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Texto & Contexto Enfermagem

ISSN: 0104-0707
texto&contexto@nfr.ufsc.br
Universidade Federal de Santa Catarina
Brasil

Souza Ramos, Flávia Regina; Gonçalves Nitschke, Rosane; Medeiros Borges, Laurete
A bioética nas contingências do tempo presente - a crítica como destino?
Texto & Contexto Enfermagem, vol. 18, núm. 4, octubre-diciembre, 2009, pp. 788-796
Universidade Federal de Santa Catarina
Santa Catarina, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=71413597022

Como citar este artigo


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- 788 - Reflexão

A BIOÉTICA NAS CONTINGÊNCIAS DO TEMPO PRESENTE − A CRÍTICA


COMO DESTINO?

Flávia Regina Souza Ramos1, Rosane Gonçalves Nitschke2, Laurete Medeiros Borges3

1
Doutora em Filosofia em Enfermagem. Professor Associado do Departamento de Enfermagem e do Programa de Pós-
graduação em Enfermagem (PEN) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora CNPq. Santa Catarina,
Brasil. E-mail: flaviar@ccs.ufsc.br
2
Doutora em Filosofia em Enfermagem. Professor Associado do Departamento de Enfermagem e do PEN/UFSC. Santa Catarina,
Brasil. E-mail: nitschke@mbox1.ufsc.br
3
Doutoranda do PEN/UFSC. Professora do Instituto Federal de Santa Catarina. Santa Catarina, Brasil. E-mail: laurete@ifsc.
edu.br

RESUMO: Ensaio reflexivo que busca problematizar a bioética como discurso contemporâneo. Após um inventário sobre as múltiplas
possibilidades de mapear conceitos, posições e formas de contar a história da bioética, são destacados dois eixos argumentativos − a
idéia da bioética em uma forte adesão/pertinência a um modo de ser e viver no século XX nas sociedades ocidentais, de viver na
ambigüidade entre a ameaça e a fortuna − as dificuldades e conflitos da bioética para realizar sua tarefa crítica. Finaliza ressaltando
o caráter político e cultural que cerca a emergência e o destino da bioética, além das variadas perspectivas e sujeitos envolvidos nas
negociações que constituem este discurso.
DESCRITORES: Bioética. Filosofia. Saúde.

BIOETHICS IN PRESENT TIME CONTINGENCIES – CRITIQUE AS A


DESTINATION?

ABSTRACT: This is a reflexive paper which seeks to discuss bioethics as contemporary discourse. After an inventory about the
multiple possibilities of mapping concepts, positions, and forms of telling the bioethics story, two arguments are highlighted − the
idea of bioethics in a strong bonding/pertinence to a manner of being and living in the 20th century in occidental societies, of living in
the ambiguity between threat and fortune − the difficulties and conflicts of bioethics in order to carry out its critical task. This article
finalizes by pointing out the political and cultural character which surrounds the emergence and destination of bioethics, beyond the
various perspectives and subjects involved in the negotiations which constitute this discourse.
DESCRIPTORS: Bioethics. Philosophy. Health.

LA BIOÉTICA EN LAS CONTINGENCIAS DEL PRESENTE – ¿LA CRÍTICA


COMO DESTINO?

RESUMEN: El presente ensayo tiene por objetivo problematizar la bioética como un discurso contemporáneo. Después de realizar
un inventario sobre las múltiples posibilidades de mapear conceptos, posiciones y formas de contar la historia de la bioética, son
destacados dos ejes argumentativos − la idea de la bioética como una fuerte adhesión/pertinencia a un modo de ser y de vivir de las
sociedades occidentales en el siglo XX, de vivir en la ambigüedad, entre la amenaza y la fortuna − y, las dificultades y conflictos de la
bioética para realizar su tarea crítica. El ensayo finaliza resaltando el carácter político y cultural que cerca la emergencia y el destino
de la bioética, además de señalar las diversas perspectivas y sujetos involucrados en las negociaciones que constituyen este discurso.
DESCRIPTORES: Bioética. Filosofía. Salud.

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INVENTÁRIO INICIAL neirismo não seja aqui melhor tratada, é importante


constatar que, mesmo com algumas posições crí-
Atualmente, há variadas formas de in-
ticas quanto ao fato da bioética ser uma produção
ventariar o percurso da Bioética e sua bagagem
norte americana, este pioneirismo continua sendo
acumulada. Somente a simples compilação de
retratado - não apenas porque os acontecimentos
escritos sobre a história e classificações da Bioética
eleitos como marcantes em sua história ocorreram
já comporia um razoável conteúdo. Mas qual é o
nos Estados Unidos, mas porque ali se considera
melhor ordenador destes conteúdos, o que fornece
que as reações a estes acontecimentos foram pio-
a melhor chave para articular e entender tantas
neiras, (enquanto fatos semelhantes aconteciam
idéias em torno de um mesmo termo?
em outros lugares).7,9 Também porque ali alguns
Seria pelo acompanhamento das transfor- se colocaram como responsáveis por iniciativas
mações e proposições conceituais, oferecidas por que, se tinham intenções de abrangência local ou
diferentes autores, buscando-lhe o contexto de nacional, se propagaram velozmente.
emergência e de enunciação de cada conceito di-
No entanto, pode-se considerar que outro
vulgado (pelo menos aqueles que contabilizaram
tipo de pioneirismo se dará mais tarde, exatamente
maior influência)? Seria buscar na ordem dos acon-
em torno de propostas e teorizações que rompem
tecimentos, aqueles que marcaram e produziram
com os limites do marco norte americano e de seus
consequências notáveis para o desenvolvimento
interesses, para ampliar o compromisso da bioética
da bioética? Seria pela adoção de uma idéia central
com os excluídos - seja do ponto de vista de direi-
a partir da qual se buscaria argumentos pertinen-
tos político-sociais (populações excluídas), como
tes, favoráveis ou não, a tomada da bioética sob
do ponto de vista da hegemonia de um discurso
tal ângulo? Por exemplo, ao tentar responder se a
(temas excluídos da pauta bioética norte america-
Bioética seria ou não uma nova disciplina, ou um
na). Na perspectiva da agenda, pauta, temáticas
paradigma. Ou seria, ainda, pela historiografia
ou teorizações da bioética surgem demarcadores
de seu âmbito mais institucional e normativo, na
de novos campos (ou subcampos) dentro da bio-
trilha das regras práticas que compuseram este
ética, a partir dos quais movimentos intelectuais
edifício político institucional internacional?
e políticos se evidenciam. Três destas formas de
Seja pela via dos acontecimentos reivindica- nomear são exemplares e serão aqui citadas.
tórios e impactantes, seja pela via de divulgadores
Primeiramente, a proposta da Bioética Coti-
e estudiosos ilustres, ou ainda pela abordagem a
diana (problemas morais e científicos que dizem
partir de campos teórico-práticos específicos, como
respeito ao dia-a dia de milhões de pessoas) em dis-
o direito ou a medicina, já temos disponíveis textos
tinção a uma Bioética de Fronteira ou de situações
que situam este inventário em uma ou outra chave
limites (questões dilemáticas mais precisamente
interpretativa.1-9
definidas, envolvendo os processos de nascer,
Obviamente que tais estudos só podem ser viver e morrer mediados pelo desenvolvimento
citados a título de exemplos representativos, uma tecno-científico).11-12 A proposição de uma Bioética
vez que muitos outros existem, se aproximando de Situações Persistentes (problemáticas como
destes pelo tipo de argumento ordenador da análi- a exclusão social, a descriminação e preconceito,
se, ou oferecendo outras tantas formas de discutir a iniqüidade ou a violência) em distinção à uma
a bioética. O que têm em comum é o interesse em Bioética de Situações Emergentes (desafios rela-
situar e circunscrever a bioética na contemporanei- cionados à novas tecnologias terapêuticas e repro-
dade em perspectivas mais ou menos ampliadas, dutivas, à engenharia genética, transplantes, entre
fora da preocupação temática estrita (questões e outras).13 Desta alternativa se desdobra o que é
problemas bioéticos específicos). Já esta aborda- denominado de uma Bioética Forte ou Bioética de
gem temática é, sem dúvida, responsável por uma Intervenção, na perspectiva dos excluídos e como
vasta produção bibliográfica. projeto de construção de um novo arcabouço crítico
Duas obras norte americanas pioneiras foram e epistemológico, numa clara ruptura com a aplica-
os estudos historiográficos de Rothman, citado ção da bioética como ferramenta neutra de leitura
como primeiro historiador do movimento da bio- despolitizada dos conflitos morais.13 E, num outro
ética, e de Jonsen.10 Em muitos outros estudos pos- exemplo, a diferenciação entre a microbioética da
teriores, percebe-se a influência destas duas obras macrobioética, sendo que enquanto a primeira se
na forma de entender a emergência o impacto da situa mais no âmbito clínico e interpessoal, a ma-
bioética na área biomédica. Embora a idéia de pio- crobioética se coloca como social, desenvolvendo

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instrumentos para análises institucionais, políticas que não deixe ninguém de fora da sua capacidade
e culturais que envolvem processos sociais, espe- de representar a todos.
cialmente a saúde pública.14 Uma problematização que, antes de dese-
Os três exemplos indicam a intencionalida- nhar o mapa discursivo da bioética, a vê como se
de e propositividade de formas de nomear, em fosse um mapa do presente, sinalizando ameaças,
contraposições a discursos que conquistaram a perdas, posições, alvos, territórios e alianças.
autoridade de legitimamente falar em nome da Pessoas, nomes, lugares, instituições e qualifica-
bioética e sobre a bioética. Mas que idéias, e que ções não se ausentam, já que nunca deixam de
transformações podem ser captadas ao olharmos ocupar suas posições num discurso que não será
mais atentamente para estes discursos? Que apagado, mas figuram como personagens móveis,
relações estes fragmentos-idéias teriam com o representativos de uma verdade que veiculam e
vigor do próprio discurso? E, mais uma vez, cabe ajudam a fortalecer.
realçar que o uso de discursos, no plural, remete A chave para a leitura deste mapa não é uma
a consideração de que embora possamos iden- indicação exata, mas algumas perguntas, que ser-
tificar a bioética a um grande campo, domínio vem apenas para recolocarmo-nos frente a bioética:
ou movimento, este é multifacetado, atravessa- − que tipo de problema a bioética se propôs a for-
do por leituras e valorizações particulares aos mular ou para que tipo de problema se pôs a bus-
espaços de diversas disciplinas. Um discurso e car respostas? Que tipo de problemas fez pensar a
muitos discursos, expressão da complexidade bioética como resposta? − que tipo de poder entra
de muitas vozes, em muito dissonantes e, por em jogo para recorrer ao saber bioético?; − que
alguns meios, orquestradas. tipo de fertilidade a bioética pode produzir para
O reconhecimento desta amplitude pode ser nutrir certa diversidade e descontinuidade sem
sinalizado por estudo que diferencia característi- perder uma coerência, uma unidade discursiva
cas da bioética, inicialmente, pelo modo como esta reconhecível, um parentesco, um fundo projetivo
pretendeu se distinguir da deontologia médica, comum? Que tipo de unidade foi possível de ser
chegando às suas abordagens interdisciplinar, se- produzida na diversidade do jogo estratégico da
cular, prospectiva, global e sistêmica, para afirmar bioética? Ou que tipo de diversidade coexistiu com
quatro tendências quanto ao modo de conceber a esta unidade, ou mesmo a produziu?
bioética, como − fórum; método de análise; pro- Um mapa mostra conteúdos. O mapa da
cesso de regulação ou forma de ética.5 bioética, do seu discurso, mereceria ser tratado
O que uma só obra abre de possibilidades como repertório interpretativo,16 como conjunto de
de mapear conceitos e posições, pode ser multi- termos, conceitos, expressões de linguagens mobi-
plicado algumas vezes ao se percorrer um con- lizadas ao se falar de um fenômeno peculiar; como
junto significativo delas. Seria então produtivo produções culturais inscritas em diferentes tipos
qualquer novo esforço de mapeamento? Ou para de texto e manifestações da memória social; como
qual nova demanda se justificaria tal empenho reservatório de sentidos produzidos na relação com
ou mesmo retomada? Obviamente que uma o mundo e nos movimentos de sua compreensão.
demanda, um interesse ou uma zona cega iden- Pela impossibilidade de responder a tão
tificada movimenta um conjunto já produzido. complexas perguntas, talvez delas se possa, inicial-
Aqui o movimento buscado nada mais é do que mente, tirar um jeito de reler os mesmos textos, ou
o de uma problematização,* no sentido foucaul- um jeito de pôr em evidência algumas ambiguida-
tiano,15 do que de mais notável tem a bioética, des. Tal exercício de problematização da bioética
daquilo que nos faz admira-la e valorizá-la: sua como discurso contemporâneo (significativo de e
capacidade de dizer por nós as coisas das quais para o tempo presente) é o objetivo deste ensaio.
precisamos, das nossas circunstancias, do nosso Após este inventário inicial, o mesmo será abor-
mundo; falando, em diversos tons e formas, para dado por dois tópicos eleitos, a seguir.

*
Dizer de um sentido foucaultiano para problematização remete ao fazer “algo” entrar no jogo da ver-
dade, tornar-se objeto do pensamento. Nas palavras de Foucault “Problematização não quer dizer re-
presentação de um objeto preexistente, nem tampouco a criação pelo discurso de um objeto que não
existe. É o conjunto das práticas discursivas ou não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do
verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral,
do conhecimento científico, da análise política, etc.)”.15:242

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ENTRE A AMEAÇA E A FORTUNA - A conquistar mais garantias contra a insegurança,


PREMÊNCIA DO ACONTECIMENTO E A por vencer a angústia.
INCERTEZA DO AMANHÃ Numa abordagem foucaultiana, admite-se a
carência de instrumentos conceituais para a análise
“Nós temos uma grande necessidade de uma
da vontade de saber,19 que acaba por se utilizar de
ética da terra, uma ética para a vida selvagem, uma
noções desgastadas e emprestadas da antropolo-
ética de populações, uma ética do consumo, uma
gia e psicologia (curiosidade, angustia diante do
ética urbana, uma ética internacional, uma ética ge-
desconhecido, necessidade de domínio e apropria-
riátrica e assim por diante... Todas elas envolvem
ção), de generalidades históricas (espírito de uma
a bioética, [...] Eu proponho o termo Bioética como
época, concepção de mundo) ou, ainda, de temas
forma de enfatizar os dois componentes mais im-
filosóficos (como o horizonte de racionalidade).
portantes para se atingir uma nova sabedoria, que
Ou seja, as tentativas de definir modelos teóricos
é tão desesperadamente necessária: conhecimento
para analisar este sujeito que deseja saber mais e
biológico e valores humanos. [...] O que nós temos
mais são ainda insuficientes e provisórias.
que enfrentar é o fato de que a ética humana não
pode estar separada de uma compreensão realista O que se pode levantar é a pertinência da
da ecologia em um sentido amplo. Valores éticos bioética para este sujeito, que é também a própria
não podem estar separados de fatos biológicos condição para que esta se faça necessária, daí a
[...] como indivíduos nós não podemos deixar idéia de a priori. Deste terreno e deste sujeito muito
nosso destino nas mãos de cientistas, engenheiros, mais do que a bioética floresceu e, muitas vezes,
tecnólogos e políticos que esqueceram ou nunca bem antes dela, de forma que não há como precisar
souberam estas verdades elementares”.17:2 encadeamentos lineares de progressão ou causa-
ção. Que fatos precisos, que características deste
Se antes, havia um pano de fundo cultural
sujeito ocidental do século XX impulsionaram um
conhecido de todos, sendo discutido das mais di-
nascimento? Questões talvez rudimentares, que
versas formas, e destrinchado em seus potenciais,
desviam da idéia de uma prática discursiva, como
agora, para o bem ou para o mal, as sociedades se
modos de fabricação de discursos, que ganham
defrontam com um possível que se multiplica em
corpo em conjuntos técnicos, instituições, esque-
diferentes imagens, de acordo com cada realidade
mas de comportamento, formas pedagógicas, que
e expectativa, podendo, muitas vezes, ser tradu-
possuem delimitações provisórias e podem reunir
zido como impensável, assustador, ou mesmo,
ou atravessar diferentes disciplinas ou ciências e,
fantástico. Entretanto, neste percurso pelo tempo,
possuem modos de transformações específicos,
a capacidade de projetar, imaginar, prever, olhar
produzidos fora, dentro ou ao lado delas (em
para o futuro se singulariza, sendo inigualável a
outras práticas discursivas).17
períodos precedentes.
O que cumpre ressaltar neste momento
A ciência da previsão e da prospecção é um
é a idéia da bioética com uma forte adesão e per-
a priori ou condição histórica da emergência da
tinência a um modo de ser e viver no século XX
bioética. A capacidade de olhar para o futuro, con-
nas sociedades ocidentais, ou seja, de viver na
quistada pela ciência, foi em certa medida, o que a
ambigüidade entre a ameaça e a fortuna. Ou, seja,
colocou no campo visual deste mesmo olhar. Na
ameaça entendida como tudo o que coloca em
obviedade da relação ciência e bioética, ainda cabe
risco uma existência que permita e expressão de
destacar aqueles aspectos deste tempo da ciência
uma genuína humanidade, enquanto a fortuna se
que mais contribuíram para esta reviravolta do
refere a tudo que venha contribuir, potencializar
olhar. Deixando um pouco de lado as palavras de
e enriquecer o existir genuinamente humano. Isto
ordem deste tempo, como alta tecnologia, o que
pode ser discutido por meio de algumas possibili-
resta? O que nos caracteriza quando se desfoca
dades ou impossibilidades que funcionam como
da arma biológica, dos sofisticados equipamentos
condições desta pertinência, anteriormente referi-
para manter a vida ou da manipulação genética,
da, ressaltando-se a reversibilidade constante que
para citar apenas alguns? O que pode se insinuar
existe entre ameaça e fortuna.
nesta lente desfocada? Da arma biológica para o
bioterrorismo e o pânico moral,18 da sofisticação Uma primeira seria a possibilidade de conhe-
tecnológica para manter a vida para a mudança cer a ameaça, reconhecer riscos, até mesmo prever
nos modos de morrer, lenta e solitariamente. Em suas chances de ocorrência, sua magnitude, sua
todos os casos, um sujeito encurralado pelo medo e eclosão, distribuição e dispersão, suas causas e
ansioso por saber mais, por manipular a vida, por consequências; enfim, estabelecer a cadeia da pre-

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disposição ao dano, à sequela, e toda uma série de A bioética sem fronteiras, a bioética que busca uma
opções de intervenção sobre a ocorrência, antes e sabedoria, a bioética que toma nosso destino das
depois dela. Para tal, servindo-se de inúmeros ins- mãos de outro, ou que deseja saber em nome de
trumentos, da estatística à história, para com isto qual valor este outro pode exercer tal poder. Esta
munir um olhar que denuncia, próximo daquele bioética pergunta por um saber, em nome do qual
da anatomopatologia, que inaugurou a clínica, um se intervem, mas pergunta também por um valor,
olhar mudo como um dedo apontado: “[...] O olhar por uma justificação moral, que dariam consistên-
vai direto: ele escolhe, e a linha contínua que ele cia moral à ação e legitimariam seus impactos.
traça opera, em um instante, a divisão do essencial; Mas a bioética não é apenas uma grande e
ele vai além do que vê; as formas imediatas do importante necessidade, ela também é urgente, na
sensível não o enganam; pois ele sabe atravessa- mesma medida em que a sociedade do risco será
las; ele é desmistificador por essência”.20:123 também a sociedade da urgência, do acontecimen-
Semelhante ao corpo sobre a mesa de exame, to que não pode esperar. Do mesmo modo que o
à célula sob a lente do microscópio, a sociedade olhar de longo alcance (para o futuro) se mostra
de risco está sob averiguação. A averiguação deve como uma condição preliminar, a sobrevivência
eliminar a incerteza, o obscuro e o impenetrável como meta coloca a bioética como imperiosa. Disto
do objeto, para ser prova de uma verdade; mas, decorrem outras três possibilidades, ou condições
neste caso, esta eficiência não se conclui. Se a de pertinência, ligadas todas a esta primeira e que
codificação, homogeneização e normalização podem ser apresentadas como: uma interessante
do corpo, teve na clínica seu aparato de maior posição das disciplinas; uma super-exposição na
sucesso, não se pode colocar em igual situação rede de informação e, a condição que talvez en-
as tecnologias que insinuaram tamanha tarefa no globe todas a anteriores, ou seja, como uma atitude
corpo social, também tomado pela ciência. Toda a de crítica e de modernidade.
potente tecnologia da ciência moderna para ler o A maior circulação e interpenetração dos
real, produzir visibilidade e descritibilidade, não discursos das disciplinas científicas entre si e,
é assim tão perfeita. A impossibilidade da pureza com toda uma linguagem derivada de processos
do real é que fratura a consistência da verdade e insumos tecnológicos, empurrou as reflexivi-
científica. Afinal, qual verdade? Entre a multipli- dades para além de suas fronteiras e produziu
cidade de enunciados e interpretações se expõem hibridismos e novos problemas. Obviamente
a verdade como produção, agora impura, desde que a bioética, para além de já se apresentar nesta
sempre regulada para circular e fazer funcionar zona de intercâmbio e cooperação de linguagens,
sua própria instituição. O conhecimento que asse- a evoca ainda mais, recorrendo a esta situação de
gurou o domínio das coisas, correlato do projeto abrandamento das vigilâncias de fronteiras para se
político da modernidade, já não basta. colocar como exemplarmente capaz de demonstrar
Assim, como a clínica precisou de um corpo sua capacidade e sua exigência de ser inter ou
e o produziu, a biopolítica precisou de populações trans disciplinar.
e as produziu, a bioética precisou das ameaças e Só que, ao assim se movimentar, de certa
fortunas da ciência, e as produziu. Não que antes forma retoma a ilusão de uma unidade ou univer-
inexistisse corpo ou população, mas que estes se- salidade no campo moral, impensável do ponto de
riam totalmente outros, depois de tomadas como vista de sua realidade litigiosa e problemática ou,
objeto e efeito de saber e do poder. Talvez a bioé- de modo mais incisivo, do seu caráter aporético.
tica apenas precariamente perfaça caminho seme- Neste caso, talvez se tenha que pensar no sentido
lhante, mas não se pode negar que está a fabricar mais comum, como aquele que circula nas escolas
uma moral para a ciência. Um conhecimento, uma de medicina e enfermagem, em que o predicado
demanda, uma exigência que só teriam sentido no interdisciplinar é atribuído à bioética por uma
interior do mesmo projeto de sujeito que alimentou idéia de que ela articularia a reflexão moral aos
a ciência moderna. problemas da vida e das práticas de saúde, trazen-
Os excertos recolhidos (conceitos autoriza- do a contribuição, a fundamentação, a sabedoria
dos) são bem indicativos: crescentes demandas, filosófica ao alcance e à aplicação prática, esta sim
ampliadas e diversificadas, que extrapolam os tão humanamente conflituosa.
contextos estritos das disciplinas científicas, todas Inicialmente, é comum se incorrer na cisão
relacionando ética como necessidade em que tais entre moral (concebida como teoria, fundamento
necessidades, “todas elas envolvem a bioética”.17:2 neutro, naturalmente clara e bem intencionada)

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A bioética nas contingências do tempo presente − a crítica como... - 793 -

e problemas vividos (concebidos como práticos, sua relação com uma atitude crítica como “certo
complexos e corrompidos por interesses) como modo de pensar, de dizer e também de agir, um
campos relativamente isolados e “reuníveis” por tipo de relação com o existente, com aquilo que se
meio desta capacidade de interpelação. Sobre sabe, com o que se faz, uma relação com a socie-
um e outro campo, há saberes legítimos (a ética dade, com a cultura, com os outros”.23:31 Pode-se
e as ciências da vida), de estatutos diferenciados, resumir algumas características desta crítica − o
mas, agora, demandados por um único sujeito, fato de existir sempre em relação a algo diverso
o sujeito moral. A meta do homem moderno de de si, como instrumento ou passagem para um
ser sujeito moral de suas ações é corporificada futuro ou verdade, que apela para uma utilidade
no trabalhador da saúde (ou no cientista, jurista, rigorosa e um imperativo ou virtude geral; − sua
professor) autônomo, responsável e justo. A que vinculação com o amplo processo de governa-
recorrer? Onde buscar ferramentas? Já que não mentalização, próprio das sociedades ocidentais
deixa de ser uma tarefa a que se lança bem mu- a partir do século XVI, a uma explosão da arte de
nido. Recorre-se a esta interessante e útil posição governar os homens e seu deslocamento do recinto
das disciplinas – elas agora conversam. A disci- religioso para múltiplos espaços (laicização); − tem
plinarização da moral e moralização da técnica seu núcleo nas relações entre poder, verdade e
seriam consequências desta cisão. sujeito, ou no jogo da política da verdade, como
Outra condição a destacar seria a extrema um movimento em que os sujeitos são capazes de
exposição do temas bioéticos numa sociedade reconhecer em si o “direito de interrogar a verdade
de informação, tornando-a uma bandeira obri- em seus efeitos de poder”23:41 − remete ao projeto
gatória. De certa maneira, há que se pensar na de sujeito moderno, em que o empreendimento
bioética como uma espécie diferente de artefato crítico põe em questão a própria razão, como res-
cultural21 ou como produtora de significados que ponsável por excesso de poder (crítica da razão
são condições para o funcionamento de certas presunçosa). Daí emerge o procedimento analítico
práticas sociais ou, ainda, como um tipo próprio inaugurado por Kant, de questionar sobre “qual
de articulação de significados sociais produzidos idéia falsa teve o conhecimento acerca de si mes-
em diversas práticas (políticas, científicas, acadê- mo? A que uso excessivo encontrou-se exposta e,
micas, jurídicas). Nesta situação, não há desacordo consequentemente, a que forma de domínio ligou
sobre o empenho pela bioética expressando uma o próprio destino?”.23:8
dimensão coletiva e interdisciplinar. Nenhum Ao pensarmos a atitude de modernidade
discurso que a isto se opusesse seria cabível, não como condição para tão ampla aderência da bio-
apenas entre os pares, sendo também inaceitável ética aos projetos de sociedade em suas versões
para uma época que vive o risco, a incerteza e a mais contemporâneas, podemos também proble-
quebra da confiança plena no conhecimento. matizar o conteúdo ou destino crítico desta mesma
De qualquer forma, um tempo em que bioética. Daí caberia explorar, sob que condições
acontecimentos singulares como o abuso no trata- e argumentos a bioética se coloca como crítica ou
mento dos sujeitos de pesquisas biomédicas, antes criticamente fundamentada; se há supostos con-
confinado ao escrutínio de poucos, pôde ganhar o sistentes para pensá-la nesta sua vocação crítica,
espaço público, foi o tempo favorável para a emer- auto-retratada.
gência da bioética. Questões privadas das práticas
científicas e assistenciais podem ser debatidas por ENTRE CONTINGÊNCIAS E LIMITES: A
todos; certas regras e lógicas de como as coisas fun- CRÍTICA COMO DESTINO FORJADO E
cionam estão relativamente ao alcance e passam INSOLÚVEL (?)
a ser assediadas por outros discursos em movi-
mento, fazendo surgir novas pautas e renovando “Bioética é o estudo sistemático da conduta
estes próprios movimentos.22 Ou seja, um cenário humana na área das ciências da vida e a atenção à
em que temas como a preservação ambiental, as saúde, enquanto que esta conduta é examinada a
iatrogenias do desenvolvimento tecnológico ou os luz dos princípios e valores morais. [...] Bioética é o
direitos humanos estão em foco, é o cenário mais estudo interdisciplinar do conjunto das condições
atento para receber novas denúncias ou novas exigidas para uma administração responsável da
conquistas, e suas decorrentes inseguranças. vida humana, ou da pessoa humana, tendo em
Daí que outra condição perpassa tais pos- vista os progressos rápidos e complexos do saber
sibilidades − uma atitude de modernidade e e das tecnologias biomédicas. [...] A bioética é o es-
tudo dos comportamentos desejáveis em matéria
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de intervenções médicas sobre a vida humana [...] discurso organizado. Ou seja, tão mais eficaz quan-
A bioética é pois uma forma de ética, e essa ética, to menos visível se mostra seu comprometimento
no sentido em que a entendemos aqui, consiste ou sua fraqueza.
em elaborar juízos, em formular compromissos, Pela crítica, por outro lado, a bioética teria
diretrizes e políticas indispensáveis em uma so- que enfrentar e expor suas próprias fraquezas;
ciedade pluralista, quando indivíduos ou grupos mais que isso, procurar por elas, sondá-las, descon-
se enfrentam em questões referentes à medicina fiar de seu discurso mais legítimo, onde as causas
ou às ciências da vida”.**24:1 mais apaixonantes estão abrigadas. Mas como ser
Depois de um cenário que aperfeiçoou e de tal modo crítico sem perder a eficácia, a credi-
tornou aceitável e meritório certo olhar sobre bilidade? Conflito dentro de si mesma, mas não
as feridas e sucessos da sociedade científico- conflito estranho à experiência de nosso tempo.
tecnológica, também se torna aceitável que o Do ponto de vista da crítica fundada pelo
destino da bioética se prendesse a uma tomada sujeito moderno, encontraríamos alguns pontos
de posição legítima. Estas posições representam, de encontro com este destino forjado para e pela
estrategicamente, canais para dirigir, reter, suprir bioética. Para citar um destes, basta tomar o modo
e abastecer, drenar em fluxos direcionados os como a busca por uma administração responsável
caminhos nada naturais da ciência e da técnica. da vida se funda numa visão/antevisão do uso da
Assim, o exame ou inquérito − que conferiu uma racionalidade científica e do que este uso implica
forma jurídica-política à produção da verdade em termos de excesso, abuso, dominação. Há não
apropriada ao Estado moderno e disto obteve só uma idéia de administração da vida como proje-
o respaldo para se generalizar e se impor como to moderno, mas de administração da ciência que
modelo de saber24 − terá ainda que cumprir seu administra a vida, onde a vida é a vida plena de
papel sobre as ações e comportamentos de um sentidos humanos (também modernos) de auto-
outro tipo de sujeito: aquele que sempre teve a nomia, saúde, dignidade, justiça. Há também uma
prerrogativa de conhecer e intervir, aquele ha- idéia de responsabilidade, quase como uma con-
bituado a ser o examinador. Mas haverá novos dição para o destino humano de liberdade ou sua
instrumentos de análise a serem aplicados sobre as maioridade. Trata-se do apelo à coragem kantiana
mãos que detêm a própria tecnologia sob exame? da tarefa do esclarecimento: “sabes muito bem
Que instrumentos analisam instrumentos e seus até onde és capaz de saber? Raciocina enquanto
exímios operadores? quiseres, mas sabes bem até onde podes raciocinar
As técnicas de investigação da verdade no sem perigo? a crítica dirá, substancialmente, que a
domínio jurídico (inquérito) estenderam sua aplica- nossa liberdade é posta em jogo menos por aquilo
ção para o âmbito da ciência e da reflexão filosófica, que enfrentamos, com mais ou menos coragem, do
na medida em que emergiram como derivações de que pela idéia que fazemos do nosso conhecimento
um mesmo conjunto de controles sócio-políticos de e dos seus limites”.23:4
uma época.25 Se pensarmos a bioética como usuária Nada mais moderno e, ao mesmo tempo,
e operadora de análogos instrumentos de produção tão significativo para situar o destino da bioéti-
de verdade, teremos também que perguntar se esta ca − destinada a ser uma crítica da ciência e da
filiação compromete o potencial crítico da bioética, técnica − do que lhe estabelecer limites, margens
ou melhor, sua eficácia crítica. seguras e conscientemente assumidas por seus
Eficácia talvez seja a idéia com que mais gestores e executores. Por outro lado, também
rapidamente se possa concordar. Eficaz na forma moderna a pretensão de que esta crítica possa ser
como a crença sobre sua utilidade (da bioética) suficientemente instrumentalizada e levada a cabo
se faz sobre os dados verídicos e verificáveis de por muitos, ou seja, que tais instrumentos possam
seus próprios diagnósticos. Não se questiona a estar sob o controle e para o beneficio de todos. Aí
legitimidade por uma relação que isto tem com a crítica se assentaria numa ilusão de socialização
a causa própria, uma vez que, em mais uma (dos instrumentos da bioética) e do uso coerente,
demonstração da eficácia de suas técnicas e ver- desinteressado (ou bem intencionado) destes espa-
dades, a bioética se pretende acima e autônoma ços e instrumentos. Isto seria desconhecer o caráter
em relação aos indivíduos que a proferem como ambíguo e litigioso dos desafios e decisões deman-

**
Excertos obtidos no site organizado por Goldim24 se referindo a Reich (1979), Roy (1979) e Roy (1995),
respectivamente.
Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2009 Out-Dez; 18(4): 788-96.
A bioética nas contingências do tempo presente − a crítica como... - 795 -

dadas, que é o argumento mesmo da exigência da Uma ultima palavra poderia ser para reafir-
bioética. Outro conflito em seu próprio seio. Então, mar que, para além de uma história de fundadores
ao se assumir uma perspectiva crítica a respeito e fatos marcantes, o movimento da bioética não
dos próprios limites da bioética, novamente se pode ser entendido fora de um movimento mais
voltaria a questão de como controlar seu percurso amplo, no qual diferentes atores (instituições,
e seu poder? Como evitar que algo destinado a ser países, organizações, comunidades científicas,
um controle sobre um poder desmedido, também militantes de variadas posições) reivindicam e
perca suas medidas, abuse, se corrompa? De novo esforçam-se por harmonizar coisas (valores, me-
angústia e incerteza. Daí o recurso a confiança que tas, mudanças) que pareciam inconciliáveis entre
só uma moralidade poderá dar − propor uma bio- si e com os atuais modelos de desenvolvimento
ética como uma nova moralidade, um novo tipo social; coisas como formas de individualidade e
de ética, como se, por assim ser, se atenuasse o comunidade, de solidariedade, justiça e igualdade.
conflito, simplesmente, por ser uma ética. Mais do que a busca por argumentos racionais;
Isto tudo significaria a completa anulação mais do que a busca pela moralidade das ações
do potencial crítico da bioética? Um destino rumo justificadas pelos argumentos racionais, este
à um lugar inexistente? Ou, talvez, possa indicar movimento aprende que o argumento racional é
a abertura para outra atitude, que potencialize negociável e, portanto, moralidades são negociá-
estas novas sensibilidades que tornam a bioética veis e que nesta negociação há múltiplos sujeitos
tão necessária, voltando para si o olhar sensível, com direito à palavra, embora em vozes mais ou
politizando os conflitos morais e reconhecendo menos audíveis.
as diferentes faces da bioética para, em contraste Ressaltar o caráter político deste movimento
a uma bioética para privilegiados, buscar alterna- implica em também reconhecer seu caráter cul-
tivas, como a Bioética na Perspectiva da Teologia tural, especialmente pela intimidade entre nossa
da Libertação, a Bioética Dura ou Bioética Forte, a cultura e nossa ciência. Se estamos assistindo a
Bioética Crítica, a Bioética Feminista e Anti-racista, uma cientifização social de todo conhecimento
ou a Bioética da Reflexão Autônoma.26 e se esta é uma oportunidade para reintegrar o
A bioética resgatada e abrigada ao seio de conhecimento do que é verdadeiro e do que é
múltiplos movimentos políticos, de maior ou menor bom, ou seja, de nossas formas de conhecimento
força contestatória, tem não apenas novas frentes científico e filosófico,27 a bioética seria apenas uma
temáticas abertas, mas novos exercícios de auto- das expressões mais concretas deste processo?
crítica, pelo menos de crítica dirigida para sua face O atual reconhecimento de que o ocidente
mais hegemônica (principialista, tradicional, norte não detém o monopólio das boas idéias científicas
americana), revelando-se em suas ambigüidades. existentes no mundo, que o divórcio entre razão
Se isto não pode ser considerado aquele destino e valores não se mostrou um principio humano
crítico por excelência, representa, sem dúvida, produtivo, desmistifica o conhecimento científi-
uma porta lateral, um enfrentamento possível a co, pela demonstração de sua índole socialmente
uma dominação que se estabelece dentro de um construída. A isto deve se conjugar a uma reforma
discurso. Por mais que não possamos estabelecer metodológica, em que as necessidades das comu-
seu alcance, os movimentos intelectuais de reação, nidades afetadas pelos produtos da ciência sejam
mesmo sofrendo seus próprios limites de crítica e decisivas.28 Estas são as questões e o contexto cul-
autocrítica, sem dúvida abrem brechas e estradas tural da bioética. Questões que estão presentes nos
secundárias na larga via da bioética internacional. discursos de filósofos e pesquisadores sociais; que
não representam uma grande novidade, mas que
atingem as práticas de diferentes áreas técnicas e
AINDA QUESTÕES EM ABERTO
científicas. Como se a cada um, em seu local, se en-
Iniciar um ensaio por um inventário pode dereçasse esta questão sobre o valor e a justificativa
significar que algumas escolhas e supostos iniciais moral de sua ação. Esta é a questão de Harding.
marcam seu desenrolar. Mesmo sem o objetivo de “De que tipo de conhecimento sobre o
construir uma narrativa histórica que fosse capaz mundo empírico, precisamos para podermos
de por em evidência estes processos, não se pode simplesmente, viver, e para vivermos mais razoa-
prescindir de inventariar, no sentido de arrolar ou velmente uns com os outros neste planeta, a partir
declarar alguns desses apoios, jogos e conexões deste momento? Quem deve constituir o nós que
que parecem fazer com que aquele problema responde a esta pergunta?”.28:92
aconteça, ou que estejamos sensíveis a ele.
Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2009 Out-Dez; 18(4): 788-96.
- 796 - Ramos FRS, Nitschke RG, Borges LM

Se, frente a primeira parte da questão acima, – enfoque Bioético. Caracas (CO): DISINLIMED;
a bioética tão prontamente se colocou a buscar 2005. p.139-44.
respostas – e não respostas genéricas, mas prati- 15. Foucault M. O cuidado com a verdade. In: Foucault
cáveis e resolutivas para aqueles que tem a tarefa M. Ética, sexualidade, política - Coleção Ditos e
de gerir conflitos bastante específicos − frente à escritos V. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária;
segunda parte da questão, há um silêncio cons- 2004. p.240-51.
trangedor. Constrangedor, especialmente, porque 16. Spink MJP. Trópicos dos discursos sobre risco: risco-
as respostas aventadas pouco condizem com as aventura como metáfora na modernidade tardia.
regras postas em ação. Cad Saúde Pública. 2001 Nov-Dez; 17(6):1277-311.
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Correspondência: Flávia Regina Souza Ramos Recebido em: 19 de março de 2009


Endereço: Travessa Ângela Chaves, 81 Aprovação final: 29 de outubro de 2009
88.062-305 – Lagoa da Conceição, Florianópolis, SC, Brasil
E-mail: flaviar@ccs.ufsc.br

Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2009 Out-Dez; 18(4): 788-96.

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