou piorar. Poderão surgir discordâncias sobre
essas definições e elas poderão causar uma maior divisão dentro de grupos culturais que
tenham opiniões diferentes ou que possam vir a ser afetados pela nova definição de conceitos
culturais. A formulação de direitos baseados na cultura cria um novo conjunto de alianças e
divisões que transforma as relações do poder dentro e entre grupos culturalmente definidos.
Karen Umemoto 3

das políticas de identidade em comuni- moldam a participação e os resultados


dades de cor. Os debates relacionados no processo do planejamento. Outros
à primeira categoria, ou seja, às teorias autores desenvolveram guias mais prá-
da diferença no planejamento, foram ticos ou modelos para planejamento em
ressuscitados nas críticas pós-modernas diversas comunidades, incluindo as que
do liberalismo e do modernismo (Har- poderiam ser consideradas “nativas”
vey, 1989; Parpart, 1993; Soja, 1989; (Guyette, 1996; Hamdi e Goethert,
Watson e Gibson, 1995; Nicholson, 1997; Jojola, 1998; Minerbi, 1999).
1990). Os especialistas em planejamen- Esses trabalhos ressaltam a importância
to investigaram as maneiras específicas dos valores culturais como base para o
como experiências e pontos de vista cul- desenvolvimento de planos. Também
turais diferentes moldam o significado e sugerem maneiras para desenvolver
o design do lugar (Beall, 1997; Fincher métodos culturalmente apropriados
e Jacobs, 1998; Hayden, 1995; March- para grupos e indivíduos envolvidos no
mand e Parpart, 1995; Pratt, 1998; processo do planejamento. Esses guias
Rakodi, 1991; Sandercock, 1998a, complementam muitos trabalhos empí-
1998b). Vários teóricos do planejamen- ricos (inclusive estudos de casos) que
to passaram a argumentar que a raça, a destacam lições úteis da prática do pla-
etnia, o gênero, a preferência sexual e nejamento, principalmente em comuni-
as deficiências estão entre as principais dades historicamente oprimidas ou
fronteiras de identidade que demarcam marginalizadas (Beall, 1997; Catlin,
de modo diferenciado conhecimentos 1993; Anderson, 1996).
situados. Eles argumentam que os pla-
nejadores deveriam simultaneamente Há também um rico corpo de pes-
facilitar a declaração das diferenças e a quisa empírica que registra equívocos do
busca por pontos comuns nos processos planejamento e problemas enfrentados
de planejamento. por mulheres e comunidades de cor
(Boger e Wegner, 1996; Bullard, Grigsby
Um segundo e relacionado conjunto e Lee, 1996; Gillette, 1995; Goldsmith
de discussões concentrou-se nos proble- e Blakely, 1992; Greed, 1994; Little,
mas conceituais e práticos da elabora- 1994; Massey, 1994; Massey e Denton,
ção de processos de planejamento que 1993; Oliver e Shapiro, 1995; Ong,
podem facilitar o discurso democrático 1981; Sandercock, 1998a; Yiftachel,
deliberativo em ambientes diversos ou 1995). Estudos de casos analisaram pro-
multiculturais (Baum, 1994; Beall, jetos de desenvolvimento que ameaça-
1996, 1997; Forester, 1998; Healey, vam comunidades étnicas (Heskin, 1991;
1997; Innes e Booher, 1999; Qadeer, Silver, 1984; Thomas, 1997; Woods,
1997). Conjuntamente, esses autores 1998), movimentos de justiça ambiental
investigaram tópicos relacionados ao em comunidades de cor (Bullard, 2000;
poder e à comunicação, às estruturas Faber, 1998) e a aplicação de teorias de
institucionais, às identidades políticas e desenvolvimento ocidentais no mundo
ao conflito social, porque são eles que não-ocidental (Hettne, 1990; Mehmet,
4 Caminhando com sapatos alheios

1995; Peattie, 1987). Relatos sobre mo- meras diferenças na experiência, elas
vimentos sociais, tratamento injusto de são as diferenças por meio das quais os
povos nativos e bem-intencionados indivíduos e os grupos interpretam essas
objetivos paternalistas que não deram experiências. As epistemologias determi-
certo forneceram um rico material para nam o que pode ser conhecido, quem
as críticas teóricas aos paradigmas mo- poderia conhecer e o que constitui evi-
dernistas. Há também trabalhos recen- dência. Uma estrutura epistemológica é
tes sobre políticas contemporâneas de o produto de um processo social e, assim
planejamento que envolvem controvér- como a história e a cultura em que está
sias raciais e entre grupos (Chang e inserida, muda e se transforma perma-
Leong, 1994; Dear, Shockman e Hise, nentemente. Sandercock (1998b) su-
1996; Forsyth, 1998; Goode e Schnei- gere seis maneiras de conhecer o que
der, 1994; Keith e Pile, 1993; Saito, constitui uma epistemologia da multipli-
1998). Essas controvérsias ajudaram a cidade para a prática do planejamento:
reestruturar discussões sobre planeja- mediante o diálogo, a experiência, a
mento e sociedade civil em cidades aquisição de conhecimento localizado
multiculturais (Douglass e Friedmann, do que é específico e concreto, o apren-
1998; Okin, 1994; Young, 1995). dizado da leitura de evidência não-
verbal e simbólica, a contemplação e o
Na literatura do planejamento, há planejamento de ações. A autora e vá-
uma crescente atenção às questões epis- rios outros autores que advogam o “pla-
temológicas que tratam de tópicos rela- nejamento para públicos múltiplos”
cionados à diversidade (Healey e Hillier, (Sandercock e Forsyth, 1992) defendem
1996; Hillier, 1998; Sandercock, 1998b; a celebração da diferença enquanto
Sandercock e Forsyth, 1992). A episte- abordam os problemas da desigualdade
mologia é a teoria da natureza e dos e da exploração.
motivos do conhecimento. É descrita
como uma maneira de conhecer e com- É importante esclarecer o relaciona-
preender o mundo. 3 Pode ser explicada mento entre cultura e epistemologia por
como uma lente interpretativa através meio do registro da evolução do con-
da qual os significados dos aconteci- ceito básico de cultura. Os antropólogos
mentos, das ações, das palavras e dos podem traçar a utilização do conceito
símbolos são interpretados. As diferen- de cultura que vai de “cultura como
ças epistemológicas são mais do que tudo o que é aprendido e produzido” a

3
Especialistas em estudos feministas e étnicos contribuíram muito para a nossa compreensão
teórica das lacunas epistemológicas em nossa sociedade. As feministas usaram a frase “modos
de conhecimento de mulheres” (Belenky et al., 1986) para distinguir as epistemologias das
mulheres das dos homens. São aceitas múltiplas fronteiras de identidade – raça, etnia, gênero,
religião, nascimento, linguagem, preferência sexual, ocupação ou qualquer outro marcador
de identidade –, que variam na proeminência entre as situações e circunstâncias (Pratt,
1998). A convergência dessas e outras fronteiras indica possíveis posições sobre assuntos por
meio dos quais os grupos compreendem a realidade. A raça, a etnia, o gênero e a classe
continuam a ser as fronteiras mais visíveis de identidade e de diferenças na sociedade dos EUA.
Karen Umemoto 5

“sistemas, códigos e programas de sig- cado entre as sociedades (Barth, 1989).


nificado” (Friedman, 1994, p. 69). No Como o nosso conceito de cultura des-
início da antropologia, a noção de cul- locou-se em direção à epistemologia, as
tura estava associada às características investigações sobre a teoria do planeja-
que definem pessoas, isto é, os atributos mento também deveriam dar mais aten-
que distinguem uma pessoa das outras, ção a esses tópicos. Embora o objetivo
sejam eles o idioma, a religião, a tecno- não seja unir cultura e epistemologia,
logia ou sistemas similares. Em outras acho útil, para fins heurísticos, discutir
palavras, a cultura era estudada como diferenças culturais em termos de dife-
um conjunto de atributos vinculados a renças epistemológicas.
grupos específicos de pessoas. Porém,
no início da década de 1900, uma mu- Refiro-me ao planejamento baseado
dança promoveu a dissociação e abstra- na cultura, isto é, a um tipo de planeja-
ção do conceito de cultura com relação mento que esteja atento às diferenças
àqueles que, na prática, a possuem. Os epistemológicas entre grupos cultural-
cientistas sociais começaram a se con- mente definidos. O planejamento ba-
centrar nos sinais, nos símbolos, nos ins- seado na cultura legitima epistemologias
trumentos e nas crenças. Em vez de um múltiplas e, pelo menos teoricamente,
conjunto de atributos, a cultura passou as insere em pé de igualdade no espírito
a ser vista como um sistema de relações do pluralismo. A incorporação dessa
por meio das quais as pessoas se adap- abordagem permite a criação de esferas
tam a seus ambientes. discursivas para que grupos cultural-
mente definidos possam manifestar suas
Hoje em dia, especialmente nos preferências e visões durante os proces-
EUA, a cultura é amplamente vista como sos de planejamento. Ela também abre
um conceito simbólico ou cognitivo por espaço para o questionamento de con-
intermédio do qual o mundo é inter- ceitos normativos e fundamentados na
pretado. É amplamente aceita a noção cultura que sustentam estruturas e insti-
de que, em vez de estática, a cultura, tuições (Healey, 1999). A utilização desse
juntamente com a identidade, é social- poder discursivo pode levar a transfor-
mente construída, sendo algo contestado mações sociais e institucionais. Os mo-
e dinâmico. A cultura pode ser descrita vimentos sociais podem crescer nesses
como “um produto relativamente ins- espaços de discurso e, em seus desen-
tável da prática do significado, de múlti- volvimentos, propor reivindicações po-
plas e socialmente posicionadas ações líticas fundamentadas em declarações de
de atribuição do significado ao mundo direitos apoiados na cultura.
e de múltiplas interpretações dentro da
sociedade e (...) entre sociedades” (ibid., Grupos culturalmente distintos têm
p. 74). Ainda que distribuída na socie- sido tradicionalmente identificados
dade a partir de posições sociais, a cul- como étnicos ou religiosos. No entanto,
tura é geralmente reconhecida como este artigo foi escrito para ser aplicado
um produto de disputas sobre o signifi- às várias fronteiras sociais que retratam
6 Caminhando com sapatos alheios

posições epistêmicas distintas como, por visa homogeneizar tais grupos, porque
exemplo, a raça. Como uma categoria cortes adicionais de identidades distin-
social, a raça tem historicamente sido guem ainda mais os subgrupos dentro
(pelo menos nos EUA) uma das óbvias de qualquer uma dessas categorias.
fronteiras de identidade social dentro da Nem tampouco declarar que uma dada
sociedade. Os legados permanentes do fronteira de identidade evoca o mesmo
colonialismo, da imigração, da escrava- significado a todos os indivíduos ou gru-
tura, da dominação política e da estrati- pos categorizados dentro delas. Tecni-
ficação socioeconômica sobrevivem no camente, nos livros de censo federais, o
campo da experiência vivida ou da me- grupo cultural que eu trato neste artigo
mória coletiva. A raça, junto com a etnia, é visto como etnicamente havaiano e
a classe, o gênero, a preferência sexual racialmente polinésio ou nativo das ilhas
e outros marcadores de identidade so- do Pacífico. Embora haja uma grande
cial, representa fronteiras de grupos que diversidade dentro dessa comunidade
podem ser descritas a partir do fato de havaiana, focalizo a lente epistêmica fun-
que compartilham lentes epistêmicas damentada amplamente em uma iden-
distintas, fundamentadas na história e tidade havaiana compartilhada. 4
nas opiniões compartilhadas. Isso não

Cinco desafios para o planejamento fundamentado na


cultura
Se nos propusermos a reconhecer epis- comunidade na qual o background cultu-
temologias múltiplas e a aceitar que ral dos moradores é diferente do seu. Os
interpretações de experiências são con- cinco desafios são: (1) transpor estruturas
testadas e construídas, existem dois gran- interpretativas inseridas na cultura, na his-
des tipos de desafio para os planejadores. tória e na memória coletiva; (2) confron-
Um está relacionado à reconciliação de tar distinções na articulação de valores
diferenças epistemológicas entre grupos culturais e identidades sociais; (3) com-
culturais. O outro, à habilidade de aco- preender os múltiplos significados da
modar diversas epistemologias nos pro- linguagem; (4) respeitar e contornar pro-
cessos de planejamento. Neste artigo, tocolos culturais e relacionamentos so-
centro-me basicamente na última, ao ciais; e (5) compreender o papel do
analisar os cinco desafios que um plane- poder na adaptação cultural.
jador enfrenta quando trabalha em uma

4
Embora os havaianos nativos possam traçar as origens de sua migração a partir de outras
ilhas da Polinésia (basicamente o Taiti), a identidade étnica dos havaianos, por exemplo, era
mais visível no período contemporâneo durante o qual o exercício de elaboração de visões
do futuro foi realizado. O Havaí era uma monarquia independente antes de ser conquistado
por europeus no final da década de 1800 e ficou sob o domínio dos EUA até 1950, quando
se tornou o qüinquagésimo estado dos EUA.
Karen Umemoto 7

Aproveito exemplos de um projeto a classificação étnica (ou as circunstân-


de planejamento para a comunidade cias do nascimento para os que conside-
havaiana de Papakōlea, no centro de ram a categoria de havaiano indicativa
Honolulu, Havaí. Papakōlea é uma co- de sua origem nacional) é a fronteira
munidade composta por 270 famílias de identidade mais óbvia dentro dessa
que totalizam 1.500 pessoas. Em 1934, comunidade. Recapitulando rapida-
uma emenda ao Hawaiian Homes mente o contexto histórico em que os
Commission Act (42 Stat. 108) de 1921 havaianos se situam, devemos lembrar
estabeleceu Papakōlea como uma co- que a monarquia que dirigia as ilhas do
munidade para havaianos nativos. O Havaí foi deposta em 1893 com a coo-
Hawaiian Homes Commission Act foi peração da Marinha dos EUA. Em
elaborado para “permitir que havaianos 1898, os EUA anexaram o Havaí ape-
nativos retornem às suas terras, apoiar sar de reconhecerem a ilegalidade da
a auto-suficiência e a autodeterminação deposição da monarquia. Em 1959, o
de havaianos nativos e preservar seus Havaí se tornou o qüinquagésimo esta-
valores, suas tradições e cultura.” 5 Pela do dos EUA. Durante o período da co-
lei, a terra da comunidade está destinada lonização, os havaianos nativos sofreram
aos que tenham, pelo menos, 50% de com a desapropriação de suas terras,
ascendência havaiana. Com exceção de com doenças, deslocamento e desem-
algumas famílias e de esposos ou espo- poderamento. Promulgada pelo Con-
sas de moradores por direito, em Papakō- gresso dos EUA em 1993, a lei 103-150
lea, a maioria dos habitantes é formada reconheceu essas injustiças e pediu des-
por havaianos nativos ou que possuem culpas “em nome do povo dos EUA pela
alguma ascendência havaiana. deposição do rei do Havaí.” 6 Essa his-
tória está bem fresca na memória cole-
Como comunidade com forte identi- tiva dos havaianos nativos e é recontada
dade havaiana, Papakōlea e suas ativi- através de “relatos orais” 7, rituais, currí-
dades de planejamento oferecem lições culos educacionais, música, encenações
importantes para os planejadores preo- e literatura.
cupados com o planejamento partici-
pativo em sociedades multiculturais, Um processo de elaboração de visões
especialmente aquelas em que as iden- de futuro foi possibilitado por um co-
tidades étnicas, raciais e culturais são mitê de diretrizes liderado por funcio-
distintas e óbvias. Por razões históricas, nários da Associação da Comunidade

5
Como declarado no Artigo 1A., Objetivo.
6
A lei 103-150 dos EUA foi promulgada em 23 de novembro de 1993 pelo 103º Congress
Joint Resolution 19 “para reconhecer o centésimo aniversário da deposição do rei do Havaí
em 17 de janeiro de 1893 e, em nome dos EUA, pedir desculpas aos havaianos nativos pela
deposição do rei do Havaí”.
7
Nesse contexto, “narrativas de histórias” se referem a discussões ou conversas formais e
informais por meio das quais as histórias são compartilhadas através da tradição oral de
transmitir conhecimento e história.
8 Caminhando com sapatos alheios

de Papakōlea (a associação de morado- tade do grupo tinha nascido no Havaí,


res), funcionários do Kula No Na Poe lá morava há pelo menos 10 anos e es-
Hawai‘i (uma organização educacional tava envolvido com a cultura, a política
e não lucrativa que servia à comunida- ou a vida familiar nativa. Como recém-
de) e vários assistentes sociais do Queen chegada ao estado, eu era o membro do
Lili‘uokalani Children’s Center. 8 Alunos grupo com o menor background de his-
do Departamento de Urbanismo e Pla- tória, de cultura e de temas contempo-
nejamento Regional e da Escola de Assis- râneos do Havaí. A minha própria lente
tência Social da Universidade do Havaí, epistêmica fora moldada em Los Angeles
em Manoa, e diversos membros da fa- ao crescer como uma mulher americana,
culdade, inclusive eu, foram também mas da terceira geração de uma família
convidados a participar do comitê res- japonesa. O pouco que eu sabia a res-
ponsável pela elaboração de diretrizes. peito do Havaí eu aprendera com ami-
Em cooperação com esse comitê e gos cujas famílias eram de lá e nos dois
como parte de aulas práticas, os alunos anos que lá morara antes do início deste
elaboraram uma série de exercícios de projeto de planejamento.
planejamento nos quais solicitavam aos
moradores idéias relacionadas às suas Seria ingenuidade achar que é pos-
visões de futuro. Mais de 300 pessoas sível conhecer o mundo através das per-
participaram de um processo que come- cepções de outras pessoas. Tampouco é
çou no outono de 1997 e durou cinco realista achar que uma pessoa pode se
meses. Em Papakōlea, as visões de futu- tornar especialista em inúmeros paradig-
ro abordaram diversos temas, entre eles mas culturais. No entanto, é possível criar
a saúde, a educação, a cultura, a eco- bases para um aprendizado social que
nomia e a vida familiar (ver Declaração chama a atenção para a variedade de
referente a uma visão de futuro no epistemologias dentro dos processos de
Quadro 1). Coletivamente, essas visões planejamento. Podemos facilitar o debate
de futuro podem ser consideradas re- explícito de uma maneira que, segundo
flexos das aspirações da comunidade Iris Young (1995, p. 142), pode levar a
sob um ponto de vista culturalmente uma discussão democrática mais rica, “se
definido. considerarmos as diferenças de posição
social e de perspectiva de identidade
Nenhum dos seis estudantes ou dos como uma fonte para a crença pública,
dois membros da faculdade era descen- em vez de considerá-las divisões que
dente de havaianos nativos. Cerca de me- transcendem essas crenças públicas”. Ela
8
O processo de elaboração de visões de futuro é um processo utilizado igualmente por pla-
nejadores de comunidades, planejadores e estrategistas de corporações e é, freqüentemente, o
primeiro passo para um processo de planejamento estratégico. Ele é um processo em que os
participantes são incentivados a sonhar livremente sobre o futuro sem se preocuparem com
quaisquer restrições práticas. Os facilitadores elaboram exercícios que permitem a uma pessoa
imaginar um futuro possível – tanto desejável quanto indesejável. Os participantes identificam
valores compartilhados e os inter-relacionam sob a forma de declarações referentes a visões
de futuro.
Karen Umemoto 9

sugere três modos por meio dos quais o no decorrer de manifestações, questio-
planejamento pode estimular a democra- namentos e desafios ao conhecimento
cia comunicativa: (1) fazer os participan- proveniente de locais diferentes. A dis-
tes compreenderem suas experiências cussão seguinte busca aprofundar nossa
como parciais e referenciais; (2) deslo- compreensão da maneira como os pla-
car o discurso de reivindicações próprias nejadores podem entender e facilitar o
para o de apelos por justiça; e (3) ampliar debate entre lentes diferentemente posi-
o conhecimento social dos participantes cionadas.

Quadro 1: Declaração referente a uma visão de futuro para Papakōlea.

Papakōlea: Declaração referente a uma visão de futuro

Papakōlea é o nosso lar,


a comunidade onde o espírito de lōkahi e aloha
inspira a autoconfiança e a participação
no compartilhamento de nossa cultura
e no respeito por ‘ohana.

Os que aqui moram assumem o compromisso


de criar uma comunidade com identidade,
espírito e orgulho vigorosos. Nossa participação assegura a melhora
de nossa educação, nosso bem-estar econômico e nossas condições
de saúde
para as gerações futuras

Desenvolvimento Econômico
Para aumentar nossa confiança em nós mesmos, reunimos os recursos e talentos de
nossa comunidade para criar empregos e oportunidades econômicas.
Cultura
Nossa cultura se baseia na vivência dos valores de ‘ohana, aloha, laulima, lōkahi e
mālama. Estamos unidos pelo nosso orgulho e pelo respeito à herança cultural de
nosso kuāpuna.
Educação
A sabedoria e a orientação que nos é transmitida pelo nosso kūpuna indica o caminho
para realizações sociais e econômicas.
‘Ohana
Nossas famílias prosperam à medida que seus membros compartilham os valores de
aloha, kōkua e kuleana. Nosso ‘ohana vai preservar e nutrir a espiritualidade desta
comunidade.
Meio Ambiente
Nosso uso sábio do ‘aina vai fortalecer nossa comunidade. Orgulho do nosso lar e
respeito pelo nosso povo são alimentados por aqueles que participam da história
dessa terra.
10 Caminhando com sapatos alheios

Superando estruturas As estruturas interpretativas se tor-


interpretativas enraizadas nam aparentes durante o período de inte-
na cultura, na história e na ração entre o planejador e os membros
memória coletiva da comunidade. Nos estágios iniciais,
quando o planejador entra na comuni-
Os planejadores são especialmente cui- dade, essa interação freqüentemente é
dadosos no que se refere aos mapas problemática. Nas cidades multiculturais,
sociais e culturais elaborados pelos mo- o planejador muitas vezes trabalha em
radores individualmente e coletivamente comunidades em que o background
em suas mentes. Quando um planeja- étnico ou racial dos moradores é dife-
dor entra em uma comunidade, entra rente do seu. Quanto maior for a iden-
em um ambiente cultural de um mo- tificação racial ou étnica dentro de uma
mento histórico específico. A cultura, a comunidade geográfica, maior será a
história e a memória coletiva moldam probabilidade de os moradores compar-
as estruturas interpretativas por meio das tilharem uma memória coletiva que é
quais os significados são produzidos. As marcada pela relevância da raça ou da
normas, os valores culturais e as formas etnia e maior será a probabilidade de o
de conhecimento compõem as estrutu- background racial ou étnico do plane-
ras de julgamento e, junto com a história jador ser um elemento decisivo nas in-
vivida ou lembrada, moldam a quali- terações iniciais. Isso poderá influenciar
dade da interação. O mapa mental e a a maneira como um planejador é visto
lente histórica de uma pessoa são forma- e as deduções quanto a seus motivos
dos por experiências pessoais exclusivas ou intenções. As ações e as atitudes são
ou por fatores associados à coletividade interpretadas através de uma lente co-
à qual essa pessoa pertence, tais como lorida pela história. Para as comunidades
a idade, a etnia, a raça, o gênero, a reli- que enfrentaram discriminações ou tra-
gião, a participação em redes sociais, os tamento opressivo e que atribuem esse
papéis desempenhados na sociedade tipo de tratamento à sua identificação
(Geertz, 1973; Mach, 1993). Como ver- racial ou étnica, a memória de suas ex-
sões diferentes da história de uma co- periências passadas com instituições de
munidade muitas vezes coexistem, o fora é muitas vezes sobrecarregada pela
compartilhamento de uma determina- ambivalência em relação a todos aqueles
da leitura da história pode variar entre identificados com o grupo dominador.
os membros da comunidade. Em todo Nos EUA, esse tipo de tensão é especial-
caso, os planejadores deparam-se com mente evidente, ao menos no início da
o desafio de influenciar e estimular o diá- interação, quando planejadores brancos
logo entre pessoas que talvez vejam o entram em comunidades não-brancas.
mundo através de lentes interpretativas Em virtude do caráter multicultural dos
distintas – isto é, através de percepções conflitos urbanos contemporâneos, essas
enraizadas na cultura, na história e na tensões muitas vezes ocorrem também
memória da comunidade. entre grupos não-brancos.
Karen Umemoto 11

Como uma comunidade havaiana, ção e dos padrões residuais de preconcei-


as pessoas de Papakōlea sentem um to social, desigualdade e marginalização
grande orgulho de sua identidade ha- econômica e política. Embora haja uma
vaiana e se vêem como uma comunida- conscientização de que seu status de
de havaiana nativa. Essa identidade de havaianos possa distingui-los dos outros
havaiano nativo é definida no ambiente de uma forma problemática, eles com-
de um renascimento cultural e do ama- preendem a riqueza cultural da comu-
durecimento de uma autonomia havaia- nidade em que buscam força e apoio.
na. Muitas personalidades, entre elas
músicos e artistas, são originários de Essa história e memória coletiva do
Papakōlea. Como a única comunidade passado determina o modo pelo qual as
na área urbana, Papakōlea se distingue ações e os acontecimentos atuais são vis-
das demais pelo background ocupacio- tos. A memória de membros da univer-
nal e econômico de seus moradores. sidade examinando havaianos nativos
Assim como várias comunidades havaia- como objetos de pesquisa, procedimento
nas, Papakōlea enfrenta uma alta taxa que, na opinião dos moradores, nunca
de desemprego, problemas na área da trouxe nenhum benefício para os que
saúde, superpopulação e outros proble- eram pesquisados, faz parte da história
mas socioeconômicos comuns a outros viva de Papakōlea. A sensação de que
grupos étnicos. Ao mesmo tempo, as “fomos investigados ao máximo” é par-
pessoas que vivem lá sabem muito bem cialmente conseqüência de sua proxi-
que o bem-estar da comunidade, por midade com a principal instituição de
ela estar localizada dentro da zona urba- pesquisa no estado e do fato de Papakō-
na de Honolulu, decorre do seu maior lea ser a única comunidade havaiana na
acesso a serviços sociais, empregos, zona urbana de Honolulu, onde estão
transporte, instituições educacionais e situadas as agências locais e estaduais.
outras comodidades. Em geral, as colaborações favoreciam
aqueles que vinham de fora. Os pes-
Apesar das diferenças em relação a quisadores sociais freqüentemente foca-
outras comunidades havaianas e entre lizavam os problemas da comunidade e
os próprios moradores de Papakōlea, ignoravam sua beleza e riqueza. O fato
existe uma forte e difundida sensação de muitos moradores se sentirem rotu-
de que o mero fato de ser havaiano lados como uma população problemá-
produz uma grande influência em suas tica pelos especialistas da universidade
vidas. Como se trata de uma comuni- gerava um sentimento adicional de ex-
dade havaiana, exige-se um mínimo de clusão e ausência de direitos. Quando
sangue havaiano para obter direitos à os membros da universidade entram
terra. 9 Porém, mais significativo ainda é nessa comunidade, acionam a memória
o conhecimento da história da coloniza- desse passado e sentimentos de rancor

9
Segundo o Hawaiian Homes Commission Act original (Act of 9 July 1921, c. 42, 42 Stat.
108), a expressão “havaianos nativos” significa “qualquer descendente com pelo menos um
quarto de sangue das raças que habitavam as ilhas do Havaí antes de 1778.”
12 Caminhando com sapatos alheios

relacionados aos que têm vínculos com resumo do processo e dos resultados das
a instituição. Por razões históricas e cultu- ações de elaboração de visões de futuro.
rais, a composição racial e étnica de nossa Não apenas era importante compreen-
equipe (mista mas sem nenhum membro der o passado como concebido pela pers-
com antepassados havaianos) também pectiva dos moradores, como também
influenciou as interações iniciais. fazê-los compreender que a equipe da
universidade valorizava sua história e seu
Embora talvez não seja possível su- ponto de vista.
perar barreiras históricas, os planejadores
devem se precaver no sentido de agir de
uma maneira mais adequada no trabalho Confrontando a diversidade
em e com comunidades com identida- e a articulação de valores
des culturais fortes. O estudo da história culturais e identidades
de uma comunidade mediante a ótica so ci a i s
dos que dela fazem parte, assim como
mediante outras fontes, constitui uma Intimamente vinculado à história de ins-
medida importante para o planejamen- tituições que nem sempre viram com
to baseado na cultura. Os planejadores bons olhos qualquer participação efetiva
poderão compreender melhor como da comunidade, o planejamento pode
ações atuais podem ser interpretadas e ser um processo assustador porque
compreendidas por meio de práticas muitas comunidades que foram segre-
passadas. Para nós, foi importante, espe- gadas e excluídas desses processos em
cialmente antes de mergulharmos no função da cor e do preconceito racial
projeto, aprender sobre a história de Pa- atribuíram-lhe uma má reputação (San-
pakōlea e de suas memórias vivas. Esse dercock, 1998a; Woods, 1998). Para os
aprendizado foi obtido a partir de leitu- proprietários e moradores cujas comu-
ras, de videoteipes e de “narrativas de nidades foram destruídas por programas
histórias” realizadas por moradores, líde- de regeneração urbana de meados do
res comunitários e outros especialistas. século, geralmente o planejamento era
Ajudou-nos a identificar temas que pre- percebido como um instrumento dos
cisavam ser esclarecidos, tais como o ricos e dos poderosos. Por essas e várias
objetivo, as visões de futuro e a natureza outras razões, ao solicitarem participa-
da parceria entre a universidade e a co- ção, os planejadores talvez tenham de
munidade. Era importante convencer os confrontar comunidades relutantes de
moradores de que o processo do plane- uma maneira não prevista (Forester,
jamento seria conduzido pela comuni- 1999; Kaufman e Alfonso, 1997). Além
dade e que a propriedade do projeto desse desafio mais elementar, o plane-
ficaria com a associação da comunida- jamento baseado na cultura pede, pelo
de. E era importante que os moradores menos em tese, que as pessoas mani-
tivessem acesso às conclusões referentes festem pontos de vista, valores e visões
a suas visões de futuro, apresentadas sob culturalmente distintos.
o formato de um livreto, contendo um
Karen Umemoto 13

Dadas a instabilidade da história do social quanto por decisão política. É


planejamento e as subseqüentes per- possível encontrar exemplos de casos em
cepções do planejamento como ativida- que o uso do idioma nativo ou de práti-
de característica dos que se encontram cas religiosas foi proibido ou desencora-
no poder, os planejadores podem en- jado e de casos em que o conhecimento
frentar moradores menos dispostos a cultural foi explorado para benefício de
revelar seus pontos de vista, especial- outros. As memórias coletivas dessas
mente os que consideram específicos de experiências podem neutralizar a von-
seu grupo cultural. Todavia, se a mani- tade de participar de um diálogo franco
festação de valores culturais e de identi- e significativo. No processo do planeja-
dades sociais precisa ser uma prática mento, a construção da confiança entre
aceita no planejamento, os planejadores um planejador e um representante e da
deverão simplificar os processos de pla- confiança entre os participantes rara-
nejamento que propiciem essa mani- mente é algo bem definido. No entanto,
festação. Esse desafio é duplo e abrange o estabelecimento de um relacionamen-
(1) a constituição de vínculos de confian- to em que já há confiança e um ambiente
ça entre o planejador e os represen- seguro pode efetivar ou interromper o
tantes de modo a que se estabeleçam processo de planejamento baseado na
articulações percebidas como legítimas cultura.
dentro dos processos de planejamento
e (2) a elaboração e utilização de técnicas Para a articulação de valores cultu-
e métodos de planejamento cultural- rais, a confiança é um elemento essen-
mente apropriados. cial para a criação de um ambiente
seguro. Também fundamental é o apelo
Para alguém que participa do pro- ou convite para que se revelem alguns
cesso de planejamento, a revelação de desses valores e crenças que podem ser
seus próprios valores, inclusive os que considerados culturalmente exclusivos
são culturalmente específicos, pode ser ou específicos de um grupo. Os partici-
um processo difícil. Nem todos os gru- pantes podem não mencionar palavras
pos culturais, tipos de personalidades ou ou símbolos que sejam culturalmente
estados de espírito acham fácil manifes- específicos se o planejador não estiver
tar seus valores. Nem todo mundo de- bem familiarizado com o idioma, com
seja revelá-los publicamente. A certeza os sistemas de crenças ou com as normas
de que, no futuro, o que for comparti- do grupo. O mesmo acontece na pre-
lhado não será ridicularizado ou usado sença de outros grupos culturais, seja por
contra si mesmo é uma condição fun- delicadeza com os demais seja para pro-
damental para a articulação de valores teger informações. Não obstante as in-
culturais ao planejamento. Nos EUA, tenções de um determinado planejador,
muitos imigrantes e grupos colonizados quanto mais distanciados das instituições
vivenciaram a ridicularização ou a explo- de governo os moradores se sentirem e
ração de seus idiomas e práticas cultu- quanto mais vinculados a essas insti-
rais tanto sob a forma de marginalização tuições estiverem os planejadores, mais
14 Caminhando com sapatos alheios

esses pesquisadores poderão ser consi- explicada como um pensamento íntimo


derados insignificantes e possivelmente que é concedido como um presente
insensíveis. Essa diferença será mais valioso e que representa o modo como
acentuada se o planejador não compar- a pessoa compreende a verdade. Pedir
tilhar outros pontos comuns ou frontei- a alguém que “nos dê o seu mana‘o”
ras de identidades com os moradores pode significar um sinal de respeito e
de uma determinada comunidade. Por chama a atenção de todos os que estão
meio de sinais verbais e não-verbais, os presentes. Além das formas de manifes-
planejadores podem estabelecer uma tação oral, as opiniões ou os pensamen-
atmosfera que encoraja ou desencoraja tos também podem ser transmitidos por
tal compartilhamento. Por exemplo, meio da hula ou de outras formas de
quando os planejadores mencionam re- arte (Blaich, 1999). Woods (1998) des-
ferências culturais explícitas para facili- creveu, de modo eloqüente, o impor-
tar um diálogo, podem transmitir a idéia tante papel da música e da poesia na
de que a expressão cultural é bem-vinda transmissão da epistemologia e da iden-
e valorizada. tidade associadas ao gênero musical do
blues, em sua crônica sobre o desen-
Técnicas e processos de planejamento volvimento tardio no delta do rio Mis-
culturalmente apropriados também po- sissipi. Juntamente com os valores, os
dem facilitar a manifestação de identidade sonhos e as esperanças de um povo ou
e de valores culturais. Isso inclui formatos de uma comunidade, os planejadores
participativos compatíveis com métodos freqüentemente encontram uma crítica
de expressão de posições epistemoló- social das condições atuais nas tradições
gicas envolvidas. Por exemplo, em muitas e nos rituais artísticos.
culturas, a narração de histórias é um
método freqüentemente usado para No projeto de Papakōlea, o comitê
transmissão de conhecimento ou de com- de diretrizes escolheu a elaboração de
partilhamento da compreensão da pró- visões de futuro como o primeiro passo
pria identidade ou de um lugar ou época. para o processo de planejamento dessa
Esse método é muito usado em comu- comunidade. Essa técnica é muito ade-
nidades que compartilham uma forte tra- quada para a identificação de valores,
dição oral. Por razões óbvias, para esses normas e práticas culturais de uma co-
objetivos, as assembléias oficiais que dão munidade. Em vez de iniciar o processo
aos moradores apenas cinco minutos ao de planejamento com a identificação de
microfone para partilharem o que apren- problemas específicos, recursos, idéias
deram são as menos eficazes. Em vez de projetos ou elaboração de conceitos
disso, como se diz no Havaí, “as narrati- físicos, as visões de futuro permitiram
vas de histórias” (compartilhar histórias que os membros da comunidade dessem
através da tradição oral) podem ser uma um passo atrás e sonhassem com o futu-
forma de manifestação mais natural e ro desejado em termos amplos e abran-
confortável. No idioma havaiano, existe gentes. Além de várias outras técnicas,
uma palavra – mana‘o – que pode ser foram utilizadas narrativas de histórias,
Karen Umemoto 15

confecções de desenhos e de cartas e zação de palavras havaianas muito co-


jogos de imaginação. muns capta uma sensibilidade que não
pode ser totalmente traduzida para ter-
Um dos produtos desses processos mos em inglês, mas cujo significado é
foi uma declaração referente a uma visão amplamente compreendido tanto por
de futuro, ou seja, um inter-relaciona- jovens como por velhos. 10
mento dos valores e da identidade de
uma comunidade. As visões de futuro Embora Papakōlea seja, de certa
propiciaram o surgimento de uma de- forma, única como comunidade legis-
claração geral, cinco declarações espe- lada especificamente para havaianos
cíficas para a área e muitas idéias para nativos, é possível elaborar métodos cul-
projetos e programas concretos. A pri- turalmente apropriados em outros tipos
meira parte da declaração referente a de comunidades (muitas comunidades
uma visão de futuro geral é a seguinte podem identificar-se como comunidade
(para o texto inteiro, ver Quadro 1): multicultural, apesar de reconhecerem
as identidades específicas de grupos étni-
Papakōlea é o nosso lar, cos ou raciais dentro delas). É claro que
a comunidade onde o espírito de existem desafios adicionais ao planeja-
lōkahi e aloha mento baseado na cultura em comuni-
inspira a autoconfiança e a dades heterogêneas. Baum (1994), por
participação exemplo, chamou a atenção para os ca-
no compartilhamento de nossa sos em que os grupos minoritários podem
cultura ceder a um grupo mais dominante du-
e no respeito por ‘ohana. rante as tomadas de decisão. Isso acentua
o papel desempenhado pelos planeja-
Como processo validado por um dores na elaboração de processos em
comitê de diretrizes cujos membros tam- que os meios de expressão são cultural-
bém eram moradores, os exercícios de mente apropriados e no estabelecimen-
elaboração de visões de futuro permiti- to de um fórum no qual haja respeito e
ram que os participantes manifestassem igualdade para as tomadas de decisão
seus valores e senso de auto-identificação (Sandercock, 1998b; Forester, 1999).
em termos explícitos. A linguagem da Em vez de tentar desenvolver métodos
declaração revela um conjunto de valo- universais, isto é, desprovidos de valores,
res que acentua a importância do traba- a criação de processos para muitos mo-
lho em conjunto, do amor pelo outro, dos de expressão permitirá captar uma
da cultura havaiana e da família. A utili- maior diversidade de vozes.

10
Segundo o dicionário inglês-havaiano (Pukui e Elbert, 1986), lōkahi é definido como unida-
de, promover a paz e a unidade ou estar de acordo. Aloha possui muitos significados, entre
eles, amor, afeição, compaixão, misericórdia, pena, bondade e caridade. Existem também
muitos tipos de aloha, tais como aloha‘aina, ou amor pela terra ou pelo próprio país. ‘Ohana
se refere à família, parentes ou grupos aparentados.
16 Caminhando com sapatos alheios

Compreendendo os a certas palavras, os planejadores devem


múltiplos significados de assumir a tarefa de esclarecer o signifi-
uma língua cado de palavras ou símbolos para se
assegurarem de que os participantes e
Uma língua traz em si o poder de de- os possíveis participantes do processo de
sencorajar ou estimular, reprimir ou li- planejamento compartilhem o mesmo
bertar, legitimar ou degradar. A maneira entendimento.
como os planejadores se expressam, a
escolha das palavras e a transmissão da Esse foi um dos primeiros desafios
mensagem podem afetar a forma como com que nos deparamos ao lidar com
um grupo de pessoas participa ou se as visões de futuro em Papakōlea. Entre
distancia do processo de planejamento. os mais velhos, o termo visão possuía
Como uma lente interpretativa, a epis- um significado quase sagrado. Após uma
temologia decide como as mensagens certa confusão, aprendemos que visão
são repetidas e como são recebidas. Uma é um termo utilizado por muitos dos
língua simples pode percorrer estrutu- kūpuna, ou geração mais velha, para
ras interpretativas complexas nas quais denotar um hábito muito pessoal e par-
o significado é fornecido, assim como ticular. Ele geralmente ocorre durante
entendido (Hall, 1980). Os problemas um sonho e representa também uma
da interpretação não surgem apenas forma de comunicação com ancestrais
durante a tradução de línguas diferen- idolatrados ou ‘aumakua. O termo hihi‘o
tes, o significado também pode ser dis- se refere a um sonho ou a uma visão, e
torcido, ou mal interpretado, por falantes o termo ho‘ike, a ver, conhecer e com-
de uma mesma língua. Aqui, por obje- preender (Pukui, Haertig e Lee, 1979).
tivos heurísticos, abordarei o problema Às vezes, é usado na procura de uma
menos óbvio da interpretação do signifi- resposta a uma dúvida ou um dilema.
cado social entre falantes de uma mesma É utilizado em circunstâncias especiais
língua. ou tão importantes que justifiquem tais
práticas sagradas. Quando foi anunciado
As palavras adquirem significados que os alunos da universidade promove-
por meio da experiência vivenciada na riam um projeto de visão em Papakōlea,
transmissão de práticas culturais de uma vários kūpuna telefonaram para o pre-
geração para outra. As palavras da lín- sidente da Associação da Comunidade
gua inglesa podem adquirir um signifi- para manifestar seu desagrado. O que
cado exclusivo em grupos específicos. pretendiam os estudantes universitários
Dadas as diferenças que os significados ao conduzirem uma visão em Papakō-
de algumas palavras evocam nos pro- lea? Depois que os diferentes significados
cessos de planejamento, as palavras de visão foram esclarecidos é que os
podem ocasionalmente desencadear kūpuna deram permissão para o projeto.
reações não pretendidas. Nas comunida- Os membros da faculdade e os estudantes
des étnicas, em que a história e a cultura aprenderam mais um significado para
podem atribuir um significado específico esse termo.
Karen Umemoto 17

Nesse caso específico, o que não foi Heskin (1991) também percebeu
feito, mas deveria ter sido, foi a troca do um problema semelhante em um estu-
nome do projeto para evitar que o sig- do de caso relacionado a um movimento
nificado tradicional de visão, em especial conduzido por ocupantes multirraciais
o relacionado a práticas culturais sagra- e iniciado na década de 1970 em Los
das, pudesse ser alterado. Um reconhe- Angeles. As desavenças entre os mora-
cimento posterior tende a ser mais dores que falavam inglês e os que fala-
apurado do que a compreensão do mo- vam espanhol cresceram por causa da
mento. Em vez de o problema ser visto péssima tradução dos dois idiomas du-
como um mal-entendido que apenas rante as reuniões. Juntamente com outras
teria de ser esclarecido, deveríamos ter divisões sociais, a falta de qualificação
percebido que ele nada mais era do que profissional dos tradutores selecionados
uma manifestação de diferenças cultu- (entre outros problemas) levou à falta
rais no uso da língua. Vista dessa ma- de confiança e à suspeita. Heskin men-
neira, a opção pela troca do nome do ciona Molina (1978) ao notar a ausência
processo de planejamento teria sido de “pontes naturais” entre os morado-
muito mais óbvia. Ao manter o termo res. As pontes naturais, ou o que analiso
visão (como fizemos), privilegiamos o mais tarde como tradutores culturais,
uso continental da palavra em detrimen- desempenham um papel importante
to de seu uso havaiano. Embora essa não só na tradução de um idioma para
seja uma justificativa inequívoca, há outro, mas também na busca de uma
casos em que, para esclarecer o signifi- compreensão mútua na interpretação
cado de uma palavra, talvez devêsse- de paradigmas culturais.
mos continuar a utilizá-la. Por exemplo,
a palavra colaboração. Ela pode ser in- Embora seja impossível saber onde
terpretada de várias maneiras: com uma se encontram as discrepâncias dos idio-
conotação muito positiva significa tra- mas, é importante saber que elas exis-
balhar em conjunto e em igualdade de tem. A vigilância em relação a essas
condições para alcançar objetivos co- possíveis discrepâncias no uso da língua
muns; no entanto, também pode signi- ajuda a contornar os perigos do dis-
ficar parceria com uma força inimiga curso. Esse é certamente um aspecto
para sabotar outra. Em virtude da imen- importante no desenvolvimento da sen-
sa utilização da palavra colaboração no sibilidade sobre a multiplicidade episte-
mundo das organizações não-lucrativas mológica. A sensibilidade alerta sobre
ou destinadas a promover a formação possíveis dissonâncias interpretativas no
de comunidades, talvez faça sentido idioma. Ela auxilia a reconhecer o que
continuar usando essa palavra e escla- ouvir, a prestar atenção a nuances e co-
recer seu significado, na medida em que notações que podem ser encontradas
ele é apropriado a uma determinada na narrativa, ao tom ou ao silêncio, e,
situação e de modo que se torne possível por último, a compreender as possíveis
desenvolver, ao longo do tempo, um origens e naturezas dos conflitos decor-
entendimento comum a seu respeito. rentes dessas diferenças.
18 Caminhando com sapatos alheios

Respeitando e contornando de pessoas afetadas. Por outro lado, a


protocolos culturais e adoção de protocolos apropriados pode
relacionamentos sociais ampliar bastante a participação.

Os protocolos culturais também estão Um dos dilemas enfrentados por


enraizados na epistemologia. Os proto- planejadores que se confrontam com
colos representam códigos de etiqueta protocolos culturais diversos dos seus é
definidos para determinadas situações de ordem moral e ética. É possível ar-
e podem assumir uma relevância maior gumentar que os protocolos conferem
em reuniões ou encontros mais formais. poder e muitas vezes reforçam hierar-
De modo geral, abrangem diversos tipos quias sociais determinadas pela idade.
de condutas, tais como a maneira de se Alguns protocolos historicamente assu-
dirigir a outra pessoa, a deferência a uma midos podem contrariar as compreen-
hierarquia social ou relativa a oferendas sões contemporâneas de igualdade e de
simbólicas, o comparecimento ou não liberdade de expressão. Muitas vezes, as
a acontecimentos sociais ou sagrados, comunidades estão divididas em razão
normas de troca e reciprocidade e, até de diferenças políticas, de histórias pes-
mesmo, o modo como as discussões são soais ou de conflitos de interesses. Os
facilitadas. Os protocolos refletem a for- protocolos reconhecidos podem acen-
ma como um grupo entende o que tuar divisões ou manter o status quo,
pode ser conhecido e por quem, quem porque, entre as facções, pode haver
possui o direito de legitimar o conheci- divergências sobre o protocolo correto
mento e quem pode manifestar reivin- para uma determinada situação. Além
dicações sobre o conhecimento. Os disso, não é incomum encontrar práticas
planejadores que representam institui- tradicionais que relegam às mulheres
ções formais recebem treinamento na uma posição de inferioridade (Rahder,
ciência da modernidade. A verdade e o 1999; Slocum et al., 1995). Para pla-
conhecimento constituem descobertas nejadores que estejam trabalhando na
científicas com direitos de propriedade defesa ou na adoção de tradições, a
definidos por lei. As disputas políticas obediência a protocolos existentes pode
determinam os processos pelos quais as ser um empecilho para a promoção de
reivindicações sobre o conhecimento uma democracia comunicativa.
são abafadas ou divulgadas. Os proce-
dimentos adotados oficialmente para o Em Papakōlea, não existem facções
planejamento podem não ser compatí- principais, e, na realidade, nas duas or-
veis com os protocolos adotados por ganizações da comunidade as mulheres
uma comunidade culturalmente defini- eram maioria nas mesas diretoras. A hie-
da. Os planejadores que entram em uma rarquia social existente não produziu um
comunidade sem conhecer os protoco- efeito negativo nas tentativas para orga-
los adotados podem fazer ou dizer coisas nizar a participação dos moradores no
(intencionalmente ou não) que calam processo de planejamento. Lá, os líderes
ou impedem a participação de grupos da organização eram muito respeitados
Karen Umemoto 19

pelos moradores, e, nesse caso, ficou Um processo de planejamento que


claro que a obediência aos protocolos objetiva delinear o caminho a ser segui-
culturais aumentaria a participação. Por do precisa necessariamente buscar a
outro lado, os protocolos nem sempre sabedoria dos kûpuna sobre o passado
eram claros, nem tampouco se esperava e os sonhos e as ambições da juventu-
que nós, membros da universidade, os de que viverá o futuro distante. Embora
seguíssemos, uma vez que não descen- houvesse deferência aos mais velhos,
díamos de havaianos nativos. Entretanto, atribuiu-se às colaborações de cada gru-
havia alguns protocolos básicos que fo- po etário a mesma importância, porque
ram adotados pelo comitê de diretrizes. o valor atribuído aos grupos de gerações
se baseava em uma conscientização
O exemplo mais claro da importância sobre a continuidade entre passado e
do protocolo era a necessidade de obter futuro. Conseqüentemente, os exercí-
a bênção dos kūpuna, isto é, dos mem- cios de elaboração de visões de futuro
bros mais velhos da comunidade. Para o foram elaborados para cada grupo
início do processo de planejamento, era etário. Por exemplo, entre os exercícios
fundamental obter a permissão dos efetuados, pediu-se aos kûpuna que reu-
kūpuna, especialmente dos que tivessem nissem, em uma linha temporal, os
desempenhado papéis de liderança no acontecimentos importantes da história
passado da comunidade. Embora pos- de Papakôlea e que identificassem os
sam ter normas e práticas específicas locais de acontecimentos históricos, os
diferentes, os protocolos culturais (por pontos de referência e os locais rele-
exemplo, prestar homenagem a uma vantes e sagrados. Em contrapartida, os
hierarquia fundada nas diferenças de exercícios elaborados para os ado-
geração) existem em muitas comunida- lescentes se concentravam no que eles
des. Nas comunidades havaianas e em anteviam para seus futuros e no que gos-
várias outras comunidades atuais, tais tariam de mudar em seus ambientes.
como Papakōlea, onde os valores tradi- Após todos os grupos terem registrado
cionais estão muito vivos, ainda há um suas contribuições, houve um pā‘ina, ou
grande respeito pelos mais velhos e por uma refeição comum, para que os parti-
uma estrutura hierárquica baseada na cipantes compartilhassem suas idéias.
idade, na geração e na experiência. Pa- Foram mantidos outros protocolos, entre
lavras havaianas são freqüentemente eles a oferta de pule (bênção ou ora-
usadas na referência a grupos de idades, ção), no início e no final de encontros e
dos kūpuna até os ‘opio (adolescentes) eventos.
e as keiki (crianças menores). O comitê
de diretrizes conduzido por moradores Todavia, os planejadores freqüente-
teve o cuidado de certificar-se de que o mente trabalham em comunidades frag-
processo de elaboração das visões de mentadas em que os protocolos culturais
futuro obtivesse a participação de todos podem representar obstáculos à parti-
os grupos etários, começando com o dos cipação maciça da comunidade. Em al-
kūpuna. gumas dessas circunstâncias, os líderes
20 Caminhando com sapatos alheios

e os guardiões podem ver benefícios Compreendendo o papel do


na participação mais democrática e no poder na tradução cultural
apoio a um processo abrangente. No
entanto, quando os interesses ou a Nas comunidades com identidades cultu-
ideologia impedem uma participação rais fortes e práticas e protocolos culturais
ampla, os planejadores enfrentam um distintos, os planejadores quase sempre
dilema ético complicado. Dependendo pedem ajuda a intérpretes culturais (caso
do papel que o planejador se vê de- eles mesmos não desempenhem esses
sempenhando em função das várias tra- papéis). Os intérpretes culturais são pes-
dições do planejamento (Friedmann, soas que, além de estarem culturalmente
1987; Forester, 1989), pode decidir inseridas em uma comunidade tradicio-
respeitar os protocolos culturais ou, em nal, estão igualmente capacitadas na lin-
algumas circunstâncias, desafiá-los. Em guagem da modernidade. Muitas vezes
qualquer um dos casos, um planejador servem de elemento de ligação, ajudam
cuidadoso poderá tomar decisões pon- a identificar diferenças na interpretação
deradas; no entanto, só poderá fazê-lo e facilitam a comunicação entre várias
se conhecer as estruturas sociais e as culturas. Freqüentemente, os tradutores
normas culturais da comunidade. Esse culturais representam um segmento de
conhecimento permite que os planeja- uma comunidade que foi educado nas
dores prossigam com um conhecimen- principais instituições profissionais, mas
to mais amplo sobre as implicações das mantém vínculos com as organizações
suas ações. Será, por exemplo, que da comunidade, as redes sociais e as
uma determinada abordagem de um práticas culturais (Heskin, 1991).
processo de planejamento desestabili-
zaria relacionamentos hierárquicos tra- A interpretação das diferentes estru-
dicionais? Além disso, os esforços de turas epistemológicas amplia o leque de
planejamento que não reconhecem os oportunidades para o exercício do poder
protocolos existentes podem enfra- nos processos de planejamento basea-
quecê-los inadvertidamente e, por con- do na cultura. Isso pode ocorrer de duas
seguinte, produzir conseqüências não maneiras principais: (1) por meio da am-
intencionais. Uma das mais difíceis e im- pliação do grau de influência ou status
portantes questões enfrentadas pelos do tradutor cultural e (2) por meio da
planejadores é determinar se novos validação das múltiplas epistemologias
protocolos culturais produziriam uma e do reconhecimento das reivindicações
melhora na qualidade de vida sentida culturais. Em todas essas situações sur-
por aqueles diretamente envolvidos. A gem temas morais e éticos. Quem deveria
discussão sobre ética ultrapassa o âmbi- receber tal distinção? Qual interpretação
to deste artigo, mas é fundamental para cultural é legítima? Em quais estruturas
qualquer deliberação e acentua a ne- epistemológicas deveríamos apoiar nosso
cessidade de superar paradigmas cul- julgamento? Que aspectos da cultura fi-
turais na hora de tomar decisões éticas cam comprometidos com a tradução?
fundamentadas. De que forma a necessidade de uma tra-
Karen Umemoto 21

dução afeta a construção da cultura em para apoiar reivindicações culturais que


si? Os planejadores conscientes que par- protejam esses interesses.
ticipam de planejamentos baseados na
cultura enfrentam essas e várias outras Por outro lado, os tradutores cultu-
dificuldades. rais podem desempenhar um papel fun-
damental ao promover o diálogo entre
A influência dos tradutores culturais pontos de vista opostos. No caso das
nos outros participantes de um processo comunidades de imigrantes, os tradu-
de planejamento aumenta no momento tores bilíngües ou multilíngües podem
de selecionar um indivíduo ou um grupo fornecer a tradução das línguas. Além
para desempenhar tal papel. Nos pro- disso, podem identificar episódios his-
cessos de planejamento iniciados pelo tóricos com os quais os planejadores de-
Estado, os tradutores culturais podem veriam estar familiarizados, dada a
inserir seus preconceitos de várias ma- natureza de um projeto de planejamen-
neiras. Como intermediários, assumem to específico. Podem fornecer um mapa
uma importância maior ao receberem, das redes sociais e dos relacionamen-
dos planejadores ou das agências gover- tos, históricos e atuais, entre essas redes
namentais, reconhecimento e funções e organizações. Podem dar conselhos
oficiais. Isso pode ampliar suas vozes nas sobre protocolos culturais, estilos de co-
discussões durante os processos de plane- municação e símbolos culturais, para
jamento e pode contribuir para os tipos que os planejadores se aproximem efe-
de distorções no discurso sobre os quais tivamente da comunidade e elaborem
Forester (1989) e vários outros nos pre- processos participativos apropriados. Os
veniram. Eles podem ajudar a elaborar tradutores culturais podem também abrir
temas durante a escolha de analogias e portas que seriam difíceis de transpor e,
referências utilizadas para explicar pro- se estiverem dispostos, responsabilizar-
blemas ou idéias. Dependendo do in- se pela integridade de um planejador
térprete cultural, o trabalho deles pode perante um grupo maior, facilitando,
privilegiar facções da comunidade com assim, o caminho para a construção de
as quais se identifiquem mais, o que um relacionamento e de um diálogo.
pode favorecer a participação de algu- Podem também alertar os planejadores
mas redes sociais em detrimento de sobre questões relacionadas ao próprio
outras. A utilização de tradutores cultu- planejador ou aos processos que sur-
rais aumenta o risco de formalização de gem na comunidade, mas que podem
crenças culturais que, na realidade, não não ser comunicadas diretamente aos
são aceitas por toda a comunidade cul- planejadores pelos próprios participantes.
tural. Esses tradutores culturais podem Os boatos e os mal-entendidos podem
explicar práticas culturais através de suas geralmente ser evitados ou minimizados
próprias crenças e ignorar outras possí- quando os tradutores culturais estão
veis interpretações alternativas. Podem comprometidos com o processo de pla-
também pôr os interesses de sua classe nejamento e com o diálogo entre plane-
em jogo e tirar proveito de suas posições jadores e participantes.
22 Caminhando com sapatos alheios

O desafio está em perceber os bene- quela comunidade. Todavia, o papel


fícios que os tradutores culturais podem ativo dos moradores não facilitou a ta-
trazer e, ao mesmo tempo, em minimizar refa da tradução e, apesar das condi-
as possíveis armadilhas que podem ções favoráveis, houve dificuldades.
acompanhá-los. No cenário ideal, para Uma das maiores que o comitê de dire-
que os planejadores não tenham de es- trizes enfrentou foi explicar o objetivo
colher alguém de fora, os representantes do projeto de elaboração de visões de
deveriam ser eleitos democraticamente futuro para a comunidade. Em virtude
e estar comprometidos com a inclusão de o planejamento em comunidades
dessas comunidades (Medoff e Sklar, havaianas ter sido historicamente con-
1994). As lideranças comunitárias com- duzido pela agência da jurisdição, o
prometidas com o bem-estar de seus Department of Hawaiian Homelands
bairros ou jurisdições são essenciais para (DHHL), e de o planejamento em co-
os processos de planejamento baseados munidades havaianas mais tradicionais
na cultura (na verdade para qualquer ter sido conduzido de forma mais incre-
processo de planejamento). Quando elas mental, o projeto de elaboração de vi-
são capazes de interpretar divisões cul- sões de futuro não foi compreendido
turais e epistêmicas e, ao mesmo tempo, com muita facilidade. Referências à his-
de evitar distorções adicionais que in- tória de Papakōlea e às histórias de pro-
fluenciem os processos, os benefícios do jetos para a comunidade iniciados
planejamento baseado na cultura são anteriormente foram os meios mais efi-
maximizados. No entanto, em geral, os cazes para explicar o objetivo e o pro-
planejadores trabalham em circunstân- cesso; os tradutores culturais (nesse caso,
cias menos favoráveis. Embora não exis- moradores) possuíam esse conhecimen-
ta um caminho específico para identificar to e puderam encontrar pontos de re-
ou trabalhar com tradutores culturais, é ferência e analogias que a comunidade
aconselhável atentar às possíveis dificul- como um todo pudesse compreender.
dades que possam ocorrer. Outra dificuldade foi a percepção do
tempo. Esse aspecto estava mais relacio-
Em Papakōlea, os líderes e os orga- nado com a cultura da universidade
nizadores da comunidade desempe- como instituição acadêmica do que com
nharam um papel central em todos os Papakōlea. Muitas comunidades não
aspectos do projeto e mantiveram um possuem a mesma noção de tempo que
estreito relacionamento com os estudan- as universidades, que são regidas pelos
tes e os membros da universidade du- sistemas de bimestres e semestres. Em-
rante todo o processo de elaboração de bora eu esteja aqui empregando um
visões de futuro. Assim garantiu-se que sentido mais amplo da palavra cultura,
o processo e o produto final (inclusive a é importante destacar que existem dife-
escolha das palavras nas declarações rentes medidas e significados para o tem-
referentes às visões de futuro) represen- po e que essas diferenças, muitas vezes,
tassem uma manifestação de todas as justificam um esclarecimento mais deta-
normas, crenças e práticas culturais da- lhado sobre expectativas, compromissos
Karen Umemoto 23

e cronogramas. Principalmente quando sofrimento desnecessário nas comunida-


os recursos são desiguais (sejam eles reais des, como inicialmente acontecia nessa
ou imaginados) entre os participantes, parceria entre a universidade e as pes-
o cronograma da instituição mais forte soas simples da comunidade. 11
pode facilmente prevalecer e impor um

A troca de códigos e o planejamento conduzido pela


comunidade

Como podemos começar a abordar com as outras pessoas que compartilham


esses desafios? Os desafios epistemoló- o mesmo idioma e as mesmas sensibili-
gicos do planejamento em cidades de dades culturais. É cada vez maior o nú-
culturas diversas envolvem a elaboração mero de pessoas que cresceram em dois
de métodos e de desenvolvimento de ou mais ambientes culturais, tais como
sensibilidades para identificar epistemo- os filhos de imigrantes que vivenciam
logias múltiplas e facilitar a articulação um ambiente cultural em casa e um
de sonhos e desejos provenientes de outro na escola e os que viveram em
pontos de vista diferentes. Por isso, po- países diferentes. No entanto, é muito
demos considerar, pelo menos, duas difícil ensinar como trocar códigos nas
abordagens. Uma opção é encontrar escolas de planejamento.
planejadores que consigam trocar códi-
gos. Nos estudos sobre idiomas, a troca Certamente, a adoção de determi-
de códigos se refere ao processo viven- nadas políticas sensíveis aos tópicos do
ciado pelos falantes de múltiplos idio- multiculturalismo exige que os planejado-
mas quando passam de um idioma para res adquiram essa habilidade. No Havaí,
outro. A troca de códigos indica uma por exemplo, em 1997, o Environmen-
mudança em um conjunto de códigos tal Council of the State of Hawai‘i ado-
e de símbolos que são, eles mesmos, ele- tou diretrizes para analisar os impactos
mentos de um paradigma cultural (Auer, culturais nos processos de avaliação
1998). Quando uma pessoa troca códi- ambiental. As avaliações de impacto
gos, ela altera a sua interpretação e a cultural incluem informações relaciona-
estrutura vernacular na comunicação das às práticas e às crenças de um grupo

11
A inserção de um projeto de elaboração de visões de futuro em um semestre letivo para
acomodar professores e alunos provou ser tanto uma bênção quanto uma praga. O estabe-
lecimento de um período teve como conseqüência um produto bastante rápido que a comu-
nidade pôde usar para obter financiamento para projetos identificados. No entanto, a
intensidade do trabalho impôs uma imensa responsabilidade sobre os líderes da comunidade,
que já possuíam outros afazeres na época. Na avaliação do projeto de elaboração de visões
de futuro, todos os parceiros concordaram que a adaptação ao semestre universitário fora
um erro e que o projeto teria obtido um sucesso maior se tivesse sido conduzido durante
dois semestres.
24 Caminhando com sapatos alheios

étnico ou cultural específico que possam culturalismo. Esse planejamento envolve


ser afetadas pelo projeto proposto. As membros da comunidade na elabora-
diretrizes incentivam os avaliadores a in- ção e na facilitação de processos de pla-
cluir “propriedades culturais tradicionais nejamento e se apóia na tradição da
ou outros tipos de locais históricos, natu- delegação do poder dentro do processo
rais ou construídos pelo homem, inclusi- de planejamento (ver Friedmann, 1992;
ve os recursos culturais não aparentes Hamdi e Goethert, 1997; Krumholz e
que apóiam tais práticas e crenças cultu- Forester, 1990; Rocha, 1997). Embora
rais” (Environmental Council, 1997). Isso isso talvez não seja possível ou ideal em
exige a comprovação de conhecimento todas as situações, acho que os planeja-
cultural por parte de planejadores que dores deveriam considerar essa aborda-
saibam interpretar estruturas sistêmicas gem quando estiverem trabalhando
diversas a partir de uma ampla gama de com comunidades multiculturais ou cul-
fontes – de registros da corte a cânticos e turalmente definidas. Raramente uma
lendas sobre a genealogia havaiana. Os agência de planejamento possui uma
planejadores envolvidos nesse tipo de equipe que represente culturalmente a
trabalho constantemente traduzem um população a que se dedica. Muitas vezes
paradigma cultural para outro quando os planejadores trabalham com comu-
fazem suas avaliações. Freqüentemente nidades que possuem grupos culturais
se vêem imersos em epistemologias não- com os quais não estão muito familiari-
ocidentais para obter uma compreensão zados. Para os planejadores, uma alter-
adequada dos impactos culturais e têm nativa para a facilitação dos processos
de divulgar esse entendimento em lin- de planejamento (com ou sem a ajuda
guagens e formatos ocidentais. Por ser de tradutores culturais) é procurar mora-
muito especializada, essa habilidade é, dores dispostos a trabalhar com grupos
portanto, muito difícil de ser aprendida diferentes na comunidade. Em conjunto,
nas escolas de planejamento. os planejadores e os moradores podem
validar processos que são culturalmente
Uma alternativa para a troca de códi- apropriados e valorizar diferenças cul-
gos no planejamento de uma comunida- turais. Dessa forma, estimula-se a meta
de pode ser a adoção do planejamento de aprendizado social e de capacitação
conduzido pela comunidade (commu- no espírito da prática da deliberação
nity led-planning) (Hamdi e Goethert, (Forester, 1999; Young, 1990). A ela-
1997; Slocum et al., 1995). Os plane- boração e a facilitação de um processo
jadores participam ativamente do pla- de planejamento podem também aju-
nejamento baseado na comunidade dar o desenvolvimento de aptidões e ha-
(community based-planning), isto é, fa- bilidades que poderão ser utilizadas nos
cilitando o planejamento participativo no estágios subseqüentes da implantação
âmbito da comunidade ou da região. do planejamento e do desenvolvimento.
No entanto, muito raramente, nós con-
sideramos um planejamento conduzido Os processos de planejamento con-
pela comunidade uma prática do multi- duzidos pela comunidade facilitam a
Karen Umemoto 25

superação das diferenças, porque trans- decisão à comunidade. Embora muitos


ferem poder (pelo menos nesse nível dos esforços atuais possam traçar suas raí-
micro) para membros dessas comuni- zes até os movimentos sociais da década
dades. O planejamento conduzido pela de 1960, essa tradição antecede o estabe-
comunidade possui a capacidade de lecimento dos EUA como nação. Jojola
mobilizar, nos membros, a autoridade (1998) nos lembra que os americanos
do “nós” que não se reflete no “você”. nativos mantiveram as tradições de se au-
Esse poder é capaz de produzir idéias e togovernarem e de planejamento tribal,
sensações importantes em grupos que como ficou demonstrado com a funda-
são sensíveis à linguagem da marginali- ção do All Indian Pueblo Council, uma
zação e de ser transformador de uma aliança de grupos tribais no sudoeste dos
maneira que nenhum processo imposto EUA que existe até hoje.
poderia ser. Além disso, podemos argu-
mentar que há menos distorções na co- Muitos desses exemplos de plane-
municação, pois a comunicação ocorre jamento conduzido pela comunidade
entre pessoas que compartilham a mes- estão historicamente vinculados ao pla-
ma epistemologia. E no planejamento nejamento que visa ao empoderamento
conduzido pela comunidade, como é o (empowerment planning) e ao plane-
caso de Papakōlea, as instituições de pla- jamento insurgente, geralmente em
nejamento não precisam escolher intér- oposição às práticas de planejamento
pretes culturais. Os intérpretes podem predominantes. No entanto, a crescente
surgir dentro do próprio processo con- aceitação do planejamento da comuni-
duzido pela comunidade. Os desloca- dade e do multiculturalismo na prática
mentos nas relações do poder resultam profissional e nas políticas públicas traz
menos de uma intervenção de fora e novas oportunidades para essas abor-
mais de um processo interno, que limita, dagens que, por serem conduzidas pela
por conseguinte, o poder da distorção comunidade, facilitam o diálogo entre
que os planejadores poderiam exercer. epistemologias divergentes. No Canadá,
Qadeer (1997) observa que, como parte
Há numerosos exemplos de projetos do processo de planejamento, diversas
nacionais de planejamento conduzidos culturas de comunidades étnicas estão
pela comunidade. Nos EUA, talvez um começando a ficar conhecidas e a serem
dos mais conhecidos seja o de Dudley divulgadas. As oportunidades para o pla-
Street Neighborhood Initiative. Esse pro- nejamento baseado na cultura ou para
jeto tem sido estudado como um “mo- o planejamento conduzido pela comu-
delo multirracial, de progresso mútuo e nidade, estão também presentes em
de desenvolvimento holístico” de uma todos os EUA. Por exemplo, várias agên-
comunidade formada por moradores cias governamentais locais iniciaram
de origem latina, africana e européia projetos de planejamento de desempe-
(Medoff e Sklar, 1994). Esse é um exem- nho e de elaboração de visões de futu-
plo de um longo legado de campanhas ro, muitas vezes entregando a iniciativa
e movimentos para delegar o poder de a grupos de cidadãos que pertencem a
26 Caminhando com sapatos alheios

comunidades formadas por diversas et- importância e do significado de vários wahi


nias. Além disso, muitos enclaves étnicos pana ou locais sagrados (Freitas, 1999).
estão iniciando seus próprios processos
de planejamento, embora evidenciando Treinar planejadores para trocar
suas heranças culturais distintas. Em 1999, códigos e se envolver em processos de
em Los Angeles, por exemplo, após um planejamento conduzidos pela comuni-
processo de planejamento conduzido dade são duas estratégias que visam
pela comunidade, a Thai Community adequar epistemologias múltiplas aos
Development Corporation, juntamente processos de planejamento. No entanto,
com outros moradores e outras organi- essas duas estratégias não garantem o
zações comunitárias e de negócios, ga- não-surgimento posterior desses mesmos
rantiu o nome de Thai Town para um desafios entre outros grupos culturais e
grupo de seis quarteirões da cidade. entre grupos historicamente marginaliza-
dos e agências estabelecidas. O reconhe-
Há também leis específicas que re- cimento da Thai Town de Los Angeles,
querem a participação de especialistas por exemplo, gerou uma não-intencio-
culturais ou de pessoas que conheçam nal, mas não solucionada tensão com os
bem um paradigma cultural específico. moradores e empresários não-tailandeses
No Havaí, por exemplo, um conjunto de dentro daquela área. Healey (1999) ex-
revisões de 1990 (Act 306) aos Hawai‘i põe os desafios das reivindicações múl-
Revised Statutes (chap. 6E) proporcio- tiplas e contestadas ao se formarem e
nou uma maior proteção aos locais onde serem formadas por relações institucio-
os havaianos nativos são enterrados no nais que mudam constantemente. No
estado do Havaí. Sob a administração contexto dessa questão problemática,
do Department of Land e Natural Re- no entanto, a habilidade para trocar có-
sources, State Historic Preservation De- digos e os processos conduzidos pela
partment, foram estabelecidos também comunidade permitem que os espaços
os conselhos de enterros da ilha. Esses discursivo, temporal e físico se articulem
conselhos são basicamente formados por em seus próprios termos. Prevê-se que
havaianos nativos que, com represen- isso venha proporcionar uma oportuni-
tantes de donos de terras e incorpo- dade para o tipo e a intensidade de uma
radores, decidem sobre os locais de participação que talvez não seja possível
preservação ou de reassentamento de na prática institucional vigente. Ainda
cemitérios de havaianos nativos. Histori- precisamos investigar mais como trans-
camente, muitas dessas decisões depen- formar instituições para que possam
diam unicamente da qualificação de acomodar melhor o discurso entre epis-
antropólogos treinados em culturas oci- temologias múltiplas. Espero que, em
dentais. Em função do trabalho de várias relação a esses assuntos cotidianos da
organizações de havaianos nativos, há cultura, a discussão sobre esses desafios
um crescente reconhecimento da legiti- no planejamento participativo possa
midade “dos modos nativos do conheci- promover uma prática de planejamento
mento” na documentação da história, da mais criteriosa.
Karen Umemoto 27

Agradecimentos
Eu gostaria de agradecer ao comitê de visões de futuro de Papakōlea por seu
diretrizes e aos revisores do projeto de apoio e comentários de ajuda.

Referências
ANDERSON, Mary B. Development and Hawai‘i at Manoa, Department of Urban
Social Diversity: A Development in Prac- and Regional Planning, 1999. (Area of
tice Reader. Oxford, UK: Oxfam, 1996. concentration paper).

AUER, Peter. (Ed.). Code-switching in BOGER, John Charles; WEGNER, Judith.


Conversation: Language, Interaction and (Ed.). Race, Poverty and American Cities.
Identity. New York: Routledge, 1998. Chapel Hill: University of North Carolina
Press, 1996.
BARTH, Frederick. The analysis of culture
in complex societies. Ethnos, 54, p. 120- BULLARD, Robert D. Dumping in Dixie:
142, 1989. Race, Class, and Environmental Quality.
3. ed. Boulder, CO: Westview, 2000.
BAUM, Howell. Community and consen-
sus – Reality and fantasy in planning. BULLARD, Robert; GRIGSBY III, J. Eugene;
Journal of Planning Education and Re- LEE, Charles. Residential Apartheid: The
search, 13 (4), p. 251-262, 1994. American Legacy. Los Angeles: CAAS,
1996.
BEALL, Jo. Urban governance: Why gen-
der matters. United Nations Development CATLIN, Robert. Racial Politics and Urban
Programme (UNDP) Gender in Develop- Planning: Gary, Indiana 1980-1989.
ment Monograph Series No. 1, 1996. Lexington: University Press of Kentucky,
1993.
__________. (Ed.). A city for All: Valuing
Difference and Working with Diversity. CHANG, Edward Tea; LEONG, Russell C.
London: Zed Books, 1997. (Ed.). Los Angeles – Struggles Toward
Multiethnic Community: Asian American,
BELENKY, Mary Field et al. Women’s Ways of African American and Latino Perspec-
Knowing: The Development of Self, Voice, tives. Seattle: University of Washington
and Mind. New York: Basic Books, 1986. Press, 1994.

BLAICH, Beryl. Towards collective creativ- DEAR, Michael J.; SHOCKMAN, H. Eric; HISE,
ity: Enfolding artsmaking into participa- Greg. (Ed.). Rethinking Los Angeles.
tory planning practice. University of Thousand Oaks, CA: Sage, 1996.
28 Caminhando com sapatos alheios

DOUGLASS, C. Michael; FRIEDMANN, John. FORSYTH, Ann. Constructing Suburbs:


Cities for Citizens: Planning and the Rise Competing Voices in a Debate over Ur-
of Civil Society in a Global Age. Chiches- ban Growth. London: Gordon & Breach,
ter: John Wiley, 1998. 1998.

EDELSTEIN, Michael R.; KLEESE, Deborah FREITAS, Konia. Na wai e mālama i nāiwi:
A. Cultural relativity of impact assess- Who will care for the bones? University
ment: Native Hawaiian opposition to of Hawai‘i at Manoa, Department of
geothermal energy development. Soci- Urban and Regional Planning, 1999.
ety and Natural Resources, 8, p. 19-31, (Student paper).
1995.
FRIEDMAN , Jonathan. Cultural Identity
ENVIRONMENTAL COUNCIL. Guidelines for and Global Process. London: Sage,
Assessing Cultural Impacts. Guidelines 1994.
adopted by the Environmental Coun-
cil, state of Hawai‘i, 19 Nov. 1997. FRIEDMANN, John. Planning in the Public
Domain: From Knowledge to Action.
FABER, Daniel. (Ed.). The Struggle for Princeton, NJ: Princeton University
Ecological Democracy: Environmental Press, 1987.
Justice Movements in the United States.
New York: Guilford, 1998. __________. Empowerment: The Politics
of Alternative Development. Cambridge,
FINCHER, Ruth; JACOBS, Jane M. (Ed.). MA: Blackwell, 1992.
Cities of Difference. New York: Guilford,
1998. GEERTZ, Clifford. The Interpretative of
Cultures: Selected Essays. New York:
FORESTER, John. Planning in the Face of Basic Books, 1973.
Power. Berkeley: University of Califor-
nia Press, 1989. GILLETTE JR., H. Between Justice and
Beauty: Race, Planning, and the Failure
__________. Rationality, dialogue and of Urban Policy in Washington, DC,
learning: what community and environ- Baltimore, MD: Johns Hopkins Univer-
mental mediators can teach us about the sity Press, 1995.
practice of civil society. In: DOUGLASS, C.
Michael; FRIEDMANN, John. (Ed.). Cities GOLDSMITH, William W.; BLAKELY, Edward
for Citizens: Planning and the Rise of J. Separate Societies: Poverty and Ine-
Civil Society in a Global Age. Chiches- quality in US Cities. Philadelphia: Tem-
ter: John Wiley, 1998. ple University Press, 1992.

__________. The Deliberative Practitioner: GOODE, Judith; SCHNEIDER, JoAnne. Re-


Encouraging Participatory Planning Proc- shaping Ethnic and Racial Relations in
esses. Boston: MIT Press, 1999. Philadelphia: Immigrants in a Divided
Karen Umemoto 29

City. Philadelphia: Temple University HESKIN, Allan D. The Struggle for Com-
Press, 1994. munity. Boulder, CO: Westview, 1991.

GREED, Clara. Women and Planning: HETTNE, Bjorn. Development Theory


Creating Gendered Realities. London: and the Three Worlds. New York: John
Routledge, 1994. Wiley, 1990.

GUYETTE, Susan. Planning for Balanced HILLIER, J. Beyond confused noise: ide-
Development. Santa Fe, NM: Clear Light, as toward communicative procedural
1996. justice. Journal of Planning Education
and Research, 18 (1), p. 14-24, 1998.
HALL, Stuart. Encoding/decoding. In:
C ENTRE FOR C ONTEMPORARY C ULTURAL INNES, Judith E.; BOOHER, D. E. Consen-
STUDIES CULTURE. (Ed.). Culture, Media, sus building as role playing and brico-
Language: Working Papers in Cultural lage – toward a theory of collaborative
Studies, 1972-79. London: Hutchinson, planning. Journal of the American Plan-
1980. ning Association, 65 (1), p. 9-26, 1999.

HAMDI , Nabeel; GOETHERT , Reinhard. JENNINGS, James. (Ed.). Blacks, Latinos,


Action Planning for Cities: A Guide to and Asians in Urban America: Status and
Community Practice. Chichester: John Prospects for Politics and Activism. West-
Wiley, 1997. port, CT: Praeger, 1994.

HARVEY, David. The Condition of Post- JOJOLA, Theodore S. Indigenous plan-


modernity. Oxford, UK: Blackwell, 1989. ning: clans, intertribal confederations,
and the history of the All Indian Pueblo
HAYDEN, Dolores. The Power of Place: Council. In: SANDERCOCK, Leonie. (Ed.).
Urban Landscapes as Public History. Making the Invisible Visible: A Multicul-
Cambridge, MA: MIT Press, 1995. tural Planning History. Berkeley: Univer-
sity of California Press, 1998.
HEALEY, Patsy. Collaborative Planning.
London: Macmillan, 1997. KAUFMAN, Michael; ALFONSO, Haraldo Dil-
la. (Ed.). Community Power and Grass-
__________. Institutionalist analysis, com- roots Democracy: The Transformation
municative planning and shaping places. of Social Life. London: Zed Books,
Journal of Planning Education and Re- 1997.
search, 19, p. 111-121, 1999.
KEITH, Michael; PILE, Steve. (Ed.). Place
HEALEY, Patsy; HILLIER, J. Communicative and the Politics of Identity. London:
micropolitics: a story of claims and dis- Routledge, 1993.
courses. International Planning Studies,
1 (2), p. 165-184, 1996. KRUMHOLZ, Norm; FORESTER, John. Making
30 Caminhando com sapatos alheios

Equity Planning Work. Cambridge, MA: Athens: University of Georgia Press,


Blackwell, 1990. 1978.

LITTLE, Jo. Gender, Planning and the Pol- NICHOLSON , Linda J. (Ed.). Feminism/
icy Process. Oxford, UK: Pergamon, Postmodernism. New York: Routledge,
1994. 1990.

MACH, Zdzislaw. Symbols, Conflict, and OKIN, Susan. Gender inequality and cul-
Identity. Albany: State University of New tural differences. Political Theory, 22,
York Press, 1993. p. 5-24, Feb. 1994.

MARCHMAND, M.; PARPART, J. Feminism, OLIVER, Melvin L.; SHAPIRO, Thomas M.


Postmodernism, Development. London: Black Wealth/White Wealth: A New Per-
Routledge, 1995. spective on Racial Inequality. New York:
Routledge, 1995.
MASSEY, Doreen. Space, Place and Gen-
der. Cambridge, UK: Polity, 1994. ONG, Paul. An ethnic trade: The Chinese
laundries in early California. Journal of
MASSEY, Douglas; DENTON, Nancy. Amer- Ethnic Studies, 8 (4), p. 95-112, 1981.
ican Apartheid: Segregation and the
Making of the Underclass. Cambridge, PARPART, J. Who is the “other”: a post-
MA: Harvard University Press, 1993. modern feminist critique of women and
development theory and practice. De-
MEDOFF, Peter; SKLAR, Holly. Streets of velopment and Change, 24, p. 439-
Hope: The Fall and Rise of an Urban 464, 1993.
Neighborhood. Boston: South End Press,
1994. PEATTIE, Lisa Redfield. Planning, Rethink-
ing Ciudad Guyana. Ann Arbor: Uni-
MEHMET, Ozay. Westernizing the Third versity of Michigan Press, 1987.
World: The Eurocentricity of Economic
Development Theories. London: Rou- PRATT, Geraldine. Grids of difference:
tledge, 1995. Place and identity formation. In: FINCHER,
Ruth; JACOBS, Jane M. (Ed.). Cities of
MINERBI, Luciano. Indigenous manage- Difference. New York: Guilford, 1998.
ment models and protection of the Ahu-
puaa. Social Processes in Hawai’i, 39, PUKUI, Mary Kawena; ELBERT, Samuel H.
p. 208-225, 1999. Hawaiian Dictionary: Hawaiian-English,
English-Hawaiian. Honolulu: University
MOLINA, Jose M. Cultural barriers and of Hawaii Press, 1986.
interethnic communications in a multi-
ethnic neighborhood. In: RODD, Lamar PUKUI, Mary Kawena; HAERTIG, W. E.;
E. (Ed.). Interethnic Communication. LEE, Catherine A. Nānā i ke kumu [Look
Karen Umemoto 31

to the source]. Honolulu, HI: Hui Ha- SILVER, Christopher. Twentieth-century


nai, 1979. v. 2. Richmond: Planning, Politics and Race.
Knoxville: University of Tennessee Press,
QADEER, Mohammad A. Pluralistic plan- 1984.
ning for multicultural cities – the Cana-
dian practice. Journal of the American S OJA , Ed. Postmodern Geographies.
Planning Association, 63 (4), p. 481- London: Verso, 1989.
494, 1997.
SLOCUM, Rachel et al. (Ed.). Power, Proc-
RAHDER, Barbara Loevinger. Victims no ess and Participation: Tools for Change.
longer: Participatory planning with a di- London: Intermediate Technology,
versity of women at risk of abuse. Jour- 1995.
nal of Planning Education and Research,
18 (3), p. 221-232, 1999. THOMAS, June Manning. Redevelopment
and Race: Planning a Finer City in Post-
RAKODI, Carole. Cities and people: To- war Detroit. Baltimore, MD: Johns Hop-
wards a gender-aware urban planning kins University Press, 1997.
process? Public Administration and De-
velopment, 11, p. 541-559, 1991. WATSON, Sophie; GIBSON, Katherine (Ed.).
Postmodern Cities and Spaces. Oxford,
ROCHA, Elizabeth. A ladder of empower- UK: Blackwell, 1995.
ment. Journal of Planning Education and
Research, 17, p. 31-44, 1997. WOODS, Clyde. Development Arrested:
The Blues and Plantation Power in the
SAITO, Leland. Race and Politics: Asian Mississippi Delta. London: Verso, 1998.
Americans, Latinos and Whites in a Los
Angeles Suburb. Champaign: University YIFTACHEL, Oren. The dark side of mod-
of Illinois Press, 1998. ernism: planning as control of an ethnic
minority. In: WATSON, Sophie; GIBSON,
SANDERCOCK, Leonie. Making the Invisi- Katherine (Ed.). Postmodern Cities and
ble Visible: A Multicultural Planning His- Spaces. Oxford, UK: Blackwell, 1995.
tory. Berkeley: University of California
Press, 1998a. YOUNG, Iris. The ideal of community and
the politics of difference. In: NICHOLSON,
__________. Towards Cosmopolis: Plan- Linda J. (Ed.). Feminism/Postmodern-
ning for Multicultural Cities. Chichester: ism. New York: Routledge, 1990.
John Wiley, 1998b.
__________. Communication and the
SANDERCOCK, Leonie; FORSYTH, Ann. Fem- other: beyond deliberative democracy.
inist theory and planning theory: the In: WILSON, Margaret; YEATMAN, Anna.
epistemological linkages. Planning Theo- Justice and Identity. Wellington, Australia:
ry, 7/8, p. 45-49, 1992. Allen & Unwin, 1995.
32 Caminhando com sapatos alheios

Resumo Abstract
A crescente diversidade cultural traz Growing cultural diversity brings new
novos desafios à prática do planejamen- challenges to the practice of planning.
to. No planejamento participativo, essa In participatory planning, this diversity
diversidade constitui desafios relaciona- poses challenges related to communi-
dos à comunicação que se estabelece cating across culture-based epistemolo-
entre pessoas cujas epistemologias cul- gies and soliciting the voices of multiple
turais são distintas assim como às reivin- publics. This article explores five chal-
dicações oriundas de públicos múltiplos lenges that planners face when working
e diferenciados. Este artigo investiga in communities where the cultural back-
cinco desafios que os planejadores en- ground of residents is different from
frentam quando trabalham em comu- one’s own. These challenges are: (1) tra-
nidades em que o background cultural versing interpretive frames embedded
dos moradores é diferente do deles. São in culture, history, and collective memo-
estes os desafios: (1) ultrapassar estru- ry; (2) confronting otherness in the ar-
turas interpretativas enraizadas na cul- ticulation of cultural values and social
tura, na história e na memória coletiva; identities; (3) understanding the multiple
(2) confrontar a diversidade na articu- meanings of language; (4) respecting
lação de valores culturais e identidades and vavigating cultural protocols and
sociais; (3) compreender os múltiplos social relationships; and (5) understand-
significados da linguagem; (4) respeitar ing the role of power in cultural transla-
e contornar protocolos culturais e rela- tion.
cionamentos sociais; e (5) compreender
o papel do poder na tradução cultural.

Palavras-chave : planejamento partici- Keywords: participatory planning; so-


pativo; identidades sociais; diversidade cial identities; cultural diversity; Hawaii.
cultural; Havaí.

Karen Umemoto é professora associada no Departamento de Planejamento Urbano


e Regional na Universidade do Havaí, em Manoa (EUA). Seu interesse acadêmico
são planejamento e governança em sociedades multiculturais. Suas áreas de pesquisa
envolvem planejamento comunitário, relações raciais, desenvolvimento comunitário
e violência urbana. Ela também trabalha com várias organizações públicas e sem fins
lucrativos em planejamento estratégico e desenvolvimento comunitário.
Planejamento urbano e conflito
intergrupal: confrontando um
interesse público dividido

Scott A. Bollens

Mas você não pode me mostrar – mesmo supondo que a democracia seja
possível entre os vencedores e o povo dominado – qual a aparência de um
espaço democrático.

Que efeito pode ter a simples forma de um muro, a curva de uma rua, luzes e
plantas, no enfraquecimento do domínio do poder ou na formação do desejo de
justiça?

Anwar Nusseibeh, apud Sennett (1999, p. 274)

Este artigo examina os papéis e as res- De certo modo, essas cidades são
ponsabilidades de planejadores ao tratar casos extremos no que diz respeito à
de questões de raça e etnicidade e ave- magnitude e durabilidade de seus confli-
rigua como os planejadores pensam e tos. Um tipo de conflito urbano profundo
agem quando trabalham em sociedades e refratário – “polarização” urbana –
étnica ou racialmente polarizadas. Ba- ocorre nos casos em que as reivindicações
seia-se em entrevistas com mais de 100 étnicas e nacionalistas se sobrepõem às
planejadores urbanos e funcionários questões distribucionais no âmbito muni-
encarregados de programas de ação nas cipal (Benvenisti, 1986; Boal e Douglas,
cidades politicamente divididas de Bel- 1982). Em cidades americanas, todos os
fast, Jerusalém e Johannesburgo. grupos mantêm a crença de que o sistema

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIX, Nos 1-2, 2005, p. 1-42
2 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

de governança existente é capaz de pro- nômica, os padrões de dominação são


duzir resultados justos, pressupondo que expressos por meio da divisão física e
os interesses das minorias tenham repre- simbólica e da fragmentação espacial
sentação política. O estabelecimento de (Goldsmith e Blakely, 1992; Marcuse,
coalizões que possam acalmar e moderar 1995; Massey e Denton, 1993). O medo
conflitos intergrupais continua possível do “outro” não só é sentido no nível do
nos grupos étnicos (Nordlinger, 1972). comportamento individual, como tam-
Em contraposição, a governança em ci- bém se entrelaça com as decisões de pla-
dades polarizadas é vista como ilegítima nejamento urbano (Sandercock, 1998).
ou estruturalmente incapaz de produzir O ato terrorista de 11 de setembro de
resultados sociais justos para grupos étni- 2001 trouxe violentamente para o primei-
cos subordinados por, pelo menos, uma ro plano questões relativas ao equilíbrio
comunidade étnica (Douglas e Boal, apropriado entre segurança urbana, li-
1982; Romann e Weingrod, 1991). Em berdade individual e diversidade cultural.
comparação com cidades de democra-
cias liberais, em que a dimensão socioe- Um ponto comum entre a maioria
conômica do conflito é a principal, nas das cidades americanas e européias oci-
cidades polarizadas predominam as dentais, de um lado, e cidades etnica-
dimensões etnoculturais e territoriais mente polarizadas, do outro, é que, em
(Yiftachel, 1998). Nas polarizadas, os pla- ambas, os planejadores têm a respon-
nejadores urbanos têm de lidar tanto sabilidade de lidar com manifestações
com o conflito ideológico mais amplo de forças supra-urbanas. No caso das
quanto com questões de planejamento cidades polarizadas, essas forças se ba-
específicas da vida urbana diária. seiam historicamente em reivindicações
políticas conflitantes envolvendo ideo-
Apesar dessas diferenças na natureza logia, etnicidade e nacionalismo. Em
do conflito urbano, o que se afirma neste outras cidades, essas forças seriam uma
artigo é que os planejadores norte-ame- migração sem precedente, a globaliza-
ricanos podem aprender, a partir dos ção da produção econômica e o surgi-
exemplos estrangeiros de conflito étnico mento de minorias e da sociedade civil
profundo, como os planejadores lidam (ibid.). O fato de que muitas das influên-
com questões complexas e emocionais cias que impactam as cidades são exter-
de identidade étnica e racial e com rei- nas – sejam elas ideológicas, no caso de
vindicações grupais. A ruptura étnica de cidades polarizadas, sejam devidas à glo-
muitas cidades da América do Norte e balização ou à imigração estrangeira –
da Europa Ocidental cria um interesse pode levar à conclusão de que o plane-
público que exibe sinais de fragilidade e jamento local é impotente e derivativo.
separação semelhantes aos das mal- Conseqüentemente, os planejadores
afamadas cidades polarizadas estudadas urbanos silenciavam sobre os impactos
aqui. Como as cidades americanas são urbanos da imigração estrangeira, e a
freqüentemente divididas geografica- perspectiva urbana era claramente con-
mente por etnicidade, raça e renda eco- siderada um assunto secundário (Fried-
Scott A. Bollens 3

mann e Lehrer, 1997). A “baixa política” cultural. Em seguida, investiga como os


de cidades foi descartada como irrelevan- planejadores urbanos têm tratado desa-
te em comparação com a “alta política” fios étnicos nas cidades de Belfast, Jeru-
de Estados e sua promoção e proteção salém e Johannesburgo. Na conclusão,
de interesses nacionais (Rothman, 1992). delineio implicações desses estudos de
casos estrangeiros para planejadores
Este artigo examina primeiro como americanos que queiram lidar mais efi-
o planejamento americano tem abor- cazmente com as diferenças culturais.
dado as questões de raça e diferença

Planejamento, raça e etnicidade

Os anais de planejamento e política urba- O papel do planejador ao tratar da


na nos Estados Unidos estão maculados divisão racial e étnica não foi expresso
pelo fato de que as políticas de habitação, claramente. Sennett (1999, p. 274) ob-
de zoneamento e de desenvolvimento serva que “é difícil relacionar a política
têm freqüentemente excluído e afastado do conflito com o desenho urbano.” Os
os negros e outras minorias de oportu- profissionais de planejamento às vezes
nidades e riqueza (Judd e Swanstrom, tentam abordar os problemas da divisão
2002; Massey e Denton, 1993; Thomas, racial nos EUA principalmente através de
1994). Tratados urbanos recentes cha- esforços em planejamento protetor (ad-
mam a atenção para lições relativas à raça vocacy planning) iniciados na década de
levantadas anteriormente. Eles descre- 1960 e, mais recentemente, no planeja-
vem a “mensagem ambivalente sobre mento eqüitativo (Krumholz e Clavel,
questões raciais” dos criadores de políticas 1994). No entanto, as questões raciais que
(Sugrue, 1996, p. 18), o fracasso em “ad- os planejadores enfrentaram nos anos
ministrar o processo de sucessão racial 1960 ainda nos assombram (Thomas,
de uma maneira eficaz e humanitária” 1994). Hartman (1994, p. 158) assevera
(Cummings, 1998, p. 3) e a maneira que o planejamento tem tido “pouco a
como os preconceitos e os conflitos ra- ver com as realidades de lutas atuais rela-
ciais retardaram os esforços para impe- tivas ao racismo e à miséria.” Mier (1994,
dir o declínio de cidades (Thomas, 1997) p. 239) declara que, a menos que consi-
e como o “espectro da raça” configurou derem a raça e a diversidade como a
fundamentalmente as políticas urbanas primeira maneira de conceber problemas
(Gillette, 1995). Os documentos sobre de planejamento, os planejadores serão
impactos diferenciais de ações públicas em “facilitadores de exclusão social e isola-
subgrupos étnicos e raciais contestam o mento econômico”. Até mesmo a recen-
planejamento convencional baseado em te visão crítica, pragmática e baseada na
justiça ambiental (United Church of Christ comunicação de planejamento, declara
Commission for Racial Justice, 1987). Beauregard (1999, p. 53), “silencia sobre
4 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

importantes tensões que emanam do munidades de cor. Na Grã-Bretanha, o


multiculturalismo” e de reivindicações planejamento tem sido criticado por ser
grupais. “insensível às necessidades e exigências
sistematicamente diferentes da popula-
Não falta introspecção organizacio- ção, especialmente (...) de algumas co-
nal e profissional no que diz respeito aos munidades negras e étnicas” (Thomas
papéis dos planejadores em meio a di- e Krishnarayan, 1994, p. 1.899).
ferenças raciais e étnicas. Um debate
posterior ao motim urbano de 1992 em Freqüentemente, os planejadores
Los Angeles avaliou os papéis dos pla- que se defrontam com um interesse
nejadores ao abordar e configurar as público étnica ou racialmente dividido
questões essenciais da eqüidade social usam habilidades de enfrentamento pro-
(American Planning Association, 1992). fissionais que os distanciam das questões
A comissão orientadora da Agenda para essenciais. Baum (1999) constata que
as Comunidades da América da Ameri- os planejadores normalmente se consi-
can Planning Association (APA) produziu deram observadores imparciais, objeti-
então um livro que defendia “uma nova vos e científicos que estão do lado de
abrangência” que incluísse explicita- fora da cultura, não têm preconceitos e
mente o conceito de eqüidade comuni- seguem normas universais ao fazerem
tária (American Planning Association, avaliações. Morley e Shachar (1986)
1994). No entanto, essa noção de eqüi- asseveram que, ao lidarem com ques-
dade tendia a ser privada de seus com- tões envolvendo conflitos de valores, os
ponentes de cor e de cultura. 1 Quanto planejadores normalmente adotam pos-
à raça e à etnicidade, as posturas profis- turas não-ideológicas e procuram legiti-
sionais dos planejadores mostravam-se mar uma metodologia de planejamento
muitas vezes desinteressadas, incertas e objetiva. Krumholz e Clavell (1994) ve-
ambivalentes. Hoch (1993, p. 459) ob- rificaram que os planejadores liberais
serva que “o protocolo profissional do adotavam uma linguagem de interação
consultor perito e servidor público zeloso racial inadequada e recorriam a rótulos
não reconhece a complexidade das ques- que enfatizavam mais os temas de classe
tões de justiça social e, na verdade, pa- e bairro do que os explicitamente raciais.
rece simplificar o problema.” As limitações Diante de mudanças étnicas em bairros
da reforma liberal parecem incapazes de ou áreas comerciais, os planejadores fi-
tratar as diferenças culturais que dividem zeram uso de políticas relativas a dese-
grupos raciais. Krumholz e Clavel (1994) nho urbano, trânsito/estacionamento e
observaram as dificuldades enfrentadas padrões de ocupação para desacelerar
por profissionais brancos e politicamente o ritmo e os impactos da mudança e,
à esquerda quando planejam para co- muitas vezes, adotavam uma postura

1
O rótulo geral de disparidade social e econômica comunitária é normalmente usado no livro
para incluir considerações étnicas e raciais; uma indicação desse tratamento é que raça e
etnicidade não são encontradas no índice do livro. Isso se assemelha de maneira notável à
falta de referência explícita a protestantes e católicos no Belfast Urban Area Plan 2001.
Scott A. Bollens 5

neutra em relação à etnicidade dos usuá- diferenças culturais e a sinalização mul-


rios (Qadeer, 1997). Debates sobre di- tilíngüe (Qadeer, 1997). O planejamen-
ferença racial também podem gerar to multicultural também implica uma
uma ansiedade que reprime discussões maior sensibilidade quanto ao uso e à
sobre outros tipos de diferenças dentro percepção do espaço urbano, inclusive
da comunidade (Baum, 1998). às questões de auto-segregação residen-
cial e de uso de parques públicos (Lou-
No momento, o multiculturalismo kaitou-Sideris, 1995; Sem, 1999). Ele
contesta o planejamento ainda mais fun- postula a necessidade de avaliar os im-
damentalmente do que a crítica nas pactos de planos propostos em subgru-
décadas de 1960 e 1970. Ele discorda pos identificáveis da população (Pinel,
da abordagem científica de planejamen- 1994). Professores e pesquisadores de
to e da criação de políticas modernistas planejamento também estão envolvidos
que usam um sistema de valores uni- com as questões da diversidade cultural.
versal (Baum, 1999). Embora a neces- O Planning Accreditation Board (2001)
sidade de planejamento protetor e exige que as “dimensões multiculturais
eqüitativo certamente ainda exista, ago- e de gênero” (p. 23) da cidade sejam
ra o planejamento tem de reconhecer ensinadas e que o “respeito pela diversi-
culturas e visões do mundo diferentes dade de visões e ideologias” (p. 25) seja
como autênticas, duradouras e dignas inculcado durante o estudo de planeja-
de esforços para conservá-las (Burayidi, mento. Um levantamento de acadêmicos
1999; Thomas, 1996). Tais sistemas de de planejamento verificou que a capaci-
valores divergentes são uma caracterís- dade de planejar em um ambiente mul-
tica definidora de cidades etnicamente ticultural é uma habilidade decisiva para
polarizadas e também parecem ser um planejadores (Friedmann and Kuester,
atributo crescente dos debates sobre 1994). No entanto, os professores de
planejamento e alocação de recursos em planejamento são criticados por enfati-
cidades da América do Norte e da Eu- zar metodologias quantitativas que in-
ropa Ocidental. duzem os estudantes a se distanciar das
comunidades e por negligenciar cursos
Em termos de planejamento e cons- que poderiam ajudar os estudantes a
trução de cidades, o multiculturalismo adquirir conhecimentos sobre cultura e
apresenta desafios significativos a questões psicologia individual, grupal e comuni-
tais como o caráter étnico de desenho tária (Baum, 1999). Diferenciação e
urbano nos bairros em transformação, mudança cultural “continuam sendo um
o regulamento de enclaves de negócios processo de planejamento urbano relati-
e atividades comerciais étnicos, os pa- vamente pouco estudado” (Friedmann,
drões de ocupação habitacional e de 1996, p. 97).
6 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

Estudando planejamento urbano em meio a um


interesse público dividido

As cidades de Belfast, Jerusalém e Johan- gar conflitos. As principais políticas estu-


nesburgo se caracterizam por divisões dadas foram o planejamento de uso do
profundamente enraizadas baseadas em solo, o desenvolvimento econômico, a
nacionalismos rivais e disputas sobre con- construção de habitações, os subsídios e
trole político e direitos de grupos. Cada incentivos ao capital privado, a distribui-
uma delas oferece relatos de muitas dé- ção de serviços sociais, a participação co-
cadas de planejamento e administração munitária e a organização do governo
urbanos em ambientes bicomunitários municipal. Essas políticas podem manter
contestados.2 A pesquisa de campo durou ou romper reivindicações territoriais, dis-
três meses e baseou-se em entrevistas em tribuir benefícios econômicos justa ou in-
cada cidade. 3 As entrevistas focalizavam justamente, oferecer ou impedir acesso
a influência da polarização étnica no con- à criação de políticas e ao poder, e pro-
texto institucional da cidade, a formu- teger ou enfraquecer direitos culturais e
lação de metas de desenvolvimento, o étnicos coletivos.
estabelecimento de agendas públicas, a
tomada de decisões, a implementação de A pesquisa tratou das características
políticas e o modo como a elaboração subjetivas e objetivas do planejamento
de políticas urbanas às vezes reprime e em meio a intenso conflito. Procurei sa-
às vezes abre oportunidades para miti- ber como os entrevistados avaliavam

2
Não é possível tratar aqui de cada conflito étnico ou racial em sua totalidade. Fazer isso
exigiria um relato das relações entre judeus e muçulmanos na Palestina no decorrer dos
últimos 1.300 anos, das relações entre católicos e protestantes desde as colonizações protes-
tantes em Ulster (Irlanda do Norte) há mais de 450 anos e das relações entre brancos e
negros na África do Sul desde a chegada de europeus há mais de 350 anos (Bollens, 1999,
2000).
3
As entrevistas pessoais foram selecionadas em preferência a outras técnicas de pesquisa,
porque permitem sondagens para obter mais dados. Trinta e quatro entrevistas foram reali-
zadas em Belfast, 40 em Jerusalém e 37 em Johannesburgo, todas entre outubro de 1994 e
setembro de 1995. As perguntas eram de resposta ampla, proporcionando aos entrevistados
flexibilidade e profundidade ao responder, e facilitavam reações não antecipadas na concep-
ção da pesquisa. Foram feitos grandes esforços para assegurar uma distribuição justa entre
os grupos étnicos e entre os funcionários governamentais e não-governamentais. Em Belfast,
16 protestantes e 12 católicos foram entrevistados (6 não documentados); 19 eram funcio-
nários governamentais e 15 eram funcionários não-governamentais ou acadêmicos. Em
Jerusalém, 24 israelenses e 15 palestinos foram pesquisados; 12 eram funcionários do
governo israelense, 11 eram acadêmicos e 17 eram da Autoridade Palestina ou de organiza-
ções não-governamentais. Em Johannesburgo, 11 não-brancos e 26 brancos foram entrevis-
tados; 21 eram funcionários do governo e 14 eram funcionários não-governamentais ou
acadêmicos. Os entrevistados deram consentimento por escrito para serem citados e identi-
ficados individualmente.
Scott A. Bollens 7

suas atividades rotineiras e seus papéis normas profissionais (Forester, 1989;


profissionais. Em especial, observei Rothman, 1992).
atentamente a interação entre as nor-
mas e os valores profissionais do plane- 2) Uma estratégia urbana partidária, pelo
jamento e os imperativos ideológicos contrário, favorece os valores e a au-
mais emocionais que atingem diaria- toridade de um grupo étnico que
mente a vida do profissional. As distor- detém o poder e rejeita as reivindica-
ções, as omissões, as ênfases em algumas ções do grupo privado de direitos
questões, e não em outras, e a definição (Yiftachel, 1995). Os planejadores
de questões e constituintes urbanos fun- procuram fortalecer e expandir as
damentais fazem parte da história que reivindicações territoriais ou impor
quero contar sobre a elaboração de um controle de acesso excludente
políticas urbanas em meio à etnicidade (Lustick, 1979; Sack, 1981).
contestada.
3) Uma estratégia eqüitativa privilegia a
Examino quatro estratégias de pla- afiliação étnica a fim de diminuir as
nejamento que regimes urbanos podem desigualdades entre grupos. Critérios
adotar sob condições de polarização como as necessidades ou os tama-
política e étnica. nhos relativos de grupos étnicos são
usados para alocar serviços e despe-
1) Uma estratégia urbana neutra distan- sas urbanos. Os critérios baseados na
cia-se de questões de identidade étni- eqüidade muitas vezes serão signifi-
ca, desigualdades de poder e exclusão cativamente diferentes dos critérios
política. Nessa estratégia, o plane- funcionais e técnicos usados pelo pla-
jamento age como um modo etni- nejador profissional etnicamente neu-
camente neutro ou “daltônico” 4 de tro (Krumholz e Forester, 1990). Um
intervenção do Estado, respondendo planejador eqüitativo é muito mais
a necessidades e diferenças na esfera atento às desigualdades e desequilí-
individual. Essa abordagem tem raízes brios políticos baseados em grupos na
na tradição anglo-saxônica e é nor- cidade do que um planejador neutro
malmente aplicada em ambientes e reconhece a necessidade de políticas
democráticos liberais (Yiftachel, 1995). corretivas e de ação afirmativa basea-
Os planejadores buscam tratar as das na identidade do grupo.
discórdias entre grupos étnicos ao
largo das questões relacionadas à so- 4) O modelo final – uma estratégia reso-
berania e à identidade, em prol das lutiva – procura ligar as questões ur-
questões rotineiras de distribuição de banas a causas básicas da polarização
serviços passíveis de solução mediante urbana: desequilíbrios de poder, iden-
procedimentos de planejamento e tidades de grupos étnicos competitivos

4
No original, “color-blind”, ou seja, aquele que “não diferencia cores”: o daltônico ou o que
se recusa a reconhecer a existência de distinções objetivas relativas às raças. N. da Ed.
8 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

e desempoderamento. Os planeja- cimentos científicos e técnicos a pro-


dores contestam os impactos, e até cessos de transformação de sistema
mesmo a autoridade, de políticas go- (Benvenisti, 1986; Friedmann, 1987).
vernamentais e procuram ligar conhe-

Belfast: planejamento neutro e estabilidade étnica

Questões sectárias não interferem como um todo, tem uma população pro-
em nossas considerações. Usamos, testante majoritária. Em 1991, a popu-
sim, planejamento de uso do solo, lação da cidade, de 279 mil habitantes,
e só. Que diferença fariam em ter- era composta por 57% de protestantes
mos de planejamento de uso do solo e 43% de católicos (J. McPeake, entre-
em qualquer caso? Assim como os vista). A porcentagem de católicos vem
protestantes, os católicos precisam aumentando no decorrer das últimas
de habitações, escolas, igrejas, lojas décadas, graças a índices de nascimento
e centros de serviços. (George Wor- mais altos e à migração de protestantes
thington [entrevista] – chefe do Bel- para cidades vizinhas.
fast Planning Service)
Identidades religiosas coincidem for-
Belfast é uma cidade impregnada de temente com lealdades políticas e nacio-
conflitos nacionalistas (irlandês/britânico) nais. Os protestantes “unionistas” e
e religiosos (católico/protestante) que se “lealistas” são fiéis à Grã-Bretanha, que,
sobrepõem. Desde 1969, vivencia vio- desde 1972, governa diretamente a
lentos combates sectários (étnicos). A Irlanda do Norte. Os “nacionalistas” e
arena urbana é muito segregada e de “republicanos” católicos, pelo contrário,
territorialidade estritamente sectária, consideram-se irlandeses e dedicam sua
com grupos antagônicos separados, mas lealdade pessoal e política à Irlanda.
próximos (Figura 1). Em 35 dos 51 dis- Além das diferenças devidas à fidelidade
tritos eleitorais da cidade, 90% ou mais política, os católicos criticam a discrimi-
da população compartilha uma única nação de governos da Irlanda do Norte
religião (Northern Ireland Registrar Gene- em termos de acesso a empregos, habi-
ral, 1992). Hostilidades entre comunida- tação e serviços sociais. Desde a imposi-
des exigiram a construção de 15 divisões ção do “governo direto” britânico em
“de linha de paz” – que vão desde cercas meio a conflitos sectários em 1972, o
de chapa de ferro corrugado e paliça- poder legislativo da província está nas
das de aço a muros permanentes de ti- mãos da British House of Commons,
jolo ou aço e barreiras ou amortecedores resultando em “uma ausência quase
ambientais (Figura 2). A cidade de Bel- absoluta de participação e prestação de
fast, assim como a Irlanda do Norte contas representativas” (Hadfield,
Scott A. Bollens 9

1992). Uma alteração significativa das tantes e católicos compartilham o poder,


instituições governamentais e do status alguma autoridade legislativa e adminis-
constitucional da Irlanda do Norte foi trativa na província; todavia, o prosse-
especificada em um acordo político de guimento dessa transferência depende
1998. A Grã-Bretanha transferiu para de mais progresso nas questões de de-
uma Assembléia da Irlanda do Norte, sarmamento e reforma policial.
eleita por voto direto e na qual protes-

Figura 1. Percentual de população católica, zonas eleitorais da área urbana


de Belfast, 1991.

Fonte: Boal (1994). Reimpresso com permissão.


10 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

Figura 2. Linha de paz que separa o bairro católico Catholic Falls e o bairro
protestante Shankill, 1995.

Fotografia : Scott A. Bollens.

O principal criador de políticas urba- sua necessidade de consistência em re-


nas em Belfast, sob o Northern Ireland lação ao plano da área, quase todos os
Act de 1974, é o Department of the En- requerimentos de planejamento e pro-
vironment for Northern Ireland (DOENI). jetos são examinados pelo Serviço de
Dentro do DOENI ou a ele vinculadas, Planejamento. O Belfast Development
há três entidades importantes. O Town Office (BDO) promove a regeneração
and Country Planning Service é respon- física e implanta programas de revitaliza-
sável pela criação da estrutura de políti- ção subvencionados. A Northern Ireland
cas em que se dá o crescimento e pela Housing Executive (NIHE) é responsá-
regulação da construção. Os planos da vel pela construção de habitações pú-
Belfast Urban Area (BUA) têm força de blicas, pela reabilitação e manutenção
lei e estabelecem uma ampla estrutura de unidades existentes e pela alocação
de políticas na qual propostas de desen- de unidades de habitação públicas a fa-
volvimento urbano mais detalhadas mílias e indivíduos necessitados.
podem ser determinadas. Tendo em vista
Scott A. Bollens 11

Políticas urbanas de Belfast subseqüente para a área considerou efe-


desde 1972 5 tivamente as divisões étnicas, mas decla-
rou: “Seria arrogância, porém, imaginar
Os princípios operativos para os criado- que se pudesse esperar que o Plano de
res de políticas e administradores urba- Área Urbana influenciasse fatores religio-
nos têm sido (1) administrar o espaço sos, bem como econômicos, sociais e
étnico de uma forma que reflita os de- físicos” (Building Design Partnership,
sejos dos moradores e não exacerbe 1969, p. 5).
tensões sectárias; e (2) manter a neutra-
lidade do papel e da imagem do gover- O plano de 1977, Northern Ireland:
no em Belfast, sem preconceito contra Regional Physical Development Strate-
“laranjas” (protestantes) ou “verdes” gy 1975-1995, apoiava um papel go-
(católicos). Desde 1972, grandes esfor- vernamental adaptável a demarcações
ços têm sido feitos para fundamentar as étnicas. Declarava que
decisões de políticas em medidas racio-
nais, objetivas e imparciais. No entanto, existe agora uma situação em que
a necessidade de conter a violência ur- geralmente as pessoas estão prepa-
bana obrigou os criadores de políticas a radas para serem alojadas apenas
aceitar a territorialidade estrita da cida- no que elas consideram “suas pró-
de, que impõe restrições rígidas à cres- prias áreas.” Embora todos os es-
cente população católica enquanto forços sejam feitos para romper
protege o solo subutilizado da declinan- essas barreiras, inevitavelmente le-
te maioria protestante. Embora a neces- vará muitos anos para removê-las
sidade objetiva o exija, os planejadores completamente. Enquanto isso, a
habitacionais “simplesmente não podem posição atual deve ser reconhecida
dizer que haverá um projeto habitacio- e levada em conta no desenvolvi-
nal católico em uma área tradicionalmen- mento de novas áreas habitacionais.
te protestante” (J. Hendry, entrevista). (Department of the Environment for
Northern Ireland, 1977, p. 41-42)
Desde a década de 1960, os esfor-
ços de planejamento para a área urbana O Belfast Urban Area Plan 2001
de Belfast têm enfatizado questões físicas (Department of the Environment for
e espaciais, separando-as das questões Northern Ireland, 1990) negligencia as
de conflito étnico localizado (Boal, questões de sectarismo ao considerá-las
1990). O Belfast Regional Survey and fora do âmbito do planejamento. O
Plan of 1962 (Matthew, 1964) não Department of the Environment for
mencionou a natureza etnicamente di- Northern Ireland (1989, p. 2) declara
vidida de Belfast. Um plano detalhado que “não é propósito de um plano es-

5
A avaliação da política de Belfast é baseada em entrevistas com funcionários da repartição
central do DOENI, do DOENI Town and Country Planning Service (Belfast Division), da
repartição central do NIHE Belfast Regional Office, da Central Community Relations Unit do
Northern Ireland Office, e com acadêmicos que estudaram a política urbana de Belfast.
12 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

tratégico de uso do solo tratar os aspec- a justificação de alterações físicas em


tos sociais, econômicos ou de outro ca- áreas de interface baseadas nos benefí-
ráter”. Segundo o departamento, as cios econômicos previstos nos projetos
questões contenciosas “sem planeja- patrocinados pelo BDO. Enquanto o
mento” de habitação e distribuição de primeiro método procura afastar lados
serviços sociais estão fora do domínio divergentes mediante uma infra-estru-
específico da agência (id., 1988). Ne- tura neutra, o segundo procura ganhos
nhum dos objetivos estratégicos do pla- econômicos para ambos os lados e po-
no de 2001 envolve explicitamente uma deria facilitar alterações não-triviais na
questão étnica ou sectária. Mesmo o tra- territorialidade sectária (Murtagh, 1994).
balho de planejamento corriqueiro de
uso do solo – a previsão de populações Em relação à etnicidade, a aborda-
totais e subgrupais – está excluído do gem neutra e distanciada dos planeja-
plano, em função de sua provável sen- dores sacrificou o desenvolvimento de
sibilidade étnica e política. um plano estratégico que poderia orien-
tar decisões sobre habitação e desen-
Em contraposição às políticas de pla- volvimento urbano. Por conseguinte, as
nejamento de cidades, agências orien- ações públicas de unidades governa-
tadas para o desenvolvimento tratam, mentais como o NIHE e o BDO têm
por necessidade, de realidades sectárias sido, fundamentalmente, táticas ad hoc
mais diretamente. O NIHE reconhece em vez de atos estratégicos, baseadas em
interfaces e linhas de paz como “locais projetos mais do que em áreas, e reati-
onde conflitos podem freqüentemente vas em vez de proativas. O planejamento
ocorrer e onde a Housing Executive no sentido estratégico e abrangente foi
procura administrar e manter casas com marginalizado; não houve “nenhuma rea-
imparcialidade” (Northern Ireland Hous- ção de planejamento coerente e estraté-
ing Executive, 1988, p. 2). Ao construir gico aos distúrbios étnicos” (K. Sterrett,
habitações perto dessas áreas, o NIHE entrevista). Em vez de orientar a adminis-
utiliza táticas pragmáticas, na base de tração do espaço sectário, o planejamen-
caso por caso, dentro dos limites esta- to urbano de Belfast “entrincheirou-se
belecidos por geografias sectárias. Como atrás de um muro de planejamento físico,
parte de um projeto habitacional, em em que as questões sociais, econômicas
algumas ocasiões, o NIHE construiu e sectárias são empurradas para fora do
barreiras físicas ou muros considerados muro” (J. Hendry, entrevista).
necessários por agências de segurança
nacionais para estabilizar conflitos inter-
comunitários (ibid.). O BDO também Percepções dos planejadores
precisa enfrentar questões sectárias mais
diretamente do que o serviço de plane- A abordagem “daltônica” da política
jamento. Duas táticas físicas principais urbana de Belfast serviu bem às metas
têm sido usadas: a criação de usos do organizacionais, ao superar o legado
solo neutros entre lados antagônicos e discriminatório do governo da Irlanda
Scott A. Bollens 13

do Norte pré-1972, controlado pelos tensões intercomunitárias. D. McCoy (en-


unionistas. Operando dentro da mais trevista) declara que, na complexidade
contenciosa arena política de habitação, sectária de Belfast, “o governo não deve
o NIHE manteve-se muito íntegro e justo impor uma macrovisão de cima para
na alocação de unidades de habitação baixo de como uma cidade deve funcio-
públicas durante tempos difíceis. W. nar; deve, sim, ser responsivo e sensível
McGivern (entrevista), ex-diretor regio- às necessidades e capacidades de comu-
nal do NIHE de Belfast, afirma que “só nidades locais”. G. Worthington (entre-
existimos porque temos credibilidade.” vista) afirma que “devemos reconhecer
Em meio a conflitos intensos, o DOENI as realidades da situação. Se mudásse-
“pratica a arte do possível em uma situa- mos de cor, o resultado final claramente
ção em que há uma armadilha sectária, não funcionaria. Não nos cabe tomar
e eles sabem disso” (J. Hendry, entre- decisões de engenharia social ou que
vista). G. Mulligan (entrevista) reconhe- seriam percebidas como tal.” O governo
ce as ineficiências da segmentação adere o máximo possível a padrões objeti-
étnica, mas declara que “o planejamen- vos e deve ter muito cuidado com os sig-
to não diz como a sociedade ou a eco- nificados por trás de sua linguagem em
nomia devem mudar.” Ou melhor, o documentos públicos, porque “as palavras
papel apropriado do governo é refletir podem causar muitos problemas aqui”
passivamente em suas políticas as ne- (W. McGivern, entrevista). D. McCoy (en-
cessidades e exigências de moradores e trevista) descreve a pressão característica
bairros. O princípio subjacente ao envol- do ambiente burocrático em que ocorre
vimento do governo tem sido “seguir a criação de políticas urbanas: “Há opor-
os desejos do povo” (D. McCoy, W. Neill, tunidades demais para erros. Estamos
P. Sweeney, entrevistas). As divisões na sob o microscópio o tempo todo”. O
sociedade são vistas como fundamen- autor descobriu que as discussões internas
tadas em sentimentos profundamente nas agências governamentais mostram
arraigados e reforçadas por meio do uma sensibilidade maior às realidades
terror. Como tal, “as mudanças têm de étnicas do que indica a postura pública
partir do povo; o governo não pode mu- do governo. Um planejador (B. Morri-
dar a opinião das pessoas” (R. Spence, son, entrevista) relata esse reconhecimen-
entrevista). to interno: “Era como se estivéssemos
cumprindo um plano para duas cidades
Funcionários do governo que traba- que, por acaso, se sobrepunham.” Não
lham em meio à polarização étnica não obstante, os planejadores continuam fir-
querem ser considerados “engenheiros mes em não falar explicitamente sobre
sociais”. Esforços benignos do governo etnicidade e políticas urbanas em deba-
para “artificialmente” reconciliar as pes- tes públicos. 6
soas são percebidos como estímulos para

6
Documentos internos que empregam uma análise sofisticada das facetas múltiplas de etnia
geográfica e de como podem impactar a ação do governo, tais como o relatório sobre o
Northgate Enterprise Park da DOENI em 1990, não são normalmente liberados para o público.
14 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

Em Belfast, os planejadores defen- No final das contas, a abordagem


dem sua postura neutra de competência do governo à política urbana em Bel-
no uso do solo técnico. O planejador fast é caracterizada por um conjunto de
da cidade B. Morrison (entrevista) vê a traços autolimitantes. Existe uma sepa-
postura como benéfica: “o planejamen- ração entre a função de planejamento
to funciona bem atrás dos bastidores”; da cidade, de um lado, e as questões
é melhor deixar para os outros as ações étnicas e a fragmentação das políticas
mais determinísticas do governo. Em de acordo com as linhas traçadas por
discussões públicas controversas, “para departamentos e divisões, de outro.
os planejadores, talvez, seja útil a ado- Combinados, esses fatores diminuem a
ção de um papel técnico e profissional, capacidade do governo de montar uma
porque isso permite que evitem con- estratégia etnicamente sensível, que
frontos” (K. Sterrett, entrevista.) No seria multidimensional (desenvolvimen-
campo de batalha sectário de Belfast, to físico, sociopsicológico, econômico e
“há uma sensação quase de persegui- humano) e integradora de agências de
ção, em que planejadores refugiam-se planejamento, habitação e desenvolvi-
em papéis técnicos restritos” (W. Neill, mento. Conseqüentemente, interven-
entrevista). O processo de planejamento ções por parte de unidades como o BDO
da cidade torna-se um processo que é ou o NIHE são deixadas à deriva nos
visto pelos planejadores como propria- mares fortemente sectários de Belfast,
mente regulador e não proativo e in- nem ancoradas, nem navegadas por um
tervencionista. Os comentários de B. conjunto integrado de princípios de es-
Morrison (entrevista) são esclarecedores: truturação de cidades. P. Sweeney (en-
trevista), consultor do DOENI, faz uma
Nosso papel regulador é nossa razão pergunta perturbadora: “Em uma socie-
de ser. Para fazer isso completa e dade profundamente dividida, não teria
apropriadamente, seria preciso não o governo de ser mais proativo, mais
ter absolutamente nada a ver com progressista? Os planejadores são acusa-
qualquer coisa proativa. Essa postura dos e culpados. Eles deveriam adminis-
de regulador nos influencia em ter- trar o ambiente em vez de simplesmente
mos do que podemos fazer publica- reagir a ele”.
mente ou do que se percebe que
fazemos. (B. Morrison, entrevista)

Jerusalém: planejamento partidário e espaço contestado


Desde o início, qualquer desenvol- estratégicas. (Israel Kimhi [entrevis-
vimento significativo se encontrava ta] – planejador da cidade, Jerusa-
relacionado a um planejamento lém [1963-1986])
marcado por motivações políticas e
Scott A. Bollens 15

Reivindicações territoriais conflitantes Israel manifesta-se pelo controle judaico


de israelenses e palestinos cruzam com da prefeitura e do conselho da cidade
heranças religiosas judaicas e muçulma- (Municipality of Jerusalem, 1997). Esse
nas nessa cidade que desafia a exclusi- controle é solidificado pela resistência ára-
vidade (Elon, 1989; I. Matar, entrevista). be à participação de eleições municipais,
Uma Jerusalém politicamente indivisa sob que consideram ilegítimas. A Cisjordânia
a soberania de Israel é algo de que os (West Bank), habitada por aproximada-
israelenses não abrem mão, enquanto os mente 1,7 milhão de palestinos e cerca
palestinos falam de Jerusalém como a de 150 mil judeus, cerca Jerusalém por
capital de um Estado da Palestina, rei- três lados (Palestinian Central Bureau of
vindicando o setor oriental da cidade. Statistics, 1998; Peace Now, 1997).
Essas aspirações conflitantes criam uma
cidade de “inimigos íntimos” – uma vida
de enfrentamentos, proximidade e inte- Política urbana israelense
ração, entretanto remota, alheia e alie- desde 1967 7
nada (Benvenisti, 1995). Tendo, em
1996, uma população de 603 mil habi- Desde 1967, o governo central israe-
tantes dentro de suas disputadas frontei- lense tem moldado e se apropriado dos
ras, a cidade é um lugar de competição objetivos e estratégias do planejamento
demográfica e física entre duas popula- local como se esses se referissem a ob-
ções. A geografia política e social de Jeru- jetivos de soberania capazes de moldar
salém incluiu um mosaico multicultural o ambiente construído. As metas princi-
sob o Mandato Britânico de 1920-1948 pais têm sido estender a cidade judaica
e uma repartição física bilateral em com- geograficamente, fortalecê-la demogra-
ponentes controlados por Israel e Jor- ficamente e construir bairros judeus para
dânia durante o período de 1948-1967, que a divisão política da cidade nunca
divisão demarcada por um acordo de mais seja possível (B. Hyman, entrevis-
armistício de 1949. Desde 1967, Jeru- ta). As políticas urbanas israelenses, fun-
salém é uma contestada municipalidade damentadas em questões de segurança
controlada por Israel, possui o triplo da nacional, unificação da cidade e absor-
área da cidade pré-1967 (em razão da ção de imigrantes sobrepujaram ou im-
anexação unilateral) e abarca a antiga Je- pugnaram políticas de planejamento
rusalém Oriental árabe. Do status inter- municipais. O governo central estabele-
nacional de Jerusalém Oriental hoje resta ce os parâmetros básicos de crescimento
apenas o território ocupado. A superiori- urbano e metropolitano, e o governo
dade demográfica judaica (aproximada- local se incumbe da aplicação e da in-
mente 70% judaica, 30% árabe) dentro terpretação dessas metas nacionais em
das fronteiras de Jerusalém definidas por escala municipal.

7
A avaliação da política israelense é baseada em entrevistas com atuais e antigos funcionários
do governo da Municipalidade de Jerusalém e do Ministério do Interior (distrito de Jerusalém
e repartição central do governo), com acadêmicos israelenses que trabalharam em projetos
governamentais e com pesquisadores de organizações não-governamentais.
16 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

Tal orientação do governo central A Figura 3 mostra os padrões de


no crescimento de Jerusalém é facilita- crescimento e desenvolvimento urbano
da por um sistema de planejamento pós-1967 que resultam de objetivos
regulador israelense altamente centra- políticos nacionais. Grandes comunida-
lizado (Alexander, Alterman e Law- des judaicas – Ramot Allon, Pisgat Zeev,
Yone, 1983; Hill, 1980). De especial Neve Yaakov (Figura 4), East Talpiot e
importância, as comissões distritais re- Gilo – foram construídas em lugares es-
gionais, dominadas por representantes tratégicos por toda a área municipal
do governo central, têm grande poder anexada e disputada. Como a seguran-
de supervisão sobre os planos-esboço ça judaica era uma preocupação pre-
(estatutários) locais preparados por dominante, o estabelecimento de uma
municipalidades, assim como têm po- “massa crítica” de habitantes judaicos
der de aprovar ou não a maioria das depois de 1967 foi considerado essen-
permissões locais para construir, de de- cial para a segurança e a autoconfiança
liberar sobre petições de rejeição local. de judeus (Y. Golani, B. Hyman, entre-
Em contraposição, as comissões de pla- vistas). Dos aproximadamente 70 qui-
nejamento locais têm poderes indepen- lômetros quadrados anexados depois da
dentes limitados para elaboração de Guerra de 1967, o governo israelense
planos e análises de projetos para a expropriou cerca de 33% e usou essas
área. Freqüentemente, os interesses na- terras para construir bairros judaicos.
cionais têm sido implementados por Desde 1967, 88% de todas as unidades
instituições e organizações ativas volta- habitacionais construídas na contestada
das para o desenvolvimento urbano e Jerusalém Oriental foram para a popula-
pela concessão de orçamentos podero- ção judaica (B’Tselem, 1995). Os bairros
sos a ministérios de desenvolvimento. construídos em Jerusalém Oriental são,
Esse agressivo sistema de planejamen- hoje, o lar de mais de 160 mil habitantes
to de desenvolvimento envolve um judeus.
labirinto de agências e organizações.
Do ponto de vista do crescimento e do Gastos municipais desproporcio-
desenvolvimento urbano na região de nalmente baixos em bairros árabes con-
Jerusalém, o mais importante órgão solidam a superioridade judaica. Os
governamental é o Ministry of Hous- entrevistados (tanto israelenses como
ing and Construction, responsável pela palestinos) citaram consistentemente
construção de habitações, infra-estru- uma razão de 8 para 1 nos gastos em
tura e estradas. Destacando-se entre as bairros judaicos versus bairros árabes.
entidades semigovernamentais, a Israeli Amirav (1992) documenta que jamais
Lands Authority controla terras extensas fluiu para as áreas árabes mais de 4%
de propriedade pública (93% de Israel, do orçamento para desenvolvimento da
em si, constitui propriedade pública) e infra-estrutura. Essas estimativas ficam
influencia a construção por meio de ces- bem abaixo do quinhão de gastos pre-
são de terras. vistos para a população árabe da cidade
Scott A. Bollens 17

(30%). Um relatório da cidade (Muni- que mais da metade das áreas árabes
cipality of Jerusalem, 1994) reconhece têm fornecimento de água inadequado
essas imensas disparidades, registrando e nenhum sistema de esgotos.

Figura 3. Bairros judeus e árabes dentro de fronteiras definidas em


Jerusalém, 1991.

Fonte: Benvenisti (1996). Reimpresso com permissão.


18 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

Figura 4. Bairro judeu de Neve Yaakov na parte anexada a Jerusalém, 1994.

Fotografia : Scott A. Bollens.

Além de facilitar a construção judaica truir, porque esses planos são essenciais
em áreas disputadas, Israel restringiu o para a aprovação da permissão. Em de-
crescimento das comunidades palestinas corrência dessas restrições, apenas 11%,
na cidade para enfraquecer suas reivin- no máximo, da Jerusalém Oriental ane-
dicações por Jerusalém. Isso foi conse- xada é terra desocupada onde o governo
guido mediante expropriação de terras, israelense permite a construção palestina
regulamentos de zoneamento que res- (Kaminker, 1995; K. Tufakji, entrevista).
tringem os direitos palestinos à constru- Nos últimos cinco anos, a Municipalidade
ção, construção de estradas para restringir de Jerusalém começou a preparar pla-
e fragmentar as comunidades palestinas, nos-esboço para os setores árabes da ci-
restrições ao volume de construção em dade. No entanto, tais planos, muitas
áreas palestinas e ausência intencional de vezes, incorporam “diretrizes ocultas” que
planos para áreas árabes. A falta de pla- restringem o crescimento árabe (S. Ka-
nos-esboço, decisão, em parte, “politica- minker, entrevista). Exemplos disso in-
mente consciente” (I. Kimhi, entrevista), cluem padrões propositalmente largos de
dificultou enormemente para os palesti- estradas que impedem a possibilidade de
nos a obtenção de permissões para cons- construção em fileiras de terrenos con-
Scott A. Bollens 19

sumidos pelas estradas, exigências de planejaram apenas para que houvesse


baixos índices de ocupação do solo um plano”. Em vez de assumirem uma
(0,15-0,25 é comum em áreas árabes, responsabilidade proativa para tornar
comparada com até 3,0 em comunida- seus planos mais reais, os planejadores
des judaicas) e rígidos padrões de altura. israelenses usam mecanismos embutidos
que prejudicam significativamente a co-
Também existe uma disparidade munidade palestina em Jerusalém.
entre os padrões ocidentais incorpora-
dos aos planos israelenses e as realida-
des dos processos de desenvolvimento Percepções dos planejadores
e dos modelos de propriedade árabes.
Ou, como o ex-engenheiro da cidade A força propulsora da minha prática
E. Barzacchi (entrevista) declara, as “res- de planejamento urbano tem sido
postas que nós, planejadores da cidade, o trauma do holocausto e a lição
damos à população árabe são tecnica- que nos ensinou de que não pode-
mente ‘corretas’ e interessantes, mas mos contar com ninguém, a não ser
absolutamente irrelevantes”. Por exem- com nós mesmos. (Yehonathan
plo, o desenvolvimento urbano no sis- Golani [entrevista] – Director Plan-
tema de planejamento israelense tem ning Administration, Israeli Ministry
como premissa a existência de limites of the Interior [Diretor da Adminis-
claramente definidos nas propriedades tração de Planejamento do Ministé-
particulares. No entanto, em Jerusalém, rio do Interior de Israel])
cerca de metade das áreas árabes tem
modelos de propriedade de terras não Os planejadores israelenses estavam
registradas, decorrência do fato de que cientes da natureza partidária de sua prá-
boa parte da terra era propriedade co- tica e raramente negavam os efeitos de
munitária ou estatal sob o controle britâ- suas ações de planejamento na paisagem
nico e, depois, jordaniano. Isso permite da cidade. Segundo I. Kimhi (entrevis-
ao governo israelense gabar-se de que, ta), “nós, os planejadores, prejudicamos
“sim, temos planos” (N. Sidi, entrevista) a coexistência de duas nações e povos
para o setor árabe, mesmo sabendo que que, com planejamento adequado, po-
a maior parte do crescimento permissí- derão desenvolver-se aqui em Jerusa-
vel não será realizado por falta de ferra- lém”. Y. Golani (entrevista) descreve a
mentas de implementação. De acordo si mesmo como um liberal imparcial; no
com J. de Jong (entrevista), o raciocínio entanto, “sobre essa questão não posso
de Israel segue a seguinte lógica: “Vejam, permanecer indiferente. Não posso falar
nós lhes demos as possibilidades. Se objetivamente. Isso é impossível quando
vocês, como sociedade, não as aprovei- se trata dessa situação.” Em sua discus-
taram, não é responsabilidade nossa.” são sobre o planejamento em Jerusalém,
O ex-vice-prefeito M. Benvenisti (entre- B. Hyman (entrevista), entre argumen-
vista) afirma que “os israelenses não pla- tos funcionais e considerações políticas,
nejaram para a comunidade árabe, diz, ao final: “é difícil chegar a qualquer
20 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

coisa que se assemelhe a uma ‘solução forma, a planejadora da cidade N. Sidi


natural’”. Ao fazer escolhas profissionais (entrevista) relata seu desagrado pelos
entre planejamento e critérios políticos, esforços para expandir o crescimento
ressalta: “antes de mais nada, somos is- judaico nos setores árabes: “às vezes,
raelenses e funcionários do governo de consigo uma solução elegante, ao su-
Israel. Isso é o principal”. Da mesma gerir locais alternativos para o desenvol-
forma, E. Barzacchi (entrevista) pondera vimento urbano judaico proposto”. Da
sobre um esforço israelense de 1992- mesma forma, A. Mazor (entrevista) re-
1994, que ela co-dirigiu, para planejar vela como os planejadores metropoli-
a Jerusalém metropolitana: “Tentamos tanos de Jerusalém utilizaram, de modo
ser especialistas, mas éramos todos israe- inovador, o “modelo potencial” para
lenses. E acho que não é possível ser identificar as áreas de maior conflito terri-
objetivo. Podemos tentar ser científicos; torial urbano e descreve esse processo
não podemos ser objetivos”. como “o uso de medidas técnicas e profis-
sionais para tentar resolver o conflito.”
No entanto, nesse contexto partidá-
rio, os planejadores israelenses dão im- Era impressionante a maneira como
portância à sua capacidade para utilizar os planejadores israelenses podiam con-
perícia profissional de planejamento na viver confortavelmente com os dois
implementação dessas metas. S. Moshko- mundos – um político e outro com ên-
vits (entrevista), diretor de planejamento fase em critérios de planejamento obje-
israelense da administração da Cisjordâ- tivos. A relação pessoal dos planejadores
nia (West Bank), explica que sua meta é com o espírito litigioso político parecia
garantir “que a expressão política seja feita ambígua. Por um lado, havia frustração
da maneira mais profissional possível”. e impotência; por outro, atração e curio-
Da mesma forma, B. Hyman (entrevis- sidade. Alguns entrevistados se sentiam
ta) afirma que “tentamos tomar as de- frustrados pela constante politização de
cisões políticas sensatas do ponto de vista seu trabalho e compartimentalizavam
do planejamento profissional”. U. Ben- seu papel evidenciando metodologias
Asher (entrevista), planejador do distri- profissionais e argumentos funcionais.
to de Jerusalém para o Ministério do Isso lhes oferecia um “espaço seguro”
Interior, declara que sua meta é “man- no qual podiam enfrentar assuntos po-
ter princípios profissionais dentro desse lêmicos e emocionalmente carregados.
contexto politicamente determinado”. Por exemplo, I. Kimhi expressa a neces-
Essas técnicas de planejamento profis- sidade de “adiar questões de soberania;
sional são consideradas capazes de pro- em vez disso, vamos discutir nos próxi-
duzir um efeito moderador. I. Kimhi mos 5-10 anos sobre um aspecto práti-
(entrevista) revela essa percepção: “nos co – como podemos conviver”. Em
últimos 27 anos, temos feito uma afir- contraposição, outros planejadores (fre-
mação muito clara. Tudo o que foi feito, qüentemente os mesmos planejadores
porém, foi feito de uma maneira hu- em ocasiões diferentes) demonstravam
manitária. Sei como foi feito”. Da mesma atração por seu ambiente politicamente
Scott A. Bollens 21

litigioso. I. Kimhi (entrevista) relata o pla- partidário de planejamento. Por exem-


nejamento para uma Jerusalém recém- plo, S. Kaminker, ex-planejadora urba-
unificada depois de 1967: na da cidade, lidou com sua frustração
deixando o governo: “Se você é em-
Era uma situação muito feliz para pregado do governo, você tem de ser
um planejador – sentir-se necessário. um agente do governo. Se você não
Os políticos precisavam de nós – consegue viver dentro dessa estrutura,
que estrada abrir, que muro derru- então tem de sair”. Ela agora fornece
bar, onde ficarão os esgotos, o que assistência técnica de planejamento a
fazer. Eles simplesmente vinham a comunidades árabes, mas novamente
nós – tínhamos todas as informa- enfrenta um dilema profissional: “Com
ções. Estávamos preparados para um peso no coração, às vezes sou obri-
esse ato de reunificação. Foi uma gada a abandonar os princípios de pla-
época gloriosa. nejamento com que fui educada, em prol
das necessidades políticas [dos palesti-
Nem todos os planejadores israelen- nos], que, hoje em dia, são maiores”.
ses entrevistados aceitaram o estilo

Johannesburgo: planejamento eqüitativo e


reconstrução urbana

Os planejadores cresceram forne- básicos e uma parte proporcional do


cendo serviços para um cliente bem poder. Depois que as eleições democrá-
conhecido e familiar – branco e rico. ticas nacionais em 1994 entregaram o
(Tim Hart [entrevista] – SRK Enge- poder ao partido do Black African Natio-
nheiros) nal Congress e a Nelson Mandela, a espe-
rança e as oportunidades de mudanças
Johannesburgo sustenta uma região urbanas coexistiram com o conhecimen-
urbana espacialmente desfigurada e to que os criadores de políticas tinham
enormes disparidades econômicas e so- das dificuldades para melhorar as duras
ciais. A região apresenta duas faces: condições de muitos africanos negros.
uma, saudável, funcional e branca; a
outra, estressada, disfuncional e negra. A região metropolitana de Johannes-
De 1948 até o início da década de 1990, burgo (ou Witwatersrand central) con-
o White National Party desenvolveu e tava, em 1991, com 2,2 milhões de
implementou as políticas do apartheid, habitantes e, em 1997, com quase 4 mi-
ou desenvolvimento separado. Essa ideo- lhões (Central Statistical Service, 1992;
logia esmagadoramente excludente foi Greater Johannesburg Metropolitan
imposta à força à maioria de 70% de Council, 1998). No início da década de
negros do país, que buscavam direitos 1990, mais de 60% da população da
22 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

cidade era composta por negros (Mabin rados até dos precários serviços dos mu-
e Hunter, 1993). Municípios, cidades e nicípios e são muitas vezes erguidos em
assentamentos informais/favelas racial- áreas geotécnicas ou políticas vulnerá-
mente segregados caracterizam a paisa- veis (T. Mashinini, entrevista). Finalmen-
gem urbana (Figura 5). A distribuição te, desde 1991, um “acinzentamento”
de renda é brutalmente distorcida em (migração interna negra) significativo
Gauteng, uma província de Johannes- vem ocorrendo em vários bairros pobres
burgo. Uma proporção enorme de ne- da cidade de Johannesburgo, provo-
cessidades básicas – moradias, posse do cando uma concentração da miséria e
solo e serviços de água e saneamento – da população.
ainda não foi satisfeita. Há um déficit
estimado de 500 mil unidades habitacio- A política de apartheid urbana, fi-
nais formais na província (M. Narsoo, xada pelo Group Areas Act, dividiu cida-
entrevista.) Os africanos negros habitam des grandes e pequenas em áreas para
várias “geografias de miséria” diferen- ocupação exclusiva de grupos raciais
tes (Central Witwatersrand Metropolitan únicos. Para minimizar o contato entre
Chamber, 1993). Os dois principais lo- grupos, as raças eram separadas por
cais são os municípios de Alexandra (Fi- faixas isolantes de campo aberto, pe-
gura 6) e de Soweto, sendo este uma quenas cadeias de montanhas, zonas in-
fusão de 29 municípios espacialmente dustriais ou estradas de ferro (Davies,
separados do centro de Johannesburgo 1981). Os centros das cidades, as áreas
(South African Township Annual, 1993). ambientalmente estáveis ou prestigiosas
A construção de habitações formais de eram, de alguma forma, consideradas
tijolo e cimento foi intencionalmente zona branca; as áreas periféricas eram
reduzida, já que os negros urbanos eram determinadas como não-brancas, e seu
considerados temporários e indeseja- espaço era limitado (Christopher, 1994).
dos. Albergues rudimentares construí- Oficialmente, havia uma dualidade de
dos para abrigar operários das atividades processos de planejamento – um basea-
industriais e de mineração nas proximida- do nos delineamentos raciais das áreas,
des se tornaram áreas de intensa tensão o outro, na alocação do uso do solo.
política, étnica e física (Gauteng Provin- No entanto, na prática, havia harmonia
cial Government, 1995). Nos municí- entre o zoneamento racial e o planeja-
pios, casebres de fundo de quintal e mento do uso do solo. A ênfase tradi-
casebres isolados em terrenos desocu- cional do planejamento de cidades na
pados caracterizam-se por condições eficácia, na ordem e no controle foi usa-
quase desumanas de vida, ausência de da eficientemente para a segregação e
títulos de propriedade, padrões de abri- a ordenação étnica. Como tal, as metas
go e saneamento inadequados e falta e os métodos do Group Areas Act “tanto
de centros sociais e serviços. Fora dos derivaram das práticas de planejamento
municípios, além do perímetro urbano, estabelecidas quanto induziram os plane-
existem assentamentos de casebres in- jadores da cidade à implementação da
formais que estão espacialmente sepa- segregação racial (Mabin, 1992, p. 407).
Scott A. Bollens 23

No final, para muitos profissionais e pla- eficaz em alcançar suas metas,” declara
nejadores profundamente envolvidos um entrevistado (identidade não revela-
em sua implementação, “o apartheid da, a pedido). Contudo, o próprio suces-
provou ser uma maneira sedutora de so desse planejamento partidário criou
ver a cidade” (Parnell e Mabin, 1995, condições urbanas econômicas e fun-
p. 59-60). Em Johannesburgo, a profis- cionais insustentáveis que, com o passar
são de planejador de cidades percorreu do tempo, contribuíram para a queda
“o longo caminho da coerção e da domi- do sistema de apartheid, o qual esse
nação” (J. Muller, entrevista). “O planeja- planejamento tanto se empenhou em
mento do apartheid era terrivelmente apoiar.

Figura 5: “Grupos de áreas” raciais na Johannesburgo apartheid, 1991.

Fonte: Parnell and Pirie (1991). Reimpresso com permissão.


24 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

Figura 6: Barracos de invasores em Alexandra Township, Johannesburgo,


1995.

Fotografia : Scott A. Bollens.

Reconstruindo a política formador que mudou os parâmetros


urbana desde 1991 8 básicos de representação local e metro-
politana, a tomada de decisões, a parti-
De 1991 a 1995, líderes e planejadores cipação e a estrutura organizacional. As
urbanos se incumbiram de resolver questões de estruturação da cidade que
questões políticas centrais durante a tratavam do dia-a-dia e do boicote dos
transformação da governança local e negros aos pagamentos de aluguel e de
metropolitana. Funcionários do antigo serviços foram vinculadas, com êxito,
regime, representantes não-governa- por grupos não-governamentais e da
mentais e os provenientes das comuni- oposição, a questões essenciais de em-
dades negras anteriormente excluídas poderamento político e reorganização
colaboraram em um processo autotrans- de governos locais. As discussões trans-

8
A avaliação da política de Johannesburgo baseia-se em entrevistas com funcionários atuais
da Cidade de Johannesburgo, do Greater Johannesburg Transitional Metropolitan Council,
da Província de Gauteng e do governo central da África do Sul. Muitos estiveram envolvidos
de 1990 a 1995 na transformação negociada da governança local de Johannesburgo.
Scott A. Bollens 25

cendiam à ênfase única nos sintomas O ISF deve, portanto, procurar pro-
urbanos de polarização racial e miravam duzir padrões de complexidade ur-
a necessidade de transformar radical- bana que enfraqueçam a força das
mente a governança urbana baseada no áreas excludentes (e, portanto, de
apartheid. Após negociações difíceis e conflito) e procurar ativamente tur-
complexas, a governança local e metro- var as linhas divisórias zonais e con-
politana em Johannesburgo foi reestru- seguir a integração de áreas, até
turada para combinar politicamente então isoladas, no contexto geral do
governos locais anteriormente brancos sistema urbano. (Ibid., p. 11)
com municípios negros adjacentes.
Desde novembro de 1995, há maiorias Os princípios de estruturação da cida-
negras em todos os quatro governos de baseados em eqüidade pós-apartheid
locais e no Conselho Metropolitano de visam costurar as distorções urbanas do
Johannesburgo. apartheid. As facetas-chave dessa estru-
turação da cidade são (1) densificação
Concomitantemente com a reestru- e preenchimento do sistema urbano
turação política da governança local, existente e (2) melhora e renovação das
houve a formulação de políticas urbanas partes do sistema urbano que estão sob
alternativas para combater as manifes- estresse. A abordagem de densificação
tações espaciais do apartheid. A Central procura estimular o crescimento para
Witwatersrand Metropolitan Chamber dentro, para áreas urbanizadas com
(CWMC) foi estabelecida em 1991, em acesso a empregos, serviços e centros
parte para desenvolver uma visão para sociais, e preencher as zonas de isola-
o futuro desenvolvimento urbano na mento do apartheid. Essa abordagem
região de Johannesburgo. Essa visão – de “cidade compacta” seria um meio
a Interim Strategic Framework (ISF) – fundamental de aumentar as oportu-
acusa a profissão de planejamento por nidades para os negros entrarem no te-
sua ênfase no controle regulador que cido residencial e econômico da cidade
busca ordem, compartimentalização e “branca” (T. Hart, entrevista). A segun-
uniformidade. Levado à sua forma mais da abordagem concentra-se na melhora
extrema – o Group Areas Act –, o “mo- e renovação das áreas urbanas periféri-
nozoneamento cria ilhas de privilégios, cas sob estresse causado por habitações
direitos adquiridos e posse, que os mo- inadequadas, serviços de água e sanea-
radores defendem veementemente do mento ruins e problemas de saúde pú-
que consideram ser ‘invasões de estra- blica. Enquanto a primeira abordagem
nhos’” (Central Witwatersrand Metro- procura transformar o espaço do apar-
politan Chamber, 1993, p. 6). Como theid, a segunda, que visa aliviar as
alternativa, o ISF afirma que a forma muitas necessidades conjunturais nas
espacial que estimula a diversidade urba- periferias urbanas remotas, poderá, com
na vai moderar a tensão entre grupos. o passar do tempo, acentuar, não delibe-
radamente, a separação racial do apar-
O plano declara: theid. Outro problema constrangedor
26 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

nos esforços para reconstruir Johannes- africanos negros procuram mudanças nas
burgo é que, embora o velho Estado condições básicas de meio de vida, o mo-
centralizado do apartheid tenha desapa- delo tradicional de planejamento oferece
recido, os interesses econômicos e basea- prescrições orientadas para a reforma,
dos em classe e os da comercialização do porém basicamente conservadoras. Em
solo agora configuram a geografia urbana reação, surgiu um novo paradigma de
de forma a produzir resultados espaciais “planejamento de desenvolvimento ur-
semelhantes. O alto custo dos terrenos bano” que representa uma contestação
na parte central pobre da cidade, a opo- fundamental ao planejamento de cidade
sição da vizinhança e a dependência do tradicional.
setor privado para o fornecimento de
habitações estão obstruindo os esforços O planejamento de desenvolvimento
para incorporar a maioria em uma cida- urbano procura integrar o planejamento
de compacta que apresente “oportuni- espacial tradicional ao planejamento so-
dades urbanas” iguais a todos. cial e econômico; coordenar objetivos de
desenvolvimento por todos os governos,
A política urbana em meio à trans- setores e departamentos; e estabelecer
formação social exigiu uma auto-avalia- processos participativos que transferem
ção crítica das premissas básicas do poder aos pobres e marginalizados (L.
planejamento urbano. Um debate entre Boya, entrevista). Os planejadores de de-
criadores de políticas urbanas sobre a senvolvimento urbano têm histórias pes-
melhor maneira de participar da recons- soais decididamente diferentes das dos
trução de Johannesburgo põe em evi- planejadores de cidade tradicionais. Mui-
dência a existência de dois paradigmas, tos são negros africanos que desconhe-
com diferentes bases históricas e diferen- cem os fundamentos legais e reguladores
tes proponentes com histórias pessoais do controle de desenvolvimento físico,
distintas e visões contrastantes a respeito mas têm experiência em organizações
de metas de planejamento das habilida- não-governamentais e habilidades rela-
des necessárias para a sua prática. O tivas a desenvolvimento de comunida-
modelo tradicional de planejamento de des, mobilização social e negociação (L.
cidades na África do Sul, derivado de Boya, entrevista). O planejamento de
fundamentos britânicos e europeus, con- desenvolvimento urbano na África do
centrou-se no controle regulador e na Sul tem uma forte conotação de empo-
alocação espacial e foi administrado de deramento da maioria desapossada, de
um modo centralizado e hierárquico. acordo com J. Muller (entrevista). Pla-
Hoje em dia, não só esse paradigma de nejadores de cidade preparados tradicio-
plano técnico está desacreditado em virtu- nalmente falham nesse ponto. A falta de
de de seu alinhamento com o apartheid, consultas à comunidade no modelo de
como parece haver uma desconexão planejamento de cidade significava que
entre as necessidades socioeconômicas esses planejadores trabalhavam em salas
das áreas negras e esse modelo de con- fechadas ao desenvolverem as estruturas
trole de desenvolvimento. Enquanto os espaciais: “fazíamos ‘o que era melhor
Scott A. Bollens 27

para a sociedade’, e a sociedade tinha heid entram em contato, pode-se per-


de aceitar qualquer coisa que fosse feita,” ceber um choque de personalidades ou
recorda P. Waanders (entrevista). Em “zonas de conforto” – planejadores de
contraposição, os planejadores de desen- cidades arraigados a sistemas, regras e
volvimento urbano enfatizam seu papel regulamentos existentes; planejadores
de mediadores entre as necessidades co- de desenvolvimento urbano mais pro-
munitárias e os recursos do governo no ativos e propensos à experimentação.
processo de desenvolvimento (T. Malu- L. Boya (entrevista) indaga: “No futuro,
leke, T. Mashinini, entrevistas). O plane- quando modificarmos mais radicalmen-
jamento de desenvolvimento urbano, te o planejamento, estaremos dizendo,
porém, continua embrionário na África de certa forma, que ‘não há futuro para
do Sul, e seus métodos aparecem ape- a profissão de planejamento de cidades
nas de forma geral. “Ninguém foi prepa- tal como é estruturada atualmente.’ Qual
rado para fazer o trabalho que fazemos”, será a reação deles?”
diz T. Mashinini (entrevista).
As reações de planejadores de cida-
des tradicionais vão desde uma rigidez
Percepções dos planejadores defensiva a contra-ataques, incerteza e
aceitação produtiva da necessidade de
O planejamento de cidade e o planeja- mudar. “Muitos planejadores não con-
mento de desenvolvimento urbano são seguem atravessar o rio de mudanças por
parceiros inquietos em sua busca co- causa dessa bibliazinha que eles têm,”
mum por uma Johannesburgo mais declara P. Waanders, apontando para um
humanitária. O planejamento de cidade grosso livro de estatutos de regulamen-
precisa combater sua imagem de “velha tos de planejamento e zoneamento. Pre-
guarda,” suas ligações anteriores com a conceitos profissionais são empecilhos
implementação do apartheid e sua fal- para mudanças: “para muitos planejado-
ta de conexão com a comunidade. Ao res é bastante difícil abandonar a rotina
mesmo tempo, oferece metodologia e de preparar belos mapas e desenhos nas
capacitação técnica fundamentais à es- paredes. Isso faz parte do sistema de edu-
truturação da cidade. O planejamento cação que trazem com eles” (P. Waan-
de desenvolvimento urbano, por sua ders, entrevista). Outros planejadores de
vez, é fruto de um esforço comunitário cidades, porém, defendem o valor do
e foi coroado como o caminho a seguir planejamento tradicional. J. Eagle (en-
para a África do Sul urbana. No entanto, trevista) afirma que as críticas ao plane-
é uma prática recente cujas técnicas jamento tradicional são muito simplistas
ainda não estão claramente desenvol- por caracterizarem os planejadores como
vidas e que enfrenta a dificuldade de se técnicos passíveis de marginalização pe-
impor diante de demandas que reque- rante ativistas comunitários emergentes.
rem que resolva todos os problemas de Além disso, ela redireciona as críticas de
todos os tipos de pessoas. Quando as volta para o planejamento de desenvol-
duas faces do planejamento pós-apart- vimento urbano:
28 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

Por conhecerem o dia-a-dia, os novas técnicas de consulta comunitária


planejadores de desenvolvimento ou de questionar pressupostos e teorias
acham que podem lidar com ques- do passado é revigorante (J. Erasmus,
tões e problemas de planejamento. M. Gilbert, entrevistas).
Eles conhecem certos aspectos do
desenvolvimento, e isso é importante. Ironicamente, o novo paradigma de
Mas não podemos simplesmente en- planejamento de desenvolvimento urba-
tregar-lhes todo o planejamento, por- no “está dando uma certa credibilidade
que nem sempre eles compreendem a uma profissão que era desacreditada
a situação como um todo. (J. Eagle, neste país” (J. Muller, entrevista). Ele ofe-
entrevista) rece ao planejamento de cidades uma
oportunidade de ressuscitar por meio do
A defesa que o planejamento tradi- emprego de novas técnicas que apóiem
cional faz de sua contribuição singular o paradigma em ascensão. Todavia, o
para a estruturação da cidade é revelada planejamento de cidades precisa se afas-
em outras observações. Segundo I. Ka- tar de seu modo de controle em direção
dungure (entrevista), “especialistas co- a uma prática que permita o empode-
munitários e assistentes sociais são ramento e a construção de capacidades
necessários para fins de comunicação, em prol da justiça social. (J. Muller, en-
mas, no final das contas, alguém tem trevista). Além disso, ele precisa incor-
de comparecer para lidar com questões porar aos seus universos educacionais e
técnicas, como fornecimento de água e profissionais africanos negros cujas ex-
conhecimentos de engenharia.” Da periências locais têm sua origem no ati-
mesma forma, J. Muller (entrevista) afir- vismo comunitário e no seu papel de
ma que o planejamento tradicional é “facilitadores”. O planejamento de de-
necessário para oferecer uma percep- senvolvimento urbano talvez represente
ção de futuro aos esforços de revitaliza- um deslocamento de uma abordagem
ção comunitária, que são normalmente rígida de planejamento de cidades, que
reativos e relacionados a crises. A. Kot- visa à manutenção e ao desenvolvimento
zee (entrevista) chama a atenção para ordeiro, em direção a uma abordagem
uma contribuição importante do plane- alinhada com objetivos socioeconômi-
jamento tradicional – sua capacidade cos e de reconstrução. É uma tentativa
para manter os valores das propriedades histórica de criar um sistema de orien-
e as bases dos impostos municipais e para tação social que utiliza as lições de mo-
garantir a proteção de direitos de proprie- bilização social. Se as duas faces do
dade e investimento. Embora muitos dos planejamento pós-apartheid fossem
planejadores de cidades pesquisados ex- combinadas de maneira eficaz, prova-
pressassem incerteza profissional em meio velmente o resultado seria uma prática
a transformações institucionais, outros alterada e africanizada de planejamento
planejadores com preparo tradicional que baseado na comunidade e abrangeria
estão no governo enfrentam o desafio. tanto a mobilização social quanto a go-
Para eles, a possibilidade de desenvolver vernança racional.
Scott A. Bollens 29

Conclusões

Os exemplos de Belfast, Jerusalém e urbanas eficazes. Também se concentra-


Johannesburgo esclarecem como pla- ram em objetivos eqüitativos ao trata-
nejadores urbanos e criadores de políti- rem dos sintomas urbanos de conflitos
cas lidam com comunidades urbanas raciais do passado em seus esforços para
rivais que interagem diariamente através diminuir as disparidades raciais graves
de divisões sociais. Quatro estratégias de nas oportunidades e resultados urbanos.
planejamento urbano são representadas
aqui nas cidades tomadas como estu- Os desafios do planejamento urba-
dos de caso. Em Belfast, a estratégia do no na Irlanda do Norte, no Oriente
governo britânico é lidar pragmatica- Médio e na África do Sul instruem os
mente de modo neutro com os sinto- criadores de políticas quanto à interação
mas de conflito político. As questões da de políticas públicas com reivindicações
eqüidade protestante/católica são excluí- grupais no ambiente urbano. Lições de
das dos planos metropolitanos, as fór- planejamento e criação de políticas pa-
mulas de distribuição de habitação recem aplicáveis ao crescente número
pública utilizam procedimentos “daltô- de cidades multiétnicas americanas que
nicos”, e o planejamento da cidade se- não são polarizadas, mas que, às vezes,
para seus assuntos espaciais das questões se aproximam do ponto de ruptura ét-
sociais mais amplas de habitação, servi- nico. A meta comum da administração
ços sociais e relações étnicas. Em Jeru- urbana, tanto nos ambientes urbanos
salém, a utilização do planejamento e etnicamente polarizados quanto nos
da regulação do uso do solo como fer- não-polarizados, é satisfazer necessida-
ramentas territoriais constitui uma abor- des múltiplas sem sacrificar a alma ou a
dagem partidária às administrações e aos funcionalidade da vida urbana. Criado-
planejamentos urbanos. Critérios étni- res de políticas e planejadores em am-
cos se sobrepõem aos fatores funcionais bos os tipos de cidades devem tratar das
na distribuição de benefícios urbanos, complexas características espaciais, so-
tais como permissões para habitação e ciopsicológicas e organizacionais de co-
construção, estradas e serviços comuni- munidades urbanas potencialmente
tários. Johannesburgo exemplifica dois antagônicas. Devem mostrar-se sensíveis
papéis que os planejadores pós-apart- aos ambientes multiétnicos aos quais
heid desempenharam ao reconstruir a aplicam suas habilidades e às maneiras
cidade. Como solucionadores de pro- como grupos empoderados legitimam
blemas, ajudaram a ligar sintomas ur- e estendem seu poder. Os problemas e
banos a causas políticas essenciais, ao os princípios de estruturação de cida-
reconhecerem que o empoderamento des em cidades polarizadas oferecem
político dos negros e a reestruturação diretrizes para todos os que lidam com
do governo urbano eram pré-requisitos públicos múltiplos e visões étnicas de vida
necessários para a criação de políticas e função urbanas contrastantes.
30 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

Eis o que esta pesquisa sugere para e não a reduzir, as desigualdades urba-
os planejadores urbanos americanos a nas. Os governos devem evitar o como-
respeito de como tratar eficazmente as dismo de agir como forasteiros bondosos
reivindicações grupais e culturas múlti- em relação ao conflito racial e étnico.
plas em nossas cidades. Quando existem desigualdades de opor-
tunidade urbanas, a eqüidade não sig-
O planejamento não está imune a nifica replicação de políticas para cada
ser usado para objetivos de estruturação grupo urbano identificável, nem equilí-
da cidade que estão fundamentalmente brio numérico em outputs do governo.
em desacordo com a ética profissional. Significa, sim, que a política deve ser sen-
O planejamento pode ser usado eficaz- sível às necessidades exclusivas de cada
mente para fins partidários de tal modo comunidade e, ao mesmo tempo, ter
que exacerba o conflito étnico, cria con- em mente o bem geral da cidade. Como
dições de instabilidade urbana e, para- foi ilustrado pelo caso do planejamento
doxalmente, constrói a percepção da israelense para as áreas palestinas e
necessidade de mais partidarismo devi- como foi demonstrado pelas difíceis es-
do a seus efeitos adversos sobre as rela- colhas enfrentadas pelo planejamento
ções intergrupais. Em Jerusalém e na pós-apartheid na África do Sul, os pla-
Johannesburgo apartheid, os planeja- nejadores devem estar conscientes de
dores do setor público têm se portado que requisitos uniformes em relação à
como agentes de seus governos e, mes- propriedade da terra ou ao desenvol-
mo tendo escrúpulos pessoais, fazem o vimento urbano podem ter efeitos dis-
que seu empregador espera que façam. crepantes em culturas com valores e
O contexto institucional e organizacional costumes diferentes.
restringe as escolhas do planejador in-
dividual e oferece incentivos, tais como Pla nejadores de vem b uscar uma
segurança no emprego, para a fidelida- coexistência viável de grupos étnicos e
de constante às metas politicamente raciais. Em cada uma das cidades con-
embasadas de estruturação da cidade. tenciosas estudadas, as propostas que
postulam a eliminação da separação
O planejamento neutro, “daltônico”, espacial étnica são atacadas como sendo
embora considerado seguro, não só é ina- promotoras de uma agenda pró-inte-
dequado como também difícil de imple- gração impraticável. No entanto, para
mentar em circunstâncias urbanas de que a tolerância entre grupos seja esti-
valores e trajetórias grupais diferentes. mulada no ambiente urbano, deveria
O planejamento neutro aplicado em existir uma abordagem intermediária
ambientes urbanos de desigualdade es- em tais circunstâncias. A meta da política
trutural não produz resultados eqüitati- não deve ser a integração per se, mas
vos. O caso de Belfast demonstra que a uma sociedade “porosa” em que a diver-
política urbana que não leva em conta sidade pode coexistir e em que as comu-
as diferentes necessidades quantitativas nidades são livres para interagir se assim
e qualitativas de grupos tende a reforçar, desejarem. A meta da política urbana
Scott A. Bollens 31

deve ser a acomodação, e não necessa- portância da identidade comunitária, da


riamente a assimilação. Os criadores de territorialidade e do simbolismo étnicos
políticas urbanas não devem destacar os inseridos na paisagem urbana. Ao mes-
critérios de cor (e etnicidade), mas ava- mo tempo, deve ser capaz de tratar
liá-los para procurar acomodar as neces- construtivamente a etnicidade da cidade
sidades específicas de cada grupo étnico. quando essa etnicidade obstrui a funcio-
Em contraposição ao modelo tradicio- nalidade da região urbana em relação
nal de assimilação étnica e sua integra- a saúde pública, abrigo, serviços públi-
ção residencial implícita, essa abordagem cos e oportunidades econômicas. Isso
procuraria expandir a escolha de habi- significa que os planejadores da cidade
tação e a diferenciação residencial, para devem não só respeitar a territorialidade
que as diversas preferências e as neces- étnica onde ela constitui uma fonte sau-
sidades individuais pudessem ser satis- dável de coesão comunitária, como tam-
feitas. Ao criar esses ambientes urbanos, bém romper fronteiras territoriais étnicas
os planejadores devem atentar para o onde elas impõem grilhões que restrin-
fato de que, em todas as três cidades gem a funcionalidade e a vitalidade ur-
estudadas, muros e fronteiras (físicas ou banas.
psicológicas) criam uma sensação de se-
gurança, mas também tendem a refor- A educação e o treinamento em pla-
çar “o outro” como uma ameaça. nejamento devem reaparelhar e recon-
ceitualizar a profissão para que ela possa
O planejamento deve incorporar as- tratar mais eficazmente as diferenças
pectos sociopsicológicos de identidade étnicas/raciais. A educação de estudan-
comunitária em seu repertório profis- tes de planejamento e o treinamento de
sional. Para membros de um grupo étni- planejadores profissionais já em meio da
co urbano, necessidades psicológicas carreira devem prepará-los para lidar
relativas à viabilidade, identidade grupal com as questões complexas de planeja-
e simbolismo cultural podem ser tão im- mento em meio a diferenças étnicas. Nas
portantes quanto necessidades objetivas cidades estudadas, os planejadores is-
relativas a solo, habitação e oportuni- raelenses são guiados por imperativos
dades econômicas. Isso é ilustrado mais políticos em sua capacidade de recon-
acentuadamente no caso dos protestan- ceitualizar métodos e metas; os de Bel-
tes de Belfast, que acham que estão se fast demonstram uma sensibilidade às
sacrificando demais nos atuais esforços diferenças de grupos étnicos, mas ainda
de pacificação. O planejamento urbano não são suficientemente corajosos para
deve incorporar aspectos subjetivos e demonstrar isso em debates públicos; os
não-técnicos de identidade comunitária da Johannesburgo pós-apartheid estão
em seu arsenal, até agora direcionado se submetendo a uma auto-reflexão crí-
para métodos objetivos e racionais. O tica em meio à necessidade de equilibrar
planejamento urbano deve, em seus mobilização comunitária e regulação go-
métodos de análise e tomada de deci- vernamental. Os planejadores devem
sões, responder explicitamente pela im- ser mais bem preparados quanto a tais
32 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

tópicos, conforme a proposição de Fried- demonstram experimentação metodoló-


mann (1996) – segmentação espacial, gica, mas apenas internamente, enquan-
formas culturalmente específicas de vida to a aceitação de mudanças por parte
urbana, formação de identidade étnica dos planejadores israelenses depende
e diferenças interétnicas e inter-raciais. ainda, infelizmente, de uma redução das
Isso demanda workshops nas escolas de tensões políticas. 9 O planejamento deve
planejamento para envolver os estu- procurar compreender o terreno desco-
dantes nas análises e planejamentos nhecido de diferenças étnicas/raciais e
multidimensionais de bairros étnicos. estabelecer novos métodos que reco-
Estudantes e profissionais devem ser nheçam a diversidade. Comparado à
expostos aos rudimentos de análise de imparcialidade profissional, esse cami-
impacto étnico, levantamento qualitati- nho oferece mais riscos à profissão, mas,
vo, resolução de conflitos e técnicas de ao final, vai lhe proporcionar crescimen-
relações comunitárias. to, evolução e relevância acentuada
neste século.
Planejadores devem enfrentar os
desafios apresentados pelo multicultura- O planejamento – através das con-
lismo por meio de processos de apren- dições espaciais, econômicas e socio-
dizado social, não por meio de certeza psicológicas que ele cria na paisagem
metodológica. Diante da complexidade construída – pode desempenhar um pa-
multicultural, a profissão de planeja- pel significativo ao tratar de manifes-
mento não deve tentar recuar mediante tações locais de atitudes sociais mais
rigidez profissional, mas empregar pro- amplas relativas a etnicidade e raça . Os
cessos de interação social com grupos planejadores afetam os atributos do sis-
culturais para que seus valores e suas tema urbano – tais como viabilidade de
visões sejam incorporados no planeja- bairros étnicos, oportunidade econômi-
mento da cidade. Os planejadores da ca, integração socioeconômica e simbo-
Johannesburgo pós-apartheid ocupam lismo cultural – de diversas maneiras que
o ponto mais alto da curva de aprendi- podem independentemente produzir ou
zado social, porque introduzem aspectos impedir ambientes de vida multiétnicos
participativos e de desenvolvimento hu- mutuamente toleráveis. As políticas urba-
mano à sua tradicional ênfase espacial nas fazem diferença. Elas intensificaram
e reguladora. Os planejadores de Belfast a instabilidade urbana em Jerusalém por

9
Mesmo durante períodos de grande tensão política, porém, as interações intergrupais podem
continuar, pelo menos no nível dos profissionais. Em março de 2001, entre hostilidades que
começaram em novembro de 2000, o autor participou de um workshop conjunto de profis-
sionais urbanos israelenses e palestinos que examinava os desafios e as opções futuras para
o planejamento de uma Jerusalém de aceitação mútua. O workshop de março de 2001, que
ocorreu nos Países Baixos, originou-se de um esforço conjunto mais amplo, iniciado em
1995, que contribuiu com apoio técnico às negociações de paz de Camp David em 2000.
Cada grupo no workshop holandês tinha conexões extra-oficiais com seus respectivos go-
vernos, em vez de um patrocínio formal e explícito.
Scott A. Bollens 33

meio da consolidação de uma privação crescente de que os modos como as áreas


grupal relativa e endureceram a com- metropolitanas são estruturadas – inclu-
partimentalização étnica em Belfast, por sive muitos componentes espaciais sujei-
meio de sua ênfase em suspender e con- tos a políticas de planejamento – estão
ter conflitos. E, após expor a lógica nada ligados a muitos problemas básicos de
prática do apartheid urbano de ontem, nossa sociedade, entre eles, a desigual-
as políticas urbanas do futuro de Johan- dade de oportunidade, uma democra-
nesburgo provavelmente desempenha- cia anêmica e polarizada e a ansiedade
rão papéis atuantes no sucesso ou no étnica/racial. A segregação racial e étnica
fracasso da justiça social reparadora. As urbana, por exemplo, foi culpada por
cidades provavelmente não são a in- seus efeitos sociais difusos – por criar
fluência principal ou direta no nível de uma desigualdade de oportunidade que
tensão étnica ou racial entre grupos ur- tem um “efeito debilitante de longo prazo
banos rivais; no entanto, também não sobre a qualidade da democracia ame-
parecem refletir inerte e passivamente ricana” (Altshuler et al., 1999, p. 9), por
processos e atitudes sociais mais amplos. pôr em perigo o sonho americano de
As cidades têm importância, e, pela na- progredir baseado em esforços próprios
tureza dos bens urbanos sobre os quais (Hochschild, 1995) e por constituir “a
atuam, os planejadores têm influência. principal característica organizacional da
sociedade americana responsável pela
O planejamento tem a capacidade criação da classe inferior urbana” (Mas-
de ligar questões urbanas a problemas sey e Denton, 1993, p. 9). Por meio de
sociais básicos. O caso de Johannes- ações progressivas de planejamento re-
burgo demonstra como questões urba- lativas a habitação, desenvolvimento
nas podem ser ligadas a questões sociais econômico e comunitário, distribuição
mais amplas, à medida que problemas de serviços sociais e administração de
urbanos do dia-a-dia são ligados a ques- poluição ambiental, as oportunidades
tões políticas básicas. Esse potencial para metropolitanas podem ser estruturadas
vincular questões urbanas e nacionais de maneiras mais eqüitativas, para que
também existe em Belfast; lá, os toma- as sociedades separadas de hoje possam
dores de decisões precisam deliberar ser conectadas e uma democracia mais
quando devem decretar políticas locais saudável e verdadeira possa funcionar.
que procuram aumentar de forma as- As decisões de planejamento e desen-
sertiva a tolerância intergrupal e quais os volvimento nas cidades multiculturais
meios pelos quais esses esforços podem atuais podem estabelecer pontes e elos
ser conectados a processos de paz mais entre bairros étnicos/raciais ou criar fron-
amplos. teiras e muros simbólicos. As escolhas que
fazemos hoje transmitirão às gerações fu-
Essa conexão entre problemas urba- turas os símbolos emocionais sobre aquilo
nos e nacionais também é evidente nos a que aspiramos esperançosamente ou
Estados Unidos. Aqui, há uma percepção aceitamos resignadamente.
34 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

Agradecimentos

Sou profundamente grato às extraordi- Chris Rogerson (University of the Witwa-


nárias pessoas que bondosamente me tersrand, Johannesburgo), e ao constru-
deram acesso à mente e à alma da cida- tor de paz Meron Benvenisti. O projeto
de polarizada – Shalom, Salaam, Peace, não teria sido possível sem o apoio fi-
Siochain, Vrede, Uxola. Desejo agrade- nanceiro do United States Institute of
cer especificamente a Frederick Boal Peace e do Social Science Research
(Queen’s University, Belfast), Arie Sha- Council, Near and Middle East Program.
char (Hebrew University, Jerusalém),

Entrevistas citadas

Be l fa st Gerry Mulligan — Central Statistics and


Research Branch, Department of the
John Hendry — Professor of Town and Environment for Northern Ireland.
Regional Planning, Department of En-
vironmental Planning, Queen’s Univer- Bill Neill — Professor of Town Planning,
sity of Belfast. Department of Environmental Planning,
Queen’s University; Head of Royal Town
Dennis McCoy — Central Community Planning Institute, Northern Ireland.
Relations Unit, Central Secretariat,
Northern Ireland Office. Ronnie Spence — Permanent Secretary,
Department of the Environment for
William McGivern — Regional Director, Northern Ireland.
Belfast, Northern Ireland Housing Execu-
tive. Ken Sterrett — Town and Country Plan-
ning Services, Department of the Envi-
John McPeake — Assistant Director for ronment for Northern Ireland.
Strategy, Planning and Research, North-
ern Ireland Housing Executive. Paul Sweeney — Advisor, Department of
the Environment for Northern Ireland.
Bill Morrison — Superintending Plan-
ning Officer, Belfast Divisional Office, George Worthington — Head, Belfast
Town and Country Planning Service, Divisional Office, Town and Country
Department of the Environment for Planning Service, Department of the
Northern Ireland. Environment for Northern Ireland.
Scott A. Bollens 35

Jerusal é m Technion Institute; Principal, Urban Insti-


tute Ltd. (Tel Aviv).
Elinoar Barzacchi — City Engineer, Mu-
nicipality of Jerusalem (1989-1994); Shlomo Moshkovits — Director, Central
Codirector, Steering Committee, Metro- Planning Department, Civil Administra-
politan Jerusalem Plan; Professor of Ar- tion for Judea and Samaria, Beit El, West
chitecture, Tel Aviv University. Bank.

Uri Ben-Asher — District Planner, Jeru- Nira Sidi — Director, Urban Planning
salem District, Ministry of the Interior. Policy, Municipality of Jerusalem.

Meron Benvenisti — Author; former City Khalil Tufakji — Geographer, Arab Stud-
Councilman and Deputy Mayor, Munici- ies Society; member, Palestinian-Israeli
pality of Jerusalem; Director, West Bank Security Committee.
Data Project.

Yehonathan Golani — Director, Planning Johannesburgo


Administration, Ministry of Interior.
Lawrence Boya — Chief Director, Devel-
Benjamin Hyman — Director, Depart- opment Planning, Department of De-
ment of Local Planning, Ministry of the velopment Planning, Environment, and
Interior, Israel. Works, Gauteng Provincial Government.

Jan de Jong — Planning consultant, St. Jane Eagle — Planner, Strategic Issues
Yves Legal Resource and Development Division, City Planning Department,
Center, Jerusalem. Greater Johannesburg Transitional Me-
tropolitan Council.
Sarah Kaminker — Chairperson, Jeru-
salem Information Center; former urban Jan Erasmus — Acting Deputy Direc-
planner, Municipality of Jerusalem. tor, Regional Land Use, Johannesburg
Administration, Greater Johannesburg
Israel Kimhi — Jerusalem Institute of Is- Transitional Metropolitan Council.
rael Studies; city planner, Municipality
of Jerusalem (1963-1986). Morag Gilbert — Deputy Director, Stra-
tegic Issues Division, City Planning De-
Ibrahim Matar — Deputy Director, partment, Johannesburg Administration.
American Near East Refugee Aid, Jeru-
salem. Tim Hart — Urban geographer, SRK
Engineers, Johannesburg.
Adam Mazor — Co-author, Metropoli-
tan Jerusalem Master and Development Ivan Kadungure — Reconstruction and
Plan; Professor of Urban Planning, Development Programme Support Unit,
36 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

Office of the Chief Executive; town plan- Administration, Greater Johannesburg


ner, Soweto Administration, Johannes- Transitional Metropolitan Council.
burg Transitional Metropolitan Council.
John Muller — Professor and Head,
Alida Kotzee — Town and Regional Department of Town and Regional Plan-
Planner, Planning Services Directorate, ning, University of the Witwatersrand,
Department of Development Planning, Johannesburg.
Environment, and Works, Gauteng Pro-
vincial Government. Monty Narsoo — Director of Housing,
Department of Local Government and
Themba Maluleke — Project Manager, Housing, Gauteng Provincial Govern-
Katorus, Department of Local Govern- ment.
ment and Housing, Gauteng Provincial
Government. Paul Waanders — Chief Director, Plan-
ning Services, Department of Develop-
Tshipso Mashinini — Deputy Director, ment Planning, Environment and Works,
Urbanization Department, Johannesburg Gauteng Provincial Government.

Referências

ALEXANDER, E.; ALTERMAN, R.; LAW-YONE, H. AMIRAV, M. Israel’s Policy in Jerusalem


Evaluating plan implementation: the na- Since 1967. Center on Conflict and
tional statutory planning system in Israel. Negotiation: Stanford University, 1992.
Progress in Planning, 20(2), p. 99-172, (Working Paper Series No. 102).
1983.
BAUM, H. Ethical behavior is extraordi-
ALTSHULER, A. et al. (Ed.). Governance nary behavior; It’s the same as all other
and Opportunity in Metropolitan Amer- behavior – a case study in community
ica. Washington, DC: National Acade- planning. Journal of the American Plan-
my Press, 1999. ning Association, 64, p. 411-423, 1998.

AMERICAN PLANNING ASSOCIATION. A Plan- __________. Culture matters – but it


ners’ Forum – Social Equity and Econom- shouldn’t matter too much. In: BURAYIDI,
ic Development in Planning. Chicago: M. (Ed.). Urban Planning in a Multicul-
APA, 1992. tural Society. Westport, CT: Praeger, 1999.

__________. Planning and Community BEAUREGARD, R. Neither embedded or


Equity. Chicago: APA, 1994. embodied: critical pragmatism and iden-
Scott A. Bollens 37

tity politics. In: BURAYIDI, M. (Ed.). Ur- B’T SELEM . A Policy of Discrimination:
ban Planning in a Multicultural Society. Land Expropriation, Planning, and
Westport, CT: Praeger, 1999. Building in East Jerusalem. Jerusalem:
B’Tselem, 1995.
BENVENISTI, M. Conflicts and Contradic-
tions. New York: Villard Books, 1986. BUILDING DESIGN PARTNERSHIP. Belfast Ur-
ban Area Plan. Belfast: Building Design
__________. Intimate Enemies: Jews and Partnership, 1969.
Arabs in a Shared Land. Berkeley: Uni-
versity of California Press, 1995. BURAYIDI, M. (Ed.). Urban Planning in a
Multicultural Society. Westport, CT:
__________. City of Stone: The Hidden Praeger, 1999.
History of Jerusalem. Berkeley: Univer-
sity of California Press, 1996. CENTRAL STATISTICAL SERVICE. South Afri-
can Statistics 1991. Pretoria: Central Sta-
BOAL, F. Belfast: Hindsight on foresight – tistical Service, 1992.
planning in an unstable environment. In:
DOHERTY, P. (Ed.). Geographical Perspec- CENTRAL WITWATERSRAND METROPOLITAN
tives on the Belfast Region. Newtownab- CHAMBER. An Interim Strategic Frame-
bey, NI: Geographical Society of Ireland, work for the Central Witwatersrand.
1990. Document 2: Policy Approaches. Johan-
nesburg: Author, 1993.
__________. Belfast: a city on edge. In:
CLOUT, H. (Ed.). Europe’s Cities in the CHRISTOPHER, A. The Atlas of Apartheid.
Late Twentieth Century. Amsterdam: London: Routledge, 1994.
Royal Dutch Geographical Society,
1994. CUMMINGS, S. Left Behind in Rosedale:
Race Relations and the Collapse of Com-
BOAL, F.; DOUGLAS, J. N. (Ed.). Integra- munity Institutions. Boulder, CO: West-
tion and Division: Geographical Perspec- view Press, 1998.
tives on the Northern Ireland Problem.
London: Academic Press, 1982. DAVIES, R. The spatial formation of the
South African city. GeoJournal, Supple-
BOLLENS, S. Urban Peace-building in Di- mentary Issue, 2, p. 59-72, 1981.
vided Societies: Belfast and Johannes-
burg. Boulder, CO: Westview Press, DEPARTMENT OF THE E NVIRONMENT FOR
1999. NORTHERN IRELAND. Northern Ireland:
Regional Physical Development Strate-
___________. On Narrow Ground: Ur- gy 1975-95. Belfast: Her Majesty’s Sta-
ban Policy and Conflict in Jerusalem and tionery Office, 1977.
Belfast. Albany: State University of New
York Press, 2000. __________. Pre-inquiry Response to
38 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

CTA’s Objections to the Draft BUAP. Bel- case of Frankfurt-am-Main. Journal of


fast: Her Majesty’s Stationery Office, 1988. the American Planning Association, 63,
p. 61-78, 1997.
__________. Belfast Urban Area Plan
2001: Adoption Statement. Belfast: Her G AU T EN G P RO VI N C I AL G O VERN M E N T .
Majesty’s Stationery Office, 1989. Progress Report: Implementation of
Housing Investment Plan, Hostels Re-
__________. Belfast Urban Area Plan development Programme, Flashpoints
2001. Belfast: Her Majesty’s Stationery and RDP. Pretoria: Gauteng Provincial
Office, 1990. Government, 27 July 1995.

DOUGLAS, J. N.; BOAL, F. The Northern GILLETTE JR., H. Between Justice and
Ireland problem. In: BOAL, F.; DOUGLAS, Beauty: Race, Planning, and the Failure
J. N. (Ed.). Integration and Division: of Urban Policy in Washington, D.C.
Geographical Perspectives on the North- Baltimore: Johns Hopkins University
ern Ireland Problem. London: Academic Press, 1995.
Press, 1982.
GOLDSMITH, W.; BLAKELY, E. Separate
ELON, A. Jerusalem: City of Mirrors. Bos- Societies: Poverty and Inequality in U.S.
ton: Little, Brown and Company, 1989. Cities. Philadelphia: Temple University
Press, 1992.
FORESTER, J. Planning in the Face of Power.
Berkeley: University of California Press, GREATER JOHANNESBURG M ETROPOLITAN
1989. COUNCIL. Greater Johannesburg Metro-
politan Council Integrated Metropolitan
FRIEDMANN , J. Planning in the Public Development Plan, 1997/98. Johannes-
Domain: From Knowledge to Action. burg: Greater Johannesburg Metropol-
Princeton, NJ: Princeton University itan Council, 1998.
Press, 1987.
HADFIELD, B. The Northern Ireland Con-
__________. The core curriculum in plan- stitution. In: Hadfield, B. (Ed.). North-
ning revisited. Journal of Planning Edu- ern Ireland: Politics and Constitution.
cation and Research, 15(2), p. 89-104, Buckingham, UK: Open University
1996. Press, 1992.

FRIEDMANN, J.; KUESTER, C. Planning edu- HARTMAN, C. On poverty and racism, we


cation for the late twentieth century: an have had little to say. Journal of the Amer-
initial inquiry. Journal of Planning Educa- ican Planning Association, 60, p. 158-
tion and Research, 14(1), p. 55-64, 1994. 159, 1994.

FRIEDMANN, J.; LEHRER, U. A. Urban pol- HILL, M. Urban and regional planning in
icy responses to foreign in-migration: The Israel. In: BILSKI, R. (Ed.). Can Planning
Scott A. Bollens 39

Replace Politics? The Israeli Experience. its planning apparatus. Journal of South-
The Hague: Martinus Nijhoff., 1980. ern African Studies, 18(2), p. 405-429,
1992.
HOCH, C. Racism and planning. Journal
of the American Planning Association, MABIN, A.; HUNTER, R. Report of the re-
59, p. 451-460, 1993. view of conditions and trends affecting
development in the PWV (Final report).
HOCHSCHILD, J. Facing Up to the Amer- 1993. (Unpublished manuscript).
ican Dream: Race, Class, and the Soul
of the Nation. Princeton, NJ: Princeton MARCUSE, P. Not chaos, but walls: post-
University Press, 1995. modernism and the partitioned city. In:
WATSON, S.; GIBSON, K. (Ed.). Postmod-
JUDD, D.; SWANSTROM, T. City Politics: Pri- ern Cities and Spaces. Cambridge, MA:
vate Power and Public Policy. 3. ed. New Blackwell, 1995.
York: Longman, 2002.
MASSEY, D.; DENTON, N. American Apart-
KAMINKER, S. East Jerusalem: a case study heid: Segregation and the Making of the
in political planning. Palestine-Israel Underclass. Cambridge, MA: Harvard
Journal, 2(2), p. 59-66, 1995. University Press, 1993.

KRUMHOLZ, N.; CLAVEL, P. Reinventing MATTHEW, Sir R. H. Belfast Regional Sur-


Cities: Equity Planners Tell their Stories. vey and Plan 1962. Belfast: Her Majes-
Philadelphia: Temple University Press, ty’s Stationery Office, 1964.
1994.
MIER, R. Some observations on race in
KRUMHOLZ, N.; FORESTER, J. Making Eq- planning. Journal of the American Plan-
uity Planning Work: Leadership in the ning Association, 60, p. 235-240, 1994.
Public Sector. Philadelphia: Temple Uni-
versity Press, 1990. MORLEY, D.; SHACHAR, A. Epilogue: re-
flections by planners on planning. In:
LOUKAITOU-SIDERIS, A. Urban form and MORLEY, D.; SHACHAR, A. (Ed.). Planning
social context: cultural differentiation in the in turbulence. Jerusalem: Magnes Press,
uses of urban parks. Journal of Planning Hebrew University, 1986.
Education and Research, 14(2), p. 89-
102, 1995. MUNICIPALITY OF JERUSALEM. East Jerusa-
lem: conflicts and dilemmas – urban
LUSTICK, I. Stability in deeply divided so- coping in the east of the city. Apr. 1994.
cieties: consociationalisation vs. control. (Unpublished manuscript).
World Politics, 31, p. 325-344, 1979.
__________. Statistical Yearbook 1996.
MABIN, A. Comprehensive segregation: Jerusalem: The Jerusalem Institute for
the origins of the Group Areas Act and Israel Studies, 1997.
40 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

MURTAGH, B. Ethnic Space and the Chal- Equity. Chicago: American Planning
lenge to Land Use Planning: A Study of Association, 1994.
Belfast’s Peace Lines. Jordanstown, NI:
Centre for Policy Research, University PLANNING ACCREDITATION BOARD. The Ac-
of Ulster, 1994. creditation Document: Criteria and Pro-
cedures of the Planning Accreditation
NORDLINGER, E. Conflict Regulation in Di- Board. Des Moines, IA: Planning Accred-
vided Societies. Boston: Center for In- itation Board, 2001.
ternational Affairs, Harvard University,
1972. QADEER, M. Pluralistic planning for mul-
ticultural cities: the Canadian practice.
NORTHERN IRELAND HOUSING EXECUTIVE. Journal of the American Planning Asso-
Coping with Conflict: Violence and Urban ciation, 63, p. 481-494, 1997.
Renewal in Belfast. Belfast: Northern Ire-
land Housing Executive, 1988. ROMANN , M.; WEINGROD, A. Living To-
gether Separately: Arabs and Jews in
NORTHERN IRELAND REGISTRAR GENERAL. Contemporary Jerusalem. Princeton, NJ:
Census of Population 1991: Belfast Ur- Princeton University Press, 1991.
ban Area Report. Belfast: Her Majesty’s
Stationery Office, 1992. ROTHMAN, J. From Confrontation to Co-
operation: Resolving Ethnic and Region-
PALESTINIAN CENTRAL BUREAU OF STATISTICS. al Conflict. Newbury Park, CA: Sage,
Palestinian Population, Housing and 1992.
Establishment census - 1997. Disponível
em: <http://www.pcbs.org>, 1998. SACK, R. Territorial bases for power. In:
BURNETT, A.; TAYLOR, P. (Ed.). Political
PARNELL, S.; MABIN, A. Rethinking urban Studies from Spatial Perspectives. New
South Africa. Journal of Southern Afri- York: John Wiley, 1981.
can Studies, 21(1), p. 39-61, 1995.
S ANDERCOCK, L. Towards Cosmopolis:
PARNELL, S.; PIRIE, G. Johannesburg. In: Planning for Multicultural Cities. Chiches-
LEMON, A. (Ed.). Homes Apart: South ter, UK: John Wiley and Sons, 1998.
Africa’s Segregated Cities. Bloomington:
University of Indiana Press, 1991. SEN, S. Some thoughts on incorporating
multiculturalism in urban design educa-
PEACE NOW. Settlement Watch – Report tion. In: BURAYIDI, M. (Ed.). Urban Plan-
no. 9. Disponível em: <http://www. ning in a Multicultural Society. Westport,
peace_now.org>, 1997. CT: Praeger, 1999.

PINEL, S. Social impact assessment sen- SENNETT, R. The spaces of democracy.


sitizes planning. In: AMERICAN PLANNING In: BEAUREGARD, R.; BODY-GENDROT, S.
ASSOCIATION. Planning and Community (Ed.). The Urban Moment: Cosmopoli-
Scott A. Bollens 41

tan Essays on the Late 20th-century Planning Education and Research, 15(3),
City. Thousand Oaks, CA: Sage, 1999. p. 171-182, 1996.

S OUTH AFRICAN T OWNSHIP ANNUAL. Jo- __________. Redevelopment and Race:


hannesburg: IR Information Surveys. Planning a Finer City in Postwar Detroit.
1993. Baltimore: Johns Hopkins University
Press, 1997.
SUGRUE, T. The Origins of the Urban Cri-
sis: Race and Inequality in Postwar De- UNITED CHURCH OF CHRIST COMMISSION FOR
troit. Princeton. NJ: Princeton University RACIAL JUSTICE. Toxic Wastes and Race in
Press, 1996. the United States: A National Report on
the Racial and Socio-economic Charac-
THOMAS, H.; KRISHNARAYAN , V. “Race”, teristics of Communities with Hazardous
disadvantage, and policy processes in Waste Sites. New York: United Church
British planning. Environment and Plan- of Christ, 1987.
ning A, 26(12), p. 1891-1910, 1994.
YIFTACHEL, O. The dark side of modern-
THOMAS, J. Planning history and the Black ism: planning as control of an ethnic
urban experience: linkages and contem- minority. In: WATSON , S.; GIBSON , K.
porary implications. Journal of Planning (Ed.). Postmodern Cities and Spaces.
Education and Research, 14(1), p. 1-11, Cambridge, MA: Blackwell, 1995.
1994.
__________. Planning and social control:
__________. Educating planners: unified exploring the dark side. Journal of Plan-
diversity for social action. Journal of ning Literature, 12(4), p. 395-406, 1998.

Resumo Abstract
Cidades no mundo inteiro estão enfren- Cities across the world are confronted
tando uma crescente diversidade étnica by a growing ethnic and racial diversity
e racial que contesta o modelo tradicio- that challenges the traditional model of
nal de intervenção de planejamento urban planning intervention focused on
urbano centrado em diferenças indivi- individual, not group, differences. This
duais e não grupais. Este artigo examina article examines urban planning in three
o planejamento urbano em três ambien- ethnically polarized settings – Belfast,
tes etnicamente polarizados – Belfast, Jerusalem, and Johannesburg – to as-
Jerusalém e Johannesburgo –, para ave- certain how planners treat complex and
riguar como planejadores lidam com emotional issues of ethnic identity and
questões complexas e emocionais de group-based claims. Four models of
42 Planejamento urbano e conflito intergrupal: confrontando um interesse público dividido

identidade étnica e reivindicações gru- planning intervention – neutral, partisan,


pais. Quatro modelos de intervenção de equity, and resolver – are examined
planejamento – neutro, partidário, eqüi- through interviews with over 100 plan-
tativo e resolutivo – são examinados a ners and policy officials. The article out-
partir de entrevistas com mais de 100 pla- lines the significant implications of these
nejadores e funcionários encarregados cases in terms of the limitations and po-
de programas de ação. O artigo esboça tential contributions of American urban
as implicações significativas desses casos planning to effectively accommodate
em termos de limitações e contribuições ethnic and cultural differences.
potenciais ao planejamento urbano ame-
ricano para acomodar eficazmente dife-
renças étnicas e culturais.

Palavras-chave : conflito urbano; iden- Keywords: urban conflict; ethnical iden-


tidade étnica; raça. tity; race.

Scott A. Bollens é professor de planejamento urbano e regional no Departa-


mento de Planejamento, Política e Projeto da Universidade da Califórnia, Irvine
(EUA). PhD pela Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill (EUA), sua
pesquisa envolve etnicidade e políticas públicas, regionalismo e planejamento inter-
governamental.
Além de rótulos: planejamento
pragmático em conflitos de
turismo ambiental com várias
partes interessadas
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper

Ao ingressarmos no século XXI, as esta- e garantir sua integridade ecológica. Essas


tísticas da World Tourism Organization são áreas complexas onde o planejamen-
revelam um forte crescimento do turis- to freqüentemente é uma atividade po-
mo, com mais de 600 milhões de via- lítica contestada que envolve várias partes
gens turísticas internacionais em 2000, interessadas interdependentes e diversos
um aumento sobre os 443 milhões de interesses e valores possivelmente diver-
1990. Uma das várias formas de turis- gentes em relação ao ambiente natural.
mo que atraem a preferência dos con- Como demonstram o planejamento am-
sumidores modernos e dos empresários biental e a literatura sobre o planeja-
do turismo é a do turismo baseado na mento do turismo, os temas variam do
natureza e no divertimento (por exemplo, desenvolvimento (turismo) sustentável e
ecoturismo). Ele persistentemente pene- da participação do público nas decisões
tra nas regiões remotas do mundo intei- sobre o ambiente (Getz e Jamal, 1994;
ro, ao mesmo tempo que o crescimento Murphy, 1985; Stabler, 1997; Tonn,
não dá sinais de arrefecimento nas pai- English e Travis, 2000) à administração
sagens icônicas como as dos Parque Na- do impacto e do crescimento, ao planeja-
cional de Yellowstone (EUA) e Parque mento e à avaliação de riscos (por exem-
Nacional de Banff (Canadá). Os pla- plo, Gill e Williams, 1994; O’Brien, 2000;
nejadores e os administradores desses Palerm, 2000; Weston, 2000). Todavia,
parques nacionais e de outras áreas pro- a participação do público pode variar de
tegidas enfrentam crescentes desafios gestos perfunctórios a um envolvimento
para administrar a popularidade dessas genuíno dos moradores da área (Arnstein,
áreas naturais como destinos turísticos 1969; Hughes, 1995), e o desenvolvi-

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIX, Nos 1-2, 2005, p. 1-30
2 Além de rótulos

mento de mecanismos eficazes para o que respaldam as estruturas de plane-


envolvimento de partes interessadas jamento utilizadas. Neste artigo, anali-
permanece uma questão relevante seja samos os temas filosóficos relacionados
para a prática ou para as pesquisas. O aos processos que dizem respeito ao pla-
aumento do pluralismo de grupos de nejamento baseado nas partes interessa-
interesse, assim como um maior reco- das e na busca por soluções de conflitos
nhecimento da interdependência de nos pontos turísticos localizados em par-
partes interessadas, dos conflitos e das ques nacionais. Nosso objetivo é triplo:
diferenças de valores no desenvolvimen-
to sustentável de domínios de ecologia 1. defender a abordagem neopragmá-
humana, tudo isso contribui para a con- tica aos processos de planejamento
solidação desse foco em um envolvi- em terras caracterizadas por confli-
mento dos setores públicos e privados tos históricos entre as diversas partes
no turismo e nas decisões sobre o meio interessadas. Nossa abordagem neo-
ambiente. Conseqüentemente, os pro- pragmática (ver a seguir) acompa-
cessos para obter consenso entre vários nha os proponentes do pragmatismo
grupos estão sendo cada vez mais utili- contemporâneos, tais como Richard
zados em negociações sobre conflitos Bernstein (1992) e Richard Rorty
decorrentes de recursos naturais. Os (cf. Menand, 1997) e aproveita tam-
pesquisadores, os planejadores e os pro- bém alguns conceitos primordiais de
fissionais já começaram a procurar so- John Rawls (1985, 1993);
luções para questões referentes a esses
processos, tais como a representação 2. ilustrar de forma concreta os argu-
das partes interessadas, a negociação, a mentos teóricos e filosóficos para
estruturação e o design institucional (cf. essa abordagem com uma pesquisa
Cormick et al., 1996; Innes et al., 1994; da Banff-Bow Valley Round Table
Westley, 1995; Healey, 1997). (BBVRT), um processo multisseto-
rial iniciado para procurar resolver
Embora os planejamentos baseados conflitos de desenvolvimento, eco-
na comunidade (community based plan- lógicos e de uso envolvendo vários
ning) e os planejamentos centrados nas grupos de partes interessadas em
partes interessadas (stakeholder-centered um ponto de destino do turismo
planning) sejam apoiados por muitos internacional, o World Heritage Site
administradores de recursos naturais do Banff National Park, Canadá; e
(por exemplo, a agência federal do Ca-
nadá, a Parks Canadá, possui políticas 3. incentivar implicações de ordem prá-
de envolvimento público adequadas), os tica à abordagem neopragmática,
processos específicos por meio dos quais para lidar com conflitos relacionados
as decisões estratégicas são adotadas e ao desenvolvimento do turismo e ao
implementadas em tais colaborações não planejamento estratégico em áreas
são, em geral, bem compreendidas, nem protegidas.
o são, tampouco, as hipóteses filosóficas
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 3

Como foi discutido por Stein e Harper mento de consenso ou para os proces-
(1998), o neopragmatismo é uma res- sos de tomadas de decisão em reuniões.
posta alternativa ao universalismo do
modernismo e ao relativismo do pós- Principalmente quando se trata de
modernismo. Ele tenta preservar as vir- buscar soluções para conflitos relacio-
tudes da racionalidade, da verdade e dos nados ao turismo ambiental em locais
valores objetivos do Iluminismo, mas os como, por exemplo, o Parque Nacional
fundamenta na situação e no contexto de Banff, argumentamos que a busca
específico de modo que as histórias e as por acordos sobre definições ou sobre
vozes dos grupos não dominantes pos- princípios gerais abstratos não deveria
sam ser ouvidas e eles possam participar ser o ponto de partida da discussão,
de um diálogo aberto e das tomadas de porque a atenção pode concentrar-se
decisão. Ele recusa fundamentações a nas diferenças históricas e, por conse-
priori, é antiessencialista e não-dualista guinte, imobilizar as pessoas em campos
(no sentido da compreensão de distin- opostos. Ela também é contraprodutiva
ções como fins em um continuum e não porque cria uma abordagem de plane-
como dicotomias absolutas). O neo- jamento hierárquica na qual as ações e
pragmatismo utiliza a ciência como uma as políticas de desenvolvimento são li-
fonte legítima de autoridade, mas evita mitadas por definições abrangentes e
a tendência dos pragmatistas deweyanos princípios abstratos; o diálogo e o apren-
de se apoiarem indiscriminadamente na dizado conjunto entre os participantes
ciência como autoridade principal. poderão produzir resultados melhores
se eles não estiverem confinados por tais
Essa perspectiva também adota uma hierarquias. Uma abordagem neoprag-
abordagem muito menos estruturada ao mática sugere que, em vez de serem
planejamento e às tomadas de decisão determinadas no início, as definições de
do que a defendida por muitas aborda- conceitos cruciais deveriam emergir por
gens de planejamento convencionais, tais meio do diálogo e do compartilhamen-
como o modelo de planejamento racio- to de informações durante o processo e
nal abrangente (rational comprehensive que descrições específicas deveriam
planning model) e as abordagens formais substituir termos peculiares que podem
de planejamento estratégico (por exem- ser polêmicos ou problemáticos. A to-
plo, Ansoff, 1988). A abordagem ao pla- mada de decisão é similarmente prag-
nejamento se apóia nas técnicas muitas mática, as discussões são direcionadas
vezes citadas como planejamento comu- para a procura e o desenvolvimento
nicativo – por exemplo, o planejamento conjunto de ações e/ou políticas especí-
progressivo de Forester (1989), a obten- ficas para determinados temas sobre os
ção de consenso de Innes et al. (1994) e quais há um certo entendimento. Como
o planejamento colaborativo de Healey tais, os debates filosóficos e metafísicos
(1997) –, mas procura fornecer uma base desempenham um papel insignificante
teórica mais ampla. Sugere também cer- ou quase nulo nesse processo de plane-
tos requintes práticos para o estabeleci- jamento mais flexível e não-hierárquico.
4 Além de rótulos

Este artigo oferece apoio teórico e rica da “rotulação” e dos problemas rela-
empírico para essa abordagem neoprag- cionados às categorias é então apresen-
mática ao planejamento colaborativo e tada na seção subseqüente e ilustrada
à resolução de conflitos. Na próxima por exemplos obtidos na pesquisa con-
seção, forneceremos uma breve visão duzida no BBVRT. As recomendações
geral do planejamento de turismo cola- de procedimentos, as implicações para
borativo, seguido de um curto relato do o planejamento de várias partes interes-
contexto do conflito do Parque Nacio- sadas e os processos colaborativos são
nal de Banff (Canadá) e do estudo de apresentados na seção final.
caso BBVRT. Uma conceitualização teó-

Planejamento colaborativo em pontos de destino


ambientais
Em um trabalho seminal, Gray (1989) públicas e de recursos naturais (Pasquero,
caracteriza a colaboração como um pro- 1991; Susskind, 1994; Daniels e Walker,
cesso flexível e dinâmico que envolve 1996; Selin e Beason, 1991). Nos últi-
diversas partes interessadas em tomadas mos dez anos, no Canadá, as políticas e
de decisão conjuntas para tratar de as- os mecanismos para o envolvimento pú-
suntos no campo do problema. Uma blico na gestão dos recursos naturais – e
parte interessada é definida aqui como nos conflitos relacionados ao turismo –
“qualquer pessoa ou grupo que possa tornaram-se cada vez mais populares,
afetar ou esteja afetado pelo êxito de uma inclusive com audiências públicas e
ação realizada por uma organização” mesas-redondas com a participação de
(Freeman, 1984, p. 52). As abordagens várias partes interessadas (Richardson,
colaborativas concentradas nas partes Sherman e Gismondi, 1993; Cormick et
interessadas são utilizadas por pesquisa- al., 1996; Driscoll, 1993). Essa evolução
dores de diversas organizações, tais como corre paralela às pressões por desenvol-
Gray (1989), Roberts e Bradley (1991), vimento e visitação em áreas protegidas,
Huxham (1996a, 1996b), e Phillips, como, por exemplo, o Parque Nacional
Lawrence e Hardy (2000). Tais proces- de Banff, no Canadá, e alimenta a con-
sos geralmente se baseiam na busca por trovérsia sobre o uso e a administração
pontos comuns ou consenso sobre pla- dos parques nacionais.
nos, políticas e ações, e utilizam técnicas
como a elaboração de visões de futuro Em “Canadian Pacific’s Rockies”,
estratégicas (Mintzberg, 1994; Weisbord Bella (1987) relatou as tensões nos par-
et al., 1992). As negociações e as cola- ques nacionais do Canadá, onde as em-
borações entre grupos foram iniciadas presas do setor ferroviário tinham a
em várias escalas, inclusive as globais e primeira opção na escolha por locais para
as nacionais, e, recentemente, foram empreendimentos comerciais dentro do
aprovadas na administração de terras Parque Nacional de Banff (ver Figura 1)
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 5

Figura 1: Mapa de localização: Parque Nacional de Banff e área de estudo de caso.

e em todos os outros parques nacionais. do Parque Nacional de Banff até hoje.


As lutas conservacionistas que levaram Nas palavras de um ativo grupo ambien-
ao National Parks Act na década de 1930 tal no parque (também presente como
incluíram, no decreto, a declaração de grupo participante do BBVRT), “o de-
que os parques deveriam permanecer bate não é sobre manter as pessoas fora
“intactos para as gerações futuras”. No do parque. Ele é sobre a ganância que
entanto, os conservacionistas não argüi- visa destruir o mais bonito símbolo da
ram “exclusivamente sobre o valor in- herança silvestre do Canadá” 1. Os pla-
trínseco da paisagem”, mas “utilizaram nejadores e os administradores de par-
um argumento econômico para neutra- ques estão muito vulneráveis, presos
lizar um outro” e insistiram no potencial entre as necessidades ecológicas dos par-
de turismo da belíssima paisagem, de ques, entre a necessidade política de for-
forma que o novo decreto “fortaleceu necer receitas para os cofres do governo
um sistema e uma filosofia de parques e entre as necessidades dos turistas, dos
lucrativos” (ibid., p. 58). Essa história adeptos das recreações, dos empresários
repleta de vicissitudes dos parques nacio- e das outras pessoas envolvidas com o
nais do Canadá se reflete no conflito “sistema de geração de turismo” (Britton,
entre o desenvolvimento e a preservação 1991). A necessidade de novas formas
1
W. Francis, representante da divisão de Alberta da Canadian Parks and Wilderness Society.
Carta ao editor, Banff Crag and Canyon, p. 15. Apud Hanson (1996, p. 11).
6 Além de rótulos

de governar os parques nacionais e de altas, políticas de cobrança ao usuário e


administrar conflitos em pontos de des- envolvimento do setor privado no for-
tino tão complexos propiciou os processos necimento de vários serviços. Não é sur-
de planejamento centrados em partes in- presa ouvir um dos defensores do
teressadas, como, por exemplo, a Banff- ambiente dizer com uma certa frustra-
Bow Valley Round Table, descrita a seguir. ção que os administradores do parque
estão “deprimidos” com a racionaliza-
ção do sistema dos parques e com a
Resolvendo conflitos no pressão para que ele se torne cada vez
Parque Nacional de Banff, mais eficiente e economicamente sus-
no Canadá tentável.

Em 1950, cerca de 459 mil pessoas visi- Impulsionado pelo longo e eterno
taram o Parque Nacional de Banff. Tendo conflito entre uso e desenvolvimento no
como base as atuais taxas de crescimento Parque Nacional de Banff, assim como
(Banff-Bow Valley Round Table, 1996), pela desconfiança em relação aos ad-
no ano 2020, segundo as projeções, ministradores do parque, o Banff-Bow
serão cerca de 19 milhões de visitantes. Valley Study (BBVS) foi iniciado pelo
Mesmo que a taxa de crescimento fosse (então) ministro do Patrimônio cana-
de apenas 3%, o número de visitantes dense, Michel Dupuy, em março de
no parque poderia exceder 10 milhões 1994. A força tarefa do BBVS foi anun-
na mesma época, o dobro do número ciada pelo ministro em 5 de julho de
da visitação atual (ibid., p. 53). Nesse 1994 e recebeu a incumbência de con-
ponto de destino do turismo internacio- duzir uma análise abrangente dos temas
nal, área considerada Patrimônio Mun- ambientais, econômicos e sociais na
dial da Humanidade pela Unesco, está bacia do rio Bow dentro do parque. Essa
a cidade de Banff (população de 7.600 análise deveria culminar com um con-
habitantes), cujo crescimento contínuo junto de estratégias para a administra-
como um centro de serviços e de desti- ção, a longo prazo, do vale Banff-Bow e
no dentro do parque afeta muito a sen- visaria “proteger a integridade ambien-
sível morena 2 e os sistemas naturais tal e a vitalidade social e econômica do
dentro do estreito vale do rio Bow. Em vale Banff-Bow para as gerações futuras”
1995, os visitantes gastaram (60% dos (boletim do BBVS, 1 maio 1995, p. 2).
visitantes moram no condado de Cal-
gary) cerca de $ 709 milhões no parque. A força tarefa estabeleceu uma
Enquanto isso, a Parks Canada (a agên- mesa-redonda composta por várias par-
cia federal responsável pela adminis- tes interessadas como um dos mecanis-
tração dos parques nacionais do país) mos essenciais para introduzir dados
enfrentou cortes no orçamento que a públicos em um relatório que se basea-
obrigaram a buscar alternativas para ob- ria em um processo de diálogo e tomada
tenção de receitas, tais como taxas mais de decisão consensual. Após os princi-

2
Depósito de fragmentos de rochas transportado pelas geleiras. N. da T.
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 7

pais grupos interessados terem sido ajudar a força tarefa na elaboração de


identificados, eles se reuniram com o uma visão de futuro para o vale Banff-
responsável por cada interesse setorial Bow. Esse se tornou o principal item da
(ver Quadro 1). Um mediador foi no- agenda entre maio (quando o plano do
meado, os regulamentos básicos foram trabalho foi compilado) e dezembro de
estabelecidos e as declarações de inte- 1995. Entre os produtos finais, havia
resse para cada setor foram elaboradas. uma visão de futuro básica, temas-chave,
Uma tarefa inicial da mesa-redonda foi princípios e valores.

Quadro 1: Linhas gerais do estudo e do processo de negociação para o Vale


Banff-Bow.
Processo/localização: Vale Banff-Bow (no Parque Nacional Banff).
Nome: Estudo da Mesa-Redonda Banff-Bow.
Representação: Quatorze setores de interesse (originalmente) e apenas um observador
governamental da província de Alberta; entre os setores estão incluídos negociantes
locais e do setor de turismo, grupos ambientais (locais e nacionais), diversos grupos
de usuários dos parques, o governo municipal, representantes do governo federal
(incluindo o parque nacional), grupos ligados a interesses sociais e culturais da comu-
nidade local (Banff) assim como habitantes indígenas originários da área (que aban-
donaram o processo em seu início, reduzindo os setores representados a doze).
Tempo de duração: O estudo começou em junho de 1994; os encontros da mesa-
redonda se realizaram entre fevereiro de 1994 e março de 1994; o relatório final da
força-tarefa foi submetido no final do verão de 1996.
Estrutura: Formal – concordância nos processos e procedimentos (regras básicas,
por todos acordadas no início).
Mobilizador: Ministro do Patrimônio canadense.
Participação do público: Fórum público durante os encontros da mesa-redonda;
encontros públicos; pesquisa relativa à elaboração de uma visão de futuro.
Produto: Elaboração de uma visão de futuro para o Vale Banff-Bow, Relatório sobre
o estado atual do Vale, Relatório Sumário da Mesa-Redonda (março de 1996) e assim
por diante; relatório final da força-tarefa divulgado ao público em outubro de 1996.

Com base nas discussões dos encon- de março de 1996 (juntamente com
tros de julho, agosto e setembro os gru- outros itens da agenda). A redação da
pos participantes identificaram quatro declaração referente à visão de futuro
temas de negociação primordiais. Con- continuou a consumir o tempo da mesa-
tudo, em razão das limitações do tempo, redonda até o final das reuniões de de-
eles concordaram em trabalhar basica- zembro. Um relatório que resumia o
mente nos dois primeiros, isto é, (1) a trabalho da mesa-redonda foi ratificado
integridade ecológica e (2) o uso apro- pelos setores e usado na preparação do
priado. A negociação sobre esses dois relatório da força tarefa para o ministro.
temas começou nas reuniões de setem- Esse relatório foi divulgado, para o pú-
bro e outubro e continuou até o final blico, pelo atual ministro do Patrimônio
8 Além de rótulos

canadense em um evento para a mídia bora algumas tenham sido realizadas por
realizado em Banff no dia 7 de outubro telefone. Um formato de entrevista semi-
de 1996. O Quadro 1 resume o estudo estruturada e sem fins específicos permi-
total e o processo da mesa-redonda. tiu uma investigação minuciosa (1) do
processo de congregação de partes in-
O estudo de caso e a posição teórica teressadas como participantes; (2) da
apresentada nas seções seguintes apro- elaboração de visões de futuro, da ne-
veitam a pesquisa de Jamal (1997), que gociação e do processo para obtenção
abrangeu a duração do processo do de consenso nas tomadas de decisão; e
BBVRT, inclusive a divulgação do rela- (3) do que significa ser um participante
tório final do estudo para o público em nesse estudo e na mesa-redonda, isto é,
outubro de 1996 e as reuniões públicas de como se organiza o cotidiano de um
no início de 1997. A coleta de dados e participante do processo do BBVRT e de
a análise se basearam (1) em entrevistas uma comunidade mais ampla, assim
minuciosas com cerca de doze parti- como dos significados vinculados à par-
cipantes do BBVRT (durante e após o ticipação nesse contexto. O principal
processo) e a utilização de amostragem foco da abordagem interpretativa nessa
intencional para assegurar que um leque pesquisa residiu neste último aspecto
mais amplo de interesses e de preocupa- (3), em torno do qual os processos de
ções fosse incluído na pesquisa; (2) na temas específicos (1) e (2) foram investi-
observação participante das reuniões do gados. Algumas outras entrevistas de
BBVRT (como voluntário no setor de acompanhamento foram conduzidas
usuários do parque); (3) no compareci- mais de um ano depois de o processo
mento às reuniões públicas relacionadas ter acabado. Para proteger a identidade
a ambos os processos; e (4) no exame dos respondentes, as citações das entre-
de documentos relativos a essa iniciativa. vistas são anônimas. As fontes em itálico,
quando utilizadas nas citações, visam di-
As entrevistas foram realizadas pes- recionar o leitor para conceitos ou itens
soalmente, basicamente no campo, em- de interesse específicos para o estudo.

Problemas filosóficos com rótulos e conceitos


abstratos

O BBVRT ilustra dois problemas gerais dade ecológica”, “valor intrínseco”). Ten-
que podem impedir uma colaboração tamos mostrar como tal generalização
eficaz em tal domínio: o problema da de termos, categorias e rótulos pode
rotulação ou categorização (por exem- impedir, em vez de ampliar, o diálogo,
plo, “ambientalista”) e o problema da em virtude de certas pressuposições filo-
utilização de princípios, termos ou con- sóficas que respaldam a compreensão
ceitos abstratos (por exemplo, “integri- deles. Não estamos sugerindo que a ca-
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 9

tegorização deveria ser evitada por com- tanto, a propriedade de ser um político
pleto, mas que se deveria dar mais aten- não é essencial para ele. O essencialis-
ção à compreensão e ao manuseio de mo pressupõe que as categorias ou os
influências filosóficas que contribuem termos gerais que selecionam tipos na-
para o desenvolvimento de dicotomias turais “no mundo” possuem definições
polêmicas e de ambigüidades, especial- exatas que reflitam a essência da cate-
mente onde elas permitem que interes- goria ou do termo. Conseqüentemente,
ses dominantes prevaleçam sobre uma os que aceitam esse ponto de vista tra-
participação efetiva de partes interessa- dicional buscam definições que deter-
das menos poderosas. Uma abordagem minem a essência de uma categoria. Eles
de planejamento neopragmático oferece procuram um elemento essencial co-
uma forma alternativa para tratar tais mum a todos os usos do termo ou da
temas e influências. Apresentamos os dois categoria, por exemplo, a categoria “am-
problemas gerais e utilizamos a categoria bientalista.”
“ambientalista” e o termo “integridade
ecológica” para ilustrar de maneira con- Embora essa tradição do essencia-
creta os temas filosóficos subjacentes (re- lismo tenha uma longa história (por
lacionados ao essencialismo e ao realismo exemplo, a tradição essencialista origi-
metafísico). E, em seguida, apresentamos nária de Aristóteles), um esboço muito
a visão alternativa que defendemos e a simplista da teoria do significado de
ilustramos com a ajuda de exemplos John Stewart Mill pode ajudar a com-
obtidos no BBVRT. preender os problemas essencialistas
associados a um rótulo ou a uma cate-
goria como, por exemplo, a de “ambien-
Essencialismo e categorias: talista.” Mill declara que as palavras
o “ambientali sta” possuem uma denotação (basicamente
uma referência) e uma conotação (ba-
O essencialismo é a visão de que os ob- sicamente um significado ou um senti-
jetos possuem propriedades essenciais. do). A denotação de um termo constitui
Uma propriedade essencial de um ob- a classe de itens aos quais ela se refere;
jeto é uma propriedade tal que, se ele a conotação é composta pelas proprie-
não a possuir, ele não poderá ser o dades compartilhadas por todos os
mesmo objeto. Por exemplo, Bill Clinton membros dessa classe. A conotação é
não poderia deixar de possuir a proprie- rudimentarmente vinculada ao signifi-
dade de ser humano; ele não poderia cado do termo e fornece a ele suas ca-
ser, digamos, um mosquito ou um auto- racterísticas ou atributos essenciais. Essas
móvel. Por conseguinte, a propriedade propriedades ou características são fixa-
de ser humano é uma propriedade es- das com rigidez. Em uma visão essencia-
sencial dele. Por outro lado, ele poderia lista, todos os termos precisam possuir
não ser um político – poderia ter conti- essas várias características (exceto os
nuado a ser um advogado e nunca ter nomes próprios, que não discutiremos).
se candidatado a um cargo público. Por- O termo, portanto, outorga “realidade”
10 Além de rótulos

sobre aquilo a que se refere, em virtude grupos, agravadas pelas pressuposições


dessas certas (essenciais) propriedades essencialistas associadas ao termo “am-
que determinam o que ele é (sua es- bientalista.”
sência). Como o termo parece ser con-
sistentemente definível e “real,” pode ser Outros desafios à participação efi-
usado para reivindicar legitimidade (e caz também resultam da categorização
poder). de participantes sob termos ou catego-
rias relacionadas que podem ser vistas
Considere, por exemplo, o que que- essencialmente, tais como os setores de
remos dizer quando caracterizamos al- “ambiente local” e de “ambiente nacio-
guém como um “ambientalista.” O que nal” no BBVRT. Por exemplo, se uma
será que consideramos ser as (essenciais) pessoa morasse dentro do parque nacio-
propriedades que determinam a cate- nal, mas, por acaso, representasse um
goria “ambientalista” – “abraçador” de setor social ou cultural, será que isso signi-
árvores, amante da natureza, voluntário ficaria que as preocupações ambientais
e ativista para causas ambientais, pessoa pertenciam à competência apenas dos
que acredita no valor intrínseco de cria- setores ambientais? Um outro partici-
turas vivas? Durante uma entrevista, um pante mencionou uma grande preocupa-
participante ambiental no BBVRT afir- ção com a estruturação da representação
mou que não desejava ser rotulado de na mesa-redonda, observando que a
ambientalista, preservacionista ou con- rotulação de interesses setoriais possuía
servacionista. “Por que ser um ambien- um aspecto artificial e excludente:
talista constitui um interesse especial,
mas ser um jogador de golfe não?”, co- Bem, o que eu quero dizer é que
mentou, com frustração, um outro res- acho que a mesa poderia até ser
pondente ambiental no BBVRT. Como maior. Acho que poderia ser, nós
outros estudos também já assinalaram, poderíamos, cada um de nós, nos
embora pareça ser essencialmente atri- dividir em pedaços cada vez meno-
buído, o rótulo “ambientalista” não é res, mas para mim não importa os
nem homogêneo nem rigidamente fixa- títulos que estarão nos escaninhos,
do. Por exemplo, em uma avaliação so- apenas chegar lá e encontrar um
cial para uma floresta nacional dos EUA, lugar onde você possa se encaixar.
dois tipos de ambientalistas foram clas- Tudo é artificial, é uma estrutura
sificados: a partir de sua preferência pelo artificial que é imposta a um sistema
tipo de resultado visado ou pelos pro- orgânico. De forma que, quando
cessos gerenciais privilegiados (Carroll et você rotula, você exclui. (Entrevista,
al., 2000; ver também Cronon, 1996). participante do BBVRT, nov. 1995)
Por conseguinte, estruturar a participação
em um processo do tipo mesa-redonda Portanto, como o respondente se
em interesses ambientais versus desen- indagava, será que era válido identifi-
volvimento de interesses comerciais po- car-se com o ponto de vista de outro
deria ampliar as diferenças entre os dois setor, caso se estivesse participando em
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 11

um setor diferente, categorizado por in- derão rejeitá-las por completo e mais
teresses e atributos diferentes? pessoas poderão mostrar-se dispostas a
discuti-las. Em áreas de conflitos histó-
Enquanto escuto o diálogo na mesa, ricos entre o uso e o desenvolvimento,
saberei exatamente o que outra tais como o Parque Nacional de Banff,
pessoa está dizendo. Estarei me a linguagem neutra é mais útil do que
identificando e pensando comigo categorias e conceitos normativos e re-
mesmo, será que esse é o lugar que pletos de valor, tais como “ambientalista,”
eu deveria estar com o ponto de “valor intrínseco” e “limites” (ao cresci-
vista do meu setor? mento). A linguagem normativa fun-
ciona se estivermos lidando com uma
Essa exclusão pela rotulação supra- cultura compartilhada unitária, mas em
citada é também compartilhada por uma um domínio caracterizado por conflitos
ativista popular de Vermont no estudo entre valores diversos, pode ser preju-
de Blechman et al. (1996, p. 20), que dicial ao diálogo e às decisões coletivas
diz: “precisamos quebrar essas barrei- fazer uso de termos gerais caracterizados
ras de sentimento que declaram que por marcas históricas, temporais e essen-
você não é válido se não estiver vincu- ciais específicas. As pessoas se prendem
lado a uma organização ou a uma filo- às categorias que usam e freqüente-
sofia”. Ela sugere que suas opiniões não mente desenvolvem uma íntima identi-
podem ser tão facilmente reduzidas ficação com elas, logo, dificultam mais
como sendo reflexos de uma filosofia ainda a discussão e o diálogo que per-
ou organização. A dificuldade de estrutu- mitiriam uma compreensão comparti-
rar a participação por setores ou grupos lhada de temas e preocupações. Se
de interesse, tais como a dos ambienta- descrevessem suas crenças específicas,
listas, está no fato de essas categorias em vez de se rotularem ou se categoriza-
poderem ser vistas como essenciais. Se rem como “ambientalista” ou “desenvol-
tais termos são polêmicos ou politica- vimentista,” os participantes poderiam
mente impregnados, uma visão essen- identificar mais facilmente as crenças que
cialista pode exacerbar o conflito ou a se sobrepõem e que podem então pro-
desconfiança entre participantes já con- piciar uma base para o diálogo.
trários às posições e aos interesses dos
outros.
Re ali smo meta fí sico:
Para retornar ao tema prático, quan- integridade ecológica
do e se um termo ou seu uso é contes-
tado, essa busca por seu significado, ou Uma outra maneira de os termos po-
propriedades essenciais, pode interrom- derem assumir um significado fixo é
per um processo de planejamento em apelar para o realismo metafísico. O rea-
seu estágio inicial. Ao evitar rotular um lismo metafísico é a visão de que os
conjunto de crenças como “ambienta- objetos que compõem o mundo existem
lista”, por exemplo, menos pessoas po- independentemente da mente humana.
12 Além de rótulos

Um forte corolário de realismo metafí- uma diretriz do parque nacional cujo


sico é que a linguagem e o pensamento significado foi contestado pelos partici-
podem mencionar e descrever com pre- pantes. Alguns participantes, como é o
cisão (caracterizar) a natureza desses caso desse empresário, a consideravam
objetos, isto é, suas propriedades e as uma diretriz dual de uso e proteção,
relações em que eles se inserem. Por- enquanto outros, como os dos setores
tanto, nossas formas de representação ambientais, argumentavam que assegu-
(categorias, termos, rótulos) são vistas rar a integridade ecológica constituía, na
como fixadas rigidamente e fornecidas realidade, uma diretriz básica dos par-
pelo mundo. Por exemplo, a nossa aná- ques. Ele então aplicou a sua compreen-
lise indica que, nas diretrizes e políticas são da diretriz, como esclarecida pelo
dos parques, a integridade ecológica vice-ministro, Tom Lee, durante uma
tende a ser percebida através da lente reunião da mesa-redonda em setembro
do realismo metafísico no BBVRT, par- de 1995, para explicar como o processo,
ticularmente em relação a seu corolário e ele mesmo, tinham de alguma forma
associado de que existe uma “relação se concentrado na integridade ecológi-
fixa entre termos e suas extensões” (Put- ca, e não nos temas de uso humano mais
nam, 1990, p. 27). Isso leva à (sugerida) abrangentes relacionados ao fato de o
reivindicação de que o termo é mais le- parque ser um excepcional ponto de
gítimo porque ele se refere a uma coisa destino do turismo internacional. Mas,
que realmente existe no mundo e, então, ele só chegou a essa conclusão após o
se torna uma fonte poderosa de justifi- término do processo e depois de ter tido
cativa normativa para um tipo determi- algum tempo para refletir sobre essa
nado de ação como o que ocorreu no compreensão de uma realidade diferente:
processo da mesa-redonda.
Como Tom [Lee] diz, ela não é uma
A definição de integridade ecológica diretriz dual, é uma diretriz, você
usada pelo BBVRT e no estudo foi fixada compreende, ela propõe um papel
no início do processo por cientistas (ba- multifacetado para o Parque. A ciên-
sicamente) e modificava uma definição cia precisa reconhecer que ao en-
da Parks Canada. Os dados da entre- trar (...) Nós possuímos um corredor
vista e as reuniões da mesa-redonda de transportes nacional. Nós possuí-
mostram o realismo metafísico sugerido mos o melhor ponto de destino de
com o qual esse termo foi associado. Por turismo no Canadá, uma área re-
exemplo, um empresário que participou creativa que é fundamentalmente
da mesa-redonda e que foi entrevistado importante para nós canadenses da
após o fim das reuniões do BBVRT des- costa oeste. Nós precisamos enfren-
creveu os temas que ele achava (ao tar a realidade aqui, e ela só se cris-
olhar para trás) que deveriam ter sido taliza após o fato [e?] o que nós
investigados durante o processo do deveríamos estar dizendo e, talvez,
BBVRT, mas não foram. Na primeira transmitindo uma mensagem, você
frase da próxima citação, ele menciona sabe, a mensagem que diz esta é a
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 13

realidade; como é que você lida Uma visão alternativa


com ela? Porém, em vez disso, o Bow
Valley Study a tratou através da in- Uma visão neopragmática da tomada de
tegridade ecológica [o que] significa decisão no planejamento rejeita a noção
que esse lugar não possui ou prova- de definição rígida e evita a dependência
velmente não possuirá uma integri- com o essencialismo e o realismo meta-
dade ecológica e, por conseguinte, físico para justificar uma visão. Em vez
nós precisamos fechar as portas. de serem fixas, as categorias são consi-
(Entrevista, empresário participante, deradas mais flexíveis e adaptáveis e
jan. 1997) possuem propriedades abertas e alterá-
veis. A idéia de semelhanças de família
A maneira retórica como esse termo de Wittgenstein é, nós insistimos, muito
passou a ser usado nas reuniões da mais apropriada à interpretação de con-
mesa-redonda e nos documentos da ceitos sociais. Wittgenstein (1969) discu-
mídia apresentava um sentido de exis- tiu o exemplo de jogos, um conceito
tência real de tal condição, em algum social, para ilustrar que não há uma úni-
lugar ou momento. Observe-se a seguin- ca propriedade que possa essencialmente
te preocupação de um respondente definir o que é um jogo. Para cada classe
ambiental (a citação completa aparece denotada (por exemplo, para cada jogo),
adiante no artigo) que foi manifestada há um grupo de propriedades associa-
também nas reuniões da mesa-redonda: das, e alguns membros da classe com-
“Nós acreditamos piamente que a inte- partilham algumas das propriedades do
gridade ecológica de Banff-Bow Valley grupo e outros membros da classe com-
está, de fato, correndo perigo agora”. partilham outras propriedades do gru-
No entanto, muitos termos e conceitos po. Juntas, essas propriedades podem ser
nas ciências sociais (inclusive culturais) imaginadas nos termos do que Wittgens-
e nas ciências ecológicas não se ade- tein chamou de semelhanças de família,
quam a esse modelo de realismo meta- isto é, propriedades que respaldam si-
físico: eles não se referem a uma coisa milaridades entre diferentes membros da
objetiva ou a uma propriedade no mun- classe. As propriedades com as quais os
do. No entanto, quando partes interes- termos são identificados são abertas e
sadas adotam a perspectiva do realismo variáveis. Por conseguinte, a palavra
metafísico em relação a uma expressão “jogo” não deveria ser vista como pos-
como “integridade ecológica”, ou utili- suidora de um significado fixo ou essen-
zam expressões como “valor intrínseco” cial. Em vez disso, um jogo é relacionado
em uma forma essencialista, ou impreg- a outro jogo pela idéia de semelhanças
nam categorias como “ambientalista” de família. “Em vez de produzir algo co-
com significados essencialistas, isso pode mum em tudo o que chamamos de lín-
ser prejudicial a processos dialógicos reu- gua, eu digo que esses fenômenos não
nidos sob condições de conflito entre têm nada em comum (...) mas estão re-
interesses desenvolvimentistas e conser- lacionados a um outro de muitas manei-
vacionistas. ras diferentes” (Wittgenstein 1969, §65).
14 Além de rótulos

Similarmente, em vez de enfocado ções no início do processo. Isso é parti-


através de uma lente essencialista ou cularmente importante quando temas
realista, a expressão “integridade eco- e posições sensíveis, tais como limites ao
lógica” poderia ser descrita através da crescimento (ver a seguir), geram sérias
perspectiva de semelhanças de famílias. tensões nas negociações. Os dois exem-
Essa abordagem filosófica é também plos que se seguem, tirados de nossa
muito compatível com o neopragmatis- análise do processo do BBVRT, ilustram
mo, porque, como sugere Rorty (1979, como os conceitos filosóficos da nossa
1991), o debate sobre o realismo é im- visão alternativa podem explicar de
produtivo: os critérios que governam as maneira proveitosa certos resultados e
discussões não deveriam basear-se nas exigências do processo colaborativo.
versões que mais se aproximam da ver-
dade, mas nas versões que são mais úteis Exemplo: uma declaração de visão
para o empreendimento humano. Em de futuro pragmática . Termos e expres-
outras palavras, uma visão de planeja- sões como “limites” ou “valor intrínseco”
mento neopragmático sugere que a es- não foram debatidos quando incluídos
colha da forma lingüística deveria ser na visão de futuro da mesa-redonda
determinada pelos componentes cen- para o Banff-Bow Valley, que, em si,
trais dos objetivo(s) e das metas do pro- envolveu um extenso e prolongado pro-
cesso de planejamento, e não pelo que cesso de criação da palavra, fato perce-
é mais compatível com a realidade. Ca- bido por vários entrevistados. Mais de
tegorias tais como “ambientalista” e um respondente da mesa-redonda co-
expressões como “integridade ecoló- mentou sobre como o conceito de limi-
gica” são, portanto, adaptáveis, isto é, tes ao desenvolvimento e à visitação no
em vez de serem rigidamente definíveis, parque era preocupante para os inte-
fixáveis e reais, englobam características, resses do turismo no parque:
propriedades e descrições que são aber-
tas e evoluem ao longo do tempo. A Nós sabemos que a integridade eco-
escolha de formas lingüísticas, categorias, lógica do Banff-Bow Valley está cor-
nomes e rótulos deveria estar a serviço rendo perigo neste momento e que
de nossos objetivos em vez de ser sua existem alguns problemas sérios (...)
linha mestra. A precisão é determinada seis meses atrás ouvíamos isso re-
pela eficiência com que servem nossos petidamente, “bem, nós apenas não
objetivos e não por sua conformidade acreditamos nisso,” havia um estado
à realidade. de rejeição ocorrendo. Parece que
esse argumento foi abandonado
Assim, destinar um certo tempo para após Tom Lee ter vindo aqui e fala-
que o processo possa produzir novas do em setembro. E Steve Woodley
descrições, conjuntamente derivadas, ou [um cientista palestrante convidado]
novos termos que substituam o uso de deu sua definição de como eles de-
termos polêmicos ou ambíguos, pode senvolveriam [uma] definição de
ser mais útil do que estabelecer defini- integridade ecológica. Isso pareceu
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 15

ter tirado alguns dos setores daquele bulário. Existem coisas com as quais
estado de rejeição. Talvez eles tenham eu não me sinto muito confortável,
decidido não falar sobre isso, mas mas acho que nós conseguimos
agora acho que estamos vendo esse avançar (...) isto é, reunimos um
assunto voltar à tona porque esta- grupo de pessoas e elas concorda-
mos naquele ponto em que estamos ram que essas são as coisas que são
realmente conversando sobre a im- importantes para nós e declaramos
posição de restrições e limitações que o fato de nos impormos limites
corretas e eles começando a contra- para beneficiar as gerações futuras
atacar. (Entrevista, participante am- é importante para nós. Nós valori-
biental, jan. 1996) zamos o intrínseco, intrinsecamente
valorizamos outras formas de vida.
O conceito de limites pouco foi discu- (Entrevista, participante ambiental,
tido na mesa-redonda ou nas reuniões, dez. 1995)
a não ser em termos de percentuais ou
números relacionados ao crescimento Essa foi uma declaração referente à
no parque nacional. Que cenários de- visão de futuro pragmaticamente orien-
veremos projetar em nossos exercícios tada que agrupou várias crenças e va-
de modelagem futuros – 1%, 3%, 5%? lores em algumas declarações concretas
Além da limitação à visitação e ao cres- que não foram investigadas no início do
cimento da população, nessas reuniões, processo mas permaneceram abertas a
pouquíssimas discussões se concentra- interpretações. O processo de elabora-
ram no significado da palavra limites ou ção de uma visão de futuro também
nos vários modos como os impactos po- seguiu uma abordagem pragmática que
deriam ser administrados e os limites im- evitou discussões filosóficas sobre o par-
postos. No entanto, o conceito de limites que e, desse modo, permitiu que o pro-
foi inserido na declaração referente à cesso fosse adiante. Exceto uma breve
visão de futuro para o Banff-Bow Valley, discussão sobre a diretriz do parque
assim como a noção de valorizar intrinse- nacional (que foi estabelecida quando
camente outras formas de vida, embora se convidou o vice-ministro para infor-
a maneira como os participantes interpre- mar a mesa sobre a interpretação oficial
tavam esses conceitos variasse muito: da diretriz), o muito sensível tópico do
objetivo do parque nacional não foi
Acho que o fato de termos conse- mencionado. Todavia, como o objetivo
guido inserir esse conceito na visão geral de uma declaração referente à
de futuro já é uma grande vitória. A visão de futuro é fornecer uma edifican-
palavra “limites” está presente, em- te e enriquecedora descrição das espe-
bora, ao redor da mesa possa haver ranças, dos valores, das crenças e das
interpretações divergentes sobre o aspirações do(s) participante(s) no pro-
ponto da lista em que colocaríamos cesso de elaboração de visões de futu-
esses termos, mas, pelo menos, a ro, assim como um sentido de direção
palavra limites já faz parte do voca- conjunta, essa discussão não levanta a
16 Além de rótulos

seguinte questão: até que ponto a decla- de futuro no início do processo possibi-
ração referente à visão de futuro basea- litou a observação das posições, das
da na mesa-redonda foi, na verdade, personalidades e das interações dos
comum e consensual para os participan- outros participantes; desse modo, ela
tes e os constituintes da mesa-redonda? ofereceu um vislumbre de como as dinâ-
Um empresário participante e respon- micas do processo estavam se formando
dente achou que a declaração referente (por exemplo, os relacionamentos entre
à visão de futuro era um “documento os setores e entre os representantes dos
importante” por significar um “acordo setores). O exercício também satisfez
negociado” entre os grupos participan- uma exigência inicial do processo na
tes. Essa, disse ele, foi uma declaração medida em que permitiu aos participan-
referente à visão de futuro elaborada tes desenvolver (aparentes) pontos co-
cuidadosamente mediante “acordo ne- muns a partir dos quais seguiriam sem
gociado” racionalmente e fundamen- correr o risco de se verem imobilizados
tado em um “compromisso”, e não no em uma visão de futuro inatingível ou
consenso, porque “ideologicamente” ele em uma posição jurídica sobre o futuro
“jamais converteria” X (um participante desejado para o parque. A falta de obje-
ambiental). Qual, então, seria a utilidade tivos de alguns significados na declaração
desse exercício, se um compromisso em e a natureza não-jurídica do exercício
vez de um consenso constituísse a base de elaboração de visões de futuro facili-
da visão de futuro desenvolvida? taram, portanto, a formação de alguns
relacionamentos e entendimentos entre
O aplauso à mesa, quando a decla- os participantes, o que permitiu a ado-
ração referente à visão de futuro foi fi- ção de algumas ações e decisões prag-
nalmente concluída pelos representantes máticas que levaram o processo à fase
dos setores, refletia um senso de reali- de negociação dos temas.
zação entre os participantes. Referências
à visão de futuro (e aos princípios e va- Exemplo: criando novas descrições
lores desenvolvidos conjuntamente e compartilhadas. No contexto do plane-
que foram considerados parte integrante jamento colaborativo, uma abordagem
dela) em reuniões subseqüentes da neopragmática sugere que, após o diá-
mesa-redonda e os comentários positi- logo e a reconfiguração de algumas
vos feitos pelos respondentes durante crenças, poderão ser escolhidos novos
as entrevistas mostram que eles consi- agrupamentos que poderiam incentivar
deravam a visão de futuro muito útil no o consenso entre posições anteriormen-
trato de processos de tópicos subseqüen- te conflitantes, com a utilização de uma
tes. A Parks Canada também usou a nova descrição compartilhada. Para os
declaração referente à visão de futuro participantes, como o empresário citado
no plano seguinte de administração do adiante, segundo o qual a “experiência
parque (1997). Como um participante humana” não fora incluída no debate
respondente mencionou, a realização sobre integridade ecológica, foi um alí-
desse exercício de elaboração de visões vio ver a força tarefa recomendar o de-
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 17

senvolvimento de uma estratégia de (re-)interpreta noções e conceitos pro-


valorização do turismo ligada ao Patri- blemáticos, tais como a diretriz dual do
mônio Histórico do parque (aproveitan- parque, a crise e a integridade ecoló-
do uma iniciativa que havia sido iniciada gica dentro de uma estrutura pragmáti-
por um outro grupo de partes interes- ca. Além disso, ele busca temas concretos
sadas em um outro local do parque). O e específicos que poderia examinar atra-
novo agrupamento e o conceito de pa- vés da ótica dos interesses do seu setor
trimônio permitiram que as pessoas con- para, em seguida, concentrar-se nas so-
tassem várias histórias sobre a presença luções de suas necessidades e objetivos.
humana no parque, embora reconhe-
cessem a importância ecológica desse Os temas e os exemplos apresentados
lugar. Como o patrimônio é um con- indicam que uma abordagem neoprag-
ceito que possibilita a transposição para mática pode ser vantajosa ao planeja-
o presente de diferentes apropriações mento para múltiplas partes interessadas
do passado (Lowenthall, 1998), a pre- sob condições de conflito histórico em
sença humana histórica e atual pode ser áreas protegidas como os parques nacio-
descrita no plano e no parque junta- nais. Nossa análise do BBVRT sugere
mente com os esforços para assegurar que, desde que sejam incorporados sem
sua integridade ecológica. definições inflexíveis e não sejam tão
polêmicos a ponto de fazerem o conflito
Nós fundamentalmente acreditamos aumentar e ficar fora de controle, os ter-
na necessidade de preservar essas mos sensíveis talvez não consigam desviar
áreas para as gerações futuras. Porém, o caminho de um processo. Em outras
acho que precisaremos convencer as palavras, as definições de tais termos sen-
pessoas de que há uma maneira de síveis não deveriam ser impostas aos par-
abraçar o ambiente e a necessidade ticipantes, e sim deixadas em aberto para
de preservar a integridade ecológica que pudessem evoluir ao longo do pro-
e, ao mesmo tempo, de reconhecer cesso se já não tivessem sido substituídas
a necessidade da experiência huma- por novas descrições e novos termos
na. (Entrevista, empresário partici- compartilhados.
pante do BBVRT, jan. 1997)
Por conseguinte, a abordagem neo-
Para esse empresário participante, o pragmática apóia uma abordagem in-
importante era a necessidade de conse- terativa e baseada no aprendizado ao
guir administrar os impactos do de- planejamento sob conflito que permite
senvolvimento em vez de focalizar o a criação, pelos participantes, de novos
realismo da crise (do qual ele não ficou significados compartilhados. No entanto,
convencido). Em lugar de discutir a crise os administradores de processos deverão
ou contestar a evidência científica sendo reconhecer os temas filosóficos que pos-
apresentada para comprovar os sérios sam dificultar uma participação efetiva,
danos à integridade ecológica do par- porque isso traz implicações tanto para
que, ele adota uma visão pragmática e a estrutura quanto para o processo. Eles
18 Além de rótulos

precisarão decidir se devem evitar cate- diálogo e de aprendizado possam tratar


gorias sensíveis ou se devem facilitar o de tais temas quando eles surgirem, exis-
diálogo sobre elas, para que os partici- tem algumas áreas do processo que são
pantes aceitem que alguns termos, como particularmente úteis para a criação de
“ambientalista”, não sejam usados de um significado através de uma colabo-
uma maneira essencialista. Eles também ração, tais como a fase de definição do
necessitarão de habilidades e técnicas problema, o processo de elaboração de
que facilitem a discussão e o aprendiza- visões de futuro e o procedimento de
do conjunto sobre (possivelmente) ca- mapeamento da situação no aprendi-
tegorias e termos sensíveis, ambíguos e/ zado colaborativo (Daniels e Walker,
ou complexos. Embora o processo total 1996). Discutiremos essas e outras im-
exija uma certa flexibilidade no plane- plicações na seção final.
jamento para que tais oportunidades de

Implicações para o planejamento com várias partes


interessadas
Como tentamos demonstrar, o neo- é projetado para necessidades específi-
pragmatismo obscurece a linha que se- cas em contextos determinados.
para o ato de nomear e o objeto da
nomeação. Os nomes e seus significa- Não surpreende, portanto, que o
dos vêm e vão, evoluem ao longo do neopragmatismo critique a busca por
tempo (daí as várias interpretações da princípios abstratos, tais como a valori-
diretriz dual percebidas, mais tarde, du- zação intrínseca de outras formas de
rante o processo do BBVRT, apesar das vida, porque está fundamentado numa
tentativas de fixar um significado no iní- posição filosófica tradicional na qual
cio do processo). No entanto, embora existe uma hierarquia em que os princí-
as categorias e os termos neopragmáti- pios abstratos se situam no topo e deles
cos possam ser mais maleáveis, mais fle- se deduzem mais princípios específicos
xíveis e mais abertos, não estão tão e, em seguida, ações concretas. Susten-
radicalmente descentralizados de forma tamos que os princípios abstratos não
a tornar impossível a fixação de um sig- possuem quaisquer privilégios ou posi-
nificado qualquer, nem tampouco são ções absolutas: eles fazem parte de um
meras convenções dependentes da lín- processo interativo de adaptação holís-
gua como os filósofos desconstrucionis- tica mútua por meio do diálogo e da
tas, entre eles Derrida, gostariam que discussão (Rorty, 1991). Um é compara-
fossem (Harper e Stein, 1995b). Dife- do ao outro, às vezes os princípios sendo
rentemente do desconstrucionismo, o alterados, outras vezes as instituições
neopragmatismo tenta fundamentar o (Harper e Stein, 1995a). Tal abordagem
significado, só que, como foi ilustrado é incremental porque permite que nossas
nos exemplos anteriores, esse significado crenças e nossos conceitos evoluam e/
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 19

ou surjam ao longo do tempo. Essa abor- para uma nova (re)descrição comparti-
dagem é também não-hierárquica e lhada de um termo problemático.
torna pouco nítidas as separações entre
princípios abstratos e intuições concre- A adaptabilidade de uma aborda-
tas, entre julgamento e ação e entre teoria gem de planejamento neopragmática,
e prática (Stein e Harper, 1998). portanto, permite que os participantes
tentem encontrar soluções para termos
A abordagem neopragmática à ro- sensíveis ou temas polêmicos, tais como
tulação e aos princípios abstratos ofere- limites ao crescimento, ou os reintro-
ce, portanto, flexibilidade à obtenção de duzam mais tarde, no processo, após
alguma forma de consenso ou de acor- algumas atividades terem sido compar-
do, porque ela se desvia dos temas da tilhadas, alguns acordos concretos terem
negociação fixados pelas posições abso- sido efetivados e compreensões conjun-
lutistas. Não é necessário definir coisas tas terem surgido juntamente com rela-
em categorias seqüenciais ou contesta- cionamentos que gerem respeito e/ou
das. Por conseguinte, ela libera os parti- confiança entre (alguns) participantes
cipantes de uma busca por princípios (Jamal e Getz, 1999). Essa abordagem
rígidos que seriam capazes de causar neopragmática enseja várias implicações
mais danos às negociações do que de para o planejamento entre partes inte-
facilitar o movimento para encontrar ressadas e para a resolução de conflitos
soluções aceitáveis. Tal abordagem não históricos ou caracterizados por um nível
afeta a legitimidade ou a credibilidade crescente de tensão.
de pontos de vista específicos, mas ela
os libera e os abre para a possibilidade
de novos agrupamentos e de categorias O conceito de pessoa e
mais vantajosas, não porque tais nomes grupo no BBVRT
já “existam” ou possuam essências pree-
xistentes, mas porque “o reagrupamento A abordagem neopragmática traz impli-
de coisas em novas espécies (...) prova cações específicas para o conceito de
que se presta para muitas induções mais grupos de interesse. Na “Introduction to
relevantes do que os antigos grupos” Briefing Material” do estudo do Banff-
(Quine, 1969, p. 128). Tal atividade de Bow Valley, mesa-redonda de 03/02/
categorização ou rotulação poderá ser 1995, na seção de título “Structure and
mais útil durante o processo do que no Representation,” consta a seguinte decla-
início, quando as categorias, as defini- ração: “A mesa-redonda de Banff-Bow
ções e as posições entrincheiradas po- Valley está nomeada para representar
dem criar ou acentuar discórdias entre todas as preocupações verdadeiras asso-
os participantes. Enquanto as crenças ciadas ao Vale. A força da mesa-redonda,
são reconfiguradas e compartilhadas, como um corpo de planejamento e de
novos significados surgem ao longo do tomadas de decisão, se apóia nesse con-
caminho. Um novo nome, rótulo ou de- ceito de representação efetiva”. No
finição poderá tornar-se um atalho útil entanto, nosso estudo indica que o agru-
20 Além de rótulos

pamento dos participantes em catego- aquele apropriado para tal propósito,


rias de interesse geral durante o estágio isto é, ele é “político, não é metafísico”.
inicial da congregação estabelece barrei- Em outras palavras, essa concepção de
ras ao reconhecimento da interdepen- pessoa está vinculada ao contexto e não
dência de vários conceitos (por exemplo, é essencialista. Tampouco é relativista,
ambiente sociocultural). Como foi dis- porque, como argumentamos anterior-
cutido na seção anterior, esse agrupa- mente, um conceito (tal como “jogo”)
mento facilita também uma realidade diz respeito, no final das contas, a uma
social de nomeação com a qual os parti- sobreposição de semelhanças em uma
cipantes podem identificar-se, amplian- determinada “família”.
do, dessa forma, a distância entre grupos
opostos. Assim, tanto o agrupamento de Portanto, embora rejeitemos a ten-
grupos de interesse quanto o desenvol- tativa de encontrar uma definição essen-
vimento de declarações de interesse cialista, acreditamos que o conceito de
(como foi feito no BBVRT) precisam ser pessoa ainda é útil e trabalhável a partir
abordados com cuidado. Em vez de re- de uma abordagem neopragmática que
conhecer que são flexíveis e podem não tenta definir as regras dos processos,
mudar durante o processo, tais declara- os papéis dos participantes e as catego-
ções de interesse são freqüentemente rias polêmicas com rigidez. As decisões
interpretadas de uma forma essencialista práticas sobre ações apropriadas não
como representações fixas de interesses exigem princípios de governo ou debates
e identidades setoriais e constitutivos. sobre temas metafísicos, tais como a na-
tureza da pessoa, da sociedade, da cida-
Muito debatido e contestado em de ou do ambiente (por exemplo, se a
discussões sobre processos fundamen- natureza possui valor intrínseco/biocên-
tados nos interesses das partes interes- trico ou instrumental/antropocêntrico).
sadas é o conceito de “pessoa”. No No entanto, como foi visto anteriormen-
encalço de debates tradicionais sobre a te, o administrador do processo deve
identidade da pessoa, os liberais com estar a par dos temas filosóficos relacio-
tendência kantiana têm sido criticados nados a isso para evitar que os efeitos
pelos pós-modernistas e pelos comuni- excludentes possam desenvolver-se em
taristas por assumirem a conceitualiza- razão da categorização dos participan-
ção de uma pessoa como um agente tes sob rótulos como, por exemplo, “am-
transcendental, autônomo e absoluta- bientalista.”
mente livre. Os comunitaristas possuem
um conceito concorrente da pessoa
como uma construção social, um pro- Enfoque em problemas
duto do ambiente. Os neopragmatistas, concretos/reais
ao interpretarem Rawls (1993), contor-
nam essa controvérsia ao enfatizar que Em processos de negociação com temas-
o conceito de pessoa que é necessário direcionados, tais como o do BBVRT, em
para debates relativos à justiça política é que há uma ampla variedade de inte-
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 21

resses, valores e objetivos, assim como melhor deixá-lo de lado por uns tempos
conflitos, desconfianças e tensões explo- e procurar algo menos complexo, menos
sivas historicamente entrincheiradas, amplo e mais concreto. A nossa análise
sugerimos uma abordagem neopragmá- do processo do BBVRT indica que o
tica às tomadas de decisão que focalizem sucesso na resolução de problemas
preocupações e problemas específicos menos complexos pode ajudar o per-
claramente identificados, em vez de in- curso do processo e o estabelecimento
quietações filosóficas. Por exemplo, du- de confiança para tratar os temas mais
rante a fase de negociação dos temas, polêmicos. O que acontece é que os
uma grande preocupação de vários em- processos de resolução de conflitos am-
presários participantes era tentar com- bientais, tais como o do BBVRT, que
preender o impacto das estratégias/ações envolvem vários grupos de interesse e
propostas no parque. Expressando falta moradores da comunidade no desen-
de compreensão a respeito do tipo de volvimento de visões de futuro e de es-
ciência utilizado como sustentação de tratégias, deveriam ser mais flexíveis e
preocupações ecológicas de algumas ajustáveis. Os participantes e os admi-
partes interessadas no processo, um nistradores dos processos não preci-
empresário respondente achou que seria sariam iniciar pela busca dos princípios
mais importante administrar as implica- subjacentes ou pelo estabelecimento dos
ções reais de problemas palpáveis, como interesses de cada setor em uma declara-
a disputa entre ursos e seres humanos ção estática e inalterável. Esses concei-
competindo pelo mesmo espaço em tos precisam ser investigados, discutidos
uma área de habitat específica. Até certo e debatidos para que seja possível des-
ponto, isso respalda a nossa reivindica- cobrir crenças e metas compartilhadas.
ção por uma abordagem política, e não Eles podem ser destacados em termos
metafísica, no tratamento de temas espe- muito neutros para que não sejam con-
cíficos, para evitar debates essencialistas. siderados categóricos, normativos ou
Contudo, esforços terão de ser empreen- abstratos. Se utilizados, os rótulos con-
didos para que categorias e termos que testados podem ser mantidos vagos no
estão sendo compreendidos de forma início do processo. Em vez de serem
essencialista sejam esclarecidos. Se no- tratados como princípios hierárquicos,
ções centrais ou contestadas, tais como absolutos ou universais, os princípios abs-
valor intrínseco ou limites, são utilizadas, tratos precisam ser tratados como um
talvez seja melhor deixá-las intencional- elemento do processo interativo de ajuste
mente vagas no início do processo, mútuo e holístico.
como foi feito para a visão de futuro do
BBVRT (embora, possivelmente, isso Mais especificamente, para o plane-
não fosse necessariamente por desejo jamento ambiental em um território sob
dos administradores dos processos). conflitos históricos, o debate entre o
ambiente como um recurso econômico
Se não for possível chegar a um acor- (possuindo apenas uma valor instru-
do (consenso) sobre um tema, talvez seja mental) e o ambiente possuidor de um
22 Além de rótulos

valor intrínseco pode ser posto de lado, participantes possam compartilhá-los e


para que o enfoque passe a ser a com- discuti-los no âmbito do parque nacional
preensão do que deveria ser preservado e da área protegida em questão, susten-
e de que modo é possível fazer isso. Isso tamos que os debates metafísicos (por
ajuda o processo a avançar, auxiliado exemplo, sobre o valor intrínseco da área
pelo estabelecimento de relacionamen- silvestre) deveriam ser evitados. Uma
tos, direção e atividades, tais como o abordagem pragmática deveria ser pre-
exercício de elaboração de visões de ferida, principalmente em situações de
futuro. Com foi mencionado por mais conflito e desconfiança. Mas isso, é claro,
de um respondente, o processo de ela- levanta a questão de assegurar que tais
boração de uma visão de futuro no debates possam ser realizados em algum
BBVRT foi muito útil, porque forneceu ponto da esfera pública. Poderão as co-
um fórum de discussão não limitador laborações de várias partes interessadas,
que permitiu aos participantes conhecer tais como as do BBVRT, fornecer tal es-
as posições e as opiniões dos outros. paço público para a discussão e o debate?

As principais questões filosóficas re-


O planejamento estratégico lacionadas ao significado e ao objetivo
e a tomada de decisão de uma experiência de um parque nacio-
neopragmática nal, bem como o valor da área silvestre,
foram amplamente ignorados no BBVRT,
A nossa análise do processo do BBVRT mesmo quando questionados por um
aponta a necessidade de concentrar a participante. Então, será que o processo
atenção no objetivo do processo, assim do BBVRT foi um processo de estabeleci-
como nas necessidades e preocupações mento de uma visão de futuro e de uma
dos participantes. Embora o BBVRT diretriz estratégica fundamentada na com-
tenha abordado alguns temas reais e pri- preensão dos temas, das crenças e dos
mordiais relacionados ao ambiente natu- valores relacionados ao conflito, ou foi
ral do parque, diversas preocupações e um processo direcionado para o desen-
vários temas sociais, econômicos e cul- volvimento de estratégias específicas ou
turais não foram tratados por vários se- adoção de medidas para um problema
tores. O planejamento não é uma mera já identificado e definido? O primeiro
atividade conduzida em uma “caixa preta” objetivo pode exigir mediações terapêuti-
ou em uma “lata de lixo” (Cohen, March cas, interativas e de diálogo ou uma abor-
e Olsen, 1972). As pessoas estão envol- dagem colaborativa de aprendizado
vidas em narrativas antecipatórias, rela- (Daniels e Walker, 1996; ver também
cionais e contestadas (Mumby, 1987, Jamal e Getz, 1999), enquanto o último
1988) tanto no planejamento estratégico pode indicar um processo mais instru-
quanto na elaboração de visões de futuro mental (significados-objetivos), orientado
estratégica. Suas crenças e seus valores para o planejamento. As abordagens de
são fundamentais para o conflito; ainda intervenção para o primeiro incluem a
assim, embora seja importante que os mediação terapêutica (Barush Bush e
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 23

Folger, 1994) e processos de planejamen- duzido pelo planejamento, a abordagem


to conduzidos pelo aprendizado (Westley, neopragmática ajuda os participantes a
1995; Daniels e Walker, 1996) que servem superar blocos metafísicos polêmicos.
para a noção de estratégia emergente Fica para o mediador/facilitador e outros
(Mintzberg e Waters, 1985; Mintzberg, administradores de processos a tarefa de
1994). A estrutura de Westley e Vreden- reconhecer e adaptar o processo, para
burg (discutida em Westley, 1995) carac- administrar os desafios metafísicos de tal
teriza alguns aspectos da colaboração maneira que as diferenças nas vozes e
conduzida pelo planejamento que possivel- no diálogo, nos valores e nos significados
mente se encaixa no processo do BBVRT. surjam de formas capacitadoras, como,
por exemplo, através das descrições de
Mas, não obstante o processo ser crenças e compreensões.
fundamentado no aprendizado ou con-

Conclusão

Neste artigo, apresentamos uma expli- 2. Os princípios e as definições não pre-


cação crítica e teórica de uma aborda- cisam estar em primeiro lugar: o acor-
gem neopragmática ao planejamento e do inicial é importante para esses
à resolução de conflitos em pontos tu- conceitos práticos e necessários para
rísticos em parques nacionais. Essa abor- abordar problemas a serem solucio-
dagem foi então mais intensamente nados (conseqüentemente, a im-
investigada por meio de um estudo sobre portância do diálogo na fase inicial
resolução de conflitos entre várias partes de identificação dos problemas), to-
interessadas no Parque Nacional de davia, os princípios abstratos não
Banff, Canadá. Apresentamos, a seguir, deverão ter qualquer posição hie-
um resumo de nossas recomendações. rárquica privilegiada no processo.

1. Uma abordagem neopragmática se 3. A flexibilidade é fundamental: o pro-


concentra no aspecto político e não cesso deveria ser flexível e adaptá-
no aspecto metafísico de temas, ob- vel. Os princípios, os julgamentos de
jetivos, pessoas e processos de plane- situações, os valores normativos e
jamento em áreas protegidas; ela as teorias empíricas não são fixados,
tenta superar as distorções de pode- mas investigados, como exigido, para
rosas teorias tradicionais relaciona- ampliar a compreensão e o acordo
das ao essencialismo e ao realismo com a ajuda de novas definições e/
metafísico. ou descrições compartilhadas. Se os
24 Além de rótulos

termos parecem ser polêmicos ou protegidas. Por ser não-hierárquica,


sensíveis, deveriam ser mantidos flexível e interativa, ela pode obter
vagos até a discussão gerar novos sig- acordo sobre temas polêmicos no
nificados. Alternativamente, pode- âmbito dos parques nacionais.
riam ser deixados de fora ou evitados,
se o administrador do processo, tendo
em mente as armadilhas metafísicas A principal contribuição deste artigo
a serem evitadas, achar que essa é é o entrelaçamento de teoria e pesquisa
a melhor alternativa. de campo, que se apóia em uma varie-
dade de disciplinas e áreas de estudo, tais
4. A confiança é crucial: a interpreta- como filosofia, planejamento e estudos
ção do que uma pessoa diz pressu- organizacionais. Em campos complexos,
põe um “princípio de caridade” como os pontos de destino de turismo
(Davidson, 1985). A necessidade de em parques nacionais, uma abordagem
confiança implica a importância de interdisciplinar será necessária se a pes-
iniciar os processos de decisão pela quisa do planejamento, a teoria e a práti-
descoberta e enfoque de áreas de ca tiverem de ser muito pormenorizadas.
concordância, assim como pelo de- Isso indica que os pesquisadores deverão,
senvolvimento de compreensões de cada vez mais, atentar à explicação das
temas e preocupações compartilha- hipóteses filosóficas e metodológicas que
dos. Os processos de elaboração de caracterizam seu trabalho. Também sig-
visões de futuro (Weisbord et al., nifica que os escritores e os leitores de
1992), o mapeamento da situação artigos como este talvez tenham de com-
(Daniels e Walker, 1996) e outros preender e divulgar conceitos e teorias
mecanismos de elaboração de sig- que não são familiares à sua disciplina
nificado (cf. Jamal e Getz, 1999) ou campo de estudo. À medida que as
constituem fóruns úteis para o esta- pressões sobre a sustentabilidade de re-
belecimento de relacionamentos e cursos culturais humanos e ecológicos,
confiança entre os participantes. locais ou globais, são cada vez mais in-
tensas, os esclarecimentos filosóficos que
5. A abordagem neopragmática é, por facilitam tomadas de decisão colaborati-
conseguinte, útil para colaborações vas e inovadoras, bem como resoluções
nas quais há disputas ideológicas, e de conflitos, se tornam cada vez mais im-
múltiplas partes interessadas interde- portantes. Como diz Goethe, “os que
pendentes se digladiam pelo uso e não conseguem recorrer a três mil anos
desenvolvimento em um território de de história conseguem apenas uma so-
conflitos históricos, como, por exem- brevivência elementar, satisfazendo ape-
plo, os parques nacionais e as áreas nas suas necessidades básicas”.
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 25

Agradecimentos

Mais do que a Goethe, Dr. Jamal agra- plica adequadamente a elaboração de


dece ao Dr. Chris Menzel (Filosofia, Texas conceitos complexos tais como a integri-
A&M University) por sua grande ajuda dade ecológica. Agradecemos também
na discussão de tópicos da metafísica e a nossos críticos anônimos por suas úteis
do essencialismo, principalmente a visão sugestões.
de que a metafísica tradicional não ex-

Referências

ANSOFF, A. The New Corporate Strategy. Institute for Conflict Analysis and Resolu-
New York: John Wiley, 1988. tion, 1996. (Unpublished manuscript).

ARNSTEIN, Sherry R. A ladder of citizen BRITTON, S. Tourism, capital and place:


participation. AIP Journal, p. 216-224, towards a critical geography of tourism.
July 1969. Environment and Planning D: Society
and Space, 9 (4), p. 451-478, 1991.
BANFF-BOW VALLEY ROUND TABLE. Apr.
1996. (Summary report). CARROLL, M. S. et al. Social Assessment
for the Wenatchee National Forest Wild-
BARUSH BUSH, R. A.; FOLGER, J. P. The fires of 1994: Targeted Analysis for the
Promise of Mediation: Responding to Leavenworth, Entiat, and Chelan Ranger
Conflict Through Empowerment and Districts. USDA Forest Service, Pacific
Recognition. San Francisco: Jossey-Bass, Northwest Research Station, Jan. 2000.
1994. (General Technical Report PNW-GTR-
479).
BELLA, Leslie. Parks for Profit. Montreal,
Canada: Harvest House, 1987. COHEN, M. D.; MARCH, J. G.; OLSEN, J. P.
A garbage can model of organization
BERNSTEIN, R. J. The New Constellation: choice. Administrative Science Quarterly,
The Ethical-Political Horizons of Moder- 17 (1), p. 1-25, 1972.
nity/Postmodernity. Cambridge, MA: MIT
Press, 1992. CORMICK, Gerald et al. Building Consen-
sus for a Sustainable Future: Putting
BLECHMAN, Frank et al. Looking back at Principles into Practice. Ottawa, Ontario:
the northern forest dialogues: 1988-1995. National Round Table on the Environ-
Fairfax, VA: George Mason University, ment and the Economy, 1996.
26 Além de rótulos

CRONON, W. (Ed.). Uncommon Ground: Common Ground for Multiparty Prob-


Rethinking the Human Place in Nature. lems. San Francisco: Jossey-Bass, 1989.
New York: W. W. Norton, 1996.
HANSON, L. Reconstituting the bounda-
DANIELS, S. E.; WALKER, G. B. Collabora- ries of nature: the discursive formation
tive learning: improving public delibera- of nature in the debate over the man-
tion in ecosystem-based management. agement of Banff National Park. Avante,
Environmental Impact Assessment Re- 2 (2), p. 1-16, 1996.
view, 16, p. 71-102, 1996.
HARPER, Thomas L.; STEIN, Stanley. Con-
DAVIDSON, Donald. A coherence theory of temporary procedural ethical theory and
truth and knowledge. In: MALACHOWSKI, planning theory. In: HENDLER, S. (Ed.).
Alan; BURROWS, Jo. (Ed.). Reading Rorty: Planning Ethics: A Reader in Planning
Critical Responses to Philosophy and the Theory, Practice and Education. New
Mirror of Nature (and beyond). Oxford, Brunswick, NJ: Rutgers University, Center
UK: Basil Blackwell, 1985. for Urban Policy Research, 1995a.

DRISCOLL, Kathy. Diversity, dialogue and __________. Out of the postmodern abyss:
learning: the case of the forest round table preserving the rationale for liberal plan-
on sustainable development. Ontario, ning. Journal of Planning Education and
1993. Diss. (Ph.D.) – Queens University, Research, 14 (4), p. 233-244, 1995b.
Kinston, Ontario, Canada. 1993.
HEALEY, P. Collaborative Planning. Lon-
FORESTER, J. Planning in the Face of Power. don: Macmillan, 1997.
Berkeley: University of California Press,
1989. HUGHES, George. The cultural construc-
tion of sustainable tourism. Tourism
FREEMAN, R. E. Strategic Management: A Management, 16 (1), p. 49-59, 1995.
Stakeholder Approach. London: Pittman,
1984. HUXHAM, Chris. Advantage or inertia?
Making collaboration work. In: PATON, R.
GETZ, D.; JAMAL, T. The environment- et al. (Ed.). The New Management Read-
community symbiosis: a case for collabo- er. London: Routledge, 1996a. p. 238-
rative tourism planning. Journal of 254.
Sustainable Tourism, 2 (3), p. 152-173,
1994. __________. (Ed.). Creating Collaborative
Advantage. London: Sage, 1996b.
GILL, A.; WILLIAMS, P. Managing growth in
mountain tourism communities. Tourism INNES, Judith et al. Coordinating growth
Management, 15 (3), p. 212-220, 1994. and environmental management through
consensus building. CPS Brief, 6 (4), p. 1-
GRAY, Barbara. Collaborating: Finding 7, 1994.
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 27

JAMAL, T. Multi-party consensus processes O’BRIEN, Mary. Making Better Environ-


in environmentally sensitive destinations: mental Decisions: An Alternative to Risk
paradoxes of ownership and common Assessment. Cambridge, MA: MIT Press,
ground. Calgary, 1997. Diss. (Ph.D.) – 2000.
University of Calgary, Alberta, Canada.
1997. PALERM, Juan R. An empirical-theoretical
analysis framework for public participa-
JAMAL, T.; GETZ, D. Community round- tion in environmental impact assessment.
tables for tourism-related conflicts: the Journal of Environmental Planning and
dialectics of consensus and process struc- Management, 43 (5), p. 581-600, 2000.
tures. Journal of Sustainable Tourism,
7 (3), p. 356-378, 1999. PASQUERO, J. Supraorganizational collab-
oration: the Canadian environmental ex-
LOWENTHALL, D. The Heritage Crusade periment. Journal of Applied Behavioral
and the Spoils of History. Cambridge, Science, 27 (1), p. 38-64, 1991.
UK: Cambridge University Press, 1998.
PHILLIPS, Nelson; LAWRENCE, Thomas B.;
MENAND, L. (Ed.). Pragmatism: A Reader. HARDY, Cynthia. Inter-organizational
New York: Vintage, 1997. collaboration and the dynamics of insti-
tutional fields. Journal of Management
MINTZBERG, Henry. The Rise and Fall of Studies, 37 (1), p. 23-43, 2000.
Strategic Planning: Reconceiving Roles
for Planning, Plans, Planners. New York: PUTNAM, Hilary. Realism with a Human
Free Press, 1994. Face. Cambridge, MA: Harvard Univer-
sity Press, 1990.
MINTZBERG, H.; WATERS, J. A. Of strate-
gies, deliberate and emergent. Strategic QUINE, W. V. O. Natural kinds. In: Onto-
Management Journal, 6 (3), p. 257-272, logical Relativity and other Essays. New
1985. York: Columbia University Press, 1969.

MUMBY, Dennis K. The political function RAWLS, John. Justice as fairness: politi-
of narrative in organizations. Commu- cal not metaphysical. Philosophy and
nication Monographs, 54, p.113-127, Public Affairs, 14 (3), p. 223-251, 1985.
1987.
__________. Political Liberalism. New
__________. Communication and Power York: Columbia University Press, 1993.
in Organizations: Discourse, Ideology
and Domination. Norwood, NJ: Ablex, RICHARDSON, Mary; SHERMAN, Joan; GIS-
1988. MONDI, Michael. Winning Back the Words:
Confronting Experts in an Environmen-
MURPHY, Peter E. Tourism: A Communi- tal Public Hearing. Toronto, Ontario, Can-
ty Approach. New York: Methuen, 1985. ada: Garamond, 1993.
28 Além de rótulos

ROBERTS, N. C.; BRADLEY, R. T. Stake- agreements. New York: Oxford Universi-


holder collaboration and innovation: a ty Press, 1994.
study of public policy initiation at the
state level. Journal of Applied Behavio- TONN, B.; ENGLISH, M.; TRAVIS, C. A frame-
ral Science, 27 (2), p. 209-227, 1991. work for understanding and improving
environmental decision making. Journal
RORTY, Richard. Philosophy and the Mir- of Environmental Planning and Manage-
ror of Nature. Princeton, NJ: Princeton ment, 43 (2), p. 163-183, 2000.
University Press, 1979.
WEISBORD, Marvin R. et al. Discovering
__________. Objectivity, Relativism and Common Ground: How Future Search
Truth: Philosophical Papers. Cambridge, Conferences Bring People Together to
UK: Cambridge University Press, 1991. Achieve Breakthrough Innovation,
v. 1. Empowerment, Shared Vision, and Col-
laborative Action. San Francisco: Berrett-
SELIN, S.; BEASON, K. Conditions facilitat- Koehler, 1992.
ing collaborative tourism planning: a
qualitative perspective. Paper presented WESTON, Joe. EIA, decision-making the-
at conference, Tourism: Building Credi- ory and screening and scoping in UK
bility for a Credible Industry. Twenty-first practice. Journal of Environmental Plan-
annual conference of the Travel and ning and Management, 43 (2), p. 185-
Tourism Research Association, 1991. 203, 2000.

STABLER, M. J. (Ed.). Tourism and Sus- WESTLEY, Frances. Governing design: The
tainability: Principles to Practice. Wall- management of social systems and eco-
ingford, UK: CAB International, 1997. systems design. In: HOLLING, L. H.; LIGHT,
S. S. (Ed.). Barriers and Bridges to the
STEIN, Stanley; HARPER, Thomas. Prag- Renewal of Ecosystems and Institutions.
matic incrementalist planning in post- New York: Columbia University Press, 1995.
modern society: a normative justification.
Planning Theory, 18, p. 3-28, 1998. WITTGENSTEIN, Ludgwig. On Certainty. In:
ANSCOMBE, G. E. M.; WRIGHT, G. H. (Ed.).
SUSSKIND, Lawrence. Environmental diplo- Trad. Denis Paul; G. E. M. Anscombe.
macy: negotiating more effective global New York: Harper Torchbooks, 1969.

Resumo Abstract
Este artigo defende a abordagem neo- This article advocates a neopragmatic
pragmática para o planejamento colabo- approach to collaborative planning in
rativo em áreas protegidas e caracterizadas protected areas characterized by historical
Tazim B. Jamal, Stanley M. Stein e Thomas L. Harper 29

por conflitos históricos entre várias partes conflict among diverse stakeholders. Our
interessadas. Nosso exemplo é um pro- example is a multisectoral process initi-
cesso multissetorial iniciado para tratar ated to address use and development
conflitos de uso e de desenvolvimento conflicts in the international tourism des-
em um ponto de destino do turismo in- tination of Banff National Park, Canada.
ternacional, o Parque Nacional de Banff We show how philosophical presuppo-
no Canadá. Mostramos como as pressu- sitions (essentialism and metaphysical
posições filosóficas (o essencialismo e o realism) can impede collaboration and
realismo metafísico) podem dificultar a exacerbate problems when categories
colaboração e agravar problemas quan- like “environmentalism” and terms like
do categorias como o “ambientalismo” “ecological integrity” are used. Rather
e expressões como “integridade ecoló- than fixing categories and terms up
gica” são utilizadas. Em vez de fixar front, a more fluid planning approach
categorias e expressões no início, defen- is advocated: terms are flexible and
de-se uma abordagem de planejamento meanings emerge through dialogue.
mais ajustável: as expressões são flexí- Shared descriptions replace contentious
veis e os significados emergem através categories and terms.
do diálogo. As descrições compartilha-
das substituem categorias e expressões
polêmicas.

Palavras-chave : pragmatismo; parques Keywords: pragmatism; national parks;


nacionais; turismo; Canadá. tourism; Canada.

Tazim B. Jamal é professora assistente no Departamento de Ciências da Recreação,


Parques e Turismo, da Universidade Texas A&M (EUA). PhD pela Universidade de
Calgary (Canadá), suas principais áreas de interesse são planejamento comunitário
para o turismo sustentável e desenvolvimento do turismo histórico-cultural (heritage
tourism). Em relação ao processo de planejamento, ela conduz pesquisas participa-
tivas em projetos envolvendo processos multilaterais dirigidos aos conflitos relacio-
nados com o turismo e à sustentabilidade dos recursos naturais.

Stanley M. Stein é instrutor sênior de filosofia na Faculdade de Design Ambiental


na Universidade de Calgary (Canadá). Tem publicações sobre os impactos práticos
dos aspectos filosóficos e éticos da teoria do planejamento, sobre as justificações
éticas e econômicas da intervenção governamental, ética ambiental, instituições
sociais, e sobre teorias de estética e design. Seu trabalho recente visa articular a
base teórica para uma abordagem amplamente comunicativa (“dialógica”) para o
planejamento público.
30 Além de rótulos

Thomas L. Harper é professor e diretor do Programa de Planejamento, Faculdade


de Design Ambiental da Universidade de Calgary (Canadá). Sua pesquisa interdis-
ciplinar, em parceria com Stanley Stein, foca a teoria normativa do planejamento.
O professor Harper é ex-presidente da Association of Canadian University Planning
Programs, sendo atualmente o representante dessa associação na Global Planning
Education Association Network. É “Membro do Instituto Canadense de Planejadores”
e já trabalhou com uma variedade de clientes, organizações comunitárias, educacio-
nais e religiosas.
A utilidade das teorias
normativas de planejamento no
contexto da África subsaariana

Vanessa Watson

As teorias normativas de planejamento que atualmente parece estar moldando


atuais, representadas pela teoria de muitas cidades no subcontinente, será
planejamento comunicativo (Forester, que essas teorias normativas de planeja-
Healey, Innes e outros), pela aborda- mento oferecem um recurso ao qual os
gem de Cidade Justa (Fainstein) e pelas planejadores podem recorrer?
teorias relacionadas ao reconhecimento
da diversidade e da diferença cultural É preciso justificar tanto o foco teórico
(Sandercock) podem ser de grande quanto o contextual deste trabalho.
interesse para planejadores que ainda Reconheço que as três teorias normativas
lutam para superar as formas extremas de planejamento consideradas aqui não
de desigualdade, divisão e colapso social cobrem totalmente o campo de estudo.
que persistem nas cidades da África sub- A teoria de planejamento comunicativo
saariana. (que por si só tem várias linhas diferentes)
é freqüentemente encarada como um
Este trabalho parte do princípio de paradigma teórico dominante no mo-
que, como planejadores, temos de mento (Innes, 1995), embora isso tam-
tomar como ponto de partida a neces- bém seja quase sempre contestado
sidade de uma compreensão profunda (Yiftachel e Huxley, 2000). Um conhe-
dos processos socioespaciais e políticos cimento pós-moderno e de viés cultu-
que moldam os contextos em que tra- ralista relativamente recente (Storper,
balhamos (ver, entre outros, Huxley e 2001) tem influenciado as idéias de di-
Yiftachel, 2000). Ele apresenta a seguin- versas disciplinas. No campo do planeja-
te questão: dada a dinâmica particular mento, o trabalho de Leonie Sandercock

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIX, Nos 1-2, 2005, p. 1-29
2 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

é, talvez, o mais conhecido exemplo da des de uma ampla variedade de agen-


aplicação dessa perspectiva (Beauregard, tes e profissionais. Estou consciente de
1998; Storper, 2001). O terceiro exem- que a amplitude na qual o planejamen-
plo, a abordagem de Cidade Justa, re- to urbano de fato ocorre no contexto
presenta uma posição dentro de uma da África subsaariana é muitíssimo variá-
literatura normativa muito mais ampla vel. Em alguns países, a lei e a ordem
sobre forma de cidade (por exemplo, entraram em colapso e quase não é
Breheny, 1992; Lynch, 1990), mas seu possível intervir; em outros contextos,
profundo enraizamento na teoria social os sistemas de planejamento funcionam
a separa de outras posições de forma e iniciativas de planejamento são em-
urbana e facilita o exame das hipóteses preendidas (ver Diaw, Nnkya e Watson,
que a sustentam. Juntas, essas três teorias 2001), embora as formas de planeja-
permitem que se reflita sobre os proces- mento difiram (fortemente influenciadas
sos de planejamento e sobre os resulta- por históricos coloniais particulares) e
dos espaciais no contexto das cidades seus impactos possam ser bastante variá-
africanas subsaarianas. Não sugiro que veis por toda a cidade.
profissionais de planejamento em tais ci-
dades geralmente conheçam essas teorias Mais duas qualificações são neces-
ou as usem (embora alguns certamente sárias. Este trabalho se concentra es-
o façam). Em vez disso, a questão de sua pecificamente nas cidades da África
utilidade potencial é levantada em um subsaariana. A intenção não é negar a
sentido amplamente hipotético para in- importância das áreas rurais nem suas
vestigar o problema da universalidade ligações com as áreas urbanas. Contu-
teórica. do, as três teorias normativas sob análise
têm uma aplicabilidade potencial muito
Neste texto, uso o termo “planeja- maior nas áreas urbanas: avaliar sua uti-
mento” para referir-me às ações públi- lidade em áreas rurais geralmente muito
cas intencionais que impactam o meio diferentes aumentaria de maneira pou-
ambiente construído e natural e são fre- co razoável as expectativas de sua apli-
qüentemente acompanhadas por algum cabilidade. Finalmente, estou consciente
tipo de processo político. O planejamen- de que o continente subsaariano é mui-
to também (e não poucas vezes) é inicia- tíssimo variado e de que a referência a
do por grupos que não pertencem a ele como uma entidade beira a uma
governos formais, tais como organiza- supergeneralização perigosa. Contudo,
ções não-governamentais e comunitá- há também importantes pontos comuns
rias, e, às vezes, por empresas. Uso, sociais e políticos. O estudioso africano
portanto, o termo planejamento no sen- Mahmood Mamdani (1996) argumen-
tido mais restrito, quando me refiro à ta convincentemente que esses pontos
atividade de planejamento urbano ou comuns, arraigados no histórico colonial
planejamento de cidade, embora reco- do subcontinente, legitimam a avaliação
nheça que, atualmente, o planejamento da África como uma unidade de análise
é empregado para descrever as ativida- e, em particular, desconsideram a posi-
Vanessa Watson 3

ção de “excepcionalidade” da África do normativas de planejamento; segundo,


Sul. Embora eu tente realçar as diferen- volta-se para a África subsaariana para
ças contextuais onde elas são relevantes, esboçar o contexto em que os planeja-
prossigo no pressuposto de que algum dores operam. O artigo conclui com al-
nível de generalização seja possível. gumas reflexões sobre o valor das três
teorias normativas de planejamento em
O trabalho tem a seguinte estrutu- contextos que, como este, são caracte-
ra: primeiro, investiga diversas hipóte- rizados pela carência de recursos.
ses em que se baseiam as três teorias

Três teorias normativas de planejamento

Com o fim do planejamento científico importante da prática de planejamento.


racional como forma dominante de teo- A interação (com pessoas ou grupos in-
ria de planejamento, abriu-se espaço teressados), a comunicação de idéias, a
para o surgimento de um espectro de formação de argumentos, os debates
novas posições teóricas que procuram sobre diferenças de compreensão e, fi-
explicar o planejamento como um fenô- nalmente, a obtenção de um consenso
meno e sugerir idéias de como o plane- quanto a um modo de ação substituem
jamento deveria ser conduzido e com a elaboração impessoal de planos,
que finalidade. Alguns desses teóricos, orientada por peritos, como atividade
influenciados por uma crescente desilu- básica dos planejadores. Essas idéias são
são com o pensamento modernista e o desenvolvidas em sua forma mais sofis-
planejamento tecnocrático, convence- ticada por Patsy Healey, que também
ram-se de que os movimentos sociais introduz o “institucionalismo” como uma
nas democracias liberais e o desenvol- teoria explicativa das dinâmicas sociais
vimento da sociedade civil, de modo para informar a posição normativa do
mais geral, possuíam a solução para a planejamento comunicativo. 1 Para as fi-
transformação social. O novo interesse nalidades deste trabalho, os seguintes
por abordagens localizadas e empíricas aspectos da teoria de planejamento co-
centra-se no empoderamento de gru- municativo são importantes.
pos fora do (e às vezes contra o) Estado.
Entre esses teóricos de planejamento, O pensamento de Habermas é funda-
sobressaem os associados à teoria de mental aqui. Com a preocupação de
planejamento comunicativo. John Fo- proteger e estender a democracia, ele
rester (1989) e outros depois dele ins- conceitualiza “o mundo da vida” (ou
piraram-se em Habermas para propor esfera pública) como separada e exterior
a comunicação como o elemento mais ao “sistema” de economia e governo
1
Existem diferenças entre teóricos de planejamento comunicativo (ver Tewdwr-Jones e
Allmendinger, 1998). Este artigo usa basicamente o trabalho de Healey.
4 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

formais. Dentro do “mundo da vida”, é e a sociedade civil) e sustenta que o pla-


possível aos seres humanos racionais e nejamento “(...) busca maneiras para
inerentemente democráticos chegar a recuperar uma nova realização participa-
um consenso e coordenar ações atra- tiva da democracia e reconstituir um do-
vés do processo de comunicação (racio- mínio público vigoroso e inclusivo que
nalidade comunicativa). Aqui, a “força possa concentrar a atividade da go-
do melhor argumento” determinará a vernança de acordo com os interesses
validade final de uma posição específica. da sociedade civil (...)” (Healey, 1999,
Habermas reconhece que a comunica- p. 119). 2 Em termos dessa posição, por-
ção pode ser distorcida de várias ma- tanto, o Estado como participante passa
neiras e sugere um conjunto de critérios, a ocupar, em relação a agentes não-
ou éticas de discurso, para orientar pro- estatais, uma posição inferior, e a socie-
cessos de comunicação: se os processos dade civil é vista como principal baluarte
forem inclusivos, empáticos e abertos, do projeto democrático. 3
e se as diferenças de poder existentes
entre os participantes puderem ser neu- A hipótese de Habermas quanto à
tralizadas, então o resultado de tal pro- natureza consensual do discurso na esfe-
cesso poderá ser considerado válido ra pública também é adotada pelos teó-
(Habermas, 1990a, 1990b). Para os ricos do planejamento comunicativo. 4
teóricos do planejamento comunicativo, Embora autores dessa escola não ne-
isso passou a significar que o objetivo guem as operações do poder, ainda
do planejamento é um processo justo e permanece a crença de que, se os pro-
que, se o processo for justo, o resultado cessos comunicativos forem administra-
também o será (ver Fainstein, 1995). dos corretamente (de acordo com a ética
de discurso de Habermas), então será
Os teóricos do planejamento comu- possível alcançar acordos voluntários,
nicativo reiteram a fé que Habermas porém obrigatórios. Sua posição tem
tinha na sociedade civil como uma fonte como base a hipótese da cidadania uni-
de democracia e como um veículo para versal, em que as diferenças entre agen-
pressionar o Estado a agir de modo mais tes ocorrem apenas no nível do discurso
responsivo. Healey refere-se ao “déficit ou das idéias e podem ser superadas
democrático” (a distância entre o Estado pela argumentação. Dessa forma:
2
Embora isso sugira uma dualidade entre Estado e sociedade civil, a abordagem institucionalista
de Healey enfatiza redes sociais que “(...) se movimentam para dentro e para fora das insti-
tuições formais de governo (...)” (Healey, 1997, p. 205).
3
Huxley (2000, p. 375) chama a atenção para o problema potencial que isso cria para
planejadores que são empregados pelo governo e são responsáveis perante representantes
eleitos, mas que precisam operar em processos participativos e também ser diretamente
responsáveis perante “um público”. Huxley também chama a atenção para o pressuposto
não questionado subjacente à teoria de planejamento comunicativo de que planejamento é
a melhor estrutura institucional para promover a democracia participativa.
4
Esse é um aspecto da teoria de planejamento comunicativo que tem sido criticado
vigorosamente (ver Flyvbjerg, 1998a; Huxley, 2000; Tewdwr-Jones e Allmendinger, 1998).
Vanessa Watson 5

(...) o poder dos discursos dominan- cessos que buscam consenso podem tra-
tes pode ser desafiado no nível do zer um benefício a mais porque a com-
diálogo; por meio do poder do dis- preensão compartilhada, a confiança
curso informado e refletido; por mútua e a “criação de identidade” que
meio de bons argumentos; e por são estabelecidas permanecem como
meio de transformações que surgem “recursos culturais” novos ou “capital
à medida que as pessoas aprendem cultural” (ibid., p. 114), favorecendo
a compreender e a se respeitarem futuros processos de planejamento.
por meio de suas diferenças e confli- Agora também predominante na litera-
tos. (Ibid.) tura de desenvolvimento tradicional, o
capital social é freqüentemente apresen-
Healey aprimora ainda mais a idéia tado como uma precondição para o
de cidadania universal para reconhecer desenvolvimento econômico e para os
que grupos comunicantes podem ope- sistemas de governança mais democrá-
rar dentro de diferentes “sistemas de sig- ticos (Mohan e Stokke, 2000). Isso pres-
nificado”, o que significa que “vemos supõe que tais relacionamentos de
coisas de maneiras diferentes, porque confiança e interdependência (econô-
palavras, frases, expressões e objetos são mica) mútua podem persistir por lon-
interpretados de maneiras diferentes, de gos períodos de tempo, em localidades
acordo com nosso referencial” (id., específicas, e ocasionar processos de
1992, p. 152). Permanece o pressupos- desenvolvimento “de baixo para cima”.
to de que essas diferenças podem ser
acomodadas em um processo que busca O aspecto importante final da teoria
consenso. do planejamento comunicativo é sua
tendência a se concentrar em âmbitos de
Healey acrescenta mais duas di- governo subnacionais, em agentes indi-
mensões à idéia de processos comuni- viduais, sejam eles planejadores ou par-
cativos. A primeira, compartilhada com ticipantes do processo, assim como em
estudiosos da “tendência cultural” (por teorizações de ordem indutiva. Assim, de
exemplo, Escobar, 1994), é a valoriza- acordo com a citação de Mandelbaum
ção de “conhecimento local” concer- na introdução do volume que foi a pri-
nente a “itens de informação que são meira tentativa para definir a forma desse
mapeados e interpretados dentro das novo território teórico, há “um interesse
estruturas de significado e objetivos de geral pelo comportamento, pelos valores,
redes sociais particulares” (Healey, pelo caráter e pelas experiências de pla-
1999, p. 116). Isso é diferente do co- nejadores profissionais em suas expe-
nhecimento “perito” (ou, às vezes, oci- riências de trabalho concretas”, e pelas
dental): consiste em bom senso e razão práticas desses planejadores, que incluem
prática, provérbios e metáforas, habili- “maneiras de falar, rituais, protocolos im-
dades e rotinas práticas, e pode ser ver- plícitos, rotinas, estratégias relacionais,
bal ou não-verbal. A segunda dimensão, traços de caráter e virtudes” (Mandel-
relacionada à primeira, é a de que pro- baum, 1996, p. xviii). Em relação ao
6 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

infindável debate sobre estrutura-agên- existam algumas importantes diferenças


cia, o pêndulo claramente já voltou para entre elas. Assim como os teóricos do
agência, e junto com isso, um interesse planejamento comunicativo, Sander-
pela capacidade de o governo local e or- cock é fortemente influenciada pelo pós-
ganizações locais levarem adiante a idéia modernismo 5 e pelo pensamento de
de planejamento democrático. Isso, mais viés culturalista (Storper, 2001). Ela con-
uma vez, não está em desacordo com as corda com a noção de sociedade civil
idéias de desenvolvimento tradicional como um local autônomo de resistên-
focalizado no empoderamento político e cia e de movimentos sociais como agen-
econômico local (Mohan e Stokke, 2000), tes básicos de mudanças. Insere seu
nem com o interesse dos estudiosos de próprio trabalho no que chama de um
viés culturalista na maneira como cultura “modelo de planejamento radical” com
e contexto conformam conhecimento e raízes no planejamento de suporte, que
comportamento (Storper, 2001). A hipó- ocorre, mais comumente, fora das es-
tese é que a sociedade pode ser trans- truturas formais do Estado e da econo-
formada “de baixo para cima” e que só mia (Sandercock, 1998b). Seu trabalho
os processos locais podem modificar a concentra-se na agência e no “local”, 6
distribuição mais ampla de recursos e e nos tipos de processos e discursos que
poder (Fainstein, 1995). Mais uma vez, configuram os debates do planejamento.
Healey é sensível a essa questão e, em Como Beauregard (1998) observa, tanto
sua própria estrutura analítica, lança mão os teóricos do planejamento coletivo
da teoria de estruturação de Giddens como a teoria multicultural transferem
para reconhecer que “a agência ativa a ênfase no âmbito das teorias de pla-
interage com dinâmicas estruturais restri- nejamento dos resultados para os pro-
tivas (...)” para influenciar “(...) a elabo- cessos assim como das conseqüências
ração e o reconhecimento de regras para a conscientização.
formais, (...) a distribuição de recursos
materiais (...) e os referenciais que os O ponto de partida de Sandercock
agentes desenvolvem (...)” (Healey, reside em sua idéia do que constitui ci-
1999, p. 113). dadania e como ela é fragmentada pela
identidade e no papel do planejador em
A teoria de Leonie Sandercock de relação a essa questão. Em contraposi-
planejamento em sociedades multicul- ção à idéia de cidadania universal, sua
turais (ver Sandercock, 1998a, 1998b, sociedade é estruturada por relacio-
2000) pode ser vista como uma varian- namentos entre grupos culturalmente
te, ou um desenvolvimento, da teoria distintos, com base em sexualidade, et-
de planejamento comunicativo, embora nicidade, gênero ou raça. Essa diversi-

5
Em contraposição ao próprio Habermas, que com freqüência é descrito como um modernista,
em função de sua fé em processos racionais, da universalidade de suas idéias e de seu
conceito de cidadania.
6
Embora ela não desconsidere o papel da economia política, seu foco não reside mais aí.
Vanessa Watson 7

dade precisa ser comemorada e não Healey. As hipóteses relacionadas à


reprimida: 7 isto é, as reivindicações dos possibilidade de alcançar um consenso
grupos precisam ser reconhecidas e fa- estão presentes nas publicações de San-
cilitadas. Podemos argumentar aqui que dercock, assim como na teoria de plane-
Sandercock não está interessada ape- jamento comunicativo. A singularidade
nas em reconhecer diferenças em ter- de Sandercock, porém, é que ela se
mos processuais (a fim de caminhar para preocupa em criar consenso entre gru-
uma sociedade mais homogênea ou pos (reiterando e valorizando a diferen-
igual); ela está interessada na “diferença ça, em vez de eliminá-la), o que poderia
substancial” ou em referendar uma so- assumir a forma de uma resistência ao
ciedade composta por grupos diferentes Estado. Nesse aspecto, ela difere dos
(Storper, 2001). Ou seja, em promo- teóricos do planejamento comunicativo,
ver a diferença somente pela diferença. para quem, às vezes, o alvo de um pro-
cesso de planejamento é negociar emo-
O papel do planejador em tal con- ções e diferenças para chegar a uma
texto é ligar conhecimento à ação para agenda coletiva acomodada pelo Estado
empoderar grupos oprimidos e margi- (Beauregard, 1998). A questão do poder,
nalizados, para resistir à exploração e à os foucaultianos podem argumentar,
refutação de sua identidade (Beaure- continua, portanto, tão problemática na
gard, 1998). Ainda não está claro como teoria multicultural quanto na teoria de
as legitimidades de tais afirmações devem planejamento comunicativo.
ser julgadas: Sandercock valoriza a idéia
de uma cidade socialmente justa, mas Com o fim do planejamento científi-
sustenta que isso exige uma política de co racional, outros teóricos valeram-se,
diferenças. As reivindicações de iden- entretanto, da influência do pensamento
tidade devem, portanto, anteceder às marxista no campo de planejamento.
reivindicações materiais. Isso parece sig- Sob uma perspectiva normativa, o inte-
nificar que as noções do que constitui resse por uma forma de planejamento
justiça podem ser culturalmente especí- que consiga a redistribuição, a igualdade
ficas e precisam ser expostas por meio e a justiça caracteriza o trabalho de Susan
de “diferentes maneiras de saber” (uma Fainstein e, de uma maneira um tanto
epistemologia de multiplicidade) e, con- diferente, o de David Harvey. A aborda-
seqüentemente, de um relacionamento gem da Cidade Justa de Fainstein é o foco
diferente entre planejador e grupos. da atenção aqui (ver Fainstein, 2000).
Nesse aspecto, sua fé no “conhecimento
local” e a natureza questionável do “co- A base teórica de Fainstein em uma
nhecimento perito” são análogas às de “economia política pós-marxista” (que

7
Beauregard (1998), ao comparar as posições de John Forester (um teórico fundador do
planejamento comunicativo) e Sandercock, comenta que Forester se mostra hesitante em
relação a políticas de identidade e quer tirar a ênfase da diferença. Planejadores são cidadãos
em primeiro lugar e devem se referir à identidade de modo secundário.
8 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

engloba uma visão mais complexa da es- Fainstein é mais cautelosa que San-
trutura social e dos benefícios sociais do dercock em aceitar a validade de todas
que a postulada pela análise material) gera as reivindicações grupais e reconhece
diversos pontos comuns entre sua posi- que algumas reivindicações podem ser
ção e as discutidas anteriormente. Assim altamente não-democráticas. Por esse
como Sandercock, ela concorda com motivo, insiste em que reivindicações
uma sociedade estruturada basicamente não podem ser julgadas apenas por re-
por grupos mais do que por classes, mas gras processuais. Como diria Habermas,
se interessa menos por um planejamen- processos justos nem sempre produzem
to que visa valorizar e promover as rei- resultados justos. Conseqüentemente, o
vindicações (materiais e não-materiais) “conteúdo substancial” ou os impactos
desses grupos, e mais pelo modo como das decisões precisam ser julgados tam-
tais grupos podem beneficiar-se de ações bém por seus abalos na eqüidade e na
de planejamento redistributivas. democracia.

Juntamente com os teóricos multi- A questão que se apresenta, então,


culturais e do planejamento comunica- é saber como a redistribuição e o pla-
tivo, Fainstein também se interessa por nejamento eqüitativo ocorrem e quem
processos de planejamento e participa- deve julgar as reivindicações, se o go-
ção. Porém, aproxima-se mais de San- verno não for confiável e não existirem
dercock ao ver seu público básico como funcionários progressistas. A visão de
a “liderança de movimentos sociais ur- Fainstein de Cidade Justa pede um Es-
banos”, mais do que o governo, que tado que seja empresarial e que, ao
pode não ser neutro nem benevolente, mesmo tempo, ofereça assistência social
e distancia-se dos teóricos do planeja- (ibid.), e pressupõe uma economia mun-
mento comunicativo, que “basicamente dial capitalista e um compromisso com
se dirigem aos planejadores emprega- o crescimento econômico. Porém, como
dos pelo governo, pedindo-lhes que sua teoria reduz a importância do gover-
medeiem interesses diversos (...)” (Fain- no no processo do planejamento e
stein, 2000, p. 468). Sua fé no poder como seus argumentos são dirigidos
reformador da sociedade civil alinha-se, basicamente a grupos fora do Estado,
portanto, com outros pensadores nor- não fica claro como isso poderia acon-
mativos pós-modernos e, também, com tecer, a não ser por sorte ou por aci-
os teóricos do desenvolvimento neoli- dente. Sandercock é um pouco mais
beral. Contudo, ela admite que certos clara nesse ponto: ela se alia aos grupos
indivíduos dentro do Estado (funcioná- marginalizados e oprimidos e confia na
rios progressistas e “guerrilheiros na pressão deles para obter benefícios do
burocracia”) podem agir no interesse de Estado.
grupos marginalizados, deixando a
questão de envolver-se ou não com o A abordagem da Cidade Justa se
Estado presumivelmente na dependên- distancia de outras teorias normativas de
cia de circunstâncias específicas. planejamento na medida em que en-
Vanessa Watson 9

fatiza os resultados e processos do pla- que uma teoria normativa de planeja-


nejamento do espaço assim como os im- mento se manifeste sobre uma questão
pactos distributivos que diferentes formas central substancial como essa, as tenta-
espaciais produzem. A inspiração de tivas para universalizar uma forma es-
Fainstein para uma Cidade Justa em ter- pacial específica preocupam vários
mos espaciais é Amsterdã, com sua di- outros teóricos do planejamento. David
versidade física, densidade alta e áreas Harvey (2000, p. 196) está desconten-
residenciais social e economicamente te com o que chama de utopismo da
mistas. Essa forma espacial é acompa- forma espacial, pois este trata o espaço
nhada de, e se beneficia de, um Estado como um contêiner para a ação social
de bem-estar social (welfare state), uma e, geralmente, restringe o utopismo à
sociedade civil forte e propriedade pú- dimensão da cidade. 8 Sua própria po-
blica do solo. Fainstein, aqui, se conecta sição normativa, também inspirada por
com a tradição espacial do novo urba- metas de justiça e eqüidade, é expressa
nismo (a que ela também direciona al- em um conjunto de “direitos”, um dos
gumas críticas). quais é o “direito de reconstruir relações
espaciais (...) de maneiras que transfor-
Há uma literatura cada vez maior mem o espaço de uma estrutura de
que apoiaria o argumento de Fainstein ação absoluta em um aspecto relativo e
de que as formas espaciais têm implica- relacional mais maleável de vida social”
ções distributivas (e ambientais) diferen- (ibid., p. 251).
tes (ver, por exemplo, Jenks e Burgess,
2000) e que aponta para os impactos Para delinear a natureza dos proble-
sociais e econômicos negativos da ex- mas enfrentados pelo planejamento, este
clusão espacial nas cidades (Borja e Cas- artigo agora se volta para o contexto da
tells, 1997). Embora pareça importante África.

O que está acontecendo com a África subsaariana?


Há um alto grau de consenso, na lite- A crise econômica da África subsaa-
ratura de desenvolvimento, de que os riana é grave: de modo geral, neste
problemas enfrentados pela África (prin- momento, as economias estão em um
cipalmente a África subsaariana) são estado pior do que estavam na ocasião
mais extremos do que os enfrentados da independência. Mesmo os funcio-
pelas outras partes do Terceiro Mundo nários do Banco Mundial, geralmente
ou do Sul. Chabal (1996) identifica qua- inclinados a exagerar o desenvolvimento
tro dimensões dessa crise: o declínio na África, agora concordam que descri-
econômico, a instabilidade política, a ções de seu desempenho econômico
“retradicionalização” e a marginalização como “trágico” e “de dimensões críticas”
da África. “não são exageros” (Elbadawi e Mwega,

8
O problema em relação a isso foi bem articulado por Graham e Healey (1999).
10 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

2000, p. 415). A taxa média de cresci- se refere ao que chama de “retradicio-


mento anual do PNB real per capita não nalização” na África, descrita como um
pára de cair desde a década de 1970 restabelecimento de tradições e práticas
(ibid.); por conseguinte, dos 500 milhões culturais antiqüíssimas. Vista em seus
de habitantes da África subsaariana, qua- próprios termos, argumenta Chabal, ela
se 300 milhões vivem em pobreza abso- deve ser compreendida como vincula-
luta, e esses números estão aumentando da a questões de identidade e ajusta-
(World Bank, 2001). Além disso, os níveis mento (ou resistência) às condições
extremamente elevados de HIV/Aids econômicas e políticas específicas que se
(68% da população mundial infectada espalham pelo continente. Exemplos de
com HIV/Aids está na África, 3,8 milhões “retradicionalização” podem ser encon-
de novas infecções ocorreram apenas em trados na persistência de feitiçaria e bru-
1999 – Aids Analysis Africa, 2000) cons- xaria; no restabelecimento de religiões
tituem um fator de suma importância na africanas e na “tradicionalização” de igre-
diminuição das possibilidades de recupe- jas cristãs na África; na persistência da
ração econômica. etnicidade e no aumento da violência
focalizada na etnicidade; no papel do-
O declínio econômico tem sido minante exercido por redes de relações
acompanhado por crises políticas, mani- familiares; na persistência do comércio
festadas por guerras, violência endêmi- e da troca, em vez da adoção de inves-
ca e colapso estatal. A África subsaariana timento produtivo, e numa “informali-
tem uma incidência maior de guerras zação” avassaladora das economias
civis do que qualquer outra região do urbanas; e no aparente fracasso de po-
mundo – 40% de seus países vivencia- líticas “modernas” (liberais ou socialis-
ram guerras civis nos últimos 40 anos tas) na África subsaariana.
(Elbadawi e Sambanis, 2000). Os au-
tores (ver Allen, 1999) agora estão tam- Chabal (1996) aponta, finalmente,
bém citando novos tipos de violência no para a percepção de que, em termos
continente, sob a forma de guerras civis mundiais, a África subsaariana tornou-
mais freqüentes e mais alastradas; au- se irrelevante, especialmente do ponto
mentos drásticos da violência interpes- de vista econômico e político. A espe-
soal ligada a crimes, colapso da civilidade rança de que os problemas econômicos
e do respeito pela lei; prevalência de ti- pudessem ser superados pela abertura
ranias militares; conflitos em nível comu- das economias africanas e por uma maior
nitário que, freqüentemente, envolvem exposição a investimentos estrangeiros
o confisco de alimentos e outros recur- não se concretizou. A África agora res-
sos; conflitos étnicos; escravidão infan- ponde por apenas quatro a seis por cento
til; e, finalmente, violência que tem por do investimento direto global líquido
alvo grupos vulneráveis, como mulhe- (Simon, 1997) e a maior parte dele vai
res, crianças e refugiados. para a Nigéria e a África do Sul. A África,
portanto, está sendo posta de lado pelo
Chabal (1996) é cauteloso quando investimento privado estrangeiro, ao
Vanessa Watson 11

mesmo tempo que estão sendo drasti- da definição usada. Allen (1997) apon-
camente reduzidos seus financiamentos ta para a maneira como definições an-
de auxílio: os fluxos de auxílio oficial caí- teriores do conceito, que o viam como
ram 48% nos dez anos anteriores a 1996 um processo pelo qual a sociedade bus-
(Bush e Szeftel, 1998). A isso, soma-se a ca “abrir uma brecha” e equilibrar a “to-
“fantasia grotesca” da dívida externa afri- talização” simultânea desencadeada pelo
cana, recentemente a maior do mundo Estado (Bayart, apud Allen, 1997), ce-
em proporção ao PNB (Leys, 1994), e deram espaço, especialmente na lite-
alguns países gastam mais da metade de ratura do desenvolvimento, para uma
seus ganhos estrangeiros com o paga- focalização nos agentes responsáveis por
mento da dívida. tal processo. Allen chama isso de visão
de “vida associativa” da sociedade civil,
Com o passar do tempo, tentativas que se baseia nos pressupostos de que
para explicar a situação africana surgiram as ONGs (organizações não-governa-
dos modernistas, de várias escolas mar- mentais) e os “grupos sociais autôno-
xistas e de teóricos da dependência e, mos” constituem uma parte significativa
mais recentemente, daqueles com viés da sociedade civil, distinta do Estado e
cultural privilegiando explicações basea- freqüentemente em conflito com ele es-
das nas especificidades da cultura política. timulando o processo de democratização.
Há também um conjunto rico de traba- A sociedade civil é vista, dessa forma,
lhos relacionados a políticas públicas. como uma categoria separada do Esta-
Embora haja uma falta notável de con- do, que pode ser criada ou aperfeiçoada,
senso entre essas várias posições expla- e não como algo que surge espontanea-
natórias e prescritivas, conjuntamente elas mente (Allen, 1997; McIlwaine, 1998).
ajudam a elucidar os aspectos da econo- Esse conceito foi operacionalizado em um
mia e da sociedade que seriam relevantes sentido analítico: alguns autores assina-
para que pudéssemos avaliar as três teo- lam que o crescimento maciço de ONGs
rias normativas de planejamento. e movimentos sociais em países em de-
senvolvimento é uma evidência de uma
sociedade civil que se torna gradual-
A sociedade civil e o Estado mente maior e mais vigorosa; e em um
na África subsaariana sentido prescritivo: a teoria de desenvol-
vimento neoliberal vincula a liberalização
Diversos autores, de várias posições, de mercado e de “capacitação comuni-
têm questionado os conceitos de socie- tária” a estratégias para reduzir o papel
dade civil na África subsaariana, ao cha- dos governos em contextos de desenvol-
marem a atenção para as maneiras pelas vimento, em vez de canalizar fundos para
quais eles diferem das noções de socie- ONGs (Burgess, Carmona e Kolstee,
dade civil nos contextos ocidentais. 1997). Resta, porém, a pergunta: será
que o crescimento de ONGs e de movi-
O modo como a sociedade civil é mentos sociais e políticos populares
conceituada depende, em grande parte, pode ser tomado como uma indicação
12 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

do desenvolvimento da sociedade civil relação à escala do problema, é mínima


e da democratização? e cujo tempo de vida (e financiamento)
é imprevisível.
Dada a relativa fraqueza dos movi-
mentos sociais na África subsaariana Alguns autores (especialmente os
(Crush, 1996), as ONGs têm sido con- interessados em transição política) co-
sideradas, por agências de desenvol- memoram um “momentum internacio-
vimento e organizações doadoras, nal de democracia” pós-década de 1990
veículos centrais para desenvolvimento (Diamond, apud Bartlett, 2000) carac-
e mudanças. Contudo, ao realizar uma terizado pela derrubada de regimes au-
ampla avaliação de ONGs “setentrionais” toritários na Europa Oriental e em países
(as financiadas e geralmente administra- em desenvolvimento e pelo surgimento
das por doadores ocidentais) na África, de uma sociedade civil vigorosa. Na
Marcussen (1996) revela algumas das África, nos últimos anos, houve nume-
maiores deficiências no seu desempenho. rosos casos em que governos uniparti-
Muitas adotaram uma abordagem “de dários foram derrubados e substituídos
cima para baixo” e demonstraram fra- por sistemas políticos multipartidários e
casso geral em alcançar os muito pobres “democráticos”. No entanto, o acompa-
e em promover um benefício econômico nhamento dos resultados dessas transi-
sustentável. As ONGs têm sido descritas ções políticas leva muitos pesquisadores
como “baluartes de desenvolvimento” a concluir que elas não podem ser sim-
que se concentram em pequenos en- plesmente equiparadas ao estabeleci-
claves sem a capacidade de aumentar mento nem da democracia nem da
suas atividades ou reproduzi-las. Espe- sociedade civil. “A lógica política tradi-
cialmente preocupante é sua tendência cional” não desaparece simplesmente
em ver o Estado como parte do pro- porque regimes autoritários foram de-
blema e tentar ignorá-lo, procedimento safiados (Bartlett, 2000). No caso da
que ocasiona competição direta e con- Zâmbia (que Bartlett argumenta ser tí-
flito com o Estado, especialmente em pico), condições sociais e políticas histo-
relação a financiamento e a recursos hu- ricamente determinadas permitiram o
manos. Isso, por sua vez, enfraquece surgimento de um grupo dominante
ainda mais os governos e impede que capaz de excluir elementos importantes
idéias de desenvolvimento sejam insti- da sociedade civil e de permitir o retorno
tucionalizadas em escala mais ampla. da corrupção, do nepotismo e do favori-
Segundo Marcussen (1996, p. 420), no tismo político. Como disse o então minis-
mundo ocidental, o desenvolvimento da tro das Relações Exteriores da Zâmbia:
sociedade civil ocorreu organicamente “Se eu não nomear pessoas de minha
e em cooperação com o governo, não própria região, quem as nomeará?”.
em conflito com ele. Na África, tornou- Bartlett conclui que “a existência de uma
se um processo artificial, impelido faixa ampla de organizações civis não
externamente e orquestrado por orga- garante que qualquer uma delas articu-
nizações cuja esfera de influência, em lará normas que promovam o desenvol-
Vanessa Watson 13

vimento de uma arena pública toleran- de identidade/estilo de vida que se tor-


te ou participativa” (ibid., p. 445). nou tão visível em países desenvolvidos
e são muito mais propensas a serem
A partir de um extenso exame da relativas a questões materiais e à simples
literatura sobre movimentos sociais em necessidade de sobrevivência (Mohan,
países em desenvolvimento, Walton 1997). Assim, Mohan afirma que a iden-
(1998) encontra provas para apoiar tais tidade não é um ponto de partida útil
conclusões. Apesar do crescimento de para a compreensão das lutas políticas
movimentos sociais e de tentativas de na África ou que, pelo menos, ela talvez
democratização, ele sugere que a parti- exija uma compreensão mais completa
cipação ainda é mediada mais tipica- dos relacionamentos entre materialidade
mente por relações patrão/cliente do que e identidade.
por ativismo popular. No contexto da
África, De Boeck (1996, p. 93) salienta No contexto dessa discussão sobre
que dicotomias implícitas, tais como Es- a natureza do Estado e da sociedade
tado/sociedade ou legal/ilegal, já não civil, numerosos autores destacam a
captam a realidade. Em um “mundo natureza extremamente complexa e flui-
cada vez mais ‘exótico’, complexo e caó- da da identidade na África. O colapso
tico, que parece anunciar o fim da vida social e econômico deixa muitas pessoas
social e do tecido social tais como conhe- com pouca noção de pertencimento
cidos por quase todos nós”, o Estado é (processo, sustentam alguns, que come-
apenas um (freqüentemente fraco) lócus çou com a penetração colonial) ou com
de autoridade, juntamente com chefes pouca idéia de quem os representa.
tradicionais, déspotas militares e máfias. Uma solução para essa situação tem sido
Definições de legal e ilegal mudam cons- a utilização da identidade de uma ma-
tantemente, segundo os grupos que neira altamente oportunista:
exercem o poder na ocasião. Aina (1997,
p. 418) sustenta que na África é um erro dependendo da situação, às vezes a
supor que o relacionamento da socie- religião, às vezes a etnicidade, pode
dade civil com o processo de democrati- vir a ser o fator determinante da
zação é sempre progressivo; na verdade, identidade e do comportamento de
muitas vezes há fortes tendências con- um indivíduo. A versatilidade organi-
servadoras. zacional das ordens que as tornaram
os modos básicos de organização
vis-à-vis ao Estado está em sua capa-
Identidade cidade de adaptar-se a essa ambi-
güidade, e até tirar proveito disso.
As questões de diferença e identidade (Leonardo Villalon, apud O’Brien,
grupais cada vez mais ocupam a atenção 1996, p. 63)
de quem escreve sobre a África. Insiste-
se em que as lutas políticas na África são Conseqüentemente, na África, iden-
muito menos parecidas com a política tidade é muitas vezes um produto de hi-
14 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

bridização, fusão e inovação cultural. É foram abertas a processos globais de


com freqüência autogerada e autocons- comercialização (basicamente como re-
truída, às vezes com ênfase renovada na sultado de políticas de ajustamento es-
identidade étnica ou “retribalização”, às trutural) e a produção doméstica foi
vezes entrelaçada com identidades glo- dizimada, que os termos de troca em
bais (De Boeck, 1996). Atualmente, o uma escala mundial passaram a desfa-
compromisso religioso oferece a muitos vorecer os produtores primários e que
jovens um caminho para escapar da mar- o Estado, muitas vezes um dos maiores
ginalização social; O’Brien (1996, p. 64) provedores de emprego formal, passou
comenta que as missões cristãs consti- por um processo de encolhimento, as
tuem hoje a maior e única indústria na pessoas foram obrigadas a procurar
África. Os estudantes estão muitas vezes meios de sobrevivência fora da eco-
na vanguarda dos movimentos de liber- nomia formal. Elas se deslocaram, em
tação, mas seu papel é ambivalente, grandes quantidades, para o auto-
pode estar mais ligado ao desejo de ga- emprego (tanto legal como ilegal) ou
nhar acesso a empregos no governo e para o trabalho temporário, ou precisa-
de fazer parte da elite dominante do que ram complementar seus salários formais
de garantir a democracia. O impulso polí- com atividades informais geradoras de
tico da multidão é, acima de tudo, moti- renda. Em 1992, a OIT estimou que
vado pela economia (ibid.). 63% da mão-de-obra urbana total da
África subsaariana ocupava empregos
O “lado obscuro” da construção da informais e que esse setor gerava 93%
identidade na África subsaariana talvez de todos os empregos adicionais na Áfri-
se assemelhe mais a outros contextos. ca urbana durante a década de 1990
A identidade define elementos de seme- (Rogerson, 1997).
lhança e, simultaneamente, de diferen-
ça – do “outro”. Nos locais onde o Embora uma heterogeneidade de
Estado é fraco, a coesão social é frágil e oportunidades de trabalho, às vezes, seja
a competição por recursos é desespera- considerada inevitável na nova econo-
da, as divisões sociais podem facilmen- mia global e embora o crescente setor
te se degenerar e, de fato, se degeneram informal seja ocasionalmente descrito
nos horrores da limpeza étnica e do ge- como um sinal positivo de empreende-
nocídio. dorismo pelos defensores das políticas
neoliberais, a natureza específica da infor-
malização na África precisa ser interpre-
A economia e a tada predominantemente como uma
i n formal i za çã o estratégia de sobrevivência. A maior parte
da atividade informal é no campo do
Nos últimos anos, o aspecto mais sur- comércio, com pouca evidência de que
preendente das economias africanas microempresas produtivas “em incuba-
subsaarianas é a sua progressiva “infor- ção” estejam surgindo para garantir um
malização”. À medida que as economias lugar na economia mundial (ou mesmo
Vanessa Watson 15

regional). A maioria das atividades gera ção por meio de instrumentos de políticas
poucos empregos extras e muitas delas e de intervenções externas.
proporcionam rendas baixas e irregulares
sob condições de trabalho muito precá-
rias. A maior parte das próprias atividades As cidades na África
é de natureza de sobrevivência e envolve subsa a ria na
pouco investimento, poucas habilidades
e lucro mínimo. A África subsaariana, com apenas 31%
de sua população em áreas urbanas, é
Esses processos têm implicações a região menos urbanizada do mundo
óbvias nos altos níveis de pobreza, desi- (Simon, 1997) e conta com poucas ci-
gualdade e insegurança, mas também dades muito grandes. Uma característica
têm conseqüências em outros aspectos significativa dessa região são os fortes
da vida social e política. Em um contexto vínculos urbano-rurais que ainda exis-
de economias em declínio, a concorrên- tem e mantêm muitas pessoas em inces-
cia se intensifica e cria, ao mesmo tempo, sante deslocamento entre bases urbanas
a necessidade de recorrer a uma ampla e rurais. Essa estratégia de “estender a
faixa de redes (familiar, religiosa, étnica família” espacialmente (Spiegel, Watson
etc.) e de continuamente organizar, ne- e Wilkinson, 1996) funciona como uma
gociar e proteger os espaços de oportuni- rede de segurança econômica e social
dade que foram criados (Simone, 2000). que, além de permitir acesso a oportu-
A concorrência intensificada, argumenta nidades econômicas em constante alte-
Simone, faz com que processos econô- ração, conserva redes de parentesco e
micos e políticos de todos os tipos fiquem outras redes. À medida que a sobrevi-
abertos à negociação e à informalização. vência nas cidades se torna cada vez
O estabelecimento de redes e relações mais precária, os recursos rurais adqui-
com o estado se torna especialmente va- rem maior importância e as estratégias
lioso, tanto para negociar acesso prefe- rurais de sobrevivência começam a pe-
rencial a recursos como para evitar netrar nas áreas urbanas – a “ruralização”
controle e regulamento, e, como resul- das cidades (em termos de atividades
tado, cada vez mais “(...) as instituições produtivas e modos de vida) é uma ex-
públicas são vistas não como públicas, pressão cada vez mais usada para des-
mas como o domínio de grupos de inte- crever mudanças em cidades africanas
resses específicos, tornando-se, na verda- (De Boeck, 1996). O declínio econômi-
de, locais para acumulação e vantagem co também precipitou um movimento
particulares” (ibid., p. 7). Logo, o relacio- mais geral em busca de oportunidades
namento entre Estado e cidadãos, e entre por toda a África. O movimento, em gran-
agentes formais e informais, torna-se sub- de escala (muitas vezes ilegal), de pessoas
codificado e sub-regulado, dependente que se deslocam por todo o continente
de processos complexos de formação de comerciando drogas e bugigangas exó-
alianças e intermediação de acordos, e ticas é prova disso. Uma implicação desse
particularmente resistente à reconfigura- fenômeno é que a conceituação de ci-
16 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

dades como entidades completas que de pobres urbanos, a decrescente capa-


podem ser planejadas e administradas cidade de o governo fornecer serviços
corretamente (como aconteceu em ten- urbanos ou regular o ambiente urbano
tativas anteriores de planejamento em resultou em uma extensa informalização
cidades africanas) torna-se obviamente tanto do tecido urbano quanto do uso
questionável;9 outra conseqüência é que do solo urbano. Com níveis cada vez
a dedicação de pessoas a locais urbanos mais altos de criminalidade, os ricos se
específicos (e o que acontece com eles) entrincheiram em enclaves de alta segu-
faz-se mais tênue. Segundo Simone rança e escolhem cuidadosamente os ca-
(1999), as conexões entre espaço social minhos por onde passam para evitar os
e físico desunem-se progressivamente, e seqüestros de automóveis. Essas partes
as estruturas para formação de identida- da cidade continuam, em graus variados,
de e redes espalham-se através de re- bem servidas e reguladas. Além dessas
giões e nações, em vez de se enraizarem áreas, os serviços são degradados ou
em locais específicos. inexistentes, os abrigos são provisórios e
a ocupação e uso do solo são desregu-
Em muitas cidades, os padrões alta- lamentados (e freqüentemente muito
mente diferenciados de acesso a recur- contestados). Isso não significa que a or-
sos refletem-se nas crescentes divisões ganização dessas áreas seja fortuita:
espaciais entre a elite bem relacionada e Simone (1998) afirma que não só é difí-
a grande massa de pobres. A maioria das cil determinar onde a cidade começa e
cidades africanas desenvolveu um “nú- termina, mas também identificar o que
cleo” comercial e residencial definido e constitui uma cidade particular, única, em
provido de bons serviços, que, primeiro, vez de centenas de áreas e bairros. Na
alojou os senhores coloniais e, em segui- maioria das cidades, qualquer novo in-
da, a elite comercial e política local e os vestimento do setor privado evita tais
investidores estrangeiros. Muitas cidades áreas e, por conseguinte, exacerba as
também apresentam tentativas, oriundas divisões entre ricos e pobres. Mesmo na
do período pós-colonial, de oferecer Cidade do Cabo, onde a amplitude dos
moradias para as classes trabalhadoras assentamentos informais e desregula-
sob a forma de apartamentos e de proje- mentados é muito menor que na maioria
tos de baixo custo em que o estado provê das outras cidades, as divisões espaciais
a moradia e alguns serviços como água fortificadas pelo apartheid estão agora
ou esgoto e exige, em contrapartida, a sendo reforçadas por um padrão de no-
mão-de-obra do morador na constru- vos investimentos que se restringem às
ção. 10 Nos anos subseqüentes, juntamen- partes mais ricas, mais bem servidas e mais
te com o rápido aumento do número atraentes da cidade (Turok e Watson,

9
Não se trata de fenômeno restrito a cidades africanas, como Healey (2000) sustenta.
10
Em cidades sul-africanas, esses esforços eram ligados ao projeto de apartheid e à realização
de cidades racialmente segregadas. A provisão formal de moradia e de infra-estrutura básica
para grupos de renda mais baixa (negros) era muito mais extensiva que em outras cidades
africanas.
Vanessa Watson 17

2001). Logo, em termos de organização gadas às rotas internacionais do tráfico


espacial, as cidades africanas estão fican- de drogas) controlam alguns dos distri-
do cada vez mais injustas em função da tos municipais “de cor”, a ponto de, às
exclusão espacial e social dos pobres ao vezes, terem usurpado à municipalidade
acesso às poucas oportunidades formais a alocação de unidades habitacionais
que as cidades de fato têm a oferecer. públicas e a coleta de aluguéis. Em outro
exemplo, tentativas municipais de iniciar
Essencialmente, em muitas cidades uma melhoria em um assentamento in-
do subcontinente, o “alcance” de insti- formal na Cidade do Cabo foram repe-
tuições formais de autoridade estatal (e, lidas por déspotas militares locais ligados
por isso, de sistemas de manutenção de a fontes de autoridade tribal em áreas
lei e ordem) é apenas parcial, e há gran- rurais, uma vez que sua principal fonte
des regiões de muitas cidades que devem de renda, ou seja, o dinheiro de “prote-
ser consideradas “desgovernadas”. Nelas, ção” pago por moradores de barracos,
as fontes alternativas de autoridade (che- teria sido suprimida (Municipality of
fes tribais, déspotas militares e chefes do Cape Town, 1998). Outras cidades da
tráfico) imperam e resistem às tentativas África se caracterizam por essa “partilha
do Estado de invadir seus territórios. de poder” de modo ainda mais radical.
Mesmo na Cidade do Cabo, gangues (li-

O uso de teorias normativas de planejamento nas


cidades da África subsaariana

Será que as três teorias normativas de za do contexto em que o planejamento


planejamento discutidas anteriormente ocorre e que parecem não se aplicar a
podem impulsionar o debate sobre pla- essa parte do mundo.
nejamento na África subsaariana? Será
que oferecem, pelo menos, uma pers-
pectiva teórica sobre o papel e o posi- O valor das teorias
cionamento do planejamento em tal normativas de planejamento
contexto ou será que, como sugerem atua is
Huxley e Yiftachel (2000, p. 336), elas
generalizam inadequadamente um con- Dada a natureza de muitas das práticas
texto ocidental? Adiante, argumento passadas e atuais de planejamento na
que, sob alguns aspectos, elas oferecem África Subsaariana, seja no que se refere
percepções importantes que planeja- às insuficiências e debilidades do Estado,
dores na África fariam bem em seguir. seja pela sua apropriação por interesses
Porém, sob outros aspectos, baseiam-se clientelistas e locais, todas as três teorias
em pressupostos relacionados à nature- competentemente chamam a atenção
18 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

para a importância de grupos alicerça- Aspectos da abordagem de Cidade


dos na sociedade civil nos processos de Justa de Fainstein também são muito
planejamento e para a natureza política importantes para a avaliação do plane-
do planejamento. Por conseguinte, essas jamento na África. Em um contexto no
teorias levam o planejamento para além qual pobreza e sobrevivência são os pro-
de conceitos tecnocráticos e corporati- blemas centrais para a vasta maioria dos
vistas fundamentados no racionalismo habitantes, a questão dos efeitos distri-
instrumental, muitas vezes insensíveis ao butivos de decisões de planejamento e
contexto a que se destinam os planos. de formas espaciais planejadas específi-
Todas essas teorias, de forma compe- cas é crucial. Se o planejamento nas ci-
tente, questionam o modelo Iluminista dades africanas subsaarianas não puder
de domínio público que universalizou o demonstrar que é mais abrangente do
homem branco e a experiência euro- que o controle de usos do solo e que
péia, refutou outras possibilidades e precisa desempenhar um papel central
impôs de modo generalizado um mo- ao tratar das questões de desenvolvi-
delo de imparcialidade (Beauregard, mento urbano, ele estará, então, desti-
1998). Na sociedade civil, o reconheci- nado a ficar ainda mais marginalizado
mento de que há “vozes diferentes” que do que já está. Por essa razão, o reco-
representam o que podem ser pontos nhecimento de Fainstein do papel da
de vista válidos e valiosos é de impor- economia política, tanto na determina-
tância vital na África, onde as sociedades ção da natureza dos problemas urbanos
são qualquer coisa menos homogêneas quanto na configuração do conjunto de
e onde algumas vozes, muitas vezes, são possíveis resultados de planejamento, é
reprimidas pela violência ou pela tradi- uma importante correção do foco na
ção. Como Storper (2001, p. 156) ob- “agência” ou no “local” característico de
servou, os movimentos de combate ao outras teorias de planejamento. Decisi-
racismo e a outros preconceitos, assim vo, portanto, é seu enfoque no planeja-
como o respeito pela diversidade em mento no nível da cidade como um
geral, estão provavelmente entre os todo, em contraposição ao enfoque em
mais importantes progressos do século iniciativas de grupos ou projetos locais,
XX, e, sob esse aspecto, a África não e no modo como as decisões, nesse nível
deve ser deixada para trás. A posição mais amplo, estabelecem os parâmetros
de Sandercock de que, no âmbito do para ações mais locais.
discurso, essas diferenças ultrapassam as
“diferenças de significado” e podem Finalmente, todas as três teorias le-
estar enraizadas nas diferenças culturais vantam questões úteis sobre o projeto
mais fundamentais também é válida: os da modernidade, sobre as teorias de
altos níveis de mobilidade e desordem desenvolvimento evolucionário e sobre
na África resultaram na coexistência de o sentimento de certeza que impregnava
agrupamentos étnica e culturalmente muitas das iniciativas de planejamento do
diversos, muitas vezes com maneiras passado. Na África subsaariana, mais do
muito diferentes de “ver e interpretar”. que em qualquer outra parte do “sul”, o
Vanessa Watson 19

futuro parece ser de declínio constante, intervenção planejada; comprometer-se


interrompido pelo ocasional enclave de com um processo organizado de plane-
desenvolvimento. É absolutamente im- jamento que seja aceito também pelos
possível prever como essa situação che- que serão afetados pela ação; envolver-
gará ao fim, e o planejamento (onde se em um processo de busca de consenso
pode agir) conta com poucos preceden- que seja democrático e justo; negociar
tes eficazes e com poucas bases firmes quaisquer processos ou resultados com
para traçar um caminho para diante. estruturas formais de governo; mobilizar
recursos e capacidades para cumprir de-
cisões; manter envolvimento com pro-
Onde as teorias normativas cessos de implementação.
atuais são menos eficazes
Em muitos países da África subsaaria-
Sob outros aspectos, essas teorias nor- na, a natureza altamente disfuncional da
mativas são baseadas em pressupostos sociedade civil dificulta muito a ocorrên-
relacionados à sociedade civil, à identi- cia de tais processos. 11 Os movimentos
dade e às possibilidades de desenvolvi- sociais ou populares são poucos, frágeis
mento “de baixo para cima” que não e freqüentemente vinculados a interes-
têm muita probabilidade de vigorar no ses étnicos, e não é possível confiar neles
contexto de grandes partes da África. para levarem avante questões de inte-
As idéias presentes na abordagem da resse público mais amplas. ONGs que
Cidade Justa devem sofrer, assim, algu- recebem financiamentos externos talvez
mas modificações. estejam mais bem posicionadas para
tomar tais iniciativas, mas as limitações
Todas as três teorias normativas de- dessas organizações também foram ob-
monstram fé na capacidade de a socieda- servadas anteriormente (ver também
de civil promover o ideal de democracia, Mitlin, 2001). Também foi demonstrado
uma fé compartilhada pela teoria do que os vínculos entre funcionários esta-
desenvolvimento tradicional. Isso se ma- tais, políticos e vários grupamentos fora
nifesta pela promoção de projetos de do Estado são complexos e quase sem-
planejamento realizados por organiza- pre de natureza “clientelista”: a noção de
ções baseadas na sociedade civil ou em uma sociedade civil independente que
conjunto com o governo local ou, no pressiona o governo a agir mais demo-
caso de Sandercock e, às vezes, de Fain- crática e justamente difere seriamente da
stein, inteiramente fora das estruturas realidade de grande parte da África. Além
governamentais. Pressupõe-se aqui que do mais, as possibilidades de alcançar
os órgãos da sociedade civil são suficien- consenso são, sem dúvida, mais difíceis
temente estruturados para serem capa- em sociedades fragmentadas tão profun-
zes de: reconhecer a necessidade de damente pela etnicidade e tão motivadas,

11
Críticos da teoria de planejamento comunicativo também questionam a viabilidade de tais
processos em partes do mundo mais estáveis e economicamente desenvolvidas (ver, por
exemplo, Flyvbjerg, 1998a; Huxley, 2000).
20 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

obrigatoriamente, pela meta da sobrevi- políticas de identidade deslocam as lutas


vência. O exercício do poder como uma por redistribuição de duas maneiras.
força motivadora está presente em todas Algumas posições identificam as raízes
essas situações, mas pode manifestar-se da injustiça no nível do discurso (por
mais aberta e negativamente sob circuns- exemplo, declarações degradantes), em
tâncias de escassez e instabilidade. Redes vez de percebê-las no nível dos signifi-
de todos os tipos operam intensamente, cados e das normas institucionais. Isso
mas é pouco provável que se interessem leva à ausência de reconhecimento de
pelas questões referentes a espaço e ao fatores socioestruturais decisivos. Outras
local de que geralmente se ocupa o pla- posições, associadas à teoria de viés cul-
nejamento. As populações em constante turalista, postulam que as questões re-
movimento, em constante busca de opor- ferentes à desigualdade se subordinam
tunidades sempre em alteração, não às questões identitárias ou de “reconhe-
estão em condições de se compromete- cimento”, sendo explicadas como um
rem com processos prolongados de de- efeito secundário destas últimas. Assim,
bate e de envolvimento em iniciativas de as questões identitárias deveriam ser tra-
planejamento localizadas. Infelizmente, a tadas prioritariamente em relação às
esperança de aumentar o capital social lo- questões concernentes à distribuição da
calizado para ser utilizado em processos renda ou dos recursos. Essa parece ser
futuros também se torna menos provável. a posição de Sandercock. Fraser (2000)
afirma que não só essas posições obs-
Em razão do contínuo enfoque das curecem as verdadeiras raízes dos pro-
lutas políticas da África mais na política blemas identitários, que se referem a
material do que na política de estilo de padrões de valor institucionalizados,
vida/identidade, o reconhecimento e a como também que a reificação da iden-
celebração da identidade, como defen- tidade cria uma pressão moral para a
didos por Sandercock, também preci- conformidade do grupo, obscurecendo
sam ser pensados de forma diferente. as lutas intragrupais, tais como as relati-
Fraser (2000) trata de política de iden- vas a gênero.
tidade de modo mais geral, mas seus
argumentos são relevantes para a ope- Essas idéias sugerem que os plane-
racionalização dessa abordagem na Áfri- jadores, que talvez estejam muito inte-
ca. Segundo a autora, em primeiro lugar, ressados em trazer para o primeiro plano
as demandas por reconhecimento estão as questões da identidade no contexto
eclipsando as demandas por redistribui- da África, precisam agir com grande
ção (em um contexto de crescente dis- cautela. Na medida em que puserem de
paridade econômica) e, em segundo lado as questões distributivas, eles po-
lugar, a reificação da diferença cultural derão exacerbar o problema central da
está estimulando o separatismo e a in- África: pobreza e disparidade. Há tam-
tolerância. Os resultados, argumenta, bém o perigo de deixarem de reconhe-
são desigualdades crescentes e a sanção cer que, na África, muitas expressões de
da violação de direitos humanos. As identidade são economicamente moti-
Vanessa Watson 21

vadas e, à vezes, oportunistas. Priorizar desempenha um relevante papel na de-


a identidade pode gerar conseqüências terminação de processos e resultados, e
econômicas que não sejam inteiramente esse reconhecimento é um corretivo im-
previsíveis nem desejáveis. Na África, portante para as posições estruturais do
mais importante, ainda, talvez seja a ten- passado. No entanto, a marginalização da
dência de a identidade étnica fornecer importância de forças estruturais mais
os contornos e linhas responsáveis pela amplas no desenvolvimento da África
delimitação de grupos antagônicos que, também seria um erro muito grande.
em choque, produzirão grandes confli- Embora as forças econômicas globais
tos, guerras civis e genocídio. Também estejam desempenhando um papel cada
há indicações, como Fraser (2000) su- vez mais significativo nas economias de
gere, de que a etnicidade cobre uma todos os países, a África tem sido parti-
multidão de abusos intragrupais (circun- cularmente suscetível às alterações da
cisão feminina, escravidão infantil etc.) demanda e da fixação dos preços dos
que afetam sobretudo os mais vulnerá- produtos primários, seu principal gera-
veis da sociedade. No momento atual, dor de divisas estrangeiras. Além disso, a
a reificação da identidade de modos sim- maioria dos países africanos é influencia-
plistas pode ser mais prejudicial do que da fundamentalmente por políticas de
benéfica. ajuste estrutural e programas de auxílio
que lhe são impostos pelo Banco Mun-
Uma terceira área de disputa tem a dial e o FMI. Poucos aspectos da socie-
ver com a concentração de teorias de dade e da economia africanas não foram
planejamento no nível “local”. Tanto a tocados por essas políticas e esses pro-
teoria de planejamento comunicativo gramas, e as iniciativas locais não têm
quanto a teoria multicultural ressaltam conseguido funcionar fora deles. A cres-
os processos referentes a grupos locais cente pobreza e a instabilidade política
e o papel da agência. O conhecimento são, por sua vez, importantes fatores sub-
local é valorizado, e o conceito de capi- jacentes aos níveis extremamente altos
tal social torna-se importante ao estimu- de mobilidade populacional vivenciada
lar um processo de desenvolvimento “de nas regiões africanas e entre elas. Por
baixo para cima”. Na abordagem de conseguinte, as populações locais não
Cidade Justa, as forças mais amplas da têm nem estabilidade nem coesão, am-
política econômica são reconhecidas, bas precondições, ao que parece, para
mas, não obstante, há o pressuposto de criação de capital social, 12 de iniciativas
que algum tipo de eqüidade pode ser de desenvolvimento “de baixo para
alcançado no nível da cidade individual. cima”, de processos grupais harmonio-
sos e de um constante compromisso com
Não há dúvida de que, na África, os processos de planejamento e imple-
assim como em outros lugares, “o local” mentação. Pelas mesmas razões, as in-

12
A importância preponderante do local na criação de capital social foi, de qualquer modo,
criticada pelos que examinam o papel de forças mais amplas no famoso estudo de caso de
Putnam (Tarrow, apud Mohan e Stokke, 2000).
22 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

justiças no nível de uma cidade particu- urbanos da África do Sul na última dé-
lar devem ser encontradas nas dinâmi- cada (Dewar, 2000; Schoonraad, 2000;
cas das áreas rurais, em outras cidades e Todes, 2000; Todes, Dominik e Hindson,
regiões e, naturalmente, em forças mui- 2000), permitindo algumas conclusões
to mais amplas. sobre suas viabilidades em áreas pobres
de recursos.
O problema com enfoque no local,
sustentam Mohan e Stokke (2000), é A abordagem pressupõe níveis rela-
que ele limita tanto a consciência quanto tivamente altos de controle estatal sobre
a ação. Se a base econômica e política o uso do solo para definir e manter uma
não for problematizada, é possível, pequena vantagem urbana e controlar
então, culpar simplesmente as incapaci- invasões de terra. Embora isso talvez seja
dades de grupos ou áreas locais de se possível no contexto de uma cidade
situarem corretamente em relação a for- como, por exemplo, a Cidade do Cabo,
ças mais amplas. Isso, por sua vez, ignora que tem menos assentamentos informais
a necessidade de as iniciativas locais ul- periféricos do que as outras cidades sul-
trapassarem o âmbito dessa escala, africanas e tem valiosas terras agrícolas
dando início a um processo de articula- comercializadas além de seus limites, nas
ção e formação de alianças global. outras cidades, a redução de assenta-
mentos informais pode ser altamente
Uma quarta área de disputa diz res- prejudicial a famílias mais pobres que
peito ao tipo de formato urbano desen- sobrevivem através de ligações urbano-
volvido pela abordagem de Cidade rurais complexas e de emprego margi-
Justa. Não há dúvida de que os tipos nal local (Cross, apud Todes, 2000, p.
de princípios espaciais que norteiam a 619). Essa abordagem também pressu-
organização do espaço em uma cidade põe que recursos significativos estão dis-
como Amsterdã (que, para Fainstein, é poníveis para o desenvolvimento de áreas
um exemplo da forma eqüitativa) se urbanas valorizadas nos centros das ci-
aproximam mais das necessidades de dades e para a promoção de programas
uma população mais pobre do que habitacionais caracterizados por uma alta
aqueles presentes nos modelos que pri- densidade populacional, ao invés de sim-
vilegiam ambientes vastos e monofun- plesmente garantirem o desenvolvimen-
cionais e a utilização de automóveis, to de áreas dotadas de infra-estrutura
modelos esses intensamente utilizados, mínima. Poucos países africanos podem
no passado, nas cidades africanas. Tam- dispor de fundos habitacionais com a
bém começam a ser tratados o tema da magnitude necessária. A reação normal
eqüidade no nível de cidade inteira e do planejamento, que é oferecer locais
importantes considerações ambientais muito pequenos com serviços (tanto para
(Jenks e Burgess, 2000). É justamente cortar custos quanto para manter densi-
por essas razões que essas idéias espaciais dades), provou ser altamente impopu-
(às vezes chamadas de modelo de “cida- lar, porque os locais maiores são vistos
de compacta”) se infiltraram nos planos como um recurso econômico que per-
Vanessa Watson 23

mite sublocação e, às vezes, agricultura. desde o fim do apartheid, as cidades se


Tentativas de conseguir cidades mais com- tornaram menos eqüitativas em termos
pactas e mais eqüitativas também vêm de renda, com divisões e barreiras cres-
desprezando as forças de mercado, que centes entre as partes mais ricas e as mais
tendem a direcionar o investimento pri- pobres das cidades. A idéia de Cidade
vado para enclaves descentralizados e Justa de Fainstein permanece um ideal
defendidos (Turok e Watson, 2001) e o pelo qual vale a pena lutar, mas também
investimento individual para moradias parece ser cada vez mais irrealizável em
periféricas (Bebbington e Bebbington, um contexto como esse.
2001). Na África do Sul, pelo menos

Conclusão
É impossível pensar em planejamento O processo de modernização, em
na África sem considerar a questão do suas formas tanto capitalista quanto so-
desenvolvimento de modo mais geral, cialista, não serviu bem à África ou, se o
principalmente porque posições sobre fez, foi de forma muito desigual, e as
planejamento são inevitavelmente sus- filosofias de desenvolvimento neolibe-
tentadas por pressupostos relativos à rais, promovidas por meio de políticas
economia e à sociedade mais amplos. de ajuste estrutural, foram francamente
Neste artigo, indico uma situação em que destrutivas. Sem nenhum novo paradig-
o problema do desenvolvimento urbano ma de desenvolvimento à vista, os es-
é provavelmente mais sério que em tudiosos pós-modernistas e de viés
qualquer outro lugar. Chamo a atenção culturalista continuam acreditando que
especialmente para o problema básico a sociedade civil e os movimentos sociais
de sobrevivência humana (ameaçada estabelecerão a democracia e o desen-
por Aids, guerras e pobreza); o colapso volvimento econômico local. Eles vêem
econômico; a incapacidade de governos a sociedade como uma diversidade de
para representar, regular ou prover; os grupos com valores diferentes que inte-
conflitos intergrupais de todos os tipos; ragem através de fronteiras porosas e
as cidades que estão se fragmentando limites não definidos (Storper, 2001).
em um faccionalismo desesperado; e a Essa visão, argumenta ainda Storper,
suspensão de todos os códigos morais e além de não ser incompatível com o
legais na luta pela sobrevivência. O qua- mundo amigável e consumista do neoli-
dro não é homogêneo: há enclaves de beralismo, é igualmente despolitizante.
sucesso econômico e riqueza, e há movi- Outras posições sustentam um controle
mentos sociais democráticos e ONGs que maior dos fluxos financeiros globais e
realizam trabalhos positivos. Mas eles pa- um papel mais forte para o Estado a
recem ser a exceção e não a norma. fim de fortalecer suas funções de bem-
24 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

estar social, posição agora também ad- favoráveis etc.) são uma precondição
mitida pelo “neoliberalismo pragmático” essencial para qualquer tipo de renasci-
emergente (ver Sen, 1999). Mas, como mento econômico.
Storper (2001, p. 161) assinala, há,
Isso fundamenta uma forma de pla-
no momento, uma disputa intelec- nejamento em que governos desem-
tual para determinar qual o grau de penham um papel importante, mas
regulamento de que precisa o capi- certamente não são os únicos participan-
talismo para atingir um nível razoá- tes. Como Yiftachel (1995) sugere, os va-
vel de estabilidade e justiça social. Os lores tradicionais do planejamento que
esforços atuais para definir a natureza têm a ver com reforma e interesse públi-
e o grau do regulamento político do co continuam tão relevantes como sem-
capitalismo não têm nenhum projeto pre, contanto que o reformismo não
utópico digno de crédito ligado a eles. apele para o controle social e que haja o
reconhecimento de um público hetero-
No contexto da África subsaariana, gêneo. Isso fundamenta uma forma de
as políticas para reduzir o papel e o planejamento que reconhece que “o lo-
poder de governos centrais, para des- cal” molda as forças estruturais mais
centralizá-los e privatizar os serviços pú- amplas e é também moldado por elas, e
blicos, foram, em parte, responsáveis que ação local por conta própria será li-
pelo mergulho em conflitos interétnicos mitada e despolitizante. Fundamenta,
e pelo colapso dos serviços e do bem- também, uma forma de planejamento
estar social. Muitos governos anteriores que reconhece a base material das lutas
eram ineficientes, supercentralizados e de identidade, pelo menos na África,
corruptos, mas “diminuir” o Estado não bem como a natureza complexa, fluida
foi a solução. Além do mais, de modo e divisora das questões da identidade.
geral, na África, a sociedade civil não é Isso, por sua vez, exige que os planejado-
coesiva o bastante para realizar, por conta res tenham “jogo de cintura” nos proces-
própria, nem metas de desenvolvimento sos de negociação: o poder prevalecerá
nem metas democráticas, logo, uma so- sobre a racionalidade (Flyvbjerg, 1998b)
ciedade civil forte vai precisar de gover- e será certamente mais evidente que a
nança mais forte do que a que existe busca harmoniosa de consenso. Final-
agora. Da mesma forma, parece que a mente, reconhece o impacto social e
economia globalizada não está prestes a ambiental das intervenções espaciais e a
trazer “desenvolvimento” à África. As necessidade de que elas respondam às
mudanças estruturais importantes (alívio demandas particulares do contexto, sem
da dívida, assistência maciça para Aids e apelarem para importações simplificadas
programas antipobreza, termos de troca de partes do mundo muito diferentes.
Vanessa Watson 25

Referências

AIDS ANALYSIS AFRICA. 10(5). Disponível BREHENY, M. (Ed.). Sustainable Develop-


em: <http://www.und.ac.za/und/heard/ ment and Urban Form. London: Pion,
AAA/AAA.htm>. Acesso em: jun. 2000. 1992.

AINA, T. The state and civil society: poli- BURGESS, R.; CARMONA, M.; KOLSTEE, T.
tics, government and social organization The Challenge of Sustainable Cities: Ne-
in African cities. In: RAKODI, C. (Ed.). The oliberalism and Urban Strategies in De-
Urban Challenge in Africa: Growth and veloping Countries. London: Zed Books,
Management of its Large Cities. Nairo- 1997.
bi: United Nations University Press,
1997. BUSH, R.; SZEFTEL, M. Commentary: “glo-
balisation” and the regulation of Africa.
ALLEN, C. Who needs civil society? Re- Review of African Political Economy, 76,
view of African Political Economy, 73, p. 173-177, 1998.
p. 329-337, 1997.
CHABAL, P. The African crisis: context and
__________. Warfare, endemic violence interpretation. In: WERBNER, R.; RANGER,
and state collapse in Africa. Review of T. (Ed.). Postcolonial Identities in Afri-
African Political Economy, 81, p. 367- ca. London: Zed Books, 1996.
384, 1999.
CRUSH, J. (Ed.). Power of Development.
BARTLETT, D. Civil society and democra- London: Routledge, 1996.
cy: a Zambian case study. Journal of
Southern African Studies, 26(3), p. 429- DE BOECK, F. Postcolonialism, power and
446, 2000. identity: local and global perspectives
from Zaire. In: WERBNER, R.; RANGER, T.
BEAUREGARD, R. Writing the planner. (Ed.). Postcolonial Identities in Africa.
Journal of Planning Education and De- London: Zed Books, 1996.
velopment, 18, p. 93-101, 1998.
DEWAR, D. The relevance of the compact
BEBBINGTON, A.; BEBBINGTON, D. Devel- city approach – the management of ur-
opment alternatives: practice, dilemmas ban growth in South African cities. In:
and theory. Area, 33(1), p. 7-17, 2001. JENKS, M.; BURGESS, R. (Ed.). Compact
Cities: Sustainable Urban Forms for De-
BORJA, J.; CASTELLS, M. Local and Glo- veloping Countries. London: Spon Press,
bal: Management of Cities in the Infor- 2000.
mation Age. London: United Nations
Centre for Human Settlements (Habi- DIAW, K.; NNKYA, T.; WATSON, V. Planning
tat), Earthscan, 1997. education in Africa: responding to the
26 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

demands of a changing context. Paper GRAHAM, S.; HEALEY, P. Relational con-


presented at the World Planning Schools cepts of space and place: issues for plan-
Congress, Shanghai, 11-15 July 2001. ning theory and practice. European
Planning Studies, 7(5), p. 623-646,
ELBADAWI, I.; MWEGA, F. Can Africa’s sav- 1999.
ing collapse be reversed? World Bank Eco-
nomic Review, 14(3), p. 415-443, 2000. HABERMAS, J. Moral Consciousness and
Communicative Action. Cambridge,
ELBADAWI, I.; SAMBANIS, N. Why are there MA: MIT Press, 1990a.
so many civil wars in Africa? Understand-
ing and preventing violent conflict. Jour- __________. The Theory of Communi-
nal of African Economies, 9(3), p. 244- cative Action. Cambridge, MA: MIT
269, 2000. Press, 1990b.

E SCOBAR , A. Encountering Develop- HARVEY, D. Spaces of Hope. Edinburgh:


ment. Princeton: Princeton University Edinburgh University Press, 2000.
Press, 1994.
HEALEY, P. Planning through debate: the
FAINSTEIN , S. Politics, economics, and communicative turn in planning theo-
planning: why urban regimes matter. ry. Town Planning Review, 63(2), p. 143-
Planning Theory, 14, p. 34-41, 1995. 162, 1992.

__________. New directions in planning __________. Collaborative Planning.


theory. Urban Affairs Review, 35(4), Shaping Places in Fragmented Societies.
p. 451-478, 2000. Basingstoke: Macmillan Press, 1997.

FLYVBJERG, B. Empowering civil society: __________. Institutional analysis, com-


Habermas, Foucault and the question municative planning, and shaping places.
of conflict. In: DOUGLASS, M.; FRIEDMANN, Journal of Planning Education and Re-
J. (Ed.). Cities for Citizens. Chichester: search, 18(2), p. 111-121, 1999.
John Wiley and Sons, 1998a.
__________. Planning in relational space
__________. Rationality and Power: De- and time: responding to new urban re-
mocracy in Practice. Chicago: Universi- alities. In: BRIDGE, G.; WATSON, S. (Ed.).
ty of Chicago Press, 1998b. A Companion to the City. Oxford: Black-
well, 2000.
FRASER, N. Rethinking recognition. New
Left Review, 3, p. 107-120, 2000. HUXLEY, M. The limits to communica-
tive planning. Journal of Planning Edu-
FORESTER, J. Planning in the Face of Power. cation and Research, 19(4), p. 369-377,
Berkeley: University of California Press, 2000.
1989.
Vanessa Watson 27

HUXLEY, M.; YIFTACHEL, O. New paradigm MITLIN , D. The formal and informal
or old myopia? Unsettling the commu- worlds of state and civil society: what do
nicative turn in planning theory. Jour- they offer to the urban poor? Interna-
nal of Planning Education and Research, tional Planning Studies, 6(4), p. 377-
19(4), p. 333-342, 2000. 392, 2001.

INNES, J. Planning theory’s emerging MOHAN, G. Developing differences: post-


paradigm: communicative action and structuralism and political economy in
interactive practice. Journal of Planning contemporary development studies.
Education and Research, 14(3), p. 183- Review of Radical Political Economy, 73,
189, 1995. p. 311-328, 1997.

JENKS, M.; BURGESS, R. (Ed.). Compact MOHAN, G.; STOKKE, K. Participatory de-
Cities: Sustainable Urban Forms for velopment and empowerment: the dan-
Developing Countries. London: Spon gers of localism. Third World Quarterly,
Press, 2000. 21(2), p. 247-268, 2000.

LEYS, C. Confronting the African trage- MUNICIPALITY OF CAPE TOWN. Commission


dy. New Left Review, 204, p. 33-47, of Enquiry: Crossroads and Philippi
1994. Crisis Report. Cape Town: Cape Town
Municipality, 1998.
LYNCH, K. Good City Form. Cambridge
MA: MIT Press, 1990. O’BRIEN , D. A lost generation? Youth
identity and state decay in West Africa.
MAMDANI, M. Citizen and Subject: Con- In: WERBNER, R.; RANGER, T. (Ed.). Post-
temporary Africa and the Legacy of Late colonial Identities in Africa. London: Zed
Colonialism. Cape Town: David Philip, Books, 1996.
1996.
ROGERSON, C. Globalization or informali-
MANDELBAUM, S. Introduction: the talk of zation? African urban economies in the
the community. In: MANDELBAUM , S.; 1990s’. In: RAKODI, C. (Ed.). The Urban
MAZZA, L.; BURCHELL, R. (Ed.). Explora- Challenge in Africa: Growth and Man-
tions in Planning Theory. Rutgers, NJ: agement of its Large Cities. Tokyo: United
Centre for Urban Policy Research, 1996. Nations University Press, 1997.

MARCUSSEN, H. NGOs, the state and civil S ANDERCOCK, L. Towards Cosmopolis.


society. Review of African Political Econ- Planning for Multicultural Cities. Chiches-
omy, 69, p. 405-423, 1996. ter: John Wiley. 1998a.

MCILWAINE, C. Contesting civil society: __________. The death of modernist


reflections from El Salvador. Third World planning: radical praxis for a postmod-
Quarterly, 19(4), p. 651-672, 1998. ern age. In: DOUGLASS, M.; FRIEDMANN,
28 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

J. (Ed.). Cities for Citizens. Chichester: Town. Social Dynamics, 21(2), p. 7-30,
Wiley, 1998b. 1996.

__________. Negotiating fear and desire, STORPER, M. The poverty of radical theory
the future of planning in multicultural today: From the false promises of marx-
societies. Urban Forum, 11(2), p. 201- ism to the mirage of the cultural turn. In-
210, 2000. ternational Journal of Urban and Regional
Research, 25(1), p. 155-179, 2001.
SCHOONRAAD, M. Cultural and institutional
obstacles to compact cities in South Afri- TEWDWR-JONES, M.; ALLMENDINGER P. De-
ca. In: JENKS, M.; BURGESS, R. (Ed.). Com- constructing communicative rationality:
pact Cities: Sustainable Urban Forms for a critique of Habermasian collaborative
Developing Countries. London: Spon planning. Environment and Planning A,
Press, 2000. 30, p. 1975-1989, 1998.

SEN, A. Development as Freedom. New TODES, A. Reintegrating the apartheid


York: Alfred Knopf, 1999. city? Urban policy and urban restructur-
ing in Durban. In: BRIDGE, G.; WATSON,
SIMON, D. Urbanization, globalization, and S. (Ed.). A Companion to the City. Ox-
economic crisis in Africa. In: RAKODI, C. ford: Blackwell, 2000.
(Ed.). The Urban Challenge in Africa:
Growth and Management of its Large TODES, A.; DOMINIK, T.; HINDSON, D. From
Cities. Tokyo: United Nations University fragmentation to compaction? The case
Press, 1997. of Durban, South Africa. In: JENKS, M.;
BURGESS, R. (Ed.). Compact Cities: Sus-
S IMONE , T. A. Urban Processes and tainable Urban Forms for Developing
Change in Africa. Dakar: Codesiria, Countries. London: Spon Press, 2000.
1998. (Working Paper 3/97).
TUROK, I.; WATSON, V. Divergent develop-
__________. Thinking about African ur- ment in South African cities: strategic
ban management in an era of globali- challenges facing Cape Town. Urban Fo-
zation. African Sociological Review, rum, 12(2), p. 119-138, 2001.
3(2), p. 69-98, 1999.
WALTON , J. Urban conflict and social
__________. On Informality and Conside- movements in poor countries: theory
rations for Policy. Cape Town: Isandla and evidence of collective action. Inter-
Institute, 2000. (Dark Roast Occasional national Journal of Urban and Regional
Paper Series). Research, 22(3), p. 460-481, 1998.

SPIEGEL, A.; WATSON , V.; WILKINSON, P. WORLD BANK. World Development Indi-
Domestic diversity and fluidity among cators 2000. Washington, DC: World
some African households in Greater Cape Bank, 2000.
Vanessa Watson 29

__________. World Development Report Y IFTACHEL , O.; H UXLEY , M. Debating


2000/2001. Oxford: Oxford University dominance and relevance: notes on the
Press, 2001. “communicative turn” in planning the-
ory. International Journal of Urban and
YIFTACHEL, O. The dark side of modern- Regional Research, 24(4), p. 907-913,
ism: planning as control of an ethnic mi- 2000.
nority. In: WATSON, S.; GIBSON, K. (Ed.).
Postmodern Cities and Spaces. Oxford:
Blackwell, 1995.

Resumo Abstract
O artigo focaliza três das teorias norma- The article focuses on three contempora-
tivas de planejamento contemporâneas ry and better-known normative theories
mais conhecidas: a teoria de planeja- of planning: communicative planning
mento comunicativo (Forester, Healey, theory (Forester, Healey, Innes and oth-
Innes e outros), a abordagem de Cidade ers), the Just City approach (Fainstein),
Justa (Fainstein) e as teorias que tratam and those concerned with the recogni-
do reconhecimento da diversidade e da tion of diversity and cultural difference
diferença cultural (Sandercock). Todas (Sandercock). Such theories are of great
elas são de grande interesse para os pla- interest to planners who continue to
nejadores que ainda lutam para supe- grapple with the problem of overcom-
rar as formas extremas de desigualdade, ing the extreme forms of inequity, divi-
divisão e colapso social que persistem sion and social breakdown that persist
nas cidades da África. Este artigo exa- in the cities of Africa. The paper exam-
mina alguns dos pressupostos centrais ines some of the central assumptions
subjacentes a essas teorias e avalia até underlying these theories and considers
que ponto elas oferecem uma orienta- the extent to which they provide useful
ção útil ou simplesmente tentam gene- direction, or simply attempt to generalize
ralizar um contexto ocidental. a Western context.

Palavras-chave : teorias do planeja- Keywords : planning theories; Sub-


mento; África subsaariana; desigualda- Saharan Africa; social inequality.
des sociais.

Vanessa Watson é professora do Programa de Planejamento Urbano e Regional


e vice-diretora da Escola de Arquitetura, Planejamento e Geomática da Universidade
de Cape Town (África do Sul). Escreve sobre teoria do planejamento e desenvolve
30 A utilidade das teorias normativas de planejamento no contexto da África subsaariana

pesquisas na área de práticas de planejamento na África. Premiada pelo 2003


South African Distinguished Women in Science Award, representa a Association of
African Planning Schools na Global Planning Education Association Network.
Debatendo o preconceito: a
importância das histórias e de
sua narração na prática do
planejamento
Leonie Sandercock

Permitam-me apresentar Martha Quest, um olho afirmando, negando, repe-


a protagonista do romance de Doris lindo a hediondez absoluta da área
Lessing The Four-Gated City (1969) (A toda, o outro, com Iris, conhecen-
Cidade de Quatro Portas). Martha é uma do-a amorosamente. Com Iris, an-
intelectual marxista recém-chegada da dava-se aqui em um estado de
Rodésia à cidade de Londres dos anos amor, se por amor entendemos um
1950, que é vista por ela como social- delicado, porém total, reconheci-
mente destituída e feia. Para Iris, porém, mento de tudo o que existe (...). Iris
uma moradora local em cuja casa Martha (...) morara nesta rua desde que
está hospedada, a vizinhança é um arqui- nascera. Pondo seu cérebro, junta-
vo vivo, estruturado e animado por ca- mente com os outros milhões de
madas de histórias e memórias (citado cérebros, cérebros de mulheres, que
por Donald, 1999, p. 122). registravam em detalhes tão miúdos,
amorosos, ansiosos, as histórias de
peitoris de janelas, camadas de tinta,
Iris (...) sabia tudo sobre esta área, cortinas substituídas e vigas de ma-
meia dúzia de ruas até cerca de um deira recuperadas, haveria um ins-
quilômetro ou um quilômetro e trumento registrador, uma espécie
meio de seu comprimento; e sabia de mapa em seis dimensões que in-
tudo com tais detalhes que, quando cluiria as histórias, as vidas e os amo-
acompanhada dela, Martha cami- res do povo, Londres – um mapa
nhava com visão dupla, como se de seções em profundidade. É aqui
fosse duas pessoas, ela mesma e Iris; que Londres existe.

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIX, Nos 1-2, 2005, p. 1-27
2 Debatendo o preconceito

Martha, diríamos, “conhece” Lon- Em reação a esse tipo de marginali-


dres teoricamente. Iris a conhece por zação das histórias nas ciências sociais,
imersão, por todos os seus sentidos, por não só as feministas mas outros também
empatia e amor. No parágrafo citado, reafirmaram sua importância epistemo-
há uma epistemologia implícita da cida- lógica e metodológica. O que desejo
de, uma epistemologia nitidamente fe- sustentar neste artigo é que, no plane-
minista, atraente à primeira vista, que jamento, as histórias têm uma impor-
traça um modo de conhecer a cidade tância especial que não foi totalmente
através dos sentidos e das emoções, e compreendida nem suficientemente va-
não através da teoria (marxista). Na de- lorizada. Para imaginar o espaço, a vida
claração da última frase, “É aqui que e as linguagens da cidade, que são ba-
Londres existe”, há uma enunciação que sicamente irrepresentáveis, e torná-los
postula uma apresentação da “verda- legíveis, nós os transformamos em nar-
de”, uma afirmação de que para real- rativas. A maneira como narramos a ci-
mente conhecer a cidade é preciso dade torna-se constituinte da realidade
conhecer as histórias nas cabeças de toda urbana, afetando nossas escolhas e os
a sua população feminina. Se aceitarmos modos como então agiríamos. Meu ar-
isso literalmente (o que, é claro, não é o gumento será de uma simplicidade ilu-
que se pretende), nos encontraríamos sória. As histórias são fundamentais para
numa posição que é, de certa forma, a prática do planejamento: para o conhe-
ridícula, uma vez que jamais poderíamos cimento que extrai das Ciências Sociais
conhecer as histórias de todos os “outros e Humanidades; para o conhecimento
milhões de cérebros”. Mas, mesmo que que produz sobre a cidade e para formas
pudéssemos, ainda assim teríamos de de agir na cidade. O planejamento é en-
interpretá-las, construir o nosso próprio cenado através das histórias, por incontá-
sentido para elas. Será mesmo verdade, veis maneiras. Quero desvendar as muitas
como uma generalização, que dentro maneiras como usamos as histórias: nos
das cabeças das mulheres existe um tipo processos, como catalisadores de mudan-
particular de conhecimento sobre a ci- ças, como base para a formulação de po-
dade? E por que esse conhecimento, a líticas, na pedagogia, nas explicações, nas
perspectiva de Iris no romance, é ineren- análises críticas, e, também, como justifi-
temente mais valioso do que a perspec- cativa do status quo e como exemplos
tiva mais analítica de Martha? Minha morais.
própria resposta a essa última pergunta
é que não é, que ambas são valiosas e Minha abordagem não é destituída
que é inútil considerar esses modos dife- de crítica. Apesar de alguns campos aca-
rentes de conhecer a cidade como mu- dêmicos mais recentes (estudos feminis-
tuamente exclusivos ou como superiores/ tas e culturais, por exemplo) estarem
inferiores. Mas é assim que as “histórias” dando mais atenção e uso às histórias,
são geralmente avaliadas, como “des- eu não as vejo como uma nova religião.
prezíveis”, como a maneira de conhecer Ainda é preciso questionar a veracidade
da mulher, como medíocres, inexatas. de nossas próprias histórias e a das his-
Leonie Sandercock 3

tórias dos outros. Precisamos estar aten- tanto, da condição urbana do que a
tos à maneira como o poder escolhe e Ciência Social tradicional e, só por isso,
molda as histórias que são contadas, são merecem mais atenção.
ouvidas e têm importância. Precisamos
entender o trabalho que as histórias Em resumo, quero apresentar dois
fazem, ou melhor, que pedimos que elas argumentos arrojados neste artigo. Um
façam quando delas fazemos uso, e reco- é sobre a importância das histórias na
nhecer a ordem moral envolvida no uso prática, na pesquisa e no ensino de pla-
consciente ou inconsciente de certos nejamento. O outro é sobre a importân-
enredos e tipos de personagens. Acre- cia crucial das histórias no planejamento
dito que uma compreensão melhor do multicultural. Muito do que os planeja-
papel das histórias pode tornar-nos mais dores fazem, sustentarei, pode ser com-
eficazes como profissionais de planeja- preendido como história encenada. No
mento, independentemente do campo entanto, a importância das histórias ra-
real do planejamento. As histórias e as ramente foi entendida, e muito menos
narrações de histórias estão a serviço da validada, no planejamento. As histórias
resolução de conflitos, do desenvolvi- possuem um potencial de persuasão sig-
mento comunitário, da pesquisa sobre nificativo, porém são muito pouco re-
ações participativas, da administração de conhecidas na prática do planejamento.
recursos, da análise de políticas e de Não falamos sobre elas, não as ensina-
dados, do planejamento dos transportes, mos. Vamos expor o preconceito. Vamos
e assim por diante. Uma compreensão liberar, recordar e refletir sobre o poder
melhor do papel das histórias também das histórias. Vamos apreciar sua rele-
pode ser um auxílio para o pensamento vância para o projeto do planejamento
crítico, para a desconstrução de argu- multicultural do século XXI, como uma
mentos alheios. As histórias muitas vezes forma de unir as pessoas para se conhe-
oferecem uma compreensão muito mais cerem umas às outras pela narração de
profunda da condição humana e, por- histórias.

Como as histórias funcionam

No campo do planejamento, pouquís- relação às maneiras, implícitas e explíci-


simos estudiosos investigaram o traba- tas, como as usamos, e demonstrar o que
lho das histórias no planejamento, e quero dizer quando afirmo que o plane-
mesmo assim, só sob alguns aspectos jamento é encenado por meio das histó-
(Forester, 1989, 1993, 1999; Mandel- rias. Porém, primeiro devo dizer algo
baum, 1991; Marris, 1997; Throgmor- sobre histórias em si, porque a palavra
ton, 1996; Eckstein e Throgmorton, “história” tem uma série de significados,
2003). Ao defender a importância das de anedota a exemplo, a algo inventa-
histórias, pretendo ser sistemática em do em vez de “verídico”, no sentido da
4 Debatendo o preconceito

estrita adesão a fatos amplamente acei- nhecidos; mais obviamente, o conto do


tos. Todos os três desses significados estão herói, o conto no formato “da miséria à
presentes e demonstráveis no modo riqueza”, a perda da graça divina, os efei-
como as histórias são usadas no planeja- tos da vilania, o amadurecimento, a Idade
mento. Em sua forma mais desenvolvi- de Ouro perdida, o conto do pioneiro, o
da, elas têm certas propriedades-chave, estranho que chega à cidade e o jovem
e aqui me baseio na formação que tive que sai de casa para encontrar a si mes-
na escola de cinema e, também, em mo/criar seu lugar no mundo/fugir do
Ruth Finnegan (1998), para esboçar provincianismo sufocante. O que isso
cinco delas. Primeiro, há uma estrutura tem a ver com histórias em/sobre plane-
temporal ou seqüencial, que muitas jamento? Vejamos alguns exemplos.
vezes envolve o tique-taque de um re-
lógio para criar tensão dramática. Se- (1) O conflito sobre usos de solo e di-
gundo, há um elemento de explicação reitos territoriais entre colonizadores
ou coerência, em vez de uma enume- e povos indígenas nos países do
ração de uma coisa depois da outra. Novo Mundo. Para os povos indí-
Terceiro, há algum potencial para gene- genas, há uma história central sobre
ralização, para ver o universal no espe- um paraíso perdido ou uma expul-
cífico, o mundo em um grão de areia. 1 são do paraíso. Para os colonizado-
Quarto, há a presença de convenções res, a história central é o conto do
genéricas e reconhecidas que se relacio- pioneiro sobre coragem e persistên-
nam com uma estrutura esperada, uma cia diante da adversidade.
estrutura de enredo e protagonistas. A
Poética de Aristóteles era nossa bíblia (2) A história do jovem que sai de casa
nessa matéria na escola de cinema. para fugir do provincianismo sufo-
Aprendemos com ele que as histórias, cante. Isso pode evoluir para a his-
bem como os personagens, têm enredo, tória urbana do jovem gay que
ambos igualmente importantes: e que procura a cidade grande para en-
têm princípio, meio e fim, uma forma contrar uma comunidade de pes-
ou estrutura. Quinto, a tensão moral é soas iguais a ele, bem como para
essencial a uma boa história. sentir a liberdade do anonimato. Ou
pode transformar-se na história de
Quero estender-me sobre o segun- um assentamento de ocupantes ile-
do e o quarto aspectos. Muito já foi es- gais nas colinas próximas à cidade
crito sobre o segundo, o elemento da ou às margens de um rio, ou de um
coerência ou explicação. Analistas de li- acampamento de sem-teto na área
teratura, folclore e mitos sustentam que decadente perto do centro da cida-
há diversos enredos amplamente co- de. Cada uma delas é uma história

1
Esse é o motivo pelo qual sempre me interessei por “fofoca” como uma maneira comum de
conhecer/interpretar o mundo, em que as pessoas trocam histórias aparentemente pequenas
(mas não triviais) e buscam atributos comuns e diferenças, como um modo de compreender
o seu mundo (ver Spacks, 1985).
Leonie Sandercock 5

em que planejadores se envolvem “seqüência temporal” que começa


em algum momento. quando a Universidade de Illinois é con-
testada na Assembléia Legislativa em
(3) A Idade de Ouro perdida. Essa é relação à sua prestação de serviços co-
uma história que aparece repetida- munitários e continua através das ten-
mente em publicações sobre comu- tativas iniciais para fazer algo, seguidas
nidades e sua destruição. Nesse de reveses, pontos críticos, crises, obs-
enredo, os incorporadores imobiliá- táculos, e que, finalmente, chega a uma
rios são vistos ora como vilões ora conclusão dramática, quando ficamos
como planejadores. sabendo que, uma década mais tarde,
$45 milhões em fundos foram empe-
E assim por diante. Histórias em/ nhados na revitalização de um bairro até
sobre planejamento, mesmo as mais então abandonado. Há, com certeza,
aparentemente abstratas, incorporam um “elemento de explicação”. Na ver-
um ou mais desses enredos conhecidos. são de Reardon, essa façanha resultou
basicamente da fé de certos líderes co-
E quanto ao quarto elemento das his- munitários e, em menor importância, do
tórias, as convenções genéricas relativas trabalho duro de membros da comuni-
à estrutura e aos tipos de protagonista? dade. Há um “potencial para generali-
Histórias urbanas ou de planejamento zação” na forma como Reardon extrai
podem parecer muito mais limitadas em ensinamentos dessa história que talvez
sua variedade de protagonistas do que possam ser aplicados a outras comuni-
histórias de ficção, porque os protago- dades pobres, bem como a parcerias
nistas, muitas vezes, assumem a forma universidade/comunidade. Há a presen-
de forças impessoais (tais como o capita- ça das “convenções genéricas de enre-
lismo, a globalização ou a alienação da do e personagem”. Em um plano, o
vida urbana); no entanto, há indivíduos “enredo” é sobre desindustrialização e
vistos como personificações dessas for- globalização, forças abstratas e impes-
ças (tais como incorporadores malvados, soais, em outro, é sobre resistência e
membros de gangues alienados, ativis- mobilização comunitárias, organização
tas comunitários nobres), que são retra- de coalizões e o triunfo do espírito hu-
tados como vilões ou heróis. Em outras mano. Há pessoas que personificam al-
palavras, a ordenação moral dos gêneros gumas dessas forças abstratas, mas não
de ficção mais conhecidos está igualmen- todas. Os “ativistas comunitários nobres”
te presente nas histórias em/sobre pla- possuem nomes e biografias breves,
nejamento (Finnegan, 1998, p. 9-13). assim como os “poucos homens bons”
que se apresentam para investir na co-
Se pensarmos sobre a história da munidade com fundos públicos ou pri-
parte leste de St. Louis, como é conta- vados, enquanto os que abandonaram
da por Ken Reardon (1998, 2003), é a comunidade permanecem como vi-
possível ver todas as cinco convenções lões anônimos. Finalmente, a ordenação
de histórias em funcionamento. Há uma moral da história é clara. A fé produz uma
6 Debatendo o preconceito

determinação de agir. A capacidade de Quero tratar agora das maneiras


agir é intensificada pela parceria univer- como vejo “planejamento como história
sidade/comunidade. Há também a ce- encenada”: em processos, em histórias
gueira/auto-ilusão sobre o envolvimento fundadoras (foundational stories), em
da universidade, e isso precisa ser supe- histórias como catalisadores de mu-
rado através da coragem, da honestida- danças, em políticas e, finalmente, em
de, bem como da compaixão dos líderes histórias acadêmicas, como método,
comunitários. Uma ética de prestação de como explicação e como análise crítica.
serviço aos outros impulsiona a história.

Planejamento como história encenada

Histórias e processos seguir as histórias das pessoas, tais como


o trabalho em pequenos grupos, com
Para muitos profissionais de planejamen- um facilitador para cada grupo. O que
to, o papel das histórias é central, em- nem sempre fica claro é como essas his-
bora nem sempre essa avaliação seja tórias coligidas serão usadas no processo
consciente. Os que, de fato, utilizam as subseqüente, mas o que se acredita aqui
histórias conscientemente, o fazem de é na importância de todos terem uma
maneiras diversas, muitas vezes imagi- oportunidade de falar e de terem suas
nativas e inspiradoras. O melhor modo histórias ouvidas. Tal convicção está liga-
de demonstrar esse uso é por meio de da a um argumento sobre os benefícios
alguns exemplos de histórias como pro- práticos e políticos da democratização
cessos e de histórias sendo empregadas do planejamento.
para facilitar processos. Todavia, esses
exemplos são tão variados que usarei Se um evento participativo é uma
subtítulos como guias. maneira de iniciar um processo de pla-
nejamento, seu propósito será, na maio-
P ROCESSOS DE PART IC I PAÇÃO ria das vezes, obter visões de futuro e
C OM UN I T Á RI A opiniões, e, por conseguinte, a coleta
de histórias provavelmente será acom-
Nos processos de participação pública panhada por uma busca de fios comuns
ou comunitária, os planejadores orques- que ajudarão a estabelecer prioridades.
tram um evento de forma a permitir que Se, por outro lado, o evento participati-
todas as pessoas, ou tantas quanto pos- vo é uma reação a um conflito preexis-
sível, contem a sua história sobre sua tente que precisa ser abordado antes de
comunidade, bairro, escola ou rua. Ten- o planejamento seguir adiante, então a
demos a nos referir a esse procedimen- coleta de histórias rivais adquire mais
to como um apelo a um conhecimento importância. Em tal situação, os profis-
local. Existem várias técnicas para con- sionais geralmente se encontram sepa-
Leonie Sandercock 7

radamente com cada pessoa ou grupo “apenas falar sobre as coisas sem serem
envolvido para ouvir suas histórias sobre movidas por resultados” (Solomon,
o problema, antes de resolverem quan- apud Forester, 2000, p. 152). Solomon
do e como reunir os grupos conflitantes atribui um caráter cerimonial a esse es-
para ouvirem as histórias uns dos outros. paço seguro formando um “círculo de
Em casos extremos, quando o conflito conversa” e pedindo às pessoas que fa-
é muito antigo, se estendendo por ge- lassem sobre o que esse lugar significa-
rações ou, até mesmo, séculos de opres- va para elas.
são ou marginalização, esse trabalho é
muito difícil. Porém, quando bem-feito, Todas foram incentivadas a contar
pode ser terapêutico, catártico e até cura- suas histórias sobre o significado da terra
tivo. 2 e do lugar, para elas e suas famílias, no
passado, no presente e no futuro, enfim,
M EDI AÇ ÃO , N EGOCI AÇ ÃO E RESOLUÇ ÃO a terra cujos usos múltiplos e conflitantes
DE CONFLITO elas teriam de compartilhar com outros.
Foi o processo de narração de histórias
Em um ramo crescente da prática do que levou as pessoas a superar “as mi-
planejamento – mediação, negociação nhas necessidades versus as suas neces-
e resolução de conflito –, há várias téc- sidades” para chegar a um “plano mais
nicas e procedimentos para facilitar a elevado” em direção a algum objetivo
narração e a audição de histórias em si- comum. Solomon descreve a criação
tuações de conflito. 3 Nesse tipo de tra- desse espaço para que as histórias fossem
balho, a capacidade de um profissional narradas como uma ferramenta simples
para criar o espaço para que histórias e poderosa, como uma maneira de abrir
sejam contadas é mais importante do conexões surpreendentes entre grupos
que a capacidade de contar histórias. É conflitantes. Ou, de acordo com Fores-
aqui que a importância de escutar as ter, a narração de histórias é essencial
histórias dos outros e a perícia de escutar em situações em que histórias profundas
em contextos de culturas em contato de identidade e dominação formam o
têm seu maior valor. contexto no qual uma disputa existente
é compreendida. Para que haja recon-
Forester descreve um caso, no esta- ciliação, as histórias precisam ser conta-
do de Washington, em que a mediado- das (Forester, 2000, p. 157). Em termos
ra, Shirley Solomon, reuniu nativos de processo, também, a criação de es-
americanos e funcionários não-nativos paços para contar histórias faz com que
do condado para resolver disputas ter- participantes de diferentes culturas e clas-
ritoriais. Uma etapa crítica naquela me- ses se sintam mais à vontade para falar
diação era criar um espaço seguro em e mais confiantes na relevância de todo
que as pessoas pudessem se reunir e o procedimento. Um ancião tribal que
2
Forester (2000), Dale (1999) e Sandercock (2000) pormenorizam tais casos.
3
Ver Fowler e Mumford (1999); LeBaron (2002); Susskind, McKearnan e Thomas-Larmer
(1999); Thiagarajan e Parker (1999).
8 Debatendo o preconceito

estava presente na mediação de Solo- Em seu estudo de avaliação do su-


mon disse-lhe: “Naquelas reuniões em cesso do desenvolvimento urbano comu-
que prevalecem as regras de procedi- nitário de um novo projeto habitacional
mento parlamentar, sei que ou eu não em um subúrbio afastado, construído por
tenho nada a dizer ou que o que tenho uma agência pública em uma cidade aus-
a dizer não vale nada” (apud Forester, traliana, Dunstan e Sarkissian usaram
2000, p. 154). uma variedade de ferramentas de pes-
quisa: surveys para avaliar atitudes e sa-
H ISTÓRIA CENT RAL tisfação, entrevistas, grupos focais, censo
e outros dados estatísticos. Quando pro-
Outro aspecto interessante do uso de cederam à análise desse material, encon-
histórias na prática é o que Dunstan and traram contradições que provavelmente
Sarkissian (1994) chamam “história cen- não seriam resolvidas pela coleta de mais
tral”. A idéia de história central como informações. A fim de ir além dos deta-
metodologia baseia-se em estudos de lhes e registros quantitativos sobre “sa-
psicologia que sugerem que todos nós tisfação”, eles investigaram a noção de
possuímos uma história central: que não história central, recorrendo à linguagem
apenas contamos histórias, mas somos heróica, mítica e metapoética. Prepara-
ativos ao criá-las com nossas vidas. Nós ram um roteiro sobre colonizadores he-
nos tornamos nossas histórias. Quando róicos, expectativas, traição e abandono
contamos histórias sobre nós mesmos, e levaram a história de volta para a co-
lançamos mão de comportamentos pas- munidade, dizendo: “foi isso que ou-
sados e comentários alheios sobre nós vimos”. A reação foi avassaladora e
para nos caracterizarmos como, diga- catártica. “Sim, vocês compreenderam.
mos, aventureiros, vítimas, temerosos É essa a nossa história”. A tarefa, então,
de mudanças, egoístas ou corajosos. como foi definida pelos planejadores
Mas, ao contar e recontar a história, sociais, era ajudar a comunidade a dar
também estamos reproduzindo a nós uma reviravolta nessa história pessimista
mesmos e nossos comportamentos. Psi- e fatídica. Perguntaram à comunidade
cólogos sociais argumentam que comu- como achava que sua história poderia/
nidades, e possivelmente nações, têm deveria ser mudada. Subjacente a isso,
tais histórias centrais que dão sentido à havia a crença de que histórias centrais
vida coletiva (ver Houston, 1982, 1987). podem indicar o modo como as comu-
A cultura representa a criação, a expres- nidades reagirão a crises ou à interven-
são e o compartilhamento de histórias ção pública. Assim como as pessoas,
que nos vinculam a idiomas, imagens e algumas histórias centrais trágicas preci-
metáforas comuns, que juntos criam um sam ser transformadas por um processo
significado compartilhado. Tais histórias de cura explícito, ou a história central
podem ser histórias de vítimas, de guer- será repetidamente encenada. A reno-
reiros, de falhas fatais, de apaziguamen- vação e a redenção são possíveis, sus-
to, de generosidade, de abandono ou tentam Dunstan e Sarkissian. Novos
de expectativas traídas. capítulos poderão ser escritos se houver
Leonie Sandercock 9

uma vontade coletiva para fazê-lo. Eles H IST ÓRI AS N ÃO - VERBAI S


sugerem quatro passos rumo à renova-
ção. O primeiro é a narração pública da Dependendo da comunidade envolvida
história de forma que seja aceita sua ve- em uma questão, vídeos, canções ou
racidade e reconhecido seu poder e sua outras formas de arte podem ser ma-
dor. O segundo é uma espécie de repa- neiras úteis de narração de histórias. Em
ração, em que há uma troca que estabe- seu trabalho de prevenção de violência
lece as diferenças. O terceiro é uma com jovens na Rock Solid Foundation
cerimônia ou um ritual que surge do en- em Victoria, na Colúmbia Britânica, o
volvimento local e do comprometimento policial Tom Woods iniciou um projeto
do governo (nesse caso, municipal e pro- para criar uma galeria de arte e um par-
vincial), que publicamente reconhece o que ao ar livre para jovens ao longo de
novo começo. O quarto se refere a um uma faixa de 500 metros ao lado da
compromisso e à confiança – construí- ferrovia, entre duas fileiras de armazéns.
dos de forma processual e contínua – Essa área, que tinha uma longa história
de que uma nova abordagem é possível pregressa como corredor de crimes, é
e será tentada (Dunstan e Sarkissian, agora a sede da Trackside Art Gallery, o
1994, p. 75-91). lugar onde os jovens da localidade dese-
nham grafites nas paredes dos armazéns.
Esse fascinante estudo de caso elu- Woods constatou que esses adolescen-
cida de certa forma um enigma mais tes precisavam de um lugar seguro para
geral do planejamento participativo: seus grafites. Mais profundamente, per-
como transformar um conjunto de his- cebeu que eles precisavam de um espaço
tórias comunitárias em um plano digno para se expressar por meios não-violen-
de confiança e fiel aos desejos da co- tos e que o grafite é uma forma de arte
munidade. Iluminar o interior da caixa- comunicativa, uma forma de narração
preta dessa conversão certamente exige de histórias (Macnaughton, 2001, p. 5).
que os planejadores levem seu plano de O potencial de planejadores que traba-
volta aos narradores de histórias da co- lham com artistas em processos como
munidade e digam: “eis como conver- esses, que estimulam a narração de his-
temos suas histórias em um plano. Será tórias, ainda é muito pouco explorado.
que compreendemos vocês corretamen-
te?” Em uma comunidade ou distrito O que emerge daí, então, é a utiliza-
eleitoral em que há apenas uma histó- ção de histórias, de maneiras tanto óbvias
ria central, esse é um processo mais di- como imaginativas, em processos de pla-
reto do que em uma situação em que nejamento: cultiva-se a capacidade para
os planejadores ouvem duas ou mais contar, ouvir e inventar histórias, bem
histórias conflitantes. Nessa segunda si- como a capacidade igualmente impor-
tuação, há muito mais trabalho envol- tante para criar o espaço necessário para
vido, a fim de priorizar e chegar a algum que as histórias sejam ouvidas.
consenso sobre as prioridades.
10 Debatendo o preconceito

Histórias como fundamento, envolvidas com a comemoração do


origem e identidade descobrimento do país na virada do sé-
culo XXI desejavam contar uma histó-
Discuti a noção de história central e ria mais complexa sobre as origens, e o
como ela pode ser usada por planeja- mito da origem tornou-se domínio con-
dores. Existe uma noção relacionada de testado. Parte da batalha era jurídica e
história fundadora, uma história mito- foi disputada por intermédio da Corte
poética das origens, uma história que Suprema. Outra parte era simbólica e
cidades e nações contam sobre si mes- emocional, relativa a pedido de descul-
mas. Isso tem relevância especial para o pas e reparação. Isso foi resolvido em
planejamento em contextos multiétni- parte pela distribuição de “Livros de
cos e multiculturais em que noções con- Desculpas” em todas as bibliotecas pú-
flitantes de identidade estão em jogo. blicas da Austrália. Quem quisesse po-
Vejamos a Austrália. A história funda- deria assinar um desses livros e, dessa
dora que os anglo-australianos vêm con- forma, pedir desculpas publicamente
tando nos últimos 200 e tantos anos é aos aborígines por sua expropriação.
sobre a chegada do corajoso Capitão Durante 2001, também houve uma sé-
James Cook, que aportou com a Pri- rie de marchas de “Dia de Desculpas”,
meira Frota na baía de Botany em 1788 uma em cada capital de estado ou ter-
para estabelecer uma colônia, e sobre ritório. Meio milhão de pessoas parti-
os subseqüentes pioneiros heróicos que ciparam em Sydney e 300 mil em
exploraram e domaram a terra, uma Melbourne. A recusa do Primeiro Mi-
história familiar em sociedades de colo- nistro (desde 1996) John Howard de
nizadores do novo mundo. Em uma fazer um pedido de desculpas oficial em
esfera, essa história é mitopoética, mas, nome do governo continua a encoleri-
em outra, é também político-jurídica. As zar muitos australianos e a ser considera-
instituições fundadoras e, especificamen- da uma questão em aberto no processo
te, o sistema de propriedade de terras de reconciliação.
foram baseados no conceito legal de
terra nullius, isso é, terras vazias. Esse Tendo participado da marcha de
conceito tornou invisíveis os 60 mil anos Melbourne, no inverno de 2002, esse
anteriores de ocupação indígena, bem assunto ainda permanecia na minha
como sua presença contínua no conti- cabeça enquanto estava trabalhando
nente. em Birmingham a convite do Conselho
Municipal. Em parte como reação a
Por volta do fim do século XX, cres- motins urbanos raciais em outras cida-
cia o número de australianos tanto não- des do norte da Grã-Bretanha no verão
indígenas quanto indígenas que se anterior, os políticos de Birmingham
sentiam cada vez mais insatisfeitos com preocupavam-se em “agir certo” quanto
essa ficção sobre a origem. Um movi- à “administração” da diversidade étnica.
mento para reescrever a história funda- À medida que eu me reunia com vários
dora ganhou força. Muitas das pessoas grupos da cidade, desde a equipe de
Leonie Sandercock 11

planejamento da cidade a trabalhado- desafios contemporâneos com que se


res em uma variedade de programas de confrontam os planejadores.
desenvolvimento comunitário, de jovens
negros e mulheres muçulmanas, come-
cei a ouvir versões muito diferentes so- Histórias como
bre a identidade de Birmingham. Havia catalisadores de mudanças
uma história fundadora bastante aceita
por alguns habitantes “anglos” (que se Na medida em que contribuem para o
referiam a si mesmos como a popula- surgimento de novas formas de imagi-
ção “indígena”) de que Birmingham era nar e criar alternativas, as histórias e as
uma cidade inglesa (não uma cidade narrações de histórias podem ser agen-
multicultural) e que os que haviam che- tes ou auxílios poderosos a serviço de
gado lá primeiro tinham mais direitos à mudanças. Na minha própria prática,
cidade do que os relativamente recém- tenho usado histórias dessa maneira
chegados do subcontinente indiano, do muito óbvia, descobrindo cedo na mi-
Caribe, e assim por diante. Essa ques- nha vida de planejadora (como estudan-
tão profundamente política da mudan- te de pesquisa) que, mesmo dentro de
ça de identidade da cidade precisava do uma cidade, muitas vezes um bairro des-
mais amplo debate público possível. conhecia por completo que um outro
Sugeri que, em algum momento, a ci- bairro estava disputando, ou recente-
dade precisaria reescrever a história das mente disputara, a mesmíssima batalha
suas origens para torná-la mais inclusiva e descobrira maneiras criativas de fazê-
e aberta a mudanças. A equipe de pla- lo. Quando as pessoas estão mergulha-
nejamento estava muito envolvida nesse das em batalhas locais, freqüentemente
debate. No trabalho direto junto às co- ficam tão concentradas no local que não
munidades especialmente nos bairros têm nenhuma idéia do que está acon-
não-anglos, esses planejadores predo- tecendo em outros lugares. Descobrir
minantemente anglo-celtas estavam ou que um outro bairro ou movimento so-
reproduzindo a história da origem da cial em sua cidade ou país venceu uma
“Birmingham britânica” ou ajudando a batalha semelhante pode ser inspirador
mudar essa história ao fazerem seus e catalisador. Já desempenhei o papel
programas e suas políticas refletirem e de relatora de tais histórias e tornei-me
respeitarem a diversidade da “nova ci- um agente catalisador. À medida que o
dade”. mundo diminui, narrar as histórias sobre
o modo como pessoas em outros luga-
Esse já não é mais um exemplo iso- res enfrentaram adversidades seme-
lado, mas uma situação cada vez mais lhantes ou até mesmo mais terríveis e
comum por toda a Europa nesse tem- triunfaram é um papel que cada vez
po de migrações. A necessidade de mais, e às vezes surpreendentemente,
mudar coletivamente (e representar no me vejo desempenhando. Quando fui
próprio ambiente construído) essas an- convidada para ir a Johannesburgo em
tigas histórias sobre as origens é um dos 2000, fiquei nervosa porque achava
12 Debatendo o preconceito

que ia para um contexto em que minha armas são a utilização de histórias de


experiência era nula e minha compreen- sucesso e a capacidade de contar bem
são, limitada. Não podia me “pronunciar” essas histórias, significativamente, de
sobre questões de lá. Mas podia contar uma forma que realmente incentive
histórias sobre lutas em outros lugares, outras pessoas a agir.
e, assim como o resto do mundo fora
inspirado em Nelson Mandela, os sul-afri- Nos contextos multiculturais, geral-
canos também se emocionaram e se ins- mente há uma cultura dominante cuja
piraram nas lutas que descrevi na parte versão de eventos, de comportamento
leste de St. Louis e em Sydney. Havia e de práticas constitui a norma implícita.
processos embutidos nessas histórias que Em geral, o que ocorre é que as pessoas
eu narrava, por meio dos quais as pes- encarregadas pelo planejamento, como
soas podiam aprender, obter idéias e uma atividade dirigida pelo Estado, per-
refletir. A minha contribuição para esse tencem à cultura dominante e, por con-
processo é alguma noção, algum julga- seguinte, se mostram menos propensas
mento sobre que histórias são adequa- a reconhecer e muito menos a questio-
das e em que circunstâncias o são, e nar as normas e as práticas culturais
alguma noção do que constitui, e de dominantes. Para uma sociedade ser
como contar, uma boa história. funcional e formalmente multicultural,
essas normas precisam ser ocasional-
Histórias de sucesso ou de ações mente trazidas à luz, examinadas e con-
exemplares servem como inspiração testadas. Uma maneira eficaz de fazer
quando são recontadas. Já perdi a conta isso é por meio de histórias. O planeja-
de quantas vezes contei a “história de dor canadense Norman Dale escreveu
Rosa Parks” 4 nas salas de aula ou em sobre a importância crucial de ouvir as
reuniões comunitárias ou ativistas, quan- histórias dos Haida Gwaii (uma comu-
do o desânimo surgia e as pessoas sen- nidade indígena na costa noroeste do
tiam que as desigualdades eram muito Canadá) sobre o que deveria ser um
grandes e as estruturas de poder, muito projeto de desenvolvimento econômico
opressivas e totalmente abarcantes. comunitário transcultural patrocinado
Quando Ken Reardon conta ou escreve pelo governo provincial nas Ilhas Rainha
sua história sobre a parte leste de St. Carlota (Dale, 1999). Após uma série
Louis, ele está, entre outras coisas, trans- de encontros formais com habitantes
mitindo uma mensagem de esperança locais, Dale lutava para criar um espaço
diante de desvantagens incríveis. Como em que o único representante haida
planejadores, essa “organização da es- (cujo nome era Gitsga) se sentisse ca-
perança” é uma das nossas principais pacitado a dizer alguma coisa. Gitsga
tarefas e, nessa batalha, duas de nossas parecia ter feito voto de silêncio e estava

4
Rosa Parks foi a mulher afro-americana que, em Alabama em 1955, recusou-se a ir para o
fundo do ônibus quando pessoas brancas entraram. Esse ato de desobediência civil trans-
formou-se em um boicote de um ano do serviço de ônibus pelos negros e deu origem ao
Movimento de Direitos Civis.
Leonie Sandercock 13

prestes a se retirar do processo de con- temunhas, Engenheiros e Narradores de


sulta quando Dale o procurou e o enco- Histórias: Usando Pesquisa para Políticas
rajou a voltar. Na reunião de consulta Sociais e Ação Comunitária), Peter Marris
seguinte, antes de a reunião realmente (1997) sustenta que a relação entre co-
começar, houve um bate-papo informal, nhecimento e ação não é direta e que o
entre os brancos, sobre os méritos artís- conhecimento em si não pode determi-
ticos e ambientais de uma escultura que nar, nem nunca determinou, políticas. Ao
havia sido erguida em uma rocha próxi- analisar vários tipos de pesquisa de polí-
ma à praia. Não ocorrera a ninguém ticas sociais e suas abordagens, Marris in-
perguntar ao povo haida o que pensava daga por que razão as pesquisas feitas
a respeito disso. Quando Gitsga rompeu sobre a miséria, por exemplo, afetaram
seu silêncio para oferecer a informação tão pouco as políticas. São várias as suas
de que a rocha era sagrada para os haida, respostas. Uma é que os acadêmicos são
houve choque e consternação genuínos, críticos poderosos, mas fracos narrado-
levando a uma abertura de todo o pro- res de história. Isto é, não conseguem
cesso de planejamento do projeto para comunicar suas conclusões de uma forma
o envolvimento dos haida. Os planeja- que, além de plausível, seja persuasiva.
dores desempenham um papel funda- (Em contraposição, ele comenta que os
mental ao reconhecer as vozes de grupos atores comunitários têm grandes histórias
minoritários, ao preparar reuniões em para contar, mas não têm os meios para
que tais grupos se sintam à vontade para contá-las, exceto entre eles mesmos. Por
falar e ao encorajá-los a falar. isso, as histórias erradas vencem os de-
bates.) A narração de histórias, diz ele, é
Tenho mais um exemplo da utilização a linguagem natural da persuasão, por-
de histórias em práticas do planejamen- que qualquer história precisa envolver
to, processos de análises e formulações e tanto uma seqüência de eventos quanto
implementações de políticas, antes de a interpretação de seus significados. Uma
voltar-me para a narração acadêmica de história integra o conhecimento do que
histórias sobre planejamento. aconteceu a uma compreensão do mo-
tivo por que aconteceu e uma noção do
que isso significa para nós. As histórias
Histórias e políticas organizam o conhecimento em torno de
nossas necessidades de agir e de nossas
Aqui sou auxiliada por meus colegas preocupações morais. As histórias não
James Throgmorton e Peter Marris, que precisam ser originais, mas precisam ser
refletiram muito sobre as conexões entre convincentes (isto é, oferecer evidência
histórias e políticas. Em Witnesses, Engi- confiável concatenada com um argu-
neers and Storytellers: Using Research for mento convincente). As melhores são ao
Social Policy and Community Action (Tes- mesmo tempo originais e convincentes. 5

5
Marris cita The Urban Villagers (Os aldeães urbanos), de Herbert Gans, e Family and Kinship
in East London (Família e parentesco no leste de Londres), de Michael Young e Peter Willmott,
como bons exemplos.
14 Debatendo o preconceito

Para serem persuasivas, as histórias histórias, em seu sentido mais pleno, não
que contamos devem ser apropriadas significa apenas relatar eventos, mas
tanto à necessidade como à situação. Os dotá-los de significado por meio de co-
pesquisadores de políticas competem mentários, interpretação e estrutura dra-
com todos os outros que têm uma his- mática.
tória para contar, e os motivos para rei-
vindicarem uma atenção especial por Embora Marris pareça restringir sua
parte da opinião pública se relacionam defesa da narração de histórias à publi-
à qualidade de sua observação bem cação de resultados de pesquisas, o tra-
como à sofisticação de uma compreen- balho de James Throgmorton trata do
são decorrente de uma longa expe- passo seguinte – as artes da retórica no
riência acumulada por meio da qual domínio público do discurso e do de-
interpretam seus dados. Mas essa vera- bate. A lição que ele quer transmitir é
cidade não é, em si, necessariamente que, se desejarmos ser defensores de
persuasiva. As boas histórias têm quali- políticas eficazes, precisamos então nos
dades, tais como timing dramático, tornar bons criadores de histórias e bons
humor, ironia, poder de evocação e sus- narradores de histórias, em um sentido
pense, para as quais os pesquisadores mais performático. Em Planning as Per-
sociais não estão preparados. “Pior”, diz suasive Storytelling (Planejamento
Marris, “eles se convenceram de que ser como Narração Persuasiva de Histórias),
divertido compromete a integridade do Throgmorton (1996) sugere que pode-
trabalho científico” (Marris, 1997, p. 58). mos pensar no planejamento como uma
A redação de pesquisas de políticas é narrativa encenada e orientada para o
um trabalho difícil: é difícil contar uma futuro na qual os participantes são, ao
boa história e, simultaneamente, expor mesmo tempo, personagens e co-auto-
com rigor a evidência em que ela se res. Podemos pensar na narração de
baseia. Contudo, Marris insiste, quanto histórias como uma forma adequada de
mais os pesquisadores sociais cuidarem transmitir a veracidade da ação de pla-
da arte de narrar histórias e a reveren- nejamento. Contudo, o que deve ser
ciarem nos trabalhos de colegas e estu- feito, ele pergunta, quando histórias de
diosos, mais influente ela poderá ser. planejamento se sobrepõem e entram
Precisamos ter a capacidade de contar em conflito? Como podem planejado-
nossas histórias com perícia bastante res (e outros interessados) decidir que
para cativar a imaginação de um públi- história de planejamento é mais digna
co politicamente mais amplo do que o de ser contada?
composto apenas por nossos colegas.
Throgmorton (1996, p. 48) lança
Há duas noções de história em jogo mão do conceito de racionalidade nar-
aqui. Uma é funcional/instrumental: dar rativa de Fisher, ao declarar que os seres
vida às conclusões da pesquisa social humanos são narradores de histórias
transformando-as em uma boa história. que possuem uma capacidade natural
A outra é mais profunda: a narração de para reconhecer a fidelidade das histó-
Leonie Sandercock 15

rias que contam e vivenciam. Testamos ção à arte de narrar histórias sob as for-
histórias no sentido de inferir como as mas tanto escrita quanto oral. Isso sig-
partes se ligam (coerência) e no sentido nifica literalmente expandir a linguagem
de examinar sua veracidade e confiabi- de planejamento para torná-la mais ex-
lidade (fidelidade). Mas Throgmorton pressiva, evocativa, atraente, e incluir a
não se sente confortável com essa for- linguagem das emoções. A “narração
mulação, ele nos faz lembrar de situações acadêmica de histórias”, escreve Finne-
em que duas histórias de planejamen- gan, “é feia por causa de sua rigidez,
to, ambas coerentes e verdadeiras, com- monotonia e pelos estereótipos de que
petem por atenção. O que, então, torna lança mão. Contamos as histórias mais
uma mais valiosa que a outra? Throg- enfadonhas das maneiras mais lúgubres
morton sugere que a resposta a essa possíveis e, de modo geral, proposital-
pergunta reside, pelo menos em parte, mente, porque essa é a função da narra-
na persuasividade com que contamos ção científica de histórias: ser enfadonha”
nossas histórias. O planejamento é uma (Finnegan, 1998, p. 21). O que Finne-
forma de narração persuasiva de histó- gan alega sobre a narração acadêmica
rias, e os planejadores são tanto autores de histórias vale igualmente para a nar-
que redigem textos (planos, análises, ração burocrática de histórias. Os relató-
artigos) quanto personagens cujos mo- rios de políticas produzidos por agências
delos, mapas, previsões, pesquisas etc. de planejamento governamentais, e tam-
agem como tropos (figuras de linguagem bém por consultores dessas agências, são
e argumento) em suas próprias histórias feitos do mesmo tecido estereotipado.
persuasivas e nas dos outros. Uma parte São absolutamente impessoais. A vitali-
crucial do argumento de Throgmorton dade foi extirpada por completo. A emo-
é que essa narração de história orienta- ção é rigorosamente removida, como se
da para o futuro jamais é simplesmente não existissem, nessas análises, senti-
persuasiva. Ela também é construtiva. mentos em jogo tais como alegria, tran-
As maneiras como os planejadores es- qüilidade, raiva, ressentimento, medo,
crevem e falam moldam a comunida- esperança, memória e esquecimento. A
de, o caráter e a cultura. Portanto, uma que propósito, ou aos propósitos de
dúvida crítica para os planejadores é quem, servem essas histórias sem espí-
decidir quais os princípios éticos que rito? Uma de suas finalidades é perpe-
devem orientar e restringir seus esfor- tuar um mito de objetividade e perícia
ços para persuadir seus ouvintes. técnica dos planejadores. Ao fazerem
isso, esses documentos são, na melhor
Os trabalhos de Marris e de Throg- das hipóteses, enganosos (na pior, de-
morton têm implicações muito impor- sonestos) sobre os tipos de problemas e
tantes nas pesquisas e recomendações escolhas que enfrentamos nas cidades.
de políticas. Se os planejadores quise-
rem ser mais eficazes ao transformarem Para influenciar as políticas, os pla-
conhecimento em ação, eles argumen- nejadores precisam adquirir conheci-
tam, então é melhor prestar mais aten- mentos sobre histórias, ou melhor, sobre
16 Debatendo o preconceito

os diversos modos de narração de his- histórias que foram descritas na intro-


tórias. Mas onde aprender isso? O que dução e utilizam enredos familiares. Há
ensina a academia? heróis e anti-heróis, vítimas e outros tipos
de personagens conhecidos: a figura do
bruxo/demônio do capitalismo interna-
Histórias como análise cional; a fada de duas faces do progres-
crítica e/ou explicação so; essa criatura maliciosa e cheia de
truques, insubstancial e ambígua cha-
Em nossas cabeças, existe um falso sis- mada “o pós-moderno”; e o grande
tema dicotômico que separa os docu- amor, há muito perdido, mas reencon-
mentos do planejamento, a pesquisa de trado em algumas histórias, pela comu-
ciências sociais e a teorização, da narra- nidade (Finnegan, 1998, p. 21). Há
ção de histórias, em vez de permitir que uma ordenação temporal, freqüente-
apreciemos as maneiras como cada um mente em grande escala, que nos leva
deles utiliza histórias. Os documentos de de cidades pré-industriais a industriais
planejamento, de mapas a modelos, aos ou a pós-industriais, ou nos conduz da
Sistemas de Informação Geográfica desindustrialização à economia do co-
(SIG) e aos próprios planos, contam, de nhecimento e ao espaço de fluxos. O
fato, uma história. Às vezes, a história é enredo mais familiar são a própria mu-
descritiva ou se comporta como descri- dança e o desejo de explicá-la.
tiva, “é assim que são as coisas”, “são
estes os fatos”. Todavia, uma mera des- Junto com a explicação, geralmente
crição ou fatos puros são coisas que não vem uma avaliação. As coisas estavam
existem. Há sempre um autor, o plane- melhores antes ou depois de isto e aqui-
jador como analista de políticas, que lo, sugerindo então que deveríamos
decide que fatos são relevantes, o que retroceder ou avançar. Enredos evoca-
descrever, o que contar, e, na monta- tivos, do rural suplantado pelo urbano,
gem desses fatos, uma história é molda- da comunidade pela alienação, da tradi-
da e, consciente ou inconscientemente, ção pela modernidade, ou da comuni-
uma interpretação é criada. Em geral, dade triunfando sobre o capital, dos
os fatos são dispostos para explicar algo habitantes sobre as burocracias, dos inva-
e para que algumas conclusões, tendo sores sobre as forças da lei e da ordem,
em vista a ação, possam ser tiradas. são histórias comoventes com as quais
os leitores podem identificar-se e posi-
Os estudiosos também usam histó- cionar-se individualmente em uma nar-
rias em seus trabalhos críticos sobre ci- rativa histórica mais ampla. Há histórias
dades e planejamento, embora poucas de períodos de transição, de novas eras,
vezes conscientemente. Porém, mesmo da passagem de uma ordem antiga, de
inconscientemente, as histórias urbanas Idades de Ouro perdidas. Há também
acadêmicas, até as mais aparentemente algumas histórias, mas não muitas, que
abstratas, muitas vezes exibem algumas prevêem um final feliz, se ao menos...
das cinco propriedades corriqueiras das Se ao menos “nós” fizéssemos isto ou
Leonie Sandercock 17

aquilo, então poderíamos viver felizes (Tornando o Invisível Visível), fiz uma
para sempre. análise crítica do que chamo de “Histó-
ria Oficial” da história do planejamento,
Em outras palavras, as histórias e as em que atento para o que ficou de fora.
teorias urbanas acadêmicas evocam A “História Oficial” retrata o planeja-
enredos narrativos básicos que nos são mento como uma atividade heróica,
familiares em outros contextos (de con- muitas vezes sem nenhuma falha fatal,
tos de fadas a filmes) e que repercutem sempre do lado dos anjos, bem como
em nós tanto moral como intelectual- retrata os que se opõem a ele como ir-
mente, satisfazendo-nos, perturbando- racionais, reacionários ou simplesmente
nos, desafiando-nos. Meu objetivo aqui gananciosos. O que isso deixa de fora
não é dizer que essas histórias são, por- são os vieses de gênero, classe, raça e
tanto, inúteis. Pelo contrário, elas são cultura das práticas do planejamento; as
elucidativas e instrutivas, essencialmente maneiras como o planejamento tem ser-
em razão desses enredos subjacentes, vido como agente de controle social que
que são, todos eles, exercícios de avalia- regula (certos) corpos (marcados) no
ção de atividades humanas em uma espaço; as muitas histórias de práticas
ordenação moral da vida e da organi- de resistência, de planejamento feito a
zação social. Assim como procedemos partir “da base” por grupos excluídos,
com os documentos do planejamento, em oposição ao modo de planejamento
quanto mais alertas pudermos estar em dirigido pelo Estado que sempre os pre-
relação à história ou às histórias subja- judicou.
centes, mais capacidade teremos para
avaliá-las. Precisamos entender os me- Para imaginar o futuro de forma di-
canismos das histórias não só para poder- ferente, precisamos começar com fatos
mos, nós mesmos, contar boas histórias, históricos, com uma reavaliação das his-
como também para sermos mais críticos tórias que contamos a nós mesmos sobre
das histórias que temos de ouvir. o papel do planejamento na cidade mo-
derna e pós-moderna. Ao contar novas
Assim como ocorre com os mitos de histórias sobre nosso passado, nossa
outras culturas, nossas histórias acadê- intenção é remodelar nosso futuro. Se
micas de planejamento, além de fun- pudermos desvincular a história do pla-
cionarem como uma sanção e uma nejamento de sua obsessão com a his-
justificativa, funcionam como “platafor- tória comemorativa da ascensão da
mas de lançamento” para contrapontos. profissão de planejador, talvez, então,
As histórias acadêmicas sobre plane- possamos ligá-la a um novo conjunto
jamento geralmente tomam partido, de problemas públicos, os relacionados
embora nem sempre abertamente. Às com uma apreciação nascente de uma
vezes, esse partido é revelado quando herança multicultural e com o desafio
se pergunta, sobre qualquer narrativa: de planejar para um futuro de cidades
que histórias não estão presentes aqui? e regiões multiculturais.
Em Making the Invisible Visible (1998)
18 Debatendo o preconceito

A cidade multicultural não pode ser ção é incentivar as pessoas a ultrapassar


imaginada sem uma crença na democra- seus próprios horizontes e a situar-se nos
cia inclusiva e na diversidade de reivindi- mundos daqueles com quem estão em
cações de justiça social das comunidades conflito. Tenho muitas reservas quanto
privadas de poder nas cidades existen- à encenação. Uma delas é que o efeito
tes – comunidades de migrantes, povos de pedir aos participantes que assumam
indígenas, pessoas pobres. Se quisermos papéis que desconhecem ou a que se
nos encaminhar para uma política de opõem pode talvez simplesmente pro-
inclusão, então precisamos começar por duzir o pior tipo de estereotipagem de
uma compreensão sólida dos efeitos ex- opiniões, posições e comportamentos
cludentes das práticas e das ideologias do alheios. Outra é que algumas pessoas
planejamento do passado. Se, no futu- se sentem extremamente desconfortá-
ro, quisermos planejar para/com um veis ao representarem-se diferentes de
público heterogêneo, reconhecendo e si mesmas. Isso talvez seja mais do que
cultivando a total diversidade de todos timidez. Por exemplo, a mediadora Shir-
os grupos sociais na cidade multicultu- ley Solomon, no caso discutido anterior-
ral, precisamos então desenvolver um mente neste artigo, conta como em um
novo tipo de educação multicultural. caso a tentativa de encenação quase se
Uma parte essencial dessa educação é a transformou em um desastre.
familiaridade com as múltiplas histórias
das comunidades urbanas e as múltiplas As pessoas não conseguiam se en-
histórias dos recém-chegados, especial- volver porque apenas queriam ser
mente quando elas se cruzam com lutas elas mesmas (...) todas elas estavam
por posse de espaço e lugar, com políti- muito comprometidas com essas
cas de planejamento e resistências a elas, questões e muito exaltadas. Não
com tradições de planejamento nativas aprenderam nada ao ter de assu-
e com questões de afinidade, identidade mir o papel do outro (...) Um dos
e diferença. chefes tribais nunca entendeu, não
conseguiu se envolver e simples-
mente não conseguia acreditar que
Histórias e pedagogia não podia representar a si mesmo
(...) Ao administrador geral (do con-
São inúmeras as maneiras de utilizar his- dado) pediram que fosse um incor-
tórias na pedagogia: isto é, especifica- porador. Ele simplesmente não
mente na preparação de planejadores. queria ser um incorporador; então,
Mencionarei algumas delas, para, em tentou durante um tempo e depois
seguida, concentrar-me na contribuição ficou irritado. (Solomon, apud Fo-
de um educador notável. Não é novi- rester, 2000, p. 158-159)
dade os professores de planejamento
usarem histórias sob a forma de ence- Fui inspirada pelas novas idéias de
nação na sala de aula (ou em workshops ensino que surgiram de estudos femi-
de resolução de problemas). A inten- nistas durante os anos 1980. Ao longo
Leonie Sandercock 19

da década em que ensinei no curso de suas próprias dissertações e maneiras de


pós-graduação do Urban Planning Pro- pensar. Eles começam a estabelecer co-
gram, na Universidade da Califórnia em nexões pouco usuais, começam a pen-
Los Angeles (UCLA), usei a estratégia sar “lateralmente”, habilidade que
de “histórias de vida” como uma ma- decididamente será exigida dos plane-
neira de investigar os difíceis tópicos da jadores no século XXI. Em parte o fe-
identidade e da diferença. Em sua di- minismo, em parte minha experiência
versidade, meus alunos espelhavam a na escola de cinema e em parte a neces-
variedade social e cultural daquela ci- sidade de encontrar o maior número
dade, e isso, ocasionalmente, gerava possível de meios para me ligar com
tensões nas aulas. Eu começava cada meus alunos multiculturais é que me
semestre pedindo aos alunos que escre- levaram a experimentar histórias. Os re-
vessem histórias curtas sobre os modos sultados, em relação às dissertações e
como a raça, o gênero, a etnicidade ou apresentações maravilhosas das minhas
as deficiências físicas haviam moldado turmas, ensinaram-me muito sobre a
suas vidas. Em seguida, compartilhá- criatividade, que muitas vezes jaz ador-
vamos essas histórias na aula e as apro- mecida, subnutrida ou mesmo deses-
veitávamos durante o semestre, como timulada sob nossas “adequadas”,
uma forma de relacionar o pessoal ao “objetivas”, “científicas”, porém repres-
político. Também usei a idéia de uma soras dissertações acadêmicas.
“autobiografia habitacional”, ao lecionar
para os alunos da graduação sobre Por duas décadas, o notável educa-
questões habitacionais, pedindo-lhes dor de planejamento John Forester, um
que produzissem uma história sobre as incansável colecionador de histórias, tem
casas em que tinham vivido e sobre coletado, por meio de entrevistas, os de-
como essa vivência poderia ter formado talhes dos dias e das vidas de trabalho
suas idéias sobre casa e bairro ideais. de uma ampla faixa de profissionais da
Quando repeti esse procedimento na América do Norte e de alguns poucos
Universidade de Melbourne, em que de Israel e da Europa, descritos sempre
havia na turma alunos de Hong Kong, com ênfase na ação e não na teorização.
Singapura e Malásia, assim como anglo- Com um mínimo de edição, essas “histó-
australianos, ele funcionou muito bem, rias de trabalho” foram publicadas como
pois revelou estereótipos culturais e de transcrições com fins pedagógicos e,
classe referentes a bairro e casa “nor- também, com comentários e interpre-
mais”. Em geral, tenho verificado que, tações pormenorizadas, incorporadas
quanto mais criativa sou na sala de aula aos livros de Forester como base de sua
(usando música, imagens etc.), mais compreensão e teorização sobre plane-
criativa é a reação dos meus alunos em jamento (Forester, 1989, 1999). 6

6
Os oito volumes de transcrições editadas, organizados por conteúdo substantivo (por exem-
plo, Mediation in Practice: Profiles of Community and Environmental Mediators) (Mediação
na Prática: Perfis de mediadores comunitários e ambientais), estão disponíveis no Department
of City and Regional Planning da Universidade de Cornell.
20 Debatendo o preconceito

No decorrer da última década, Fo- munitário na Universidade de Massachu-


rester tem sido obstinado em sua busca setts, em Boston.
pela compreensão da diferença no pla-
nejamento. Vejo seu projeto maior como Os alunos de graduação de Kennedy
uma tentativa de remodelar o planeja- possuem basicamente um background
mento como uma prática de democra- de classe operária, moram em cidades e
cia deliberativa. Mas, como parte dessa são mais velhos (média de idade 39
busca, ele reconhece “os desafios de anos). A turma trabalha com organiza-
uma prática de planejamento multicul- ções comunitárias de base na área de
tural – a capacidade de antecipar e rea- Boston, com tópicos definidos por essas
gir, com sensibilidade e criatividade, às organizações, e, no processo, os alunos
complexas diferenças de ponto de vis- aprendem habilidades de planejamento.
ta, background, raça e gênero na histó- O projeto descrito por Kennedy em sua
ria cultural e política” (Forester, 2000, entrevista (Forester, Pitt e Welsh, 1993,
p. 147). Sua preocupação fundamental, p. 110-122) ocorreu na cidade de Som-
em minha interpretação de seu trabalho merville, adjacente a Cambridge, perto
recente, tem sido tentar resolver o que de Boston, com uma população de cerca
significa “respeitar diferença”. Ele enxer- de 100 mil habitantes. Sommerville es-
ga o perigo de conceber o respeito como tava em fase de transição, passando de
uma mera aceitação ou apreciação da um distrito predominantemente de classe
diferença: sob essa forma, o respeito operária de etnia branca para uma cida-
pode impedir o diálogo e a aprendiza- de com uma significativa nova popula-
gem mútua. Forester vê com clareza que ção de imigrantes e com um novo grupo
os conflitos do planejamento, em geral, branco liberal/radical mais instruído
não se restringem a recursos (tais como oriundo de Cambridge. (Este último gru-
terra, dinheiro, infra-estrutura). Abran- po tornara-se politicamente ativo e pres-
gem também os relacionamentos, e isso sionou a agenda de Sommerville como
envolve não apenas a personalidade e uma “Sanctuary City”. 7 Nos 10 anos an-
a política, mas também a raça, a etnici- teriores, a população mudara de 95%
dade e a cultura. Para aprender a tra- de habitantes de etnia branca da classe
balhar com sucesso em tais situações operária para 25% de habitantes nasci-
transculturais ou multiculturais, ele pro- dos no exterior (haitianos, vietnamitas,
curou profissionais com boas histórias centro-americanos), alteração acompa-
para contar. Uma dessas histórias, que nhada por tensão e incidência de vio-
pode me servir duplamente ao escre- lência raciais cada vez maiores. Kennedy
ver aqui sobre pedagogia e histórias em foi procurada pelo Mystic Welcome Pro-
contextos multiculturais, se refere ao ject, uma organização de recém-chega-
trabalho de Marie Kennedy, que ensina dos ao projeto habitacional Mystic, o
planejamento de desenvolvimento co- maior projeto habitacional público de

7
Isto é, como uma cidade que dá bom acolhimento a recém-chegados, com ou sem documentos
legais.
Leonie Sandercock 21

Sommerville. A questão era como esta- concepções prévias se confirmam ou


belecer, ou restabelecer, um sentimen- não. (Ibid., p. 113)
to de cooperação e apoio comunitário
nesse bairro. Havia também o desafio Todos os alunos, individualmente,
de determinar como reunir várias orga- fizeram caminhadas pelo bairro e tive-
nizações de bairro da mesma área que ram de refletir sobre a maneira como o
não tinham nada em comum umas com bairro os afetava, sobre quem eles viam,
as outras. Para Kennedy, a agenda era sobre os grupos raciais, étnicos e socioe-
clara: “Vamos explicitamente entrar com conômicos, sobre o que viam no am-
uma agenda para estabelecer uma co- biente físico, sobre suas pressuposições
munidade multiétnica e multirracial sau- em relação a isso, e se achavam que
dável. Dessa maneira a meta fica bem aquele seria ou não um lugar “agradá-
evidente. Teremos muitas discussões, e vel” para morar. Kennedy obrigou os
algumas serão acaloradas” (ibid., p. 118). alunos a escrever sobre Sommerville e
sobre suas atitudes em relação aos gru-
O que quero extrair dessa história é pos e indivíduos recém-chegados. Os
o modo como Kennedy preparou seus trabalhos foram escritos anonimamente
alunos para trabalhar nessa situação. Os e discutidos coletivamente. Houve mui-
próprios alunos diferiam quanto a idade, tas divergências entre os alunos acerca
gênero, raça e etnicidade, e a maioria de suas impressões. O que apareceu nas
pertencia à classe operária. Durante o discussões foi o modo como os diferen-
primeiro mês (de um curso de um ano), tes backgrounds dos alunos (crescendo,
ela se reuniu com os alunos e concen- ou não, em um conjunto habitacional
trou-se nas atitudes deles em relação às público; morando, ou não, em um bairro
comunidades de imigrantes e de recém- de recém-chegados, e assim por diante)
chegados e em relação a Sommerville haviam formado suas reflexões sobre
como lugar. Sommerville. Pediu-se aos alunos que
refletissem sobre a experiência de tor-
Passamos o período inicial revelan- narem-se um recém-chegado oriundo
do preconceitos e tendências (...) É de uma minoria qualquer, talvez a única
minha firme opinião que não im- família diferente da comunidade atual-
porta quem somos, trazemos nossas mente majoritária. Alguns podiam apro-
experiências prévias, nossa baga- veitar seus backgrounds como membros
gem, nossas concepções prévias de minorias para falar sobre isso e ins-
para qualquer situação de planeja- truir seus colegas (brancos). Gradativa-
mento. O primeiro passo é deixar mente, isso levou a discussões sobre
bem claro o que estamos trazendo políticas habitacionais, políticas de imi-
(...) Podemos pôr a nossa bagagem gração, a uma análise das necessidades
de lado para ouvir e escutar clara- da área etc. Um semestre inteiro foi gasto
mente as experiências dos outros ou nesse tipo de preparação, antes de os
podemos compará-la com opiniões alunos começarem a trabalhar com o
alheias e fatos para ver se nossas grupo comunitário, na comunidade.
22 Debatendo o preconceito

Esse é um relato profundamente in- O trabalho de Forester, apesar de sua


formativo do que é preciso para traba- base empírica, está saturado tanto ética
lhar como agente de mudança social em quanto normativamente. Embora decla-
um bairro em transformação e de como re que “não procuramos nenhum estilo
é importante examinar nossos próprios ou filosofia específicos” quando buscamos
preconceitos. Ele nos dá uma idéia do entrevistados potenciais, ele não descre-
trabalho pessoal detalhado que precisa ve apenas o que os planejadores fazem
ser feito como preparação para o traba- em suas próprias palavras. Ele deseja que
lho em ambientes multiculturais. os planejadores façam o bem e sejam efi-
cientes e que realmente tenham relevân-
Nessa etapa de aprendizagem, as his- cia, e procura histórias de profissionais que
tórias que os alunos contam sobre si demonstrem essas possibilidades (e que
mesmos e escutam uns dos outros são correspondam ao que ele entende como
cruciais para remover as camadas de pre- fazer o bem e ser eficiente). Seus propó-
conceitos e pressuposições sobre os “ou- sitos moldam sua coleta de histórias. Seus
tros” e sobre ambientes residenciais físicos objetivos pedagógicos, ao repassar essas
diferentes daquele a que se está acostu- histórias para os alunos, não pretendem
mado. Como conseqüência, quando leio simplesmente transmitir as habilidades
esse relato sobre o trabalho de Kennedy, desses profissionais, mas também inspirar
aprendo novas maneiras de abordar a seus alunos na maneira como essas ha-
preparação de planejadores de desen- bilidades são utilizadas, isto é, com que
volvimento comunitário. Sua “história de finalidades morais. No caso de Kennedy,
trabalho” ajuda o meu trabalho. A coleta a finalidade é estabelecer comunidades
de tais histórias por Forester ajuda-nos a multirraciais, multiétnicas saudáveis. Nisso
todos. Histórias ensinam. Mas o que en- reside, talvez, o mais antigo e tradicional
sinam? uso das histórias como exemplos morais.

Conclusões

Há, naturalmente, limites ao poder e palestinos em Israel. Meus exemplos são


alcance das histórias e das narrações de tirados de contextos locais e regionais e
histórias no planejamento. Preciso men- de cenários nos quais os planejadores
cionar dois. Um é relativo à escala; o desempenham um papel e exercem al-
outro, ao poder em si. Não estou afir- gum tipo de influência. Tampouco estou
mando que a narração de histórias fun- afirmando que a narração de histórias
ciona em situações de conflito extremo é tão poderosa que pode ou deve subs-
que divide nações, tais como os confli- tituir outras ferramentas de planejamen-
tos contemporâneos entre hindus e mu- to. A narração persuasiva de histórias é
çulmanos na Índia, ou entre sionistas e uma forma de poder à disposição de
Leonie Sandercock 23

planejadores, mas ocorre em um campo quo. Investigamos as várias maneiras


de força em que há outros poderes em como as histórias são usadas na prepa-
funcionamento, entre eles os poderes da ração de planejadores, histórias pessoais,
informação falsa, do logro e da mentira, histórias práticas, histórias comoventes
que são efetivamente usados por plane- e inspiradoras. Também sugeri a impor-
jadores bem como por forças externas tância crucial das histórias no planeja-
que se opõem a intervenções de plane- mento multicultural e demonstrei como
jamento. 8 aplicações específicas de histórias con-
tribuem para o projeto do planejamen-
Não obstante, este artigo sustenta to multicultural.
que as histórias e as narrações de histó-
rias são centrais à prática do planeja- No entanto, ainda são muito poucos
mento e que, de fato, podemos pensar os profissionais ou acadêmicos conscien-
em planejamento como uma história tes ou criativos sobre o uso de histórias.
encenada. Vimos histórias funcionando Meu propósito, ao chamar a atenção
como/em processos de planejamento, para a centralidade das histórias, é, entre
em que a capacidade de contar, ouvir e outros, sugerir que o papel da imagina-
inventar histórias está sendo cultivada, ção da narração de histórias poderia ser
assim como a capacidade igualmente muito mais proeminente na educação de
importante de criar/projetar os espaços planejadores. Uma compreensão melhor
nos quais as histórias serão ouvidas. do papel que as histórias desempenham,
Quando as histórias funcionam como ou podem desempenhar, e de como o
catalisadores de mudanças, isso ocorre fazem, poderia produzir planos e docu-
em parte pelo exemplo inspirador e em mentos de políticas mais persuasivos.
parte pela configuração de uma nova Poderia ajudar-nos a analisar tais docu-
capacidade para imaginar alternativas. mentos. O uso criativo das histórias e das
Investigamos a noção de histórias fun- reações produzidas por elas podem ser-
dadoras que precisam ser reescritas, vir a muitos propósitos, inclusive ampliar
quer no âmbito da nação, da cidade ou o círculo do discurso democrático e de-
do bairro. Ouvimos como as histórias mover os participantes desses discursos
poderiam ser críticas na pesquisa e na de suas posições entrincheiradas para
análise de políticas, e também como o conduzi-los a estados de espírito mais
privilégio da narração científica de histó- receptivos ou abertos.
rias pode na verdade prejudicar nossas
formulações de políticas. Vimos como Defendo tanto uma abordagem cria-
os acadêmicos utilizam histórias como tiva quanto uma abordagem crítica de
explicação e análise crítica de práticas histórias e narração de histórias. Falei
de planejamento e como essas histórias sobre a necessidade de demolir a “histó-
também podem fazer diferença, podem ria oficial” em relação ao histórico do pla-
apoiar, assim como questionar, o status nejamento. A utilização de histórias na
8
Para alguns exemplos estarrecedores de como planejadores empregam seus dados desonesta
e enganosamente, ver Flyvbjerg, Holm e Buhl (2002).
24 Debatendo o preconceito

prática do planejamento deve estar aber- dades se tornam mais multiétnicas e


ta ao mesmo processo de análise crítica, multiculturais, a necessidade de travar
inclusive à vigilância quanto aos modos um diálogo com estranhos deve tornar-
como o poder determina quais as histó- se uma arte urbana, e não apenas uma
rias a serem contadas, ouvidas e a ter arte do planejador. Essa “mais antiga
relevância. Um julgamento crítico sem- das artes” começa com o compartilha-
pre será necessário para decidir que im- mento de histórias e move-se em direção
portância dar a diferentes histórias, bem à formação de novas histórias coletivas.
como que histórias são apropriadas e em “A narradora de histórias, além de ser
que circunstâncias o são. A narração de uma grande mãe, mestra, poetisa, guer-
histórias nada mais é do que um ato pro- reira, musicista, historiadora, fada e fei-
fundamente político. ticeira, é também curadora e protetora.
Suas histórias cantadas ou contadas …
Se quisermos saber como podemos têm o poder de nos unir” (Minh-ha, 1989,
coexistir uns com outros, com todas as p. 140).
nossas diferenças, à medida que as ci-

Agradecimentos
Meus agradecimentos a Bob Beaure- de meu livro Cosmopolis 2: Mongrel
gard, Jim Throgmorton, John Fried- Cities and the 21st Century Multicultu-
mann e três revisores anônimos pela ral Project (Cosmópolis 2: cidades hí-
leitura cuidadosa deste artigo e pelas bridas e o projeto multicultural do século
sugestões construtivas. De uma forma XXI). Londres: Continuum, 2003.
mais extensa, este artigo é o Capítulo 8

Referências
DALE, N. Cross-cultural community based DUNSTAN, G.; SARKISSIAN, W. Goonawarra:
planning. negotiating the future of Haida core story as methodology in interpret-
Gwaii. In: SUSSKIND, L.; MCKEARNAN, S.; ing a community study. In: SARKISSIAN, W.;
THOMAS-LARMER, J. (Ed.). The Consensus WALSH, K. (Ed.). Community Participa-
Building Handbook. Thousand Oaks, CA: tion in Practice. Casebook. Perth: Insti-
Sage, 1999. tute of Sustainability Policy, 1994.

DONALD, J. Imagining the Modern City. ECKSTEIN , B.; T HROGMORTON , J. (Ed.).


Minneapolis: University of Minnesota Story and Sustainability: Planning,
Press, 1999. Practice, and Possibility for American
Leonie Sandercock 25

Cities. Cambridge, MA: MIT Press, ing Methods. Yarmouth, Maine: Inter-
2003. cultural Press, 1999. v. 2.

FINNEGAN, R. Tales of the City. A Study HOUSTON, J. The Possible Human. Los
of Narrative and Urban Life. Cam- Angeles: Tarcher, 1982.
bridge: Cambridge University Press,
1998. __________. The Search for the Beloved:
Journeys in Sacred Psychology. Los An-
FLYVBJERG, B.; HOLM , M. S.; BUHL, S. geles: Tarcher, 1987.
Underestimating costs in public works
projects: error or lie? Journal of the LEBARON, M. Bridging Troubled Waters.
American Planning Association, 68(3), San Francisco: Jossey-Bass, 2002.
p. 279-296, 2002.
MACNAUGHTON, A. Constable Tom Woods –
FORESTER, J. Planning in the Face of the unlikely planner. School of Commu-
Power. Berkeley: University of California nity and Regional Planning: University of
Press, 1989. British Columbia, 2001. (Unpublished
term paper for PLAN 502).
__________. Learning from practice sto-
ries: the priority of practical judgment. MANDELBAUM, S. Telling stories. Journal
In: FISCHER, F.; FORESTER, J. (Ed.). The of Planning Education and Research,
Argumentative Turn in Policy Analysis 10(2), p. 209-214, 1991.
and Planning. Durham, NC: Duke Uni-
versity Press, 1993. MARRIS, P. Witnesses, Engineers, and Sto-
rytellers: Using Research for Social Poli-
__________. The Deliberative Practitioner. cy and Action. Maryland: University of
Cambridge, MA: MIT Press, 1999. Maryland, Urban Studies and Planning
Program, 1997.
__________. Multicultural planning in
deed: lessons from the mediation practice M IN H - HA , T. Woman Native Other.
of Shirley Solomon and Larry Sherman. Bloomington: Indiana University Press,
In: BURAYIDI, M. (Ed.). Urban Planning in 1989.
a Multicultural Society. London: Praeger,
2000. REARDON, K. Enhancing the capacity of
community-based organizations in East
FORESTER, J.; PITT, J.; WELSH, J. (Ed.). Pro- St. Louis. Journal of Planning Educa-
files of Participatory Action Researchers. tion and Research, 17(4), p. 323-333,
Ithaca, Department of City and Regional 1998.
Planning: Cornell University, 1993.
__________. Ceola’s vision, our blessing:
FOWLER, S.; MUMFORD, M. (Ed.). Intercul- the story of an evolving community/
tural Sourcebook: Cross Cultural Train- university partnership in East St. Louis,
26 Debatendo o preconceito

Illinois. In: ECKSTEIN, B.; THROGMORTON, SPACKS, P. Gossip. Chicago: University of


J. (Ed.). Stories and Sustainability: Plan- Chicago Press, 1985.
ning, Practice and Possibility for Ameri-
can Cities. Cambridge, MA: MIT Press, SUSSKIND, L.; MC KEARNAN, S.; THOMAS-
2003. LARMER, J. (Ed.). The Consensus Build-
ing Handbook. Thousand Oaks, CA:
SANDERCOCK, L. (Ed.). Making the Invis- Sage, 1999.
ible Visible. A Multicultural History of
Planning. Berkeley: University of Cali- THIAGARAJAN, S.; PARKER, G. (Ed.). Team-
fornia Press, 1998. work and Teamplay. San Francisco: Jos-
sey-Bass, 1999.
__________. When strangers become
neighbors: managing cities of difference. THROGMORTON, J. Planning as Persuasive
Planning Theory & Practice, 1(1), p. 13- Storytelling. Chicago: University of Chi-
30, 2000. cago Press, 1996.

Resumo Abstract
Este artigo sustenta que, no planeja- This article argues that story has a special
mento, as histórias têm uma importância importance in planning that has neither
especial que nunca foi totalmente com- been fully understood nor sufficiently
preendida ou suficientemente valorizada. valued. Planning is performed through
O planejamento é encenado através de story, in a myriad of ways. The aim here
histórias de numerosas maneiras. O ob- is to unpack the many ways we use sto-
jetivo aqui é desvendar as muitas manei- ry: in policy, in process, in pedagogy, in
ras como usamos as histórias nas políticas, critique, as a foundation, and as a cata-
nos processos, na pedagogia e nas análi- lyst for change. A better understanding
ses críticas como um fundamento e um of the work that stories do can make us
catalisador de mudanças. Uma melhor better planners in at least three ways:
compreensão do papel desempenhado by expanding our practical tools, by
pelas histórias pode nos tornar planeja- sharpening our critical judgment and by
dores mais eficazes em pelo menos três widening the circle of democratic dis-
modos: expandindo nossas ferramentas course.
práticas, aguçando nosso julgamento crí-
tico e ampliando o círculo de discurso
democrático.

Palavras-chave : narrativas; teorias do Keywords : stories; planning theories;


planejamento; Londres. London.
Leonie Sandercock 27

Leonie Sandercock é professora de planejamento urbano e política social na


Escola de Planejamento comunitário e regional da Universidade de British Columbia
(Canadá), onde chefia o Programa de Pós-graduação. Escreve sobre teoria e história
do planejamento, planejamento multicultural, planejamento participativo, e sobre
a importância das histórias e de contar histórias no trabalho do planejador. É editora
da Planning Theory & Practice.
Dilemas na Teoria Crítica do
Planejamento

Raine Mäntysalo

O objetivo deste trabalho é avaliar a conhecidos como planejamento “comu-


Teoria Crítica do Planejamento (TCP) nicativo” ou “colaborativo”, fundamen-
como uma teoria de planejamento fun- tados teórica e filosoficamente na Teoria
damentada na Teoria Crítica. Ele apre- Crítica de Jürgen Habermas (1984,
senta a seguinte questão: pode-se esperar 1987) 1. Entre os principais teóricos do
que a TCP dê origem a um novo para- planejamento desse novo campo da
digma na teoria do planejamento (Innes, “teoria do planejamento” estão John
1995) ou a TCP é por demais controver- Forester, Frank Fischer, Patsy Healey,
tida e inconsistente para que, nos termos Tore Sager e Judith E. Innes. Com o de-
de Kuhn (1970), promova uma revolu- senvolvimento de seus trabalhos, temas
ção dessa ordem? Ao utilizarmos a expres- normativos e interdependentes, tais
são “Teoria Crítica do Planejamento”, como legitimidade, inclusão, dominação
estamos nos referindo a uma série de e qualidade da argumentação no plane-
desenvolvimentos teóricos originados a jamento, tornaram-se primordiais na dis-
partir do final dos anos 1980, também cussão teórica do planejamento.

1
No lugar do conceito de “teoria do planejamento comunicativo” prefiro usar, no contexto
deste artigo, o conceito de “Teoria Crítica do Planejamento” para indicar sua dependência
específica à Teoria Crítica. A teoria do planejamento comunicativo pode ser compreendida
como um conceito mais amplo que, além da Teoria Crítica, utiliza outras fontes teóricas, tais
como a teoria de argumentação inspirada em Perelman e Toulmin e as análises de poder
inspiradas em Foucault. Com a noção de “Teoria Crítica” me refiro, em especial, ao trabalho
teórico de Habermas, assim como Forester em seu livro Critical Theory, Public Policy, and
Planning Pratice (Forester, 1993, p. 163).

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIX, Nos 1-2, 2005, p. 1-24
2 Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento

Recentemente, a nova teoria do pla- sora que substitui a argumentação em


nejamento também foi criticada. Esses busca de consenso pela comunicação
comentários críticos se concentram na fundamentada em relacionamentos de
aplicação do conceito de “racionalidade troca. Em tal comunicação baseada no
comunicativa” de Habermas ao contexto poder, a coordenação das ações dos
do planejamento. O que Habermas iden- participantes pode ser obtida mediante
tifica com o conceito de racionalidade sanções positivas e negativas que, desse
comunicativa é uma argumentação não modo, tornam desnecessários os esfor-
imposta que ocorre em uma “situação ços para obtenção de consenso entre os
ideal de discurso” entre os participantes participantes (Habermas, 1987, p. 277-
em que, por meio de reivindicações e 281; 310-311). O poder “distorce” a ra-
verificações de suas validades em relação cionalidade comunicativa (ibid., p. 187;
aos critérios referentes ao “mundo da 322). Principalmente fundamentando
vida” compartilhados, é possível obter seus argumentos na abordagem foucaul-
consenso sobre temas e decisões co- tiana do poder, os críticos dizem que,
muns. Os ataques à TCP se aproveitam na análise das atuais situações do plane-
de algumas observações críticas sobre a jamento, a compreensão habermasiana
idéia do planejamento como uma ação do poder é improdutiva. Ao conceber
comunicativamente racional; argumen- o poder como uma “força externa” ne-
ta-se que os teóricos da TCP não expli- gativa que distorce a argumentação no
cam como a racionalidade comunicativa planejamento, não é possível reconhe-
no planejamento pode ser alcançada. cer o aspecto positivo e construtivo do
Argumenta-se, portanto, que a TCP não poder – poder como necessidade na
possui um potencial descritivo (Tewdwr- busca da competência para tomar e im-
Jones e Allmendinger, 1998, p. 1.988; plementar decisões. No planejamento
McGuirk, 2001, p. 199). Afirma-se que, comunicativo, o poder também é ne-
como conceito, a racionalidade comuni- cessário para levar adiante o processo
cativa possui um caráter demasiadamen- de planejamento; no entanto, esse as-
te utópico para servir de modelo para pecto do poder é excluído da idéia de
práticas de planejamento reais (Hillier, racionalidade comunicativa.
2000, p. 50). Ela não oferece uma orien-
tação clara sobre como organizar e ad- Nos seus contra-argumentos, os teó-
ministrar os processos de planejamento ricos críticos recorrem à distinção entre
e, por isso, tende a permanecer como os dois tipos de poder estabelecida por
um ideal teórico não enraizado no dia- Habermas – poder como distorções des-
a-dia da atividade do planejamento. necessárias e sistemáticas da ação co-
municativa e poder como distorções
Dizem que a separação conceitual necessárias, publicamente reconhecidas
entre poder e racionalidade comunicati- como autoridade legítima. O último tipo
va é um aspecto fundamental do utopis- de poder, a autoridade legítima, forne-
mo pressuposto na TCP. Para Habermas, ceria “distorções positivas” à ação co-
o poder representa uma força repres- municativa. Apesar da problemática
Raine Mäntysalo 3

imprecisão dessa distinção entre distor- municações do planejamento podem ser


ções “necessárias” e “desnecessárias”, a categorizados (Forester, 1989, p. 27-47).
distinção ainda mantém a abordagem
geral ao poder como uma distorção exter- Na verdade, a Teoria Crítica de Ha-
na. Os críticos foucaultianos dessa abor- bermas parece se aplicar melhor à iden-
dagem asseveram que quando o poder tificação de princípios normativos de
é dissociado das ações dessa forma, o as- argumentação legítima no planejamen-
pecto crucial do poder – ou seja, sua ca- to. Isso é praticamente tudo o que os
pacidade de constituir não só as situações teóricos da TCP alegam estar buscando.
em que ocorrem as ações como igual- Esse é também seu argumento geral
mente os sujeitos nelas envolvidos – é contra as acusações de utopismo e falta
ignorado (McGuirk, 2001, p. 213; Hillier, de capacidade prescritiva da TCP. O con-
2000, p. 50; Flyvbjerg, 1998, p. 227). ceito de racionalidade comunicativa não
é oferecido como uma possibilidade
Essa disputa sobre conceito de poder real, mas como um “padrão de medida”
entre os teóricos da TCP e seus críticos com o qual se medem as situações reais
foucaultianos é, até certo ponto, mal de planejamento, que nem sempre con-
direcionada, porque os rivais se apóiam seguem acompanhá-lo (Innes e Booher,
em bases filosóficas diferentes. Na teoria 1999a, p. 418; Sager, 1994, p. 21;
do planejamento, um contexto comum 246). A teoria, portanto, não visa for-
para uma revisão comparativa entre necer ferramentas para a produção de
duas tradições teóricas pode ser encon- novas práticas do planejamento, mas
trado por meio da avaliação do poder sim fornecer uma avaliação crítica de
explicativo de cada uma e da reação à práticas de planejamento já existentes.
prática do planejamento. O relato por- No entanto, a questão de a teoria poder,
menorizado de Flyvbjerg (1998) sobre de fato, servir como uma ferramenta
a elaboração e a implementação do empírica útil na avaliação crítica da vali-
plano de tráfego e trânsito para Aalborg, dade factual, normativa e significativa
Dinamarca, constitui um forte argumen- dos discursos do planejamento da vida
to a favor da abordagem foucaultiana real, ainda não foi bem explicada (ver
(combinada à nietzcheana e à maquia- Tait e Campbell, 2000). Mesmo assim,
veliana), porque analisa e explica os pro- o argumento central dos teóricos da TCP
cessos de planejamento reais – enquanto na sua defesa contra as críticas ao cará-
as tentativas de aplicar a TCP às análises ter utópico de suas posições, assim como
de processos de planejamento reais são à ausência de prescrições em suas for-
surpreendentemente raras. Por outro mulações é que tais críticas mostram uma
lado, Forester também desenvolveu, de compreensão errônea do objetivo ge-
forma convincente, as hipóteses de Ha- ral da TCP pelos críticos (Healey, 1999,
bermas sobre os critérios de validade e p. 1.133).
suas manipulações para desenvolver
uma estrutura analítica através da qual As questões cruciais que permane-
os usos desnecessários do poder nas co- cem podem ser assim formuladas: se a
4 Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento

TCP, estruturada dessa maneira, pode sem resposta as várias perguntas sobre
realmente servir como uma teoria do a maneira como os processos de plane-
planejamento; o que deveria ser espe- jamento participativo prosseguem ou
rado de uma teoria do planejamento; devem ser desenvolvidos, como os pro-
se a TCP pode se abster de tentar con- cessos do planejamento são organiza-
quistar uma metodologia de planeja- dos, como as situações do planejamento
mento participativo e argumentativo são organizadas, como os problemas do
sem perder seu caráter como teoria do planejamento surgem e são soluciona-
planejamento; e se ela é uma “teoria de dos, como os pontos de vistas, as atitu-
argumentação válida no contexto do des, as fidelidades e os papéis evoluem
planejamento” ou uma teoria de plane- durante o processo e, por fim, como os
jamento. conflitos são tratados. Para os analistas,
a Teoria Crítica de Habermas questiona
Uma teoria de planejamento deveria de forma contundente os problemas da
responder à questão básica “o que é prestação de contas ao público e da do-
planejamento?” (Ramírez, 1995, p. 2). minação sistemática no planejamento,
Essa pergunta levanta a questão do tipo na administração pública e nas políticas
de atividade que é abordado durante o públicas (Forester, 1993, p. 4). Desse
estudo da atividade do planejamento. modo, ela nos conduz a tarefas práticas
Habermas apresenta e categoriza a ati- que nos permitem transpor os objetivos
vidade humana de várias maneiras, mas, da Teoria Crítica. A Teoria Crítica defen-
basicamente, a sua visão de atividade de o raciocínio prático e político, mas,
humana pode ser vista como um movi- como filosofia, não consegue solucionar
mento entre duas racionalidades – a os problemas da sociedade e da política
racionalidade comunicativa e a raciona- (ver Bernstein, 1986, p. 112-114). Isso
lidade instrumental. A ação mediada não pode ser exigido de nenhuma filo-
pelo poder é direcionada para o pró- sofia – nem mesmo uma filosofia fun-
prio sucesso e visa a estratégias instru- damentada na práxis; porém, e quanto
mentalmente racionais, ao passo que a à Teoria Crítica do Planejamento? De-
ação direcionada para o consenso visa veria ela ser considerada similarmente
à racionalidade comunicativa. Uma apli- como uma filosofia de planejamento
cação direta da concepção da atividade participativo, em vez de uma teoria –
humana de Habermas conduz a uma uma teoria de planejamento participa-
visão do planejamento como uma ati- tivo que assumiria o desafio normativo-
vidade que se reveza entre essas duas pragmático sobre como alcançar práticas
racionalidades. Será que essa visão de de planejamento legítimas e inclusivas?
fato capta a essência do planejamento? Embora, como filosofia, a teoria de Ha-
bermas não possa ser obrigada a for-
Se a TCP estivesse satisfeita com a necer soluções para nossos problemas
tarefa de formular teoricamente os cri- sociais e políticos, essa exigência pode
térios normativos da argumentação no ser feita aos teóricos que aplicam a filo-
planejamento participativo, ela deixaria sofia de Habermas à teoria do planeja-
Raine Mäntysalo 5

mento, principalmente porque o plane- direção a uma teoria de planejamento


jamento é uma forma de atividade hu- participativo que tenta capturar a ativi-
mana motivada pela resolução de dade do planejamento participativo
problemas sociais e políticos. Na verda- como um fenômeno total, descritiva e
de, não é apropriado manter uma ati- normativamente? Poderia a TCP ser in-
tude de filósofo ao aplicar uma filosofia tegrada em tal teoria normativo-prag-
ao campo do planejamento. Isso não mática, que utiliza seus princípios de
quer dizer que os teóricos da TCP ado- legitimidade e de argumentação válida
tam tal atitude, mas, a esse respeito, eles no planejamento assim como sua con-
são (convenientemente) vagos sobre cepção geral de sociedade capitalista
suas verdadeiras posições. Poderá uma moderna?
teoria do planejamento ser uma mera
crítica da sociedade sem tratar essa mes- Esses temas serão mais cuidadosa-
ma sociedade de forma construtiva? mente investigados nas seções seguintes.
Pode a TCP ser considerada uma teoria
De qualquer modo, a formulação do planejamento que assimila suficien-
de uma teoria de planejamento partici- temente o fenômeno da atividade do
pativo construtiva é uma tarefa sensata planejamento participativo e, caso con-
e justificável para um teórico do planeja- trário, poderá ela ser complementada
mento, não obstante os próprios teóri- com outras fontes teóricas para formar
cos da TCP estarem dispostos a assumir, uma única? Se, para ambas as pergun-
ou não, essa tarefa. Contudo, qual seria tas, a resposta for negativa, a TCP pro-
a utilidade da TCP nesse trabalho teóri- vavelmente não dará origem a um novo
co? Seria possível deslocar a TCP em paradigma de teoria do planejamento.

O planejamento visa solucionar problemas e não


meramente obter argumentação válida e consenso

Como teoria de argumentação no pla- que solucionem nossos problemas, e isso


nejamento, a TCP não pode restringir- impõe a exigência de integrar o critério
se a identificar os princípios dos discursos de discursos válidos a uma metodologia
do planejamento válidos sem perder o de planejamento entendido como uma
que considero ser a mais essencial carac- atividade voltada para a solução de pro-
terística dos discursos do planejamento. blemas.
Estes visam detectar e solucionar os pro-
blemas que enfrentamos em nossa vida Como teoria do planejamento que
social, política e urbana. Precisamos reconhece o caráter do planejamento
mais do que simples discursos de pla- como uma atividade voltada para a re-
nejamento legítimos e argumentativos; solução de problemas, a TCP se com-
precisamos de discursos de planejamento promete a aplicar a teoria de Habermas
6 Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento

além dos limites de sua aplicabilidade, Seria um equívoco se tal atividade


pois, caso contrário, em vez de uma teo- de planejamento tentasse determinar se
ria de planejamento, os analistas estariam ela deveria ser comunicativamente ou
lidando com uma teoria de legitimidade instrumentalmente racional. A busca
no contexto do planejamento ao invés instrumental por meios está sempre pre-
de uma teoria do planejamento. Segun- sente na nossa abordagem a uma situa-
do os teóricos da TCP, uma prática do ção problemática, mas, em função da
planejamento ideal se fundamentaria na complexidade da situação, muitas vezes
racionalidade comunicativa. A meta da a procura precisa ser ampliada e centra-
ação comunicativamente racional é o da também nos fins. Precisa-se, então,
consenso fundamentado na compreen- de uma habilidade para construir uma
são mútua. O que pode ser feito com o estrutura de fins e meios completa em
consenso no planejamento? Aonde ele um planejamento que alcance a quali-
nos conduz? Como a vejo, a meta do dade do diálogo transcultural, mas esse
planejamento é a habilidade para lidar diálogo continua motivado pela procura
com problemas sociais complexos. Mes- inicial por meios, embora reconheça a
mo em uma situação ideal, a tarefa do necessidade de encontrar primeiro os
planejamento não terminaria com a ob- significados (ou, talvez, simultaneamen-
tenção do consenso. Os problemas do te). Por conseguinte, o esforço básico
planejamento são sociais no sentido de seria orientarmo-nos mutuamente em
que afetam um grande número de pes- relação à nossa situação problemática
soas de diferentes estratos sociais, mas para que pudéssemos formular planos
também no sentido de que agir sobre de ação coordenada para enfrentá-la.
eles exige uma atitude social e um com- Em vez do consenso per se, a dificuldade
promisso. Além disso, são freqüente- é saber como esse consenso pode bene-
mente complexos no sentido de que suas ficiar nosso relacionamento com nossos
próprias compreensões exigem uma ação planejamentos problemáticos e nossos
cooperativa que transcende os contextos problemas relacionados às políticas com
subculturais do significado. O que acon- que lidamos. Lidar com um problema
tece é que, a partir da natureza desses de planejamento e conseguir efetivar
problemas, esse consenso se torna um um planejamento são coisas completa-
fator necessário para o planejamento mente diferentes. Isso significa que nos
bem-sucedido. Ele é também necessário livramos do problema, por enquanto –
para a obtenção de um compromisso o que quer que decidamos fazer com o
transcultural e de apoio à tomada de projeto. A instrumentalidade do conflito
tais decisões inevitáveis que são sufi- diz respeito a essa orientação coletiva em
cientemente influentes para causar uma relação a nosso mundo que nos per-
diferença na nossa realidade social. Con- mite tomar decisões (Mäntysalo, 2000;
seqüentemente, o consenso se torna um Tewdwr-Jones e Allmendinger, 1998,
elemento constitutivo da nossa forma de p. 1.983-1.984; McGuirk, 2001, p. 206-
lidar com problemas sociais complexos 207).
(Mäntysalo, 2000, p. 104).
Raine Mäntysalo 7

O planejamento transcende a racionalidade


O planejamento como uma Crítica é por demais “científica” para lidar
forma de “fazer o mundo” com a questão da criatividade 2 – ela é
prisioneira de suas duas racionalidades.
A possibilidade da racionalidade comu- Poderá a essência verdadeira da ativi-
nicativa está baseada no pressuposto de dade do planejamento ser realmente
que um contexto compartilhado de va- encontrada a partir da racionalidade –
lores e compreensões referentes ao comunicativa ou instrumental? É o pla-
“mundo da vida” é passível de ser obtido nejamento uma mera forma de debate
tão logo todos os participantes renun- racional, um meio racional para um
ciem ao uso do poder. Estamos aí diante dado fim ou uma alternância entre os
de uma situação que fornece um contra- dois? Será que recebemos uma descri-
argumento para aqueles que, no mundo ção adequada do que o planejador de
atual, argumentam que levamos uma fato realiza quando planeja?
vida numa sociedade tão dividida em
subculturas que uma visão de mundo No planejamento comunicativa-
compartilhada não está mais pronta- mente racional, espera-se que os parti-
mente disponível (se é que ainda existe) cipantes façam reivindicações sobre algo
(Tewdwr-Jones e Allmendinger, 1998, e que recorram a algo já existente, po-
p. 1.979; McGuirk, 2001, p. 213-214; rém, onde é que o planejamento entra
Lapintie, 1999, p. 9-11; Hillier, 2000, em ação? Será que não estamos redu-
p. 50-52). Se esse fosse o caso, não seria zindo o planejamento a uma forma de
possível, mesmo em teoria, planejar nos interpretação e de tomada de decisão
moldes da racionalidade comunicativa enquanto negligenciamos seu potencial
antes de os participantes estabelecerem, na criação do mundo? No planejamento,
mutuamente, as circunstâncias em que além de debatermos, produzimos con-
as diferentes compreensões e metas teúdos (resultados de pesquisas, idéias
podem ser transpostas. Que tipo de ativi- e sugestões para soluções, contextos
dade, então, é essa criação de circunstân- para escolha de valores, comparações
cias para uma ação comunicativamente entre casos similares etc.) sobre os quais
racional? debatemos. A racionalidade, seja ela
comunicativa ou instrumental, está preo-
A teoria de Habermas, com seu apa- cupada com a validade ou a efetividade
rato de racionalidade, leva-nos a observar de um proposto conjunto de ações em
analítica e criticamente a nova criação, relação a um dado critério ou fim. Ela
e não a criação do novo em si. A Teoria não aborda o tipo de comunicação rela-

2
Indubitavelmente, alguns alegariam que não é função da ciência estudar a criatividade. Mas,
se aceitarmos isso, não deveríamos também desistir de estudar o planejamento – ou, pelo
menos, admitir que essa ciência pode capturar apenas os aspectos do planejamento que não
estão relacionados à criatividade? Uma teoria científica do planejamento só será uma possi-
bilidade se ampliarmos os limites da ciência de modo a incluir a pesquisa sobre a criatividade.
8 Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento

cionada aos processos mais essenciais da (1992, p. 245), o diálogo é “o fluxo livre
elaboração de critérios ou fins. A racio- de significado entre grupos que se co-
nalidade comunicativa de Habermas está municam” 3. Eles enfatizam a natureza
fundamentada na realização e na verifi- criativa do diálogo como um processo
cação de reivindicações concernentes a de revelação e, em seguida, de agluti-
um determinado horizonte moral e prá- nação de rígidas construções de conhe-
tico das compreensões compartilhadas, cimento cultural implícito. Bohm e Peat
mas o principal problema das situações estabelecem uma distinção entre “diálo-
de planejamento transculturais e plura- go” e “discussão” como as duas formas
listas é saber como tal horizonte mútuo básicas do discurso (ibid.). Senge aper-
poderia ser alcançado (Rittel e Webber, feiçoa essa distinção ao alegar que, na
1973). Em seu sentido mais profundo, discussão, as visões diferentes são apre-
planejar significa moldar mundos com- sentadas e defendidas, ao passo que, no
partilhados e, conseqüentemente, for- diálogo, as visões diferentes são apre-
mular racionalidades compartilhadas. A sentadas como um meio para descobrir
Teoria Crítica de Habermas não aborda uma nova visão (Senge, 1990, p. 247).
esse aspecto crucial do planejamento, Ele argumenta que os discursos na forma
mas parte de uma situação em que já de discussões podem fornecer análises
existem um mundo compartilhado e úteis sobre as situações dos problemas.
uma medida padronizada de racionali- Os temas complexos são investigados no
dade compartilhada (Mäntysalo, 2000, diálogo, mas as decisões são tomadas
p. 103). O diálogo comunicativamente na discussão.
racional de Habermas não é um diálogo
genuíno, porque, como Karatani indica, A discussão é necessária quando
os participantes já possuem regras com- uma equipe precisa chegar a um
partilhadas. Para Karatani, as regras acordo e decisões precisam ser to-
compartilhadas são conseqüência do madas. Tendo-se, como base, uma
diálogo e não seu ponto de partida (Ka- análise mutuamente acordada, as
ratani, 1995, p. 153). visões alternativas precisam ser com-
paradas entre si e uma visão preferida
precisa ser selecionada… Quando
O planejamento como são produtivas, as discussões con-
diál ogo vergem para uma conclusão ou curso
de ação. Por outro lado, os diálogos
Vamos examinar o conceito de “diálogo” são divergentes; eles não buscam
mais de perto. Segundo Bohm e Peat um acordo, mas uma melhor com-

3
A explicação etimológica é que “dia” significa “atravessar”, “através”; e “logos” denota não
apenas “palavra”, mas um “significado” mais profundo (Bohm e Peat, 1992, p. 245). Ramírez,
por outro lado, traduz “logos” como “conversa” (samtal, em sueco) (Ramírez, 1993, p. 28).
Apesar dessas derivações divergentes das origens etimológicas de “diálogo” (“significados
percorridos”, “conversa percorrida”), ambas as fontes (Bohm e Peat, 1992; Ramírez, 1993)
concebem o diálogo como “significado que gera comunicação”.
Raine Mäntysalo 9

preensão de temas complexos. Tanto convergente e divergente propiciam rea-


o diálogo quanto a discussão podem ções verdadeiramente positivas a um
gerar novos cursos de ação; porém, ambiente em constante mudança de
as ações são, muitas vezes, os focos uma forma que nenhum dos dois po-
das discussões, enquanto ações novas deria realizar sozinho” (ibid.). Quando
surgem como um subproduto do diá- o conceito de racionalidade comunica-
logo. (Ibid.) tiva de Habermas é relacionado a essas
definições de diálogo e discussão (e ao
Aqui, Senge associa a distinção entre pensamento divergente), pode-se alegar
diálogo e discussão à distinção entre que a racionalidade comunicativa tem
pensamento divergente e pensamento mais afinidade com uma discussão não-
convergente, que Faludi, entre outros, dominada do que com o diálogo. Ha-
utilizou em sua Teoria do Planejamento bermas está mais preocupado com a
(Faludi, 1973). Faludi dá a entender que determinação de métodos de avaliação
o planejamento criativo oscila entre pen- válidos e a crítica dos argumentos do
samento convergente, que corresponde que com a efetiva produção de argu-
à análise consciente e seletiva, e pensa- mentos (Mäntysalo, 2000, p. 339).
mento divergente, que corresponde à as-
sociação intuitiva (ibid., p. 119). Faludi O conceito de diálogo de Habermas
cita O. L. Zangwill: é muito limitado. O aspecto central da
criatividade não existe. No diálogo ha-
(...) no pensamento convergente, o bermasiano, o mundo da vida existe
objetivo é descobrir a resposta cor- como um horizonte estável em que os
reta para um problema. Ele é um fins sociais são racionalmente derivados
pensamento essencialmente lógico em um processo de argumentação não-
e muito direcionado, do tipo exigido dominado. O conceito não alcança a
pela ciência e pela matemática. É constante mudança do mundo da vida.
também do tipo exigido para a solu- A racionalidade comunicativa e a racio-
ção da maioria dos testes de inteligên- nalidade instrumental não podem ser
cia. Por outro lado, no pensamento usadas para explicar a maneira como o
divergente, o objetivo é produzir um mundo da vida muda e evolui. Como
grande número de respostas possí- Forester comenta: Habermas define
veis, nenhuma delas necessariamen- explicitamente os processos de repro-
te mais correta do que as outras, dução do mundo da vida, no entanto
embora algumas sejam mais origi- ele pouco faz, sociologicamente, para
nais, talvez. Tal pensamento é mar- avaliar a maneira como esses processos
cado por sua variedade e fertilidade, funcionam, como as opiniões, as fidelida-
e não por sua precisão lógica. (Ibid., des e as identidades são aperfeiçoadas,
p. 118) estabelecidas, alteradas ou rotinizadas”
(Forester, 1993, p. 126).
Faludi conclui que, “quando com-
binados, esses tipos de pensamentos
10 Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento

Segundo Forester, cessos de conversação destinados a


criar coletivamente um sentido, os
isso constitui o tema central a ser tra- participantes podem ficar atentos às
tado em qualquer análise concreta dimensões sociais dos processos de
de lutas políticas, debates políticos, elaboração, entre elas, as influências
conflitos políticos ou movimentos organizacionais, institucionais, polí-
sociais – e isso explica parte da difi- ticas e econômicas que eles enfren-
culdade, até o presente momento, tarão – obrigatoriamente, embora,
de podermos aplicar o trabalho de com tristeza, às vezes – na prática
Habermas, direta e concretamente, do dia-a-dia. (Ibid., p. 120-121).
a conflitos políticos. (Ibid.)
“Elaboração como produção cole-
O próprio Forester abordou esse tiva do sentido” reconhece a potenciali-
tema com seu conceito “elaboração dade de “criação do mundo” inerente à
como produção coletiva do sentido” 4. natureza da elaboração, em que os parti-
Com o conceito, ele se refere à noção cipantes criam, juntos, novos significados
de elaboração como um compartilhado para fins e para meios (ibid., p. 126-
processo interpretativo da criação do 128). Segundo Forester, tal trabalho de
sentido entre os participantes envolvidos elaboração é, ao mesmo tempo, instru-
em conversas práticas em seus ambien- mentalmente produtivo e socialmente
tes institucionais e históricos (Forester, reproduzível (ibid., p. 129-132), mas,
1989, p. 119-133). em vez de se referir à teoria de ação
comunicativa de Habermas, a descrição
Quando a atribuição de uma forma da atividade de elaboração de Forester
é compreendida mais como uma segue as idéias de elaboração e plane-
atividade de criação coletiva do sen- jamento como “conversas reflexivas
tido, ela pode ser situada em um com a situação” de Schön (Schön, 1983,
mundo onde o significado social é p. 76-104). A teoria de ação reflexiva
uma realização prática constante. A de Schön também influencia vários ou-
elaboração ocorre em cenários ins- tros teóricos do planejamento crítico
titucionais onde a racionalidade é, importantes, tais como Fischer (1990),
na melhor das hipóteses, precária, Sager (1994), Innes e Booher (1999a,
os conflitos são abundantes e as re- 1999b). No entanto, a utilização da teo-
lações de poder moldam o que é ria de Schön no contexto da Teoria Crí-
plausível, desejável e, às vezes, até tica ocasiona problemas filosóficos e
mesmo imaginável. Ao reconhecer teóricos. A discussão retomará esse tema
as práticas de elaboração como pro- na próxima seção.
4
No original, “designing as making sense together”. “Design” possui múltiplos sentidos:
atribuir forma, elaborar, desenhar, traçar o contorno, desenvolver. “Making sense” também:
geralmente, tal expressão é usada para se falar que determinada coisa tem ou faz sentido, é
razoável, não é absurda. Forester parece jogar com essa acepção, ao mesmo tempo que
propõe a idéia de “making sense” como “construção de um sentido”, conforme se pode
depreender do contexto da discussão. N. da Rev. da T.
Raine Mäntysalo 11

Ao conceito de “elaboração como ficações. Se as preocupações coletivas


produção coletiva do sentido” de Fores- são ambivalentes e ambíguas, tal
ter, Healey acrescenta – “enquanto vi- processo comunicativo deveria per-
vemos de modo diferenciado” (Healey, mitir o reconhecimento de que isso
1992, p. 148). Isso revela a atitude de existe e que, talvez, seja inevitável.
dúvida de Healey quanto à esperança Por conseguinte, em vez de serem
de alcançar, de fato, a compreensão com- eliminados na tentativa de elaborar
partilhada no planejamento comunicati- uma linguagem unidimensional, os
vo transcultural. Os participantes podem dilemas e os potenciais de criação
compartilhar uma preocupação, mas de ambigüidade enriquecem o es-
chegam a ela por meio de experiências forço interdiscursivo. (Ibid., p. 156)
pessoais, culturais e sociais diferentes. Eles
pertencem a diferentes “sistemas” de Essa abordagem a situações de pla-
conhecimento e valorização que os apro- nejamento como contextos socialmente
ximarão ou afastarão um do outro em e culturalmente fragmentados, em que
relação ao acesso ao idioma de cada um. não há uma visão de mundo comparti-
A comunicação no planejamento deve- lhada, na verdade, enfatiza a visão de
ria, portanto, se concentrar na obtenção que no planejamento precisamos trans-
de um nível alcançável de compreensão cender a racionalidade comunicativa (e
mútua para os propósitos à mão e, ao instrumental). Os problemas são solu-
mesmo tempo, continuar atenta ao que cionados no planejamento, mas, além
não é compreendido (ibid., p. 154). dessa característica, e mais essencial-
mente, o planejamento diz respeito à
Através de tais processos de argu- moldagem de tais situações de proble-
mentação, podemos chegar a um mas em que os problemas podem ser
acordo ou aceitar um processo de identificados como racionalmente solu-
aprovação sobre o que deveria ser cionáveis. No planejamento, produzimos
feito, sem obrigatoriamente obter o contexto para a racionalidade. O co-
uma visão unificada sobre nossos res- mentário de Cates, em sua crítica à limi-
pectivos mundos. Os critérios críticos tada racionalidade do incrementalismo,
construídos durante tal processo de se aplica aqui também – “Precisa-se de
argumento incentivam a franqueza algo que não seja a racionalidade”
e a “transparência”, mas sem simpli- (Cates, 1979, p. 529).

O planejamento participativo se burocratiza


O planejamento como tração e na articulação da crise da teoria
participação organizada do planejamento anterior, que foi muito
influenciada pela teoria de sistemas.
Os esforços teóricos dos teóricos da TCP Simon introduziu a visão da teoria de
se concentraram bastante na demons- sistemas como núcleo teórico da teoria
12 Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento

do planejamento na década de 1940, e vida política e econômica do estado ca-


esse desenvolvimento teórico atingiu o pitalista moderno. Habermas chama essa
auge na década de 1960 e no início da racionalidade de “racionalidade instru-
década de 1970. O principal contra- mental” – conceito que é uma reformu-
argumento da TCP contra essa tradição lação da racionalidade intencional de
teórica é que os modelos de sistemas Weber, mas que abrange, também, a
teóricos do pensamento transformam as racionalidade dos sistemas. Por outro
agências públicas de planejamento em lado, a ação comunicativa de Habermas
instituições tecnocráticas que visam a um está fundamentada em seu conceito de
controle eficiente das mudanças ambien- racionalidade comunicativa – na busca
tais e que, por isso, também contornam por um acordo na interação social através
a conduta política. O tratamento político da realização e avaliação de reivindica-
dos negócios públicos seria, conseqüen- ções a respeito do mundo compartilhado
temente, suplantado pela racionalidade no que se refere a três critérios práticos:
dos sistemas, que tanto define os pro- verdade proposicional, correção nor-
blemas quanto oferece soluções para mativa e veracidade subjetiva 5.
eles. Em vez de ser uma mera ferramen-
ta administrativa, a racionalidade dos Há um relacionamento dialético
sistemas poderia, portanto, tornar-se a entre as duas racionalidades, mas como
meta do planejamento, seu valor supre- será que essa dialética realmente funcio-
mo (Fischer, 1990, p. 203-210; 271- na? Habermas alterna as duas raciona-
274; Forester, 1993, p. 9; 89; Thomas, lidades, mas, na verdade, não analisa
1982, p. 15; 21; 25). as suas interações – isto é, a maneira
como as ações comunicativas e estraté-
Habermas usa a teoria de sistemas gicas interagem para produzir e repro-
na descrição de mecanismos de subsis- duzir as formas de comportamento social
temas sociais conduzidos pelo poder e institucionalizadas. Nós nos encontramos
pelo dinheiro. Logo, os subsistemas são em uma extremidade do relacionamento
apresentados como sistemas de controle dialético entre “sistema” e “mundo da
que tendem a “colonizar” o mundo da vida” olhando, de modo crítico, a outra
vida mediante processos de burocrati- extremidade. No entanto, parece que
zação e “comodificação”. No entanto, uma compreensão correta dos processos
embora Habermas aborde, de maneira de planejamento exigiria um desloca-
crítica, as operações dos sistemas positi- mento do foco para o próprio relacio-
vistas assim imaginados, ele não tenta namento dialético.
reestruturar a teoria. Para Habermas, a
teoria de sistemas continua a ser uma Com base na teoria “bipolar” de
teoria adequada para descrever o tipo sociedade de Habermas, fica difícil
de racionalidade que é decisivo para a abordar construtivamente os tipos de

5
Habermas (1984, p. 75). Aqui Habermas se apóia em Parsons, que considerava a cultura
formada por três dimensões respectivas – factual, moral e expressiva – e que trabalhou
também na teoria de validade de reivindicações (Heiskala, 1994, p. 94).
Raine Mäntysalo 13

problemas que dizem respeito ao pla- decisões forem deslocadas para os


nejamento público e às dinâmicas de comitês em que os que forem afeta-
organização. Esses temas são colocados dos, ou seus representantes, preci-
no lado do “sistema”. O planejamento sarão decidir se concordam, ou não,
público, entendido como “burocratiza- com uma decisão. Tais comitês pre-
ção do mundo da vida”, é visto como cisam estar preparados, tanto em re-
uma ameaça potencial à legitimidade do lação ao tema da matéria quanto
planejamento. Por outro lado, a partici- taticamente. O processo de decisão é
pação irrestrita direcionada à racionali- reflexivo. Todos precisam decidir como
dade comunicativa é tratada como uma querem decidir. Mais do que tudo,
forma ideal de conduta legítima. Toda- esse processo de decisão reflexivo
via, a participação possui uma tendência precisa ser discutido anteriormente.
inerente à organização e, conseqüente- Dessa maneira, a reflexibilidade da
mente, à burocratização em si. O que é decisão é deslocada para um terceiro
uma participação organizada se não nível. É preciso decidir a maneira
uma burocracia? Abordar o tópico da como um representante deveria de-
participação sem abordar a organização cidir sobre as decisões. (Ibid.)
da participação é uma forma superficial,
para não dizer totalmente irresponsável, Esse processo possui uma incrível
de trabalho teórico (Luhmann, 1990, semelhança com o comportamento nor-
p. 223). Os teóricos da TCP defendem mal nas burocracias. Segundo Luhmann,
a participação contra a burocracia sem “o processo burocrático normal constan-
reconhecer de forma crítica a burocra- temente toma decisões sobre decisões.
tização inerente à própria participação. 6 As decisões se tornam possíveis ou im-
Por exemplo, em um período relativa- possíveis através de decisões, ou, caso
mente curto, as associações de morado- não seja possível decidir sobre essa de-
res passaram de movimentos cívicos ad cisão, o processo é então suspenso pela
hoc a grupos de interesses bem organiza- decisão” (ibid.). Luhmann argumenta
dos que encontraram suas posições ins- que é exatamente assim que uma pes-
titucionalizadas nas organizações políticas soa se comporta no procedimento parti-
locais. A seguinte citação de Luhmann é cipativo (ibid., p. 223-224). “Como um
ilustrativa: fantoche dentro de um fantoche, a par-
ticipação se desenvolve em uma orga-
As organizações são sistemas sociais nização dentro de uma organização, em
que produzem decisões com a ajuda uma burocracia dentro de uma burocra-
de decisões. Por conseguinte, a am- cia” (ibid., p. 224).
pliação de possibilidades de parti-
cipação dentro das organizações À luz da TCP, o resultado pode ser
equivale a um aumento de decisões. condenado como burocracia e elogia-
Mais decisões serão necessárias se as do como participação. Como Luhmann
6
Uma notável exceção é Healey (1997, 1998), que aperfeiçoou os aspectos institucionais do
planejamento colaborativo.
14 Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento

comenta, essa dupla avaliação tem um pesquisa participativa pode ser uma
efeito imobilizador – “afirma-se, em teo- fórmula para criar confusão. Para
ria, o que se condena na execução” evitar seu fracasso prematuro e im-
(ibid.). Aqui, Luhmann, na realidade, pedir a decepção entre os especia-
descreve o nó duplo 7 da participação listas e os clientes do processo, é
que os teóricos da TCP freqüentemente essencial que os regulamentos bási-
produzem – porque você quer partici- cos do modelo alternativo, tanto os
par, você precisa rejeitar a dominação processuais quanto os metodológi-
burocrática; e porque a própria partici- cos, possam ser cuidadosamente
pação se burocratiza, você precisa rejei- planejados. (Fischer, 1990, p. 377)
tar a participação.
No entanto, a partir da base concei-
Os teóricos da TCP estão bem cien- tual da Teoria Crítica, no planejamento
tes da necessidade de um trabalho admi- participativo, é muito difícil tratar a ques-
nistrativo e gerenciador para o sucesso tão do gerenciamento. Os teóricos da
dos processos de planejamento partici- TCP freqüentemente confundem os pro-
pativo: blemas estruturais de uma organização
participativa com problemas ideológi-
Quando os projetos de pesquisa cos. Eles oferecem uma esperança de
participativa fracassam, em geral o libertação democrática em tais contextos
problema decorre de uma crença organizacionais em que essas esperanças
erroneamente concebida – isto é, podem ser estruturalmente impossíveis
de que a participação atribui o mes- de serem consumadas (Luhmann, 1990,
mo peso a todas as opiniões e, pior p. 223). Quando a estrutura é identifi-
ainda, de que todos podem falar à cada com a dominação, a libertação tem
vontade (se não ao mesmo tempo). o mesmo significado de “desestrutura-
Sob essas condições, a pesquisa par- ção”. Nossa situação se torna insupor-
ticipativa gera uma desagradável tável se nossas concepções nos levam a
falta de comunicação que facilmente condenar, como dominação, as formas
se degenera em xingamentos. Na de ações coordenadas e estratégicas,
falta de um modelo bem-estruturado que são inevitáveis e ubíquas nas nossas
de discurso entre especialista e clien- relações sociais. Essas confusões levam
te, inclusive de regras de autentici- ao divórcio entre a ética e a práxis. A
dade e de critérios de avaliação, a justiça social é perseguida ao preço do

7
Os nós duplos são contextos de atividades em que não restam alternativas (Bateson, 1987,
p. 335). Como exemplo, Bateson descreve uma lição zen budista entre o mestre e seu pupilo.
O mestre zen segura uma vara sobre a cabeça do pupilo e diz: “Se você disser que essa vara
é real, vou golpeá-lo com ela; se você disser que ela não é real, eu o golpearei com ela; se
você não disser nada, eu o golpearei com ela.” O pupilo poderia sair dessa situação esten-
dendo a mão e tirando a vara da mão do mestre (ibid., p. 208). Segundo Wilden, o capitalismo
industrial é um nó duplo global: se pára de produzir para o próprio bem da produção, ele se
destrói; se continua a produzir, ele destruirá todos nós (Wilden, 1980, p. 394).
Raine Mäntysalo 15

gerenciamento prático dos assuntos co- tinção entre distorções necessárias e


muns, e nós ficamos igualmente parali- desnecessárias como uma ferramenta de
sados. discussão.

A distinção entre distorções de pro- O problema do conceito de racio-


cessos de comunicação “socialmente nalidade comunicativa é que ele nos leva
necessários” e “socialmente desnecessá- a tentar “superar” o poder. Em vez disso,
rios” é apresentada como uma defesa precisamos de uma abordagem teórica
contra essa crítica. Segundo Forester, até alternativa que nos levaria a refletir sobre
entre os teóricos da TCP, a diferença nossos contextos de planejamento que
fundamental entre as duas, freqüente- não estão distorcidos, mas estruturados
mente, passa despercebida e, como con- pelas diferentes formas de poder con-
seqüência, são confundidas as distorções textual, tais como a dominação concei-
de discursos que são inevitáveis para a tual pelos especialistas do planejamento,
dominação (Forester, 1993, p. 159; os critérios econômicos institucionaliza-
1989, p. 33-35; 41-43; Fischler, 1995, dos e o privilégio de interesses políticos
p. 17). Segundo Forester, o próprio organizados. Tal alternativa reconheceria
Habermas “não tem ilusões (...) em vez a presença inevitável do poder na ação
disso, ele compara a distorção sistemá- do planejamento, até mesmo nas ações
tica e desnecessária com o que poderia de crítica e reflexão. A legitimidade no
ser chamado de distorção necessária, planejamento seria, portanto, abordada
justificável ou legítima. A primeira expri- com uma atitude mais humilde – como
me dominação; a última revela autori- uma tarefa normativa para melhorar a
dade legítima” (Forester, 1993, p. 168). legitimidade sem assumir a possibilidade
e a necessidade de determinar universal-
Essa distinção entre dominação e mente o que é planejamento legítimo.
autoridade legítima causa um outro pro-
blema. Como poderão as distorções ne-
cessárias serem legitimadas na ação O planejamento como
comunicativa que já está distorcida por aprendizado organizacional
essas distorções ? Como poderemos justi-
ficar os termos através dos quais nós jus- Embora a TCP defenda o diálogo e o
tificamos? Além disso, como poderemos, aprendizado social, ela só pode abordá-
até mesmo, distinguir entre distorções los passivamente. Ao seguir Habermas,
necessárias e desnecessárias em uma si- é possível deduzir a maneira como os
tuação de discurso distorcido? A distin- planejadores deveriam agir para que o
ção só pode ser feita em uma “situação aprendizado social ocorra – ainda sem
de discurso ideal” em que não há utili- compreender o que, na realidade, ocorre
zação de poder e, portanto, não há dis- no aprendizado social. Para acrescentar
torção. Como esse é um contexto ideal, competência teórica à descrição dos pro-
e não real da comunicação, ele prova- cessos de aprendizado social no plane-
velmente também tornará irreal a dis- jamento, além de Habermas, os teóricos
16 Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento

da TCP buscaram outras fontes teóricas. borado por pequenos grupos de especia-
A esse respeito, a que foi considerada listas e clientes visando à resolução de
mais promissora foi a teoria da ação tarefas específicas. O conhecimento é
profissional refletiva de Schön (1983). produto de um processo de aprendiza-
do social que propiciou uma compreen-
Schön pertence à tradição científica são mútua de uma situação problemática
ampla do “Desenvolvimento da Orga- e, simultaneamente, forneceu meios para
nização” (Friedmann, 1987, p. 56-57). alterar essa situação. O conhecimento
O Desenvolvimento da Organização está vinculado a contextos específicos da
(DO) é um desdobramento da “Admi- vida real e a problemas e metas que são
nistração Científica”, que foi desenvol- relevantes nesses contextos. Não é o co-
vida após 1945, basicamente, para servir nhecimento, em si, que é generalizável,
às grandes corporações privadas. Argyris, mas os processos de aprendizado coletivo
Schön, Senge, entre outros, gradativa- que geram conhecimento. Os problemas
mente afastaram o campo do lucro como são examinados a partir da perspectiva
único critério de administração, introdu- de atores verdadeiramente engajados na
ziram valores humanistas e o tema do prática; é a própria prática que propõe
autodesenvolvimento psicológico (Fried- o quebra-cabeças a ser solucionado. A
mann, 1987). O DO agia de forma a atitude de pesquisa e o diálogo se tornam
aplicar sistemas de pensamento teórico, aspectos de uma prática contínua.
mas os abordava sob a perspectiva do
pragmatismo americano (por exemplo, À primeira vista, o DO parece ser
James, Peirce, Dewey e Mead). um bem-vindo complemento à Teoria
Crítica. Por ser “orientado para o clien-
Na pesquisa do DO, existem objetivos te”, ele combina bem com o princípio
que são parecidos com os da Teoria Crí- emancipacionista da Teoria Crítica. Ao
tica de Habermas (Fischer, 1990, p. 365; mesmo tempo, ele vai além porque une
Huttunen, Kakkori e Heikkinen, 1999, teoria e prática em uma pesquisa nor-
p. 126). Além da ênfase compartilhada mativa e empírica sintetizadora. É dire-
sobre a importância do diálogo, a con- cionado à verdadeira produção da
cepção de o conhecimento ser histórica prática, e não à mera definição dos prin-
e socialmente situado é outra caracte- cípios normativos que a prática deveria
rística em comum. Segundo Habermas, alcançar. Enquanto a Teoria Crítica ofe-
uma reivindicação é aceita como legítima rece aprendizado social e diálogo como
se sua validade for intersubjetivamente um argumento bem postulado e ético,
acordada pela comunidade à qual a rei- o campo do DO vai mais além e oferece
vindicação é direcionada. A tradição do uma metodologia para eles.
DO trabalha com um processo de conhe-
cimento processual – o conhecimento Ainda assim, em termos gerais, o
não existe em bibliotecas, documentos projeto do DO é rejeitado pelos teóri-
das agências, arquivos de computador cos da TCP. E o motivo é claro – ele
ou na “cabeça” do especialista; ele é ela- representa, afinal, organizações que são
Raine Mäntysalo 17

desenvolvidas. O que deveria estar re- A crítica continua com Friedmann,


lacionado à manutenção da ação comu- que argumenta que o DO é “basicamente
nicativa foi utilizado no serviço de uma ciência que aluga quartos” (Fried-
“manutenção do sistema”. Segundo mann, 1987, p. 216). Segundo Fried-
Forester, os teóricos do DO formulam mann, seu programa terapêutico está
nossos problemas de planejamento e essencialmente voltado para as elites
administração como organização do gerenciais, que tendem a não tomar
aprendizado e, desse modo, ignoram conhecimento do poder em suas orga-
importantes questões da política e do nizações. O assunto é bem diferente
poder (Forester, 1993, p. 58). para os que permanecem fora das salas
dos executivos e dos conselhos – sejam
A literatura sobre “organizações de eles funcionários, operários ou cidadãos
aprendizado” nos ensina que, em um menos ricos, que freqüentemente viven-
ambiente turbulento, as organizações ciam os efeitos devastadores do poder
precisam ser adaptáveis, flexíveis, ino- (ibid.). Por outro lado, Fischer alega que
vadoras, continuamente avaliadoras a teoria se tornou uma técnica e uma
e “corretoras de erros”. Ainda assim, ideologia propostas por consultores ge-
os “teóricos do aprendizado” não renciais que ignoram os objetivos da de-
respondem às questões políticas bá- mocratização. Em vez disso, eles citam a
sicas: a que fins deveriam essas or- “administração participativa” com o pro-
ganizações servir e quem deveria pósito de tornar as organizações buro-
aprender o quê? (Ibid., p. 53-54) cráticas mais abertas a mudanças (Fischer,
1990, p. 365).
Forester não nega que nossas or-
ganizações precisam ser “corretoras de Essas críticas refletem uma aborda-
erros” – porém, deveríamos, então, não gem ao aprendizado organizacional que
esquecer de perguntar: “que tipos de é emoldurado pela dicotomia entre “sis-
julgamentos determinarão o erro, as ati- tema” e “mundo da vida”. No aprendi-
vidades indesejáveis, e quem terá o po- zado organizacional é o “sistema” que
der e a responsabilidade final de efetuar aprende. Por conseguinte, o aprendiza-
esses julgamentos?” (Ibid., p. 54). Se do assimila o significado da melhora da
ignorarmos essas questões, habilidade do sistema no poder e con-
trole do ambiente, isto é, “o mundo da
ficamos apenas com a luta pela so- vida”. Essa posição dificulta a incorpo-
brevivência da organização e da ração de Schön na TCP, como Forester
autoperpetuação; nos pedem para (1989, 1993), Fischer (1993) e outros
manter as organizações que temos fizeram. Com a teoria de Schön, a teo-
agora, possamos ou não “consertar ria de sistemas também ressurge, só que
o que está errado”, e apenas, então, de forma pragmática e revisada.
se isso acontecer, deveríamos per-
guntar para que deveremos mantê- Na verdade, nem mesmo Schön nos
las. (Ibid.) levará muito longe em nossas tentativas
18 Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento

de abordar o planejamento como um sencadeado pelas atividades de apren-


legítimo aprendizado organizacional, dizado de seus membros individuais
porque ele está, basicamente, preocu- (Argyris, 1992, p. 123).
pado com a reflexão individual, e não
com a reflexão organizacional. O ver- Uma atividade organizada significa
dadeiro motivo de as idéias de Schön cooperação entre indivíduos especiali-
serem tão populares entre os teóricos zados no desempenho de certas subta-
da TCP talvez esteja no fato de seu prin- refas de tal forma que essas subtarefas
cipal e mais citado livro, The Reflective sejam coordenadas para produzir uma
Practitioner (1983), estar relacionado ao tarefa coletiva maior. Em uma organi-
modo como os profissionais individuais zação, as relações de cooperação entre
aprendem, e não com a forma como as seus membros são institucionalizadas
organizações aprendem. Aqui, diferen- para produzir um certo resultado cole-
temente de seu trabalho anterior, Schön tivo repetidamente. Através da divisão
não levanta questões problemáticas de subtarefas, todas as organizações
quanto às metas e à inclusividade no necessariamente envolvem relaciona-
aprendizado organizacional. No nível do mentos de poder e de desigualdade no
aprendizado organizacional, esconde-se acesso dos membros aos recursos e
a “armadilha” de pôr a participação con- oportunidades para afetar a tomada de
tra a burocracia. Por isso, o aprendizado decisão. Por outro lado, os relacionamen-
organizacional logo assimila o significado tos de poder gerados pela coordenação
da melhora na dominação da partici- de subtarefas são também necessários
pação. para a obtenção de resultados coletivos
benéficos. Até agora, a TCP tem obtido
No entanto, a questão de como as muito mais sucesso na obtenção de indi-
organizações participativas podem e de- cações de “distorção sistemática” e “in-
veriam desenvolver-se não esmorece por fluência estrutural” (Sager, 1994, p. 131)
não ser abordada. De toda maneira, já no planejamento, como atividade orga-
estamos abordando a questão quando nizada e aprendizado organizacional, do
observamos o aprendizado individual. que na articulação de aspectos produti-
O aprendizado individual e o organiza- vos do poder nessa atividade. Mesmo
cional não são separados por uma linha que fosse entendido como “distorções
divisória (Engeström, 1987, p. 158- necessárias” à ação comunicativa, esse
161). Como Peter Senge argumenta, o poder produtivo continuaria a ser visto
aprendizado que muda os modelos men- como “distorções”.
tais não pode ser feito sozinho: “ele só
pode ocorrer dentro de uma comunida- Nos termos habermasianos, a coo-
de de aprendizes” (Senge, 1990, p. xv). peração em uma organização pública
Há um aspecto organizacional para cada que visa a um fim coletivo pode ser des-
atividade de aprendizado individual. Os crita como uma forma de atividade que
indivíduos aprendem nas organizações, se aproxima da “racionalidade instru-
e o desenvolvimento organizacional é de- mental”. No entanto, como poderia essa
Raine Mäntysalo 19

forma ser combinada a uma “ação co- a separação conceitual entre raciona-
municativamente racional” que permite lidade comunicativa e racionalidade
que membros questionem e avaliem a instrumental, de maneira que suas inte-
legitimidade desse fim coletivo e dos rações sejam basicamente descritas como
meios utilizados e, além disso, ser com- desordens exercidas por uma forma de
binada à ação não-racional do planeja- racionalidade sobre a outra, e, em se-
mento criativo em que os novos fins gundo lugar, a total dependência da
coletivos e os meios são moldados? Ao razão, seja ela comunicativa ou instru-
respondermos a essa pergunta, aborda- mental. O trabalho do planejamento
mos a metodologia do planejamento não pode fundamentar-se exclusivamen-
como aprendizado organizacional. Os te na razão. Caso contrário, perderíamos
teóricos da TCP podem relutar em ir tão a possibilidade de criar e desenvolver –
longe nessa direção, mas, mesmo que ou seja, o cumprimento das exigências
quisessem, isso seria muito difícil com propostas pela crítica comunicativamen-
as ferramentas conceituais fornecidas te racional de fins e meios existentes de
por Habermas. Para tal tarefa, os princi- ação coordenada em nossas organiza-
pais obstáculos são, em primeiro lugar, ções públicas.

Conclusão

Em sua postura crítica em relação à Teo- ela seja parcial. Além da questão do es-
ria Crítica do Planejamento, este trabalho tabelecimento dos parâmetros da legíti-
se junta a várias outras revisões recentes ma argumentação do planejamento, as
da teoria do planejamento comunicativa práticas de planejamento que visam à
(ou colaborativa) (ver Flyvbjerg, 1998; legitimidade e à inclusão levantam mui-
Hillier, 2000; McGuirk, 2001; Tait e Camp- tas outras questões essenciais à teoria do
bell, 2000; Tewdwr-Jones e Allmen- planejamento. Outras questões impor-
dinger, 1998). No entanto, ao questionar tantes são, por exemplo: como saber
se o programa da TCP é suficiente como como o processo do planejamento parti-
um programa para a teoria do planeja- cipativo deveria ser organizado e ad-
mento, a minha abordagem é um tanto ministrado; como as novas idéias e as
diferente. A TCP é uma teoria relacio- capacidades de cooperação surgem e
nada às práticas de planejamento e à como podem ser mutuamente desen-
tarefa normativa de melhorar sua legiti- volvidas e mobilizadas em atividades
midade e capacidade de inclusão. Se a coordenadas para resolver problemas;
TCP, como tal teoria, se adapta à articu- como o planejamento participativo pode
lação de princípios de argumentação ser legitimado e, ao mesmo tempo, refu-
legítima no planejamento, então é prová- tar os efeitos depreciativos do poder no
vel que, como teoria do planejamento, verdadeiro trabalho do planejamento;
20 Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento

como identificar as características do pla- uma contribuição teórica construtiva ao


nejamento e do planejamento participa- gerenciamento organizacional e ao
tivo como formas de atividades humanas aprendizado no planejamento, sem que
e sociais. isso seja entendido como uma tentativa
de melhorar a dominação do “sistema”
Se concordarmos que uma teoria de sobre o “mundo da vida”. As teorias de
planejamento participativo deve enfren- administração pública e de aprendizado
tar as questões de legitimidade, de poder, organizacional estão amplamente enrai-
de franqueza, de qualidade da argu- zadas na teoria de sistemas. Os esforços
mentação e de possibilidades de crítica, para misturar teorias desse tipo com a
e de criatividade e aprendizado social Teoria Crítica produziriam um choque
como desafios à metodologia do plane- epistemológico e ideológico. Esse cho-
jamento, a TCP, então, deve ser consi- que já está escondido na utilização de
derada inadequada. Em vez de teoria Schön pelos teóricos da TCP.
de planejamento participativo, a TCP é
uma teoria de legitimidade no contexto Embora a TCP traga, sem sombra
do planejamento (participativo). Até de dúvida, uma contribuição crucial
certo ponto, para formar tal teoria do para a “virada comunicativa” da teoria
planejamento, os teóricos da TCP, como do planejamento, agora é importantís-
Forester, Fischer, Sager, Healey e Innes, simo saber como ela pode ser metodo-
tentaram complementar a TCP com lógica e empiricamente relacionada às
outras fontes teóricas. Para abordar os teorias de planejamento participativo.
temas da metodologia, da criatividade Parece que, para poder abordar esses
e do aprendizado social no planejamen- aspectos da teoria do planejamento, é
to, eles mesclaram outras linhas de dis- necessário que haja um deslocamento
cussão à Teoria Crítica de Habermas. de Habermas para outras fontes teóricas,
Como tentei mostrar, existem sérias di- tais como teorias de sistemas pragmáti-
ficuldades para incorporar teorias de cas e a analítica do poder de Foucault,
criatividade e de aprendizado organiza- que, no entanto, são incompatíveis com
cional à estrutura teórica de Habermas. a teoria de ação comunicativa de Ha-
Em primeiro lugar, o conceito de diálo- bermas, inclusive com suas concepções
go de Habermas, como discurso não- gerais de sociedade e de racionalidade.
dominado, é limitado demais na sua Portanto, em termos de consistência cien-
dependência da racionalidade comuni- tífica, a virada comunicativa da teoria do
cativa e da hipótese de um mundo com- planejamento ainda não merece ser as-
partilhado. Ele não percebe o aspecto sociada ao termo “paradigma”.
da criatividade como uma busca não-
racional por significados e idéias em Em meu próprio trabalho, tentei
uma possível situação na qual não existe formular um fundamento teórico alter-
um mundo compartilhado. Em segundo nativo à teoria do planejamento partici-
lugar, a dicotomia entre “sistema” e pativo (Mäntysalo, 2000). Ele procede
“mundo da vida” em Habermas dificulta de uma reorientação dialética da teoria
Raine Mäntysalo 21

de sistemas por meio da utilização de to em si mesma – não a dissociando em


percepções teóricas da comunicação de duas partes, cada uma das quais expli-
Bateson (1987) e Wilden (1980). Nessa cada por diferentes ferramentas teóricas,
linha de pensamento, o “sistema” forne- o que implica na perda crucial do que se
ce uma estrutura conceitual para todos encontra “no meio” delas. A meta é tam-
os aspectos da vida humana e social, in- bém transcender as dicotomias entre as
cluindo a razão, a criatividade e o apren- visões habermasiana e foucaultiana, de
dizado, assim como para formas de poder um lado, e as visões habermasiana e de
e de comportamentos patológicos explí- sistemas, de outro. Com essa reorienta-
citos e implícitos. A meta é visualizá-los ção do fundamento teórico, talvez seja
como aspectos e estados inerentes a um possível reunir, de maneira coerente, as
único sistema de planejamento dialético, contribuições teóricas ao planejamento
permitindo assim que nos concentremos participativo, que, no momento, pare-
na dialética da atividade do planejamen- cem ser mutuamente incompatíveis.

Agradecimentos
Sou muito grato aos críticos cujos co- melhorar consideravelmente minha ar-
mentários criteriosos me ajudaram a gumentação neste artigo.

Referências
ARGYRIS, C. On Organizational Learning. CATES, C. Beyond muddling: creativity.
Cambridge, Massachusetts: Blackwell, Public Administration Review, 39 (6),
1992. p. 527-532, 1979.

BATESON, G. Steps to an Ecology of Mind. ENGSTRÖM, Y. Learning by Expanding.


2. ed. Northvale, New Jersey: Jason Aron- Helsinki: Orienta-konsultit, 1987.
son, 1987.
FALUDI, A. Planning Theory. Oxford: Per-
BERNSTEIN, R. J. Philosophical Profiles. gamon Press, 1973.
Cambridge: Polity Press, 1986.
FISCHER, F. Technocracy and the Politics
BOHM, D.; PEAT, F. D. Science, Order, and of Expertise. Newbury Park, CA: Sage,
Creativity. Trad. T. Seppälä, J. Jääskinen 1990.
e P. Pylkkänen. Helsinki: Gaudeamus,
1992. Tradução de: Tiede, järjestys ja FISCHLER, R. Strategy and history in pro-
luovuus. fessional practice. Planning as world
22 Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento

making. In: LIGGETT, H.; PERRY, D. C. (Ed.). urban planning. Environment and Plan-
Spatial Practices. London: Sage, 1995. ning A, 30, p. 1531-1546, 1998.

FLYVBJERG, B. Rationality and Power: De- __________. Deconstructing communica-


mocracy in Practice. Trad. S. Sampson. tive planning theory: a reply to Tewdwr-
Chicago: University of Chicago Press, Jones and Allmendinger. Environment
1998. and Planning A, 31, p. 1129-1135,
1999.
FORESTER, J. Planning in the Face of Power.
Berkeley, CA: University of California HEISKALA, R. Talcott Parsons ja rakenne-
Press, 1989. funktionalismi (Talcott Parsons and struc-
tural functionalism). In: __________. (Ed.).
__________. Critical Theory, Public Policy, Sosiologisen teorian nykysuuntauksia
and Planning Practice. Albany: State (Current Tendencies in Sociological The-
University of New York Press, 1993. ory). Helsinki: Gaudeamus, 1994.

FRIEDMANN, J. Planning in the Public Do- HILLIER, J. Going round the back? Com-
main. From Knowledge to Action. Prin- plex networks and informal action in
ceton, NJ: Princeton University Press, local planning processes. Environment
1987. and Planning A, 32, p. 33-54, 2000.

HABERMAS, J. The Theory of Communi- HUTTUNEN, R.; KAKKORI, L.; HEIKKINEN, H.


cative Action. Trad. T. McCarthy. Boston: L. T. Toiminta, tutkimus ja totuus (Ac-
Beacon Press, 1984. v. 1 (Reason and tion, research and truth). In: HEIKKINEN,
the Rationalization of Society). H. L. T.; HUTTUNEN , R.; MOILANEN , P.
(Ed.). Siinä tutskija missä tekijä. Toimin-
__________. The Theory of Communi- tatutkimuksen perusteita ja näköaloja
cative Action. Cambridge: Polity Press, (Where the Researcher, There the Agent:
1987. v. 2 (Lifeworld and System). Principles and Prospects of Action Re-
search). Juva: Atena kustannus, 1999.
HEALEY, P. Planning through debate. The
communicative turn in planning theory. INNES, J. E. Planning theory’s emerging
Town Planning Review, 63(2), p. 143- paradigm: Communicative action and
162, 1992. interactive practice. Journal of Planning
Education and Research, 14(3), p. 183-
__________. Collaborative Planning: 190, 1995.
Shaping Places in Fragmented Societies.
Houndmills: Macmillan, 1997. (Plan- INNES, J. E.; BOOHER, D. E. Consensus
ning, Environment and Cities Series). building and complex adaptive systems.
A framework for evaluating collaborative
__________. Building institutional capacity planning. Journal of American Planning
through collaborative approaches to Association, 65(4), p. 412-423, 1999a.
Raine Mäntysalo 23

__________. Consensus building as role __________. Designteori och teoridesign.


playing and bricolage. Toward a theory Stockholm: Nordplan, 1995. (Report 3).
of collaborative planning. Journal of
American Planning Association, 65(1), RITTEL, H. W. J.; WEBBER, M. M. Dilem-
p. 9-26, 1999b. mas in a general theory of planning.
Policy Sciences, 4(2), p. 155-169, 1973.
KARATANI, K. Architecture as Metaphor:
Language, Number, Money. Trad. S. SAGER, T. Communicative Planning The-
Kohso. Cambridge, MA: MIT Press, 1995. ory. Aldershot: Avebury, 1994.

KUHN, T. S. The Structure of Scientific SCHÖN, D. A. The Reflective Practitioner.


Revolutions. 2. ed. aum. Chicago: Uni- New York: Basic Books, 1983.
versity of Chicago Press, 1970.
SENGE, P. The Fifth Discipline: The Art and
LAPINTIE, K. Ratkaisemattomien kiistojen Practice of the Learning Organization.
kaupunki (The city of unsettled conflicts). New York: Currency Doubleday, 1990.
In: KNUUTI, L. (Ed.). Kaupunki vuoro-
vaikutuksessa (City in Interaction). Cen- SIMON, H. A. Administrative Behaviors.
tre for Urban and Regional Studies, C 52, Trad. P Rajala. Espoo: WeilinandGöös,
Espoo: Helsinki University of Technology, 1979. Tradução de: Päätöksenteko ja
1999. hallinto. (Economy Series 58).

LUHMANN, N. Political Theory in the Wel- TAIT, M.; CAMPBELL, H. The politics of
fare State. Trad. J. Bednarz Jr. Berlin: de communication between planning officers
Gruyter, 1990. and politicians: the exercise of power
through discourse. Environment and
MÄNTYSALO, R. Land-use Planning as Planning A, 32, p. 489-506, 2000.
Inter-organizational Learning. Oulu, Acta
Universitatis Ouluensis Technica, C 155. TEWDWR-JONES, M.; ALLMENDINGER, P. De-
Disponível em: <http://herkules.oulu.fi/ constructing communicative rationality:
isbn9514258444/>. 2000. a critique of Habermasian collaborative
planning. Environment and Planning A,
MCGUIRK, P. M. Situating communicative 30, p. 1975-1989, 1998.
planning theory: context, power, and
knowledge. Environment and Planning THOMAS, M. J. The procedural planning
A, 33, p. 195-217, 2001. theory of A. Faludi. In: PARIS, C. (Ed.).
Critical Readings in Planning Theory.
PARIS, C. (Ed.). Critical Readings in Planning Oxford: Pergamon Press, 1982.
Theory. Oxford: Pergamon Press, 1982.
WILDEN, A. System and Structure. Essays
RAMÍREZ, J. L. Strukturer och livsformer. in Communication and Exchange. Lon-
Stockholm: Nordplan, 1993. (Report 3). don: Tavistock, 1980.
24 Dilemas na Teoria Crítica do Planejamento

Resumo Abstract
Neste trabalho, argumenta-se que a In this paper, it is argued that Critical
Teoria Crítica do Planejamento (critical Planning Theory is inadequate planning
planning theory) não é uma teoria de theory. It ought to search for means to
planejamento adequada. Ela deveria incorporate the principles of legitimate
buscar formas de incorporar os princípios planning argumentation, derived from
argumentativos do planejamento legíti- Habermas’s social theory, to a theory
mos, derivados da teoria social de Ha- that is able to address planning practices
bermas, a uma teoria que fosse capaz de both descriptively and prescriptively –
abordar as práticas de planejamento des- grasping the essence of planning as
critiva e prescritivamente – capturando, problem-solving activity that transcends
assim, a essência do planejamento como rationality and necessarily manages so-
uma atividade voltada para solução de cial relationships. However, Habermas’s
problemas que transcende a racionalida- conceptual separation of communicative
de e necessariamente administra relações and instrumental rationalities, and his
sociais. No entanto, a separação concei- total reliance on rationality make such
tual entre racionalidades comunicativas theoretical work inherently problematic.
e instrumentais de Habermas e sua total In order to add descriptive and prescrip-
dependência da racionalidade tornam tal tive capacity, planning theorists have had
trabalho teórico inerentemente proble- to look for other theoretical sources,
mático. Para acrescentar uma capacidade such as pragmatist systems theory and
descritiva e prescritiva, os teóricos do pla- Foucauldian power analytics, which,
nejamento precisaram procurar outras however, are incompatible with Haber-
fontes teóricas, tais como a teoria prag- mas’s theory of communicative action.
matista de sistemas e a analítica do poder
de Foucault, que, no entanto, são incom-
patíveis com a teoria da ação comunica-
tiva de Habermas.

Palavras-chave : teorias do planeja- Keywords : planning theories; Haber-


mento; Habermas; teoria da ação comu- mas; communicative action theory.
nicativa.

Raine Mäntysalo leciona planejamento urbano estratégico e participativo no


Departamento de Arquitetura, Universidade de Oulu (Finlândia). Atualmente, coor-
dena projetos de pesquisa multidisciplinares acerca da sustentabilidade de áreas
urbanas em crescimento e declínio e do planejamento rural participativo. Sua tese
de doutorado Planejamento do uso do solo como aprendizagem inter-organizacio-
nal foi defendida em 2000 na Universidade de Oulu.
Instruções aos colaboradores sobre o ASS INAT URA
envio de artigos para publicação em
CADERNOS IPPUR
O CADERNOS IPPUR é um periódico
1. Os artigos devem ser apresentados em no semestral, editado pelo Instituto de Pes-
máximo 25 (vinte e cinco) laudas de 20 (vinte)
linhas de 70 (setenta) toques; os textos devem quisa e Planejamento Urbano e Regio-
ser enviados em disquete de 3,5” ou CD-ROM nal da UFRJ.
de computador padrão IBM PC ou compatível,
utilizando um dos programas de edição de Para fazer uma assinatura ou obter
textos disponíveis para esses equipamentos. os exemplares avulsos, preencha esta
As figuras deverão ter extensão EPS, TIF, WMF,
CDR ou XLS (gráficos em excel), ser elaboradas ficha e a envie ao IPPUR juntamente
em P&B e ter o tamanho máximo de 17 cm x com um cheque cruzado e nominal à
12 cm. As tabelas deverão ser feitas no Word. FUJB, no valor correspondente ao seu
2. As referências devem ser redigidas de acor- pedido.
do com a MBR 6023/2002 da ABNT:
a) livro - último sobrenome em caixa-alta, se- Assinatura anual : R$ 40,00
guido de prenome e demais sobrenomes Assinatura bianual : R$ 75,00
do(s) autor(es). Título em destaque (itálico): Exemplar avulso : R$ 25,00
subtítulo. Número da edição, a partir da se-
gunda. Local de publicação: editora, ano de
publicação. Número total de páginas ou, Nome __________________________
quando mais de um, número de volumes.
(Coleção ou Série). _______________________________
Ex.: VEIGA, José Eli da. Do global ao local. Instituição _______________________
Campinas, SP: Armazém do Ipê, 2005. 120 p.
b) artigo - último sobrenome em caixa-alta, pre- _______________________________
nome e demais sobrenomes do(s) autor(es); Endereço _______________________
título do artigo: subtítulo; título do periódico
em destaque (itálico), local de publicação, _______________________________
n° do volume, n° do fascículo, da página ini-
cial e final do artigo, mês e ano de publicação. Cidade _________________________
Ex.: HABERMAS, Jürgen. O falso no mais pró- Estado ___ CEP _________________
ximo: sobre a correspondência Benjamin/Ador-
no. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 69, País ____________________________
p. 35-40, jul. 2004. Tel. ( ) ______________________
3. Devem ser enviados um resumo, contendo
até 250 palavras, e uma relação de palavras- Fax: ( ) ______________________
chave (em português e inglês) para efeito de E-mail: _________________________
indexação. Deve-se dar preferência ao uso da
3a pessoa do singular e do verbo na voz ativa.
4. O autor deve enviar referências profissionais. Desejo fazer uma assinatura anual
5. O autor de artigo publicado em CADERNOS Desejo fazer uma assinatura de 2
IPPUR receberá três exemplares da respectiva (dois) anos
revista.
Desejo obter os seguintes exemplares
6. Os artigos devem ser enviados ao IPPUR.
avulsos: (mês e ano dos exemplares)
IPPUR / UFRJ 1 ______________________________
Prédio da Reitoria, Sala 543
Cidade Universitária / Ilha do Fundão 2 ______________________________
21941-590 Rio de Janeiro RJ 3 ______________________________
Tel.: (21) 2598-1676
Fax: (21) 2598-1923 4 ______________________________

Vous aimerez peut-être aussi