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René Piazentin
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o taxidermista
René Piazentin
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apresentação
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Respeitável público, atenção: aqui nessa peça, girafas, cavalos,
cachorros e zebras falam. E eles estão mortos. O mundo, como o
conhecemos, está acabando e um homem empalha seres outrora vivos
para que restem algumas lembranças do que fomos. Um médico legista
larga o hospital onde disseca corpos porque a realidade ficou demais
para ele e vira entregador de pizza – “É um trabalho bom. Você não
precisa pensar em muita coisa. Eles te dão um endereço e uma pizza
e pronto”. E a menina que perdeu pai e mãe em meio a todo esse caos
quer aprender a empalhar o próprio cão, único elo com o curto espaço
de tempo em que foi feliz:
Lola - Não sei. (tempo) Brincando com Toy (o seu cão)... Sentada à mesa
da cozinha enquanto minha mãe faz o almoço e meu pai reclama...
Olhando meu irmão dormir... Casando com o menino que morava perto
da nossa casa.
Nessa peça que nos disseca como raça, onde o crânio pode ou não ser
usado, René recorre aos egípcios onde “o ser humano era formado não
só pelo corpo, mas por outras oito partes imortais” – o coração é a parte
mais importante.
Permita-se comover-se.
Nelson Baskerville
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O TAXIDERMISTA
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Personagens
Lola, menina
Dr. Sharif, taxidermista
Jamal, entregador de pizza, antes médico
Brownie, girafa
Rudy, girafa
Toy, cachorro
Cavalo 1, um cavalo
Cavalo 2, outro cavalo
Cavalo 3, outro cavalo
Cavalo 4, mais outro cavalo
Zebra, uma zebra
(Todos os animais estão empalhados)
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Cena 1
(Luz abre. Atores entram em cena e se dispõem atrás de cadeiras
vazadas onde estão colocadas, no encosto, peças de roupa que
representarão cada uma das figuras: paletós, vestido de noiva, fraque,
etc. Os atores vestem-se, em um jogo de cena que se repetirá ao longo
da peça todas as vezes em que as figuras forem se transformando, com
atores diferentes passando a representá-las.)
(Dr. Sharif está sentado à mesa. Entra uma menina carregando uma mala)
Lola (Entrando) Dr. Sharif? (Sem responder, ele apenas ergue os olhos e
vê Lola) O senhor é o Dr. Sharif?
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Lola Taxidermia, isso. Posso deixar minha mala aqui?
Dr. Sharif (Afirmando, como que para se certificar do que ouviu) Você
tem um cachorro dentro da mala.
Lola É, o Toy. Ele foi meu companheiro por onze anos. Eu queria muito
que ele fosse empalhado.
Lola Eu fui repondo. Minha casa não é longe daqui. Eu podia ter chegado
mais cedo, mas antes de sair eu troquei o gelo. (Tempo) O senhor pode
me ensinar a empalhar?
Lola As duas coisas. Quero que o senhor me ensine para que eu possa
empalhar, eu mesma, o Toy. Me disseram que o senhor empalha
animais. Me disseram que o zoológico inteiro é obra sua.
Lola Uma vez. Mas era muito pequena. Para mim tudo aquilo era
maravilhoso. Eu lembro que o meu pai me levava pela mão o passeio
todo e tinha que me colocar nos ombros para eu poder ver os bichos por
cima das cercas. Na época eu nem percebi que eles eram empalhados.
Acho que eu pensei que os bichos estavam só parados no tempo.
(Pausa) Dr. Sharif, é verdade que antigamente os zoológicos tinham
animais vivos?
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Lola Eu achava que eles eram sempre empalhados.
Dr. Sharif “Empalhar” é um termo que não se usa mais.
Dr. Sharif Não. Com a guerra ficou difícil conseguir. Se até nos hospitais
não há algodão suficiente, quanto mais para taxidermizar animais.
Lola Ah...
Lola Não.
Dr. Sharif É uma coisa divertida. Faz tempo que não temos por aqui.
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Dr. Sharif Para empacotar, para embalar coisas em mudanças. A gente
sempre vê o plástico sendo usado para fora... Eu achava engraçado
pensar nele por dentro. Não deixa de ser uma mudança ou uma viagem
também. Só que do bicho. (Tempo) Onde estão os seus pais, Lola? (Ela
balança negativamente a cabeça) A guerra?
(Silêncio)
Lola Tinha um irmão menor. (Pausa. Ele pega a mala e vai saindo)
Dr. Sharif Tudo bem. Volte na sexta-feira. Acho que até lá eu termino.
Dr. Sharif Ele não vai se importar, eu garanto. Não é melhor ficar com a
lembrança dele vivo?
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Lola Eu prefiro estar junto. O senhor se importa?
Dr. Sharif Fazendo a incisão certa, não. A pele sai inteira, sem
necessidade de evisceração. Não tem derramamento de sangue, nem de
bile, de nada. Quatro bolinhas dessas: fazemos os olhos com duas e o
escroto com outras duas.
Lola Escroto?
Lola Ah...
Dr. Sharif Vamos tirar toda a pele e tratar, para que ela fique
conservada. Depois moldamos mais ou menos os volumes do corpo
com arame.
Dr. Sharif É. Só a pele. (Pausa) Você não vai querer o resto, eu acho.
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CENA 2
Rudy Eu corri tanto, apavorado com o barulho, que bati minha cabeça
em uma viga do teto e caí.
Brownie E então o Dr. Sharif taxidermizou Rudy e eu. (Se olham e Beijo
de esquimó) E agora estamos juntos de novo.
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CENA 3
Cão (Toy) Eu sou Toy, o cachorro. Eu estou aqui, mas estou lá também,
sendo aberto pelo Dr. Sharif. Uma lástima eles não terem plástico
bolha. Um cachorro, mesmo sendo um animal médio, pode ficar
bastante deformado depois de taxidermizado. É muito estranho falar
sobre você mesmo quando você já está morto, ainda mais enquanto
assiste a duas pessoas te abrindo para tirar a sua pele e depois forrar
uma réplica sua com ela. Esse processo não tem vida útil determinada,
então provavelmente eu vou virar um enfeite ou algo assim por muito
tempo. Isso se a Lola me deixar em um lugar protegido de umidade,
claro. Sinceramente, depois de morto, eu não vejo muita vantagem
nisso... Acho até um pouco bizarro. E ela ainda acha que isso é uma
espécie de homenagem. Uma pessoa normal não empalharia sua mãe
ou seu pai, por exemplo. Não que não seja possível, mas a aparência
não seria muito agradável. A pele humana não tem tanto pelo e ficaria
difícil esconder as manchas marrons e pretas depois do processo de
conservação. Mas mesmo que o resultado fosse perfeito, a chance de a
pessoa ser considerada psicopata seria grande. Então por que com um
bicho de estimação tudo bem? Nesse momento eles já retiraram toda
a minha pele e limparam toda a carne que ainda tinha ficado grudada.
Já removeram o esqueleto e estão tirando ossos das patas e estão
decidindo se vão aproveitar o meu crânio ou não.
narração 3 Talvez a morte, no fim das contas, seja mais forte do que a
vida, já que viver sempre demanda algum esforço enquanto a morte é
algo para o qual todos escorregamos sem trabalho nenhum. Talvez o
Nada vença ao final. Talvez o Nada seja inevitavelmente a outra face de
tudo o que existe. Mas ainda assim existe alguma beleza nisso.
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CENA 4
Dr. Sharif Amanhã eu faço a estrutura para ele ficar de pé. Você sabe em
qual posição vai querer?
Lola Posição?
Lola Acho que tanto faz. Ele já era velho. Fica um pouco ridículo colocar
o Toy numa postura muito ativa.
Lola Seria como colocar uma pessoa de oitenta anos em uma pose de
filme de ação.
Dr. Sharif De qualquer forma não é muita gente que pede para
conservar bichos de estimação. Então é melhor perguntar.
Dr. Sharif Tinha um menino que morava aqui perto. Ele gostava muito
do casal de girafas. Quando a coisa ficou feia e os bichos não tinham o
que comer, ele jogava ossos por cima do muro para eles. Engraçado que
justamente as girafas não comem isso. Quando a primeira morreu, eu
decidi começar por ela. Eu arranjava todo o tipo de desculpas para ele
não entrar aqui.
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Dr. Sharif Depois ele também sumiu. Nunca soube o que aconteceu
com ele. Mas como eu já tinha começado, resolvi continuar. (Pausa)
Bom, por hoje chega. Vamos deixar o Toy descansar. Amanhã,
continuamos. (Tempo) Você pode vir cedo. Prometo que não vou fazer
nada sem você aqui.
(Sai)
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CENA 5
Dr. Sharif Eu fiz com a melhor das intenções. Vocês estão juntos de
novo, não estão? Ou será que iam preferir que eu simplesmente tivesse
enterrado as duas ali fora?
Dr. Sharif A sua orelha esquerda foi a primeira coisa que eu taxidermizei
na vida. Eu acho que vocês podiam levar isso em consideração.
Brownie Nós dois íamos caprichar na sua orelha. Pode ter certeza.
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Dr. Sharif (Mexendo nos bolsos) Quanto ficou?
Rudy Conhece.
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Jamal Eles te dão um endereço e uma pizza e pronto. As ruas não estão
tão perigosas agora. Eu tenho um fixo e uma comissão por entrega...
Dr. Sharif Claro, claro... (Aponta uma cadeira) Você não quer se sentar
um pouco?
Dr. Sharif Agora que as coisas estão melhorando não faz mais sentido.
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Dr. Sharif Você não?
Dr. Sharif Tem que ter um espaço para alguma outra coisa além do que
é simplesmente necessário, Jamal. Um lugar onde as pessoas possam
ir para passear, divertir-se, coisas assim. Isso também faz parte da
sobrevivência.
Dr. Sharif As pessoas vão a museus de cera, não vão? Qual o problema
de um zoológico com animais taxidermizados?
Brownie Eu também.
Jamal Isso.
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Jamal Dizem que os atenienses conservaram o navio de Teseu na
cidade. Mas eles iam trocando as partes podres por novas, até que
chegou uma hora em que já tinham trocado praticamente tudo. Daí
começou uma discussão: alguns filósofos achavam que o navio era o
mesmo e outros achavam que não era.
Jamal E isso tudo não é o bicho também? Juntando tudo, talvez mais o
bicho do que só a pele, não acha?
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Jamal A história tem uma continuação: alguns atenienses foram
recolhendo as peças velhas do navio toda vez que ele era restaurado.
Um dia, chegou a Atenas um forasteiro e pediu para ver o barco. Mas
qual era “o barco de Teseu”? O navio restaurado ou os destroços
guardados?
Dr. Sharif Ter deixado o hospital realmente fez você ter mais tempo.
Jamal Eu lidava com a realidade. Abria pessoas mortas para dizer para
os vivos por que elas estavam ali. Ou por que elas não estavam mais ali.
Como quiser. Até que a realidade ficou demais para mim. (Vai saindo)
Espero que você goste da sua pizza.
(Sai)
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CENA 6
Toy Nesse momento o Dr. Sharif passa pela sala onde me deixou. Quer
dizer, onde deixou o que ele aproveitou de mim. Ele vai ficar algum
tempo lá, pensando no próximo passo e aplicando um pouco de formol
nas patas. Aqui tem uma passagem de tempo. Pela manhã Lola vai
chegar e pedir para me ver. Ele vai arrumar a estrutura de arame que vai
me sustentar de pé, ajeitar as bolinhas de gude dos olhos... E as outras
duas. Ela vai gostar do resultado, mas eu não. A vantagem é que a
partir do momento em que eu estiver pronto só vou aparecer deste jeito
(aponta para si mesmo). O Dr. Sharif melhorou muito desde a orelha
esquerda do Rudy, mas precisa treinar mais. Infelizmente eu ainda faço
parte desse momento intermediário.
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CENA 7
Lola Acho que sim. (Tempo) O senhor acha que o Toy está em algum
lugar agora?
Lola Eu sei. Mas o senhor acha que acontece alguma coisa depois?
Dr. Sharif Não eram exatamente “as pessoas” que eles mumificavam.
Eram os faraós.
Dr. Sharif (Irônico) Pessoas mais “pessoas” que as outras pessoas. Mas
de qualquer forma sim, eles acreditavam na vida após a morte.
Lola O senhor não acha que existe alguma coisa tipo uma “alma”?
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Dr. Sharif O que eu acho não vem ao caso.
Dr. Sharif Só que a ideia de “alma” para eles era bem mais complicada.
Ela tinha oito partes que sobreviviam à morte, fora o corpo.
Dr. Sharif Isso. Para eles o ser humano era formado não só pelo corpo,
mas por outras oito partes imortais.
Lola E o senhor sabe isso tudo sem nunca ter se interessado pelo
assunto.
Dr. Sharif Bem, a parte mais importante das oito imortais era o coração.
Mas a mais interessante era a que eles chamavam de Ka: uma espécie
de sombra que seguia a pessoa durante a vida. O Ka podia aparecer para
os outros como um fantasma, independentemente de a pessoa estar viva
ou morta.
Dr. Sharif Depois vinha o Ba, que podia assumir a forma que quisesse,
mas geralmente era representado como um pássaro com cabeça de
gente, que flutuava em torno da tumba durante o dia, alimentando o
falecido com água e comida.
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Dr. Sharif (Assentindo com um gesto de cabeça) Uhum. A função do Ba
era fazer o morto se juntar ao Ka. A soma dos dois era o Akh, a parte
imortal que vive dentro do Sahu, o corpo espiritual. Caso o morto se
saísse bem no Julgamento Final, esse corpo espiritual subia aos céus
saindo do corpo físico... Eles ainda tinham outra parte, o Sekhem, que
era a personificação da força vital do homem que vivia entre as estrelas
junto com o corpo espiritual e o que eles chamavam de Ren, o “nome
verdadeiro”, a parte vital do homem em sua jornada através da vida e do
pós-vida. Por último vinha o Shwt, a sombra, que eles acreditavam que
também era uma entidade, já que pode se descolar do corpo.
Dr. Sharif Que eu me lembre já. No final das contas o coração do defunto
era pesado numa balança e tinha que ser mais leve que uma pena.
Dr. Sharif Não, era a mesma coisa. Dava trabalho só enquanto você
estava vivo e acreditava nisso tudo.
Dr. Sharif Não só eles. O ser humano sempre gostou de colocar animais
no meio das coisas. Isso não só na mitologia, mas nas idiotices que faz.
Nas guerras, por exemplo.
Lola Nossa. Não é justo colocar um cavalo para combater um tanque mesmo.
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Eu saí para olhar e percebi que os gritos não eram humanos. Eram
horríveis demais para sair da boca de um homem, mesmo sofrendo,
mesmo ferido. Aí eu vi quatro cavalos caídos. Dois já estavam mortos,
outros dois estavam com os olhos arregalados de um jeito que achei
que eles iam pular das órbitas e urravam, berravam, eu nem sei
como explicar.
Dr. Sharif Eu fiz o que eu tinha que fazer. O que qualquer um tinha que
fazer. (Tempo) Você quer ver os cavalos?
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CENA 8
(Os quatro cavalos vêm até a boca de cena e começam a jogar cartas)
Cavalo 4 Por alguma convenção que eu não vou saber explicar, eles
estão vendo.
Cavalo 1 (Observando uma das cartas que tem na mão) Minha carta
preferida.
Cavalo 2 Valete?
Cavalo 1 Ah.
(Tempo de constrangimento)
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Cavalo 1 Você não acha que a gente foi importante para a civilização?
Cavalo 2 Muito.
Cavalo 1 Cachorro?
Cavalo 3 Tem?
Cavalo 1 E os hunos?
Cavalo 3 Hunos?
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Cavalo 3 Os bárbaros?
Cavalo 1 Eles passavam boa parte de seu tempo montados no lombo dos
cavalos.
Cavalo 1 Piada?
Cavalo 3 Genial!
Cavalo 3 Branco!
(Mais risadas)
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Cavalo 2 A questão é a seguinte: se os humanos não tivessem usado
cavalos como nós nas guerras talvez nós não tivéssemos morrido.
(Silêncio)
Cavalo 3 É...
Cavalo 1 O quê?
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CENA 9
Jamal Merda.
Jamal Não dá para ser do jeito mais seguro. Eu não tenho tempo.
Certeza de que não sobrou nenhum cigarro aqui?
Jamal A Offa. Ela foi ferida. Acho que as coisas estão piorando do lado
de lá também.
Jamal Bala perdida. Parece que não é nada sério, mas eu tenho medo
de deixar ela lá assim.
Jamal O primo sumiu faz uma semana. Ela estava sozinha na casa,
escondida. Quem me mandou o recado foi um vizinho que atravessou
hoje pelos túneis.
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Jamal Eu vou hoje.
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Jamal Meu último paciente foi o pai dela. Fui eu quem o atendeu quando
chegou na emergência do hospital. Ela estava junto. A mãe eu soube que
morreu depois. Não é muito difícil saber o que acontece com as pessoas
por aqui. Até porque não sobrou muita gente.
Dr. Sharif Você pode tentar fazer ela ir junto. Mas pelos túneis não.
Jamal Por quê? Logo não vai ter ninguém para visitar o seu zoológico de
qualquer jeito.
Jamal Uma pedra que toda vez que chega ao topo, rola até embaixo.
Jamal Fala com a menina. Eu vou avisar que vamos sair hoje à noite.
Dr. Sharif (Tempo) Eu tento. (Antes que Jamal saia) Traz a tal pizza de
queijo de cabra.
(Sai)
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CENA 10
Rudy Então quer dizer que você vai ficar aqui com seus bichinhos e
mandar a menina ir embora junto com o entregador de pizza.
Brownie Se for por nossa causa não se acanhe, doutor. Há muito tempo
você não precisa mais alimentar a gente.
Rudy Claro que uma pizza de vez em quando cai bem, mas é pura gula
mesmo.
Dr. Sharif Eu não tenho mais o que fazer aqui, nem em nenhum outro
lugar, Rudy.
Dr. Sharif Mas a menina ainda tem uma vida pela frente. Ela pode seguir
adiante, fora desse lugar.
Brownie E você acha que do outro lado do túnel vai ser melhor?
Rudy Um pedófilo?
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Brownie E se ele quiser a menina para vender os órgãos dela?
Dr. Sharif Não, não pensei em nada disso. Eu conheço o Jamal. O único
risco que ela corre é se o contato dele der para trás e ele cismar em ir
hoje de qualquer jeito, pelos túneis.
Rudy Deve estar se perguntando por que você criou um ambiente com
uma zebra caída e dois leões se aproximando.
Rudy Você sabia que a zebra é o quarto animal mais querido pelas
crianças?
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Rudy Francamente.
Dr. Sharif E depois essa história de que a zebra é um dos animais pelos
quais as crianças mais tem afeto é pura invenção de vocês.
(Entra Lola)
Lola Dr. Sharif... (Dr. Sharif olha para ela) Por que a zebra tem que ficar
cercada pelos leões mesmo depois de empalhada?
Lola Poxa, mas nem depois de morta e empalhada ela pode ter
sossego...
Dr. Sharif É uma situação que vemos na Natureza. A culpa não é minha.
Lola Eu gosto das zebras, doutor. Depois dos cachorros e dos ursos,
acho que é o bicho que eu mais gosto.
Dr. Sharif (Olhando para Rudy e Brownie) Sério? Mais até que das
girafas?
Lola Isso! Por isso eu achei de mau gosto ver o bicho ser caçado mesmo
depois de morto, sabe?
Dr. Sharif Nos museus de cera as pessoas são retratadas em poses que
lembram o que elas eram quando vivas.
Brownie Verdade.
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Lola Pois é. Então a zebra vira só uma caça?
Lola Sério?
Lola Agora?
Lola Não.
Brownie Ele acha estranho conversar com girafas mortas, mas pensa
que a menina pode ler pensamentos agora?
Dr. Sharif (Voltando-se para as girafas) Foi uma pergunta retórica. (Para
Lola) Se eu fosse taxidermizado, iam me colocar exatamente aqui. Do
jeito que eu estou agora. Ou taxidermizando outro bicho.
Lola Eu o quê?
Lola Empalhada?
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Dr. Sharif Você contou? (Ela faz que sim com a cabeça. Tempo) Você
notou uma coisa, Lola?
Lola O quê?
Dr. Sharif Nas cenas que você imaginou, todas as outras pessoas já
estão mortas.
Lola É.
Rudy É verdade.
(Saem os dois)
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CENA 11
Brownie É.
Rudy O cachorro.
Toy Vou embora. Acho que as coisas vão ficar mais fáceis para a Lola se
eu sumir.
Toy Eu. Por alguma convenção estranha eu estou aqui e dentro da mala
ao mesmo tempo.
Toy O resultado não ficou muito bom, para ser sincero. Sem falsa
modéstia, eu acho que era melhor do que isso aqui (aponta a mala).
Rudy Eu acredito. A julgar pela minha orelha. Ela também era bem
melhor que isso.
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Toy Agora eles estão lá, mudando a zebra de lugar. Provavelmente não
vão perceber se eu for embora.
Rudy Aproveite. Você é um cachorro. Mais fácil fugir sem ser percebido.
Rudy Um criado-mudo.
Brownie Cuide-se.
(Sai Toy)
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Brownie Você sabia que “Toy” é “brinquedo” em inglês?
Rudy Sabia.
(Vão saindo)
(Saem)
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CENA 12
Cavalo 1 Daqui a pouco vocês vão ficar com pena do leão. A zebra é a
vítima, não vamos começar com inversões de valores.
Cavalo 2 Cavalo!
Cavalo 1 Eu não preciso ter nascido zebra para ser simpático a elas. E
denunciar a violência que elas sofrem. Assim como nós sofremos. Todos
nós somos vítimas aqui.
Cavalo 3 Tudo bem, eu não sou contra as zebras. Mas acho que você
deveria se preocupar mais com os seus semelhantes.
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Cavalo 2 Uma hora você defende a civilização humana. Outra hora, as
zebras. Não podia se preocupar um pouco com os cavalos, seus iguais?
Cavalo 1 Uma coisa não tem a ver com a outra. E a zebra é nossa igual!
Cavalo 1 “Burro”? Olha, da primeira vez que você disse isso eu não
comentei nada, mas agora chega: você acha bacana usar o nome de
outro animal para me ofender?
Cavalo 2 Eu só acho que ela podia ter se importado mais com a gente.
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Cavalo 1 A zebra é nossa igual sim! E, se não fosse, o que muda? E
mesmo sabendo que o leão come a zebra porque tem que se alimentar,
eu concordo com a menina: depois dos dois mortos eles não precisam
ficar mais presos nesta cena pela eternidade! E se alguém é responsável
por essa merda toda são os homens! Você sabia que existem negros,
brancos, orientais e mais um monte de raças que vieram a partir da
mistura dessa gente toda? E eles nem sabem se o termo “raça” é o
melhor, porque no fundo são de uma única espécie! Não são zebras e
leões uns dos outros. Nem são subgrupos! Nem são zebras e cavalos! E
ainda assim se matam! E ainda colocam a gente no pacote!
Cavalo 2 É.
(Saem)
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CENA 13
(Entra a Zebra)
(Sai)
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CENA 14
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Prefeitura de São Paulo Fernando Haddad
Secretaria de Cultura Nabil Bonduki
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