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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Escola de Ciência Política


Curso de Ciência Política

William Bueno Rebouças

Autonomia e Mobilização:
Por uma estratégia alternativa para os movimentos sociais

Rio de Janeiro
2014
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Escola de Ciência Política
Curso de Ciência Política

William Bueno Rebouças

Autonomia e Mobilização:
Por uma estratégia alternativa para os movimentos sociais

Monografia apresentada à Escola de Ciência


Política da UNIRIO como requisito parcial à
obtenção do grau de bacharel em Ciência
Política.

Orientador: Prof° Dr. José Paulo Martins Júnior

Rio de Janeiro
2014

ii
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Escola de Ciência Política
Curso de Ciência Política

Apresentado em 26 de Fevereiro de 2014:

Banca Examinadora:

Prof. Dr. José Paulo Martins Júnior

Prof. Dr. João Roberto Lopes Pinto

Prof. Dr. Luiz Augusto Campos

Rio de Janeiro
2014

iii
Agradecimentos

Agradeço ao professor José Paulo Martins Júnior por todo apoio e experiência
fornecidos durante dois anos de pesquisa, sem os quais não conseguiria desenvolver os
pensamentos e métodos aqui expostos. Agradeço também ao professor Luiz Otávio
Barreto pela ajuda fornecida com diversas obras aqui utilizadas.

Devo agradecer ainda ao Fernando e ao José Guajajara pela confiança e atenção


depositada na entrevista que realizamos para esta monografia, a qual se mostrou, não
somente esclarecedora como também prazerosa.

Agradeço à minha mãe Denise (que tanto escutou minhas apresentações), a meu pai
Rômulo, a meu irmão Vinícius e a meu amigo e jornalista Alex Campos, pelo apoio
fornecido nesses quatro anos de faculdade, sem o qual certamente não conseguiria cursá-
la.

Agradeço a minhas companheiras e companheiros da turma Emiliano Zapata (2009.2)


e, em especial, a Rodrigo Barenco e Diego Principe, os quais muito contribuíram em
inúmeras discussões com praticamente tudo o que aqui será exposto.

Por fim devo agradecer à minha amiga e companheira Joyle Moreira por ter lido e
relido esta monografia diversas vezes, me auxiliando no que foi preciso.

Obrigado.

iv
Dedicado a todas e todos que lutam cotidianamente por um mundo melhor.

v
Resumo

A compreensão de formas alternativas de mobilização social autônoma faz-se


essencial para os Movimentos Sociais populares em sua busca por mudar, com seus
próprios meios, a realidade social de seus membros e à sua volta. Esse tipo de mobilização
é especialmente importante para movimentos sociais que lidam com governos
repressores e fechados ao diálogo, assim como para os que lidam com governos
progressistas que procuram cooptá-los. Para atingi-la, a questão que deve ser confrontada
é: Como os Movimentos Sociais podem alterar a realidade social independentemente do
Estado e dos partidos políticos. Assim, veremos algumas formas de analisar tais lutas,
como, por exemplo, através dos conceitos providos pela teoria anarquista, das dinâmicas
e ferramentas fornecidas pelas teorias dos Movimentos Sociais, e pela compreensão
estruturalista de Pierre Bourdieu. Pretende-se, ao final da investigação, verificar de que
forma essas teorias podem auxiliar na leitura da realidade para os Movimentos Sociais.

Palavras-Chave: Anarquismo; Confronto Político; Estruturalismo; Movimentos Sociais.

Abstract:

The comprehension of the ways for autonomy social mobilization becomes essential
for the grass-roots social movements on their seek to exchange, with their own means,
the social reality of their members and in general life. This form of mobilization is
especially important for those social movements that get along with repressive and closed
governments, or with progressive governments who aim co-opt them. To reach that, the
question that has to be faced here is: How the Social Movements can exchange the social
reality independently of the State and the political parties. On this way, we’re going to
observe some methods for analyze theses struggles, like, for example, through the
concepts provided by the anarchist theory, the dynamics and the analysis instruments
supplied by the theories of the Social Movements, and by the structuralist comprehension
of Pierre Bourdieu. The final objective is to check how theses theories can aid the
understanding of the reality for the Social Movements.

Key-words: Anarchism; Contentious Politics; Structuralism; Social Movements.

vi
SUMÁRIO

1. “Um outro mundo é possível” Pág. 8


1.1 Introdução Pág. 8
1.2 Metodologia Pág. 10
1.3 Justificativa Pág. 12

2. Anarquia Pág. 13
2.1 Contexto Histórico Pág, 13
2.2 Autogestão Pág. 17
2.3 Autonomia Pág. 19
2.4 Revolução Social Pág. 23
2.5 Sociabilidade Libertária Pág. 25

3. Confronto e Movimento Pág. 28


3.1 Teorias dos Movimentos Sociais Pág. 28
3.2 Confronto Político Pág. 30
3.3 Sociedades em Movimento Pág. 34

4. Mobilização, Agência e Estrutura Pág. 40


4.1 Estruturalismos Pág. 40
4.2 A dominação estrutural em Bourdieu Pág. 42
4.3 Agentes Estruturantes Pág. 46

5. Direito à Cidade Pág. 51


5.1 A cidade como locus da luta política Pág. 51
5.2 Universidade-Aldeia Maracanã Pág. 55

6. Conclusões Pág. 62

Referências Pág. 66

vii
1. “Um Outro mundo é possível”.
“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de
caminhar.”
(Eduardo Galeano – A Utopia)

1.1 Introdução

Com a derrota do socialismo real no começo dos anos 90 e o consequente


fortalecimento do neoliberalismo no mundo, os movimentos sociais perderam o
referencial teórico que mantinha o foco das lutas numa mudança mais abrangente
(passando para questões mais pontuais como: cidadania coletiva, exclusão social e
globalização ou mundialização; GOHN, 2008), o qual, desde a revolução russa de 17 era o
marxismo. Dessa forma, o fim do século XX foi marcado por uma crise nas utopias
clássicas, onde o capitalismo - marcado pela flexibilização e precarização - mostrava-se
como única realidade possível e, portanto, inevitável. Porém, a primeira década do século
XXI mostrou que tal pensamento era extremamente frágil, e não só o capitalismo se
mostrou novamente falho, em uma nova crise cíclica, como a inevitabilidade deste caiu
por terra, devolvendo a possibilidade de ousar utopias sociais aos novos movimentos
sociais (Idem).

O século XXI assistiu a outros tipos de revoltas e insurreições, assim com o surgimento
de temas novos e o ressurgimento de questões não resolvidas. O ciclo de protestos contra
a globalização neoliberal surgiu no fim dos anos 90, sob a nomenclatura de
Altermundialismo, atuando por redes globais e afirmando que “um outro mundo era
possível”, deixou a marca de grandes mobilizações como em Seattle, 1999 e Gênova, 2001
(GOHN, 2002). A luta contra o neoliberalismo ainda deu origem ao Exército Zapatista de
Libertação Nacional, que desde 1994 luta pela emancipação de comunidades indígenas
mexicanas, e pode ser visto como um exemplo bem-sucedido de mobilização autônoma.

Ainda no México, o levante de Oaxaca (2006) representa uma mobilização exemplar


de todo um povo contra as corrupções e o autoritarismo de seu governo. O que era uma
manifestação dos professores contra a precária situação de ensino se transformou numa
insurreição por todo o estado de Oaxaca, e por fim, numa mobilização internacional contra
os abusos ali cometidos. Neste evento, cidadãos comuns, sem contatos habituais com a
política, atuaram num grande processo de mobilização local, resultando em ocupações,

8
autogestão de meios de comunicação e organização de defesa nas ruas, contra a polícia e
paramilitares1.

Uma outra expressão marcante de descontentamento foi o “Ocuppy Wall Street”,


iniciado nos Estados Unidos em 2011, e influenciando o mundo inteiro em sua luta contra
a especulação imobiliária e as crises econômicas geradas pela busca incessante de lucro
por parte dos grupos econômicos. Sob tal contexto de crise, a Europa viveu e vive sob
incessantes mobilizações que ainda bebem das influências do ciclo de protestos
altermundialistas.

Por fim, as jornadas de Junho e as mobilizações atuais trazem o Brasil para o foco das
movimentações de rua. Devemos lembrar, no entanto, que além das mobilizações
ocorridas neste último ano (marcadamente sob o uso do repertório de movimentação
chamado “Black Bloc”, do ciclo de protestos anterior), a centralidade das mobilizações
ainda se encontram na luta de Movimentos Sociais de Base, que ganham cada vez mais
expressão.

Dessa forma, um esforço para entender os novos movimentos sociais, não-


estadocêntricos, em sua luta autônoma (já que em diversas circunstâncias não encontram
apoio, nem do Estado, nem dos principais partidos políticos), por melhores condições de
vida e bem-estar para os seus membros, faz-se extremamente necessário. A busca, não só
por uma leitura político-social que facilite sua mobilização, mas também, por uma que a
situe numa estratégia maior, ligada a outros movimentos sociais, torna-se vital.

Assim, os movimentos e mobilizações citados mesclam em seus repertórios de ação,


tanto características de Desobediência Civil, buscando alterar o comportamento de seus
governos e de suas leis nacionais, quanto características de Ação Direta, visando a
construção de novas sociabilidades e realidades sociais. A preocupação com o
entendimento neste trabalho está focada no segundo elemento, a Ação Direta.

Para entendê-la devemos incluí-la em seu contexto ideológico, o Anarquismo, que nos
traz ainda outros conceitos centrais ao tema, como: Autonomia, Autogestão, Democracia
Direta, Poder Popular, Política pré-figurativa, Revolução Social etc. Dessa forma, cada vez
mais vivemos sob uma realidade marcada pela desigualdade social e autoritarismo estatal,
e o que estes movimentos representam é, precisamente o repúdio e a revolta à forma
disciplinada e controlada em que vivemos nos dias de hoje.

1
Para informações mais completas sobre o levante popular em Oaxaca assistir o documentário: “Un poquito
de tanta verdad”, dirigido por: Jill Irene Freidberg. Eua-México, 2007.

9
Portanto, há dois movimentos simultâneos que devem ser compreendidos como
alternativas para a forma como vivemos na Alta Modernidade. Primeiro, a luta contra o
capitalismo e contra o autoritarismo estatal, num processo de contestação das
autoridades, sejam elas econômicas ou políticas; e segundo, a construção de outras formas
de sociabilidades possíveis, principalmente através da autogestão dos recursos disponíveis,
como alternativa à que vivemos. Dessa forma, é sobre essa construção e mudança da
realidade social que trataremos aqui, sob o ponto de vista dos Movimentos Sociais.

A pergunta a ser respondida, portanto, é de que forma os movimentos sociais podem


alterar a realidade social de forma autônoma em relação ao Estado e aos Partidos
Políticos.

1.2 Metodologia
Ao pretendermos um estudo sociológico visando conhecimento para os socialmente
oprimidos, devemos ter o cuidado de não perpetuar as formas de dominação e controle
simbólicos, e assim, as hierarquias impostas na sociedade em que vivemos. Dessa forma, o
“radicalismo epistêmico” de Bourdieu (1994, p. 92), se faz central pra ressaltarmos a
natureza do pensamento sociológico e o fim que lhe é característico, a imposição estatal
de formas particulares de visão e divisão.

Dessa forma, Bourdieu nos afirma que:

“As verdadeiras revoluções simbólicas são, sem dúvida, aquelas que, mais do que
o conformismo moral, ofendem o conformismo lógico, desencadeando a repressão
impiedosa que suscita tal atentado contra a integridade mental” (Ibidem, p. 93).

E ainda:

“Poderíamos multiplicar os exemplos de casos semelhantes, nos quais os efeitos


das escolhas do Estado foram tão completamente impostos à realidade e aos espíritos
que as possibilidades inicialmente descartadas (por exemplo, um sistema de produção
doméstica de eletricidade, análogo ao que existe para o aquecimento) parecem
totalmente impensáveis” (Ibidem, p. 94).

Dessa forma, devemos ter o cuidado de, ao utilizarmos os instrumentos providos pela
sociologia e pela ciência política, não pensarmos pelo Estado e pelas categorias de
pensamento que Este nos inculca, mas antes, pôr em constante dúvida (o que o autor
chama de “dúvida radical”, Ibidem, p. 95) a finalidade do que estamos produzindo.
Portanto, o estudo aqui proposto não visa tratar os Movimentos Sociais como objeto e
analisá-los em suas minúcias, mas sim, produzir um conhecimento que seja utilizável para
estes, em sua luta como sujeitos políticos.

10
Outro ponto importante: para que seja possível essa utilização para além da academia
é necessário que as produções providas por esta não se fechem, através de sua linguagem
específica, ao público interno da sociologia ou da ciência política. É necessário fugir de
uma espécie de linguagem-barreira que diversos textos acadêmicos produzem ao tentar
tornar demasiadamente complexas explicações sobre questões simples. Dessa forma,
precisamos romper com essa especialização exacerbada e tornar tais questões acessíveis,
em sua explicação, às pessoas que sofrem mais diretamente as consequências dos
problemas mencionados. Nas palavras de Chomsky:

“Uma das coisas que os intelectuais mais fazem é justamente tornar essas
questões inacessíveis, por várias razões, inclusive por razões de dominação e de
interesse pessoal. É muito natural para os intelectuais fazerem as coisas simples
parecerem difíceis. [...] muitos jovens militantes sentem-se simplesmente intimidados
pelo jargão incompreensível que vêm dos movimentos intelectuais da esquerda,
impossível de entender e que faz com que as pessoas sintam que não podem fazer
nada porque, a não ser que de algum modo entendam a última versão pós-moderna
disso e daquilo, não podem sair às ruas e organizar as pessoas, pois não são
suficientemente inteligentes”. (CHOMSKY, 2001, p. 102 e 103).

Dessa forma, não se trata de abandonar os instrumentos providos pela sociologia e


pela ciência política, mas antes, utilizá-los de forma inclusiva, para que estes, não
imponham uma realidade social às pessoas, mas antes, forneçam meios para estas a
compreenderem e verificarem suas próprias possibilidades de alteração social. É
importante, portanto, romper com um poder-saber2 que confere demasiado por ao
especialista e torna o público leigo extremamente fragilizado para agir.

Para atingir as metas até aqui traçadas tratarei no próximo capítulo, “Anarquia”, dos
principais conceitos que nortearão à mobilização autônoma e a sociabilidade libertária
que citei aqui. Na terceira parte do trabalho, chamada “Confronto e Movimento”,
apresentarei de forma sucinta a evolução das teorias dos movimentos sociais, atentando
para a importância das teorias: do Confronto Político, desenvolvida por Sidney Tarrow,
Doug McAdam e Charles Tilly, e das Sociedades em Movimento, de Raúl Zibechi, para dar
conta da explicação sobre movimentos sociais autônomas, em sua construção de “outros
mundos” (ZIBECHI, 2007, p.23).

Em seguida, na quarta parte, intitulada: “Mobilização, Agência e Estrutura”, abordarei


o estruturalismo de Pierre Bourdieu para situar a luta dos Movimentos Sociais em sua
Teoria dos Campos, e apresentar questões que vão para além dos agentes, localizadas na

2
A ideia de poder-saber está diretamente vinculada ao pensamento foucaultiano, em sua preocupação com a
produção da Verdade, permitida pelos mecanismos de poder e que, em contrapartida, produzem “efeitos de
poder que nos unem, nos atam”. (FOUCAULT, 2003, p.229).

11
estrutura do sistema político. Neste mesmo capítulo, tentarei mostrar as possibilidades de
pensar as questões colocadas no debate estruturalista sob a ótica dos agentes, visando a
mudança social.

Por fim, na última parte: “Direito à Cidade”, apresentarei situações e dilemas da


mobilização autônoma no Rio de Janeiro, aplicando os pontos de vista e conceitos aqui
explicitados, de forma a verificar sua utilidade para estes movimentos sociais urbanos,
tomando como exemplo a mobilização pela Universidade-Aldeia Indígena Marakà ànànà,
percebido através de entrevista realizada com o guerreiro Urutau, conhecido como José
Guajajara. A intenção é utilizar todas essas teorias de forma complementar e trabalhar
suas questões e implicações relevantes para os movimentos sociais e sua mobilização.

Assim, o estudo proposto se distancia de certa forma do modelo de pesquisa Intensiva


que estamos acostumados, pela cultura positivista forte nas Ciências Humanas
(BOURDIEU, 1989). Pretendo aqui, mesclar uma apreensão extensiva obtida com a
apresentação de algumas correntes de pensamento, com uma aplicação intensiva,
utilizando-as simultaneamente para explicar um evento concreto no último capítulo.

1.3 Justificativa
A necessidade de se estudar contextos ligados aos Movimentos Sociais se faz
importante dentro da Ciência Política pela precária abertura que esta possui em relação a
termos da Sociologia Política. Podemos dizer que a Ciência Política é uma ciência
estadocêntrica, apesar da Política não estar somente relacionada ao Estado. Nos fechando
para outros debates, perdemos de vista formas de atuação e resistência política ao
priorizamos as formas de poder (e saber) monopolizadas pelo Estado.

Por sua vez, o estudo do Anarquismo se faz importante num contexto acadêmico
extremamente debilitado para explicar mobilizações sociais que não visam à tomada do
poder Estatal. Basta lidarmos com algumas experiências de mobilização que não são
explicáveis por teorias estadocêntricas para ficarmos completamente perdidos em sua
explicação (caso dos Black Blocs).

Por fim, a escolha do objeto e das teorias selecionadas se deu por contato pessoal em
diversas vivências que pude realizar durante o tempo de graduação. O tema dos
Movimentos Sociais em vivências relacionadas ao Estágio Interdisciplinar em áreas
destinadas à Reforma Agrária (EIV), o Anarquismo em vivências de participação pessoal –
principalmente no Ocupa Câmara e com a “Cambada de Teatro em Ação Direta Levanta
Favela” em Porto Alegre – ou seja, em atividades ligadas diretamente à ideia de
Propaganda pela Ação, que será citada mais a frente, e, por fim, a escolha pela teoria
sociologia de Bourdieu pela vivência obtida na Universidade.

12
2. Anarquia
“Nem a hereditariedade, nem a eleição, nem o sufrágio universal, nem a excelência
do soberano, nem a consagração da religião e do tempo fazem a realeza legítima. Sob
qualquer forma que se apresente monárquica, oligárquica, democrática, a realeza ou o
governo do homem pelo homem, é ilegal e absurdo”.

(Pierre-Joseph Proudhon, 1975, p. 237)

2.1 Contexto Histórico

O termo anarquismo possui sua origem na palavra grega “an archos”, traduzida
literalmente por “sem governo”, e foi utilizada pela primeira vez com conotação pejorativa,
sendo sinônimo de bagunça ou de desordem. Assim foram apontados os Levelers durante
a Guerra Civil Inglesa, e os que se situavam à esquerda no espectro político durante a
Revolução Francesa (WOODCOCK, 1967).

O primeiro autor a se afirmar anarquista, e, portanto, a reivindicar uma conotação


positiva ao termo foi Pierre-Joseph Proudhon, em sua obra “O que é a propriedade?”, em
1840:

“Que forma de governo vamos preferir? - Eh! Podeis perguntá-lo, responde, sem
dúvida, algum dos meus leitores mais novos; sois republicano. - Republicano sim; mas
essa palavra nada precisa. Res publica, é a coisa pública; ora quem quer que queira a
coisa pública, sob qualquer forma de governo que seja, pode dizer-se republicano, Os
reis também são republicanos. Pois bem! sois democrata? - Não. - Quê! sereis
monárquico? - Não. - Constitucionalista? - Deus me livre. - Sois então aristocrata? -
Absolutamente nada.

Quereis um governo misto? - Ainda menos. - Então que sois? - Sou anarquista. Estou
a ouvir-vos: estais a brincar; dizeis isso dirigido ao governo. -De maneira nenhuma:
acabais de ouvir a minha profissão de fé séria e maduramente reflectida”. (Pierre-
Joseph Proudhon, 1975, p. 234).

Assim, através de tal obra e tal afirmação, Proudhon deu vida e corpo à concepção
moderna do que conhecemos hoje como Anarquismo, não como algum tipo de desordem
generalizada, mas como uma forma de ordem social livre, onde as relações interpessoais
estivessem baseadas no princípio da liberdade. Porém, apesar da explicitação de um
sistema calcado em proposições racionais e bem delineado, o termo anarquismo
continuou a conviver, até os dias de hoje, com sua utilização pejorativa, criando grandes
confusões no que as pessoas acreditam e afirmam ser tal ideologia.

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Proudhon teve suas ideias influenciadas tanto pelo racionalismo iluminista, quanto
pela atmosfera de revoltas e tentativas socialistas de revolução do século XIX,
apresentando uma perspectiva bastante diferenciada em relação às propostas
revolucionárias de seus contemporâneos. Podemos retroceder ainda mais e encontrar
raízes do pensamento libertário em William Godwin e em Gerrard Winstanley, figura
influente no movimento dos Diggers na Inglaterra do século XVII3 (WOODCOCK, 1967).

O mutualismo, projetado por Proudhon, considerava a propriedade privada como “um


roubo” (PROUDHON, 1975, p. 11), especialmente por sua capacidade de privar os demais
daquilo que lhes é vital, o trabalho. Mutualismo este que previa a posse dos recursos do
trabalho pelos próprios trabalhadores, em seu direito de ocupação, como algo inevitável,
já que a propriedade não poderia continuar se sustentando artificialmente com a extensão
e desenvolvimento dos outros direitos:

“Tarde ou cedo, a conversão efectuar-se-á e a propriedade será violada, porque é


impossível acontecer outra coisa e porque a propriedade, considerada como um
direito sem o ser, deve perecer pelo direito; porque a força das coisas, as leis da
consciência, a necessidade física e matemática devem destruir esta ilusão da nossa
faculdade judiciária” (Ibidem, p. 43).

E ainda:

“É preciso que a sociedade pereça ou então que elimine a propriedade” (Ibidem, p.


44).

Assim, através da posse dos instrumentos de trabalho seria gerada uma igualdade de
condições, já que eliminados o lucro e a renda obtidos pelo proprietário, os trabalhadores
terão seu esforço convertido diretamente em valor de troca, e, portanto, em igual
proporção. A partir da equivalência dos produtos, o benefício desproporcional, a miséria, o
luxo, a opressão e a fome serão impossíveis e desaparecerão.

Além da crítica à propriedade, Proudhon toma todo o governo do homem pelo


homem como injusto, como podemos observar no prólogo deste capítulo. O autor nos
apresenta uma dialética serial, onde não há um terceiro termo como na dialética
hegeliana. A sociedade é baseada em dois princípios, o da autoridade e da liberdade. O
primeiro está completamente enraizado em nosso cotidiano e em nossas formas de
pensar, e a sua realização é o Estado. O segundo é a negação da autoridade, e sua
realização é a Anarquia (AVELINO, 2012).

3
Podemos ainda situar outros autores como precursores do pensamento libertários, entre eles os teóricos do
Cinismo, do Estoicismo e do Taoísmo, assim como outros autores como Etienne La Boétie. Ver
WOODCOCK, 1967, p. 4.

14
Assim, através de uma demonstração serial (ver Ibidem, p. 195), Proudhon nos afirma
que, apesar das diversas variações de tipos de governo, não há uma perspectiva evolutiva
clara neste processo, sendo tais formas de governo variações do mesmo princípio, o da
Autoridade. Assim, a dualidade de tal perspectiva não encontra uma unidade na síntese,
mas antes, encontra-se em relações de negação, e a liberdade só pode encontrar sua plena
realização sob a Anarquia, ou seja, sob a federação de produtores e consumidores.

O federalismo de Proudhon surge mais claramente em sua obra “Do princípio


federativo”, em 1863, no qual o autor não mais propõe a destruição do Estado, mas sim
sua limitação pelo princípio federalista, que basicamente, trata da autonomia dos
agrupamentos e associações, assim como das comunas:

“O que faz a essência e o caráter do contrato federativo, e para o qual chamo a


atenção do leitor, é que neste sistema os contratantes, [...] não somente se obrigam
sinalagmática e comutativamente uns em relação aos outros, como se reservam
individualmente, formando o pacto, mais direitos, liberdade, autoridade, propriedade,
do que o que abandonam” (PROUDHON, 2001, p. 90).

Pois:

“Todo o compromisso, mesmo sinalagmático e comutativo, que, exigindo dos


associados a totalidade dos seus esforços, não deixa nada à sua independência e os
devota por inteiro à associação, é um compromisso excessivo, que repugna igualmente
ao cidadão e ao homem” (Idem).

Se Proudhon deu origem à concepção moderna de Anarquismo, certamente, foi


Mikhail Bakunin que levou suas ideias a um outro patamar, dando maior acabamento aos
seus conceitos e radicalizando suas premissas. Proudhon travou uma verdadeira batalha
ideológica no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores com um antigo aliado
seu, Karl Marx. Porém foi Bakunin que levou tal disputa a uma clara cisão entre os
socialistas que buscavam a Revolução através do controle estatal e aqueles que lutavam
por uma verdadeira Revolução Social.

O coletivismo de Bakunin previa, assim como Proudhon, o controle dos instrumentos


e local de trabalho pelos próprios trabalhadores, porém, com uma maior ênfase na
produção coletiva. A emancipação dos trabalhadores viria através da Revolução Social e da
subseqüente organização livre e federativa das fábricas, comunas, cantões, nações etc. O
que se chocava com a presença de qualquer estrutura hierárquica que pudesse controlar
tal espontaneidade na organização dessas associações horizontais.

15
O desafio que Bakunin trouxe aos marxistas e que foi muito bem formulado em sua
obra “Estatismo e Anarquia”, de 1873, foi basicamente em relação à possibilidade da
criação de um Estado popular, ou de uma ditadura do proletariado:

“Sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se
ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares se
faz por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-
á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem
governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e pôr-se-ão a
observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a
si mesmos e suas pretensões de governá-lo” (BAKUNIN, 2003, p. 213).

Ou seja, todo governo é sempre composto por uma minoria, independentemente de


sua classe de origem, a qual é responsável por tomar decisões pela imensa maioria da
população. De tal forma que a população não pode ser livre, e não pode ter seus
interesses objetivados, pois, tal minoria, a partir do momento que se torna reinante, não
pode mais compartilhar dos interesses dos subjugados. E ainda, se tal Estado fosse
realmente popular e justo, por que deveria - e como - ser suprimido, após ter cumprido
sua missão?

Os adeptos de Bakunin, que diferentemente dos mutualistas - ou proudhonianos -,


agora se autointitulavam anarquistas e representavam clara obstrução para os interesses
dos marxistas na AIT. Tal situação fez com que os membros do Conselho Geral, com grande
influência de Karl Marx, que o compunha, expulsassem Bakunin durante o Congresso de
Haia, em 1872. Grande parte dos membros espanhóis, italianos, eslavos e suíços
francófonos deixaram esta organização após o fato e a AIT chegou a seu fim quatro anos
depois do ocorrido.

O próximo salto qualitativo dado pela corrente anarquista foi realizado pela
constituição do Anarquismo-Comunismo, que encontrou em Piotr Kropotkin um grande
expoente. As contribuições que diferenciaram o Anarquismo-Comunismo do Coletivismo
foram: em primeiro lugar, a mudança do foco da Autogestão das fábricas e locais de
trabalho para a Autogestão pela e para a Comunidade local; e em segundo lugar, a
substituição do lema “de cada um pelo seu trabalho” para “de cada um de acordo com
suas necessidades” (KROPOTKIN, 1953, p. 14 e 15).

Dessa forma, segundo o Anarquismo-Comunismo, todo trabalho é coletivo, pois


mesmo o mais particular dos trabalhos precisa da complementação de outros
provenientes da comunidade, como alimentação, transporte, saúde etc. O que acontece
na sociedade atual é que os frutos deste trabalho coletivo são usufruídos por uma minoria,

16
a qual passa a esbanjar e a ostentar riquezas, as quais grande parte dos trabalhadores que
estão diretamente ligados à produção coletiva não possui.

O que o Anarquismo-Comunismo propõe é a Expropriação, e, portanto, a


reapropriação do trabalho coletiva pela Comunidade, de forma que todos os que, em
condições possíveis, contribuem com a produção coletiva (através do que o autor chama
de quota parte) possam usufruir o Bem-estar que necessita:

“Sendo os meios de produção obra coletiva da humanidade, devem regressar à


coletividade humana. A apropriação pessoal não é justa nem proveitosa. Tudo é de
todos, visto que todos precisam de tudo, visto que todos têm trabalhado na medida
das suas forças, e que é materialmente impossível determinar a parte que poderia
pertencer a cada um na produção atual das riquezas” (Ibidem, p.7).

E, portanto:

“O que nós proclamamos é o – O DIREITO AO BEM-ESTAR – O BEM-ESTAR PARA


TODOS” (Ibidem, p. 8).

A mudança de foco do local de trabalho para a comunidade possibilita uma harmonia


maior com a coletividade e afasta a ameaça de gerar grandes monopólios autogeridos, e
ainda, vai de encontro com a possibilidade de que se restabeleça o trabalho assalariado
num momento pós-revolucionário. Assim, as ideias de Autogestão e de Revolução Social
adquirem novas roupagens e enfoques, como veremos nas próximas sessões.

Em seu grande apogeu, nas últimas décadas do século XIX, o Anarquismo ainda foi
responsável pelo aparecimento de novas fortes vertentes como o Anarco-Sindicalismo e o
Anarco-Individualismo. A primeira se trata, basicamente, de tomar os sindicatos operários
como sujeitos responsáveis pelo surgimento da futura sociedade livre, e a ação direta, por
meio da greve, como forma de sabotar e parar o Estado. Com o Estado paralisado, os
sindicatos se transformariam, de sujeitos revolucionários, para unidades básicas da nova
sociedade (WOODCOCK, 1967). Entre seus principais expoentes esteve Rudolf Rocker.

O Anarco-Individualismo, por sua vez, teve como um de seus maiores autores Max
Stirner, em sua maior obra “O único e sua propriedade”, afirmou a perspectiva da absoluta
independência do Ego em relação à sociedade e aos outros Egos. A grande contribuição
dessa corrente foi demonstrar que não só o Estado é fonte de injustiças, mas também,
todo tipo de “dominação”, como o heterocentrismo, o patriarcado, o racismo, o especismo
etc. (GORDON, 2005, p. 72).

A partir de tal corrente, outras críticas foram concebidas, como a proveniente do


Anarcafeminismo, com autoras como Emma Goldman, nos Estados Unidos e Maria Lacerda

17
de Moura, no Brasil4, enfatizando, basicamente, a luta da mulher contra o regime de
dominação do patriarcado e toda forma de machismo na sociedade. O
anarcoindividualismo ainda foi influente sob o princípio do insurreicionismo ligado a ações
individuais, particularmente, o magnicídio.

Durante o fim do século XIX, alguns grupos anarquistas, como os ligados ao ilegalismo,
promoveram diversos ataques a monarcas e burgueses como forma de propaganda pela
ação, o que levou o Anarquismo a ser tomado como sinônimo de nihilismo5 e de
terrorismo, contribuindo para a conotação negativa do termo. Com a virada do século XX,
o Anarquismo continuou sendo a corrente mais influente na esquerda em países como
Espanha, Itália, França, na América Latina e nos países eslavos, se apresentando como
motor ideológico de diversos movimentos no início deste século, como a Revolução
Mexicana de 1910, como maior exemplo da época.

Tal situação foi completamente alterada com a revolução russa em 1917. Com a
subida ao poder dos Bolsheviks, o Anarquismo sofreu dois golpes substanciais: primeiro, a
grande perseguição ocorrida dentro da Rússia, em suma, nos sovietes, sindicatos, na
revolta em Kronstadt, e na aniquilação da confederação Nabat e do exército negro de
Makhno, na Zona Livre da Ucrânia (situação descrita em ROCKER, 2007). O segundo golpe
ocorreu com a vitória ideológica do Marxismo, e principalmente do Marxismo-Leninismo,
na esquerda, que conquistou a hegemonia nesse espectro ideológico até os dias de hoje.

A última grande aparição do Anarquismo aconteceu durante a Revolução Espanhola


de 1936. Nesta, a corrente ácrata demonstrou sua possibilidade de concretização efetiva,
quando cidades das regiões de Catalunha, Andaluzia e Aragão foram completamente
autogeridas por seus trabalhadores, satisfazendo grande parte dos ideias Anarquistas na
prática6. Durante a Revolução, porém, houve um grande processo de centralização por
parte do Partido Comunista Espanhol, controlado pela Rússia estalinista, o qual restituiu a
polícia e a centralização militar, perseguindo e prendendo as principais figuras anarquistas,
e fechando seus principais jornais e sedes.

Dessa forma, o Anarquismo deixou de ser uma das principais correntes políticas, como
fora na metade do século XIX e início do século XX, e voltou a ser sinônimo de desordem,
acumulando também acusações de terrorismo e inviabilidade, o que fez com que tal
corrente caísse no esquecimento durante boa parte do século XX.

4
Para mais informações sobre Maria Lacerda de Moura, ver: “Maria Lacerda de Moura – Trajetória de uma
rebelde”. Direção: Ana Lúcia Ferraz e Míriam Moreira Leite. Realização: LISA-USP (2003).
5
Ver: WOODCOCK, 1962, p. 15.
6
Para maiores informações sobre o anarquismo na Revolução espanhola, ver: Livros, “Lutando na Espanha”
George Orwell - 1938, “A guerra civil espanhola” Francisco Salvadó – 2008. Filmes e documentários: “Terra
e Liberdade” 1995, “A mulher do Anarquista” 2008 e “Libertárias” 1996.

18
2.2 Autogestão
A ideia de Autogestão dos meios de produção não é uma exclusividade da linha de
pensamento anarquista, como nos mostra a abordagem liberal do tema, apresentada por
Robert A. Dahl em “Prefácio à Democracia Econômica” (2003). O autor apresenta um
modelo de autogestão de empresas como alternativa ao capitalismo de sociedades
anônimas, que tanto provoca distorções na Igualdade Política e afeta a participação e a
qualidade da Democracia Representativa (DAHL, 2003).

Podemos comparar tal concepção com a forma que o coletivismo de Bakunin aborda a
ideia de Autogestão para verificarmos suas qualidades e defeitos sob a óptica anarquista. A
maior diferença entre tais linhas de raciocínio está em suas concepções de Democracia.
Bakunin fornece seu modelo autogestionário pensando na participação direta dos
trabalhadores, não só em seu local de trabalho, como nos assuntos sociais mais amplos.
Tal modelo propõe processos decisórios construídos de baixo para cima, e da periferia para
o centro, através do Federalismo, portanto, sem a existência de um Estado.

Já o modelo de Dahl não pressupõe a supressão do Estado, mas antes, procura “a


extensão do processo democrático às unidades econômicas” (Ibidem, p. 55), afirmando
que a diferença na propriedade no controle das empresas implicam:

“Desigualdades de muitos tipos: em estima, respeito, status no controle da própria


vida diária, em renda e riqueza, e em todas as oportunidades a elas vinculadas, e nas
oportunidades de vida de adultos e crianças” (Ibidem, p. 13).

Portanto, o autor procura aumentar a participação dos trabalhadores (liberdade


econômica) nos locais de trabalho para garantir-lhes maior igualdade política, atacando o
problema da falta de participação e da alienação. A igualdade política, por sua vez, se trata
de: “igualdade entre cidadãos engajados em se governarem através do processo
democrático” (Ibidem, 12), portanto, em Autogoverno.

A grande questão é que Robert Dahl, como expoente do liberalismo, acredita haver
uma boa dose de igualdade política no sistema representativo por si só, e que igualando os
cidadãos em relação à liberdade econômica, traria maior funcionamento ao objetivo deste
sistema (aumentando a possibilidade de participação e contestação). O anarquismo, por
sua vez, lhe responderia que não pode haver igualdade política numa realidade social que
possui um ente regulador e opressor, por princípio, e detentor de uma complexidade
imensa, a qual mal podemos perceber, visto a sua naturalização (BOURDIEU, 2008), quanto
mais controlar.

19
Assim, não somente a propriedade privada e as sociedades anônimas são fontes de
desigualdades, mas também a presença de estruturas impessoais e especializadas que
cotidianamente entram em contato com a nossa vida, e, no geral, mal possuímos
conhecimento aprofundado sobre elas, sendo o Estado, a maior destas estruturas
(também podemos incluir aqui os chamados “sistemas abstratos” (GIDDENS, 2002, p. 24),
sobre os quais trataremos mais à frente). Mesmo que Este seja limitado pela
representatividade e pela accountabily (GUTMANN, 1995, p.23), o fato de haver o
funcionamento paralelo entre uma estrutura altamente hierarquizada e unidades
autogestionadas e horizontais representa uma dificuldade ao modelo proposto por Dahl.

Outra dificuldade é como se realizaria a implantação de tal sistema horizontalizado,


com a existência de fortes interesses consolidados no sistema vigente. Se a autogestão é
extremamente democratizante e igualitária devemos pressupor que diversos interessados
nos ganhos políticos provenientes de instituições hierarquizadas, como as sociedades
anônimas e o próprio sistema representativo, representem forte oposição a tal
implantação.

No que se trata dos diversos meios para se implantar a autogestão de forma


substancial, a teoria anarquista é clara. Transformações que apontam por mudanças
profundas e radicais não podem ser obtidas por decretos, mas somente pela Revolução
Social, fato que conecta a Autogestão à Autonomia.

“Nunca uma classe privilegiada despojou-se, total ou parcialmente, de seus


privilégios e que nunca um governo abandonou o poder sem ser obrigado a fazê-lo
pela força”. (MALATESTA, 2007, p. 8).

Esses são as considerações que a concepção de Autogestão da vertente coletivista


coloca para os liberais e para a chama Economia Solidária. A vertente Anarquista-
Comunista, porém, possui mais algumas questões importantes: Primeiro, a importância da
comunidade na autogestão. Kropotkin via na criação de unidades autogestionadas
fechadas em si a possibilidade de usurpação do trabalho comum, e, portanto, poderia ser
fruto de desigualdade. Todos deveríamos ter direito à herança comum e ao bem-estar
comum. Segundo, e de forma mais importante, é a questão do salariado. Kropotkin via na
remuneração em relação ao trabalho um problema à sociedade anarquista e um resquício
do individualismo estabelecido pelo capitalismo:

“O salariado nasceu da apropriação pessoal do solo e dos instrumentos de produção


por alguns. Era a condição necessária para o desenvolvimento da produção capitalista:
morrerá com ela, mesmo que se quisesse disfarçá-la sob a forma de “bondes de
trabalho”. A posse comum dos instrumentos de trabalho trará necessariamente o gozo
em comum dos frutos do labor comum” (KROPOTKIN, 1953, p. 14).

20
2.3 Autonomia
A Autonomia se apresenta como conceito correlato à Autogestão no campo da política
e se mostra vital para a existência de realidades autogestionárias independentes, assim
como para as formas libertárias de associação e convívio na sociedade. O conceito possui
grande importância, não só no pensamento Anarquista, mas também para o pensamento
liberal. Devemos, porém, assim como fizemos com a Autogestão, traçar as diferenças
nestas perspectivas para verificarmos qual concepção de Autonomia que queremos utilizar
e qual é mais útil para descrever e prescrever o tipo de realidade social que desejamos.

Dentro do pensamento liberal, Immanuel Kant foi quem nos forneceu os pilares do
que a teoria política trata como Autonomia. Basicamente, a teoria do autor defende uma
valorização objetiva dos indivíduos. Por possuírem valor intrínseco, estes não podem ser
tratados como simples meios, mas antes, devem ser vistos como fim em si mesmos (KANT,
2006a). O que faz os indivíduos levarem em conta tal premissa é a Razão, que os leva
também a orientar suas ações segundo o Imperativo Categórico: “devo agir sempre de
maneira que eu possa querer também que a minha máxima torne-se uma lei universal”
(Ibidem, p. 94).

É dessa forma que Kant assegura a autonomia dos indivíduos, limitando os fins
subjetivos de todos através das leis racionais. Todo ser racional deve ser respeitado como
autônomo. A autonomia é vista aqui, basicamente, como autogoverno, ou seja, a
obrigação de se sujeitar somente às leis que “pode-se considerar como autora” (Ibidem, p.
98). A grande questão é que Kant não leva esse princípio à sua radicalização, pois, mesmo
que as leis sejam injustas, o cidadão autônomo não pode rebelar-se, mas antes, deve
permanecer como súdito fiel ao pacto que consagrou:

“É dever do povo suportar mesmo os abusos mais intoleráveis por parte da


legislação suprema”. (KANT, 2006b, p. 82).

John Stuart-Mill é outro autor de referência para o pensamento liberal (ainda que não
esteja completamente vinculado a esta corrente), que faz grande menção à importância da
autonomia. A liberdade de defender seus próprios fins e interesses pelas próprias pessoas
é o que lhes garante que seus interesses serão respeitados a longo prazo e o que
desenvolve suas faculdades morais. A intervenção tirânica é negativa para o indivíduo até
mesmo quando déspota é um bom déspota, ou quando o faz pensando no indivíduo.

“Uma condição inerente aos assuntos humanos é a de que nenhuma intenção, por
mais sincera que seja, de proteger os interesses dos outros pode tornar seguro ou
salutar amarrar-lhes as mãos. [...] apenas por suas próprias mãos as pessoas podem
promover melhoras [...] em suas condições de vida” (MILL, 1981, p.33).

21
Amy Gutmann, em sua defesa pela Democracia Deliberativa nos apresenta uma
diferença importante entre o Liberalismo Negativo e o Liberalismo Positivo. O primeiro se
trata, basicamente, do liberalismo da forma que conhecemos, defendendo os direitos dos
cidadãos de não sofrer interferências do Estado em assuntos de sua vida privada. Já o
segundo, inclui o elemento da participação e da Autonomia:

“A democracia deliberativa propõe a resposta de que valorizamos a vontade popular


e a liberdade pessoal na medida em que o exercício de uma e outra reflitam ou
exprimam a autonomia das pessoas, entendendo-se autonomia como
autodeterminação, isto é, a disposição e a capacidade de determinar os rumos da
própria vida privada ou pública por meio da deliberação, da reflexão informada, do
julgamento e da persuasão que alia a retórica à razão” (GUTMANN, 1995, p.20).

O Anarquismo, assim como o Liberalismo, dá grande valor à liberdade individual, que


encontra abrigo na afirmação que toda associação deve ser, por princípio, livre. Por outro
lado, a ideologia ácrata também confere à participação uma importância central no
funcionamento dessas associações livres e da sociedade anárquica, como um todo. A
chave aqui também está no conceito de Autonomia, ou seja, os indivíduos devem observar
somente aos princípios que eles próprios construíram com sua Participação Direta.

Dessa forma, os indivíduos, os Movimentos Sociais e todas as associações devem estar


livres de qualquer imposição hierarquizada para formularem e almejarem seus próprios
fins, com seus próprios meios (desenvolvendo-os se preciso), sem que sejam subjugados a
interesses alheios. A associação autônoma é o que lhes possibilita defender seus
interesses, seus próprios meios e fins, assim como suas ligações solidárias com a
comunidade que os cerca, contra a elite dominante no Estado:

“Assim, nenhum Estado, por mais democráticas que sejam as suas formas, mesmo a
república política mais vermelha, popular apenas no sentido desta mentira conhecida
sob o nome de representação do povo, está em condições de dar a este o que ele
precisa, isto é, a livre organização de seus próprios interesses, de baixo para cima, sem
nenhuma ingerência, tutela ou coerção de cima, porque todo Estado, mesmo o mais
republicano e mais democrático, mesmo pseudopopular como o Estado imaginado
pelo Sr. Marx, não é outra coisa, em sua essência, senão o governo das massas de cima
para baixo, com uma minoria intelectual, e por isto mesmo privilegiada, dizendo
compreender melhor os verdadeiros interesses do povo, mais do que o próprio povo”
(BAKUNIN, 2003, p. 47).

A Autonomia é central na criação de uma nova realidade e faz parte da


compatibilidade defendida pelo Anarquismo entre a liberdade negativa e positiva 7, que

7
Para saber melhor sobre a diferença entre Liberdade Positiva e Liberdade Negativa, ver: BERLIN, 1969.

22
encontra na Participação Direta e Autônoma sua forma de realização. Sua grande diferença
com o Liberalismo está na forma de defender essas liberdades e no nível de sua
radicalização.

Em relação ao primeiro ponto, não há, para o Anarquismo legitimidade numa


Constituição que antecipa e imobiliza nossas ações: o direito ao autogoverno deve ser
defendido através da Ação Direta. Quanto ao segundo ponto, o Liberalismo supõe um
Contrato Social criador do Estado. Em algumas de suas versões há a possibilidade de
participação em certas esferas (como em MACPHERSON, 1979), em outras há a
possibilidade de desobedecer a leis injustas, porém os indivíduos são sempre obrigados a
obedecer a tal contrato. No Anarquismo, toda ordem só pode se sustentar por uma
associação real, feita livremente pelo indivíduo, o que caracteriza o Estado como ilegítimo.

A Autonomia ainda é importante nas relações dos Movimentos Sociais com outros
grupos de esquerda que, mesmo com boas intenções acabam querendo lutar pelo
Movimento Social, imobilizando-o:

“O movimento social não precisa de chefes, de dirigentes ou de gente que queira


usá-lo. O movimento social precisa de gente que queira apoiá-lo e lutar junto com ele,
mas não lutar por ele, no seu lugar. Lugar que é legitimado pela necessidade de
sobrevivência e pela dignidade que possuem as causas que promovem a verdadeira
solidariedade” (Universidade Popular. Capitalismo, Anticapitalismo e Organização
Popular. Rio de Janeiro: UP/MTD-RJ. In: FARJ, 2009).

A questão da Autonomia é uma preocupação real e cotidiana para aqueles


Movimentos Sociais que, se territorializando, buscaram a Autogestão como forma de
organização econômica, como veremos no último capítulo. Problemas como o
financiamento para suas formas de produção e/ou comercialização são fatores que
dialogam com seu nível de autonomia, principalmente, quando este financiamento é
público. A resposta para algumas realidades está na construção de redes de apoio e
cooperação mútuas e na proposta de universalização das práticas autogestionárias.

2.3 Revolução Social


A ideia de Revolução Social é um dos pontos que torna a ideologia anarquista única e
inconfundível, distinguindo-a do liberalismo e do conservadorismo pela recusa destes em
relação a rupturas bruscas com o sistema vigente, e do marxismo pelo seu foco com a
Revolução Política e controle estatal. O Anarquismo se mostra como uma ideologia semi-
utópica (WOODCOCK, 1962) exatamente por não propor uma mentalização rígida e
perfeita sobre a sociedade anárquica. Antes, esta será fruto do dinamismo e flexibilidade
da própria autoorganização e associação entre as pessoas.

23
A busca pela Revolução Social também distingue Anarquistas linhas de pensamento
Insurreicionistas e Organizativas. Proudhon e Kropotkin acreditavam que o Anarquismo é
uma tendência inata da natureza humana e de suas formas organizativas, a organização
social, portanto, evoluiria até encontrar sua forma mais ideal e conforme à sua natureza, o
Anarquismo8. Bakunin e Malatesta, por outro lado, acreditavam que não bastava acreditar
no ideal anarquista, pois, este só viria através da ação e organização revolucionária das
classes trabalhadoras, considerando certa violência necessária durante a ruptura.

“Quando tivermos força suficiente, deveremos, aproveitando as circunstâncias


favoráveis que se produzirão, ou que nós mesmos provocaremos, fazer a revolução
social: derrubar pela força o governo, expropriar pela força os proprietários, tornar
comuns os meios de subsistência e de produção, e impedir que novos governantes
venham impor sua vontade e opor-se à reorganização social, feita diretamente pelos
interessados”. (Programa Anarquista, 1903, em: MALATESTA, 2007, p. 8).

A Revolução Social, além de representar a grande ruptura com a sociedade capitalista


e com a opressão estatal, e, portanto, a possibilidade da Anarquia, representa também a
importância de universalização das conquistas sociais. Portanto, não só é vital a conquista
da autogestão autônoma, mas também, o é expandi-la, com a finalidade de alcançar a
emancipação, não só de determinados setores organizados, mas também, de todas e
todos que buscam tal possibilidade libertária.

Um conceito essencial na busca da Revolução Social é o de Poder Popular, pois, é ele


responsável por tratar sobre a viabilidade desta. Já que tal Revolução não será obra de
decretos e nem de governos, a organização social se faz essencial para a emancipação de
todas e todos. Uma outra questão importante é que o Anarquismo não busca só a
emancipação das trabalhadoras e dos trabalhadores – apesar de possuir uma boa dose de
classismo, principalmente, através do bakuninismo – mas sim de todos os indivíduos, já
que estamos falando de sistemas de Dominação o que vai para além da pura dominação
econômica.

Portanto, a luta social e a construção do Poder Popular via organização autônoma são
objetivos que se situam para além do puro espontaneísmo e possuem uma busca por uma
revolução construída de baixo, e pelos de baixo (a questão foi muito bem trabalhada pelo
Anarquismo especifista nas últimas décadas, como podemos ver em FARJ, 2009). A
construção do Poder Popular representa uma estratégia maior do que a simples melhora
da condição social provocada por determinado processo autogestionário, ou determinada

8
Kropotkin cita em “A Conquista do Pão” a necessidade da Revolução Social, porém, o mesmo acredita,
como fica claro em “Ajuda Mútua” (2009) que esta viria de qualquer forma, como um salto em relação à
evolução. “A anarquia conduz ao comunismo, assim como o comunismo leva à anarquia, sendo ambos a
expressão da tendência das sociedades modernas para a procura da igualdade” (1953 p.14).

24
greve geral, e provoca uma solidariedade e uma organização entre todos os envolvidos
nestes processos de emancipação, não só política, mas em grande medida, social.

Apesar de se tratar de uma estratégia de uma sociedade futura, a construção do Poder


Popular não pode perpetuar os erros da sociedade que deseja revolucionar. Portanto, tal
busca deve vir conjuntamente com uma Sociabilidade Libertária, que derrube os
preconceitos e as formas de violência simbólica e física, rompendo com os sistemas de
Dominação vigentes.

2.4 Sociabilidade Libertária


Um ponto de distinção do Anarquismo é sua preocupação com o meio e não
somente com o fim das ações. Não podemos construir uma realidade libertária no futuro
através de organizações autoritárias no presente, portanto, devemos combater as
injustiças que queremos ver eliminadas no futuro, no próprio presente. O conceito de
Política Pré-figurativa, portanto, se mostra essencial nessa construção pré-revolucionária
da realidade e da sociabilidade que queremos.

É possível que mesmo após a Revolução Social e com a criação de uma realidade
social constituída por unidades autogestionadas ainda sejamos reféns dos Sistemas de
Dominação. O Anarquismo não está livre destes sistemas - vide a misoginia de Proudhon e
o antigermanismo de Bakunin, por exemplo. Muito longe de representar preocupações do
que Bookchin chama de Anarquismo de estilo de vida (“Lifestyle Anarchism”; BOOKCHIN,
2009, p. 7), tal perspectiva mostra, antes, uma complementaridade entre as correntes do
anarquismo, umas mais ligadas ao indivíduo, outras à comunidade, como nos apresentou
Volin (1934) em sua Síntese.

Assim, enquanto a Revolução Social diz respeito às relações macrossociais, sobre o


conjunto social e econômico, a Sociabilidade Libertária diz respeito às relações
microssociais, não só sobre as relações interpessoais, mas também sobre as questões
organizativas de uma forma geral, na busca heterogênea pelo “Não-Um” (CLASTRES, 1974)
que caracteriza o padrão organizacional anarquista. A Sociabilidade Libertária é o que
muitas vezes aparece externamente como imagem do anarquismo (através da música, da
literatura, do grafite/estêncil e de atos mais espontâneos, como o uso da tática black
block, por exemplo), o que pudemos constatar que se trata apenas de um ponto nas
diversas preocupações desta corrente.

Assim, a Política Pré-figurativa aponta o caminho a ser traçado pelas associações e


unidades econômicas e traz a ideia de Revolução Social para o presente, através de
relações não-hierarquicas, e anárquicas, como modelo da sociedade futura e como um
potencial de interação social “aqui e agora” (GORDON, 2005, p. 10).

25
Dessa forma, Uri Gordon vê a arquitetura do movimento anarquista de hoje como
uma:

“Rede descentralizada de comunicação, coordenação e apoio mútuo entre nós da


luta social. Sem um centro ou canais permanentes de interação [...] uma estrutura
baseada em princípios de conexão, heterogeneidade, multiplicidade e não-
9
linearidade” (Ibidem, p. 9, tradução minha) .

E ainda:

“Estas formas baseadas em redes de organização política e prática baseada em


estruturas não-hierárquicas, coordenação horizontal entre grupos autônomos, acesso
aberto, participação direta, processos decisórios baseados em consenso, e no ideal da
livre e aberta circulação de informação... Enquanto a lógica orientada pelo comando
dos partidos tradicionais e sindicatos é baseada em recrutar novos membros,
desenvolver estratégias unitárias, representação política através de estruturas verticais
e a perseguição pela hegemonia política, a forma de se fazer política baseada em redes
envolve a criação de espaços inclusivos amplos, onde diversas organizações, coletivos
e redes convergem em torno de alguns pontos comuns*, enquanto preservam sua
autonomia e especificidade identitária. Ao invés de recrutamento, o objetivo se torna a
expansão horizontal e conectividade aumentada pela articulação entre diversos
movimentos através de flexíveis e descentralizadas estruturas de informação que
permitem a máxima coordenação e comunicação” (Ibidem, p. 40 e 41, tradução
minha10).

Dessa forma, Uri Gordon afirma que podemos tomar o Anarquismo de hoje, não como
um movimento operário, como no século XIX, mas como Cultura Política, ou seja, um

9
Tradução de: “The architecture of today’s anarchist movement can be described as a decentralised network
of communication, coordination and mutual support among autonomous nodes of social struggle. Lacking any
one centre or permanent channels of interaction […] a structure based on principles of connection,
heterogeneity, multiplicity and non-linearity”.

10
“those network-based forms of political organization and practice based on non-hierarchical structures,
horizontal coordination among autonomous groups, open access, direct participation, consensus-based
decision making, and the ideal of the free and open circulation of information. . .While the command-oriented
logic of traditional parties and unions is based on recruiting new members, developing unitary strategies,
political representation through vertical structures and the pursuit of political hegemony, network-based
politics involves the creation of broad umbrella spaces, where diverse organizations, collectives and networks
converge around a few common hallmarks, while preserving their autonomy and identity-based specificity.
Rather than recruitment, the objective becomes horizontal expansion and enhanced “connectivity” through
articulating diverse movements within flexible, decentralized information structures that allow for maximal
coordination and communication”. * Os “hallmarks” que norteiam de foram valorativa essas redes.

26
conjunto de valores, orientações, processos inteligíveis, dado um padrão ideológico
(Ibidem, p. 41). Essa é a forma que, para o autor, o Anarquismo ressurgiu no fim do século
XX, como um padrão de comportamento libertário para os Movimentos Sociais.

Certamente, grupos, como os especifistas, baseados na unidade ideológica e na busca


pela unidade de luta irão divergir e criticar muitos pontos citados por Gordon. O que
devemos verificar aqui, não é a veracidade ou não dos fatos citados pelo autor, mas a sua
utilização para os movimentos sociais autônomos. Fatos como a importância do consenso,
articulação em rede e as diversas formas existentes de Poder (ver Ibidem, p. 93) são
fundamentais para estes movimentos sociais.

Através da Sociabilidade Libertária como padrão valorativo organizacional, o


Anarquismo pode prover esses movimentos sociais de um grande número de táticas,
formas de operar e de se organizar. A obra de Uri Gordon, por exemplo, ainda fornece boas
bases para se discutir a importância da tecnologia, propaganda, usos de violência,
nacionalismos e outras questões que podem fornecer respostas significativas para os
movimentos sociais (também podemos incluir aqui a própria ideia de Indisciplina -
ZEFFERINO, 2006 - e de Autodisciplina – MAKHNO, 2001 -, tão importantes para a
discussão sobre esse tipo de sociabilidade).

A Política Pré-figurativa ainda dialoga com o que Hakim Bey chama de “alternativas
positivas” (BEY, 1991, p. 27). Ou seja, devemos atentar para a importância, não só da
reação negativa às estruturas de poder, mas também às alternativas positivas de formas
sociais para além destas estruturas, como fontes de energia alternativa em comunidades
(para citar algo similar ao que foi dito na página 10 desta monografia), por exemplo.

Acompanhado destes valores, o Anarquismo ressurge, junto a questões relativas ao


Poder, após a repressão à Revolução Húngara de 1956, e principalmente, após a repressão
à Primavera de Praga, em 1968. Perseguida por ambos os lados na Guerra Fria, a ideologia
ácrata ressurge juntamente à chamada Nova Esquerda como alternativa para a esquerda
pós-68, e demonstra toda sua força nos protestos antiglobalização, o que inclui o
surgimento do Exército Zapatista de Libertação Nacional11.

11
Para mais informações históricas, para além desta breve contextualização, sobre a história do anarquismo
ver: WOODCOCK, 1962. No Brasil, ver: Anarquismo no Brasil in: FARJ, 2009. Na Rússia revolucionária,
ver: ROCKER, 2007. Em Cuba, ver: Revolução Cubana – BELLÉ, Júnior, editora Faísca, 2009. Para mais
questões sobre o anarquismo ver CHOMSKY, 2011, e sobre seu funcionamento prático ver: SANTILLÁN,
1980.

27
3.Confronto e Movimento
“Nós, os operários, saberemos construir outros para tomar o lugar dos que forem
destruídos. E ainda melhores. Não temos medo de ruínas. Nós herdaremos a terra.
Quanto a isso não há a menor dúvida. Os burgueses podem fazer explodir e destruir o
seu mundo antes de abandonarem o palco da história. Nós trazemos um novo mundo
em nossos corações. E esse mundo está crescendo a cada minuto que passa”.

(Buenaventura Durruti)

3.1 Teorias dos Movimentos Sociais

A temática dos movimentos sociais se configura hoje como um grande objeto de


interesse acadêmico, especialmente em relação à Sociologia. Sua origem e
desenvolvimento estão marcados no século XX, tendo seu início nas décadas de 40 e 50 e
alcançando grande importância após a década de 60. Devemos ter em mente algumas
questões que nortearão nosso estudo neste campo, como: o grau de Autonomia dos
movimentos sociais, sua identidade quanto movimento coletivo, e algumas formas de
modificação direta da realidade social como a educação popular e a territorialização.

A primeira teoria a utilizar o termo movimentos sociais foi a de Blumer, em 1939,


buscando o entendimento de suas estruturas e funcionamentos. A preocupação inicial era
estudá-los a partir do prisma da Teoria da Ação Social, como ação coletiva, dentro dos
modelos teóricos desta teoria, como o de Max Weber (GOHN, 2008). O interacionismo
simbólico norte-americano, através da Escola de Chicago, tratou da questão como um
problema social vendo-os como disrupção da ordem. Há três correntes teóricas principais
da Teoria dos Movimentos Sociais: a “histórico-estrutural”, a “culturalista-identitária” e a
“institucional/organizacional-comportamentalista” (Ibidem, p. 27).

A primeira corrente, a histórico-estrutural, se baseia em abordagens marxistas como a


do próprio Marx, Gramsci, Rosa Luxemburgo etc e está ligada à noção dos movimentos dos
trabalhadores como sujeitos históricos, orientados pela conquista dos interesses objetivos
de classe. Portanto, está diretamente ligada à análise sobre o trabalho e sobre as lutas
sindicais. Essa linha faz grande utilização dos principais conceitos marxistas, como por
exemplo, a divisão entre movimentos reformistas e revolucionários, e a formação de
consciência social.

A segunda corrente, a culturalista-identitária representa variadas influências como “o


idealismo kantiano, o romantismo rousseaniano, as teorias utópicas e libertárias do século
XIX, o individualismo nietzchiano, a abordagem da fenomenologia e as teorias da
sociologia weberiana, a escola de Frankfurt e a teoria crítica de uma forma geral” (Ibidem,

28
p. 29). Possuindo influências de autores como Foucault, Giddens e Bourdieu, essa corrente
foi responsável por criar a novidade dos novos movimentos sociais, ao focar e dar
relevância a sujeitos e temáticas até então esquecidos e invisibilizados, como em relação
às mulheres, jovens, índios, negros etc. Sua grande contribuição foi mostrar a possibilidade
da construção de novos significados e formas de vida alternativa por parte dos
movimentos sociais.

A terceira corrente, a institucional/organizacional-comportamentalista, analisa as


ações coletivas a partir da lógica econômica do sujeito racional, como nos aponta Olson
(1999), por exemplo. Essa vertente pode ser encontrada nos estudos de Charles Tilly, que
através de sua abordagem sobre os ciclos de protesto propõe estudar os movimentos
sociais através de categorias como: interesses, organização, mobilização, oportunidades e
as ações coletivas (GOHN, 2008).

Nos final dos anos 70 e início dos anos 80 abre-se uma nova fonte de estudos sobre
movimentos sociais com os movimentos populares urbanos nos países rotulados como do
terceiro mundo, trazendo à tona novos atores e novas perspectivas marginalizadas. Nos
anos 90 altera-se completamente o cenário das lutas sociais e, consequentemente, o
quadro paradigmático das teorias dos movimentos sociais. Novos atores como ONGs e
organizações do terceiro setor são incluídos numa realidade social marcada pela crise das
utopias clássicas.

Por sua vez, os novos paradigmas não substituem as teorias mais antigas, mas antes,
coexistem com estes, “ora impo-se a estas, ora convivendo conflituosamente ou
paralelamente” (SCHERER-WARREN, 1993, p. 14). Dessa forma, as teorias contemporâneas
se apresentam como ruptura à noção clássica de movimento social, como sujeito histórico
único num metadiscurso, para dar vida a noções diversas sobre os “novos movimentos
sociais” (GOHN, 2008).

Assim, houve uma mudança paradigmática com o fim do socialismo real no Leste
europeu e uma concomitante crise das esquerdas, deixando como saldo um abandono
significante de teorias macroestruturais, passando a pautar temas mais pontuais como a
exclusão social (juntamente com seus atores marginalizados, como moradores de rua,
sem-teto e setores do que Marx chamou de Lúmpen Proletariado – MARX, 2006),
proveniente do funcionamento do mercado de trabalho neoliberal, e dos efeitos da
globalização. Os movimentos sociais passam a serem vistos, não como movimentos
revolucionários, mas como grupos de pressão agindo através de protestos sociais e da
desobediência civil.

29
Novas temáticas surgem, como a territorialização, e a questão da emancipação deixa
de estar sob o crivo da teoria marxista (GOHN, 2008). Diversas propostas são pensadas
como alternativas à hegemonia neoliberal, e o saber cotidiano do oprimido se torna mais
valorizado em relação ao saber acadêmico. Este último passa a ter um valor mais
estratégico-instrumental, visando “informar as ações de intervenção junto a grupos
organizados” (GOHN, 2008, p. 43), como na forma aqui utilizada.

O cenário brasileiro – e na América Latina, como um todo - dos anos 90 e início dos
anos 2000 é preocupante para os movimentos sociais. Uma das explicações para a
fragilidade dos movimentos sociais neste período é a conquista do poder político por
setores progressistas de oposição, fato este que levou à ampliação das políticas sociais
para os excluídos, por um lado, e a uma sistemática cooptação das lideranças de
movimentos importantes, por outro. Dessa forma, grande parte destes atores perderam o
conceito-chave de sua mobilização: a autonomia.

No cenário global, porém, a falta de contestação coordenada levou ao surgimento de


redes a construírem e aplicar “seu próprio repertório de protesto e propostas”
(MUTZEMBERG, 2011, p. 137), trazendo consigo movimentos como o ecológico, de
camponeses, de indígenas e de jovens afetados pela crise nos países desenvolvidos. O
Movimento Antiglobalização dessa forma trouxe consigo uma “nova gramática no
repertório de demandas e dos conflitos sociais” (Ibidem, p. 136). Formas e concepções
completamente diferentes foram elaboradas em redes transnacionais de protestos,
deixando como marca as reuniões do fórum da Ação Global dos Povos e do Fórum Social
Mundial.

3.2 Confronto Político


As obras relacionadas ao Confronto Político chegaram tardiamente ao Brasil, o “Poder
em Movimento” de Sidney Tarrow (1994), por exemplo, chegou com quinze anos de atraso
(BRINGEL, 2011). Tal metodologia de estudo veio intermediada por alguns autores, como
Maria da Glória Gohn. Esse atraso pode ter se dado por três situações: primeiro, o anti-
imperialismo, crítico à importação de noções externas advindas do “primeiro mundo”;
segundo, a grande influência das teorias estruturalistas e da dependência, que mantinha o
intelectual numa postura ativa e crítica no debate sobre mudança social; e terceira, a
influência de Alain Touraine e seus colaboradores através das teorias dos novos
movimentos sociais (Idem).

Dessa forma, a utilização da teoria do Confronto Político pode parecer na contra-mão


das outras teorias aqui aplicadas, basicamente, por tratar de respostas às questões
institucionais, e, portanto, de respostas ao Estado (MCADAM et alii, 2009), entrando em

30
conflito com o Anarquismo. Por não estar centrada na mudança social como a teoria de
Raúl Zibechi, e por tratar de aspectos internos à própria dinâmica dos movimentos sociais,
em contraste com o Estruturalismo de Pierre Bourdieu.

A metodologia do Confronto Político, porém, traz muitas outras questões além das
citadas, como por exemplo, a “institucionalização da ação coletiva” (BRINGEL, 2001, p. 66),
o que nos fornece instrumentos de análise sobre as diversas formas de relacionamento
entre os movimentos sociais e partidos políticos, em relação à sua autonomia. Tal
metodologia pode servir ainda para nos dar base no estudo das dinâmicas relacionais
próprias dos movimentos sociais.

Alguns elementos da ação coletiva dos movimentos sociais se mostram como chave
para entendermos seu funcionamento são eles: repertórios de ação; identidade coletiva;
“ciclos de protestos” (MCADAM et alii, 2009, p. 21); “enquadramento interpretativo”
(Ibidem, p. 23); outros “atores” (Ibidem, p. 26), como inimigos, rivais, interlocutores e
aliados; e forma de organização (TARROW, 2011). Outros fatores são essenciais para
estudarmos a influência de redes transnacionais no confronto político, como a difusão de
práticas e valores internacionalmente (DELLA PORTA e TARROW, 2005).

Todos esses elementos são importantes para os movimentos sociais conhecerem a si


mesmos e as relações contextuais em que estão envolvidos. Devemos fazer maior menção
a alguns pontos que interessam à mobilização autônoma. Primeiro, em relação aos
repertórios de ação há uma grande preocupação com o meio empregado nestas
mobilizações. A ideia é que o meio empregado seja compatível com a autonomia desses
movimentos e não os tornem reféns do Estado, de partidos políticos e/ou de vanguardas.

Portanto, a Ação Direta se mostra salutar em muitos casos. Outra questão é a


obtenção de ganhos significativos àqueles que participam desses movimentos, o que nos
traz a importância da greve, e da chamada “greve selvagem” (LANDSTREICHER, 2007, p.
10), ou seja, uma greve que está para além das negociações do sindicato com o governo.
Dessa forma, é importante que o movimento social autônomo se recuse a fazer política
“como os de cima” (ZIBECHI, 2007 y 2008, p. 147), buscando não se igualar em questão de
meios àqueles que buscam confrontar. O que vimos anteriormente sobre Política Pré-
figurativa cabe muito bem nesse ponto.

Outro ponto importante são os atores que se relacionam com o movimento social. É
necessário que esses movimentos não se submetam a líderes e vanguardas que, desejando
a condução do movimento social, queiram lutar por ele. Este é um ponto importante na
relação entre movimentos sociais autônomos e marxistas. Se por um lado, o movimento
marxista representa um forte aliado aos movimentos sociais autônomos, principalmente

31
em suas versões mais libertárias. Por outro, sua ambição por atingir a hegemonia dentro
destes movimentos, por buscar sua “centralização” e unidade (LÊNIN, 2007, p. 72), por seu
vanguardismo partidário contra o “espontaneismo” (LÊNIN, 1902, p. 15), podem torná-lo
um forte inimigo em relação à autonomia destes movimentos.

Outro ponto essencial é a organização. Uma questão importante é que a organização


não somente leve em conta o compromisso que o indivíduo possui com o coletivo, mas
também a realização deste dentro do coletivo. Assim, afirma Wolfi Landstreicher:

“A auto-organização autónoma terá de ser a base tanto de uma existência


verdadeiramente livre como da luta para alcançar essa existência” (LANDSTREICHER,
2007, p. 49).

Se tratando, assim, de uma:

“Busca de cúmplices, o desenvolvimento de relações de afinidade, o entrelaçar dos


nossos desejos e paixões, da nossa raiva destrutiva, das nossas ideias e sonhos com
aqueles de outros nas suas lutas e revoltas” (Ibidem, p. 49).

Essa organização deve buscar sua dinâmica e meios próprios, assim como a adesão
livre daqueles que desejam somar suas forças ao coletivo. Pontos importantes são aqui, o
da autodisciplina (FARJ, 2009), na qual cada um deve carregar consigo ao procurar não
colocar seu ego antes da realização comum, e o da horizontalidade, buscando não
representar um espelho dos aparelhos de dominação que se busca destruir.

Outros fatores importantes, principalmente do ponto de vista propriamente


anarquista, é o do enquadramento interpretativo e o da construção de redes de
movimentos. O papel do anarquista nos movimentos em que faz parte ou que se dispôs a
contribuir conjuntamente é alertar para importância de uma estratégia que vise mais do
que obtenção de bens a curto e médio-prazo. É mostrar a importância da emancipação
social universalizada, e, portanto, a importância da construção de redes de apoio mútuo
entre os movimentos sociais autônomos.

Muitos dos problemas enfrentados pelos movimentos sociais poderiam ser sanados
por uma maior coordenação com outros movimentos sociais autônomos. Isto se faz
importante não somente em relação à proteção contra os ataques do Estado, mas
principalmente para os movimentos territorializados em relação à complementaridade do
que é produzido (desde bens físicos até conhecimento, por exemplo) e movimentado. Uma
rede horizontalizada entre movimentos sociais autônomos torna estes mais
independentes, tanto em relação ao mercado capitalista, quanto ao financiamento
público, os fornecendo maior potência de agir e, conseqüentemente, maior capacidade de
garantir sua autonomia.

32
A questão do enquadramento interpretativo é especificamente interessante quando
tratamos de movimentos sociais que valorizam não a sua autonomia, mas antes, a
centralização estatal. Este é o caso, por exemplo, da fábrica ocupada Flaskô que busca a
sua estatização – muito para salvar seus postos de trabalho, é verdade. Podemos imaginar
o peso gigantesco positivo que uma fábrica como a Flaskô teria ao participar de redes
horizontalizadas de movimentos sociais autônomos. Este, porém, já é outro assunto.

Por fim, a questão da identidade se faz importante. O anarquismo possui um grande


potencial para mobilizar atores que ficaram de fora das categorias clássicas da esquerda,
principalmente da categoria do proletariado industrial. Setores como os sem-teto,
trabalhadores informais, catadores de materiais recicláveis, indígenas e mesmo
camponeses possuem grande valor pra teoria anarquista e pra construção do poder
popular.

Sem-tetos possuem na ocupação de prédios que não cumprem sua função social
como forma de territorialização de seus movimentos sociais. Estes movimentos são
fortemente ajudados pela solidariedade anarquista em sua busca por poder popular. Sem-
terras por sua vez possuem como repertório já estabelecido a ocupação de terras que não
respeitam a Constituição, e seu maior contato com anarquistas e movimentos de caráter
libertário é através da Agroecologia12.

Cooperativas de catadores correspondem a outra forma de autogestão e busca por


melhoria das condições de vida. Estas poderiam, em ligação com redes horizontalizadas
obter acesso a materiais de reciclagem mais elaborados e caros, como por exemplo,
através da conexão com fábricas ocupadas (que infelizmente não são muitas no Brasil de
hoje) que utilizam a reciclagem. Os indígenas, por sua vez, possuem grande valoração na
teoria anarquista, por suas formas de vida horizontalizadas. A forma de vida simplificada é
uma procura tanto de indígenas quanto de anarquistas, o que faz com que seus métodos e
valores sejam extremamente análogos e compatíveis (CLASTRES, 2004 e BEY, 1991).

Essas são questões importantes para os movimentos sociais autônomos, ou que


buscam autonomia, e podem esclarecer muitas questões sobre movimentos não-
estadocêntricos, como o repertório de Ação Direita Performativa conhecido como Black
Bloc. Outros pontos podem esclarecer acontecimentos como as ações que se passaram
durante a greve dos professores no Rio de Janeiro neste ano, em relação ao seu sindicato e
às relações com o governo. Por fim, estes não são pontos fáceis que podem ser colocados

12
A reforma agrária possui pouco embasamento na teoria marxista, pois, se bem sucedida, esta pode tornar
trabalhadores do campo em pequeno-burgueses, ver: SOBRINHO, José de Souza, “O camponês geraizero no
Oeste da Bahia”. São Paulo, 2012, p.141. Por outro lado, no momento em que dialoga com o Estado também
encontra dificuldades na teoria anarquista, porém, não podemos ver tais ideologias como pacotes fechados.

33
como uma fórmula para os movimentos sociais, as relações são dinâmicas e cada
movimento deve utilizar os meios que mais se adaptam aos seus fins e suas valorações na
vida social.

3.3 Sociedades em Movimento


Se o Confronto Político fornece pontos para serem pensados durante a mobilização,
para os Movimentos Sociais, a ideia de Sociedades em Movimento de Raúl Zibechi
responde mais diretamente a nossa pergunta: Como os movimentos sociais podem alterar
a realidade social independentemente do Estado e dos partidos políticos? Raúl Zibechi nos
fornece uma resposta interessante: É através da construção de formas de relacionamento
e sociabilidade diferenciadas que estes atores conseguem alterar e já estão alterando
diretamente a realidade social. Um dos principais caminhos para se atingir essa construção
alternativa é exatamente a territorialização dos movimentos sociais.

Através da territorialização, os Movimentos Sociais conseguem satisfazer suas


necessidades de sobrevivência e criar novas formas de relacionamento, como através da
Educação Popular, do restabelecimento dos saberes ancestrais e da saúde comunitária, da
criação de formas de comunicação e informação independentes, e de produção voltada à
alimentação das pessoas, por exemplo (ZIBECHI, 2007 y 2008). Essas são medidas que
tocam diretamente na centralização do poder simbólico e na capacidade de manipular a
vida das pessoas por parte do Estado e das grandes empresas privadas.

Dessa forma, Zibechi nos mostra como os espaços físicos recuperados ou


conquistados através das lutas sociais levam a uma reconfiguração física e simbólica da
vida comunitária:

“A diferença do velho movimento trabalhista e camponês (no qual estavam


subsumidos os índios), os atuais movimentos estão promovendo um novo padrão de
organização do espaço geográfico, de onde surgem novas práticas e relações sociais.
[...] O território é o espaço em que se constrói coletivamente uma nova organização
social, de onde os novos sujeitos se instituem, instituindo seu espaço, o apropriando
material e simbolicamente”. (Ibidem, p. 26, tradução minha13).

Esta territorialização leva à construção de relações horizontalizadas, não-capitalistas e


antiautoritárias, pois estes movimentos:

13
“A diferencia del viejo movimiento obrero y campesino (en el que estaban subsumidos los indios), los
actuales movimientos están promoviendo un nuevo patrón de organización del espacio geográfico, donde
surgen nuevas prácticas y relaciones sociales. […] El territorio es el espacio en el que se construye
colectivamente una nueva organización social, donde los nuevos sujetos se instituyen, instituyendo su
espacio, apropiándoselo material y simbólicamente”.

34
“Tendem a visualizar a terra, as fábricas e os assentamentos como espaços de se
produzir sem patrões nem capatazes, de promover relações igualitárias e horizontais
com escassa divisão do trabalho, assentadas, portanto, em novas relações técnicas de
produção que não gerem alienação nem sejam depredadoras do ambiente” (Ibidem, p.
25, tradução minha14).

O que Raúl Zibechi nos aponta, portanto, é a construção de um novo mundo de


relações não-capitalistas, ocorrendo dentro da realidade presente, com os recursos e
forças que os movimentos sociais dispõem autonomamente. A exclusão destas pessoas,
que formam esse movimento da cidadania e do acesso aos recursos básicos para sua
sobrevivência, as leva a buscarem suas próprias formas de autoformação e autogestão, nas
quais não há espaço para a formação de novas hierarquias e, portanto, de novas
opressões.

“O panorama que surge, a cada dia com maior intensidade, é que o ansiado mundo
novo está nascendo em seus próprios espaços e territórios, incrustado nas brechas que
abriram no capitalismo. É “o” mundo novo real e possível, construído pelo os
indígenas, camponeses e pelos pobres das cidades sobre as terras conquistadas, tecido
com base em novas relações sociais entre os seres humanos, inspirado nos sonhos de
seus antepassados e recriado graças às lutas dos últimos vinte anos. Esse mundo novo
existe, já não é um projeto nem um programa, mas múltiplas realidades, incipientes e
frágeis” (Ibidem, p. 27, tradução minha)15.

A educação popular faz parte desta construção e se mostra importante ao, por um
lado, não reproduzir os ensinamentos e construções simbólicas planejados pelo Estado
desde cima, e por outro, ao formar “intelectuais” (ainda que se busque eliminar a
separação entre trabalho intelectual e trabalho físico) na própria base, para que esta
forme suas próprias visões de mundo, baseadas em seus saberes ancestrais. Nesta busca
por reconstruir saberes destruídos16, os movimentos sociais se transformaram em

14
“Tienden a visualizar la tierra, las fábricas y los asentamientos como espacios en los que producir sin
patrones ni capataces, donde promover relaciones igualitarias y horizontales con escasa división del trabajo,
asentadas por lo tanto en nuevas relaciones técnicas de producción que no generen alienación ni sean
depredadoras del ambiente”.
15
“El panorama que surge, cada día con mayor intensidad, es que el ansiado mundo nuevo está naciendo en
sus propios espacios y territorios, incrustado en las brechas que abrieron en el capitalismo. Es «el» mundo
nuevo real y posible, construido por los indígenas, los campesinos y los pobres de las ciudades sobre las
tierras conquistadas, tejido en base a nuevas relaciones sociales entre los seres humanos, inspirado en los
sueños de sus antepasados y recreado gracias a las luchas de los últimos veinte años. Ese mundo nuevo existe,
ya no es un proyecto ni un programa sino múltiples realidades, incipientes y frágiles”.
16
Um exemplo interessante dessa reconstrução dos saberes ancestrais é a nota que foi publicada por
pesquisadores guaranis sobre sua verão da história de Sepé Tiarajú no Rio Grande do Sul, ver: “Guaranis
desmentem livros e revelam nova história” em A Nova Democracia, Ano VI, nº 40, fevereiro de 2008.

35
“sujeitos educativos” (Ibidem, p. 31), apontando por uma educação em movimento contra
saberes instituídos e institucionalizados.

Outro ponto importante é do restabelecer o poder curativo das comunidades, ou seja,


seus saberes tradicionais de cura e medicação natural de todas e todos, reconectando a
saúde dos indivíduos à saúde de comunidade. As organizações indígenas e os caracóis
zapatistas são exemplos em que, por um lado não se ignora os medicamentos da medicina
ocidental, por outro busca restituir os saberes medicinais das comunidades, buscando
diminuir o processo de medicação da sociedade instituído pelas multinacionais
farmacêuticas (Ibidem).

Nestes locais, há atendimento gratuito a todos os indivíduos que precisam, e não


somente àqueles que fazem parte dos trabalhos autogestionados ou dos movimentos
sociais. Os médicos por sua vez, recebem de volta atendimentos às suas necessidades,
como alimentação, transporte etc. Tudo isso ocorre sem nenhuma ajuda do governo
mexicano.

Em paralelo a esse processo também há “grupos de reflexão” (Ibidem, p. 42), que


trabalham com a questão psicológica da comunidade, reabilitando a voz daqueles que
foram silenciados pela coerção e institucionalização estatal e capitalista. Portanto, estes
movimentos-comunidade buscam “desinstitucionalizar o trabalho, o espaço, o tempo e a
política para reinventar suas próprias vidas” (Ibidem, p. 43). Podemos perceber aqui um
diálogo forte com o que Hakim Bey afirma sobre o controle dos Estados sobre o tempo e
sobre o espaço, através, por exemplo, do “fechamento do mapa” (BEY, 1991, p. 8).

A produção por parte dos movimentos sociais autônomos também é um ponto


importantíssimo, já que possibilita seus participantes não mais viverem do resto que a
sociedade de consumo produz, mas também produzir seus próprios alimentos de sua
própria maneira, possibilitando decidir sobre a qualidade de sua própria alimentação. A
produção não só permite melhor qualidade de vida, como também pode:

“Implicar no surgimento de novas relações sociais, de novo tipo de relação dos


homens com o meio ambiente e, entre outras coisas, em maior ou menor grau de
autonomia e capacidade de exercer a cidadania” (CAPORAL e COSTABEBER, 2004,
p.11).

Dessa forma, a Agroecologia se mostra, não somente uma forma saudável de


produção, mas também, uma fonte criadora de novas relações trabalhistas e promotora de
justiça social. Tal corrente de pensamento propõe relações mais humanas entre as pessoas
que produzem e mais responsáveis com a natureza, propondo:

36
“Mudança nas atitudes e valores dos atores sociais em relação ao manejo e
conservação dos recursos naturais” (Ibidem, p. 12).

Outro ponto importante é a coordenação entre estes movimentos sociais, o que nos
leva diretamente à questão da criação de centros de informação autônomos, como a
Central de Mídias Independentes, criada durante as mobilizações altermundialistas
(GORDON, p. 175), e a ocupação das rádios em Oaxaca, 2006. Em relação à articulação
entre estes movimentos, Zibechi ainda nos faz informações importantes sobre tal processo
e a autonomia destes movimentos sociais.

O autor nos afirma que a mudança social não necessita de “articulação-centralização,


nem de unificação” (ZIBECHI, 2007 y 2008, p. 49), o que poderia levar à perda da
autonomia destes movimentos, e, portanto, a estes perderem o foco da emancipação
social de seus membros e das relações sociais que desejam mudar. É necessário antes, que
haja uma intensificação da luta e a recriação das relações sociais sem institucionalização
ou normalização, fato este que levaria a novas hierarquias. Isso não implica que não deva
existir contato entre os movimentos, certamente é importante que haja
“articulações/coordenações internas” (Ibidem, p. 51), e espaços provisórios que conectem
as experiências obtidas pelos diversos movimentos autônomos.

As formas horizontais dos membros dentro dos movimentos antisistêmicos e a


construção de novas formas de relacionamento social levaram a importantes resultados
por estes movimentos, como a forte participação das mulheres na construção desse
mundo novo. Há, portanto, uma forte “feminização dos movimentos e das lutas sociais”
(Ibidem, p. 47) em marcha, fruto desta nova sociabilidade em luta contra o patriarcado, o
que dialoga diretamente com a Sociabilidade Libertária mencionada no capítulo anterior.
Essa nova forma de relacionamento social é fruto de uma alternativa social criada por
estes movimentos, que se mostram como espaços físicos e simbólicos de resistência,
sendo ao mesmo tempo, fonte de sobrevivência e de ação política.

Por fim, devemos citar duas ameaças, dentre outras explicitadas por Raúl Zibechi.
Primeira: o aprisionamento de suas ações por saberes instituídos, e segunda: o
relacionamento com governos progressistas e de esquerda. Quanto ao primeiro ponto, o
autor chama a atenção para não tentarmos (a Academia) enquadrar estes movimentos
sociais em categorias pré-definidas, ditando o que devem e o que não devem fazer. Antes,
precisamos verificar o que são esses movimentos e ajudar em sua compreensão do mundo
desde baixo. Assim, os movimentos sociais não possuem menor valor que a política
profissional por não possuírem planos bem detalhados, mas antes, é isso que corresponde
à sua natureza espontânea.

37
Esse ponto dialoga com a segunda ameaça. Na América Latina há três grandes
cenários no início do século XXI que influenciam diretamente a forma de organização e
ação dos movimentos sociais. Primeiro: quando estes se relacionam com governos
neoliberais aliados com os Estados Unidos; segundo: aqueles que se relacionam com
governos progressistas que, em questões fundamentais, representam uma continuidade
com o modelo hegemônico e, terceiro: os que atuam em países que buscam romper com
esse modelo (ZIBECHI, 2006b).

O México é, certamente, o melhor exemplo do primeiro cenário, onde os movimentos


sociais conseguiram se desenvolver e representar alternativas ao modelo neoliberal
dominante, basicamente, com grande autonomia em relação ao Estado e aos partidos
políticos, como no caso do EZLN e da “Otra Campaña” (Ibidem, p. 227). Já o segundo caso,
pode ser muito bem ilustrado pelo exemplo do Brasil, em que os movimentos sociais
lutaram juntamente com os setores que hoje estão no governo, contra as políticas
neoliberais dos anos 90. Estes setores desenvolveram, nos anos 2000, uma “nova
governabilidade” (ZIBECHI, 2007 y 2008, p. 251), ou seja, novas formas de dirigir estados e
populações, formas estas construídas exatamente nessas relações entre as elites e os
movimentos sociais.

Falar sobre cooptação dos movimentos por parte do governo progressista talvez seja
uma grande simplificação teórica, pois, estes novos cenários precisam também de novas
categorias conceituais que traduzam melhor tais relações. Estes novos cenários são
resultados da construção conjunta dos governos e movimentos sociais, que não foram
cooptados ou comprados, mas antes, possuem seu apoio baseado em “sólidas e profundas
convicções” (ZIBECHI, 2006b, p. 227). Estes movimentos:

“Oscilam entre o apoio crítico e a crítica sem apoio a seus governos, porém, amplos
setores de nossas sociedades parecem estar compreendendo que o melhor cenário
possível consiste na continuidade de administrações progressistas, as quais é sempre
necessário pressionar para que não se limitem a administrar a situação herdada”
(Idem, tradução minha17).

O fato, porém, é que esses governos não representam grande ruptura com o sistema
hegemônico, nem com os interesses das elites nestes países e muito menos conseguiram
uma substantiva distribuição de renda (Ibidem). O que eles conseguirem, por outro lado,
foi um tríplice desarme (ideológico, político e organizativo) em relação aos movimentos

17
“Oscilan entre el apoyo crítico y la crítica sin apoyo a sus gobiernos, pero amplios sectores de nuestras
sociedades parecen estar comprendiendo que el mejor escenario posible consiste en la continuidad de
administraciones progresistas a las que siempre es necesario presionar para que no se limiten a administrar la
situación heredada”.

38
sociais, que hoje não mostram a mesma força que possuíam nos anos 90, no Brasil, ao
menos.

O terceiro cenário é ainda mais difícil de se analisar e representa casos como os da


Venezuela e de Cuba onde os movimentos sociais alternam entre uma profunda aceitação
destes governos progressistas como “seus governos” (Ibidem, p. 226), e, ao mesmo tempo,
procuram aprofundar as mudanças em andamento. Assim como no segundo cenário, a
autonomia dos movimentos sociais nesta situação é fundamental para sua existência como
movimento crítico18.

Desta forma, estes são os pontos importantes explicitados por Raúl Zibechi, em
relação ao que o ator chama de movimentos antisistêmicos, ou não estadocêntricos,
chamados também de autoorganização autônoma (LANDSTREICHER) e de movimentos
sociais autônomos durante todo o texto. Sua capacidade de mudar o mundo de baixo para
cima, da periferia para o centro, se relaciona diretamente com questões básicas que
necessitamos para viver como saúde e educação.

A principal mudança que estes movimentos provocam é em sua forma de ver as


relações interpessoais e alterá-las nos territórios que recuperam ou ocupam. É importante
não impormos visões particulares e pré-construídas a estes movimentos, e este ponto
dialoga com o que foi dito até aqui, ou seja, não é possível forçar ninguém a ser livre.
Somados aos pontos citados no capítulo anterior, esses modelos se mostram grandes
ferramentas para os movimentos entenderem e escreverem sua própria versão da
realidade social, de forma autônoma, livre e igualitária19.

Estes movimentos autônomos se mostram capazes, não só de promover mudanças


pontuais e efêmeras, mas também, mudanças estruturais, que alteram não só a realidade
social e a capacidade de construí-la (portanto, de mover recursos materiais e simbólicos),
como também alteram as categorias construídas pelo Estado em nós. São exatamente
essas mudanças cotidianas e revoluções simbólicas que tornam possível a construção de
um mundo novo.

18
Podemos verificar um exemplo do entendimento destes movimentos na ameaça feita pela polícia cubana ao
Observatório Crítico, ver em: “A polícia dificulta a ação e reflexão dos anarquistas em Cuba”. Agência de
Notícias Anarquistas. 4 de Dezembro de 2013.
19
Para mais exemplos sobre a criação deste “novo mundo”, a obra estudada de Zibechi (2007 e 2008) ainda
nos fornece 13 exemplos de Sociedades em Movimento. Para conhecer mais sobre o EZLN, ver: “GENNARI,
Emilio. EZLN: Passos de uma rebeldia”. Editora Expressão Popular. São Paulo, 2005. Ver também o
documentário “Zapatistas: Construindo Autonomias”, dirigido por: Cassio Brancaleone, 2013. Para ver sobre
outras propostas de autogestão, ver: GIARRACAe MASSUH (org) “El trabajo por venir. Autogestión y
emancipación social”. Editorial Antropofagia, 2008.

39
4. Mobilização, Agência e Estrutura
"A política é primeiramente o conflito em torno da existência de uma cena comum,
em torno da existência e da qualidade daqueles que estão ali presentes. [...] Existe
política porque aqueles que não tem direito de ser contados como seres falantes
conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em
comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois
mundos alojados num só".

(Jacques Rancière, em "O desentendimento", 1996, p. 39).

4.1 Estruturalismos

A Revolução Social deve, para ser eficaz no que propõe, promover uma expressiva
alteração nas categorias de visão e divisão, assim como nas formas que nos relacionamos
como seres humanos. As mudanças devem envolver não só as estruturas que moldam
nossa forma de enxergar a vida, como também as estruturas hierárquicas que possibilitam
a dominação e a opressão estatal. É exatamente para verificarmos como funcionam essas
estruturas que utilizaremos a teoria estruturalista.

Muito foi dito até aqui sobre as possibilidades de ação e organização dos movimentos
sociais autônomos, porém, pouco foi mencionado sobre a questão contextual e o
ambiente que esses movimentos sociais encontram durante sua mobilização. Além disso,
ao procurarmos uma visão crítica em relação ao poder estatal, colocamos de lado boa
parte da teoria de um autor que dedicou toda sua vida ao estudo e à produção teórica de
esquerda, como o foi Karl Marx. Perdemos de vista, portanto, não somente seus aspectos
negativos, como o seu autoritarismo e a sua metafísica, como também todo seu
pensamento macro-estrutural (como foi explicitado no subcapítulo 2.1).20

O estruturalismo pode preencher essas lacunas e apontar para uma apreensão macro
e micro estrutural das relações sociais encontradas pelos movimentos sociais autônomos
durante sua luta pela emancipação social. Esta corrente de análise mostra importante para
áreas como a antropologia e a lingüística, e possui diversos grandes autores como seus
expoentes, entre eles Marcel Mauss e Claude Lévi-Strauss. Na Ciência Política, o
Estruturalismo é influenciado pela questão do Poder e as conseqüências deste sobre a
sociedade, principalmente depois de alguns ocorridos durante as décadas de 50 e 60 do

20
Devemos perceber a substituição valorativa de algumas características visando uma apreensão libertária dos
movimentos sociais. Assim, a Revolução Política é substituída por Revolução Social, o desenvolvimento da
Luta de Classes é substituído pela criação e desenvolvimento do Poder Popular, a centralidade do proletariado
como sujeito histórico é substituída pela valoração de diversos outros atores sociais e a busca pela hegemonia
pelo pluralismo de atores e linhas de pensamento diversas.

40
século XX (como a Revolução Húngara de 1956 e a Primavera de Praga em 1968). Estes
acontecimentos trouxeram à tona questões para além da economia, sobre as estruturas de
poder que moldam e influenciam nossas formas de vida (FOUCAULT, 2003).

Certamente não devemos ver as inferências do Estruturalismo de forma rígida,


principalmente, sobre o que este diz sobre o indivíduo. Devemos, antes, utilizar os pontos
que parecem razoáveis e úteis para o nosso estudo, verificando sempre as oportunidades
em que há brechas para a atuação do indivíduo e para a mudança social. Alguns autores se
mostram particularmente interessantes para tal análise, são eles: Norbert Elias, Pierre
Bourdieu, Anthony Giddens e Georg Simmel.

Norbert Elias possui um ponto de vista estruturalista fortíssimo, apesar de sua


pretensão em superar a dicotomia entre estrutura e agência. Possui também afirmações
importantes para aqueles que buscam estudar a sociedade a partir do ponto de vista das
redes de relações. O autor vê na rede dinâmica de relações interpessoais uma espécie de
“tecido básico” que conforma a visão de mundo dos indivíduos:

“Nenhum dos dois existe sem o outro. Antes de mais nada, na verdade, eles
simplesmente existem – o indivíduo na companhia de outros, a sociedade como uma
sociedade de indivíduos – de um modo tão desprovido de objetivo quanto as estrelas
que, juntas, formam um sistema solar, ou os sistemas solares que formam a Via-
Láctea. E essa existência não-finalista dos indivíduos em sociedade é o material, o
tecido básico em que as pessoas entremeiam as imagens variáveis de seus objetivos”
(ELIAS, 1994, p. 18).

Portanto, dentro do ponto de vista do autor, o indivíduo possui pouca autonomia de


movimento dentro de uma rede de relações reticulares que conforma suas ações e suas
opções de movimentação:

“A ordem invisível dessa forma de vida em comum, que não pode ser diretamente
percebida, oferece ao indivíduo uma gama mais ou menos restrita de funções e modos
de comportamento possíveis. Por nascimento, ele está inserido num complexo
funcional de estrutura bem definida; deve conformar-se a ele, moldar-se de acordo
com ele e, talvez, desenvolver-se mais, com base nele. Até sua liberdade de escolha
entre as funções existentes é bastante limitada” (Ibidem, p. 21).

Para Elias, portanto, essa rede de relações contínuas e interdependentes possui uma
dinâmica própria de mudanças na qual o indivíduo possui pouca ou nenhuma capacidade
de alterar o rumo. Alguns indivíduos possuem, através de cargos de poder, maior escolha
sobre o destino dos outros, o que por outro lado diminui a capacidade destes de interferir
no processo. As mudanças estruturais, portanto, são fruto da própria dinâmica autônoma
de rede em constante movimento.

41
As mudanças ocorridas na história de uma sociedade, portanto, possuem origem em
aspectos interiores – e não em aspectos exteriores à natureza humana, como o
desenvolvimento do espírito hegeliano, por exemplo – a esta e corresponde a aspectos
específicos de sua estrutura. Basicamente estão ligadas à concentração de poder:

“Em certos estágios, os instrumentos de violência à disposição de alguns podem


permitir-lhes negar aos outros aquilo de que estes precisam para garantir e efetivar
sua existência social, ou mesmo ameaçá-los, subjugá-los e explorá-los
constantemente; [...]. Isso origina, na rede de pessoas, grupos funcionais e nações
interdependentes, tensões cuja natureza e intensidade podem diferir amplamente,
mas que sempre têm uma estrutura muito clara, passível de uma descrição bastante
precisa. E são as tensões desse tipo que, ao atingirem certa intensidade e estrutura,
geram um impulso por mudanças estruturais na sociedade. [...] Graças a elas, algumas
formas de vida em comum tendem constantemente a se mover em determinada
direção, ruma a transformações específicas, sem que nenhuma força impulsionadora
externa esteja implicada” (Ibidem, p. 44).

Com isso, Elias retira as origens metafísicas das mudanças estruturais, tornado-as
imanentes à própria dinâmica de cada rede dinâmica de relações interpessoais. O autor,
porém, ao retirar a capacidade dos indivíduos de construírem essas mudanças estruturais,
pouco nos responde como podemos, nós mesmos, provocar estas mudanças estruturais. O
que Norbert Elias nos afirma na verdade é que não podemos prever e nem direcionar a
forma como se dão estas mudanças, tornando-as impessoais.

4.2 A dominação estrutural em Bourdieu


Ainda que Pierre Bourdieu não foque seu trabalho na mudança estrutural, sua
Sociologia da Dominação nos fornece aspectos e ferramentas para pensarmos as
estruturas que a Revolução Social e a Sociabilidade Libertária pretendem alterar. Seu
trabalho possui grande riqueza no estudo do Poder e nas formas em que este se encontra
em estruturas sociais como o Estado, a escola, a Igreja, a família etc. Aqui, categorias
como: poder simbólico, habitus, campus, e a dominação estrutural podem nos fornecer
leituras importantes sobre a forma com que o Poder é produzido e se reproduz em nosso
cotidiano.

O autor nos apresenta a reconstrução da gênese do Estado e da concentração dos


diversos tipos de capital como forma de um poderoso instrumento de ruptura (BOURDIEU,
2008), capaz de romper o discurso totalizador e naturalizante utilizado pelas estruturas
com as quais o Estado nos inculca suas categorias de visão e divisão. Portanto:

“O Estado é resultado de um processo de concentração de diferentes tipos de


capital, capital de força física ou de instrumentos de coerção (exercito, policia), capital

42
econômico, capital cultural, ou melhor, de informação, capital simbólico, concentração
que, enquanto tal, constitui Estado como detentor de uma espécie de metacapital,
com poder sobre os outros tipos de capital e sobre seus detentores. A concentração de
diferentes tipos de capital (que vai junto com a construção dos diversos campos
correspondentes) leva, de fato, à emergência de um capital específico, propriamente
estatal, que permite ao Estado exercer um poder sobre os diversos campos e sobre os
diferentes tipos específicos de capital, especialmente sobre as taxas de cambio entre
eles (e, concomitantemente, sobre as relações de força entre seus detentores)”.
(Ibidem, p. 99).

Assim indo para além da definição weberiana, o Estado não só se caracteriza pelo
monopólio do uso legítimo da violência física num determinado território, mas também
pelo monopólio do uso da violência simbólica, sobre o conjunto da população
correspondente. O Estado é resultado de um processo de concentração da coerção física,
passando dos senhores feudais para o Rei. A concentração de capital de força física tornou
necessária também a unificação do espaço econômico, instituindo o imposto para lidar
com as despesas de guerra (Ibidem).

Progressivamente o imposto sem contrapartida foi transformando o capital


econômico em capital simbólico, legitimando sua concentração e a centralização dos
reinos. Esse processo se dá ciclicamente, instaurando a coerção para os que não efetuam o
pagamento do imposto. Assim, os agentes do Estado passam a ser reconhecidos pelo
direito de cobrar o imposto, e, portanto, como legítimos, identificados através da
simbologia de cada Estado.

Juntamente com a concentração de capital simbólico se dá a concentração de capital


de informação e de uma unificação teórica, na qual a postura unificadora da Cultura
nacional legítima se faz central, assim como da Escola. Com isso, a Escola através da
“generalização da educação primário durante o século XIX” (Ibidem, p. 105) se faz crucial
para inculcar a ordem estatal nos espíritos, servindo como fonte legitimadora para a
concentração de capital simbólico.

“O capital simbólico é uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de capital; físico,
econômico, cultural, social), percebida pelos agentes sociais cujas categorias de
percepção são tais que eles podem entendê-las (percebê-las) e reconhecê-las,
atribuindo-lhes valor. [...] Mais precisamente, é a forma que todo tipo de capital
assume quando é percebido através das categorias de percepção, produtos da
incorporação das divisões ou das oposições inscritas na estrutura da distribuição desse
tipo de capital”. (Ibidem, p. 107).

43
Portanto, não somente há uma forte concentração de capital simbólico pelo Estado,
como essa concentração é vista como legítima (e, natural, em grande parte) por parte de
sua população. Essa legitimidade é construída e inculcada através das estruturas do Estado
- muito similares aos aparelhos ideológicos de Estado de Louis Althusser 21- que produzem
e reproduzem a realidade social através do discurso oficial da Academia. Essa legitimidade
pode ser encontrada ainda sob o capital jurídico, em suas diversas simbologias e
linguagem própria que coloca na ordem do dia a universalidade do Estado.

Dessa forma, Bourdieu nos afirma que:

"As relações de força mais brutais são, ao mesmo tempo, relações simbólicas e os
atos de submissão, de obediência, são atos cognitivos que, como tais, põem em prática
as estruturas cognitivas, as formas e categorias de percepção, os princípios de visão e
de divisão: os agentes sociais constroem o mundo social através de estruturas
cognitivas [...] suscetíveis de serem aplicadas a todas as coisas do mundo e, em
particular, às estruturas sociais" (Ibidem, p. 115).

E ainda:

"Essas estruturas cognitivas são formas historicamente constituídas, logo, arbitrárias


[...] das quais se pode traçar a gênese social” (Idem).

Os atos de submissão ocorrem diariamente, e de forma especial nos Chamados à


Ordem, nos momentos em que o Estado conecta suas afirmações legítimas e oficiais às
nossas estruturas de pensamento e ao nosso habitus. Um chamado a um histórico
transcendental comum, que o Estado constrói quanto realidade social e que nós aceitamos
pelas categorias de visão e divisão que adquirimos em nosso processo de socialização
como uma espécie de acordo pré-reflexivo.

“O mundo social está semeado de chamados à ordem, que só funcionam como tais
para aqueles que estão predispostos a percebê-los, e que reanimam disposições
corporais profundamente enraizadas, que não passam pelas vias da consciência e do
cálculo". (Ibidem, p. 117).

É exatamente essa estatização dos seres humanos que torna necessário, àqueles que
procuram romper com o metadiscurso do Estado, o radicalismo espistemológico, citado na
metodologia desta monografia (página 10), e o que Bourdieu chama de “Dúvida Radical”
(Bourdieu, 1989, p. 34). A realidade social, porém, não é monolítica, antes é constituída de

21
Ver ALTHUSSER, Louis “Aparelhos Ideológicos de Estado”. Graal. Rio de Janeiro, 1998.

44
diversos campos nos quais os agentes22 estão inseridos, e onde estes buscam maiores
níveis hierárquicos.

Os campos sociais são universos sociais particulares que possuem suas lógica e leis
próprias, os agentes ocupam neles espaço hierarquizados, no qual dependem do volume e
da estrutura do capital que dispõem, para determinar sua posição nestes. Além disso,
estes agentes estão ligados ao campo pelo que é chamado de illusio (KREITLON, 2008), ou
seja, uma crença social no valor da luta simbólica dentro do campo, como algo
essencialmente positivo.

“A illusio é estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena ou,
para dizê-lo de maneira mais simples, que vale a pena jogar”. (BOURDIEU, 2008, p.
139).

A illusio faz parte de nosso habitus. Este, por sua vez, é definido basicamente como:

“Sistema de esquemas individuais, socialmente constituído de disposições


estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas
experiências práticas (em condições sociais específicas de existência), constantemente
orientado para funções e ações do agir cotidiano” (KREITLON, 2008, p. 75).

Assim, situar um Movimento Social dentro de um campus particular, o da política, e


apresentá-lo em sua busca por hegemonia e subir na hierarquia deste campus é
basicamente inseri-lo nas regras do jogo estatal. O que estamos pretendendo neste estudo
é exatamente ir contra as regras oficiais e naturalizadas pelo Estado. Não queremos que o
Movimento Social saia da condição de oprimido para a condição de opressor, mas sim que
ele vá contra a lógica dos campos e quebre a opressão em sua forma mais
substancializada, o Estado.

Não aderir à illusio do campus significa ir contra a estatização dos indivíduos, contra a
busca pelos benefícios que o capital simbólico traz àqueles que o concentram. Significa,
precisamente, ser contra à divisão entre oprimidos e opressores, entre o trabalho braçal e
o intelectual, significa ser contra à hierarquia nesses campos. É exatamente por isso que
em nenhum momento falamos na Educação Pública, já que esta reproduz a lógica do
Estado (assim como a Educação Privada, subordinada indiretamente aos ministérios da
educação de cada Estado), mas sim em Educação Popular, em restabelecer os saberes
comunitários e desconcentrar o capital simbólico nas comunidades. É exatamente sobre
reverter a concentração de capital, apresentada por Bourdieu, que se trata o Anarquismo.

22
É importante notar a utilização do termo agente pelo estruturalismo, ao invés de ator como utilizado nas
teorias da Ação Social e da Ação Racional, como bem nos afirma KREITLON, 2008, p. 58.

45
Porém, tocamos aqui no ponto central que liga a teoria estruturalista à proposta
emancipadora deste trabalho: “como pensar a transformação?” (ORTIZ, 1983, p. 21).
Renato Ortiz nos coloca exatamente a questão da mudança estrutural que procuramos ao
utilizar Bourdieu nesta monografia:

“Pode-se dizer que em nenhum momento a pergunta recebe uma atenção


particular; na verdade, a questão da mudança aflora em algumas passagens dos
escritos de Bourdieu, mas se reduz a constatações fugazes que evidenciam um
problema jamais abordado. [...] se o habitus se define por sua tendência à reprodução,
como articulá-Io ao movimento da mudança social?” (Idem).

Dando uma resposta bastante útil logo em seguida:

“Os estudos de Bourdieu nos parecem de grande importância e podem ser da maior
valia desde que os consideremos fora de uma perspectiva imobilista do processo de
reprodução. A análise é extremamente rica quando se trata de desvendar os
mecanismos profundos de poder, perspectiva tão peculiar aos autores modernos
franceses, mas que, no fundo, se caracteriza por um certo pessimismo político e
social”. (Ibidem, p. 24).

4.3 Agentes Estruturantes


Anthony Giddens, por sua vez, nos apresenta questões importantes para pensarmos
as relações entre as estruturas de dominação e as agências sociais, em relação a questões
importantes como a do Poder. Assim como também salienta Uri Gordon (2005, p. 106),
Giddens nos apresenta duas formas de entendermos o Poder: uma forma como potência
de agir e outra como dominação estruturada. O primeiro aspecto que devemos perceber
na preocupação do autor com a dualidade da estrutura é sobre o que foi dito aqui sobre a
obra de Bourdieu, principalmente em relação ao habitus:

"Uma tendência comum a muitas escolas de pensamento sociológico [...] é o fato de


adotarem como tática metodológica começarem as suas análises por desacreditarem
as razões adiantadas pelos agentes para as suas ações [...] com o objetivo de
descobrirem os estímulos "reais" das suas atividades, os quais eles próprios
ignorariam. Tal afirmação, contudo, é não só inapropriada do ponto de vista da teoria
social, como traz consigo implicações política definidas e potencialmente ofensivas, ao
implicar uma derrogação do ator leigo" (GIDDENS, 2000, p. 46).

Portanto, devemos encarar o que foi dito através da teoria estruturalista de Pierre
Bourdieu com precauções, para reproduzirmos as estruturas de visão e divisão inculcadas
em nós pelo Estado. Portanto não devemos deslegitimar discursos contrários aos nossos
como se pertencessem a um habitus ilegítimo, muito menos quando estes discursos fazem

46
parte de um saber popular. Tal artifício poderia gerar uma afirmação de falsa consciência
de inúmeros agentes, o que comumente recai sobre as categorias menos favorecidas pelo
sistema econômico. Giddens faz uma importante distinção entre a consciência prática e a
consciência discursiva, afirmando a importância daquela, mesmo que não tenha a
desenvoltura desta para explicar a realidade social:

“Não é de todo implausível supor que, em algumas circunstâncias e situações,


aqueles que se encontram socialmente em posições de subordinação possam
compreender melhor as condições de reprodução social do que aqueles que noutros
aspectos os dominam” (Ibidem, p. 48).

E ainda:

“Todo o ator competente possui um conhecimento bastante variado, mesmo que


íntimo e subtil, da sociedade de que é membro” (Idem).

Seja lá o que Giddens acredita ser um ator competente, é importante verificarmos a


legitimidade do conhecimento popular. Ainda que este não consiga descrever com a
mesma precisão os acontecimentos explicados pelas teorias acadêmicas, certamente
possui mais experiência em diversas questões sociais, principalmente, no que diz respeito
à dominação. Portanto, o saber não deve servir de instrumento de dominação para
aqueles que desejam produzir criticamente, os quais devem reconhecer o valor da
consciência prática.

O poder para Giddens está diretamente relacionado às práticas e estruturas


consolidadas nas relações interpessoais, dialogando diretamente com a mobilização de
recursos e saberes por parte dos diversos atores sociais. É exatamente sobre essa
ambivalência dos atores como estruturantes e estruturados que se faz a dualidade da
estrutura, e que nos permite uma visão mais aguçada sobre as formas de reprodução do
poder.

Essa estruturação ocorre por parte do que Giddens chama de “modalidades de


estruturação” (Ibidem, p. 67), ou seja, características relacionais pertencentes tanto à
estrutura quanto às agências:

“As modalidades de estruturação são mobilizadas pelos atores no decorrer da


produção da interação, mas são também, ao mesmo tempo, os meios de reprodução
das componentes estruturais dos sistemas de interação” (Idem).

Assim, as modalidades de estruturação, e, portanto, as agências e estruturas podem


dar respostas a algumas perguntas aqui desenvolvidas ao relacionarmos tais conceitos com

47
a própria ideia de Poder em Giddens. Para o autor, o poder pode ser entendido através de
dois aspectos próprios:

“A relação entre poder e interação pode assumir um duplo sentido: enquanto algo
que se encontra institucionalmente envolvido nos processos de interação, e enquanto
algo utilizado para obter determinados resultados através da conduta estratégica”.
(Ibidem, p. 81).

Dessa forma, no primeiro sentido o poder possui um caráter espinozano, como


potência de agir, ou seja, de resistir às formas de dominação estrutural e influenciar os
processos sociais, de forma estratégica a seu favor:

“A ação implica a intervenção sobre os acontecimentos que ocorrem no mundo,


produzindo assim resultados explícitos, sendo a ação propositada uma categoria
daquilo que um agente faz, ou daquilo que se priva de fazer. O poder, enquanto
capacidade transformadora, pode assim ser considerado como referente às
capacidades dos atores para alcançarem tais resultados”. (Ibidem, p. 82).

Em seu segundo sentido, o Poder significa a dominação impessoalizada, ou seja, o


processo em que os atores estão envolvidos e no qual boa parte deles não possui controle
algum sobre as tomadas de decisão. Esse sentido é visto pelo aspecto institucionalizado do
poder, em seu aspecto de dominação verticalizada, capaz de impor aos agentes pontos de
vista externos a eles.

“As estruturas de dominação implicam assimetrias dos recursos empregues na


manutenação das relações de poder no interior e entre os sistemas de interação”
(Ibidem, p. 91).

As duas formas de poder dialogam constantemente entre si e representam faces da


mesma moeda, vista sob prismas diferentes, a mobilização de recursos. Assim, o primeiro
sentido de poder representa a possibilidade de mobilização de recursos por parte dos
diversos atores incluídos nos sistemas sociais, enquanto o segundo sentido representa a
possibilidade das estruturas de mobilizar os recursos por esses atores, ditando regras a
estes. Para Giddens, essas relações ambivalentes são o que exemplificam a dualidade da
estrutura e, portanto, sua teoria política.

“Os sistemas sociais encontram-se constituídos como práticas regularizadas: o poder


nos sistemas sociais pode assim ser caracterizado como implicando relações de
autonomia e dependência reproduzidas através da interação social. Por consequência,
as relações de poder funcionam sempre nos dois sentidos, mesmo se o poder de um
dos atores ou partes de uma relação social for mínimo quando comparado com o do
outro”. (Idem).

48
Devemos, para buscar o objetivo aqui traçado, verificar o que esses dois conceitos de
poder implicam para atingir as metas da emancipação social aqui explicitadas, verificando
suas possíveis conseqüências.

Portanto, a primeira forma de poder se faz positiva para pensarmos as possibilidades


de mobilização e de alteração estrutural. Aumentar a potência de agir dos movimentos
sociais autônomos é extremamente importante para estes defenderem sua autonomia e
lutarem pela Revolução Social. Essa potência de agir pode ser buscada de várias formas,
como na coordenação horizontalizada em forma de redes, ou “rizomas” (GORDON, p. 9),
com outros movimentos, por exemplo. Esta forma de poder, porém, pode se mostrar
perigosa no momento em que se preocupar mais com os fins do que com os meios,
esquecendo-se dos elementos da Sociabilidade Libertária.

É exatamente nesse sentido que se faz importante conhecermos a segunda forma de


poder, elucidada na teoria de Bourdieu, ou seja, de poder como imposição de vontade e,
portanto, como contrário à liberdade e à autonomia. Assim, a ação estratégica não pode
passar por cima da criação de novas formas de relações sociais, e de novas sociabilidades,
criação a qual é justamente o caminho para a construção de realidades sociais
emancipadas pelos movimentos sociais autônomos. A própria noção de estratégia em
movimentos horizontalizados perde parte de seu significado habitual. No momento em
que as pessoas passam a participar diretamente sobre como as ações se dão nestes
movimentos, os recursos passam a serem vistos através de seu uso na vida cotidiana e não
mais como utilização estratégica para atingir este ou aquele fim.

Caso aconteça o contrário, a partir do momento em que estes movimentos sociais


perderem de vista a Sociabilidade Libertária e buscarem somente aumentar sua potência
de agir estarão fazendo política como os de cima e não mais estarão perseguindo a
emancipação social de seus membros e das comunidades que se relacionam. Portanto, a
agência é extremamente importante na mudança estrutural, seja ao deslegitimar as
categorias de visão e divisão impostas pelo Estado através da Ação Direta Performativa
(fato este que dialoga diretamente com a ideia de Propaganda pela Ação), e, portanto,
desobedecendo os chamados à ordem, seja desafiando o Estado ao aumentar a potência
de agir de um movimento social com caráter libertário e horizontalizado no seio de uma
sociedade autoritária.

O que o estruturalismo nos ensina é que podemos ver essa sociedade e suas formas
de dominação de um outro ponto de vista que não o racionalista. Portanto, para
destruirmos a sociedade de classes não precisamos acabar com os membros da classe
dominante, para destruirmos o machismo não precisamos acabar com os machos e nem
para destruirmos o racismo precisamos acabar com a etnia dominante. Antes, o que causa

49
a dominação são as estruturas de poder. São elas que devem ser combatidas, assim como
seus efeitos (dando sempre ênfase aos sistemas de dominação que estão para além dessas
estruturas), como a opressão de gênero, por exemplo.

É importante frisar que a estratégia não pode estar em associar-se a estas formas de
dominação estrutural, contida nos aparelhos verticalizados, como as diversas estruturas de
poder disputadas via eleição (Estado, partidos políticos etc). A potência de agir desses
movimentos está principalmente no seu grau de autonomia, e, portanto, de perseguir seus
próprios fins e meios, independentemente daqueles que querem ditar-lhes ordens. No
momento em que ocorrer o diálogo com estas estruturas a autonomia dos movimentos
sociais deve ser inegociável. É exatamente este ponto que caracteriza a mobilização dos
movimentos sociais como possibilidade de mudança frente às estruturas de poder que
oprimem, normatizam e controlam as vidas de todas e todos.

A mudança estrutural, portanto, só pode se dar com a criação interpessoal de novos


laços sociais, alcançados de forma autônoma por parte dos movimentos sociais e não por
ações individuais estratégicas de grandes líderes e chefes. Tal mudança é basicamente a
desconcentração das diversas formas de capital acumulado pelo Estado, o que ocorre ao
lutar contra seu metadiscurso e seu metacapital, devolvendo aos oprimidos sua voz e sua
força.

50
5. Direito à Cidade
“Cinco anos: 2006 a 2011. 13 de Outubro, um navio pirata atraca no porto
(Anarquia!). Em meio ao seco asfalto das minas do Capital: utopias e discórdias,
confrontos à obediência e à normalidade social. Uma ruptura do concreto. Onde só
havia horror e solidão, houve uma flor, que nos deixa sempre lembranças e extrema
revolta”.

(Anarcofunk – Flor do Asfalto, 2013.).

5.1 A cidade como locus da luta política

Muito anteriormente a David Harvey, Henri Lefebvre e Milton Santos, o estudo sobre
as implicações das características da cidade grande nas formas de vida dos indivíduos que
nelas habitam já estava sendo desenvolvido por Georg Simmel, através do ângulo da
psicologia social e da psicologia econômica (e por isso de forma distinta do que é
comumente referido como estruturalismo). Ainda que o autor não tivesse percebido tais
influências e relações a partir de uma concepção crítica da sociologia urbana, podemos
utilizar alguns de seus pontos estudados para verificarmos certas características
importantes da grande cidade, principalmente no que tange à normatização e ao controle
da vida humana.

O autor se refere em seu estudo à relação da liberdade e da realização dos indivíduos


com a vida intensa da cidade e ao controle, requisitado pela necessidade de estabilidade
por parte do capitalismo, da vida social como requisito para a expansão contínua do
capitalismo. Algumas características deste processo são importantes para verificarmos a
forma como a cidade influi em nosso padrão de comportamento como: a forma totalizante
com que o dinheiro transforma tudo em mera questão de quantidade; a padronização do
tempo, e, portanto, da vida; e a especialização exacerbada pela forte divisão do trabalho.

“O espírito moderno tornou-se mais e mais um espírito contábil. Ao ideal da ciência


natural de transformar o mundo em um exemplo de cálculo e de fixar cada uma de
suas partes em fórmulas matemáticas corresponde a exatidão contábil da vida prática,
trazida pela economia monetária. Somente a economia monetária preencheu o dia de
tantos seres humanos com comparações, cálculos, determinações numéricas, redução
de valores qualitativos a valores quantitativos. Mediante a essência contábil do
dinheiro chegou-se, na relação dos elementos da vida, a uma precisão, a uma
segurança na determinação de igualdades e desigualdades, a uma univocidade nos
acordos e combinações — tal como, externamente, foi propiciado pela difusão geral
dos relógios de bolso. [...] Mediante a essência contábil do dinheiro chegou-se, na
relação dos elementos da vida, a uma precisão, a uma segurança na determinação de

51
igualdades e desigualdades, a uma univocidade nos acordos e combinações” (SIMMEL,
2005, p. 580).

E assim:

“A técnica da vida na cidade grande não é concebível sem que todas as atividades e
relações mútuas tenham sido ordenadas em um esquema temporal fixo e supra-
subjetivo” (Idem).

Essas características causam respostas como o caráter blasé citado pelo autor, assim
como a forte impessoalização das relações sociais, as quais são, cada vez mais, abordadas
de forma unilateral e autocentrada. A todas essas imposições da vida econômica enérgica
da cidade grande em relação aos sujeitos, podemos perceber o surgimento de resistências.
A fuga dessa homogeneização e da opressão, que o capitalismo provoca ao totalizar-nos, é
marcante na valoração positiva de respostas irracionais e apaixonadas de um
comportamento mais humano, “peculiar e não-esquemático” (Ibidem, p. 581).

Portanto, a cidade não somente é o locus da luta política entre os diversos atores
divergentes, como também “participa efetivamente da conformação das modalidades
interacionais” (NUNES, 2012, p. 445), o que nos possibilita a análise dos fenômenos
urbanos a partir do prisma das ciências sociais (Ibidem). A cidade se apresenta, não só,
como local da interação física e simbólica, mas também, como fator determinante nas
formas como as relações interpessoais se dão, influindo diretamente na percepção e na
vida das pessoas.

Para Iris Marion Young, a visão da política como algo racional, impessoal e imparcial é
uma forma de conceber o discurso dos privilegiados como legítimo, por este abraçar o
ponto de vista de todos os indivíduos. A política, portanto, é vista como um local onde
deve reinar o ideal da imparcialidade, sendo vetados os atores percebidos como
apaixonados e/ou parciais, como na maioria dos casos, mulheres, negros e índios (YOUNG,
2012).

“O ponto de vista dos privilegiados, sua experiência e seus padrões particulares, são
interpretados como normais e neutros. [...] Nesse caso, não apenas a experiência e os
valores dos oprimidos são ignorados e silenciados mas também são prejudicados por
suas identidades situadas. [...] O ideal da imparcialidade legitima as hierarquias no
processo decisório e permite que o ponto de vista dos privilegiados apareça como
universal”. (Ibidem, p. 193).

O Estado, portanto, se apresenta como natural (como vimos em Bourdieu) e a cima


dos conflitos por possuir um ponto de vista impessoalizado e racionalizado, como nos
afirma Young. No plano da sociedade civil é dessa mesma forma que os conflitos políticos

52
são vistos, a partir de uma racionalização das vontades e da normatização da vida social
através da Constituição, da Administração Pública e, principalmente, do Direito Civil.

Dessa forma, o último ponto mencionado aqui sobre a mobilização autônoma diz
respeito à necessidade de romper com o processo, no qual a cidade importância central,
de racionalização e normatização da vida social, e, portanto, por reconquistar fisicamente
e simbolicamente os espaços ocupados pelo Capital e pelo Estado. A procura é por
possibilitar os bens simbólicos e materiais, necessários à vida em sociedade, para os
membros dos movimentos sociais, e universalizá-los para todas e todos que desejam
compartilhar e participar desta ressiginificação.

Algumas considerações sobre o contexto latinoamericano e brasileiro já foram


traçadas no subcapítulo 3.3 desta monografia, nos restando a contextualização dos níveis
estadual e, principalmente, municipal. O Estado do Rio de Janeiro possui um longo
histórico de opressão, o qual fora iniciado com a espoliação colonial portuguesa. Este
histórico é contrabalanceado pelos eventos marcantes de resistências, as quais contaram
com a força de múltiplos atores como: as diversas tribos indígenas unidas na Confederação
dos Tamoios, os escravos rebelados em sua resistência nos Quilombos e os
anarcosindicalistas imigrantes que marcaram a resistência na cidade do Rio de Janeiro, no
fim do século XIX e início do século XX.

Ao lado da questão trabalhista, tratada como caso de polícia, a questão da moradia


urbana foi um forte problema da cidade no início do século XX. A dinâmica ocupacional do
Rio de janeiro, por sua escassez de recursos investidos e pela consequente falta de infra-
estrutura, o centro e seus arredores foram ocupados pela elite econômica, o que causou a
expulsão dos pobres para as periferias (MAGNI e MARQUES, 2010). Este fato gerou um
modelo dicotômico, com um centro rico em investimentos, e uma periferia pobre, sem
investimentos em políticas públicas adequadas, servindo como moradia para os
trabalhadores.

A história da cidade, portanto, é marcada por um modelo espacial de exclusão dos


mais pobres em relação aos locais que concentram os investimentos e nos quais,
freqüentemente, estes trabalham. Esta política de exclusão se tornou ainda mais forte,
com sua adoção como política pública, principalmente com as reformas empreendidas por
Pereira Passos, e posteriormente, em ondas de expulsões do centro nas décadas de 1950,
1960 e 1970 (Idem). A política de remoções, após diversas revoltas, deu lugar a políticas de
urbanização de favelas após os anos 80, porém nunca foi completamente abandonada
pelo Estado, sendo utilizada sempre que um território se mostra estratégico a este.

53
As exceções a este processo de centralização dos recursos - e por isso desde já, são
tomadas como resistências a este processo - são as favelas, principalmente as que se
situam geograficamente próximas ao centro e à zona sul da cidade, assim como as
ocupações urbanas, que procuram justamente uma moradia próxima ao centro para os
que dela necessitam.

Através do número gigantesco do déficit habitacional na cidade do Rio de Janeiro24


podemos ter ideia da quantidade de pessoas que fazem parte deste quadro de exclusão
(exclusão esta não somente econômica, como também cultural, intelectual e
principalmente participativa, no que diz respeito a questões centrais, como a política) em
relação à política urbana do Estado. O centro da cidade, por sua vez, conta hoje com
aproximadamente 48 ocupações urbanas25, em luta diária contra a especulação imobiliária
e o processo de gentrificação, atingindo frontalmente a questão do déficit habitacional e
ao mesmo tempo a dos inúmeros prédios abandonados26 no centro do Rio de Janeiro.

A todo esse cenário, se soma o componente histórico atual, dos interesses


econômicos no Rio de Janeiro sob os preparativos para os megaeventos de 2014 e 2016.
Neste contexto, duas situações especialmente conectadas são exemplares do que
acontece no Rio de Janeiro: a utilização da UPP como força estratégica nas áreas de
interesse econômico, e a expulsão de moradores das áreas também estratégicas para os
megaeventos, com foco principal na região portuária, com o projeto Porto Maravilha, e no
entorno do Maracanã, com a remoção da Favela do Metrô e da Aldeia Maracanã.

A primeira situação foi muito bem explicitada por Marcelo Freixo, em sua campanha
pela prefeitura do Rio em 2012. Esta se mostra clara quando verificamos que o mapa das
UPPs está completamente ligado aos interesses econômicos dos megaeventos e
distanciado das comunidades ocupadas por milícias, as quais não interferem nesse projeto
de cidade27. A segunda situação está vinculada à primeira no que tange à utilização da
cidade como fonte de recursos estratégicos para o capital. A expulsão dos moradores se
mostra extremamente unilateral e autoritária em flagrante desrespeito ao direito à
moradia, na maioria das vezes sem se quer apresentar alternativas viáveis de realocação.

24
Segundo MAGNI e MARQUES, 2010, o déficit habitacional - quando não há moradia adequada - no estado
do Rio de Janeiro chega a quase 430 mil, nos quais 75% se concentra na região metropolitana.
25
Dados de 2010, retirados de: “Ocupação Manoel Congo: uma experiência na luta urbana do Rio de Janeiro”
de Caroline Rodrigues da Silva. Apresentado em Londrina, 2010.
26
Segundo Ligia Coelho, da Rede Nacional de Jornalistas Populares, há hoje no estado do Rio de Janeiro,
cerca de 5 mil imóveis abandonados. Em: http://www.renajorp.net/2006/07-ocupacoes-rj.html acessado em 7
de janeiro de 2014 às 23:50.
27
Ver “Por que as UPPs não chegam para todos”em: < http://www.marcelofreixo.com.br/site/noticias
_do.php? codigo=104> acessado em 7 de janeiro de 2014 às 00:10.

54
No caso da área portuária, esse processo é muito bem descrito no panfleto circulado
na Caminhada das comunidades da Região Portuária28 quando estas denunciam o
fechamento de locais vitais para os habitantes da zona portuária como Colégio Estadual
Benjamin Constant e o Colégio Estadual Vicente Licínio Cardoso. A denúncia também se
refere à remoção de 800 famílias no Morro da Providência e de grande parte dos
moradores da comunidade de Pedra Lisa, assim como a violência estatal às ocupações
urbanas, como o Quilombo das Guerreiras, ao cortar seu abastecimento de luz e água, por
exemplo.

No entorno do Maracanã a situação é parecida, pois a comunidade conhecida como


Favela do Metrô – parte da comunidade da Mangueira - se encontra há mais de um ano
sob ameaça unilateral de despejo sem alternativas viáveis. Nos últimos dias
(marcadamente no dia 7 de janeiro), as moradoras e os moradores desta comunidade
protagonizaram uma resistência heróica contra as arbitrariedades do Estado, lutando por
seu direito à moradia digna, no momento em que este simplesmente ignoram o transtorno
gerado pelo desalojamento de quem ali morou. O projeto visualizado pelo Estado em
relação aos movimentos sociais autônomos se torna extremamente claro na forma como
este abordou as mobilizações feitas pela Aldeia Maracanã e por aqueles que apóiam esta
construção coletiva.

5.2 Universidade-Aldeia Maracanã29


A luta pela construção de uma Universidade indígena de forma autônoma no bairro do
Maracanã está completamente imersa na contextualização citada acima, assim como no
processo histórico de opressão do Estado brasileiro às minorias étnicas. A Universidade-
Aldeia Maracanã representa não só um grande exemplo de mobilização autônoma, mas
também de toda a luta indígena, completamente invisibilizada nos centros urbanos, a qual
é tratada como uma questão marginal e superada. O Estado se apresenta, por um lado,
como repressor e genocida na história do movimento indígena, e por outro, como tutelar e
neutralizado, buscando gerenciar a luta sem dar voz e protagonismo a quem nela está
diretamente interessado, ou seja, aos próprios índios.

28
Ver: “Caminhada das comunidades da Região Portuária: Moradia, Saúde e Educação!” em:
<http://terraeliberdade.org/sample-page/panfletos/>
29
É importante reforçar o que foi afirmado na Metodologia (página 10), ou seja, que o objeto de estudo aqui
proposto não são os movimentos sociais, mas antes, suas ações, procurando empreender, não uma descrição
acrítica destes movimentos o que visaria catalogá-los, mas sim, analisar suas ações e organização procurando
fornecer um estudo utilizável para outros movimentos sociais autônomos.

55
O casarão da rua Mata Machado foi doado para a União por Luis Augusto Maria Eudes,
o duque de Saxe, genro de D. Pedro II, no ano de 1865 para a construção de um centro de
investigação indígena. Em 1910, Cândido Mariano da Silva Rondon, o Marechal Rondon,
criou, neste casarão, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que vem a ser hoje a FUNAI. O
Museu do Índio fora criado em 1953, após anos de pesquisas etnológicas e lingüísticas,
neste mesmo prédio, se mantendo até 1977 quando o museu foi transferido para o bairro
de Botafogo, ficando desde então abandonado30.

Em 20 de outubro de 2006, indígenas de diversas etnias ocuparam o prédio


abandonado, decidindo zelar pelo espaço que historicamente esteve relacionado com a
luta indígena. Desde então, o antigo museu do índio se tornou palco de uma resistência
heróica, assim como um local, não somente para o desenvolvimento de estudos históricos
e etnológicos sobre a causa indígena, como também para o desenvolvimento de diversos
tipos de atividades culturais31.

Como bem salienta Urutau32, a principal virtude da ocupação da Aldeia – no prédio


que, assim como a causa indígena, estava completamente abandonado – foi dar
visibilidade à luta indígena e aos indígenas que moram na cidade do Rio de Janeiro.
Segundo José:

“Todo mundo vai pro Maracanã ver futebol, até olha, mas não enxerga [...] estava
completamente coberto, com a chegada ali nós começamos a descobrir [...] e passar
mais visível, é muito invisível, como a questão indígena” (URUTAU, 2014).

Segundo ele, os mais de 20.000 indígenas no Rio de Janeiro contabilizados pelo IBGE
em 2013 se encontram nos maiores complexos da cidade: o complexo do Alemão, da
Maré, da Rocinha e do Juramento. Em conexão direta com a desmobilização dos indígenas
está a perda da conexão entre os moradores do Rio de Janeiro e seus ancestrais indígenas,
o que se configura, não só como uma perda da história, da ancestralidade e da cultura
indígena, mas também como uma perda de memória da nossa população.

Portanto,

“A autoafirmação é positiva e sempre vai ser, na questão que, todos os


levantamentos sempre levam a diminuir o número de indígenas, e a Aldeia Maracanã
vem fazer o contrário, aumentar com a autoafirmação” (Idem).

30
Ver: Centro de Mídia Independente, CMI-Brasil, 24/10/2011, “Museu do Índio teme desalojo e exige
direitos frente ao Estado”. Acessado em 20/01/2013, às 16:33; e O GLOBO, 15/01/2013 “Museu do índio
funcionou nos arredores do Maracanã, na Zona Norte, de 1953 a 1977”. Acessado em: 20/01/2013, às 16:29.
31
Ver: Carta da Aldeia Maracanã, escrita em Junho de 2012:
<autogestao.org/wpcontent/uploads/2012/07/carta.doc>
32
Entrevista gravada concedida por Urutau, conhecido como José Guajajara, a mim, no dia 24/01/2014, às
17:20.

56
É exatamente esse vínculo, esse cordão umbilical, que a Aldeia, quanto ocupação
cultural, traz à tona em suas aulas de língua tupi, de maraká, e em suas manifestações
culturais de canto e dança, por exemplo, o que torna visível, não só a cultura indígena, mas
também os próprios indígenas.

Em relação à procura pela construção das árvores genealógicas, feitas pelas jovens
que vão à Aldeia:

“Tanto a árvore por parte paterna quanto por parte materna nunca vai dar na
Europa, o filho não vai estar na Europa. O filho está aqui, nunca saiu daqui. Se você for
puxar, e montar a árvore genealógica, por parte paterna e parte materna, vai acabar
aqui. Os ossos estão enterrados aqui, não estão na Europa, não estão em outra parte
das Américas. Eles estão enterrados aqui” (Idem).

Através dessa autoafirmação e de maior conhecimento sobre a própria ancestralidade,


começamos também a diferenciar e valorizar os diferentes povos indígenas.

“Os biotipos são diversos. [...] A partir dali as pessoas começaram a ver, a observar, a
olhar a diversidade, tirar aquele senso comum do índio genérico. Passar a pluralizar os
povos indígenas. [...] Você começa a falar em povos, em nação, em línguas, você já
começa a falar diferente” (Idem).

Por outro lado, quando Urutau fala sobre aumentar o número de índios, está
dialogando também com o que o “Manifesto do Movimento Universidade-Aldeia Indígena
Marakà ànànà !” 33 chama de indianização do mundo, ou seja, com o processo de reaver a
conexão perdida com nossos ancestrais:

“É um caminho sem retorno, depois que você adentrar em sua árvore genealógica,
cada vez mais você vai pesquisar, cada vez mais você vai querer ver seus ancestrais e os
próximos a você. Você vai ser um pesquisador de seu próprio Eu. (Idem)”.

A autoafirmação, portanto, se mostra possível: pelo reencontro com nossos ancestrais


indígenas, ao formarmos e tomarmos consciência de nossa ancestralidade; pela
mobilização dos indígenas entorno de sua causa e de seus direitos perdidos; e ainda, como
forma de “afrontar e romper com o Estado, e seu modelo implementado ao longo destes
513 anos” (Idem). Portanto, a autoafirmação se choca diretamente com o paradoxo posto
por Scott (2005), quando esta fala sobre o fechamento em si e sobre a guetificação das
minorias, ao mostrar a possibilidade de reaver a identidade perdida e a indianização do
mundo, por um lado, sem perder a crítica à forma como o Estado sempre se colocou no
Brasil, pelo outro.

33
O Manifesto pode ser encontrado em: <http://racismoambiental.net.br/2013/08/manifesto-do-movimento-
universidade-aldeia-indigena-maraka-anana/> .

57
Portanto, a Aldeia-Universidade Maracanã, nos momentos em que esteve ocupada
pelos indígenas, trouxe à tona os problemas daquelas e daqueles que têm ancestralidade
indígena, assim como trouxe à tona também a própria ancestralidade indígena dos
cidadãos do Rio de Janeiro. Esse movimento se mostrou importante como ocupação
cultural, perpetuando as tradições indígenas, mas também, se mostrou importante como
espaço de referência para encontros entre todas e todos que resistem às arbitrariedades
do Estado e do Capital, mostrando, assim, a importância da coordenação com outros
movimentos sociais, e não somente, mas também, o movimento indígena.

“Os indígenas começaram a vir para a Aldeia Maracanã, como referência nacional,
para conhecer, participar, e fazer parte desta história” (Idem).

Uma característica central, e que foi mais reforçada ainda no segundo momento da
ocupação, foi a autonomia deste movimento social. Assim, a Aldeia-Universidade
Maracanã, mostrou que, mais do que um objeto de estudo antropológico, os indígenas são
capazes de contar sua própria história e perpetuar sua cultura. Além de um campo de
estudos para a questão indígena, portanto, a Aldeia mostrou que os índios possuem a
“excelência da cultura” (Idem), o que os possibilitou a discutir, em seminários e
congressos, de igual para igual com os especialistas.

A ocupação cultural passou a ser cada vez mais ameaçada pelos interesses do Capital,
ligado à Copa, principalmente, no Maracanã. A primeira tentativa de remoção se deu no
dia 12 de janeiro de 2013, quando não havia documentos de integração de posse (não
poderia haver a reintregração, porque o Estado não estava na posse do prédio). A segunda
se deu, de forma truculenta, no dia 22 de março. A resistência, porém, seguiu com toda
força, sendo o nome da Aldeia sempre lembrado nas jornadas de Junho. A reocupação
veio no dia 5 de agosto de 2013.

Neste segundo momento, podemos perceber uma diferença no enquadramento


interpretativo da Aldeia no momento em que a autonomia ganha uma importância muito
maior. Após a primeira expulsão do prédio, setores que estavam do lado do movimento
social passaram a negociar sua retirada com o Estado, o que gerou insatisfação naqueles
que acreditavam em uma ocupação cultural autônoma, a qual permitisse ao índio contar
sua própria história, e, portanto, ser protagonista de sua própria luta. Podemos ver como a
autonomia foi uma questão central durante o processo de retomada via ação direta no
Manifesto do movimento Aldeia (R)existe.

58
Assim, a luta da Aldeia Maracanã se mostra como um exemplo positivo de
mobilização autônoma, pois, ainda que não esteja hoje na posse do prédio que lhe
configura como movimento social territorializado, certamente conseguiu criar novos laços
sociais. Além da criação de laços sociais não-capitalistas e antiautoritários, a luta pela
construção da primeira universidade indígena no Brasil, ainda traz outras características -
muitas das quais já enunciadas - que são interessantes para o estudo aqui proposto como:
o reconhecimento do Estado como origem de repressão histórica; o protagonismo
indígena na luta; a fraternidade e a “indianização” (ALDEIA MARACANÃ (R)EXISTE, 2013); a
coordenação da luta com outros movimentos sociais; e, por fim, a importância da
educação popular como eixo de resistência e construção coletiva.

A primeira característica, ou seja, o reconhecimento do Estado como culturalmente e


historicamente opressor (e, portanto, de adoção de um enquadramento interpretativo
libertário) se liga diretamente à necessidade da ação direta e, principalmente, da
autonomia da Aldeia como movimento social. Portanto, uma das pré-condições para a
construção coletiva da Aldeia-Universidade Maracanã é “a defesa de princípios políticos
culturais indígenas ancestrais, de uso comunitário, ancestralidade (historicidade), e
autogestão” (Idem). A autonomia, dessa forma, se liga completamente ao manejo e à
autogestão do espaço, enfatizando que a aldeia-universidade deve ser gerida por quem
esteve presente na luta por sua construção, assim como por quem nela habita.

Este ponto diz respeito também à segunda característica, do protagonismo indígena, a


qual nega qualquer tentativa de tutela da luta dos indígenas por um espaço de resistência
e memória de seu povo. Por outro lado, há uma iniciativa pela fraternidade com não-
indígenas “historicamente minorizados, favelizados, de ocupações, outras aldeias,
quilombos, trabalhadores, movimento feminista entre outros, de resistência ao modelo de
desenvolvimento capitalista dominante e de cidade (sociedade) global capitalista de
exceção” (Idem).

Portanto, o protagonismo indígena e a autonomia dos lutadores do movimento social


pela aldeia-universidade maracanã devem ser respeitados frente a um passado e presente
de repressão às minorias indígenas. Porém, não há um essencialismo fechado, ocorrendo
na verdade “o reconhecimento da cultura e das relações sociais a partir das comunidades
de resistência” (Idem) o qual deve “ampliar as possibilidades de reinvenção, também como
“indianização”, do mundo” (Idem).

A quarta característica se relaciona diretamente com a anterior, e foi largamente


citada neste estudo, no que se trata da coordenação com outros movimentos sociais
antisistêmicos. Através desta iniciativa a Aldeia-Universidade Maracanã se recusa a fechar-
se em si mesma e abre espaço para buscar alianças, apoiadoras e apoiadores em outros

59
movimentos sociais – sempre mantendo a importância da autonomia nestas relações, os
quais são de solidariedade e não de caridade (opondo alianças horizontalizadas às
verticalizadas).

Esta coordenação mostra como a luta pela aldeia-universidade vai para além de suas
próprias conquistas, no momento em que manifesta apoio a outros movimentos sociais –
como os atingidos pela obra do Comperj, por exemplo – e a conquistas mais
universalizadas, como no combate à privatização. A Aldeia-Universidade Maracanã,
portanto, se mostra completamente aberta a todas e todos que desejam somar em sua
luta e com suas lutas.

Por fim, a questão da educação popular se mostra importante no momento em que a


Aldeia Maracanã afirma seu projeto político-pedagógico pela construção de Universidade
Indígena em sua área (todos os 14,3 mil m²). O projeto de Universidade se mostra vital
para a promoção de defesa dos costumes e da cultura indígena, assim como para manter
suas próprias formas de se relacionarem no que diz respeito à língua, à música, à pintura, a
rituais e às interpretações de mundo, assim como, de intercâmbio de conhecimentos.

Dessa forma, a construção coletiva da Aldeia-Universidade Maracanã reflete grande


parte dos princípios que foram expostos aqui, como: a autogestão do espaço físico e
simbólico da aldeia, mantendo o protagonismo indígena; a autonomia do movimento
social em relação ao Estado; a construção do Poder Popular, no momento em que dá
através da luta autônoma e estabelece coordenação com outras lutas; e a Sociabilidade
Libertária, a qual se mostra nítida ao adentrarmos seu espaço, e se apresenta na defesa da
“pluralidade e interculturalidade com pleno respeito às diferenças” (Idem) sendo “um
Espaço livre de opressões, de qualquer forma preconceito, como racismo, sexismo,
exclusão por diferenças culturais, de hábitos e costumes” (Idem)34.

Este movimento autônomo ainda reflete a característica mais importante percebida


aqui, através das obras de Raúl Zibechi, a construção de laços sociais horizontalizados,
não-capitalistas e antiautoritárias, através, principalmente da territorialização e da
educação popular, no caso. É precisamente a reconquista e a retomada espacial e
simbólica destes espaços que geram a mudança social autônoma em relação ao Estado e
aos partidos políticos que procuramos nesta pesquisa. Esta mobilização autônoma se
iniciou através de seus próprios atores sociais, sem precisar do aval e da ordem de
nenhuma elite institucionalizada e se mostra com um processo de aprendizado com a

34
Em: “Bases e Princípios do Manejo Indígena da Universidade-Aldeia Intercultural Maraká’ànà” presente
somente na plataforma de facebook, como em:
<https://www.facebook.com/anonymousrio/posts/655366754513676>

60
própria luta por parte daquelas e daqueles que estão diretamente interessadas e
interessados nesta reconquista simbólica da vida em sociedade.

Este segundo momento de construção da Aldeia-Universidade Maracanã foi


interrompido em 16 de dezembro de 2013, durante o encontro da Frente Independente
Popular, que ocorria na Aldeia, com truculência policial e nova expulsão após tentativa de
retomar o espaço anexo, contido nos 14,3 mil m² citados. Houve ainda muita resistência
do lado de fora, principalmente, pelo próprio Urutau – entrevistado aqui – ao subir numa
árvore próxima ao prédio e ser retirado pelas forças do Estado.

61
6. Conclusões

Através de tudo o que foi visto até aqui podemos fortalecer substantivamente o
argumento proposto em defesa da mobilização autônoma, como alternativa em relação às
mobilizações tuteladas, tomando os movimentos sociais por sua característica de
movimentos nãoestadocêntricos (portanto, em contraposição aos movimentos políticos).
A autonomia se mostra vital para estes movimentos – sejam estes sendo chamados de
movimentos antisistêmicos (ZIBECHI, 2007 y 2008) movimentos-comunidades (Idem),
movimentos antiestatais (ZIBECHI, 2006a), autoorganizações autônomas (LANDSTREICHER,
2007) ou movimentos sociais autônomos, como neste trabalho – dando vida e força a
estes durante sua mobilização.

A autonomia, no momento em que desamarra estes movimentos sociais de atores


externos, e, portanto, de interesses externos, dialoga diretamente com a potência de agir
destes e, portanto, com a capacidade de “perseverar em seu ser” e de “agir
simultaneamente sobre um número maior de coisas” (SPINOZA, p. 105 e 62,
respectivamente). Porém, esta capacidade de ação não deve ser vista como um valor em si
mesmo, mas somente o é na medida em que possibilita a emancipação e a realização
social de seus membros e de todas e todos que desejam compartilhar de sua luta.

Grande parte dessa realização se encontra quando estes movimentos conseguem


ocupar ou reconquistar territórios, alterando-os fisicamente e simbolicamente procurando
construir relações interpessoais livres, não-capitalistas e antiautoritárias, possibilitando a
autogestão dos recursos para que os que antes consumiam o que sobrava da sociedade de
consumo passem a participar ativamente e colher os frutos de seu próprio trabalho
coletivamente. Neste sentido, a unidade mínima deve ser, antes do movimento social, o
indivíduo, sendo respeitado em suas necessidades reais e em suas vontades como ser
humano (LANDSTREICHER, 2007).

Assim, o papel da teoria anarquista foi, basicamente, o de fornecer um


enquadramento interpretativo que desse nexo e embasamento à demanda por autonomia
e autogestão por parte destes movimentos. O anarquismo pode ser visto - como em
GORDON, 2001 – como cultura política, ou seja, como padrão interpretativo e
organizativo, tendo como fio condutor a Sociabilidade Libertária. Portanto, há uma grande
preocupação pelo meio como é levada adianta a emancipação social, o que dialoga com a
ideia de Política Pré-figurativa.

Não há aqui uma preocupação purista, a qual poderia tratar o anarquismo como uma
teoria fechada a novas percepções advindas da realidade prática. A consciência prática -

62
como foi colocado ao aplicarmos a teoria de Giddens – se mostra importante para
valorizarmos a experiência dos próprios atores destes movimentos sociais, os quais
enfrentam diversas questões que não estão prescritas na teoria, como por exemplo, no
diálogo com o Estado. Nesse sentido, a teoria deve servir para dar instrumentos analíticos
aos movimentos e não como gaiolas, que possam imobilizá-los. A inovação e a imaginação
serão sempre úteis para a mobilização autônoma, já que esta procura fugir da tutela de
vanguardas e teorias fechadas.

Na questão substantiva, o anarquismo coloca a preocupação com o poder popular


para tornar a emancipação social e trabalhista possível e universalizante, tocando na
questão da coordenação horizontalizada entre os movimentos sociais e, na questão da
estratégia, para além dos ganhos a médio/curto-prazo. Esta corrente ideológica ainda
dialoga com outros aspectos do Confronto Político, como com as diferentes formas de
ação e ainda com a possibilidade de produzir novos significados às diversas identidades
sociais, como em relação às categorias tomadas pejorativamente como Lúmpen
Proletariado, e ainda com a questão indígena.

Além do Confronto Político, estabelecemos aqui o diálogo do anarquismo com o


prisma das Sociedades em Movimento, de Raúl Zibechi, verificando uma grande
complementaridade entre essas duas correntes, assim como divergências pontuais. O
grande mérito da utilização da teoria deste autor é a afirmação da territorialização como
forma de criar novas relações interpessoais (através de diferentes vias, como a educação
popular, por exemplo), como no caso da construção da Aldeia-Universidade Maracanã. A
autogestão dos recursos de forma comunitária mostra a possibilidade de se combater a
especialização e a divisão capitalista do trabalho (fenômenos abordados por SIMMEL,
2005; ELIAS, 1994 e GIDDENS, 2002) como bem explicita KROPOTKIN (1953).

Estabelecemos ainda um interessante diálogo entre o Anarquismo (carregado das


valorações apontadas por Zibechi) e versões diferentes da teoria estruturalista, para
verificarmos de que forma as relações interpessoais e as estruturas de poder podem ser
apreendidas pelos movimentos sociais durante sua mobilização. O Estado, portanto, fora
desnudado, através da reconstrução de sua gênese levada a cabo por Bourdieu, e suas
estruturas de poder colocadas à luz da desnaturalização, indo de encontro com suas
imposições de categorias de visão e divisão, o que nos chama atenção para não
reproduzirmos novas opressões. A possibilidade de confrontar estas categorias de visão e
divisão impostas pelo Estado dialoga diretamente com a Ação Direta Performática dos
movimentos não-territorializados, chocando, em suas intervenções, com a normalidade
social imposta.

63
Para o contrapeso da agência, em relação à estrutura, a teoria de Giddens se mostrou
bastante útil ao tomarmos a mobilização autônoma sob o ponto de vista estratégico,
situando ao mesmo tempo os limites desse ponto de vista estratégico. Por fim, o
anarquismo afirma a necessidade de uma revolução feita de baixo para cima, no quadro
social e da periferia para o centro, no quadro espacial. Em consonância à tal afirmação, a
cidade deve ser vista, por um lado, como parte do espaço que se deseja reconquistar, e por
outro, pela importância da periferia e da participação direta dos excluídos nesse processo
de mobilização autônoma pelo direito à cidade.

Portanto, somente no momento em que os espaços economicamente e


simbolicamente excluídos se tornarem palcos de resistência e emancipação (como por
exemplo, as partes mais afastadas da Zona Norte do Rio de janeiro), é que poderemos falar
em Revolução Social35. A mobilização autônoma é vista como contraposição à política
estatal (buscando reconquistar espaços em relação a esta), que se mostra naturalizada e
neutra, ao mesmo tempo em que agride e oprime todas e todos que se mostram
incapazes de interferir em seu processo de totalização e normatização.

Dessa forma, este é um estudo que visa à contribuição em relação a estes movimentos
sociais autônomos, principalmente, em relação ao meio que se busca para atingir as
finalidades próprias de cada um deles. Possui, portanto, a pretensão – com toda a
limitação que um trabalho de conclusão de graduação possui - de estudar questões que
facilitem de alguma forma a mobilização de movimentos como a Aldeia-Universidade
Maracanã (e, tantos outros mobilizados contra as arbitrariedades no Rio de Janeiro). E
ainda, de movimentos territorializados, como os que promoveram o Segundo Encontro de
Economias Coletivas, no Morro do Timbau, localizado no Complexo da Maré, em
novembro de 2013.

Para estes últimos, a ideia de autogestão e as relações com o Estado, sempre tentando
manter um satisfatório grau de autonomia, são questões cruciais para seus projetos de
emancipação e de produção/comercialização. Certamente, o tema dos movimentos sociais
autônomos é muito mais extenso que o esforço empreendido aqui assim como as
questões encontradas por estes movimentos são muito mais complexas que essa,
mostrando sempre que a prática é sempre mais rica que a teoria, e que a imaginação é
importante para resolver casos não previstos.

35
Um estudo que pode ser colocado em diálogo com a importância da participação dos que se sentem
excluídos e de como estes se comportam em relação à política tradicional, é o trabalho de Anthony M. Orum,
em: “Social Constraints in the Political Arena” Political Behavior, Vol. 1, No. 1 (Spring, 1979), pp. 31-52.

64
Por fim, o Anarquismo se mostra importante para levar a Ciência Política a outras
reflexões, que não as relacionadas aos problemas institucionais e estatais. O poder estatal
deve ser visto de forma crítica, caso contrário, podemos cair na naturalização desta imensa
estrutura, como bem salienta Bourdieu. Neste sentido, a Sociologia Política se faz
importante para irmos além do institucionalismo, tão caro à Ciência Política. O
Anarquismo ainda pode responder a questões importantes desta ciência, como na questão
da participação, na teoria da democracia, e como na questão do multiculturalismo (como
em SCOTT, 2005 e mesmo em TAYLOR, 2005, quando temos um caso que vai de encontro
tanto ao Estado liberal quanto às hierarquias tradicionais conservadoras), na teoria
política.

Um esforço central para os que desejam realizar um estudo crítico dentro da Ciência
Política, é para utilizá-la como instrumento de leitura para os excluídos e as excluídas, que
sofrem com as arbitrariedades cotidianas das estruturas de poder e dos sistemas de
dominação. Um passo para isso, talvez seja, o de perceber o poder como potência de agir,
e não como algo a ser conquistado, que visaria a imposição de uma situação aos demais.
Para lidar com estas questões críticas em relação ao poder, o estudo de movimentos não-
estadocêntricos se mostra um bom caminho.

65
REFERÊNCIAS
ALDEIA MARACANÃ (R)EXISTE! Manifesto do movimento aldeia-universidade indígena
marakà ànànà! Rio de Janeiro, 2013.

AVELINO, Nildo. Estudos anarquistas e teoria política. Revista de Ciências Sociais, pp. 187-
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