Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
DA FUNÇÃO À ESTRUTURA
Revista de Processo | vol. 158/2008 | p. 9 - 19 | Abr / 2008
DTR\2011\1512
1.A crise do Poder Judiciário tem sido uma questão recorrente que nos ocupa, seja
quando lamentamos as atribulações diárias na atividade forense, seja quando
1
procuramos, através de reformas legislativas, reduzir suas proporções. - 2.A separação
entre Direito e Justiça – que nasceu no Direito Romano tardio – persegue uma rota que
o tem aproximado, cada vez mais, do Poder. Esta relação entre Direito e Poder torna-se
visível e mais nos desafia e inquieta quando suas conseqüências se tornam agressivas.
Ela nos distancia, profundamente do Direito Romano, e se revela no fenômeno que
Castanheira Neves indicou como sendo a funcionalização do Direito; na verdade, não
apenas do direito, mas também da Política (O direito hoje e com que sentido. Lisboa:
Instituto Piaget, 2002, p. 30 e ss.) - 3.Nossa submissão ao normativismo é inevitável.
Pensamos e trabalhamos, mesmo no domínio das ciências sociais, através de normas,
como uma imposição determinada pela história. - 4.Nossa percepção, no entanto, não
alcança os problemas estruturais que condicionam a atual situação vivida pelo Poder
Judiciário – seja porque eles se tornaram, para nossa compreensão, “naturais”, como o
dia e a noite e o movimento dos astros –, seja por parecerem-nos, de qualquer modo,
como inalteráveis – a verdade é que a estrutura do sistema não é questionada, nem
problematizada pelos que sofrem os danos de uma justiça que perdeu, até mesmo, a
desejada funcionalidade. - 5.A questão, portanto, é a seguinte: trata-se de mau
funcionamento da jurisdição? A ineficiência de que nos lamentamos será devida ao
desinteresse dos operadores forenses? Ou, quem sabe, ao um inconsciente desejo
coletivo de revolta contra o sistema processual? Serão nossos juízes e advogados
incapazes de desempenharem suas funções de modo satisfatório? - 6.O problema, sem
dúvida, não é funcional. Dentre outros muitos fatores desta ordem, ocorre-me o primeiro
deles no próprio conceito e limites da jurisdição que praticamos, como herança da
Revolução Européia, desde suas origens medievais. - 7.A busca da “vontade da lei”, que
se tornou uma ingênua fantasia, fora capaz de produzir frutos numa sociedade
homogênea e estável como foi a Europa do século XIX; ou, se não plenamente estável,
ao menos não sacudida em seus alicerces por contínuas e profundas tormentas
transformadoras, como a nossa. - 8.Acontece, no entanto, que as grandes linhas do
sistema, seus pressupostos políticos – o processo como ciência –, aspiram, como todas
as leis científicas, o status de “verdades eternas”. Isto também é um pressuposto
estrutural do sistema processual, em virtude do qual ele acabou “congelado” no tempo,
sem compromisso com a História. - 9.Para quem visualiza o sistema pela perspectiva de
um operador forense, seu funcionamento não se mostra apenas insatisfatório. Mostra-se
assustador. Como era de supor, a extraordinária litigiosidade que caracteriza nosso
Página 1
Da função à estrutura
1. A crise do Poder Judiciário tem sido uma questão recorrente que nos ocupa, seja
quando lamentamos as atribulações diárias na atividade forense, seja quando
1
procuramos, através de reformas legislativas, reduzir suas proporções.
Diria que a crise é da modernidade e de seus sonhos, dentro da qual tem curso a
chamada crise do Poder Judiciário. Minha opinião, porém, é de que essa crise não
decorre de um inadequado ou insuficiente desempenho funcional da jurisdição.
A meu ver, o que está em crise é o sistema. Certamente não apenas o sistema
processual. A crise do Poder Judiciário é reflexo de uma mais ampla e profunda crise
institucional, que envolve a modernidade e seus paradigmas.
2. A separação entre Direito e Justiça – que nasceu no Direito Romano tardio – persegue
uma rota que o tem aproximado, cada vez mais, do Poder. Esta relação entre Direito e
Poder torna-se visível e mais nos desafia e inquieta quando suas conseqüências se
tornam agressivas. Ela nos distancia, profundamente do Direito Romano, e se revela no
Página 2
Da função à estrutura
Estas são algumas das condições estruturais que presidem a atividade do Poder
Judiciário. Conseqüentemente, resta, como tarefa a ser cumprida pelos que participam
da experiência forense, a formulação de um diagnóstico mais abrangente que nos possa
indicar os fatores responsáveis pelos problemas atuais do Poder Judiciário, visando
encontrar, não apenas os pontos que mais diretamente o sufocam, mas também e
especialmente investigar suas causas remotas.
É comum ouvirmos dizer que o Poder Judiciário funciona mal; que é demasiadamente
moroso, ante uma civilização cada vez mais tangida pela pressa e agora já nem se trata
mais de urgência, mas pela pura instantaneidade, com a eliminação do espaço e do
tempo das comunicações virtuais. No que respeita ao direito processual, direi que o
dogmatismo fez com que perdêssemos a visão do bosque. Vemos apenas as árvores e
estamos ofuscados pela sua grandiosidade.
Ao contrário da opinião dominante, porém, penso que o Poder Judiciário funciona bem,
tendo em vista o condicionalismo teórico e político dentro do qual ele sobrevive.
É certo que existem, localizadamente, problemas funcionais, mas eles são em geral
Página 3
Da função à estrutura
Pelo menos, os processualistas, que mais diretamente são atingidos por esse estado de
coisas, não a questionam. Limitam-se a melhorar o seu funcionamento, como se o
problema residisse em algum defeito funcional.
Outro exemplo: o art. 14 do CPC (LGL\1973\5) armou os juízes dos poderes reclamados
pela comunidade jurídica, visando – se não impedir – ao menos limitar as manobras
protelatórias, comuns em nossa experiência judiciária.
Como era de esperar, esses poderes só raramente são utilizados por nossos juízes. As
razões são inúmeras, dentre as quais, é bom não esquecer, está a permanente vigilância
exercida pelas jurisdições “superiores”, burocraticamente legitimadas, sobre a jurisdição
“inferior”.
Seriam os juízes e advogados que não estariam capacitados para praticar a jurisdição
que o sistema concebeu? Se o despreparo para o exercício profissional atinge a todos os
juízes, então, seguramente, devemos suspeitar que o problema deixa de ser funcional,
para tornar-se estrutural.
Não creio que o problema esteja aqui, porque, tanto o Poder Judiciário quanto a Ordem
dos Advogados exercem controle de qualidade, na seleção dos profissionais forenses,
zelando pela competência dos respectivos profissionais.
O Governo, por sua vez, depois de fiscalizar o desempenho das Universidades – mesmo
assim, desconfiando de sua seriedade –, ainda exerce um controle suplementar da
qualidade do ensino universitário. É de supor que, neste particular, estamos fazendo o
que competia fazer.
6. O problema, sem dúvida, não é funcional. Dentre outros muitos fatores desta ordem,
ocorre-me o primeiro deles no próprio conceito e limites da jurisdição que praticamos,
como herança da Revolução Européia, desde suas origens medievais.
Nosso tempo destruiu a esperança de que a lei tivesse um sentido tão permanente e
constante como as verdades matemáticas. Conseqüentemente, a tarefa confiada aos
juízes de descobrir a “vontade da lei” tornou-se uma trágica quimera.
Sabemos, na prática, que nem juízes nem advogados acreditam mais nesse sonho, de
resto tenebroso, sonho de tiranos, supostamente agraciados com poderes
sobre-humanos para produzir – em linguagem unívoca – o direito perfeito, portanto
imutável (Agnes Heller, Mas allá de la justicia, versão espanhola de 1990, Barcelona:
Crítica, p. 283 e ss.).
8. Acontece, no entanto, que as grandes linhas do sistema, seus pressupostos políticos –
o processo como ciência –, aspiram, como todas as leis científicas, o status de “verdades
eternas”. Isto também é um pressuposto estrutural do sistema processual, em virtude
do qual ele acabou “congelado” no tempo, sem compromisso com a História.
De qualquer modo, esta prática estimula o arbítrio, porque os julgadores, por várias
razões e circunstâncias, julgam-se dispensados de fundamentar adequadamente as
sentenças. Quem declara – apenas descompromissadamente declara –, não tem o que
justificar. Não está obrigado a fundamentar a possível injustiça declarada, pela qual o
declarante não é responsável.
optando pela outra, quanto corta (a vida) quem comete homicídio ( Diritto e processo,
versão espanhola. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1971. v. 1, n. 131,
p. 251).
Daí porque, somente haverá autêntica decisão jurisdicional quando o sistema jurídico
reconheça a seus juízes algum grau de discricionariedade, para que ele possa, como
dissera Carnelutti, antes de decidir, “decidir-se”. A discricionariedade, como todos
sabem, está institucionalmente ausente na jurisdição apenas declaratória. Nossos juízes
não decidem, apenas julgam. Decidir é ato volitivo, julgar é ato intelectivo. Qualquer
calouro em curso psicologia conhece essa distinção elementar. Decisão é ato de vontade,
de que nossos magistrados estão institucionalmente privados, como dissera Chiovenda.
Sim, pode haver “novas interpretações da lei velha”, não porém “como mister do juiz” (
Instituições de direito processual civil, 2. ed. brasileira. São Paulo: Saraiva, 1965, v. 1,
p. 43).
10. Outra conseqüência dessa mesma causa é verem-se nossos juízes e tribunais na
contingência de transferir a seus assessores a incumbência de examinar os autos do
processo e elaborar os “projetos” de julgamentos, quando não o próprio julgamento.
Praticamos, por enquanto, uma espécie espúria de “justiça de gabinete”, que se tornará
brevemente oficial. Este é outro componente estrutural de que se compõe a crise do
Poder Judiciário.
Há, porém, nesses órgãos colegiados, um privilégio para os advogados que produzem
sustentações orais. Estes têm direito ao julgamento público. Porém, a sustentação –
salvas exceções honrosas – é pura cena, porque o acórdão redigido de véspera está na
tela do computador do relator, mantendo-se imperturbável. Concluídas as sustentações
orais, o relator já não necessita mais retirar do bolso o acórdão que trouxera de casa.
Sua tarefa limita-se à leitura do acórdão que está na tela de seu notebook.
11. Outro dado de nossa experiência está em que o Estado Legislativo acabou
transformado em “Estado Administrativo”. Somos cada vez mais “viciados” em normas,
não mais em leis, agora em regulamentos. A sedução pelas regras é o pressuposto
mental – e ético – que ameaça conduzir-nos ao totalitarismo cibernético.
Vestígios desse futuro, que estamos a preparar, já estão entre nós. O mundo virtual –
que é a nossa realidade – deu-nos um sortilégio de dispositivos eletrônicos
“inteligentes”, dispensando-nos de ser, nós próprios, inteligentes. Estamos a superar o
incômodo hábito de pensar. Basta apertarmos o botão correto.
12. Para sobrecarregar ainda mais os serviços judiciários, uma parcela das funções
administrativas, antes regulada de outro modo ou inexistente, acaba transferida ao
Poder Judiciário, em parte devida a um viés próprio das filosofias liberais, que priorizam
Página 7
Da função à estrutura
São os juízes que provêm medicamentos para os carentes de recursos. São eles que
determinam a internação de enfermos em hospitais; são eles que dão a última palavra
sobre a realização de obras públicas, e cumprem outras tantas incumbências, como a de
impor aos órgãos da Administração Pública a realização de certas despesas, mesmo que,
para isto, não existam recursos, enquanto as autoridades a quem essas tarefas
deveriam ser confiadas preferem o discurso, sem compromissos.
A vocação legiferante do Estado moderno, por outro lado, vem se tornando cada vez
menos vigorosa. Melhor: o conceito de lei sofreu uma transformação radical. O Estado
contemporâneo administra, não legisla. A lei “regra-do-jogo”, sonhada pelo liberalismo
dos revolucionários franceses, acabou mostrando sua inevitável cara política.
Como disse François Ewald, “encontramo-nos na era das legalidades sem direito” (
Foucault, a norma e o direito, versão portuguesa. Lisboa: Vega, 1993, p. 186), porque
um dos modos pelos quais o Direito se destrói é o excesso de direitos.
Nicola Picardi escrevendo, no alvorecer do século XXI, mostra que o nosso tempo busca
o direito jurisprudencial (La vocazione del nostro tempo per la giurisdizione, Rivista
Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milão: Giuffrè, 2004).
a) o processo civil continua a ser considerado uma “ciência”. Esta herança do Iluminismo
conserva-se como discurso e como princípio determinante da prática forense. Os juízes e
advogados, porém, perderam essa ilusão. Apesar de tudo, a separação entre “ciência
processual” e vida real exaspera-se, porque juízes e advogados, submetidos à estrutura
do sistema, são obrigados a moverem-se segundo suas regras e princípios;
b) o Racionalismo permanece entre nós – apenas entre os juristas. Não mais entre os
cientistas, especialmente entre os físicos e astrofísicos. Nós que lidamos com uma
ciência cultural, perseveramos no culto dos juízos de certeza, que são, naturalmente, o
pressuposto alimentador da cadeia recursal. Nosso sistema é incapaz de construir uma
tutela preventiva, porque nossos magistrados têm apenas a missão de consertar o
passado, nunca arriscar-se a prover para o futuro. O fracasso cometido na tentativa de
construir uma tutela de simples segurança decorre dessa inaptidão, fruto de nossa
formação acadêmica; dos pressupostos orgânicos, portanto estruturais, do sistema.
Mesmo as “antecipações de tutela”, especialmente as do art. 461 do CPC (LGL\1973\5),
contribuição importante do jurista a que prestamos homenagem, tiveram força para
modificar o sistema. Apesar de o sentido, originariamente interdital dessas categorias
processuais, orientar-se para formas de tutela preventivas, através de provimentos
mandamentais, o condicionalismo sistemático a que elas foram submetidas, deixou-as
presas às formas tradicionais de jurisdição repressiva;
juiz. Apenas suposta, como é óbvio, porque não existe neutralidade possível em ciência
social. Isto também se tornou uma verdade acaciana, que o sistema persevera em
ignorar;
Por mais que se preparem e aperfeiçoem os motoristas, esse veículo obsoleto não
responderá às exigências do novo milênio. É necessário ter em conta que a sociedade
contemporânea – feita de contrastes e conflitos – não passa de um simples “aglomerado
humano”, oposto à sociedade européia do século XIX.
Página 10