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Organizadores

Douglas Silva Ana Raposo Lais Velloso

Alysson Siffert Talles Faria João Silva

Denise Frade Amanda Pavani Geison Almeida

Cristina Dulce Souza Costa Gabriela Figueiredo Arthur Guerra

ANAIS DO V SPLIT
Seminário de Pesquisa Discente do Pós-
-Lit/UFMG

1ª edição
ISBN: 978-85-7758-278-5

Belo Horizonte
FALE/UFMG
2016
Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG

Seminário de Pesquisa Discente do Programa de Pós-Graduação em


S471a Estudos Literários da UFMG (5. : 2016 : Belo Horizonte, MG).
Anais do V SPLIT / Seminário de Pesquisa Discente do Pós Lit-
UFMG ; Organizadores : Douglas Cristiano Silva... [et al.]. – Belo
Horizonte : Faculdade de Letras da UFMG, 2016.
264 p.

Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-7758-278-5

1. Política e literatura – Congressos. 2. Literatura – História e


critica – Congressos. I. Universidade Federal de Minas Gerais.
Faculdade de Letras. Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários. II. Silva, Douglas Cristiano. III. Título.

CDD : 809
SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................ i
Carolina Anglada – “A FORMA-POESIA VAI, PODE,
DEVE DESAPARECER?”: uma questão política para o
regime estético das artes …........................................................... 1

Fabrício Paiva Araújo – A experiência do choque: o dizível,


o indizível e a representação do horror ….................................... 16

Amanda Pavani – Illusions of reality uncovered in parody of


science fiction: The Year of the Flood and The Hunger Games 32

Marcelo Cordeiro de Mello – Adaptação e intertextualidade


no texto inédito do roteiro cinematográfico de A hora dos
ruminantes: um espetáculo político …........................................ 48
Edinília Nascimento Cruz – Estética e política: uma leitura
da fórmula, em Bartleby, o escriturário, de Herman Melville … 66

Daniela Ramos Garcia – Experiências estéticas em cenas de


uso de drogas: práticas pelo Consultório de Rua Noroeste ….... 78

Maria Isabel da Silveira Bordini – O romance Calunga, de


Jorge de Lima, frente ao contexto de polarização ideológica de
sua publicação ….......................................................................... 86

José Otaviano da Mata Machado – Salman Rushdie's “At


the Auction of the Ruby Slippers”, Marx's concept of
commodity fetishism and the concept of “post-modern” …..... 102

Rafael Fava Belúzio – As visões de mundo, em Thomas


Sowell, e a binomia, em Álvares de Azevedo ….......................... 118
Zacarias E. Silva – Literatura e campo – A exceção dentro da
exceção na literatura de Rubem Fonseca …................................ 129

Flávia Almeida Vieira Resende – Pós-violência, pode a


obra de arte (r)existir? ….............................................................. 151

Cristiano Elias de Paulo – Ideias políticas: o problema da


experiência …................................................................................ 163

Augustto Corrêa Cipriani – Políticas da escrita, políticas do


corpo nos babilaques de Waly Salomão ….................................. 179

Derick Davidson Santos Teixeira – O corpo excrito na


bioficção de Mario Bellatin …...................................................... 196

Bruno Henrique Alvarenga Souza – Morte e vida no corpo


e na linguagem: uma análise de “A Natural History Of The
Dead” de Ernest Hemingway ….................................................. 214

Clecio Luiz Silva Júnior – Schiller: da dramaturgia pré-


-romântica ao impulso estético como proposta de educação
moral …........................................................................................ 235

Cesar Augusto López Nuñez – Mito, estética e política em


dois projetos literários: O Guesa de Sousândrade e El pez de
oro de Gamaliel Churata …......................................................... 251
APRESENTAÇÃO

A quinta edição do Seminário Discente do Pós-Lit/UFMG


apresenta como tema “Literaturas e política: diálogos possíveis e
impossíveis”.

Se nas discussões contemporâneas essa interseção é tida como


inseparável da ideia mesma de estética, desde os clássicos e ao longo
da concepção do texto tido como poético, ela se faz presente,
remontando-se e refazendo-se, de maneira mais ou menos implícita
ou explícita.

Como pensar a política no texto literário e em outras linguagens?


Quais as formas possíveis para tal interseção? Quais as políticas da
literatura e do objeto artístico? Existe literatura que não seja
política? Em tempos de efervescência dos discursos políticos no
contexto nacional, tal discussão acaba por aproximar o fazer
literário e intelectual de outras esferas da construção dos saberes,
apresentando-se como um ponto de partida para pensarmos em
muitos cruzamentos que atravessam a literatura, como, por
exemplo, a construção do cânone, o lugar de fala, a ideologia e a
contra-ideologia, o discurso do outro, a violência, entre outros.

i
“A FORMA-POESIA VAI, PODE, DEVE
DESAPARECER?”: uma questão política para o
regime estético das artes

Carolina Anglada1
RESUMO: O filósofo Jacques Rancière tem colocado a questão
do regime estético das artes no horizonte do contemporâneo, de
modo a estabelecer um elo entre esse tipo de regime e a política,
uma vez que, não sendo mais a representação um valor em si, é o
modo ou a maneira, diria Agamben, que cada obra torna visíveis ou
dizíveis certos objetos, que constitui, intrinsecamente, o
posicionamento da obra de arte em uma “partilha do sensível”,
redistribuindo vozes, lugares e funções. Além da igualdade de
temas, o regime estético propõe a não-hierarquização entre os
gêneros, apontando, inclusive, para a transformação em curso nas
variadas formas de fazer arte. Diante desse cenário, pretende-se
discutir a forma-poesia, não no sentido de qualidade do poético
presente nos poemas em prosa, por exemplo, mas na maneira
própria de trabalhar seus elementos e de como eles se apresentam
na forma-poesia, indagando-se sobre a possibilidade ou não de uma
especificidade. Considerando certa tendência, especialmente
francesa, de superar o universo da poesia, objetiva-se analisar em
que medida esse ideal “antipoético” diz respeito à proposição de
um outro modo de fazê-la e lê-la em consonância com gêneros
“menores”, confirmando a caracterização do regime estético e
democrático de Rancière.

PALAVRAS-CHAVE: forma-poesia; pós-autonomia; regime


estético.

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de


Letras -UFMG. E-mail: angladacarolina@gmail.com

1
A FORMA NO HORIZONTE DO ESTÉTICO

Na inexatidão que é o ser contemporâneo a algo,


permanecemos em uma espécie de falta: falta constituída pela
impossibilidade de fixar tudo aquilo que ainda não coincide
consigo mesmo, que só é visto em seu desarranjo, em sua
impertinência. Do discurso artístico, marcado, então, pela
porosidade em relação aos outros discursos e pela infiltração dos
limites e lugares dos gêneros, que constitui, para além de toda
contemporaneidade, a condição pós-autônoma em que a arte do
presente se insere, ergue-se uma espécie de devir-outro da poesia,
caracterizado pela resistência ou desejo de superação. Falo da
intensa aspiração antipoética,2 defendida, entre outros, pelo escritor
francês Jean-Marie Gleize, que, na radicalidade de uma crítica aliada
ao fazer literário, tem colocado a França novamente em um lugar de
destaque na Teoria Literária.
Podemos remontar a emergência dessa aspiração ao
processo de transformação da literatura ocidental iniciada no fim
do século XIX e que será responsável por uma espécie de
bifurcação em meados do século XX. Trata-se da tão célebre e já
comentada “Crise de verso” anunciada por Mallarmé, referente ao
abandono das formas fixas em contrapartida à ascensão do verso
livre. A crise é instaurada, portanto, a partir do “duplo estado da
fala”: “bruto ou imediato” da comunicação, da linguagem factual

2 Jean-Marie Gleize, Sorties, 2009, p. 44.

2
jornalística e prosaica, e a fala “essencial”, que seria a da poesia. Não
mais distinguível por parâmetros métricos ou rítmicos, isto é,
“quase” sem forma, a poesia estaria entrando na sua condição
eminentemente crítica, condição essa que a imporia um sacrifício;
na obrigação de ser autocrítica, sua sobrevivência dependeria do
colocar-se na dupla posição de ser sujeito e objeto do fazer poético,
restando-lhe a única opção de permanecer pensante, portanto.
Nesse sentido, poderíamos alçar a poesia ao estatuto privilegiado de
se questionar sobre si mesma, afastando-se do mundo prosaico.
Mas não estariam os Petits Poèmes en prose (Pequenos poemas em
prosa), de Baudelaire, requisitando outros objetos para a poesia,
como o baixo materialismo dos cachorros, da pobreza, da própria
morte e sua sepultura?
A crise constatada poucas décadas depois por Mallarmé só
reafirmará a condição inespecífica ou imprópria da poesia, e que
provocará, por parte das vanguardas, uma espécie de aposta na
forma obscura ou na forma opaca, ou ainda na forma hesitante
entre o som e o sentido, como declarava Paul Valéry sobre o
enjambement. A revolução operada por Mallarmé foi a de tornar
visível todo o espaço em branco a ser habitado pela forma do
poema, uma vez que a linguagem poética já nas últimas décadas do
século XIX revelava-se impura.

3
Os neovanguardistas ou poetas da retaguarda,3 que, nos
países periféricos, a partir de 1950, puderam dar desenvolvimento às
proposições da vanguarda, cujo projeto foi interrompido pela
Segunda Guerra Mundial, tinham os olhos voltados para trás e para
frente; queriam retomar a aposta na literalidade e no hermetismo
das vanguardas, e avançar nas violações da forma, como a poesia
concretista, por exemplo, o fez, dando por “encerrado o ciclo
histórico do verso”.4 Na França, o que o movimento
neovanguardista conseguiu, nas décadas posteriores, foi colocar a
prosa no horizonte do fim do verso. Pierre Alferi, um nome
importante do movimento antipoético, publica em 1994 um ensaio
intitulado “Rumo à prosa”, cujo início é categórico: “A prosa não é
um gênero nem o oposto da poesia. Ela é o ideal baixo da literatura,
melhor dizendo, um horizonte, e lhe sopra um ritmo, uma
política.”5 Alferi, filho de Derrida e da psicanalista Marguerite
Aucouturier, prefere manter o seu trabalho autoral e ensaístico sob
os liames da pós-poesia ou da antipoesia, como defende Gleize.
Manter-se na escrita da prosa é manter-se, politicamente, em um
“projeto não heroico”, é colocar-se sob a fórmula mutatis mutandis
de uma “prosódia irregular”. E é importante lembrar, com o ensaio
de Alferi, que essa irregularidade da prosa é o elo com a poesia

3 PERLOFF, Marjorie. “Da vanguarda ao digital”. In: O gênio não original: poesia por
outros meios no novo século. Trad. Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Ed. Ufmg,
2013.
4 CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 1975, p. 156.
5 ALFERI, 2015, p. 425.

4
moderna: a conquista do verso livre, que marca a modernidade na
poesia, se inspirou nos ritmos irregularmente medidos da prosa.
Onde lemos verso, portanto, leremos desaparição, ausência
ou, no mínimo, irregularidade. Pois o verso é uma das formas-
poesia, assim como o lirismo o é. Não por acaso, outro expoente
francês desse processo de desvio da poesia é Jean-Michel Maulpoix,
cujo anúncio de um “novo lirismo” ou de um “lirismo crítico”
constitui o polo de grande tendência francesa, que insurge contra o
radicalismo da antipoesia de Gleize. Para Maulpoix, a urgência
contemporânea de um lirismo crítico é uma das manifestações da
autocrítica da poesia moderna, pelas quais os pressupostos da
forma são questionados. Claro que é preciso delimitar o que está
sendo entendido como lirismo; para o escritor e crítico francês,
lirismo não é o mesmo que lírico, não tem a ver com a expressão
pessoal do poeta, pois “significa um modo de ser, de falar ou de
escrever, e não designa expressamente um gênero”. A operação do
lirismo coloca o discurso em relação a um “estado dito ‘poético’ em
que o assunto é uma vítima ou um beneficiário de acesso de
linguagem que não necessariamente se torna poema.” 6 O lírico não
é mais privilégio da poesia assim como a poesia lírica não deve ser
sinônima de uma afetação emocional da voz.
A expressão “acesso de linguagem”, usada por Maulpoix,
remete ao ensaio de Jean-Luc Nancy, “Fazer, a poesia”, em que o
filósofo caracteriza a poesia como um acesso ou limiar de sentido,

6 MAULPOIX, 2000, p. 22-23.

5
de forma que ela constitui um “gênero entre as artes”7. Algo que se
dá na passagem, e esse algo pode ser atribuído a outros gêneros,
sendo a poesia sempre um acontecimento em potência, mas que
precisa de certo acionamento por se realizar. A poesia não é um
lugar, “a própria poesia pode muito bem ser encontrada ali onde
sequer há poesia. Ela pode até mesmo ser o contrário ou a recusa da
poesia, e de toda a poesia.”8 Sua não coincidência consigo mesma,
ou seja, sua negatividade provinda de uma renúncia ou de um
sacrifício, é a condição necessária para que ela se reformule,
desapareça e reapareça sob outra aparência, estipulando outras vias
de acesso ao sentido.
É para alimentar essa discussão, que o escritor francês
Emmanuel Hocquard publica um ensaio em resposta à pergunta
“La forme-poésie va-t-elle, peut-elle, doit-elle, disparaître?” (“A
poesia vai, pode, deve desaparecer?”) para a revista Action
Poétique,9 cuja edição especial trazia a resposta de outros escritores
e críticos. Logo no início do texto, Hocquard sustenta que essa
pergunta deriva de uma outra (“A poesia vai, pode, deve
desaparecer?”) cuja resposta seria, fatalmente, sim. Ambas as
perguntas, no entanto, colocam o desaparecimento em termos de
uma predestinação (“vai”), de uma potência (“pode”) e de uma

7 NANCY, 2015, p. 416.


8 NANCY, 2015, p. 416-417.
9 O Action Poétique foi uma publicação de poesia iniciada nos anos 1950, na França, e
que vingou até 2012. Sob a editoração de Henri Deluy, a revista teve vários
importantes colaboradores como Jacques Roubaud, não limitando-se a publicar
apenas autores franceses. A questão para a revista era fomentar o pensamento e as
estratégias da poesia inserir-se e dialogar com a contemporaneidade

6
obrigação (“deve”), cercando, ao máximo, a possibilidade de uma
resposta de resistência. Diante da inegável retirada da poesia,
restaria indagar se algo da forma, algo da sua técnica, portanto,
sobreviverá a esse desaparecimento do gênero.
Atentemos: não estamos falando de morte, mas de
desaparecimento. Hocquard, recorre, em seu ensaio-resposta, ao
pintor Alexandre Delay fazendo-lhe a mesma pergunta, à qual
Delay responde: “O que há de positivo na ideia da desaparição, é
que ela vai engatar o processo da ressurreição em outro lugar, sob
outra forma”.10 Acostumado, graças à sua atividade de pintor, a
lidar com os extravios e as ausências da imagem, com os
renascimentos e as aflorações de elementos visuais, com a liberdade
das habitações da tela ou mesmo com as deserções do anteparo,
Delay não recua a arte diante das formas sempre fugidias, que a
pintura, em sua longa trajetória, encarna. Por que algo semelhante
não poderia se dar com a poesia?
O que os escritores contemporâneos franceses parecem
querer reverter, sobretudo os que aqui citamos, Maulpoix, Gleize e
Hocquard, é a incompatibilidade entre a forma hermética e o
lirismo, ou entre a literalidade capaz de dar vazão a um “real
desnudado”, e o lirismo como exteriorização da voz, mas constante
questionamento da subjetividade da qual é herdeiro. O lirismo
crítico é “uma escrita que recolhe os restos deixados pelo lirismo da

10 Para o presente artigo, foi utilizada a tradução de Marília Garcia para a sua tese,
intitulada “A topologia poética de Emmanuel Hocquard”, disponível em:
<http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_arquivos/23/TDE-2010-12-20T083322Z-
2711/Publico/Maria%20Garcia%20Tese.pdf>.

7
exaltação e da elevação e os transforma em questionamento e
reflexão.”11 É o que percebemos quando lemos, por exemplo, o
seguinte trecho da obra La Table (A mesa), de Francis Ponge:
“Reflito hoje que de maneira geral escrevo pra minha consolação (se
não escrevo a pedido) e que, quanto maior é o desespero, mais a
fixação no objeto)”.12 Quanto maior a afetação impositiva do
lirismo, mais o poeta se detém no objeto, tentando moderar esse
impulso subjetivo na escrita. Podemos ver, então, nessa pausa sobre
o objeto, um limite da própria poesia, um limite que já a coloca em
relação com a prosa ou com um lirismo crítico que não fará da
poesia um lugar confortável para o eu. O que ambas as vertentes da
literatura contemporânea francesa parecem concordar, em menor
ou maior grau, é na urgente e necessária ruptura com a associação
de herança romântica entre o eu e o seu isolamento, entre a
subjetividade do artista e o seu exílio ou negação do mundo e da
técnica.
Se tomarmos a obra de Francis Ponge, por exemplo,
relutante em ser considerada “poesia”, há, no entanto, alguns
elementos de passagem entre gêneros, tais como a exploração
irregular da espacialidade da página, a disposição formal das
palavras e das frases e o uso da quebra e da cesura. Não se trata
apenas de pensar a poesia como uma ocupação formal específica da
matéria no espaço, mas de considerar a forma-poesia como um
certo recorte difícil da parte em relação ao todo, do sujeito artista

11 MILANEZE, 2015, p. 286.


12 PONGE, 2002, p. 199

8
em relação à técnica, haja vista o título A mesa, cuja superfície, ao
mesmo tempo plana de prosa e angulosa de poesia, coloca em cena
que a técnica é, sim, um problema para a literatura. Ponge hesita,
abre espaços no texto, dispõe fragmentos em caixas, cria mais de
uma direção de sentido ao intercalar a palavra normal e a negritada
ou a em itálico, evidenciando a dificuldade de dar acabamento ao
que é sempre transitório e a outra dificuldade que é manter-se em
um único gênero quando o fluxo e a construção do próprio texto
forçam-no para várias direções.
A hesitação proposta pela criação de mais de uma direção
de sentido e de leitura na obra de Ponge, pela armadilha tecida nas
verdadeiras linhas de fuga que levam o texto para fora si, podem ser
vistas como uma desconfiança dos procedimentos hierárquicos
envolvidos nos gêneros e nos modos de leitura que eles estipulam.
O pesquisador Marcos Siscar, em artigo intitulado “Figuras da
prosa: a ideia da ‘prosa’ como questão de poesia” afirma que essa
passagem da poesia à prosa

está relacionada com a recusa da poesia como expressão


‘autônoma’, isto é, aquela que procura um lugar de
exceção e, aproveitando-se do privilégio de sua condição,
mistifica o espaço da linguagem virando as costas para a
experiência comum, para o real, para a sociedade.13

Se o que está em jogo é como diz Siscar, uma “renomeação” do que


se entende por poesia, ou uma mudança no estatuto transcendente

13 SISCAR, 2015, p. 35.

9
e privilegiado do poético em relação aos outros gêneros ou às outras
formas, podemos estabelecer uma aproximação com a própria
condição do regime estético das artes, identificado por Rancière. O
esteticismo da obra de arte moderna e contemporânea não se opõe
ao mundo prosaico com vistas a uma experimentação das formas,
mas propõe, a partir de uma maneira peculiar, a criação ou
imaginação de lugares para a arte ou a criação e imaginação de
comunidades a partir da arte, ainda que, muitas vezes, o efeito seja a
manifestação estética da impossibilidade de lugares e comunidades
autônomas.
Mas, como isso será trabalhado em cada obra não
dependerá, necessariamente, das qualidades técnicas de cada forma
artística. Quando o crítico francês afirma que “a igualdade de todos
os temas é a negação de toda relação de necessidade entre uma
forma e um conteúdo determinados”14 está dizendo que não é mais
a poesia o lugar onde se presentifica, excepcionalmente, a palavra
original, a palavra primeira, a palavra mítica ou transcendente.
Tudo dependerá de como se trabalhar a herança dessas concepções
de palavra poética, ou, no caso de outras artes, a herança da
imagem, a herança da dramaturgia, a herança das hierarquias não
mais desejadas.
Quando Rancière caracteriza o regime representativo,
denomina-o de poético e, precisamente por isso, podemos alargar a
compreensão do movimento antipoético que temos na França e em

14 RANCIÈRE, 2009, p. 19.

10
outros lugares, a partir dos anos 1960. O crítico associa poiesis e
mímesis no sentido de que, a medida que o poético – dentro de um
sistema da “belas artes”, que estipula maneiras de fazer – define-se
como atividade de imitação, a mímesis determina o que será visível
e o que será imitável. Ou seja, a partir de uma hierarquia na
comunidade estabelecia-se a hierarquia entre os gêneros ou entre as
técnicas. Resta-nos conjecturar se o regime estético, ao destruir as
hierarquias entre os gêneros e os vínculos entre forma e conteúdo,
não acaba por desatar também o nó entre poiesis e mímesis,
possibilitando que tanto uma quanto outra sejam apenas mais um
elemento de composição no conjunto da obra. O que não significa
que, sendo o regime estético um regime de convívio com a
democracia política, tudo se torne visível, pois a arte não mais
responderia à lógica mimética. Rancière deixa sempre em aberto a
temporalidade dos regimes que descreve, cabendo à recepção
perceber possibilidades de pertencimento a um tempo específico.
Por isso podemos afirmar que, mesmo não mais sob o imperativo
da mímesis, também não correspondemos a um tempo de total
invisibilidade ou ilegibilidade. A obra literária contemporânea não
coloca para si a obrigação de tudo tornar visível quando é mimética,
ainda que em um contexto de democracia das artes, nem tampouco
de fechar-se em si mesma, quando é anti-mimética. O que prevalece
como uma das heranças das vanguardas do início do século XX
talvez seja a parcela de negatividade e de enfrentamento da obra,
que a resguarda de uma total literalidade e transparência, mesmo

11
quando seu objetivo é estar em sintonia com a “prosa do mundo”.
O desafio, portanto, para a poesia que vem, é, como afirma Siscar:
“o desafio de dizer tudo e o direito de não dizer nada, de não
responder.”15
Em um conjunto de poemas intitulado “Margens”, do
poeta contemporâneo Carlito Azevedo, começa-se assim: “Nem
procurar, nem achar: só perder.”16 A perda é o começo da
consciência de um eu que não se quer mais no controle, de um
testemunho que não opõe sujeito e história (como é característico
do contexto pós-autônomo), de uma declaração da arte que não
pressupõe autoridade e autonomia. Se para Rancière o momento
de exultação das vanguardas e de emancipação do discurso artístico
tinha a ver com a experimentação radical das formas, o
contemporâneo, em sua recusa formal, condiz, analogamente, ao
momento de recusa e perda do próprio da arte, de seu centro. Mas a
arte estética é justamente a união dos contrários: 17 afirmação e
recusa, experimentalismo formal e dispersão ou fragilidade da
forma. Ambivalente, não mais autônoma, em crise: a arte torna-se
artística, isto é, de um substantivo – não mais alcançável – partimos
para um adjetivo. Um dos críticos de arte brasileira, Rodrigo Naves,
é categórico ao afirmar: “Nunca como hoje a arte se recusou tão

15 SISCAR, 2010, p. 48.


16 AZEVEDO, 2009, p. 123.
17 Quando Rancière define o regime estético, o faz em termos de sua fundamentação
romântica: “O estado estético schilleriano, que é o primeiro – e, em certo sentido,
inultrapassável – manifesto desse regime, marca bem essa identidade fundamental
dos contrários. O estado estético é pura suspensão, momento que a forma é
experimentada por si mesma. O momento de formação de uma humanidade
específica.” (2009, p. 34)

12
renhidamente a ser arte, ao mesmo tempo em que nunca foi tão
artística.”18 Poderíamos ainda desdobrar essa sentença no sentido de
que a arte nunca recusou tanto o gênero, ao mesmo tempo em
nunca foi tão genérica, no sentido de múltipla, sem especificidades,
divergente.
Se a forma-poesia vai, pode, deve desaparecer?
Possivelmente sim, se entendermos a forma não apenas como uma
maneira da matéria distender-se no espaço, mas a forma-poesia
como evento crítico, difícil, pois supõe o acabamento em um
contemporâneo inacabado, sempre adiado. Principalmente sim, se
estivermos considerando uma maneira ainda muito tradicional,
dependente dos anteparos, dos protocolos de leitura específicos,
pouco performática. O destino ou a ressurreição da forma-poesia,
como a concebemos, é absolutamente indeterminável, uma vez que
o verso em enjambement, uma das marcas da poesia
contemporânea, constitui-se justamente como a impossibilidade de
futuro, sendo sempre retorno, queda, desencontro, fratura. O elo
entre a falta e o contemporâneo, de que falávamos no início,
manifesta-se também no sentido da falta de privilégio e de
sustentação da poesia, pois o último verso, como mostra Agamben,
é sempre a falha da poesia diante da prosa.
Dado o espaço em branco ou o abismo que antecede
qualquer sentido na poesia, perguntamo-nos, em um retorno
reversível, como o do verso, Se pode, vai, deve a poesia existir em

18 NAVES, 2007, p. 27.

13
meio a tanto silêncio e diante de sua perda constitutiva. Ou é
justamente para dar a ver toda a falta, toda a inconsistência, todo o
esvaziamento, que a poesia, como breve fulguração, no verso de
uma prosa, a preservar os fantasmas e as outras manifestações
dissolutas entre forma e conteúdo, deve, ainda, resistir.

REFERÊNCIAS:

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423-430, dez. 2013. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
106X2013000200011&lng=pt&nrm=iso>.

AZEVEDO, Carlito. Monodrama. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

CAMPOS, Augusto; PIGNATARI, Décio; Campos, Haroldo.


“Plano-piloto para poesia concreta”. In: ______. Teoria da poesia
concreta, 1975.
GARCIA, Marília. A topologia poética de Emmanuel Hocquard.
Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Letras, 2010. 162 f. Tese (Doutorado).

GLEIZE, Jean-Marie. Sorties. Paris: Questions Théoriques, 2009.

LUDMER, Josefina. “Literaturas pós-autônomas”. In: Sopro.


Trad. Flavia Cera. Desterro: Cultura e Barbárie, janeiro, 2010, p.
01/04. Disponível em:
<http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf>.

MALLARMÉ, Stéphane. “Crise de verso” In: ______. Divagações.


Trad. Fernando Scheibe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2010.

14
MAULPOIX, Jean-Michel. Du lyrisme. Paris: Librairie José Corti,
2000.

MILANEZE, Erica. “Um história de azul: o lirismo crítico na


poesia de Jean-Michel Maupoix”. In: SCRAMIN, S., SISCAR, M.,
PUCHEU, A. O duplo estado da poesia. São Paulo: Iluminuras,
2015, p. 277-292.

NANCY, Jean-Luc. Fazer, a poesia. Alea, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2,


p. 414-422, Dez. 2013. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
106X2013000200010&lng=en&nrm=iso>.

NAVES, Rodrigo. O vento e o moinho. São Paulo: Companhia das


Letras, 2007.

PERLOFF, Marjorie. “Da vanguarda ao digital”. In: ______. O


gênio não original: poesia por outros meios no novo século. Trad.
Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Ed. Ufmg, 2013.

PONGE, Francis. A mesa. Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel


Peterson. São Paulo: Iluminuras, 2002.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Trad. Mônica Costa


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SISCAR, Marcos. Poesia e crise: ensaios sobre a “crise da poesia”


como topos da modernidade. Campinas: Editora da Unicamp,
2010.

SISCAR, Marcos. “Figuras de prosa: a ideia da ‘prosa’ como


questão de poesia. In: SCRAMIN, S., SISCAR, M., PUCHEU, A.
O duplo estado da poesia. São Paulo: Iluminuras, 2015, p. 29-40.

15
A experiência do choque: o dizível, o indizível e a
representação do horror

Fabrício Paiva Araújo19

RESUMO: O artigo aborda assuntos relevantes que explanam a


relação entre linguagem, memória e literatura, no que diz respeito,
as suas verdades factuais e subjetivas, ou seja, o discurso do real em
confronto com o discurso fruto dos anseios e da imaginação
humana. O objetivo é investigar como a experiência do horror é
representada na obra, É Isto um Homem?, de Primo Levi, judeu
italiano e sobrevivente do Campo de Extermínio em Auschwitz.
Pensa-se também, a cultura e os traços como dispositivos
indispensáveis de registros testemunhal da barbárie na era das
catástrofes.

PALAVRAS-CHAVE: Memória; Trauma; Testemunho.

19 Doutorando em Estudos de Linguagem pelo Centro Federal de Educação


Tecnológica de Minas Gerais. Mestre em Letras: Estudos Literários, área de
concentração Literaturas de Expressão Inglesa, pela Universidade Federal de Minas
Gerais. Especialista em Língua Inglesa pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Membro do Núcleo de Estudos de Guerra e Literatura (NEGUE -
UFMG).

16
“I want to go on living even after my death!”
Anne Frank

Desde o fim da Segunda Guerra mundial, os judeus


sobreviventes dos campos de extermínio se esforçam para não
deixar suas experiências traumáticas caírem no esquecimento.
Através de narrativas orais e escritas, esses sobreviventes procuram
registrar suas memórias e revelar a verdade da catástrofe em que
foram acometidos. Retomar os fatos passados e discutir sua
representação faz parte do desejo de grande parte desses
sobreviventes. A construção da memória, a escolha daquilo que se
quer lembrar, e progressivamente renovar e refazer o mundo ao seu
redor se tornou uma rotina e um fardo. A transmissão oral das
experiências vividas e o relato escrito dessas experiências surgem
para suprir a necessidade de resgatar o passado e conservar o
testemunho. Portanto, a memória sendo ligada a questão da
linguagem - memória falada e escrita - se torna um enigma a ser
estudado. Sendo assim, a contribuição aqui proposta aborda
assuntos relevantes que explanam a relação entre linguagem,
memória e literatura, no que diz respeito, as suas verdades factuais e
subjetivas, ou seja, o discurso do real em confronto com o discurso
fruto dos anseios e da imaginação humana. O objetivo é investigar
como a experiência do horror é representada na obra, É Isto um
Homem?, de Primo Levi, judeu italiano e sobrevivente do Campo
de Extermínio em Auschwitz. Pensa-se também, a cultura e os

17
traços como dispositivos indispensáveis de registros testemunhal da
barbárie na era das catástrofes.
Narrar experiências psicológicas muito agressivas é um
exercício árduo e complexo, principalmente porque algumas de
suas principais características trazem o cunho da denúncia e do
desejo de exorcizar a dor. As lembranças geradas no ato de narrar o
trauma despertam pensamentos violentos e trazem à tona
experiências que a vítima gostaria de poder não lembrar.
Diferentemente de muitas narrativas de sobreviventes da Shoah,
Primo Levi afirma que não constrói sua obra como objeto de
denúncia, mas como um instrumento que facilita o acesso as
questões pertinentes a alma humana. No prefácio de, É isto um
homem?, ele afirma:

Este meu livro, portanto, nada acrescenta, quanto ao que


já é bem conhecido dos leitores de todo o mundo com
referência ao tema doloroso dos campos de extermínio. Ele
não foi escrito para fazer novas denúncias; poderá, antes,
fornecer documentos para um sereno estudo de certos
aspectos da alma humana. (Levi, 1988, p. 7)

Para grande parte dos sobreviventes do Lager (Campo),


narrar é, além de outras questões, sair dos murros imagináveis de
Auschwitz que inconscientemente os cercam e insistem em
aprisionar suas mentes. Escrever também pode ser visto como parte
de um exercício terapêutico que ajuda o sobrevivente a superar a
ferida da prisão mental e gritar pelo direito do poder dizer. Porém,
decifrar os acontecimentos do passado e fazê-los verdadeiros no

18
presente, uma vez que é impossível retornar ao passado para
averiguar os fatos, é um exercício difícil e que carrega elementos
cheios de suspeitas.
Apesar das consequências catastróficas geradas pela guerra,
da crise existencial fruto do confinamento no Lager e do confronto
da consciência imposto pelo tratamento anti-humano da
Alemanha nazista, Levi insiste, mediante incertezas, em revelar seu
testemunho. Como ele afirma: “Hoje – neste hoje verdadeiro,
enquanto estou sentado frente a uma mesa, escrevendo – hoje eu
mesmo não estou certo de que esses fatos tenham realmente
acontecido.” (Levi, 1988, p. 152). O que nos parece é que as funções
psíquicas de Levi estão alteradas. Confuso, ele se perde no tempo e
no espaço ao tentar relacionar o “hoje verdadeiro”, decifrar suas
lembranças traumáticas e afirmar a verdade dos fatos que tenta
narrar.
O querer não dizer, o querer não lembrar e exterminar de
vez as memórias que se quer esquecer é um esforço comum do
sobrevivente do trauma. Mas nem sempre é possível esquecer as
lembranças que não mais queremos recordar, e o desejo do
esquecimento se mistura com as imagens latentes dos fatos do
passado. O sociólogo e filósofo francês, Jean Baudrillard, nos
mostra que, “o esquecimento da exterminação faz parte da
exterminação, pois o é também da memória, da história, do social,
etc. Esse esquecimento é tão essencial como o acontecimento, de
qualquer modo impossível de encontrar para nós, inacessível na sua

19
verdade” (Baudrillard, 1991, p. 67). Mesmo com a impossibilidade
de acesso à verdade do acontecimento e do esquecimento, mesmo
com as incertezas geradas na mente e a insuficiência do poder
lembrar com exatidão, o valor testemunhal se estabelece para aferir
os fatos do passado. Adorno nos lembra que, “o excesso de
sofrimento real não permite esquecimento” (Adorno, 1973, p. 64).
A verdade dos acontecimentos dolorosos permanece na memória
da vítima e é produzida pelo poder da cultura que lhe é imposto.
Portanto, a obtenção da verdade se torna um legado cultural. O
filósofo francês, Michael Foucault, ao denotar a questão da
verdade, explana o seguinte:

A verdade não existe fora do poder ou sem o poder [...] ela


é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz
efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu
regime de verdade, sua política geral de verdade: isto é, os
tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como
verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira
como se sancionam uns e outros; as técnicas e os
procedimentos que são valorizados para a obtenção da
verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o
que funciona como verdadeiro. (Foucault, 1977, p. 10)

Foucault nos mostra que no meio social em que vivemos, a


verdade é construída, instituída e imposta. A dúvida que atormenta
a mente de Levi, em relação ao que ele viveu no Campo, pode
também estar relacionada com a imposição da construção da
verdade. Essa imposição pode sugerir uma possível interpretação da
obra de Levi, onde ele, inconscientemente, apenas revela aquilo que

20
é socialmente possível digerir, ainda que traumático. As palavras lhe
faltam para revelar e narrar a experiência do trauma com exatidão.
Diversos relatos e testemunhos de sobreviventes de Auschwitz,
inclusive o testemunho de Levi, nos mostra que é comum entre os
prisioneiros, concordar que somente aqueles que sobreviveram a
Auschwitz realmente entendem, ou entenderam, o que se passou
no Campo. Os observadores, os do lado de fora do Campo, ainda
que analisem seus testemunhos nunca poderão de fato
compreender o terror que os sobreviventes testemunharam.
Mesmo assim, para Levi, a verdadeira testemunha está muda ou
inacessível, e apesar de haver limitações na linguagem para narrar
seu testemunho, Levi afirma: “a história do Lager foi escrita quase
exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam
seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de
observação ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão”
(Levi, 1990, p. 5). A verdade do relato testemunhal será sempre alvo
de questionamentos, mas o que importa, é que Levi, assim como
muitos outros sobreviventes, não se rendeu ao silêncio, não se calou
em favor das atrocidades sofridas no Campo. Mesmo com toda
insuficiência da linguagem para relatar o horror, sua narrativa nos
mostra que é no revelar da história, na perspectiva do vencido, que
a existência do indizível e do inacreditável se revela. Para Benjamin,
a história deve ser “escovada a contrapelo” (Benjamin, 2000, p.
225), ou seja, ir contra a tradição conformista dos ditos vencedores.
É preciso estar atento ao valor das contradições dos fatos narrados

21
pelo dominado e confrontá-los com as possíveis incoerências e
falsidades dos relatos do dominante. Só assim, quebrando a
empatia com o vencedor, a história dos vencidos reflorescerá.
A construção da história se dá mediante diferentes funções:
“memória, mito, transmissão da palavra e do exemplo, veículo da
tradição, consciência crítica do presente, decifração do destino da
humanidade, antecipação do futuro ou promessas de um retorno.”
(Foucault, 1990, p. 384). Foucault nos mostra que a história se
estabelece através de uma série de conhecimentos adquiridos pela
experiência e pela prática, cujo foco é moldar e instituir a identidade
de um povo. Para o filósofo,

a história é o modo de ser fundamental das empiricidades,


aquilo a partir de que elas são afirmadas, postas, dispostas
e repartidas no espaço do saber para eventuais
conhecimentos e para ciências possíveis. [...] A história
como se sabe, é efetivamente a região mais erudita, mais
informada, mais desperta, mais atravancada talvez de nossa
memória, mas é igualmente a base a partir da qual todos os
seres ganham existência e chegam à sua cintilação precária
(Foucault, 1990, p. 233).

A história, a relação temporal entre o eu e o outro, assim


como o processo de construção da memória, podem sofrer
mudanças e diferentes conotações. A memória dialoga com as
experimentações da vida, ela é a representação do ausente e está
permeada de imaginação e mistérios. A história narrada carrega
elementos próprios da ficção, como por exemplo, a criação e a
superstição, portanto, ela revela os limites da verdade. Porém, isso
não significa retirar a legitimidade das múltiplas historiografias

22
geradas pela experiência vivida por Levi em Auschwitz, mas
reivindicar, “uma nova aliança com a verdade”, na tentativa de
entender que, “o verdadeiro engano está na promessa de
autenticidade”. Como explica Márcio Seligmann:

Mais uma vez nos distanciamos, portanto, do discurso do


verdadeiro e não por acaso na segunda metade do século
XX passa-se a falar em um real lacaniano que não pode ser
descrito ou capturado pela razão ou pela imaginação. Esse
real é na verdade um herdeiro da noção de trauma, i.e. de
uma memória que leva em si seu apagamento. Ou seja, se
nas ciências, a verdade torna-se uma questão de acerto e
erro, nas humanidades, a verdade é a inacessibilidade do
real, que não é nada mais que essa transformação do
conceito freudiano de trauma, como des-encontro com o
real. (Seligmann, 2013, p. 37)

Primo Levi, ao descrever em, É isto um homem?, a


realidade no Lager, nos mostra essa discrepância, esse “des-
encontro” com o real ao fazer a seguinte afirmação: “Parecia
impossível que existisse realmente um mundo e um tempo, a não
ser nosso mundo de lama e nosso tempo estéril e estagnado, para o
qual já não conseguíamos imaginar um fim.” (Levi, 1988, p. 119). As
experiências com eventos catastróficos são acentuadas por
alucinações, e a vítima do trauma constantemente carrega uma
história sintomática e cheia de impossibilidades. O ser
traumatizado é vazio, triste e não responde às inquietações da alma,
ele é incerto e estranho ao mundo que o cerca.
O trauma pode gerar outro “mundo” e outro “eu”. Como
afirma Levi, “quem perde tudo, muitas vezes perde também a si

23
mesmo.” (Levi, 1988, p. 25). Desprovido de esperança, saúde mental
e física, o testemunho de Levi é marcado por traumas irreparáveis.
A experiência da tragédia pode ser delirante, o traumatizado fica
desorientado e por isso perde a razão. Conforme aponta Seligmann:

A experiência traumática é, para Freud, aquela que não


pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. (...) A
linguagem tenta cercar e dar limites àquilo que não foi
submetido a uma forma no ato de sua recepção. Daí Freud
destacar a repetição constante, alucinatória, por parte do
“traumatizado” da cena violenta: a história do trauma é a
história de um choque violento, mas também de um
desencontro com o real (em grego, vale lembrar, “trauma”
significa ferida). A incapacidade de simbolizar o choque
(...) determina a repetição e a constante posterioridade, ou
seja, a volta après-coup20 da cena. (Selligmann-Silva, 2003,
p. 48-49).

O ser fruto do trauma, da “ferida”, do sofrimento intenso e


progressivo, reconstrói sua identidade a partir de suas memórias
traumáticas. É a memória que sustenta e constrói a identidade. A
memória, segundo Le Goff, é “particularmente instável e maleável”
(Le Goff, 1994, p. 468). Nossa identidade está sujeito a constantes
mudanças fruto da corrosão do tempo e do esquecimento, mas
também, fruto do trauma, que é “caracterizado por ser uma
memória de um passado que não passa” (Seligmann, 2008, p. 69).
No Campo, a identidade do prisioneiro é formada a partir do

20 Uma possível tradução para o termo après-coup, que na psicanálise carrega o sentido
de ressignificação, seria “depois do golpe”. O termo está presente na obra freudiana
(Nachträglichkeit, em alemão), e foi desenvolvido por Jean Laplanche, por vezes
traduzido como a posteriori ou, ainda, só-depois, em português (tradução defendida
por Maia & Andrade). Maia, L., & Andrade, F. C. B. (2010). Nachträglichkeit:
leituras sobre o tempo na metapsicologia e na clínica. E studos de Psicanálise, 33, 75-
90.

24
tormento, dos abusos inexplicáveis e da desesperança. Ao relembrar
a crueldade no Campo, Levi aponta para a morte da alma e para a
barbaridade do homem em relação ao seu próximo.

Viajamos até aqui nos vagões chumbados; vimos partir


rumo ao nada nossas mulheres e nossas crianças; nós, feito
escravos, marchamos cem vezes, ida e volta, para a nossa
fadiga, apagados na alma antes que pela morte anônima.
Não voltaremos. Ninguém deve sair daqui; poderia levar
ao mundo, junto com a marca gravada na carne, a má nova
daquilo que, em Auschwitz, o homem chegou a fazer ao
homem. (Levi, 1988, p. 55)

É através da linguagem que Levi acha forças para tentar


representar o horror e materializar a dor, a agonia e o desespero
vivido no Campo. Mesmo a linguagem sendo, segundo Foucault,
“o lugar das revelações”, e ainda fazer “parte do espaço onde a
verdade, ao mesmo tempo, se manifesta e se enuncia” (Foucault,
2000, p. 50), o testemunho do sobrevivente do Lager, o
testemunho da dor e do trauma, acontece justamente no permear
do poder dizer e do poder não dizer. A representação dos relatos
dos sobreviventes através de suas narrativas não deve ser
confundida com a verdade, mas deve ser vista como uma revelação,
uma mostra do que se tem na mente, uma exposição do que se
pretende trazer a memória. Embora existam rastros e marcas da
catástrofe o acesso à verdade nem sempre é possível. Como afirma
Levi, em se tratando de Auschwitz, não é possível confiar no
próprio raciocínio:

25
Porque nos Campos perdem-se o hábito da esperança e até
a confiança no próprio raciocínio. No Campo, pensar não
serve para nada, porque os fatos acontecem, em geral, de
maneira incompreensível; pensar é, também, um mal
porque conserva viva uma sensibilidade que é fonte de
dor, enquanto uma clemente lei natural embota essa
sensibilidade quando o sofrimento passa de certo limite.
(Levi, 1988, p. 251-252)

Jean Baudrillard nos mostra a insuficiência da linguagem


para representar acontecimentos, ao afirmar que ainda nos falta
“uma linguagem que esteja à altura de traduzir o estado atual das
coisas”, que retribua condignamente “a situação completamente
indeterminadas, aleatórias, flutuantes”. Para o filósofo, o que nos
resta é “a linguagem da representação, que é a linguagem do sujeito
– o que, aliás, é bom, ela é simbólica, ambivalente”. 21 Portanto, a
linguagem como representação do horror não é suficiente para
abordar as atrocidades geradas no Campo. A verdade do terror
vivido em Auschwitz é vista como, indescritível, inominável e
irrepresentável, mas ganha status no fluxo caótico do devir através
de sua ambivalência, ou seja, suas verdades factuais e subjetivas.
A violência testemunhada por Levi, assim como outros
sobreviventes da Shoah, não pode ser ignorada, suas narrativas
podem ser vistas como documentos históricos fruto da barbárie.
De acordo com Walter Benjamim, “nunca existiu um documento
da cultura que não fosse ao mesmo tempo [documento] da
barbárie” (Benjamin, 2000, p. 225). Benjamin nos explica que a
cultura pós Segunda Guerra Mundial, em toda a sua magnitude,
21 Cf. Baudrillard, Jean. Entrevista. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23 dez. 1987. Ilustrada,
p. A-37.

26
assume o papel de testemunha da barbárie. Ademais, vivemos
cercados de uma rotineira representação da violência. Somos
obrigados a conviver com a violência como se ela fosse o único
dispositivo presente capaz de nos sensibilizar. Estamos ateados aos
extremos da barbárie, ao choque que tanto nos incomoda, mas que
também suprime a sensibilidade da mente e do coração. Esperamos
a desgraça como parte da conciliação da vivência. Acostumamo-nos
com as rotineiras e intermináveis imagens do trauma e da dor.
Imagens que nos cativam inconscientemente e nos anestesiam para
que aos poucos o choque deixe de ser necessário, perdendo assim, o
efeito de comunicar e sensibilizar o horror. Nas palavras de
Baudrillard,

a miséria e a violência nos tocam ainda menos porque elas


nos são significadas e mostradas abertamente. É a lei do
imaginário. É preciso que a imagem nos toque por ela
mesma, que ela nos imponha sua ilusão específica, sua
língua original, para que algum conteúdo nos afete. Para
que haja transferência afetiva sobre o real, é preciso haver
contratransferência da imagem a estar concluída.
Lamenta-se que o real tenha desaparecido sob o pretexto
de que tudo passa pela imagem. (Baudrillard, 2002, p. 148)

Mesmo a violência se tornando um costume e parte


integrante da nossa cultura, os sobreviventes da Shoah não desistem
de contar suas histórias, de narrar a intensa experiência cuja mente
não foi capaz de assimilar. A lembrança latente e indesejada persiste
obsessivamente, mesmo não havendo ligação consciente com a
atualidade. O desejo de não querer lembrar e a incapacidade de

27
esquecer se tornam ameaças constantes na mente do sobrevivente
do Campo. Tudo lhes foi tirado, foram reduzidos a nada e ao
inenarrável. Como Levi nos relata:

Pala primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa


língua não tem palavras para expressar essa ofensa, a
aniquilação de um homem. Num instante, por intuição
quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao
fundo. Condição humana mais miserável não existe, não
dá para imaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as
roupas, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos
escutarão – e, se nos escutarem, não nos compreenderão.
Roubaram também nosso nome, e, se quisermos mantê-
lo, devemos encontrar dentro de nós a força para tanto,
para que, além do nome, sobre alguma coisa de nós, do
que éramos. (Levi, 1988, p. 32)

Contudo, o testemunho de Levi nos leva a crer que sua


narrativa de testemunho do horror funciona como um dispositivo
de autorreflexão e construção de subjetividades, onde o conceito de
verdade e mentira são meros coadjuvantes do processo construtivo
do testemunho. A realidade passa a ser uma experiência cultural
que precisa ser impulsionada constantemente pela particularidade
de cada sobrevivente que narra o trauma fruto do campo de
extermínio. Giorgio Agamben aponta para algumas
particularidades marcantes em Auschwitz.

Auschwitz marca o fim e a ruína de qualquer ética da


dignidade e da adequação a uma norma. A vida nua, a que
o homem foi reduzido, não exige nem se adapta a nada: ela
própria é a única norma, é absolutamente imanente. E “o
sentimento último de pertencimento à espécie” não pode
ser, em nenhum caso, uma dignidade. (Agamben, p. 76)

28
Levi faz do ofício de escrever uma necessidade e uma
obrigação. Ele resolve se despir através de seu testemunho para
deixar um legado do que o homem é capaz de fazer a outro homem.
Seu intuito é fazer com que sua obra funcione como um
documento histórico para a humanidade, consequentemente, a
extrema falta de dignidade e decência ilustra cada página de sua
obra testemunhal. Porém, escreve consciente de que nem todos irão
digerir um testemunho cujas palavras não são suficientes para
contá-lo, pois sabe que não há como se adaptar ao que é
absolutamente imanente. Como ele afirma: “bem sei que, contando
isso, dificilmente seremos compreendidos, e talvez seja bom assim.”
(Levi, 1988, p. 25). Para quem sobreviveu a Auschwitz, ser aceito ou
compreendido são fases passadas, etapas saturadas e desnecessárias
na vida do sobrevivente do caos. Ainda hoje, o que resta do Campo
físico em Auschwitz permanece no mesmo local, reafirmando o
testemunho daqueles que sobreviveram e contam suas histórias,
mas também, dos emudecidos e dos que se foram e não podem
mais falar. Porém, o vencido ganha voz nas narrativas dos que
decidiram transplantar a dor da experiência do choque, dos quais os
horrores ainda são incompreensíveis, mas cujas memórias insistem
em permanecer como o maior legado do horror na era das
catástrofes.

29
REFERÊNCIAS:

ADORNO, Theodor W. “Engagement”. Notas de Literatura.


Celeste Aída Galeão & Idalina Azevedo da Silva (trad.). Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973. p. 51-71.

AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. Homo sacer III. Trad.


Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Trad. Maria João


da Costa Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.

__________________. A troca impossível. Trad. Cristina Lacerda


e Teresa Dias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I: Magia e técnica, arte e


política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2000.

FOUCAULT, Michel. A microfísica do Poder. Rio de Janeiro:


Graal, 1979.

________________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das


ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 8. ed.
Segunda tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

FREUD, Sigmund. “Além do Princípio do Prazer”. Obras


psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard
brasileira. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1980, p. 13-85.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: UNICAMP,


1994.

LEVI, Primo. É isto um homem?. Trad. Luigi Del Re. Rio de


Janeiro: Rocco, 1998.

30
__________. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os
castigos, as penas, as impunidades. Tradução de Luiz Sérgio
Henriques. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 21.

MULLER, Fernanda. “Auschwitz e o Desafio da Representação”,


Anuário de Literatura v. 13, n. 1, UFSC, 2008.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, memória, literatura: o
testemunho na era das catástrofes. São Paulo: Editora da Unicamp,
2003.

________________________. “Ficção e imagem, verdade e


história: sobre a poética dos rastros”. Dimensões, vol. 30, 2013.

31
Illusions of reality uncovered in parody of science
fiction: The Year of the Flood and The Hunger
Games

Amanda Pavani22

ABSTRACT: Contemporary dystopias in the science fiction genre


often present alternative worlds and societies that expose illusions
fed by formulaic discourses in daily life, including narratives,
television, propaganda and, on occasion, religion. Among these
illusions are the illusion of unmediated communication, that is,
that codes and narratives are capable of impartial representation,
when, in fact, they reveal bias and restrictions. In Margaret
Atwood’s The Year of the Flood and Suzanne Collins’s The
Hunger Games, these illusions are exposed through a parodic play
with coded discourses, especially that of science fiction. Using
Linda Hutcheon’s concept of parody without ridicule, this analysis
elucidates the relationship between the simulacrum and parody, as
one, when used as a tool for the other’s composition, illuminates
the ambiguity of the sign and of its supposed truth value.

KEYWORDS: science fiction, parody, illusion.

22 Mestranda em Estudos Literários (UFMG).

32
Science fiction has had a strong influence in contemporary
fiction forms. Since the late 19th century, novels, films, series, and
magazines spread tales of various themes, including global
warming, alien invasions, state violence, surveillance, robots, etc. In
common sense, science fiction is that umbrella term for fictions
that explore science’s influence on daily life, or for fictions that
speculate on the future of Earth and on the possibility of life in
other planets. However, while science fiction eludes definitions, it
also carries a history of certain narrative devices. Those narrative
devices and occasional clichés found in the genre constitute a coded
discourse, a group of conventions and expectations imbued in sci-fi
works.
Coded discourses can be subjected to parody, according to
Linda Hutcheon’s Theory of Parody (2000). She claims that
parody does not necessarily include an element of ridicule, an
attempt to belittle the source artwork or code, but that parody is
recognizable as long as it is an exercise of “ironic distancing” (p. 3),
as a conversational exercise about language conventions and art
itself. She also extends the matter of parody’s target. She proposes:
“[It] is always another work of art or, more generally, another form
of coded discourse” (p. 16), widening the possibilities for parody.
Although there is no definition of coded language, it is arguable
that it may contemplate formulas of discourse, structures of
communication that are so repeated that become part of a society.
In other to approach this issue, I studied two science fiction novels

33
published in the 2000s: Margaret Atwood’s The Year of the Flood
and Suzanne Collins’ The Hunger Games.
It is my contention that science fiction can be classified as a
coded discourse according to Hutcheon. Textual evidence in the
novels supports the idea that they parody science fiction’s
conventions, and that is mainly influenced by instances of the
simulacrum in the construction of that same parody. That parody
of science fiction conventions produces the effect of exposing
illusions of reality, namely that science, as a code, is not absolute,
and that science fiction is more than common sense would indicate.
Brian Stableford traces a line of science fiction history, in
the first chapter of The Cambridge Companion to Science Fiction
(2003). With the working concept of speculative fiction in late 19 th
century, stories covered imaginary worlds and scenarios; however,
as the 20th century began, the explanation given to accessing such
worlds involved the dream state. “Almost all of the colorful
fantasies in imitation of A Princess of Mars [1912] were essentially
dream stories, although few of them were scornful of facilitating
devices” (p. 29), claims Stableford; facilitating devices are what he
calls the access a given character had to the alternate reality, echoing
Atwood’s own comment on ustopia.

As ustopia is by definition elsewhere, it is almost always


bracketed by two journeys: the one that transports the
tale-teller to the other place and the one that transports
him (or her) back so he can deliver his report to us. Thus
the writer of the book always has to come up with a mode
of transport. When utopias were placed on islands, the

34
journey was a simple matter of a sea voyage, and then of
some sort of rescue by boat. (cap. 1)

Where science fiction is concerned, there is no common


means of transportation and communication involved; Stableford’s
facilitating devices are, then, essential for making science fiction
narratives plausible, if not scientifically accurate. That is when, still
according to Stableford, science fiction took a turn from other
speculative fiction.
Under the influence of H. G. Wells, many early science
fiction writers “were enthusiastic to deploy pseudoscientific jargon
in support of their facilitating devices” (STABLEFORD, 2003, p.
29). Even before science fiction was consolidated under its name
(with variations including scientific romance, scientifiction, among
others), the scientific discourse was inserted; holograms and gravity
and teletransportation were “explained” by means of
pseudoscientific discourse – a simulacrum of science’s coded
discourse, in other words. As scientifiction, a more didactic
approach to science fiction, became widespread with the era of
magazines, science was spoken of only with praise and awe towards
the inventions and discoveries of humankind – pointing at an
eventual state of utopia (ibidem, p. 30).
Although science fiction and utopia are not the same thing,
they are often part of the structure of the same novels. Some of its
classics speak with awe of the so-called “evolution” that took place
in that alternative society. One of the most famous examples of that

35
is Huxley’s Brave New World, a classic science fiction
utopia/dystopia that begins with the Director touring students
through the fertilization process: “this receptacle was immersed in a
warm buillon containing free-swimming spermatozoa – at a
minimum concentration of one hundred thousand per cubic
centrimetre” (2007, p. 3). Clearly, scientific discourse is one of the
building blocks of the novel, giving the plot its fact-proof feel and
the notion of progress through science, eliminating differences
among individuals.
Huxley himself, part of a more mature stage of science
fiction that questioned its previous pristine reputation, was rejected
by science fiction writers of his time. He “was supposed to say
something uplifting about science and provide the emotional pay-
offs that come with adventure” (STABLEFORD, 2003, p. 45). The
resemblance of this criticism with Atwood’s reasons for denying the
label for her novels may not be accidental, for this was one of the
first backlash reactions to science fiction that do not revere science,
but the reactions consider the consequences of science’s
unrestricted development.
Following the conflicts of what could be named science
fiction and what could be not, typical of the 1950s and 1960s,
Stableford sees a before and an after to the process: “sf before the
1960s was predominantly empirical or readerly […] you accepted
what was on the page as if seeing through clear glass”, while the
later expressions were an “epistemological or writerly invitation to

36
endless interpretation.” (2003, p. 62, emphasis on original). This
process is relevant for the consideration of science fiction as a
consolidated genre with its own coded discourse; that
pseudoscientific, reverential speech whose inversion began in the
1960s but has been reaching its full fragmentation in the last
decades.
Published in 2008, The Hunger Games is a first-person
narration, whose voice belongs to Katniss Everdeen, a sixteen-year-
old girl who lives in District Twelve. The novel is set in Panem, a
futuristic dystopian society. On the other hand, published in 2009,
The Year of the Flood is a fragmented story told by two narrators
with different perspectives: Toby, an adult woman, whose
narration is in the third person, and Ren, initially a child, whose
narration is in the first person. Both are survivors of a viral plague
that decimated the majority of human kind, and they are left to
scrape on the remains of an ultracapitalist society.
The foremost sign of ironic distancing from the coded
discourse in science fiction that can be found in The Hunger
Games and The Year of the Flood is the treatment of that very tone
of awe towards scientific advancements. Katniss’s narrative voice, as
the high-speed train brings her to the pre-Games proceedings, at
first complies with tradition:

The cameras haven’t lied about its grandeur. If anything,


they have not quite captured the magnificence of the
glistening buildings in a rainbow of hues that tower into
the air, the shiny cars that roll down the wide paved

37
streets, the oddly dressed people with bizarre hair and
painted faces who have never missed a meal (COLLINS,
2008, p. 72).

The protagonist’s first reaction of admiration is succeeded


by her sense of class and abundance, in stark contrast with her
previous background. While acknowledging that the Capitol looks
astonishing, Katniss focuses on its citizens and she can only think
of all the food they never missed. The traditional coded discourse is
used and questioned in the end, but the questioning does not
ridicule the content of that first convention.
In The Year of the Flood, awe towards scientific
advancements and/or explorations is more veiled; the reasons
involve the novel’s complementary relationship with Oryx and
Crake (ATWOOD, 2003) and the nature of The Year of the Flood’s
characters, none of which are, as Snowman would say, “numbers
people”. The voice of praise for science and its potential of nature
manipulation occur mainly in Crake’s appearances, particularly
detectable in Crake’s first appearance in the novel, when he visits
Pilar. As Amanda asks him what was wrong with Pilar, he answers,
“Illness is a design fault . . . It could be corrected” (ATWOOD,
2009, p. 147). He is immediately recognized as a “numbers person”
from the Compounds and his discourse is marked in that context,
signaling the value of science and of academic discourse as well.
However, the way his speech is received renders the distance
between the Gardeners and people from the Compounds explicit:
“Only brainiacs from there talked like that: not answering your

38
question up front, then saying some general kind of thing as if they
knew it for a fact” (idem), says Ren, partially impressed, but mostly
confused about his language.
Additionally, what would be detailed explanations in praise
of the advancements of science mostly reach the characters in The
Year of the Flood through mediation, overly vague descriptions
caused either by lack of interest from the narrators or by the
passing on of explanations that lost their specificity before reaching
them in the first place. This can be seen in Ren’s description of the
effects of the BlyssPluss pill, introduced at her workplace:

There was something new they’d started using just after I


went into the Sticky Zone – BlyssPluss, it was called.
Hassle-free sex, total satisfaction, blow you right out of
your skin, plus 100 percent protection – that was the word
on it. […] Scales was testing the BlyssPluss for the Rejoov
Corp, so they weren’t handing it out like candy – it was
mostly for the top customers – but I could hardly wait to
try it. (ibidem, p. 130)

It is notable from the previous excerpt that, actually, there


was hardly any science fiction involved in BlyssPluss for trapeze
dancers such as Ren – instead, she receives catchphrases, end-results
and propaganda-like descriptions, which most probably would
have been developed by Jimmy himself.
The contrast with the pill’s description found in Oryx and
Crake can lead to interesting conclusions. When Jimmy is brought
to work on the marketing of the BlyssPluss, his first exposure to the
project is completely different from Ren’s.

39
Which had led to the concept of the BlyssPluss. The aim
was to produce a single pill, that, at one and the same
time:
a) would protect the user against all known sexually
transmitted diseases, fatal, inconvenient, or merely
unsightly;
b) would provide an unlimited supply of libido and sexual
prowess, coupled with a generalized sense of energy and
well-being, thus reducing the frustration and blocked
testosterone that led to jealousy and violence, and
eliminating feelings of low self-worth;
c) would prolong youth.
… The BlyssPluss pill would also act as a sure-fire one-
time-does-it-all birth-control pill, for male and female
alike. (ATWOOD, 2003, p. 346-7)

Atwood’s different explanations of the same novum (as


Darko Suvin might have defined it)23 are not accidental. While
attentive to the formulas of science fiction (as the explanation in
Oryx and Crake demonstrates), her characterization and insertion
of science fiction components demonstrate awareness of social and
contextual elements. Ren, the trapeze dancer, receives a marketing-
mediated explanation; Jimmy, the one responsible for that
mediation, receives a quasi-scientific explanation. Atwood does not
attempt to detail the workings of her nova by using
pseudoscientific discourse; by employing some means of
mediation, she echoes that speech, but sets some distance from
science fiction “proper”, as she calls it herself.24
23 Suvin inserts the concept of novum in discussions about science fiction, an
estrangement element that creates the environment in the work. Some nova may be
spaceships, light-speed travel, aliens, among others (SUVIN, 2005, p. 27).
24 “I liked to make a distinction between science fiction proper – for me, this label
denotes books with things in them we can't yet do or begin to do, talking beings we

40
Another evidence of parody of science fiction as a coded
discourse in the novels, besides mediation, is the casual tone often
found in science fiction traits inserted in the plot, or how
inventions or mutations have mingled so intimately with their
environment that they do not stand out as scientific advancements
to the characters and/or narrators. That shift in tone of narrative
converses with the didactic tone in science fiction in general from
the 20th century, especially typical of utopian works within the
genre of science fiction. Edward James, in his chapter for The
Cambridge Companion to Science Fiction (2003), calls the practice
the “‘info-dump’, in which one character painstakingly explains the
details of this world” (JAMES, 2003, p. 222). In The Year of the
Flood and The Hunger Games, the explanatory voice is absent; a
sense of estrangement can be provoked on the reader by
juxtaposing nova and props already familiar for him/her. That
same estrangement establishes a dialectics of parody of coded
discourse when the reader (the decoder) recognizes the “info-
dump” from several other science fiction works.
In The Hunger Games, this is mainly seen in Collins’s
approach to birds. They have a strong symbolic presence in the
novel, in the presence of mockingbirds, jabberjays, and
mockingjays. Jabberjays, according to Katniss, were a species of
mutation created by the Capitol, able to hear and record entire

can never meet, and places we can't go – and speculative fiction, which employs the
means already more or less to hand, and takes place on Planet Earth” (ATWOOD,
2004, p. 514).

41
conversations among rebels. However, the rebels were said to have
discovered the maneuver and fed lies to the opposing side. As a
result, they were “abandoned to die off in the wild” (COLLINS,
2008, p. 52). The jabberjays mated with mockingbirds, creating
mockingjays, able to reproduce bird and human notes. Needless to
say, mockingjays play a crucial role not only in the novel, but
throughout the series. As Katniss becomes the symbol of the rebels,
she will be called “the Mockingjay”, a result of the artificial and the
natural combined.
When proposing that parody does not necessarily aim at
demoralizing an artwork and arguing for a range of pragmatic
ethos in its practice, Hutcheon points at the act of communication
between encoder and decoder. Both “must effect a structural
superimposition of texts that incorporates the old into the new.
Parody is a bitextual synthesis.” (HUTCHEON, 2000, p. 33) The
first artwork can be seen as the jabberjay and its parody the
mockingjay. Their synthesis points at their similarities and their
differences: the mockingjay is born in the wild, able to recognize
human and bird songs – what they share is the trait of
reproduction. Be that reproduction approximate, vague,
purposeful or casual, it is the synthesis among them, and it makes
the failure of humankind in designing an animal for their spying
needs explicit.
In parallel with the symbolic use of birds in The Hunger
Games, there is also the shift with “info-dump”. Katniss explains

42
how jabberjays were created and then banished; however, she is
content with calling them “mutations, or mutts” instead of
explaining how a bird could possibly carry its animal appearance
while tracking, selecting, and recording conversations that might
interest the Capitol. Her interest lies in the way the animals were
discarded, but they found a way to perpetuate some of their traits,
eventually becoming a symbol of resistance. She calls the
mockingjays “something of a slap in the face of the Capitol”
(COLLINS, 2008, p. 51). The “info-dump” only consists of an
anecdote on the way the oppressive government was fooled in the
past and its symbolic value will pervade the construction of her
character (Katniss’s relationship with her father and, consequently,
with music), explaining some points without actually explaining
them.
The Year of the Flood, on the other hand, does not even
bother with explanations that are not explanations. In fact, the
reader may go through most of the novel without actually
understanding some of its nova or may even go without noticing
them. There is a sense of the casual that pervades descriptions of
the environment around the characters that signals a naturalization
of the effects of scientific development. They have mingled with
natural species for so long that they “feel natural” to the characters.
This is notable from the first chapter on Toby’s narration, situating
her in the isolated AnooYoo Spa.

43
The swimming pool has a mottled blanket of algae.
Already there are frogs. The herons and the egrets and the
peagrets hunt them, at the shallow end. For a while Toby
tried to scoop out the small animals that had blundered in
and drowned. The luminous green rabbits, the rats, the
rakunks, with their striped tails and raccoon bandit masks.
But now she leaves them alone. Maybe they’ll generate
fish, somehow. When the pool is more like a swamp.
(ATWOOD, 2009, p. 4)

Animals already known to humankind and those that


resulted from genetic manipulation go hand in hand. There is a
signal of mutation in the “green rabbits”, but rakunks and peagrets
allude to the state of animal species in the series, as animals
genetically engineered are as common as animals born in nature –
other mixtures are alluded to, such as liobams and pigoons. In
order to reach whatever meaning can be linked to these
manipulated species, the reader must either search it in the parts of
the word or on occasional descriptions, scattered through the
novel. Investing the reader with the power to investigate personally
the intricacies of animal life creates a differential approach to the
“info-dump” from coded science fiction.
That parodic game is complemented in both novels, but
with different tangents. While The Hunger Games turns towards
the 1984 (1983) notion of forced entertainment – in both novels the
screens are constantly lit, entertainment and surveillance are
entwined too closely for the characters to see clearly between them
–, The Year of the Flood turns to inversions in religious discourse.

44
The novels analyzed, among several other characteristics,
present plots occurring in alternate societies. However, neither
Panem nor the remains of North America from The Year of the
Flood claim to be wholly separate societies from the current,
existing one and its dynamics of power. In fact, it is arguable
whether creating an alternative result to the influence of humans
on the planet is even possible. While that is the claim in some
science fiction works, critics like Terry Eagleton and Fredric
Jameson, for instance, disagree that it can be achieved. For
Eagleton, science fiction often changes a few variables, but
maintains the structure of known or current societies: “What
renders these tales so suspect is not the strangeness of these beings,
but exactly the opposite. Apart from an extra limb or two […] they
look much like Bill Gates or Tony Blair” (EAGLETON, 2000, p.
31).
An resulting effect of parodying a coded discourse by
exposing the ambiguities in its relations among signs and formulas 25
involves the exposure of illusions of absolute truths or of reality.
Exposed unmediated communication can be seen in the parody of
science fiction discourse. In the subversion of genre conventions,
the concept of science as absolute knowledge is questioned. The
creation of the Crakers (a posthuman species engineered by Crake
to be an improvement on humankind as it is now) and the attempt

25 Relationships among signs are discussed by Baudrillard, in Simulacra and


Simulation, a supporting theory that exposes the so-called “independence” of signs,
their ambiguity and their interrelations in the hyperreal (BAUDRILLARD, 1981).

45
at extinguishing humans show the extreme reached by Crake’s
assessment of the role of science. The exaggeration in valuing the
hard sciences identified in Oryx and Crake and furthered in The
Year of the Flood can be identified as one of the factors in scientific
advancements multiplying out of control. The belief, in the history
of science fiction, that the genre should broadcast the wonders of
science is questioned in the quasi-scientific explanations found in
The Hunger Games and The Year of the Flood. The traditional
info-dump is substituted by vague and mediated accounts of
scientific advancements that near the realm of “magic”, in the sense
that science, in the novels, seems to act on its own volition and its
ways are not quite clear for the narrators or for the readers.
Parody exposes the reliability of formulas and codes,
although it does not necessarily preach their extinction. It is
possible to remark that parody of coded discourses exposes
illusions of true reality and establishes these fragilities to incentive a
proceed-with-care ethos when dealing with mediated discourses.
These illusions are revealed at a literary level through the ironic
distancing that parody allows to take place. In these novels,
simulacra are directly related to unveiling illusions about science
fiction as coded discourse, especially in relation to the hyperreal
proposed by Baudrillard’s theory of simulation.

46
WORKS CITED:

ATWOOD, Margaret. The Year of the Flood: a novel. New York:


Anchor Books, 2009.

ATWOOD, Margaret. Oryx and Crake. London: Virago, 2003.

ATWOOD, Margaret. In other Worlds: SF and the human


imagination. 2012. Arquivo EPUB.

ATWOOD, Margaret. The Handmaid's Tale and Oryx and Crake ‘In
Context’. The Next Millennium v. 119 n. 3, p. 513-517. 2004.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacra and Simulation. Trad. Sheila Faria


Glaser. Michigan: Michigan University Press, 1981.

COLLINS, Susanne. The Hunger Games. New York: Scholastic,


2008.

EAGLETON, Terry. Utopia and its Opposites. Socialist Register v. 36,


p. 31-40. 2000.

HUTCHEON, L. A Theory of Parody: The Teachings of Twentieth-


Century Art Forms. Chicago: University of Illinois Press, 2000.

HOWELLS, Coral Ann (Ed.). The Cambridge Companion to Science


Fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
HUXLEY, Aldous. Brave New World. London: Vintage Books, 2007.

JAMESON, Fredric. Progress versus Utopia: Or, Can We Imagine the


Future. Science Fiction Studies v. 9 n. 2, p. 147-158. 1982.

ORWELL, George. 1984. London: Plume, 1983.

SUVIN, Darko. “Estrangement and cognition”. In: Speculations on


speculation: theories of science fiction. Eds. Gunn and Candelaria.
Oxford: The Scarecrow Press, 2005. p. 23-35.

47
Adaptação e intertextualidade no texto inédito do
roteiro cinematográfico de A hora dos
ruminantes : um espetáculo político

Marcelo Cordeiro de Mello26

RESUMO: Em 1967, o cineasta Sérgio Person e o crítico e roteirista


Jean-Claude Bernardet decidem adaptar uma obra literária para o
cinema: a narrativa distópica A hora dos ruminantes de José J. Veiga.
O roteiro foi concluído, embora nunca tenha sido filmado. Os
datiloscritos e manuscritos do roteiro e seus anexos atualmente
pertencem ao acervo da Cinemateca Brasileira. Nossa pesquisa de
Doutorado é a primeira a tratar deste texto importantíssimo no
panorama cultural brasileiro. Consideramos importante abordá-lo no
âmbito dos estudos literários, já que “A hora dos ruminantes” de
Person e Bernardet constitui uma unidade textual autônoma, além de
ser baseado numa obra literária. Nesta Comunicação e em seu texto,
nossa proposta é tratar do processo de adaptação a partir da discussão
conceitual de Linda Hutcheon em Uma teoria da adaptação, partindo
da ruptura hierárquica entre a obra adaptada (erroneamente
considerada a “matriz literária”) e a adaptação. Em seguida,
discutiremos como o projeto cinematográfico de “A hora dos
ruminantes” conjuga três aspectos fundamentais da criação artística:
os aspectos estético, ideológico e comercial. Neste “filme-espetáculo”
(oposto ao espetáculo alienante descrito por Guy Debord) o objetivo
seria atrair o público e difundir (ainda que de maneira alegórica) uma
clara mensagem política de não-resignação diante da Ditadura Militar.

PALAVRAS-CHAVE: A hora dos ruminantes; Person; Bernardet;


Veiga; roteiro; adaptação; espetáculo.

26 Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8514971131019930

48
Este trabalho pretende trazer à luz um texto esquecido, mas
cuja importância para a cultura brasileira é enorme. Trata-se do
roteiro de “A hora dos ruminantes”, 27 escrito em 1967 por Luís
Sergio Person e Jean-Claude Bernardet, baseado na obra literária
homônima de José J. Veiga, publicada em 1966.
Este é o objeto de estudo de nosso Doutorado iniciado em
2015 no Departamento de Estudos Literários da Faculdade de
Letras da UFMG. A linha de pesquisa de “Literatura, outras artes e
mídias” é um espaço privilegiado para desenvolver este tipo de
reflexão, afinal, os textos de roteiro são pouco estudados, e ainda
menos dentro do âmbito do estudos literários.
Antes de descrever o roteiro e seus anexos, começaremos
por apresentar brevemente o contexto e os autores do roteiro, o
cineasta Luís Sérgio Person (1936-1976) e o crítico e roteirista Jean-
Claude Bernardet (1936-), bem como o autor de sua matriz literária,
o escritor goiano José J. Veiga (1915-1999). Trataremos da relação
destes artistas com algumas questões do panorama cultural
brasileiro da época.
Começaremos por tratar dos autores do roteiro Person e
Bernardet e sua colaboração. Depois apresentaremos o texto do
projeto de “A hora dos ruminantes” (inspirado na obra de Veiga)
para em seguida desenvolver três de seus aspectos principais: o

27 PERSON, Luís Sérgio, BERNARDET, Jean-Claude. A hora dos ruminantes.


Datiloscrito e manuscrito. Roteiro cinematográfico e anexos. Baseado na obra
homônima de José J. Veiga. Julho de 1967, São Paulo. Texto inédito doado à
Cinemateca Brasileira por Jean-Claude Bernardet em 1983.

49
aspecto insólito/absurdo, o aspecto político-ideológico e o aspecto
comercial e mercadológico ou espetacular.
Luís Sérgio Person foi um dos mais importantes cineastas
brasileiros de seu tempo, cuja bem-sucedida e promissora carreira
foi abreviada de forma trágica por um acidente automobilístico.
Depois de estudar cinema na Itália, Person volta ao Brasil
em 1963 e filma São Paulo Sociedade Anônima, inspirado na sua
experiência no meio empresarial de São Paulo durante a expansão
da indústria de automóveis. O filme, uma narrativa fragmentada,
cheia de elementos modernos, representa um jovem (Carlos) que,
enquanto ascende na sua carreira de industrial, vê-se perdido em
questionamentos, entre a revolta contida, o egoísmo, a alienação e
reificação na grande metrópole.
Naquela época, chama a atenção de Person o texto sobre
São Paulo Sociedade Anônima de um crítico que frequentava o
meio paulista: trata-se de seu futuro amigo e colaborador, Jean-
Claude Bernardet. Ele defende que, ao representar a classe média
questionando a si própria, o filme de Person se diferenciava
radicalmente do Cinema Novo, cuja tentativa até o momento vinha
sendo a de dar voz às classes populares, retratando a miséria e o
subdesenvolvimento, tanto no meio urbano – como em Rio
Quarenta Graus (1955) e Rio Zona Norte (1957) – quanto no meio
rural – como é o caso de Vidas Secas (1964), Os fuzis (1964) e Deus
e o diabo na terra do sol (1964). Focados no sertão e na favela, os
cinemanovistas praticavam uma categoria de filmes que explicam o

50
povo à burguesia, em vez de explicar o povo a si mesmo. O aspecto
didático era levado em conta, como se o cinema fosse capaz de
ensinar (“conscientizar” era o termo usado na época) sobre o
sistema político-social. Entretanto, ao idealizar as classes populares
e projetar nelas seus anseios revolucionários, o cineasta
cinemanovista raramente conseguia penetrar o mecanismo social
global.28
Bernardet considera que o golpe de 1964 acelerou a
evolução do Cinema Novo, levando-o a retratar mais a classe média
urbana – fenômeno do qual faria parte São Paulo Sociedade
Anônima. Segundo ele, Person desloca o foco para a classe média na
metrópole, levando a um questionamento dentro da própria classe
social produtora e consumidora do Cinema Novo. O jovem
espectador de classe média vê espelhado no filme o seu próprio
dilema de aceitar tornar-se um cúmplice preso no mecanismo
socioeconômico.
Inicialmente, a visão do jovem crítico Bernardet era de que
o valor (artístico, estético, cinematográfico) de um filme era
independente de seus significados ideológicos e econômicos. O
importante não era realizar uma obra-prima, mas sim trazer novos
aspectos que fizessem evoluir a cinematografia nacional, para que o
país fosse representado por inteiro (classe baixa, classe média e
classe alta), considerando porém que, para além do contexto
econômico, político e social, o mais importante era se interrogar

28 BERNARDET. 'Étude: politique, or, jacarandá, guérilla, paroles, suicide' In:


Cinéma, Paris, n 150, novembro de 1970, p. 78.

51
sobre a relação que o filme estabelece com o espectador e com o
mundo.
No segundo semestre de 1965, Person vai à Universidade de
Brasília procurar Bernardet, trazendo no bolso um recorte
amarelado de uma notícia de 1956 sobre um erro judiciário ocorrido
em Araguari, Goiás. Inicia-se aí uma profícua colaboração que
deixou três roteiros, dos quais apenas o primeiro foi filmado: trata-
se de O Caso dos Irmãos Naves, de 1967.
O caso dos irmãos Naves narra a história de dois irmãos que
são presos por um crime que não cometeram e, sob tortura e
ameaças, acabam por confessar um crime que nunca existiu.
Usando elenco não-profissional e filmando in locu (coerente com
sua filiação ao Neorrealismo italiano), Person constrói um filme
político que denuncia o poder violento e arbitrário. Apesar de
situado cronologicamente na Era Vargas, a relação com o presente
era evidente para a maioria do público.
Centrado no debate moral e político, O Caso dos Irmãos
Naves é uma mistura de gêneros cinematográficos, oscilando entre
o Neorrealismo, o gênero policial e o drama judiciário (os
chamados “courtroom dramas”, que a essa época começavam a se
popularizar no cinema americano).
Recolhe algumas críticas favoráveis, outras nem tanto. Sem
ser censurado, o filme é entendido nos meios intelectuais como
película política, sendo levado pelo produtor Glauko Mirko
Laurelli ao Festival de Moscou em 1967. Segundo Bernardet: “ O

52
Caso dos irmãos Naves passou sem problema pela censura (o que
não teria provavelmente ocorrido se tivesse sido produzido depois
do AI-5), mas não foi muito bem recebido quando de seu
lançamento em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em compensação, as
reações do público foram excelentes em várias cidades dos estados
de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso. Mario Civelli, o
produtor, recebeu telegramas entusiastas de exibidores, que diziam
que o filme refletia a vida do interior e que precisavam de mais
filmes desse tipo”.
Aqui começa a nascer uma nova ideia. Empolgado com este
resultado que o produtor Mario Civelli resolve apostar numa ideia
parecida, e faz a encomenda à dupla de colaboradores Person e
Bernardet. Desta encomenda nascerá o nosso objeto de estudo: o
roteiro de “A hora dos ruminantes”.
Bernardet defende que motivação para a escolha da obra
literária teria sido a pressa, pois não havia tempo para a criação de
um argumento original. De qualquer maneira, naquela época, as
adaptações literárias se tornam cada vez mais frequentes: em parte
pelo surgimento de leis de incentivo econômico a produções
inspiradas em escritores brasileiros; e por outro lado, porque a
censura tornava mais difícil a criação de roteiros originais.
Sobretudo neste período das décadas de 1960 e 1970, as
adaptações literárias proliferam, especialmente as de autores
nacionais já consagrados. Embora recorrentes, estas adaptações
cinematográficas de obras literárias raramente são fiéis. Pode-se

53
argumentar que, em dado momento, a literatura passou a servir
como “escudo” contra a censura, já que esta via nos roteiros
originais alvos mais fáceis. Só que em alguns casos a narrativa
original era usada apenas como leitmotiv inicial, pouco tendo a ver
com a obra cinematográfica final. É o caso de Vidas Secas (1963) O
padre e a moça (1963), Menino de engenho (1965) A hora e a vez de
Augusto Matraga (1965) e Macunaíma (1969) - a maioria pouco fiel
à respectiva matriz literária.
Como vimos, havia preferência por autores já consagrados.
Era rara a escolha de autores vivos, e ainda por cima estreantes.
Hoje reconhecido como grande escritor, naquela época
Veiga era quase um iniciante, apesar de já não ser mais moço. A
expectativa deixada por seu elogiado livro de estreia, Os cavalinhos
do Platiplanto (1959) não foi quebrada pelo livro seguinte, sua
primeira narrativa longa (geralmente classificada como uma
novela): A hora dos ruminantes.
Tendo-se dedicado inicialmente ao Regionalismo, a
literatura de Veiga vai pouco a pouco ganhando seus contornos
fantásticos característicos. É conhecido o fato de que, com o tempo,
o escritor passou a ser associado ao realismo mágico latino-
americano – embora ele próprio negasse a influência. Sem rejeitar a
qualidade desses escritores, Veiga dizia simplesmente não tê-los
conhecido a tempo. O texto da contracapa da primeira edição:

A hora dos ruminantes é a estória de uma cidade pequena,


de gente simples e desprevenida, que, certo dia, amanhece

54
sob a ameaça da opressão e da violência. Poderão os
homens estranhos, sistemáticos, de poucas palavras,
exigentes e inflexíveis, dominar pelo terror o pequeno
lugarejo? Ou os habitantes da cidadezinha – uns
acomodados, outros altivos, êstes rebeldes, aquêles
indiferentes – levarão os usurpadores à desagregação e à
derrota?”

A presença dos homens estranhos na pequena cidade


(fictícia) de Manarairema instaura o suspense e o clima insólito,
confirmado pelas duas invasões: primeiro os cães, e depois os bois.
Nos dois casos, grupos extremamente numerosos dos animais
invadem cada centímetro da cidade, convivendo de forma opressora
com os habitantes permanecendo por meses e partindo
repentinamente em ambos casos. Por fim, os homens estranhos
acabam se retirando e a vida da cidade retoma seu ritmo comum.
Em momento algum (nem no final) o narrador explica quem são
exatamente os homens misteriosos e qual o seu objetivo – nem no
final da narrativa – aspecto que lhe confere um forte elemento
insólito (ou absurdo).
Sem ter propriamente um protagonista, a narrativa está
centrada na reação dos habitantes de Manarairema, especialmente:
o vendeiro Amâncio, o primeiro a se sujeitar ao poder dos homens;
o carroceiro Geminiano, cuja humildade o impede de reagir à
dominação dos homens estranhos; o carpinteiro Florêncio, cujo
ponto fraco é a fidelidade à amizade do vendeiro; o ferreiro
Apolinário, desde o começo receoso e preocupado com os homens,
até que seu filho Mandovi se envolve numa confusão que custa

55
caro; e por fim o jovem Pedrinho que sofre torturas dos homens,
auxiliados por sua própria namorada, Nazaré.
A leitura da alegoria política, certamente a mais frequente,
tende a associar a obra ao momento histórico em que é publicada: o
ano de 1966, entre o golpe e os anos de chumbo – o que Élio
Gaspari chamou de Ditadura Envergonhada. Entretanto, o próprio
autor é o primeiro a questionar uma leitura demasiado datada.
Embora admita a influência do ambiente político nas outras obras
de seu chamado “Ciclo Sombrio”, Veiga nega a influência do
momento histórico brasileiro sobre A hora dos ruminantes ao
omiti-lo da lista.
Se a influência do momento histórico é ambígua no
exemplo de A hora dos ruminantes, o fato é que para o nosso
objeto de estudo – o roteiro cinematográfico de Person e Bernardet
inspirado na obra de Veiga – a influência da realidade histórica e
política é inegável. Bernardet cita o projeto de “A hora dos
ruminantes” ao falar de O caso dos Irmãos Naves:

“O filme seria absolutamente fiel aos fatos dos anos 30,


mas se tornava uma metáfora política de nosso presente.
Denunciaríamos a tortura e a arbitrariedade. Durante
toda a elaboração do filme, nunca se perdeu de vista essa
perspectiva, a tal ponto que passamos a qualificar os Naves
de 'filme Castelo Branco', em oposição ao roteiro que
escreveríamos em seguida, 'A Hora dos Ruminantes', que
chamávamos de 'filme Costa e Silva'.”

56
Terminado em julho de 1967, o roteiro de “A hora dos
ruminantes” teria sido o projeto mais importante da filmografia de
Luís Sérgio Person. Impossibilitado de realizá-lo, na tentativa
obsessiva de concretizar seu projeto, viaja aos Estados Unidos em
1973 no intuito (vão) de conseguir financiamento para o projeto.
Portanto três anos antes de sua morte – já durante o regime Médici
e logo antes do regime Geisel – Person ainda considerava este
projeto de suma importância para sua carreira e para o Brasil.

APRESENTAÇÃO DO TEXTO ESTUDADO: O


ROTEIRO DE “A HORA DOS RUMINANTES”

Passamos agora a descrever o nosso objeto de estudo. Trata-


se da pasta doada à Cinemateca Brasileira (São Paulo) por Jean-
Claude Bernardet,29 contendo o roteiro cinematográfico de “A hora
dos ruminantes” e seus anexos. Podemos dividir o material da pasta
em três partes: 1) o texto datiloscrito do roteiro propriamente dito;
2) os anexos datiloscritos e manuscritos relativos ao projeto
(tratamento do roteiro, filmagem); e 3) os anexos datiloscritos
relativos à intertextualidade da obra.
Reproduzimos a seguir um texto presente nos anexos que
explica de forma resumida o projeto cinematográfico de “A hora
dos ruminantes”. Embora não faça parte do roteiro em si (e

29 A doação foi feita em abril de 1983 pelo próprio Jean-Claude Bernardet.

57
portanto não integre nosso corpus primário), este trecho é
representativo da importância também dos anexos (que compõem
nosso corpus secundário) para o entendimento dos já citados
“movimentos de linguagem” do texto estudado.

A HORA DOS RUMINANTES : IDEIA E REALIZAÇÃO30


Como se pode verificar pelo resumo, a idéia é fazer um
FILME-FÁBULA sobre a resistência e a entrega das pessoas aos
agentes indeterminados de uma opressão. A moral que se extrai é
de que não se deve transigir um mínimo sequer diante da opressão
sob pena de se acabar inteiramente dominado por ela. Ao se dar
um dedo, perde-se a mão, o braço e assim por diante...
Pelo tratamento dado ao roteiro cinematográfico,
superamos totalmente o principal obstáculo que poderia existir
com respeito à aceitação do público de um filme em que um
grupo de personagens (no caso, os HOMENS ESTRANHOS)
não se define logicamente com uma explicação. A não-
identificação dos tais homens, além de se constituir inicialmente
numa espécie de suspense, cairá a seguir no plano do
esquecimento e estimulará a imaginação dos espectadores de
melhor nível que encontrarão nisso um motivo a mais para se
interessar pelo participar do filme.
A partir de um certo momento, o que interessará de modo
absoluto ao espectador, não será mais saber quem são e porque
30 A reprodução aqui do trecho do roteiro é feita com autorização de Jean-Claude
Bernardet concedida por e-mail em 25 de fevereiro de 2014.

58
motivo os homens oprimem, mas sim verificar como e até que
ponto as pessoas vão resistir ou ceder à opressão em si mesma.
O tom do filme oscila constantemente entre a comédia
mais pura e o drama que frequentemente se insere de modo
patético no amolecimento e na resignação de certos personagens.
Além da COR, que terá substancial aproveitamento na
realização, pode-se dizer que se trata de um filme espetáculo, onde
não faltará música, danças, desfiles, deslumbramento e também
uma grande dose de emoção com as vigorosas cenas da invasão dos
cachorros e a tomada de Manarairema pelas manadas de bois.
O nível de produção, a clareza e a linearidade da estória,
fazem com que o filme atinja o público de todas as categorias,
abrindo também uma possibilidade de mercado exterior.

A leitura do fragmento acima sugere que o caráter


espetacular no filme “A hora dos ruminantes” teria por objetivo
compensar a falta de um sentido unívoco da história, criando um
espetáculo que compensasse a estranheza da história e atraísse o
público, viabilizando o filme comercialmente. Porém os autores
não pretendem de forma alguma criar um espetáculo passivo; o
sentido do termo está bastante distante, por exemplo, da alienação
descrita por Guy Débord em A sociedade do espetáculo. Ao
contrário – em meio a um contexto político tenso (com muitos
reflexos no panorama cultural brasileiro), Person e Bernardet
procuravam reforçar este aspecto espetacular para solucionar, na

59
prática, os problemas do público, do financiamento e da
distribuição inerentes ao cinema brasileiro da época e, ao mesmo
tempo, levar a mensagem ideológica do filme (sua “moral”) ao
maior número de “espectadores de melhor nível”, motivando-os a
“participar do filme”.
Em vários aspectos, “A hora dos ruminantes” seria um filme
profundamente popular. Por passar-se no interior do Brasil, o filme
exploraria o nicho aberto por O caso dos irmãos Naves e apostaria
na distribuição no interior mais do que nas capitais. A própria
produção seria realizada no interior, retomando o modelo de
produção econômica usado em O caso dos irmãos Naves.
Como vimos na descrição da “Idéia e realização”, os autores
pretendiam que os aspectos visual e sonoro fossem bastante
desenvolvidos em “A hora dos ruminantes” – aquele que teria sido
o primeiro filme colorido de Person. No que se refere à música,
havia a intenção de usá-la para sublinhar alguns contornos
simbólicos do filme. Instrumentais de viola aparecem ao longo de
todo o roteiro. Um dos elementos espetaculares de “A hora dos
ruminantes” seria o uso do narrador-cantador, que ajudaria a
contar a história e comentaria determinados episódios.
O texto do roteiro de “A hora dos ruminantes” se define
como iniciativa inédita no horizonte cinematográfico, brasileiro ou
internacional, daquela época ou de agora. A originalidade de “A
hora dos ruminantes” foi pensar um modelo de cinema equilibrado
no tripé: arte, política e espetáculo.

60
Trata-se portanto de um texto de profunda importância
tanto para a história do cinema mundial quanto dentro do
panorama cultural brasileiro daquela época. É lamentável que,
quase cinquenta anos depois de escrito, este texto continue inédito,
não tendo nunca sido estudado ou publicado. Nosso estudo será o
primeiro sobre “A hora dos ruminantes” de Person e Bernardet.
No que diz respeito à problemática da adaptação, a base
teórica para esta parte do nosso trabalho será a obra já citada A
Theory of Adaptation de Linda Hutcheon. Partindo do conceito
bakhtiniano de intertextualidade e dialogando com o Formalismo
russo, com a semiótica barthesiana e com diversas outras correntes
teóricas, Hutcheon procura pensar uma teoria de adaptação
inteiramente nova, que segue a trilha do pensamento formalista,
mas que inova ao romper com a ideia de uma adaptação
“vampírica” e ao subverter a hierarquia entre original e imitação.
Chama a atenção também a atualidade do corpus de análise de
Hutcheon: são exemplos inteiramente novos, que vão da literatura
e do cinema chegando até a música e o video game. Encontramos
na revisão e reelaboração teórica feita por Hutcheon um novo
fôlego nos estudos de intermidialidade e adaptação interartística.
Sempre que for necessário, recorreremos aos pensadores com os
quais Hutcheon dialoga: além dos já citados, também há os teóricos
do cinema, como Eisenstein, Metz ou os (já citados) formalistas
russos. Procuraremos utilizar o prisma de Hutcheon para re-

61
significar estas abordagens – que podem parecer datadas mas cuja
importância é fundamental.
Orientando toda esta reflexão a respeito da reescritura em
diferentes planos, estará o conceito proposta por Hutcheon de
“intertextualidade palimpsestuosa”, que parece ser bastante
apropriado para descrever a multiplicidade de recursos reescriturais
em “A hora dos ruminantes”. Hutcheon chama atenção para o fato
de que este tipo de adaptação possui “lâminas” de sentido, e que a
conexão em diferentes planos é o que define a sua identidade
formal, ou o que chamaríamos de identidade hermenêutica
(HUTCHEON, p. 21).
A nosso ver, a maior originalidade do roteiro de “A hora
dos ruminantes” foi o fato de constituir um equilíbrio inédito entre
estética, ideologia e espetáculo. Um tipo de cinema que, partindo
de anseios político-ideológicos, representasse o povo, falando na
linguagem do povo (aproximando-se do Cinema Novo) porém
subvertendo o modelo cinemanovista ao utilizar elementos do
cinema comercial americano (cor, música, dança, montagem ágil).
Porém, ao invés de produzir um espetáculo alienante, Person e
Bernardet pretendiam justamente utilizar estes elementos
espetaculares para viabilizar um filme político.
Nosso trabalho de pesquisa de Doutorado iniciado em 2015
no Departamento de Estudos Literários da UFMG procura se
concentrar sobre três aspectos: primeiro, o estabelecimento do
texto; em segundo lugar, o processo adaptação (como o livro de

62
Veiga dá origem ao texto do roteiro de Person e Bernardet); e em
terceiro lugar, procuraremos entender como o projeto fílmico do
roteiro equilibra três aspectos da arte cinematográfica: estética,
ideologia e espetáculo.

Novembro de 2015
Marcelo Cordeiro de Mello
marcelocmello@gmail.com

REFERÊNCIAS:

1 – Corpus:
BERNARDET, Jean-Claude; PERSON, Luís Sérgio. A hora dos
ruminantes. Roteiro cinematográfico e anexos. Baseado na obra
homônima de José J. Veiga. Concluído em julho de 1967 em São
Paulo. Texto inédito pertencente ao acervo da Cinema Brasileira de
São Paulo. Doado por Jean-Claude Bernardet em abril de 1983.

2 – Obra adaptada:
VEIGA, José J. A hora dos ruminantes. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966.

3 – Obras sobre José J. Veiga e o chamado “realismo mágico”:


BESSIÈRE, Irène. “O relato fantástico: forma mista do caso e da
adivinha” In: Fronteiraz, v. 3, n. 3, seção de Tradução, setembro de
2009, p. 1-18.

63
CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. Forma e ideologia no
romance hispano-americano. São Paulo: Perspectiva, 1980.
PRADO, Antonio Arnoni (org.). Atrás do mágico relance: Uma
conversa com J. J. Veiga. Campinas: Editora Unicamp, 1989.
PRADO, A. A. 'Prefácio' In: VEIGA, José J. A hora dos
ruminantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
RAMA, Angel (org.). Más allá del boom: Literatura y mercado .
Cidade do México: Marcha Editores, 1981.

SOUZA, Agostinho Potenciano de. Um olhar crítico sobre o nosso


tempo (Uma leitura da obra de José J. Veiga) . Campinas: Editora
Unicamp, 1990.

4 – Obras sobre Jean-Claude Bernardet e Sérgio Person:


BERNARDET, J. C. Trajetória Crítica, São Paulo: Martins Fontes,
2011.

BERNARDET, J. C. 'Análise sintagmática de São Paulo Sociedade


Anônima elaborada por Jean-Claude Bernardet'. In METZ, 1977.
BERNARDET, J. C. São Paulo S/A. O filme de Person descrito por
Jean-Claude Bernardet. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme,
1987.

COSTA, Candida Maria Monteiro Rodrigues. Em busca de Luiz


Sérgio Person, Um cineasta na contramão . Dissertação de
mestrado. PUC, Rio de Janeiro, 2006.

LABAKI, Amir. Person por Person. São Paulo: Editora CCBB,


2002.

5 – Bibliografia sobre Cinema, adaptação e a questão do espetáculo:


DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992.

64
FERRO, Marc. Cinéma et histoire. Paris: Gallimard, 1993.

HUTCHEON, Linda. A Theory of Adaptation. New York:


Routledge, 2006.

METZ, Christian. A Significação no Cinema. Tradução de Jean-


Claude Bernardet. São Paulo: Perspectiva, 1977.

RANCIÈRE, Jacques, Le spectateur émancipé. Fabrique, 2008.

STAM, Robert Literature through film: Realism, magic and the


art of adaptation. Blackwell, 2004.
6 – Bibliografia sobre o Brasil e o Cinema brasileiro e latino-
americano:
BERNARDET, J. C. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1967.

FICAMOS, Bertrand. Cinema Novo: Avant-garde et révolution.


Paris: Nouveau Monde, 2013.

GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo:


Companhia das Letras, 2002.

GETINO, Octavio & SOLANAS, Fernando, Cine, cultura y


descolonización, artigo “Hacia un tercer cine”, Buenos Aires, Siglo
XXI, 1973.

ROCHA, G. Cartas ao Mundo. Glauber Rocha. Organização e


apresentação: Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.

STAM, R. O Espetáculo Interrompido: Literatura e Cinema de


desmistificação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema
Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal. São Paulo: Cosac Naify,
2012.

65
Estética e política: uma leitura da fórmula, em
Bartleby, o escriturário, de Herman Melville

Edinília Nascimento Cruz31

RESUMO: Este trabalho propõe uma leitura do conto Bartleby, o


escriturário, de Herman Melville, em consonância com a análise
deleuziana acerca do texto, e tendo como foco a fórmula I would
prefer not to proferida por Bartleby, que nos conduzirá a um
debate sobre a aproximação entre literatura, estética e política. Com
efeito, as reflexões serão desenvolvidas de modo a pensar as
questões relacionadas à estética e política tomando como
parâmetro o lugar do discurso europeu na América, a condição do
colonizador e do colonizado. Com Bartleby, evidencia-se a
resistência pelo domínio da língua e têm-se a psicose americana que
extrapola e desterritorializa os limites da neurose europeia que, por
sua vez, territorializa a língua. Deleuze investiga a fórmula utilizada
por Bartleby em diversos ângulos, mas sempre recaindo sobre a
força da linguagem, atuando como o sopro psicótico proveniente
da incansável repetição da fórmula que transborda sentido, mas
que ao mesmo tempo resiste ao próprio sentido. Nessa concepção,
destacaremos mais precisamente a singularidade e a intensidade
com que o texto é capaz de provocar um sentido de subversão, que
perpassa o uso convencional da língua, desestabilizando a
materialização da experiência do real, ressaltando assim a sua
densidade estética.

PALAVRAS-CHAVE: Estética; política; Bartleby.

31 Doutoranda em Literatura Brasileira pelo programa de pós-graduação em estudos


literários da UFMG.

66
Gilles Deleuze, de modo particular e transgressor, propôs
uma análise para o texto de Melville tendo como foco a fórmula I
would prefer not to proferida por Bartleby. Ao utilizar uma
abordagem analítica centrada em um horizonte teórico, que se põe
a ler o texto na contramão da tradição hermenêutica, apresenta-nos
a originalidade de seu método, que tem como gênese a força de
elevar o ato de pensar a uma “máquina de guerra” 32 em potencial. O
pensamento maquínico reverbera na imanência do texto literário e
faz com que o ato interpretativo nos leve a “sentir o efeito violento
de um signo, e que o pensamento seja como que forçado a procurar
o sentido do signo” (DELEUZE, 2003, p. 22). A sistematização do
método interpretativo defendido por Deleuze ao analisar Bartleby
opera por meio de um deslocamento que recusa uma leitura
metafísica, e vai em defesa de sentido do próprio texto em sua
materialidade. De acordo com Deleuze:

Bartleby não é uma metáfora do escritor, nem o símbolo


de coisa alguma. É um texto violentamente cômico, e o
cômico sempre é literal. É como uma novela de Kleist, de
Dostoiévski, de Kafka ou Beckett, com os quais forma
uma linhagem subterrânea e prestigiosa. Só quer dizer
aquilo que diz, literalmente. E o que ele diz e repete é
PREFERIRIA NÃO, I would prefer not to. É a fórmula
de sua glória, e cada leitor apaixonado a repete por seu
turno. Um homem magro e lívido pronunciou a fórmula
que enlouquece todo o mundo. Mas em que consiste a
literalidade da fórmula? (DELEUZE, 2011, p. 91).

32 Nas palavras de Deleuze e Guattari: “Definimos a ‘máquina de guerra’ como um


agenciamento linear construído sobre linhas de fuga. Nesse sentido, a máquina de
guerra não tem, de forma alguma, a guerra como objeto; tem como objeto um espaço
muito especial, um espaço liso, que ela compõe, ocupa e propaga” (DELEUZE,
GUATTARI, 1995, p. 50).

67
Deleuze destaca em sua interpretação a fórmula usada por
Bartleby, que operando pelo estranhamento gera um efeito cômico
e insere intensidade no texto. O cômico tem sua origem na
fórmula, que se manifesta como um procedimento, que tem por
força o imprevisto, o inesperado, o absurdo e torna-se a mola
propulsora para a tensão e o conflito. A fórmula regula todo o
mecanismo do texto e corrói a esfera de organização hierárquica e
social que incide sobre o universo racional do advogado e,
consequentemente, causa um desequilíbrio em toda a
macroestrutura textual.
A fórmula é capaz de condensar todos os sentidos para si.
Como efeito, a atuação da fórmula leva a língua a um desequilíbrio
crescente, faz dela um “rizoma”, 33 uma disjunção, provocando o
bloqueio de sentido, que se alterna entre fluxos e cortes.
“Murmurada numa voz suave, paciente, átona, ela atinge o
irremissível, formando um bloco inarticulado, um sopro único. A
esse respeito tem a mesma força, o mesmo papel que uma fórmula
agramatical” (DELEUZE, 2011, p. 91). A fórmula leva a língua ao
limite, desarticula a arbitrariedade da língua, obscurece e
enlouquece a linguagem nova que vai “minar pressupostos da

33 "Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer


com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços não remete necessariamente a
traços de mesma natureza, ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes,
inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reduzir nem ao Uno nem ao
múltiplo... Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções
movediças. Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele cresce e
transborda. Ele constitui multiplicidades" DELEUZE, GUATARRI, 1995, p. 15).

68
linguagem” (DELEUZE, 2011, p. 97), exercendo a função da
agramaticalidade. “Apesar de sua construção normal, ela soa como
uma anomalia” (DELEUZE, 2011, p. 92). Essa explosão da fórmula
desorganiza a matéria informe, esvazia o discurso, desestrutura a
lógica do mundo. A agramaticalidade, segundo o plano conceitual
de Deleuze acerca da linguagem, é um ato transgressor que
radicaliza pela potencialidade:

“[...] a extravagância da fórmula extrapola a palavra em si:


sem dúvida, ela é gramaticalmente correta, sintaticamente
correta, mas seu término abrupto, NOT TO, que deixa
indeterminado o que ela rechaça, lhe confere um caráter
radical, uma espécie de função-limite” (DELEUZE, 2011,
p. 91).

Deleuze, ao ler o texto de Melville, concentra-se no modo


como a linguagem opera na fórmula, que inevitavelmente perpassa
a forma de lidar com a estética e a literalidade. O filósofo defende o
“falar literalmente”, que implicaria uma lógica contrária à da
metáfora. Deleuze, ao falar do “sentido literal”, não se refere
necessariamente ao sentido próprio. É na formulação dessa lógica
que se coloca na zona entre o “literal” e o “figurado”, que consiste o
modo interpretativo que rompe com a ordem da representação
para instaurar a da produção, em que o código da linguagem dá
lugar a um fluxo imanente. A literalidade está, conforme Deleuze,
relacionada à potência do real, do literal do texto. Estaria aí
colocada a provocação que Deleuze lança no início de sua análise:
“Mas em que consiste a literalidade da fórmula?” O texto de

69
Melville provoca com a repetição da fórmula uma explosão de
intensidade e abre profícua via de criação estética capaz de atingir o
esplendor da linguagem e consequentemente fazer ouvir o sublime.
Embutida nessa pergunta está o fulcro da afirmação que assinala a
principal veia da interpretação deleuziana, o liame entre literatura e
vida.
A literatura, segundo Deleuze, é uma potência, uma força
que violenta o pensamento, é um “devir”34. Em Crítica e Clínica
(2011), no texto “A literatura e a vida”, Deleuze [o filósofo] destaca
que “Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via
de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria visível ou vivida”
(DELEUZE, 2011, p. 11). No processo de criação, o devir do escritor
arrasta a língua para um estado de “gagueira”, 35 em que os códigos
se reconectam em uma nova engrenagem, num intenso movimento
maquínico da palavra.
É notável verificar que a argumentação de Deleuze atinge
seu ponto nodal ao enfatizar ao extremo a potencialidade da
linguagem e comparar a fórmula de Bartleby a essa capacidade de
operar e fazer emergir um mundo possível dentro da própria
linguagem. “[...] com efeito, quando se cria uma outra língua no

34 "Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de
justiça ou de verdade” (apud ZOURABICHVILI: 2004, p. 24).
35 Segundo Deleuze, somente os grandes escritores conseguem introduzir estágio de
gagueira em uma língua: “[...] um grande escritor sempre se encontra como um
estrangeiro na língua em que se exprime, mesmo quando é a sua língua natal. No
limite, ele toma forças numa minoria muda desconhecida, que só a ele pertence. É
um estrangeiro em sua própria língua: não mistura outra língua à sua, e sim talha na
sua língua uma língua estrangeira que não preexiste. Fazer a língua gritar, gaguejar,
balbuciar, murmurar em si mesma” (DELEUZE, 2011, p. 141).

70
interior da língua, a linguagem inteira tende para um limite
‘assintático’, ‘agramatical’, ou que se comunica com seu próprio
fora” (DELEUZE, 2011, p. 9). A linguagem que desarticular a
ordem gramatical é capaz de dizer o indizível através de sua
potência de significados. Como afirma Deleuze:

Dir-se-ia inicialmente que a fórmula é como a má


tradução de uma língua estrangeira. Mas ouvindo-a
melhor, seu esplendor desmente essa hipótese. Talvez seja
ela que cava na língua uma espécie de língua estrangeira. A
propósito das agramaticalidades de Cummings, propôs-se
considerá-las como provenientes de um dialeto diferente
do inglês standard e cujas regras criadoras seria possível
extrair. O mesmo ocorre no caso de Bartleby; a regra
estaria nessa lógica da preferência negativa: negativismo
para além de toda negação. Mas, se é verdade que as obras-
primas da literatura formam sempre uma espécie de língua
estrangeira no interior da língua em que estão escritas,
qual vento de loucura, qual sopro psicótico se introduz
assim na linguagem? (DELEUZE, 2011, p. 95).

Deleuze investiga a fórmula utilizada por Bartleby em


diversos ângulos, mas sempre recaindo sobre a força da linguagem,
atuando como o sopro psicótico proveniente da incansável
repetição da fórmula que transborda sentido, mas que, ao mesmo
tempo resiste ao próprio sentido. O verbo “preferiria” que se repete
na fórmula, no futuro do pretérito, não constitui necessariamente
uma afirmação, nem uma negação, mas cria uma “zona de
indiscernibilidade, de indeterminação” (DELEUZE, 2011, p. 94).
Bartleby, com a fórmula, reverbera uma profusão de sentido que
desliza infinitamente, suspendendo a linearidade e gerando um
efeito estético que ilumina o texto.

71
Com efeito, as reflexões realizadas até aqui, e em
consonância com a análise deleuziana do texto de Melville, nos
conduzem a um debate sobre a aproximação entre literatura e
estética. A concepção de estética na leitura de Deleuze é bastante
sugestiva. Mais precisamente destaca a singularidade e a intensidade
com que o texto é capaz de desestabilizar o leitor. O filósofo realiza
a leitura do texto de Melville destacando que é tomando como foco
a materialização da experiência do real na obra que se mostra o seu
brilho absoluto, sua densidade estética.
Por trás de uma “resistência passiva” (MELVILLE, 2012, p.
37) dessa aparente visão tranquilizadora, há em Bartleby um gesto
de imprecisão que se contrapõe, levando o narrador a uma
impotência. Há dois movimentos, a manutenção e a subversão da
ordem, um paradoxo. De acordo com Deleuze, o paradoxo “é a
subversão simultânea do bom senso e senso comum” (2009, p. 81).
Como se vê, a fórmula permite a Bartleby impor uma força que
suspende com uma ordem estabelecida. “O ponto principal não era
que eu tinha de concluir que ele devia deixar-me, mas se ele
preferiria fazê-lo. Ele era mais um homem de preferências do que de
conclusões” (MELVILLE, 2012, p. 62). A fórmula de Bartleby
funciona como resistência que entra em ação por meio da quebra
da lógica da língua, sempre operando pelo vazio do desejo e pela
política da negatividade, de modo que a fórmula torna-se causa
determinadora de Bartleby. A fórmula desarticula os atos da fala
segundo os pressupostos sobre os quais o sujeito comanda o

72
mundo. O fato de o patrão não poder mais controlar, impor seu
discurso, em função da política de resistência do empregado, faz
com que a língua deixe de ser o domínio social do poder
centralizador. Com a fórmula, Bartleby desarticula o domínio do
outro sobre si.
Os fundamentos críticos das grandes desilusões do sujeito
moderno estão presentes no texto de Melville. A personagem
aporta no contexto do homem moderno vivendo numa unidade
paradoxal. Bartleby surge na lógica da estabilidade das organizações
burocráticas, mas rompe com o discurso da razão desvencilhando-
se do mundo e fechando-se em si mesmo. Imerso em sua solidão,
no vazio aberto pelo seu engodo, chega a uma incontornável
situação-limite. Dessa forma, o pensamento de Marshall Berman
nos parece apropriado para compreendermos a lógica do mundo
moderno e a experiência da modernidade. Bartleby se enquadra no
exemplar homem moderno em meio a “uma vida de paradoxo e
contradição“ (BERMAN, 2014, p. 21). O texto de Melville traz à
tona o sintoma da experiência social do sujeito moderno vivendo
em uma sociedade que perdeu o sentido de sujeito. A síndrome de
Bartleby põe à tona a problematização dessa visão paradoxal em
que não é mais possível discernir o sim do não, a razão da loucura,
pois se contaminam mutuamente.
Bartleby se insere numa lógica que coloca em cheque sua
complexa condição na relação do sujeito moderno no mundo
movido pelo capital. Vivendo em Wall Street, símbolo do

73
capitalismo, estando no limite da lógica instrumental, radicaliza os
parâmetros da ordem instituída, desestabiliza o sistema em questão.
“Bartleby invisível faz um trabalho ‘mecânico’ considerável”
(DELEUZE, 2011, p. 99). Bartleby se sustenta em própria fórmula e
por meio dela vai de um extremo a outro, e sua visibilidade ganha
relevância funcional na narrativa. Nessa lógica interpretativa, a
fórmula domina o texto e é motor da linguagem intransitiva em
permanente latência. A fórmula em si já é suficiente para desnudar
a falibilidade das estruturas que sustentam o discurso do advogado.
A literatura abastece o impulso narrativo e, conforme propõe
Deleuze, produz uma nova linguagem, um discurso da alteridade,
capaz de confrontar o dominante e o poder. Talvez estivesse aí a
questão limite que o texto de Melville propõe refletir.
Em Kafka, por uma literatura menor, Deleuze e Guattari
desenvolvem um trabalho com a linguagem. Ao analisarem a obra
de Kafka trazem à tona o conceito de “literatura menor”. A
literatura menor postulada pelos críticos é aquela capaz de produzir
ruídos em sua conjuntura social-linguística. “Uma literatura menor
não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em
uma língua maior. No entanto, a primeira característica é, de
qualquer modo, que a língua aí é modificada por um forte
coeficiente de desterritorialização” (DELEUZE, GUATTARI,
2002, p. 25). Dessa forma, a literatura menor se destaca dentre suas
características, “a desterritorialização da língua, a ligação do
individual no imediato-político, o agenciamento coletivo da

74
enunciação” (DELEUZE, GUATTARI, 2002, p. 28). Deleuze
propõe pensar a literatura como um agenciamento político a partir
da relação possível entre linguagem e política.
Com base na análise que Deleuze faz sobre a fórmula de
Bartebly, é possível pensar as relações entre estética e política de
resistência, notadamente presentes no horizonte teórico
deleuziano. O texto de Melville, conforme direciona a interpretação
de Deleuze, permite pensar o binômio estética/política tomando
como parâmetro o lugar do discurso europeu na América, a
condição do colonizador e colonizado. Com Bartleby, evidencia-se a
resistência pelo domínio da língua e têm-se a psicose americana,
que extrapola e desterritorializa os limites da neurose europeia que,
por sua vez, territorializa a língua.
Bartleby, segundo Deleuze, problematiza a função pai e
filho. Ao morrer na prisão recusa “a caridade paterna e a imunda
caridade.” (DELEUZE, 2011, p. 116). No texto, o advogado [o pai],
exerce a função paterna da língua, de imagem, de modelo e o
escrivão [o filho] o de sujeito que opera por meio de uma lógica
contrária. Ambos desenvolvem relação arbitrária que embaralha a
função paterna e o modelo de representação, fazendo com que se
instaure a ambiguidade.
Deleuze questiona o modelo de produção e interpretação
da tradição que insiste em racionalizar o comportamento. A
literatura americana trabalha para suspender uma ordem
hierárquica, que é dar razão às personagens, que a tradição literária

75
europeia insistiu em sustentar. Melville, em seu texto, enfatiza o
enigmático, o indeterminado, o insondável e o vazio, que é
estrutural, que é da vida. O texto Bartleby, o escriturário se
individualiza por assinalar um alto grau de tensionamento que
perturba e resiste ao esgotamento de possibilidades interpretativas.
Na análise deleuziana, destaca-se a necessidade de um
deslocamento do conceito tradicional de estética e estilo. A criação
literária deve carregar em si um sentido de subversão que perpassa o
uso convencional das regras gramaticais. O traço singular, que é o
ponto vital do texto literário, centra-se na linguagem enquanto
elemento transgressor de uma ordem estabelecida. A fórmula
Bartleby é a matriz repetida que encena, a partir de sua repetição,
ressonâncias capazes de provocar sensações estéticas no leitor.
Deleuze destaca que o discurso de Bartleby faz ecoar uma voz que
questiona a conjuntura estrutural da realidade vivida.
Sintomaticamente, a interpretação deleuziana sobre a fórmula
Bartleby é marcada por uma constante hesitação que nos remete a
uma série de conceitos que se multiplicam e se conectam. A partir
da metacrítica, desenvolve importante relação de aproximação entre
linguagem e pensamento, colocando-se contra uma visão retórica
da literatura e em favor da prática da “imanência”, de modo que
ressalta o aspecto não representacional do texto de Melville. Diante
dessas observações, pode-se afirmar que a análise deleuziana tem na
fórmula o elemento nuclear para o empreendimento de sua leitura

76
que se destaca pela profundidade e verticalidade com que o texto é
lido.

REFERÊNCIAS:

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar : a


aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana
Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Introdução: Rizoma. In


DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs Capitalismo e
Esquizofrenia. Vol. 1. Trad: Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto
Costa. São Paulo: Editora 34, 1995.

DELEUZE, Gilles. Kafka: por uma literatura menor; Tradução de


Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Editora Imago, 2002.

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Trad. Antonio Piquet e


Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São


Paulo: Editora 34, 2011.

MELVILLE, Herman. Bartleby, o escriturário. Uma história de


Wall Street. Tradução, Cássia Zanon. Porto Alegre: Editora L&PM,
2012.

ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Rio de


Janeiro: Relume-Dumará, 2004.

77
Experiências estéticas em cenas de uso de drogas:
práticas pelo Consultório de Rua Noroeste

Daniela Ramos Garcia36

RESUMO: O Consultório de Rua é um dispositivo da Saúde Mental


da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, que em diálogo
com a reforma psiquiátrica antimanicomial adota a lógica da Redução
de Danos como instrumento de promoção da saúde e tratamento em
liberdade de usuários abusivos de álcool e drogas que estão em
situação de rua.
Como único serviço de saúde que vai às cenas de uso público de
drogas, o Consultório de Rua realiza intervenções com sua presença e
trânsito pelo território. Provocando deslocamentos de percepção e
experiências diferentes que as propostas pelo universo das drogas. São
oportunidades de ressignificação do espaço da rua e do tempo de uso.
Neste contexto, o Consultório de Rua Noroeste, mediante processos
criativos com ênfase em intervenção urbana, se dedica à produção de
instalações audiovisuais em cenas de uso de drogas, as quais
demandam uma pesquisa que vai além dos desafios que o próprio
território proporciona. O desafio de produzir arte que dialogue com as
poéticas do espaço urbano estigmatizado, pode ser atravessado pela
urgente necessidade de provocar reflexões políticas, mas também pode
ser um potencial espaço para descobertas de poéticas resistentes que
sobrevivem à invisibilidade.

PALAVRAS-CHAVE: Políticas da Saúde Mental, Drogas,


Intervenção Urbana.

36 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade do Estado de


Minas Gerais, sob orientação de Pablo Gobira, sendo integrante do grupo de
pesquisa LabFront. Está em conclusão de curso de Licenciatura em Artes Plásticas
pela Universidade do Estado de Minas Gerais; e é graduada em Filosofia pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2008). Desde 2012 trabalha como
Artista educadora pelo Consultório de Rua Noroeste.

78
Em Belo Horizonte, o Consultório de Rua é um dispositivo
da Saúde Mental que atende usuários abusivos de drogas em
situação de rua. Com equipe multiprofissional formada por
Motorista, Psicólogo, Assistente Social, Educador Social, Arte
Educador e Redutor de Danos - técnico com capacitação sobre
território e uso de drogas; os técnicos circulam em cenas de uso
público de drogas com intenção de criar vínculo com os usuários na
perspectiva da garantia de direitos e da ampliação da vida. O
Consultório de Rua atua pela lógica da Redução de Danos em
detrimento da lógica da abstinência. A

estratégia de redução de danos trabalha diretamente com


aquelas pessoas que não querem, não podem ou não
conseguem abandonar as drogas, representando uma
alternativa para a promoção da saúde no sentido mais
amplo e, ao mesmo tempo, próxima à realidade na qual
estão inseridos os usuários de drogas (SILVEIRA;
GERRA, 2001, p. 73-74).

Desse modo, o interesse institucional pela droga, sustentado pela


lógica da abstinência, é deslocado para o interesse pelo sujeito,
pautado na liberdade. Dialogando assim, com a luta
antimanicomial, que defende o tratamento em liberdade com
responsabilidade.
Mediante essas diretrizes, o Consultório de Rua Noroeste,
que circula principalmente nas mediações do Complexo da
Lagoinha, Bonfim, Pedreira Prado Lopes e São Cristóvão, tem se
dedicado às experimentações estéticas nas cenas de uso de drogas. O
termo “cena de uso” compreende espaços públicos onde o

79
consumo de drogas é autorizado pelo comércio ilegal local. Os
usuários permanecem e circulam nestas cenas em função do
consumo de drogas, cujos trânsitos são regulados pelos conflitos de
poderes entre o tráfico e a polícia. No Dicionário Aurélio a palavra
cena tem as seguintes designações:

1. Teat. O palco [...]. 5. Teat. Qualquer marcação ou


diálogo dos atores. 6. Teat. Cada uma das unidades de
ação duma peça, cuja divisão se faz segundo as entradas ou
saídas dos atores [...]. 8. Cin, e Tel. Parte de um filme que
abrange diversos planos [v, plano (15)], focalizando uma
certa situação em que aparecem as mesmas personagens,
no mesmo ambiente. [...] 10. Ato mais ou menos
censurável ou escandaloso. 11. Espetáculo perspectiva,
vista. 12. Panorama, paisagem (FERREIRA, 1988, p. 140).

Ao atentarmos para as contribuições de Aurélio para o termo


cena, podemos compreender as cenas públicas de uso de drogas
como espaços, ou palcos, marginais à realidade social regida pelas
políticas públicas. Locais que suportam atribuir visibilidade à
existência daqueles socialmente invisíveis. Nesse contexto, o
Consultório de Rua prioriza a invenção de uma escuta e de
diálogos, que qualifiquem os usuários do serviço como atores
sociais que estão inseridos numa paisagem urbana estigmatizada.
As práticas artísticas no Consultório de Rua Noroeste cumprem
então, o objetivo de provocar experiências estéticas, como
intervenções urbanas, nestas cenas tão específicas.
“Compulsão Internatória” se trata de uma intervenção
urbana realizada no dia 08 de dezembro de 2013, no Viaduto

80
República do Congo. Roupas descartadas pelos usuários foram
coletadas nas cenas de uso, sendo posteriormente expostas no
guarda corpo do viaduto. Ao serem encontradas em estado
amórfico, estas roupas sofreram uma reorganização formal quando
foram suspensas em cabides, conferindo lhes novamente uma
estrutura humana.
A fundamentação conceitual da instalação “Internação
Compulsória” se deu no contexto das audiências realizadas em 2013
na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, cujas discussões
abordaram temas como o financiamento público de comunidades
terapêuticas que adotam a lógica manicomial para tratamento de
usuário de drogas: com privação de liberdade, sem
acompanhamento médico e psicológico; e obrigatoriedade de
práticas religiosas. Além disso, as internações compulsórias, são um
dos maiores interesses dessas comunidades terapêuticas. Durante
uma das audiências, o Juiz Valois, ao criticar tais interesses, afirmou
observar a possibilidade da consolidação de uma grande
“compulsão internatória”. A partir desta afirmação, foi construído
o conceito da obra.
A conexão entre as cenas de uso de drogas na Pedreira Prado
Lopes e a Igreja Batista da Lagoinha pelo viaduto República do
Congo, que faz referência ao país com menor IDH do mundo,
confere significantes ao site specific. A intervenção teve impacto
estético na paisagem das mediações da Avenida Antônio Carlos,
envolvendo além dos usuários a comunidade que se aproximou

81
durante a montagem a fim de compreender o processo. As imagens
que seguem a baixo são de autoria e acervo da autora.

Em 2014, houve o desdobramento do trabalho na


Assembleia Legislativa de Minas Gerais que foi palco das discussões
sobre internação compulsória. A Galeria de Arte da ALMG ,
recebeu a XIV Mostra dos Premiados da Escola Guignard, onde
“Compulsão Internatória” se apropriou do espaço embaixo da

82
escadaria espiralada. O diálogo conceitual provocado pelas
audiências teve desdobramento no diálogo formal do trabalho, em
que as peças de roupa inicialmente encontradas debaixo do viaduto
da Lagoinha, agora se encontravam embaixo da escadaria da
assembleia legislativa.

83
A produção de vídeos documentais com os usuários do
serviço do Consultório de Rua Noroeste também têm produzido
deslocamentos significativos em relação à ideia de que usuários de
drogas são zumbis, imagem explorada pela mídia que alimenta o
senso comum. Além da compreensão dos usuários como cidadãos
usuários da rede de saúde e assistência pública, podemos observar
os efeitos semiológicos ao se trabalhar uma narrativa visual como
no vídeo “Usuário não é zumbi”.
Em “Usuário não é zumbi” os usuários protagonizam os
planos se apresentando como sujeitos. Um cantor, uma travesti
performer, uma motoqueira que rodou o Brasil e um poliglota são
exemplos do deslocamento subjetivo promovido pelo vídeo. Pois, o
que interessa é o sujeito na cena do vídeo, mais do que o usuário de
drogas na cena de uso. Então, o vídeo extrapola o sentido
documental de um determinado contexto social, para ser
catalizador de um encontro do usuário com sua narrativa, seja ela
oral mediante o relato da travesti L. que fala de sua experiência com
o Consultório de Rua; da motoqueira que conta suas peripécias
durante a fuga de uma injeção; ou, seja gestual como no caso da
travesti J., que imita uma intérprete de linguagem de sinais
enquanto acompanha os relatos de L.
Por tanto, as experiências estéticas em cenas de uso de
drogas, são práticas em intervenção urbana que exploram diferentes
linguagens como a instalação, performance e vídeo. Observam-se
significantes processos subjetivos em que o sujeito encontra um

84
espaço expressivo para se localizar mesmo em trânsito, dentro e fora
do contexto do consumo de drogas.

REFERÊNCIAS:

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins


Fontes, 2011.

GARCIA, Daniela Ramos. Usuário não é zumbi. Belo Horizonte,


2014. Disponível em: <https://vimeo.com/131345223>. Acesso em
03 de nov. 2015.

FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário Básico


Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

MELLO, Aline; ANDRADE, Tarcísio M. Redução de danos:


princípios e práticas. In: PINHEIRO, Raquel M; SILVEIRA,
Carla; GERRA, Eliane (Orgs.). Drogas e AIDS: prevenção e
tratamento. BH: FHEMIG, 2001. p. 50-59.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Coordenação Nacional de Saúde


Mental.Consultórios de Rua do SUS. Material de trabalho para a II
Oficina Nacional de Consultórios de Rua do SUS. Ministério da
Saúde/ EPJN-FIOCRUZ: Brasília, setembro 2010.

PINHEIRO, Raquel M; SILVEIRA, Carla; GUERRA, Eliane


(Orgs.). Drogas e AIDS: prevenção e tratamento. BH: FHEMIG,
2001.

85
O romance Calunga , de Jorge de Lima, frente ao
contexto de polarização ideológica de sua
publicação

Maria Isabel da Silveira Bordini37

RESUMO: No Brasil, a década de 30, contexto de publicação e


primeira recepção do romance Calunga (1935), de Jorge de Lima, é
marcada por uma polarização ideológica que se configura do
seguinte modo: de um lado, a esquerda, ligada aos ideais do
comunismo e representada por intelectuais como Carlos Lacerda;
de outro, a direita, associada ao catolicismo, este frequentemente
ligado ao integralismo, e representada por intelectuais como Tristão
de Athayde. Nesse quadro, a publicação de Calunga, obra com
características de romance social ou proletário, mas escrita por um
autor que publicamente se declarava católico, dividiu opiniões e
suscitou debate acerca de seu lugar ideológico, bem como do de seu
autor. Este trabalho pretende apresentar algumas manifestações da
crítica de primeira hora e mapear as visões ético-políticas que
acredito terem sido postas em embate, pelo autor, na própria
constituição do romance. Por fim, também se pretende contribuir
para problematizar a divisão um tanto estanque que por vezes se
aponta na literatura brasileira do período, qual seja: entre uma
literatura social como corrente majoritária e uma literatura
intimista ou psicológica, conservadora e frequentemente católica,
como corrente secundária e sem forças para se estabelecer como
forma possível do romance no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: romance social, década de 30, polarização


ideológica
37 Bacharel em Direito (UFPR) e em Letras Português (UFPR). Mestre em Letras
(UFPR). Doutorado em andamento em Estudos Literários (UFMG).

86
1. CALUNGA E O ROMANCE PROLETÁRIO

A vertente do romance proletário tem início no Brasil na


década de 30. O primeiro romance aqui publicado que se pretende
proletário é Parque industrial (1933), da Patrícia Galvão, a Pagu.
Esse romance, escrito sob o pseudônimo de Mara Lobo, financiado
por Oswald de Andrade e publicado numa edição particular, trazia
na própria capa a inscrição “romance proletário”. Na época,
Patrícia Galvão, que vinha militando pelo Partido Comunista
Brasileiro já fazia dois anos, tinha recebido dessa organização um
bilhete de afastamento por tempo indeterminado. Era uma fase de
depuração interna do Partido e eles estavam procurando afastar
todos os elementos intelectuais e/ou de origem pequeno-burguesa
(Pagu era os dois). Então, para provar sua sinceridade e dedicação à
causa, ela escreve o romance. Sua estreia no mundo literário,
contudo, passa quase despercebida. A crítica praticamente a ignora
e os militantes do PCB se mantêm em silêncio. Assim, pouco se
debate (e isso, de certo modo, até hoje) a filiação do livro à vertente
do romance proletário. No cenário da crítica literária, a estreia de
Pagu é ofuscada pela publicação de Cacau, de Jorge Amado, no
mesmo ano (1933). Este sim é o romance que vem pela primeira vez
provocar o debate acerca da vertente do romance proletário, e a
provocação inicial desse debate encontra-se no prefácio de Cacau,
em que Jorge Amado escreve: “Tentei contar neste livro, com um
mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos

87
trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um
romance proletário?” A crítica procurará, então, responder à
pergunta lançada pelo autor, o que instaura um debate do qual se
podem depreender algumas características do que se vem a
entender como romance proletário nesse período.
Quais seriam tais características? Deve-se enfatizar que é
difícil tirar desse debate dos anos 30 uma definição de cartilha, mas
algumas linhas gerais se traçam. Em Uma história do romance de 30
(2006), Luís Bueno examina esse debate em torno da definição do
gênero romance proletário e destaca o crítico Alberto Passos
Guimarães como um dos que minimamente esquematiza o
romance proletário. Para esse crítico, três elementos são
fundamentais: a valorização da massa (retratar os dramas
coletivos, ou seja, dar destaque para a ação da massa,
contextualizando nela a ação dos indivíduos); a rebeldia (a
convicção de que é preciso lutar para mudar a realidade social); e a
descrição veraz da vida proletária (isto é, a verve naturalista do
romance proletário é o que se destaca aqui).
Luís Bueno também menciona um artigo de Jorge Amado
(a respeito de Os Corumbas, de Amando Fontes) em que o escritor
traça, em linhas gerais, uma espécie de programa político e estético
do romance proletário. Bueno nota que este talvez seja o único
artigo em que um escritor brasileiro comprometido com a
literatura proletária traça tal programa. Cito trecho do artigo em
que esse tom programático aparece:

88
(...) acho que as fronteiras que separam o romance
proletário do romance burguês não estão ainda
perfeitamente delimitadas. Mas já se adivinham algumas.
A literatura proletária é uma literatura de luta e de revolta.
E de movimento de massa. Sem herói nem heróis de
primeiro plano. Sem enredo e sem senso de imoralidade.
Fixando vidas miseráveis sem piedade mas com revolta. É
mais crônica e panfleto do que romance no sentido
burguês. (AMADO apud BUENO, 2006, p. 164)

O aspecto central desse esquema de Jorge Amado é o do


rompimento com o “romance burguês”, que se dá, principalmente,
pelo fim do herói. Ou seja, rompe-se o esquema básico do romance
tradicional (ou burguês) de um sujeito (o herói) em conflito com os
valores da coletividade. Os problemas e conflitos passam a ser
coletivos, a ação individual é mais uma num conjunto de ações.
Adiantamos algo que será detalhado na sequência: o romance
Calunga se afasta, em diversos pontos, tanto desse programa
traçado por Jorge Amado quanto das características mencionadas
por Alberto Passos Guimarães.

2. O CONTEXTO DE POLARIZAÇÃO IDEOLÓGICA


DOS ANOS 30

O ano de publicação de Calunga, 1935, é bastante


sintomático dessa polarização político-ideológica. É o ano em que é
criada a Aliança Nacional Libertadora (ANL), um movimento que
congregou forças progressistas em oposição a Getúlio Vargas e ao

89
integralismo em ascensão. Também é o ano em que se publica
Jubiabá, de Jorge Amado, e O moleque Ricardo, de José Lins do
Rego, ambos consolidando o modelo do romance “de esquerda”,
romance social ou, lato sensu, romance proletário. Ainda nesse
mesmo ano, e representando o outro polo ideológico, Jorge de
Lima e Murilo Mendes publicam Tempo e eternidade, livro que
marcava a conversão de ambos ao catolicismo e que procurava
“restaurar a poesia em Cristo”. Lembrando que, nesse momento, a
intelectualidade católica era majoritariamente conservadora e boa
parte do catolicismo era simpático ou mesmo ligado ao
integralismo. Declarar-se publicamente católico era, portanto, ser
entendido como um homem de direita e ser colocado do lado
oposto ao de Jorge Amado e José Lins do Rego.
Examinemos mais de perto a polarização ideológica da
década de 30. Hoje, depois da queda do Muro de Berlim, segundo
um clichê muito repetido, vivemos o tempo da falência das
ideologias, da vitória da economia de mercado (com algumas ilhas
de resistência no mundo ocidental). Depois da experiência da
Primeira Guerra, os anos 30 foram muito diferentes disso: um
tempo de intenso debate ideológico. Descrentes do liberalismo,
todos procuravam uma solução política mais justa, seja de esquerda,
seja de direita. Foi um tempo em que o regime soviético era recente
e o fascismo conhecia sua grande ascensão. Num tal ambiente, a
indiferença era um crime intelectual seríssimo.

90
No campo das letras, tal polarização se traduziria, nesse
período, numa separação entre dois tipos de literatura, a social,
ligada a um ideário de esquerda, e a intimista, associada a uma visão
de mundo conservadora e frequentemente católica. Essa
polarização, no entanto, como aponta Luís Bueno, não é sempre
tão clara e estanque como por vezes simplificadamente se pensa.
Bueno afirma que essa “ideia de uma produção romanesca dividida
em duas correntes tão impermeáveis entre si tem sua origem numa
realidade anterior ao exame das obras nelas mesmas” (BUENO,
2006, p. 36). Na introdução de Uma história do romance de 30,
Luís Bueno assim sintetiza como a história literária, reforçada pelos
trabalhos de críticos como Flora Süssekind e Silviano Santiago,
frequentemente tem compreendido e classificado os romances
dessa década:

Afinal, os anos 30 são a época do romance social, de cunho


neonaturalista, preocupado em representar, quase sem
intermediação, aspectos da sociedade brasileira na forma
das narrativas que beiram a reportagem ou o estudo
sociológico. É claro que, nesse tempo, houve também uma
outra tendência na qual pouco se fala, (...) o chamado
romance intimista ou psicológico, mas tão secundária que
não teve forças para estabelecer-se como forma possível de
desenvolvimento do romance no Brasil. (BUENO, 2006,
p. 19)

Também Alfredo Bosi já afirmara que entre os romancistas


dos anos 30 e 40, tanto os da tendência dita regionalista quanto os
da linha psicológica/intimista, perpassa o mesmo problema, o do

91
engajamento.38 Desse modo, parece ser necessário buscar critérios
que extrapolem a mera polarização direita-esquerda para a devida
análise da produção literária desse período. Bosi sintetiza o cenário
cultural dessa produção com os seguintes termos: “Socialismo,
freudismo, catolicismo existencial: eis as chaves que serviram para
decifração do homem em sociedade e sustentariam ideologicamente
o romance empenhado desses anos fecundos para a prosa narrativa”
(BOSI, 2006, p. 389). Bosi afirma ainda:

A costumeira triagem por tendências em torno dos tipos


romance social-regional/romance psicológico ajuda só até
certo ponto o historiador literário; passado esse limite
didático, vê-se que, além de ser precária em si mesma (pois
regionais e psicológicas são obras-primas como São
Bernardo e Fogo Morto), acaba não dando conta das
diferenças internas que separam os principais romancistas
situados em uma mesma faixa. (BOSI, 2006, p. 390)

Também Antonio Candido, no ensaio “A Revolução de


1930 e a Cultura” (1984), traça um panorama do período que tem o
engajamento como característica central:

Os anos 30 foram de engajamento político, religioso e


social no campo da cultura. Mesmo os que não se
definiam explicitamente, e até os que não tinham
consciência clara do fato, manifestaram na sua obra esse
tipo de inserção ideológica, que dá contorno especial à
fisionomia do período. (CANDIDO, 1984, p. 28)

38 “De modo sumário, pode-se dizer que o problema do engajamento, qualquer que
fosse o valor tomado como absoluto pelo intelectual participante, foi a tônica dos
romancistas que chegaram à idade adulta entre 30 e 40.” BOSI, 2006, p. 390.

92
No mesmo artigo, Candido ressalta o convívio entre a
literatura e as ideologias políticas como uma novidade no Brasil,
que se instaura nos anos 30:

(...) houve nos anos 30 uma espécie de convívio íntimo


entre a literatura e as ideologias políticas e religiosas. Isto,
que antes era excepcional no Brasil, se generalizou naquela
altura a ponto de haver polarização dos intelectuais nos
casos mais definidos e explícitos, a saber, os que optavam
pelo comunismo ou o fascismo. Mesmo quando não
ocorria esta definição extrema, e mesmo quando os
intelectuais não tinham consciência clara dos matizes
ideológicos, houve penetração difusa das preocupações
sociais e religiosas nos textos (...). (CANDIDO, 1984, p.
30-31)

Esse é o cenário de publicação de Calunga, um cenário de


polarização político-ideológica onde nenhum dos polos está isento
de tensões e contradições: pensar, por exemplo, no quadro que
Sergio Miceli expõe em Os intelectuais e classes dirigentes no Brasil ,
sobre intelectuais de esquerda, ícones do modernismo com Mario
de Andrade e Drummond, que atuaram em cargos públicos
durante o governo de Vargas. Pensar também na rejeição de muitos
católicos à “amizade” entre catolicismo e integralismo, dentre os
quais encontram-se Murilo Mendes e o próprio Jorge de Lima.

3. RECEPÇÃO CRÍTICA DE CALUNGA

Luís Bueno se refere à recepção de Calunga como o “caso


mais complicado e revelador” (BUENO, 2006, p. 214) desse

93
momento, justamente pela dificuldade que a crítica encontrou em
identificar qual partido Jorge de Lima estava tomando.
Carlos Lacerda (à época líder estudantil do Partido
Comunista), que se manifesta sobre o romance no artigo “O
Cordeiro de Deus sai da Lama” (1935), vê uma sinceridade na
representação que o romance faz das condições de vida dos mais
pobres que o tornam uma força que vem “combater pela
Revolução”, ainda que à revelia da vontade do autor. E conclama
Jorge de Lima a lutar conscientemente pela Revolução:

Sim, Jorge de Lima. E veja agora, no clarão que essas tuas


palavras abrem no ar, a safadeza do Jorge de lima que
marcou passo em Tempo e eternidade. Agora você entrega
aos homens um livro bom. Seja coerente, e não procure ser
inferior ao seu livro. Decida-se entre a consideração das
pessoas ‘bem’ e a admiração de milhões de homens.
(LACERDA apud BUENO, 2006, p. 215)

João Cordeiro, escritor de esquerda do círculo de Jorge


Amado, tem opinião parecida: vê em Calunga um ponto de virada
em Jorge de Lima:

Nele o romancista se revela um revoltado e dá-nos uma


visão admirável e perfeita da vida miserável das nossas
populações rurais. Se ainda, com este romance, não
chegou à revolução popular, onde chegarão todos os
intelectuais honestos (e onde já chegara, José Lins do
Rego, com O moleque Ricardo, e Érico Veríssimo, com
Caminhos Cruzados), tudo indica que, para ela, caminha
o sr. Jorge de Lima a passos largos. (CORDEIRO apud
BUENO, 2006, p. 215).

94
Mas houve críticos de esquerda que recusaram
integralmente o romance por acreditarem na desonestidade do
autor. O crítico Abelardo Jurema, escrevendo na revista Momento
(1935), afirma:

No Anjo e em Tempo e eternidade ele é um. Em Poemas e


Calunga ele é outro. Por quê? Facilmente se obtém a
resposta. Há necessidade dessas transmutações. O mundo
moderno necessita de muita cretinice. A teoria das
personalidades se impõe. (...) É preciso ser amigo do papa
e de Stálin. É preciso orar por Deus e pelo Diabo. Moscou
e Roma estão influindo nessas personalidades cretinas e
insinceras. (...) Calunga é imoralíssimo porque partiu de
um autor que absolutamente não possui honestidade
intelectual. (JUREMA apud BUENO, 2006, p. 216)

A conversão ao catolicismo de Jorge de Lima levanta a


suspeita de oportunismo da sua parte, ao reproduzir um modelo
literário de sucesso na época sem ter a real convicção sobre a missão
revolucionária desse modelo. Mas ele não poderia estar
genuinamente preocupado com a questão social e, ao contrário do
que ambos os tipos de crítica propõem, estar querendo justamente
apontar um conflito de visões no seu romance, sem
necessariamente aderir a uma delas? É esta a leitura que proponho.

4. CONFLITO DE VISÕES EM CALUNGA

A expressão “conflito de visões” parte do título do livro de


Thomas Sowell, publicado em 1987, o qual, juntamente com Os
intelectuais e a sociedade (2009), do mesmo autor, nos permite

95
pensar numa leitura de Calunga que o faça escapar da polarização
ideológica que vimos dominar na década de 30.
Sowell identifica, na modernidade, duas matrizes de visões
diferentes acerca da natureza ou condição humana, as quais se
refletem nas diferentes propostas de como a sociedade, em suas
diversas instâncias, deve ser administrada.
A primeira dessas perspectivas é chamada de visão restrita
(constrained, no original, que poderia talvez ser melhor traduzido
por restritiva) ou trágica. Trata-se de uma visão “na defensiva”,
segundo a qual os ganhos da civilização são frágeis, não são
naturais, ou seja, pode-se retroceder e voltar a um estado “de
barbárie”. Portanto, a civilização precisa de cultivo, e não de ataque.
Por consequência, deve-se ter mais confiança no funcionamento
sistêmico das instituições do que na iluminação intelectual de
alguns indivíduos.
Tal visão está baseada na crença no funcionamento
sistêmico das instituições, bem como na confiança de que por esse
funcionamento elas se autorregulam e atingem a sua melhor forma.
Portanto os ganhos são maiores e os danos menores quanto menos
se interfere no funcionamento das instituições. Essa perspectiva “é
trágica na forma em que enxerga as restrições humanas, as quais
não podem ser superadas meramente pela compaixão, pelo
comprometimento ou por outras virtudes que os intelectuais
ungidos alegam defender ou atribuem a si próprios.” (SOWELL,
2009, p. 129-130).

96
A segunda perspectiva é chamada de visão irrestrita
(unconstrained ou irrestritiva) ou, ainda, visão “do intelectual
ungido”. Segundo tal perspectiva, o ser humano pode ser
radicalmente mudado para melhor através da reforma das
instituições. Há a confiança ou crença de que um grupo de
intelectuais (uma intelligentsia) pode conduzir essa mudança.
“Nessa visão, opressão, pobreza, injustiça e guerra são resultados
das instituições existentes, problemas cujas soluções exigem a
mudança das instituições, o que, por sua vez, implica a mudança
das ideias que amparam, na base, essas instituições.” (SOWELL,
2009, p. 127) Note-se que esta visão aposta mais na razão, enquanto
que a primeira na tradição.
As duas visões polo dos anos 30, comunismo e
integralismo, são visões irrestritas, pois ambas acreditam no
potencial de perfectibilidade do ser humano e querem a reforma
(ou mesmo a mudança radical) das instituições sociais a partir da
compreensão intelectual de alguns indivíduos sobre o que é o ser
humano.
No romance Calunga, o protagonista Lula Bernardo
encarna essa segunda visão, a irrestrita. Ele é um reformador social,
tem a ambição de trazer o progresso e a iluminação à sua terra natal,
o vilarejo de Bebedouro, onde grassa a malária e a população
subsiste graças à pesca e à extração do sururu. O protagonista
pretende ensinar hábitos mais saudáveis e um outro meio de vida
aos seus conterrâneos, a criação de carneiros.

97
A atuação de Lula, contudo, não está isenta de uma postura
autoritária. Lula age como uma espécie de “déspota esclarecido”.
Vendo as falhas do projeto modernizador tradicional para com sua
região (um projeto que mais explora do que moderniza a região),
Lula procura estabelecer uma nova relação com seus empregados:
bem-intencionado e sem violência, quer impor a eles o que
considera as conquistas da modernidade. Mas seu procedimento na
verdade não está livre de violência, uma vez que Lula julga proceder
como um igual, mas na verdade tem o olhar de um estrangeiro, de
um superior, de um “intelectual ungido”. Lula isenta os
trabalhadores da culpa pela sua condição, já que eles eram gente
“rodeada de trevas” (LIMA, 2014, p. 42), mas tampouco vê neles a
solução para o problema. Lula procura a solução em si próprio.
A fim de apresentar criticamente a visão irrestrita do
protagonista, o romance propõe que haja elementos comuns entre
Lula e seus antagonistas, Totô do Canindé e o Santo, apresentando-
os, em certa medida, como suas contrapartes.
Seu Totô do Canindé, o vizinho cruel que busca sabotar os
planos de Lula, exerce um autoritarismo predatório e trata seus
empregados como escravos, perpetuando uma forma ancestral de
mando, a da exploração segundo a lei do mais forte. Lula, por sua
vez, tem um autoritarismo idealista e bem-intencionado, mas que
não deixa de ser autoritarismo. Uma das passagens finais do
romance, em que o protagonista, tomado pela febre da malária,

98
tem alucinações que o fazem acreditar ser ele próprio o senhor do
Canindé, trazem o paralelismo à cena.
Em relação ao paralelismo entre Lula e o Santo, pode-se
dizer que, enquanto Lula baseia seu idealismo e sua intenção
salvadora na ciência e no progresso, o Santo fomenta a ânsia de
salvação do povo com base na fé, na crença. Ambos se propõem,
entretanto, como um canal de salvação. E ambos são muito
parecidos no que diz respeito à inutilidade da sua ação, uma vez os
milagres do Santo se revertem e o projeto de Lula fracassa. Pode-se
ver aqui um paralelo entre a cegueira religiosa, que leva o povo a
peregrinar inutilmente atrás do Santo, e a cegueira ideológica, que
faz Lula apostar tudo na sua capacidade de, iluminado pelo
progresso, mudar as coisas.
A chamada visão restrita, a visão que aposta antes na
tradição do que na transformação social a partir de princípios
intelectuais, encontra-se presente no romance na instância
narrativa, e também, se quiser, na instância autoral. Isso se dá na
medida em que todos os personagens são apresentados na sua
fragilidade e nas suas limitações humanas (inclusive o protagonista,
que sucumbe ao vício da bebida, contrai malária e fica alienado da
realidade por conta das febres). A transformação social e o projeto
modernizador de Lula despontam como inviáveis. Não há,
portanto, a adesão à crença na Revolução, como haveria em um
romance social típico que veicula a visão irrestrita. Jorge de Lima
apresenta essa visão, a irrestrita, mas é para questioná-la.

99
5. CONCLUSÃO

Por fim, gostaria apontar os contrastes entre Calunga e o


romance proletário “canônico”, em relação às três características
que Alberto Passos Guimarães aponta como fundamentais a essa
vertente – exaltação da massa, rebeldia e retrato veraz das condições
de vida dos trabalhadores: 1) não há exaltação da massa, esta é
retratada como passiva, sem consciência de classe, ignorante da
própria opressão; 2) a revolta é tratada criticamente, na chave do
conflito e do questionamento: os intentos reformadores de Lula e
seu idealismo são postos em questão pela instância
narrativa/autoral; desse modo, a revolta não é idealizada e nem
romantizada como no romance proletário tradicional. 3) há o
retrato das condições de vida dos trabalhadores, porém, a
linguagem é de alto teor poético e pouco naturalista.
Em suma, Calunga não é um romance da coletividade, que
retrata a luta da coletividade, é antes um romance sobre o indivíduo
em luta com seu meio (nesse sentido, retoma o modelo do romance
tradicional burguês) e, principalmente, em conflito com seus
próprios ideias e intenções.
Por fim, pode-se pensar se o questionamento da visão
irrestrita que o romance promove não está ligado à visão católica do
autor, a qual desconfia da capacidade humana de se salvar pelos
seus próprios meios, pelos meros expedientes humanos. Para o
autor, essa salvação (na sua plenitude, ao menos) não estaria numa

100
reforma social, mas apenas no plano transcendente. O ser humano
não se salvaria neste mundo, não atingiria aqui a plenitude e a
libertação, estas seriam possíveis apenas numa vida pós-terrena.

REFERÊNCIAS:

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira . 43. ed. São


Paulo: Cultrix, 2006.

BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp;


Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

CANDIDO, Antonio. A Revolução de 1930 e a Cultura. Novos


Estudos Cebrap, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 27-36, abril, 1984.
LIMA, Jorge de. Calunga. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

SOWELL, Thomas. Conflito de visões. Trad. Margarida M. G.


Lamego. São Paulo: É Realizações, 2011.

_______________. Os intelectuais e as visões da sociedade. In: Os


intelectuais e a sociedade. Trad. Maurício Righi. São Paulo: É
Realizações, 2011.

101
Salman Rushdie's “At the Auction of the
Ruby Slippers”, Marx's concept of
commodity fetishism and the concept of
“post-modern”

José Otaviano da Mata Machado39

ABSTRACT: The article proposes a reading of Salman Rushdie's


short story “At the Auction of the Ruby Slippers” based on Marx's
concept of commodity fetishism, developed by the philosopher in
the first book of The Capital. The analysis focuses on the
representation of the “ruby slippers” in the short story, and
discusses them under the light of Marx's theory of value. From the
confrontation of the concept of commodity fetishism with the
short story, a discussion and critique of the concept of “post-
modern” is proposed, based on contemporary Marxist critics such
as Terry Eagleton and Frederic Jameson. Rushdie has been
identified as a “post-modernist” author, and evoked by ideologues
of the “post modern society” as an aesthetic reference of such
proposition; the article proposes that Rushdie's short story, on the
contrary, pictures not a “post-modern” or “late-capitalist” society,
but rather the logic of class struggle which has defined the conflicts
in bourgeois society ever since its establishment.

KEYWORDS: Salman Rushdie, Commodity Fetishism, Post-


modernism

39 Mestrando em Literatuas de Língua Inglesa pela FALE-UFMG.

102
The ruby-red slippers worn by Judy Garland in her role as
Dorothy in 1936 The Wizard of Oz are among the most iconic
objects of Hollywood history. With the fictional magical power of
taking Dorothy back home to Kansas, the slippers became a symbol
of a “golden age” of Hollywood.
But the magic in Dorothy's ruby slippers seems not to be
limited to the fictional land of Oz. Their off-screen counterparts –
the actual slippers worn by Judy Garland during production –
possess the amazing power of exchange value. In 2012, one of four
known remaining pairs of the ruby slippers was bought by the
Academy of Motion Pictures Arts and Science (the institution
responsible for the Oscar awards) for an undisclosed amount –
however, a previous auction of the item had an estimated selling
price of 3 million dollars. (TELEGRAPH)
The other three pairs have had no less notable fates: one of
them is among the most prized items of the Smithsonian Museum
of American History, the other is held by an unknown private
collector (STARPULSE) and the final one was stolen in 2005 from
the Judy Garland Museum in Minnesota (BURKE, 2008).
But what is the cause for such awe inspired by a pair of
shoes covered in sequin? The answer might lie in the works of
German philosopher Karl Marx. In the first volume his seminal
book “The Capital” (published posthumously), Marx coins the
term “commodity fetishism” - a category which might be the key to
understand the “magic” that surrounds Dorothy's ruby slippers.

103
COMMODITY FETISHISM

The idea of “commodity fetishism” is strongly linked to


Marx's theory of value. Of course, as with Marx's entire work, these
concepts defy simplifications, but I will try to define them as
possible.
In Marx's theory of value, products – that is, the result of
labor operated by human beings on nature – might have two
different “kinds” of value: use value and exchange value. Use value
might be described as the value which relates to the products utility
to the user (BOTTOMORE, 1988, p. 401), while exchange value is
the value the product assumes when it becomes a commodity: that
is, when it enters the market and is valued in relation not to its
utility but to the values of other commodities. The value of a
product, then, does not derive from the material relations of
production between its producers – it derives from the social
relations between the products themselves. The value does not
come from where the work of the carpenter stands in relation to
the work of the metalworker; it derives rather from the relation
between a table and a car, for example. Or, as Marx himself puts it:

[o]ne ton of iron and two ounces of gold appear as


naturally to be of equal value as a pound of gold and a
pound of iron in spite of their different physical and
chemical qualities appear to be of equal weight. The
character of having value, when once impressed upon
products, obtains fixity only by reason of their acting and
re-acting upon each other as quantities of value. (MARX,
2014)

104
But the fact is that this relation is not evident to the
producers; exchange value seems to emanate from the “products
themselves”, in a dynamic that alienates the workers from the fruit
of their own work – for the value of that very fruit seems to
emanate from the commodity, and not from the labor.
To this mysterious “emanation” of value that appears from
the commodification of products, Marx coins the term
“commodity fetishism” - a category which has its terminological
roots in religious thoughts:

In order, therefore, to find an analogy, we must have


recourse to the mist-enveloped regions of the religious
world. In that world the productions of the human brain
appear as independent beings endowed with life, and
entering into relation both with one another and the
human race. So it is in the world of commodities with the
products of men’s hands. This I call the Fetishism which
attaches itself to the products of labour, so soon as they
are produced as commodities, and which is therefore
inseparable from the production of commodities.
(MARX, 2014)

Commodities, then, tend to shadow their condition of


products – of things created by the labor of humans – and appear
to have an immanent value. In this inversion, social relations are
mediated by commodities, and the world of men is wound up
ruled by these relations.
As often happens, fiction offers valuable contributions to
the apprehension of concepts. As far as the category of

105
“commodity fetishism” goes, Salman Rusdhie's short story “At the
Auction of the Ruby Slippers” present and acid critic of such
fetishism.

“AT THE AUCTION OF THE RUBY SLIPPERS”

Rushdie's short story, reflecting upon the actual


phenomenon surrounding the actual auction of Dorothy's ruby
slippers, portrays the event as something majestic: he seems to
create an entire world which revolves around the auction. In a
seemingly post apocalyptic scenario, in which people rarely leave
their “bunkers”, the auction draws a rather diverse crowd, ranging
from movie stars to “homeless tramps”, going through
“memorabilia junkies”, “Wizards, Lions, Scarecrows”, political
refugees, religious fundamentalists, and even imaginary beings.
They form, as the narrator puts them, a “cult of the ruby slippers”,
who gather in veneration, forming pools of drool, getting
electrocuted for attempting to kiss the transparent cage that
protects the slippers and being generally alienated from the world
that surrounds them.
The theme of veneration of a commodity – the slippers –
whose exchange value is nonsensical is, itself, based on the concept
of commodity fetishism. But Rushdie's short story hints a lot more

106
at the category. One example is the belief in the magic properties of
the slippers:

We revere the ruby slippers because we believe they can


make us invulnerable to witches (and there are so many
sorcerers pursuing us nowadays); because of their powers
of reverse metamorphosis, their affirmation of a lost state
of normalcy in which we have almost ceased to believe and
to which the slippers promise us we can return; and
because they shine like the footwear of the gods.
(RUSHDIE, 1995, p. 92)

These magic properties, however, are unconfirmed: the


narrator says that the bidders “believe” them. As in a religious
matter, in which belief, rather than proof, is a motivation, in this
“cult”, the power of the slippers does not have to be confirmed.
Their “value” emanates not from their “use”, but rather – it seems
– from their “essence”. This essence, of course, is indeed an
“exchange value”; a fetish.
In fact, Rushdie actually refers namely to the fetishist
aspect of the ruby slippers, when discussing the role of the religious
fundamentalists and making a remark about the “liberal nature” of
the Auctioneers:

Disapproving critiques of the fetishising of the slippers are


offered by religious fundamentalists, who have been
allowed to gain entry by virtue of the extreme liberalism of
some of the Auctioneers, who argue that a civilised
saleroom must be a broad church, open, tolerant. The
fundamentalists have openly stated that they are
interested in buying the magic footwear only in order to
burn it, and this is not, in the view of the liberal

107
Auctioneers, a reprehensible programme. (RUSHDIE,
1995, p. 92)

The presence of the religious fundamentalists in this


excerpt also reveals interesting elements of Rushdie's short story.
Even though the core of the narrative lies in the fetishistic ruby
slippers, the setting seems to spiral out of the auction item and
bring to light the surrounding environment. In this environment,
as aforementioned, the reader is confronted with a vast host of
figures taken from pop culture and literary tradition, who are
quickly brought to light and sent back to the background again. A
“literary character, condemned to an eternity of reading the works
of Dickens to an armed man in a jungle” (RUSHDIE, 1995, p. 94)
shares the setting with the “Wizards, Lions and Scarecrows”, in an
interpenetration of “high culture” and “mass culture” that is
typical of what has been described as “post-modernist narratives”,
as described by Jameson:

[t]he effacement (…) of the older (essentially high-


modernist) frontier between high culture and so-called
mass or commercial culture, and the emergence of new
kinds of texts infused with the forms, categories and
contents of that very Culture Industry so passionately
denounced by all the ideologues of the modern, from
Leavis and the American New Criticism all the way to
Adorno and the Frankfurt School. The postmodernisms
have in fact been fascinated precisely by this whole
'degraded' landscape of schlock and kitsch, of TV series
and Reader's Digest culture, of advertising and motels, of
the late show and the grade-B Hollywood film, of so-
called paraliterature with its airport paperback categories
of the gothic and the romance, the popular biography, the

108
murder mistery and science-fiction or fantasy novel(...).
(JAMESON, 1991, p. 63)

Rushdie surrounds the ruby slippers by this “degraded


landscape”, and by doing so reveals the environment from which
such fetishism emerges. In this world of the prevalence of the
advertisement, the fetishised commodity appears as an all-powerful
idol. Indeed, the “cult of the Ruby Slippers” seem to be a synthesis
of this “world of mass culture”; this “post-modernist world”, as
some authors defend.
The logic of a “post-modern” world, however, is not
defined solely by this “effacement of the frontier between high
culture and mass culture”. In fact, one of the defining political and
social phenomenons that characterize the so-called post-modern
society is a supposed end of a “class society” in which the conflict
between the proletariat and the bourgeoisie shape the lives of men,
and a rise of a “multiply determined” society, in which the
dynamics of ethnicity, gender, race, religion and sexual orientation
and identity instead form the conflicts that define society. This is
related to a supposed end of the “grand narratives” (SELDEN et
al., 1997, p. 200) – an umbrella term used to describe a vast range of
philosophical branches, from the Enlightenment to Marxism – of
social progress. Jameson puts the question as such:

Modernist styles thereby become postmodernist codes:


and that the stupendous proliferation of social codes
today into professional and disciplinary jargons, but also

109
into the badges of affirmation of ethnic, gender, race,
religious, and class-fraction adhesion, is also a political
phenomenon, the problem of micropolitics sufficiently
demonstrates. If the ideas of a ruling class were once the
dominant (or hegemonic) ideology of bourgeois society,
the advanced capitalist countries today are now a field of
stylistic and discursive heterogeneity without a norm.
(JAMESON, 1992, p. 73)

The very idea of “post-modernity” is extremely


controversial. It is not my goal here to provide a deep insight into
the contradictions and limitations of the category, for that is a
rather lengthy endeavor. Such a criticism might be found, for
instance, in Terry Eagleton's After Theory, with much more grasp
of the subject than I can achieve in the limited space of this article.
However, if not a direct critique, but at least a problematising of
the matter is offered by Rushdie in “At the Auction of the Ruby
Slippers”, I believe.

POST-MODERN CONFLICTS OR CLASS STRUGGLE?

The “spiraling” movement out of the Ruby Slipper's cage


and into the environment that surrounds it, operated in Rusdhie's
short story, reveals a landscape which ideologues of the post-
modern can quickly relate to their own theories, as evidenced
above. And indeed, if that spiraling movement ceased at that, the
short story would coincide precisely with their theories. However,
the movement keeps spiraling out, and in the setting's margins we

110
find the very essence of what the ideologues of the post-modern
believe is past history, belonging to the so-called “grand narratives”:
the class struggle between the proletariat and the bourgeoisie,
instead of the micropolitical conflicts of gender, race or sexual
orientation.
These “margins” of the plot and setting are not at all
obvious to a first reading of the text. This fact might derive from
where the story's first-person narrator seems to stand, socially. He is
hinted to be somewhat of a bureaucrat, who works for rich bidders
by attending certain auctions and getting items for them. He seems
to be, in other words, what has been called in common-sense, a
“middle-class” man – that is, he is certainly not a rich capitalist
proprietor, neither is he a “typical” proletariat, such as an industry
worker. This “middle-class” position puts him, so to speak, in the
“eye of the hurricane” of mass culture, literally in the “middle” of
the media's ideological offense. Therefore, the “margins” of the
system he inhabits are somewhat effaced from his perspective. But,
still, they insist on creeping in.
On one “pole” of the narrative lies the working class – both
employed and unemployed. They are mention but briefly –
because, of course, they sit at the margin. The most obvious
example lies in the character of the “Latino janitor” - which has
already become a “type” in contemporary American society:

Around the – let us say – shrine of the ruby-sequinned


slippers, pools of saliva have been forming. There are

111
those of us who lack restraint, who drool. The jump-
suited Latino janitor moves among us, a pail in one hand
and a squeegee mop in the other. We admire and are
grateful for his talent for self-effacement. He removes our
mouth waters from the floor without causing any loss of
face on our part. (RUSHDIE, 1995, p. 90)

Statistical data has shown that the Hispanics correspond to


the lower paying jobs in the United States today (35.7% of Hispanic
men and 45.8% of Hispanic women were employed at or below the
Poverty Wage, as of 2003) (YATES, 2005). They are the most
exploited of the exploited, the “basis”, so to speak, of the working
class. No wonder Rushdie's Latino janitor reveals a “talent for self-
effacement”: in a period when class consciousness has taken several
steps backwards in the United States, not much is left for a worker
to do other than bow down and do his job as inconspicuously as
possible.
In The Capital, Marx discusses how the over exploitation of
workers is made possible by the “reserve army of labor” - that is, the
mass of unemployed workers that creates competition for the
employed workers, forcing the latter to subject themselves to an
ever-increasing labor load. By leaving a large part of the working
class in forced inactivity in order to condemn the other part to
excessive work. Part of this population is wound up homeless and
another part is thrown into the condition of what Marx called the
“lumpenproletariat”: criminals, prostitutes, etc. This mechanic of
exclusion serves the purpose of over-exploiting the labor force.
(MARX, 1982, p. 163)

112
For the “Latino janitor” to exist and to work so obediently
in Rushdie's short story, a reserve army of labor and a
lumpenproletariat has to exist – and indeed, the author brings up
not only their existence, but also their condition as the most
excluded of all, being the only ones to be forced out of the auction
by repressive forces:

Exiles, displaced persons of all sorts, even homeless tramps


have turned up for a glimpse of the impossible. They have
emerged from their subterranean hollows and braved the
bazookas, the Uzi-armed gangs high on crack or smack or
ice, the smugglers, the emptiers of houses. The tramps
wear stenchy jute ponchos and hawk noisily into the giant
potted yuccas. (…) SWAT teams are summoned and after a
brief battle involving the use of rubber bullets and
sedative darts the tramps are removed, clubbed into
unconsciousness and driven away. They will be deposited
some distance beyond the city limits, out there in that
smoking no-man's-land surrounded by giant advertising
hoardings into which we venture no more. Wild dogs will
gather around them, eager for luncheon. These are
uncompromising times. (RUSHDIE, 1995, p. 91)

If on one side of the “outer circle” of Rushdie's spiraling


narrative lies the working class – whether employed or not – on the
other lies the opposing force, the ruling class in the capitalist
society: the bourgeoisie, represented in the short story by the
“Auctioneers”.
The “Auctioneers”, just like the janitor and the “homeless
tramps”, sit on the “margins” of the plot, mentioned a couple times
but as almost ghost-like figures. They rule the auctions, and by
doing so, they rule, in fact, the lives of people. “It is to the

113
Auctioneers we go to establish the value of our pasts, of our
futures, of our lives”, says the narrator. (RUSHDIE, 1995, p. 101)
The political stance of the Auctioneers is, of course,
“liberal”. Just like the great bourgeois of contemporary world in
Wall Street, they are tolerant towards anyone's money. The narrator
does not fail to remark this fact: “'Money insists on democracy', the
liberal Auctioneers insist. 'Anyone's cash is as good as anyone
else's'”. Eagleton, in After Theory, puts this aspect in theoretical
terms, in an attempt to show how little “subversive” is the post-
modernist's trust in “pluralism” - the shift from class conflict to
minorities conflicts:

[i]t [post-modernism] puts its trust in pluralism – in a


social order which is as diverse and inclusive as possible.
The problem with this as a radical case is that there is not
much in it with which Prince Charles would disagree. It is
true that capitalism quite often creates divisions and
exclusions for its own purposes. Either that, or it draws
upon ones which already exist. And these exclusions can
be profoundly hurtful for a great many people. Whole
masses of men and women have suffered the misery and
indignity of second-class citizenship. In principle,
however, capitalism is an impeccably inclusive creed: it
really doesn't care who it exploits. It is admirably
egalitarian in its readiness to do down just about anyone.
It is prepared to rub shoulders with any old victim,
however unappetizing. Most of the time, at least, it is
eager to mix together as many diverse cultures as possible,
so that it can peddle its commodities to them all.
(EAGLETON, 2003, p. 18)

Finally, Rushdie presents a world in which everything can


be turned into commodities and put an auction. His landscape is

114
not “late-capitalist” or “post-capitalist”; it is simply “capitalist”: a
world in which a ruling class controls labor and attributes exchange
value to anything – from monuments to human souls -, using a
vast repressive apparatus, when needed, to do so:

The Grand Saleroom of the Auctioneers is the beating


heart of the earth. If you stand here for long enough all
the wonders of the world will pass by. In the Grand
Saleroom, in recent years, we have witnessed the auction
of the Taj Mahal, the Statue of Liberty, the Alps, the
Sphinx. We have assisted at the sale of wives and the
purchase of husbands. State secrets have been sold here,
openly, to the highest bidder. On one very special
occasion, the Auctioneers presided over the sale, to an
overheated and inter-denominational bunch of
smouldering red demons, of a wide selection of human
souls of all classes, qualities, ages, races and creeds.
Everything is for sale, and under the firm yet essentially
benevolent supervision of the Auctioneers, their security
dogs and SWAT teams, we engage in a battle of wits and
wallets, a war of nerves. (RUSHDIE, 1995, p. 99)

It's all there: the commodification of every aspect of human


life, the use of the armed forces to sustain dominance, the struggle
of exploited against exploited, “supervised” by the exploiters.
Capitalism, in other words.
In “At the Auction of the Ruby Slippers”, Rushdie
acknowledges the fetishistic aspect of commodities. But he goes
much further than that: he finds the need to portray the social
conditions which lead to commodity fetishism. In a vertiginous
spiral narrative, he gradually “zooms out” of the slipper's “shrine”
and encompasses the world that surrounds it, a world marked by a
conflict between a class of exploited men and women that struggle

115
against a class of parasite “Auctioneers”. All in all, “At the
Auction...” is not simply about commodity fetishism. It is about
capitalism and about class struggle.

WORKS CITED:
[s.a.] “Dorothy's ruby red Wizard of Oz slippers find their way
home”. The Telegraph, 23 Feb 2012. Available at:
<http://www.telegraph.co.uk/culture/film/film-
news/9099959/Dorothys-ruby-red-Wizard-of-Oz-slippers-find-
their-way-home.html> (last accessed on May 2nd, 2014)

[s.a.] “Dorothy's Ruby Slippers From 'The Wizard Of Oz' For


Sale”. Starpulse, September 22nd, 2011. Available at:
<http://www.starpulse.com/news/index.php/2011/09/22/dorothy
s_ruby_slippers_from_the_wizard> (last accessed on May 2nd,
2014)

BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio


de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BURKE, Monte. “Inside The Search For Dorothy's Slippers” in:


Forbes, December 3rd, 2008. Available at:
<http://www.forbes.com/2008/12/03/wizard-slippers-collection-
forbeslife-cx_mb_1203slippers.html> (last accessed on May 2nd
2014)

EAGLETON, Terry. After Theory. London: Penguin, 2003.

JAMESON, Frederic. “Postmodernism, or The Cultural Logic of


Late Capitalism”. In: DOCHERTY, Thomas (org.)
Postmodernism: A Reader. New York: Columbia University, 1992.
MARX, Karl. “The Fetishism of Commodities and the Secret
Thereof”. In: Capital: A Critique of Political Economy. Available

116
at: <https://www.marxists.org/archive/marx/works/1867-
c1/ch01.htm#S4> (last accessed on May 2nd 2014)

MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: LTC, 1982.

RUSHDIE, Salman. “At the Auction of the Ruby Slippers”. In:


East, West. London: Vintage, 1995.
SELDEN, Raman; WIDDOWSON, Peter; BROOKER, Peter. A
Reader's Guide to Contemporary Literary Theory. London:
Prentice Hall, 1997.

YATES, Michael D. “A Statistical Portrait of the U.S. Working


Class” in: Monthly Review, vol. 56, issue 11, 2005. Available at:
<http://monthlyreview.org/2005/04/01/a-statistical-portrait-of-
the-u-s-working-class> (last accessed on May 2nd 2014)

117
As visões de mundo, em Thomas Sowell, e a
binomia, em Álvares de Azevedo

Rafael Fava Belúzio40

RESUMO: Thomas Sowell, em Conflito de visões: origens


ideológicas das Lutas Políticas [1987]¸ procura explicar embates
existentes na modernidade, isto é, a partir do Iluminismo,
contrapondo duas visões de mundo, as quais estão em permanente
conflito: de um lado, a visão “constrained”, traduzida como
“restrita”, possui em Adam Smith um representante; do outro
lado, a visão “unconstrained”, traduzida como “irrestrita”, estaria
mais próxima de William Godwin. Além dos polos opositivos,
Sowell não descarta as visões tratadas como híbridas, tais como o
marxismo e o utilitarismo. Empregando uma formalização do
pensamento, em maior ou menor grau, comparável à de Thomas
Sowell, Álvares de Azevedo, no “Prefácio” à “Segunda parte” de
Lira dos vinte anos [1852], também contrasta duas visões de
mundo: uma próxima do imaginário de Ariel, outra próxima do
imaginário de Calibã, mas sem deixar de notar que a dualidade
permite hibridismos. Dessa forma, apresentando as arquiteturas de
A conflict of visions e Lira dos vinte anos, pretendo compreender
um pouco melhor ambas, e, talvez, encontrar hibridismos possíveis.

PALAVRAS-CHAVE: política, poética, dualidade


40 Doutorando em Estudos Literários/UFMG.

118
Nascido em 1930, doutor em economia pela Universidade
de Chicago, com mestrado em Columbia e graduação em Harvard,
Sowell pode ser tratado como um economista liberal, mas também
possui reflexões próximas de campos como Sociologia e Filosofia
Política. Nessa formação, é notável a influência de Milton
Friedman, na medida em que Sowell está mais próximo da ideia de
um mercado livre, e, portanto, distante da regulamentação, nos
termos de John Keynes. Para além dessa oposição entre Friedman e
Keynes, mas, em alguma medida, passando por ela, em A conflict
of visions – lançado, em 1987, e revisado, em 2007 – Thomas
Sowell contrapõe duas opostas visões de mundo: uma restritiva e
uma irrestritiva. Em certo sentido, essas duas possibilidades são
tipos ideias, menos ou mais na esteira de Max Weber.41
O conceito de “visão de mundo” é fundamental no
pensamento de Sowell. No “Prefácio à Edição de 1987”, ele procura
explicar um pouco essa noção inicial, assim como no Capítulo 1, “O
papel das visões”. De acordo com o autor,

A realidade é muito complexa para ser compreendida por


qualquer mente. Visões são como mapas que nos guiam
através de um emaranhado de complexidades
desconcertantes. A exemplo dos mapas, as visões devem
deixar de lado muitos fatores concretos para podermos
nos concentrar em alguns caminhos-chave para atingirmos
nossos objetivos.42

41 WEBER, 1991, p. 106.


42 SOWELL, 2011, p. 17.

119
Observada desse modo, a visão de mundo é uma
simplificação intencional. Consciente das limitações que ela
acarreta, é possível a utilizar como um mapa, uma estrutura
miniaturizada da realidade, capaz de demonstrar os pontos
fundamentais. Nesse sentido, a ideia de visão de mundo se
aproxima do conceito de tipo ideal, nos termos de Max Weber. Em
ambos, existe a percepção de que se está trabalhando com uma
redução proposital, uma vez que a realidade é muito complexa e
que a objetivação em escala menor ajuda na percepção. Sowell e
Weber sabem dos limites desse modelo de observação, mas o
priorizam na medida em que recusam tratar da realidade em si, a
partir de toda a variabilidade que lhe é própria e impossível de ser
apreendida.43 Além disso, em Conflito de visões há uma defesa de
que simplificações ideias seriam, no campo da teoria social, tão
importantes como em nenhum campo, dada a variabilidade de
estruturas com as quais os pesquisadores precisam de lidar.
Avançando nessas reflexões, Thomas Sowell se aproxima do
trabalho de Joseph Schumpeter, History of Economic Analysis, o
qual aborda a visão como um “ato cognitivo pré-analítico”, uma
percepção anterior ao raciocínio sistemático, anterior a qualquer
teoria. Seguindo o raciocínio de Sowell, “Uma visão é nossa
percepção de como o mundo funciona”, sendo que ela pode variar,
no tempo e no espaço, de sujeito para sujeito, 44 mas também pode
ser agremiada a partir de simplificações ideias, ou construídas a

43 Cf. SOWELL, 2011, p. 18-19.


44 “há tantas visões quanto seres humanos” (SOWELL, 2011, p. 20).

120
partir de critérios mais objetivos. De todo modo, “uma visão tem
um sentido de causalidade”45 e o autor dessa obra cujo subtítulo é
“Origens ideológicas das lutas políticas” avisa que “o objetivo deste
livro será precisamente examinar as visões sociais basilares”.
Ao organizar essas visões basilares, Thomas Sowell parte
um raciocínio dual e de um levantamento de dados – vislumbrável
a partir, sobretudo, dos intelectuais mencionados ao longo do livro
– marcado pelo mundo moderno ocidental, compreendido aqui no
sentido de um contexto iniciado mais ou menos com o Iluminismo
e presente ainda em nossos dias. Essas visões de mundo possuem
causalidades diferentes, podem ser analisadas a partir de tradições
intelectuais e implicam em escolhas muito diversas em campos
como “a natureza moral e mental do homem”46, “conhecimento de
instituições”47, o tempo, as abstrações e “as ramificações dessas
visões conflitantes estendem-se a decisões econômicas, judiciais,
militares, filosóficas e políticas”48. De um lado, a visão
“constrained” de mundo, traduzida como “restrita”, mas que
literalmente poderia ser “constrangida”, ou “restritiva”; o homem é
visto como essencialmente egoísta; nesse ponto, existe uma visão
trágica da condição humana; há preferência pela tradição, em
diversos aspectos, como no sentido de uma justiça que valorizaria a
common low; um representante desse polo é economista liberal
Adam Smith, mas a tradição é longa e poderia ser vista em outros

45 SOWELL, 2011, p. 20.


46 SOWELL, 2011, p. 23.
47 SOWELL, 2011, p. 23-24.
48 SOWELL, 2011, p. 24.

121
nomes como Thomas Hobbes; aqui ainda se encontram pontos
como a racionalidade, a liberdade, a maturidade, o gosto pelo
clássico, o materialismo, o Estado mínimo; uma tendência à
preocupação com os perigos de uma desigualdade de poder; o mais
fundamental, em termos morais, para a visão restritiva é a
fidelidade do sujeito ao seu papel na vida; além disso, desse lado está
a confiança em processos sociais evoluídos historicamente, a
tentativa de manter uma determinada ordem. Do outro lado, a
visão “unconstrained” de mundo, traduzida como “irrestrita”, mas
que talvez ficasse melhor como irrestritiva”; o homem é tratado
como essencialmente bom; contém, esse outro lado do conflito,
uma visão utópica do homem; há preferência pela inovação, como
no sentido de uma ruptura com as amarras sociais que impediriam
a melhora do próprio homem; um primeiro representante desse
polo é o anarquista William Godwin, podendo ainda ser notado
essa visão de mundo em Jean-Jacques Rousseau; aqui também estão
elementos como a irracionalidade, a justiça, a juventude, o gosto
pelo romântico, o idealismo, o Estado largo; uma tendência à
preocupação com a promoção da igualdade econômica e social; em
termos morais, alguém com a visão irrestritiva recusa os
estereótipos dos papeis sociais, tendendo a planificar, igualar,
diferenças como pai e filho, ou aluno e professor; além disso, desse
lado está a engenharia social no sentido de tentativas de melhora do
sistema, a procura do progresso.

122
Embora opere em base dicotômica, Thomas Sowell
compreende que existem pontos de vista híbridos, entre eles
estariam o utilitarismo e o marxismo. Por exemplo, Jeremy
Bentham, de acordo com Sowell, considera que o homem é
essencialmente egoísta – posicionamento exemplarmente restritivo,
portanto –, contudo, ainda assim, o homem poderia organizar a
sociedade de maneia a alcançar benefícios ao maior número de
pessoas possíveis – havendo nisso um posicionamento irrestritivo.
Outro utilitarista, John Stuart Mill, também se encontra em um
ângulo que mescla as duas visões de mundo expostas por Sowell.
De acordo com este pensador, Mill afirma que as leis são feitas e
não desenvolvidas, lembrando, assim ao ponto de vista irrestritivo;
porém, se as leis não estiverem de acordo com as tradições e os
costumes de um povo elas serão ineficientes, ou seja, Mill leva em
conta, também, a concepção conservadora da visão restritiva. Karl
Marx, por sua vez, elabora uma reflexão que caminha do restritivo
para o irrestritivo: de certa maneira, as condições históricas
configuraram a vida social, os processos de produção, de tal forma
que em sua análise histórica Marx leva em conta o papel da
tradição, bem como o aspecto trágico da condição humana e a
importância das questões materiais. No entanto, o autor d' O
Capital procura elaborar um sistema de pensamento que uma visa a
ruptura, um tanto otimista, com as condições historicamente
determinadas, de maneira a permitir aos homens condições mais
igualitárias de existência.

123
Em suma, Thomas Sowell, caracterizando o conflito de
visões, não deixa de mostrar a possibilidade de hibridismos:
politicamente a mescla da visão irrestritiva com a restritiva é
vislumbrável em alguns momentos. Os desejos de liberdade
individual e de igualdade social podem ser conciliados em alguma
medida. Assim como Álvares de Azevedo, em sua Lira dos vinte
anos, conciliou as estéticas de Ariel e de Calibã.
Em seu livro de poesias, publicado pouco depois de seu
precoce falecimento, Álvares de Azevedo elaborou uma poética
também marcada por dualidades. No “Prefácio” à “Segunda parte”
de Lira dos vinte anos, o principal poeta da segunda geração do
Romantismo brasileiro procurou desenvolver uma forma literária
por ele chamada de binomia:

(1) Cuidado, leitor, ao voltar esta página!


(2) Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico (...).
(3) Quase que depois de Ariel esbarramos em Calibã.
(4) A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se
numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de
um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram
este livro, verdadeira medalha de duas faces.
(...)
(11) Depois a doença da vida, que não dá ao mundo
objetivo cores tão azuladas como o nome britânico de
blue devils, descarna e injeta de fel cada vez mais o coração.
Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa,
vem a sátira que morde.

Abrindo a “Segunda parte” do livro, Álvares de Azevedo está


contrapondo dois “mundos”: antes estava Ariel, visionário e
platônico; agora aparece Calibã, que injeta fel e sátira. Os

124
personagens retirados de A tempestade, de William Shakespeare,
expressam a binomia azevediana.
De certa maneira, Álvares de Azevedo está contrastando
duas visões de mundo. Não exatamente uma restritiva e outra
irrestritiva, para trazer aqui a dualidade proposta por Thomas
Sowell. No entanto, se os polos não são exatamente os mesmos, a
ideia que os organiza, o conceito de visão de mundo, talvez ajude a
compreende a dualidade existente entre Ariel e Calibã, na
arquitetura de Lira dos vinte anos. O poeta ultrarromântico cria
tipos ideais para expressar a poética existente em cada uma das
partes de seu livro. Assim, a face Ariel seria essencialmente boa,
conteria certa utopia, idealismo, puerilidade; a face Calibã, por sua
vez, teria certa visão trágica do homem, guardaria uma ironia
mordaz, a utopia é desfeita em realidade, o idealismo é desfeito em
galhofa, em materialismo, a puerilidade perderia suas asas do ouro e
encontraria a maturidade sarcástica.
Em termos mais propriamente formais, as faces Ariel e
Calibã também se distanciam, em alguma medida. Em termos de
métrica, a “Primeira parte” possui maior variabilidade do que a
“Segunda”, a qual prefere o decassílabo, embora oscile entre sáfico,
heroico e tenso. Quanto à rima, ela é mais frequente na flauta doce
de Ariel do que no contrabaixo de Calibã, não sendo descabido
lembrar que sob a égide do escravo disforme há uma linguagem
mais prosaica na elaboração dos versos. As estrofes, além disso, são
mais tradicionais no primeiro, sendo frequentes, por exemplo,

125
quadras e sextilhas, enquanto o segundo realiza poemas com
estrofes “muito incomuns” para a tradição da lírica brasileira,
algumas efetivamente longas. Outros aspectos também diferenciam
as duas partes do livro: a mulher mais idealizada de um lado; a
mulher mais palpável do outro; as imagens do sagrado são tratadas
de acordo com uma moral cristã, sob os domínios de Ariel;
enquanto sob os domínio de Calibã o sagrado sofre constante
blasfêmia.
No entanto, assim como Thomas Sowell contrapôs as
visões irrestritiva e restritiva, mas revelou a presença de hibridismos
possíveis no marxismo e no utilitarismo, Álvares de Azevedo
desenvolveu uma única lira com duas cordas, uma única medalha
com duas faces, um único cérebro com duas almas. Nas cavernas
cerebrais do sujeito-lírico azevediano, Ariel e Calibã possuem
pontos comuns: Azevedo não ficou a criar apenas polarizações, mas
buscou mostrar que as sínteses também foram almejadas. É quase
depois de um que se encontra o outro, e não inteiramente depois.
Além disso, nos mesmos lábios em que havia o riso de Ariel, o
sujeito-lírico colocou as mordidas de Calibã. Formalmente, Lira
dos vinte anos também apresenta os seus hibridismos. Por exemplo,
quanto ao metro, há decassílabos na “Primeira” e na “Segunda”
partes, embora seja mais comum nesta. A rima, por sua vez, apesar
de ser mais comum nas poesias da face Ariel, também aparece na
face Calibã. Assim como a mulher, que é, no labo B do vinil Lira,
tipicamente materializada, ela aparece, possivelmente, em contato

126
sexual no poema “Pálida, à luz da lâmpada sombria”, presente no
lado A do vinil. Dessa maneira, colocando em uma parte o que seria
marca típica da outra, Lira dos vinte anos recusa uma visão de
mundo apenas conflitante. Os tensionamentos e as harmonizações
convivem, as rupturas e as continuidades entre cada um dos lados
das cavernas do cérebro do eu-lírico.
Assim, Álvares de Azevedo e Thomas Sowell, criadores de
pensamentos compostos por arquiteturas polarizadas, não deixam
de notar no horizonte, estético e/ou político-social, a possibilidade
de hibridismos. Visões de mundo que não se reduzem a tipos
planos, mas que desenvolvem estruturas capazes de conter um
elemento e seu contrário. Nesse momento – repleto de escombros
de outras épocas – em que a sociedade brasileira se mostra
excessivamente polarizada, a mim me pareceu oportuno vislumbrar
hibridismos possíveis, ainda que, em certa medida, utópicos.

REFERÊNCIAS:

ÁLVARES DE AZEVEDO, Manuel Antônio. Obra completa:


volume único. Org. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
2000.

SOWELL, Thomas. Conflito de visões: origens ideológicas das


lutas políticas. Tradução de Margarida Maria Garcia Lamego. São
Paulo: É Realizações, 2011.

127
_______________. Os intelectuais e a sociedade. Tradução de
Maurício Righi. São Paulo: É Reazliações, 2011.

WEBER, Max. Sobre a teoria das ciências sociais . Tradução de


Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Moraes, 1991.

128
Literatura e campo – A exceção dentro da exceção
na literatura de Rubem Fonseca

Zacarias E. Silva49

RESUMO: O seguinte trabalho visa redimensionar o conceito de


campo, conforme estruturado pelo pensador Giorgio Agamben,
em relação à literatura, sobretudo àquela produzida sob situações
políticas de exceção ou produzidas como exceção no interior de um
estado de exceção. Para tanto, o artigo em questão usará como
exemplo contos do escritor Rubem Fonseca produzidos durante o
período da ditadura militar brasileira, nos quais se pode perceber,
através de sua linguagem, de seu despojamento e dos temas tratados
cruamente, uma forma de resistência, de sublevação, de politização
da própria literatura no interior de um estado policialesco. A
literatura, bem como tudo no contexto de um estado de exceção, a
nosso ver, se torna um instrumento biopolítico, uma vez que é a
própria vida humana e sua política, que se vêem colocadas em
questão. Assim o campo, conceito de espaço politicamente
delimitado no qual se percebe a existência de uma “zona cinzenta”
ou de um lugar de exceção à lei vigente, se torna o espaço próprio
de uma literatura que o tenta figurar e/ou se colocar em seu lugar.

PALAVRAS-CHAVE: Biopolítica; Campo; Estado de exceção.

49 Mestre em Teoria Literária – UFMG: zackedsilva@gmail.com

129
VIOLÊNCIA LITERÁRIA

Não se fazem mais cimitarras como antigamente


Eu sou uma hecatombe
Não foi Deus nem o Diabo
Que me fez um vingador
Fui eu mesmo
Eu sou o Homem-Pênis
Eu sou o Cobrador.

Rubem Fonseca

A cena se desenrola numa praia deserta próxima à Barra da


Tijuca em plena madrugada. Um carro está parado com os faróis
acesos enquanto três corpos se movimentam de forma pouco
sincronizada. Um homem de fraque estende sua carteira para
outro, enquanto uma mulher num longo vestido azul se mantém
próxima de ambos, incerta, amedrontada. Um dos homens segura
um revólver com um silenciador em uma das mãos e um facão na
outra. Um observador privilegiado, que pudesse ver e ouvir a cena,
perceberia que se trata de um assalto, ou coisa pior. No caso, coisa
um tanto pior. O homem de fraque, com um olhar suplicante diz:
“Nós não lhe fizemos nada” e tem apenas silêncio e desprezo como
resposta durante segundos que devem se passar como milênios para
aquele casal que se encontra agora nas mão desse homem que
nunca viram. “Ela está grávida, vai ser nosso primeiro filho”,
arremata o homem de fraque e essa parece ser a deixa para a ação do
outro. Nosso observador veria o homem com o revólver e o facão
fazer mira no lugar onde deveria estar o umbigo da mulher e
desferir, imediatamente um tiro, na tentativa de ceifar,

130
separadamente, a vida do feto antes de tirar a da mãe com um tiro
na têmpora segundos depois. Veria o homem de fraque parado,
segurando sua carteira à frente, os olhos incertos, brilhando, se
enchendo de lágrimas. Veria a carteira ser arrebatada de sua mão e
ser jogada para o alto, descrevendo uma parábola fechada e sendo
chutada para bem longe, antes de tocar o solo, pela perna esquerda
do homem com o revólver.
A cena fica estagnada neste momento. Os faróis do carro
iluminam as duas pessoas restantes. O homem do revólver amarra
os braços e as pernas do outro, retira a gravata borboleta, dobra o
colarinho e ordena que ele se ajoelhe e curve a cabeça. Nesse
momento entra em cena o facão. Erguendo-o alto, o homem
golpeia o pescoço do outro, que se debate e continua sendo
golpeado até que, após vários golpes, sua cabeça é finalmente
arrancada e cai suavemente sobre a areia. O homem com o revólver
e o facão grita, um uivo selvagem, comprido e forte, para que os
bichos tremessem e saíssem da frente. Isto é o grito do Cobrador,
aquele que optou por cobrar à sociedade aquilo que esta lhe deve e,
ela lhe deve muito: xarope, meia, cinema, filé-mignon, namorada,
aparelho de som, sanduíche de mortadela, respeito, sorvete, bola de
futebol, comida, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes.
O homem conhecido apenas como o Cobrador é o
personagem principal do conto homônimo do escritor Rubem
Fonseca, publicado no livro de mesmo nome no ano de 1979. O
conto versa sobre a figura do Cobrador, que, violentamente, se

131
impõe o dever de cobrar da sociedade aquilo que acredita, em seu
desvario, que esta lhe deve. Seu temperamento violento com os
ricos e complacente para com seus iguais ou inferiores é a principal
marca de sua vingança. O Cobrador existe no universo ficcional da
cidade do Rio de Janeiro delineado por Fonseca, onde o erotismo e
a violência imperam acima e em detrimento de toda e qualquer
legislação que possa haver. Em suas condições de ficcionalidade,
desenrola-se um rol de personagens periféricos, sobre os quais
abate-se todo tipo de calamidades sociais e a quem faltam os itens
mais básicos para a sobrevivência e a dignidade.
É neste palco, nesta cidade baixa, que montam-se as mais
estapafúrdias cenas, tão improváveis quanto poderiam ser possíveis,
tão inverídicas quanto poderiam ser verossímeis. O Cobrador é
apenas mais um personagem desprovido do senso de humanidade
em favor de uma mágoa impessoal, de um ressentimento que beira
a insanidade. Nesse cenário, personagens marginais se misturam e
se confundem, numa troca permanente de papéis que visa, por
vezes, sua integração social ou a criação de uma sensação de
pertencimento ou de poder em uma sociedade que os rejeitou e os
mantêm, dia após dia, à sua margem, ainda que, inelutavelmente,
eles pertençam a ela. Peões que querem se sobressair em um jogo no
qual apenas cumprem uma missão secundária.
Assim, o Cobrador figura ao lado dos idosos de Onze de
Maio que se revoltam contra a situação degradante, semelhante a
um campo de concentração, em que se encontram no asilo e

132
ensaiam uma revolução, uma fuga que se acaba com uma conquista
menor; também ao lado dos assaltantes de Feliz Ano Novo, que
invadem uma festa da alta sociedade no fim de ano e roubam,
matam, estupram a seu bel prazer, com a naturalidade de quem não
mais se assusta com seus atos ignominiosos. Ainda podemos ver os
policiais de A Coleira do Cão em sua subida ao morro com o
intuito de desmascarar um bando responsável por várias mortes no
asfalto, mortes relacionadas ao tráfico e ao poder paralelo que reina
na favela.
Esse rol de personagens, essa sequência de situações saídas
de um pesadelo, formam um modelo de espaço ficcional ao qual
toda a obra de Rubem Fonseca pertence. Entendemos que toda
literatura é ficcional e que, consequentemente, os espaços que ela
cria também o são. Assim, o modelo virtual da cidade do Rio de
Janeiro construído na ficção de Fonseca, é um espaço aberto a todo
tipo de experiências, sobretudo àquelas ilegais ou moralmente não
aceitas pela sociedade e esse é um dos principais motivos em sua
literatura.

BIOPOLÍTICA E CAMPO

O campo configura-se na história da humanidade como o


espaço biopolítico por excelência. Embora sejam consolidados na
Segunda Grande Guerra, os campos (de prisioneiros, de

133
concentração, de refugiados) não são um produto exclusivo desse
momento, tendo já existido em função de outros problemas ou
conflitos e tendo sua existência continuada em um mundo que
ainda não resolveu, sequer, os conflitos iniciados pela forte
alteração na geopolítica global registrada na Segunda Guerra.
Baseado no potencial do campo enquanto espaço
virtualmente indefinido e passível de ser recriado em outras
situações, o pensador italiano Giorgio Agamben desenvolve um
conceito abrangente sobre esse espaço. O conceito de campo foi
forjado por Agamben em sua obra Homo Sacer, O poder soberano
e a vida nua I, publicado originalmente em 1995 e se erige a partir da
concepção de biopolítica forjada por Michel Foucault a partir de
seus estudos sobre a sexualidade, a loucura e as prisões, ou, mais
precisamente, sobre os momentos na história onde essas instâncias
se tornam uma preocupação ativa dos governos ou uma forma de
controle/resistência por parte da população. Ambos os conceitos
perpassam pela obra ficcional de Fonseca contextualizando-a como
uma instância biopolítica sob a égide da resistência aos abusos
cometidos em um estado de exceção e, fora do período da ditadura,
com uma maneira de confrontar o status quo de uma sociedade
pautada na ideologia liberal e valores morais cristãos, utilizando-se,
para tanto, do corpo, da sexualidade, da escatologia e da violência
como panos de fundo.
Para chegar ao conceito de campo, devemos antes, observar
as mudanças propostas por Foucault na definição da função social

134
do homem, que passam a ser parte integrante de sua vida. Para
Foucault (1988, p. 134) o homem é um animal biopolítico: “o
homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles:
um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem
moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em
questão”. A partir de um dado momento não haveria mais como
distinguir a vida natural do homem de sua vida política e, o simples
fato de estar vivo, passa a ser uma imersão no campo político, pois a
vida e a morte se tornam parte do jogo social. As instâncias vida,
morte, doença e sexualidade não apenas se tornam parte essencial
do jogo da política, como aparecem também nos papéis de moeda
de troca, mecanismos de contenção e de adestramento, tendo como
último patamar a morte. Toda vida, a partir dessa visão, é política,
está apta a ser utilizada e aplicada politicamente, pode ser
interrompida pelo policiamento da sociedade, será defendida e
manipulada. Ainda assim, de forma geral, o estado de exceção é o
estado latente da biopolítica e é nele que seus mecanismos parecem
melhor se adequar, por se tratar de um sistema no qual vigora uma
lei à parte, uma lei que está fora da legislação convencional, que se
dá paralelamente. Foucault (1988, p. 134) define assim a biopolítica:

Se pudéssemos chamar “bio-história” as pressões por meio


das quais os movimentos da vida e os processos da história
interferem entre si, deveríamos falar de “biopolítica” para
designar o que faz com que a vida e seus mecanismos
entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-
saber um agente de transformação da vida humana: não é
que a vida tenha sido exaustivamente integrada em

135
técnicas que a dominem e gerem; ela lhes escapa
continuamente.

A vida que escapa continuamente ao controle político,


ainda assim, é parte integrante dessa sociedade que faz dela uma
instância pertencente ao campo político. O que no estado de
exceção parece se tentar cercear é exatamente essa fuga contínua da
vida, e assim, a necessidade de controle se torna mais premente em
tais situações, e é nesse contexto (o da exceção prolongada ou
continuada) que florescem espaços como campos de concentração,
embora, segundo a visão de Agamben, o estado de exceção formaria
por si só uma espécie de campo.
O homem biopolítico encontra-se, perenemente, no limite
e sua sociedade encontra-se no “limiar da modernidade biológica” a
partir do “momento em que a espécie entra como algo em jogo em
suas próprias estratégias políticas” (FOUCAULT, 1988, p. 134). Esse
é o contexto da política moderna ocidental onde o humano, a saúde
coletiva, a sexualidade e o corpo de maneira geral far-se-ão, ao
mesmo tempo, sujeitos e objetos de um sistema que existe em sua
função, em função do biológico num campo mais vasto. Trata-se de
permitir e conservar a vida num jogo no qual o estado de direito
tem a premissa final das armas que lhe são outorgadas: a violência e,
em último caso, a morte, que são conciliadas pelo sistema jurídico,
mediador entre o cidadão e o estado e detentor da palavra final
sobre a vida e a morte em nome do segundo.

136
Nesse contexto biopolítico, o homem se torna matéria de
suma importância e, paradoxalmente, descartável. A inclusão do
contexto biológico na política tem sua repercussão mais intensa,
talvez, na existência dos campos de extermínio da Segunda Grande
Guerra, mas não somente neles. Os campos são a concretização de
uma política pautada na exceção, em fatores biológicos e
hereditários e na instituição da eutanásia como um dever do estado
bem como mecanismo de limpeza racial e de redução populacional.
Haja vista que os primeiros projetos de eutanásia do partido
Nazista não tiveram os judeus como objeto e sim, idosos, doentes
incuráveis e inválidos.
Se a vida se torna parte da política, é ela que vai se fazer
sentir nas lutas contra os desmandos do estado ou na aceitação das
legislações que se batem contra ela. O homem hodierno luta por
direitos inalienáveis como o direito à alimentação, à saúde e à
felicidade que são complementos diretos da instância vida. Se a vida
se torna parte da política, sua instância principal, cada ato humano
se torna um ato político. O corpo se torna o objeto político por
excelência, daí sua grande visibilidade no contexto moderno, daí
sua exploração pelos escritores, pelos artistas, pelos cientistas a fim
de descobrir tudo o que for possível sobre ele, mapeá-lo, dissecá-lo,
vigiá-lo e, em caso de necessidade, encarcerá-lo e finalmente retirar
dele o direito à vida. Assim o cidadão pode ser mensurado, seu
corpo se torna parte da estatística social, seu trabalho passa a ser
medido, sua produção deve ser conduzida, sua vida sexual precisa

137
ser vigiada e controlada e seu estatuto de ser vivente não pode ser
contestado, menos ainda seu papel político.
O pensador Giorgio Agamben parte dessa diferenciação
entre vida natural (ou vida nua) e vida política para demonstrar sua
interpretação da biopolítica a partir do próprio conceito forjado
por Foucault. Para Agamben a biopolítica não apenas é uma chave
importante para a leitura do mundo contemporâneo bem como
uma marca indelével dos mecanismos de extermínio adotados na
Segunda Grande Guerra.
A vida humana enquanto instância política redefine-se
constantemente diante das modificações que vem sofrendo a
comunidade humana. Agamben retoma os termos gregos para vida,
bios e zoé como parte da definição de biopolítica, nos quais zoé
representa a vida natural, a vida animal e bios dá forma à vida
política do cidadão. O homem é um animal que possui, desde a
antiguidade uma existência passível de ser a vida da pólis, a vida
política em si. Segundo Agamben (2012, p. 127) “uma das
características essenciais da biopolítica moderna […] é a sua
necessidade de redefinir continuamente, na vida, o limiar que
articula e separa aquilo que está dentro daquilo que está fora” e, é
esse jogo de dentro e fora, de uma legislação que se pauta, por vezes,
na sua exceção, na existência de um fora (que é, muitas vezes,
previsto dentro dela mesma) que permite a criação do campo. “O
campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a
tornar-se regra” (AGAMBEN, 2012, p. 164) e é, ainda, espaço

138
essencialmente biopolítico, é a zona cinzenta na qual há a supressão
da lei vigente em detrimento de uma exceção permanente. Trata-se
da exceção absoluta.
Segundo Agamben (2012, p. 165-166),

É preciso refletir sobre o estatuto paradoxal do campo


enquanto espaço de exceção: ele é um pedaço de território
que é colocado fora do ordenamento jurídico normal, mas
não é, por causa disso, simplesmente um espaço externo.
Aquilo que nele é excluído é, segundo o significado
etimológico do termo exceção, capturado fora, incluído
através de sua própria exclusão. Mas aquilo que, deste
modo, é antes de tudo capturado no ordenamento é o
próprio estado de exceção. Na medida em que o estado de
exceção é, de fato, desejado, ele inaugura um novo
paradigma jurídico-político, no qual a norma se torna
indiscernível da exceção.

O campo de Agamben é uma parte do território que está,


ao mesmo tempo, dentro e fora do estado de direito, da
competência da jurisdição. Ele se faz através da exceção mas não
pode se desligar completamente do estado no qual nasce e do qual é
um espelho inverso. Ele é a zona cinzenta biopolítica, na qual a
justiça, o direito, a jurisdição e todo seu aparato perdem seu sentido
e, ali, naquele espaço definido, não se pode condenar, ainda que
estejam todos condenados.
Mas, além desse campo produzido pela Alemanha nazista,
com suas delimitações, suas cercas eletrificadas e fornos, suas
centenas de milhares de condenados à morte, Agamben aponta pra
uma resistência, uma continuação dessa instância no mundo
moderno, e defende que a essência do campo continua sento criada

139
e materializada em espaços e estados que se colocam no âmbito da
exceção:

...se a essência do campo consiste na materialização do


estado de exceção e na consequente criação de um espaço
em que a vida nua e a norma entram em um limiar de
indistinção, deveremos admitir, então, que nos
encontramos virtualmente na presença de um campo toda
vez que é criada uma tal estrutura, independentemente da
natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer que
seja sua denominação ou topografia específica...
(AGAMBEN, 2012, p. 169)

Assim, a instância campo tende a ressurgir, ainda que virtualmente,


no mundo contemporâneo em todos os lugares nos quais há uma
supressão do estado de direito em favor de um estado de exceção
permanente. Não conseguimos ainda, nos livrarmos de sua
estrutura, da possibilidade de seu retorno em campos de refugiados
ou em prisões ou, simplesmente, nas periferias, favelas e cidades
satélites.

O nascimento do campo em nosso tempo surge então,


nesta perspectiva, como um evento que marca de modo
decisivo o próprio espaço político da modernidade. Ele se
produz no ponto em que o sistema do Estado-nação
moderno se fundava sobre o nexo funcional entre uma
determinada localização (o território) e um determinado
ordenamento (o Estado), mediado por regras automáticas
de inscrição da vida (o nascimento ou nação) entra em
crise duradoura, o Estado decide assumir diretamente
entre as próprias funções os cuidados da vida biológica da
nação. (AGAMBEN, 2012, p. 170)

Dessa maneira a marca do campo está inserida na


modernidade e sua reestruturação recorrente se torna algo do qual

140
não podemos mais nos livrar. Parece-nos claro que ao associar a
estrutura virtual do campo a espaços da modernidade, Agamben
lança um alerta sobre a resistência de um estado de exceção
permanente que está não apenas escondido nas sombras do estado
de direito, mas também emerge às claras em muitas situações-limite,
aflorando em sua existência exterior e, ao mesmo tempo, interna a
toda espécie de estado de direito. O estado moderno não suprimiu
o campo, apenas o internalizou, trouxe-o para dentro de seu
modelo, por vezes disfarçado em um movimento legal, por vezes,
descaradamente claro em sua exceção às leis vigentes.
O campo é um modelo virtual e permanente de criação de
exceções. Segundo a definição de Agamben (2012, p. 171) “o campo,
como localização deslocante é a matriz oculta da política em que
ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer através de todas
as suas metamorfoses, nas zones d'attente de nossos aeroportos bem
como em certas periferias de nossas cidades.” O campo tem uma
presença virtual demarcada em nosso tempo e, cada vez mais, se faz
sentir presente nos milhares de refugiados de conflitos no Oriente
Médio e na África, na população palestina ou nas grandes
populações carcerárias do mundo. São campos erguidos, sem cercas
eletrificadas, sem fornos, sem lei e sem perspectivas.

141
CONCLUSÃO

Nossa proposta é que esse espaço virtual do qual Agamben


nos fala, possa também ser estendido à literatura, ou, ao menos, a
uma certa vertente literária. Assim, pretendemos que a literatura
produzida por Rubem Fonseca forma uma espécie de campo, pois
esta circula, quase todo o tempo, num espaço de exceção.
Entendemos que toda literatura é ficcional e como tal, percebemos
a implicação que tal conceito teria sobre um espaço de existência
virtual. É, justamente, a virtualidade da existência do campo, sua
presença ausente de toda materialidade que torna possível sua
existência conceitual dentro da obra ficcional. O campo de
Agamben é, em última instância, uma entidade virtual que coexiste
em vários pontos, que se recria tanto no espaço social quanto na
virtualidade da ficção, ou seja, o campo agambeniano pode ser
recriado também na literatura e esta pode existir como um estado
permanente de exceção, no qual a lei do estado de direito é
subvertida em sua função estético-política na sociedade.
Isto dito, é preciso lembrar que, parte da ficção de Rubem
Fonseca se articula dentro de um estado de exceção, que é o período
da ditadura civil-militar brasileira, entre 1964 e 1985, constituindo
assim um estado ficcional de exceção dentro de estado social de
exceção, numa espécie de mise-en-abîme que, nem por isso, se
perde de seu caminho biopolítico. Podemos nos utilizar, como
bons exemplos, dos contos O cobrador ou Feliz ano novo nos quais

142
imperam a violência desmedida, e que ignoram por completo a lei
de exceção vigente de no país. Esse tipo de violência surge como
parte da pesquisa literária de alguns autores.

Não há como negar que a violência assume o papel de


protagonista destacada da ficção brasileira urbana a partir
dos anos 60 do século XX, principalmente durante a
ditadura militar, com a introdução do país no circuito do
capitalismo avançado. A industrialização crescente desses
anos vai – em última instância – dar força à ficção centrada
na vida dos grandes centros, que incham e se deterioram,
daí a ênfase em todos os problemas sociais e existenciais
decorrentes, entre eles a violência ascendente.
(PELEGRINI, 2005, p. 137)

A violência é endêmica, mas não apenas da literatura. As


mudanças na sociedade desde o princípio do século 20, a
modernização e a industrialização, a passagem de uma sociedade
rural a um crescimento urbano desordenado e descontrolado
cobram, finalmente, seu preço. O Rio de Janeiro, cidade cartão
postal do Brasil é também a cidade das grandes favelas, berço do
tráfico de drogas e do crime organizado, bem como da
malandragem e de uma violência urbana exacerbada. Assim, a
nascente literatura urbana não poderia deixar de abranger os
aspectos dessa violência, tão distante e, ao mesmo tempo, tão
arraigada na estrutura da cidade. Nesse novo contexto urbano e,
sobretudo, no novíssimo contexto ditatorial, a literatura de Rubem
Fonseca não é a única que aborda a violência, o sexo e o corpo.
Durante os anos iniciais da ditadura militar brasileira, a geração pós
64 se mostra, em muitos casos, ciente de seu papel (bio)político de

143
resistência frente ao modelo de exceção no qual o país havia sido
mergulhado: Segundo Karl Schollhammer (2000, p. 242):

a prosa agressiva dos anos 60 e 70 é bastante representativa


do momento histórico da “geração pós-64”, formada por
escritores como Rubem Fonseca, um momento marcado
pelo autoritarismo político cuja representação literária
parece demandar a violência como um ingrediente
irrecusável. No entendimento do crítico, tal fato ocorria
“por razões óbvias, com o propósito principal de
denunciar a repressão exercida pelos agentes de segurança
do Estado.”

Essa temática da violência se mistura, no mais das vezes,


com a temática também recorrente do corpo, da pornografia, da
sexualidade, todas como forma de transgredir as regras cada vez
mais fortemente censuradas do governo de exceção. Um exemplo
do uso consciente das formas de violência e de domínio do corpo se
mostra no conto Intestino Grosso, publicado no livro intitulado
Feliz Ano Novo de 1975, que simula uma entrevista entre um
repórter e um autor, cuja voz é considerada por alguns críticos
como se fosse a voz do próprio autor empírico do conto, Rubem
Fonseca, travestida em ficção, na qual este afirma, num
determinado ponto:

No meu livro Intestino Grosso eu digo que, para entender


a natureza humana, é preciso que todos os artistas
desexcomunguem o corpo e a mente, investiguem, da
maneira que só nós sabemos fazer, ao contrário dos
cientistas, as ainda secretas e obscuras relações entre o
corpo e a mente, esmiúcem o funcionamento do animal
em todas as suas interações. (FONSECA, 1975, p. 155)

144
Segundo essa perspectiva, cabe ao escritor a exploração do
mundo, do corpo e da sexualidade de uma maneira que lhe é
peculiar e que pertence apenas a ele ou à sua literatura. Não haveria
na ciência um tipo de exploração que se pudesse comparar à
liberdade do artista de dar a ver o mundo aos seus semelhantes. No
mundo contemporâneo, explorar a sexualidade e o corpo é uma
atitude política, da mesma maneira que explorar a violência que se
desenvolve nos grandes centros urbanos.
O que o autor chama de “pornografia” se torna o cerne de
uma visão mais ampla da sociedade. No mesmo conto, o seguinte
diálogo se passa: “Já ouvi acusarem você de escritor pornográfico.
Você é? Sou, os meus livros estão cheios de miseráveis sem dentes”
(FONSECA, 1975, p. 147). Observamos por esse trecho, que a
pornografia da qual o autor é acusado, se torna, na verdade, uma
maneira de explorar outros quesitos da sociedade. A marginália
“sem dentes”, a violência, a pornografia em si, são fatores políticos
em uma sociedade na qual a própria política é assunto tabu, por
causa de seu regime repressivo, por causa dos sequestros e
desaparecimentos, bem como dos casos de tortura e perda de
cidadanias promovidas pelo regime.
O pensador Michel Foucault, em suas pesquisas, designa
um trajeto que perpassa pela história da loucura, pela
transformação do cidadão em um corpo que deve ser vigiado e
punido e também pela história da sexualidade, entre outros pontos.
Segundo sua a perspectiva: “[o sexo] de um lado, faz parte das

145
disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e distribuição das
forças, ajustamento e economia das energias. Do outro, o sexo
pertence à regulação das populações, por todos os efeitos globais
que induz” (FOULCAULT, 1988, p. 136), assim, a sexualidade se
torna parte inerente ao comportamento político na
contemporaneidade, e, como tal, torna-se também uma figura de
resistência, uma expressão do inconformismo da qual muitos
autores vão se apropriar, conforme afirma o entrevistado de
Intestino Grosso, ainda sobre a pornografia:

Uma sábia organização social deveria impedir que fossem


reprimidos esses comunicativos caminhos de alívio vicário
e de redução da tensão. As alternativas para a pornografia
são a doença mental, a violência, a bomba. Deveria ser
criado o Dia Nacional do Palavrão. Outro perigo na
repressão da chamada pornografia é que tal atitude tende a
justificar e perpetuar a censura. (FONSECA, 1975, p. 152)

Esse conceito particular de pornografia, tanto pode estar


nas cenas eróticas espalhadas pelos escritos, como na miséria
retratada pela carência mais básica exemplificada pela falta de
dentes, de água ou de escolaridade e, sobretudo, nas cenas
escatológicas e violentas. Há, para o autor, em todos esses tipos de
cena, maior ou menor grau de pornografia e, a partir deste ponto de
vista, ela se torna o principal motivo em sua ficção, sendo
explorada, analisada em seus limites, e levada aos seus extremos.
Essa exploração da pornografia enquanto objeto político parece se
tornar uma constante na contemporaneidade:

146
O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida
da espécie. Servimo-nos dele como matriz das disciplinas e
como princípio das regulações. É por isso que, no século
XIX, a sexualidade foi esmiuçada em cada existência, nos
seus mínimos detalhes; foi desencavada nas condutas,
perseguida nos sonhos, suspeitada por trás das mínimas
loucuras, seguida até os primeiros anos da infância;
tornou-se a chave da individualidade: ao mesmo tempo, o
que permite analisá-la e o que torna possível constituí-la.
Mas vêmo-la também tornar-se tema de operações
políticas, de intervenções econômicas […], de campanhas
ideológicas de moralização ou de responsabilização...
(FOUCAULT, 1988, p. 137)

A pornografia (o sexo, a miséria, a corrupção, o corpo, o


crime, a violência) transforma-se em objeto, tanto de controle, por
parte de um estado de exceção, quanto de resistência por parte dos
produtores de cultura. Esse objeto, elevado ao nível político, se
torna parte imprescindível do jogo biopolítico. Se a sexualidade foi
esmiuçada pelos mecanismos de poder, também o foi, mais
livremente, por uma gama de artistas plásticos e escritores.
No caso específico da obra de Rubem Fonseca produzida
no período ditatorial, concluímos que a pornografia – que segundo
sua visão, engloba o sexo, a escatologia, a violência generalizada, a
miséria, o corpo e morte – toma lugar da lei em seu espaço ficcional
urbano, gerando neste, uma suspensão de toda e qualquer
legislação vigente fora da ficcionalidade. Podemos, então, ler esse
recorte da obra de Fonseca sob a perspectiva da criação de um
campo.

147
A obra-campo de Rubem Fonseca, escrita na forma de uma
ficção realista, abre um espaço ficcional que se posiciona externa à
legislação, que, nesse caso, seria a de um estado de exceção. No
campo de Fonseca, tudo é possível, desde a violência mais extrema
até as paixões arrasadoras por prostitutas; desde assassinatos
motivados por dinheiro ou decapitações sem motivo aparente, e,
em nenhum caso, se apontam penalidades. A obra-campo de
Fonseca é uma forma de resistência ao modelo ditatorial imposto ao
país e também uma resposta às questões contemporâneas de posse
do próprio corpo como objeto biopolítico.
É em função de sua ficção formatar-se como um tipo
realismo que nela se inscreve a possibilidade de sua leitura sob a
ótica do campo. Toda literatura é ficção, mas nem toda a obra de
ficção realista parte da premissa da criação de uma nova forma de
lei. Na ficção sci-fi ou em obras distópicas (que têm seu referencial
realista) as leis da realidade podem ser completamente distorcidas,
(inclusive leis físicas imutáveis como a gravidade ou a existência de
vida depois da morte). Acreditamos assim que, na ficção tudo é
possível, mas, nem por isso, necessariamente a uma obra ficcional
figurará o conceito de campo por si só, apenas por ser ficcional.
A existência de uma obra-campo, na qual inscrevemos o
trabalho de Rubem Fonseca, deve ter por característica a opção de,
dentro de um padrão de realismo, se manifestar através de uma
exceção à legislação vigente ou através da supressão das leis, de
forma a se criar um estado em suspensão, uma espécie de zona

148
cinzenta na qual tudo é possível sem ser moralmente condenável. É
em favor de uma ordem diferente, e da resistência ao status quo que
a obra de Rubem Fonseca valoriza a pornografia, que se dispõe
como única lei possível dentro das cercas de sua literatura.

REFERÊNCIAS:

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Trad.


ASSMANN, Selvino J. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
_______. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Trad.
HONESKO, Vinícius de Castro. Chapecó: Ed. Argos, 2009.
_______. Homo Sacer O poder soberano e a vida nua I. Trad.
BURIGO, H. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2012.
FONSECA, Rubem. A coleira do cão. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira, 1965.

_______. Lúcia McCartney. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,


1967.

_______. Feliz ano novo. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1975.

_______. O Cobrador. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1979.

FOUCAULT, Michel. História da loucura. Trad. NETTO, J. T. C.


São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978.
_______. História da sexualidade 1: A vontade de Saber. Trad.
ALBUQUERQUE, M. T. C; ALBUQUERQUE, J. A. G. Rio de
Janeiro: Ed. Graal, 1988.

149
_______. Nascimento da Biopolítica. Trad. BRANDÃO, E. São
Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008.

PELLEGRINI, Tânia. As vozes da violência na cultura brasileira


contemporânea. Crítica Marxista. São Paulo: Ed. Revan, v.1, n.21,
2005, p.132-153;

SCHOLHAMMER, Karl Eric. Os cenários urbanos da violência na


literatura brasileira. In: Pereira, Carlos Alberto M. (org.)
Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

150
Pós-violência, pode a obra de arte (r)existir?

Flávia Almeida Vieira Resende50

RESUMO: A presente comunicação busca acercar-se do tema do


Seminário para, justamente, apontar reflexões acerca das
possibilidades e impossibilidades de a estética, de forma mais
ampla, estabelecer um diálogo com a política. Especificamente, nos
questionamos sobre a arte realizada em tempos de violência e pós-
violência, no contexto do Peru nos anos finais do conflito armado
interno (1980-2000). Propomo-nos partir das reflexões realizadas
por Victor Vich acerca das performances pós-conflito, como Lava
la bandera (2000) e Pon la basura en la basura (2000), e acercarmo-
nos do teatro feito pelo grupo Yuyachkani, em trabalhos
denominados por Miguel Rubio, diretor do grupo, como
“performances políticas”, como Adiós Ayacucho (1990), Antígona
(2000) e Sin título – técnica mixta (2004). Nesse contexto,
interessam-nos ideias como as de “efetividade” e “papel” da obra de
arte, limiar entre realidade e ficção, performatividade e ativismo
político, e arte, memória e testemunho. Finalmente, poderíamos
nos questionar: o que pode a obra de arte nesses contextos? Ou: o
que podem esses contextos sobre as obras de arte? Pode a obra de
arte resistir – e existir?

PALAVRAS-CHAVE: Conflito armado interno no Peru. Arte e


violência. Performances políticas.

50 Doutoranda em Literaturas Modernas e Contemporâneas Pós-Lit –FALE / UFMG.


Bolsista CAPES.

151
Gostaria de começar esta comunicação chamando a atenção
para o título que proponho. Primeiro, porque ele é composto de
uma pergunta, que na verdade são duas: após um contexto de
violência, a obra de arte ainda pode existir? E, se sim, pode ela
resistir, ser uma obra de “resistência”? Trago já no título essas
inquietações porque é o que eu gostaria de apresentar aqui hoje:
mais perguntas que respostas. Estas, quando aparecerem, não
servem como modelo, mas como respostas provisórias e talvez
localizadas em um contexto específico. Explico melhor: não servem
como modelo, mas servem, talvez, como uma esperança, como os
pequenos vaga-lumes de Didi-Huberman (2011).
Também chamo atenção para o título porque ele traz uma
pergunta cuja resposta é, em certo sentido, óbvia. Já estamos a mais
de 70 anos de Auschwitz e as obras de arte continuam existindo e,
de uma forma mais ou menos “efetiva”, resistindo. Porém essa
pergunta nos oferece uma provocação, um convite a pensar essa
obra de arte pós-violência em sua [necessária?] relação com tais
contextos. Nesse sentido, poderíamos já acrescentar outras
questões: qual é essa obra de arte que sobrevive a um contexto de
violência? Em que medida e de que forma ela relaciona-se com o
real? A obra de arte tem um papel, como uma espécie de “dever a
cumprir” frente a essa realidade? E, nesse sentido, é produtivo
pensar em uma “efetividade” da obra frente a esses contextos?
Finalmente: o que pode a obra de arte nesses contextos? Ou ainda:
o que podem esses contextos sobre as obras de arte? Pode a obra de
arte resistir – e existir?

152
Nesta comunicação propomo-nos a pensar um contexto de
violência mais próximo do espaço-tempo de nosso lugar de
enunciação. Trata-se dos vinte anos de conflito armado interno no
Peru, entre as décadas de 1980 e 2000. Em 17 de maio de 1980, na
véspera da primeira eleição após doze anos de governos ditatoriais
militares no Peru, um grupo maoísta do Partido Comunista do
Peru, conhecido como Sendero Luminoso, liderado por Abimael
Guzmán, realiza seu primeiro ato terrorista: a queima de urnas e
cédulas de votação em Chuschi, distrito de Cangallo, em Ayacucho.
Embora não seja o início da história de violência e desigualdades no
país, essa data pode ser considerada um marco para tudo o que viria
a se passar a seguir: uma série de violações de direitos humanos, de
opressão e de violência contra os povos mais fragilizados do país;
reações desproporcionais e injustificáveis por parte do governo e
das forças armadas; o acirramento das diferenças étnicas e sociais já
presentes entre a população.
Embora seja um tema demasiado complexo para tratarmos
no espaço desta comunicação, vale a pena mencionar que, assim
como o nazismo, boa parte da efetividade do projeto do Sendero
Luminoso deve-se a uma série de ações no campo do simbólico.
Para fazer referência a apenas algumas, temos a mitificação criada
em torno da figura do líder, o já citado Abimael Guzmán,
conhecido como capitão Gonzalo e tido como o quarto braço do
comunismo – ao lado de Marx, Lenin e Mao. Além disso, Victor
Vich, no livro El canibal es el outro, nos apresenta alguns pontos do
discurso do Sendero Luminoso que contribuem para a

153
disseminação de sua ideologia, principalmente nas zonas rurais
andinas. São eles: a visão teleológica da história; a dissolução do
sujeito dentro dos objetivos do partido; o culto à morte; e o
discurso pedagógico. Todos esses pontos são propagados,
principalmente, por meio do discurso, com uma retórica de
convencimento, a fim de criar e incutir uma ideia [messiânica] de
uma identidade não mais nacional, mas global e a-histórica.
É importante ressaltar, no entanto, que, embora o Sendero
tenha sido o catalizador do conflito armado interno, como conclui
o Informe final da Comissão de Verdade e Reconciliação do Peru,
boa parte das ações de violência perpetradas no período foi
realizada pelas Forças Armadas do país, em momentos em que
estavam no poder governos democráticos. Também não nos cabe
aqui aprofundar na complexidade do que representa o estado de
exceção estabelecido em diversas zonas do Peru (que acabaram por
se configurar em um estado permanente de exceção, se quisermos
pensar com Agamben), mas interessa-nos afirmar que houve em
boa parte uma concordância – ativa ou passiva – de uma parcela da
população peruana para que isso ocorresse. O que queremos
defender aqui é que isso foi possível, também, por questões
simbólicas, que permitiram a construção de uma imagem do Outro
– o andino, o falante de quéchua, homem, jovem – que o convertia
na categoria – hoje tão significativa e ao mesmo tempo
problemática – do terrorista, daquele que, em última instância, é
passível de ser eliminado sem que haja qualquer implicação legal
nisso (uma espécie de homo sacer, para seguirmos na terminologia

154
de Agamben). Não custa lembrar que a maioria das ações que
objetivam a segurança nacional (dentre elas a instauração do
problemático estado de exceção) são pautadas por uma ideia de
necessidade, possibilitada, sobretudo, pela disseminação do medo.
Mais do que conceitos objetivos, essas ideias pairam sobre o campo
das subjetividades e das sensibilidades.
Nesse contexto, como afirma Victor Vich (2015, p. 14-15),

“la producción simbólica acompañó al período de la


violencia desde sus inicios y que se constituyó en un
agente clave en la opción de comprender (y denunciar) lo
que estaba sucediendo.”51

ainda continua “cumpliendo un rol protagónico en el intento por


instalar un nuevo imaginario nacional a partir de la
desestabilización de los sentidos comunes existentes”. 52 A arte,
portanto, cumpre aí um papel de atuação frente a esse contexto: o
de compreender e denunciar os acontecimentos e o de construir um
novo imaginário por meio do dissenso. Com isso não entendemos e
nem queremos afirmar que a obra de arte tenha necessariamente
um “dever a cumprir” frente a contextos de violência. Mas talvez
possamos entender que ela cumpre, muitas vezes, tal papel porque,
como afirma Rancière, estética e política têm fundamentos
comuns: “posições e movimentos dos corpos, funções da palavra,

51 “a produção simbólica acompanhou o período da violência desde seus inícios e se


constituiu em um agente chave na opção de compreender (e denunciar) o que estava
acontecendo”. Esta e as demais traduções deste artigo são da própria autora.
52 “cumprindo um papel protagônico no intento de instalar um novo imaginário
nacional a partir da desestabilização dos sentidos comuns existentes”

155
repartições do visível e do invisível” (RANCIÈRE, 2009, p. 26).
Assim, uma atuação no campo do simbólico é uma atuação no
campo do político, no sentido de desestabilizar formas de
visibilidade e maneiras de fazer e de ser, de atuar e de compreender
o mundo, de dar voz, de permitir falar. E é somente neste sentido
que elas podem ser lidas em sua “efetividade”: não com
consequências concretas de mais ou menos êxito, mas com a sua
capacidade de propor novas formas de partilha do sensível.
Gostaríamos de trazer aqui alguns exemplos dessas
produções simbólicas realizadas durante ou logo após o período de
violência no Peru, para que possamos buscar nelas não modelos,
como dissemos anteriormente, mas formas de sobrevivência. Para
os primeiros exemplos, seguirei a leitura de Victor Vich em Poéticas
del duelo, especificamente no capítulo intitulado “Desobediencia
simbólica: performance y participación política al final de la
dictadura fujimorista”. Esse capítulo inicia-se com uma epígrafe de
Adorno, que afirma que “as obras que hoje contam são aquelas que
já não são obras”. Interessante provocação para pensarmos que tipo
de obra de arte é possível após um contexto de violência extrema;
não mais uma obra fechada em si mesma ou em seu regime
mimético, mas capaz de borrar fronteiras, de fazer-se ela mesma
realidade e de incorporar o real que antes lhe chegava por meio da
mimese; uma obra que abarque o testemunho e as vozes
dissonantes, as vozes sem lugar em um regime político; uma arte
que seja resistência por sua própria existência, pelo seu colocar-se
em um espaço-tempo em que não lhe era permitido estar.

156
Os exemplos que aqui trazemos têm em comum o fato de
estarem sob o [vasto] campo daquilo que entendemos como
performance. Como afirma Vich (2015, p. 162),

“las performances vuelven visible la estructura de un


poder que ha dejado de verse y permiten observar las
posibilidades de agencia de los sujetos y los espacios vacíos
que la hegemonía no ha podido aún conquistar.”53

É nesse sentido que Lava la bandera insere-se no espaço


público no ano de 2000, para articular e mobilizar uma sociedade
que a muito custo começava a questionar as estruturas de poder,
mas que ainda estava paralisada pelo medo (principalmente do
terrorismo senderista). Essa ação, proposta pelo Colectivo Sociedad
Civil, era simples: reunir-se na praça principal de Lima, com bacias
de água e sabão Bolívar, para lavar a bandeira do Peru. Uma
conexão da “vida cotidiana e da vida política” (VICH, 2015, p. 172)
que ganhou inúmeros adeptos na capital e mesmo no interior do
país. Como analisa Vich (2015, p. 172),

“Lava la bandera demostró que el Estado-nacional sigue


siendo un marco fundamental en la definición de las
identidades sociales y que la construcción del ciudadano se
encuentra inevitablemente atravesada por lo simbólico y
por lo político.”54

53 “as performances tornam visível a estrutura de um poder que se deixou de ver e


permitem observar as possibilidades de agência dos sujeitos e os espaços vazios que a
hegemonia ainda não pôde conquistar”.
54 “Lava la bandera demonstrou que o Estado-nacional segue sendo um marco
fundamental na definição das identidades sociais e que a construção do cidadão se
encontra inevitavelmente atravessada pelo simbólico e pelo político”

157
Já a performance Pon la basura en la basura, também
organizada pelo Colectivo Sociedad Civil no mesmo ano de 2000,
realiza sua interferência não na esfera pública, mas nas casas de
políticos e em locais emblemáticos do regime (emissoras de
televisão, o Comando das Forças Armadas), numa espécie de
“escracho”. A ação consistia em jogar nesses locais sacos de lixo
preto impressos com fotos de Fujimori e Montesinos com trajes de
presidiários. A força da performance, se quisermos falar de sua
efetividade, consistia em, a partir do simbólico, exercer uma pressão
social em um momento fundamental de transição política (era um
momento em que o esquema de corrupção do governo vinha à
tona e Fujimori renunciava ao cargo de presidente).
Diferentemente dos exemplos de que trataremos a seguir,
das peças de Yuyachkani, essas duas performances não se inserem
claramente em um campo da arte, constituindo-se mais como
ativismo político, como ações simbólicas que interferem nas
maneiras de configuração e de apreensão do real. Gustavo Buntinx,
um dos fundadores do Colectivo, evidencia isso ao afirmar que
“con esos rituales no queríamos ingresar a la historia del arte;
simplemente queríamos cambiar algo de la historia a secas.” 55 (apud
VICH, 2015, p. 183).
Já o grupo de teatro Yuyachkani insere-se, a princípio, nessa
categoria milenar da arte que é o teatro, muito embora diversas de

55 “com esses rituais não queríamos entrar para a história da arte; simplesmente
queríamos mudar algo da história ‘a secas’.”

158
suas ações pertençam a um território híbrido em que também
comungam performance e ativismo político. Talvez aqui devamos
voltar à postulação de Adorno para nos questionarmos sobre essa
dificuldade de classificação de certas manifestações
estéticas/políticas. Acreditamos, nesse sentido, que mesmo as
“obras” de Yuyachkani que são mais fechadas e cujo texto
dramatúrgico está escrito e publicado, e até mesmo aquelas que
possuem inspirações em obras literárias (como é o caso de Adiós
Ayacucho e de Antígona), permanecem como um espaço aberto,
maleável e de difícil classificação. Talvez a maior precisão conceitual
tenha se encontrado em Sin título – técnica mixta, peça estreada em
2004. Mesmo aí, figura um vocabulário das artes plásticas, que já
antecipa uma ideia de que a obra seria uma espécie de
performance/instalação. De passagem, podemos aludir ao
problema da utilização de conceitos ocidentais para classificar
manifestações que se aproximam da cultura andina, cujas relações
entre arte e vida, atores e espectadores, presença e representação são
bem diferentes da maneira como costumamos entender.
De toda forma, essas três obras mencionadas apresentam
maneiras distintas de lidar com o período de violência, e é isso que
gostaríamos de destacar aqui. Adiós Ayacucho, estreada em 1990, é
baseada na novela homônima de Julio Ortega, em que um
campesino assassinado pela polícia em Ayacucho viaja a Lima para
recuperar o restante de sua ossada e entregar uma carta de denúncia
ao presidente Belaúnde. Na peça, a corporificação do morto
Alfonso Cánepa se dá pela figura de um Q’olla, um personagem

159
dançante das festas populares andinas. É por meio do humor
presente na alternância das vozes do morto e do dançante no corpo
do ator Augusto Casafranca que o Yuyachkani busca lidar com
uma violência tão explícita e concreta como era aquela da década de
1990 no Peru.
Antígona, estreada em 2000, com dramaturgia do poeta
José Watanabe, é baseada no texto clássico de Sófocles. Porém, na
versão de Yuyachkani, a peça transforma-se em um solo
(unipersonal), no qual a Narradora propõe-se a dar corpo e voz aos
personagens daquela história, e relembrá-los a cada noite, como
uma forma de redimir-se pelas ações que não pôde fazer a tempo.
Trata-se dos momentos finais do conflito armado interno, mas
quando o governo de Fujimori ainda pleiteava o seu terceiro
mandato. A peça proporciona uma identificação por parte do
público peruano, todo ele de alguma forma envolvido – ainda que
com sua passividade – no período de violência, e faz um convite ao
trabalho de memória. Por meio de uma história da mitologia
clássica, e sem atualizar o tempo ou o local em que se passa a
história, Yuyachkani fala de seu próprio contexto.
Ambas as peças – Adiós Ayacucho e Antígona – fizeram
parte do projeto “Nunca más”, da CVR-Peru, apresentando-se nas
comunidades em que ocorreriam as audiências públicas da
Comissão. Ali, as histórias de Cánepa e Antígona se misturavam às
histórias reais de violência presente entre a população andina;
tornavam-se porta-voz, espaço de reflexão, convite ao testemunho
público.

160
Finalmente, Sin título – técnica mixta instaura-se como um
“museu da memória”, em que recortes de jornal, fotografias,
roupas, carteiras de sala de aula estão colocadas ao lado de
figuras/personagens/performers representativos não só do período
de violência, como também da guerra contra o Chile e da história
peruana de forma geral. Nesta peça, o público é convidado a
transitar pelo espaço, encontrar seus próprios pontos de foco,
descobrir detalhes e construir suas próprias leituras sobre aquela
profusão de fragmentos vivos de história.
Se quisermos ensaiar uma resposta a algumas das questões
propostas no início desta comunicação, podemos afirmar que esses
contextos podem sobre as obras o mesmo que estas podem sobre
aqueles: desestabilizar seus pressupostos e borrar fronteiras. A obra
de arte que existe e resiste é aquela capaz de olhar para esse período
de violência, incorporar as vozes silenciadas e silenciadoras
presentes ali, e tentar nomear, renarrar e intervir no campo do
simbólico.

REFERÊNCIAS:

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vagalumes.


Trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011.

PERU. Hatun Willakuy. Versión abreviada del informe final de


la Comisión de la Verdad y Reconciliación – Perú . Lima,
diciembre de 2003.

161
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: EXO
experimental org.; Editora 34, 2009.

VICH, Victor. El canibal es el otro – violencia y cultura en el Perú


contemporáneo. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2002.

___________. Poéticas del duelo – ensayos sobre arte, memoria y


violencia política en el Perú. Lima: Instituto de Estudios Peruanos,
2015.

162
Ideias políticas:
o problema da experiência

Cristiano Elias de Paulo56

RESUMO: A suposta morte da experiência indicaria também a


crise da arte e da cultura? No ensaio intitulado Experiência e
pobreza,57 Walter Benjamin afirma que o fim da experiência aponta
para uma barbárie. No entanto, o termo é visto pelo pensador
alemão de forma positiva, por meio da barbárie faz-se o novo. Este
desenlace, até certo ponto positivo, destoaria do pensamento de
Giorgio Agamben, visto que, para o pensador italiano, preocupado
com a transcendência, o hoje se tornou insuportável, pois, segundo
ele, a experiência não é mais possível aos seres humanos. Outro
nome importante para nossos apontamentos é o do pensador
francês Georges Didi-Huberman que, em seu livro Sobrevivência
dos vaga-lumes, se mostra interessado na visão apocalíptica que
atravessa o pensamento ocidental e perpassa as obras, dentre
outros, de Giorgio Agamben e do cineasta Pier Paolo Pasolini, uma
vez que ambos apresentam em seus trabalhos uma visão
desesperadora, visto parecer aclarar-lhes um horizonte de
destruição em relação à cultura, à política e mesmo em relação à
própria humanidade.

PALAVRAS-CHAVE: contemporaneidade, experiência,


sobrevivência.

56 Mestrando (Fale-UFMG)
57 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. I. Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 2012, p. 123.

163
IDEIAS POLÍTICAS

Quando Pasolini anuncia que “não existem mais


seres humanos” ou quando Giorgio Agamben, de
seu lado, anuncia que o homem contemporâneo se
encontra “despossuído de sua experiência”, nós
nos encontramos, decididamente, colocados sob a
luz ofuscante de um espaço e de um tempo
apocalípticos.58

Vivemos na era do descartável e do “novo e sempre igual”


do qual nos fala Renato Cordeiro Gomes, 59 o niilismo adquire ares
de religião e os valores outrora arraigados no âmago da sociedade
ocidental-cristã são suplantados. O ato de romper com a tradição,
virou por si só uma tradição, como bem demonstra Octavio Paz,
em seu ensaio intitulado “A tradição da Ruptura”.60 Neste cenário,
onde alguns vaticinam o apocalipse enquanto outros preveem
tempos e formas revigorantes, já que a época propiciaria o
surgimento de novos diálogos, encontramos não muito dispersos,
os relatos de crise, nos quais, parece estar incrustado o problema da
perda da experiência.
Em 1941, o escritor e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini
escreve a celebre carta, onde menciona pela primeira vez os vaga-
lumes. Carta que será mais tarde analisada por Didi-Huberman. Na

58 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Vera Casa Nova


e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 78.
59 GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade . Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
p. 68.
60 PAZ, Octavio. Os filhos do barro. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 15.

164
epístola destinada ao amigo de adolescência, o jovem Pasolini
condena à morte a atitude de inocência perante o mundo, diz ele:

Eu não posso perdoar aquele que atravessa com o olhar


feliz do inocente as injustiças e as guerras, os horrores e o
sangue. Há milhares de inocentes como tu através do
mundo que preferem se apagar da história ao invés de
perderem sua inocência. E eu devo fazê-los morrer, mesmo
sabendo que eles não podem agir de outra forma, devo
amaldiçoá-los como a figueira e fazê-los morrer, morrer,
morrer.61

Em um artigo publicado em 1975, conhecido como o artigo


dos vaga-lumes, Pasolini constata a morte desses seres luminosos.
Os vaga-lumes representam aqui, a um só tempo, a inocência e a
resistência. Aquilo que havia de melhor na humanidade estava
morto, a cultura esfacelava-se; para o cineasta a resistência antiga, a
força do proletariado que por muito tempo não cedera aos ideais
burgueses estava extinta, era o fim da experiência de vida. Agora,
todos se tornaram autômatos. Os seres humanos foram assimilados
pelos valores burgueses, pelos ritos consumistas e pelo niilismo
moderno, onde o “aqui e agora” é preterido pelo futuro, o futuro
passa a ser o lugar da vida boa, as pessoas se matam ou se estapeiam
no presente em prol de um futuro melhor.
A esse respeito, escreve o cineasta: “Faço simplesmente
questão de que tu olhes em torno de ti e tomes consciência da
tragédia. E que tragédia é esta? A tragédia é que não existem mais
seres humanos; só se veem singulares engenhocas que se lançam

61 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes, p. 23-24.

165
umas contra as outras”.62 Lembrando que Pasolini escreveu estas
palavras meses antes de ser brutalmente assassinado. Portanto, se o
Pasolini da juventude decreta a morte da inocência, o Pasolini
maduro irá desesperar-se ao constatar tal morte. Cerca de 4 anos
depois dessa percepção da tragédia humana anunciada pelo
cineasta, Giorgio Agamben publica Infância e História, no qual
aponta para um horizonte de pobreza, um horizonte da destruição
da experiência.

O PROBLEMA DA EXPERIÊNCIA

Em seu ensaio supracitado, Walter Benjamin vê a Primeira


Guerra Mundial como a agente causadora do problema da
experiência na modernidade. Segundo ele, os soldados voltavam
silenciosos do campo de batalhas, portanto, mais pobres em
experiência e não mais ricos. No entanto, nem tudo é negativo.

[...] essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de


toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie.
Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para
introduzir um conceito novo e Positivo de barbárie. Pois o
que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência?
Ela o impele a partir para frente, a começar de novo, a
contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem
olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os
grandes criadores sempre existiram homens implacáveis
que operaram a partir de uma tábula rasa. Queriam uma
62 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes, p. 30.

166
prancheta: foram construtores. A essa estirpe de
construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia
numa única certeza — penso, logo existo — e dela
partiu[...].63

A ideia de barbárie positiva destoa do pensamento


pasoliniano, pois nela, de certo modo, temos o cerne daquilo que
Didi-Huberman chamou de sobrevivência. A barbárie não é o fim,
mas a possibilidade de outro começo, pois força a vinda do novo e
este, apresenta em sua estrutura algum gene do que antes estava
estabelecido e foi suplantado, temos aí um fio ligando o novo à
tradição. Entretanto, para o Poeta-cineasta: “a cultura não é o que
nos protege da barbárie e deve ser protegida contra ela, ela é o
próprio meio onde prosperam as formas inteligentes da nova
barbárie”.64
Esta ideia é fundamental para entendermos o desespero
pasoliniano com relação à crise da cultura. É na própria cultura que
se instaura a barbárie e é por meio da cultura que essa barbárie, ou
seja, aquilo que ele chamou de neofascismo se propaga. Se na visão
de Benjamin a barbárie ganha uma conotação positiva, em Pasolini
ela ganha aspecto de destruição total da tradição. Já em Agamben,
conforme Didi-Huberman, temos que: “o inefável é, na realidade,
infância [...] É a infância, a experiência transcendental da diferença
entre língua e fala: uma experiência originária, certamente, mas que

63 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, p. 124-125.


64 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes, p. 41.

167
teria sido destruída, apagada como um vaga-lume, nos tempos de
nosso pobre hoje”.65
O pensador italiano inicia suas reflexões em Infância e
História, dizendo que: “todo discurso sobre a experiência deve
partir atualmente da constatação de que ela não é mais algo que
ainda nos seja dado fazer”.66 Consoante o pensador, a experiência
tem como matéria-prima o cotidiano, sendo a base dessa
experiência fundamentada na autoridade. O problema estaria em,
“hoje ninguém mais parece dispor de autoridade suficiente para
garantir uma experiência, e se dela dispõe, nem ao menos aflora
fundamentar em uma experiência a própria autoridade”. 67 O que
prevaleceria hoje seria a banalização do cotidiano que,
desencadearia uma espécie de massificação da experiência, onde o
“slogan” teria assumido o papel do provérbio na
contemporaneidade.
O que aconteceu, segundo o filósofo, é que a experiência
não se extinguiu por definitivo, mas agora ela ocorre fora do
homem e, surpreendentemente, o homem olha para a experiência
que está fora de si com alívio. É esta incapacidade do homem
contemporâneo com relação à experiência que aflige Agamben:

Uma visita a um museu ou a um lugar de peregrinação


turística é, desse ponto de vista, particularmente
instrutiva. Posta diante das maiores maravilhas da terra

65 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes, p. 77.


66 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos,
2009, p. 21.
67 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo?, p. 23.

168
(digamos, o patio dos leones, no Alhambra) a esmagadora
maioria da humanidade recusa-se hoje a experimentá-las:
prefere que seja a máquina fotográfica a ter experiência
delas.68

O filósofo não desconhece que essa recusa em ver, ou em


experimentar um objeto artístico, um monumento, uma obra
arquitetônica ou mesmo uma paisagem, poderia em si só gerar uma
experiência futura. Acontece que, essas transformações adquirem,
em sua visão, um ar de destruição que, por conseguinte, culmina
numa obscuridade com relação à transcendência. Para Agamben o
problema da experiência na contemporaneidade, reside no fato dela
realizar-se fora dos homens. Entretanto, para Emanuele Coccia, o
próprio cerne da experiência é o sensível e, como tal, ela está
associada ao fora. A vida não existiria sem o sensível, pois é isso que
define as formas, as realidades e os limites da vida animal. De modo
que, a experiência é formada a partir do sensível e, portanto, está
localizada fora do sujeito. “Na realidade, é sempre fora de si que
algo se torna passível de experiência: algo se torna sensível apenas
no corpo intermediário que está entre o objeto e o sujeito”. 69
Agamben, assim como Pasolini, parece buscar algo que era
visível no passado, e, no entanto já desaparecido no presente. Ainda
que o filósofo diga não se tratar de nostalgia e ainda que ele
reconheça que a banalização do cotidiano, pode por si só, deixar
fagulhas que venham, no futuro, se tornar novas experiências. A
experiência que interessa ao pensador é a que ele denominou de
68 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo?, p. 23.
69 COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Desterro: Cultura e Barbárie, 2010, p. 20.

169
tradicional, antiga, a mesma que Benjamin diz ter se perdido com a
Primeira Guerra Mundial.
É essa sensação de destruição do tradicional que
aparentemente gera a crise, o termo crise, por sinal, como aponta
Didi-Huberman, aparecerá em vários trechos de Infância e
História. A sensação de perda no presente é a ponte para o
apocalipse. Então, de um lado temos o fim da experiência e a crise
da cultura e do outro, temos a sobrevivência atravessada pelo
sensível. Além de termos também a resistência da cultura, que se
traduz pelo voo dos vaga-lumes. No caso da escrita literária e dos
estudos de literatura a sobrevivência é fato constatável, pois se
continua a escrever e continuamos estudando literatura. Ao invés
de fim, temos uma mudança que aparece, sobretudo, nos planos da
forma e dos temas, com relação às artes e literatura da
contemporaneidade.
A crise antevista por Agamben e Pasolini, em sua medida,
era mais uma nuvem escura, ora se movimentando com a força das
correntes de ar, ora se estagnando. O apocalipse associa-se, de fato, à
percepção de uma rápida mudança de valores morais, culturais,
sociopolíticos e especialmente estéticos. No caso estrito de Pasolini,
é a vertiginosa industrialização da Itália que o leva a identificar as
transformações que ele considerou nocivas à cultura, tais como as
mudanças de comportamento social e ideológico. No caso do
filósofo, os instrumentos tecnológicos e os aparatos científicos são a

170
causa da exterioridade da experiência, o que remete também à
industrialização e às mudanças de valores.

A comprovação científica da experiência que se efetua no


experimento__ permitindo traduzir as impressões
sensíveis na exatidão de determinações quantitativas e,
assim, prever impressões futuras__ responde a essa perda
de certeza transferindo a experiência o mais
completamente possível para fora do homem: aos
instrumentos e aos números. Mas, deste modo, a
experiência tradicional perdia na realidade todo seu valor.
[...] a experiência é incompatível com a certeza, a
experiência que se torna calculável e certa perde
imediatamente a sua autoridade. Não se pode formular
uma máxima nem contar uma estória lá onde vigora uma
lei científica.70

São as rupturas propiciadas pelo desenvolvimento


tecnológico que deixam a impressão negativa, gravada na imagem
do contemporâneo, de “algo nunca antes presenciado”.
Encontramos no autor de Infância e História, assim como no
cineasta, uma espécie de cansaço surgido das coisas do cotidiano,
um enfado adensado por uma nebulosidade com relação ao
presente. Pois, é com esse olhar fatigado pelo presente que ambos
veem o futuro. Os vaga-lumes pasolinianos, desaparecidos, nada
mais são que a resistência capaz de abrir as portas à sobrevivência da
cultura. É aquela alegria potente dos corpos com suas autonomias,
sem a corrupção repressiva dos ideais burgueses. Sem a degradação
capitalista que transforma tudo em mercadoria ou o moralismo
religioso enclausurador dos corpos. A liberdade dos corpos é

70 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo?, p. 26.

171
ameaçada constantemente pela televisão, pela superexposição na
mídia ou mesmo pela pornografia que, para o cineasta,
representava a degradação, o ápice da desvalorização e
comercialização do corpo. Se o moralismo exacerbado é um
entrave, a superexposição midiática não é menos problemática.
Nos anos 70, Pasolini encontra-se perdido em um labirinto,
onde o monstro que ali reside não é mais a figura mitológica do
Minotauro. Agora, o que se vê no centro desse labirinto é o que o
poeta-cineasta denominou de neofascismo, com suas Grandes
Luzes, com seus olhos mecânicos devorando os pequenos vaga-
lumes. Diante da visão do homem de plástico, da aparente
desvalorização do humano e defronte à cultura do descartável,
Pasolini anuncia o aparecimento daquilo que ele chamou de “O
vazio de poder”, que nada mais é que, a assimilação total dos ideais
burgueses pelos italianos. “Eu vi com meus sentidos o
comportamento imposto pelo poder do consumo de remodelar e
deformar a consciência do povo italiano, até uma irreversível
degradação”.71
No cenário da contemporaneidade, recheado de mudanças
constantes e rupturas, a visão apocalíptica é resgatada à figura de
João e moldada com adornos contemporâneos. A imaginação
ligada à perda ou à destruição do que estava estabelecido, de certo
modo, remete também a uma esfera política. “Em nosso modo de
imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de

71 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes, p. 31.

172
fazer política. A imaginação é política, eis o que precisa ser levado
em consideração”.72
O problema de Pasolini ou de Agamben teria sido o de
esquecer a capacidade humana, não só de começar novamente, mas
de adaptação ao novo. O próprio ato de deixar de contemplar para
registrar com a câmera é fruto da dessacralização da arte e da
aceleração do tempo das relações na contemporaneidade; as
pessoas, mesmo em férias, continuam freneticamente
condicionadas. O “aqui e agora” virou um tempo de trânsito, de
vibrações, o tempo da contemplação é o futuro. O ato de fotografar
é oriundo de uma nova forma de experiência que surge com o
desenvolvimento tecnológico aliado ao niilismo moderno, que tem
o futuro como alvo. A partir da fotografia realizada, no futuro
teremos a experiência de contemplação dos objetos e lugares pelos
quais passamos, ainda que não mais com os originais e sim com a
sua reprodução.
Para Pasolini, por exemplo, o problema foi pensar que a
barbárie é o que provoca a morte da cultura e consequentemente a
morte das resistências, portanto, dos vaga-lumes. No entanto,
como aparece em Benjamin, a barbárie força a vinda do novo; ainda
que o novo possa parecer estranho e inferior ao antigo num
primeiro momento. Ao perder a esperança nos seres humanos, o
poeta italiano teria fechado os olhos para os pequenos lampejos,

72 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes, p. 60.

173
para os vaga-lumes que, mesmo dispersos, continuavam seus “voos
erráticos” na noite escura.
Didi-Huberman exemplifica a sobrevivência dos vaga-
lumes, partindo de uma pequena análise do livro do fotografo
Francês, Denis Roche, intitulado “O desaparecimento dos vaga-
lumes” (1982). Esse livro em forma de carta endereçada a Roland
Barthes faz, segundo Huberman, “a firme, ainda que carinhosa,
crítica póstuma, de ter omitido, em [A câmara clara], tudo o que a
fotografia se mostra capaz de operar no plano do estilo, da
liberdade e, diz ele, da intermitência”.73
“A intermitência da imagem nos leva de volta aos vaga-
lumes”. Assim como o fotógrafo tem que se deslocar para captar
suas imagens, para encontrarmos os vaga-lumes temos que estar em
constante movimento. Os vaga-lumes não desapareceram apenas se
deslocam com frequência. Assim também se dá com a cultura, que
resiste, ainda que tenhamos que nos movimentar cada vez mais
para encontrá-la, ainda que tenhamos que procurá-la nos lugares
mais remotos. Dar exclusiva atenção ao “horizonte” observa Didi-
Huberman, “é tornar-se incapaz de olhar a menor imagem”. 74
Pensando na contemporaneidade, sobretudo no que diz
respeito à arte, torna-se possível fazer um paralelo entre as ideias
apocalípticas e as formas artísticas e de escrita que vigoram hoje,
visto que muitos no presente compartilham da ideia de crise da
cultura. O que talvez, se deva à própria postura assumida por

73 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes, p. 45.


74 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes, p. 115.

174
muitos artistas e, consequentemente, por suas obras de artes. Se por
um lado temos o objeto artístico que assumindo uma postura
crítica sobre o papel da arte, gera questionamentos e discussões a
esse respeito, por outro, temos a arte cujo objetivo é a derrisão. Essa
arte derrisória vincula-se à máxima que diz “que tudo pode ser
arte”, independente do espectador, pois assim como o autor,
hilariantemente, o espectador e o leitor já tiveram sua morte
decretada. Entretanto, longe de querermos atribuir um juízo de
valor, torna-se mais interessante desenvolvermos a capacidade de
vislumbrar e interpelar a sobrevivência que surge com nova
roupagem. Pois, o que Pasolini esqueceu, e em Agamben assume
forma negativa é que, nada está realmente definido, os lampejos e
transformações ainda que intermitentes continuam e
inevitavelmente continuarão.
Por esse motivo, alguns questionamentos podem e devem
ser perpetrados com relação à arte contemporânea, não com a
ingenuidade de querer compará-la com aquilo que fora produzido
no passado, mas com o intuito de tentar compreender a forma
como essa arte se relaciona com o mundo hoje. Utilizando as ideias
de experiência e sobrevivência na contemporaneidade e partindo da
imagem de atenção exclusiva ao “horizonte” que se converte em
incapacidade de olhar ou mesmo perceber as pequenas imagens, ou
os pequenos focos de resistência. Eu coloco aqui uma questão, que
se desdobrará obviamente, inserida entre parênteses sobre a arte
contemporânea, (será que dar exclusiva atenção a si mesmo, não é

175
tornar-se incapaz de olhar o mundo exterior?). A arte que se refugia
em si mesma não se torna incapaz de ter o pasmo essencial que tem
uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras, _para a
eterna novidade do mundo?75
Não seriam alguns dos estilos da contemporaneidade tais
quais a autorreferencialidade e autoficção formas apocalípticas?
Formas surgidas em meio à proclamação da morte da arte, da morte
do autor ou da própria literatura. Ao voltar-se somente para si
mesma a arte não se torna hermética e ao mesmo tempo deixa de
comunicar experiência? Pois perde o contato com o mundo
externo. A arte estritamente autorreferencial não é aquela que
perdeu a capacidade de ver os lampejos dos vaga-lumes que
sobrevivem lá fora, visto que está mergulhada na sombra de seu
próprio corpo e distante do elemento humano? Ou seja, tudo isso
não poderia ser uma espécie de recusa do mundo humano tal como
ele é?
A arte autorreferencial contemporânea tem se afastado da
novidade do mundo, ela vem perdendo o pasmo essencial do qual
nos fala o heterônimo pessoano Alberto Caeiro, têm os olhos
voltados para a própria face como forma de analisar e mesmo
questionar a sua própria carne. O abandono do suporte e da
linguagem tradicionais pertence ao ideal artístico que vem desde o
modernismo, um estilo que cresceu com as vanguardas europeias
do início do século XX e que tem como mote a destruição do

75 PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caieiro . São Paulo: Companhia das
Letras, 2008, p. 19.

176
tradicional. Mas como o próprio Pasolini percebeu em seu tempo,
assim como o escritor Karl Kraus: não há sociedade degrada em que
primeiro não tenha havido uma degradação da própria linguagem.
A derrisão, presente em boa parte da arte contemporânea
cuja autorreferencialidade é o seu ponto nevrálgico, não seria uma
forma de degradação da linguagem artística, visto que ironicamente
parte para uma banalização do fazer artístico? Mas colocado os
questionamentos, eis a dificuldade: o próprio levantamento de
algumas dessas questões, por si só, poderia ser também tido como
proveniente de uma visão apocalíptica. O que demonstra a
fragilidade da simples formação de juízo de valor sem a devida
ponderação dos fatos. Por estas dificuldades, com relação à suposta
crise da cultura, talvez o caminho passe pela experienciação do
sensível como forma de pensarmos o contemporâneo e suas
manifestações artísticas.

REFERÊNCIAS:

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros


ensaios. Chapecó: Argos, 2009.
_________________. Infância e História: destruição da
experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2014.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. I. Magia e técnica, arte


e política. São Paulo: Brasiliense, 2012.

177
COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Desterro: Cultura e Barbárie,
2010.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes.


Trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011.

GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de


Janeiro: Rocco, 2008.

LIMA, José Expedito Passos. Crítica e recusa do presente a


realidade como experiência filosófica em Pier Paolo Pasolini .
Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e
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Cultural, 1983.

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PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caieiro . São


Paulo: Companhia das Letras, 2008.

178
Políticas da escrita, políticas do corpo nos
babilaques de Waly Salomão

Augustto Corrêa Cipriani76

RESUMO: Em seu artigo “Museus e babilaques: um mundo de


singulares afinidades”, de 2011, Roberto Said aponta como os
babilaques de Waly Salomão reconfiguram a noção de coleção no
cenário da cultura brasileira, ao propor uma (re)organização
poética de objetos cotidianos, insignificantes, que então se fazem
visíveis e adquirem um novo significado. Podemos notar, assim,
baseando-nos nos estudos de Jacques Rancière, que há uma política
ali engendrada, em que o gesto da escrita aparece ainda como um
meio de resistência ao academicismo e à crítica de arte especializada,
entendidos como dispositivos de censura, que fossilizam a
produção e a recepção de arte. Resistência que não pode ser
dissociada da situação política em que vivia o Brasil nos anos 1970,
cuja violência fez vítima o próprio corpo de Waly Salomão.
Buscamos, então, esboçar qual a política da escrita que se constrói
nos babilaques, atentando-nos para o aspecto de resistência da
criação artística. A hipótese com que trabalhamos é a de que Waly
Salomão busca nos babilaques um meio de expressão artística em
que corpo e escrita surgem como formas de resistência ao
cerceamento comportamental e artístico de seu contexto histórico.

PALAVRAS-CHAVE: Waly Salomão; Babilaques; política


76 Mestrando em Estudos Literários (PósLit/FALE/UFMG).

179
Para exposição de seus babilaques em 1979, Waly Salomão
preparou um texto em que definia tais objetos artísticos enquanto
“PERFORMANCE POÉTICO-VISUAL” (SALOMÃO, 2007. p.
21), apontando seu caráter intersticial, localizando-os entre as artes
cênicas, as artes visuais e a literatura. Os babilaques abrem-se como
um desafio à crítica, já que mesmo antes de se debruçar sobre seus
significados, os estudiosos se perdem na profusão de possibilidades
de demarcação do objeto: seriam babilaques os cadernos em que
Waly inscrevia seus esboços de criação poética? Ou seria o processo
de organização espacial de objetos e seu contato com o texto verbal?
Ou, afinal, seriam as fotos tiradas durante esse processo?
No catálogo da exposição Babilaques: alguns cristais
clivados são apresentados diversos modos de olhar sobre os
babilaques, dentre os quais se destacam: “poemas-objeto” para
Maria Arlete Gonçalves (SALOMÃO, 2007. p. 5), “séries de
fotografias” para Luciano Figueiredo (SALOMÃO, 2007. p. 10),
“tradução visual mais adequada da leitura oral que o próprio Waly
fazia de sua poesia” para Arnaldo Antunes (SALOMÃO, 2007. p.
35) e, por fim, “experiência de fusão da escrita com a plasticidade”,
como o próprio Waly Salomão indica em 2002 (SALOMÃO, 2007.
p. 61). Os babilaques, desse modo, como a primeira declaração de
Waly já apresenta, embaralham as fronteiras entre os diferentes
discursos; inserindo-se em um lugar intermediário, indefinido, e
desestabilizando a fixidez das demarcações artísticas. Foi Armando
Freitas Filho, em seu poema “Salmo”, ao ler os babilaques com

180
“olho-míssil” e não “olho-fóssil”, quem percebeu o traço
desterritorializado dos babilaques e propôs o questionamento:
“Aonde é o lugar onde os Babilaques?” (SALOMÃO, 2007. p. 97)
Percebe-se, portanto, que a produção de Waly propõe uma
reconfiguração de lugares, além de uma reflexão sobre a política do
fazer artístico no Brasil, como aponta Roberto Said:

Esse complexo jogo de imagens em que os discursos


poético, crítico e fotográfico se suplementam, atando e
desatando as linhas divisórias dos saberes sociais e
artísticos, perturba a ordem dos significados,
embaralhando, para dizer com Jacques Rancière, 'a
partilha do sensível' na cena poética brasileira.” (SAID,
2011. p. 188)

A partir de tal constatação, o presente estudo se volta ao


aspecto político dos babilaques, tendo como base os conceitos de
“política da escrita” e “efeito de realidade” de Jacques Rancière, no
intuito de mapear os procedimentos artísticos que Waly Salomão
lança mão para combater o discurso hegemônico – intelectual ou
artístico –, que refletia os mecanismo de censura da conjuntura
política brasileira do momento.
A política dos babilaques reside na proposição de uma nova
partilha dos lugares na cultura brasileira e na exposição da
necessidade do trânsito livre para a plena exploração dos limites
artísticos. Em “Território Randômia”, por exemplo, Waly expõe
uma noção dos babilaques e de sua apresentação ao público
negando uma listagem de “leituras-fóssil” que se apoiariam em

181
marcos que delimitassem o objeto: “NÃO exibição de slides
prestação de contas dos trabalhos realizados NÃO mostra dos
poemas NÃO cadernos escritos NÃO” (SALOMÃO, 2007. p. 94).
Ao enquadrar essa enumeração com duas negativas, é apresentado
ao público que somente a definição pelo negativo é capaz de
explicar o babilaque, ou seja trata-se de um objeto que escapa das
(de)limitações artísticas. O título do peça, com sua caligrafia que se
expande pela página e demarca uma cartografia do aleatório, ao
lado de um recorte de uma fotografia na qual Mick Jagger dirige
um chute para a câmera, cria uma imagem irônica da demarcação
dos lugares. A ironia reside no absurdo de definir visualmente um
território aleatório ou circunscrever o gesto do vocalista, conhecido
por suas performances corporais, dentro de grossas linhas
vermelhas. A alusão à Rondônia, por fim, região que em 1975 ainda
preservava sua condição de território, configurando, portanto, um
lugar fronteiriço e marginal tanto no que tange aos limites
geográficos do Brasil quanto à sua organização político-
administrativa reflete próprio entre-lugar do babilaque.
O território-babilaque, instalando-se momentaneamente
pelas metrópoles da América, espelha ainda a vivência de Waly
Salomão, cujo trânsito estava diretamente associado à contingência
política pós-AI5. Tendo sido produzidos durante os anos de 1975 a
1977 nas cidades de Nova Iorque, Salvador e Rio de Janeiro, os
babilaques evidenciam o caráter errante da poética de Waly. No
babilaque da série “Stride”, por exemplo, o olhar do artista

182
brasileiro exilado na cidade de Nova Iorque indica a possibilidade
de encontro e embaralhamento dos lugares propiciados pelo
cosmopolitismo da cidade: “New York City é uma big city que são
países dentro dos quais continentes são in touch with”
(SALOMÃO, 2007. p. 70). Waly simboliza ainda a catatonia de
uma juventude que iniciava uma revolução nos modos de ser e de
viver no Brasil do anos 1960 e que se viu proscrita pelos
mecanismos de controle estatal da ditadura militar. A icônica
canção “Vapor Barato”, de Waly Salomão e Jards Macalé, sintetiza o
exílio e a errância de uma geração sem lugar, que não condizia com
os preceitos morais e comportamentais da ditadura: “Oh, sim/ eu
estou tão cansado/ mas não pra dizer/ que estou indo embora”
(SALOMÃO, 1983, p. 149) A fuga nesse caso não pode ser
compreendida como escapismo, ou seja, enquanto atitude
apolítica. Tomado lado a lado da perspectiva adotada em “Stride”,
o deslocamento que marca a poética de Waly propõe um novo
modo de visibilidade, ao criar espaços na arte e na poesia
contemporânea brasileira para o discurso de resistência do exilado.
Para Jacques Rancière, a política se funda exatamente na criação de
visibilidades e, para isso, o autor lança mão de vocábulos da ordem
da espacialidade, indicando que o movimento de tornar algo visível
parte de seu deslocamento e da construção de novos lugares:

La actividad política es la que desplaza a un cuerpo del


lugar que le estaba asignado o cambia el destino de un
lugar, hace ver lo que no tenía razón para ser visto, hace
escuchar un discurso allí donde solo el ruido tenía lugar,

183
hace escuchar como discurso lo que no era escuchado más
que como ruido. (apud FREIRE, 2015. p. 129)

Os babilaques, assim como os poemas e canções de Waly


Salomão, operam como meios de expressão e, principalmente,
como meios de reorganização política dos discursos. A obra de
Waly – iniciada durante o período no cárcere – é perpassada por
um desejo de liberdade latente, que vê na escrita um meio possível
de experimentação e (re)construção da realidade. Os babilaques, em
específico, trazem consigo para a cena da poesia e da arte brasileira
uma profusão de elementos ínfimos – como latas, folhas de
palmeira, entulhos em geral – e enquadramentos estranhos e
aparentemente imotivados, como a própria materialidade do
caderno que se alia ainda a um pá de remo ou um arranjo visual de
folhas de palmeiras, por exemplo. Esses elementos apontam para
uma reorganização dos lugares da arte e da poesia brasileira, ou seja,
uma outra partilha do sensível, nos termos de Jacques Rancière.
A presença do elemento estranho e insignificante de sua
poética permite continuar o paralelismo entre os babilaques e a
teoria de Rancière tendo em vista a noção de “efeito de realidade”,
que se volta à leitura de Roland Barthes sobre o realismo do século
XIX:

Existem somente a estrutura e o resíduo. Barthes identifica


o último como um novo tipo de verossimilhança, a
afirmação tautológica do real como real. Mas creio que a
crítica dos campeões reacionários da velha verossimilhança
via com mais acuidade o que estava em jogo: a invasão da

184
“democracia”, diziam eles: uma nova realidade social
“insistente” implodindo toda estrutura adequada do
enredo, qualquer concatenação correta das ações. Este é o
ponto: Barthes analisa o “efeito de real” da perspectiva
“modernista”, igualando modernidade literária, e seu
significado político, com a purificação da estrutura do
enredo, descartando as imagens parasíticas do “real”. Mas
a literatura como configuração moderna da arte de
escrever é justamente o oposto: ela é a supressão das
fronteiras que delineiam o espaço dessa pureza. O que está
em jogo neste “excesso” não é a oposição do singular e da
estrutura, é o conflito entre duas distribuições do sensível.
(RANCIÈRE, 2010. p. 86)

Esses elementos “menores” adentram, ainda, a produção de


Waly Salomão não como mero ornamento, mas enquanto
elemento poético e político, como aponta Roberto Said: “O
processo com o qual arruma suas quinquilharias de escrita opera
como um modo de decupar as palavras, potencializando-as de
sentido. A oikonomia de Waly, 'leitor luterano de Drummond',
revela-se igualmente sensível aos objetos menores.” (SAID, 2011. p.
187) Por fim, para dar fechamento ao diálogo com a teoria de
Rancière, a possibilidade da literatura trazer à tona esses elementos
menores e insignificantes, para o autor, está ligada ao estatuto
democrático da escrita. Tal traço da escrita depende de seu estatuto
órfão e independente com relação à voz do discurso. Nas palavras
do autor:

a escrita é aquilo que, ao separar o enunciado da voz que o


enuncia legitimamente e o leva a destino legítimo, vem
embaralhar qualquer relação ordenada do fazer, do ver e
do dizer. A perturbação teórica da escrita tem um nome
político: chama-se democracia. A condição órfã do escrito

185
sem pai corresponde o estado de uma política sem pastor
nem arquè. (RANCIÈRE, 1995. p, 9)

A democracia se erige, assim, a partir do momento em que


o discurso se aparta de um pai e, em termos derridianos, opera
contra o fonocentrismo da pensamento ocidental. A voz, nesse
enquadramento teórico, reencena no campo discursivo a
centralidade de poder e, enquanto presença, se liga ao conceito
metafísico de alma.
Isso posto, instaura-se um conflito entre tal mirada do
aspecto político da voz e a oralidade presente nos babilaques de
Waly Salomão. Como apontam a definição de Arnaldo Antunes
anteriormente exposta ou a de Arto Lindsay que afirma que os
babilaques são “poemas vocais [que engendram] relações múltiplas
entre o visual e o verbal” (SALOMÃO, 2007. p. 81) a dicção vocal é
um elemento central dos babilaques. Ao comentar a poesia de
Allen Ginsberg, por exemplo, Waly toma para si a missão poética
que o poeta novaiorquino já havia tomado de Walt Whitman, de
“alargamento do ritmo respiratório” da poesia, em que “todos os
aspectos da vida social e da realidade erótica transformavam o
poema em um 'campo de ação', veiculando o fluxo vivo da
experiência. Derrames seminais, injeções na veia da sensibilidade,
empapuçamento de gírias. O ouvido esperto de uma aparelhagem
de previsão do tempo captando as falas das ruas.” (SALOMÃO,
2005. p. 124-125)

186
Faz-se necessário, portanto, delimitar qual a política dos
babilaques – uma política da escrita que opera de modo diverso da
descrita por Jacques Rancière. Para isso, deve-se traçar uma leitura
suplementar do conceito de democracia literária que possibilite
perceber a função política da voz na escrita de Waly Salomão. Para
isso, primeiramente, deve-se compreender que a voz que perpassa
os babilaques de Waly Salomão, ao contrário da concepção
trabalhada por Rancière, é uma emanação de um corpo – um
corpo que escreve e compõe o corpo da escrita. Não se trata da voz
do discurso, que lhe dá autoridade e forma, mas, ao contrário, trata-
se da voz corporal que se inscreve visualmente nos babilaques,
jogando e experimentando formas do fazer artístico, através de
jogos com cores, espacializações, caligrafias diversas etc. A voz indica
o corpo de que é origem e se expande a partir dele, como aponta
Paul Zumthor (ZUMTHOR, 2010. p. 12), e, no caso da poesia de
Waly, apresenta seu corpo a partir da “potência da voz corpórea que
o impregna e o movimenta, fazendo-o verdadeiramente existir
junto, mas não dentro, à visualidade diagramada da página,
aspirando à condição de música” (ORNELLAS, 2008. p. 135).
Desse modo, a hipótese que se apresenta neste estudo é a de que se
trata de uma resistência do corpo que se manifesta nos babilaques
por meio da oralidade e que, desse modo, estabelece um nova
política.
A voz encarnada enquanto letra se apresenta nos
babilaques sob a forma de repetições gaguejantes, no jogo de

187
palavras e no uso de expressões em inglês, tiradas das ruas de
Manhattan. No babilaque “Brasilly”, de 1976, por exemplo, as falas
das ruas americanas compõem o “monstruário” de personagens de
um roteiro “rated-X”, em que se friccionam, como personagens de
um filme perverso/pervertido, a polidez e a cordialidade do
americano (“Miss Have a Nice Week-end” e “Mr and Mrs See You
Later) e seus preconceitos e exoticismos sobre corpos do outro
(“Lady Cockroach La Cucaracha” e “Big Bitch Fat Fag”). Waly
retraça, nessa obra, as vozes da América de Whitman e Ginsberg ao
esboçar um peça pornô em que os corpos de explorados e
exploradores do cenário estadunidense configurariam “personagens
em busca dum autor”, a partir do qual essas relações de abuso dos
corpos poderiam ser reencenadas ou revertidas em cena. Ao
mesclar, no título, seu nome e sua nacionalidade, Waly se insere na
cena enquanto corpo explorado – brasileiro, exilado, “Papagaya
Brasilyca” – em busca de um autor que reescreva a história de abuso
dos corpos minoritários, que dominavam a cena política tanto no
Brasil quanto nos EUA. (SALOMÃO, 2007. p. 92).
Aliada à presença da voz, nos babilaques “Contrutivista
Tabaréu” e “Logbook” o próprio corpo de Waly também se faz
presente, já que há a necessidade de segurar o caderno para que ele
mantenha a posição para o registro fotográfico. Suas mãos e braços
entram em cena e escancaram o processo criativo, a montagem dos
babilaques. Como afirma, Roberto Said:

188
A arqueologia da linguagem empreendida por Waly
expõe, portanto, os fósseis de sua composição. Todo o
processo da escrita - “caixão de lixo ou de arquivo” – é
elevado à condição de produto final. O caderno de notas,
entendido como resto do ato criativo, torna-se o próprio
objeto de criação. […] Ao migrar da página à rua, ao
perder o estatuto de esboço para ser apresentado como
arte-final, ao se afirmar como coisa entre coisas, o poema
babilaque instaura uma outra dinâmica de ressignificação.
(SAID, 2011. p. 187)

A aparição do corpo do artista indica que essa exposição do


processo criativo deve ser entendida, ainda, enquanto gesto
corporal. Jean-Luc Nancy, em seu livro Corpus, comenta que o
corpo toca a escrita nas suas extremidades, essa “excrição” do corpo
ocorrendo “ao longo do bordo, do limite, da ponta, da extremidade
da escrita, [onde] só acontece isso [tocar o corpo].” (NANCY,
2000. p. 11). É exatamente a periferia da escrita que Waly traz à tona
nos babilaques, seja na aparição de seu corpo, na exposição dos
objetos de composição – como as canetas em “Under the bare tree”
– ou ainda no tema de seus textos, voltados muitas vezes ao
processo de criação ou exposição dos babilaques. Por exemplo, o
texto de “Construtivista Tabaréu”, de 1977, a série mais longa de
babilaques, aparenta ser o esboço da apresentação que Waly fez em
Curitiba no mesmo ano: “Escolhi este nome para o evento
Walecture Walestra com projeção dos slides b-a-b-i-l-a-q-u-e-s-”
(SALOMÃO, 2007. p. 38). Ao captar fotograficamente esse texto
em diferentes lugares – na grama, entre pedras e na porta de um
carro – Waly faz durar sua apresentação – a primeira projeção

189
pública dos babilaques – e a desloca temporal e espacialmente.
Waly, ao invés de produzir um ensaio ou um artigo de sua projeção,
suplanta a efemeridade de sua apresentação expondo seus
bastidores e esboços, explorando o traço da inconclusividade que
marca sua obra.
O fato de o processo de composição se mostrar escancarado
confirma essa noção de inacabamento da obra que Waly Salomão
sempre retoma em seus poemas e babilaques. Em “Mondrian
Barato” o inacabamento se torna explícito e se mostra enquanto
resistência ao academicismo:

PRAZER DE ESCREVER por entre e CONTRA os


GUSANOS d'ALIBANIA por entre e CONTRA
bacharéis formando formados SCHOLARS professores
univers universitários críticos de arte críticos artístas
sindicalizados malícia against BULLSHITTING pelo
INAUGURAL contra o ACUMULATIVO acumulado
mesmo principalmente a acumulação de sapiência –
cúmulo da comilância ANTIARQUIVISTASSSSS pelo
NOTEBOOK caderno de apontamentos NOT BOOK o
inconcluído inconclusivo inconclusível o nunca
inteiramente gerado que se geragerageraexagera nunca era
(SALOMÃO, 2007. p. 66)

Nesse babilaque em específico, a noção política se volta ao


tom acusativo e aponta o pensamento acadêmico como um mal a
ser combatido. Apesar da escrita de Waly Salomão ser repleta de
referências do cânone literário e da tradição do pensamento
ocidental, a acumulação de conhecimento e o arquivismo são
apontados como métodos de censura do fazer artístico. Isso se dá
porque as figuras do arquivo e da “acumulação de sapiência”

190
referidas no babilaque dizem respeito a um modo de conhecimento
estanque e delimitador que era comum à academia da época. O
arquivo e o conhecimento dos babilaques é o do NOTEBOOK-
NOT BOOK, ou seja, um caderno de anotações, não um livro
acabado, engendrando um modo do (des)organização mais
próxima à do trapeiro benjaminiano do que do catálogo de
biblioteca.
Os elementos que povoam os babilaques, desde os cadernos
até as folhas de palmeira, se apresentam como restos da cultura,
objetos menores e desestabilizadores que não cabem nas
demarcações estéticas dos críticos e professores universitários da
década de 1970. Os textos dos babilaques, ainda, carregados de uma
oralidade desconsertante desafiam a discursividade e inauguram
uma linguagem. Waly trabalha com o que restou de fora do
pensamento vigente – seja do discurso acadêmico-conservador ou
da esquerda militante – e inaugura um outro modo de política,
uma política menor, do corpo.
A política dos babilaques, assim, adiantam a discussão das
“patrulhas ideológicas”, como discute Silviano Santiago ao apontar
o nascimento de uma “cultura adversária” dentro da esquerda
durante o processo de redemocratização (SANTIAGO, 2004. p.
136). Ao trazer o corpo para a discussão política, Waly retoma a
proposta hippie de liberdade dos corpos, mas a reencena nos fins da
ditadura brasileira, momento em que os corpos políticos que
restaram começam a conclamar novamente sua autonomia. Sabe-se

191
que o surgimento da nova esquerda no período da
redemocratização provém de movimentos de artistas e intelectuais
que propunham reivindicações – muitas vezes tomadas de
discussões políticas que surgiam no exterior – que não se
conformavam com as propostas dos partidos de esquerda. Dentre
elas, destacamos aqui a questão do corpo, que foi deixada de lado
pela esquerda exatamente por se ligar ao escapismo e ao pacifismo
da cultura hippie americana, atividades contraculturais tidas como
inofensivas.
A liberdade dos corpos aparece na escrita de Waly
entendendo o gesto da escrita como um gozo, como indica o
“prazer de escrever” de “Mondrian Barato” ou, mais diretamente,
como apresentado em um poema de Gigolô de Bibelôs:

minha disposição poética???

AMAR a página enquanto


CARNE numa espécie per-
versa de FODA (SALOMÃO, 1983. p. 171)

A proposta de combate moral e comportamental na obra


de Waly se diferencia do discurso hippie por se inserir em uma
contingência política de repressão estatal, tornando visível e
possível o corpo no contexto de violência e tortura. Para Paulo
Henriques Britto, a aproximação e o descompasso entre essas duas
culturas é o que marca a “geração pós-tropicalista”, cujos traços

192
podemos perceber na primeira poesia de Waly e em algumas de suas
letras de música:

A indignação ideológica dos engajados e a crítica social


irônica dos tropicalistas dão lugar a uma postura de
desencantamento e desânimo. No exato momento em que
uma parcela da juventude de classe média urbana brasileira
adota os cabelos longos e trajes coloridos que assinalam a
identificação com a “nação Woodstock” do primeiro
mundo, alguns dos mais significativos músicos populares
do período produzem um punhado de canções que, longe
de tematizar o amor livre, o psicodelismo ou a contestação
do sistema político, privilegiam temas como o medo, a
solidão, a derrota, o exílio, a loucura. (BRITTO, 2002)

Tendo sido produzidos em Nova Iorque, os babilaques


substituem esse traço sombrio por uma postura mais combativa e
inventiva, buscando novas possibilidades criativas. A
autorreferência que marca os babilaques indicam as tentativas e
êxitos de trilhar novos caminhos estéticos para a expressão que
contemple o prazer de produzir arte. O distanciamento da realidade
nacional propiciou a Waly refletir sobre os rumos de sua produção e
os modos com que sua escrita pudesse pensar a arte no Brasil; ou
seja, a partir de seu deslocamento geográfico, Waly pôde vislumbrar
a reorganização dos lugares que os babilaques operam na cultura
brasileira.
A política dos babilaques, por fim, propõe uma
desterritorialização, um resgate da oralidade que dá visibilidade ao
corpo e opera um questionamento dos lugares na cultura brasileira.
Assim, dentre as divergentes explicações do que seriam os

193
babilaques, talvez a mais acertada seja aquela relacionada ao
vocabulário policial, corruptela de badulaques, que designava o
conjunto de documentos e pertences que um indivíduo carrega
consigo. Isso porque os babilaques são o que Waly tem para
mostrar, são seu trabalho exposto. Bem mais que os documentos e
pertences que ele poderia carregar consigo, os babilaques
identificam Waly Salomão, sua política, seu corpo.

REFERÊNCIAS:

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tropicalista”. In: NAVES, Santuza Cambraia; DUARTE, Paulo
Sérgio (orgs.). Do Samba-canção à Tropicália. Rio de Janeiro:
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194
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ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2010.

195
O corpo excrito na bioficção de Mario Bellatin

Derick Davidson Santos Teixeira77

RESUMO: O texto trata da excrição do corpo, isto é, sua escrita


fora de texto, em Flores e em Los fantasmas del masajista de Mario
Bellatin, tendo como principal aparato teórico as propostas de Jean-
Luc Nancy em seu livro Corpus. A hipótese é de que a excrição do
corpo presente na escrita de Bellatin permite uma partilha do
corpo, tal como aconteceria em um possível corpus do corpo,
proposto por Nancy. Nessa perspectiva, em Bellatin, à medida em
que o corpo excrito emerge e fixa um primado em relação ao eu,
uma bioficção com uma política que lhe é própria se insinua. Se,
como afirma Nancy, sob o regime político do corpo significante,
não há espaço para o ser-em-comum e para os corpos partilhados,
essa bioficção termina por opor-se ao regime de poder sobre o
corpo.

PALAVRAS-CHAVE: Mario Bellatin, Jean-Luc Nancy, Corpo,


Biopolítica.

77 Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada, UFMG.

196
Hoc est enim corpus meum, (isto é o meu corpo), é a frase
que abre Corpus de Jean-Luc Nancy.78 O enunciado vem ilustrar,
desde sua ocorrência originária, daqueles que lhe dão valor de
consagração real e comungam em deus, passando pela repetição de
um “paganismo obstinado”, a primazia do corpo na política e
cultura ocidental. O que vem agora, escreve Nancy, 79 é o mundo
dos corpos: desde a densidade dos corpos da Segunda Guerra
Mundial, aos corpos refugiados, corpos saturados de significação,
corpos midiáticos ou, ainda, como escreve Mario Bellatin em
Flores,80 os corpos de cerca de 10 mil crianças que tiveram os corpos
marcados por aquilo que deveria ser um avanço da ciência, a saber,
a Talidomida, medicamento criado por volta de 1960 para aliviar as
náuseas durante a gravidez e que, por um efeito contrário, causou a
má formação dos fetos.
Esse primado do corpo no ocidente que atinge agora seu
ápice, lembra Agamben,81 é anunciado de forma implícita já 1679
com o writ de Habeas Corpus, o qual estabelece, judicialmente, que
é indispensável a presença de um corpo para ser exibido. É singular,
ele nota, que nessa fórmula não esteja mais presente o velho
sujeito das relações feudais, mas, sim, o puro e simples corpus. O
que leva rapidamente à constatação de que, nesse mundo dos
corpos, não está mais em jogo o “homem livre, com suas

78 NANCY. Corpus. p. 5
79 NANCY. Corpus. p. 39
80 BELLATIN. Flores. p. 367
81 AGAMBEN. Homo Sacer. p. 122

197
prerrogativas e os seus estatutos, e nem ao menos simplesmente
homo, mas corpus é o novo sujeito da política”.82
Esse corpo de destaque na cena política e em debates
contemporâneos aparece não só naquilo que desde Guy Debord se
convencionou chamar sociedade do espetáculo, mas está também, e
antes de tudo, no excesso que nos mostram as imagens, como
escreve Nancy: os “milhões de corpos como jamais foram
mostrados” os corpos das multidões, acumulações, “tumultos, [...]
exércitos, bandas, debandadas, fugas, bancadas, procissões, colisões,
massacres, carnificinas, comunhões, dispersões”, enfim, no excesso
de corpos expostos diariamente.83
Embora este seja um mundo de corpos, o que conhecemos
no nível discursivo é tão somente o corpo significante. Nos mais
diferentes discursos, nos lembra Nancy, como semiologia ou
fenomenologia, trata-se sempre do “corpo-hipersignificante” tal
qual um corpo histérico saturado de significação. 84 Abordagens
essas que contornam o fato de que a linguagem, na sua finitude,
nunca abarca o corpo sem deixar dele um resto que escapa à esfera
do simbólico. O corpo, escreve Nancy, é sempre o estrangeiro,
como vemos no enunciado da comunhão cristã no qual “o isto é o
meu corpo” só mostra o “impossível de engolir” pois “ Se hoc est
enim corpus meum” diz alguma coisa é exterior a palavra, não é
dito, mas excrito”.85 Ou, ainda com Nancy, “os corpos não têm

82 AGAMBEN. Homo Sacer. p. 120


83 NANCY. Corpus. p. 39
84 NANCY. Corpus. p. 23
85 NANCY. Corpus. p. 7

198
lugar no discurso, nem na matéria”, têm antes “lugar no limite,
enquanto limite: limite – bordo externo, fractura e intersecção da
estranheza no contínuo do sentido, no continuo da matéria”. 86 Ou
mais, o corpo só faz sentido “no lugar em que, para o sentido, existe
um limite”.87 Não diremos aqui, portanto, que o corpo é anterior,
posterior ou exterior à ordem significante, mas que está no limite.
É nessa linha de pensamento que para o filósofo o corpo
puramente significante, isto é, o corpo totalizado na linguagem, é
sempre um corpo ilusório. O lugar devido do corpo se dá naquilo
que ele chama arealidade, palavra que evoca área e, ao mesmo
tempo, uma falta de realidade.88 Entre linguagem e não linguagem,
saber e não-saber, em suma, entre simbólico e aquilo que Lacan
chamou de Real. Para Lacan, sabemos, Real e realidade não se
confundem, sendo a realidade, enquanto tecida pelo simbólico,
precisamente aquilo do qual o Real está ausente. Do “lado do zero
absoluto”, como escreve Lacan, o Real é o território que “foraclui”
o sentido,89 onde domina o não-saber ou, ainda, segundo uma
famosa definição, o Real é aquilo que não cessa de não se escrever.
A falta de realidade constitui, assim, todo o Real da arealidade,
constata Nancy.90 Se tratando da noção de arealidade, o binarismo
linguagem e inefável é substituído pela confluência de ambos. No
terceiro espaço onde se localiza o corpo, não se trata do jogo de

86 NANCY. Corpus. p. 18
87 NANCY. Corpus. p. 14
88 NANCY. Corpus. p. 42
89 LACAN. O Seminário, livro 23: O Sinthoma. p. 117
90 NANCY. Corpus. p. 42

199
presença e ausência da lógica metafísica, mas, sim, do encontro de
duas esferas distintas tal qual ocorre na aurora evocada pelo
filósofo:

A vinda ao mundo dos corpos, a sua fotografia, dá-se na


claridade que vem depois da lua e antes do sol. A aurora é
o traçado do traço, a apresentação do lugar. A aurora é o
único meio dos corpos, que não podem subsistir nem no
clarão nem no gelo (o pensamento solar sacrifica os
corpos, o pensamento lunar fantasmagoriza-os: um e
outro compõe o sistema asteco-austríaco, que também dá
pelo nome de metafísica.91

O mundo dos corpos é, então, o mundo onde o dentro e o


fora se embaralham, como conclui Nancy 92 ao tomar o corpo no
seu ponto onde o dentro e fora da linguagem se confundem. Essa
estrutura particular de uma confluência entre o dentro e o fora na
qual se situa para Nancy o corpo Lacan chamou, através de um
neologismo, de extimidade.93 Tal qual ocorre na Banda de Moebius
o binarismo dentro/fora é negado, visto que o que se encontra aqui
está também lá, interno e externo.
Se na filosofia, como lembra Nietzsche 94 e Nancy, não
houve corpos, e se sob o regime político o que temos é o corpo
totalizado sob o regime de poder, na literatura, por outro lado, só
houve corpos. Contudo, como escreve Nancy,95 tratou-se,

91 NANCY. Corpus. p. 47
92 NANCY. Corpus. p. 31
93 LACAN. O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. p .169
94 NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra. p. 43-45
95 NANCY. Corpus. p. 69

200
majoritariamente, de corpos significantes ou significados. Seja
através da ficção, no jogo das representações que toca o corpo
causando temor, piedade ou riso e que é, por sua vez, sempre um
tocar distanciado pelo fictício; seja através dos corpos dentro da
ficção gerados para significar, tal qual Quixote e Proust ou, ainda, a
própria produção, da qual, barthesianamente falando, o escritor
goza com seu corpo.
Para o corpo na sua arealidade, isto é, na sua confluência
entre o dentro e o fora, seria necessário, portanto, um corpus: um
“discurso inquieto, sintaxe casual, declinação de ocorrências. [...]
Não o corpo-animal do sentido, mas a arealidade dos corpos: sim,
corpos extensos até ao corpo morto. Não o cadáver, onde o corpo
desaparece”, mas um corpo que, “enquanto tal, mostra o morto na
derradeira discrição do seu espaçamento: não o corpo morto, mas o
morto como corpo”,96 afinal não há nenhum outro.
Propomos, então, um corpus do corpo excrito a ser
partilhado: “a excrição do nossos corpo, eis por onde se deve passar,
antes de tudo. A sua inscrição-fora, a sua deslocação fora-de-texto
como o movimento mais próprio do seu texto”. 97 Tratar-se-á, nesse
corpus de uma escrita na qual o corpo não é rebaixado à categoria
de corpo significante, pelo contrário, será essa uma escrita onde
“todo ele está no limite, no bordo externo” a própria escrita excrita,

96 NANCY. Corpus. p. 53
97 NANCY. Corpus. p. 12

201
“num rastro infindavelmente quebrado, partilhado através da
multidão dos corpos”.98
Chegamos, enfim, a Mario Bellatin, escritor
contemporâneo, nascido sem o braço direito, sendo esse um
detalhe da vida que, como um biografema, já parece “destinado a
atingir um corpo futuro”.99 Em Flores (2013) e em Los Fanstasmas
del Masajista (2013) o corpo mutilado, marcado pela falta, tem
lugar basilar na escrita. Ressalto, contudo, que não se trata, em
Bellatin, de um discurso meramente confessional, pois não estamos
diante de um relato do corpo do autor aos moldes da autobiografia
clássica. Da mesma forma como a obra de Borges, analisada por
Eneida de Souza, apesar da nítida inclinação biográfica, Bellatin
também “desconfia do apelo realista que privilegia as coincidências
entre obra e vida, incentiva os deslocamentos contínuos entre ficção
e realidade, além de embaralhar o senso comum dos leitores”. 100
Nessa mesma via, diferente do que acontece na autoficção, 101 noção
agora em voga nos estudos das escritas do eu, não há em Bellatin
um esforço meramente autorreferencial. Veremos que, antes de
tratar do eu, em Bellatin, é do corpo ou corpus-ego que se trata.
Em Flores (2013), livro no qual a escrita literária aparece em
uma espécie de troca osmótica com uma taxonomia botânica, sob o
nome de cada flor o corpo incide na escrita. Estruturado em dialogo
com o método de Gilgamesh, a construção da na narrativa

98 NANCY. Corpus. p. 12
99 BARTHES. Sade; Fourier; Loyola. p. xvi xvii
100 SOUZA. “Notas sobre a crítica biográfica”, p. 106-107
101 Ver, por exemplo, Ensaios sobre a Autoficção (2013)

202
pretende, a partir da soma de determinados objetos, formar um
todo.102 Assim, na terceira pessoa, esse texto segue como se a cada
fragmento o corpo se escrevesse indicialmente, apontando para
aquilo que do texto permanece extra textual e extra significante, isto
é, aquilo que se excreve. Evocando, ainda, no estilhaçamento do
texto, a tensão junto ao sistema significante 103 e a fragmentação da
escrita104 próprias à excrita do corpo, visto que leva desse sua
resistência à linguagem e sua descontinuidade.
A figura do autor aparece somente na construção de um
duplo chamado precisamente “o escritor”, personagem que mescla
as visitas à mesquita com visitas a zonas de práticas sexuais
alternativas. A cada nome de flores que compõe o livro o corpo
marcado pela falta reincide, não através de uma descrição exaustiva
do corpo, nem mesmo através de algum trabalho com a linguagem
que faria desse corpo um corpo hiper-significante. A incidência do
corpo se limita àquilo que Nancy chamou letricidade que não é
para ser lida como decifração.105 É assim que o narrador nos diz que
em dada ocasião o escritor:

Vestia calças curtas e havia colocado uma perna decorada


com pedras artificiais. Apesar de todos seus esforços
ninguém parecia disposto a conhecer as possibilidades
sádicas ou masoquistas que esse membro falso é capaz de
oferecer. 106

102 BELLATIN. Flores. p. 362


103 NANCY. Corpus. p. 82
104 NANCY. Corpus. p. 21
105 NANCY. Corpus. p. 85
106 BELLATIN. Flores. p. 365

203
Não há, aqui, psicologia do corpo, nem ensejo a leitura como
decifração. Na mesma via, sequer vemos em Flores um discurso
puramente confessional do corpo do autor, pois o corpo do escritor
que remove a perna adornada com pedras ao entrar na mesquita é
somente um corpo junto aos corpos das crianças, vitimas do
mesmo medicamento. Narrado em um tom que caminha em
direção ao neutro, à medida em que o corpo do escritor se desloca
em meio a outros corpos, a brutalidade do biográfico e a
pessoalidade que ele abarca são deixados de fora. É notável que o
corpo que perpassa a narrativa não é, assim, forçosamente, o corpo
de Mario Bellatin, mas tão somente os corpos, sendo esses, ainda, os
objetos que somados, ao final, formariam um todo. O todo do
corpo partilhado com outros corpos.
Nessa perspectiva, não há em Flores um relato que se
pretende totalizante do corpo de Bellatin, gesto que parece
satirizado na própria ficção. Em um episódio, é relatado um sonho
no qual, obedecendo ao comando de uma plateia, o escritor aceita
exibir o seu corpo mutilado para um público que, em resposta,
gargalha. O corpo transformado em espetáculo se torna, assim, um
pesadelo.
Em Los fantasmas del Masajista (2013) o duplo que lemos
em Flores é substituído pelo uso da primeira pessoa. Mas,
novamente, o afastamento do eu e a emergência do corpo se
efetuam. A primeira pessoa aparece só para, em seguida, dar lugar a
emergência de outros corpos. É nessa perspectiva que, se referindo à

204
sua viagem a São Paulo para tratar da gradual deformação que seu
corpo sofre devido à falta de um membro, o eu que ali fala se afasta
para dar lugar aos outros corpos que buscam, nas mesmas águas, “a
paz que seus corpos parecem necessitar”.107 Dentre eles se encontra
o corpo da mulher que continua a sofrer dores no membro ausente
ou no “membro fantasma”, como escreve em outro momento o
narrador.108 Fato que vem ecoar a independência que o corpo tem
da psique, para Nancy,109 autonomia do corpo que o narrador
atribui ao atraso do inconsciente que não pode perceber nesse caso
os verdadeiros limites do corpo.110 Produz-se, assim, algo como se
um esforço autorreferencial fosse seguido de uma subtração de um
afastamento da pessoalidade.
Na mise-en-abyme que existe na narrativa, ao contrário do
que acontece comumente na autoficção,111 não encontramos rastros
da figura do escritor, pelo contrário, essa cena em abismo é a
intensificação do desaparecimento do eu e a emergência do corpo.
O enredo que segue diz respeito ao massagista cuja mãe, uma
declamadora de sucesso, morre após fracassar durante a declamação
de Construção de Chico Buarque. Uma dupla queda, a queda do
corpo na canção é também a queda do corpo da declamadora. No
momento em que a mãe se torna corpo, uma operação é idealizada:
para eternizar o corpo far-se-ia uma mortalha especial que faria com

107 BELLATIN. Flores. p. 557


108 BELLATIN. Los Fantasmas Del Massajista. p. 600
109 NANCY. Corpus. p. 23
110 BELLATIN. Los Fantasmas Del Massajista. p. 588
111 COLONNA. “Tipologia da autoficção”. p. 55

205
que corpo e papel se fundissem formando juntos um terceiro
material. Operação que é impossibilitada por uma questão
financeira levando à constatação de que, metaforicamente, aqui
também o corpo não se escreve.
Além do fantasma da perna ausente da paciente que
continua a sentir dor no membro que já não existe, o massagista
lida também com o “fantasma da mãe” que vive agora no corpo de
um papagaio que repete compulsivamente a canção de Chico
Buarque, fazendo ressoar através da repetição a queda do corpo
que, nas palavras do narrador “prefere voar como um pássaro antes
de seguir mantendo uma vida fantasma”. 112 Vida fantasma que, ao
lado do estorvo do corpo, seria, ainda segundo o narrador, “a
desculpa adequada para alguém que prefere pular no vazio ao invés
de levar uma existência tão previsível que poderia se eternizar em
uma canção.”.113 A vida fantasma sujeita a padronização da
coletividade é aqui “tanto ou pior que a de uma perna sem
movimento, que a de uma mãe transformada em papagaio, ou a do
físico que vai se transformando em uma massa irreconhecível”. 114
Diante da padronização é necessário, portanto, um retraimento,
um ausentar-se.
Nessa escrita é o eu quem sofre o estorvo do corpo, pois em
relação ao corpo, em Bellatin o eu está sempre em descompasso. No
deslizamento do texto o corpo ao poucos fixa um primado em

112 BELLATIN. Los fantasmas Del Massajista. p. 601


113 BELLATIN. Los fantasmas Del Massajista. p. 601
114 BELLATIN. Los fantasmas Del Massajista. p. 601

206
relação ao eu, à medida em que, paralelamente, a pessoalidade se a
afasta e a neutralidade emerge. Assim o narrador conclui “esse
corpo me incomoda”,115 enunciado que condensa em si ambos a
primazia do corpo em relação ao eu e o lugar basilar do corpo na
escrita.
Na excrição do corpo, escreve Nancy, o corpo é letra, ou,
ainda, “letricidade” que não é para ser lida como decifração do
sentido.116 Noção cara à psicanálise, a letra recebeu de Lacan em
“Lituraterra”117 o predicado de ser aquilo que faz litoral entre saber
e gozo, na borda do simbólico ela faz furo no saber apontando para
aquilo que no simbólico não se escreve. Por outro lado, apesar de
ilegível, a letra é a própria sustentação do que chamamos legível. Na
estrutura êxtima dos textos de Bellatin, o corpo excrito, como o
dentro que denuncia o seu fora, se faz letra, entre saber e não saber,
na borda do texto, onde temos de um lado a textualidade do outro
sua ausência. Em suma, um corpo dentro apontando para seu fora,
assim como no “Hoc est enim corpus meum” da tradição cristã que
faz simbolicamente presente, numa inclusão exclusiva, aquilo que
está fora.
Ainda, esse corpo, digamos, órfão, no seu primado em
relação ao eu, vem evocar a noção de Corpus-ego presentes no
corpus do corpo excrito. Para Nancy um corpo só pode ser
partilhado se, além da sua escrita fora de texto ele for destituído de

115 BELLATIN. Los fantasmas Del Massajista. p. 601


116 NANCY. Corpus. p. 85
117 LACAN. “Lituraterra”. p. 11-23

207
um dono: “o axioma material, ou a arqui-tectónica absoluta do
corpus ego implica, assim, que não haja ‘ego’.”118 Pois o Eu:

Constitui também o obstáculo absoluto ao corpo, à vinda


de um corpo. O ponto de ego de um corpo que (se)
enuncia, isto é, que (se) estende, forma também[...] um
ponto de concentração extrema onde o si que se estende e
se enuncia ofusca a extensão, o corpo que ele é.119

Um Corpus ego isto é, um ser-corpo no seu primado em


relação ao eu “é sem propriedade, sem “egoidade” . É assim que,
em Bellatin, não há a egoidade de um eu ligando se a si ou
apertando sobre o corpo seu laço de posse, mas, sim, o corpo sem
dono partilhado como o corpo que ele é . Ainda, se do lado do eu,
por vezes, instaura-se “o espaço contínuo, [...] o elo do sentido ou
o sentido em cadeia fechada”, o primado do corpo “desencadeia o
sentido, ou torna seu elo indefinido, discreta travessia de lugar em
lugar, de todos os lugares”.120 Com Ranciere, podemos afirmar,
ainda, que é esse aspecto de uma ausência de Eu que dá à escrita sua
característica muda e falante demais. Muda pois não há nenhuma
voz presente para dar às palavras sua verdade e por isso ela é falante
demais: “a letra morta vai rolar de um lado para o outro sem saber a
quem se destina, a quem deve, ou não, falar”. 121 Dupla partilha, a
partilha do corpo em Bellatin caminha com a partilha da escrita.

118 NANCY. Corpus. p. 27


119 NANCY. Corpus. p. 29
120 NANCY. Corpus. p. 27
121 RANCIERE. Políticas da escrita. p. 7

208
Longe da chamada autoficção, a escrita de Bellatin aponta
para aquilo que poderíamos chamar uma bioficção, onde o
primado é do corpo excrito e partilhado. Nisso que proponho
chamar uma bioficção uma política da escrita se insinua. Como
lembra Nancy, sob o regime político do corpo significante :

Não há espaço para o ser-entre-nós ou para o ser-em-


comum e não há espaço para os corpos, o seus traçados, os
seus encontros, o seus acidentes singulares, o seus postos e
posturas no trabalho, a troca e toda a indefinida
declinação das “condições comuns”122

Para o regime político, em outras palavras, não há res


extensa, termo cartesiano que indica o empecilho que encontra o
pensamento, sendo esse obstáculo precisamente o corpo. 123 Sob o
regime político, portanto, o que temos é o corpo assimilado, feito
item de calculo, ou, ainda, como escreve Nancy, 124 os corpos
individualizados pertencendo a um único corpo comum. Essa
bioficção com a sua partilha do corpo, portanto, vem opor-se ao
regime de poder sobre o corpo.
Isso que na esfera política agora se estende até o corpo
quer, com Peter Pál Pelbart,125 o chamemos “capitalismo cultural,
economia imaterial, sociedade do espetáculo” ou era da biopolítica,
vampiriza também aquilo que desde Heráclito é o bem mais
comum, a saber, a linguagem. O corpo assim escrito dentro-fora

122 NANCY. Corpus. p. 70


123 NANCY. Corpus. p. 70
124 NANCY. Corpus. p. 70
125 PELBART. Vida Capital. p. 20

209
vem ecoar o corpus bifronte “portador tanto da sujeição ao poder
soberano quanto das liberdades individuais” sobre o qual fala
Agamben.126 Uma representação dessa dualidade nos encontramos,
novamente, na Banda de Moebius, figura topológica que representa
a extimidade, evocada por Peter Pál Pelbart 127 para ilustrar a
oposição que a potência da vida faz ao poder sobre a vida, jogo que
aqui coincide precisamente com o corpo fora e dentro,
respectivamente. Ao corpo fora acrescenta-se, portanto, a potência
do corpo. Se no registro do poder, teríamos, como evoca Agamben
a grande metáfora do Leviatã cujo corpo soberano é formado por
todos os outros corpos,128 o corpus da bioficção de Bellatin pode ser
representado na figura do nômade presente no conto de Kafka, 129
evocada por Petter Pal Pelbart:

presente e ausente simultaneamente, ele está na tua frente


e ao mesmo tempo te escapa, sempre está dentro e fora, da
conversa, da família, da cidade, da economia, da cultura,
da linguagem. Ocupa um território mas ao mesmo tempo
o desmancha, dificilmente entra em confronto direto com
aquilo que recusa, não aceita a dialética da oposição, que
sabe submetida de antemão ao comando do adversário,
por isso ele desliza, escorrega, recusa o jogo ou subverte-lhe
o sentido, corrói o próprio campo e assim resiste as
injunções dominantes. [...] faz da própria
desterritorialização um território subjetivo 130

126 AGAMBEN. Homo Sacer. p 121


127 PELBART. Vida Capital. p. 14
128 AGAMBEN. Homo Sacer. 122
129 KAFKA. “Durante a construção da Muralha da china”
130 PELBART. Vida Capital. p. 20

210
Há, assim, uma política da escrita em Bellatin, não ao nível
do significado, pois não se trata de uma escrita política, já que o
autor não está a serviço de uma ideologia, mas, sim, no próprio
gesto da escrita e da excrição que ela comporta. Ranciere nos diz,
em Politicas da escrita que:

Escrever é um ato que, aparentemente, não pode ser


realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que
realiza: uma relação da mão que traça linhas ou signos com
o corpo que ela prolonga: desse corpo com a alma que o
anima e com os outros corpos com os quais ele forma uma
comunidade.131

Gesto que também não se realiza sem o suporte de um corpo que


tem lugar. Nesse gesto, pode dar –se “a graça de um corpo que se
oferece”. Não mais, como lembra Nancy, os corpos empregues
“para fazer sentido [...] mas um pensamento e uma escrita que se
entregam , que se dão aos corpos. Na escrita de um corpus
enquanto partilha dos corpos, partilhando o seu ser-corpo, mas não
o significando”.132 Em suma, uma escrita que faz do corpo sua
excrição. Se há uma comunidade dos corpos e se ela resiste, como
propõe Nancy, podemos afirmar que é somente se houver um
corpus do corpo excrito e por isso partilhado.

131 PELBART. Vida Capital. p.7


132 NANCY. Corpus. p. 82

211
REFERÊNCIAS:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua


I. Belo horizonte: UFMG, 2010.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Trad. Mario Laranjeira.
São Paulo: Martins Fontes, 2005

BELLATIN, Mario. Flores . Ed. Alfaguara, 2005

BELLATIN, Mario. Los Fantasmas del Massajista. Ed. Alfaguara,


2005

COLONNA, Vincent. Tipologia da autoficção. In: NORONHA,


Jovita Maria Gerheim.(Org. ). Ensaios sobre a autoficção. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 39-66.

FOUCAULT. Michel. História da Sexualidade I: a vontade de


saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. 14. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 2001.

KAFKA, Franz. “Durante a construção da Muralha da China” In:


Narrativas do espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Cia das
Letras, 2002.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Trad.


Antonio Quinet. Rio de Janeiro: J. Zahar,1991.

LACAN, Jacques. “Lituraterra”. In:. Outros escritos. Rio de


Janeiro: J. Zahar, 2003, p. 11-23

LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: O Sinthoma. Trad. Sérgio


Laia. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007.

NANCY, Jean-luc. Corpus. Trad. Tomas Maia. Lisboa: Vega, 2000.

212
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Trad. Alex
Marins, São Paulo: Martin Claret, 2011 .

NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). Ensaios sobre a


autoficção. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
PELBART, Peter Pál .Vida capital. São Paulo: Iluminuras, 2011.

RANCIERE, Jacques. Políticas da escrita. Trad. Raquel


Ramalhete, Laís Eleonora, Lígia Vassalo, Eloísa de Araujo Ribeiro
Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

SOUZA, Eneida Maria de. Janelas Indiscretas. Belo Horizonte: Ed.


UFMG, 2002.

213
Morte e vida no corpo e na linguagem: uma
análise de “A Natural History of The Dead” de
Ernest Hemingway.

Bruno Henrique Alvarenga Souza133

RESUMO: A proposta da comunicação é analisar o conto “A


natural history of the dead” do escritor americano Ernest
Hemingway à luz da biopolítica, enfatizando a relação entre a
linguagem e objetivação da morte presente no texto. Teremos como
aparato teórico o conceito de Homo Sacer elaborado por Giorgio
Agamben, utilizando-o como intersecção para compreender as
críticas feitas por Hemingway à sujeição da vida e da morte aos
poderes do estado e da medicina. É nossa proposta também, através
do conto trabalhado, interrogar as possibilidades políticas da arte e
da literatura frente às questões contemporâneas do corpo e das
relações de força que o atravessam, assim como demonstrar como
Hemingway, autor da primeira metade do século XX, já antecipava
alguns procedimentos em voga na literatura contemporânea, como
a bioficção, o uso de uma linguagem direta e comportamental, a
abolição das fronteiras entre ficção e realidade, além da constituição
híbrida de gêneros.

PALAVRAS-CHAVE: Biopolítica, estilo, corpo.

133 Mestrando em Estudos Literários (PÓS-LIT/FALE) pela Universidade Federal de


Minas Gerais (UFMG). Graduado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

214
Dono de uma das biografias mais movimentadas da história
da literatura moderna, Ernest Hemingway foi jornalista, motorista
de ambulância na Primeira Guerra Mundial, membro dos exilados
da Lost Generation, militante pró revolucionários na Guerra Civil
Espanhola, sobrevivente de um grave acidente aéreo. Foi também
um aficionado pelo boxe, pelas touradas, pelas caçadas e pescarias,
assim como pelas mulheres: foram quatro casamentos e incontáveis
affairs. Mesmo sua trágica morte, suicidou-se com um disparo de
rifle aos 61 anos de idade, acabou por contribuir para a criação da
mística por trás de um dos expoentes da literatura do século XX.
Porém, todas essas atividades que moveram Hemingway estavam
submetidas a uma única, que as legitimava ao mesmo tempo em
que se nutria delas: a escrita.
A matéria prima de sua ficção foi sua própria vida. Não que
fosse memorialista ou autor estritamente autobiográfico; mas
Hemingway foi daqueles que só escreveu sobre o que conhecia por
experiência própria: e sua experiência, como vimos, era ampla. Mas,
do mesmo modo que sua vida alimentou sua ficção, também
ocorreu o inverso. Hemingway costumava embelezar a realidade, se
atribuía façanhas inexistentes ou praticadas por outros. Viver, para
Hemingway, era literatura.
Tanto a própria figura de Hemingway quanto seus
personagens têm muito daquilo do que Walter Benjamin
denominou de narrador: alguém que vem de longe com histórias
para contar, mas que ao mesmo tempo é aquele que nunca saiu do
lugar que habita e conhece toda a tradição e os segredos da terra

215
natal. O estrangeirismo de Hemingway e de seus homens e
mulheres do mundo – inclusive, o título de um dos seus melhores
contos não à toa é “Man of the world” – é naturalmente
aproximado do viajante de Benjamin. Em muitas de suas histórias
nos deparamos com figuras solitárias em lugares distantes de seu
país de origem, seja um jornalista americano estabelecido em Paris,
um soldado voluntário lutando por uma nação que não é a sua, um
estrangeiro caçando em meio à savana africana. Em todas estas
situações de forasteiro esteve o próprio Hemingway. Mas há
também um pouco de narrador nativo em toda essa literatura
cosmopolita: há o soldado que volta para a casa e busca novamente
seu lugar, há o menino criado em meio aos índios no interior dos
Estados Unidos, há o jovem que visita os rios da infância para
pescar trutas. Estes foram também Hemingway. O artífice viajante
não se distingue do mestre sedentário. Talvez essa seja a razão do
enorme sucesso de crítica e público alcançado logo na publicação de
seu primeiro romance, The sun also rises. Tal êxito, tanto literário
quanto comercial, encontra raros equivalentes no século XX e serve
como indício da ausência de fronteiras que caracteriza a literatura
de Hemingway. Esse homem desterritorializado por excelência não
encontrou, também como narrador, limites culturais e geográficos
que refreassem sua escrita.
Benjamin dizia que a força do narrador provém da morte:
“a morte é a sanção de tudo o que o narrador pode relatar. É da
morte que ele deriva sua autoridade”. 134 Hemingway era
134 BENJAMIN. “O narrador”, p. 224.

216
atormentado pela morte. Desde os ensaios sobre as touradas, até o
ato final suicida: sua vida e sua literatura são um longo vislumbre
da morte, o que contrasta com a intensidade de sua personalidade e
de suas experiências. Como observou Otto Maria Carpeaux:
“Hemingway, esse homem de vitalidade enorme, é especificamente
o escritor, quase, eu diria, o poeta da morte”. 135 A hiena que espreita
pacientemente o moribundo em “Snows of Kilimanjaro” é um
símbolo que atravessa toda a sua obra. Mas morrer, em
Hemingway, não é apenas um acontecimento inefável que cabe à
existência individual: todo o campo coletivo é atravessado pela ideia
do esgotamento da vida e da própria resistência desta ao
acontecimento infalível. A obstinação da vida em confronto com a
morte é como a empreitada de Santiago em The old man and the
sea: devotada e corajosa, mas sempre fadada ao fracasso.
Em 1932, Hemingway publica Death in the afternoon,
ensaio que tem por base as touradas espanholas, mas que se abre
para uma profunda reflexão sobre a morte. Originalmente, tal
ensaio possuía um capítulo que versava sobre a experiência de
Hemingway no front da Primeira Guerra Mundial: usando de um
tom satírico, o escritor se colocava na pele de um naturalista que se
propõe a estudar os mortos por uma perspectiva racional e
científica, voltando-se para um campo de observação privilegiado
para tal tarefa: a guerra. Essa premissa serve para que Hemingway
critique de forma virulenta a desumanidade da guerra, escolas
literárias como o Humanismo e a literatura de guerra escapista e
135 CARPEAUX. Hemingway: tempo, vida e obra, p. 67.

217
também o próprio naturalismo. O capítulo foi posteriormente
suprimido de Death in the afternoon, e incluído na coletânea de
contos Winner take nothing, de 1933, com o nome de “A natural
history of the dead”. Tal mudança sugere a independência do relato
em relação ao ensaio que o originou e, principalmente, acentua seu
caráter ficcional. De certa forma, um ponto atípico na produção do
escritor e mesmo esquecido pela crítica, “A natural history of the
dead”, no entanto, nos aparece como um poderoso manifesto
literário biopolítico, onde os atravessamentos entre vida e morte,
corpo e linguagem, ciência e literatura, propiciam a exposição de
uma espécie de ética do estilo.
O conto136 é estruturado em duas partes bem delimitadas. A
primeira é a parte expositiva, onde um narrador bastante irônico
faz apologia do naturalismo científico como método de estudo
sobre os mortos. A segunda parte é uma pequena historieta em
forma de anedota sobre um soldado ferido mortalmente e a recusa
de um médico em auxiliá-lo a morrer. As duas partes se conectam, a
última servindo quase como ilustração das teorias expostas na
primeira. Parece-nos interessante inverter o caminho, iniciando a
análise pelo episódio envolvendo o médico e o moribundo, que é
quase didático ao representar a disposição biopolítica da medicina.
136 Cabe salientar que “A natural history of the dead” está longe de ser um ensaio
tradicional, sendo mais passível de ser entendido como uma sátira do gênero, onde o
narrador funciona como um personagem ficcional que não deve ser identificado com
o autor. Classificaremos, portanto, o texto como conto, levando em conta não apenas
a história de sua publicação (posteriormente à sua primeira e única aparição na
primeira edição de Death in the afternoon, “A natural history of the dead” sempre foi
incluído em coletâneas de contos), mas também sua óbvia composição ficcional,
evidenciada tanto nas exposições do narrador quanto na conclusão do texto, quando
tem lugar uma narrativa claramente fabulada.

218
Em uma montanha, onde uma das cavernas serve de posto
militar, um soldado teve a cabeça despedaçada “as a flower-pot may
be broken”137 e resta gemendo de dor em um buraco próximo à
entrada da caverna, junto a outros mortos. O sofrimento do
moribundo incomoda os soldados que estão no posto, e estes
tentam dissuadir o médico a executar ou mesmo permitir que eles
mesmos façam a eutanásia. A pequena narrativa é quase
completamente estruturada em diálogos. O despojamento da
linguagem e dos personagens evidencia o caráter satírico, que já era
demonstrado na parte anterior do conto:

“We don’t like to hear him in there with the dead”


“Don’t listen to him. If you take him out of there you will
have to carry him right back in.”
“We wouldn’t mind that, Captain Doctor.”
“No”, said the doctor. “No. Didn’t you hear me say no?”
“Why don’t you give him an overdose of morphine?”
asked an artillery officer who was waiting to have a wound
in his arm dressed.
“Do you think that is the only use I have for morphine?
Would you like me to have to operate without morphine?
You have a pistol, go out and shoot him yourself”.138

137 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 339. “Como um vaso de flores pode
ser despedaçado” (Tradução nossa).
138 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 340.
“‘Incomoda-nos ouvi-lo lá com os mortos’
‘Não escutem. Se o tirarem de lá terão que voltar com ele depois.’
‘Não faz mal, capitão-doutor.’
‘Não’, disse o médico. ‘Não. Já não me ouviram dizer não?’
‘Por que não lhe dá uma dose dupla de morfina?’ perguntou um oficial de artilharia
que esperava que lhe fizessem um curativo no braço ferido.’
‘Pensa que é só para isso que emprego a morfina? Quer que eu opere sem morfina?
Você tem um revólver, vá lá e dê um tiro nele você mesmo’”
(Contos Vol. 2, p.295. Tradução J.J. Veiga).

219
Chama a atenção o modo quase circunstancial como o diálogo se
desenvolve, como se os envolvidos discutissem e opinassem sobre
um problema banal. Há, inclusive, um tom paternal nos dizeres do
médico, como se este estivesse repreendendo crianças. A posição
dos soldados em relação ao moribundo é marcante, pois para eles é
difícil “escutá-lo lá com os mortos”, o que quer dizer que ainda o
percebem como dotado de vida, por mais precária que esta seja. Já
para o médico, o ferido é um fardo inútil que os soldados teriam
que carregar de volta caso tentassem salvá-lo, ou seja, para a
medicina, servidora do poder estatal que precisa de homens
prontos para guerrear, tornou-se uma vida descartável, desprovida
de funcionalidade.
É interessante aqui recorrer a um conceito que o filósofo
Giorgio Agamben cria para se pensar a relação entre a vida do
cidadão e o governo do estado soberano: o Homo Sacer. Esta é a
designação que dá Agamben, partindo do direito romano, para
uma “vida nua” definida por ser insacrificável, pois não está
submetida ao direito divino de sacrifício, mas que é, ao mesmo
tempo, uma vida matável, fora da jurisdição da lei humana. Tal vida
exposta à morte, segundo Agamben, é a própria condição política:
só há vida política quando a vida nua do cidadão está submetida ao
direito de morte do soberano. Assim que se perde o valor político,
seja através da inutilização física, social ou psicológica do indivíduo
ou de determinado grupo, cabe ao soberano decidir sobre a sua
morte ou vida.139
139 Cf. AGAMBEN. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua I.

220
Num cenário de guerra, a disposição da vida da população
pelo estado é evidente. Com o apogeu dos conflitos bélicos em
grande escala a partir do século XIX, o holocausto das próprias
populações pelos regimes estatais atingiu um grau nunca antes
imaginado. Mas, diz Foucault, “esse formidável poder de morte (...)
apresenta-se como complemento de um poder que se exerce,
positivamente sobre a vida (...) populações inteiras são levadas à
destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres se
tornaram vitais”.140 Mata-se para sobreviver. Ameaça-se um
determinado povo com a morte para que outro povo viva. Essa é a
lógica do militarismo no Estado moderno. E de tal maneira, a
própria população é usada como ferramenta: jovens são convocados
a lutar pelo seu país. Mas o chamado recai quase sempre sobre as
camadas mais desprovidas de recursos econômicos e sociais: de
antemão, o estado já escolhe para defendê-lo aqueles que não
servem para habitá-lo. Soldados são enviados para a morte em
nome da soberania da nação e, embora sejam denominadas
“sacrificadas em prol da pátria”, suas vidas são puramente
descartáveis e acessórias.
O direito sobre a vida e a morte expande-se, na
modernidade, para territórios além da pura política estatal
convencional. A medicina é um lugar privilegiado do biopoder,
onde o médico torna-se soberano e se utiliza do saber para o
controle por excelência. Agamben localiza essa troca de papéis entre
soberano e médico no governo do Terceiro Reich, mas Hemingway
140 FOUCAULT. A vontade de saber, p. 129.

221
já aponta para tal transformação no contexto da Primeira Guerra
Mundial, como explicitado na segunda parte de “A natural history
of the dead”.
Voltando ao conto, apesar de considerar o esforço para
salvar ou ajudar o moribundo a morrer infrutífero, o médico, em
um primeiro momento, propõe ao tenente que o mate; só que,
logo depois, ameaça fazer um relatório responsabilizando este pela
morte. O soldado ferido, homo sacer a serviço de seu país,
desprovido de seus direitos por não mais se enquadrar entre a massa
manobrável do estado, torna-se matável, porém, insacrificável. Tal
disposição fica evidente na conclusão. O capitão-médico e o tenente
envolvem-se em uma luta física iniciada pela discussão em torno do
moribundo na qual o primeiro leva a melhor. Logo depois, um
ajudante informa que o pivô da confusão acaba de morrer. A
resposta do médico é: “See, my poor lieutenant? We dispute about
nothing. In time of war we dispute about nothing”. 141 Inutilizado
como uma ferramenta gasta, improdutivo, o soldado ferido é,
literalmente, um nada.
Na pequena anedota, vida e morte são naturalizadas, no
sentido de que se tornam acontecimentos vazios e sem significado.
As bases da crítica a esse movimento são apontadas por
Hemingway na primeira parte do conto, através da irônica e
paradoxal apologia ao naturalismo científico.

141 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 341. “Está vendo, meu pobre tenente?
Brigamos por nada. Em tempo de guerra brigamos por nada” ( Contos Vol. 2, p. 297.
Tradução J. J. Veiga).

222
No primeiro parágrafo, um narrador bem-humorado (que
não necessariamente devemos identificar com o autor) começa por
apontar em tom pseudocientífico a necessidade de se estudar a
morte do ponto de vista da história natural. “Can we not hope
furnish the reader with a few rational and interesting facts about
the dead? I hope so”.142 Como o explorador Mungo Park, que
quando perdido no deserto africano vislumbrou em uma pequena
flor a esperança e a força para seguir em frente, devemos, segundo o
espirituoso narrador, procurar inspiração nos cadáveres.
Esse pseudotratado que dá o tom inicial ao conto é tecido
por comentários jocosos a grupos científicos, literários e filosóficos.
A menção a Mungo Park e outros naturalistas dos séculos XVIII e
XIX, como W. H. Hudson, o reverendo Gilbert White e o bispo
Edward Stanley, altamente sarcástica, evidencia a crítica de
Hemingway ao naturalismo “místico” desses estudiosos, incapazes
de conciliar suas crenças religiosas com as análises empíricas da
natureza. Mas, se Hemingway brinca com os métodos naturalistas
primitivos, é porque não pode suportar algo ainda pior: o
Humanismo. O Novo Humanismo americano, movimento
literário extremamente conservador, representado na figura de
críticos como Irving Babbitt, Paul Helmer More e Seward Collins,
defendia a separação entre homem e natureza, e pregava a supressão
de descrições de funções naturais humanas, como sexo e morte, na
literatura. Quando A farewell to arms foi publicado, Hemingway
142 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 335. “Não podemos então dar ao
leitor alguns fatos racionais e interessantes sobre os mortos? Espero que sim. ”
(Contos Vol. 2, p. 287. Tradução J. J. Veiga).

223
foi acusado peloadeptos dessa escola de ser obsceno e indecoroso,
seja em suas cenas românticas entre os protagonistas, seja em sua
linguagem direta usada para descrever a retirada das tropas italianas
de Caporetto. A resposta vem em “A natural history of the dead”,
onde Hemingway ridiculariza as prerrogativas do movimento,
convocando os novos humanistas a se reproduzirem e morrerem
decorosamente de acordo com suas crenças. Para Hemingway,
obscenas e indecorosas são justamente as abstrações que atenuam
os massacres cometidos na guerra, em prol de uma literatura
heroica e escapista. Nesse sentido, “A natural history of the dead”
funciona quase como um manifesto em prol de uma ética estilística
que pode ser sintetizada na célebre passagem de A Farewell to arms:
“abstract words such as glory, honor, courage, or hallow were
obscene beside the concrete names of villages, the numbers of
roads, the names of rivers, the numbers of regiments and the
dates”.143 Hemingway propõe então uma literatura focada na
ossatura do real, no concreto das palavras, uma literatura que seja
produtora de sensações corporais ao invés de abstrações morais. 144
Essa é a prerrogativa de uma literatura biopolítica.
Para fazer frente ao biopoder, criar uma forma de
resistência para a vida subjugada, a literatura deve voltar-se para o
corpo. Não apenas representando este corpo, mas encarnando-o na

143 HEMINGWAY. A farewell to arms, p. 185. “Palavras abstratas tais como glória,
honra, coragem, ou reverência eram obscenas ao lado da concretude dos nomes de
vilas, dos números de estradas, dos nomes de rios, os números dos regimentos e das
datas” (Tradução nossa).
144 Cf. BEEGEL. “That always absent something else”: “A natural history of the dead”
and its discarded Coda. p. 77-79.

224
linguagem, no próprio corpus textual. O próprio estilo torna-se
ferramenta de resistência. Deleuze e Guattari dizem: “pintamos,
esculpimos, compomos, escrevemos com sensações. Pintamos,
esculpimos, compomos, escrevemos sensações”. 145 Segundo os
filósofos, o objetivo da arte de modo geral é criar “perceptos e
afectos”, isto é, percepções e afeções não estritamente pessoais e
referentes, mas oriundas do próprio material da arte e, por isso
mesmo, impessoais. O material do escritor são as palavras. A
sensação na literatura nasce do estilo. Em poucos escritores o estilo
é tão puramente sensitivo quanto em Hemingway. Não o interessa
os malabarismos retóricos nem as abstrações estéreis. As palavras
existem apenas para transmitir ao leitor imagens praticamente
picturais que levam este a “reagir” e, por sua vez, experimentar a
sensação. Por isso o estudioso de Hemingway, Earl Rovit, questiona
a classificação de “realismo”, pelo menos no sentido corrente, para a
prosa do escritor:

Isto não é absolutamente “realismo”, como julgaram os


primeiros críticos da prosa de Hemingway; é o que
acontece quando o leitor, sensibilizado com êxito, é
obrigado a reagir ao choque emocional e
involuntariamente aos estímulos da prosa, desta forma
criando a realidade da descrição em sua própria carne.146

Para fugir das “obscenas palavras abstratas”, Hemingway faz uso de


frases curtas, avessas aos advérbios e adjetivos, fundadas no
concreto do substantivo e do verbo. Seu procedimento é quase
145 DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 196.
146 ROVIT. Ernest Hemingway, p.50.

225
cinematográfico: a força de seus textos deriva de imagens que
produzem um “realismo [que] não está no que é visto, mas no fato
irrefutável de que alguém está vendo intensamente”.147 Tal ética do
estilo em Hemingway já é uma mostra das escrituras que viriam a
dominar o cenário literário do final do século XX até nossos dias:
literaturas voltadas mais para o corpo e suas vicissitudes que para
questões morais e valores transcendentes, em suma, literaturas
biopolíticas.
Tal procedimento fica claro nas duas “cenas” que orientam
as análises naturalistas do narrador na primeira parte de “A natural
history of the dead”. O primeiro desses episódios é a explosão de
uma fábrica de munições, no interior da Itália, que acabou por
matar uma grande quantidade de mulheres que trabalhavam no
local. A imagem das mulheres mortas é pitoresca já que, em geral, as
vítimas da espécie humana em um conflito militar são homens. Em
contraponto, observa o narrador, dentre os animais mortos em
combate, não há distinção na quantidade de machos e fêmeas. Esses
apontamentos culminam com a didática afirmação: “The first thing
that you found about the dead was that, hit badly enough, they
died like animals”.148 O narrador, que esteve presente no local logo
depois da explosão, relata a experiência com detalhes que se fixam
na memória e imaginação do leitor:

147 ROVIT. Ernest Hemingway, p.126.


148 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 338. “A primeira impressão que se
forma a respeito dos mortos é que, acertados em cheio, morrem como animais”
(Contos Vol. 2, p.292, Tradução J. J. Veiga).

226
I remember that after we had searched quite thoroughly
for the complete dead we collected fragments. Many of
these were detached from a heavy, barbed-wire fence
which had surrounded the position of the factory and
from the still existent portions of which we picked many
of these detached bits which illustrated only too well the
tremendous energy of high explosive. Many fragments we
found a considerable distance away in the fields, they
being carried farther by their own weight.149

Não há nessa descrição nenhum atenuante. A narrativa é pictórica,


acabando por gerar mal-estar devido à indiferença do narrador,
explícita através da linguagem direta e expositiva. A fragilidade da
vida humana frente aos dispositivos de destruição é enfatizada
através da própria objetivação dos corpos, recolhidos aos pedaços.
O naturalismo escancara o desmantelamento da carne humana,
agindo com mais força do que uma narrativa moral ou psicológica
poderia fazer.
No segundo episódio, na retirada das tropas italianas do
front austríaco na Primeira Guerra Mundial, o que chama a
atenção do narrador não é a transformação física dos corpos em
decomposição, mas o fato de que, dentre esses corpos, existiam
papéis e mais papéis pessoais saltando dos bolsos dos uniformes.

Until the dead are buried they change somewhat in


appearance each day. The color change in Caucasian races
is from white to yellow, to yellow-green, to black. If left
149 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 336. “Lembro-me que depois de dar
uma busca completa para recolher todos os mortos recolhemos pedaços. Muitos dos
pedaços foram retirados de uma cerca de arame farpado que rodeava a fábrica e de
partes ainda existentes dela onde recolhemos mais fragmentos que serviram para
ilustrar a tremenda energia dos altos explosivos. Muitos pedaços foram encontrados a
grande distância no campo onde foram cair levados pelo próprio peso” ( Contos
Vol.2, p. 289-290.Tradução J. J Veiga).

227
long in the heat the flesh comes to resemble coal-tar,
especially where it has broken or torn, and it has quite a
visible tar like iridescence. The dead grow larger each day
until sometimes they become quite too big for their
uniforms, filling these until they seem blown tight enough
to burst. The individual members may increase in girth to
an unbelievable extent and faces fill as taut and globular as
balloons. The surprising thing, next to their progressive
corpulence, is the amount of paper that is scattered about
the dead.150

Também esse trecho é bastante visual e grotesco. Mas o que choca é


a frase final, afirmando que a coisa surpreendente em toda a
situação é o vislumbre dos papéis espalhados. A objetivação levada
a cabo pelo narrador naturalista é tamanha que o corpo perde todo
seu caráter de ser vivente, e o que se torna digno de nota é o
fenômeno visual que proporcionam os papéis, símbolos de
maleabilidade em meio à rigidez cadavérica dos corpos. Estes papeis
também representam a subjetividade de cada um dos corpos, que,
enquanto carne, estão misturados e inidentificáveis em meio a
carnificina. O corpo morto torna-se, naturalizado, mera matéria.
Imagem, corpo e linguagem estão, portanto,
intrinsecamente ligadas na narrativa de Hemingway. Seu estilo é
baseado em gravuras, em cenas concretas, mesmo quando dotadas

150 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 337. “Enquanto não são enterrados,
os mortos mudam um pouco de aparência a cada dia. A mudança de cor nas raças
caucasianas vai do branco ao amarelo do amarelo ao esverdeado, depois ao preto. Se
exposta ao calor por muito tempo a carne fica parecendo alcatrão principalmente
onde foi ofendida e adquire uma iridescência visível. Os mortos aumentam de
tamanho diariamente até ficarem às vezes muito grandes para o uniforme: o
uniforme se enche tanto que dão a impressão de que não tarda a estourar. Os
membros engrossam assustadoramente e os rostos incham até ficarem arredondados
como balões. O mais surpreendente depois dessa progressiva corpulência é a
quantidade de papéis que se espalha em volta dos mortos” ( Contos Vol. 2, p. 290-
291.Tradução J. J. Veiga).

228
de grande carga psicológica. É quase uma literatura
comportamental, na qual o leitor não fica imune à emoção quase
física proporcionada pelas palavras.
Didi-Huberman, em A sobrevivência dos vagalumes,151
evoca a resistência proporcionada por imagens vagalumes que, ao
contrário dos refletores do fascismo e da sociedade de espetáculo,
são intermitentes, desaparecem e reaparecem em meio a escuridão
da noite e de nossa época. Tais imagens capturam o sentido ao
mesmo tempo em que ele se evanesce. Em “A natural history of the
dead”, é através dessa linguagem imagética, desses vagalumes, que
Hemingway retoma as sensações da guerra, já que mesmo pela
memória essa operação é impossível:

The smell of a battlefield in hot weather one cannot recall.


You can remember that there was such smell, but nothing
ever happens to you bring it back (…) [it] is gone as
completely as when you have been in love, you remember
things that happened, but the sensation cannot be
recalled.152

Na construção das imagens, é a própria palavra que assume o lugar


da sensação evanescida. O procedimento utilizado para trazê-la à
tona é a própria violência inserida na forma. O corpo da letra
retoma o corpo inanimado dos mortos, justamente para tentar
resistir à decomposição da memória. O objetivo de Hemingway é,
151 DIDI-HUBERMAN. Sobrevivência dos vagalumes.
152 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 338. “Não se lembra o cheiro de um
campo de batalha em tempo de calor. Lembra-se que havia um cheiro mas não se
consegue senti-lo de novo (...) [ele] se perde completamente como quando se está
apaixonado: lembra-se de coisas que aconteceram, mas a sensação não é recuperada”
(Contos Vol. 2, p. 291. Tradução J. J Veiga).

229
através do asco e do horror, retomados e levados à sensação através
de seu estilo seco e direto, fazer o leitor sentir o acontecimento
“morrer” em sua própria carne, vislumbrar uma vida que só se faz
presente em sua absoluta falta.
Hemingway antecipa em “A natural history of the dead”
muitas características das chamadas literaturas pós-autônomas da
contemporaneidade. Estas são escrituras que têm por característica
a impossibilidade de se deixar classificar como literatura através de
categorias tradicionais como autor, obra, escritura, sentido. São
textos compostos em uma marcada ambivalência que impossibilita
a distinção entre ficção e realidade: são realidadeficção. Segundo
Josefina Ludmer, as literaturas pós-autônomas, “tomam a forma de
testemunho, da autobiografia, da reportagem jornalística, da
crônica, do diário íntimo, e até da etnografia (...) Saem da literatura
e entram na realidade e no cotidiano, na realidade do cotidiano”. 153
Em “A natural history of the dead” é impossível distinguir na voz
narrativa ficção e realidade; os comentários irônicos e reflexivos
misturam-se à realidade das cenas de guerra, e a forma híbrida,
entre ensaio e conto ficcional, dificulta o estabelecimento de uma
definição do sentido e mesmo da posição do autor. Baseado em
experiências pessoais, o conto, no entanto, afasta-se da autoficcção,
especificada como narrativa da identidade e do eu autobiográfico,
para adentrar no território da bioficção, isto é, voltar-se para a
questão da vida de forma impessoal através das representações dos
corpos e da morte coletiva. Ao colocar a máscara de naturalista, o
153 LUDMER. Literaturas pós-autônomas, p. 2.

230
texto de Hemingway denuncia o perigo de se “naturalizar” a
exceção, a morte causada pelo estado e pela medicina.
Paradoxalmente, o meio para tornar essa crítica relevante é
justamente um neonaturalismo estilístico. Este artifício é usual em
narrativas contemporâneas. É notável, por exemplo, a semelhança
das descrições de mortos com a “parte dos crimes” do épico
romance de Roberto Bolaño, 2666, onde diversos assassinatos de
mulheres são descritos quase como que em um relatório policial.

Em meados de novembro, Andrea Pacheco Martínez, de


treze anos, foi raptada ao sair da escola técnica secundária
16 (...). Quando a encontraram, dois dias depois, seu
corpo mostrava sinais inequívocos de morte por
estrangulamento, com ruptura do hioide. Tinha sido
violentada anal e vaginalmente. Os pulsos apresentavam
tumefações típicas de amarraduras. Os tornozelos também
estavam lacerados, com o que se deduziu que também
tivera os pés amarrados.154

Tanto em Hemingway quanto em Bolaño, a objetividade das


descrições (grotescas e mórbidas) dá vida ao corpo textual que, por
contraste, opõe-se à própria matéria morta narrada: uma política da
escrita que, através do estilo, ressignifica vida e morte, corpo e
linguagem. Tal vida não pode ser apartada de seu viés político: o
próprio corpo se transforma em suporte para as inscrições do
poder. Por isso Hemingway critica a ingenuidade do Humanismo,
esse “fenômeno extinto”, cujos sectários “decorosos” recusam-se a
ver a “vida nua” e crua que salta justamente quando há o encontro
154 BOLAÑO. 2666, p. 379.

231
com a morte.155 O humanitarismo, ao conceber a vida como algo
sagrado, acaba por contribuir com os dispositivos de poder sobre a
vida contra os quais luta, justamente ao separar a vida como valor
absoluto de sua contingência política. 156 A função da arte é adentrar
na ossatura do real, o que só pode ser alcançado através de imagens
que imponham na própria carne de quem as capta toda a dimensão
de experiência contida em tais representações.
É o que fica claro, em “A natural history of the dead”, no
trecho sobre animais mortos, com a imagem do exército grego
quebrando as patas de seus cavalos e burros e jogando-os ao rio para
se afogar. A força da cena é tão sugestiva que, para o narrador, “the
numbers of broken-legged mules and horses drowning in the
shallow water called for a Goya to depict them”.157 Relacionar a
arte, através do nome de Goya, a uma imagem tão cruel pode
parecer apenas uma brincadeira sarcástica e mordaz, tendo como
objetivo acentuar o tom satírico-crítico do texto, mas, em
Hemingway, a arte é legitimada pela morte, assim como o
moribundo de Benjamin, que se torna digno de ser ouvido por sua
condição de quase perecimento. Ao retratar, de forma violenta e
crua, cenas como essas, o escritor traz à tona a experiência vital que
desaparece em meio à carnificina sem sentido. Benjamin disse que
os soldados que voltavam da Primeira Guerra não possuíam
experiências que pudessem transmitir. Talvez isso acontecia por não
155 Cf. HEMINGWAY. The complete short stories, p. 338.
156 Cf. AGAMBEN. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua I.
157 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 336. “A quantidade de burros e
cavalos de pernas quebradas se afogando em água rasa pedia o pincel de um Goya”
(Contos Vol. 2, p. 288-289.Tradução J. J. Veiga).

232
conseguirem mais relatar tal horror sem o intermédio da ficção e da
criação. Dessa mesma guerra voltou o próprio Hemingway, e suas
melhores narrativas têm o conflito como pano de fundo. Se “num
campo de forças de torrentes e explosões destruidoras [encontra-se]
o minúsculo e frágil corpo humano”, 158 é justamente nele e para ele
que a arte e a literatura devem voltar-se. Essa parece ser uma
possibilidade, em momentos do mais puro medo, de retomar as
sensações incapazes de serem refeitas pela memória, de redescobrir a
experiência que nos falta e nos emudece.

REFERÊNCIAS:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida


Nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2003.

BEEGEL, Susan F. “That always absent something else”: “A natural


history of the dead” and its discarded Coda. In: New Critical
Approaches to the Short Stories of Ernest Hemingway . Ed. Jackson
J. Benson. Durham, NC: Duke University Press, 1990. P. 73-95.

BENJAMIN, Walter. “O narrador” In: Magia e técnica, arte e


política: ensaios sobre literatura e história da cultura . Trad. Sérgio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas Vol.
I)

158 BENJAMIN. “O narrador”, p. 214.

233
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234
Schiller: da dramaturgia pré-romântica ao impulso
estético como proposta de educação moral

Clecio Luiz Silva Júnior159

RESUMO: Schiller se torna um expoente do pré-romantismo


alemão e mostra todo o vigor de sua dramaturgia logo na
composição de sua peça de estreia, Os Bandoleiros (Die Räuber),
uma tragédia marcada por insurreição e liberdade desmedida. No
entanto, quando Schiller escreve as Cartas sobre a Educação
Estética, ele já teria ultrapassado o ímpeto violento do pré-
romantismo e assumido uma posição mais filosófica do que
meramente contestadora. Junto a Kant, o Schiller das Cartas
discorda daqueles autores pré-românticos que renunciam a alto
custo à coerção das regras da poética. Assim, não seria mais uma
liberdade violenta, à maneira do Sturm und Drang, a forma mais
eficaz de se construir um Estado cultivado. Imerso no projeto da
Educação Estética, Schiller percebe que a liberdade esboçada pela
Aufklärung (preponderantemente teórica), é insuficiente para
realizar a tarefa de edificar uma sociedade esclarecida. Propomos
com este trabalho discutir uma mudança da perspectiva estética e
política de Schiller, apontando para um caminho que parte de uma
crítica radical à razão e ao Estado, período do pré-romantismo,
culminando, com as Cartas de 1794, no impulso estético como
mediador entre as exigências da razão e do Estado e a sensibilidade.

PALAVRAS-CHAVE: pré-romantismo alemão, educação


estética, formação moral.
159 Mestrando em Estética e Filosofia da Arte (IFAC – UFOP).

235
A abordagem sobre a arte na Alemanha moderna pretende
superar os princípios formais constitutivos da obra de arte, tão
caros a Aristóteles e aos poetas dramáticos clássicos franceses, e
atingir, propriamente, para além da obra, a recepção estética, numa
espécie de práxis. Buscaremos evidenciar que a perspectiva de
Schiller, enquanto poeta dramático do pré-romantismo, 160 torna-se
outra quando o foco de Schiller se vira para a filosofia moral em
1792-93, quando sua fase artística se aproxima mais do classicismo 161
e de seu projeto de Educação Estética do Homem (1794). Por outro
lado, tomaremos o texto dramático Os Bandoleiros162 (Die Räuber)
como o parâmetro poético em relação à arte do Sturm und Drang
ou pré-romântica. Assim, por este lado temos um poeta audacioso
que insurge de maneira impetuosa contra um Estado cerceador da
liberdade individual, e por aquele outro, temos um filósofo que
percebe que a liberdade como ideal político esboçada pela
Aufklärung é insuficiente para realizar a tarefa que lhe é intrínseca:

160 Pré-romantismo é também uma nomenclatura dada ao Sturm und Drang pelo fato
de este movimento antecipar várias características do romantismo.
161 Anatol Rosenfeld, no texto “Schiller Anti-romântico”, diz que “é comum ouvir-se
caracterizar Schiller como ‘grande poeta romântico’, amigo de Goethe, outro ‘grande
poeta romântico’. Esta opinião é diametralmente oposta à da Alemanha, onde lhes
cabe a categoria de ‘clássicos’, não só por serem considerados expressões máximas das
letras germânicas, mas principalmente em virtude de suas tendências
acentuadamente anti-românticas.” (ROSENFELD, 1993, p. 267)
162 A peça Die Räuber foi publicada por Schiller em 1781, quando ele tinha apenas 22
anos de idade, embora ele a tenha começado a escrever, provavelmente, em 1777,
ainda aos 17 anos. Mesmo tão jovem Schiller seria reconhecido como grande autor de
sua época por essa publicação de estreia, exatamente à época do Sturm und Drang. A
peça foi editada sob condições muito complicadas. O próprio Schiller teria bancado o
custo de publicação por encontrar inúmeras dificuldades com os editores e o custo de
publicação era um entrave para os poetas da época. Existem algumas passagens no
próprio texto da peça Os Bandoleiros nas quais é possível ver uma ironia lançada por
Schiller, na voz de seus personagens, aos editores da época.

236
a de constituir uma sociedade esclarecida. Mas quais são os cenários
em que atua Schiller em seu percurso?

UM CENÁRIO POLÍTICO

Podemos dizer que o Sturm und Drang (1770 a 1785) é uma


revolução, e como tal, é contestador. Estamos falando de uma
Alemanha na segunda metade do séc. XVIII, ainda sem identidade
política e nacional definidas, e cuja formação, tanto no campo da
política quanto no campo das artes, era herdeira retardada de uma
França próxima da Revolução – que ocorreu em 1789 –. Precisamos
lembrar que ainda na primeira metade do séc. XVIII a Alemanha
era composta de pequenos Estados, chefiados por príncipes
soberanos, e que sua unificação como Estado Nacional só se deu em
1870. É exatamente essa fragmentação política que dificulta ao povo
alemão reconhecer-se enquanto nação, e é esse o mote político que
fará florescer o Sturm und Drang. As ideias radiantes da
Aufklärung, do tempo de Esclarecimento, de liberdade, de um
sujeito esclarecido (Selbstdenker) são, de certa maneira, credoras do
desejo de liberdade apregoado pelo Sturm um Drang.
Das principais características do Sturm und Drang
enquanto práxis política podemos dizer da oposição entre o
indivíduo e as convenções sociais, uma relação menos submetida à
religião monoteísta, exaltação da liberdade e infração de regras

237
tirânicas, violência de sentimentos e um ímpeto do indivíduo
diante de todas as circunstâncias cerceantes da liberdade. A
desmedida é, para os pré-românticos, um caminho para a liberdade.
O desejo dos Stürmer é de infinito, de grandeza ilimitada, de
paixões e sentimentos fortes, de uma sehnsucht (nostalgia, um
anseio infinito) pela plenitude e reencontro com o uno, o todo, mas
que, dialeticamente, não se realiza; portanto, um desejo infinito,
uma vontade insaciável e irrealizável.

UM CENÁRIO ESTÉTICO

A exaltação da liberdade passa pela forma criativa do gênio


livre e pela dissolução das regras clássicas de produção artística. Se
por um lado era o modelo classicista francês que influenciava a
Alemanha com o teatro de Racine e Corneille, era, por outro lado,
a insatisfação com esse modelo, que não servia mais ao povo
alemão, o que motivava o Sturm und Drang em sua revolução. A
contestação nesse caso era direta à estrutura da arte clássica francesa
e por isso, os poetas do Sturm und Drang (Goethe e Schiller)
buscavam outro modelo de dramaturgia que não fosse mais o
modelo francês de Racine e Corneille, mas, precisamente, o modelo
re-descoberto em Shakespeare (1564-1616), que será tido como o
verdadeiro gênio da dramaturgia e encontrará um profundo eco no
teatro alemão. O ímpeto dos stürmer é ousado ao ponto de,

238
(...) em vez de lutarem, como Lessing e a Ilustração, em
favor da eliminação de abusos e, em geral, em favor de
uma ordem mais justa, [os autores pré-românticos]
passam a exaltar a emancipação anárquica do individuo;
objetivo que naturalmente implica o conflito não só com
determinada sociedade histórica, mas com a sociedade
como tal, qualquer que seja.163

É exatamente esta postura anárquica que percebemos na


peça Os Bandoleiros, do jovem Schiller. De certo modo, a peça é
influenciada pelo teatro de Shakespeare, cuja recepção pelos
alemães soa positiva por mostrar uma dramaturgia que supera o
rigor formalista encontrado em Racine (1639-1699) e Corneille
(1606-1684). Shakespeare teria sido traduzido para os alemães
possivelmente já em 1741,164 mas foi pelas mãos de Lessing, entre em
1762 e 1766, que as traduções de Shakespeare ganharam
importância entre os pré-românticos. Será na tradução para o
alemão de Hamlet e de Otelo que a insurreição dos stürmer
encontrará seu suporte político e estético. Cito Sussekind: “Essas
traduções anunciaram e moldaram o Pré-romantismo (...) [e]
constituíram o modelo supremo da luta contra os cânones clássicos
da dramaturgia”.165 É a expectativa do artista pré-romântico que

163 SUSSEKIND, 2008, p. 46


164 No livro Shakespeare, o gênio original, Süssekind faz referência ao texto de Marie
Joachimi-Dege no qual ela menciona “uma primeira tradução alemã de uma peça
shakespeariana, Júlio César, feita por Kaspar von Borck em 1741. Antes disso, como
afirma Joachimi-Dege, os compêndios literários alemães se limitavam a mencionar
Shakespeare em poucas linhas, como um entre outros dramaturgos ingleses”.
(SÜSSEKIND, 2008, p.33)
165 SUSSEKIND, 2008. p.34

239
evidencia o problema central da modernidade: o conflito do
classicismo francês166 (voltado para a boa forma e o rigor aristotélico
na composição da obra dramatúrgica) fortemente ligado ao antigo.
Segundo Sussekind,167

A partir de uma nova perspectiva acerca da relação entre os


antigos e os modernos, as obras da antiguidade clássicas
passaram a não ser vistas necessariamente como a
realização mais elevada da criação artística, a ponto de
servir de modelo de beleza para sempre.

O Sturm und Drang se caracteriza exatamente por esse tipo


de problematização na relação com os antigos, o que significa dizer
também de uma problematização em vários aspectos: na relação
com a natureza que volta a ser exaltada como força expressiva e
originária da arte; na nova concepção do gênio, entendido não
como aquele que cria a partir de uma dádiva divina exterior, mas
como alguém que dá regras à natureza; na relação entre razão e
divindade, na medida em que os pré-românticos questionam as
ideias iluministas de uma soberania da razão; na defesa da liberdade
do sujeito em oposição violenta ao Estado tirânico.
Schiller torna-se um dos principais expoentes do teatro
dentre os pré-românticos, e esse caráter contestador pode ser
encontrado claramente na peça Os Bandoleiros. A peça causa um
166 Importante frisar que o “classicismo” a que se opõem os pré-românticos é o
Classicismo Francês, de base aristotélica e de regras para uma arte formalista, ligado
também à estética de Boileau, e não se deve confundi-lo com o Classicismo Alemão, o
Classicismo de Weimar, que inclui especialmente Goethe e Schiller, e que é posterior
ao pré-romantismo. O Schiller maduro, podemos dizer assim, é clássico.
167 Ibid. p.15

240
forte impacto ao retratar a própria Alemanha, ao se apropriar
dramaturgicamente da própria época e da própria história e
apresentá-la numa trama cujo efeito na sociedade é imediato e
evidente. Schiller já adianta, na peça, que “O lugar onde transcorre
a ação é a Alemanha. A época, por volta da metade do século
XVIII. O tempo da peça é de mais ou menos dois anos”. 168 O ideal
iluminista de liberdade é elevado nesta trama à sua máxima
potência, e o que se vê é a representação de um indivíduo
anárquico, revoltado com o Estado e com a sociedade e que, por
isso mesmo, encontra no caos e na desordem o elemento de
realização de sua liberdade. Os Bandoleiros trata, em resumo, do
debande do primogênito Karl Moor, protagonista da tragédia, para
uma vida libertina próxima à natureza e distante do rigor de seu
pai, Maximilian Moor. Karl Moor representa esse impulso da
necessidade, essa violenta necessidade da natureza humana e, ao
mesmo tempo, o aguçado desejo de libertação, de autonomia,
temas caros ao poeta pré-romântico. Em termos schillerianos, ele é
o homem em estado bruto e, no paradoxo do “cidadão de dois
mundos”, ele representa exatamente a parte sensível, inclinada à
necessidade. Em oposição, ao lado do braço duro do Estado
dominador, está o irmão Franz Moor. Logo na primeira cena, Franz
Moor lê para o pai, Maximilian, uma carta falsamente atribuída a
um correspondente de confiança – mas escrita por Franz mesmo -
na qual se ouve narrar os feitos de Karl fora dos limites da cidade:

168 SCHILLER, 2001. p.10.

241
Ontem a meia-noite, depois de ver que sua dívida chegava
a quarenta mil ducados (...) depois de ter desonrado a filha
de um rico banqueiro, depois de ter ferido de morte ao
amado dela, um jovem de posição, num duelo, tomou a
grande decisão de fugir às garras da justiça, junto com
outros sete rapazes, que sempre o acompanharam em sua
vida dissoluta.169

Aqui, nestes termos, se define o caráter de Karl pela perspectiva do


irmão que representa o lado mal da trama. O pai, que simboliza
aqui uma espécie de bondade, diz em resposta: “Escreva-lhe que
verti mil lágrimas de sangue por sua causa, que fiquei mil noites
sem dormir... Mas não vá levá-lo ao desespero... Escreva-lhe que
meu peito paterno...”.170 Se traduzimos este drama de família para
um nível político, temos, respectivamente, um Estado insistente em
manter a ordem e o domínio sobre seu cidadão, tutelando-o a
qualquer custo. Franz decide escrever a carta, mas subverte toda
intenção e sentimento de seu pai, no intuito de afastar ainda mais o
irmão, expatriando-o de vez, abrindo espaço para assumir, ele
mesmo, o reino. Franz diz: “Quero exterminar tudo que está à
minha volta, tudo aquilo que me impede de vir a ser Senhor.
Senhor eu tenho de ser. Que eu me permita fazer uso da violência
para alcançá-lo só reflete a falta de amor de que fui vítima”.171
Karl Moor lidera, em seu exílio, um grupo de Bandoleiros,
um grupo que só teria lugar para

169 Ibid. p. 13
170 Ibid. p.20.
171 Ibid. p.24. Grifo no original.

242
homens que encaram a morte de frente e deixam o perigo
brincar à sua volta como se fosse uma cobra mansa.
Homens que valorizam a liberdade mais do que a honra e
a vida, cujo simples nome recebe bem aos pobres e
espezinhados, homens que acovardam os mais corajosos e
empalidecem os tiranos.172

Se o Sturm und Drang carrega um ideal de revolta e


enfrentamento em nome da liberdade, ei-lo nos caracteres postos
em cena por Schiller. “Assassinos, bandoleiros! Com essas palavras
jogo a lei aos meus pés...”, 173 uma fala de Karl Moor sintetiza muitas
das características do Sturm und Drang.
Em Os Bandoleiros, pode-se entender, se se pretende uma
leitura moral e política, por exemplo, que a saída de Karl do castelo
do pai, quando ele diz “Será que sou obrigado a deixar meu corpo
sofrer dentro de um espartilho apertado e ajustar minhas vontades
ao colete da lei?”,174 significa a saída do cidadão da tutela do Estado.
Ainda aqui falamos de uma atitude de liberdade, de busca da
autonomia, no entanto, ligada a uma reação que fere a razão e a
moralidade. Contudo, esta liberdade tangencia a libertinagem na
mesma medida em que sua razão não encontra uma
correspondência universal: os assassinatos cometidos pelos
bandoleiros não correspondem, ao fim da peça, ao anseio de justiça
apregoado por eles. Essa liberdade determinada, primitiva, esse
primeiro impulso de liberdade, se lembrarmo-nos de Rousseau,
está para o bandoleiro como está para um animal.

172 Ibid. p. 117.


173 Ibid. p. 45.
174 Ibid. p. 27.

243
Assim, quando discutimos com Kant e Schiller a respeito
da dupla natureza do homem, a física e a moral, ou ainda entre
necessidade (natural) e liberdade (da razão) estamos discutindo
exatamente a respeito da escolha em agir segundo sua natureza mais
primitiva, ou, a sua natureza livre que pode, mesmo em condições
adversas, levá-lo a uma escolha justa e moral. Em Os bandoleiros,
essa violência instintiva mais dissuade do que constrói. Isso traz à
tona a confusão que se faz entre liberdade, que é fazer o que se deve
fazer, e necessidade, que é um agir livre, sem consideração à moral.

A EDUCAÇÃO ESTÉTICA

Diante desta tragédia e da animalidade em que se encontra


o homem no séc. XVIII, diante da incapacidade de se fazer sujeito
autônomo em face do Estado tutelar, Schiller tem como proposta, a
tarefa de erguer um edifício moral através de seu projeto de
educação estética. Neste sentido percebemos uma outra postura de
Schiller na qual ele ascende de uma crítica radical à razão e ao
Estado, como vimos em Os Bandoleiros, em direção ao impulso
estético como elemento mediador entre a razão (Estado) e a
sensibilidade. Schiller, já classicista, discorda daqueles pré-
românticos, dos quais fizera parte, que “creem que se desfila melhor
sobre um cavalo desvairado do que sobre um cavalo domado”, para

244
usar as palavras de Kant.175 A violência vista em Os Bandoleiros
mostra-nos a impossibilidade de uma passagem direta desse nível de
animalidade para um nível de independência moral. Segundo
Schiller,176 é preciso considerar a sensibilidade. Cito-o: “mostrarei
que para resolver na experiência o problema político é necessário
caminhar através do estético, pois é pela beleza que se vai à
liberdade”. Para Schiller, o momento (Revolução Francesa) é
propício para tais mudanças, mas não haveria ainda uma estirpe,
um homem bem formado (Bildung), capaz de erguer esse mundo
moral.
A defesa de Schiller na construção de um Estado racional
perpassa uma retomada de valores já decaídos, por exemplo, de
uma relação integral entre homem e natureza: uma busca do
ingênuo que quer ser natureza, e não apenas imitá-la. O
pensamento moderno, com suas ciências subdivididas em
categorias distintas promovem uma desintegração daquela ideia de
Todo que podíamos ver nos Antigos, cuja querela, neste caso, se dá
pela diferença de que o homem moderno vive a idade do
entendimento categorial e sua elaboração de mundo, estritamente
teórica, que subjuga a condição sensível. Ou seja, a razão pura, o
entendimento livre aclamado pela Aufklarung, entra em luta com a
condição natural do homem ao tentar se elevar ao esclarecimento,
deixando de considerar a dimensão sensível do homem que lhe é
inseparável.

175 KANT, 2012, p. 156.


176 SCHILLER, 2011, p. 24.

245
É nesse sentido que se dá a importância do pensamento de
Winckelmann para um novo conceito de beleza, e os gregos, que
sempre foram nossos mestres na cultura, no pensamento e na arte,
continuam a sê-lo, porém, nosso modo de vê-los deve ser outro. Os
gregos tinham, propriamente, uma reconciliada relação com o belo
e o encontravam manifesto na natureza; assim, ao imitar a natureza,
pela sua perspectiva mais orgânica, estavam eles captando o belo
representado em pura expressão do indizível. Para Winckelmann e
o classicismo, o homem moderno teria perdido essa relação com a
beleza e não teria, propriamente, um original conceito de beleza. O
que significa que a natureza dos modernos não é tão perfeita
quanto a dos gregos e qualquer obra de arte que tenha um modelo
imperfeito expressará uma forma imperfeita. Assim, os clássicos
como Goethe e Schiller buscam dominar aquele cavalo desvairado
que é a exaltada força da juventude pré-romântica, e tentam
ultrapassar o entendimento da forma como elemento principal da
obra de arte. O efeito da arte deve ser preponderante, colocando em
luta necessidade e dever moral, agindo, portanto, sobre a formação
do indivíduo, de modo que “o homem cultivado faz da natureza
uma amiga e honra sua liberdade, na medida em que apenas põe
rédeas a seu arbítrio”.177
Essa lucidez, essa “serena tranquilidade” de Schiller, não era
ainda possível de se ver no Sturm und Drang.

177 SCHILLER, 2011, p. 31.

246
Enfim, o projeto de Educação Estética de Schiller advém de
um processo historial no qual o filósofo reconhece as tarefas de seu
tempo. Se no Sturm und Drang esse reconhecimento historial se
deu na necessidade de emancipação do indivíduo, contaminada
pelo estado de violência advindo da revolução e do terror franceses,
por outro lado, o classicismo de Schiller é resultado desse processo
histórico no qual o Sturm und Drang mostra que a impudência na
poesia e na razão não cumpre a tarefa de elevação do homem ao
estado de entendimento. Seria impossível uma passagem direta da
primeira natureza (impulso de necessidade do homem físico) à
segunda natureza (o impulso moral). O projeto da educação
estética tem uma longa caminhada histórica, uma tarefa infinita, e
se compõe destes dois impulsos mais o indispensável impulso
lúdico, o estético. É este impulso da beleza, mais do que mediador,
que permitirá uma passagem de um estado a outro. Cito Schiller:

A passagem do estado passivo da sensibilidade para o ativo


do pensamento e do querer dá-se, portanto, somente pelo
estado intermediário de liberdade estética, e embora este
estado, em si mesmo, nada decida quanto a nossos
conhecimentos e intenções, deixando inteiramente
problemático nosso valor intelectual e moral, ele é, ainda
assim, a condição necessária sem a qual não chegaremos
nem a um conhecimento nem a uma intenção moral.
Numa palavra: não existe maneira de fazer racional o
homem sensível sem torná-lo antes estético.178

178 Ibid., p. 109

247
Por fim, a passagem de Schiller pelo pré-romantismo e sua
postura filosófica diante do classicismo revela-nos uma evolução do
pensamento moral e da expressão artística que fornecerá, de fato, as
bases para a filosofia no final do século XVIII e início do XIX com
o idealismo alemão. Hegel179 teria dito que:

Perante o conflito entre as duas forças, cumpre à educação


estética impor-se como mediadora, porque o seu fim
consiste, segundo Schiller, em conferir às inclinações,
tendências, sentimentos e impulsos, uma formação que as
leve a participar na razão, de tal modo que a razão e a
espiritualidade ficam despojadas do caráter abstrato para
se unirem à natureza como tal...

Na tarefa da educação estética, seus efeitos ultrapassam


qualquer ideia de estetização da política, mas apontam
acertadamente para a ideia de que a dualidade do ser humano,
tornada jogo (Spiel) pelo impulso lúdico, é uma necessidade para a
razão. É por meio desta dialética, necessidade e dever, natureza e
razão, entendimento e imaginação, que a unidade sujeito-mundo,
na perspectiva da educação estética, poderia ser recuperada.

179 HEGEL, 1991, p. 57.

248
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250
Mito, estética e política em dois projetos
literários: O Guesa de Sousândrade e El pez de
oro de Gamaliel Churata

Cesar Augusto López Nuñez180

RESUMO: Nosso texto fará uma ponte entre dois autores e duas
obras aparentemente distantes no tempo e no espaço, nos referimos
a O Guesa do romântico Joaquim de Sousa Andrade
(Sousândrade) e El pez de oro do vanguardista peruano Arturo
Peralta (Gamaliel Churata). O eixo de comparação será o mito que
movimenta os elementos estéticos de ambos e que, além de
estruturar os textos, propõe uma perspectiva de fazer política na
América Latina. Neste sentido, falaremos sobre a validez do mito
(especificamente no nosso continente) como forma de pensamento
com capacidade epistêmica para participar nas estruturas de poder a
partir da via do sentir (estética) de outro modo o mundo e sua
heterogeneidade. A pergunta que guiará nossa apresentação será:
tem o mito um tipo de política que ainda não foi ouvida? Para
respondê-la, tentaremos uma leitura ameríndia destes autores
segundo as propostas antropológicas do Eduardo Viveiros de
Castro e o pensamento de desterritorialização e rizoma de Deleuze e
Guattari.

PALAVRAS-CHAVE: Mito, estética, política

180 Callao, 1986. É licenciado em Literatura pela Universidad Mayor de San Marcos com
a tese titulada Óscar Colchado Lucio: la propuesta cosmopolítica de Rosa Cuchillo
(2015). Atualmente realiza estudos de mestrado em Teoria Literária e Literatura
Comparada na Universidade Federal de Minas Gerais. É bolsista CNPq.

251
1. TRÍADE

O mito não perdeu nada do seu poder por uma razão


simples: ele é uma narrativa do ser. Com isto queremos dizer que o
platonismo, o racionalismo e o pós-modernismo são mitos:
propõem modalidades de vida. Todos ser humano se adscreve a
algum tipo de mito: desde a morte de deus, até o endeusamento de
algum escritor, filósofo ou cientista. Mas o que é um mito para nós?
Esta é uma pergunta perigosa porque o mito não é um quê, mas
um como. Quer dizer, o mito encarna. Qualquer narrativa que não
tenha corpo só é um objeto mudo a ser categorizado, um fetiche.
Nesse sentido, o mito é um espaço absorvente que narra
acontecimentos por encarnar. Esta resposta pode ser fraca, mas
detenhamo-nos nela. Ele é um buraco negro, um espaço
gravitacional, mas o que absorve? Absorve as distintas relações
práticas da vida humana. É por isso que o mito se faz patente no
rito: se não se pratica a proposta mítica, perde sentido e pode ser
colocado em qualquer prateleira até que alguém decida encarná-lo e
assim reativá-lo.
O problema do mito neste sentido é que não é um objeto,
mas um sujeito. Não estamos exagerando, só estamos indo em
sentido inverso; não estamos seguindo a metodologia naturalista ou
ocidental:181 não estamos desarticulando algo para entender a sua

181 O naturalismo é uma ontologia que se contrapõe à ontologia animista. A diferença


radica em que o primeiro faz ênfase na multiplicidade de culturas e na unidade da
natureza, enquanto a outra entende que existe só uma cultura (humana) e diferentes
naturezas ou corpos. Quer dizer que qualquer corpo tem uma humanidade em

252
mecânica e, desse modo, satisfazer a nossa curiosidade; estamos
estabelecendo uma simbiose com o mito – seja como este for.
Quando falamos que o mito é um sujeito queremos dizer que o
mito, além de ter uma personalidade, tenha uma multiplicidade
dentro dele.182 Mais ou menos, o que cada um de nós tem e o que
Rimbaud e Pessoa exprimiram: eu é outro ou eu é outros.
Continuando com a questão, sabemos que a palavra pessoa vem do
vocábulo latino prosopón ou máscara. Todos temos muitos
personagens escondidos que, de vez em quando, agem de alguma
ou outra forma. Esqueçamos a psicanálise por um momento; aqui
estamos falando da esquizofrenia.183
Ao contrário do mito do método, nós apresentamos para
vocês, o método do mito, recomendado por Eduardo Viveiros de
Castro:184 o mito é espaço de relações de poder que procura
organizar, além da polis, o cosmos.185 Personificar, interpretar, no
sentido teatral, é o princípio fundamental do mito. 186 Insistimos,

potência que tem que ser descoberta. O nome que Viveiros de Castro dá a essa
ontologia, com a intenção de radicalizá-la e precisá-la, é perspectivismo (VIVEIROS
DE CASTRO, 2015, p. 41).
182 Os mitos falam sempre de relações sociais.
183 Contra a psicanalise é criada a metodologia esquizoanalítica por Gilles Deleuze e
Félix Guattari em três livros: El Anti Edipo (1972), Mil mesetas (1980) e ¿Qué es la
filosofía? (1991).
184 VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p. 238.
185 Viveiros o exprimirá assim: “O encontro ou intercâmbio de perspectivas é um
processo perigoso, é uma arte política – uma diplomacia. Se o “multiculturalismo”
ocidental é o relativismo como política pública, o perspectivismo xamânico
ameríndio é o multinaturalismo como política cósmica” (VIVEIROS DE CASTRO,
2011, p. 358).
186 “Conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido –
daquilo, ou, antes, daquele; pois o conhecimento xamânico visa um “algo” que é um
“alguém”, um outro sujeito ou agente. A forma do Outro é a pessoa” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2011, p. 358).

253
mito sem vidas que o aceitem não é mito; ele só existe em uma
prática vital que não está isenta dos jogos de poder como bem
percebeu Platão.187 O trabalho dele foi eliminar o mito – a poesia –
da república, posto que só era útil para desnortear ao cidadão.
Nesse sentido, quem tinha a capacidade de olhar cara a cara o mito
era o poeta; por esse motivo, também tinha que ser expulso da
cidade; e, finalmente, outro que tinha poderes perigosos era o
sofista, o idiota fabulador. Não mencionaremos o óbvio destino
dele.
Foi Platão quem expulsou o mito da vida política e desde
então segue fora dela ameaçando-a. Porém, afinal de contas, o
racionalismo não conseguiu vencer o mito, senão que se converteu
em um, aceito e praticado por nós, como explica o luminoso Kant
em seu texto “O que é iluminismo”. O mito é esse lugar de Caos
que o autor do Banquete qualificou de negativo. O filho do mito é,
sem dúvida, a literatura pelo simples fato de que esta trabalha com
o sentir localizado nos corpos, quer dizer que esse centro ameríndio
de pensamento do mundo tem ainda continuidade em nossas
práticas de pesquisa, porque, se vamo-nos entendendo, o terceiro
personagem da República é o sofista, e quem mais desprestigiado
que os sofistas modernos de Letras e Ciências Humanas? Claro,

187 Platão dirá em relação a poesia a aos poetas: “[…] es en justicia que no lo admitiremos
en un Estado que vaya a ser bien legislado, porque despierta a dicha parte del alma, la
alimenta y fortalece, mientras echa a perder la parte racional, tal como el que hace
prevalecer a los malvados y les entrega el Estado, haciendo sucumbir a los más
distinguidos”. (PLATÓN, 2000, 605 b)

254
sem mencionar que no Japão “perceberam” a inutilidade dos
homens interessados nas tragédias interiores dos homens como nós.
Afinal de contas, o projeto do Estado perfeito vem sendo
realizado sob os nossos narizes: nem o sofista, nem o poeta e muito
menos o mito devem ter participação na construção da cidade, da
Nação. O mito do racionalismo – que é um do tipo hegemônico,
mas que não o converte no único que existe em nosso planeta –
chega nos nossos dias ao paroxismo. A tríade mito, literatura e
política tem mais sentido e urgência do que nós podemos acreditar.
É bom lembrar as lutas do Davi Kopenawa pela terra e seu povo,
além do resumo da sua vida, como crítica, no seu livro A queda do
céu:188 ele é um homem que vive o seu mito e que, através dele, fala
aos brancos sobre a destruição, não só dos Yanomami e outras
etnias da floresta, senão do nosso mundo como fruto podre das
nossas crenças “evoluídas”. A equação é simples: tenta-se abrir um
campo simétrico entre mitologias, ontologias, epistemologias e
políticas do mundo.
O que aconteceu depois de acreditar-se na alegoria da
caverna e de sua união com o pensamento judaico-cristão, graças à
máquina de guerra romana, foi um epistemicídio generalizado na
história da humanidade, segundo Boaventura de Sousa Santos. 189
Cabe lembrar que esse processo ainda continua como efeito não só
da colonização, ou do capitalismo ou da industrialização, mas da
formosa globalização unidimensional. Juntamos aqui as propostas

188 KOPENAWA, 2015.


189 DE SOUSA SANTOS, 2010, p. 51-61.

255
de Emmanuel Wallernstein (2006) e Herbert Marcuse (1993). Em
resumo, o mito da luz, vinda dos céus, tem o poder para nos fazer
suspeitosamente iguais.
O problema do mito, como o da literatura, é que existe em
prol da multiplicidade, quando o nosso marco epistemológico é
claramente monológico a partir da ideia de que tudo pode ser
objetualizado. O método mítico, ao invés, é altamente dialógico e
não deixa de fazer alianças 190 com o mundo tal como a literatura faz
conosco. Temos tribos machadianas, drummondianas, pessoanas,
lispectorianas, etc., que trabalham com os afetos exprimidos pelos
poetas. Tanto como o mito fala das possibilidades do mundo, a
literatura não deixa de propor novos mundos por viver e novos
povos por serem conhecidos.191 O problema, claro está, é que não se
toma a sério a literatura, porque ainda encontramo-nos acreditando
que não tem nada a dizer – por esse termo que consideramos ruim
chamado “ficção” – e que a estética só é um trabalho asséptico; sem
nenhum compromisso que devenha dos mundos propostos pela
literatura. Viver a literatura teria que ser deixar seu potencial
transformativo trabalhar livremente.
A tríade está completa. Toda ontologia tem uma narrativa
ou mito que é a lente que permite ao corpo sentir, e todo sentir

190 O conceito de aliança é trabalhado por Deleuze e Guattari no platô nº de Mil platôs.
Viveiros de Castro estende este conceito para a antropologia no seu livro Metafísicas
canibais (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 153-213).
191 Danowski e Viveiros de Castro escrevem o seguinte sobre esta multiplicidade: “[...]
os ameríndios pensam que há muito mais sociedades (por tanto humanos) entre o
céu e a terra do que sonham nossas antropologias e filosofias. O que chamamos de
“ambiente” é para eles uma sociedade de sociedades, uma arena internacional, uma
cosmopoliteia” (DANOWSKI E VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 94).

256
conduz a uma política. A diferença da ontologia ocidental com as
ontologias ameríndias está no fato de que a primeira separa
radicalmente o ser e o sentir, por meio da nocividade de uma
experiência variada nas carnes dos cidadãos, posto que estes têm
que seguir o padrão das Ideias, da razão; a segunda não faz muros
entre o ser e o sentir porque não existe reflexão do mundo sem
percepção e só depois de sentir se pode agir sobre os seres que
povoam o mundo. Em outros termos, toda narrativa teria simetria
conosco porque tem a capacidade de nos afetar: 192 a única variável é
que temos muitos corpos por sentir em uma hermenêutica
altamente exigente. Temos face a nós a tranquilidade da metafísica
impositiva versus a metafísica relacional.

2. SOUSÂNDRADE

Neste marco temos o poeta romântico Joaquim de Sousa


Andrade ou Sousândrade. Que é o que ele fez? Escreveu um
volumoso livro de treze cantos intitulado O Guesa. Nele expõe-se o
mito de um jovem que seria sacrificado ao deus Sol da etnia
colombiana dos Muíscas. O significado de Guesa é errante e,
justamente, o que o poeta realizou com este pretexto mítico foi
vagar pelo mundo construindo o texto durante quase 50 anos.

192 O crítico peruano Miguel Ángel Huamán diz o seguinte: “Las obras literarias no solo
pasan por la historia y los sujetos sociales, sino que éstos pasan por ellas para
construir y reelaborar su destino” (HUAMÁN, 2013, p. 22).

257
Sousândrade se converteu em uma linha de fuga. 193 Não estudou
em Portugal, mas na França; não pertenceu ao círculo imperial, mas
escreveu em certa periferia até que participou ativamente no
nascimento da República brasileira.194 Neste primeiro ponto, a vida
do poeta fez um agenciamento com o mito. Viajou como o
personagem e poder-se-ia dizer que foi sacrificado ao esquecimento
até a recuperação feita pelos irmãos Campos 195 mais de cinquenta
anos depois da publicação de O Guesa e da morte do próprio
escritor.
Os cantos mais conhecidos e complicados do livro são o II e
o X, conhecidos comumente como a “Dança do Tatuturema” e o
“Inferno de Wall Street”, respectivamente. Nesses, o autor fez duas
críticas políticas. A primeira contra o Império brasileiro e sua
incompreensão sobre a questão indígena, e a segunda, contra o
capitalismo como Caos destrutivo das relações humanas.
O procedimento sousandradino, que começa no mito, foi
acelerar as partículas de sentido. Quer dizer, nos apresenta, nesses
cantos, uma multiplicidade de vozes que têm perspectivas plenas
sobre o problema da estrutura do mundo, expande o diálogo a tal
ponto que muitos trechos são quase ininteligíveis. Mas por quê?
Porque expande as possibilidades de compreensão do mundo,
dando autonomia a cada perspectiva que participa no texto. No

193 Conceito proposto por Deleuze e Guattari em Mil mesetas. Consiste em um evento
que atravessa diferentes estratos de sentido até sair de um sistema codificado de
pensamento.
194 Os dados biográficos podem ser consultados na biografia do Sousândrade escrita por
Frederick Williams e publicada no ano de 1976.
195 No famoso texto ReVisão de Sousândrade.

258
canto II, por exemplo, falam personagens mortos, vivos, deuses,
escritores, indígenas, nuvens, violas, coros. Neste sentido, o texto
desestratifica a solidez do monologismo em uma espécie de rito
xamânico. Propõe uma simetrização dos entes sobre a superfície do
livro estudado, o qual faz rizoma com o mundo, quer dizer,
Sousândrade conecta elementos heterogêneos para demonstrar,
simultaneamente, que a ordem estabelecida perdeu de vista o labor
político como escuta atenta de inúmeras populações.
Graças ao método mítico praticado pelo poeta maranhense
temos versos antiestatais, como o seguinte: “(AMAZONAS
belicosas melhorando a genesíaca superstição :) / – Terra humana,
primeiro. / Deus fez Eva; e então, / Paraíso sendo ela / Tão bela, /
Fez o homem Adão”.196 As mulheres inverteriam a lógica da criação:
o princípio do planeta é humano, logo feminino e finalmente
masculino. Tudo é humano e, por esta razão, é válido falar de
sentires do mundo. A tarefa xamânica do poeta é descobrir a
subjetividades escondidas nas corporalidades que ele exprime o
poema.
Sousândrade reconverte os tópicos infernais em verdadeiras
extensões delirantes do mundo, porque uma crítica, a partir de
outra ontologia acorde com o pensamento indígena, é possível,
segundo nosso parecer, se o artista faz uma aliança com o mito.
Neste sentido, o poeta traz para a literatura potencialidades que
agora tentam se compreender, mas, sobretudo, viver.

196 SOUSÂNDRADE, 2012, p. 93.

259
3. CHURATA

O périplo vital do peruano Arturo Peralta, ou Gamaliel


Churata, é similar ao do Sousândrade. Procurou o princípio
genético da sua criação nos Andes peruano-bolivianos, longe de
Lima, o centro de poder do Peru, e morou, por quase trinta anos,
em La Paz. Apresenta-se nos assim, o poeta, como outra linha de
fuga. Cabe destacar que sua volumosa obra, El pez de oro (O peixe
de ouro), propõe repensar a América Latina a partir de um mito
que podemos resumir em três pontos: O novo governo do mundo
chegara com o nascimento do Peixe de ouro (Khori Challwa), filho
do Puma de ouro (Khori Puma) e da Sereia do lago Titikaka.
O Churata se nos apresenta neste mito como o Puma de
ouro, quer dizer, o projeto estético-político do livro está por vir.
Quais são os elementos xamânicos 197 do livro? Para começar El pez
de oro tem por subtítulo “Retablo del Laykhakuy”. As duas
palavras merecem ser pensadas com muita atenção. O retábulo é
conhecido no Peru como um objeto de artesanato que presenta em
distintos níveis (três pelo menos) a vida cotidiana da vida nos
Andes, como as festas, o trabalho, a vida familiar, etc. A segunda
palavra tem origem quéchua e significa, segundo Churata,
caminhos de vontade mágica. Ao serem unidas as duas palavras,
teríamos o seguinte efeito: o livro mostra, em distintos níveis, vias
de conhecimento não racional.

197 A pesquisadora espanhola Helena Usandizaga se concentra nestes aspectos


(USANDIZAGA, 2012, p. 43).

260
Outro dos dados importantes do livro têm a ver com a
mistura de práticas textuais que ele põe em movimento. Churata
incrusta cantos em aymara e quéchua,198 partes em prosa,
parlamentos teatrais e até uma homilia que abre o texto. Nesta
ocasião não nos deteremos na apresentação dos personagens que
participam na trama de El pez de oro. O poeta peruano menciona
25 personagens conhecidos, entre os quais o homem não é o mais
importante, mas a tríade peixe, felino e mulher peixe. Outros que
conformam a lista são a Mãe terra, Cachorros, Montes, Nuvens,
Esqueletos, Bactérias, Sonhos, Versos e, para complicar ainda mais a
situação delirante, dois etcéteras que poderíamos compreender
como personagens impossíveis de nomear e de uma quantidade
indefinível, mas importante, dada a heterogeneidade antes
mencionada do texto.
Poderíamos dizer, sem medo de errar, que Churata é um
continuador das propostas estético-políticas de corte xamânico do
Sousândrade porque o que o peruano faz com o livro é enchê-lo de
vidas que descentram o antropocentrismo ocidental. Neste sentido,
estes escritores recuperariam, a partir de umas invisibilizadas
ontologias latino-americanas, as possibilidades de pensar
“outramente” o mundo, como diria Viveiros de Castro, 199 e que
poriam em xeque as modalidades analíticas ocidentais que não

198 Temos por exemplo o haylli (canto de guerra) ou o harawi (canto amoroso) entre os
mais conhecidos.
199 VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 91.

261
poderiam explicar adequadamente o ser, o sentir e o poder de fazer
política no nosso continente.
E já que falamos de experimentar de outro modo,
gostaríamos de fechar nosso texto com uma citação de Churata que
faz um chamado ao Platão:

O único mandamento da beleza viva: engendrar! Você


entende, Plato?, Para o americano da América: engendrar!,
engendrar! Engendrar até a profundidade do
Tawantinsuyo... Quer dizer que o povo que não retorne à
Caverna, viverá doente e faminto, enquanto possa
subsistir.200

REFERÊNCIAS:

BENJAMIN, Walter. “El autor como productor”. Disponível em:


<http://www.bolivare.unam.mx/traducciones/El%20autor
%20como%20productor.pdf>. Acesso: 23/10/2015.

CHURATA, Gamaliel. El pez de oro. Helena Usandizaga (Ed.).


Madrid: Cátedra, 2012.

DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há


mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis:
Editora Cultura e Barbárie, 2015.
200 El único mandamiento de la belleza viva: ¡engendrar! ¿Entiendes, Plato?. Para el
americano de América: ¡engendrar!, ¡engendrar! Engendrar hasta la profundidad del
Tawantinsuyu (CHURATA, 2012, p. 213)… Es decir que el pueblo que no regrese a la
Caverna, vivirá enfermo y hambriento, mientras pueda subsistir (CHURATA, 2012,
p.904). A tradução é nossa.

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DELEUZE, Gilles y GUATTARI, Félix. Mil mesetas: Capitalismo
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Horacio Pons. Buenos Aires: Amorrortu, 2012.

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Reinventar el poder. Montevideo: Trilce / Extensión Universitaria,
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literária ameríndia. O eixo e a roda. Revista de literatura brasileira.
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ideología de la sociedad industrial avanzada. Trad. Antonio Elorza.
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Colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento
fronterizo. Trad. Juan María Madariaga e Cristina Vega Solís.
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Eggers Lan. Barcelona: Gredos, 2000.

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