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Frederick Krantz (organizador) A Outra Histéria Ideologia e protesto popular nos séculos XVII a XIX ‘Tradugdo: Ruy Jungmann Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro é 000266444 Titulo original: History from Below ~ ‘Studies in popular protest ond popular ideology ‘Tradupio autorizada da edigfo publicada em 1988 por Basil Blackwell, de Oxford, Inglaterra Copyright @ 1985, 1988, Frederick Krante Copyright © 1985, 1988, BJ. Hobebawn: History from Below — Sore reflections Copyright © 1990 da edigio em lingua portuguesa: Jorge Zahar Editor Ltda, a Mésieo 31 sobreloja 20031 Rio’ de. Janeiro, RE “Fodor 0¢ direitos reservados, ‘A reprodugéo nio-autorizada desta publicecao, no todo ‘oa em parte, constitu vilaco do copyright. (Lei 5.988) Capa: Gustavo Meyer Impressio: Tavares © Tristio Ltda, ISBN: 0-631-16042-6 ISBN: 0-631-16115-5 (ed. orig) ISBN: $5.7110-126-4 ZB, RD) Sumario Introdugio: George Rudé © “A Outra Histéria” Faspanick KRANT2 PARTE I 1. A Outre Histéria — Atgumas reflexes E.J. Hovsuawm : 2. Os Pobres e o Povo na Inglaterra do Séeulo XVIT Cunisrorser Hint 3. Os Pactuantes: Um problema de crenga e de classe V.G. Kiernan 4. © Estado e a Soberania Popular no Pensamento Politico Francés: Uma Genealogia da “Vontade Geral” de Rousseau ELLEN MEIKsINS Woop _ a PARTE 1 5. © Contexto Politico de Movimento Popular na Revolugdo Francesa GeoRGE C. CoMNINEL 6. Jacquerie em Davenescourt em 1791: Uma revolta de Camponeses na Revoluglo Francesa RB, Rose 7. Um Filésofo na Revolugio Francesa: Dominique-Joseph Garat e 0 Journal de Paris Wii J. MURRAY 10 18 34 34 80 106 128 144 Jacquerie em Davenescourt em 1791: ‘Uma Revolta de Camponeses na Revolucao Francesa R.B. Rose Na manhit de 25 de fevereiro de 1791, 0 sino comegou a tocar na igreja paroquial de Davenescourt, uma pequena aldeis da Picardia. Com campo- nreses chegando dos campos em grandes levas, comegaram a circular bostos sobre fatos slarmantes que teriam ocortido no chéteaw da condessa de Ta Myre. Segundo se dizia, 0 prefeito e servidores municipais haviam ido até 0 chéteaw naquela manhé, formal e pacificamente, a fim de discutir com a ‘condessa uma disputa entre ela © seus rendeiros. Inesperadamente, haviam cafio em uma armadilha ¢ sido recothidos a torre fortificada do chateau, conde continuavam detidos, enquanto era chamada a Maréchaussée da vii ha Montdidier, a capital do distro, Custasse 0 que custasse, cles tinham ‘que ser libertados, E, assim, uma mulfidio reuniu-se em frente ao chéteau até que, por volta das. 10h, irrompeu pelas portas da torre, tendo forgado 4 ponte levadiga com barras de ferro, e entrado no prédio. Houve luts pela posse de uma arma com um dos eriados da familia, a arma disparou e 0 vyelho tombou, sangrando, aos pés da condessa Comegou assim um reinado de terror para os moradores do chdteau que duro cinco horas, até 3h da tarde, Entrementes, ocorria uma pilhagem geral do prédio. A sala do arquivo foi arrombada ¢ levados os papéis rela- tivos & propriedade, Uma criada que tentava fugir usando uma escada ficou ferida quando a puxaram pelos pés. A prOpria condessa e 0s dois fithos foram traneados em uma sala com grande niimero de rebeldes irados, uma ‘camponesa passoulhe um ago pelo pescogo, sabres ¢ baionetas foram bran- didos contra ela, ferindo-a no brago ¢ na testa enquanto, chorando, era obrigada a assinar uma série de papéis que Ihe cram enfiados nas mios pelos captores, $6 A tarde obtiveram os prisionciros a liberdade e, colocados aper- tados em um cabriofet, fugiram dali em meio a uma chuva torrencial, dando sgracas a Deus por estarem ainda vivos. RB. Rowe 9 © tipo de jacquerie que descrevemos acima foi, claro, coisa comum na hist6ria da Revolugdo Francess, Néo obstante, oS distirbios de Dave- nescourt tomaram-se rapidamente uma cause célébre em todo 0 pats, A condessa de Ja Myre era bem relacionada e seus sofrimentos comoveram Mallet da Pan, importante editor monarquista, responsével pelo influente Mercure de France que, alguns dias depois, publicou uma noticia indignada sobre esse “horrivel ultraje cometido pela tirania popular”? A condessa co nhecia também Dupont du Tertre, ministro da’justiga do novo governo em Paris e, em pouco tempo, os cabecas da jacquerie em Davenescourt, na primavera © vero de 1791, foram submetidos a julgamento, Poderiam, na verdade, ter sido executados, nfio fosse um cutioso acidente. Jogados na prisio em Montdidier, durante alguns dias compartilharam da mesma cela com um mal-afamado egitador local, Frangois-Noel, ou “Ca- mille” Babeuf, Babeuf € conhecido principalmente como autor da chamada “Conspiragio dos Iguais” de 1796, uma tentativa de derrubar 0 Diret6rio implantar um regime comonista na Franca. Tudo isto, em 1791, ainda es- ‘ava muito longe no futuro. Babeuf, porém, ja fizera nome em sua provin- cia natal, a Picardie, como lider de’ movimenitos populares e de protesto de ‘camponeses. Em 1790, em especial, Jiderara uma revolta contra a tributagio indi- eta, que terminara com seu recolbimento & prisfio em Paris durante alguns meses? Nessa ocasiéo, estava na prisio de Montdidier por ter liderado uma multidio de grileivos © ocupado terras piiblicas de sua cidade natal, Roye, € tela dividido entre seus seguidores. Logo que obteve sua propria liberdade, Babenf tomou a sia defesa dos camponeses de Davenescourt ¢, finalmente, conseguiu que fossem anise tiados, Entrementes, 0 caso Davenescourt ampliou-se ¢ foi transformado em uma espécie de caso-teste nacional. Por um lado, Babeuf publicou um pan- fleto de propaganda, a fim de demonstrar que os aldeées de Davenescourt haviam sido forgedos a recorrer & violéncia pela implacével e cruel’ tirania feudal da condessa de In Myre}? por outro, 0 capelio da condessa publi- ‘cou uma defesa que, itonicamente, foi ainda mais condenatéria do que as deniincias de Babeuf, ao demonstrar que cla agira durante todo 0 tempo rigorosamente dentro da lei e em defesa de seus dizeitos Ieyitimos:+ Constitui uma curiosa reflexdo sobre a continuidade da histéria fran- esa que a batalha nfo terminara ainda um século depois, em 1888, quando © jomal radical local, o Journal de Montdidier, desenterrou 0 panfleto de Babeuf © o sepublicou como munico eleitoral contra um descendente da condessa de la Myre, no suge de uma Tuta pelo controle do conselho mi nicipal da cidade, A riqueza de documentaedo usada por ambos os lados' na: controvérsia sobre o julgaiento de 1791 toma o caso Davenescourt dé: interesse todo a0 8 owira hieiria ‘especial para o historiador da Revolugio Frances. Em 1954, 0 professor Georges Lefebvre, o grande pioneiro francés dos estudos sobre 0 campesi- znato revolucionério, investigou outro “ultraje camponés” que ocorreu_mais cou menos na mesma ocasiao, o assassinato do conde de Dampierre® Dam- pierre era um seigneur realista que se juntou ao seleto grupo de fidis que corre a dar apoio a Luis XVI quando o rei passoa pela regifo 2 caminho da fronteira, em jumho de 1791, Foi esta a ocasido da espetacular tentativa de evasio da familia real francesa que veio ser conkecida como “fuga para Varennes”, Enguanto tentava assim cumprir seu cavalheiresco dever, © conde foi derrubado do cavalo por um grupo de camponeses © morto a tiros, Enquanto investigava os antecedentes desse sto aparentemente gratui- to de selvageria, Lefebvre conseguiu demonstrar que, durante muitos anos antes da Revolucio, o conde ¢ seus rendeiros haviam se envolvido em um encarnigado conflito em tomo de direitos feudais em suas propriedades em Champagne © que fora esse conflito que finalmente culminara na violéncia de 1791, O ponto que Lefebvre quis frisar foi quo essa sibita explosio de violéncia niio fora, por conseguinte, absolutamente sibita nem politicamen- te motivada em qualquer sentido superficial. Em ver disso, o assassinato do conde tinha por trés uma geracdo de crescente ddio de classe, © & nesses conflitos gerais ¢ cada vez mais intensos nas aldeias, nos anos imediata- mente anteriores a 1789, que devemos procurar uma explicagio de grande parte da violéncia da Revolugao. ‘A extenso da “reacdo seignewriat” permanece em dévida. Se as wilt mas décedas do Velho Regime se caracterizaram ou nfo por uma inten- sificagdo acentuada da espoliagdo feudal, por nobres © proprietérios plebeus de direitos feudeis, € ainda iema controverso entre 05 historiadores. Em obras padrio como a hist6ria social da Franga moderna de Philip- pe Sagnac® e a hist6ria dos camponeses franceses, de Gérard Walter,’ ela 6 apresentada como fato histérico geral e importante, Estudos de especi listas, como o Paysans du Nord de Lefebvre, © 0 Paysans de la Burgo- ‘ane? de Saint-Jacob, contém farta documentagéo da realidade desse reagio tem regides muito separadas da Franga, enquanto as descrigdes que Robert Foster nos deu das transagées dos latitundiérios da regio de Toulouse e da familia borgonhesa de Saulx-Tavanes fornecem claros exemplos dos mé- todos empregados.® Dois dos seigneurs mencionados por Foster fizeram ppesquisas que retroagiram até 1235 © 1280 a fim de provar seus direitos pagamentos feudais em atraso.1 Quando, em 1786, 0 conde de Saulx-Ta- vanes foi clevado a dignidade de duque, cle duplicou os alugusis feudzis, rrestabelecendo um dircito que néo fora exercido por mais de 400 anos. Eotre 1754 ¢ 1788, a familia Seulx-Tavanes clevou a ronda produzida por suas propriedsdes, um quarto dela proveniente de obrigagies © despesas RB. Rove a eventoais feudais, em mais de 40%, de 49.000 para 86.000 fivres.® Alun Davies encontrou também prova de uma reagio feudal do mesmo tipo na Normandia, Neste caso, 0 dugue de Harcourt tentou, por volta de 1752, restabelecer uma série completa de encargos, exigindo que seus rendoiros pagassem, por exemplo, “12 deniers de cada casa ou cabana que fizesse uma fogueira no dia ¢ festa de Sio Miguel, 1 para cada vaca ou porco, 1 mailie para cada ovelha por uma noite ¢ um dia em qualquer parte das propriedades feudais, 1° por vaca abatida e 44 como imposto alfandepétio Se um cofte ou batt fosse tirado da propriedade”, e assim por diante® Na Picardie mesmo, a carreira pré-revoiucionéria do proprio Babeut como feudiste, ou especialista na administragio de propriedades feudais, contribai com mais um exemplo dos métodos empregados na reacio dos senhores. Em 1787, por exemplo, ele se ofercceu para duplicar a renda do marqués de Soyecourt, proveniente do cens, ou censo pago por um fou- datério para isengéo de’ certos servigos, mediante reorganizacio de seus terriers, ow registros de obrigagées feudais, que haviem ficado desorganiza- dos nos iiltimos 50 anos2* William Doyle, autor de uma influente revisio recente,’ apesar disso contesta a realidade da reacéio “feudal” ou “seigncurial” pré-revolucionétia, Nio duvida da prova das tentativas de nobres de afirmer o reafirmar seus direitos senhoriais 3s expensas dos camponeses durante 0 sécnlo XVIII, Mas acgumenta, em ptimeiro Iugar, que outras provas indicam que essas tenta- tivas no eram gerais em toda a Franca e, em segundo, que tais pressdes iio constituiam fendmenos novos, mas eram de fato “processos tio anti- ‘30s como o proprio sistema”. Pode-se descobrir que essas “reagées feudais”, no sentido de insisténcia firme em direitos legitimos, ocorreram em vitias regi6es da Franca em numerosas ocasides 20 longo dos séculos e que 0 caso de uma intensificacio particularmente forte dos mesmos nos anos ime- diatamente anteriores a 1789 nfo foi conseqlientemente provado, HA alguma forga nesses argumentos, mas se os abundamtes exemplos pré-revolucionéios de vigorosa exigéncia de cumprimento de direitos fou- Gais foram ou nfo suficientemente gerais para serem qualificados como uma “reagio feudal” distinta e separada teré que continuar @ depender, dada & natureza dispersa © desigual da prova, principalmente da intuigo € de juizos de valor do historiador. Neste contexio, os fatos ocorridos em Davenescourt podem apenas dar respaldo aqueles que azfeditam que houve tal reagio feudal e quo esta reagéo contribuiu para a inthnsificacdo do conflito de classes ¢ para a formacéo de uma mentalidade revolucionéria no campo, nos anos que precederam 1789. ‘Mas, em primeito lugar, vamos estudar as partes em conflito. Por um lado, a aldeia de Davenescourt, uma aldeia tipica da Picardia, localizada 182 4 oure hiséria fem terras baixas, com solo turfoso, plantando trigo e cevada, além de poss suir umas poucas cabecas de gado vacum ¢ ovino, cerca de 160 familias, talvez 500 habitantes, com um chéteau & margem do rio, uma igreja paro~ ‘quial, um moinbo, e pastagens bem extensas em terras pantanosas & mar- gem do rio, Por outro, a familia senhorial, os habitantes do chateau, os wondes de la Myze, barons-chatelains de Davenescourt ¢ da vizinha proprie~ dade feudal de Hangest, ‘Até 1777, 0 titulo pertencia 2 Gabriel Melchior de la Myre, oficial da marinha, que faleceu nesse ano e deixou vitva Philippine e trés criangas, dois filhos © uma filha, Em 1791, o filho mais velho, Joseph-Gubriel, estava ainda na adolescéncia ou no comezo da casa dos 20 anos, Desta mancira, 1 administragdo das propriedades da familia na Picardia, e também na Not- mandia, onde havia outras, constituia responsabilidad: exclusiva da con- dessa. ‘Contdo, ela no deixava de ter conselheiros, No leito de morte, 0 conde confiara a prote¢io dos fihos ao seu preceptor, o AbbS Pierre Tour- nier, ex-professor de Filosofia no Collige de Arras. As descrigées dos cam- poneses apresentam Tournier como tum personagem saido diretamente de Beaumarchais, simultaneamente cdmico ¢ sinistro ¢, ao mesmo tempo, con- selheiro malévolo da condessa ¢ flagelo de camponeses impios. Conta-se que desenvolveu um profundo interesse pelo estado moral das criadas do chiteau, chegando a ponto de ferie a bala nas pernas um pretendente & méo de uma das mogas durante uma discussio. E houve também a famosa oca~ sifo da “caga A coruja” & meie-noite, que ocorrera certa ocasiio em 1780, mas que munca fora esquecida pela aldeia, Alguns rapazes da aldeia tinham o hdbito de nadar & noite no rio terminar 9 farra de maneira apropriada, invadindo o pomar e 2 horta da condessa para um lanche. Na noite em questo, 0 bom abbé organizou no chateau um grupo armado para acabar com essas depredacdes. Segundo a versio do proprio Toutnier, todas as armas foram earregadas com pélvora, mas no com chumbo — exceto a sua, que ele carregou da forma devida para o caso de o grupo espantar alguna coruja, O som dos titos ¢ o silvo do chumbo revelaram-se muito eficazes para pér a corter 0s invasores — ¢ também para a reputagdo dos “‘assassinos do chateau”. ‘A condessa podia contar também com um conselheiro, Vincent Le Suour, seu administrador, que trabalhava no chateau desde 1772. Le Sueur era muito odiado pelos camponeses, porque fora um deles € nada lhe es- capava. Significativamente, quando se referiam a ele, os camponeses ten~ diam a omitir o Le, © chamavam-no simplesmente de Sueur (“Suor”), 0 que dava uma boa medida da afeigto que ele hes despertava, Quase to logo © conde Gabriel exalou o ‘iltimo suspiro, este trinnvira- to, 2 condessa, o Abbé c © intendente, reuniu-se a fim de elaborar o plano RB. Row 1s de campanha de uma “reaglo feudal” privada, A condessa precisava de inheiro: registtos mostram que ela construita um novo presbitério para 0 padre da paréquia em 1780 e, na véspera da Revolucao, em 1788, ciara a construgdo de um novo chdteau que deveria custar 25.000 livres. ‘A primeira oportunidade surgiu quando um processo relativo 20 moi- saho feudal foi resolvido a favor da condessa pelo Parlement de Paris em 1781, As origens desse litigio retroagiam a séculos, na verdade a 1120. 0 ponto etucial da pendenga era uma disputa entre a familia La Myre ¢ 0 Cabido do Priorado de Ssint-Guentin, em Beauvais, sobre direitos senho- riais ¢ prineipslmente sobre 1 propriedade do moinho, isto 6, 0 direito ex- clusivo de moagem no baronato de Davenescourt e Hangest. Durante sé- culos, até 1780, 0 priorato conseguira manter um moinho em Hangest. Em 1781, porém, 0 Parlement de Paris ordenou 20 cabido que demolisse seu moinho, Imediatamente, a condessa anunciou sua intengio de fazer cumprit seu diteito de monopélio, Daf em diante, nenhum cereal poderia ser leva- do de Davenescourt para moinhos “estrangeiros", Tudo devia ser mofo xno moinho sethorial. A condessa foi suficientemente generosa para con- cordar que, se 0s aldedes nflo gostassem desse arranjo, nfo tinha objecio 2 que procurassem um dos tz@s moinhos de Hangest, todos os quais nesse momento the pertenciam, Os aldedes de Davenescourt resolveram reagi e $0 chefes de familie, se reuniram pata fazer um apelo a0 Intendente da Picardia, D’Agay de Mutigny, que dew ganho de causa A condessa e recusou permissio para. que © apelo subisse & corte real. Dois cidadiios de prol, Cusset, topégrafo do rei (Arpenteur du Roi), © Masson, o sindico, ou secretério da comnidade alded, resolveram, em vista disso, levar o caso a Paris e apresentar um apelo a0 Parlement. Dizia o argumento que apresentaram que, segundo 0 costume local do bailiado de Péronne, o direito de exclusividade do moinho aplicava-se apenas a estranhos © que vassalos, ou rendeiros auténticos, tt nham o diteito de moer sea cereal onde desejassem. Pode ser que a lei fosse vidlida, mas isso no afetou muito a questo. O que de fato infuiu foi a es- tteita amizade entre a condessa e Miromesnil, primeiro presidente do Par- ement de Rouen, que foi Guardiio dos Sinetes Reais de 1774 a 1787. A época da extingio dos Parlements por Maupeou, dez anos antes, fora em Davenescourt que Miromesnil resolvera se_refugiar Nesse momento, a influéncia desse peso-pesado judicifrio © politica foi colocada na belanga da justica em favor da condessa, Em julho de 1784, © Parlement de Paris dstidi que 0s seigneurs de Davenescourt tinham i- relto de obrigar todos os habitantes, sem exceedo, a usar o moinho feudal © cobrar mouiture, am pedégio especial, daqueles que obtivessom permissio de levar seu cereal a ouiro lugar. As custas do processo, que duron trés 0s, para a comuna de Davenescourt, altancaram 4.000 livres. Neste caso 1a 4 ouira histéria safaram-se bem. Quando 0s habitantes de outra aldeia da Picardia, Deca logne, processaram a condessa de Ligny em um caso semelhante, 0 processo durou 12 anos e, no fim, o Parlement condenou os autores a uma indeni- zacio de 12.000 livres, além das cnstas.® Logo que soube do veredito do Parlement, a condessa de 1a Myre co- megou a spertar as cravelhas tanto quanto posstvel, colocando lacaios nas cestradas de acesso ¢ saida de Davenescourt e exigindo o pagamento de ‘mouture sobre 0 pio que os obstinados aldedes insistiam em comprar na vizinha cidade de Montdidier, em vex de fazer negécio com 0 moleiro ga- nancioso a quem a condessa arrendara o moinho. Até mesmo de um tra- alhador que estava ajndando a construir 0 chdteau uma tinica eddea de pio foi tomada, embora a condesse, mais tarde, se envergonhasse © man- dasse devolvé-la, ‘A mesma decisio de 1781, que confitmou a propriedade exclusiva da condessa 20 monopélio de moagem, confirmou também sua posse exclusiva de outro direito senhorial, o direito de Voirie. Segundo esta disposigio legal, © senhor tinha o dizeito de plantar drvores ao longo das estradas pablicas {que passassem por seus dominios, Havia ainda o direito semethante, mas distinto, de Plantation, mediante o qual o senhor podia plantar nas terras ‘comuns situadas em seus dominios. Como resultado do exercicio do direito de Voirie, 0 campo no nor- deste da Franga foi embelezado com agradéveis avenidas de maciciras, mas havia mais coisas na Voirie do que embelezamento, As macis, principal- ‘mente para a fabricagéo de sidra, cram uma importante cultura comercial e, & medida que chegava 20 fim o século XVII, a crescente escasser, do madeira para construgio e como combustivel levou os senhores a procuras tirar 0 méximo de seus direitos, ou diretamente ou arrendando-os, Mas & medida que as avenidas sc estendiam ¢ se tornavam mais densas, © passa- gens cada vez menores passaram a ser transformadas em avenidas da noite para o dia, a atmosfera rural foi envenenada por um crescente conilito de interesses. Por toda a Franga, camponeses cujas tertas confinavam com as estra- das protestaram que ® sombra das drvores das avenidas tomava-lhes esté- seis as terras, A situacdo agravou-se ainda mais com dois éditos reais, de 1778 e 1780, que estabeleciam, em primeiro Inger, quo as estradas deviam ter pelo menos trés metros de largura e, em segundo, coloceva as drvores plantadas as suas margens sob a guarda das comunidades aldeds. Na pri- ‘ica, isto significava que os seigneurs tinham o direito de decrubar as cereas existentes que delimitavam ¢ protegiam as tetras dos camponeses de ani- mais extraviados, a fim de alargar a estrada e plantar suas proprias mudas, ‘mas, se estas fossem artancadas, os camponeses teriam que Pagar seu custo, RB. Rowe 135, Em Davenescourt, a “Guerra das Arvores” revestiu-se de aspectos fnvsitados. As principais estradas jé tinham 22 metros de largura, com creas em ambos os lados. Eram usadas como pastagens de ovelhas © con- flitos isrompiam freqllentemente entre pastores e agricultores por invasto do pasto por camponeses cujas terras davam para as estradas. Em infcios da década de 1780, a condessa interveio ¢ mandou plantar duas fileiras de macieiras ao Tongo das estradas, com nove metros entre as fileitas, Os al- doées, imediatamente, arrancaram-nas. A condessa apelow para uma corte real, solicitando-the determinar que 0 plantio, de acordo com a Ici, estava sob a protecdo da communa de Davenescourt e que as camponeses, m con seqiiéncia, deviam indenizé-la através da comuna, Os camponeses contes- taram a ago ¢ perderam, o que thes custou 600 livres, isto em 1783. 0 cconflito seguinte aparentemente resultow de um contra-ataque dos camipo- neses em seguide 80 episédio das Grvores ® margem da estrada. (© rio gue cruzava a aldeia e passava pelo chdtean inundava também uma rea pantanosa, 0 Marais de Davenescourt, uma pastagem em terras piblicas usada pelos habitantes. Entre si, as 160 familias da aldeia possufam 150 vaceas, 92 cavalos ¢ 42 mulas ¢ jumentos ¢ 0 alagado era parte impor- tante da economia da aldeia. Além de apascentar ali seus animais, os ha bitantes tinham direito de cortar forragem com foice, mas aio com gadanho, Os direitos de pesea no rio eram reservados 20 seigneur, Néo obstan- te, logo depois de a condessa ter ganho a causa em toro das érvores, a pesca tornou-se de repente muito mais dificil quando os aldedes plantaram uma fileira de salgueiros exatamente na margem e através de uma tilha, barrando 0 acesso a0 rio, © salgueiro era, naturalmente, muito stil na eco- rnomia rural porquanto fornecia madeira para cercas, fabricagio de cestos © muitos outros trabalhos artesanais, Quando a condessa pediu que of sal- ‘gueiros fossem plantsdos a pelo menos trés metros da beira do tio, 08 al- deGes recusaram-se terminantemente. Em vista disso, ela invocou a Triage a fim de dar-hes uma li¢lo. © direito de Tricge fora regulamentado por uma ordenanga de 1664. Na verdade, era o direito de qualauer seigneur de dividit © cercat as ierras piblicss situadas em seus dom{nios, reservando-se um terco delas © deix xando 0s dois tergos restantes aos camponeses. Havia, contudo, certas con digdes, Cabia a0 seigneur provar que os dois tereos das terras deixadas aos rondciros cram suficientes para suas necessidades e que a doacdo inicial as torras piiblicas aos habitantes fora uma concessio espontinea do seig- eur e néo feita por uma carta régia que especificasse pagamento pelos ha- bitantes do uso das terras piblicas. Os aldedes de Davenescoust meteram-se em brios ¢ desencaveram uma carta régia datada de 1258 que aparentemente demonstrava, em primeiro Tugar, que j& houvera desde aquela data uma Triage — uma repatticao das Zs 136 2 otra hist terras comuns — e que a parte deixada aos habitantes fora concedida em troca de pagamento © no como concessio espontiiea, A condessa levou 2 questo & corte especial que tratava desses assun- tos, a Mattrise des Eaux et Foréts, em Clermont en Beauvaisis, © processo esultante arrastou-se por 18 meses, antes quc os aldedes ficassem sem di- heiro © coragem ¢ desistissem, Durante esse perfodo, o sindico, que sepre- sentava a comuna, teve que comparecer & corte durante 160 dias. O resul- tado foi uma decisio, em 1785, dando ganho de causa & condessa, Néo 6 the foi reeonhecido o direito de cercar um tergo das tertas comuns, mas escolher @ parte que queria, Segundo os aldedes, cla imediatamente ocupou as cinco melhores partes, que valiam pelo restante de todas terras comuns. A fim de demonstrar a imparcialidade da justiga francesa no Velho Regi ‘me, basta dizer que, quando chegou a conta das custas judiciais, descobri- ram os aldedes que tudo fora dividido nas proporgdes certas, segundo 0 Principio de Triage: um tetgo a ser pago pela condessa e dois tercos pelo comuna. Logo que tudo se resolveu, a condessa decidiu drenar todo 0 alagado. © abs Tournier deserever esse ato como “uma de suas caridades”. Os aldedes, porém, demonsttaram uma estranha falta de gratidio, Observaram, Tamentosamente, que as obras de drenagem envolviam uma rede de valetas de 2,5m ou 3m de largura, que tornava 0 acess0 dificil e 0 uso do local perigoso para o gado da aldeia, Parece que 0 que acontece foi que a con- dessa transformou sua parte em um prado cereado e melhorado, enquanto 08 aldedes continuavam a usar a sua, como podiam, como pastagem de ma qualidade, 0 ‘riunvirato do chéteau jf tinha a seu crédito tx8s vit6rias em 18 me- ses: nas batalhas do moinho, das érvores ¢ das terras comuns. Mas havia ainda mais coisa por vir, Um aspecto comum da reac&o senhorial na dé cada de 1780 foi a tentativa de restabelecer ¢ perpetuar antigas obrigagdes € pagamentos extras feudais. Um sefgneur on um superior de abadia man- dava seu intendente ou um especialista externo pesquisar arquivos, catan- do velhos direitos © pagamentos e consolidando-os em um novo Terrier ou Tista de obsigagdes feudais de cumprimento obtigatério por todos os 2 deizos, Completado 0 novo Terrier, os rendeiros eram obrigados a the ace tar os termos, com a exigéncia de, talver. o pagamento de uns 20 anos de atrasados, Se resistisse, 0 rendeiro era multado na corte ‘senhorial; se ape- Jasse para uma corte mais alta, seria contestado até chegar-se a um impas- se, ele ficaria arruinado pelas custes judiciais, e isto servitia como uma Tigo para os. demas, Inevitavelmente, 0 abbé Tournier e Le Sueur finalmente concentraram @ ateneo no Terrier de Davenescourt, Inicielmente, contudo, esperaram até agosto de 1786, quando um édito real sextuplicon os honorfrios pela pre- RB. Rose a paracdo do Terrier, despesa esta que cabia aos rendeiros. Em seguida, Tour- niet visitow a aldeia, alegadamente armado de pistolas, obrigando todos os rendeiros a accitar as noves condigées, enquanto Le Sueur ficava em re serva para 0 caso de alguém resolver desafiar 0 abbé e suas pistolas ¢ levar (© assunto & corte senhorial, que ele presidia. novo Terrier ndo era em si um documento excepcionalmente opres- sivo, mas, de fato, inclufa duas novas obrisagSes. Em primeiro lugar, tor- ava os moradores responsiveis pela conservacio da estrada e da ponte, Em segundo, ¢ isto 0 que deve té-los inritado mais que tudo, incorporava a0 Terrier a decisio recente que dera ao seigneur monopélio absoluto de moagem, Em 1786, aparentemente, nada havia que os aldeses pudessem fazer a esse respeito © foram obrigados se submeter — mas no inteira- mente sem protestos, Mesmo antes de eclodir a Revolugéo, em 1789, 80 podemos dar crédito a Tournier, travava-se om Davenescourt uma espécic de “guerra fia” permanente, Nos domingos ¢ dias de festa, multidées de aldedes embriagados se reuniam em volia do chateau, atiravam pedras. ¢ seixos ¢, em desafio, faziam destilar “moleiros estrangeiros” diante das portas © janeles da mansio, Depois de 1789, naturalmente, comegou a mudar o equilibrio de for- a8 na aldeia, A fome de 1789, que contribuin para o descontentamento revolucionério daquele ano, assumin particular gravidade na Picardia de- vido a tempestades no vero de 1788, que destruiram cultucas de alimen- tos © de linko em grandes extensées do campo, e os fatos de julho de 1789 em Paris fizeram-se acompanhar de um levante geral no nordeste da Fran- a, com atagues a postos de coleta de impostes, a comboios que transpor- tavam cereais ea armazéns, Os hhabitantes de Davenescourt foram poupados da miséria completa, apés as chuvas de granizo, por causa de outra das “caridades” da condessa, a reconstrugio do chdteaz. Segundo Tournier, quando os esleiros. do chd- eau ficaram vazios em 1789, ele percorreu as estradas de Santerre a fim de comprar cereals para a aldeia, que dissé~ter-vendido aos “trabalhadores” (les owvriers) a um tergo do preco corrente. A condessa mostrou-se A al- ‘ura da crise, conéedendo empréstimos sem juros a camponeses arruinados ¢ permitindo 20s rendeitos um abatimento de dois teres nos seus alugueres. ‘Mas isto. no foi suficiente. No dia 17 de julho de 1789, uma eclo- so precove do curioso fendmeno conhecide como Grande peur chegou a Davenescourt. A Grande peur, ov “grande medo”, foi uma onda de histe. ria de massa que em 1789 se espalhon de aldeia em aldeia pelo campo, de- Hlagrada por boatos da existéncia de enormes exércitos de bandidos © va- sgabundos em desespero que andavam por toda parte saqueando e assassinan- do, Como reagio 2 esses boatos, os aldedes formaram bandos armados © agitados. Quando os bandidos nfo apareciam, eles em geral voltavam man- 138 4 outra hiesria samente para suas casas, mas, as vezes, as prOprias turbas de camponeses davam meia-volta e atacavam 0 chdteau local Em Davenescourt, a coisa foi por um triz, Enquanto os aldedes mar chavam pelo campo & procura dos “bandides”, Tournier ¢ Le Sueur apres- sadamente mandavam fazer pio no moinho para distribuicdo gratuita & tur- bba, mas 0 chéfeau s6 foi salvo pela chegada de camponeses de outras pa- réquias, incluindo a de Hangest, que 1é se reuniram para defender a con- dessa, Ainda assim, a situacio custou A condossa 500 livres om “refrige- rantes” © contribuigdes em dinheiro seus leais vassalos, antes que as coi- sas se acalmassem, Uma das conseqiiéncias da crise revolucionéria de 1789 foi a tentativa do governo real de controlar prego dos alimentos, incluindo as taxes co- bbradas pelos moleiros, Os aldedes de Davenescourt rapidamente se aprovei- taram dessa vantagem, Desde 1787, em comum com todas as demais comu- nidades aldeds na Franca, possufam um conselho e governo municipal oficial. Em dezembro de 1789, a municipalidade de Davenescourt queixou-se ao Inendente da Picardia de que o molelro de Davenescourt estava co- bbrando mais que o prego que ele mesmo, o Intondente, fixara no més an- terior. A condessa escrevera também ao Intendente explicando que se cum- prisse a tarifa oficial o moinho se tornaria “mais custo do que renda”. O que deyeria fazer o pobre homem? Exatamente: nada fez.!” Mas evidentemente os camponeses comecavam a fazer valer seus direitos, armados com uma nova confisnga. Em janeiro de 1790, chegou a vez de a condessa queixar- se a Assembléia Nacional que 0 secretério da municipalidade estivera in- centivando os habitantes 2 cortar galhos das drvores que plantara & margem da estrada, A Assembléia, comretamente, ordenou a0 bailiado local que to- masse providéncias? Em junho de 1790, a condessa mais uma vez quefxou- se & Assembléia, mas dessa vez por motivo mais séro. Em maio de 1790, a Assembléia Nacional abolira o direito de Triave, dando liberdade as comunidades camponesas de contestar qualquer cerco de terras efetuado nos ‘ltimos 30 anos. Tao logo se espalhou & noticia dessa decisfo, os moradores de Davenescourt resolveram partir para a ago dire- ta ¢ ocupar a terra confiscada pela condessa em 1785 e, n0 proceso, apos- saram-se da “colheita” (presumivelmente a primeira colheita de feno do ano) No todo, agueles tempos néo foram bons para a condessa. Os decretos de agosto de 1789, que aboliram 0 feudalismo, acabaram também com 0 ‘monopélio da moagem sem indenizacio, Novos decretos, no verio de 1790, climinaram 0 direito de Voirie, mesmo que obrigassem os camponeses. 2 pagar indenizagdo pelas érvores existentes. Entrementes, o filho mais ve- : RB. Row a9 Tho da condessa, Joseph-Gabriel, reunira-se aos aristocratas que haviam fu- ‘gido da Revoluglo e se encontrava Jonge, em Hamburgo. ‘Ainda assim, as coisas no estavam de todo més. Como resultado da nacionalizagdo das terras da Igreja em 1789, as grandes propriedades do vyelho inimigo, o Cabido de Saint-Quentin, foram langadas no mercado, A condessa de In Myre comprou-as, pasando por cima dos rendeiros ocupan- ts, a fim de consolidar suas propriedades. Nada, ainda assim, podia compensar a nova ¢ insubordinada atitude dos aldeSes de Davencscourt. As coisas estavam mudando, baviam mudado, jnreversivelmente, Um dos lideres dos camponeses no quase levante de ju- tho de 1789 fora um certo Alexis Baili, cajo apelido, incidentalmente, era “La Giberne”, ou “Cartucheira”. Enguanto ele aterrorizava a condessa em seu chéteau em Davenescourt, na distante Paris seu filho mais velho, Piet- reFrangois Baili, participava da captura, da Bastilha, Mais tarde, Piee- Frangois voltou 4 aldeia, resplandecente em sea uniforme de_membro da Guarda Nacional de Paris, a fim de enrijecer 0 espirito de rebeldia dos que haviam ficado em casa, E assim, sob a influéacia dos Baill, em prin de 1791 os aldedes resolveram fazer um acerto de contas final com a con= essa. Na noite de 24 de feverciro, o conselho municipal realizou uma sesso fe resolveu apresentar certas exigéncias através de uma delegagio, que seria ‘enviada no dia seguinte ao chateau, Estavam resolvidos a que as terras co- ‘muns seriam devolvides & aldeia, que 2 condessa restituiria os 600 livres de custas no processo de 1784 sobre as drvores © que deviam ser riscados (08 actéscimos feitos ao Terrier em 1786, na parte em que fossem ainda apticdveis, Pela manha, © prefeito ¢ o consetho apresentaram-se no chateau ¢ fo- ram tecebidos. Ja descrevi as seqticlas desse encontro: a humilhagio da con~ dessa e de seus filhos, # cagada humana empreendida em_busca de Le Sueur ¢, principalmente, de Tournier (que se escondeu em uma dgua-furiada), a destruigio dos arquivos da casa senhorial ¢, finalmente, 0 sucesso dos al- dees em expulsar a condessa e sua familia da Picardia ‘A jacquerle de 25 ée fevereiro, porém, de mancira nenhuma assinalou fo fim da hist6ria, Contrésio a uma mé interpretagdo comum, a Franga nfo ‘merguthou em um estado de anarguia desenfreada apés 1789, Houve cer mente atagues ‘2 chéteaux em 1789 © 1790, mas de mancira nenbuma foi regra geral a ilogelidade total. Vigiam feis que protegiam vida © proprieda- de e havia cortes para apticé-tas. ‘Os acrusceiros de Davenescourt haviam praticado assaltos, possivel- mente assassinatos e pasticipado de saques. Antes de muito tempo, porém, 17 deles, ineluindo “Cartucheira”, sua esposa ¢ dois filhos, foram submeti- ao 2 oura historia dos julgumento por um tribunal do distrito de Montdidier, enfrentando a possibilidade de condenagéo & morte, se julgados culpados. ‘Néo foi ffcil a tarefa de Babeut, de organizar a defesa da familia Bail. A condessa jd estava mexendo 0s pauzinhos junto ao Ministério da ustica para que transferisse o julgamento para Paris, longe da influéncia dos pre- conceitos locais. Babeuf viu-se obrigado a organizar presses em sentido posto, Em principios de maio, 200 aldedes de Davenescourt marcharam sobre Montdidier armados de varapaus e cacctes, a fim de exigir pronto julgamento ¢ apresentar uma peticZo com 69 assinatures, Esta foi o origem do panfleto no qual Babeuf, pasando por cima das eabegas dos membros do tribunal, apelou a0 péblico francés, tentando mostrar que a jacquerie niio fora um crime imputdvel, mas apenas um ato de justica, © proceso continuou em Montdidier, mas se arrastou e, a despeito da intimidagio de testemunhas pela multidio © pelas vigorosas taticas de de- fesa adotadas por Babeuf, as coisas comecaram a parceer sombrias para 08 prisfoneiros. Em principios de setembro de 1791, convenceu-se Babeut de que seus clientes estavam perdidos. “Amanhé, a forca seré o destino de- Jes”, esereveu em um apelo aos deputados da ‘Assembléia Nacional, “mas depois de amanhl, quando a horda feudal veneer, cla, também, os exe- utara” De repente, no dia 14 de setembro, mudon todo 0 quadro. Como gesto de despedida, antes de se dissolver em preparagio para novas eleigées, a Assembléia Nacional resolyeu conceder anistia geral mos casos que havism tido origem em “revolugdo” ¢ “rebeligo”. Os Bali, porém, nio estavam ain- da inteiramente livres da confusto. Continuava a ser necessério provar que jecquerie ocorrida em Davenescourt fora um conflito politico, e néo ape- ras um ato criminoso. Babeuf langou-se a0 trabalho, escrevendo a Duport du Tertte, 0 Ministro da Justica, e a deputados simpéticos a fim de thes _grangear 0 apoio. No fim, o ministro foi forcedo a aceder © preparow-se 0 alco para o ato fina ‘Tempo ¢ lugar: dia de feira, sdbado, 15 de outubro, na pegena cidade de Monididier, as ruas cheias de camponeses vindos das aldeias vizinhas, Como advogado de defesa, Babeuf comparceeu & sesso do tribunal do Gistrito © apresentou sen arrazoado, Em seguida, A frente dos prisioncitos libertados, chegou & praca piiblica em meio aos aplausos da multidio, Em seguida, em cortejo triunfal, comecaram a percorrer os campos, “Todos, os aldeses, a0 acompanhamento de misica, receberam-nos & ‘uma légua de Davanescourt”, escreveu ele. “A nossa chegada, 0 sino tocou © rebate ¢ todos se dirigiram para a isreje, onde rezaram. ‘Nés te louva- ‘mos, Senhor"". Em seguida, comecaram as dancas, que prosseguiram du- rante todo o dia seguinte, um domingo. As festividades terminaram com RB. Roe ua fogos de attificio, Cidadios de todas as idades so reuniram para completar 1 celebragio de vitéria sobre o odiado feudelismo” No fim, claro, os La Myre voltarem, afinal de contas. Em 1796, La Sueur era o prefeito da comuna ¢, em 1842, um membto da familia La Myre ocupou o mesmo cargo Mas as coisas munca mais foram as mesmas depois de fevereiro de 1791. De que mancira a narrativa desses interessantes fatos contribui para que compreendamos melhor a forma © evolucdo do protesto popular na Franca do século XVIII? Evidentemente, nenhuma conelusio geral pode ‘bascar-so em um winico episédio na hist6ria de uma vinica pequena aldeia, Por outro lado, sabemos pelas pesquisas de Lefebvze © outros autores que 1a histéria de Davenescourt ifustra de forma dramética e caracteristica as- ypocios da histGria rural francesa que eram de natureza geval naqueles tempos. ‘Um esterestipo muito comum sobre a Revoluglo Francesa € 0 de uma torba camponesa esfarrapada ¢ faminta derrubando os portées do chateau, tendo 0 assassinato, a sensualidade e a pithagem nos coragées. “A turba sagueia, queima ¢ destrdi em completa ignordncia”, anotou Arthur Young cm fins de jutho de 1789. Para 0 historiador consetvador Hippolyte Taine, “ladles, presidiérios, a ralé de todas as espécies... formaria a guarda avancads da insurreigGo e levaria os camponeses a extremos de violéncia” George Rudé censurou Taine ¢ Gustave Le Bon por emprestarem sua auto- idade intelectual a uma concepcio gtral da turba revolucionéria como constituida de elementos criminosos, degenerados © pessoas movides por instintos destrutivos, que cegamente reagiam as vozes de sereia de “Iideres” ow “demagogos” Rudé concordaria com Lefebvre em que o estudioso de perturbacdes populares tem que ultrapassar a fachada de generalidades fé- como as deficiéncias da natureza humana e a mio oculta de agita- . Ele precisaria colocar os perticipantes em seu contexto hist6rico, analisar culdadosamente as origens das queixas coletivas e identificar os mectnismos medianté os quais esses queixss, em certas circunstincias, trans- formatam-se em explosdes do violencia? Embora Rudé nfo inetuisse os fendmenos das “jacqueries”, ou pertur- ‘bagdes camponesas antifendais, em seu trabalho sobre os disttrbios rurais na Franga do século XVIII, demonstrou que, especialmente nos dishirbios provocados por questdes de alimentos e episédios de taxation poptlaire, ou formagio. de presos pelo povo, muito comuns no periodo, prevalecen uma situagdo muito diferente da descrita por Taine ¢ Le Bon. Foram elas ocor- réncias nas quais moradores conmans do campo, condicionados por wma rea gio bem compreensfvel a pressdes econémicas, aliaram-se de mancira ra- ional ¢, nfo aro, surprendentemente organizada. para fazer sou protesto -coletivo, usando métodos tradicionais e consagrados pelo tempo? ue 2 ouire hietria Seria tolo sustentar que ataques @ chateaux nobres durante a Revolu- fo Francesa nio foram fregiientemente acompanhados de extorsio, saque € incéndio proposital, Entre outros estudos, a descri¢zo que Lefebvre nos 4 da inquietagio no campo em 1789 proporcionam prova abundante de que isso aconteceu® Ainda assim, concluiu que houve, caracteristicamente Timites mesmo a essas violéncias, Se o seigneur concordava em renunciar seus direitos fendais, a violéncia terminava. Ndo houve ataques 2 mulhe- res nem assassinatos deliberados™ Sydney Herbert, escrevendo sobre 0 mesmo levante, diz que “o principal objetivo dos camponeses era destruic os odiados pergaminbos da mansio senhorial, que eram as cartas de sua servidio, juntamente com outros dycumentos que pereciam ser capazes de servir de Prova contra eles”® Neste contexto, o caso Davenescourt pode ser visto no como uma ex plosio cega do terror © pilbagem por ctiminosos, mas como aplicagio ti pica de violéncia limitada na promogdo de objetivos racionais, precipitada por uma crise finel em um longo © margo conflito entre o seigncur ¢ a comunidade camponesa, Tampouco foi a explosiio um reflexo impensado de sofrimento imediato insuportavel, 0 libi generoso proposto por liberais para atos de violéncia incompreensiveis ¢ inadmissiveis: “A fome est sem- pre no fando da insurreigio”, escreven Lovis Madelin sobre o Levante 7u- ral de 1789. Em Davenescourt, os arruaceiros de 1791 agiram acicatados nfio tanto pela fome como pela recordacio, compartilhada por outras co- munidades camponesas, de uma geracio de injusticas as més dos tribunais do Velho Regime © pela consciéncia, no xescaldo de 1789, de que 8 coi- sas estavam mudando e que poderiam mudar ainda mais, se houvesse um poueo de coragem. Observa Herbert, corretamente, que a destruicio violenta dos arquivos feudais, como ttica camponesa, datava pelo menos das “Jacqueries” ini- ciais do séeulo XIV. A mesma tética teve papel fundamental no levante eamponés na Bretanha em 1675: Os camponeses de Davenescourt, tal como seus contemporineos de outras aldeiss, lombravam-se assim, om mo- Thor, redescobriam modos tradicionais e hé longo tempo praticados de pro- testo. camponés. © novo a respeito do episédio de Davenescourt foi a politizacéo fran- ca e sem arrependimentos da defesa dos sublevados e, claro, a vitéria final dos camponeses, Foram ambos conseqiiéncias do fato de que a confronta- gf inicial ccorrera no segundo ano de uma revolucio que substituira, e ‘em grande parte desmoralizara, a autoridade tradicional. (0 defensor escolhido pelos camponeses, Bubeuf, j4 se tornara em 1791 um hébil agitador, perito em aproveitar queixas locais particulares fim de gerar capital politico geral. Em 1790, langara um atague contra a conti- snuagio da cobranga de impostos indiretos contra 0 pano-de-fundo de RB. Row us tiirbios gerais contra os coletores, Em peticfo publicada sobre a questio, conclamara os camponeses ¢ artesdos da Picardia a intervir diretamente na politica, mediante assinatura de petigdes ¢ participacio em reunides péblicas a fim de exercorem, de baixo, pressio sobre as autotidades. No outano de 1790, Tangou um jornal, o Correspondent Picard, que abriu suas piginas fa queixas de corespondentes das aldeias, Nas proprias vésperas da explo- so de Davenescourt, em principios de fevereiro de 1790, Babeut redi- ‘ita uma petic#o em defesa da recusa dos habitantes de Méry, no Oise Dé partment, de pagar obrigagtes feudais. A peticho de Méry foi também pu- blicada, juntemente com a exigéncia geral de abolico, sem indenizacao, das obrigagées feudais ¢ a nacionalizac%o dos dominios dos sefgneurss ‘A defesa dos amotinados de Davenescourt por Babeuf deu origem a outra pe- tig que, embora se referindo ao caso particular em tela, importava também om om ataque geral tirania feudal, A reproduedo da acusagio de Babeuf & condessa de Ia Myre pelo Journal de Montdidier, quase cem anos depois, constituiu um tributo sua efieécia para ajudar a eriar a grandemente sim- plificada mas altamente potente imagem da Revolugio Francesa como uma Tuta entre camponeses virtuosos e aristocratas optessores, Gragas & intervengio de um lider popular de novo tipo, fazendo uso inspirado de novas oportunidades, 0 caso Davenescourt transformou-se, de conflito puramente local, em torno de queixas particulares sobre um episédio exemplar em uma Tuta politica em andamento muito mais ampla, Esta tran- sigdo, de protesto popular esporddico e intermitente para politica de pres- so generalizada e organizada, foi um aspecto caracteristico dos novos ru- mos da politica popular, iniciadas durante a Revoluggo Francesa, que se- riam considerados como mais apropriados & Europa industrializada do século seguinte. 210 @ ouire histrie © desaparecido Ancien Régime ¢ as sociedades capitalistas modernas. E, como os movimentos intelectuais mais importantes, definiu plenamente 0 regime social que desaparecia, 20 mesmo tempo que elaborava os valores que a nova sociedade adotaria. Se assim, pouco surpreende que o racismo, assim como a escravidao, tenha sobrevivido & Revolugao Francesa. A identificagdo da cor com caracteristica menos que humana tomov-s¢, em fins do séeulo XVIIL, uma parte essencial do processo mediante 0 qual 0s franceses definiram seu papel do colonizadores. Conforme notou Bamave nos debates revolucionsrios, as Indias Ocidentais dividiam-se em (rés classes: 95 escravos afticanos (euja existéncia cle meramente inferia), os colonos franceses, © 08 “nativos” negros e mulatos (“la race”, ou mais tarde, “es races des ingmus”). FE foi precisamente por causa da cor destes sitimos que © preconcsito contra eles, que cle alegou deplorar, teve que ser consagrado ra lei. 2° Analogemente, 0 abolicionista Grégoire censurou os colonos:por terem institufdo uma diferenga que mio era encontrada entre os europeus brancos: Na Franca, 0 status de eidadio ativo uma desigualéade devida & riquera, que (odo individuo pode ter a esperanga de superar, a0 paso que, nas colts, ‘ena dediguaidada resulta de diferensa de cor, que & insuperivel. Ne Franca, 4 declazade (des)igualdade no & visivel; Eo € gravade na. testa; mio ‘riou insoléncia de um lado © humithagio do outro. Nas colfnias, por outro lado, festa desigualdade std eserita na testa do préprio homem e ele nfo pode scapar da. humithagso (a la ligads). 108 Os negros, por essa altura, haviam sido relegados a0 sfatus permanente de infetiores raciais ; i | u Camponeses e Soldados Negros na Revolugao de Saint-Domingue: Reagdes Inici: A Liberdade na Provincia do Sul (1793-1794) Carolyn Fick A revolugdo om Sain-Domingue em 1791-1804 constituiu a primeira revol- ta de escravos bem-sucedida da histéria ¢ dela emergiu a segunda nagio independente do Novo Mundo. Mais do que isso, porém, @ antiga colénie francesa de Saint-Domingue tomou-se a primeira nago negra independente nna Tonga histéria das Intas nativas contra o imperialismo colonial. A Tuta dos escravos foi duple, Conquanto obtivessem a aboligfo total da escrava- tura em 1793, s6 conseguiram garantia permanente dessa liberdade quando derrotaram e expulsaram as poténcias colonialistas: a Espanha, a Gri-Bre- tanha e, finalmente, a propria Franca, ‘Toussaint Louverture, de muitas maneiras 0 mals notével lider negro 2 emergit da revolucdo, ingressou inauspiciosamente em suas fileiras no ou- tono de 1791 sob o comando dos dois lideres escravos, Jean-Frangois Biassou, alindos as forcas espanholas de Santo-Domingo Ratificada pela Franga aboli¢io da escravatura em 1794, Toussaint abandonou os cama- radas negros e seus protetores espanhois, adoton a causa republicana e in- gressou no exército francés como general de brigada, Conseguin expulsar inicialmente as forcas espanholas e, em seguida, as britinicas (ambas em guerra com 2 Franca desde 1793) e tomou-se rapidamente depois a prin- cipal, se nao a tinica, autoridade militar e politica na colénia. Em 1801 foi nomeado Governador perpétuo enquanto na Franca Napoleio Bonaparte, nessa ocasiio Primeiro Cénsul, iniciava os preparativos para restabelecer a escravidio nas colénias francesas. ‘Um exército expediciondrio de cerca de 12.000 soldados chegou as, ppraias de Ssint-Domingue em princfpios de jeneiro de 1802, A Iuta inces- sante dos negros pela liberdade fundiu-se nesse momento, ¢ impos a Inta pela independéncia nacional. No curso da guerrs, Toussaint foi capturado, deportado e deixado a uma morte trégica em uma isolada cela de prisio nos Alpes franceses. A tarefa de comandar a guerra pela independéncia mae 4 oura hieoria coube assim a Dessalines, o gencral mais forte, leal e seu camarada de armas desde os primeiros dias da revolucio. Depois de dois anos de guerra total- mente devastadora, o§ negros derroisram 0 exército napolednico e chega- ram a0 estégio final de revolugGo, proclamando-se a independéncia no dia 1° de janeiro de 1804, Nesta dupla Iuta pela liberdade, a massa de traba- Jhadores negros € seus lideres populares desempenhou um papel util ¢, nfo aro, decisivo, Este ensaio limita-se-6 a um tinico aspecto da revolugéo om uma tn ca provincia, a do Sul# Examinaré esse movimento popular, © sua ideolo- gia, do ponto de vista privilegiado desses trabalhadores negros © de seus lideres escothidos, na fase da revolugSo assinalada pela aboligio da escra- vvatura ¢ pela transigo para um sistema de trabalho semi-assalariado3 Em ‘primeito Tugar, porém, & nevessério um curto estado dos antecedentes, fim de pér no seu contexto histérico esta fase especial da revolugo e do movimento de resistencia popular no Sal ‘A revolugdo comegou com a revolta de um grupo de fazendeiros aristocré- ticos na Provincia do Norte, que queriam representagio colonial nos recém- convocedos Estados Gerais na Franga, Através de seus representantes, pre- tendiam eles obter maior autonomia em relacdo & metrSpole © modificar em seu favor 5 aspectos limitadores da politica mereantil da Coroa. A eles se opunham os realistas, que apoiavam 0 regime colonial local ¢ sua burocra- cia ©, por conseguinte, eram contrérios a qualquer grande mudanca de poder. $5 depois de concediéa a representagiio colonial, porém, & que os fazendeiros brancos compreenderam 0 perigo inerente que corriam, como senhores de escravos, em se representarem em uma assembléia revolucio- naria nacional, Isto porque, nessa ocasiio, os mulatos © negros. alforsiados, ou affranchis, que constituiam a camada intermediéria da populacio, como um fampo entre a classe branca governante e a massa de escravos negros, organizaram um movimento paralelo em prol de representantes préprios na Franga ede direitos politicos e civis irrestritos na col6nia+ Por volta de 1791, as divergéncias entre os colonos brancos atingiram o auge, Outra faceo, autodenominando-se de “patriota”, formara-se em tomo da questiio de independéncia quase total como solugio para a dificil situagio da re- resentagdo colonial e da discusstio inevitével da questo dos mulatos na Assembléia. Nacional No dia 15 de maio, os mulatos lograram uma vitéria parcial com a promulgacio pela Assembiéia de um decreto concedendo igualdade politica ‘205 affranchis nascidos de pais alforriados © que preenchessem os. requisi- tos de idade © de propriedade, Os coionos brancos reagiram com medo ¢ violéncia, Em nome da supremacia branca, esqueceram suas divergéncias ¢, a Carolyn Fick ag apressadamente, formaram uma frente unida a fim de impedir a aplicagio Ga Tei de 15 de maio, Permitir que mesmo alguns mulatos votassem abrivia, imediatomente toda a questio dos mulatos ainda em regime de escravidio (0a que haviam nascido de um tinico progenitor livre e, a partir dat, acre Gitavam, a sboligio da escravatura ficaria a apenas um passo. Estava em isco toda a estrutura social © econémica da colénia — a prépria escrava- tura ¢ as fortunas ele baseadas, Por esse motivo, os mulatos, em defcsa contra os inevitéveis ataques ditigidos contra eles pelos colonos brancos, recorreram nesse momento & rebeliio armada, Meses antes, 03 exeravos n0 Norte. jé haviam se rebelado macigamente e por essa altura controlavam a malor parte dessa provincia Dificilmente se pode negar que os escravos lutavam pela liberdade quando se revoltaram em 1791, E conguanto a liberdade possa ser o loma da maio- ria das revolug6es, no caso das massas escravas de Ssint-Domingue ela so sevestia de um significado particular, fundamentado nes. realidades uma- snas da escravatura, Isto porque a liberdade do escravo implicava, acima de tudo, libertar-se das condigdes materiais em que vivia, isto 6 do domi- nio absoluto do senhor e de um sistema de trabalho forgado por toda 2 vida, uniformemente pautado pelo agoite ¢ controlado pelo medo, Em se- gund®, dava-lhe meios de fazer com a liberdade 0 que quisesse, Em suma significava para ele a propriedade privada da terra que cultivava ¢ os frutos de seu préprio trabalho. Desta mancira, para 0 escravo que nio conseguia expressarse, liberdade ndo era conceito filoséfico ou ideal, nem problema ‘existencial complexo, Era uma realidade concreta que ele se esforgava por cerier para si mesmo, uma realidade que emergia © ao mesmo tempos mana as prOprias condigdes de sua existéncia como escravo. As reagSes iniciais © a resistéucia dos trabalhadores negros & aboliglo oficial da escra- vatura na Provincia do Sul oferece-nos um vishumbre de como eles enca- ravam sua liberdade e 0 futuro, além de esclarecer a substincia dessa li- berdade pela qual haviam téo violenta ¢ tenazmente combatidos Ao se revoltsrem pela igualdade politica no Oeste © no Sul, os mula tos pediram apoio dos escravos negros, armaram-nos ¢ fizeram-Ihes pro messas variadas: de liberdade, de trés dias de folga por semana © mesmo, fem um caso, de dividir com eles os lucros das fazendas to logo os brancos fossem derrotados — qualquer coisa, desde que se reunissem as suas fileicas Thes engrossassem a forga. Na verdade, um boato circulava pela colénia desde prineipios de 1791, no sentido de que o Rei lhes concedera trés dias de folge por semana, mas que os senhores brancos se recusavam @ ecatar a medida, Embora as origens exatas do boato sejam algo vagas, 0 certo é ue ele foi habilmente usado pelos Iideres dos escravos no Norte como aia @ oure Hisérta instrumento de organizagio politica para a revolta de agosto de 1791 ¢ pelos mulatos que incitavam os negros no Oeste ¢ no Sul para que se jun- tassem a eles$ O doato, claro, era falso, mas cepresentava 2 coisa mais proxima de lberdade que conbeciam, Aceitaram-no como fato ¢ guardaram como uum direito sua aplicagio.? Os eseravos do Oeste e do Sul nfo haviam ainda entrado na revolagéo como forga independentemente organizada, coletiva, como seus colegas re~ beldes do Norte. Em inicios de 1792, contudo, os do Sul haviam sido em- polgados, de uma extremidade a outra da provincia, e aderido as lutas ar~ ‘madas dos mulatos, cujas vérias promessas de liberdade correspondiam as piSprias aspiragdes independentes de sotem livres* Do outro lado, alinha- vamse 0s fazendeiros brancos que, sem apoio militar adequado ante as gerais e erescentes rovoltas dos affranchis ¢ seus eliados escravos 20 Sal, hhaviam, pot sua vez, alforriado parte de seus proprios eseravos e os armado para defendé-los? Desta mancira, os escravos do Sul estavam nese momen- to se combatendo reciprocamente em campos inimigos e 20 mesmo tempo, adquirindo rapidamente valiosas habilidades militares © experiéncia politica E foi desta situagio que emergiram como agentes ativos de sua propria uta pela liberdade, organizados em seus proprios termos ¢ comandados por seus préprios lideres populares. Em fins do verio de 1972, alcancou-se um novo estégio, Chegaram colénia noticias do deoreto de 4 de abril, promulgado pela Assembléia Nacional, na Franca, concedendo direitos plenos itrestritos de cidadania francesa a todas as pessoas livres de cor. Além do mais, a Franga enviaria uma comisséo civil, acompanhada por 6.000 soldados, a fim de restabele- cer 2 ordem e garantir a aplicagio da lei aa colénia. Uma vitéria imensa ‘para 05 mulates, era também o comego da Inia armada dos escravos no Sal que, como mo Oeste, deviam ser nesse momento desarmados, dssmo- bilizados © enviados de volta a0 trabalho nas fazendas, como antes, ‘Acampados na regio montanhs conhecida como Jes Platons, havia rnumerosos eseravos que, ainda armados e aproveitando-se dessa posigio, recusaram-se a entrogar as armas © se organizaram em oposicéo franca ¢ declarada & proclamagéo que Thes ordenava voltar as suas respectivas fa- zendas, Fossem armados pelos mulatos ou pelos brancos, a experiéncia com armas os havia transformado. Haviam lutado como iguais © s¢ co deravam livres. Voltar nese momento as fazendas para trabalhar como antes eraclhes impossivel. Ao fim de julho, jf somavam 4.000 © seus efe- tivos continuavam a orescer A medida que eseravos das fazendas vizishas desertavam durante todo o verso para se liar a eles. Os dois mais notéveis lideres escravos, Armand, um commandeur (chefe ou feitor dos escravos de campo) da propriedade Berault, e Martial, comhecido como Maréchal, da fazenda Pemetle, apresentaram suas exigin- Caren Fick 25 cias as autoridades provincianas e militares: liberdade para 300 de seus, lideres, és dias de folga por semana para todos os eseravos; © aboligio do agoite como meio de punigfo. A 700 desses escravos, que haviam sido armados pelos mulatos, foi oferecida alforria, mas s6 depois que cles der- rotaram inteiramente uma expedico langada contra eles em agosto? A maioria dos escravos, porém, continuou entrincheirada em Platons, junta- mente com Armand © Martial, além de virios outros grandes lideres po- piulares como Jacques Formon, Félix, Gilles Bénech e Bernard. Em janeiro de 1793, a0 sez langada a segunda expedigio contra eles, o$ ex-cseravos constitniain um quilombo organizado de dez 2 12 mil homens, mulheres © eriangas. Como defesas, haviam construido wincheiras de terra e pedras por cima de previpicios de montanha que despencavam de uma altura de mil metros ow mais: E também ares. Na verdade, como disse um espan- tado soldado, havia ali tentas cabanas como casas em Cayes. E também duas eafermarias para doentes. Nos casos em que o solo permitia, iniciaram o plantio de cultures e a estocagem de suprimentos alimentares.!® Haviam, na verdade, instalado uma forma rudimentar de govemno civil, denominando © territério recém-adquirido de Reino de Platons e escolhendo um gover- nante a quem deram o titulo de Rei. Durante o ataque de janeiro de 1793, que finalmente os deselojon, tomaram claras suas atitudes, wratando os sol dados atacantes como “sslteadores” e thes dizendo “nous apres tandé zante”, isto 6, ns ot estévamos esperando, cortaremos sas cabeyar até 0 silimo homem e cela terra nio etd de vocts, mas nossa Embora o grosso da populaco civil fosse disperseda, o mticleo arma- do do movimento, incluindo todos os principais lideres ¢ os eseravos in- surretos mais capazes © experimentados — sete mil no total — retirarame se para altitudes ainda maiores em Macaya, onde permaneceram em acam- pamentos aguerridos durante mais sete ou oito meses. Naquele verdo, toda 2 colénia fora langada em um estado de caos admi- nistrativo, Gri-Bretanha ¢ Espanha haviam declarado guerra a Franga e nese momento eram seus inimigos. Isto significava que 08 realistas contra- revolucionérios da colénia possufam, nesse momento, poderosos aliados es- trangeitos, Os escravos rebelados do Norte, liderados por Jean-Francois © Biassou e aliados a Espanha, j8 estavam de posse da maior parte da pro- vincia, As forgas britanicas, jé no controle da ponta ocidental da colénia, comevavam a fazer petigosas incurs6es pelo interior. A salvagio da colénia para a Franca dependia diretamente de atrair os exércitos rebeldes negros para o lado republicano, Isto s6 podia ser feito thes garantindo, em nome do governo francés, a liberdade gue, de fato, jé haviam obtido pela Iuta armada, Em uma medida desesperada, os comissérios civis, Léger Sontho- 18 «8 outra hietora nax ¢ Etienne Polverel, enviados pela Franga no ano anterior para restae belecer a ordem na colénia, langaram proclamagio no dia 21 de junho de 1793, assegurando a liberdade ¢ plenos dicitos de cidadania a todos os escravos do Norte que se juntassem a Franga contra seus inimigos29 No dia 25 de julho, estenderam o oferecimento a todos os escravos do Sui que haviam Iutado, pelos brancos on pelos mulates, bem como uos ingurretos de Macaya que continuavam armados para conquistar a liberdade © que entregassem suas armas, “... incluindo Armand, Martial, Jacques Formon, Gilles Bénech e outros lideres”* A liberdade’oferecida, porém, dependia de duas condigSes. A primeira, seriam engajados em companhias, fou “egies de igualdade” pare utar pela Franga como parte integral do exército francés; a segunda, como “dever indispensével”, teriam que obri= gar o resto dos escravos a voltar para suas respectivas fazendas e assegurar ‘que seriam mantidas a ordem ¢ 0 trabalho regular, Foram conflitantes as reagdes iniciis dos escravos ¢ seus Hideres & pro- clamagio de 25 de julho, Conquanto todos os principais lideres aceitassem © oferecimento do governo de liberdade condicional e fossem nomeados ca- pities de companhis, permanecism ainda assim cépticos, desconfiados ©, no caso de Jacques Formon, abertamente desafiados® Na verdade, 36 ele entre 5 principais Iideres permaneceu coerentemente fiel aos objetivos iniciais da uta revolucionéria, embora isto mais tarde the custasse a vida® André Rigaud, © principal porta-voz mulato na colénia e comandante militar da Legit da Igvaldade no Sul, citow Jacques como o mais intransigente dos Iideres: Sob o pretexto de exscutar at ordens que the dei de fazer com que dex fcesem e voltaseem 20 trabalho todos os everavos de Macaya, cle visilava as varias fazendas e bancava 0 Tartufo, fazendo diseursos para ot escravos, zendo-hes quo trabalhassem ¢ quo nso fossem msis para as montanhas. Garan- tirameme qe pestoar sob seu comando os incitavam a fazer justamente 0 ‘posto. 2 Armand, Martial, Bernard ¢ Gilles Bénech pareciam os mais inctina- dos a se conformarem as condigdes de seus novos papéis, A maioria dos rebeldes de Macaya, os que estavam destinados a voltar como escravos as fazendas, ficaram furiosos com a aquiescéncia de seus lideres aos ofereci- mentos de liberdade do governo, um ato pelo qual se sentiam justamente traidos Quando finalmente descetam, prometeram ser obedientes ¢ sub- ‘missos, mas continusram a pilhar e a saquear as fazendas ¢ aqui e¢ ali le- varam a audicia longe o suficiente para desarmar um fazendeiro branco® No tocante as fileiras da Legifo, Rigaud queixou-se, apenas duas se- ‘manas aps a proclamacio de 25 de julho, que os novos cidadaos “conti- nuam inclinados a cometer atos indignos de sua nova situaclo. Espalharam- Carolyn ick oar se pelas fazendas, tentando destruir propriedades de cidadios”>" Os legion- naires estavam sendo continuamente detidos e mandados para a prisio de Jes Cayes por crimes que variavam de insubordinagao, reeusa em obedecer a ordens e agitacio @ roubo de cavalos © mesmo desercio.# Bssas formas iniciais de resisténcia caraeterizavam 0 estado de espirito © temperamento dos reeém-emancipados soldados nestos que, tendo pegado em armas © at- riscado a vida em revolta declarada a fim de obter a fiberdade, nesse mo- mento constitufam @ soldadesca do exército francés. A abolicéo total da escravatura estava a apenas um passo de distincia, Sonthonax jé procia- mara a emancipagdo geral no Norte no dia 29 de agosto, medida esta que Polverel s6 endossou completamente em 21 de setembro no Oeste © 10 de outubro no Sul Para os trabalhadores negros, porém, 0 novo sistema de emancipagio trouxe pouquissimas mudangas nas condigdes materiais ¢ ficow muito aquém do suas expectativas © aspiragies, Entre eles, o desejo de possuir terra per- manecia dominante, © que cles queriam pode ser talver deserito como uma forma de agricultura de subsisténcia, bascada na propriedade individual, ou pessoal, de uma pequena gleba ou, em outras palavras, na Hberdade de possuit © cultivar solo proprio, trabalhar para si mesmos segundo suas ne- cessidades © dispor, em seu proprio interesse, dos produtos do trabalho. /O sistema de transi¢éo instituldo por Polvesel esa um insulto direto a tais aspiragdes, Em primeiro lugar, os exescravos eram forgados a perma- necer nas suas respectivas fazendas e continuar 2 trabalhar para seus anti- gos senhores; as fazendas no seriam divididas; 0 acoite, como forma de castigo, fora abolido e seria substitaido por um eédigo penal a ser breve- ‘mente promulgado, O novo sistema seria regulamentado por um c6digo de trabalho que trataria especificamente de horas e condigGes, bem como de salérios proporcionais para os trabalhadores®> Eles ainda teriam que tre- balhar seis dias por semana, do amanhecer ao anoitecer, tendo como tinico din de folga o domingo, como sob a escravidio. Nao podiam sor mais acoi tndos, mutilados on torturados como no passado, pois se 0 cédigo de tre bbalho impunha restrigdes as atividades do trabalhador. limitava também a extensfio da autoridade que 0 antigo senhor podia exereer. Este wiltimo pre- cisavanesse instante de ulilizar a forca da persuasio para conseguir que trabalhadores recalcitrantes produzissem ‘A fim de tomar signicativa essa forma de liberdade, Polverel inchui em seu sistema de emancipagio certos “direitos de propriedade” dos ex- escravos, Setiam, segundo 0 comissério, “co-proprietérios” da terra @ qual fossem designados ¢ receberiam coletivamente um terco da receita quida a fezenda. Enguanto que, como escravos, nada haviam recebido por sew trabalho, nesse momento teriam direitos ‘uma pequena recompenss como incentivo a fim de aumentar a produsfo e, dessa maneira, teoricamente pelo

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