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Aula 1
Para entender o que foi realmente a Inquisição, é preciso que "entremos" no período
histórico da Baixa Idade Média e conheçamos o contexto em que ela surgiu. Por que
era necessário criar um tribunal para julgar "crimes contra a fé"? O que estava
acontecendo na Europa que demandava a intervenção direta dos bispos e religiosos da
Igreja?
Um remédio. – A palavra Inquisição vem do termo latino inquisitio, que quer dizer
"investigação". Trata-se de uma instituição da Igreja Católica, criada para julgar católicos
suspeitos de pecados contra a fé.
Isso não justifica todas as arbitrariedades cometidas nessa época, nem canoniza todas as
pessoas envolvidas nos julgamentos da Inquisição. Importa reconhecer que, embora
tenha sido boa para deter a violência e cumprir com a justiça, muitos abusos ocorreram
durante a existência da Inquisição. A própria Igreja levou um tempo para descobrir qual
era o melhor método para lidar com os hereges, errando antes, por exemplo, no episódio
da Cruzada Albigense (1209-1229), e enfrentando dificuldades depois, para gerenciar a
instituição que ela mesma havia criado.
Contexto social. – Na Idade Média, a religião não era uma realidade privada, como
encara hoje a modernidade.
Quando caiu o Império Romano do Ocidente, em 476 d.C., e os povos bárbaros invadiram
a Europa, a Igreja Católica foi a única instituição a conservar o patrimônio da Antiguidade.
Foi ela que, acrescentando a isso a sabedoria do Evangelho, converteu os bárbaros com a
sua pregação e trouxe para perto de si os reis e nobres do continente. À época da
coroação de Carlos Magno como Imperador do Ocidente, no Natal de 800, no entanto, os
monarcas não eram uma instituição forte como no absolutismo: seu poder era reduzido
face a outros cargos nobiliárquicos importantes – ducados, marquesados, condados,
viscondados, baronatos etc. – e eles sobreviviam à custa de constantes alianças políticas.
Os senhores feudais, por sua vez, firmavam pactos de vassalagem com os seus inferiores.
Nesse sistema, a figura do rei não era o membro mais forte da articulação. O que unia as
pessoas não era um Estado absoluto, nem o idioma que falavam – já que ainda não
existia unidade linguística –, mas a sua identidade religiosa. A fé católica era, pois, a força
constitutiva da unidade social.
A ameaça cátara. – É nesse ambiente profundamente religioso que surge a heresia cátara
– cujo conteúdo se parece muito com a gnose dos primeiros séculos e com
o maniqueísmo contra o qual lutou Santo Agostinho. Através da rota de comércio do
Primeiro Império Búlgaro, os bogomilos ("deus querido", no idioma eslávico) se
alastraram pela Europa, fixando-se em regiões comercialmente ricas, como o sul da
França e o norte da Itália.
Concebendo dois deuses – um bom, criador do espírito, e outro mau, que criou a matéria
–, os cátaros (do grego "καθαρός", que quer dizer "puros") condenavam tudo o que
estivesse ligado à carne [1]: desde os alimentos para o próprio sustento, passando pelas
riquezas materiais, até as próprias relações sexuais.
Diante de um clero luxurioso, mal formado e corrompido [2], o discurso desses ascetas
aparentemente virtuosos era muito sedutor. Os verdadeiros cátaros, chamados de
"perfeitos", comiam muito pouco, eram pobres e celibatários e, por conta de sua vida
austera, tinham o rosto magro e macilento. Sua vida, diametralmente oposta à dos
clérigos católicos, começou a atrair muitas pessoas.
A grande massa de hereges, no entanto, não vivia como os "puros". Para se salvar, ela
recorria a um sacramento [3], chamado de consolamentum. Depois de uma vida inteira
no vício contra a natureza – praticando a masturbação, o coito interrompido e até
mesmo o aborto, a fim de não gerar mais indivíduos para este mundo material –, os
cátaros "se redimiam" às portas da morte por meio desse rito e, para que não voltassem
a pecar, se abstinham de comida e bebida, numa prática suicida chamada de endura.
Não fosse o bastante, os cátaros não se identificavam como tais: funcionavam como
uma igreja dentro da própria Igreja, parasitando a hierarquia católica desde dentro.
Uma fonte primária relata que, em 1114, feitos alguns prisioneiros na região de Soissons,
na França, os bispos se reuniram para decidir o que fazer com relação aos hereges.
Enquanto o concílio acontecia em Beauvais, no entanto, o povo decidiu fazer justiça com
as próprias mãos:
"Então, nós fomos ao Concílio de Beauvais para consultar os bispos sobre o que deveria
ser feito. Mas, neste ínterim, o povo fiel, temendo fraqueza por parte do clero, assaltou a
prisão, arrebatou os prisioneiros, colocou-os na fogueira, do lado de fora da cidade, e
reduziu-os a cinzas." [4]
Esse tipo de comportamento por parte da população da Idade Média era uma reação ao
caos social provocado pela heresia cátara. Era, porém, uma prova de que, de fato, o
"sistema imunológico" da Igreja se encontrava "enlouquecido" e era preciso dar equilíbrio
às coisas. Foi a partir disso que se instituiu a Inquisição, a fim de julgar, com prudência,
justiça e humanidade, os casos de heresia que afligiam a sociedade medieval. Como o
Estado não tinha instrumental teológico para proceder a tais investigações, foi a Igreja a
responsável por cuidar desse processo.
Importa dizer que, antes que a Inquisição pontifícia fosse finalmente criada, os Papas
tentaram de vários modos solucionar a questão: primeiro, enviando pregadores às
regiões mais problemáticas, a fim de dissuadir os hereges e convertê-los; depois, por
meio da Cruzada Albigense, quando o sul da França foi assolado por um conflito violento,
no qual o norte do país se envolveu com intenções nada religiosas. Só mais tarde o
tribunal do Santo Ofício foi definitivamente instalado – e é sobre os seus métodos e
punições, considerados por muitos estudiosos como um verdadeiro progresso jurídico,
que se falará especificamente na próxima aula.
Referências
1. Veja-se como São Francisco de Assis († 1226), com seu amor pelas criaturas, é exatamente o oposto da
heresia cátara, como que um antídoto mandado por Deus para fazer brilhar diante do mundo a verdade
católica.
2. O século X, do qual a sociedade medieval tinha acabado de sair, foi apelidado de "saeculum obscurum", por
conta dos terríveis pontificados que se sucederam nesse período. O Papa João XII, por exemplo, eleito por
jogos políticos, realizava banquetes e orgias em pleno Palácio de Latrão. Eram recorrentes também a
"questão das investiduras leigas" – quando o poder secular interferia indevidamente na nomeação dos
bispos – e a questão da simonia – pela qual pessoas compravam para si ou para outrem os cargos
eclesiásticos.
3. Já que a matéria era rejeitada pelos cátaros, todos os sacramentos católicos – enquanto "se requerem
realidades sensíveis para os sacramentos" (Suma Teológica, III, q. 60, a. 4) – foram negados por eles. O
sacramento da Eucaristia, por exemplo, pelo qual o próprio Deus se nos torna presente nas espécies do pão
e do vinho, era o mais absurdo e inconcebível de todos.
4. PETERS, Edward. Heresy and Authority in Medieval Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,
1980. p. 74.
Bibliografia
BARBER, Malcolm. The Cathars: Dualist Heretics in Languedoc in the High Middle Ages. New York:
Routledge, 2000. 304p.
BORROMEO, Agostino (a cura di). L'Inquisizione. Atti del Simposio Internazionale. Città del Vaticano:
Biblioteca Apostolica Vaticana, 2003. 786p.
PETERS, Edward. Heresy and Authority in Medieval Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,
1980. 312p.
A Inquisição Medieval
Uma Igreja em reascensão. – Quando começou a Idade Média, a Igreja foi a única
instituição a permanecer de pé diante da derrocada do Império Romano e subsequente
invasão dos bárbaros. O renascimento carolíngio tentou trazer de volta a cultura antiga e
cristianizar a Europa, mas a invasão dos vikings, ainda durante o reinado de Carlos
Magno, freou todos os seus esforços civilizatórios. No auge da decadência medieval, o
século X, chamado também de "século de ferro" ou "século obscuro", viu o trono do
Apóstolo Pedro ser vendido a homens luxuriosos e indignos, regentes de um clero laxo e
dissoluto.
Enquanto pelejava com a própria reconstrução, no entanto, a Igreja se deparou com uma
nova ameaça: o crescimento e disseminação da seita albigense (da palavra "Albi", cidade
da França na qual se originou a heresia cátara). Herdeiros dos gnósticos da Antiguidade,
os cátaros começaram a influenciar áreas bem desenvolvidas comercialmente, usando a
ignorância do povo para falsear a fé verdadeira e fazendo ruir o tecido social e político da
Europa medieval.
Com um clero secular em sua grande parte corrupto e mal formado, os primeiros
enviados a pregar aos hereges foram os monges, muito embora a sua mobilidade fosse
limitada por conta de seu estado de vida. São Bernardo de Claraval († 1153), por
exemplo, em muitos dos seus famosos sermões sobre o Cântico dos Cânticos [4],
procurou convencer os cátaros da falsidade de sua doutrina e da verdade da fé católica.
Mesmo a sua grande santidade e eloquência, porém, não obtiveram êxito para debelar
de vez os sectários albigenses.
Soluções insuficientes. – Só a pregação, porém, não bastava. O Papa Lúcio III († 1185), no
Sínodo de Verona, condenou os cátaros e:
Antes dos tribunais do Santo Ofício, de fato, o processo de investigação dos crimes era
muito rudimentar. Não havendo direito processual, os juízes dos tribunais civis emitiam
sentenças baseadas tão somente em seu arbítrio, sem a necessidade de provas
contundentes para condenar um réu. A tortura e a pena de morte eram largamente
utilizadas como métodos de punição.
"Ele deve ser diligente e fervoroso em seu zelo pela verdade religiosa, pela salvação das
almas e pela extirpação da heresia. Deve portar-se diante de situações difíceis e
desconfortáveis de modo a nunca perder o controle de si com acessos de raiva ou de
ódio; nem deve, por outro lado, se render à letargia e à languidão, já que tal torpor
exaure a força de um administrador. O inquisidor deve ser constante e perseverante nos
perigos e adversidades, até a morte. Deve estar disposto a sofrer pela causa da justiça,
nem se precipitando imprudentemente, nem se retraindo vergonhosamente de medo, já
que tal covardia debilita a estabilidade moral. Mesmo permanecendo inflexível às
súplicas e lisonjas dos pecadores, não deve endurecer o seu coração a ponto de repelir
apelos de concessão ou mitigar penitências de acordo com as circunstâncias que
sugerirem o lugar e o tempo, já que tal procedimento cheira mais a crueldade." [9]
Resta claro que um inquisidor deveria ser virtuoso e meticuloso em seu proceder. As
palavras de Bernardo Guy delineiam um belo modelo de justiça também para os juízes e
magistrados do nosso século.
"A respeito dos heréticos, há duas coisas a considerar: uma da parte deles e outra da
parte da Igreja. Da parte deles, há um pecado pelo qual mereceram não somente serem
excluídos da Igreja pela excomunhão, mas também do mundo pela morte. É muito mais
grave corromper a fé, que é vida da alma, do que falsificar o dinheiro, que serve à vida
temporal. Ora, se os falsificadores de moeda ou outros malfeitores logo são justamente
condenados à morte pelos príncipes seculares, com maior razão os heréticos desde que
sejam convencidos de heresia, podem não só ser excomungados, mas justamente serem
condenados à morte."
"Do lado da Igreja, ao contrário, ela usa de misericórdia em vista da conversão dos que
erram. Por isso, ela não condena imediatamente, mas só 'depois da primeira e segunda
advertência', como ensina o Apóstolo. Se, porém, depois disso, o herege permanece
ainda pertinaz, a Igreja, não esperando mais que ele se converta, provê à salvação dos
outros, separando-o dela por uma sentença de excomunhão; e ulteriormente ela o
abandona ao juízo secular para que seja excluído do mundo pela morte." [10]
"Lendo os autos dos processos inquisitoriais, mais de uma vez encontramos bandidos
comuns que, surpreendidos pela polícia no ato de violação, de roubo, de assalto à mão
armada, rapidamente inventavam uma motivação religiosa para explicar o seu
procedimento. Por quê? Simplesmente para cair na esfera da justiça da Inquisição e não
da justiça civil ou temporal. Pois a justiça inquisitorial garantia pelo menos uma
investigação, em vez da pena de fogueira imediata, a qual – como a pena de morte ou o
decepamento da mão – não foi absolutamente invenção dos inquisidores." [11]
Olhando para os fatos, pois, a Inquisição medieval foi realmente um grande avanço na
sua época. Certas realidades – como a pena capital e o uso, ainda que mitigado, da
tortura – retratam os limites da época, mas não tiram o mérito da Igreja em conformar o
direito barbárico do primeiro milênio à consciência do Evangelho, ainda que de modo
lento e gradual.
Referências
1. Cf. PETERS, Edward. Heresy and Authority in Medieval Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 1980. p. 74.
2. SHANNON, Albert C.. The Medieval Inquisition. Michael Glazier/Liturgical Press, 1991. p. 44.
5. Cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 188, a. 6: "Assim como é maior iluminar do que
simplesmente brilhar, maior é dar aos outros o que foi contemplado do que simplesmente contemplar."
6. Denzinger-Hünermann, 761.
9. SHANNON, Albert C.. The Medieval Inquisition. Michael Glazier/Liturgical Press, 1991. p. 71.
11. KONIK, Roman. Inquisição: Mito e realidade histórica. [Setembro, 2006]. Catolicismo.
Bibliografia
BARBER, Malcolm. The Cathars: Dualist Heretics in Languedoc in the High Middle Ages. New York:
Routledge, 2000. 304p.
DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo:
Paulinas/Edições Loyola, 2007. 1467p.
PETERS, Edward. Heresy and Authority in Medieval Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,
1980. 312p.
PETERS, Edward. Torture. Expanded Edition. University of Pennsylvania Press, 1996. 304p.
SHANNON, Albert C.. The Medieval Inquisition. Michael Glazier/Liturgical Press, 1991. 182p.
VIDMAR, John, O.P.. 101 Questions and Answers on the Crusades and the Inquisition: Disputed
Questions. Paulist Press, 2013. 128p.
Aula 3
A Inquisição Espanhola e Romana
A Espanha na Idade Média. – A partir de 711, a Península Ibérica foi alvo da expansão
muçulmana. O Reino Visigótico da Hispânia caiu ante a espada dos cavaleiros de Alá,
restando cristã apenas uma pequena porção ao norte da região.
Mas não eram apenas os rabinos que se importunavam com o fenômeno dos cristãos-
novos. Os outros católicos também não viam com bons olhos o orgulho e a arrogância
com que esses convertidos falavam de sua origem e ascendência judaicas, o que gerava
uma boa dose de ciúmes por parte dos "velhos cristãos".
Mas, será que a totalidade dos judeus havia saído da Espanha? Todos os chamados
"cristãos-novos" eram verdadeiramente cristãos? Foi com vistas a examinar a ortodoxia
desses novos cristãos que o Estado espanhol instaurou a Inquisição em seu território.
Esta, portanto, punia não a prática da religião judaica em si, mas as falsas conversões ao
catolicismo.
Um tribunal do Estado. – Cumpre dizer, em primeiro lugar, que, por mais que tenha sido
o caso histórico mais espinhoso, a Inquisição Espanhola não foi a "máquina de moer
carne humana" que muitos escritores desonestos descrevem. Em 250 anos de existência,
esse organismo do Estado espanhol decretou por volta de 3 mil sentenças de morte [6] –
uma estimativa incomparavelmente distante, por exemplo, da registrada pelos regimes
comunistas do século XX, que, num período muito mais curto, executaram milhões de
pessoas. Embora fosse um aparato mais civil que religioso – os tribunais eram do Estado e
os juízes eram eclesiásticos –, a Inquisição Espanhola nem de longe se equiparou às
narrativas mirabolantes inventadas mais tarde pelos anticlericais.
Referências
1. Denzinger-Hünermann, n. 772.
3. Ibidem, n. 69.
4. Ibidem, n. 67.
Recomendações
KAMEN, Henry. The Spanish Inquisition: A Historical Revision. 4. ed. Yale University Press, 2014. 512p.
HOMZA, Lu Ann. The Spanish Inquisition: An Anthology of Sources. Hackett Publishing Co, 2006. 320p.
JAVIERRE, José María. Isabel, la Católica, el enigma de una reina. Ediciones Sígueme, 2010. 861p.
A donzela de Orléans. – Joana d'Arc foi escolhida por Deus para desempenhar o papel de
verdadeira protagonista na famosa Guerra dos Cem Anos (1337-1453), que se deu entre
Inglaterra e França. Em questão estavam o domínio de alguns territórios gálicos e a
sucessão do trono real francês.
Ainda adolescente, Joana recebe de São Miguel Arcanjo a missão de liderar as tropas
dos Armagnac contra os ingleses e os Bourguignons, e de conduzir o filho de Carlos VI e
legítimo herdeiro do trono à coroa real. Diante do jovem príncipe – o qual ela teria
prodigiosamente reconhecido, não obstante o seu disfarce –, Joana manifesta o seu
mandato divino. Depois de interrogada pelos teólogos da corte e comprovadas a sua fé e
idoneidade, o Delfim francês decide confiar na donzela.
Mesmo tendo cumprido a sua missão, porém, Joana foi capturada pelos inimigos, em
1430. Levada ao tribunal da Inquisição e condenada em um processo totalmente inválido,
na diocese de Rouen, ela foi morta, em 30 de maio de 1431, com breves 19 anos de
idade. Ainda no século XV, o Papa Calisto III reviu o processo de Joana d'Arc e reconheceu
a sua nulidade, seja in procedendo, seja in iudicando. A reabilitação total de Joana só
terminou no século XX, quando a mártir foi beatificada por São Pio X, em 1909,
canonizada pelo Papa Bento XV, em 1920, e proclamada padroeira da França, em 1922.
Na história da Inquisição, portanto, constam santos dos dois lados: pessoas que
procederam com prudência e justiça em seu dever de inquiridores – como foi São
Roberto Belarmino († 1621), que parPcipou no processo de Galileu – e pessoas de virtude
que foram condenadas injustamente – caso da valorosa Santa Joana d'Arc. A sua história
mostra que, ao mesmo tempo em que considera os fatos dentro de seu contexto
histórico, a Igreja também não é ingênua a ponto de canonizar tudo o que foi feito pelo
Santo Ofício. Ela está disposta, ainda que seja com dor, a reconhecer as culpas de seus
filhos.
O herege Giordano Bruno. – Apresentado por algumas pessoas como "mártir da ciência",
a história de Giordano Bruno não é nada fácil. O italiano ingressou na Ordem dos
Pregadores muito cedo, mas, por conta de suas ideias heréticas, acabou expulso da vida
religiosa. Giordano era adepto de uma heresia chamada hermetismo, que combinava
crenças pagãs antigas com práticas de magia e alquimia. Para ele, a Igreja Católica deveria
abandonar a Revelação – Giordano Bruno, além de panteísta e crítico ferrenho do clero,
negava todo o depósito da Fé, desde a Trindade até a própria virgindade de Maria
Santíssima – para aderir a essas ideias.
Da Itália, Giordano saiu em peregrinação por vários países da Europa. Tendo vivido na
França, na Suíça, na Inglaterra e na Alemanha, conseguiu apoio para publicar muitas de
suas obras, mas, imerso num estado como que de "suicídio inconsciente", foi expulso de
vários lugares, até voltar ao seu país natal e fixar-se na cidade de Veneza. Aí, denunciado
pelo professor que o contratou, ele foi parar nas mãos da Inquisição Romana, a qual fez
de tudo, durante 8 longos anos de processo, para livrar o contumaz da morte. Giordano
Bruno, no entanto, era irredutível. Não abjurando de nenhuma de suas ideias – as quais
nada tinham de científicas, diga-se de passagem –, ele foi queimado na fogueira, no ano
de 1600.
O caso Galileu. – Indubitavelmente, o processo que julgou Galileu Galilei foi o mais
famoso de toda a história da Inquisição, de tal modo que São João Paulo II pediu que uma
comissão interdisciplinar fizesse um estudo aprofundado sobre a questão, analisando as
controvérsias exegéticas, teológicas e científicas por trás do seu caso. No fim, essa
comissão – que contava com eminentes prelados da Igreja, como o Cardeal Carlo Maria
MarPni († 2012) e o Cardeal Roger Etchegaray – chegou às conclusões que seguem.
Diante da obstinação do astrônomo em defender como certo o que não passava de teoria
– e graças ao seu temperamento forte, que o fez granjear inimigos –, os seus oponentes
entregaram-no ao Santo Ofício. Vale destacar também que a posição de Galileu criava
problemas com a interpretação das Escrituras (questão pungente durante os anos pós-
Reforma): a Igreja entendia, a partir de uma passagem do livro de Josué (10, 13), que diz
que "o sol se deteve", que era o Sol que se movimentava ao redor da Terra. Como não
havia respaldo científico para as afirmações de Galileu, então, ele permaneceu em
silêncio.
Quando, porém, um amigo seu, o Cardeal Maffeo Barberini, assumiu o sólio pontifício,
com o nome de Urbano VIII, Galileu começou novamente a propagar as suas ideias. Desta
vez, nem uma advertência do Papa fez com que ele se calasse. No livro Dialogo sopra i
due massimi sistemi del mondo ["Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo"],
de 1632, ele assinou a sua sentença. O astrônomo colocava na boca de Simplício, a
personagem mais idiota da obra, a tese do Papa Urbano VIII, a saber: a de que o
heliocentrismo não passava de uma teoria. Denunciado novamente à Inquisição, Galileu
foi julgado por São Roberto Belarmino, que pôs um fim à história. O cardeal deixava bem
claro que, enquanto não fossem mostradas provas contundentes da teoria heliocêntrica,
era melhor que fosse tratada como simples hipótese, já que criava um aparente
problema com a exegese de alguns trechos bíblicos. Para o santo, estava bem claro que a
fé e a ciência não se podem contradizer, já que o Deus que Se revela nas Sagradas
Escrituras é o mesmo que Se revela nas verdades acessíveis pela luz da razão. Enquanto
não houvesse respaldo para a teoria de Galileu, porém, era melhor que ele deixasse de
difundi-la.
Uma tese recente joga uma nova luz no caso Galileu, sustentando que a sua adesão ao
heliocentrismo foi, na verdade, a mais branda das acusações que pesavam contra ele [1].
O fato de o astrônomo insinuar que as qualidades dos objetos estavam antes no sujeito
que conhece que nos objetos propriamente ditos, parecia, a muitos teólogos, um
problema para o dogma da transubstanciação. Uma controvérsia nessa seara seria muito
pior para Galileu. Responder somente à acusação de copernicanismo foi, portanto, a
opção de Urbano VIII para "poupar" Galileu de uma retaliação mais severa por parte da
Igreja.
Sobre o padre António Vieira. – Contra António Vieira, o famoso pregador lusitano,
pesavam as acusações de messianismo e milenarismo.
Vieira era adepto de uma lenda ligada ao príncipe Dom Sebastião de Portugal († 1578),
morto durante uma guerra contra os muçulmanos, no norte do Marrocos. Com o seu
desaparecimento, o trono português ficou vacante e as disputas em torno do sucessor de
Sebastião acabaram dando origem à União Ibérica (1580-1640), em cujo intervalo a
Lusitânia permaneceu submissa aos reis espanhóis. A situação política desconfortável
criou nos portugueses um sentimento de insatisfação e, ao mesmo tempo, a esperança
de que D. Sebastião regressaria para devolver a Portugal a sua soberania.
Com o fim da União Ibérica, assumiu o trono português Dom João IV († 1656), fundador
da dinastia de Bragança, o qual substituiu D. Sebastião nas fantasias messiânicas de
António Vieira. De fato, após a morte do rei, o padre teria vislumbrado a sua ressurreição.
Em seu novo reinado, haveria um tempo de paz na terra, sem doenças, nem males, nem
guerras. Essas teses foram escritas em seus livros Clavis Prophetarum ["Chave dos
Profetas"], Esperanças de Portugal, o Quinto Império do Mundo e História do Futuro.
Foi esse o objeto do julgamento do pe. António Vieira, enquanto esteve em Roma. O
sacerdote recebeu algumas punições brandas e, depois, tendo ele próprio feito sua
defesa diante dos inquisidores, voltou reabilitado a Portugal e ao Brasil.
Referências
1. Cf. ARTIGAS, Mariano; MARTÍNEZ, Rafael; SHEA, William R. Nueva luz en el caso Galileo. In:
Anuario de Historia de la Iglesia (Facultad de Teología, Universidad de Navarra), 12 (2003), pp.
159-179.
Bibliografia
ARTIGAS, Mariano; MARTÍNEZ, Rafael; SHEA, William R. Nueva luz en el caso Galileo. In: Anuario
de Historia de la Iglesia (Facultad de Teología, Universidad de Navarra), 12 (2003), pp. 159-179.
GONZAGA, João Bernardino Garcia. A Inquisição em seu mundo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1993.
247p.
Aula 5
A Lenda negra da Inquisição
Com o fim da ditadura de Francisco Franco († 1975) na Espanha e a abertura dos arquivos
do Estado espanhol, iniciou-se um processo de redescoberta da Inquisição, a partir de
suas fontes primárias. Autores como Edward Peters e Henry Kamen, já apresentados
aqui, saíram em busca de documentos originais e chegaram à conclusão de que os
tribunais da Inquisição – seja a medieval, seja a espanhola, ainda que esta mereça alguns
pontos de interrogação – evitaram milhares de mortes. Onde quer que fosse implantada,
a fama da Inquisição era a de ser um tribunal prudente e moderado, sendo que, muitas
vezes, a instituição era inclusive criticada, pelos nobres e pelo povo, por sua excessiva
brandura e complacência.
No século XIX, porém, a visão popular da Inquisição já era bem diferente. Uma novela
gótica intitulada The Monk ["O Monge"], de autoria de Maghew Gregory Lewis († 1818),
dava conta de um interrogatório inquisitorial tenebroso, que acontecia dentro de uma
sala escura, com cortinas cerradas, homens encapuzados, velas acesas, instrumentos de
tortura à mostra e, ao fundo, um grande crucifixo. E, embora nada disso correspondesse
de fato à verdade histórica, foi a imagem que predominou por muito tempo a respeito
dos tribunais do Santo Ofício. Como aconteceu uma mudança tão radical de mentalidade,
com o passar dos anos? Como pôde ser que uma instituição, considerada justa em seu
tempo e, por vezes, até leniente, fosse tratada com tanto rigor e calúnias pelos séculos
posteriores?
...endossada pelos inimigos da Coroa Espanhola... – No século XVI, auge das Grandes
Navegações, a Espanha era a nação mais rica e desenvolvida do planeta. Em tal condição,
o país não deixava de ter seus inimigos, aos quais era muito vantajoso fomentar uma
"leyenda negra" em torno da Inquisição, que, como já vimos, assumiu algumas
peculiaridades em território espanhol. Nos próprios países católicos, havia a imagem de
uma Espanha atrasada e violenta – impressão agravada pelo fato de o Papa mesmo ter
tentado, em vão, conter o tribunal instituído pela Coroa Espanhola.
...e aperfeiçoada pelos iluministas. – Nos anos 1700, a lenda se aperfeiçoou com a
ascensão do Iluminismo. Os pensadores dessa época começaram a ler a história a partir
de seu culto idolátrico à deusa da razão: houve a Idade Antiga, na qual surgiram grandes
filósofos e refulgiu o pensamento racional; um milênio depois, veio a Idade Moderna, a
qual eles inauguraram; e, no meio disso, existiu um período de trevas e obscurantismo, o
qual eles denominaram, maliciosamente, de Idade Média. Nesse intervalo, situava-se "a
Inquisição" – nos passos dos protestantes, os iluministas continuaram a tratá-la como
uma unidade –, responsável por punir as pessoas que ousassem pensar diferentemente
da fé da Igreja.
O filósofo francês Voltaire († 1778), famoso por seu ódio ao catolicismo, foi também
grande propagador da lenda negra relacionada à Inquisição. Em seu famoso Candide,
algumas passagens são dedicadas a alimentar uma visão fantasiosa e pitoresca do
tribunal e dos conhecidos autos-de-fé. Na mesma época, com a publicação de um
"manual de inquisidor" falso – do qual foram intencionalmente omitidos os conselhos de
justiça e prudência, constando apenas trechos relacionados à tortura e à pena de morte –
, o ódio de Voltaire – assim como o dos demais pensadores iluministas – só cresceu mais.
Grande parte de seus esforços se concentrava em destruir a imagem da Igreja, do Papa e
da monarquia francesa, preparando o terreno para a Revolução de 1789.
Fortalecendo o mito. – Criado o mito da Inquisição, a literatura ficou responsável por dar-
lhe os últimos retoques, principalmente por meio das novelas góticas do período
romântico.
É desta época o livro Don Karlos ["Dom Carlos"], do autor alemão Friedrich Schiller (†
1805), que pinta a figura de Dom Carlos de Espanha († 1568), filho de Filipe II, como um
príncipe jovem e aventureiro, apaixonado por sua madrasta, Isabel de Valois. Ao mesmo
tempo em que procurava concretizar esse seu "amor impossível", o Príncipe das Astúrias
teria se rebelado contra o seu pai, porque este queria implantar a Inquisição nos Países
Baixos. O mito de Dom Carlos libertador e inimigo da Inquisição cruel foi adaptado para a
ópera por Giuseppe Verdi († 1901) – os fatos reais, porém, passavam longe dessas
fantasias.
Do século XIX, o conto The Pit and the Pendulum ["O Poço e o Pêndulo"], de Edgar Allan
Poe († 1849), descreve, do começo ao fim, os sofrimentos de um réu nas mãos da
Inquisição Espanhola. Ao fim da história, chega o exército francês para trazer-lhe a
liberdade.
A resposta está no ódio do homem moderno à religião. A história do Santo Ofício – bem
como de toda a era medieval – mostra como não é possível governar um povo sem Deus.
Quando Ele é destronado, funda-se a religião do próprio homem, que passa a ser a
medida de todas as coisas. Em termos práticos, portanto, não há "Estado laico". Tirado
Deus do centro de gravidade, é o ser humano quem assume o seu lugar,
institucionalizando a idolatria de si próprio.
A Igreja Católica não advoga que a religião deva ser imposta pelo Estado a toda a
população. Ela tem consciência de que "crer é ato da vontade" e de que não se pode
obrigar ninguém a aceitar a fé pelo uso da força. Contudo, em seu impulso missionário,
ela não pode deixar de irradiar a luz de Cristo para toda a sociedade, especialmente para
os chefes do povo. A aceitação do Evangelho, por si só, poria limites ao poder dos
príncipes, que, submissos ao Todo-Poderoso, teriam as suas pretensões de domínio
convenientemente moderadas.
o KAMEN, Henry. The Spanish Inquisition: A Historical Revision. 4. ed. Yale University Press,
2014. 512p.
o PETERS, Edward. Inquisition. University of California Press, 1989. 368p