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Cachoeira e São Félix, no Recôncavo da Bahia, são cidades antigas, que vivenciaram uma
história rica em radiodifusão, embora as primeiras emissoras de rádio só tenham chegado no
final da década de 1990. Este artigo trabalha com fragmentos de memórias de ouvintes, que
revelam a função estratégica do circuito fechado de áudio (sistema de alto falantes) na
comunicação e informação da região. Resultado da pesquisa Memória do Rádio no
Recôncavo, que recuperou, através da História Oral, em entrevistas com moradores com mais
de 60 anos e radialistas aposentados, como era a programação e como se dava a participação
de ouvintes antes da implantação das emissoras. O alto falante, que existe e faz sucesso até os
dias atuais, faz parte da cultura local e da rotina dos moradores. Sua importância se justifica
como patrimônio cultural na região.
Introdução
O circuito fechado de áudio, também conhecido como sistema de alto-falantes, é feito por
cabeamento e tem um alcance bastante limitado, mas de acordo com Costa e Noleto (1997),
foi uma maneira de difusão democrática nos primórdios do rádio, adotado por muitas
cidades para popularizar a linguagem e a cultura radiofônica. Em cidades de pequeno porte,
no interior da Bahia, a estratégia ainda é bastante utilizada e convive bem com as emissoras
de rádio.
Cachoeira e São Félix, conhecidas por sua diversidade e tradição cultural, tiveram forte
imprensa, principalmente no período em que o transporte no interior da Bahia era pelo Rio
Paraguaçu. Mas o interior do Recôncavo foi esquecido social e economicamente, após a
mudança da capital do Brasil para o Rio de Janeiro, com o declínio do açúcar, da
desvalorização do preço da terra, da desativação do transporte marítimo e posterior
abandono do Porto de São Roque do Paraguaçu, e com o crescimento das vias terrestres
(BRANDÃO, 1998).
1Alene é Professora Assistente do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
desde 2006. Leciona nos cursos de Jornalismo, Artes visuais, Publicidade e Cinema. E-mail: aleneufrb@gmail.com
Talvez isso explique porque Cachoeira e São Félix não tiveram a pujança radiofônica que se
observou em outras regiões da Bahia. Mas mesmo com esta defasagem, a linguagem de
rádio foi exercitada com uma programação criativa que deixou saudades em quem vivenciou
período.
Martín-Barbero (2001) afirma que as pesquisas sobre o rádio têm sido valorizadas nas últimas
décadas, e que esses estudos contribuíram para revelar o rádio como mediador entre o Estado
e as massas, entre o rural e o urbano, entre tradições e modernidade. Nas pesquisas, cresceu a
preocupação em manter viva a memória da mídia no Brasil, como o Projeto Rede ALCAR,
Rede Alfredo de Carvalho para o Resgate da Memória da Imprensa e a Construção da História
da Mídia no Brasil. E a memória da mídia não significa registrar apenas a lembrança dos
emissores, mas também a memória dos receptores dessa linguagem midiática.
No caso de São Félix e Cachoeira, havia uma ausência de registros que documentassem com
detalhes a história do rádio, por este motivo, durante o ano de 2008, trabalhei com quatro
estudantes (bolsistas do Programa de Permanência do MEC/SESu) do curso de Comunicação
do CAHL, Centro de Artes, Humanidades e Letras da UFRB, e priorizamos pesquisar a
história da radiodifusão, através da memória do ouvinte de rádio. Em observações empíricas,
constatamos a tradição radiofônica local e a pouca documentação existente. Pesquisamos em
jornais antigos, artigos que falassem sobre o sistema de radiodifusão local, mas nossa
metodologia mais aplicada foi a História Oral (ALBERTI, 1990), que utiliza a oralidade e a
memória para conhecer algo que ainda não está devidamente documentado. Na nossa
pesquisa, o objetivo era compreender um processo de comunicação que teve peculiaridades
próprias da região e que merece ser registrado para a compreensão da história da mídia
regional e da cultura radiofônica.
A Rádio Excelsior ZYD-8, segunda emissora de rádio da Bahia, fundada em 1940 pertencia
a Igreja Católica e era dirigida por um religioso. Por ser de orientação católica e pouco
ligada a assuntos de cunho político, a programação dessa rádio tinha um jornalismo pouco
assíduo.
A Rádio Cultura ZYN-20 pertencia ao paulista José Ribeiro Rocha. A ZYN-20 era também
conhecida como, “a caçulinha”, por ter nascido em 1950, dez anos após a segunda emissora
de rádio do estado, a Excelsior, sendo, portanto, a terceira da região. Tinha programação
diversa, do radiojornalismo ao programa esportivo, além de programas de auditório como,
por exemplo, ‘As Grandes Atrações Musicais’, sob o comando de Jorge Santos
(PAULAFREITAS, 2004).
Dessas três emissoras de Salvador, a que possuía maior potência era a Rádio Sociedade com
a força de 50.000 watts. Era “a emissora dos baianos”, rádio mais ouvida na capital e
também nas pequenas cidades do Recôncavo. Todos os depoentes desta pesquisa, com mais
de 50 anos, lembram da ‘Sociedade’ e de sua programação.
São Félix, cidade com cerca de 15 mil habitantes (dados IBGE 2013), a 120 km da capital,
até hoje não tem uma emissora. O rádio, com programação local e bastante participação dos
moradores, é feito em um estúdio e divulgado por um sistema de alto-falantes, que ainda é o
meio mais utilizado pela população para mandar recados e divulgar produtos em nível local.
Campanhas de utilidade pública, avisos e notas de falecimento mobilizam a pequena São
Félix via circuito fechado.
Não cabe neste trabalho julgar as ações da Anatel, mas percebeu-se a tristeza na fala do
depoente, na gravação efetuada. A Anatel estava seguindo a Lei:
Mas esta tem sido uma prática questionada pelos estudiosos, porque impede a
democratização da comunicação. A rádio Magnífica só voltou a funcionar após três anos.
Três longos anos sem uma única rádio na cidade de Cachoeira. A licença para o
funcionamento definitivo veio em 16 de abril de 2003, sendo as transmissões retomadas em
16 de junho do mesmo ano. Ela funciona até os dias atuais e tem uma programação voltada
para utilidade pública.
A Lei 9.612/98 estabelece que uma rádio comunitária objetiva oportunizar a difusão de idéias,
elementos culturais que englobam as tradições e hábitos sociais da comunidade em que está
inserida; estimular a formação e integração da comunidade, com atividades de lazer, cultura e
convívio social, além de possibilitar ao cidadão o exercício do direito de expressão da forma
mais acessível possível (COSTA e NOLETO, 1997).
A rádio Paraguassu FM começou sem programas de notícias, mas em pouco tempo houve
uma interatividade com o público, através de ligações, participações ao vivo, promoções e as
notícias locais passaram a ter importância fundamental para manutenção da audiência. Os
locutores entrevistados disseram que ela tem o objetivo de informação e cultura para a
população.
O primeiro serviço de alto-falante de Cachoeira foi implantado nos anos 1940. Segundo o
radialista aposentado Adilson Nascimento, entrevistado aos 80 anos, no ano de 2008, o
serviço se chamava ‘Vozes do Norte’ e inicialmente funcionou na rua 13 de Maio, centro de
Cachoeira. Pouco tempo depois foi inaugurada ‘Vozes de Cachoeira’ para fazer concorrência
com o serviço já existente.
O estúdio era na cidade da Cachoeira, porém as transmissões eram feitas também para São
Félix. Lá se chamava DPR-2 Vozes da Primavera. A fiação passava toda pela ponte
centenária D. Pedro II, que liga as duas cidades, e muitas vezes a transmissão era feita em
“cadeia”, ou seja, um radialista que estivesse em São Félix falava ao vivo de lá; isso dava a
impressão de ser realmente uma rádio, segundo o depoente Adilson Nascimento.
Vozes da Primavera tinha uma programação diversificada para agradar a todos os seus
ouvintes:
Elias Cardoso, também conhecido como Elias Paco-paco, proprietário do serviço de alto-
falantes, possuía uma discoteca com várias relíquias da música nacional e internacional.
Segundo os jornais da época, o serviço perdeu muito público com a chegada do rádio portátil
(aparelho) em Cachoeira, e mais ainda com a posterior chegada da televisão, na década de
80. Mesmo enfrentando dificuldades, Elias manteve o serviço que desempenhou um papel
social muito importante, época em que a maior parte da população não tinha acesso ao rádio
e a televisão.
Hoje ele tem trabalha com o filho, Reginaldo Nascimento Júnior, que procurou integrar a
RN em novas mídias, como redes sociais (tem fanpage no facebook), tem site
(http://radiornpublicidade.com/) e vários telefones, inclusive celular, para manter canais
diretos com a população.
A RN Publicidade é patrocinada por anunciantes (a maioria é comerciante). Os comerciais
são pagos por chamadas, mas quando o tipo de nota é de utilidade pública como, por
exemplo, nota de falecimento, não é cobrada taxa de custo. Reginaldo considera o serviço de
alto-falante de grande utilidade para a população de São Félix. Hoje são quatro microfones,
dois computadores, internet e muito mais interação com a população. A rádio (que ainda é
sistema de alto-falantes), funciona das 08h00 às 12h00 e retorna às 15h00 e finaliza às 18h00, de
segunda a sábado.
Apesar das emissoras só terem chegado à Cachoeira no final da década de 1990 e de São
Félix não ter ainda uma emissora na cidade, a população não deixou de vivenciar a cultura
do rádio. Se analisarmos o conceito de radiodifusão:
Veremos que em Cachoeira e São Félix, não havia radiodifusão gerada pelas cidades até
1998. Mas o Rádio teve vida e voz para a população por conta da iniciativa de pioneiros que
utilizaram sistemas de alto-falantes.
Maurice Halbwachs (1990), diz que não é na história aprendida, mas na história vivida que se
apóia nossa memória. Destacamos a seguir, a lembrança da primeira vez que alguns
entrevistados ouviram um rádio ou tiveram consciência da importância de um registro
histórico a partir do rádio:
Brincadeiras de rua foram deixadas de lado, visitas à casa do vizinho tinham horário certo, o
rádio mudava o comportamento.
A expectativa para ouvir a programação preferida era muito grande e, maior ainda era a
curiosidade em saber quem estava do outro lado, quem era que proporcionava aqueles
momentos únicos para cada uma dessas pessoas.
Considerações finais
Os estudos culturais estão voltados, nos últimos anos, às formas de expressão culturais não-
tradicionais, causando assim uma descentralização da legitimidade cultural. Em conseqüência,
a cultura popular alcança legitimidade, transformando-se num lugar de atividade crítica e de
intervenção, seja política, social ou religiosa (ESCOSTEGUY, 2007).
“O grupo do CCCS [Centro de Estudos Culturais Contemporâneos]
amplia o conceito de cultura para que sejam incluídos dois temas
adicionais. Primeiro: a cultura não é uma entidade monolítica ou
homogênea (...) e segundo, cultura não significa simplesmente
sabedoria recebida ou experiência passiva, mas um grande número de
intervenções ativas – expressas mais notavelmente através do
discurso e da representação – que podem tanto mudar a história
quanto transmitir o passado” (AGGER apud ESCOSTEGUY, 2007).
A programação local de uma época do rádio, ainda que através de alto-falante e a memória do
ouvinte, valorizadas como resultado da manifestação local, em contraposição com a
globalização, precisa ser divulgada para não ser esquecida ou se perder no tempo. O passado e
suas referências, marcadas no território e nas memórias, precisam ser preservadas (SIMÃO,
2006). Os elementos do conhecimento, do fazer e do saber fazer, não são tangíveis mas
compõem o arcabouço do patrimônio cultural e o que objetivamos com esta pesquisa, foi
mostrar que, embora sem a radiodifusão, a cultura do rádio esteve muito presente desde
sempre nas cidades por conta do sistema de alto-falantes (LEMOS, 2006).
Referências bibliográficas
BOSI, Ecléa - Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
COSTA, Gilberto e NOLETO, Pedro. Chamada à Ação, Manual do radialista que cobre a
educação. Brasília: Projeto Nordeste/ MEC/ UNICEF, 1997.
FERRARETO, Luiz Artur. Rádio, o veiculo, a historia e a técnica. Porto Alegre: Editora
Sagra Luzzato, 2001.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Laurent Leon Schaffter. São Paulo:
Vértice, 1990.
HAUSSEN, Doris. Bachelard e o rádio: o direito de sonhar. In: Meditsch (org). Teorias do
Rádio – Textos e contextos. Florianópolis: Insular, 2005.
LEMOS, Carlos. O que é Patrimônio Histórico. Coleção Primeiros Passos. São Paulo:
Brasiliense. 2006.
PAULAFREITAS, Ayeska. Morte de Getúlio, política e rádio na Bahia. In: II Encontro Nacional da
Rede Alfredo de Carvalho. Florianópolis, 2004.
SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do patrimônio cultural em cidades. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
Fontes primárias/ Depoimentos