Vous êtes sur la page 1sur 350

PARANÁ

INSURGENTE:
HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Joseli Maria Nunes Mendonça


Jhonatan Uewerton Souza

CASA LEIRIA
Sinto-me honrado diante do convite dos
organizadores para apresentar esta obra,
que se revela instigante, informativa e
inspiradora.
Paraná Insurgente: Histórias e Lutas So-
ciais – Séculos XVIII ao XXI, escrito pelas
mãos de vários pesquisadores, resgata a
história dos oprimidos – especialmente no
Paraná – e lança luz sobre a atualidade dos
movimentos de resistência a uma ordem, a
um sistema.
Desde a insurgência nos tempos da escra-
vidão, passando pelos conflitos no campo,
o início das lutas operárias, o enfrenta-
mento ao Regime Militar, até as configu-
rações de resistência nos tempos atuais,
o livro apresenta histórias, situações, lei-
turas da realidade e conclusões que re-
forçam a necessidade da luta permanente
pela construção de uma sociedade erigida
sobre valores de liberdade, equidade, so-
lidariedade.
E essa luta não é fácil e não está perto
de acabar. Pelo contrário, nosso tempo
tem apresentado, no campo das ideias, um
acirramento de posições, polarização de
pensamento, radicalismos, um crescente
preconceito em relação à raça, ao gênero,
ao sexo, à etnia, e tudo isso embalsamado
pelos meios de comunicação, cuja centrali-
zação se mostra cada vez mais veloz, mais
feroz, mais devastadora e avessa à refle-
xão; na materialidade, assistimos a preca-
rização do trabalho e do meio ambiente, a
concentração de renda, a inacessibilidade
da maioria da população a um mundo de
riquezas e maravilhas tecnológicas. Tudo
isso produz um muro, no qual de um lado
se cria um perigoso terreno para a germi-
nação de práticas autoritárias, que tende a
massacrar tudo e todos que questionam a
ordem e, de outro lado, se semeia o gérmen
da transformação.

(continua na aba da contracapa)


...

PARANÁ INSURGENTE:
HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Organizadores
Joseli Maria Nunes Mendonça
Jhonatan Uewerton Souza

CASA LEIRIA
São Leopoldo-RS
2018
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Editoração: Casa Leiria.


Capa: Gabriel Vieira.

Os textos e as imagens são de responsabilidade de seus autores.

Ficha catalográfica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973

Todos os direitos reservados.


A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas que compõem
este livro, para uso não individual, mesmo para fins didáticos, sem autorização
escrita dos organizadores, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura.
PARANÁ INSURGENTE:
HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

SUMÁRIO

9 APRESENTAÇÃO
Joseli Maria Nunes Mendonça
Jhonatan Uewerton Souza

PARTE I:
ESCRAVOS E POPULAÇÃO NEGRA: LUTAS NOS TEMPOS
DA ESCRAVIDÃO E DO PÓS-ABOLIÇÃO

21 CATIVOS EM INSURGÊNCIA: O QUE OS ESCRAVOS DA


FAZENDA CAPÃO ALTO PODEM AINDA NOS DIZER SOBRE
SUAS VIDAS E SOBRE O QUE PENSAMOS DELAS
Joseli Maria Nunes Mendonça
35 O PARANÁ ABOLICIONISTA: LUTAS PELO FIM DA
ESCRAVIDÃO
Noemi Santos da Silva
51 SOCIEDADE OPERÁRIA BENEFICENTE 13 DE MAIO:
MOBILIZAÇÃO NEGRA E CONTESTAÇÃO POLÍTICA NO PÓS-
ABOLIÇÃO
Pamela Beltramin Fabris
Thiago Hoshino
65 ÁFRICA, TEU POVO SE LEVANTA! INSURGÊNCIA QUILOMBOLA
NO PARANÁ
Cassius Marcelus Cruz
Isabela da Cruz

PARTE II
DISPUTAS NO TERRITÓRIO E LUTA PELA TERRA

81 ESTRATÉGIAS INDÍGENAS NAS REGIÕES MERIDIONAIS DA


CAPITANIA DE SÃO PAULO
Tatiana Takatuzi
93 IMIGRANTES INSURGENTES: A EXPERIÊNCIA DOS ESLAVOS DE
ANTÔNIO OLINTO
Maria Luiza Andreazza
103 RAÍZES DA INSURGÊNCIA SERTANEJA DO CONTESTADO
Paulo Pinheiro Machado
123 CONFLITOS AGRÁRIOS E RESISTÊNCIA: OS CAMPONESES DE
PORECATU
Angelo Priori
6
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

137 A LUTA PELA TERRA NO SUDOESTE DO PARANÁ: A REVOLTA


DE 1957
Paulo José Koling
155 POSSEIROS EM LUTA NO OESTE DO PARANÁ
Antonio Marcos Myskiw
171 MEMÓRIAS DA LUTA DOS ATINGIDOS POR ITAIPU
Guiomar Inez Germani
189 A LUTA DOS SEM-TERRA NO PARANÁ
João E. Fabrini

PARTE III:
TRABALHADORES URBANOS: MILITÂNCIA E LUTA POR DIREITOS

207 A POLÍTICA NAS RUAS: PROTESTOS, ASSOCIATIVISMO E


MILITÂNCIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA
Jhonatan Uewerton Souza
229 EXPERIÊNCIA OPERÁRIA EM CURITIBA: A GREVE GERAL DE
1917
Luiz Carlos Ribeiro
243 MILITÂNCIA OPERÁRIA NO PARANÁ DAS DÉCADAS DE 1930
E 1940
Claudia Monteiro
257 TRABALHADORES DO LITORAL PARANAENSE:
ORGANIZAÇÃO, SINDICATOS E SUBVERSÃO
Thiago Ernesto Possiede da Silva

PARTE IV
COMBATES EM TEMPOS DE REPRESSÃO E DE INVESTIDAS NEOLIBERAIS

273 A DITADURA CIVIL-MILITAR NO PARANÁ: MEMÓRIAS DE


MULHERES MILITANTES
Carla Cristina Nacke Conradi
289 EXCLUÍDOS DA XV: VINTE ANOS DE REGIME MILITAR OU A
POÉTICA DA POBREZA
Artur Freitas
307 A GRATUIDADE DO ENSINO NAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS
DO PARANÁ: UMA CONQUISTA DA LUTA SOCIAL
Reginaldo Benedito Dias
321 A BATALHA PELA COPEL
Cátia Cilene Farago
341 OS ORGANIZADORES
341 OS AUTORES
7
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

APRESENTAÇÃO
Esta publicação foi idealizada no mês de outubro
de 2016, quando o Estado do Paraná se tornou um dos prin-
cipais focos de resistência às medidas encaminhadas pe-
los governos ultraliberais de Michel Temer e Beto Richa. Na-
quele mês, várias escolas secundaristas e, posteriormente,
universidades foram ocupadas por estudantes em reação a
projetos de lei que restringiam severamente o investimento
público na educação.
Não obstante a intensa mobilização, conduzida com
admirável organização e senso de responsabilidade pelos
estudantes, durante todo o período, a imprensa nacional e
a mídia hegemônica local se ocupou quase que exclusiva-
mente do que vinha até então fazendo: divulgar as ações

JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA E JHONATAN UEWERTON SOUZA


da Operação Lava Jato e seus desdobramentos. Era como
se tivesse se estabelecido no Paraná – em Curitiba especial-
mente – um assentimento geral em relação à operação in-
vestigativa e punitiva, cuja natureza tendenciosa em relação
a personalidades ligadas aos projetos de esquerda já havia
sido reconhecida em vários âmbitos – na ONU, inclusive.
Essa percepção coadunava com outra, muito cor-
rente, mesmo entre os paranaenses: a de que o Paraná é,
por tradição, um estado conservador. Como se ali houves-
se se estabelecido um consenso em torno desse conserva-
dorismo. Quase como se essa condição estivesse inscrita no
código genético de toda gente que teve esse estado por
berço ou que ali se estabeleceu. É uma ideia que impera
mesmo quando a realidade a contradiz de forma peremptó-
ria. Por isso, para muitos, é como se essas manifestações dos
estudantes secundaristas e universitários fossem pontos fora
9
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

da curva. Incompreensíveis, em um local de tamanha sanha


conservadora.
A aceitação acrítica dessa caracterização, que re-
duz à excentricidade ou à insignificância as experiências
transgressoras do presente, pode incidir também sobre os
movimentos de contestação e de resistência realizadas no
passado, lançando-os no esquecimento. Quantos, dentre os
próprios paranaenses, conhecem a revolta de Porecatu ou a
o movimento dos posseiros no sudoeste do Estado? Quantos
sabem que uma grande mobilização popular evitou a priva-
tização da Copel no final dos anos 1990 e início dos 2000?
Que nos anos 1960 – em plena ditadura militar – estudantes
se mobilizaram para assegurar a gratuidade do ensino públi-
co superior e que a mesma luta foi travada, nos anos 1980,
por estudantes das universidades estaduais? Que o MST foi
organizado no Paraná – em Cascavel? Que há no estado,
desde o período pós-abolição, uma intensa organização da
população de origem africana para criar espaços de socia-
bilidade, lutar por direitos e confrontar o preconceito? Quan-
tos sabem que há numerosas ocorrências transgressoras que
contradizem frontalmente a narrativa do conservadorismo
imperante?
Se é verdade que é grande a onda conservadora no
estado (mas não só), que os partidos de esquerda têm tido
ali um desempenho pífio, é verdade também que – parafra-
seando o maior dos poetas locais – muita vida que respira
naquelas terras, ali conspira...
Os escritos que ora apresentamos tratam de alguns
desses movimentos de contestação, de luta por direitos, de
resistência à opressão. Assim, embora a coletânea preze pela
variedade de abordagens, ela organiza em torno de um re-
corte temático coerente: os movimentos de contestação
que tiveram o estado do Paraná como palco. Visa atingir um
espectro amplo de leitores, mas não descuida do rigor aca-
dêmico: todos os capítulos que a compõem foram escritos
por pesquisadores especialistas nos temas que abordaram.
Dentre os 22 autores que participam da coletânea, alguns
APRESENTAÇÃO

são mais experientes, outros mais jovens; todos, entretanto,


atuam em instituições acadêmicas, em áreas diversas – Direi-
to, Geografia, Ciências Sociais e História – em variados locais
– Paraná, São Paulo, Bahia.
10
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

O livro está dividido em quatro partes temáticas. A


primeira parte do livro “Escravos e população negra: lutas nos
tempos da escravidão e do pós-abolição” congrega quatro
capítulos, todos dedicados à história da população negra no
Paraná, antes e depois da abolição. Joseli Mendonça abre a
coletânea com o capítulo “Cativos em insurgência: o que os
escravos da Fazenda Capão Alto podem ainda nos dizer so-
bre suas vidas e o que pensamos delas”. Nele, a autora trata
de um movimento ocorrido na Fazenda Capão Alto, na Vila
de Castro, em 1864, protagonizado por escravos que se recu-
savam a ser transferidos para fazendas de café da Província
de São Paulo. No texto, temas como o tráfico interprovincial
e as lutas por liberdade e autonomia são tratados desde a
perspectiva dos trabalhadores escravizados.
No capítulo que segue, Noemi Santos da Silva apre-
senta as mobilizações locais em oposição ao escravismo. “O
Paraná abolicionista: lutas pelo fim da escravidão” evidencia
um abolicionismo multifacetado, no qual escravos, libertos,
negros livres, profissionais liberais e membros das elites locais se
engajam em periódicos abolicionistas, clubes literários, escolas
noturnas, ações judiciais por liberdade, agremiações teatrais
e carnavalescas, e em clubes emancipacionistas, combaten-
do a escravidão. Radicais ou moderados, divergindo sobre as
modalidades de abolição, mas conectados a um movimento

JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA E JHONATAN UEWERTON SOUZA


de dimensões nacionais, os abolicionistas paranaenses tive-
ram importante papel na construção dos caminhos tortuosos
que conduziram à liberdade, como mostra a autora.
O tema do terceiro capítulo – “Sociedade Operária
Beneficente 13 de Maio: mobilização negra e contestação
política no pós-abolição”, escrito a quatro mãos, por Pamela
Beltramin Fabris e Thiago Hoshino trata da luta por cidadania
no contexto do pós-emancipação. Analisando um grupo as-
sociativo negro de Curitiba – a Sociedade 13 de Maio –, os
autores salientam as maneiras pelas quais esses sujeitos se
organizaram para conquistar direitos básicos que lhes eram
negados pela República e para combater o racismo. As ir-
mandades, clubes negros e associações operárias, como
mostram os autores, foram fundamentais nesse processo de
ampliação da cidadania, mediante a construção de laços
de solidariedade entre indivíduos que compartilhavam de
uma mesma experiência de exclusão no pós-abolição.
11
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Cassius Marcelo Cruz e Isabela da Cruz encerram a pri-


meira parte da coletânea analisando a luta de mulheres e de
homens negros no meio rural, com o capítulo “África, teu povo
se levanta! Insurgência quilombola no Paraná”. Nesse texto, os
dois pesquisadores tratam da luta por liberdade, terra e direi-
tos empreendida nas comunidades quilombolas do Vale do
Ribeira, dos Campos Gerais e da região central do Paraná. Al-
gumas delas se processam há mais de 200 anos, abrangendo
desde as fugas de indivíduos escravizados no século XVIII até
a formação da Federação Quilombola do Paraná, em 2009,
e da Rede Puxirão de Povos e Comunidade Tradicionais, em
2008 – congregando, além dos 36 povos quilombolas existen-
tes no Paraná, faxinalenses, kaingangs, guaranis e xetás. Por
meio dessas instituições as comunidades negras tradicionais
vêm resistindo à expansão capitalista no meio rural e aos pro-
jetos de sucessivos governos e regimes políticos com vistas à
inviabilização de sua existência. No final desse artigo, os au-
tores, ela quilombola e ele diretor de escola em uma dessas
comunidades, fazem um emocionante manifesto, constituído
a partir de suas vivências e experiências.
A segunda parte da coletânea, denominada “Dis-
putas territoriais e luta pela terra”, inicia com o capítulo “Es-
tratégias indígenas nas regiões meridionais da capitania de
São Paulo”, no qual a historiadora Tatiana Takatuzi analisa
os primeiros contatos entre indígenas e portugueses no pro-
cesso de ocupação dos Campos de Guarapuava, na se-
gunda metade do século XVIII. A autora parte dos relatos
de Afonso Botelho de Sampaio e Souza, referentes à expe-
dição rumo à região ocupada pelos povos Kaingang, para
refletir sobre as múltiplas formas de interação entre os indí-
genas e os colonizadores. Ataques, tentativas de aliança,
desconfianças recíprocas, além das estratégias de enfren-
tamento tradicionais – como captura e execução dos inimi-
gos – são analisadas desde a perspectiva indígena, evitan-
do interpretações etnocêntricas.
Maria Luiza Andreazza, no capítulo seguinte – intitu-
lado “Imigrantes insurgentes: a experiência dos eslavos de
APRESENTAÇÃO

Antônio Olinto” –, investiga as motivações da revolta prota-


gonizada por imigrantes ucranianos e poloneses, em 1895.
Para tanto, a autora recua a meados do século XIX, procu-
rando compreender as concepções que fundamentaram a
12
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

política imigrantista para a província do Paraná e perscru-


tar as tensões geradas entre o Estado e os imigrantes que
ali chegaram. Um dos motivos dessas tensões era o desca-
so das autoridades públicas em relação às colônias, o que
provocava lentidão na medição e distribuição dos lotes de
terra, aumentando a penúria dos colonos recém-chegados.
A indignação frente a esse descaso esteve na gênese dos
eventos de Antônio Olinto.
Paulo Pinheiro Machado, em “Raízes da insurgência
sertaneja do Contestado”, aborda o movimento liderado por
José Maria nas regiões sul e sudoeste do Paraná e planalto e
meio oeste de Santa Catarina, tratando do confronto com as
forças repressivas do Estado republicano, entre 1912 e 1916,
na Guerra do Contestado. Buscando compreender as ori-
gens do projeto de sociedade dos sertanejos, materializado
em suas “cidades santas”, o autor analisa a fusão entre duas
tradições populares da região sul do Brasil, a tradição políti-
ca e militar do federalismo popular de raízes platinas e a tra-
dição cultural e religiosa do profeta São João Maria. Como
atesta Machado, além do Contestado, essas tradições polí-
ticas e culturais estiveram presentes no desenvolvimento de
outros conflitos, como o Canudinho de Lages, o movimento
dos Monges do Pinheirinho e a ocupação Kaingang da Vila
de Pitanga, em 1923.

JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA E JHONATAN UEWERTON SOUZA


As relações entre o Partido Comunista Brasileiro e
a rebeldia camponesa no norte do Paraná são o tema do
capítulo “Conflitos agrários e resistência: os camponeses de
Porecatu”, escrito por Angelo Priori. Entre 1948 e 1951, os pos-
seiros da região de Porecatu, no vale do Rio Paranapanema,
entraram em conflito armado contra os jagunços que atua-
vam naquela região a serviço de grileiros, e contra as forças
da polícia militar e da Delegacia de Ordem Política e Social
(DOPS), que se mobilizaram para desarticular o foco guer-
rilheiro. O PCB, cujo registro havia sido cassado no mesmo
período, reorientava suas diretrizes em defesa da violência
revolucionária e percebeu na insurgência camponesa uma
oportunidade de executar as novas orientações partidárias.
Militantes comunistas de Jaguapitã, Londrina e do próprio
Comitê Central foram deslocados para a região, para en-
grossar as fileiras rebeldes. O potencial e as limitações desse
encontro são objeto de exame cuidadoso do autor.
13
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Paulo Koling, em “Revolta dos Posseiros em 1957”,


analisa a sublevação popular que teve o sudoeste do Pa-
raná como palco, tratando também das memórias produ-
zidas posteriormente sobre o evento. Para Koling, a revolta
camponesa não deve ser vista apenas como um movimento
em defesa da posse da terra e da regularização fundiária,
mas como uma reação coletiva à grilagem e à violência das
empresas de colonização que atuavam na região, com o
beneplácito do então governador do estado Moysés Lupion
e consonância com seus interesses.
“Posseiros em luta no oeste do Paraná”, de autoria
de Antonio Marcos Myskiw, mostra o cotidiano de violência
e resistência nas áreas rurais do oeste paranaense. O autor
investiga os fluxos migratórios para a região e analisa o sur-
gimento de uma identidade coletiva de “colonos-posseiros”
entre os camponeses que habitavam a localidade. A região
– que entre 1950 e 1970 tinha boa parte de suas propriedades
contestada judicialmente e que chegou a ter 50 mil posseiros
– foi palco de numerosos conflitos que opunham os jagunços
contratados por fazendeiros e as empresas de colonização
aos posseiros, que resistiam à expulsão e à grilagem de suas
terras. Esses conflitos, por vezes, terminavam em ações arma-
das, como no caso da Fazenda Rimacla, em Santa Helena,
entre 1972 e 1973, um dentre tantos episódios de violência e
resistência narrados pelo autor.
Guiomar Inez Germani, no capítulo “Memórias das
lutas dos atingidos por Itaipu”, mescla análise histórica com
suas memórias pessoais para narrar a luta daqueles que
foram expropriados para a construção da Hidrelétrica de
Itaipu. Organizados no Movimento Justiça e Terra, eles se
mobilizaram em torno da bandeira da indenização justa e
contaram com apoio da Igreja Católica e da Igreja Lutera-
na – por meio da Comissão Pastoral da Terra – e dos Sindi-
catos de Trabalhadores Rurais. O movimento agregou diver-
sos grupos, dentre eles os que eram trabalhadores rurais na
área, mas não tinham terra. Essa mobilização foi importante
na formação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra,
APRESENTAÇÃO

objeto de análise de João Fabrini, em “A luta dos sem-terra


no Paraná”. Nesse capítulo, o autor analisa o surgimento e
a atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Ter-
ra (MST) no estado, desde sua fundação – que ocorreu em
14
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

1984, no 1º Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem


Terra, realizado em Cascavel, até os conflitos recentes com
empresas multinacionais, que terminaram em assassinatos
de militantes do movimento. Fabrini chama atenção para as
múltiplas estratégias de atuação dos militantes, como a for-
mação de acampamentos e assentamentos e a busca de
mediação de autoridades públicas paranaenses. Destaca
também a ampliação de demandas, que contemplam edu-
cação no campo, moradia rural, crédito acessível, incentivo
a agroecologia, entre outros. Ao final da leitura, é forçoso re-
conhecer que a questão agrária no Paraná permanece sem
solução e a violência no campo continua sendo a moeda
corrente para a contenção dos movimentos insurgentes.
A terceira parte do livro é dedicada ao tema “Tra-
balhadores urbanos: militância e luta por direitos”. Ela inicia
com o capítulo “A política nas ruas: protestos, associativismo
e militância na Primeira República”, escrito por Jhonatan Ue-
werton Souza. Em seu texto, Souza aborda o cotidiano dos
trabalhadores curitibanos no alvorecer da República, ana-
lisando suas múltiplas formas de engajamento – organiza-
ção de protestos, meetings cívicos, greves e boicotes –, bem
como suas experiências associativas em grupos mutualistas,
sindicais e recreativos. O autor ainda se ocupa da circulação
de ideias nessas instituições frequentadas por trabalhadores,

JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA E JHONATAN UEWERTON SOUZA


investigando o surgimento da imprensa operária no Paraná
e a realização da militância anarquista e socialista junto às
classes laborais.
Luiz Carlos Ribeiro, em “Experiência operária em Curi-
tiba: a greve geral de 1917”, se dedica à análise do movi-
mento paredista realizado em Curitiba quando da grande
greve geral ocorrida no Brasil em 1917. Debruçando-se so-
bre as especificidades da greve curitibana, Ribeiro enfati-
za o papel desse movimento liderado pelos anarquistas no
rompimento com a lógica paternalista que predominava até
então nas negociações entre empresários e trabalhadores,
chamando a atenção para a importância que os debates
sobre as condições de trabalho e a organização operária as-
sumiram no pós-1917.
Em seguida, avançando no século XX, o capítulo “Mi-
litância operária no Paraná das décadas de 1930 e 1940”, es-
crito por Cláudia Monteiro, investiga a mobilização do ope-
15
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

rariado paranaense – mais especificamente dos ferroviários e


portuários – e sua relação com o Partido Comunista do Brasil
(PCB). Episódios de insurgência como a “Greve dos 7.000”
na Rede Viação Paraná-Santa Catarina, em 1934, o enga-
jamento dos operários na Aliança Nacional Libertadora, as
greves brancas no Estado Novo, a criação da central sindical
União dos Trabalhadores do Estado do Paraná, em 1946, e
as candidaturas de operários pelo PCB, são analisados de
maneira cuidadosa, com o objetivo de compreender a dinâ-
mica das lutas dos trabalhadores no estado.
Thiago Ernesto Possiede da Silva encerra a terceira
parte do livro, com o capítulo “Trabalhadores do litoral para-
naense: organização, sindicatos e subversão”, no qual reflete
sobre as transformações na consciência de classe do opera-
riado do litoral paranaense, especialmente aqueles que la-
butavam no porto, no início da década de 1960. Com foco
na atuação de instituições como o Sindicato dos Ensacado-
res e Carregadores de Café, o Sindicato dos Arrumadores,
o Bloco Carnavalesco “Os Cangaceiros” e o Fórum Sindical
de Debates de Paranaguá, o autor apresenta o conflitivo
ambiente do litoral paranaense, as lutas por melhores condi-
ções de vida e por aumento salarial na região, assim como
o engajamento dos trabalhadores do porto na defesa das
Reformas de Base propostas por João Goulart. Trata também
da relação dos portuários de Paranaguá com a Frente de
Mobilização Popular Pró-Reforma e com o Comando Geral
dos Trabalhadores, retomando as críticas que faziam ao au-
toritarismo que prevaleceria após o golpe de 1964.
A quarta e última parte do livro, “Combates em tem-
pos de repressão e de investidas neoliberais”, inicia com o
capítulo “Ditadura Civil-Militar no Paraná: memórias de mu-
lheres militantes”, assinado por Carla Conradi. No texto, as
memórias de mulheres que participaram da resistência à di-
tadura militar no Paraná são analisadas a fim de desconstruir
duas falsas imagens: em primeiro lugar, a de que no Paraná
não houve resistência e repressão durante a ditadura; e, em
segundo lugar, a ideia de que a militância contra o autorita-
APRESENTAÇÃO

rismo foi protagonizada, eminentemente, por homens.


Ainda sobre os tempos de ditadura, mas agora em
seu ocaso, na conjuntura da redemocratização e das “Dire-
tas Já!”, Artur Freitas escreve sobre as resistências estéticas,
16
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

poéticas e políticas ao autoritarismo em “Excluídos da XV: vin-


te anos de regime militar ou a poética da pobreza”. O foco
do capítulo é o “Coletivo Sensibilizar”, fundado em 1983, em
Curitiba, e coordenado pelo artista Sergio Moura. Freitas re-
toma de forma mais específica a obra “Grito Manifesto”, que
levantou um “Monumento ao Lixo”, na rua XV de Novembro
– em pleno centro de Curitiba. A obra, exposta em 31 de
março de 1984, foi realizada por meio de parceria entre os
artistas do coletivo e os carrinheiros – coletores de materiais
recicláveis da Vila Pinto, maior favela de Curitiba – e propu-
nha uma reflexão sobre os vinte anos do golpe de 1964 e seus
efeitos no avanço da pobreza endêmica no Brasil. Estava em
jogo, além de denunciar os anos de arbítrio, escancarar as
contradições da “cidade modelo”, ali mesmo, no seu maior
símbolo, o calçadão da XV.
Reginaldo Benedito Dias, em “A gratuidade do en-
sino nas universidades estaduais do Paraná: uma conquista
da luta social”, reflete sobre o processo histórico que levou à
aprovação da Lei Estadual 8.675, de dezembro de 1987, que
estabeleceu a gratuidade do ensino nas universidades esta-
duais paranaenses. Conforme o autor, que centra sua análise
na trajetória da Universidade Estadual de Maringá, durante a
década de 1980, em meio ao processo de redemocratiza-
ção, houve um amplo processo de mobilizações estudantis

JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA E JHONATAN UEWERTON SOUZA


e de trabalhadores da universidade contra a estrutura au-
toritária e excludente dessas instituições, cujos princípios or-
ganizacionais se inspiravam nas concepções da reforma uni-
versitária de 1968, promovida pelo regime militar. Esse ciclo
de mobilizações em defesa de uma universidade pública,
democrática e gratuita, abriu o caminho para que, durante
a greve de 1987, a gratuidade fosse conquistada nas univer-
sidades estaduais.
“A Batalha pela Copel”, de Cátia Farago, encerra a
coletânea. Nesse capítulo, entram em cena os movimentos
de resistência aos avanços neoliberais no estado do Paraná.
Farago analisa a aliança heterogênea que originou o Fórum
Popular Contra a Venda da Copel. No final dos anos 1990
e início dos 2000, numa conjuntura marcada pelo avanço
das privatizações estimuladas pelo governo Fernando Henri-
que Cardoso, o Fórum mobiliza a sociedade civil paranaense
em campanhas, abaixo-assinados, manifestações, projetos
17
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

de lei de iniciativa popular e ações judiciais para impedir a


privatização da Companhia Paranaense de Energia Elétrica
do Paraná (Copel), conforme o projeto do então governador
Jaime Lerner. A mobilização, que culminaria em uma bata-
lha campal na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná,
foi um dos poucos movimentos anti-privatistas a saírem vito-
riosos nesse contexto, conseguindo reverter judicialmente o
leilão da Companhia.
Esperamos que os capítulos que aqui reunimos – es-
critos de inegável carga política, que se colocam ao lado
daqueles cujas vozes se fizeram ouvir a duras penas – con-
tribuam com o conhecimento dos leitores e leitoras sobre
o lugar em que vivem, vendo-o como uma terra na qual
a resistência por tantas vezes se contrapôs à injustiça e à
prepotência.

Curitiba, dezembro de 2017.


Joseli Maria Nunes Mendonça
Jhonatan Uewerton Souza
APRESENTAÇÃO

18
PARTE I:
ESCRAVOS E POPULAÇÃO
NEGRA: LUTAS NOS TEMPOS DA
ESCRAVIDÃO E DO PÓS-ABOLIÇÃO
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

CATIVOS EM INSURGÊNCIA: O QUE


OS ESCRAVOS DA FAZENDA CAPÃO ALTO
PODEM AINDA NOS DIZER SOBRE SUAS
VIDAS E SOBRE O QUE PENSAMOS DELAS
Joseli Maria Nunes Mendonça

Quem visitar a Sala de Memória do Tribunal da Jus-


tiça Federal em Curitiba poderá consultar um processo judi-
cial1 cujas folhas amareladas dizem respeito a uma história
que vou aqui retomar e interpretar.
O auto foi composto no ano de 1865 e o motivo que
o gerou não é dos mais estimulantes. Trata de uma cobrança
de impostos que uma empresa de São Paulo – a Bernardo
Gavião, Ribeiro & Gavião – devia à Fazenda da Província do
Paraná. À medida que folheamos o processo, entretanto, vai
se desvelando uma história muito comovente e, à primeira
vista, bastante inusitada. Nesse capítulo contarei o que pude
saber dela por meio do documento que cobra a dívida, de
outras fontes que sobreviveram ao tempo e de textos de ou-
JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA

tros historiadores que, antes de mim, já se debruçaram sobre


esses eventos ou sobre outros episódios que nos ajudam na
interpretação do caso aqui analisado2.
1 JUSTIÇA FEDERAL DO PARANÁ. Núcleo de Documentação. Autos de Petição para
Execução em que são partes a Fazenda Provincial por seu procurador (executante) e
Bernardo Gavião, Ribeiro & Gavião (executado), 1865.
2 Em especial Eduardo Spiller Pena. Burlas à lei e revolta escrava no tráfico interno do
Brasil meridional, século XIX. In: Silvia Hunold Lara; Joseli Mendonça. (orgs.). Direitos
e Justiças no Brasil. Ensaios de História Social. Campinas, SP: Editora da Unicamp;
Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2006.

21
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Ao final, espero que o leitor, sem deixar de se emo-


CATIVOS EM INSURGÊNCIA: O QUE OS ESCRAVOS DA FAZENDA CAPÃO ALTO PODEM AINDA NOS DIZER SOBRE SUAS VIDAS E SOBRE O QUE PENSAMOS DELAS

cionar com a história desses escravos, não a veja como uma


ocorrência excepcional, e possa estender esse sentimento a
tantas outras pessoas que viveram a experiência da escravi-
dão, em um tempo passado, nesse nosso lugar.

NEGÓCIOS DA ESCRAVIDÃO

No ano de 1865, o coletor da Província do Paraná


acionou judicialmente a firma paulista Bernardo Gavião, Ri-
beiro & Gavião para cobrar impostos que a empresa teria
deixado de pagar ao fisco provincial. O tributo foi gerado
porque os empresários paulistas tinham arrendado da Ordem
Carmelita 236 escravos, que até então viviam e trabalhavam
na Fazenda Capão Alto – na Vila de Castro, nos Campos Ge-
rais – e os tinham transferido a São Paulo. Essa transação ge-
rou impostos que a firma não pagou. Por isso a cobrança em
juízo.
A transferência de escravos para a Província de São
Paulo – sobretudo por compra – foi bastante comum naquele
período, pois a economia cafeeira em expansão requisitava
uma grande quantidade de mão de obra. O tráfico atlânti-
co tinha cessado desde meados dos anos 1850 e não podia
fornecer trabalhadores africanos escravizados para as lides
nos cafezais. As iniciativas para transferir trabalhadores imi-
grantes eram ainda bastante incipientes. O chamado tráfico
interprovincial, então, supria a demanda: milhares de traba-
lhadores de origem africana, a maior parte deles já nascidos
no Brasil, que viviam na condição de escravos, foram transfe-
ridos de outras províncias do Império brasileiro para trabalhar
nas fazendas cafeeiras paulistas. O historiador Robert Slenes,
estudando o volume dessa movimentação de escravos, cal-
culou que cerca de 200 mil cativos foram deslocados de pro-
víncias do norte e do sul do Brasil – a maioria deles de regiões
urbanas – para as propriedades produtoras de café3.
Para os escravos, essas transferências geravam mo-
dificações expressivas, piorando em geral sua condição de
vida e de trabalho. A mudança acarretava a separação de
famílias e de amigos; a ruptura com redes de sociabilidades
3 Robert W. Slenes. The demography and economics of Brazilian slavery. Tese de PHD,
Stanford University, 1976.

22
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

constituídas; a perda de pequenas conquistas, obtidas em


anos de negociações com os senhores; o retrocesso de uma
condição de autonomia na realização de labores urbanos4.
Na segunda metade do século XIX, a ameaça de venda
para a região cafeeira era utilizada pelos senhores como ins-
trumento de controle dos escravos. As lides nos cafezais em
expansão, dos quais os proprietários procuram tirar o máximo
rendimento, eram extremamente duras: a disciplina era fér-
rea, o ritmo de trabalho acelerado5. Por isso, os escravos se
contrapunham tenazmente a essas transferências.
Que nos diga Barnabé6, que quando ocorria a venda
dos escravos da Fazenda Capão Alto tinha por volta de 18
anos e era escravo na cidade de Curitiba. Cerca de 20 anos
depois do negócio envolvendo os escravos da Capão Alto,
em 1880, Barnabé também esteve a ponto de ser vendido
para a Província de São Paulo.
Dera-se assim o fato. O escravo pertencia a um pa-
dre residente em São José dos Pinhais, que tinha por nome
João Batista Ferreira Belo, que o comprara de um irmão, em
1872. Sapateiro de ofício, Barnabé tinha uma oficina em Curi-
tiba, onde confeccionava tamancos, prestava serviços e
também residia. Alegando ter na cidade uma boa clientela,
o escravo pediu ao padre que o deixasse permanecer traba-
lhando ali. O padre aquiescera e o sapateiro – que adotava
o nome do senhor, sendo conhecido como Barnabé Ferreira
Belo – permaneceu em Curitiba. Uma vez ao mês, o sapateiro
fazia uma longa caminhada até São José dos Pinhais para
entregar ao seu senhor a quantia que ele estipulara, que era
de 15 mil réis.
Barnabé era, como se dizia à época, um escravo de
ganho. Destes, os senhores não exploravam o trabalho de
JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA

4 Quem quiser conhecer histórias que encantam, pela obstinação com que seus persona-
gens – escravos traficados entre regiões do Brasil – agiam para manter a proximidade
da família, as conquistas obtidas, as vezes até propriedades adquiridas, pode ler de
Sidney Chalhoub. Visões da liberdade – uma história das últimas décadas da escravidão
na Corte. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1990, especialmente o capítulo 1.
5 Muitos historiadores trataram do duro regime de trabalho nas fazendas cafeeiras, so-
bretudo as do Oeste Paulista. Destaco o trabalho de Maria Helena P. T. Machado. Crime
e escravidão. São Paulo: Brasiliense, 1987, em que a autora associa essa condição à
rebeldia escrava, expressa em crimes cometidos contra senhores e feitores.
6 Toda narrativa sobre o escravo Barnabé está baseada em DEPARTAMENTO DE AR-
QUIVO PÚBLICO DO PARANÁ. Auto de Petição em que é Barnabé Ferreira Bello (au-
tor) e João Batista Ferreira Bello (réu). 1880. BR APPR PB 045. PI 7718.

23
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

forma direta; obtinham deles uma renda que eles, por sua
CATIVOS EM INSURGÊNCIA: O QUE OS ESCRAVOS DA FAZENDA CAPÃO ALTO PODEM AINDA NOS DIZER SOBRE SUAS VIDAS E SOBRE O QUE PENSAMOS DELAS

vez, ganhavam fazendo serviços diversos, principalmente nas


cidades. Para que a exploração fosse viável, era necessário
que os escravos de ganho tivessem autonomia. Era uma es-
cravidão na qual, como considerou uma historiadora, o feitor
estava ausente7. Nesta condição, os cativos andavam “livre-
mente” pelas ruas, realizando tarefas remuneradas. Vendiam
gêneros de todas as espécies. Exerciam vários ofícios: eram
padeiros, pedreiros, carpinteiros, sapateiros – como Barnabé.
Vendiam mercadorias pelas cidades. As mulheres escravas
chegavam a dominar o comércio de alimentos nas ruas em
algumas localidades. Eram carregadores, levando de um
lado a outro tudo que precisava ser carregado8. Realizavam,
enfim, várias tarefas, com as quais obtinham os rendimentos
exigidos pelos senhores.
Às vezes esses cativos podiam, não sem muito esfor-
ço, angariar uma quantia extra, que acumulavam como pe-
cúlio e que usavam para melhorar sua vida ou mesmo para
comprar a alforria. Embora não fossem muito frequentes, o
acúmulo de pecúlio e a compra da alforria podiam de fato
ocorrer. Na comarca de Curitiba – como em todas as outras
Brasil afora – alguns escravos tornaram-se libertos dessa ma-
neira. Vários deles têm a história registrada em documentos
preservados no Arquivo Público do Paraná. É o caso de Hipó-
lito, que em 1874 alforriou-se pagando 400 mil réis ao senhor;
de Margarida, que em 1880 comprou a alforria por 350 mil
réis; de João, liberto em 1880 por ter pago um 1 conto de réis
a quem o mantinha como escravo. Histórias de vários outros
libertos dessa maneira podem ser conhecidas por quem tiver
por elas interesse9.
7 Leila Mezan Algranti. O Feitor Ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de
Janeiro 1808-1822. Petrópolis: Vozes, 1988.
8 Um livro que descreve com bastante minúcia a atividade dos escravos de ganho foi
escrito por Mary Karasch. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.
9 Esses processos foram estudados por Ana Carolina Gesser. Em torno do estatuto jurí-
dico: escravos e libertos na Comarca de Curitiba (1774-1888). Dissertação de Mestrado.
Curitiba: UFPR, 2017, especialmente capítulo 1 e Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshi-
no. Entre o espírito da lei e o Espírito do Século: A urdidura de uma cultura jurídica da
Liberdade nas malhas da escravidão. (Curitiba 1868-1888). Dissertação de Mestrado.
Curitiba: UFPR, 2013. Tratei de casos semelhantes para a Comarca de Campinas em
Joseli M. N. Mendonça. Entre as mãos e os anéis a lei dos sexagenários e os caminhos
da abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp; Centro de Pesquisa em História
Social da Cultura, 1999.

24
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A autonomia gozada por Barnabé era ainda maior


que a de grande parte dos escravos de ganho, pois seu se-
nhor residia em uma localidade afastada do seu local de tra-
balho e moradia. Ele próprio pagava os aluguéis da oficina
em que trabalhava e morava. Chegou a cobrir os custos de
médico e medicamento certa vez em que esteve doente.
Muitos chegavam a pensar que ele fosse um homem liber-
to e, nessa condição, ele recebeu da Câmara Municipal de
Curitiba, onde trabalhavam alguns amigos seus, um terreno,
no qual começou a edificar uma casa. Os recursos provi-
nham de seu trabalho que certamente rendia mais – prova-
velmente pouco mais – do que tinha de entregar ao vigário
de São José.
Talvez em razão dos gastos que vinha tendo na
construção da casa, em 1880 Barnabé deixou de fazer o
pagamento dos 15 mil reis exigidos por seu senhor. Sem ter
como obrigar o sapateiro a “cumprir seu dever”, o reveren-
do tratou de vendê-lo. Arranjou logo um comprador que
o levaria, nada mais nada menos, para uma fazenda da
região cafeeira.
Barnabé, então, sabendo muito bem o que isso signi-
ficaria, moveu mundos e fundos para evitar que a transação
fosse realizada. Iniciou um processo judicial contra o padre,
alegando que este o abandonara e por isso deveria ser con-
siderado livre. De fato, a lei de 1871 – conhecida como Lei do
Ventre Livre – em um de seus artigos determinava que os es-
cravos abandonados pelos senhores deviam ser declarados
libertos10. Não tendo sucesso na alegação, tentou comprar
sua alforria, buscando recursos com um grupo de abolicionis-
tas de Campo Largo, que tinham formado uma Sociedade
Emancipadora naquela localidade. Embora não tenha sido
bem-sucedido também nesse intento, alguma coisa deve
JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA

ter dado certo, pois a transferência para São Paulo não se


efetivou. Talvez tenha se ajustado com o padre, feito com
ele algum acordo. O certo é que, algum tempo depois, em
1885, ele continuava em Curitiba e devia ser já um homem
liberto, pois anunciava em um jornal da cidade que estava
mudando de nome: deixava de ser Barnabé Ferreira Belo e
10 Artigo 6º, parágrafo 4º da Lei 2040, de 28 de setembro de 1871. Disponível em http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM2040.htm (26/08/2017).

25
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

adotava o nome de Barnabé Francisco Vaz11. Talvez quisesse


CATIVOS EM INSURGÊNCIA: O QUE OS ESCRAVOS DA FAZENDA CAPÃO ALTO PODEM AINDA NOS DIZER SOBRE SUAS VIDAS E SOBRE O QUE PENSAMOS DELAS

se desvincular de vez das amarras que o ligavam à família da


qual havia sido escravo desde seu nascimento.
O que importa aqui, entretanto – o motivo pelo qual
puxei o fio da história de Barnabé – é elucidar o significado
que a transferência para a zona cafeeira paulista podia ter
para os escravos, naquela segunda metade do século XIX.
Para muitos, como para o sapateiro, ela estava associada
à perda de autonomia, à deterioração significativa da vida.
Mas, será que esta situação era também a dos escra-
vos da Fazenda Capão Alto, quando os “Gaviões” os arren-
daram dos frades carmelitas?

OS CATIVOS DA CAPÃO ALTO

Como Barnabé, também os escravos da Capão Alto


teriam sua condição de vida e trabalho radicalmente altera-
da com a transferência para São Paulo, pois eles, como Bar-
nabé, também viviam e trabalhavam na propriedade, des-
de o nascimento, com grande autonomia. A fazenda tinha
sido anteriormente parte da Sesmaria do Iapó, que no início
do século XVIII tinha 14 léguas e correspondia aos atuais mu-
nicípios de Jaguariaíva, Piraí do Sul, Castro e parte de Pon-
ta Grossa12. Nessa época a propriedade já estava inserida
no circuito da economia tropeira. Tinha, então, “um grande
potreiro [lugar para confinar animais] construído numa coli-
na, cercada de água, onde se abrigavam as tropas. Natu-
ralmente, ao redor da fazenda instalou-se, pouco a pouco,
um povoado cujos habitantes se dedicavam a atender a ne-
cessidades das tropas e dos tropeiros”13. Todo o trabalho era
realizado por escravos. Em 1731 a fazenda passara a perten-
cer aos frades carmelitas que, desde 1730, percorriam o sul
da América portuguesa com a dupla missão de cuidar das
almas dos cristãos e de negociar gado para garantir o abas-
tecimento dos conventos da Ordem, que ficavam mais ao
norte da Província de São Paulo14.
11 Dezenove de Dezembro 18 de março de 1885, p. 3.
12 PARANÁ. Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte. Coordenadoria do Patrimônio
Cultural. Fazenda Capão Alto. Curitiba: SECE, 1985, p. 23.
13 PARANÁ. Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte. Coordenadoria do Patrimônio
Cultural. Fazenda Capão Alto, obra citada, p. 24.
14 Idem, p. 25.

26
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

No início dos anos 1770, os frades se retiraram da


propriedade. Sem deixar de ser proprietários dela, abriram
mão de administrá-la diretamente. Essa situação não era
incomum nas sociedades escravistas. A existência das cha-
madas propriedades com donos absenteístas (que nelas não
residiam e não as administravam diretamente) foi bastante
frequente no Caribe inglês, francês e no sul dos Estados Uni-
dos15. Estas eram em geral geridas por capatazes de confian-
ça dos senhores, que imprimiam ainda mais rigor no controle
das grandes escravarias. Nos Campos Gerais, a existência
de fazendas com donos absenteístas também foi bastante
comum, embora, nem sempre os proprietários residissem em
locais distantes e, em geral, suas escravarias fossem diminu-
tas ou mesmo inexistentes16. Mas, no caso das que tinham
grandes escravarias, uma diferença fundamental se configu-
rou em relação às propriedades de absenteístas do sul dos
Estados Unidos ou do Caribe: a administração das fazendas
dos Campos Gerais cujos donos eram ausentes era frequen-
temente deixada a cargo dos próprios escravos17.
Foi o que ocorreu na Fazenda Capão Alto quando
os carmelitas se retiraram dali. Aos cativos ficou a incum-
bência de administrarem a propriedade e cuidarem de suas
próprias vidas. Alguns relatos mencionam que eles eram de-
votos de Nossa Senhora do Carmo e que recebiam da san-
ta orientações para tocar a fazenda e levar a vida18. Nas
Listas Nominativas do Município de Castro (uma espécie de
censo que se fazia na época) foram registrados, em 1835,
99 escravos na propriedade, quantidade enorme para os
padrões da região, na qual a maioria das escravarias era
formada por um cativo apenas19. Por quatro gerações, des-
15 Eugene D. Genovese, O Mundo dos Senhores de Escravos: dois ensaios de interpre-
tação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Richard Dunn. Sugar and slaves. New York,
Norton, 1972 e Orlando Patterson. The sociology of slavery: an analysis of the origins,
JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA

development, and structure of negro slave society in Jamaica. Fairleigh Dickinson Uni-
versity Press, 1967.
16 Carlos Alberto Medeiros de Lima e Kátia A. V. de Melo. A distante voz do dono: a família
escrava em fazendas absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835). Afro-Ásia, n. 31,
2004, p. 139.
17 Idem, p. 140.
18 PARANÁ. Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte. Coordenadoria do Patrimônio
Cultural. Fazenda Capão Alto, obra citada, p. 27.
19 Tanto a quantidade de escravos na fazenda a partir da pesquisa em listas nominativas
como a informação do número de escravos na maioria das escravarias: Carlos Alberto
Medeiros de Lima e Kátia A. V. de Melo. A distante voz do dono: a família escrava em

27
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

de a saída dos carmelitas em 1771 até a segunda metade


CATIVOS EM INSURGÊNCIA: O QUE OS ESCRAVOS DA FAZENDA CAPÃO ALTO PODEM AINDA NOS DIZER SOBRE SUAS VIDAS E SOBRE O QUE PENSAMOS DELAS

do século XIX, os trabalhadores escravos da Capão Alto vi-


veram dessa forma: em “quase completa liberdade”, como
observou uma autoridade20.
A escritura de arrendamento que foi feita pelos car-
melitas aos “Gaviões” em 1864 evidencia a pujança da fazen-
da, na qual havia então 6.000 cabeças de gado21. A ativida-
de criatória havia sido importante desde o período anterior.
Em 1798, quando a propriedade era administrada por Inácio,
um escravo de 40 anos, havia na fazenda 110 éguas, 1.600
vacuns, 44 ovelhas; tinham nascido ali, naquele ano, 5 ca-
valares, 420 vacuns, 8 ovelhas22. Considerando as atividades
comuns nas propriedades da região, nesse período em que
estiveram vivendo e trabalhando na fazenda os cativos de-
vem ter se dedicado também ao cultivo de alimentos – milho
e feijão, principalmente23. Comerciavam gêneros na Vila de
Castro, vendendo excedentes da sua produção e certamen-
te comprando o que necessitavam.
Em 1864, o grande número de crianças entre os escra-
vos da fazenda evidencia que ali haviam se formado nume-
rosas famílias e, provavelmente, famílias numerosas. Eduardo
Spiller Pena registrou que dentre os escravos transferidos para
São Paulo, 52,1% tinham idade inferior a 14 anos24. Isso, cer-
tamente, tinha a ver com a grande autonomia com que es-
ses indivíduos viviam. Os historiadores Carlos Lima e Katia de
Melo estudaram a lista nominativa de 1835 e observaram que
a formação de famílias nas fazendas de absenteístas – inclu-
sive as dos Campos Gerais – era proporcionalmente muito
mais frequente que nas propriedades em que o dono (ou um
fazendas absenteístas de Curitiba ( 1797) e Castro (1835). Afro-Ásia, n. 31, 2004, p.
134.
20 PARANÁ. Relatório do Presidente da Província Pádua Fleury, 1865. Anexo 1 – Relatório
do Chefe de Polícia do Paraná Manoel da Silva Mafra, Chefe de Polícia para o Presiden-
te da Província. Curitiba: Tipografia Cândido Martins Lopes, 1865. http://brazil.crl.edu/
bsd/bsd/u574/000075.html (25/08/2017).
21 JUSTIÇA FEDERAL DO PARANÁ. Núcleo de Documentação. Autos de Petição para
Execução..., obra citada.
22 Cfe. José C. V. Lopes. Fazendas e Sítios de Castro e Carambeí. Curitiba: Torre de Pa-
pel. 2004.
23 Carlos Alberto Medeiros de Lima e Kátia A. V. de Melo. A distante voz do dono: a família
escrava em fazendas absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835). Afro-Ásia, n. 31,
2004, p. 134., p. 135.
24 Eduardo Spiller Pena, obra citada, p. 171.

28
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

filho deste, ou um capataz livre) estava presente. As proprie-


dades de absenteístas, concluíram os autores, “agregavam
condições mais favoráveis aos anseios dos cativos por famí-
lia”. Foi justamente o que ocorreu na Capão Alto.
A formação de famílias e de outras redes de socia-
bilidade certamente os beneficiava na vida cotidiana, man-
tendo-os “no lugar”, o que não deixava de ser muito interes-
sante, fundamental mesmo, para os senhores ausentes. Esse
aspecto talvez responda uma pergunta que o leitor pode ter
feito a si mesmo ao longo desse texto: porque, gozando de
tanta “liberdade”, esses cativos da Capão Alto não fugiam
da escravidão? Não faziam isso porque tinham muito a per-
der. Eles vinham, ao longo de vários anos, construindo e man-
tendo uma comunidade negra, cujos laços os ajudavam a
viver com alguma estabilidade e com uma autonomia consi-
derável em relação aos senhores. Por isso, a transação reali-
zada entre os carmelitas e a firma “Gavião” imprimiu em suas
vidas uma experiência trágica. Exatamente por terem eles
muito a perder.

UM ESTADO DE REBELDIA

Foi no mês de abril de 1864 que Camilo Gavião e Gui-


lherme Whitaker chegaram à Capão Alto25. Vinham decidi-
dos a levar para a Província de São Paulo os mais de 200 es-
cravos que a empresa que representavam havia arrendado
dos frades carmelitas, junto com a fazenda. Como observou
Pena, a transação lhes renderia um bom dinheiro: o preço
médio do total de escravos em Castro era em torno de 155
contos de réis (um dinheirão!); em Campinas eles renderiam
275 contos, aproximadamente (dinheirão maior ainda).
Mas a coisa não foi tão fácil para os Gaviões. Um
JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA

dos prepostos da casa comercial paulista – o Dr. Camilo Ga-


vião – logo que chegou à fazenda percebeu “as dificulda-
des de mover o grande número de escravos que, habituados
à quase liberdade” não aceitariam deixar “o lugar em que
nasceram e por tantos anos tinham vivido”. O negociante
25 Toda narrativa que segue está baseada em PARANÁ. Relatório do Presidente da Pro-
víncia Pádua Fleury, 1865. Anexo 1 – Relatório do Chefe de Polícia do Paraná Manoel da
Silva Mafra, Chefe de Polícia para o Presidente da Província. Curitiba: Tipografia Cândi-
do Martins Lopes, 1865. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u574/000075.html (25/08/2017).

29
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

de escravos também levou em conta que os escravos ofe-


CATIVOS EM INSURGÊNCIA: O QUE OS ESCRAVOS DA FAZENDA CAPÃO ALTO PODEM AINDA NOS DIZER SOBRE SUAS VIDAS E SOBRE O QUE PENSAMOS DELAS

receriam ainda mais resistência à transferência por terem


“a certeza que de iam por si ao serviço de quem deles pro-
curaria tirar, pelo trabalho, maior proveito do que os Frades
Carmelitas”. De fato, como considerou Eduardo Spiller Pena,
os escravos da Capão Alto deviam saber muito bem o que
os aguardava nas fazendas paulistas, pois, desde o final do
século XVIII, proprietários dos Campos Gerais, entre eles os
próprios carmelitas, alugavam seus cativos para trabalharem
nos cafezais de São Paulo. Talvez alguns dos que estavam na
iminência de serem transferidos tivessem, eles próprios, sido
alguma vez alugados e experimentado na carne as duras li-
des nos cafeeiros.
Certo das dificuldades, Camilo Gavião, tratou de, ini-
cialmente, agradar os escravos. Distribuiu alguns donativos e
roupas, “mimoseando-os”. Resolveu, então, que partiria para
São Paulo, deixando a Guilherme Whitaker – seu companhei-
ro na tarefa – a incumbência de levar os escravos ao destino
que o arrendamento havia estabelecido. Na partida, esco-
lheu entre os cativos um que gostaria que o acompanhasse
na viagem. A insubordinação, então, já se anunciou. O tal
escravo escolhido disse que não iria de jeito nenhum. Nas pa-
lavras um tanto comedidas com que o Chefe de Polícia pos-
teriormente descreveu o ocorrido, o escravo “declarou for-
malmente que não seguiria, senão com seus companheiros”.
A este “passo de desobediência” seguiram-se outros.
Como contou o Chefe de Polícia do Paraná, posteriormente,

tendo partido o Dr. Camilo Gavião, o seu preposto fez


um ensaio de saída com os escravos; estes, porém, sob
mil pretextos fúteis, diziam não poder logo seguir, e de
alguma sorte pareciam opor-se a acompanhar aquele
preposto, dizendo-lhe que só se tinham por escravos
de Nossa Senhora do Carmo26.

Os escravos diziam que só deixariam a fazenda se


recebessem ordens da santa para que o fizessem. Como a
ordem não foi dada, o representante do Gavião pediu a in-
tervenção do Delegado de Polícia de Castro. Esse, por sua
vez, considerando que número de homens na fazenda era
26 Idem.

30
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

superior à da força policial de que dispunha, escreveu ao


Chefe de Polícia da província, pedindo reforço. Vinte sol-
dados foram deslocados de Curitiba. Esse número também
não era tão grande, considerando que na fazenda havia
pelo menos 59 homens, além de 54 mulheres nessa mesma
faixa etária. Os facões, facas e outros instrumentos de traba-
lho serviam muito bem de armamento. Os escravos tinham
também espingardas e munição, que as buscas posteriores
nas suas casas revelaram. E a eles não faltava a obstinada
determinação de não deixar a Capão Alto. Em vista desse
objetivo, colocaram-se em estado de revolta.
Evidenciada a resistência, o delegado de Castro,
além do reforço policial que requisitara, interveio pessoal-
mente na fazenda. Passou a interrogar os que considerava
serem “os cabeças”. Interpelando o escravo Firmino – uma
liderança entre os escravos – ouviu dele que “só eram escra-
vos de Nossa Senhora”, que não deixariam a fazenda e que
o delegado podia chamar todos “à revista”, que “eles assim
o declarariam”. Quando o delegado tentou argumentar que
agiam de forma irracional, Firmino retrucou que todos “eles
tinham a cabeça no seu lugar e sabiam o que faziam”.
Avaliando que havia ali “o gérmen de uma insur-
reição, cujo desenvolvimento cumpria matar ao nascer”, o
próprio Chefe de Polícia se deslocou de Curitiba a Castro.
Na Capão Alto, agiu no sentido de identificar as lideranças
do movimento, dentre os quais discriminou alguns: “havia en-
tre os escravos, onze que, por seus gênios e más disposições,
eram os cabeças da desobediência e que podiam incitar os
demais a fatos mais greves; prendi-os”, disse a autoridade.
Por cerca de 15 dias os escravos resistiram como pu-
deram, na tentativa de manter, mesmo em escravidão, a
margem de autonomia que tinham na Capão Alto. As auto-
ridades incumbidas de zelar pela “ordem pública”, entretan-
JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA

to, puderam assegurar que a transação de arrendamento


fosse concluída. No dia 10 de maio de 1864 a fazenda foi
cercada e Firmino foi detido, não sem impor forte resistência,
o que “obrigou” o delegado a utilizar a força para assegurar
a prisão. Presos foram também outros tantos, que se puseram
em defesa do companheiro. Aos Gaviões, enfim, era possível
transferir os cativos da Capão Alto para as terras paulistas
ocupadas pelos cafezais, nos quais trabalhariam em condi-
31
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ções certamente muito diversas daquelas que tinham expe-


CATIVOS EM INSURGÊNCIA: O QUE OS ESCRAVOS DA FAZENDA CAPÃO ALTO PODEM AINDA NOS DIZER SOBRE SUAS VIDAS E SOBRE O QUE PENSAMOS DELAS

rimentado até então.


Lá se foram as famílias da Capão Alto. Eram 236 pes-
soas, cujos nomes e idades preenchem várias páginas do
processo de cobrança que nos trouxe a esta história. Alguns
eram já um tanto idosos: Nério tinha 60 anos; Elesbão, 50. Ou-
tros eram de idades adequadas para o trabalho no café:
Juvêncio, Izahias Rufino, Zeferino, Cândido – todos esses re-
gistrados no documento com 30 anos; Salvador, Ermenegil-
do, Januário, Estanislau, Miguel, Hermógenes, Luiz, Generoso,
Ponciano, estavam na faixa dos 20 anos. A maior parte do
grupo era formada por mulheres: Rufina, Emiliana, Manoela,
Mafalda, Escolática, América, Gertrudes, Francisca, Adriana,
Ursulina, Vitalina, Maria, Antonia, Berlamina, Balbina, Benta,
Virgília, Alvina – eram muitas as mulheres. Muitas delas certa-
mente eram mães das crianças que compuseram a carava-
na. Dentre estas, 60 tinham menos de 4 anos. Alguns tinham
apenas poucos meses de vida: Timótheo, Delfina, Lourença,
Maria Gertrudes, Sebastião, Rosa, Belmira, Amâncio, Manoel,
Miguel e Elisa.
Parte dessas pessoas, 186 delas, foram compradas
no ano de 1867 por um fazendeiro de Campinas – Francisco
Teixeira Villela27. Sobre o paradeiro dos outros não foi possível
saber.

ESCRAVOS EM INSURGÊNCIA

A disposição de revolta dos escravos da Capão Alto


não foi suficiente para evitar que eles fossem retirados das
terras nas quais haviam vivido e trabalhado com tanta au-
tonomia. Sua história, entretanto – como as de Barnabé, de
Hipólito, de Margarida, de João, que aqui só resvalamos –
evidencia que a violência da escravidão não transformou es-
cravos em seres incapazes, em “semoventes”, como alguns
documentos os registram. Mesmo vivendo nos limites estreitos
que a escravidão impunha, esses homens e mulheres foram
competentes para produzir autonomamente, para adminis-
trar uma próspera fazenda, para gerir suas vidas. Constituí-
27 Maria Alice Rosa Ribeiro. Riqueza e endividamento na economia de plantation açuca-
reira e cafeeira: a família Teixeira Vilela Nogueira, Campinas, SP, século XIX. Estudos
Econômicos, São Paulo, v. 45, n. 3, p. 527-565, jul.-set. 2015.

32
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ram famílias. Souberam reconhecer seus interesses e lutar por


eles. Impondo a força, usando as leis, recorrendo à Justiça.
Negociaram e conseguiram obter condições mais favorá-
veis, mesmo em escravidão. Buscaram com seus esforços a
alforria.
Nesse sentido, a maior insurgência manifesta pelos
escravos da Capão Alto talvez se produza contra uma con-
cepção tão arraigada em muitos de nós; aquela que consi-
dera que a escravidão tenha transformado seres humanos
em coisas. Não é isso, absolutamente, o que aqueles homens
e mulheres, lá do passado, nos têm a dizer.

JOSELI MARIA NUNES MENDONÇA

33
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

O PARANÁ ABOLICIONISTA:
LUTAS PELO FIM DA ESCRAVIDÃO
Noemi Santos da Silva

Há muito tempo que os historiadores superaram a


ideia de que no Paraná a escravidão tivesse sido menos im-
portante que nas outras regiões brasileiras. A atenção que
muitos estudos deram para esse assunto nas últimas décadas
mostrou que, embora estivessem ali em quantidade menor
que em outras regiões, os escravos tiveram papel fundamen-
tal na construção e consolidação dessa província que um
dia foi parte de São Paulo. Fosse na exploração aurífera, na
pecuária, no cultivo da erva mate ou em inúmeras ocupa-
ções urbanas, os escravos do Paraná deram força e dinâmi-
ca à economia local e protagonizaram lutas pela liberdade
no decorrer do século XIX.
Essas lutas, por sua vez, revelaram que os cativos es-
tiveram imersos em complexas redes de sociabilidade, que
possibilitavam que eles circulassem em espaços propaga-
dores das ideias de abolição. Também propiciavam formas
alternativas de se angariar alforria, que não se restringiam às
fugas, mas podiam tomar forma de processos judiciais, acú-
mulo de pecúlio ou associação em clubes abolicionistas.
NOEMI SANTOS DA SILVA

Procuraremos, neste capítulo, demonstrar que, como


em outros lugares do Brasil, também no Paraná as vozes an-
tiescravistas não se calaram diante das mazelas da escra-
vidão e produziram mobilizações que impactaram as mu-
danças nas relações de trabalho na passagem do século
XIX ao XX.
35
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

No decorrer da década de 1870, a instituição da es-


cravidão já começava a mostrar sinais de enfraquecimen-
to no Brasil. A proibição do tráfico de africanos completava
algumas décadas e a aprovação da lei do Ventre Livre es-
tancava as possibilidades de renovação natural da mão de
obra escrava, que até então, sobrevivia por meio do tráfico
interno e da reprodução em cativeiro. Nesse quadro de cri-
se do escravismo nacional, a província do Paraná participou
do tráfico interno servindo de fornecedora de cativos, espe-
cialmente para as regiões produtoras do café1, provocan-
do assim uma diminuição da população escrava na região.
Somava-se a isso, um aumento considerável no número de
alforrias, passadas pelos senhores, compradas pelos clubes
abolicionistas ou pelos próprios escravos. Isso tudo favorecia
a condenação moral da escravidão e a defesa libertação
dos escravos nos mais variados espaços públicos.

O ABOLICIONISMO NA IMPRENSA

Mesmo sendo uma província situada na periferia dos


grandes centros do Império, o Paraná também era local de
circulação de ideias abolicionistas, que aqui já eram disse-
minadas desde meados da década de 1870, por meio de
periódicos que divulgavam os valores antiescravistas, cele-
brando as medidas de emancipação então implantadas
ou anunciando manumissões. Pioneiros nesse sentido foram
O PARANÁ ABOLICIONISTA: LUTAS PELO FIM DA ESCRAVIDÃO

alguns jornais do litoral da província, como o Operário da Li-


berdade, publicação da Loja Maçônica Perseverança, de
Paranaguá, surgido em 1870; o jornal Itiberê, do Clube Literá-
rio, e o Livre Paraná, surgidos nos anos seguintes, na mesma
cidade, eram os principais porta-vozes do abolicionismo na-
quele contexto.
Também nos periódicos da capital, como no Deze-
nove de Dezembro e Gazeta Paranaense, os debates sobre
o término da escravidão eram calorosos e tomavam as pá-
ginas com posicionamentos contrários e favoráveis à liber-
tação dos escravos. Isso criava um terreno complexo de
discursos abolicionistas em que se cruzavam vários tipos de
militância política.
1 Eduardo Spiller Pena. O jogo da face: a astúcia escrava frente aos senhores e à lei na
Curitiba provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999, p. 68.

36
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Por meio dos jornais conseguimos acompanhar o ca-


ráter plural com que se desenhou o ativismo pela abolição
no Paraná, bem como sua evolução ao longo das décadas
de 1870 e 1880. Ao cobrirem as discussões sobre a libertação
dos escravos, eles expunham as divergências presentes na
sociedade sobre o projeto de abolição a ser seguido, já que,
ao contrário do que se poderia supor, a maior parte dos de-
bates não eram travados por escravocratas e abolicionistas,
mas sim por indivíduos com diferentes projetos de abolição,
ensejando conflitos no interior do movimento pela abolição.
Projetos distintos dividiam os ativistas sobre a melhor forma de
se conduzir a libertação dos cativos: se com a intervenção
do Estado, pela mão senhorial ou pela ação social.
Nos anos finais da escravidão, parecia consensual
que a abolição deveria ocorrer gradualmente, para não ha-
ver prejuízo à ordem social e econômica; mas, mesmo assim,
não havia acordo sobre a forma de se realizar as emancipa-
ções. Se os mais radicais apostavam no incentivo a fugas,
representações judiciais contra os senhores e mesmo insur-
reições, os mais brandos defendiam que devia prevalecer
a vontade senhorial, tendo em vista manter o princípio da
propriedade.
O Dezenove de Dezembro, em Curitiba, se colocou
como porta voz do movimento abolicionista na província e,
embora não assumisse o lado radical da luta pela emancipa-
ção, não se absteve de dedicar suas páginas para a propa-
ganda do movimento:
Todos os espíritos cultos, todos os homens sinceramente
convencidos do progresso dessa infeliz pátria, [...] de-
dicam-se energicamente à solução pacífica do pro-
blema complicado da substituição do braço escravo
pelo braço livre. [...] De todos os ângulos do Brasil ou-
ve-se o clamor vitorioso do abolicionismo triunfante [...]
O Dezenove de Dezembro, compreendendo que essa
é a hora do combate homérico pela liberdade, corre
NOEMI SANTOS DA SILVA

apressado ao posto de honra2.

Em Paranaguá, esses debates em torno da abolição


estiveram presentes no Livre Paraná, periódico pertencente
2 Dezenove de Dezembro, 11/09/1884, p. 1-2, citado por Marcia Elisa de Campos
Graf. Imprensa periódica e escravidão no Paraná. Curitiba: Secretaria do Estado
da Cultura e do Esporte, 1981, p. 128.

37
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

a um farmacêutico e um professor, ambos ativistas republi-


canos e abolicionistas. Seus opositores eram O Comercial e O
Futuro, por sua vez, ligados aos profissionais liberais. Enquan-
to o Livre Paraná posicionava-se em favor da libertação, os
outros dois eram os principais críticos do movimento gestado
na cidade e, embora não assumidamente escravocratas, cri-
ticavam o abolicionismo utilizando de uma retórica que as-
sociava a libertação à desordem, buscando fazer crer que a
emancipação geral dos escravos levaria o país à anarquia.
Nesse ideário, a liberdade cedida aos escravos se transfor-
maria naturalmente em sinônimo de “livre vagabundagem”;
por isso, as medidas de emancipação deveriam prezar pelo
respeito às leis e aos proprietários de escravos3. Uma forma
de se fortalecer essas teses era propagando o medo de pos-
síveis sedições de escravos ou outras formas de reação vio-
lenta ao escravismo.
Um caso ocorrido na cidade serviu para atacar os
abolicionistas do Livre Paraná em suas formas de defender
a abolição. Tratava-se do assassinato de um senhor por
seu escravo, o qual foi noticiado no Comercial com o título
“Como estão estes negros”4. O jornal anti-abolicionista acu-
sava os abolicionistas de incitar assassinatos e outras formas
de rebeldia:
Por certo que o escravo obediente, que vê ao seu lado
tão denotado abolicionista, não pode deixar de tor-
O PARANÁ ABOLICIONISTA: LUTAS PELO FIM DA ESCRAVIDÃO

nar-se rebelde contra o seu senhor [...] É chegado o


tempo do assassino e do salteador serem apoiados e
defendidos por serem “oprimidos”. Por certo que, se
eles não se vissem atualmente tão apoiados não es-
tariam tão rebeldes a ponto de cometer assassinatos5.

Em artigos como esse, os abolicionistas eram consi-


derados desordeiros, incentivadores de crimes contra a pro-
priedade senhorial.
Do lado oposto, os apoiadores da abolição divulga-
vam as alforrias praticadas na província, como uma forma
de estimular ações similares. Festas e grandes eventos cívicos
eram motivos para a promoção da liberdade, com a com-
3 O Futuro. 22/02/1885, p. 3.
4 Comercial. 12/02/1887.
5 Comercial, 12/02/1887, p. 3.

38
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

pra de alforrias de vários escravos. Era uma chance para que


indivíduos de renome se autopromovessem por meio da fi-
lantropia. Foi assim com o presidente Alfredo D’Escrangnol-
le Taunay, por exemplo, quando, em visita à Ponta Grossa,
Palmas, Guarapuava e Castro, distribuiu dezenas de cartas
de alforria, tendo sua ação noticiada e exaltada pelos reda-
tores do Livre Paraná6.
Essa conjuntura, posta no plano das redes de comuni-
cação coexistiu e foi formada por um cenário político e ideo-
lógico favorável e um quadro complexo de lutas no âmbito
social envolvendo os próprios escravos e outros indivíduos que,
ocupando ou não posições de destaque na vida pública, pos-
suíam laços com os escravos e outros setores sociais. Por isso,
ainda que as elites fizessem uso da prática da alforria para pro-
mover-se, do outro lado havia a disposição dos escravizados a
quem, obviamente, a liberdade interessava.

O ABOLICIONISMO NAS SALAS DE AULA

Em 1886, a Associação Promotora da Instrução – uma


organização que oferecia educação básica para adultos
trabalhadores, entre eles muitos escravos – promoveu uma
festa de encerramento do ano letivo em Paranaguá. Nessa
festa, um gesto comoveu os presentes: a premiação anual
dos melhores alunos contemplou um escravo, que era aluno
de uma das escolas locais. Além de uma medalha, Ernesto
Graça – o escravo premiado – ganhou uma boa quantia em
dinheiro, com a qual comprou não só a própria liberdade,
mas também a de vários de seus companheiros de classe.
Assim narrou o Comercial: “Qual foi o primeiro destino que
deu a esse avultado capital? Tratou somente da própria liber-
dade? Não, libertou ao mesmo tempo todos que sob o mes-
mo teto estavam no cativeiro”. Com os recursos esgotados,
Ernesto ainda pediu ao Barão de Guimarães, um dos ilustres
da cerimônia, que concedesse a liberdade a seu escravo Ju-
NOEMI SANTOS DA SILVA

lio Fernandes, também colega de turma, em gratidão pelos


auxílios “que dele recebera para o estudo de suas lições”7.
Segundo o jornal, o barão aceitou o pedido e libertou seu
escravo sem requisitar indenização alguma.
6 Livre Paraná, 17/04/1886, p. 2.
7 Comercial, 18/12/1886, p. 1.

39
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A frequência de escravos em escolas noturnas, como


na história narrada, era uma das maneiras de eles entrarem
em contato com a propaganda abolicionista e de amplia-
rem as chances de alforria. A socialização e solidariedade
entre os escravizados, elucidada nesse caso, podia ser outra
consequência dessa vivência conjunta, que tinha por obje-
tivo o aprimoramento na instrução básica, certamente para
obter uma melhoria nas condições de vida e trabalho.
Em praticamente todas as áreas mais povoadas e
urbanas da província do Paraná existiram escolas noturnas
de adultos, frequentadas também por escravos. Em Curitiba
chegou a haver uma escola desse tipo, criada exclusivamen-
te para a instrução de escravos e libertos. Era um empreendi-
mento particular regido por Damasio Correia Bittencourt, ca-
pitão da Guarda Nacional, que em 1874 tomou a iniciativa
de destiná-la a “operários e escravos que, com o consenti-
mento de seus senhores” desejassem “aprender a ler, escre-
ver e contar”8. De maneira similar e na mesma década, em
1871, José Cleto Silva, um professor público de Paranaguá,
decidiu atender ao pedido de escravos, oferecendo aulas
noturnas para que se instruíssem. Na notificação enviada às
autoridades, fez questão de chamar a escravidão de “selo
aviltante”9.
José Cleto Silva foi um professor atípico. Além de
manter uma escola para escravos em Paranaguá, ele movia
O PARANÁ ABOLICIONISTA: LUTAS PELO FIM DA ESCRAVIDÃO

ações judiciais como advogado em favor dos escravizados


ilegalmente. A repercussão de sua militância chegou a oca-
sionar uma perseguição política em sua cidade, que resultou
em sua remoção forçada para a capital. Mais importante,
contudo, é que os rastros deixados por suas ações em favor
do abolicionismo dão ideia da abrangência do movimento
naquela pequena localidade litorânea: ele compunha as
principais associações abolicionistas e criou um periódico
porta-voz de seus ideais de luta: O Livre Paraná, que, como
já comentamos, destinava suas páginas à propagação do
movimento pela libertação dos escravos na localidade. José
8 Ofício enviado ao Ilmo. Exmo Frederico José Cardoso de Araújo Abranches, presidente
da província, por Damasio Correia Bittencourt. 22/10/1874. Departamento de Arquivo
Público do Paraná (DEAP-PR). BR APPR 447, p. 93-94.
9 Ofício enviado ao diretor geral da instrução pública, pelo professor José Cleto da Silva.
10/08/1871. DEAP-PR. BR APPR 435, p. 188.

40
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Cleto chegou a ser eleito deputado provincial entre 1880 e


1881, se tornando um nome importante no Partido Liberal.
Damasio Bittencourt, também esteve inserido em re-
des de ativismo abolicionista na capital da província para-
naense. Sendo membro da Guarda Nacional, sua dedicação
ao ensino foi, por assim dizer, um “desvio de carreira”. Fora
da vida profissional, ele era membro e diretor da Sociedade
Carnavalesca de Curitiba, sócio benemérito do Clube Cênico
Atheneu de Guerra, e do Grupo dos Amadores. Os historiado-
res vêm reconhecendo a importância dos clubes cênicos para
a difusão do movimento, especialmente quando, em sua fase
inicial, as ideias abolicionistas tinham pequena representati-
vidade no parlamento10. Parte da família Bittencourt atuava
profissionalmente no judiciário. O capitão Joaquim José Bitten-
court provavelmente irmão de Damásio, era um juiz municipal
suplente em Curitiba e, na década de 1870, exarou sentenças
em favor de escravos em embates judiciais contra seus senho-
res11. O próprio Damasio Bittencourt participou como curador
em uma ação de liberdade na mesma época. Essa atuação
pode tê-lo motivado a tomar a iniciativa de ministrar aulas no-
turnas para escravos, quem sabe pensando em tornar mais
acessível aos escravos o conhecimento sobre as chances de
alforria pela via institucional.

O ABOLICIONISMO NOS FOROS

O envolvimento desses professores com a representa-


ção de escravos em processos judiciais sugere de que a prá-
tica pode ter sido muito mais frequente do que poderíamos
imaginar. Desde que os historiadores atentaram para os do-
cumentos dessa espécie e sua importância para os estudos
de escravidão12, se ampliaram as formas de se interpretar a
resistência dos escravizados ao cativeiro, afinal, estas não se
reduziram às fugas, assassinatos ou formações de quilombos,
mas abrangeram o aproveitamento das chances de alforria
NOEMI SANTOS DA SILVA

10 Angela Alonso. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888).


São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 15.
11 Noemi Santos da Silva. O batismo na instrução: projetos e práticas de instrução formal
de escravos, libertos e ingênuos no Paraná provincial. Dissertação (mestrado em Histó-
ria) defendida pelo PPGHIS da UFPR. Curitiba, 2014, p. 136.
12 Sidney Chalhoub. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
da corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

41
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

amparadas nas leis. Na década de 1870, com a aprovação


da Lei nº2040, a “Lei Rio Branco” ou do “Ventre Livre”, os es-
cravos foram autorizados a acumular dinheiro para a com-
pra de sua liberdade13. Mas nem sempre escravos ou proprie-
tários concordavam com o “preço” da alforria; assim, o caso
era levado à Justiça, para que se realizasse arbitramento do
valor com que o escravo pagaria ao senhor pela alforria. Isso
fez com que muitas histórias de escravos do Paraná em busca
de sua liberdade ficassem registradas nos processos judiciais,
disponíveis aos historiadores14. Outras demandas judiciais que
ocorriam à época, na província paranaense, eram basea-
das no argumento de escravização ilegal, por introdução de
africanos escravizados após a lei de proibição do tráfico de
escravos, em 1831. Nessas demandas, por vezes, os cativos
encontravam o auxílio de indivíduos como José Cleto e Da-
másio Bittencourt, dispostos a oferecer serviços de curadoria
nos embates, ou até mesmo alguns juízes que tinham afinida-
de com a causa abolicionista. Nomes como os de João José
Pedrosa, deputado e também presidente da província em
1880 e 1881, e de seu irmão Joaquim José Pedrosa, também
político, aparecem nesses processos ao lado de cativos que
enfrentavam os processos judiciais:
Como curador da “preta” Carlota [o adjetivo era um
sinal de africanidade], ele [Joaquim José Pedrosa] ajui-
zou, em janeiro de 1885, uma ação de manutenção
O PARANÁ ABOLICIONISTA: LUTAS PELO FIM DA ESCRAVIDÃO

de liberdade fundada no argumento da importação


ilegal, tese jurídica que incendiava os fóruns do país
naquela década. Notícias dessas decisões devem ter
chegado aos ouvidos dos juízes de Curitiba, receben-
do sua simpatia, porquanto, num anúncio publicado
no principal jornal da província, o Dezenove de De-
zembro, em agosto de 1885, Carlota já aparece como
liberta desejosa de recuperar do cativeiro seus três fi-
lhos15.

Basta perseguir esses homens das leis na documen-


tação, buscando por seus nomes, para encontramos indícios
13 Angela Alonso, obra citada, p. 113-151.
14 Eduardo Spiller Pena, obra citada; Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino. Entre o “es-
pírito da lei” e o “espírito do século”: a urdidura de uma cultura jurídica da liberdade nas
malhas da escravidão. (Curitiba: 1868-1888). Dissertação (Mestrado em Direito). PPGD
– Setor de Ciências Jurídicas – UFPR. Curitiba, 2013.
15 Thiago Hoshino, obra citada, p. 101-102.

42
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

de que a campanha abolicionista foi “movimentada” pelos


foros, como observou Evaristo de Morais16. Nesses espaços
atuaram não apenas advogados, mas também outros ope-
radores do Direito, tais como amanuenses, que podiam inter-
ferir em favor de alguns cativos que resolviam demandar na
Justiça sua liberdade.
Os rastros deixados por Joaquim José Pedrosa nos in-
duzem a acreditar que ele tinha estreitos laços com alguns
escravos, os quais, juntamente com outros trabalhadores de
Morretes, lhe endereçaram uma correspondência pedindo
a abertura de uma escola noturna “a fim de poderem ins-
truir-se devidamente”17, e em cuja ocasião, empregaram o
vocativo informal “Pedrosa”, para se dirigirem a quem era,
então, presidente da província. Mais um indicativo do envol-
vimento com os escravizados vem de sua filiação ao Clube
Abolicionista de Curitiba, uma agremiação criada para arre-
cadar fundos para a compra de alforrias.

O ABOLICIONISMO NOS CLUBES

O Clube Abolicionista de Curitiba foi formado em


1885, em uma cerimônia solene na Escola Carvalho, onde
hoje se localiza o Instituto de Educação do Paraná. Seus só-
cios tinham origens variadas, embora estivessem sempre su-
jeitos a uma mesa diretiva composta pelos membros de reno-
me, entre os quais João e Joaquim José Pedrosa. Os estatutos
não impunham condições para a associação, permitindo
que fossem sócios tanto homens como mulheres, brasileiros
ou estrangeiros. A mensalidade baixa, de 500 réis, também fa-
vorecia o ingresso do maior número possível de sócios18. Uma
das táticas da associação para a promoção de um maior
número de alforrias era a publicação de anúncios dirigidos
aos escravos que já possuíssem pecúlio, oferecendo com-
plemento ou auxílio nas emancipações. Isso tornava o clube
NOEMI SANTOS DA SILVA

bastante procurado por cativos19. Os periódicos evidenciam


16 Evaristo de Morais. A Campanha Abolicionista: 1879-1888. Brasília: Editora Universida-
de de Brasília, 1986, p. 151-183.
17 Correspondência encaminhada a “Pedrosa”; vários assinantes. 08/08/1880. DEAP –PR.
BR APPR 618,
18 Dezenove de Dezembro, 26/1/1884, p. 3.
19 Idem, 4/6/1885, p. 2.

43
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

estreita relação entre os membros desse clube abolicionista


de Curitiba com o Centro Abolicionista da Escola Politécnica,
também atuante na capital paranaense, do qual, na época,
fazia parte André Rebouças, inserido no quadro de professo-
res20. A presença de Rebouças facilitava a conexão do movi-
mento da província do Paraná com aquele desenvolvido na
Corte, dando as bases para a posterior fundação da Confe-
deração Abolicionista Paranaense (1888), como narraremos
mais adiante.
A história do associativismo em torno da emancipa-
ção no Paraná se iniciou com a fundação de uma Sociedade
Emancipadora em Morretes, em 187021. Agregava membros
da “boa sociedade” do município, que se autopromoviam
nos eventos públicos em que se distribuíam alforrias. Em 1879,
foi fundada em Campo Largo a Sociedade Emancipadora,
sob a direção de Francisco Xavier de Almeida Garret. Em 1883,
na capital, formou-se a Sociedade Emancipadora Paranaen-
se, ou 24 de Março22, com o predomínio de juristas e membros
de altas patentes do Exército. A Sociedade Redentora Parna-
guense (1884), foi seguida da fundação do, já mencionado,
Clube Abolicionista em Curitiba, em 1885. Em 1887 foi fundada
na capital a Sociedade Ultimatum, de caráter secreto, e em
1888 a Confederação Abolicionista Paranaense.
Três dessas sociedades merecem maior atenção. A
Emancipadora, de Campo Largo, a Redentora Parnaguense
e a Ultimatum. A primeira, por ter sido resultado da mobiliza-
O PARANÁ ABOLICIONISTA: LUTAS PELO FIM DA ESCRAVIDÃO

ção de alguns escravos, e as últimas por terem se envolvido


diretamente com fugas de cativos.
A participação de escravos na fundação da Socie-
dade Emancipadora de Campo Largo foi relatada pelo jor-
nal O Paranaense, órgão do Partido Conservador:
Cumpre-nos agora falar da Sociedade Emancipadora,
fundada aqui pelos escravos e cujos fins exprime o seu
título. Essa Sociedade fundou-se há dois anos mais ou
menos e, sendo pelo governo aprovados os seus estatu-
tos, no dia 23 realizou ela sessão inaugural dando carta
de liberdade a três escravos ainda moços e robustos23.
20 Idem, 27/1/1884, p. 3.
21 Idem, 21/05/1870, p.3-4.
22 Jornal do Comércio, 25/8/1883, p. 3.
23 O Paranaense, 3/6/1880, p. 3.

44
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

O curioso é que, pela legislação do Império, escraviza-


dos estavam impedidos do ingressar em tais associações24, que
eram restritas aos cidadãos. As agremiações deveriam encami-
nhar notificações de abertura e estatutos para aprovação do
Conselho de Estado. Sidney Chalhoub, em estudo sobre asso-
ciações similares na Corte, aponta para a incisiva rejeição dos
estatutos de sociedades que se propunham a admitir escravos
entre seus sócios25. A Sociedade Emancipadora de Campo Lar-
go também enviou seus estatutos para aprovação. Nele, o ar-
tigo 1º afirmava que a mesma seria composta por um “número
ilimitado de sócios de qualquer sexo, idade e condição”26. À re-
velia da regra encontrada para a Corte, seus estatutos, mesmo
admitindo a associação de escravos, conforme o relato de O
Paranaense, parecem ter sido aprovados pelo governo.
A situação é confirmada com a história de Barnabé
Ferreira Bello, um escravo sapateiro, morador de Curitiba, que
enfrentou seu proprietário em um embate judicial, no qual
o acusava de “abandono”27. Precisando conseguir dinheiro
para sua causa, Barnabé recorreu à Sociedade Emancipa-
dora de Campo Largo, do qual era sócio, solicitando a quan-
tia de 1:500$000, que a agremiação não pode conceder por
estar com os cofres vazios. A história de Barnabé, além de
mostrar que escravos faziam parte dessas agremiações abo-
licionistas, como registrou O Paranaense, reforça alguns ou-
tros aspectos de que já tratamos aqui. Barnabé era um escra-
vo alfabetizado e obteve instrução básica em duas escolas
noturnas na capital, sendo uma delas aquela ministrada por
Damasio Bittencourt, de que falamos há pouco. O trânsito
deste escravo e outros indivíduos por esses variados espaços
difusores das ideias abolicionistas só confirma a complexida-
de do movimento, tal como afirmado por alguns estudos da
historiografia dedicados a outros lugares do Império28.
24 BRASIL, Lei nº 1083 de 22 de agosto de 1860. Coleção de Leis do Império do Brazil de
1860 – Tomo XXI, Parte I, p. 33.
NOEMI SANTOS DA SILVA

25 Sidney Chalhoub. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras,
2003, p. 247.
26 Ofício contendo os Estatutos da Sociedade Emancipadora de Campo Largo, encami-
nhado para a presidência da província do Paraná. DEAP-PR. BR APPR 553, p. 139.
27 Processo de manutenção de liberdade, Barnabé Ferreira Bello. 1880. DEAP-PR. BR
APPR PB 045 PI 7718, Cx. 294.
28 Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da
abolição. 2. ed. revista. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010.

45
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Porém, mesmo com as evidências da participação


de escravos como sócios da Sociedade Emancipadora de
Campo Largo, a diretoria da agremiação era composta
apenas por indivíduos livres, dentre os quais destacavam-se
o presidente Francisco Xavier de Almeida Garret, sobrinho do
poeta português Almeida Garret, e também comerciante
em Campo Largo, João Ferreira Leite, tenente do exército e
também poeta e dramaturgo, Alexandre Magno de Oliveira
Jorge – professor, Henrique Lavalli – artista, José Manuel La-
valli – alferes do Exército, entre outros. Ainda que o caráter
elitista tenha vigorado com maior intensidade nas associa-
ções abolicionistas do Império, especialmente por represen-
tarem o plano mais conservador para a erradicação da es-
cravidão, nota-se na Sociedade Emancipadora de Campo
Largo um perfil plural de associados, com destaque a alguns
indivíduos ligados ao Exército e ao teatro, e outros que exer-
ciam ofícios especializados.
Indo contra a “regra” das associações emancipa-
cionistas da província, que tendiam a ser mais “modera-
das” no projeto abolicionista que defendiam, encontramos
a Sociedade Redentora Parnaguense e a Ultimatum. Eram
sociedades compostas majoritariamente por indivíduos re-
nomados e abastados, mas com o diferencial de empreen-
derem ações radicais, como a facilitação de fugas e outras
ações extrainstitucionais.
Em Paranaguá, a Sociedade Redentora foi formada
O PARANÁ ABOLICIONISTA: LUTAS PELO FIM DA ESCRAVIDÃO

pela iniciativa de integrantes do Clube Literário, entidade de


fins culturais e de auxílio mútuo criada em 1872 que reunia
os grandes nomes do comércio portuário parnanguara. Esse
clube participava da campanha abolicionista através da
Caixa Emancipadora Visconde do Rio Branco, que arreca-
dava fundos para a compra de alforrias, por doação volun-
tária dos sócios ou por meio da promoção de espetáculos
cênicos e festivos. Em uma dessas festividades, foi fundada
a Sociedade Redentora, com o fim de trabalhar especifica-
mente para a emancipação dos escravos, reunindo os abo-
licionistas mais engajados do Clube Literário29. A mesa direto-
ra era composta por Marcelo Annunziata, Priscilliano Correia,
Antônio de Almeida Lima Júnior, João Régis Pereira da Costa,
29 Aníbal Ribeiro Filho. História do Clube Literário de Paranaguá (1872-1972). Paranaguá:
IHGP, s/d, p. 97.

46
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Afonso Camargo Penteado e Antônio Santa Rita e o nosso já


conhecido José Cleto Silva. Eram, respectivamente, um pa-
dre, um empresário, um médico, um funcionário público, um
comerciante, um negociante, e um professor; alguns deles,
membros da Loja Maçônica Perseverança.
As fugas eram feitas pelo porto de Paranaguá, no
qual se fazia o embarque de cativos. A prática era, obvia-
mente, muito combatida pelos menos radicais: “Sabemos
que o honrado Dr. Chefe de Polícia ordenou que fosse im-
pedido o embarque de uma pobre escrava, que um “abo-
licionista” pretendia separar de seu filho menor. Um bravo a
S. Ex. Olha esse abolicionista que saia!”, relatava o órgão O
Futuro, em 188530. Os cativos eram direcionados preferen-
cialmente para o Uruguai, terra de solo livre. Na fase final
da campanha abolicionista, a Sociedade Redentora Parna-
guense estabeleceu contato com os militantes da secreta
Ultimatum, da capital, a fim de ampliar as fugas de escravos
para Montevidéu:
Embarquei nossos protegidos, sem custo. Nada qui-
seram receber pelas passagens [...] Amanhã devem
embarcar os dois protegidos em navio de vela para
Montevidéu. Nada aceitaram para despesas a fazer
com passagens. Dei a cada um, duas libras. Priscillia-
no [Correia] nos ajuda. Devem embarcar também um
escravo Nacar e um escravo de Antonina. Curitiba, 22
de junho de 188731.

O caráter secreto da sociedade curitibana Ultima-


tum não permite que tenhamos acesso aos detalhes de
seu funcionamento, embora uma historiografia precedente
tenha chegado ao nome de alguns sócios, através de seus
codinomes: “Luiz Gama”, “Patrocínio”, “Trovão”, “Clapp”,
entre outros32. Alguns indivíduos renomados da cidade e de
grande visibilidade pública, como Bento Munhoz da Rocha,
Presciliano Correia e Idelfonso Correia, o Barão de Cerro Azul,
eram sócios da agremiação e mantinham correspondência
NOEMI SANTOS DA SILVA

com militantes de outras localidades da província, como Pa-


ranaguá, Morretes, Assungui, Votuverava, Cerro Azul, Campo
largo, Palmeira e Ponta Grossa. Os sócios faziam um juramen-
30 O Futuro, 2/4/1885, p. 2
31 Aníbal Ribeiro Filho, obra citada, p. 97.
32 Romário Martins. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995, p. 387.

47
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

to buscando “tudo fazer em benefício dos irmãos cativos” e


restringiam o ingresso apenas aos “resolvidos a tudo sacrificar
pela nobre ideia” 33.
Não é possível fazer uma narrativa sobre a movimen-
tação do abolicionismo pelas associações sem considerar a
participação do Paraná na Confederação Abolicionista em
março de 1888, portanto, poucos dias antes da Abolição. De
caráter nacional, a Confederação foi criada em 1883, em
reunião de várias sociedades abolicionistas, a maior parte
delas do Rio de Janeiro, mas também com representantes
no Espírito Santo, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Sul. A
mesa diretiva dessa reunião foi composta por André Rebou-
ças, José do Patrocínio e João Clapp34. A fundação da Con-
federação Abolicionista Paranaense aconteceu em reunião
no Clube Militar de Curitiba, com representantes de algumas
associações da província comprometidas com a abolição.
Ali, foi decidido que os militantes lutariam pelo término da
escravidão através das “emancipações de território”, com
compra de alforrias em massa, iniciando a emancipação por
Curitiba e depois se alastrando ao restante da província35.

O ABOLICIONISMO NAS RUAS

As cerimônias cívicas, festas, passeatas, apresenta-


ções culturais públicas entre outros eventos foram fortes di-
fusores das ideias abolicionistas na província do Paraná, aju-
O PARANÁ ABOLICIONISTA: LUTAS PELO FIM DA ESCRAVIDÃO

dando a sustentar a ideia de que o movimento teve ampla


adesão popular. Em Paranaguá, surpreende os frequentes
relatos dos jornais da época sobre as festividades e eventos
de grande público, nos quais a propaganda abolicionista cir-
culava livremente, como é possível conferir no anúncio publi-
cado no Livre Paraná: “Deve subir à cena no dia 19 do cor-
rente, no teatro Santa Celina o drama Bohemia em benefício
da Caixa Emancipadora Visconde do Rio Branco”36.
As apresentações desse grupo cênico dividiam espa-
ço com os grandes festivais carnavalescos que, na década
de 1880, chegaram a dedicar desfiles e alegorias à causa
33 Idem, p. 388.
34 Angela Alonso, obra citada, p. 203.
35 Márcia Elisa de Campos Graff, obra citada, p. 105.
36 Biblioteca Nacional. Livre Paraná, 18/10/1884, p. 3.

48
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

abolicionista. Os Bilontras, o clube Zoroastro e o Aurora Abo-


licionista eram os clubes carnavalescos de destaque nessa
empreitada e ao que consta nos jornais, este último era for-
mado, sobretudo, por “pretos libertos”37. Também em Para-
naguá foi organizado um “festival abolicionista”, no qual,
uma apresentação teatral seguida de festa angariou fundos
para a caixa emancipadora do Clube Literário e depois en-
cerrou as atividades com uma grande passeata cívica pelas
ruas da cidade em favor da abolição38.
Em Curitiba, sobram exemplos de ocasiões nas quais
alforrias eram efetivadas em festas públicas.39 Algumas tive-
ram interferência direta dos clubes, como O Abolicionista,
que promovia frequentemente festas, quermesses e palestras
voltadas à divulgação do movimento. Uma delas foi descrita
como uma “seção de honra ao aniversário da morte de Luiz
Gama” e foi seguida de uma “passeata pelas ruas com acla-
mações e vivas entusiásticos por parte do povo”40.
Não podiam ser diferentes as celebrações que co-
memoraram a recompensa da luta abolicionista com a
libertação geral dos escravos em 13 de Maio de 1888. Em
Curitiba, o Dezenove de Dezembro relatou uma “imponen-
te marcha cívica solenizando o faustoso acontecimento”. A
passeata teria se iniciado no Clube Militar, prosseguindo pela
Rua da Imperatriz, atual Rua XV de Novembro, onde mem-
bros de clubes e dos jornais ali sediados discursaram com
muitos aplausos por parte do povo. “É-nos impossível relatar
minuciosamente todos os festejos com que o júbilo popular
saudou o grande dia”, afirmava o jornal41. A mesma redação
recebia de Ponta Grossa as notícias da reunião de “um nu-
meroso concurso de povo no paço da câmara” e de Anto-
nina: “grandes manifestações de regozijo. A cidade arde em
fogos”.
De certa maneira, porém, as manifestações popula-
res que clamaram e celebraram a libertação dos escravos
não se encerraram nos dias seguintes ao 13 de maio. Ao con-
NOEMI SANTOS DA SILVA

trário, continuaram nos anos subsequentes, visando a melho-


37 Commercial, 13/03/1886, p. 2.
38 Aníbal Ribeiro Filho, obra citada, p. 97.
39 Márcia Graff, obra citada, p. 89-91.
40 Biblioteca Nacional. Dezenove de Dezembro, 16/8/1885, p. 2.
41 Dezenove de Dezembro, 16/05/1988, p. 2.

49
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ria das condições de vida e trabalho dos ex-escravos e outros


integrantes da classe trabalhadora. Importante nesse sentido
foi a organização de e uma sociedade de auxílio mútuo, feita
por um grupo de libertos tão logo foi promulgada a abolição:
o “Clube Treze de Maio” ou “Sociedade Operária Beneficen-
te 13 de Maio”. A primeira ocasião de aparição pública des-
sa agremiação foi a data de 28 de Setembro, comemorativa
de mais um aniversário da Lei do “Ventre Livre”. Os associa-
dos, organizados em grande passeata noturna pelas ruas de
Curitiba, percorreram “o palácio de governo, a Câmara Mu-
nicipal, os clubes e as redações de jornais”42. Sinal de que as
lutas pela libertação estavam longe de ser esquecidas; ao
contrário, vinham sendo reformuladas e reinterpretadas no
“novo” quadro de trabalho que então se apresentava.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O panorama militante que procuramos evidenciar


neste capítulo mostra a pujança da mobilização ocorrida no
Paraná em torno de uma causa que mobilizou grande quan-
tidade de brasileiros, sobretudo nos anos 1880: a abolição da
escravidão. Esperamos ter mostrado que desse movimento
fizeram parte não apenas membros da elite ilustrada e abas-
tada da província, mas também escravos e libertos e tam-
bém outros sujeitos das camadas intermediárias que, além
de trabalharem para o ativismo da região, atuaram politica-
O PARANÁ ABOLICIONISTA: LUTAS PELO FIM DA ESCRAVIDÃO

mente em favor de seus interesses, no interior das sociedades


abolicionistas, nos tribunais de Justiça, nas ruas e nas agre-
miações que organizaram depois que a abolição fez de to-
dos trabalhadores livres, mas ainda desfavorecidos.

42 Dezenove de Dezembro, 28/09/1888.

50
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

SOCIEDADE OPERÁRIA
BENEFICENTE 13 DE MAIO:
MOBILIZAÇÃO NEGRA E CONTESTAÇÃO
POLÍTICA NO PÓS-ABOLIÇÃO
Pamela Beltramin Fabris
Thiago Hoshino

Edificada no Alto do São Francisco, setor histórico da


cidade de Curitiba, a hoje denominada Sociedade Operária
Beneficente 13 de Maio (S. O. B 13 de Maio) completa, ao
tempo desta publicação, 130 anos de existência. É uma das
poucas que sobreviveram, dentre as tantas que se formaram
no Brasil, nos arredores da aprovação da chamada Lei Áu-
rea. Sua história está diretamente relacionada com as estra-
tégias de luta e sobrevivência de homens e mulheres negros
e negras no Paraná, articuladas em meio a uma sociedade
hierarquizada, classista, desigual e que contou com a pre-
PAMELA BELTRAMIN FABRIS E THIAGO HOSHINO

sença de escravizados africanos e seus descendentes desde


meados do século XVII.
A história da Sociedade ou do “Clube 13”, como
é carinhosamente conhecida na cidade, contrasta com a
atual memória hegemônica da identidade local, a qual ten-
de a apagar a memória e a presença negras. Em uma publi-
cação recente, Joseli Mendonça constatou o silenciamento
sobre os afrodescendentes na história paranaense, sobretu-
do em Curitiba.1 Um exemplo disso pode ser encontrado no
1 Joseli Maria Nunes Mendonça. Escravidão, africanos e afrodescendentes na ‘cidade
mais europeia do Brasil’: identidade, memória e História Pública. Tempos Históricos, v.
20, 1º semestre de 2016, p. 218-240.

51
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

site oficial do governo do Estado. Lá é possível ler um texto


intitulado “História do Paraná”, que aborda os “ciclos econô-
micos” e as características do povoamento e do território2.
Sobre os grupos que fazem parte desta versão da “História do
Paraná” encontram-se ligeiras menções a respeito de povos
indígenas, recebendo destaque a matriz europeia, explora-
da de forma mais detalhada no texto. Sobre os africanos e
seus descendentes, porém, nem uma palavra é dita. Na pá-
gina da Prefeitura Municipal de Curitiba, como mostrou Hilton
Costa, a situação não é muito diferente3.
Historiadores concentrados no período Pós-Abolição
SOCIEDADE OPERÁRIA BENEFICENTE 13 DE MAIO: MOBILIZAÇÃO NEGRA E CONTESTAÇÃO POLÍTICA NO PÓS-ABOLIÇÃO

vêm ressaltando a importância que a integração à socieda-


de adquiriu para os egressos do cativeiro. Isso ocorreu não
só no Brasil, mas em todas as sociedades nas quais vigorou a
escravidão.4 No Brasil, a emergência do regime republicano
não significou a garantia de direitos para a maior parte da
sociedade, especialmente para a população negra.
Abordar as estratégias políticas coletivas, por meio de
organizações de afrodescendentes e suas lutas por cidadania
em Curitiba, é o principal propósito desse texto. Faremos isso
apresentando aos leitores e leitoras a S. O. B 13 de Maio, agre-
miação que ganhou protagonismo na experiência negra na
cidade, a partir das últimas décadas do século XIX.

“JOÃO DA FAUSTA, QUEM NÃO O CONHECE?”

O enterro de João Baptista Gomes de Sá, o João da


Fausta, foi bastante movimentado em Curitiba, contando
com uma expressiva presença popular, em setembro de 1901.
Entre os presentes, destacavam-se os membros da Socieda-
de 13 de Maio, da Irmandade Bom Jesus dos Perdões, da
Sociedade Beneficente dos Trabalhadores da Herva Matte e
da Irmandade de São Benedito. O que faziam associações
operárias e ordens religiosas juntas prestando-lhe últimas ho-
2 PARANÁ. SECRETARIA ESTADUAL DA CULTURA. Um pouco de história. Disponível
em: http://www.cultura.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=1 . (acesso
em 10/12/2016).
3 Hilton Costa. Ilusão de ótica: presença negra e imigração para o sul do Brasil nas aná-
lises de Raymundo Nina Rodrigues e Sílvio Romero. Anais do 5º Encontro Escravidão e
Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre, 2011.
4 Ver, por exemplo, Hebe Mattos. Prefácio. In: Frederick Cooper; Thomas C. Holt e Re-
becca J. Scott. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em
sociedade pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

52
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

menagens? Possivelmente não eram os únicos grupos que lá


estavam, mas a aparição dos dois últimos deve ter chamado
mais a atenção de quem acompanhava o funeral, já que os
membros da Sociedade Beneficente dos Trabalhadores da
Herva Matte exibiam o seu estandarte, símbolo máximo da
associação, e os irmãos da São Benedito carregavam uma
cruz5. Mais do que prestar reverências, portar os símbolos de
suas agremiações no cortejo também significava afirmar pu-
blicamente os laços políticos que as ligavam com o João da
Fausta. Quem era este homem que mobilizava tanta gente?
A pergunta pouco sentido fazia à época, afinal “João
da Fausta, quem não o conhece?” A indagação partia de
Julio Perneta, famoso poeta paranaense, em uma crônica
em que abordava o cotidiano da cidade, publicada pela
imprensa em 18976. Negro, nascido em Curitiba, aproxima-
damente no ano de 1830, João da Fausta teve sua trajetória
e uma significativa parte de sua identidade formada a partir
de seus elos com (e, sobretudo, contra) a escravidão. Sua
identidade – definida no apelido com que era conhecido –
carregava a memória de sua mãe, Fausta Maria da Concei-
ção, uma liberta (ex-escrava), nascida em Curitiba por volta
de 18007.
Em 1864, ainda que com uma quantia modesta, João
da Fausta ajudou na arrecadação de fundos para erguer em
Curitiba a Irmandade do Bom Jesus dos Perdões que, assim
como as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Ho-
mens Pretos e São Benedito, reunia seus membros na Igreja
do Rosário e tinha em seu meio livres, libertos e escravos, os
quais normalmente se identificavam como irmãos ou confra-
PAMELA BELTRAMIN FABRIS E THIAGO HOSHINO

des8. Embora contassem com pessoas de origens sociais e


étnicas diversas, essas irmandades, sobretudo as do Rosário
e as de São Benedito, configuraram-se por todo o Brasil como
um importante polo de sociabilidade negra. Em Curitiba, os
primeiros registros referentes a essas instituições datam do iní-
5 Diário da Tarde, 28 de setembro de 1901, p.2.
6 A República, 3 de julho de 1897, p.1.
7 Registro de Óbito de Fausta Maria da Conceição. Paróquia Nossa Senhora da Luz de
Curitiba. Livro de Óbitos de 1868 a 1887. p.57. Documentação digitalizada e disponível
online no site familysearch.org.
8 Autos de Prestação de Contas. Departamento de Arquivo Público do Paraná. BR PRA-
PPR PB045 PI6526.254.

53
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

cio do século XVIII9. Escravos afiliados a tais entidades foram os


construtores da Igreja do Rosário, a segunda erguida em Curi-
tiba, no ano de 173710. Tratava-se, portanto, de um espaço de
extrema importância para a memória e identidade negra na
cidade.
Nas irmandades de Curitiba, como em outras tantas,
não se dizia apenas amém. Os Termos de Compromisso des-
sas instituições – documentos que definiam o funcionamento
das irmandades – evidenciam que elas tomavam para si as
tarefas de realizar festas nos dias dos seus santos padroeiros,
auxiliar seus membros em caso de doenças e proporcionar a
SOCIEDADE OPERÁRIA BENEFICENTE 13 DE MAIO: MOBILIZAÇÃO NEGRA E CONTESTAÇÃO POLÍTICA NO PÓS-ABOLIÇÃO

eles a tão ambicionada “boa morte”, cuidando para que os


irmãos tivessem um enterro digno e celebrando missas em sua
memória11. Entre os anos de 1797 e 1820, ao menos 117 escra-
vos foram sepultados na Igreja do Rosário12. Estes benefícios
prestados pelas irmandades eram essenciais, pois tais proce-
dimentos, por essa época, eram incumbências realizadas em
âmbito doméstico. Porém, para além dessas funções prag-
máticas, é possível afirmar que as irmandades também foram
espaços de formações de experiências, de constituição de
laços de sociabilidade entre os confrades que resistiram ao
longo do tempo.
Neste sentido, a participação de João da Fausta na ir-
mandade do Bom Jesus dos Perdões parece ser ilustrativa. An-
tes da Lei Áurea, João ajudou a fundar a irmandade e, antes
como depois da abolição, exerceu a função de Procurador
– em 1880, 1899 e em 1900 –, tendo sido acompanhado pelos
seus irmãos até a hora da sua morte em 1901. É bem possível
que João da Fausta tenha sido também membro atuante nas
Irmandades do Rosário e São Benedito, em especial nesta úl-
tima, onde exerceu a função de mesário no mesmo ano em
que ajudou a fundar a Sociedade 13 de Maio, isto é, em 1888.
Mas não era só nos espaços das irmandades que João
da Fausta convivia com escravos, libertos e negros livres. Profis-
9 Silvio Adriano Weber. Escravidão e Irmandade negra nos campos de Curitiba (1797-
1850). Dissertação de Mestrado. Curitiba: Universidade Federal do Paraná – Departa-
mento de História, 2005.
10 Jerônimo Mazzarotto. A Arquidiocese de Curitiba na sua História. S/ed., 1956, p.181.
11 Thiago A. P. Hoshino; Miriane Figueira. Negros, libertos e associados: identidade cultural
e território étnico na trajetória da Sociedade 13 de Maio (1888-2011). Curitiba: Fundação
Cultural de Curitiba, 2012.
12 Silvio Adriano Weber, obra citada, p. 27.

54
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

sionalmente, ele exerceu ofícios nos quais a presença de afro-


-brasileiros era expressiva. Em 1870, João era um dos músicos
que integravam a banda da polícia da cidade13, atividade
em que, segundo Clóvis Moura, no período do Império, “ne-
gros e libertos constituíam a grande maioria.”14 Trabalhando
como oficial de justiça, cargo que ocupou desde pelo menos
187415, João da Fausta acompanhou igualmente de perto a
resistência de homens e mulheres negros e negras na cidade
em casos de fuga e ações de liberdade, processos por meio
dos quais escravos demandavam na Justiça a sua alforria.
Entretanto, um dos maiores motivos para a notorie-
dade de João da Fausta, registrada por Julio Perneta em sua
crônica, devia vir de sua disposição para organizar eventos
e comemorações em sua casa, na Rua Matto Grosso (atual
Comendador Araújo), “com a solenidade e a pompa das
grandes festas”16. Um desses encontros deixou um legado de
valor inestimável para uma história que já passa de centená-
ria – a história da Sociedade 13 de Maio.

13 DE MAIO, DA DATA À SOCIEDADE

Foi numa quinta-feira, dia 3 de maio de 1888, que,


reunidos na casa de João da Fausta, Hilário Munhoz, Bene-
dito Modesto da Rosa, Candido Ozório, Manoel Pereira dos
Santos, José Pinto da Rocha, Izidoro Mendes dos Santos e
Norberto Garcia, todos homens negros, deram os primeiros
passos para o que viria a ser o Club 13 de Maio17, ainda sem
essa denominação.
Consta nas atas que sobreviveram ao tempo que um
PAMELA BELTRAMIN FABRIS E THIAGO HOSHINO

mês depois dessa primeira reunião, novamente em casa de


João da Fausta, formalizou-se a instalação da sociedade, no
dia 6 de junho. As motivações para a fundação da mesma
ficaram registradas:
13 Dezenove de Dezembro, 17 de setembro de 1870, p.3.
14 Clóvis C. Moura.Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2004,
p.283.
15 Thiago de A. P. Hoshino. Entre o “espírito da lei” e o “espírito do século”: a urdidura
de uma cultura jurídica da liberdade nas malhas da escravidão. (Curitiba: 1868-1888).
Dissertação de Mestrado em Direito. Programa de Pós-Graduação em Direito, – Setor
de Ciências Jurídicas – UFPR. Curitiba, 2013.
16 A República, 3 de julho de 1897, p.1.
17 Thiago A. P. Hoshino; Miriane Figueira. Obra citada. p. 24-29.

55
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

(...) em regozijo [a]o grande dia memorável 13 de Maio


de 1888, que Brasil fez ecoar desde o Amazonas ate o
prata o Grito da extinção da escravidão dos filhos que
ontem ainda achavam-se presos na América do Sul.18

Na mesma ocasião, foi formada sua primeira dire-


toria, composta por Francisco Vidal (presidente), Benedicto
Modesto da Roza (vice-presidente), Candido Ozório (1º Se-
cretário), Manoel Pereira dos Santos (2º secretário), Vicente
Moreira de Freitas (Tesoureiro), Norberto Garcia (1º Procura-
dor), Izidoro Mendes dos Santos (2º Procurador) e João Bap-
tista Gomes de Sá – o João da Fausta – (diretor).
SOCIEDADE OPERÁRIA BENEFICENTE 13 DE MAIO: MOBILIZAÇÃO NEGRA E CONTESTAÇÃO POLÍTICA NO PÓS-ABOLIÇÃO

De acordo com a tradição oral articulada por mem-


bros atuais do “13”, o núcleo fundador da sociedade era
composto por homens negros letrados e bem relacionados
tanto politicamente, quanto socialmente.19 É bem possível
que esta distinção social, alcançada pelos pioneiros, se
devesse, em grande parte, aos vínculos construídos pelos
mesmos através de redes de contato como as irmandades.
João da Fausta, Vicente Moreira de Freitas, Francisco Vidal
e Hilário Munhoz, fundadores da Sociedade, eram irmãos
de algumas delas20. Os dois primeiros também se achavam
filiados à Sociedade Protetora dos Operários, outra agre-
miação de extrema importância para a comunidade negra
local, pois, embora dela fizessem parte pessoas de diferen-
tes classes sociais e de origens étnicas distintas, sua funda-
ção, ainda no período escravista, em janeiro de 1883, con-
tou com a decisiva liderança de um ex-escravo e pedreiro
chamado Benedito Marques dos Santos.21 Vicente Moreira
de Freitas e João da Fausta exerceram os cargos de presi-
dente e vice-presidente nessa sociedade, o que demons-
tra o grande prestígio que alcançaram no meio operário
da época. Evidência da importância desses homens entre
os operariado local é o fato de, assim como a 13 de Maio,
também a Protetora dos Operários ter tido como sede inicial
a casa de João da Fausta.22
18 Thiago A. P. Hoshino; Miriane Figueira. Obra citada. p. 26.
19 Thiago A. P. Hoshino; Miriane Figueira. Obra citada. p. 28.
20 Dezenove de Dezembro, 19 de janeiro de 1889. p. 3.
21 Newton Carneiro. Um precursor da Justiça Social: David Carneiro e a economia para-
naense. S/ed. Curitiba, 1965. p. 101.
22 Dezenove de Dezembro, 2 de março de 1884. p. 4.

56
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Seguindo o fio da meada desses vínculos político-


-afetivos, verificamos que os fundadores da “13 de Maio”
também mantinham relações próximas com os grupos abo-
licionistas. Pelo menos cinco antigos membros da socieda-
de haviam pertencido ao grupo Ultimatum, que atuou em
Curitiba e outras cidades paranaenses, promovendo fugas
e outras subversões, nos anos de 1887 e 1888: Itaciano Tei-
xeira, Joaquim Belarmino de Bittencourt, João da Luz, Barão
de Serro Azul e Benedito Candido. Este último, que chegou a
ocupar o cargo de primeiro-secretário da Sociedade 13 de
Maio durante os anos de 1892/1893, permanecendo orador
da casa até pelo menos a década de 1940.
As experiências vivenciadas pelos fundadores da
“13”, ao longo de suas vidas, certamente foram cardinais
para constituir a Sociedade 13 de Maio. Os mesmos sabiam
das dificuldades sociais e financeiras enfrentadas por ex-es-
cravos e negros livres. Nesse sentido, ao fundarem a agre-
miação, estes confrades talvez estivessem pensando em dar
continuidade às lutas abolicionistas, tornando-as lutas por ci-
dadania. Talvez visassem também à ampliação das funções
sociais já exercidas pelas irmandades e outras sociedades,
como a assistência em “caso de moléstia, e [...] funeral de só-
cios em caso de pobreza”.23 Mesmo com o fim da escravidão
e o início do regime republicano no país, a necessidade de
apoiar seus membros em tais ocasiões atesta a precariedade
do Estado brasileiro em oferecer aos seus cidadãos segurida-
de em situações de vulnerabilidade. A sociedade também
buscou suprir a debilidade do Estado em prover instrução,
passando a administrar aulas noturnas de “primeiras letras”
PAMELA BELTRAMIN FABRIS E THIAGO HOSHINO

aos seus sócios analfabetos, a partir de 189024. O Estatuto de


1896 estabeleceu que era um dever dos sócios matricular
seus filhos na escola e os obrigar a frequentarem as aulas25,
o que, igualmente, demonstra um grande investimento dos
membros da “13” na educação de seus membros.
Outra importante tarefa da Sociedade 13 de Maio
era auxiliar seus sócios, alguns recém-libertos do regime es-
cravista, na busca por trabalho, funcionando como uma es-
23 Estatutos da Sociedade Treze de Maio. Gazeta Paranaense, 14 de setembro de 1888.
p. 3.
24 Thiago A. P. Hoshino; Miriane Figueira. Obra citada. p. 38.
25 Estatuto do Club Beneficente Treze de Maio. A República, 26 de agosto de 1896. p.2.

57
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

pécie de “agência de empregos”, tarefa da maior urgência


em um ambiente urbano que começava a se industrializar e
contava com a presença de milhares de imigrantes de ori-
gem europeia, aumentando a competitividade e as tensões
inter étnicas entre os trabalhadores.26
Apesar de ser administrada por uma cúpula de letra-
dos, os serviços que a Sociedade se comprometia a prestar
nos revelam que ela agregava pessoas de distintas classes so-
ciais, com forte enraizamento operário, o que é evidenciado
pela intensa articulação que estabelecia com outras agre-
miações de trabalhadores locais. Os interesses em comum
SOCIEDADE OPERÁRIA BENEFICENTE 13 DE MAIO: MOBILIZAÇÃO NEGRA E CONTESTAÇÃO POLÍTICA NO PÓS-ABOLIÇÃO

entre as mesmas empressam-se em registros que indicam


que algumas outras sociedades, como a Sociedade Proteto-
ra dos Operários e a Sociedade Beneficente dos Trabalhado-
res na Herva Matte (presentes, ambas, no velório de João da
Fausta) eram consideradas pela “13” suas “co-irmãs”.
O primeiro Estatuto da Sociedade, de julho de 1888,
estabelecia uma mensalidade aos seus sócios no valor de mil
réis e uma contribuição de 3 mil réis no ato de admissão27. O
valor da mensalidade manteve-se o mesmo até 1896, porém
o valor para a admissão passou de 3 para 5 mil réis28. Embora
tais valores não fossem altos, para a época, a obrigatorie-
dade de contribuições financeiras acabava impactando no
perfil dos associados, restringindo, de certa maneira, o aces-
so daqueles que não poderiam arcar com os custos mínimos.
Ainda assim, aos poucos, a sociedade prosperou e, em 1896
logrou a doação de um terreno onde, duas décadas mais
tarde, construiria a sede onde até hoje se encontra29.
Além de auxiliar e facilitar a vida de seus sócios na
luta por melhores condições de vida e de inserção social, a
“13 de Maio” também procurava definir aspectos associados
à memória da presença negra na cidade, refletindo sobre
ela e a ela atribuindo significados próprios. Neste sentido, as
festas e datas comemorativas escolhidas para celebrações
trazem indícios sintomáticos de como se dava esse processo
de produção de identidades em luta.
26 Thiago A. P. Hoshino; Miriane Figueira. Obra citada. p. 38.
27 Estatutos da Sociedade Treze de Maio. Gazeta Paranaense, 14 de setembro de 1888.
p. 3.
28 Estatutos do Club Beneficente Treze de Maio. A República, 26 de agosto de 1896. p. 2.
29 Thiago A. P. Hoshino; Miriane Figueira. Obra citada. p. 52.

58
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Já em seu primeiro Estatuto, a sociedade anunciava


que seriam celebrados com bailes os dias 6 de junho (data
oficial de sua fundação), 13 de maio (dia da abolição da
escravidão no Brasil) e 28 de setembro (aprovação da Lei
do Ventre Livre, em 1871). Esta última, ao contrário da Lei dos
Sexagenários de 1885, parece ter sido considerada, por eles
como um importante passo emancipacionista. É bem possí-
vel que, desde seus primórdios, houvesse sócios beneficiados
por tal lei, já que em seu estatuto de 1888, estava prevista a
admissão de pessoas que tivessem recebido “os favores da
lei de 28 de Setembro de 1871”.30
Em comemoração à data, poucos meses após sua
fundação, a sociedade organizou uma passeata noturna
que, de acordo com a imprensa, reuniu seus sócios defron-
te à sua sede, de onde saíram por volta das sete da noite,
carregando o estandarte da agremiação, em caminhada
pelas ruas da cidade, “ao som de uma banda de música,
ao estrugir de foguetes, e à luz de um esplêndido marche
aux flambeaux [marcha iluminada por tochas]”31. Seria João
da Fausta o regente da animada banda? No trajeto progra-
mado estava previsto visitar, entre outros locais, a casa do
presidente do Estado, as sedes das redações jornais, a Câ-
mara Municipal, o Clube Militar, local que nos últimos meses
costumavam os abolicionistas se reunirem. Para organizarem
a primeira aparição pública, os sócios tiveram de mobilizar
muitos esforços e os poucos recursos de que dispunham. A
passeata, no entanto, angariou notoriedade e prestígio pú-
blico, marcando presença política num contexto hostil a essa
pauta.
PAMELA BELTRAMIN FABRIS E THIAGO HOSHINO

Não raramente, as atas da sociedade mencionam


as imponentes sessões solenes ocorridas em comemoração
a essas datas festivas, ocasiões em que se demandam con-
tribuições especiais dos sócios, inclusive financeiros, pois, tra-
tavam-se de momentos excepcionais em que a sociedade
recebia em sua sede autoridades locais, jornalistas, comer-
ciantes que integravam a elite financeira do Estado e mem-
bros de outras sociedades. Para a “13” era importante buscar
um reconhecimento social e político, daí é bem possível que,
30 Estatutos da Sociedade Treze de Maio. Gazeta Paranaense, 14 de setembro de 1888.
p. 3.
31 Vinte e oito de Setembro. Gazeta Paranaense, 30 de setembro de 1888. p. 2.

59
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

entre um brinde e um discurso, fossem estabelecidas alianças


estratégicas nesse sentido.
Certamente, de diversas formas, as experiências
conflituosas vivenciadas por seus sócios ao longo dos anos
também acabavam refletindo no cotidiano da instituição.
Uma evidência nesse sentido é a alteração que em 1896 foi
levada a cabo no estatuto anterior, vigente desde 1888. O
capítulo 1º da versão de 1896 estabelecia que a instituição
tinha como objetivo “realizar a união dos descendentes da
raça Africana, residentes nessa Capital e relacioná-los com
os seus companheiros residentes em outras localidades do Es-
SOCIEDADE OPERÁRIA BENEFICENTE 13 DE MAIO: MOBILIZAÇÃO NEGRA E CONTESTAÇÃO POLÍTICA NO PÓS-ABOLIÇÃO

tado”32. No Estatuto de 1888, o quesito étnico-racial não ha-


via sido colocado de forma explícita. Como mencionamos,
ali se registrava apenas que a agremiação receberia pes-
soas que tivessem sido beneficiadas pela Lei do Ventre Livre.
Talvez por fatores conjunturais, talvez pela própria mudança
de posição de sua direção, um discurso de consciência étni-
ca e racial ia se tornando mais saliente, na medida, inclusive,
em que se buscava entreter relações com outras sociedades
negras, para além das fronteiras da cidade.
Assim, a “13 de Maio” não foi concebida isolada-
mente, nem estava sozinha nessa trama política. Ela partici-
pava de um circuito amplo de sociedades operárias (algu-
mas exclusiva ou majoritariamente negras) que marcaram a
experiência da comunidade afrodescendente em Curitiba,
nos últimos anos do regime escravocrata e no pós-abolição.
Foram inúmeras as organizações dessa natureza que surgi-
ram a partir da década de 1880.
Além dos laços com clubes sociais negros, a “13 de
maio” conectou-se também com a militância operária. Esses
espaços seriam, aliás, cruciais na Greve Geral de 1917, que
paralisou a capital por vários dias e que é analisada por Luiz
Carlos Ribeiro, em outro capítulo deste livro. As atas da “13
de Maio”, nesse período, explicitam estreitas relações com:
Sociedade Protetora dos Operários; Sociedade 28 de Se-
tembro; Sociedade Beneficente dos Trabalhadores na Herva
Matte; Sociedade Operárias Estrella da Manhã; Sociedade
Operária 14 de Janeiro; Sociedade Operária 27 de Janeiro;
Sociedade Protetora dos Barriqueiros; Sociedade Beneficen-
32 Estatutos do Club Beneficente Treze de Maio. A República, 26 de agosto de 1896. p. 2.

60
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

te dos Padeiros; Sociedade Operária Santa Cecília; Socieda-


de Protetora dos Boleeiros; Associação dos Empregados no
Comércio; Sociedade Operária Cruzeiro do Sul; Sociedade
Operária Óriom; Sociedade Operária do Batel; Sociedade
Operária Três Corações; Centro Tipográfico; União das So-
ciedades Operárias Beneficentes do Paraná e Federação
Operária Paranaense.
Essa solidariedade institucional parece ter-se forjado
de modo acentuado a partir da plurivinculação de alguns
associados. Não foram poucos os membros que detinham,
concomitantemente, cargos diretivos em outras entidades
similares. A título ilustrativo, citamos o sócio Leocadio Julio
d’Assumpção, que em 1889 era 1º Secretário da Sociedade
13 de Maio e, na mesma época, integrava também, a So-
ciedade Protetora dos Operários. O padrão se repetia com
outros sócios, nas diretorias, conforme já ressaltamos.
Se não era fácil ser operário(a) no Paraná do final do
oitocentos, quem dirá operário(a) negro(a). Além das difi-
culdades relacionadas às condições de vida e trabalho, en-
frentadas por todos(as) os(as) trabalhadores(as), os(as) ne-
gros(as) eram alvo do racismo e sobre eles(as) incidia com
mais força a disciplina policial e o controle social. Exemplo
disso foram as medidas de recrutamento forçado instituídos
em 1889 e 1897, em relação às quais a “13 de Maio” se posi-
cionou frontalmente contrária.
Ao longo do século XIX, a prática de recrutamen-
to forçado fez parte da estratégia política do Estado brasi-
leiro que promovia verdadeiras caças em busca de prover
efetivos para a Marinha e o Exército. Durante a Guerra do
PAMELA BELTRAMIN FABRIS E THIAGO HOSHINO

Paraguai, este tipo de medida já havia arregimentado um


enorme contingente de escravos, com promessa de alforria
ou dados em troca do alistamento dos filhos dos senhores.
A campanha havia sido ironicamente batizada de “Volun-
tários da Pátria”33. O recrutamento passou também a ser
utilizado como uma espécie de “saneamento social”, pois
33 Sobre a questão, conferir: Robert Conrad. Os últimos anos da escravatura no Brasil:
1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975; Júlio José Chia-
venato. Os Voluntários da Pátria e Outros Mitos. São Paulo: Global, 1983; Ricardo
Salles. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1990; André Amaral de Toral. A participação dos negros escravos
na guerra do Paraguai. Revista Estudos Avançados, São Paulo, v. 9, n. 24, maio/ago.
1995.

61
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

seus principais alvos eram desempregrados, andarilhos, men-


digos, ou seja, a população pobre.
No ínicio de maio de 1889, o jornal Dezenove de De-
zembro anunciava que o Ministro da Guerra havia colocado
novamente em prática o recrutamento forçado, e Curitiba
seria uma das cidades nas quais a medida se aplicaria. Na
mesma edição o jornal fazia um apelo aos militares respon-
sáveis por tais recrutamentos, solicitando que fossem cap-
turados “somente os indivíduos que não tiverem ocupação
conhecida e regular procedimento.”34
Pouco tempo depois, no dia 8 de maio, nosso já co-
SOCIEDADE OPERÁRIA BENEFICENTE 13 DE MAIO: MOBILIZAÇÃO NEGRA E CONTESTAÇÃO POLÍTICA NO PÓS-ABOLIÇÃO

nhecido João da Fausta, então diretor da “Sociedade 13”,


publicava uma manifestação contundente na imprensa curi-
tibana, afirmando que a agremiação não iria naquele ano
comemorar “o aniversário da gloriosa Lei de 13 de Maio”,
como “era de seu dever”, em razão do “recrutamento de-
senvolvido nesta capital, que muito tem horrorizado o maior
número de seus sócios.”35
E essa não foi a única vez que casos de recruta-
mentos forçados parecem ter atormentado os membros
da Sociedade. Em um documento enviado ao Presidente
do Estado, José Pereira Santos Andrade, em 1897, Norberto
Garcia, Manoel Teixeira e Edmundo Vianna, membros da
diretoria da “13”, solicitavam às autoridades locais que to-
massem providências, pois, a sua escola “não pode funcio-
nar regularmente devido ao recrutamento forçado” o que
estaria deixando os alunos “aterrorizados pelos fatos que
dão-se pelas ruas”.36 Os diretores afirmavam que os “alunos
da 13” temiam percorrer o itinerário de suas casas até a es-
cola da instituição, pois sabiam que, para as autoridades lo-
cais, eles se enquadravam na categoria dos principais alvos
do recrutamento. O que os diretores da “13” exigiam das
autoridades era que os alunos de sua escola, espaço que
visava proporcionar uma possibilidade de ascensão social
pelo letramento – tivessem seus direitos de cidadania respei-
tados e reconhecidos.
34 Recrutamento. Dezenove de Dezembro, 2 de maio de 1889. p. 1.
35 Jornal Dezembro de Dezembro. Curitiba, 08 de maio de 1889, p. 3, citado por Francie-
le Pereira do Nascimento. Crime e Castigo da Raça: o papel da cultura jurídico-criminal
na construção de um projeto de embranquecimento da nação. (1888-1915). Dissertação
(Mestrado em Direito). PPGD – Setor de Ciências Jurídicas – UFPR. Curitiba, 2016, p. 27.
36 Boletim do Arquivo Público do Paraná, ano 6, n. 9, 1981, p. 18.

62
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No final do século XIX, parte da população negra


da cidade de Curitiba, em parte havendo vivenciado a ex-
periência do cativeiro, juntaram-se em uma agremiação
que visava constituir espaços de autonomia, prover auxílio
mútuo, capacitar pela instrução escolar e pela e técnica
de ofícios, inserir seus membros no mercado de trabalho e
confrontar práticas discriminatórias – inclusive as encetadas
pelo poder público, como o recrutamento forçado. Nesse
sentido, questionaram e buscaram inverter hierarquias so-
ciais, elaboraram e implementaram um projeto que visava
a construção da identidade afrodescendente. Se, na socie-
dade brasileira, a cor operava (e ainda opera) como um
dos mais incisivos marcadores sociais de diferença37, é bem
provável que estes circuitos do operariado, e em especial,
do operariado negro, tenham auxiliado na constituição de
processos de distinção, capazes de repercutir, de maneira
mais estrutural no imaginário prevalecente e na realidade
política e social da época. Também a maneira performá-
tica e solene como se faziam presentes no espaço públi-
co lembrava a todo o momento a memória do ignominioso
passado escravista, porém para ressignificar as lutas por di-
reitos do presente. Frequentar a Sociedade 13 de Maio re-
presentou, para muitos(as), uma chance maior de ter aces-
so à cidadania e à vida comunitária.
A disposição para a luta se fazia presente na “13”. Ela
é evidenciada pelas ações dos membros da instituição que,
apesar do racismo e das diversas barreiras sociais e econô-
PAMELA BELTRAMIN FABRIS E THIAGO HOSHINO

micas que se antepunham à participação na vida pública


da cidade (e, no limite, do país), souberam construir redes de
sociabilidades e uma cultura associativa que possibilitou uma
prática política organizada da população negra, contrarian-
do expectativas hegemônicas.
Essas experiências insurgentes algumas vezes toma-
ram ares de mobilização trabalhista; outras, de reivindica-
ção por igualdade racial. Elas foram intensas na virada do
século XIX para o XX, mesclando-se e se potencializando mu-
tuamente; produzindo uma cultura política preciosa para a
37 Lilia Schwarz; Heloisa M. Starling. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015. p. 92.

63
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

história da resistência no Paraná e no Brasil, que conectava


as experiências passadas (vividas na escravidão) com as de-
mandas do presente (o período pós-abolição).
Todos esses aspectos sobressaem nas considerações
que, em 1891, foram feitas no jornal Operário Livre, dirigido
por Agostinho Leandro da Costa, homem negro, fundador
e presidente do Partido Operário de Curitiba (1890) e mem-
bro da Sociedade Protetora dos Operários. Dizia ele, então,
quais eram as questões envolvidas na insurgência negra – no
Paraná, mas não só aqui: “não podemos permanecer indi-
ferentes ante a luta que se desenvolve na sociedade atual,
SOCIEDADE OPERÁRIA BENEFICENTE 13 DE MAIO: MOBILIZAÇÃO NEGRA E CONTESTAÇÃO POLÍTICA NO PÓS-ABOLIÇÃO

e na qual se manifestam todos os preconceitos dos tempos


passados”38. Dito com todas as letras: a questão operária es-
tava incontornavelmente jungida à questão da escravidão
e aos preconceitos/desigualdades que ensejara. Vencê-los
era objetivo dessa luta.

38 Operário Livre, 13 de fevereiro de 1891. p. 1.

64
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ÁFRICA, TEU POVO SE LEVANTA!


INSURGÊNCIA QUILOMBOLA NO PARANÁ
Cassius Marcelus Cruz
Isabela da Cruz

Originadas a partir de experiências diversas – fugas,


herança, apossamento de terras de uso comum ou aquisi-
ção de terras por ex-escravizados e seus descendentes no
período pós-abolição –, as comunidades remanescentes de
quilombo do Paraná foram constantemente alvo de perse-
guições e ações de expropriação por parte de iniciativas
estatais e privadas, que tinham como objetivo a “seguran-
ça regional” e a expansão do capitalismo no campo. Desse
contexto resultaram conflitos e (re)ações coletivas de enfren-
tamento da opressão e da expropriação territorial, de que
trataremos neste capítulo.
Sem a pretensão de sintetizar o histórico das lutas
quilombolas, nossa intenção é lançar um olhar para algumas
situações de insurgências que deram origem a esses grupos
CASSIUS MARCELUS CRUZ E ISABELA DA CRUZ

quilombolas, tanto quanto para aquelas que redundaram


em seu processo de organização enquanto movimento so-
cial. Após a exposição dessas situações, finalizamos o texto
com a palavra quilombola, que problematiza e explicita al-
guns dos significados de sua luta.

FUGAS E INSURGÊNCIAS NAS ORIGENS DE QUILOMBOS


PARANAENSES

Em contraposição às formas mais sutis de resistência


dos africanos escravizados no Brasil, a fuga e formação de
65
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

quilombos geralmente são interpretadas como as expressões


mais nítidas de oposição à escravidão. Algumas das comuni-
dades quilombolas que se formaram no atual Estado do Pa-
raná, ao longo dos rios Ribeira de Iguape e Pardo, remetem
suas origens às fugas de escravizados das minas de Apiaí, du-
rante o século XVIII, ou das fazendas de Iporanga, no século
XIX. Um registro do governador da Capitania de São Paulo
– Martim Lopes Lobo de Saldanha –, feito em 1781, expressa
essa preocupação:
Constando-me que a ocorrência dos Negros, que in-
dispensavelmente se vão ajuntando nessa Villa [de
Apiaí], e seu termo por conta do trabalho do Morro
em que se tira ouro, faz com que muitos fujam deste, e
se refugiem pelos matos, dando uma indizível perda a
seus Senhores e que para se coibir, se carece de Capi-
tães do Mato, que possam capturar a todos os refugia-
dos, e fugidos, para prontamente serem entregues aos
ditos seus Senhores. (S. Paulo a 1 de Fevereiro de 1781.
Martim Lopes Lobo de Saldanha).1

Também as autoridades da Vila de Iporanga, nas


correspondências que expediam, explicitaram a ocorrência
de fugas, ordenando a captura dos fugidos e a destruição
dos aquilombados:
ÁFRICA, TEU POVO SE LEVANTA! INSURGÊNCIA QUILOMBOLA NO PARANÁ

Por informações dadas por alguns moradores do Rio


Pardo do Distrito desta Freguesia que, nos sertões do
mesmo Rio distante desta vinte ou vinte e cinco léguas
mais ou menos, sertões que divisam com o da Provín-
cia do Paraná, se acham aquilombados alguns escra-
vos fugidos do Norte desta Província, é de necessidade
destruí-los pois que do contrário torna-se mais perigoso
e graves prejuízos2.

Esses indícios fortalecem as narrativas dos quilombo-


las do Vale do Ribeira sobre suas origens e evidenciam o ca-
ráter coletivo da ação quilombola, que podia envolver uma
rede de relações sociais na execução da fuga e na prote-
ção do quilombo.
Ainda estão presentes na memória quilombola es-
tratégias coletivamente elaboradas, como a simulação de
1 Arquivo Público do Estado de São Paulo. Documentos interessantes para a história e
costumes de São Paulo. São Paulo, Secretaria da Educação, 1956, p. 71. A ortografia
dos documentos foi atualizada.
2 Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios Diversos – Ordem 1339, Lata 544.

66
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

morte de escravizados, situações em que os cativos que fi-


cavam responsáveis pelo enterro substituíam o corpo do su-
posto defunto por um tronco de bananeira, enquanto o es-
cravizado adentrava o sertão para “ganhar a liberdade”.3
A plausibilidade dessas narrativas é evidenciada pelas cor-
respondências de autoridades locais com o presidente da
Província de São Paulo, em meados do século XIX. Esses do-
cumentos registram o fato de os fazendeiros locais, “quan-
do lhes morre um seu escravo, ou outro qualquer, mandam
o cadáver a esta Vila para enterrar-se, somente acompa-
nhado de um escravo”.4
A rede de apoio aos fugidos formava-se também
com a participação dos moradores livres da região que, ao
recursarem-se a colaborar na repressão, contribuíam para a
proteção do quilombo. Ao referir-se a este aspecto, as autori-
dades reportavam a impossibilidade de contar com a “gente
do lugar” nas diligências de captura, pois os mesmos “avisam
aos que se pretende capturar”.5
Também na região dos Campos Gerais as insurgên-
cias escravas resultavam na formação de quilombos. Os ca-
sos mais conhecidos são narrados por membros das Comu-
nidades Remanescentes de Quilombo (CRQs) do município
de Castro, que remetem suas origens às fugas de escraviza-
dos que estiveram envolvidos na Revolta da Fazenda Capão
Alto. Tal fazenda, analisada por Joseli Mendonça no primeiro
capítulo deste livro, era dirigida por religiosos da Ordem do
Carmo, que a abandonaram ainda no século XVIII, deixando
a administração a cargo de trabalhadores escravizados. Es-
tima-se que esses trabalhadores tenham permanecido nessa
condição entre meados do século XVIII até 1865, ano em que
CASSIUS MARCELUS CRUZ E ISABELA DA CRUZ

os frades Carmelitas venderam todos os escravizados da fa-


zenda para a firma Bernardo Gavião, Ribeiro & Gavião, que
atuava no tráfico interno de escravos, intensificado pela ces-
sação do comércio atlântico decorrente da Lei Eusébio de
Queirós e da alta demanda de mão de obra nas fazendas
3 Baseado no relato do quilombola João Martins de Andrade Pereira citado em Ricardo
Cid Fernandes (coord.). Relatório Antropológico da Comunidade Remanescente de qui-
lombo João Surá. Curitiba: INCRA, 2007, p. 42.
4 Registro Civil/Costumes Ivaporanduva, Arquivo do Estado (ARQESTAD2): transcrito
pela Dra. Débora Stucchi Antopóloga da PGR, disponível no arquivo do Movimento dos
Ameaçados por Barragens MOAB/Eldorado.
5 Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ofícios Diversos – Ordem 1339, Lata 544.

67
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

cafeeiras de São Paulo6. O negócio realizado pelos “gaviões”


provocou a revolta dos escravizados. Foi grande a repercus-
são na província, e as autoridades chegaram a requisitar for-
ça policial para reprimir os revoltosos.
Lideranças quilombolas do município de Castro rela-
tam que, apesar da repressão policial, seus ancestrais have-
riam fugido estabelecendo-se em áreas que posteriormente
seriam reconhecidas como territórios quilombolas. O Grupo
de Trabalho Clóvis Moura, constituído pelo Governo do Es-
tado para realizar o levantamento das Comunidades Rema-
nescentes de Quilombo do Paraná registrou esse fato da se-
guinte forma:
Derrotados pela força militar, fugiram, os que pude-
ram, para a Serra do Socavão, divididos em dois gru-
pos: os Acróbio e os Prudente para a Serra do Apon,
ou Apan, fixando-se nos núcleos quilombolas do Faxi-
nal de São João, Paiol do Meio, Santa Quitéria, Lagoa
dos Alves e Porteira; os Mamãs foram para a região
que hoje tem esse nome, formando os núcleos do Ri-
beirão e do Imbuial.7

Tal como no caso da Fazenda Capão Alto, outros


agrupamentos negros se insurgiram contra iniciativas de ex-
propriação de seus territórios.
ÁFRICA, TEU POVO SE LEVANTA! INSURGÊNCIA QUILOMBOLA NO PARANÁ

RESISTINDO NOS TERRITÓRIOS PARANAENSES

No Paraná, durante o século XIX, escravizados, liber-


tos e seus descendentes eram considerados não morigera-
dos e, devido ao espírito de modernização que inspirava
tanto a burguesia ervateira quanto autoridades provinciais,
deveriam ser substituídas por imigrantes europeus, considera-
dos mais aptos para o trabalho.8 O projeto de colonização
europeia, enquanto estratégias de morigeração do campo
paranaense, iniciou-se no século XIX e foi intensificado no
6 Eduardo Spiller Pena. Burgas à lei e revolta escrava no tráfico interno no /brasil Meri-
dional, século XIX. In: Silvia Hunold Lara; Joseli Maria Nunes Mendonça (orgs.). Direitos
e Justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006, p.
161-198.
7 GRUPO DE TRABALHO CLÓVIS MOURA. Relatório do Grupo de Trabalho Clóvis Mou-
ra: 2005-2010. Curitiba, PR: GTCM, 2010. p.118.
8 Magnus Roberto de Mello Pereira. Fazendeiros, industriais e não-morigerados. Orde-
namento jurídico e econômico da sociedade paranaense (1829-1889). Dissertação de
Mestrado, UFPR / SCHLA / DEHIS, Curitiba, 1990, p. 132.

68
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

nascente século XX, com políticas públicas de apoio à imi-


gração. Além da destinação de terras aos colonos europeus,
tal projeto adotou medidas de normatização do padrão de
uso e ocupação fundiária, que desqualificaram outros mo-
delos agrários preexistentes, como o uso comum de rocios e
das terras de herdeiros, em que comunidades negras se esta-
beleceram desde meados do século XIX. Nessa perspectiva,
a marginalização social do campesinato negro paranaense
encontra-se diretamente associada ao processo de coloniza-
ção europeia do sul do país, como destaca Miriam Hartung:
(...) a desconsideração para com os direitos dos des-
cendentes dos escravos e libertos herdeiros encontra
suas razões e ganha sentido no projeto imigrantista, o
qual, simultaneamente, enalteceu o imigrante euro-
peu – verdadeiro “arauto da civilização” – e depreciou
o trabalhador “nacional” – índios, negros e mestiços.9

Tentativas de instalação de colônias de imigrantes


europeus em territórios ocupados por famílias negras podem
ser evidenciadas, por exemplo, nos quilombos que se forma-
ram nas terras de uso comum do rocio da Vila de Palmas
(PR). Segundo relatos da comunidade, seus ancestrais insta-
laram-se na localidade desde meados do século XIX e pres-
tavam serviços na formação de pastagem e no trato de ani-
mais de fazendeiros da região. Entre os anos de 1888 e 1892,
ex-escravizados alforriados de fazendas da região somaram-
-se à população do rocio em datas registradas em nome de
seus antigos senhores que, dessa maneira, mantinham as re-
lações de dependência com aqueles aos quais “doavam”
essas áreas, conforme é possível evidenciar a partir de relatos
CASSIUS MARCELUS CRUZ E ISABELA DA CRUZ

dos quilombolas e da análise dos livros de Registro de Data e


Foro da época. Em 1890, quando a Intendência Municipal de
Palmas propôs a instalação de uma colônia italiana no rocio,
não apenas os quilombolas mas também os fazendeiros com
os quais mantinham relação protestaram contra tal iniciativa,
alegando já possuírem a área. A tais protestos o poder local,
de acordo com o espírito da época, respondeu que
9 Miriam Furtado Hartung. Os limites da assessoria antropológica: o caso dos descen-
dentes de escravos e libertos da Invernada Paiol de Telha-PR. In: Ilka Boaventura
Leite (org.). Laudos Periciais Antropológicos em Debate. Florianópolis, NUER/ABA,
2005, p.139-140.

69
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

(...) os mesmos [que haviam interposto protestos] são


indivíduos a maior parte deles moradores de longe e
poucos daqui, e os que habitam o rocio são indolentes
nem um quintal fazem para plantar hortaliças o que
incomoda eles é a intendência ter dado uma parte do
rocio para servir uma colônia de alemães (40 famílias),
a intendência afirma cuidar dos interesses do municí-
pio, essa é a nossa resposta, Vila de Palmas, 24 de ou-
tubro de 1890.10

Apesar das intenções da Intendência, o que se veri-


fica é que seu projeto não teve sucesso, visto que nos anos
posteriores a essa manifestação, das 56 cartas de foro emi-
tidas no rocio de Palmas apenas 10 (17,95%) foram para es-
trangeiros enquanto 46 (82,15%) foram para brasileiros.11
O caso mais significativo envolvendo o projeto imi-
grantista e a expropriação de terras quilombolas é o da Co-
munidade Remanescente de Quilombo Paiol de Telha, situa-
da no município de Reserva do Iguaçu, na região central do
Paraná. A comunidade se formou em 1860, quando ocorreu
a partilha de herança de Dona Balbina Francisca de Siqueira,
que em seu testamento destinou 3.600 alqueires da Fazenda
Capão Grande, nos campos de Guarapuava, para 11 escra-
vos. Ainda no século XIX, a comunidade teve parte de suas
ÁFRICA, TEU POVO SE LEVANTA! INSURGÊNCIA QUILOMBOLA NO PARANÁ

terras expropriadas por familiares da testadora; o restante do


território foi sendo solapado por empreendimentos que arti-
culavam o fortalecimento dos projetos de colonização com
as políticas de modernização conservadora do campo entre
as décadas de 1960 e 1970.
Esse processo, que levou à perda da terra, foi acelera-
do por uma séria de medidas, postas em prática na década
de 1950, visando a criação de um núcleo e uma cooperativa
de imigrantes alemães. Essas ações consistiram, inicialmente,
na destinação, por parte de órgãos de cooperação interna-
cional, de nove milhões de francos suíços para transportar as
famílias de Suábios refugiados da Segunda Guerra Mundial
até Guarapuava e adquirir terra e equipamentos para insta-
lação da colônia em Entre Rios. O governo federal também
10 Arquivo da Prefeitura Municipal de Palmas. Livro de relatórios e correspondência da
Câmara Municipal da Vila de Palmas, 1882-94. p. 57.
11 Adilson Miranda Mendes. Origem e Composição das Fortunas na Sociedade Tradicional
Palmas 1853-1893. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Paraná, 1989, p
118.

70
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

aplicou recursos provindos de ágio do saldo de exportação


entre indústrias brasileiras e suíças, estabelecido em acordo
bilateral. A criação do núcleo foi também incentivada pela
facilitação dos trâmites dos vistos de permanência, acesso a
créditos bancários e participação do governo estadual no
pagamento das desapropriações de fazendas da região de
Entre Rio.12 A essas iniciativas, somaram-se os incentivos dos
governos militares à disseminação de novas práticas agríco-
las orientadas para a expansão do capitalismo no campo.
Além da ação repressiva do Estado, também o apoio
de autoridades à realização desse projeto foi determinante
na expropriação de terras quilombolas: de um lado, políticos
como Nei Braga – Ministro da Agricultura entre 1965-1966 –
apoiavam a cooperativa alemã eliminando entraves admi-
nistrativos para financiamentos; de outro, uma articulação
de pessoas inseridas nas redes de poder – como o delegado
titular de Guarapuava, Sr. Oscar Pacheco dos Santos – arqui-
tetava e executava a expropriação das terras quilombolas
para posterior aquisição da cooperativa.13
Além da violência policial que, de acordo com re-
latos de quilombolas foi constante nas ações de expulsão e
assinaturas forçadas de documentos, a participação de in-
divíduos ocupantes de altos escalões na hierarquia local foi
decisiva que a cooperativa adquirisse a área. Isso se eviden-
cia na mediação realizada pelo então major comandante
da 26º GAC – Grupo de Artilharia e Campanha – e pelo Bispo
de Guarapuava, conforme mencionado nos autos da Ação
de Usucapião, movida em 1986 pela Cooperativa Agrária so-
bre as terras do Paiol de Telha:
CASSIUS MARCELUS CRUZ E ISABELA DA CRUZ

12 Albert Elfes, Suábios no Paraná. Curitiba [s.n.], 1971. COOPERATIVA AGRARIA EN-
TRE RIOS LTDA. Entre Rios: documentário ilustrado da colonização suábio danubiana.
Campinas: CARTGRAF Ltda, 1976. Paulo Esteche, Mathias Leh. Um olhar para o futuro.
Florianópolis. Editora Lagoa, 2013.
13 Dionísio Vandresen. Estudo da realidade brasileira a partir dos grandes pensadores,
para entender a história da expropriação da terra dos índio, negros e posseiros da Re-
gião Centro do Paraná. Monografia de Conclusão do Curso Extensão da Realidade
Brasileira da UNOCHAPECÓ, 2004. Miriam Furtado Hartung. O sangue e o espírito dos
antepassados: escravidão, herança e expropriação no grupo negro Invernada Paiol de
Telha-PR. 2004. Miriam Hartung; Tiago Santos; Rafael Buti. Relatório Antropológico de
caracterização histórica, econômica e sociocultural. Comunidade Quilombola Invernada
Paiol de Telha. Florianópolis: UFPR/UFSC/INCRA, 2008. Rafael Buti. A-cerca do Perten-
cimento: percursos da comunidade Paiol de Telha em um contexto de reivindicação de
terras. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
da Universidade Federal de Santa Catarina, 2009.

71
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

(...) coube ao comandante do 26 GAC e ao bispo dio-


cesano, Dom Frederico Helmel, que procuraram aque-
le presidente da Autora, para sugerir-lhe a aquisição
do Imóvel Fundão, assegurando sua ocupação e ex-
ploração racional, a fim de evitar o foco de convulsão
social que já se esboçava na área, em consequência
de disputa das terras por intrusos e especuladores. 14

Nesse contexto histórico, a “ocupação e exploração


racional” das terras de populações negras e demais terras de
uso comum, justificadas com argumentos baseadas na ne-
cessidade de desenvolvimento econômico, podem ser com-
preendidas como estratégias militares de controle territorial so-
bre regiões onde podiam emergir “focos de convulsão social”.
Processo semelhante ocorreu no Vale do Ribeira na
década de 1970, onde a execução de programas de governo
– como o Programa Integrado de Desenvolvimento do Litoral e
Alto Ribeira (PRODELAR) – associava-se às estratégias de refor-
ço da presença do Estado, em vista da organização de guerri-
lhas, como a comandada por Carlos Lamarca na região.15
Dessa forma, a execução dos projetos de coloniza-
ção promovidos por órgãos do Estado – como o Projeto In-
tegrado de Colonização (PIC) Marquês de Abrantes, execu-
tado pelo INCRA entre os anos de 1973 e 1980 – incidiram
ÁFRICA, TEU POVO SE LEVANTA! INSURGÊNCIA QUILOMBOLA NO PARANÁ

violentamente sobre as formas de apossamento familiar e


uso comum de territórios quilombolas como os de João Surá
e São João (município de Adrianópolis) e facilitaram a en-
trada de empreendimentos externos no território quilombola,
entre as décadas de 1970 e 1980.16
As comunidades não assistiram passivamente aos pro-
cessos acima mencionados e é seu processo de organização
a partir destes contextos que possibilitou a formação do mo-
vimento social quilombola no Paraná no início do século XXI.

ÁFRICA, TEU POVO SE LEVANTA!

A frase que nomina essa seção foi o grito de ordem


que os quilombolas da Comunidade Remanescente de Qui-

14 Autos do Processo no 136/86 fls. 836, citado por Rafael Buti. Idem, p. 65.
15 Cassius Marcelus Cruz, Antônio Carlos de Andrade Pereira e Rosilene Komarcheski.
“Que desenvolvimento é esse? Conflitos Territoriais e Racismo no Quilombo João Surá
- PR” no prelo da Secretaria de Estado da Justiça do Paraná.
16 Idem.

72
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

lombo Paiol de Telha utilizaram em seu movimento de resis-


tência. Com ela, estabeleciam uma relação direta entre a
luta pela retomada de seu território e sua ancestralidade.
A história de luta das comunidades quilombolas no
Paraná começou a ter visibilidade a partir do Movimento de
Apoio a Comunidade Negra da Invernada Paiol de Telha,
criado na década de 1990. Esse movimento, que deman-
dava a restituição do território da referida comunidade, de-
marca a articulação de um campo pró-quilombo, composto
por diversas entidades17 que tornaram pública a situação
de desrespeito à qual as comunidades negras paranaenses
eram submetidas. Contando com um jornal, um vídeo e uma
campanha de arrecadação de donativos, amplamente di-
vulgados por meio das organizações envolvidas, o referido
movimento instaurou um processo de reconhecimento das
comunidades quilombolas no Paraná, compreendido como:
(...) o movimento de passagem do desconhecimento
à constatação pública de uma situação de desres-
peito que atinge uma determinada coletividade, do
que decorre a admissão de tal coletividade como su-
jeito (político e de direito) na esfera pública e de tal
reconhecimento como algo que deve ser sanado e
reparado.18

Em período aproximado ao surgimento do Movimen-


to de Apoio à Comunidade Negra da Invernada Paiol de
Telha ocorreu também o processo de reconhecimento de
comunidades do Vale do Ribeira, cujos territórios estavam
e continuam sendo ameaçados por projetos de desenvolvi-
mento e de construção de barragens na região. Destaca-se,
nesse contexto, a criação do Movimento dos Ameaçados
CASSIUS MARCELUS CRUZ E ISABELA DA CRUZ

pelas Barragens, articulado pela Comissão Pastoral da Terra


de Eldorado, que deu visibilidade às comunidades remanes-

17 Entre elas, a Comissão Pastoral da Terra, APP-Sindicato dos Trabalhadores em Edu-


cação do Paraná, Associação Cultural de Negritudes e Ação Popular – (ACNAP), Sin-
dicato dos Bancários de Curitiba, SISMUC, Instituto Afro-Brasileiro, Setorial de Negros
e Negras do PT, Coletivo de Mulheres Negras. Em Guarapuava: Pastorais da Terra, da
criança, Operária, do Menor, Paróquia do Pinhão, Diretório Municipal do PT, Associação
de Famílias de Trabalhadores Rurais de Pinhão-FETRUP, Sindicato dos Empregados
em Empresas de Serviços Públicos e Professores Municipais de Guarapuava e Núcleo
Sindical da APP Sindicato. Jornal do Movimento de Apoio à Comunidade Negra da In-
vernada “Paiol de Telha”, n. 1, jul./ago. 1997.
18 José Maurício Arruti. Mocambo: antropologia e história do processo de formação qui-
lombola. Bauru, SP: Edusc, 2006, p. 45.

73
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

centes de quilombo que se colocavam em contraposição


aos projetos de construção de barragens.
Essa reação das comunidades do Vale do Ribeira
teve início na sua porção paulista, ultrapassando posterior-
mente a fronteira com o Paraná. Sob as palavras de ordem
“Terra sim, barragens não!” e “Pela regularização fundiária do
vale!”, a mobilização de quilombolas e agentes das pastorais
da região, que deu origem ao Movimento dos Ameaçados
por Barragens (MOAB), passou a adotar como uma de suas
estratégias a demanda de reconhecimento e titulação das
terras de comunidades quilombolas, criando para esse fim a
Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras
do Vale do Ribeira (EAACONE).
Tanto no caso do Paiol de Telha quanto no das comu-
nidades do Vale do Ribeira, as mobilizações se fortaleceram
e tiveram como base legal o art. 68 do Ato das Disposições
Transitórias da Constituição de 1988, que define que: “Aos re-
manescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definiti-
va, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.19
Apesar de as distintas dinâmicas de mobilização na
região central do Paraná e no Vale do Ribeira terem iniciado
na década de 1990, sua articulação em âmbito estadual só
ÁFRICA, TEU POVO SE LEVANTA! INSURGÊNCIA QUILOMBOLA NO PARANÁ

ocorreu após o Governo do Estado do Paraná ter realizado,


por meio do Grupo de Trabalho Clóvis Moura (GTCM), um
levantamento de Comunidades Quilombolas e Negras Tradi-
cionais, a partir do ano de 2005. Além de dar visibilidade às 36
comunidades que se reconheceram como Remanescentes
de Quilombo, o GTCM contribuiu para a sua articulação po-
lítica, na medida em que viabilizava a participação de suas
lideranças em eventos promovidos por órgãos do Estado.
Em 2006, durante reuniões realizadas nos intervalos
de um desses eventos – o Seminário de Saúde e Saneamen-
to da População Quilombola, promovido pela Fundação
Nacional de Saúde (FUNASA) e pelo GTCM –, as lideranças
quilombolas formaram a primeira articulação como a finali-
dade de criar uma Federação Estadual Quilombola. Essas re-
uniões contaram com a participação de representantes da
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades
19 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 69 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias

74
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e da organização não


governamental Terra de Direitos, que mediaram os debates e
estabeleceram coletivamente as estratégias para institucio-
nalização do movimento. O primeiro passo foi fortalecer o
processo de organização local dos quilombos em associa-
ções comunitárias. Em 2009, após inúmeras reuniões de for-
mação política, as comunidades quilombolas paranaenses
elegeram a direção da Federação das Comunidades Qui-
lombolas do Paraná (FECOQUI) em atividade realizada no
Centro de Formação Continuada Faxinal do Céu, município
de Pinhão.
Durante os três anos transcorridos entre o evento
de 2006 e a criação da FECOQUI, ocorreram articulações e
ações regionalizadas entre comunidades quilombolas e ou-
tros povos e comunidades tradicionais. Na região Centro Sul,
contando com a mediação do Centro Missionário de Apoio
ao Campesinato Antônio Tavares Pereira (CEMPO), os qui-
lombolas intensificaram a aproximação com outros grupos
étnicos – faxinalenses, xetas, guaranis, kainganges, etc – com
as quais constituíram em 2008 a Rede Puxirão de Povos e
Comunidades Tradicionais. Dentre as mobilizações e ações
realizadas nesse período, destaca-se o desenvolvimento do
Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades
Tradicionais, com a produção de fascículos nas Comunida-
des Quilombolas Invernada Paiol (Reserva do Iguaçu) e do
Rocio (CRQs Adelaide Maria Trindade Batista, Castorina Ma-
ria da Conceição e Tobias Ferreira, no município de Palmas).
Explicitando cartograficamente os conflitos e as dinâmicas
territoriais dos grupos, os fascículos lançados nas câmaras
municipais locais foram um importante instrumento para dar
CASSIUS MARCELUS CRUZ E ISABELA DA CRUZ

visibilidade ao movimento e aos conflitos e para o estabele-


cimento do diálogo com o poder público.
Tal iniciativa foi realizada também na Comunidade
Quilombola de João Surá no município de Adrianópolis, Vale
do Ribeira. Nessa região, por sua vez, foi criado, entre os anos
de 2009 e 2010, o Comitê das Associações Quilombolas do
Vale do Ribeira (COAQUIVALE), cujo objetivo era dar visibili-
dade e autonomia às associações com a execução de pro-
jetos para geração de renda e acesso a políticas públicas.
Apesar de, até o momento, apenas um território qui-
lombola (Invernada Paiol de Telha) ter sido titulado e outros
75
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

dois (Água Morna e João Surá) terem sido reconhecidos, a


organização estadual das comunidades quilombolas possi-
bilitou o acesso a políticas públicas até então inacessíveis a
esses grupos, dentre as quais podemos destacar: as habita-
cionais (como a construções de habitações com recursos do
programa federal Minha Casa Minha Vida), as educacionais
(como a criação de escolas em duas comunidades), as de
assistência técnica e extensão rural (com projetos de aten-
dimento diferenciado de acordo com as necessidades lo-
cais), entre outras. Ainda que não efetivada em todas as 36
comunidades, a garantia do acesso a programas e ações
desenvolvidas pelo poder público só foi possível por meio de
mobilizações e ações conjuntas com outros movimentos20 e
organizações21 sociais, e da participação dos quilombolas
em instâncias de definição de políticas públicas como Con-
selho Estadual de Desenvolvimento Rural e Agricultura Fami-
liar (CEDRAF/PR), Conselho Estadual de Povos Indígenas e
Comunidades Tradicionais do Estado do Paraná (CPICT/PR),
Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-Racial
do Paraná (FPEDER-PR), etc.

(RE)SIGNIFICADOS DE INSURGÊNCIA QUILOMBOLA


ÁFRICA, TEU POVO SE LEVANTA! INSURGÊNCIA QUILOMBOLA NO PARANÁ

Até aqui, adotamos uma narrativa descritiva sobre as


experiências de insurgência e organização política quilom-
bola. A partir de agora, assumiremos a perspectiva de quem
vivencia e acompanha de forma direta a história narrada,
escrevendo em primeira pessoa, uma enquanto quilombola
e outro enquanto residente em um desses territórios.
Tidas como locais de resistência viva da população
negra no Brasil, as comunidades quilombolas são até hoje
símbolos de heróis e heroínas nacionais, frutos de uma história
ainda mal contada nos livros didáticos da Educação Básica.
Engana-se quem pensa que a história dos quilombos e qui-
20 Como, por exemplo, o Movimento Social Negro, o Movimento dos Ameaçados por Bar-
ragem (MOAB), os Movimentos dos Atingidos por Barragem (MAB), o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre outros.
21 Como a Articulação Puxirão de Povos Faxinalenses, a Associação Cultural de Negritude
e Ação Popular (ACNAP), a APP Sindicato dos Trabalhadores em Educação, o Centro
Cultural Humaitá, a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (EAA-
CONE), o Instituto de Pesquisa da Afrodescendência (IPAD), o Instituto Cultural e de
Pesquisas Ilu Aye Odara, o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial
(MNU), e a Terra de Direitos Organização de Direitos Humanos, entre outros.

76
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

lombolas está presa ao passado do nosso país. As comuni-


dades quilombolas são espaços repletos de vida, onde se re-
constrói e se (re)significam todos os dias a esperança e a luta.
Mas, como falar em esperança, enquanto enfren-
tamos o descaso e a demora na titulação (regularização
definitiva e entrega do título da terra) dos territórios quilom-
bolas? Como acreditar novamente na política nacional
após sermos, todas e todos, vítimas de um golpe “democra-
ticamente” legal? Onde depositar as últimas “moedas” de
esperança?
Ser insurgente em um país que prega “Ordem e Pro-
gresso”, mas não garante os direitos fundamentais à saúde,
à educação, ao “ir e vir” ou, ainda, à memória e à identida-
de, é travar uma luta diária pela sobrevivência. Não se vive
apenas. Ser insurgente nessas condições é resistir ao próprio
esquecimento.
Que a população africana escravizada no Brasil vem
sofrendo inúmeras violências desde que aqui chegou, todos
sabem. Para quem não aprendeu na escola, as novelas de
época, pouco contextualizadas de forma proposital, se en-
carregam de enfiar na cabeça do telespectador.
Em geral é o mesmo “olhar”: as mesmas roupas de te-
cido sem cor, aquele algodão cru, sujo, esfolado pelo tempo
e pelo trabalho pesado. “Trabalho é coisa de preto!”. Traba-
lhar é coisa de Negro e de Negra, sempre foi. De gente que
luta para garantir sua sobrevivência. De gente que inventa,
cria e transforma o mundo à sua volta. De um povo que tem
orgulho de ser quem construiu esse país e tem orgulho das
mãos calejadas pelo tempo. Mas isso também não nos con-
tam na escola. O pouco que nos falam os livros é a respeito
CASSIUS MARCELUS CRUZ E ISABELA DA CRUZ

de violência.
Somos uma população que estuda a violência e, o
que é pior, naturalizamos a violência contra os “índios” e os
“escravos” como se não fossemos nós essa mesma popula-
ção. Ainda bem que Makota Valdina nos presenteou com a
lúcida frase que nega o “olhar” do escravizador e afirma, en-
quanto herdeira dessa história de sobrevivência, que: “Não
sou descendente de escravos. Sou descendente de homens
e mulheres que foram escravizados”. É esse o “olhar” que
precisamos ter para nós mesmos. Para nossa própria História!
E ao falar de heróis da “Terra” é impossível não referenciar
77
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

“os mais velhos e as mais velhas” e sua imensa e incansável


luta pelo reconhecimento da população quilombola no Pa-
raná, um estado que nitidamente nega a contribuição da
população negra para a sua história.
As comunidades quilombolas do Paraná datam de
mais de 200 anos, o que nos permite afirmar que estes grupos
resistem e se adaptam a diferentes sistemas políticos, eco-
nômicos e governamentais. As comunidades quilombolas,
por serem produtoras de seu próprio sustento e contribuírem
nas relações de trocas locais, sobreviveram e sobrevivem até
hoje com a sabedoria popular e tradicional: a de seguir o
fluxo e o tempo da vida que as cerca.
Sofremos inúmeros golpes ao longo dos processos de
legitimação dos nossos territórios. Sobrevivemos a catástrofes
naturais, sobrevivemos a doenças do corpo devido às condi-
ções de vida às quais fomos submetidos e que nos assolam,
sobrevivemos à perda de entes queridos. E afirmamos: as co-
munidades quilombolas sobreviverão às manobras políticas
acordadas entre os poderes.
A população negra e quilombola derrubou um sis-
tema escravocrata, passou, não sem perdas, pela ditadura,
enfrentou golpes vindos da “direita”, mas também duros gol-
pes vindos da própria “esquerda”.
ÁFRICA, TEU POVO SE LEVANTA! INSURGÊNCIA QUILOMBOLA NO PARANÁ

Ser quilombola é resistir ao tempo. É dançar no es-


paço íngreme. É se lançar de olhos fechados no mato com
a certeza de que achará o caminho pelo cheiro. Pelo faro. E
no mato, quando se está à noite, luz de fora só atrapalha. No
mato, à noite, quanto mais escuro melhor. Sobreviver para
contar a história, essa é a grande vitória! Porque sabemos
que precisamos lutar todos os dias, para manter as nossas
memórias vivas, em nós e nos próximos que virão.

78
PARTE II
DISPUTAS NO TERRITÓRIO
E LUTA PELA TERRA
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ESTRATÉGIAS INDÍGENAS
NAS REGIÕES MERIDIONAIS DA
CAPITANIA DE SÃO PAULO
Tatiana Takatuzi

Este artigo traz a narrativa de um dos primeiros conta-


tos de colonizadores portugueses com grupos indígenas que
residiam no território que veio a se tornar o atual estado do
Paraná. Trata-se de um encontro ocorrido no final do século
XVIII, documentado por Afonso Botelho de Sampaio e Souza,
um militar que, na tentativa de explorar uma região de domí-
nio indígena, foi surpreendido pela reação desses índios.
A região aqui enfocada, denominada Campos de
Guarapuava, fazia parte da administração do governo da
Capitania de São Paulo, e foi alvo de sucessivas bandeiras
militares empreendidas pela Coroa Portuguesa. A denomina-
ção “Guarapuava”, de origem Guarani, foi atribuída pelos
bandeirantes no processo de expansão territorial da Coroa
Portuguesa. Os Kaingang, tradicionais habitantes daquela re-
gião, contudo, chamavam aqueles campos de Coranbang-
-rê e, juntamente com os Xokleng (pertencentes ao grupo Jê,
também denominados de Botocudos), ocupavam o território
à época dessas bandeiras.
Esses grupos viram seus territórios ser paulatinamen-
TATIANA TAKATUZI

te ocupados por homens de São Paulo e da Vila de Para-


naguá, que iniciaram a fundação de fazendas de criar e
a construção de estradas. Buscaram frear a ocupação por
meio de ataques aos fazendeiros, viajantes e tropeiros, con-
81
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

seguindo que algumas das estradas fossem abandonadas.


Passaram então, a ser considerados obstáculos à expansão
das fazendas por ocuparem terras que propiciariam investi-
mentos lucrativos, bem como pelo fato de atacarem tropas
ou abaterem gado para se alimentar. Assim, em função das
queixas dos colonos frente à hostilidade da população indí-
gena, para que pudessem realizar a ocupação dos Campos
de Guarapuava, o governo colonial deveria promover a reti-
rada dos índios que habitavam aquelas áreas.

EXPEDIÇÕES MILITARES AOS CAMPOS DE GUARAPUAVA

Por ordem do governo da Capitania de São Paulo,


D. Luiz Antonio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Ma-
teus, foram enviadas sucessivas expedições militares, com a
finalidade de explorar a região em busca de ouro e metais
preciosos, delimitar as fronteiras dos colonizadores espanhóis
a oeste, bem como expulsar os povos indígenas que eram
vistos como uma ameaça ao movimento tropeiro. A mais
célebre dentre essas expedições ocorreu em 1771 e teve o
ESTRATÉGIAS INDÍGENAS NAS REGIÕES MERIDIONAIS DA CAPITANIA DE SÃO PAULO

comando do tenente-coronel Afonso Botelho de Sampaio e


Souza. Esse militar documentou o primeiro encontro que teve
com os indígenas, a topografia dos Campos de Guarapua-
va, em relação aos quais se deveria investigar a possibilidade
de exploração de minas de ouro. Pretendia-se, também, in-
ventariar povos e recursos naturais, registrando a localização
precisa dos aldeamentos e caminhos indígenas.
As expedições carregavam um forte simbolismo, que
sinalizava a efetivação do domínio territorial pelas Coroas
Ibéricas e nas fronteiras entre Portugal e Espanha, por meio
de marcas em lajes de pedra, escultura de cruz e outros ca-
racteres que diziam Viva El-Rei de Portugal1. Cruzes eram fi-
xadas pelos sertanistas para indicar caminhos, presença de
ouro, ou simplesmente alguma morte2. A nominação de rios,
locais de pouso e de povoamento representou o início do
apagamento da presença histórica dos Kaingang no seu
1 Afonso Botelho de Sampaio e Sousa. Notícia da Conquista e Descobrimento dos Ser-
tões do Tibagi, na Capitania de São Paulo, no governo do Governador e Capitão-Gene-
ral Dom Luis Antonio de Souza Botelho Mourão, conforme as Ordens de Sua Majestade
[1772]. In: Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 76, 1962, p. 81.
2 Maria da Glória Porto Kok. O Sertão Itinerante: Expedições da Capitania de São Paulo
no século XVIII. São Paulo: Editora Hucitec/FAPESP, 2004, p. 36.

82
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

território, configurando uma nova etapa na história desses


grupos3.
Essas representações portuguesas eram práticas exi-
gidas pela Coroa às bandeiras militares, tanto que após o
primeiro encontro das tropas de Botelho com os índios, uma
cruz de madeira foi erguida no local a que se denominou
Santa Cruz, para “memória de que ali tinha chegado, sendo
o primeiro lugar onde Deus principiou a abrir as portas da sua
Divina Misericórdia a este gentilismo”4. Esse gesto simbólico
representava aos colonizadores uma forma de resguardar a
memória da conquista e o discurso religioso reiterava o pre-
domínio da Coroa.
A preocupação em travar uma comunicação amis-
tosa com os indígenas estava presente no discurso do tenen-
te-coronel Afonso Botelho que dizia: “se toparem o Índios,
serão tratados como maior agrado, e afabilidade animan-
do-os, e convidando-os com algumas dádivas, para os ca-
pacitar a serem nossos amigos”5. Caso fossem considerados
“bárbaros”, as ordens eram para não atacá-los:
Ainda que os índios, como bárbaros, lancem alguma
surriada de flechas, deve o capitão ter instruído a sua
gente, não atirem, nem façam mal, antes lhes batam
as palmas, e procurem fazer aqueles sinais, que fôr pos-
sível, para mostrar-lhes quererem paz, e dos mimos que
vão, o capitão mandará pôr alguns em parte, onde
eles os vejam; e logo fará retirar a gente, para que eles
sem susto os possam vir buscá-los, e se vir que os acei-
tam, certo é querem paz.6

Por trás do discurso de brandura escondia-se o pro-


pósito de subjugar os indígenas, pois pretendia-se ao final
do reconhecimento da região e de seus habitantes, obter
garantia de fidelidade e vassalagem à Coroa Portuguesa,
fazendo dos índios súditos de Portugal e “guardiões das fron-
teiras” das terras meridionais do Brasil7. Com efeito, o cenário
3 Kimiye Tommasino. A História dos Kaingang da Bacia do Tibagi: uma sociedade Jê
Meridional em movimento. Tese de Doutorado. USP, 1995, p. 79.
4 Afonso Botelho de Sampaio e Sousa. Obra citada, p. 36.
TATIANA TAKATUZI

5 Idem, p. 79.
6 Afonso Botelho de Sampaio e Sousa. Obra citada, p. 79.
7 Marta Rosa Amoroso. Guerra e Mercadorias: os Kaingang nas cenas da “Conquista
de Guarapuava”. Publicado em: Ana Maria de Moraes Belluzzo; Marta Rosa Amoroso;
Nicolau Sevcenko; Valeria Piccoli (orgs.). Do Contato ao Confronto. A Conquista de Gua-
rapuava no século XVIII. 631 ed. São Paulo: Expomus, 2003, p. 36.

83
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

da conquista sobre os povos indígenas fundamentava-se na


ideologia de uma prestação de serviço a Deus, ao rei e aos
próprios índios, pois acreditava que “para inculcar a fé, era
preciso primeiro dar ao gentio lei e rei”8.

A NARRATIVA DE AFONSO BOTELHO

Quando Afonso Botelho chegou aos Campos de


Guarapuava em dezembro de 1771, dizia ter como objetivo
estabelecer “tratos de amizade” e reduzir os índios “ao grêmio
da Igreja”9. No longo relato que fez descreveu uma relação
pacífica nos contatos iniciais com os indígenas, marcada pela
reciprocidade e pela troca de presentes. Iniciou o contato por
meio da doação de objetos como miçangas, fitas, espelhos
e quinquilharias, que foram recebidas e da mesma forma re-
tribuídas. Os índios davam seus armamentos como arcos, fle-
chas e bordunas, mas também procuravam receber na mes-
ma proporção as armas de fogo do português. Os soldados,
porém, deram somente machados e facas, sem disponibilizar
suas armas, possivelmente temendo uma reação por parte
ESTRATÉGIAS INDÍGENAS NAS REGIÕES MERIDIONAIS DA CAPITANIA DE SÃO PAULO

dos indígenas. Do mesmo modo, estes pareciam estar cientes


da presença dos soldados, fossem inimigos ou não, e do peri-
go que o seu aparato militar representava. Numa ocasião, os
indígenas convidaram Afonso Botelho para visitar uma de suas
aldeias e, receosos de alguma traição e ofensiva portuguesa,
levaram suas mulheres e crianças para outro local, deixando
somente os que podiam usar de armas.
Posteriormente, como registrou no mesmo relato, os
indígenas retribuíram a visita de Botelho, levando suas mu-
lheres e filhos ao local do acampamento das tropas portu-
guesas, denominada porto do Pinhão. Não sem que antes
houvesse alguma expectativa e tensão.
Na primeira abordagem, em dezembro de 1771, Bo-
telho, conhecido entre os indígenas como o chefe dos mi-
litares, foi procurado por aproximadamente 70 índios que
permaneceram no acampamento por cerca de três horas.
Depois desse tempo, saíram, deixando arcos e flechas aos
8 Eduardo Viveiros de Castro. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma sel-
vagem. In: Eduardo Viveiros de Castro. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo:
Cosac & Naify, 2002, p. 190.
9 Afonso Botelho de Sampaio e Sousa, obra citada, p. 21.

84
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

soldados, prometendo voltar para trazer suas mulheres. Após


essa visita, os indígenas ficaram algum tempo sem retornar
ao acampamento português, mas mantinham-se à espreita
nas proximidades do mesmo. No final do mês de dezembro,
soldados encontraram um grupo de oito índios e, por meio
da troca de roupas e objetos, os convidaram para ir ao porto
do Pinhão com suas famílias. O retorno dos índios ocorreu so-
mente no dia 8 de janeiro de 1772 e o número de indígenas
– cerca de 150 entre homens, mulheres e crianças – causou
espanto às tropas. Eles chegaram sem armas, tocando suas
gaitas de taquara, e portavam-se de forma muito amistosa
com os soldados. As mulheres foram vestidas com saias, ca-
misas, contas, miçangas, brincos e espelhos; os homens re-
ceberam chitas – tecidos estampados que vinham da Índia.
Os índios traziam milhos e bolos de milho que ofereciam aos
soldados, que não foram aceitos, pois os acharam “tão as-
querosos, que só o desejo de os agradar tirava o horror de os
aceitar, sendo dificultoso o achar meios de disfarçar comê-
-los, no que instavam fortemente”10. Os indígenas entravam
pelos ranchos, tomando machados, foices e buscando prin-
cipalmente as baionetas, armas apreciadas por eles. Apesar
do clima amistoso, o número de índios superior ao de solda-
dos provocou a cautela de Botelho, que deu ordem aos seus
oficiais que cada qual mantivesse a sua peça de artilharia
“pronta para dar fogo”11, sem levantar a suspeita de que a
tropa desconfiava deles.
A cautela dos soldados pondo em sentinelas as armas
foi percebida pelos indígenas, que procuravam tirá-los da
guarda: “Estando com esta familiaridade, todo o seu ponto
era introduzirem-se nos nossos corpos da guarda, o que não
puderam conseguir”12. Botelho relata que os índios, não con-
seguindo romper com as sentinelas em guarda, procuraram
atrair os soldados para fora do porto. Alguns caíram na impru-
dente resolução de ceder aos apelos dos índios e, sem pedir
autorização de Botelho, seguiram a pé e desarmados cerca de
oito soldados, com apenas um capitão a cavalo. Segundo re-
gistrou Botelho, os soldados foram persuadidos por “carinhos”,
TATIANA TAKATUZI

possivelmente das mulheres, e por essa razão acompanharam


10 Afonso Botelho de Sampaio e Sousa, obra citada, p. 43.
11 Idem.
12 Idem.

85
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

os índios. Contudo, cerca de meia légua de distância, em um


monte quase em frente ao abarracamento, os soldados que
acompanharam os indígenas sofreram ataque mortal:
O capitão Carneiro, que ia a cavalo, tinha-se apeado
a beber água com eles, e montando outra vez, con-
tinuava para onde eles o guiavam, acompanhado-o
sempre um grande número de índios, mas como ficava
mais alto pôde ver um dos camaradas morto no chão,
e conhecendo a traição dissimulou, e tanto que pode
ganhar alguma distância, deu de esporas ao cavalo,
e a toda a carreira ganhou um passo pela banda de
baixo onde bebeu água, estando todo o alto coberto
de índios, e correndo venceu o escapar-lhes com a fe-
licidade de lhe não acertarem as infinitas flechas com
que lhe atiraram13.

Vendo a fuga do capitão, os índios rapidamente fize-


ram sinais aos que tinham ficado no porto do Pinhão como
um aviso de que saíssem do abarracamento: “estes subita-
mente com arrebatada carreira, e gritando fugiram para o
porto do vau, e passando-se uniram àquele corpo, e ainda
o fugir fizeram com tal indústria, que com acenos fingiram ir
ESTRATÉGIAS INDÍGENAS NAS REGIÕES MERIDIONAIS DA CAPITANIA DE SÃO PAULO

buscar que comer”14.


A saída apressada dos indígenas deixou Botelho e
os soldados confusos, mais ainda quando um dos capitães
chegou aflito e gritando que tinha sofrido uma emboscada
dos índios. Informado do ocorrido, o tenente-coronel ficou
atormentado pela traição que sofrera, pois “se faziam tão
domésticos, e familiares, e com tanta maldade, que se ob-
servou depois serem envenenados uns bolos, que traziam, e
deram a alguns camaradas, porque um cão, que comeu de-
les, logo morreu, e dois mais, que duraram até o outro dia”15.
Depois de enterrados os sete soldados mortos na to-
caia, Botelho considerou prudente avisar um seu tenente de
nome Cascaes e seus soldados, que estavam em outro local
nas proximidades, do perigo que corriam em estar dispersos
do corpo da expedição. Com as tropas unidas, o tenente-
-coronel decidiu levantar acampamento e bater em retira-
da. Assim, em 11 de janeiro de 1772, Botelho e a sua tropa
13 Idem, p. 44.
14 Idem, p. 44-45.
15 Idem, p. 45.

86
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

partiram dos Campos de Guarapuava, em face da possibi-


lidade de nova agressão dos índios, e dos poucos recursos
que a expedição já usufruía:
Vendo o tenente-coronel o perigo em que estava de
arriscar toda a expedição se tivesse mais demora nos
campos, por não já mais do que uma pouca farinha,
que apenas chegaria para três dias [...] da pouca
caça sem esperanças, pelo evidente perigo de pere-
cerem os caçadores nas mãos do gentio; a gente da
expedição pouca, doente, e debilitada do trabalho,
os cavalos estafados do laborioso caminho, e de ex-
plorar a campanha [...] a necessidade de forças para
rebater a fúria de tão grande multidão de gentio, que
mais crescerá em se juntando os da aldeia, que exis-
tem ao norte; a impossibilidade de haver socorro de
povoado em breve tempo; o perigo de nos tomarem
os caminhos em ciladas, e por uniforme acordo de to-
dos determinou retirar toda a expedição a salvar as
vidas, e o trem de Sua Majestade, que tudo pereceria
sem remédio em pouco dias...16.

Botelho ainda enviou, ao final de novembro de 1773,


outra expedição para os Campos de Guarapuava, com a
finalidade explícita de revidar as agressões indígenas “para
que o gentio, que ficava animoso, e ufano por ter morto os
sete camaradas, não tomasse a resolução de vir em seu se-
guimento, e sair aos Campos Gerais continuar os bárbaros
insultos a que tinham dado princípio”17. Contudo, essa expe-
dição não durou mais de 40 dias, sendo também repelida
pelas ofensivas indígenas. Após mais um fracasso, as aten-
ções de Afonso Botelho e Morgado de Mateus se voltaram à
fronteiriça Praça de Nossa Senhora dos Prazeres do Iguatemi,
que vinha sendo ameaçada com os ataques dos espanhóis.
Os Campos de Guarapuava só voltaram a ser alvo de aten-
ção no início do século XIX, com a vinda da família real por-
tuguesa ao Brasil em 1808.

A EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO: RESISTÊNCIAS E


ESTRATÉGIAS INDÍGENAS
TATIANA TAKATUZI

O relato de Afonso Botelho evidencia aspectos in-


teressantes do encontro. Se inicialmente o tenente-coronel
16 Idem, p. 46-47.
17 Idem, p. 48.

87
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

considerava os indígenas dos Campos de Guarapuava po-


tenciais colaboradores da Coroa Portuguesa, após o trágico
incidente que vitimou sete soldados portugueses, eles pas-
saram a ser considerados bárbaros e selvagens, “indômitas
feras”, desumanos e cruéis, constituindo um obstáculo ao
processo de expansão das posses coloniais.
Podemos dizer que a visão que se tinha dos indíge-
nas e o destino que a eles foi imposto foram muitas vezes
definidos pelos interesses e necessidades de uma sociedade
local, voltada principalmente para a expulsão desses sujeitos
de seu território, visando ocupá-lo. Muitos se utilizaram do dis-
curso de que o índio era selvagem, bárbaro e arredio para
provocar o seu extermínio e a exploração do seu território.
Outros se utilizaram do discurso de docilidade e bondade, vi-
sando a civilização e a integração do indígena. Por trás des-
sas duas ideias, contudo, eles eram vistos como empecilhos
ao processo de colonização e, por isso, deveriam ser destruí-
dos ou absorvidos pela sociedade colonial.
O predomínio dessas duas visões na historiografia bra-
sileira foi bastante significativo e influenciou a maneira como
ESTRATÉGIAS INDÍGENAS NAS REGIÕES MERIDIONAIS DA CAPITANIA DE SÃO PAULO

vemos os povos indígenas até hoje, negando a eles seus di-


reitos e descaracterizando-os. O papel delegado aos índios
foi o de mero espectador da história, premissa que adveio
da noção de que os povos indígenas não possuíam história e
teriam entrado nela com a chegada dos europeus. Manuela
Carneiro da Cunha nesse sentido reflete:
São os ‘descobridores’ que inauguram e conferem aos
gentios uma entrada – de serviço – no grande curso
da história. [...] Hoje, por lhes desconhecermos a histó-
ria, por ouvirmos falar, sem entender-lhe o sentido ou
alcance (...) e porque nos agrada a ilusão de socieda-
des virgens, somos tentados a pensar que as socieda-
des indígenas de agora são imagem do que foi o Brasil
pré-cabralino (...), sua história se reduz estritamente à
sua etnografia.18.

Buscando atribuir ao índio um caráter de agente de


seu destino e sua história, trabalhos sobre o contato colonial
tenderam muitas vezes a enfatizar os conflitos como principal
18 Manuela Carneiro da Cunha. Introdução a uma História Indígena. In: Manuela Carneiro
da Cunha (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Secre-
taria Municipal de Cultura, 1992, p. 9-11.

88
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

estratégia por parte da sociedade indígena. Com efeito, os


episódios protagonizados pelos indígenas que atacaram as
tropas de Afonso Botelho demonstram uma forma de resistên-
cia desses índios. De fato, atacando as tropas portuguesas
instaladas nos Campos de Guarapuava, os indígenas agiam
como sujeitos, oferecendo obstáculos à ação colonizadora.
Eles, entretanto, fizeram mais do que isso. Ao ataca-
rem as tropas, eles não apenas reagiam a estímulos externos
(a instalação das tropas no seu território), mas fizeram isso se-
gundo estratégias que lhes eram próprias, que acionavam e
reconstituíam em razão do novo contexto que vivenciavam.
Alguns pesquisadores têm chamado atenção para a
necessidade de, nos estudos sobre as situações de contato
e conflito, considerar as ações dos indígenas a partir de seus
próprios pressupostos e das modificações que o contato e o
conflito ensejam. Um desses estudiosos é John Manuel Mon-
teiro, para quem um dos maiores problemas da história dos
índios:

...é a perspectiva que pressupõe um caminho de via


única para as populações que sofreram as consequên-
cias do contato: a história deste ou daquele povo, em
termos tanto demográficos como culturais, se resume
à crônica de sua extinção, quando, na verdade, a
construção ou recriação das identidades nativas e da
solidariedade social muitas veze se dá precisamente
em função das mudanças provocadas pelo contato19.

Este mesmo autor repensou a noção de resistência


dos índios e sugeriu novas interpretações para o termo, pro-
pondo uma reinterpretação dos processos históricos envol-
vendo populações indígenas e uma avaliação das ações
que os diversos atores criaram perante o contato (se inse-
rindo – ou não – nas estruturas que passaram a existir). Sua
análise procura romper com abordagens que consideravam
a resistência como uma “reação anônima, coletiva e estru-
turalmente limitada”20 e enfatiza que muitas sociedades tive-
ram que adotar novas formas de resistência a partir do en-
TATIANA TAKATUZI

contro com o colonizador.


19 John Manuel Monteiro. Armas e Armadilhas. In: Adauto Novaes (org.). A Outra Margem
do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 241.
20 John Manuel Monteiro. Armas e Armadilhas, p. 243.

89
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Não há como negar que o processo de colonização


atingiu demográfica, espacial e politicamente as popula-
ções indígenas, mas devemos considerar que estas, a partir
do contato, desenvolveram “estratégias próprias que visa-
vam não apenas a mera sobrevivência, mas também a per-
manente recriação de sua identidade e de seu ‘modo de
ser’, frente a condições progressivamente adversas”21.

ARREMATANDO INTERPRETAÇÕES

No episódio dos Campos de Guarapuava, as mulhe-


res e crianças tiveram um papel fundamental para amenizar
as relações de conflito, agindo como apaziguadores, pacífi-
cos e atraindo os soldados para fora do acampamento mili-
tar a fim de emboscá-los. As carícias e afagos mencionados
por Botelho foram estratégias que visavam ou seduzir o inimi-
go22 ou buscar uma aliança por meio de casamento23.
Juracilda Veiga considera que o encontro ocorrido
nos Campos de Guarapuava, se interpretado pela ótica cul-
tural dos Kaingang, expressa uma prática que se tornou co-
nhecida anos depois, quando os índios oferecem suas mu-
ESTRATÉGIAS INDÍGENAS NAS REGIÕES MERIDIONAIS DA CAPITANIA DE SÃO PAULO

lheres numa tentativa de estabelecer uma aliança com os


colonizadores24.
Em 1808, quarenta anos após a malograda expedi-
ção de Afonso Botelho, uma nova expedição foi enviada aos
Campos de Guarapuava e, da mesma forma, os indígenas
vieram com suas mulheres oferecendo carícias aos soldados
dando sinais de paz e amizade:
...chegaram muito risonhos e dali a pouco se lia nos
semblantes dos mesmos, a indignação com que esta-
vam por os nossos não terem aceitos os seus brindes/
no tempo da expedição de Afonso Botelho fizeram o
mesmo. Todo o afago dos selvagens só em direitura de
Magalhães e a rapariga que antes pertenceu o tomou
nas costas e com ele se meteu no meio dos seus, que

21 John Manuel Monteiro. Os Guarani e a História do Brasil Meridional. In: Manuela Car-
neiro da Cunha (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras;
Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 475.
22 Lúcio Tadeu Mota. As Guerras dos Índios Kaingang. A história épica dos índios Kain-
gang no Paraná (1769-1924). Maringá: EDUEM, 1994.
23 Kimiye Tommasino. Obra citada.
24 Juracilda Veiga. Cosmologia e Práticas Rituais Kaingang. Campinas: Tese de Doutora-
do. UNICAMP, IFCH, 2000.

90
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

se os nossos não o acodem, levavam para o mato e


tomado que foi 25.

Esses episódios evidenciam que os indígenas adota-


ram, nessa circunstância, a mesma prática intentada anos
antes, oferecendo as mulheres em troca de aliança. A recu-
sa da oferenda foi interpretada pelos indígenas como rejei-
ção da oferta de aliança, provocando hostilidade e decla-
ração de guerra pelos índios: “Na sua lógica de guerreiros só
dois tipos de relações eram possíveis entre grupos diferentes:
a de aliados ou inimigos. A rejeição da aliança é, portanto
equivalente à declaração de guerra”26.
Os Kaingang que residiam nos Campos de Guara-
puava articulavam interesses e políticas entre si e com outros
grupos por meio de lideranças baseadas em relações de pa-
rentesco. Assim, política e parentesco estavam combinados
na sua organização social, sendo as alianças matrimoniais
resultantes de relações de parcerias ou de guerra. A ótica da
história do contato retrata que as alianças feitas entre bran-
cos e índios, realizadas muitas vezes sob a forma de casa-
mento entre conquistadores e filhas de lideranças indígenas,
eram de interesse de ambas as partes. Do lado europeu, ha-
via a busca de aliados para a conquista de índios resistentes,
a apropriação de excedentes agrícolas para o sustento da
população colonial, o estabelecimento de núcleos de po-
voamento e formação de uma sociedade mestiça e, final-
mente, a exploração da mão de obra. Quanto aos índios,
havia o interesse de fazer dos brancos aliados no combate a
inimigos tradicionais e parceiros no escambo.
Ao buscarem constituir alianças, acionavam práti-
cas que lhes eram próprias. Quando as alianças eram con-
sideradas inviáveis e em razão disso passavam a agir de
modo ofensivo, agiam também orientados por elementos
culturais próprios, definindo estratégias e imprimindo signifi-
cados ao que vivenciavam no contexto do contato. Isso é
o que uma interpretação não etnocêntrica pode nos dizer
sobre o que ocorreu, no distante século XVIII, nos campos
TATIANA TAKATUZI

de Coranbang-rê.
25 Ofício da Villa de Castro em Câmera de 14/12/1826. In: Arthur Martins Franco. Diogo
Pinto e a Conquista de Guarapuava. Curitiba, Museu Paranaense, 1943, p. 218.
26 Juracilda Veiga, obra citada, p. 43.

91
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

IMIGRANTES INSURGENTES:
A EXPERIÊNCIA DOS ESLAVOS
DE ANTÔNIO OLINTO
Maria Luiza Andreazza

Desde a emancipação, em 1853, implementou-se


na Província do Paraná uma política imigratória que visava
atrair para a região camponeses estrangeiros para ocupar
espaços considerados vazios. As autoridades responsáveis
expressavam o que consideravam que fossem os “colonos
desejados”: camponeses laboriosos e pacíficos, que pudes-
sem se tornar pequenos proprietários agrícolas. Estes, no en-
tanto, dadas as condições com que foram recebidos, não
demoraram para demonstrar que não estavam dispostos
a abrir mão das expectativas que os impeliram a migrar. E,
sem tardar, mostraram-se insidiosos. Este artigo trata desses
aspectos relacionados à rebeldia de imigrantes, enfatizando
a abordagem de um caso de insurgência, a realizada pelos
integrantes da colônia de Antônio Olinto, criada para aco-
lher imigrantes das etnias ucraniana e polonesa.

O POVO DESEJADO
MARIA LUIZA ANDREAZZA

Na região sul do país foi dominante o projeto oficial


voltado à disseminação da pequena propriedade rural e
foi nessa condição que o Paraná acolheu seus imigrantes.
Mas isso aconteceu após a 5ª Comarca da Província de São
Paulo emancipar-se: em 1853, ainda dependente dos inte-
93
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

resses paulistas, contava apenas com três colônias – Rio Ne-


gro, Thereza e Superagui. A partir daí, a nova província pôde
dedicar-se à tarefa de desenvolver uma política migratória
adequada aos seus interesses e, como resultado, até 1914,
quando a primeira guerra mundial estancou a saída de eu-
ropeus, foram criadas mais de 100 linhas coloniais. Assim, en-
tre 1829 – quando o governo imperial encaminhou alemães
para a colônia Rio Negro – e 1914, instalaram-se no Paraná
85.537 colonos estrangeiros que somaram-se ao fluxo de es-
trangeiros que haviam imigrado para Santa Catarina e dei-
xavam aquela província rumo às terras paranaenses. Supõe-
-se que mais de cem mil imigrantes instalaram-se no Paraná
nesse período.
Dentre as motivações imigrantistas da nova provín-
cia, os textos oficiais destacam que “urge a adoção de me-
didas tendentes ao suprimento de operários e cultivadores
úteis”; apontam a falta de “gente própria para o serviço de
estradas e obras públicas”; revelam o interesse em promover
“a imigração de colonos morigerados e laboriosos”, estabe-
lecendo-se colônias para salvar a Província “do estado de
decadência a que chegou sua agricultura”1. Visto no con-
junto, pode-se dizer que o Paraná ansiava por atrair pessoas
IMIGRANTES INSURGENTES: A EXPERIÊNCIA DOS ESLAVOS DE ANTÔNIO OLINTO

que fundassem um mundo do trabalho em novas bases.


É fundamental reter que já avançado o século XIX
ainda era o trabalho dos escravos que movia a economia
paranaense. Na lide das fazendas dos Campos Gerais, Pal-
mas e Guarapuava, em todas as fases do beneficiamento da
erva-mate – desde a coleta das folhas no planalto até a ex-
portação via Porto de Paranaguá; nos engenhos de cacha-
ça do planalto e especialmente das vilas litorâneas como
Antonina, Morretes, Porto de Cima; na pequena lavoura da
mandioca, feijão, arroz, milho2; nos ofícios diversos e também
nos trabalhos domésticos estava presente, sobretudo, e pre-
ferencialmente, a mão de obra escrava3. Tratavam-se, cer-
tamente, de pequenas escravarias, pois a posse de escravos
era restrita e, mais frequentemente, havia senhores de um
1 Presidentes da Província do Paraná de 1854 a 1862, citados por Ségio Odilon Nadalin.
Paraná: ocupação do território população e migrações. Curitiba: SEED, 2001, p. 72-73.
2 Carlos Roberto Antunes dos Santos. História da alimentação no Paraná. Curitiba: Farol
do Saber,1995.
3 Magnus de Mello Pereira. Semeando iras rumo ao progresso. Curitiba: Editora da
UFPR, 1996.

94
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

escravo apenas. Mesmo assim, era uma sociedade de pe-


quenos patriarcas onde a posse ou o mando sobre outros
homens e a distância do trabalho manual eram fatores de
prestígio social4.
No entanto, o tráfico interprovincial que se desen-
volveu a partir das leis que proibiam a entrada de africanos
escravizados no país impôs rápida diminuição de cativos na
composição demográfica, sentida particularmente após a
instalação da província, em 1853. Nessa ocasião, como evi-
dencia a Tabela 1, 25% da população da província era com-
posta por escravos; mas, no ano abolição, em 1888, eles re-
presentavam apenas a minúscula parcela de 1%.
Tabela 1 – População da Província do Paraná
na segunda metade do XIX
Livre Escrava Total
1804 26.370 (78%)1 1.712 (22%) 28.082
1854 54.187 (75%)2 18.213 (25%) 72.400
1872 116.162 (92%) 2
10.560 (8%) 126.722
1888 233.337 (99%) 2
3.513 (1%) 236.850
Fonte dos dados brutos: (1) Cacilda Machado. Obra citada;
(2) Fausto Brito. As migrações e a transição para o trabalho
assalariado no Brasil. Anais do XVII Encontro da ABEP, disponível
em: http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2002/
gt_mig_st33_brito_texto.pdf (acesso em 14/09/2017).

Cabe destacar que na segunda metade do século


XIX o Paraná vivenciava um aumento populacional inédito:
entre 1804 e 1854, o crescimento foi de 105%; entre 1854 e
1872, de 114% e entre 1872 e 1888 a população cresceu ou-
tros 92%. Em boa parte desse período, a entrada de europeus
foi pífia, pois o fluxo mais continuado e numeroso aconteceu
no último quartel do século. Logo, havia uma população na-
cional que poderia assumir os novos postos do mundo do tra-
balho livre. Porém, o exame da documentação oficial torna
evidente que esta população, livre, pobre, brasileira, não era
MARIA LUIZA ANDREAZZA

considerada pelas autoridades: ao contrário, ela era inde-


sejada no projeto de redesenho da sociedade paranaense.
A elite provincial – assim como a do resto do País –
nutria a certeza de que a imigração europeia era o único
4 Cacilda Machado. A trama das vontades. Negros, pardos e brancos na produção da
hierarquia social do Brasil escravista. São Paulo: Apicuri, 2008.

95
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

caminho para a regeneração do povo brasileiro, pois con-


sideravam-na “fator étnico de primeira ordem destinada a
tonificar o organismo nacional abastardado por vícios de
origem e pelo contato que teve com a escravidão”5. As vá-
rias teorias racistas do século XIX tinham em comum o pres-
suposto de que a diversidade humana, anatômica e cultural
era produzida pela desigualdade biológica e, a partir des-
se princípio, os cientistas estabeleceram hierarquias raciais
que, invariavelmente, colocavam no topo os europeus “civi-
lizados”, fazendo revezar na base os negros “bárbaros” e os
índios “selvagens”6. Nessa perspectiva, o grande problema
da nacionalidade brasileira situava-se no povo que, no limite,
deveria ser substituído7. A solução seria implementar intenso
programa de imigração que proporcionaria ocasião para a
mistura e aprimoramento da raça brasileira. Com estes pres-
supostos, a política de colonização se voltou inteiramente
para a Europa, ficando descartado o estímulo a correntes
migratórias provenientes da África ou da Ásia.8
A hierarquização dos europeus, no entanto, não obe-
decia critérios raciais, pois lá, em tese, todos seriam brancos.
A referência, neste caso, se fazia sobretudo pelo enalteci-
IMIGRANTES INSURGENTES: A EXPERIÊNCIA DOS ESLAVOS DE ANTÔNIO OLINTO

mento romântico da condição camponesa9. Isso marcou a


política de atração e fixação de colonos no Paraná voltada
a criar uma “civilização camponesa à maneira da Europa”10.
Hoje, esta imigração é celebrada em eventos étnicos laicos
e, no mais das vezes, de caráter religiosos, definidos nos ca-
lendários municipais e estadual. Bom exemplo disso são os já
tradicionais Festivais Folclóricos de Etnias do Paraná, realiza-
dos no Teatro Guaíra, o maior e mais importante do estado,
cuja 54a edição aconteceu em 2017.
5 Relatório do Presidente da Província do Paraná, citado por Sérgio Odilon Nadalin, obra
citada, p. 72.
6 Giralda Seyferth. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na
polítia de imigração e colonização. In: Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos
(orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/Centro Cultural Banco do
Brasil, p. 43.
7 Idem, p. 47.
8 Nisia Lima e Gilberto Hochman. Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil
descoberto pelo Movimento Sanitarista da Primeira República. In: Marcos Chor Maio e
Ricardo Ventura Santos (orgs), obra citada, p. 26.
9 Giralda Seyferth, obra citada, p. 47.
10 Altiva Pilatti Balhana; Brasil Pinheiro Machado. Campos Gerais: estruturas agrárias.
Curitiba: UFPR, 1968, p. 51.

96
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

PERCALÇOS DA COLONIZAÇÃO

A representação positiva que rememora a saga dos


pioneiros equipara-se ao otimismo de boa parte do discur-
so emigratório oitocentista. No entanto, essa representação
não teve uma trajetória linear, porque em diversos momentos
os grupos de estrangeiros foram percebidos de formas pouco
lisonjeira. Por certo, ao chegar em qualquer destino, um imi-
grante é um estrangeiro, um forasteiro; como tal, sua posição
é definida pela diferença que tem para com os que já estão
radicados no lugar. Nos primeiros tempos da imigração, esta-
beleceu-se na sociedade paranaense um campo de alteri-
dade repleto de tensões e hierarquizações: ali se entrecruza-
vam esperanças frustradas, barreiras linguísticas, expressões
e ritos religiosos diferenciados, práticas culturais exóticas en-
tre si, modos de viver e de agir específicos.
Nesse contexto, rapidamente as autoridades, e a
própria sociedade paranaense, abandonaram a perspecti-
va romântica e passaram a enxergar os estrangeiros por uma
perspectiva menos generosa. Ao mínimo, “a figura do imi-
grante adquiriu uma dupla face: ou o imigrante era laborio-
so, respeitador da lei e, assim, um ‘bom’ imigrante; ou ele era
indolente, agitador e descumpridor do compromisso assumi-
do para com a nação que o recebeu, tendo se mostrado um
“mau” imigrante”11.
Muitas colônias, especialmente nos tempos iniciais,
foram instaladas em terras impróprias para o cultivo e impos-
sibilitadas de escoar a produção, revelando-se experiências
contraproducentes e destinadas ao fracasso total. Um exem-
plo muito conhecido é o das colônias italianas no litoral, cujos
habitantes, inconformados com as condições adversas, efe-
tuavam reclamações constantes junto aos órgãos compe-
tentes, que resultaram na criação de núcleos coloniais espe-
cialmente para eles, no entorno da capital. De fato, em 1878,
fruto da pressão direta junto aos presidentes de província, e
MARIA LUIZA ANDREAZZA

talvez do medo dos moradores assustados por pessoas de


origem estrangeira que chegavam à capital esfarrapados,
famintos e clamando a caridade alheia, os italianos de Ale-
xandra e das linhas da colônia Nova Itália foram transferidos
11 Roberto Edgar Lamb. Uma jornada civilizadora: imigração, conflito social e segurança
pública na Província do Paraná. 1867 a 1882. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1994. p. 35-36.

97
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

para Alfredo Chaves (Colombo), Santa Felicidade, Senador


Dantas (Água Verde), Novo Tirol (Piraquara), Murici, Zacarias,
Orleans, Argelina e Rebouças.12
Paralelamente aos problemas com esses imigrantes,
a província também viu frustrada a tentativa de interiorizar a
imigração fixando “alemães do Volga” na região de Ponta
Grossa, Palmeira e Lapa. Havia a expectativa de um grande
fluxo de russos de etnia alemã para a província, mas o núme-
ro real dos imigrantes não atingiu 4 mil pessoas. Isso porque,
mal passado um ano da chegada dos pioneiros, passou a
acontecer intenso movimento de retorno para Europa, mo-
tivado notadamente pela infertilidade da terra que lhes fora
destinada. Os que optaram por ficar se dispersaram, cons-
truindo aqui e acolá núcleos sem impacto significativo no
projeto imigrantista daquele momento13.
Ao insucesso desse projeto somavam-se outros, como
a colonização com os ingleses e franceses da mal sucedida
colônia do Assungui e com os suíços de Superagui. Não por
acaso, em alguns momentos as autoridades expunham a fra-
gilidade da política migratória até então empreendida pela
província. Dessa sensibilidade nos dá provas João José Pe-
IMIGRANTES INSURGENTES: A EXPERIÊNCIA DOS ESLAVOS DE ANTÔNIO OLINTO

drosa ao afirmar, em 1881:

acreditávamos que não tínhamos mais do que introdu-


zir o colono, dar-lhe terra, arado, alimento por alguns
dias e repetir-lhes as palavras de animação com que
(...) o Criador lançou o primeiro casal humano sobre a
Terra: crescei e multiplicai. Que ilusão!14

COLONOS AMOTINADOS!!!

Os contratos de imigração previam a cada família


o direito à propriedade de um lote, mas, na prática, a de-
marcação dos terrenos principiava quando eles chegavam
nas colônias. Estes descompassos geravam tensões que, não
raro, acabavam virando caso de polícia.15
12 Altiva Balhana. Imigração Italiana. Revista Panorama. Curitiba, 1978.
13 Marion Brepohl de Magalhães. Presença alemã no Brasil. São Paulo: Editora UNB, 2004.
14 PARANÁ. Relatório do Presidente de Província. Curitiba: Tipografia Perseverança, 1881.
15 São inúmeros os estudos que destacam os percalços da colonização estrangeira no
Paraná, cabendo destacar, pelo pioneirismo na temática, os estudos de Roberto Edgar
Lamb, Uma jornada civilizadora. Imigração, conflito social e segurança pública na pro-

98
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Uma situação dessa natureza aconteceu na colô-


nia Antônio Olinto, criada para acolher imigrantes das etnias
ucranianas e polonesas, egressos da Galícia, então sob o
domínio austríaco16. Eles chegaram no final de 1895, esti-
mados em 2.250 indivíduos. Foram colocados em barracões
coletivos e, compulsoriamente, engajados nos trabalhos ne-
cessários à instalação da colônia: abriam picadas, partici-
pavam da medição de lotes e auxiliavam na construção de
moradias das famílias que, lentamente, tomavam posse das
novas terras.
Até julho de 1896, apenas 239 lotes tinham sido me-
didos e distribuídos entre os imigrantes e não havia previsão
para os trabalhos terminarem a curto prazo, haja vista a dis-
pensa dos auxiliares do engenheiro Chartier, responsável pela
medição. Assim, com o alívio das famílias que já haviam re-
cebido seu quinhão de terra contrastava a angústia dos que
permaneciam nos barracões. Nessa altura, o comissário da
colônia solicitava ao inspetor de colonização Atistides Libe-
rato, profissionais habilitados a auxiliar o engenheiro Chartier
na medição dos lotes argumentando que ali as pessoas “es-
tava[m] passando privações por falta de meios de subsistên-
cia e sem abrigo”. Ele sugeria urgência no assentamento dos
colonos, argumentando que “a acumulações dos imigrantes
nos barracões trazia sérios inconvenientes ao serviço adminis-
trativo”. De fato, ali restavam mais de 800 pessoas insatisfeitas
com as condições em que viviam e com a morosidade da
medição das terras, motivada pela incompetência dos en-
genheiros bem como por questões decorrentes de querelas
em torno das terras devolutas onde o estado estabelecia as
linhas coloniais.
Os galicianos estavam literalmente largados à pró-
pria sorte. Já haviam se passado sete meses dos seus desem-
barques em Paranaguá e, possivelmente, mais de um ano
em que tinham abandonado suas aldeias na Galícia. Já ha-
MARIA LUIZA ANDREAZZA

viam vivido também as agruras do trânsito intercontinental e


agora experimentavam condições precárias e promíscuas,
víncia do Paraná. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1997; Marionilde Brephol de Magalhães,
Magnus Roberto de Mello Pereira, e Sergio Odilon Nadalin, obras já citadas.
16 Toda a narrativa que segue está baseada em Maria Luiza Andreazza. O paraíso das
delícias – um estudo da imigração ucraniana, 1895-1995. Curitiba: Aos Quatro Ventos,
1999.

99
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

convivendo com pessoas que até então lhes tinham sido to-
talmente estranhas. Os problemas de comunicação eram
agravados pela diferença linguística e pela falta de repre-
sentação oficial, já que o vice-consulado da Áustria-Hungria
só foi estabelecido em Curitiba em setembro de 1896. É pro-
vável até que já soubessem que os indígenas da região rea-
giam à ocupação das matas por linhas coloniais e vivessem o
temor de um confronto, como haviam sofrido os eslavos fixa-
dos na colônia Lucena, que resultou na morte de imigrantes.
É desnecessário enfatizar a tensão entre imigrantes e
administração local que, para piorar a situação acabara de
receber ordens para suspender a entrega gratuita de alimen-
tos. Foi a gota d’água para que eles iniciassem uma revolta
cujos líderes foram nominados no relatório de polícia dedica-
do ao incidente: Gregório Prokopiw, Theodoro Dzurelo, José
Okunski, Wasílio Komar, Stanislay Szymanski e Casimiro Ozuch.
Segundo a argumentação desse relatório, esses homens inci-
taram um motim porque “estavam acostumados a receber
alimentação e não queriam sujeitar-se as novas ordens do
governo.” Eram pessoas que queriam eternizar-se sob a tu-
tela do Estado; em outras palavras, seriam maus imigrantes.
A revolta dos eslavos assumiu tal proporção que o co-
IMIGRANTES INSURGENTES: A EXPERIÊNCIA DOS ESLAVOS DE ANTÔNIO OLINTO

missário da colônia precisou solicitar pelotões de policiais da


Lapa para apaziguar os ânimos. Nesse momento, os homens
que incitaram o motim desapareceram da localidade e, apa-
rentemente, não sofreram punição. Assim que se acalmou a
situação, eles retornaram à colônia para aguardarem a me-
dição de seus lotes. Todos eles os receberam na linha colonial
Cândido de Abreu, que foi demarcada depois de setembro
de 1896. Ao receberem-nos, em sua grande maioria, mantive-
ram-se na localidade até morrer. Este foi o caso de José Okuns-
ki, elogiado no obituário que o correspondente da Gazeta do
Povo enviou para Curitiba, em 1928: “Com a avançada idade
de 73 anos faleceu no dia 4 do corrente o prestante colono
José Okunski, homem probo e trabalhador.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem dúvida, lutar pela subsistência é motivo justo,


mas concordar que o motim dos colonos eslavos de Antônio
Olinto foi mera consequência da fome seria reduzir a com-
100
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

plexidade da situação. Valeria, a meu ver, considerar que os


revoltosos queriam apenas o que lhes era de direito, o que
fora estabelecido no contrato de emigração e esta motiva-
ção foi reconhecida como legitima para sedimentar coesão
entre pessoas que pouco tinham em comum além de serem
imigrantes e partilharem o mesmo teto. De fato, todos os su-
jeitos que a polícia identificou como líderes da revolta eram
pais de famílias compostas entre quatro e sete pessoas, que
ainda moravam no barracão coletivo esperando sua terra.
O conjunto destes fatores ajuda a pensar que os lí-
deres do motim não se insurgiram apenas pelo fato de não
receberem mais a alimentação fornecida via Otto Zimmer
& Cia. Eles se revoltaram, sim, por a i n d a não terem ob-
tido a condição de trabalhadores rurais autônomos e livres
dos entraves e da sujeição que vivia o campesinato do Leste
europeu, onde a memória da servidão de gleba ainda era
presente. A questão primordial não era perpetuar o auxílio
governamental para a sua subsistência: a revolta era justa-
mente pela impossibilidade de proverem a própria vida.

MARIA LUIZA ANDREAZZA

101
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

RAÍZES DA INSURGÊNCIA
SERTANEJA DO CONTESTADO
Paulo Pinheiro Machado

INTRODUÇÃO

O presente capítulo procura levantar e analisar as


origens da insurgência no movimento do Contestado, que
ocorreu entre o sul e sudoeste do Paraná e atuais planalto e
meio-oeste de Santa Catarina, entre 1912 e 1916. O conflito
teve início com a perseguição policial a um grupo de serta-
nejos liderados pelo curandeiro José Maria. O grupo havia
sido expulso de Taquaruçu e atacado no Irani em outubro
de 1912. Um ano após este combate os sertanejos voltaram
a se reunir em Taquaruçu e, ao longo do ano de 1914, seu
projeto de “Cidade Santa” vai se impondo a diversas comu-
nidades do planalto. O grupo de seguidores de José Maria
foi crescendo com a adesão de diversos descontentes da
região: adversários políticos dos Coronéis Superintendentes
Municipais, sitiantes e posseiros expulsos de suas terras pela
construção da estrada de ferro entre União da Vitória e Mar-
celino Ramos (e depois do trecho entre União da Vitória e Rio
PAULO PINHEIRO MACHADO

Negro), antigos federalistas e a população pobre que ficou


impactada com o massacre de Taquaruçu. Inicialmente os
sertanejos só fugiam e se defendiam, tal como ocorreu nos
combates de Taquaruçu, Caraguatá e Santo Antônio, onde
a tropa do exército crescia a cada momento, suplantando
em efetivo os Regimentos de Segurança do Paraná e Santa
Catarina.
103
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A palavra “insurgência” talvez seja mais adequada


para se referir ao que ocorreu no Contestado a partir do se-
gundo semestre de 1914, quando os sertanejos se declaram
rebeldes e passaram à ofensiva contra tropas e alvos do Go-
verno, dos Coronéis e da Companhia Ferroviária Brazil Rail-
way. Nesse momento, os rebeldes passaram a recrutar a po-
pulação circundante, multiplicar as “Cidades Santas”, além
de intensificar os ataques e ocupações de povoados e cida-
des, como Itaiópolis, Papanduva, Curitibanos, Campo Belo,
Cerrito. Passaram também a atacar a Brazil Railway Com-
pany, atingindo diversas estações da estrada de ferro; inves-
tiram contra a subsidiária Lumber and Colonization Company
e contra grandes madeireiras como as serrarias em Calmon
e Três Barras.1
A guerra que se seguiu demonstrou que os sertane-
jos desenvolveram formas inovadoras de luta e organização,
algo que não foi apenas inventado no momento, mas que
retomava tradições e experiências mais profundas desta po-
pulação. Não se tratava apenas de obstinação e valentia.
A organização do movimento rebelde para o domínio e ex-
pansão dentro de um grande território teve que montar uma
estrutura político-institucional (fundamentada num universo
cultural dentro das expectativas da população planaltina),
meios de abastecimento e construção de normas e rotinas
de trabalho, sociabilidade e subsistência. Não se tratou ape-
nas de uma vingança contra uma agressão externa. O mo-
vimento do Contestado possui uma originalidade relevante
pelo fato dos sertanejos procurarem construir um projeto pró-
RAÍZES DA INSURGÊNCIA SERTANEJA DO CONTESTADO

prio de sociedade.
Ao longo das últimas décadas tem ficado cada vez
mais clara a influência política do federalismo no movimento
sertanejo do Contestado. Várias lideranças sertanejas eram
veteranos federalistas como Aleixo Gonçalves de Lima (Ca-
pitão da Guarda Nacional e refugiado paranaense no norte
de Santa Catarina), “negro” Germano (maragato gaúcho
que se tornou um dos “Pares de França” na época de co-
mando de Adeodato Ramos), Francisco Paes de Farias (o
1 Obras de referência para entender o nascimento e expansão do movimento sertanejo
do Contestado são os livros de Maurício Vinhas de Queiroz, Messianismo e Conflito
Social: a guerra sertaneja do Contestado (1912-1916). Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 1966; e Duglas Teixeira Monteiro, Os Errantes do Novo Século. São Paulo: Duas
Cidades, 1974.

104
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

“Chico Ventura”, um dos “festeiros” do primeiro Taquaruçu


e organizador do segundo Taquaruçu), Agustin Perez Saraiva
(o “Castelhano”, liderança rebelde da região de Lages) e
muitos outros2. Embora não seja uma causa definidora máxi-
ma, nem a principal característica do projeto sertanejo das
“Cidades Santas”, a influência política do federalismo por
aquele território era notória. Processo importante a se con-
siderar é a fusão da tradição política do federalismo com a
tradição religiosa do profeta João Maria. A experiência do
federalismo deu aos sertanejos a audácia e o tino militar,
condições fundamentais para o enfrentamento dos poderes
local, estadual e nacional. Por outro lado, a tradição de São
João Maria deu um horizonte cultural que cimentou a socia-
bilidade e o projeto das “cidades santas” do Contestado.
Neste capítulo analisaremos a aproximação destas
duas vertentes: a tradição política do federalismo e a tradi-
ção cultural de São João Maria. Veremos que o movimento
do Contestado não é o único ponto de contato destas tra-
dições, que se mesclaram para dar sentido e organização a
diferentes concentrações camponesas autônomas ocorridas
no sul do Brasil entre meados do século XIX e meados do sé-
culo XX.

O FEDERALISMO POPULAR DA TRADIÇÃO PLATINA

A vertente federalista a que nos referimos era repre-


sentada, na década de 1890, pelo Partido Republicano Fe-
deralista, organizado nos três estados do sul do Brasil após
a queda da Monarquia. Este partido político reunia antigas
lideranças do Partido Liberal do Império, a força política que
foi afastada do aparelho de Estado quando ocorreu o golpe
militar que deu origem à República. Seu programa político
reconhecia a República, mas defendia um parlamentarismo
2 A denominação de “maragatos” foi atribuída aos federalistas que originalmente seguiam
PAULO PINHEIRO MACHADO

a coluna do líder Gumercindo Saraiva. Entre os soldados de Gumercindo havia muitos


uruguaios. Este nome tinha uma conotação pejorativa, pois ao mesmo tempo que po-
deriam ser habitantes do Departamento uruguaio de San José, a designação de “ma-
ragato” era atribuída a pistoleiros de aluguel, bandidos e matadores. Com o tempo esta
denominação se estendeu a todos os federalistas e ganhou um sentido positivo. Já os
adversários republicanos eram denominados “pica-paus” (por usarem um fardamento
com cores verde e vermelha) ou “chimangos”, outra denominação pejorativa, pois chi-
mango é uma ave que come os carrapatos no lombo do gado, e era usada para atribuir
aos republicanos a pecha de serem bajuladores do governo. Carlos Reverbel. Maraga-
tos e Pica-paus. Porto Alegre: L&PM Editores, 1985.

105
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

e uma maior autonomia para os Estados. Tratava-se de uma


facção da classe dominante que tinha sido abruptamente
afastada do controle político do aparelho de Estado, mas
que, pelo menos majoritariamente, não defendia o retorno
à Monarquia.
No entanto, dentro do grupo federalista, indepen-
dente das principais lideranças, membros da antiga elite po-
lítica dirigente e representantes de parcela significativa de
grandes proprietários fundiários, como Gaspar Silveira Martins
e Joca Tavares (no Rio Grande do Sul), Eliseu Guilherme da
Silva e Abdon Batista (Santa Catarina) e o Barão do Cerro
Azul (no Paraná), havia um outro conjunto de lideranças lo-
cais, com grande apelo popular, que mobilizava homens po-
bres em momentos decisivos da luta. Estas lideranças mais
populares não tinham grande atividade parlamentar, nem se
dedicavam à política institucional, mas nas épocas de confli-
to armado eram grandes mobilizadores de peões e soldados.
No Rio Grande do Sul, um dos representantes deste
“federalismo popular” foi Honório Lemes, também chama-
do de “Leão do Caverá”, destacado chefe maragato da
fronteira do Brasil com o Uruguai. Honório era um homem po-
bre, possuía um sítio de poucos hectares, mas na época das
Guerras (combateu contra os chimangos tanto na Revolu-
ção de 1893 como na de 1923) era um verdadeiro General.
Tinha uma liderança muito forte sobre peões e demais ho-
mens da plebe rural da campanha gaúcha. Um diário com
apontamentos para uma guerra de movimento elaborado
pelo Leão do Caverá foi publicado recentemente3.
RAÍZES DA INSURGÊNCIA SERTANEJA DO CONTESTADO

Outro chefe importante, verdadeiro “gaúcho a pé”,


era o maragato Leonel Rocha. Seu pai tinha lutado junto
com os farroupilhas contra o Império e Leonel possuía muitos
seguidores no planalto ao norte do Rio Grande do Sul, mas
morreu pobre, como lavrador agregado, sem possuir nem
um palmo de terra. Na luta contra os chimangos de Borges
de Medeiros, em 1923 e 1924, Leonel Rocha liderou cente-
nas de peões, ervateiros e agricultores pobres do norte do
Rio Grande do Sul. Os princípios políticos pelos quais se ba-
tiam os federalistas populares não eram muito claros, nem
compunham um programa próprio, à parte das lideranças
3 Corálio Cabeda (org.). Lei Militar. Textos de Honório Lemes. Porto Alegre: Ed. Inst. Es-
tadual do Livro, 1993.

106
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

federalistas formais.4 No entanto, em muitas proclamações e


ações práticas, as lideranças federalistas populares se carac-
terizavam por colocar em prática a luta contra autoridades
impostas de fora e a defesa do poder dos povoados de se
autogovernarem.5
Um estudo mais detido da atuação destes chefes lo-
cais levanta questões importantes para entender o envolvi-
mento das populações de fronteira em guerras e revoluções.
Nem sempre estavam seguindo cegamente o comando de
coronéis e grandes proprietários. A literatura clássica, por fo-
car numa descrição a partir do alto, no poder dos terrate-
nentes e caudilhos, não consegue vislumbrar a agência dos
“de baixo” a partir das lideranças locais. A reprodução das
teses de Sarmiento não explica o envolvimento popular nas
revoltas e revoluções platinas.6
A bacia platina além de ser receptora das águas do
planalto meridional era também um conjunto de vias de co-
mércio, contrabando, troca de favores e auxílios políticos e
militares mútuos, um polo de difusão de cultura e ideias políti-
cas. Entre o final do século XIX e início do XX as fronteiras po-
líticas definidas pelos Estados Nacionais não impediam que
antigas relações de aliança e auxílio mútuo se efetivassem
com regularidade.7 Isto é muito importante a ser considera-
do, pois o federalismo tem outras vertentes e trajetórias no
Brasil, como em Pernambuco, na Bahia e outras regiões. O
federalismo do sul do Brasil (inclusive do Paraná) possui uma
ligação mais forte com a tradição platina. O centauro dos
pampas, tipo de guerreiro que se idealizou no território, im-
punha até uma noção diferente em relação à resistência ao
recrutamento militar.
Ao contrário do restante do país, que via o recruta-
mento militar como um novo cativeiro, pelo fato de ser um
4 Informações sobre a trajetória de Leonel Rocha encontramos no texto “O General
peão” de Gunter Axt, em http://wp.clicrbs.com.br/pedepagina/tag/leonel-rocha/?topo
PAULO PINHEIRO MACHADO

=77,1,1&status=encerrado (último acesso em 28 de fevereiro de 2017).


5 Helga Iracema Landgraf Piccolo. O federalismo como projeto político no Rio Grande do
Sul. Revista de la Sociedad Latinoamericana de Estudios sobre América Latina y Caribe
(Sección chilena), n. 7, 1997.
6 Domingos Faustino Sarmiento. Facundo ou Civilização e Barbárie. São Paulo: Cossac
Naify. 2010.
7 A permeabilidade das fronteiras é muito bem demonstrada na obra de Marcus Vinícius
da Costa, Nação, Contrabando e Alianças Políticas na Fronteira Oeste do Rio Grande
do Sul. Tese de Doutorado em História, Florianópolis, UFSC, 2013.

107
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

longo período de sujeição à disciplina, trabalhos forçados e


castigos corporais, os sulistas também relutavam em ingressar
nas forças, mas em vários momentos passaram a encarar o
serviço militar como uma oportunidade de ascensão social,
de consolidação de situações conquistadas e de exercício
da própria liberdade. A afirmação do combatente livre es-
tava frequentemente associada à cavalaria. Mesmo sendo
homens pobres, é muito comum no espaço platino, no Rio
Grande e nos campos de cima da serra que se estendiam
até a região dos Campos Gerais da Quinta Comarca da Pro-
víncia de São Paulo, a difusão da noção de liberdade que
significava, na guerra, combater a cavalo.8 Pelos preços dos
animais de montaria, mesmo os homens mais pobres pos-
suíam cavalos. Nas épocas de recrutamento militar, os ofi-
ciais já recrutavam suas praças com montarias próprias.
Na região do Contestado há alguns federalistas que
se destacam. No planalto norte catarinense (ou do sul do
Paraná) as principais lideranças maragatas, no início do sé-
culo XX, eram Demétrio Ramos e Aleixo Gonçalves de Lima.
O primeiro rio-grandense e o segundo, paranaense, procu-
ravam radicar-se em Santa Catarina para fugir de persegui-
ções políticas em seus estados de origem, assim como muitos
outros. Santa Catarina oferecia uma condição melhor de so-
brevivência pois, em 1902, houve um processo de concilia-
ção que agregou os federalistas barriga-verdes para dentro
do Partido Republicano Catarinense.9 Desta forma, mesmo
sendo de origem paranaense, Aleixo Gonçalves de Lima,
RAÍZES DA INSURGÊNCIA SERTANEJA DO CONTESTADO

Capitão da Guarda Nacional, se radicou na região de São


Bento e passou a defender a jurisdição catarinense sobre o
território contestado que ligava Canoinhas ao litoral. Em 1909
ficou notabilizado por comandar uma ação de ataque às
barreiras fiscais que o Estado do Paraná havia colocado no
caminho de Canoinhas a São Bento.
Em Lages, outra liderança maragata que aderiu ao
movimento do Contestado foi Agustin Perez Saravia (ou Sa-
raiva), chamado localmente de “Castelhano”, que se dizia
8 José Iram Ribeiro Tudo isto é indiada coronilha ... não é como esta cuscada lá do norte:
o serviço militar na cavalaria e a afirmação da identidade rio-grandense durante a Guer-
ra dos Farrapos. In: Paulo Possamai (org.). Gente de Guerra e Fronteira: Estudos de
História Militar do Rio Grande do Sul. Pelotas: Ed. UFPEL, 2010.
9 Jali Meirinho. República e Oligarquias. Florianópolis: Ed. Insular, 1997.

108
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

filho do líder Gumercindo Saraiva. Para Castelhano, a Guer-


ra do Contestado era apenas uma continuação da Revo-
lução Federalista. Uma oportunidade para se bater nos chi-
mangos e baianos. A proclamação de Saraiva deixava isto
muito claro:
O comandante-geral da Campanha do Partido Fede-
ralista faça sair as famílias, pois o ser fraco, debemos
olhar para elas, a penas sofrem injustamente, yo só
quero brigar com os bahianos intimidadores que falam
muito. Por causa deles, sofrem outros. Só penso mim
Felicidade, por ajuda de Diós, São João Maria, pois es-
tes bahianos me mandaram provocar. Aceito probo-
cación. Agustin Perez Saraiba.10

O discurso de Castelhano, além de revelar influência


linguística espanhola, dirigia-se contra os militares (que ele
chama de “baianos” por serem muitos de origem nordesti-
na), demonstra a união da tradição política do federalismo
com a tradição cultural de São João Maria. Castelhano quer
fazer uma guerra como a de 1893, sem mulheres e crianças,
apenas com homens combatendo a cada lado. O sofrimen-
to de famílias com o bombardeio de Taquaruçu e os ataques
a Caraguatá e outros redutos trouxe algo de novo a uma
sociedade que já era habituada a formas tradicionais de
violência, formas estas que tinham sido ultrapassadas com o
emprego indiscriminado da artilharia moderna. Parece que
Castelhano quer o retorno a um tipo de guerra que não mais
existe. Mesmo considerando o fato da direção do Partido Fe-
deralista ter dissolvido a agremiação com a fusão com os
Republicanos Catarinenses, em 1902, Castelhano e outros
federalistas avulsos do planalto continuaram a manter suas
posições e a hostilizar os pica-paus.
Não há como negar uma filiação dos federalistas das
décadas de 1890 e 1900 aos ideais dos Farroupilhas de 1835.
A origem das ideias federalistas e republicanas defendidas
PAULO PINHEIRO MACHADO

por estes sulistas vinham do impactante projeto de Artigas,


que já havia levantado o pampa nas primeiras décadas do
século XIX. Não cabe aqui fazer uma discussão genérica so-
bre o “caudilhismo” platino, já que havia caudilhos de todas
10 Bilhete de Agustin Perez Saraiva para as autoridades municipais de Lages, outubro de
1914, quando a cidade estava sofrendo assédio das forças rebeldes. Região Serrana,
23 nov. 1914. Lages.

109
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

as posições políticas, mas o que pretendo destacar é uma


vertente popular do federalismo, de grande difusão por toda
a bacia platina (da qual o sul do Brasil estava fortemente li-
gado), onde lideranças defendiam um autogoverno, a ex-
pulsão dos políticos peninsulares, chamados de corcundas.
No caso de Artigas, a defesa de princípios de liberdade in-
dividual e a autodeterminação das comunidades impunha
decisões mais radicais, como a distribuição de terras a ne-
gros livres, homens pobres e peões. O programa radical do
federalismo nunca foi retomado completamente tal como
praticado por Artigas, mas permaneceu encantando gera-
ções de combatentes contra os unitaristas e representantes
dos poderes centrais das capitais, Buenos Aires, Montevidéu
ou Rio de Janeiro.11
Entender a Guerra Federalista de 1893 a 1895 signi-
fica dimensionar a repercussão devastadora dos conflitos
sobre as populações do planalto meridional brasileiro. A
trajetória do avanço da coluna maragata de Gumercindo
Saraiva, perseguida pela Divisão do Norte do governo, pro-
vocou massacres em série, execuções por degola, além do
recrutamento forçado, por parte dos dois lados, de peões e
agregados, lavradores e ervateiros. Mesmo depois dos fede-
ralistas terem seu avanço ao norte detido no combate da
Lapa, no Paraná, o retroceder das colunas de Gumercindo,
Aparício e Juca Tigre promoveram novo desarranjo político e
militar pelos locais que haviam passado anteriormente.12
Para a historiadora Zélia Lemos, que frequentemente
RAÍZES DA INSURGÊNCIA SERTANEJA DO CONTESTADO

atacava os sertanejos com os epítetos de “fanáticos” e “ban-


didos”, a experiência da Guerra Federalista de 1893-95, tinha
ensinado a população pobre do planalto a praticar ações
que foram recorrentes no movimento do Contestado: a de-
11 Maria Medianeira Padoin. Artigas, o Federalismo e as Instruções do Ano XIII. Simpósio
Nacional de História, ANPUH, Natal, 2013. TONI, Juan Pedro. El ideario federal y repu-
blicano de José Artigas y sus repercusiones en Santa Fe, Entre Ríos, Misiones y Río
Grande del Sur (1810-1850). Disponível em http://cdn.fee.tche.br/jornadas/1/s2a4.pdf
(último acesso 23\02\2017).
12 David Carneiro. O Paraná na História Militar do Brasil. Coleção Farol do Saber. Curiti-
ba: Travessa dos Editores, 1995, p. 261-282. Angelo Dourado, Voluntários do Martírio.
Narrativa da Revolução de 1893. 2. ed. Porto Alegre, Martins Livreiro, 2011. Sérgio da
Costa Franco. A Guerra Civil de 1893. 2. ed. ampliada. Porto Alegre: Renascença – Edi-
gal, 2012. Corálio Cabeda; Gunter Axt; Ricardo Seelig (orgs.). Joca Tavares (General),
Diários da Revolução de 1893. Porto Alegre: Procuradoria Geral de Justiça – Memorial
do Ministério Público, 2004. Albino José Ferreira Coutinho. Marcha da Divisão do Norte.
Porto Alegre: EDIGAL, 2011.

110
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

gola de adversários e o arrebanhamento de gado alheio.13


Embora a intenção da autora seja desqualificar os sertanejos
e associá-los ao bandoleirismo, não se pode considerar esta
conexão falsa. De fato, a participação sertaneja na Guerra
Federalista, mesmo que tenha sido produto do recrutamento
forçado, deu a estes homens meios e experiências de sobre-
vivência e combate, formou uma geração de combatentes.

A TRADIÇÃO DE SÃO JOÃO MARIA

O monge João Maria, também chamado de “pro-


feta” e “santo” pela população sertaneja do planalto meri-
dional brasileiro, é muito mais uma legenda construída pela
memória popular do que um indivíduo histórico preciso. A
historiografia reúne grande número de indivíduos com descri-
ções físicas distintas que assumiram esta identidade.
O primeiro monge identificado, provavelmente inicia-
dor dessa tradição, foi o piemontês Giovani Maria Agostini,
que circulou pelo Brasil entre 1844 e 1852. Segundo Alexandre
Karsburg, a trajetória desse indivíduo foi bem documentada
por ele ser estrangeiro e se apresentar às autoridades do Im-
pério a cada localidade que visitava. Giovani foi quem insti-
tuiu as estações da via crucis e a defesa das fontes de água
no Campestre, em Santa Maria, Província do Rio Grande do
Sul, além de circular pelo Rio de Janeiro, Santos, Sorocaba
e Lapa. Tratava-se de um indivíduo leigo, mas que pregava
nas missas com autorização dos párocos. Seu discurso nive-
lador, afirmando que todos eram pecadores diante de Deus,
incomodava barões e coronéis e despertava o interesse de
pobres e escravos. Giovani instituiu o culto a Santo Antão no
Campestre, em Santa Maria. Havia conseguido autorização
do governo para trazer de uma antiga igreja em ruínas nas
Missões uma imagem desse santo. O monge faleceu no Novo
México, Estados Unidos, em 1867.14
PAULO PINHEIRO MACHADO

Durante a década de 1890, há dois indivíduos identifi-


cados como Monge João Maria com descrições físicas distin-
tas. Frei Rogério Neuhaus, um franciscano alemão radicado
13 Zélia de Andrade Lemos. Curitibanos na História do Contestado. 2. ed. Curitibanos:
Impr. Frei Rogério, 1983, p. 97.
14 Alexandre de Oliveira Karsburg. O Eremita das Américas: a odisseia de um peregrino
italiano no século XIX. Santa Maria: Ed. UFSM, 2014.

111
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

em Lages encontrou-se com João Maria no distrito de Capão


Alto e o descreveu como um idoso. Segundo o padre, este
João Maria tinha a fala acastelhanada, teria vindo de Bue-
nos Aires, mas era um grego de origem síria, chamado Anas-
tas Marcaf15. Segundo Frei Rogério, este João Maria tinha o
hábito de batizar crianças e divulgar um discurso apocalíp-
tico que atraía o interesse da população. Ângelo Dourado,
médico que acompanhava a coluna maragata de Gumer-
cindo Saraiva, em 1894, identificou, nos Campos de Palmas
(que ele chamou de “território do monge”) um João Maria
ainda moço, que visitou o acampamento federalista e aju-
dou a tratar feridos. Perguntado se era maragato, João Ma-
ria disse que apenas era a favor da justiça e dos que sofrem16.
Há outros indivíduos que são identificados como João Ma-
ria em décadas adentro do século XX, muito depois do final
da guerra do Contestado17. Para os caboclos serranos, João
Maria já possui mais de 200 anos e vive encantado no alto
do morro do Taió. Durante a guerra do Contestado não hou-
ve aparição de João Maria. O indivíduo que teve atuação
central, e depois de morto foi “santificado” pelos sertanejos
e teve sua trajetória associada (mas nunca confundida) com
João Maria foi o curandeiro José Maria18.
A tradição cultural de João Maria reúne um conjunto
de prédicas, conselhos e práticas de autoria atribuída a um
penitente itinerante, com cajado, roupas velhas, barba lon-
ga. Como se trata de uma versão oral, é difícil identificar qual
ou quais dos indivíduos anteriormente apontados seria o autor
RAÍZES DA INSURGÊNCIA SERTANEJA DO CONTESTADO

destes conselhos. Segundo esta tradição, João Maria dizia a


todos que deveriam defender as fontes de água, evitar quei-
madas e respeitar as plantas e animais “planta é quase bicho
15 Aurélio Stulzer (Frei). A Guerra dos fanáticos: a contribuição dos Franciscanos (1912-
1916). Petrópolis: Vozes, 1982. p. 114.
16 Ângelo Dourado. Obra citada, p. 232.
17 Euclides José Felipe acredita que mais de 5 indivíduos já assumiram a identidade de
João Maria, em O último Jagunço: o folclore na História da Guerra do Contestado. Curi-
tibanos: Ed. UnC, 1995. Importantes considerações sobre o culto atual a São João Maria
podemos encontrar em Tânia Welter. O profeta João Maria continua encantando no
meio do povo: um estudo sobre os discursos contemporâneos a respeito de João Maria
em Santa Catarina. Tese de Doutorado em Antropologia. Florianópolis, UFSC, 2007.
Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/90220/246402.
pdf?sequence=1. Acesso em: 18 fev. 2017.
18 Importante perfil biográfico de José Maria encontramos no livro de Nilson Thomé. Os
Iluminados. Personagens e manifestações místicas e messiânicas do Contestado. Flo-
rianópolis: Ed. Insular, 1999.

112
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

e bicho é quase gente”. Uma relação de equilíbrio deveria


ser construída com o meio natural, segundo ele “quem não lê
a natureza é analfabeto de Deus”. O profeta recomendava
uma vida honrada, com respeito ao próximo e um conjunto
de recomendações para uma vida digna. As fontes de águas
sinalizadas por João Maria logo passaram a ser denominadas
“águas santas” ou “águas do monge” pela população.
Por onde circulava, João Maria recomendava a ere-
ção de grandes cruzeiros de cedro, construídos com madei-
ra falquejada, edificação que geralmente brotava, o que
criava uma imagem impactante. A tradição popular atribuía
a João Maria a capacidade de adivinhação de eventos fu-
turos, o dom da cura (mesmo de doentes distantes fisicamen-
te), além de outras características atribuídas a Jesus, como a
capacidade de andar sobre as águas e de adivinhar o pen-
samento das pessoas. O culto a João Maria preocupava o
clero católico, pois era seguido até por fazendeiros e pessoas
do meio urbano, o que contrariava a política ultramontana
colocada em prática na virada do século XIX ao XX, que pre-
conizava a Igreja a se distanciar desses pregadores leigos e
passasse a exigir uma maior disciplina e subordinação direta
de seus devotos.19

CONCENTRAÇÕES ANTERIORES AO CONTESTADO

Muito antes do início do movimento do Contestado,


o culto ao monge João Maria e a sua memória já reunia as
pessoas em diferentes comunidades do planalto. As rezas,
oferendas e batismos eram realizados em grutas, cruzeiros,
fontes e ermidas. No início do século XX havia pontos de culto
e peregrinação em Sorocaba (SP); Lapa, São Mateus, Palmas,
Rio Negro, Três Barras, Itaiópolis, Papanduva, Irati e União da
Vitória (no Paraná); Canoinhas, Campos Novos, Curitibanos
PAULO PINHEIRO MACHADO

e Lages (em Santa Catarina); São Borja, Santa Maria, Rio Par-
do, Encantado, Passo Fundo, Cruz Alta, Soledade e Lagoa
Vermelha (no Rio Grande do Sul). Algumas destas concentra-
ções foram objeto da ação policial e militar.
Em 1849, quando o primeiro monge, Giovani Maria,
circulava pelo Rio Grande do Sul, foi despachada uma pa-
19 Elio Cantalício Serpa. Igreja e poder em Santa Catarina. Florianópolis: Ed. UFSC, 1997.

113
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

trulha de policiais da capital da província para capturá-lo


no morro do Botucaraí, em Rio Pardo (atual Município de
Candelária), e conduzi-lo para Santa Catarina. O Presidente
General Soares de Andrea, que preparava a província para
uma guerra de intervenção na região platina, temia que as
concentrações em torno do monge pudessem dificultar o re-
crutamento militar e aumentar a audácia dos quilombolas
nas matas no norte da província.20
Em 1897, na região de Entre Rios (entre os rios Pelotas
e Canoas, que antes de se unirem para formar o rio Uruguai
correm em paralelo por alguns quilômetros), no Município de
Lages, Santa Catarina, houve nova concentração com for-
mação de pequena vila com 70 casas e mais de 400 habi-
tantes. Um indivíduo chamado “Dom Miguelito” que se dizia
irmão do monge João Maria, passou a receber doentes e
ministrar curas e penitências. Em uma semana a vila estava
formada e sofreu o primeiro ataque de forças policiais do
Município de Campos Novos. Como a força policial foi re-
chaçada pelos moradores, a imprensa de Lages passou a
dizer que o povoado era um “Canudinho”, e que, se não
houvesse uma intervenção rápida do governo, poderia cres-
cer tal como ocorreu com o movimento de Antônio Conse-
lheiro, na Bahia. Além disso, houve a difusão alarmante da
presença de maragatos entre os “fanáticos” do “Canudinho
de Lages”. O contexto político do início da República, da ins-
tabilidade política e da fragilidade das instituições contribuiu
para o clima de estímulo à repressão ao movimento.
O Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, Júlio
RAÍZES DA INSURGÊNCIA SERTANEJA DO CONTESTADO

de Castilhos, temendo a instabilidade da fronteira uruguaia


(onde um golpe político colocou no poder o Partido Colo-
rado, com apoio dos federalistas rio-grandenses exilados no
país) e sentindo-se ameaçado de ficar entre dois “fogos”
(nova incursão maragata pela fronteira uruguaia, desguar-
necida das tropas federais, que estavam em Canudos, na
Bahia, e uma invasão “maragata\fanática” pelo norte, por
Lages) entrou em acordo com o governador catarinense,
Hercílio Luz, para um ataque conjunto à cidadela de Entre
Rios. Se o Rio Grande do Sul, que recém tinha saído da Guer-
ra Federalista, se envolvesse em outro conflito armado, era
20 José Fraga Fachel. Monge João Maria: a recusa dos excluídos. Florianópolis; Porto
Alegre: Ed. UFSC; Ed. UFRGS, 1995.

114
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

muito possível uma intervenção federal, já que o novo Pre-


sidente da República, Prudente de Moraes, era muito mais
próximo dos federalistas do que o recém-saído Presidente
Floriano Peixoto. Os temores políticos mobilizados num con-
texto macrorregional condenaram a população do ajunta-
mento de Entre Rios a um massacre concretizado em final de
agosto de 1897.
Uma tropa de mais de 100 “provisórios” da Brigada
Militar do Rio Grande do Sul atravessou o rio Pelotas e, depois
de 4 horas de intenso tiroteio, tomou e incendiou a cidadela
de Dom Miguelito. Entre os habitantes de Entre Rios era co-
mum o uso de longas fitas brancas amarradas aos chapéus
(em Santa Catarina os federalistas usavam a cor branca, ao
contrário do Rio Grande do Sul, onde usavam a vermelha). As
fitas tinham 1,7m por ser esta a altura de São João Maria. Des-
ta forma, no “Canudinho de Lages” já encontramos a união
entre as tradições do federalismo e de São João Maria21. Um
evento político ocorrido no Uruguai precipitou um desfecho
militar no interior de Santa Catarina. A conexão entre a polí-
tica platina e os eventos no planalto meridional, mesmo mais
distante fisicamente da fronteira, ainda era intensa.
Em 1902, na região do município de Encantado, no
alto vale do rio Taquari, Rio Grande do Sul, há uma nova
“aparição” de João Maria. No interior deste município, ha-
via uma população nacional de sitiantes, posseiros e erva-
teiros que estava cada vez mais sufocada com a perda de
seus territórios tradicionais para companhias de colonização,
que loteavam terras para o estabelecimento de imigrantes
europeus recém-chegados, ou para seus descendentes de
segunda e terceira geração. A população cabocla era pres-
sionada por uma frente de ocupação territorial de italianos
que vinham do Norte, da serra gaúcha e, ao mesmo tem-
po, por uma frente de expansão vinda do Sul, das antigas
colônias alemãs de São Leopoldo e Novo Hamburgo. Cons-
PAULO PINHEIRO MACHADO

ta que houve um ataque dos caboclos ao prédio de uma


companhia de colonização. Logo um grupo de centenas de
policiais enviados da capital chegou ao interior de Encan-
tado e abriu fogo contra os caboclos. Alguns sobreviventes
21 Paulo Pinheiro Machado. O conflito do Canudinho de Lages. Revista de Sociologia,
UNESP, São Paulo, v. 13, n. 24, p. 65-78. Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/estu
dos/article/view/864/719. Acesso em: 15 fev. 2017.

115
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

foram presos, este episódio, conhecido como o “movimen-


to dos monges do Pinheirinho” também teve um desfecho
violento, não apenas pela natureza do conflito agrário, mas
pela presença, entre os caboclos, de veteranos federalistas
da Guerra de 1893.22

ASSALTO AO TREM E ATAQUE AO POSTO FISCAL – AÇÕES


ARMADAS NAS DIVISAS CONFLITUOSAS

No Relatório do General Setembrino de Carvalho há


o relato de um episódio muito conhecido no vale do Rio do
Peixe: o assalto ao trem pagador da Brazil Railway Company,
ação promovida por Zeca Vacariano e seu grupo de tra-
balhadores, em 1910. Setembrino dá muito relevo para este
episódio para provar que a construção da Estrada de Ferro
foi uma “escola” de violência e banditismo, que deu origem
à insurgência do Contestado. O general atribui a presença
de criminosos, capoeiras e prisioneiros vindos do nordeste do
país, como mão de obra compulsória para a construção da
estrada de ferro, a origem da rebelião23. No entanto, o episó-
dio não guarda nenhuma relação direta com o movimento
sertanejo. Zeca Vacariano era um fazendeiro e comerciante
da região de União da Vitória e havia assumido as tarefas de
colocar seus homens como turmeiros no trabalho de constru-
ção de um lote do ramal da estrada ao longo do vale do Rio
do Peixe.
Ocorre que durante as obras de deslocamento de
RAÍZES DA INSURGÊNCIA SERTANEJA DO CONTESTADO

terras e retiradas de rochas, a quantidade de trabalho ne-


cessária era muito maior que o representante da empresa,
o engenheiro Achiles Sthengel, havia pactuado anterior-
mente com Zeca Vacariano. Na condição de empreiteiro,
Vacariano teve que atender a demanda de seus homens
por mais salários tendo em vista o volume adicional de tra-
balho não previsto, assaltando o trem pagador da Estrada
de Ferro, distribuindo para seus trabalhadores o resultado
do roubo. Após o assalto, Vacariano fugiu para a Argenti-
na. Consta que muitos dos seus trabalhadores e homens de
22 Gino Ferri. Os monges de Pinheirinho. Porto Alegre: Ed. Movimento, 1975.
23 Fernando Setembrino de Carvalho (General). Relatório apresentado ao General José
Caetano de Faria, Ministro da Guerra, pelo Comandante das forças em operações de
guerra no Contestado. Rio de Janeiro: Imprensa Militar, 1915, p. 3-4.

116
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

confiança fugiram junto, e só voltaram para a região bem


depois do final da Guerra do Contestado. Zeca Vacariano
nunca foi uma liderança rebelde do movimento do Contes-
tado, era até um dos fazendeiros que apoiava o Deputado
Cleto Silva, de União da Vitória, no projeto de criação do
Estado das Missões, caso a sentença do STF sobre a questão
de limites fosse aplicada24.
Embora tenha sido um acontecimento com grande
repercussão na sua época, o assalto ao trem pagador não é
um episódio relacionado com a insurgência do Contestado.
Foi um acontecimento pontual, fruto dos desajustes de con-
trato entre empreiteiros e a Companhia Brazil Railway. A infor-
mação adicional passada por Setembrino, que milhares de
trabalhadores compulsórios vieram das prisões de cidades do
norte do Brasil, dado este que foi acriticamente reproduzido
por alguns autores que influenciaram extensa historiografia25,
não se sustenta na pesquisa mais recente. Segundo Márcia
Janete Espig, grande número de turmeiros (assim chamados
os trabalhadores de turmas que assumiam o serviço em lotes
da estrada de ferro) eram da região e outros tantos eram
imigrantes europeus atraídos pela Brazil Railway para com-
prar lotes de terras nas margens da ferrovia e, enquanto a
obra era realizada, fazer o trabalho assalariado como turmei-
ro, enquanto sua família já se estabelecia no lote colonial e
iniciava sua própria lavoura26.
Alguns conflitos armados anteriores à guerra tiveram
forte influência nos desdobramentos do movimento do Con-
testado. Vários deles eram causados pela instabilidade e pe-
las disputas territoriais e políticas que eram desdobramentos
da questão de limites entre os Estados de Santa Catarina e
Paraná. Desde 1904, Santa Catarina conquistou uma sen-
tença no STF garantindo as divisas com o Paraná ao longo
dos Rios Negro e Iguaçu. A sentença foi confirmada com
PAULO PINHEIRO MACHADO

o indeferimento dos recursos e embargos do Estado do Pa-


24 Paulo Pinheiro Machado. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das che-
fias caboclas (1912-1916). Campinas: Ed. UNICAMP, 2004. p. 146.
25 Principalmente por Oswaldo Rodrigues Cabral. A Campanha do Contestado. São Pau-
lo: Cia Editora Nacional, 1960 e por Nilson Thomé. Trem de Ferro: a história da ferrovia
do Contestado. 2. ed. Florianópolis: Lunardelli, 1983.
26 Márcia Janete Espig. Personagens do Contestado: os turmeiros da Estrada de Ferro
São Paulo – Rio Grande. Pelotas: Ed. UFPEL, 2011.

117
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

raná em 1909 e 1910.27 O território dos Campos de Palmas,


compreendendo o município de mesmo nome em todo o
território a oeste do rio do Peixe, entre os rios Iguaçu, ao nor-
te, e Uruguai, ao sul; deveria ficar sob jurisdição catarinense.
Além dos Campos de Palmas, havia mais dois bolsões, ou sa-
liências, paranaenses dentro dos territórios ganhos por San-
ta Catarina pela sentença de 1904: I) a saliência de União
da Vitória, que compreendia os Campos de São João que
eram limitados com Santa Catarina pelo rio Caçador, além
de conter o baixo e médio vale do rio Timbó; II) a saliência
mais ao leste, compreendendo as cidades de Rio Negro, Três
Barras, Itaiópolis e Papanduva. Desde 1904 os governos de
Santa Catarina e Paraná concordaram que os paranaenses
continuariam com a administração provisória dos Campos
de Palmas e da região de Três Barras e Rio Negro enquanto
a questão de limites não tivesse uma solução definitiva. Mas
este acordo não valia para o vale do rio Timbó, que foi consi-
derado “o Contestado dentro do Contestado”.
Os conflitos nas saliências do norte do planalto ca-
tarinense (ou sul do Paraná) se intensificavam na virada do
século XIX para o XX por causa do avanço da frente agro-
pastoril e do aumento da exploração da erva mate, principal
artigo de exportação dos dois estados. Paralelamente à dis-
puta territorial, os dois estados disputavam pelo escoamen-
to para a exportação da erva mate. Havia uma verdadei-
ra guerra fiscal entre Santa Catarina e o Paraná, diminuindo
suas taxas para atrair as principais rotas de exportação na
erva mate para os portos de São Francisco ou Paranaguá,
RAÍZES DA INSURGÊNCIA SERTANEJA DO CONTESTADO

respectivamente.
Desta maneira, a historiografia registra muitos confli-
tos armados, nas décadas de 1890 e 1900, quando forças
paranaenses se confrontaram com particulares e autorida-
des catarinenses nestas saliências contestadas. Isso ocorreu
nos vales dos rios Timbó e Paciência, em 1904, com o inci-
dente da prisão e sumiço de Demétrio Ramos, um federalista
gaúcho que defendia a jurisdição catarinense na região. Da
mesma forma, outro confronto ocorreu na saliência de Três
27 A argumentação catarinense foi baseada no documento inicial encaminhado por Ma-
noel da Silva Mafra. Exposição Histórico-Jurídica, por parte de Santa Catarina. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1899. O ponto de vista paranaense está em Romário Mar-
tins. Limites inter-estaduais entre Paraná e Santa Catarina: breves explicações do mapa
histórico anexo. Rio de Janeiro: Gomes e Irmãos, 1910.

118
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Barras, em 1909, quando o Capitão (da Guarda Nacional)


Aleixo Gonçalves de Lima destruiu uma barreira fiscal para-
naense que tributava a erva mate que transitava entre Ca-
noinhas e São Bento, na direção do Porto de São Francisco28.
Embora Aleixo fosse de origem paranaense, desde o final da
guerra federalista vivia na região entre São Bento e Rio Ne-
gro, pugnava pela causa catarinense na questão de limites.
Aleixo tinha uma disputa de terras com a família Pacheco,
que mantinha suas terras registradas em cartórios paranaen-
ses. Depois que essas terras foram vendidas pelos Pachecos
para a Lumber and Colonization Company, a companhia
norte-americana passou a ser alvo das hostilidades de Aleixo.
A intensificação destas disputas forçava os poderes
locais a arregimentar “voluntários” e “patriotas”, formando
milícias a serviço dos chefes municipais paranaenses e ca-
tarinenses. O Estado do Paraná criou um Comitê Central de
Limites, chefiado pelo coronel e historiador Romário Martins
para, através de verbas previstas pelo orçamento estadual,
distribuir recursos e armas aos chefes municipais de Palmas,
União da Vitória, Vila Nova do Timbó, Três Barras, Rio Negro,
Itaiópolis e Papanduva.29 O município de Canoinhas manti-
nha um grande contingente de homens a serviço do Subde-
legado Bonifácio (vulgo Papudo), que aderiu aos sertanejos
rebeldes em julho de 1914.
Nestas saliências, determinados fazendeiros, oficiais
da Guarda Nacional, se estabeleciam e procuravam conso-
lidar suas propriedades através de registros de escrituras em
cartórios paranaenses. Uma atividade grileira se intensificou
no início do século XX a partir das ações dos Coronéis Juca
Pimpão e Macedo Soares, de Palmas, de Amazonas Marcon-
des, em União da Vitória, do Coronel Artur de Paula, nos vales
do Timbó e Paciência, de Fabrício Vieira, no médio Iguaçu,
da família Pacheco, em Três Barras e da família Bley, em Rio
Negro30.
PAULO PINHEIRO MACHADO

Não se trata de um acidente ou particularidade o


fato de que, durante a Guerra do Contestado, a maior parte
das lideranças rebeldes do planalto norte, Aleixo, Tavares e
28 Maurício Vinhas de Queiroz, Messianismo e conflito... Obra citada, p. 127.
29 Departamento do Arquivo Público do Paraná, códice 474, pág. 97.
30 Todd Diacon. Millenarian vision, capitalist reality: Brazil’s Contestado Rebellion, 1912-
1916. Durham: Duke University Press, 1991.

119
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Papudo, usarem uma fita com os dizeres “pelo cumprimento


da sentença de limites”. Ao longo da guerra sertaneja esta
foi uma das poucas reivindicações que se enquadravam ins-
titucionalmente, como se a rebelião fosse um movimento las-
treado pela sentença de 1904 do Supremo Tribunal Federal
(tal como assim defendeu o chefe rebelde Antônio Tavares
em correspondência com o Coronel Taurino de Rezende)31.
Em torno da questão de limites podemos afirmar que tanto o
Paraná como o Estado de Santa Catarina ajudaram na mili-
tarização das rivalidades da disputa, o que deu instrumentos
e razões que os sertanejos acabaram por se apropriar em seu
projeto rebelde.
A tradição de São João Maria também estava pre-
sente na luta territorial dos indígenas Kaingang. Após serem
desalojados de seus territórios tradicionais no Paraná, um gru-
po de indígenas ocupou por vários dias a Vila de Pitanga, no
centro do Paraná, em abril de 1923. Seu objetivo foi o ata-
que a prédios públicos e ao comércio. No inquérito policial
que se seguiu, há informação de que dois “padres” enviados
pelo monge João Maria, tinham estimulado os indígenas a
ocupar a Vila de Pitanga.32
A tradição do monge João Maria foi também evoca-
da pelos sertanejos que se uniram a Bonifácio Papudo, numa
nova concentração em Mafra (SC), em 1921, em Concór-
dia (SC) em 1924 em torno do grupo de Fabrício das Neves,
em Soledade (RS), em 1935-37, em torno do grupo de cabo-
clos seguidores de Deca França e no vale do rio Timbó (SC)
RAÍZES DA INSURGÊNCIA SERTANEJA DO CONTESTADO

em 1942, seguindo a família Alonso. Todas as concentrações


acima citadas foram alvo de ação policial e militar, com o
temor de que crescessem e se transformassem num “novo
Contestado”.

ALGUMAS CONCLUSÕES

Tendo em vista o atual estado da pesquisa histórica,


ainda é cedo para se afirmar, com razoável grau de preci-
são, sobre as origens e o processo de formação do discurso e
31 Paulo Pinheiro Machado. Lideranças... Obra citada, p. 278.
32 Grazilei Eurich. O índio no banco dos réus. Historicizando o conflito entre os índios
Kaingang e os colonos na Vila de Pitanga, 1923. Dissertação de Mestrado em História.
UEM, Maringá, 2012.

120
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

do pensamento rebelde entre os sertanejos do Contestado.


Mas há claros indícios que apontam para a importante con-
tribuição de experiências mais antigas da população planal-
tina, principalmente nas andanças de João Maria e na tradi-
ção política (e militar) federalista. Estes indícios podem ser um
ponto de partida para o estudo do monarquismo sertanejo,
algo que era vago e difuso ainda em 1912, mas que foi ga-
nhando força e definição ao longo dos anos de 1914 e 1915.
De toda forma, os episódios aqui relatados precisam
ser considerados em sua unidade dentro de um amplo territó-
rio geográfico, não limitado por fronteiras políticas estaduais
e\ou nacionais, o planalto meridional brasileiro e sua comu-
nicação com a bacia platina, território de conflitos, diálogos
e trocas. Espaço amplo de experiências de luta pela liberda-
de e por uma vida melhor.

PAULO PINHEIRO MACHADO

121
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

CONFLITOS AGRÁRIOS E
RESISTÊNCIA: OS CAMPONESES
DE PORECATU
Angelo Priori

A história do Paraná é marcada por grandes confli-


tos agrários. Desde o impactante movimento do Contestado,
tratado por Paulo Pinheiro Machado em capítulo desta co-
letânea, passando pela expulsão de camponeses e popula-
ções indígenas durante a construção de Itaipu, até as lutas
agrárias recentes nas regiões oeste e noroeste do Estado, às
margens do rio Paraná, o cenário sempre foi de violência e
medo, mas também de organização e resistência. Este tex-
to tem como objetivo apresentar um desses movimentos de
resistência: a revolta camponesa de Porecatu, que ocorreu
na região norte do Paraná, nas décadas de 1940 e 1950. Ao
lado do Contestado e da revolta do sudoeste de 1957, abor-
dada por Paulo José Koling no capítulo seguinte, considero
que esta revolta camponesa foi uma das mais tensas ocorri-
das em território paranaense.1
1 Vários autores já se debruçaram sobre o tema. Entre os livros e teses mais signi-
ficativos, destaco: ADUM, Sônia Maria Sperandio Lopes. A subversão no paraíso: o
comunismo em Londrina (1945-1951). São Paulo, 2003. Tese (Doutorado em História
Social) – FFLCH, USP, Maria Izabel Faleiros. Percursos e percalços do PCB no campo
(1922-1964). São Paulo, 1989. Tese (Doutorado em Sociologia) – FFLCH, USP; Angela
Damasceno Ferreira. Agricultura capitalista e campesinato no Norte do Paraná – a re-
ANGELO PRIORI

gião de Porecatu. Curitiba, 1984. Dissertação (Mestrado em História) – UFPR; Verônica


Karina Ipólito. O vermelho que violenta a ordem: os comunistas sobre o olhar do DOPS
no Paraná. Assis, 2016. Tese (Doutorado em História) – FCL, Unesp; Leandro César
Leocádio. Disputas territoriais e divergências conceituais: os conflitos pela terra nos ar-
redores de Porecatu/PR – guerra, guerrilha ou revolta? Londrina, 2015. Dissertação
(Mestrado em História) – PPGHIS, UEL; Marcelo Oikawa. Porecatu – a guerrilha que os

123
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

PORECATU, UM CENÁRIO DE CONFLITO

A região denominada de “Porecatu” está encrava-


da no extremo norte do Estado do Paraná, situada no vale
do Rio Paranapanema. A colonização dessa região come-
çou no final dos anos 1930 e início dos anos 1940, no contexto
da política de terras implementada pelo Governo Vargas e
conhecida como Marcha para o Oeste. Com Vargas, criou-
-se, no Brasil, pela primeira vez, a possibilidade de efetivar um
ordenamento agrário. A ideia de propriedades latifundiárias
produzindo para a exportação, tão arraigada entre as clas-
ses dominantes da República Velha, será em tese, transfor-
mada em uma política voltada para a constituição de uma
organização agrária que tinha como princípio a pequena e
a média propriedade, com base em núcleos coloniais, com
vista à produção de alimentos e matérias-primas para aten-
der a uma demanda interna que era crescente naquele pe-
ríodo. É dentro desse contexto histórico que vão se radicar
naquela região posseiros, pequenos proprietários, trabalha-
dores e colonos, atraídos pela perspectiva de obter melhores
condições de trabalho e de vida e, principalmente, a posse
de uma parcela de terra.
Inicialmente, a colonização ocorreu em pequenas
CONFLITOS AGRÁRIOS E RESISTÊNCIA: OS CAMPONESES DE PORECATU

posses de terra, através do plantio de café, de culturas ali-


mentares e de criação de porcos; posteriormente, a organi-
zação da propriedade da terra foi realizada com a presença
de grandes grileiros, que expulsaram os posseiros e estrutura-
ram as suas propriedades com base no cultivo da cultura do
café, na criação de gado, na plantação de cana-de-açú-
car, associadas com o trabalho assalariado.
São esses dois agentes sociais – posseiro e grileiro –
as personagens centrais de um dos mais importantes confli-
tos de terra do Estado do Paraná no século XX. Os grandes
grileiros na região, auxiliados pela polícia, por jagunços e
pistoleiros expulsavam e tomavam as terras dos posseiros.
comunistas esqueceram. São Paulo: Expressão Popular, 2011; Angelo Priori. A guerra
de Porecatu. Diálogos, Maringá, v. 14, n. 2, p. 367-379, 2010 e O levante dos posseiros:
a revolta camponesa de Porecatu e a ação do Partido Comunista Brasileiro no campo.
Maringá: Eduem, 2011; Elpídio Serra. Processos de ocupação e a luta pela terra agrícola
no Paraná. Rio Claro, 1991. Tese (Doutorado em Geografia) – IGCE/UNESP; Osvaldo
Heller Silva. A foice e a cruz: comunistas e católicos no sindicalismo dos trabalhadores
rurais do Paraná. Curitiba: Rosa de Bassi, 2006.

124
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Essas ações é que motivaram a organização de uma resis-


tência camponesa, empreendida pelos posseiros. Posterior-
mente, essa mobilização se transformou em resistência ar-
mada, com o objetivo de defender as posses e benfeitorias
existentes.
Os conflitos armados tiveram início no final de 1948 e
só foram desmobilizados em julho de 1951, com a presença
das tropas da Polícia Militar do Estado e de agentes das De-
legacias Especializadas de Ordem Política e Social (DOPS)
de São Paulo e do Paraná. A resistência armada dos possei-
ros de Porecatu marcou a região, que se constituiu em alvo
de grandes reportagens nos principais diários do país e em
órgãos de imprensa periódica da época.
O Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi um agente
central da resistência armada. Através dos diretórios muni-
cipais de Jaguapitã e de Londrina e, mais tarde, do próprio
Comitê Central, o partido participou da organização do
movimento armado, enviando para a área de conflito vá-
rios dirigentes e dando uma eficaz retaguarda, tanto pelo
envio de armamentos e munição, como pela remessa de
suporte financeiro, roupas e alimentos para os resistentes.
A intervenção do PCB na região e na organização
do movimento armado de Porecatu coadunava com sua
linha política recém aprovada, decorrente dos manifestos
de janeiro de 1948 e de agosto de 1950, que definiam a de-
fesa da “violência revolucionária” como linha de ação, vi-
sando a luta direta para a tomada do poder. Nesse sentido,
o partido propôs, em seu programa, a formação de uma
Frente Democrática de Libertação Nacional, cujo objetivo
maior consistia em fazer a “revolução agrária e antiimperia-
lista”. Em relação ao campo, defendia a imediata entrega
das terras dos latifundiários para os camponeses que nelas
trabalhavam. Para isso, na visão do PCB, era importante a
organização dos camponeses (pequenos proprietários, pos-
seiros, arrendatários, meeiros, parceleiros) e trabalhadores
rurais (assalariados) como aliados naturais do proletariado
ANGELO PRIORI

na tarefa de fazer a revolução.2


2 Ângelo Priori. O PCB e a questão agrária: os manifestos e o debate político acerca dos
seus temas. In: Antonio Carlos Mazzzeo; Maria Izabel Lagoa (orgs). Corações verme-
lhos: os comunistas brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003. p. 61-81.

125
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

O MOVIMENTO GANHA CORPO

O embrião da resistência armada dos camponeses


de Porecatu tem origem na fundação de Ligas Camponesas
na região.3 No ano de 1944 dois acontecimentos marcaram
o início do movimento organizado dos posseiros de Poreca-
tu e região. Na localidade conhecida como Ribeirão do Te-
nente, um grupo de 270 famílias se reuniu e fundou uma Liga
Camponesa, escolhendo os posseiros Herculano Alves de
Barros, Hilário Gonçalves Padilha e José Billar como seus re-
presentantes. Em Guaraci, outro grupo de aproximadamente
200 famílias também formou uma Liga, sendo que o repre-
sentante escolhido para defender os interesses na defesa de
suas terras foi o posseiro Manoel Marques da Cunha. Um úni-
co objetivo pautava a atuação dessas duas ligas: legalizar a
posse da terra.
Nesse sentido, ainda em 1944, a Liga Camponesa
de Ribeirão do Tenente contratou alguns advogados para
defender os interesses dos posseiros, o que na justiça não
acabou tendo muito resultado. Diante desta situação, o líder
Manoel Marques da Cunha viajou até a capital da Repúbli-
ca – Rio de Janeiro – para solicitar ao presidente Vargas que
intercedesse em favor daquelas centenas de famílias amea-
CONFLITOS AGRÁRIOS E RESISTÊNCIA: OS CAMPONESES DE PORECATU

çadas de despejo. Não conseguindo falar com Vargas, foi


recebido pelo secretário do presidente que lhe deu uma
carta de apresentação para uma entrevista diretamente
com Manoel Ribas, interventor do Paraná à época. Somente
dois anos depois, em julho de 1946, quando Ribas já não era
mais governo e, sim Moisés Lupion, é que Manoel Marques
da Cunha conseguiu a sua entrevista, assim mesmo, apenas
com o chefe do Departamento de Terras do Estado.
Com a saída de Manoel Ribas e a posse de Moisés
Lupion, ficou mais difícil a situação dos posseiros da região.
A única garantia que eles tinham para permanecer nas ter-
ras eram os frágeis requerimentos encaminhados ao Depar-
tamento de Terras e Colonização do Estado solicitando as
posses.
3 As pesquisas que venho realizando apontam para a existência de Ligas Camponesas
no Estado do Paraná desde o início dos anos 1940, o que permite problematizar a exis-
tência dessas organizações para além das emblemáticas experiências da Paraíba e de
Pernambuco. Angelo Priori. O levante dos posseiros...

126
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Enquanto a situação se tornava insustentável para


os posseiros, as Ligas agiam em defesa dos mesmos, apoian-
do, organizando e incentivando as centenas de famílias
que se preparavam para a luta. No ano de 1946 houve uma
grande manifestação organizada pelas Ligas de Ribeirão do
Tenente, Centenário, Guaraci, Água da Pelotas, cabeceira
do Centenário, Água Tupi e Ribeirão do Capim. Mais ou me-
nos 1500 pessoas, vindas das mais diversas ligas de toda a
região, se reuniram no patrimônio de Guaraci e resolveram
fechar a estrada que ligava Presidente Prudente a Londrina.
O objetivo era sensibilizar o governo e os políticos para a si-
tuação de instabilidade que vivia a região e pela legaliza-
ção imediata das terras dos posseiros.
Essa manifestação, apesar do não ter assegurado o
cumprimento da promessa de legalização das terras feita
pelo representante do Departamento de Terras e Coloniza-
ção, teve uma repercussão importante para o movimento.
Além de gerar um sentimento de unidade entre os posseiros
de toda a região, acabou dando visibilidade para aquele
problema que somente era sentido pelos próprios campo-
neses. Principalmente a população urbana e, sobretudo,
os comerciantes, tomaram conhecimento do litígio e das
agruras que viviam aquele povo. E, o que é mais importan-
te, a manifestação despertou um sentimento de solidarie-
dade em relação àquela população. Esse sentimento foi
a tônica de sustentação durante todo o conflito que ali se
iniciava.
Os parlamentares do PCB tiveram papel de desta-
que, tanto em âmbito estadual, como nacional. Além de
criticarem as atitudes políticas de Lupion, que não se com-
prometia em resolver a contenda, condenavam a violência
contra os posseiros, cometida por jagunços e policiais con-
tratados pelos grileiros. O próprio deputado Carlos Marighella
cobrou da Câmara dos Deputados a instalação de uma CPI
para apurar as denúncias de violência contra os campone-
ses de Porecatu.4 Aliás, foi por essa época que as lideranças
ANGELO PRIORI

do movimento organizado dos posseiros tomaram contato


com o Partido Comunista Brasileiro (PCB).
4 Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná. Arquivo DOPS. Recorte de
Jornal. Pasta 427/188.

127
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

NA DIREÇÃO DA LUTA ARMADA

O envolvimento do PCB na luta dos posseiros de Po-


recatu se deu através do Comitê Municipal de Jaguapitã, do
qual eram dirigentes os irmãos Arildo, Ângelo, Miguel e Mer-
cedes Gajardoni. A família Gajardoni exerceu papel funda-
mental na organização do movimento e nos conflitos que se
sucederam. Aos poucos, conseguiram organizar os posseiros
em grupos, conscientizando-os da importância de defende-
rem suas posses: primeiro legalmente, depois pelas armas.
Antes mesmo da formação dos grupos armados,
que teria início em novembro de 1948, o PCB de Jaguapitã
chegou a recorrer ao comitê de Londrina e o farmacêutico
Ângelo Gajardoni conseguiu levar à região litigada o então
vereador londrinense Manoel Jacinto Corrêa, conhecido mi-
litante comunista, que constatou a gravidade da situação e
sugeriu, com sucesso, que o comitê estadual do Partido, em
Curitiba, desse um apoio efetivo para os posseiros5.
Enquanto em Londrina o PCB iniciava um movimen-
to de solidariedade aos “resistentes de Porecatu”, a família
Gajardoni trocava a sua farmácia em Jaguapitã por dez al-
queires de terras de mata virgem, nas margens do Ribeirão
Tenente, possibilitando uma atuação aproximada com os
posseiros.
CONFLITOS AGRÁRIOS E RESISTÊNCIA: OS CAMPONESES DE PORECATU

Mas o fato mais importante de aproximação dos pos-


seiros com o PCB se deu, curiosamente, com a cassação do
registro eleitoral do Partido e dos mandatos dos seus depu-
tados. Já que os militantes que atuavam na área souberam
aproveitar daquele momento, promovendo ações de con-
vencimento junto aos posseiros, no sentido de evidenciar que
havia afinidades entre a luta destes e os princípios do partido.
A partir desse momento, diversos militantes do PCB de
Londrina passaram a visitar a região com maior frequência,
sobretudo o vereador Manoel Jacinto Corrêa, o advogado
Flávio Ribeiro e o médico Newton Câmara, levando roupas,
mantimentos, remédios e dinheiro. Com essa ajuda, os comu-
nistas conquistaram a confiança e a simpatia dos posseiros,
tornando-se agentes importantes na orientação da luta e da
batalha legal pela posse da terra.
5 Centro de Documentação de Pesquisa Histórica/UEL. Setor de Entrevistas. Entrevista
com Manoel Jacinto Corrêa (ano de 1983).

128
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A decisão do Partido Comunista Brasileiro de assumir


a organização da luta armada no norte do Paraná foi con-
cretizada formalmente em novembro de 1948. Depois de vá-
rias reuniões realizadas na casa de Hilário Gonçalves Padilha,
na fazenda Umuarama, os posseiros aceitaram os argumen-
tos de vários emissários do partido, que sustentavam a ideia
de que a única maneira de defender suas terras era recorrer
à força das armas.

CONFLITOS ACIRRADOS

A resistência camponesa de Porecatu foi realizada


em três frentes: a) uma armada, com um grupo pequeno de
pessoas, mas com uma disciplina rigorosa e um comando
extremamente forte; b) outra, legal, composta por algumas
centenas de camponeses, nas posses e nas fazendas; e c)
uma frente de solidariedade e ajuda mútua, nas cidades.
A luta armada estava dividida em três grupos e um
Quartel General. Cada grupo estava localizado em uma re-
gião estratégica da área conflagrada. O Quartel General era
comandado por Celso Cabral de Mello, conhecido como
“capitão Carlos”, que tinha a função de fazer a ligação dos
grupos com o Comitê Central e com os Comitês Municipais
do Partido em Jaguapitã e em Londrina.6
Cada grupo era formado por, no máximo, uma de-
zena de posseiros, o que demonstra a participação bastante
reduzida de pessoas que se envolveram diretamente no con-
flito armado. A imprensa da época publicava notícias total-
mente equivocadas, superestimando o número de pessoas
envolvidas. Havia matérias que falavam de 300 pessoas, ou-
tras falavam em 500; algumas, mais exageradas, referiam-se
a milhares de “camponeses em arma”.7
Mas a realidade era outra. A maioria estava arma-
da com espingarda ou com carabina de 12 tiros. Essas ar-
mas – comuns na região, utilizadas para caça, eram as
únicas de que os camponeses inicialmente dispunham. No
entanto, eram muito frágeis, e o resultado prático das ações
ANGELO PRIORI

6 Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná. Arquivo DOPS. Relatório do


Delegado Especializado do DOPS, Eduardo Louzadas Rocha. Pasta 427/188.
7 Conforme reportagens nos jornais Gazeta do Povo, 26 jun. 1951, O Dia, 26 jun. 1951 e
01 jul. 1951 e Diário da Tarde, 4 jul. 1951.

129
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

empreendidas eram quase insignificantes. No relatório que


elaborou para o Comitê Central, Celso Cabral de Mello des-
creveu que as melhores armas em poder dos posseiros eram
uma submetralhadora calibre 45 milímetros com carregador
de 45 tiros – “em mau estado de funcionamento” – e uma
submetralhadora de 9 milímetros, com carregador para 30
tiros, a única que funcionava “regularmente”.8
Com o decorrer do tempo, os posseiros tiveram aces-
so a algum armamento mais sofisticado, principalmente pis-
tolas automáticas, mosquetões, granadas e metralhadoras,
muitas recuperadas dos jagunços ou dos policiais, outras en-
viadas pelo Comitê do Partido em Londrina.
Dona Anita, companheira de Manoel Jacinto Cor-
rêa, em suas memórias, lembra das dificuldades para se con-
seguir armas e até roupa para os participantes da revolta. Se-
gundo ela, a sua casa, em Londrina, era um verdadeiro Q.G.
do movimento. Era ali que se costuravam as roupas para os
posseiros. A casa servia, ainda, como esconderijo do arma-
mento, de onde era levado para a região do conflito9.
Todos os integrantes dos grupos usavam um codino-
me para se identificar, o que era fundamental para manter
o sigilo e preservar a identidade de quem estava no movi-
mento armado.10 Esses membros tinham uma grande mobi-
CONFLITOS AGRÁRIOS E RESISTÊNCIA: OS CAMPONESES DE PORECATU

lidade dentro da floresta e não ficavam num ponto mais do


que dois dias. Além da mobilidade, havia uma troca cons-
tante de pessoas entre os grupos, “por motivo de seguran-
ça” ou para evitar o tédio e as pequenas desavenças. Com
o início da luta armada e o refúgio dos posseiros na floresta,
várias posses ficaram suscetíveis às investidas dos grileiros e
à ação dos jagunços. Muitas delas, inclusive, foram ocupa-
das pelos proprietários que as reclamavam. Ao acontecer
isso, os proprietários, imediatamente, contratavam traba-
lhadores e os instalavam nas posses para dar continuidade
ao trabalho de derrubada das matas, plantio do café ou
formação de pastagens.
8 Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná. Arquivo DOPS. Autos de Quali-
ficação e Interrogatório. Caixa 427/188.
9 Anita. P. Cezar. Memórias. Londrina: Gráfica Vale Verde, 1991
10 Fórum da Comarca de Porecatu. Processo-crime contra Arildo Gajardoni e outros.
1951. Ver ainda: Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná. Arquivo DOPS.
Relatório do Delegado Eduardo Louzadas da Rocha. Pasta 427/188.

130
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Os trabalhadores, contratados como empreiteiros


para derrubar o mato e fazer o plantio, geralmente eram de
outros estados, sobretudo Minas Gerais e São Paulo e che-
gavam desavisados dos conflitos que estavam acontecendo
na região, sem informações de que iriam trabalhar em terras
contestadas, e de alta periculosidade.
Esse fato criou mais uma dificuldade para os possei-
ros armados, pois deveriam abrir uma nova frente da luta:
teriam que combater a polícia dentro da floresta e também
se arriscarem em campo aberto para embargar o trabalho
dos empreiteiros nas posses. E, o que era mais difícil: fazer os
embargos sem colocar em risco a vida daqueles empreiteiros
ou mesmo sem criar um atrito maior com eles.
Ao embargar uma derrubada, ou fazer a “limpeza”
– termo utilizado pelos posseiros -, eles deveriam primeiro fu-
rar o cerco dos jagunços contratados pelos grileiros para dar
cobertura e amparo aos empreiteiros. Na sequência, preci-
savam se reunir com esse grupo de trabalhadores e explicar
que aquelas terras eram deles, que os grileiros que os haviam
contratado estavam usurpando a posse. Depois dessa con-
versa precisavam, ainda, convencê-los a desistir do serviço e
abandonar a região, ou pelo menos a região conflagrada.
Logo, essas ações tinham dois momentos: eliminar os jagun-
ços e se reunir com os empreiteiros e convencê-los a deixar
a posse.
Os maiores embates dos posseiros se deram, exata-
mente, contra os jagunços. A Força Policial, por estar fazendo
um trabalho para os grileiros, era, sem dúvida, um inimigo a
ser combatido. Mas era considerado um inimigo fácil. Primei-
ro porque eram profissionais despreparados para o embate
em situação de guerrilha. O máximo que a Força Policial fa-
zia era vasculhar estradas e residências à procura dos possei-
ros. Nas estradas, principalmente aquelas que cortavam as
florestas, tornavam-se presas fáceis das emboscadas e dos
tiroteios de surpresa. Com os jagunços era diferente. Eles não
só eram temidos, como conheciam muito bem a região e
lutavam de igual para igual, com as mesmas táticas e com a
ANGELO PRIORI

mesma precisão. Por isso era fundamental a eliminação dos


jagunços.
Com a chegada do “capitão Carlos” na área, os
posseiros começaram a apertar o cerco contra os grileiros e
131
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

fazendeiros, com o objetivo de exercer melhor controle so-


bre a região e expandir a luta pela terra. Foi então montado
um acampamento militar nas imediações da posse de José
Billar, onde, sob uma barraca de lona, eram discutidas as es-
tratégias de resistência, as táticas de luta, a definição dos
ataques e o plano de ampliação dos grupos.
Para ampliar os grupos armados, os líderes do mo-
vimento instituíram o mutirão, que em pouco tempo come-
çou a dar resultados práticos. Tratava-se de reunir em uma
posse o maior número possível de trabalhadores para realiza-
rem os serviços necessários, como capinar, colher café, fazer
uma cerca ou até mesmo derrubar mato. Sempre no final da
tarde eram realizadas reuniões para discutir o movimento e
conscientizar os trabalhadores da importância da participa-
ção e engajamento na resistência armada contra os grileiros
e fazendeiros, ou “tatuíras”, como diziam os jornais do PCB,
editados nesse período.11
Com uma mobilidade operacional eficiente, os gru-
pos não paravam de exercer a “limpeza” da área, expulsan-
do administradores, jagunços e trabalhadores contratados
por grileiros. Mas nada foi mais difícil de ser enfrentado do
que as tropas militares e os agentes do DOPS que acorreram
à região, sobretudo a partir do mês de maio de 1951.
CONFLITOS AGRÁRIOS E RESISTÊNCIA: OS CAMPONESES DE PORECATU

A FORÇA DA REPRESSÃO

Com o desenvolvimento e ampliação da luta arma-


da, o Estado mobilizou um grande efetivo de homens para
combater a resistência. O Exército, a Força Pública e o DOPS
agiram fortemente, no sentido de prenderem os posseiros e
desmobilizarem os grupos armados. No dia 17 de junho de
1951, a polícia e os agentes do DOPS localizaram uma reu-
nião da direção do PCB em Londrina, que discutia os passos
seguintes do movimento, e, numa ação bem-sucedida, aca-
baram prendendo todos os dirigentes do PCB da cidade e
alguns membros do comando da revolta.
A prisão dos dirigentes do PCB em Londrina foi en-
carada pelo DOPS como o primeiro passo para desmontar a
revolta armada dos posseiros de Porecatu. Com a abertura
11 Voz Operária. Várias edições dos meses de out., nov. e dez. de 1950 e de jan., fev., mar.
e abr. de 1951.

132
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

do inquérito e o recolhimento daqueles militantes à cadeia,


escreveu o Delegado do DOPS, Eduardo Louzadas da Ro-
cha: “foi possível dedicar especial carinho à outra parte do
problema, que era o que se poderia dizer o aspecto de exe-
cução, constituído pelos bandos armados de Porecatu”.12
As prisões tiveram um natural reflexo nas atividades
da revolta armada em andamento, principalmente no mo-
ral dos componentes dos grupos armados. Não tanto, ob-
viamente, pela prisão dos dirigentes do PCB de Londrina, já
que eles não tinham uma aproximação mais direta com os
posseiros, mas, sobretudo, pela prisão inesperada de Celso
Cabral de Melo, ex-dirigente nacional do PCB e especial-
mente enviado pelo Partido para aquela região. Celso Ca-
bral era o homem do Partido encarregado de dar direção
política e organizar os grupos armados. A sua prisão, de cer-
ta forma, acarretou alguma desorientação nesse sentido.
Não que os posseiros não tivessem outras lideranças. Elas
existiam e tinham um poder fundamental no processo de
luta, já que eram lideranças forjadas entre os próprios pos-
seiros, como Hilário Gonçalves Pinha e Arildo Gajardoni, que
na hierarquia da revolta vinham abaixo apenas do capitão
“Carlos”. No entanto, nem um nem outro tinham a mesma
autonomia do capitão que, além disso, era o homem de
ligação entre os posseiros armados e a direção do Partido
Comunista.
Mas o que provocou um maior estrago nas atividades
dos posseiros foi a atitude do capitão Carlos, depois de sua
prisão. Nos seus depoimentos à polícia, ele “abriu a boca”,
informando todas as ações programadas, a quantidade de
armas, o pessoal rebelado dentro das matas, facilitando a
ação da polícia no desbaratamento da revolta armada. As
prisões dos dirigentes do Comitê do PCB em Londrina e de
Celso Cabral de Melo, aliada à ampliação do número de
soldados do Exército e da Polícia Militar do Estado, provoca-
ram um refluxo quase imediato no movimento. No final de ju-
lho de 1951, já não havia mais posseiros com armas na mão.
Muitos foram presos, outros fizeram acordos com os grileiros e
ANGELO PRIORI

outros, ainda, saíram da região para dedicar-se à militância


clandestina no PCB.
12 Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná. Arquivo DOPS. O caso de Pore-
catu: relatório apresentado ao Coronel Albino Silva. Pasta 427/188.

133
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizando esse texto é importante frisar que o mo-


vimento dos camponeses de Porecatu permite-nos repen-
sar a atuação da esquerda no campo, principalmente a
atuação do PCB. Vimos que a atuação desse partido, no
início dos anos 1950, foi motivada pela nova linha política
formulada pelos manifestos de janeiro de 1948 e agosto de
1950. É verdade que essa linha política teve, internamente,
várias resistências. A militância, e algumas lideranças, prin-
cipalmente a sindical, faziam dupla atuação. Ora acatan-
do, ora não, a linha política do Partido13. No caso aqui es-
tudado, não foi o partido quem determinou, por exemplo,
a recorrência à luta armada. Quando chegou à região, a
intenção pela luta armada já era uma realidade manifesta.
Mas, sem dúvida, essa nova linha política possibilitou uma
atuação mais presente do partido. Assim sendo, o PCB rapi-
damente se acoplou ao movimento dos posseiros de Pore-
catu e à sua auto-organização.
E por que não houve resistência à ajuda do PCB?
Pode-se inferir que a história desse partido, sobretudo a ex-
periência acumulada em algumas lutas, urbanas, é verda-
de, tenha contribuído para isso. O PCB podia fornecer apoio
CONFLITOS AGRÁRIOS E RESISTÊNCIA: OS CAMPONESES DE PORECATU

que os camponeses necessitavam para manter o movimen-


to: armas, alimentos, remédios, roupas, dinheiro e “quadros”
profissionais. A vinda do controverso “capitão Carlos”, de
“Machado”, de “Ortiz”, de Irineu Luiz de Moraes e de alguns
dirigentes do Comitê Central é excepcional.14
O próprio PCB encarava aquele movimento como
prioritário. Estava ali a possibilidade de se colocar em prá-
tica as ideias e as estratégias elaboradas pelos manifestos,
de mostrar a eficácia de sua linha política. Não é ocasional
o fato de o principal jornal do partido à época – o Voz Ope-
rária – ter mantido no local do conflito uma equipe de repór-
teres, desde o mês de novembro de 1950 até praticamente
o fim do conflito, em agosto de 1951. Também não foi por
13 Angelo Priori. Paixões políticas e militância partidária (PCB: 1947-1954). Espaço plural,
Mal. Cândido Rondon, ano XVI, n. 33, p. 88-107, jul./dez. 2015.
14 Sobre os militantes enviados pelo Comitê Central ao Paraná, ver Clifford Welch e Se-
bastião Geraldo. Lutas camponesas no interior paulista: memórias de Irineu Luís de
Moraes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

134
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

acaso a presença de altos quadros da estrutura do PCB nas


imediações do conflito.
Portanto, havia um elo de ligação entre os posseiros
e o PCB, que permitia essa união. Os posseiros precisavam
de uma infraestrutura para manter a luta, o PCB de um palco
para colocar em prática suas estratégias políticas. Essa com-
binação permitiu uma aproximação entre um e outro.
Mas foi uma aproximação momentânea, conjuntu-
ral, pragmática. É bem provável que os posseiros não tives-
sem consciência do que significava aquela aproximação –
embora ela resolvesse parte dos seus problemas. É provável
também que o PCB soubesse que aquela aproximação po-
deria se desfazer, como de fato se desfez, tão rapidamente
como ela foi realizada.

ANGELO PRIORI

135
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A LUTA PELA TERRA NO SUDOESTE


DO PARANÁ: A REVOLTA DE 1957
Paulo José Koling

No ano de 2017 registra-se a passagem de 60 anos


da Revolta de 1957, ocorrida no Sudoeste do Paraná. Nes-
se ano, o contexto atual brasileiro e paranaense está sendo
marcado por momentos e processos que colocam em “xe-
que” os rumos do presente, e, em decorrência disso, do pró-
prio futuro. Neste sentido, dois contextos são provocativos – o
da Revolta de 1957 e o atual –, e possibilitam uma interação.
Uma revisão sobre o passado pode fortalecer as lutas sociais
atuais na medida em que suas leituras e releituras qualificam,
hoje, o saber-fazer histórico. Mas, a força dos registros e co-
memorações, no caso, das bodas de diamante, podem ofus-
car a história passada para valorizar ou reatualizar somente
o predomínio dos agentes e das agências oficiais atuais. Tra-
tando-se da Revolta de 1957, as edições das passagens dos
30 anos (1987), dos 40 anos (1997) e dos 50 anos (2007) ser-
vem de base para uma crítica aos usos e abusos em relação
à história daquele movimento social de luta pela terra. Em
meio a isto, há a cisão entre o chão da história do passado e
o que se escreve e se rememora sobre aquelas lutas. Assim, a
PAULO JOSÉ KOLING

questão da terra perde conteúdo.


Neste capítulo, trataremos de alguns pontos sobre
a história da Revolta de 1957, bem como das abordagens
realizadas por pesquisadores, estudiosos e autodidatas, e
também por agentes e agências do Estado. O conjunto de
137
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

produções sobre a revolta e a construção da memória do


evento – monumentos públicos, fotografias, fontes orais –,
assim como a associação dessa memória à “identidade do
Sudoeste” e do “Homem Sudoestino”, como afirmou Hermó-
genes Lazier1, já autorizam e estimulam a revisitar e proble-
matizar a história da história da Revolta.

O SUDOESTE NOVO: ENTRE LITÍGIOS E GRILAGENS

Antes de qualquer apresentação da Revolta de 1957


e da formação histórico-social da região do Sudoeste Novo
no Paraná, para dimensionar o tamanho do problema das
concessões de terras às empreiteiras das obras de ferrovias e
da grilagem de terra que as companhias imobiliárias e o gru-
po do governo Moisés Lupion queriam consolidar no papel,
é importante inserir um mapa com a indicação das últimas
glebas destes litígios (a Gleba Missões, com 425.731 hectares;
e parte da Gleba Chopim, da margem esquerda do Rio Cho-
pim, com área de 38.720 hectares), que totalizavam 464.451
hectares a serem grilados.
MAPA DAS PRINCIPAIS GLEBAS HISTÓRICAS DO SUDOESTE
A LUTA PELA TERRA NO SUDOESTE DO PARANÁ: A REVOLTA DE 1957

FONTE: Rui Christovam Wachowicz. Paraná, Sudoeste: ocupação


e colonização. Curitiba: Lítero-Técnica, 1985, p. 185.

Hermógenes Lazier realizou um estudo detalhado so-


bre a história dos litígios e da grilagem que houve nestas ter-
1 Hermógenes Lazier. Francisco Beltrão: 25 anos de lutas, de trabalho e de progresso.
Francisco Beltrão/Paraná: Editora Folha do Sudoeste Ltda., 1980.

138
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ras do Sudoeste novo do Paraná2, apresentando uma boa


síntese dos agentes e agências (do Estado, da sociedade ci-
vil e de grupos privados nacionais e estrangeiros) envolvidos
nos negócios e nas negociatas. Considerando que para uma
exposição detalhada requereria um texto mais longo, para
o momento, indicamos apenas um trecho da obra 1957: a
revolta dos posseiros, de Iria Gomes:
O governo provisório da República, através do De-
creto n.º 305, de 7 de abril de 1890, manteve, com algumas
alterações, o Decreto Imperial. Em seguida, em 1891, essas
concessões foram transferidas para a Companhia União
Industrial e, em 6 de maio de 1893, pelo Decreto n.º 1.386,
para a Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande,
do grupo Brasil Railway Company. Foi essa companhia quem
realmente construiu a Estrada de Ferro Itararé-Uruguay e o
ramal Jaguariaíva (Paraná)-Ourinhos (São Paulo), bem como
recebeu parte das terras concedidas, ficando um resto para
receber posteriormente. Coube ao Estado do Paraná a de-
marcação e titulação das áreas concedidas, tendo em vista
que, pela Constituição da República, de 1891, as terras devo-
lutas e nacionais passaram ao domínio dos Estados3.
Neste emaranhado também tem elementos da dis-
puta territorial que houve entre os estados de Santa Catarina
(SC) e do Paraná (PR). Além do governo de SC ter efetuado
uma concessão a José Rupp (para exploração de madeira
e erva-mate), ainda no século XIX, a própria guerra do Con-
testado, ocorrida no período de 1912 a 1916, e a atuação da
empreiteira Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Gran-
de (CEFSPRG), num litígio jurídico com Rupp, fez parte das
disputas de posse e propriedade da região do Contestado.
Sobre este assunto, novamente cabe citar uma passagem
da reflexão feita por Iria Gomes.
No final do século XIX, José Rupp obteve do Governo
de Santa Catarina um contrato de arrendamento de terras
consideradas devolutas, para explorar ervais e matas. Essas
PAULO JOSÉ KOLING

terras, no entanto, já pertenciam, por decreto, à Companhia


Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. Essa companhia,
agindo judicialmente, requereu mandado de manutenção
2 Idem, p. 7-27.
3 Iria Zanoni Gomes. 1957: A Revolta dos Posseiros. Curitiba: Criar Edições, 1986. p. 30.

139
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

de posse. A medida judicial foi-lhe concedida e, mais tarde,


cassada4.
Nas tramas dos litígios de José Rupp contra a CEFSPRG
e o próprio governo federal, entre os álibis e brechas da lei, os
quais Rupp muito bem conhecia, ele propôs receber, como
indenização pelas perdas de madeira e erva-mate, a con-
cessão e titulação de terras na região Sudoeste e Oeste do
Paraná. Conforme Ruy Wachowicz5, no início Rupp reivindi-
cou as glebas: Missões, Chopim, Chopinzinho, Silva Jardim e
Andrada.
Durante o governo de Getúlio Vargas, na conjuntura
do Estado Novo (da “marcha para o oeste”, da criação da
Colônia Agrícola Nacional General Osório, em 1941, e do Ter-
ritório do Iguaçu, em 1943) e no contexto da Segunda Guer-
ra Mundial, houve outros desdobramentos nesse cenário, na
composição das partes interessadas e seus pleitos. Hermó-
genes Lazier tratou da ação que o novo governo no Paraná,
indicado por Vargas, fez em relação às concessões de terra
e os compromissos de contrato não executados.
Vitoriosa a Revolução de 1930, o general Mário Tou-
rinho assumiu o Governo do Estado do Paraná como
interventor. O novo Governo do Paraná começou a es-
tudar as concessões de terras feitas à CEFSPRG e cons-
tatou irregularidades, inclusive o não cumprimento do
A LUTA PELA TERRA NO SUDOESTE DO PARANÁ: A REVOLTA DE 1957

contrato por parte da referida companhia. Em segui-


da, pelos Decretos nos 300 e 29 (sic.) [20], de 30/11/1930
e 5/01/1931, anulou algumas daquelas concessões.
Entre as titulações anuladas estavam as das glebas
Missões e Chopim. Com esta medida o território do Su-
doeste do Paraná voltou ao domínio do poder público.
A Companhia de Estradas de Ferro São Paulo-Rio Gran-
de, porém, não se conformando com os referidos de-
cretos, entrou com recursos na justiça para garantir a
posse das referidas terras6.

Sobre este assunto Ruy Wachowicz citou as divergên-


cias que havia entre o governo federal e o governo do Pa-
raná em relação às competências e à legalidade dos atos
realizados nas concessões de terras e, em decorrência disso,
4 Idem, p. 34.
5 Ruy C. Wachowicz. Paraná, Sudoeste: ocupação e colonização. Curitiba: Lítero-Técni-
ca, 1985. p. 188.
6 Hermógenes Lazier. Obra citada, p. 26.

140
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

também na indicação da gleba Missões, enquanto patrimo-


nial imobiliário da CEFSPRG, a ser incorporado à Superinten-
dência das Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional
(SEIPN).
Em 1940, o governo federal baixou o decreto lei 2.073,
de 8 de março, incorporando ao patrimônio da União
todos os bens da São Paulo – Rio Grande e entre outras
glebas a denominada Missões.
Pela ótica do Estado do Paraná, a incorporação da gle-
ba Chopim pela União era juridicamente correta, mas a
de Missões, não. Esta havia sido titulada em pagamento
do ramal de Guarapuava, um contrato estadual.
Mas assim não pensava o governo federal. A gleba
Missões estava relacionada nos bens da São Paulo –
Rio Grande e foi incorporada ao patrimônio da União.
Pelo decreto 2.436, de 10 de julho de 1940, foi criada
a Superintendência das Empresas Incorporadas ao Pa-
trimônio da União (SEIPU), para gerir os bens da extinta
Brazil Railway Co.7

Para Joe Foweraker, esse decreto lei nº. 2.073, de en-


campação de bens da Brazil Railwy/CEFSPRG, incluiu a Com-
panhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) por ter
sido esta companhia a sucessora de parte das concessões
de terras no Paraná e nos negócios da construção do ramal
Guarapuava-Foz do Iguaçu8. Com relação a esse ato do go-
verno federal, cabe citar a análise de Gomes sobre a desa-
propriação em pagamento de dívida à União: “essa empre-
sa devia ainda ao Patrimônio Nacional importância superior
a três milhões de libras que recebera a título de adiantamen-
to para ser deduzida de sua receita bruta, a que ela, não
obstante expressa convenção, jamais cumprira”9.
Os litígios passaram a ter um novo rumo, que resultou
na introdução da grilagem da gleba Missões e parte da Cho-
pim, a partir do ingresso da companhia imobiliária de terra
Clevelândia Industrial e Territorial Ltda. (CITLA) e do grupo Lu-
pion, o que incluía o próprio governo de Moisés Lupion, que
à época cumpria o seu primeiro mandato. Lazier tratou de
PAULO JOSÉ KOLING

indicar estes novos personagens:


7 Ruy Christovam Wachowicz, Obra citada, p. 180-181.
8 Joe Foweraker. A Luta pela terra: a economia política da fronteira pioneira no Brasil de
1930 aos dias atuais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. p. 126.
9 Iria Zanoni Gomes. Obra citada, p. 32.

141
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

foi aí, então, que entrou na ‘jogada’ das terras do Su-


doeste, a Clevelândia Industrial e Territorial Ltda (CI-
TLA). Em 26.07.1950, José Rupp cedeu seu crédito à
CITLA. A partir de 26.07.1950 o Poder Público Federal
deveria pagar a indenização não mais a José Rupp e
sim à CITLA10.

Em entrevista que Wachowicz realizou com Mário


José Fontana, no dia 20/12/1978, o diretor da empresa rela-
tou que: “A CITLA entrou com requerimento para receber em
terras o pagamento a que tinha direito. Pelo crédito de Rupp
pediu cinco glebas: Missões, Chopim, Chopinzinho, Silva Jar-
dim e Andrada”11.
A partir daí aconteceu o milagre. Aquilo que era ile-
gal passou a ser legal. Aquilo que era indevido passou
a ser legítimo. Aquilo que era indeferido passou a ser
deferido.
Com a entrada da CITLA na problemática do recebi-
mento de indenização todas as portas se abriram e,
em 17.11.1950, foi acertado entre a CITLA e a Superin-
tendência das Empresas Incorporadas ao Patrimônio
Nacional o acordo sobre a indenização. O acordo foi
a titulação para a CITLA da Gleba Missões e parte da
Gleba Chopim como pagamento daquele crédito.
Em 01 de julho de 1950, como vimos, foi indeferido um
pedido de José Rupp para que fosse paga a indeniza-
ção apenas com a Gleba Missões.
A LUTA PELA TERRA NO SUDOESTE DO PARANÁ: A REVOLTA DE 1957

Apenas quatro meses depois a mesma Superintendên-


cia acertou com o acordo, agora já com a CITLA e
não com José Rupp, titulando não só a Gleba Missões,
mas, também parte da Gleba Chopim12.

O que mais interessa nessa negociata foi o jogo de


interesses que o governo Lupion e a CITLA passaram a realizar
dentro e fora do Estado para se fazerem de donos legais da-
quelas glebas. Com isto, poderiam implantar o “projeto celu-
lose” e exigir de forma “amistosa” e coercitiva que os colonos
e posseiros pagassem pelas terras que tinham obtido como
posse (abertura em terras devolutas, ou compra do direito
de posse) ou mesmo da Colônia Agrícola Nacional General
Osório (CANGO). Lazier se referiu ao lobby que o governa-
10 Hermógenes Lazier. Obra citada, p. 10.
11 Ruy Christovam Wachowicz. Obra citada, p. 187-188.
12 Hermógenes Lazier. Obra citada, p. 10.

142
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

dor Lupion, do Partido Social Democrático (PSD), fez junto ao


presidente Juscelino Kubitschek (JK), do PSD, e na SEIPN, para
favorecer a CITLA.
Para a efetivação da “maior bandalheira da Repú-
blica”, como denunciou Othon Mäder (UDN)13, no dia 17 de
maio de 1957, em seu discurso na tribuna do Senado, agen-
tes e agências do Estado do PR, sob o controle do grupo lu-
pionista, a conivência de administrador da Superintendência
– Antonio Vieira de Melo – e os deslizes intencionais “do tabe-
lião do 6.º Ofício de Notas, Francisco Rocha, em cujo cartó-
rio foi registrada a escritura de dação em pagamento”14, a
CITLA obteve o registro dessas áreas. Ruy Wachowicz incluiu
os interesses que a imobiliária Pinho e Terras – vinculada ao
grupo Dalcanalle/Ruaro, à Braviaco e à União Democrática
Nacional (UDN) – também tinha nisto, pois havia adquirido
11.500 alqueires da SEIPN, localizados na gleba Missões15.
Afora isto, Moysés Lupion agiu à revelia da lei, ao “dri-
blar” a contestação que o Instituto Nacional de Imigração
e Colonização (INIC) – agência vinculada ao Ministério da
Agricultura que assumiu a administração da CANGO – e o
Conselho Nacional de Segurança faziam acerca da ilegali-
dade dos termos de dação.
A pedido do INIC, o Conselho de Segurança Nacio-
nal avisou por ofício a todos os cartórios do Paraná e Santa
Catarina para que não lavrassem a escritura da CITLA, na
região da fronteira, sem assentimento por escrito do referido
Conselho16.
Para contornar esse problema, pois o cartório de
Clevelândia não registraria, o governo Lupion criou um novo
Cartório de Registro de Imóveis: “Foi então instalado um car-
tório em Santo Antônio do Sudoeste e a escritura transcrita
incontinente. Mais uma arbitrariedade era cometida no lusco
fusco do governo Lupion”17. Assim, em 1951, a CITLA instalou
seus escritórios no Sudoeste.
13 Othon Mäder. A empresa Clevelândia Industrial e Territorial Ltda. e a questão das terras
denominadas Arapoti e Missões, no Estado do Paraná” In: CONGRESSO NACIONAL.
PAULO JOSÉ KOLING

Anais do Senado Federal – Mês de Maio de 1957. Rio de Janeiro: Congresso Nacional/
Diretoria de Publicações, 1957. p. 394-400.
14 Ruy C. Wachowicz. Obra citada, p. 189.
15 Idem, p. 184.
16 Idem, p. 190.
17 Idem, p. 191.

143
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Durante o mandato do governador Bento Munhoz


da Rocha Neto, da UDN, de 1º de fevereiro de 1951 a 31 de
janeiro de 1956, a CITLA não pode atuar à revelia da lei nem
sob a proteção do governo do Estado, pois Bento Munhoz
havia proibido a coleta do imposto de transmissão de pro-
priedade, as “SISAS”, nas áreas da CITLA, pelo fato de a da-
ção (a transferência da área das glebas à empresa, feita de
forma irregular pelo INIC) estar sub-judice (em trâmite na Jus-
tiça e sem decisão judicial final). Ao assumir o novo mandato,
em 1º de fevereiro de 1956, Lupion voltou a dar guarida à
CITLA, retirando a proibição.

ENTRE POSSEIROS ANTIGOS E NOVOS POSSEIROS


COLONOS

Para compreender a dimensão do que foi a multidão


levantada do chão em armas no Sudoeste novo, principal-
mente durante os dias 9 a 15 de outubro de 1957, e também
no dia 22 de outubro, em Francisco Beltrão, quando aquela
grilagem foi derrotada, é preciso situar alguns aspectos da
formação histórico-social, principalmente em relação ao
movimento de migração mais recente que houve naquela
fronteira agrícola, no que se refere ao contingente demo-
gráfico, às formas de acesso à terra, à condição da posse e
A LUTA PELA TERRA NO SUDOESTE DO PARANÁ: A REVOLTA DE 1957

às práticas de grilagem realizadas pela CITLA, a Comercial e


Agrícola Paraná Ltda., a Colonizadora Apucarana Ltda. e os
agentes e agências do governo do Paraná, o “bloco Lupion/
CITLA”.
Para uma análise qualificada, esses temas devem ser
dimensionados e integrados às suas temporalidades, com in-
dicação dos períodos delimitados e seus personagens, numa
perspectiva de conjuntura e de processo mais amplo, porém
sem confundir a invenção e as reatualizações de uma tradi-
ção – a “identidade ao Sudoeste” e ao “Homem Sudoesti-
no”, conforme abordou Hermógenes Lazier –, como se fos-
sem o próprio chão da história.
Ao abordar a formação do Sudoeste, Iria Gomes18
indicou que até a década 1940 a reocupação foi realizada
de forma extensiva (paranaenses dos Campos Gerais e refu-
18 Iria Zanoni Gomes. Obra citada, p. 15-16.

144
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

giados do Contestado, além de caboclos e nações indíge-


nas autóctones) e que, a partir desse período, o movimento
migratório foi realizado de forma intensiva, principalmente a
partir dos projetos de colonização dirigida, fomentados pelo
governo Vargas, como a “marcha para o oeste” e a criação
da Colônia Agrícola Nacional “General Osório”, a CANGO,
em 1941, com forte presença de colonos sulinos, catarinen-
ses e gaúchos. Desse novo processo resultou a integração
do Sudoeste ao estado e ao mercado nacional, bem como
uma mudança radical na composição social e no perfil de-
mográfico da região. Os povos indígenas foram confinados
mais ainda em reservas e muitos dos caboclos existentes, os
primeiros posseiros, venderam o direito de posse aos novos
colonos e citadinos, saindo em busca de outras terras.
João Bosco Feres, na análise que fez sobre essa trans-
formação, indicou que alguns bodegueiros e safristas luso-bra-
sileiros caboclos permaneceram na região e tiveram posição
social e político-institucional relevante19. Porém, é preciso pon-
derar sobre esta abordagem que Bosco fez, como se tivesse
ocorrido uma transição pacífica e substitutiva, “sem nenhum
choque com os posseiros caboclos” e os novos colonos. Acer-
ca disso é fundamental retomar a abordagem que Ricardo
Abramovay fez, pois esse processo correspondeu a uma mu-
dança radical no modo de uso e propriedade da terra. Para
Abramovay, o “mundo da propriedade só se afirmou graças à
eliminação do mundo do usufruto, graças à extinção social do
caboclo”20. Enquanto os posseiros caboclos praticavam uma
sociabilidade de usufruto da terra, sem perspectiva mercantil
e de acumulação de capital, os novos colonos, também pos-
seiros numa fronteira e frente agrícola, almejavam a proprie-
dade fixa e produtiva comercial da terra.
Quanto aos aspectos ocupacionais, Hermógenes La-
zier publicizou os dados produzidos pela CANGO, tendo por
fonte os relatórios anuais da agência:
A população cadastrada na CANGO, foi de 467 fa-
PAULO JOSÉ KOLING

mílias em 1947, 887 em 1948, 1068 em 1949, 1440 em 1950 e


19 João Bosco Feres. Propriedade da terra: opressão e miséria (o meio rural na história
social do Brasil). Amsterdam: CEDLA, 1990, p. 496.
20 Ricardo Abramovay. Transformações na vida camponesa: o Sudoeste paranaense. Dis-
sertação de Mestrado em Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais – USP. São Paulo, 1981, p. 49.

145
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

2725 famílias em 1956. A população cadastrada, portanto,


aumentou de 2.529 em 1946 para 4.946 [em 1947], 6045 em
1949, 7147 em 1950 e para 15.284 em 1956”21.
Esse crescimento acentuado de novos migrantes in-
dica o dinamismo que aquela frente agrícola tinha à época.
Mas faz-se necessário evitar o uso de dados demográficos e
socioeconômicos fora do seu tempo e lugar, para evitar abs-
trações e anacronismos, principalmente se os dados forem
dos títulos de propriedade do Grupo Executivo para as Terras
do Sudoeste do Paraná (GETSOP), expedidos até 1974.
No período mais crítico da grilagem e dos conflitos,
o cenário que Gomes indicou sobre a CANGO era: “no fim
do exercício de 1956, o núcleo tinha registrado 8.804 colonos
reivindicando terras, totalizando um número aproximado de
26.000 pessoas aptas para os serviços da lavoura”22. Estes da-
dos citados por Lazier e Gomes são importantes, por expres-
sarem o contexto de 1957, quando aquelas companhias e
aquelas práticas de grilagem foram derrotadas no Sudoeste,
por força da multidão em armas.

NOVO CONTEXTO DA GRILAGEM

Quando Moysés Lupion assumiu o novo mandato, em


1956, uma das primeiras coisas que fez foi cancelar a proibi-
A LUTA PELA TERRA NO SUDOESTE DO PARANÁ: A REVOLTA DE 1957

ção do recolhimento da SISAS, possibilitando, com isto, o pa-


gamento do imposto e o registro dos lotes urbanos e rurais a
serem vendidos pela CITLA, na Gleba Missões e na parte da
Chopim. Outra ação que o governo Lupion, o grupo Lupion
e a CITLA – que estava sob a direção de Mário José Fontana
– realizaram após sua nova eleição e que mudou significativa-
mente os desdobramentos das práticas de grilagem das terras
foi a negociação com outras duas empresas imobiliárias de
terras: – a Comercial e Agrícola Paraná Ltda. que ficou com
as áreas dos distritos de Verê e de Dois Vizinhos, no município
de Pato Branco; e, a Colonizadora Apucarana Ltda. que ficou
com áreas nos municípios de Capanema e Santo Antônio do
Sudoeste Os estudos de Iria Gomes e Ruy Wachowicz23 indicam
duas explicações para este fato: uma defendida por seus prin-
21 Hermógenes Lazier. Obra citada, p. 15. Gomes. Obra citada, p. 21 – nota 20.
22 Iria Zanoni Gomes. Obra citada, p. 21.
23 Idem, p. 49-50; Ruy Christovam Wachowicz. Obra citada, p. 206.

146
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

cipais opositores da UDN e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),


de que na eleição a governador de 1955, Moysés Lupion ad-
quiriu dívidas com financiadores da sua campanha e pagou-
-as com as terras da CITLA (João Simões, diretor do Banestado
e sócio da Comercial, e Amin Maia, prefeito de Apucarana e
sócio da empresa Apucarana); outra, relatada a Wachowicz
pelo diretor da CITLA, Mário Fontana, em 20 de dezembro de
1978, de que, com o projeto celulose (já fracassado), o grupo
Lupion contraiu dívidas, no país e no exterior (principalmente
na França), cujo pagamento foi realizado com a venda das
terras para a Comercial e a Apucarana, a contragosto dele
próprio, Mário Fontana24.
Outra mudança relevante que ocorreu em relação à
grilagem, foi a introdução de milícia privada que a Apucara-
na e a Comercial passaram a realizar, por meio da ação de
jagunços, a mando das empresas e sob a proteção do pró-
prio governo Lupion e dos poderes públicos locais, quando
não por particulares simpatizantes e correligionários da CITLA/
PSD25. Todavia, esse novo cenário de violência não estava res-
trito às duas novas imobiliárias, pois, independentemente de
haver particularidades, a exemplo de Júlio Assis Cavalheiro –
considerado um dos principais “pioneiros” na Vila Marrecas e
de Beltrão, que atuou como diretor da CITLA a partir de 1953 –,
para uma análise da grilagem, das violências diretas e abusos
diversos, a empresa CITLA não era Júlio Cavalheiro, tampouco
este redimia aquela grilagem que envolvia outros setores do
aparelho do Estado durante o segundo governo de Lupion.
De todo modo, durante o período de 1951 até início
de 1956, a CTLA enfrentava resistência da população local e
oposição político-partidária do PTB e da UDN. Também não
contava com o beneplácito de Bento Munhoz, nem com a
garantia de impunidades das autoridades e dos poderes pú-
blicos. Por isso, ao iniciar o segundo governo de Moysés Lu-
pion (PSD), juntamente com a Comercial e a Apucarana – o
“bloco da grilagem” – a empresa CITLA sabia que durante
este período não poderia perder tempo. O uso de jagunços
PAULO JOSÉ KOLING

passou a ser a regra, pois contavam com a certeza da impu-


nidade quando não o próprio apoio das autoridades locais26.
24 Ruy Christovam Wachowicz. Obra citada, p. 204.
25 Idem, p. 206-207.
26 Iria Zanoni Gomes. Obra citada, p. 57 ss.

147
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

OUTUBRO DE 1957: A MULTIDÃO NA RUA EM ARMAS


A presença de novos migrantes colonos e o surgi-
mento de um pequeno povoado no entorno do Rio Marre-
cas, que passou a ser denominado de Vila de Rio Marrecas,
foi objeto de análise de Hermógenes Lazier e Nivaldo Antonio
Oliskovicz, porém com uma abordagem laudatória sobre o
pioneirismo e alguns pioneiros, dando oficialidade a isto em
meio às comemorações das “bodas de prata” de Francisco
Beltrão (1952-1977)27.
No ano de 1948, a sede administrativa da CANGO foi
transferida para a Vila Marrecas e no ano de 1952 a Vila foi
elevada a município de Francisco Beltrão. Como já indicado,
o fluxo e dinamismo nessa frente agrícola era acompanha-
do pela CANGO, mas era também foco de tensionamento
provocado pela CITLA. A constante reviravolta no processo
judicial, as chicanas e a propaganda enganosa difundida
pela companhia tornavam incertas a situação e a condição
de quem tinha a posse ou almejava o acesso à terra, acar-
retando uma percepção de injustiça, de indignação e de
resistência popular28.
Desde a instalação do escritório da CITLA na Vila
Marrecas e o início dos seus negócios, a população local,
não satisfeita com aquela situação, passou a reivindicar ga-
A LUTA PELA TERRA NO SUDOESTE DO PARANÁ: A REVOLTA DE 1957

rantias de acesso à terra e o reconhecimento das posses, da


documentação da CANGO e dos direitos de posse. Exceto
as terras que foram doadas gratuitamente pela CANGO, os
novos posseiros (colonos e citadinos) almejavam o registro
oficial de suas posses e o devido pagamento da terra para
obterem as garantias da propriedade.
Em meio às disputas que havia entre a CANGO e a
CITLA, no dia 3 de setembro de 1951, os próprios moradores
do Povoado de Rios Marrecas fizeram uma assembleia geral
para tratar da “defesa de seus direitos com referência ao lití-
gio existente sobre a legitimação das referidas terras” 29.
Aquela assembleia também aprovou o abaixo-assi-
nado “A Quem Interessar Possa”, subscrito por 250 pessoas
27 Hermógenes Lazier. Obra citada, p. 29-64.
28 Idem.
29 Hermógenes Lazier. Análise histórica da posse de terra no sudoeste paranaense. 3. ed.,
Francisco Beltrão: GRAFIT, 1998. p. 115-123.

148
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

da vila, contendo as deliberações e as demandas que apre-


sentariam às autoridades federais. Também criaram uma Co-
missão Permanente, formada por 20 membros, que, em reu-
nião específica escolheu uma subcomissão. Como indicou
Lazier, esse litígio chegou a envolver cinco partes: CITLA, Pi-
nho e Terra, Governo do Estado do Paraná, Governo Federal
e os posseiros.
Seria uma simplificação indevida tratar os litígios e as
práticas de desintrusagem grileira e de especulação dos lo-
tes (preços exorbitantes) que a CITLA, a Comercial e a Apu-
carana realizavam como sendo apenas um problema da
posse da terra (o direito de uso e práticas de usufruto), en-
quanto ausência ou falta de regularização. Tampouco seria
correto restringir a luta dos posseiros à vontade de obterem
a titulação e o registro legal dos lotes (rurais e urbanos) em
papel passado pelo Estado. O movimento social da luta pela
terra efetivado pelos posseiros no Sudoeste entre os anos de
1951 a 1957 surgiu como resistência e contraposição àque-
las práticas de grilagens, contra os grileiros e seus jagunços
(o braço armado privado), bem como em oposição aos só-
cios lupionistas e pessedistas. Edu Potiguara Publitz, advoga-
do e filiado à UDN, mencionou os abusos da especulação
das companhias, conforme citou Iria Gomes: “Eles queriam
vender as terras aos colonos numa base de 80, 100, 120 mil
cruzeiros a colônia, quando o Estado... queriam as terras na
base de 9, 10 e, no máximo, 12 mil cruzeiros”30.
O uso da violência, a percepção de que os oposi-
tores dos colonos e posseiros desfrutavam da impunidade e
de que tinham a lei a seu favor, as extorsões sofridas, tudo
isso acentuou a necessidade da organização, da ação e da
reação. Com relação ao processo de construção das resis-
tências, Iria Gomes indicou que houve duas fases. A primei-
ra delas, a reivindicatória –, foi caracterizada pela busca de
solução dentro da lei, com realização de abaixo-assinados,
ida a Curitiba e à Capital Federal (Rio de Janeiro), denúncias
PAULO JOSÉ KOLING

às autoridades locais (delegado, juiz, promotor e prefeito) e


manifestações nas emissoras da Rádio Colmeia (Pato Branco
e Francisco Beltrão). A segunda fase, a da radicalização, que
passou a agregar ações de mobilização coletiva e de rea-
30 Iria Zanoni Gomes. Obra citada, p. 55.

149
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ção armada contra as companhias e seus jagunços, além da


tomada das cidades pelos sublevados em armas, realizada
entre 9 e 15 de outubro de 1957, representou uma reação
contra aquela ordem da grilagem lupionista.
Para Gomes, o divisor de águas das práticas dos pos-
seiros e colonos foi o assassinato do vereador Pedro José da
Silva (PTB), o Pedrinho Barbeiro, ocorrido no dia 21 de maio de
1957, no distrito de Verê, município de Pato Branco, por ele
estar organizando um abaixo-assinado que iria levar à Capi-
tal Federal. A mando do diretor da Comercial, dois jagunços
foram até a sua residência e o assassinaram a sangue frio,
como descreveu Ivo Thomazoni: “executado pelo jagunço
João Pé-de-Chumbo, a mando de Lino Marchetti, gerente
da Comercial, em Francisco Beltrão”31.
No distrito de Verê havia um escritório da Comercial
e seus jagunços haviam praticado várias ações de violência
contra colonos, suas mulheres e filho(a)s. No dia 2 de agosto
de 1957, colonos da Barra do Verê, Alto Alegre, Kennedy e
Barra do Santana planejaram uma ação armada para a to-
mada e destruição do escritório da Comercial, porém foram
recebidos a bala pelos jagunços, o que resultou na morte de
dois colonos: Leopoldo Preilepper (ex-expedicionário da FEB),
o “Tigre”¸ e Guilherme Henig. Após isto, a viúva de “Tigre”,
Paula Preilepper, teve que enfrentar os jagunços e a polícia
A LUTA PELA TERRA NO SUDOESTE DO PARANÁ: A REVOLTA DE 1957

para poder retirar o corpo do marido e sepultá-lo. Já do lado


da Comercial não foi divulgado se houve mortos e feridos
entre seus jagunços e demais funcionários32.
Em reação às violências praticadas pelos jagunços
da Apucarana (sob a gerência de Gaspar Kraemer) e da
CITLA (gerenciada por Nilo Fontana) na região da fronteira
com a Argentina, no início de setembro de 1957 os colonos
posseiros destruíram o escritório de Lajeado Grande. Esta
condição da fronteira teve sua particularidade, pois a ação
dos colonos-farrapos, com destaque a Pedro Santin, que li-
derou estas ações, atingiu maior radicalidade na resistência
armada direta realizada contra os grileiros. A tensão social
na fronteira chegou ao ponto de Gaspar Kraemer ter can-
celado uma reunião agendada para uma negociação com
31 Ivo Thomazoni. 50 Anos Revolta dos Posseiros 1957 – 2007: resgatar o passado de
lutas, para valorizar a liberdade do presente. 2. ed. Francisco Beltrão, [2007]. p. 15.
32 Ruy Christovam Wachowski, Obra citada, p. 237.

150
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

colonos por suspeitar que estava correndo risco de vida, em


razão de ter ficado sabendo que, na noite anterior, havia
estranhos querendo saber quem ele era33. No dia seguinte,
em 14 de setembro de 1957, uma camionete da Apucarana,
com motorista e um jagunço, se deslocou até o local da re-
gião e, a mando de Kraemer, deu carona a vários colonos.
No Km 17, entre Santo Antônio do Sudoeste e Capanema,
ocorreu a chamada “Tocaia do Km 17”, que resultou na mor-
te de cinco colonos e das duas pessoas da Apucarana. Den-
tre os cinco colonos estava o pai de um dos que participou
da ação do lado dos colonos34.
O “Setembro de 1957” na fronteira resultou na liber-
tação de Capanema dos grileiros e jagunços das compa-
nhias – que se recolheram em Santo Antônio do Sudoeste –,
onde 2.000 colonos se mobilizaram sob a liderança de Pedro
Santin e derrotaram a grilagem naquela cidade. Este fato
repercutiu fortemente no Paraná e no Governo Federal. Na
área da fronteira, onde a Apucarana e a CITLA atuavam,
se desenrolaram as ações mais contundentes que coloca-
ram o governo de Moysés Lupion em “xeque”, pois recebeu
um ultimatum do Ministro da Guerra, o General Teixeira Lott,
que o convocou a acabar com as práticas de grilagem das
companhias, ou haveria uma intervenção no governo do
Paraná.
Outro fato ocorrido na fronteira que teve grande re-
percussão foi realizado por jagunços, a mando do diretor da
Apucarana e sob o comando do jagunço “Maringá” – Lou-
renço José da Costa –, que deveriam assassinar os “farrapos”
Manuel Paraguay e João Saldanha. Como os jagunços não
encontraram o Manuel Paraguay em sua residência, em re-
presália, incendiaram a casa, e seguiram adiante até a casa
de Saldanha, localizada a beira do Rio Ampére. Uma versão
do “caso Saldanha” foi relatada pelo “Maringá”, em depoi-
mento que teve que prestar ao Juiz de Direito Dr. José Meger,
da Comarca de Pato Branco, no dia 21 de outubro de 1957.
PAULO JOSÉ KOLING

Esse documento foi utilizado pelo senador Othon Mäder para


comprovar os crimes cometidos pelo Governo de Moisés Lu-
pion e pelo “Grupo Lupion”, nos discursos que fez na Tribuna
33 Idem, p. 221; Iria Zanoni Gomes, Obra citada, p. 75-76.
34 Idem.

151
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

do Senado nos dias 6 e 9 de dezembro de 195735. Segundo


Lourenço José da Costa, João Saldanha e um de seus filhos
fugiram pelos fundos da casa ao perceberem a chegada
dos oitos jagunços da Apucarana. Consta no documento
judicial do depoimento de “Maringá” que “José de Oliveira,
vulgo ‘Chapéu de Couro’ matou a mulher de João Salda-
nha, quando esta pretendia evadir-se da casa, inclusive um
menino de oito a dez anos de idade; que o tal Gauchinho
matou uma menina de mais ou menos cinco a seis anos”36.
Além disso, os jagunços teriam saqueado a residência (rou-
bando todos os bens e objetos pelos quais tinham algum in-
teresse) e também incendiaram a casa.
No dia 9 de outubro, porém, estourou o “barril de
pólvora”. Três crianças de Águas do Verê (uma delas filha
de Otto Zwiker, que moveu ação possessória contra a Co-
mercial) foram violentamente açoitadas por jagunços. Elas
foram levadas a Pato Branco e Jácomo Trento – radialista
da Rádio Colmeia, conhecido como Porto Alegre – buscou
apoio em todos os órgãos públicos, sem qualquer sucesso. O
movimento de resistência já havia organizado um plano de
ação: a ocupação das cidades, a destituição das autorida-
des locais e o fechamento dos escritórios das companhias.
A LUTA PELA TERRA NO SUDOESTE DO PARANÁ: A REVOLTA DE 1957

Fonte: Arquivo Público do Paraná. Fundo Documental Moysés Lupion.


Cidade de Francisco Beltrão, cena e cenário – 10/10/1957.
35 Othon Mäder. A Rebelião agrária do sudoeste do Paraná em 1957, suas causas, a
dupla responsabilidade do Sr. Moysés Lupion como Governador do estado e chefe do
“Grupo Lupion”. Separata de dois discursos pronunciados no Sanado Federal em 6 e 9
de dezembro de 1957. Rio de Janeiro – 1958.
36 Idem, p. 12-13.

152
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Porto Alegre e Ivo Thomazoni – este vinculado à UDN


e também radialista da Rádio Colmeia em Pato Branco –,
juntamente com lideranças e apoiadores dos colonos e pos-
seiros usaram a rádio para convocar todos a ocuparem a
cidade a partir da tarde do dia 9 de outubro. Em Francisco
Beltrão, o médico Walter Pécoits (PTB), outra liderança social,
também convocou os colonos e a população para ocupa-
rem a cidade de Beltrão no dia 10 de Outubro. Em Capane-
ma, as companhias já tinham sido expulsas e em Santo Antô-
nio a ocupação ocorreu no dia 12. Os distritos de Verê e Dois
Vizinhos foram ocupados pela multidão e os escritórios das
empresas foram fechados.
O outubro de 1957 representou uma vitória popular e
a expulsão das companhias CITLA, Apucarana e Comercial.
O “bloco lupionista” foi derrotado no Sudoeste, embora con-
tinuasse atuante, haja vista que Moysés Lupion (PSD) manti-
nha-se no governo estadual. O envio de um contingente 183
policiais militares, que chegaram ao município de Francisco
Beltrão no dia 22 de outubro com o objetivo de restabelecer
a ordem lupionista, representou uma das reações da grila-
gem e do lupionismo. O propósito, entretanto, não foi alcan-
çado, pois as tropas foram recebidas por 2.000 colonos em
armas nas ruas.
A própria candidatura de Rubens Martins da Silva
(ex-prefeito de 1952 a 1956 e delegado deposto pelos “de-
sordeiros do 10 de outubro”) nas eleições municipais de 1960,
pelo PSD, foi outra ação do lupionismo e daquela grilagem.
Porém, novamente foram derrotados, pois Walter Pécoits
(PTB), um dos principais líderes do movimento de 1957, foi
eleito prefeito de Francisco Beltrão. E nos cinco municípios
do Sudoeste o lupionismo foi derrotado na eleição de 1960.
A regularização fundiária só teve seguimento após a
criação do GETSOP, em 1962, que atuou até 1974, quando
encerrou o plano de ação, com 43.383 títulos de proprieda-
de de terra e 56.963 lotes, sendo 12.413 (57%) títulos urbanos
e 30.970 (43%) títulos rurais. Porém, o período desde outubro
PAULO JOSÉ KOLING

de 1957 até janeiro de 1974 é outra história. Essa outra histó-


ria não pode ser considerada uma segunda fase do Movi-
mento de 1957, pois, nessa fase, os eventos ocorreram sob a
égide do doloroso processo de modernização autoritária da
Ditadura Militar, com novos agentes e agências, num outro
153
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

contexto social. A luta pela terra no passado passou a ser en-


quadrada na nova ordem, quando não silenciada e vigiada.
Uma multidão na rua em armas, lutando pelo direito
à terra e contra práticas de grilagem, passou a ser, nova-
mente, caso de polícia. Mesmo “líderes herdeiros” do levante
de Outubro de 1957 passaram pelo crivo da “cassação”, a
exemplo do deputado estadual Walter Pécoits (PTB) ou ade-
riram à nova ordem, a exemplo do Ivo Thomazoni (UDN e
ARENA)37.
A LUTA PELA TERRA NO SUDOESTE DO PARANÁ: A REVOLTA DE 1957

37 Confira Hermógenes Lazier. Francisco Beltrão..., p. 64; Ivo Thomazoni. Obra citada, p.
30. Para maiores informações sobre a trajetória política de Thomazoni, consultem http://
www.patobranco.pr.gov.br/omunicipio/prefeitos/.

154
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

POSSEIROS EM LUTA
NO OESTE DO PARANÁ
Antonio Marcos Myskiw

Durante muito tempo, a definição mais usual de pos-


seiro foi: pequeno lavrador que ocupava áreas tidas como
posses antigas, que não eram contestadas por qualquer pes-
soa; que nelas fez moradas habituais de suas famílias, bem
como realizou cultivo de alimentos e criação de animais para
seu sustento.1 A partir da década de 1950, sobretudo com o
fortalecimento das Ligas Camponesas em diferentes regiões
do Brasil, o termo posseiro ganhou nova conotação: campo-
nês que ocupa terras (inclusive latifúndios) que, mesmo sen-
do objeto de contestação feita pelos supostos proprietários,
realizou a edificação de moradias para suas famílias, bem
como o plantio de alimentos e a criação de animais para sua
sobrevivência e comercialização.2
O termo posseiro foi, com o tempo, ressignificado.
Esta mudança, em grande medida, resultou da experiência
na lide do campo, das lutas contra os supostos proprietários
e dos distintos conflitos vivenciados por homens e mulheres,
idosos e idosas, meninos e meninas contra o aparato bélico,
ANTONIO MARCOS MYSKIW

militar, paramilitar e jurídico levados a efeito por fazendeiros,


latifundiários e empresários ligados ao comércio de terras em
áreas de colonização antigas e mesmo recentes.
1 Conferir: Mario Grynszpan. Posseiro. In: Márcia Motta (org.). Dicionário da Terra. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 374.
2 Conferir: Eric Sabourin. Camponeses do Brasil: entre a troca mercantil e a reciprocida-
de. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

155
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

REDEFININDO SIGNIFICADOS: POSSEIRO, COLONO,


POSSEIRO-COLONO

O termo posseiro é muito mais que uma palavra.


Como bem frisou Reinhard Koselleck3, a partir de uma pa-
lavra, de um termo, os conceitos são construídos e ressig-
nificados em razão das tensões e embates sobre seus usos.
No caso que aqui tratamos, a ressignificação foi feita pelos
posseiros e suas lideranças locais/regionais e também por
fazendeiros, empresários e seus jagunços, que, por sua vez,
explicitam as posições ideológicas e políticas, os espaços e
as relações de poder – no campo e na cidade – mediante
as distintas realidades e experiências históricas vivenciadas
em torno da posse, da propriedade da terra, das formas de
trabalho, das motivações econômicas e sociais. Essa apro-
priação e ressignificação do termo, como Mario Grynszpan
observa, foi feita por “categorias diversas de lavradores,
como colonos, arrendatários ou parceiros, [que] passaram
a se identificar como posseiros”4, sobretudo aqueles despos-
suídos de bens e recursos financeiros para adquirir terras em
glebas ou colônias nas quais as áreas se encontravam le-
galmente tituladas. Essa atitude de lavradores pobres pode
ser compreendida como mais uma estratégia de luta pelo
acesso à terra e permanência nela. Ela compreende ações
cotidianas de resistências, quando de embates com jagun-
ços e fazendeiros, e também envolvimento nas diferentes
práticas adotadas pelo Movimento dos Trabalhadores Ru-
rais Sem Terra, visando a desapropriação de terras para fins
de reassentamento e reforma agrária.
POSSEIROS EM LUTA NO OESTE DO PARANÁ

Leonir Olderico Colombo, ao pesquisar a memória


oral em torno dos conflitos agrários ocorridos durante a co-
lonização da região Oeste do Paraná, cunhou o termo “co-
lono posseiro”, visando compreender a contribuição desses
sujeitos para a dinâmica do processo de ocupação e explo-
ração das florestas e terras tidas como inóspitas e devolutas,
ou seja, sem propriedade registrada em Cartório de Registro
3 Conferir: Reinhardt Koselleck. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práti-
cos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992. p. 134-146.
4 Mário Grynszpan. Posseiro. In: Márcia Motta (org.). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005. p. 373.

156
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

de Imóveis.5 O autor observou que, entre as décadas de 1930


e 1950, a ocupação e colonização da região Oeste do Para-
ná já estava em andamento, realizada por posseiros pobres,
cuja origem identitária/étnica era de caboclos, indígenas ou
mensus paraguaios, como eram chamados aqueles que se
dedicavam à extração e transporte de erva mate para em-
presas argentinas. A esses grupos, que dificilmente consegui-
riam comprar terras, juntavam-se pequenos agricultores que
haviam vendido suas propriedades em seu local de origem
para tentar obter área maior, numa localização de posses.
Havia também “aventureiros”, que buscavam delimitar cer-
tas áreas e subdividir a posse para revendê-la a outros possei-
ros ou colonos migrantes pobres, que passaram a se deslocar
para a região nos últimos anos da década de 1950 e no de-
correr da década seguinte.6
Na segunda onda de migração de posseiros e de
colonos rumo ao Oeste do Paraná, ocorrida sobretudo a
partir da década de 1960, acorreu a comercialização/nego-
ciação do “direito de posse” da área então ocupada pelos
primeiros posseiros, mediante trato verbal ou documento re-
digido a punho, sem a chancela do Estado. Para Leonir Co-
lombo, tanto o antigo como o novo posseiro desejavam ser
reconhecidos como colono:

Na concepção do próprio posseiro e de como se vê,


principalmente aquele que quer a terra como meio de
subsistência e renda, ocupava a posse ou adquiria o
‘direito de posse’, mesmo sabendo que não possuía
documentação legal, e se auto denominava colono.
O ‘colono posseiro’ não se enxergava como posseiro
propriamente dito, pois trabalhava e fazia a terra pro-
duzir, não queria ser taxado moralmente como vaga-
bundo ou aproveitador. No entanto, também não se
reconhecia como colono por não possuir a segurança
legal da terra. Enquanto trabalhador, denominava-se
colono, enquanto proprietário era posseiro. Reconhe-
cia-se mais como ‘colono’ do que ‘posseiro’, num jogo
ANTONIO MARCOS MYSKIW

de significados moral e de identidades de agricultor,


trabalhador e honesto.7

5 Leonir Olderico Colombo. No rastro do Burro: memórias e discursos do colono posseiro.


Foz do Iguaçu: Canal 6 Editora, 2015.
6 Leonir Olderico Colombo. No rastro do Burro… Obra citada. p. 73.
7 Leonir Olderico Colombo. No rastro do Burro… Obra citada. p. 76-77

157
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

O conjunto de memórias orais, os textos jornalísticos e


os documentos cartoriais, jurídicos e processuais exploradas
por Colombo evidenciam que, quando da eclosão dos con-
flitos agrários com fazendeiros e empresas de colonização, os
“colonos posseiros” passaram a se manifestar publicamente
como posseiros, pois pretendiam que as terras que eles ocu-
pavam e usavam fossem desapropriadas judicialmente e, ao
final, que eles pudessem ter a posse definitiva das terras, tor-
nando-se proprietários delas. Os colonos, ao seu modo, eram
conhecedores de seus direitos. Sabiam que, na condição de
posseiros, a legislação lhes assegurava o acesso à terra por
meio da posse. Mediante orientação jurídica e mesmo pela
participação de algumas lideranças em reuniões promovi-
das por membros das Ligas Camponesas, os “colonos possei-
ros” resistiram e enfrentaram diferentes formas de violências
utilizadas contra eles. Estas passaram a ser utilizadas como
argumentos em matérias jornalísticas, nas teses dos advoga-
dos, nas manifestações públicas de deputados estaduais e
federais quando se referiam à complexa situação das terras
do Oeste do Paraná.

QUESTÃO AGRÁRIA EM NÚMEROS

Valfrido Piloto, intelectual e poeta paranaense, no


ano de 1961 escreveu e publicou o livro Reforma Agrária:
uma etapa de justiça social. Era sua contribuição com o de-
bate sobre a Reforma Agrária no país, com a qual clamava
por mudanças na estrutura agrária brasileira e paranaense.
Sobre a presença de posseiros no Oeste do Paraná, Piloto
destacou no livro trechos de pronunciamentos do Deputado
POSSEIROS EM LUTA NO OESTE DO PARANÁ

Waldemar Daros, feitos na sessão de 4 de julho de 1961, da


Assembleia Legislativa do Paraná:
Apelo à presidência do Tribunal de Justiça e ao sr. Cor-
regedor Geral da Justiça, para que oficiem aos Juízes
de Direito, recomendando que, em questão de terra,
ao concederem as medidas liminares de reintegração
de posse, primeiro, mandem ouvir os réus, pois é certo
que, segundo pôde se verificar no interior do Estado,
muitas reintegrações liminares concedidas, embora
não caiba culpa ao Juiz, vêm ocasionando profundas
injustiças. [...] Não haveria prejuízo nenhum, que o Juiz,
antes de conceder a reintegração liminar, mandasse

158
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ouvir a parte contrária, que então teria oportunidade


de dizer de sua situação na posse da terra, evitando
assim a execução de medidas violentas. Concluo,
dizendo que o número de posseiros na região Oeste
ultrapassa a 40 mil, pois só em Cascavel foram recen-
seados 12 mil.8

Os números citados pelo Deputado Waldemar Daros


são do censo populacional realizado pelo IBGE no ano de
1960, que, em todo o Paraná, estimou haver 34 mil estabe-
lecimentos de posseiros em uma área de aproximadamen-
te 1 milhão de hectares. Em 1970, o IBGE estimou que 50 mil
posseiros ocupavam uma área de aproximadamente 750 mil
hectares no Paraná.9 Em 10 anos, segundo o IBGE, o número
de posseiros aumentou em 32%, ao passo que a área ocupa-
da por eles teve redução de 25%. Eram os desdobramentos
das distintas fases do processo de povoamento do Paraná,
em especial nas regiões Sudoeste, Oeste e Noroeste do es-
tado. Na medida em que as terras eram comercializadas e
tituladas, um número crescente de caboclos, agricultores e
colonos pobres (meeiros, arrendatários, trabalhadores bra-
çais) migravam para novas áreas de povoamento e faziam
crescer o número de pessoas em áreas rurais na condição
de posseiros, expostos a todo tipo de violência por parte dos
negociantes de terras ou dos supostos proprietários.
A questão agrária na região Oeste do Paraná, nas
décadas de 1960 e 1970, era complexa, inclusive em seu as-
pecto jurídico. Em relatório do Departamento de Geografia,
Terras e Colonização (DGTC) do governo do estado, elabora-
do em 1966 a pedido do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária
e da Comissão Especial de Estudos da Faixa de Fronteira do
Paraná e Santa Catarina, apontou que dos 2.449.436,84 hec-
tares de terras que, naquele tempo, representavam geogra-
ficamente o Oeste do Paraná, 815.640,8 hectares possuíam
dois ou mais títulos de terras legais expedidos sobre uma
ANTONIO MARCOS MYSKIW

mesma área, mas com denominação da gleba ou colônia


8 Waldemar Daros citado por Valfrido Piloto. Reforma Agrária: uma etapa da justiça so-
cial. Curitiba, Gráfica Mundial, 1961. p. 38. Uma síntese do discurso de Waldemar Da-
ros também pode ser encontrado no jornal Diário do Paraná, de 05/07/1961, “Pedido na
Assembleia: desapropriação das terras” citado por Leonir Olderico Colombo. Memória:
documentos sobre a revolta de 61, Capanema, PR: Igal, 2001. p. 54-56.
9 Conferir José Graziano da Silva. A estrutura agrária do Estado do Paraná. Revista pa-
ranaense de desenvolvimento. Curitiba, n. 87, jan./abr. 1996, p. 186.

159
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

diferentes; 403.984,00 hectares de terras possuíam documen-


tação de origem duvidosa, ou seja, titulação falsa ou suspei-
ta; 313.280,7 hectares tinham protocolos de aforamentos, ou
seja, concessão para uso ou exploração feita a pessoas ou
a empresas pelo Governo Federal; 7.800,0 hectares estavam
ocupados por posseiros.10 Em resumo: 1.540.705,5 hectares de
terras da região Oeste do Paraná possuíam alguma anorma-
lidade jurídica. De acordo com os dados apresentados pelo
referido relatório, apenas 908.731,34 hectares estavam livres
de contestação, ou seja, 37,09% do total da área.
Essa variedade de embaraços jurídicos definia um
cenário perfeito para a ação de grileiros, fazendeiros, empre-
sários que desejavam lucrar com negociatas de terras. Tam-
bém empresas de colonização buscavam, nesse contexto,
validar seus supostos direitos sobre as terras ao reivindicar a
posse, a compra ou o registro cartorial, por meio de docu-
mentos de herança. Muitos posseiros e colonos que migra-
ram para o Oeste do Paraná entre fins da década de 1950 e
os primeiros anos da década de 1960 sabiam da existência
de problemas jurídicos. No entanto, não sabiam a dimensão
e a complexidade do problema, desconheciam as dificulda-
des para se resolver a situação então existente. É certo, tam-
bém, que posseiros e colonos pobres foram em busca das
terras com embaraço jurídico visando conseguir na justiça a
desapropriação de determinada área para fins de reforma
agrária ou de assentamento em pequenas áreas. Isso havia
ocorrido no Sudoeste do Paraná, após os conflitos agrários
de 1957, que são objeto de análise de capítulo escrito por
Paulo Koling neste livro.
POSSEIROS EM LUTA NO OESTE DO PARANÁ

JOSÉS, RAIMUNDOS E MARGARIDAS

Em meados de 1985, o Movimento dos Trabalhado-


res Rurais Sem Terra (MST) apresentou à sociedade brasilei-
ra o Dossiê Assassinatos no Campo: crime e impunidade –
1964/1986, publicado pela Editora Global, tendo como base
documental os arquivos da Comissão Pastoral da Terra (CPT),
da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultu-
10 Conferir Antonio Marcos Myskiw. Colonos, posseiros e grileiros: conflitos de terra no
oeste paranaense (1961/66). Dissertação de mestrado em História. Programa de Pós-
-Graduação em História – UFF. Niterói, 2002. Ver, em especial, o capitulo 3.

160
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ra (Contag) e de outras entidades que colaboraram envian-


do informações sobre casos de mortes de trabalhadores ru-
rais nas diferentes regiões do Brasil. Maria Cristina Vannucchi
Leme e Wânia Mara de Araújo Pietrafesa foram as coorde-
nadoras do projeto, da pesquisa e da organização do dossiê.
Para as pesquisadoras,
era preciso, urgente mesmo, que se contassem os
Josés, Raimundos e Margaridas que aparecem sob a
forma de números nas estatísticas – sempre incomple-
tas – sobre a violência no campo. Dar uma feição hu-
mana a esses números e nomes. Além disso, era pre-
ciso também resgatar a vida, as lutas – a vida inteira
de lutas – desses trabalhadores rurais assassinados. Era
necessário resgatar seus rostos e suas histórias, preser-
var da indiferença e do esquecimento, essa memória
camponesa.11

Era sabido que os assassinatos de trabalhadores rurais


apresentados no dossiê compunham apenas uma fração de
um montante maior de crimes cometidos na área rural em
disputas pela terra, entre a década de 1960 e 1980. No en-
tanto, essa fração dos crimes e da impunidade evidenciava
a exploração violenta e indiscriminada da terra no Brasil, a
expropriação das pequenas posses e a morte de posseiros,
bem como a ausência de uma política agrária eficiente que
atendesse as necessidades dos sem-terra, dos boias-frias, dos
posseiros e dos migrantes que vagueavam de um lado para
outro em busca de terra para sobreviver. “Quem teve a co-
ragem de se organizar, resistir e exigir seus direitos encontrou
a violência que podemos chamar de institucionalizada”, ad-
vertia Dom José Gomes, Bispo de Chapecó e Presidente da
CPT Nacional, ao prefaciar o dossiê: “matam-se as lideran-
ças que procuram organizar a resistência, sejam elas líderes
sindicais, advogados, líderes de pequenas comunidades e
outros que tentam ajudar os espoliados. Crescendo a resis-
ANTONIO MARCOS MYSKIW

tência dos posseiros e a organização dos sem-terra, aumenta


a violência no campo”.12
11 Maria Cristina Leme Vannuchi; Wânia Mara de Araújo Pietrafesa. Introdução. In: Movi-
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Assassinatos no Campo: crime e impunida-
de – 1964/1986. 2. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 17.
12 Dom José Gomes. Prefácio – Violência no Campo. In: Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra. Assassinatos no Campo: crime e impunidade – 1964/1986. 2. ed. São
Paulo: Global, 1987. p. 13-14.

161
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

O dossiê foi organizado por ano e por estados da


federação, tendo como título das ocorrências o nome do
posseiro ou trabalhador rural assassinado. Ao final da ma-
téria, foram informadas a fonte da informação, as supostas
autorias (mandantes e executores) e as providências jurídi-
cas tomadas. Foram registradas 18 ocorrências de conflitos
de terra com uso de violência física que resultou na morte
de trabalhadores rurais e/ou posseiros no Oeste do Paraná,
entre os anos de 1970 a 1984, nos municípios de Cascavel,
Santa Helena, Assis Chateaubriand, Matelândia, Palotina,
Umuarama, Guaraniaçu, São Miguel do Iguaçu e Lindoeste.
Nessas 18 ocorrências, foram mencionados os assassinatos
de 42 posseiros por jagunços a mando de fazendeiros (ou su-
postos fazendeiros).

CONFLITOS EM QUESTÃO

A observação de algumas ocorrências de conflitos


permite compreender a dinâmica empregada pelos jagun-
ços para evitar a ocupação das terras ou para realizar a ex-
pulsão dos posseiros das terras ocupadas. Essas ocorrências
também evidenciam as formas de resistência levadas a cabo
pelos posseiros para permanecer nas terras que habitavam,
onde cultivavam alimentos e criavam animais domésticos.
Em fins de 1971, um posseiro da Colônia Tormenta,
Gleba 9, divisa dos municípios de Cascavel e Catanduvas, foi
assassinado por jagunços a mando de três fazendeiros (João
Pedro de Godoy, Mauro Portela e Luís Xanxerê) que se diziam
proprietários da mesma gleba. Outros posseiros da Colônia
Tormenta foram fazer a denúncia do assassinato e pedir pro-
POSSEIROS EM LUTA NO OESTE DO PARANÁ

vidências junto ao Batalhão de Fronteiras, em Foz do Iguaçu.


Segundo o depoimento dos posseiros aos militares do Exérci-
to e ao repórter do Jornal O Estado de São Paulo e Jornal da
Tarde, eles e suas famílias “estão sendo coagidas pelos três
fazendeiros que se dizem proprietários da gleba 9 e agem
com apoio de jagunços, atacando-os em suas casas ou nas
roças. Além do posseiro morto, outro ficou gravemente feri-
do”. Informam, ainda, que as famílias de posseiros instalados
na Colônia Tormenta “estão dispostos a comprar as terras ou
vender as plantações, mas nenhum fazendeiro, entre os três,
aparece para negociar”. Como forma de resistir às investidas
162
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

dos jagunços, os posseiros passaram a construir estratégias


de ação e de defesa, conseguindo “prender e desarmar o
jagunço Feliciano Lavandoski.”13
Na fazenda Rimacla, em Santa Helena, o posseiro
Pedro Felipe foi morto em março de 1973. Segundo maté-
ria publicada no Jornal O Estado de São Paulo, edição de
10 de março de 1973, o referido posseiro foi encontrado por
policiais do 6º Batalhão da PM do Paraná, que retornava a
Cascavel depois de “passar vários dias tentando capturar os
assassinos de três outros posseiros mortos nos últimos dias, na
região da fazenda Rimacla. […] De um ano para cá, já foram
mortos 14 posseiros e nenhum desses crimes foi ainda des-
vendado”.14 O suposto proprietário da fazenda Rimacla era
o paulista João Conrado Mesquita, que contratou dezenas
de jagunços para expulsar os posseiros, e empregou vários
peões para derrubar a floresta e iniciar o cultivo de semen-
tes e a criação de animais. O Jornal da Tarde, que circulou
nos dias 07, 10 e 11 de janeiro de 1972, veiculou reportagens
sobre as tensões e os embates entre posseiros, jagunços e
peões da fazenda Rimacla:
No caso da Fazenda Rimacla, os conflitos começaram
quando foram construídas 18 casas de madeira, for-
mando um povoado e uma serraria. Estas construções
representaram um risco para os posseiros, que eram
mais de cem e que ocupavam a maior parte dos 3.700
alqueires da fazenda. Um único trator começou a abrir
novas estradas e os 300 peões iniciaram a derrubada
das matas. Os posseiros perceberam logo que teriam
que sair das terras onde viviam. Começaram, também,
as mortes. Formou-se uma verdadeira guerra. De um
lado os jagunços e peões da fazenda defendendo
a propriedade e do outro, os posseiros, com ataques
diretos e rápidos, defendendo seu direito de posse. A
primeiro de junho de 1971, deu-se a primeira embosca-
da, onde morreram quatro empregados da fazenda e
dez posseiros acabaram sendo presos. Confessaram os
ANTONIO MARCOS MYSKIW

crimes, acusando, porém, os empregados da fazenda


de violências anteriores.
13 O Estado de São Paulo, 05/02/1972; Jornal da Tarde, 05/02/1972, citado por: Movimen-
to dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Assassinatos no Campo: crime e impunidade
– 1964/1986. 2. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 78-79.
14 O Estado de São Paulo, 10/03/1973, citado por: Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra. Assassinatos no Campo: crime e impunidade – 1964/1986. 2. ed. São Paulo:
Global, 1987. p. 92.

163
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Em 22 de outubro, grupos de posseiros e empregados


lutaram trocando tiros. Foi ferido o filho de um empre-
gado. No dia seguinte, novo ataque, mas ninguém se
feriu. Dia 24 de outubro, dois posseiros atiraram contra
dois empregados, um deles foi ferido. Dia 25 de outu-
bro, houve um grande tiroteio que resultou na morte
do posseiro Jonas Adelino de Araújo. Dia 28 de outu-
bro, os empregados da fazenda atacaram a família
do posseiro morto, mas todos os seus tiros falharam.
Um mês depois, em novembro, novo ataque dos pos-
seiros, que avançaram contra um caminhão da fazen-
da e mataram um empregado. Em 21 de dezembro,
posseiros cercaram a serraria, houve tiroteio onde mor-
reu um empregado e outros dois foram feridos. 23 de
dezembro: novo ataque, três empregados feridos. 29
de dezembro: último ataque, que resultou na morte de
dois posseiros e dois empregados foram feridos.
No dia 31 de dezembro, a Secretaria de Segurança
Pública do Paraná enviou à região 60 homens da Polí-
cia Militar, que ficaram acampados em Santa Helena,
São Clemente e Ponte Queimada, cercando a fazen-
da Rimacla.
O “exército particular” da fazenda é composto por
mais ou menos 30 homens (jagunços) mais os peões ar-
mados com revolveres 9 mm, Lugger, arma importada,
privada das forças armadas.15

O enfrentamento armado entre posseiros, jagunços e


peões da Fazenda Rimacla foi, ao menos por algum tempo,
a estratégia de ação adotada por ambos os lados. A morte
de posseiros e peões alimentou ainda mais o clima de ten-
são entre eles, bem como a organização e resistência dos
posseiros em permanecer nas terras que ocupavam. A Polí-
cia Militar materializava a presença do Estado do Paraná e,
POSSEIROS EM LUTA NO OESTE DO PARANÁ

para alguns, sinalizava um possível desfecho para os acon-


tecimentos. Em 8 de março de 1973, o jornal Folha de São
Paulo veiculou uma nota destacando a morte dos posseiros
Orlando Bonfim, Manoel Bonfim e os ferimentos causados ao
posseiro Marcolino Alves, por jagunços da Fazenda Rimacla.
Junto a essa nota, fazia também menção a um acordo entre
fazendeiros e posseiros: “Para solucionar o problema de ocu-
pação das terras, foram assinados acordos entre fazendeiros
15 Jornal da Tarde. 07/01/1972, 10/01/1972 e 11/01/1972, citado por: Movimento dos Traba-
lhadores Rurais Sem Terra. Assassinatos no Campo: crime e impunidade – 1964/1986.
2. ed. São Paulo: Global, 1987. p. 68-69.

164
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

e os lavradores. Alguns posseiros ficaram em suas glebas e ou-


tros retiraram-se, sendo delimitada definitivamente a área”.16
Em meados de 1974, no distrito de Santa Tereza, mu-
nicípio de Cascavel, o fazendeiro e arrendatário da Fazenda
Marfim, Felício Maquiote, mediante uso de aparato bélico
e dos jagunços Sebastião José Teodoro, Jovino Alves, Isido-
ro Pereira e Antonio Alves dos Santos, armaram emboscada
contra um grupo de agricultores que há alguns anos haviam
arrendado parte das terras da fazenda Marfim. Nessa embos-
cada, várias pessoas foram alvejadas por disparos de armas
de fogo e Moisés Camargo, um dos 15 arrendatários, não re-
sistiu aos ferimentos e morreu no local. Pedro de Camargo
(irmão de Moisés) era um dos líderes dos arrendatários e tam-
bém foi alvejado por tiros. A origem das desavenças entre ar-
rendatários e o fazendeiro Felício, segundo informações de O
Estado de São Paulo, estava atrelada à tentativa de romper
o contrato de arrendamento, havendo “resistência por parte
dos arrendatários, que diziam que o contrato havia sido feito
por tempo indeterminado. Inconformado, Felício Maquiote
contratou jagunços com ordem para matar as 15 famílias e
seus assalariados, a começar por Pedro Camargo de Andra-
de, que liderava os arrendatários”.17
Esses são alguns dos 18 casos de assassinatos de pos-
seiros e agricultores citados no Relatório do MST, publicados
em 1986, relativo ao Oeste do Paraná.

QUESTÃO AGRÁRIA NA HISTORIOGRAFIA

A historiografia existente sobre conflitos agrários no


Oeste do Paraná tem apresentado novos casos de violên-
cias praticadas contra posseiros, colonos e agricultores, bem
como movimentos de resistências aos supostos fazendeiros,
grileiros, empresas de colonização e a ação de policiais na
tentativa de fazer cumprir determinações judiciais em favor
ANTONIO MARCOS MYSKIW

dos detentores de poder econômico, influência política re-


gional, poder local e controle do aparato judicial.
16 Folha de São Paulo. 08/03/1973, citado por: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra. Assassinatos no Campo: crime e impunidade – 1964/1986. 2. ed. São Paulo: Glo-
bal, 1987. p. 93.
17 O Estado de São Paulo. 30/07/74 e 15/09/74, citado por: Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra. Assassinatos no Campo: crime e impunidade – 1964/1986. 2.ed. São
Paulo: Global, 1987. p. 103.

165
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Piquiri, o vale esquecido, de Maurílio Rompatto é uma


das obras a tratar do tema. Foi publicado em 2016, mas é re-
sultado de pesquisa de mestrado em História concluída em
1995, na PUC/SP. Ainda que pouco conhecida – fato que,
segundo o autor, não ocorre sem motivo – a obra é riquíssima
em fontes documentais de diferentes tipologias. No estudo é
abordado o processo de ocupação denominado de “Grilo
Santa Cruz”, com ênfase para as décadas de 1940 a 1970,
mas com recuos temporais que remetem a meados do sécu-
lo XIX. As formas de resistência de posseiros e agricultores são
objeto de atenção e análise.18
Em 1999, Erneldo Schallenberger, Valdir Gregory e
Silvio Antonio Colognese publicaram Tupãssi: do mito à his-
tória. O propósito da obra era fazer um estudo de história
local, utilizando-se de reflexões de Fernand Braudel ao abor-
dar sobre a história em três tempos: longa, média e curta
duração. Ao discorrerem sobre a história moderna da co-
lonização deste município, trouxeram à tona as memórias
subterrâneas dos conflitos agrários, sobretudo a partir dos
depoimentos orais.19
Em 2002, Colonos, posseiros e grileiros: conflitos de ter-
ra no oeste paranaense (1961/66),20 de Antonio Marcos My-
skiw, fez uma radiografia dos debates em torno da reforma
agrária no Brasil e Paraná, na década de 1960. Apresentou
também a complexa situação das terras do Oeste, no as-
pecto do ordenamento jurídico. Também fez rápida incursão
sobre as Revoltas de 1961, em Medianeira e Serranópolis do
Iguaçu, e sobre a revolta de posseiros de Três Barras, em 1964.
A Revolta de 1961 foi objeto de atenção de Leonor
Olderico Colombo, intitulado No rastro do Burro: memórias e
POSSEIROS EM LUTA NO OESTE DO PARANÁ

discursos do colono posseiro.21 Trata-se de uma pesquisa de


mestrado defendida em 2013, com grande fôlego documen-
tal e robusta reflexão, adentrando no universo dos posseiros e
18 Maurílio Rompatto. Piquiri, o vale esquecido: historia e memória da luta pelas terras do
‘grilo Santa Cruz’ na colonização de Nova Aurora, Oeste do Paraná. Curitiba: CRV, 2016.
19 Silvio Antonio Colognese; Valdir Gregory; Erneldo Schallenberger. Tupássi: do mito à
História. Cascavel: Edunioeste, 1999.
20 Antonio Marcos Myskiw. Colonos, posseiros e grileiros: conflitos de terra no oeste para-
naense (1961/66). Dissertação de Mestrado em História. Programa de Pós-Graduação
em História – UFF. Niterói, 2002.
21 Leonir Olderico Colombo. No rastro do burro: memórias e discursos do colono posseiro.
Foz do Iguaçu: Canal 6 editora, 2015.

166
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

colonos para, a partir deles, construir um outro olhar sobre o


conflito agrário em tela.
A revolta de posseiros de Três Barras foi revisitada por
Mayara da Fontoura das Chagas, em pesquisa de mestrado
em História, defendida em 2015, sob o título Narrativas de co-
lonos e posseiros na luta pela terra: a (re)criação da memória
da revolta de Três Barras do Paraná (1964-2014).22 Para além
dos autos do processo-crime e das contradições sobre os fa-
tos inscritos nas centenas de páginas do processo, a pesqui-
sadora fez uso de depoimentos orais para explorar outras fa-
cetas do conflito agrário que eclodiu algumas semanas após
o Golpe Militar de 1964.
Não menos importante são as pesquisas acadêmi-
cas de Paulo Roberto Esbabo, intitulada Terra Silenciada:
o conflito de terras na colonização recente de Missal/PR
(1960-1978);23 de Leandro de Araújo Crestani, Nas fronteiras
do Oeste do Paraná: conflitos agrários e mercado de terras
(1843-1960);24 de Tatiane Karine Matos da Silva, Conflitos pela
terra na Gleba Ponte Queimada: Experiências de Disputas
por Terras em Narrativas (1960-1972),25 em que traz à tona os
conflitos em torno da Fazenda Rimacla, em Santa Helena/PR,
abordados anteriormente.

A TÍTULO DE CONCLUSÃO

Os conflitos agrários fazem parte do cenário histórico


e social do processo de ocupação e colonização do Oes-
te do Paraná. Mesmo tendo sido recorrentes, a memória so-
bre eles ainda é escassa. O que conhecemos por meio da
pesquisa histórica é apenas uma fração do que realmente
ocorreu. O assassinato de lideranças locais e regionais, de
22 Mayara Fontoura das Chagas. Narrativas de colonos e posseiros na luta pela terra: a
(re)criação da memória da revolta de Três Barras do Paraná (1964-2014). Dissertação
de Mestrado em História. Programa de Pós-Graduação em História – Unioeste. Mare-
chal Cândido Rondon, 2015.
ANTONIO MARCOS MYSKIW

23 Paulo Roberto Esbabo. Terra Silenciada: o conflito de terras na colonização recente de


Missal/PR (1960-1978). Dissertação de Mestrado em História. Programa de Pós-Gra-
duação em História – UFF. Niterói, 2003.
24 Leandro de Araújo Crestani. Nas fronteiras do Oeste do Paraná: conflitos agrários e
mercado de terras (1843-1960). Portugal: Novas Edições Acadêmicas, 2013.
25 Tatiane Karine Matos da Silva. Conflitos pela terra na Gleba Ponte Queimada: Expe-
riências de Disputas por Terras em Narrativas (1960-1972). Dissertação de Mestrado
em História. Programa de Pós-Graduação em História – Unioeste. Marechal Cândido
Rondon, 2015.

167
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

posseiros e agricultores em luta pelo acesso à terra ou pela


permanência nela reforçou uma prática antiga dos deten-
tores do poder político e econômico, que obtém acesso à
terra por meio de grilagem, dos serviços sujos dos cartórios de
registros de imóveis, do uso de posseiros e militares com vistas
incitar a violência e a morte de trabalhadores rurais.
Como se observou, os posseiros, os agricultores e os
colonos não foram passivos, vítimas inertes de todos os pro-
cessos. A violência praticada pelos supostos fazendeiros, em-
presários rurais e empresas de colonização, em vários casos
com aquiescência e participação direta do Estado do Pa-
raná – sobretudo durante os governos de Moysés Lupion –,
resultou em diversas ações de resistências. Múltiplas foram as
estratégias e as táticas de enfrentamentos, de negociações
e combates diretos. Os posseiros identificaram parceiros soli-
dários às suas lutas e estabeleceram alianças com eles, en-
frentaram os supostos proprietários e seus jagunços armados
nas áreas em litígio, pressionaram e negociaram com os apa-
relhos de Estado as suas reivindicações.
Também é necessário frisar que, se por um lado, o
Estado do Paraná, por meio de alguns de seus órgãos, repre-
sentou e defendeu a grande propriedade da terra e, nessa
qualidade, arbitrou os conflitos; por outro lado, foi obrigado,
em diversos momentos, a negociar com posseiros e agricul-
tores as suas demandas. Para isso, foram importantes o apoio
e a solidariedade de vários atores, dentre eles, alguns parla-
mentares, Igreja Católica, Igreja Luterana e os Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais, na medida em que foram se constituin-
do e resistindo às pressões do Regime Militar. A problemática
da luta em torno da posse da terra não foi apenas o lócus do
POSSEIROS EM LUTA NO OESTE DO PARANÁ

confronto entre posseiros e fazendeiros, mas espaço de atua-


ção de uma multiplicidade de personagens, de relações, de
negociações e de enfrentamentos.
Embora haja ainda muito a ser estudado e pesquisa-
do sobre os conflitos agrários do Oeste do Paraná, é possível
perceber que esse movimento de confronto e de disputas
pela terra está atrelado a uma memória e a uma cultura de
contestação social, produzidas nas experiências práticas de
conflitos agrários anteriores, entre os quais podemos mencio-
nar a Revolta de 1957 no Sudoeste do Paraná – tratada nesse
livro por Paulo Koling –, a Revolta (ou Guerrilhas) de Porecatu
168
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

no Norte do Paraná – abordada aqui por Angelo Priori – e


a Guerra do Contestado, ocorrida entre os anos de 1912 e
1916, em território paranaense e catarinense, objeto de aná-
lise de Paulo Pinheiro Machado nesta obra.

ANTONIO MARCOS MYSKIW

169
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

MEMÓRIAS DA LUTA DOS


ATINGIDOS POR ITAIPU
Guiomar Inez Germani

Escrever sobre a luta política dos sujeitos sociais atin-


gidos pela construção da Usina Hidroelétrica de Itaipu, no
período de 1974 a 1982, é uma oportunidade de resgatar
esta história, ainda muito viva em minhas memórias. Escrevo
não como uma especialista em história, mas como alguém
que teve a oportunidade de vivenciar, acompanhar e, em
especial, por ter registrado uma história de luta e resistência
que acontecia como decorrência da construção da Usina
Hidrelétrica de Itaipu.
Uma história até hoje pouco conhecida, mas que
mudou de forma significativa a trajetória de vida de muita
gente e transformou-se em um importante marco na trajetó-
ria de luta dos movimentos sociais no Brasil.
Não tenho a pretensão de enquadrar conceitual-
mente a temática da memória. Vou aqui compartilhar algu-
mas reflexões sobre uma história na qual eu acabei envolvida
de corpo e alma e que marcou, também, a trajetória de mi-
nha vida pessoal e profissional.
Passados 35 anos da construção da Usina Hidroelétri-
ca de Itaipu, tempo de uma geração, a primeira pergunta
GUIOMAR INEZ GERMANI

que se faz é de que memória se está falando? A memória de


quem projetou Itaipu? De quem construiu? Dos “barrageiros”?
E destes, das empresas, dos engenheiros ou dos operários?
Começo, pois, situando a posição de onde eu falo
e a que memória eu vou me referir: falarei dos que tiveram
que sair, das mais de 42.000 pessoas que foram expropria-
171
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

das e expulsas de suas terras. Vou falar dos que tiveram suas
vidas alteradas, significativamente e de forma compulsória,
pela construção de Usina Hidroelétrica de Itaipu. É esta a di-
mensão da memória de que quero tratar. Vou falar do que
eu vivenciei e de como acompanhei o processo de organi-
zação dos atingidos para resistirem e se insurgirem frente a
um inimigo tão poderoso, e num tempo de tanta opressão e
controle – tempo de ditadura militar! E de como estes sujeitos
assumiram o protagonismo da história e passaram de atingi-
dos a insurgentes1.
O que ocorreu, há 35 anos no Paraná, contribuiu com
os rumos que tomaram os movimentos sociais e, em especial,
os que fazem frente à construção de hidrelétricas que se es-
palham, a cada dia, em todo o país.
Os historiadores discutem muito sobre a memória, se
esta é coletiva ou individual. Mas eu me pergunto de que
dimensão da memória devo falar? De minhas memórias ou
da memória do conflito vivido pelos expropriados de Itaipu?
Da organização e atuação do Movimento Justiça e Terra?
Do trabalho que realizei e do que aprendi acompanhando
este movimento? Estas questões hoje se confundem, pois,
ter acompanhado e registrado este momento da história faz
parte, também, de minhas memórias e de minha trajetória
de vida. Não escrevo como uma observadora neutra desse
episódio que narro. Ele foi produzido a partir de uma memó-
ria engajada e a organização não linear dele evidencia isso:
vou e volto no tempo vivido e lembrado.
O que fica disso tudo? Fica o que significa, como diz
Ecléa Bosi2. O que apresento neste artigo é o que significa
MEMÓRIAS DA LUTA DOS ATINGIDOS POR ITAIPU

para mim. Um significado permeado por lembranças que


apesar de serem aparentemente individuais sempre possuem
uma natureza social, como diz Maurice Halbwachs3. Nesse
sentido, começo lembrando de como cheguei a Itaipu, aos
expropriados de Itaipu e como acompanhei a organização
de sua resistência na constituição do Movimento Justiça e
Terra (MJT) e seus desdobramentos nas lutas populares atuais.
1 Este artigo está baseado em Guiomar I. Germani. Expropriados, Terra e Água: o conflito
de Itaipu. 2. ed. Salvador: EDUFBA/ULBRA, 2004.
2 Ecléa Bosi, Memória e sociedade: Lembranças dos velhos. 16. ed. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2010.
3 Maurice Halbwachs. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

172
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

APROXIMAÇÕES COM A TEMÁTICA

A primeira aproximação com a temática ocorreu em


1978, com a construção de uma proposta de pesquisa. O ob-
jetivo era entender as repercussões da construção da Usina
Hidroelétrica de Itaipu, um processo em curso, que acompa-
nhei e registrei durante o seu acontecer. O que hoje é pas-
sado e memória, era um tempo presente e o que vou trazer
aqui são meus registros desse tempo vivido. Hoje, em meu
relato se confunde a memória individual do narrador com a
memória coletiva, de quem narra e de quem viveu.
Na memória dos então envolvidos no Movimento Jus-
tiça e Terra, os fatos que estavam vivendo os faziam lembrar,
por exemplo, da Revolta de Capanema – revolta dos possei-
ros no Paraná, de 1957 –, que haviam vivido ou da qual sou-
beram pelos relatos de seus pais; lembravam da passagem
da Coluna Prestas, da Ponte Queimada, e, também, dos pa-
rentes que haviam sofrido com construções de outras barra-
gens. Lembranças que compunham uma memória coletiva
e faziam parte de suas trajetórias vidas. Naquele momento,
buscavam em suas memórias elementos que lhes dessem for-
ças, que legitimassem sua atitude de manifestar suas posi-
ções e de enfrentar os que a elas se opunham.
Neste aspecto também cabe remeter que a memó-
ria, além da dimensão temporal, tem uma questão de es-
cala, dos que estão próximos da área atingida e que viven-
ciaram e dos que estão distantes e não vivenciaram esses
fatos.
Hoje, temos uma geração que só se lembra da ex-
propriação decorrente da construção da Usina Hidroelétrica
de Itaipu e do Movimento Justiça e Terra Itaipu através dos
relatos e das memórias dos outros. Quantos dos que vivem
nos municípios lindeiros já incorporaram o lago artificial de
Itaipu como um fato “natural” em sua paisagem cotidiana?
Que lugar ocupa no “mapa da memória” a área hoje alaga-
GUIOMAR INEZ GERMANI

da por Itaipu? Quantos que vivem em outros lugares e usam


a energia produzida por Itaipu nem se perguntam de onde
ela vem, nem sabem de tudo o que se passou para que a
luz se acenda quando aciona o interruptor? Ignoram toda a
energia e sacrifício despendidos por pessoas que nem sequer
sabem para onde foram ou por onde andam. Não reconhe-
173
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

cem os herdeiros desse processo, muitas vezes, perambulan-


do pelas estradas, campos e cidades brasileiras.
Quando comecei a estudar o conflito produzido pela
construção de Itaipu quase não encontrei referência biblio-
gráfica sobre o tema. “Barragem” era um assunto restrito à
área das engenharias. Só mais tarde vim a ter a noção de
que estava realizando um trabalho pioneiro no campo das
Ciências Sociais4. Hoje aumentaram significativamente os tra-
balhos acadêmicos sobre a temática. Eles vêm constatando
dois aspectos importantes na construção de barragens no
Brasil e na América Latina: um é relativo à permanência da
forma como é tratada a população afetada (pelo Estado e
pelas construtoras) e outro diz respeito à mudança na orga-
nização da população impactada, que se mobiliza em mo-
vimento para resistir à obra e ao processo de expropriação.
A necessidade de geração de energia imposta pelo
Estado, como uma demanda do modelo de progresso e
desenvolvimento, faz com que a dimensão local das famí-
lias envolvidas não seja levada em consideração diante de
uma “questão nacional”. Assim, a diferença hoje não está
no maior cuidado por parte do Estado – construtor direto ou
indireto –, mas na maior capacidade de organização e resis-
tência dos “atingidos por barragens”. O centro da ação do
Estado continua sendo a construção da barragem e não o
destino das famílias

APROXIMAÇÕES COM ITAIPU BINACIONAL

A Usina Hidrelétrica de Itaipu – recordista mundial na


MEMÓRIAS DA LUTA DOS ATINGIDOS POR ITAIPU

categoria5 e considerada a 7ª maravilha do mundo moderno


pela Sociedade Americana de Engenheiros Civis – foi cons-
truída no rio Paraná, através de um projeto binacional entre
Brasil e Paraguai, e gerido por uma empresa criada com esta
finalidade, a Itaipu Binacional (IB). Embora todos os estudos
técnicos e as negociações diplomáticas entre os dois países
tenham começado bem antes, a obra iniciou em 1974 e, em
4 Já foram realizados quatro eventos do “Encontro Internacional Ciências Sociais e Barra-
gens” sendo o último em setembro de 2016, em Chapecó. Informações disponíveis em:
http://www.ecsb.com.br/#evento.
5 Posição que disputa com Usina de Três Gargantas, na China, que detinha o título desde
2014. Em 2016, Itaipu Binacional voltou a ser líder anual de geração de energia elétrica
gerando 103,09 milhões de MWh (ITAIPU, 2017).

174
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

5 de outubro de 1982, fechou suas comportas, dando início à


formação de seu reservatório, que inundou 1.350 km² de ter-
ras – 780 km² brasileiras e 570 km² paraguaias –, tidas como as
mais férteis do mundo. Afogou as Sete Quedas – trabalho mi-
lenar da natureza – e, de forma compulsória, expropriou mais
de 7.000 famílias – mais de 42.000 pessoas – da área compro-
metida com a implantação da usina.
A estratégia da empresa Itaipu Binacional para pro-
mover a “limpeza” da área, através do processo jurídico e le-
gal de desapropriação, foi, gradualmente, desencadeando
um conflito de natureza social e política que contrapôs o Es-
tado – representado pela Itaipu Binacional – e a população
diretamente atingida, representada pelos colonos expropria-
dos que se organizaram e resistiram no Movimento Justiça e
Terra.
É importante situar o contexto da região atingida. Na
década de 1940, o Oeste do Paraná se transformou numa
fronteira agrícola nacional e recebeu migrantes do Rio Gran-
de do Sul e de Santa Catarina, em sua maioria descendentes
de italianos e de alemães, que se dedicaram à exploração
da madeira e da erva-mate. O final da década de 1960 foi
um momento marcante do desenvolvimento do capitalismo
no campo brasileiro, estando em curso o processo de moder-
nização da agricultura, a revolução tecnológica, a denomi-
nada “Revolução Verde”. Isto se deu com o apoio do Esta-
do através de pesquisas científicas, de assistência técnica e
pela a implantação de um sistema de financiamento oficial
para viabilizar esse processo, intensificado com a ditadura
militar. Foi nesse contexto que as terras da região do Extremo
Oeste do Paraná passaram a ser valorizadas como área de
expansão da fronteira agrícola, assumindo importante pa-
pel na economia estadual e nacional, especialmente com
o “boom” do trigo e da soja. Isto exigia e propiciava outra
forma de organização da produção, que desencadeou uma
grande transformação na região. Primeiro, pelo aumento da
GUIOMAR INEZ GERMANI

derrubada das matas nativas para dar lugar às plantações


voltadas para o mercado externo; depois, pela valorização
das terras, que ocasionou a explosão de muitos conflitos fun-
diários entre posseiros, pequenos proprietários e grandes gru-
pos empresariais, estes interessados em se apropriar das ter-
ras então valorizadas.
175
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Os pequenos produtores familiares da região – in-


dependentemente de estarem na condição de proprietá-
rios, posseiros ou arrendatários – foram se transformando em
agricultores bastante capitalizados, bem informados e em
contato com outros mercados, além do mercado local. Eles
acompanhavam a cotação de seus produtos na bolsa de
Chicago, estavam organizados em cooperativas e, do outro
lado da mesma moeda, também bastante endividados com
os bancos.
Essa transformação foi acompanhada também de
danos ambientais, de desastres ecológicos advindos do cor-
te indiscriminado das árvores, da implantação da monocul-
tura da soja e do trigo e do uso intensivo de produtos agro-
químicos. A estrutura da propriedade da terra na região, até
então basicamente formada por pequenas propriedades
familiares, começava a sofrer um intenso processo de con-
centração fundiária.
Quando toda esta transformação ainda não estava
consolidada, surgiu um novo agente externo – Itaipu Bina-
cional – que passou a ameaçar mais de 7 mil famílias que
haviam ocupado essas terras através de seu trabalho e de
muita luta para domar e garantir suas ocupações.6

APROXIMAÇÕES COM A POPULAÇÃO EXPROPRIADA

Esse processo ocorreu no período em que eu estava


cursando o mestrado no Programa de Pós-graduação em
Planejamento Urbano e Regional (PROPUR), na Faculdade de
Arquitetura da UFRGS e defini como tema de minha disserta-
MEMÓRIAS DA LUTA DOS ATINGIDOS POR ITAIPU

ção acompanhar e analisar o “impacto” da construção de


Itaipu. Nesse momento, ainda não estava conformada, expli-
citamente, uma situação de conflito; inicialmente, a catego-
ria analítica utilizada foi o de “impacto”, porém, com a minha
aproximação na realidade, esta logo foi redefinida e a cate-
goria “conflito” assumiu a centralidade analítica da pesquisa.
O que me chamou a atenção não foi a grandiosida-
de da obra em si, mas as repercussões de um fato comum na
6 Eu havia acompanhado os primeiros movimentos do “boom” da soja e do trigo como
funcionária do Banco do Brasil, em Cascavel, onde trabalhei durante o período de 1969
a 1972 e datilografei muita nota rural pignoratícia hipotecária! Um exemplo do que foi
este processo, me lembro, foi a chegada das primeiras colheitadeiras, vindas da Argen-
tina, que foram mostradas em desfile pela Av. Brasil, que fez a cidade de Cascavel parar.

176
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

construção de usinas hidroelétricas, qual seja, o barramento


do rio e a consequente formação de um reservatório, opera-
ções necessárias para que a usina entre em funcionamento.
Isto ocasiona uma reestruturação espacial – parte da área
não seria mais utilizada para morar, plantar, viver e sim para
ser leito de um grande lago – trazendo como consequência
inevitável a remoção da população que, historicamente, ha-
bita a área a ser inundada.
Este é um processo que se repete, em maior ou menor
dimensão, em todas as experiências de construção de usinas
hidrelétricas. A população que ocupa a área a ser inunda-
da é diretamente atingida por uma intervenção compulsória
em sua trajetória e projetos de vida; sem ser consultada, se
vê obrigada a deixar seu meio de vida e trabalho – a terra –
pondo em jogo a sua sobrevivência e reprodução social.
Como eu conhecia a história e o potencial produtivo
da região, previa que a população atingida não sairia e nem
abandonaria, sem resistir, as terras que haviam conquistado
e “domado” com tanto sacrifício. Porém, esta não era a im-
pressão que tinham os técnicos que haviam sido contratados
pela Itaipu Binacional para a realização do diagnóstico so-
cial do projeto, uma vez que os mesmos afirmavam que não
iria acontecer nenhuma resistência7.
No carnaval 1980, passei uma semana percorrendo
de Guaíra a Foz do Iguaçu – fazendo o que se denomina
de “pesquisa exploratória” – parando para conversar aleato-
riamente, tentando sentir os ânimos. Estavam todos apreen-
sivos. Uns duvidavam que as águas do “Paranasão” – que
corria encravado num canyon, nos 200 quilômetros entre Foz
do Iguaçu e Guaíra –, iriam subir tanto e chegar onde eles es-
tavam. Outros acreditavam que se isto acontecesse eles se-
riam bem indenizados, pois suas terras eram férteis, eles eram
trabalhadores altamente produtivos e seriam tratados com
todo o respeito. Assim, a princípio, a Itaipu Binacional gozava
de certa legitimidade no imaginário social.
GUIOMAR INEZ GERMANI

Em junho de 1980, voltei para passar mais tempo e


fazer minha pesquisa de campo. Minha chegada coincidiu
com a visita de D. José Brandão, bispo de Propriá (SE), que
visitava a região a convite do Pastor Gernote Kirinus (ex-se-
7 Ainda não havia a obrigatoriedade do Estudos de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) para
obras desta natureza e era realizado apenas um diagnóstico social.

177
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

cretário da Comissão Pastoral da Terra – CPT-PR) e então de-


putado estadual. D. José Brandão percorreu toda a área a
ser alagada, reunindo as comunidades nos clubes, igrejas e
nas “linhas”8. Já havia um trabalho anterior feito pelas igre-
jas – Católica e Evangélica de Confissão Luterana – através
da CPT e dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR), que
tinham realizado duas grandes assembleias. D. José Brandão
escutava a situação específica de cada lugar, depois conta-
va o que ele conhecia sobre a construção de barragens no
rio São Francisco, o que havia acontecido com a construção
de Sobradinho, o que estava acontecendo com a constru-
ção de Itaparica e outras.
Considero importante pontuar alguns fatos, que de-
vem ser entendidos não como “feitos ou datas”, mas como
a construção histórica de práticas sociais que vão possibilitar
mudanças nas relações e processos espaciais e, portanto,
nas relações de poder e de enfrentamentos. Isso é importan-
te para entender como estas mudanças, embora, aparente-
mente, possam eclodir de repente, não ocorrem por “gera-
ção espontânea”. São resultados de um processo, fruto de
trabalho persistente e contínuo, tecendo a trama social que
vai confluir nas condições de luta, resistência e enfrentamen-
to político.
Pouco antes da visita de D. Brandão e das ações da
CPT, em março de 1978, o “Projeto Arca de Noé” reuniu mem-
bros da CPT e dos representantes dos expropriados, em Ma-
rechal Cândido Rondon. Foi o início das discussões em grupo,
que culminaram com uma assembleia, em outubro do mes-
mo ano, que reuniu mais de 2 mil agricultores, em Santa He-
MEMÓRIAS DA LUTA DOS ATINGIDOS POR ITAIPU

lena, com o objetivo de discutir uma estratégia única frente


aos acordos com a Itaipu Binacional. Os sindicatos já partici-
pavam como observadores, mas os agricultores assumiram a
condução da organização e a discussão passou a ser feita em
reuniões de comunidades (nas “linhas”). Estes fatos remetem,
também, a uma reflexão sobre o papel dos mediadores e da
diferença no processo quando os próprios sujeitos assumem o
protagonismo na condução de suas histórias.
Em abril de 1979, nova assembleia foi realizada, reu-
nindo mais de 3 mil agricultores em Santa Helena, o municí-
8 “Linha” era uma antiga denominação de demarcação de glebas, adotada como elemen-
to de localização.

178
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

pio mais central na área atingida, no qual ficava o escritório


regional da Itaipu Binacional. Nessa assembleia, além da
CPT e STR, também a Comissão Pontifícia de Justiça e Paz
(CPJP) passou a apoiar a organização dos “atingidos”, que
se consolidava.
Em maio de 1979, foi realizada uma assembleia dos
coordenadores da área atingida, formada por dois trabalha-
dores por município, com o intuito de ampliar a organização.
Consolidava-se um embrião da representação dos expropria-
dos, organizados em quase toda a área a ser alagada. Era esse
o clima, em junho de 1980, quando chegou D. José Brandão,
cuja atuação tive a oportunidade de acompanhar. A sensa-
ção que eu tive em relação à passagem de D. José Brandão
foi como se ela tivesse sido fogo em rastilho de pólvora!
Imaginem a situação de insegurança dos que con-
fiaram no governo e viam que faltava apenas dois anos para
fechar as comportas e muita gente ainda não havia sido in-
denizada! Diante da impossibilidade de fazer frente à obra,
que ia em ritmo acelerado e tida como irreversível, busca-
vam ser indenizados pelo “preço justo”. E o “preço justo”,
apregoado nos cartazes com a foto do ator Lima Duarte,
estava longe de ser realidade na proposta apresentada por
Itaipu Binacional. Qual seria esse valor? Uma questão que se
colocava em casos de desapropriação, pois nem sempre o
“preço justo” é aquele de mercado. Ainda mais de um mer-
cado em tempo de inflação, quando a quantia recebida
num dia não dava mais para comprar a terra vista no dia
anterior. O “preço justo” seria o justo valor para se instalarem,
ao menos em igualdade de condição, em outro lugar, o que
não estava de fato ocorrendo
Dois meses depois dessas constatações aconteceu
o “cerco” ao escritório de Itaipu, em Santa Helena, e a con-
solidação do “Movimento Justiça e Terra”. Famílias foram
chegando de toda a área a ser alagada e permaneceram
acampadas, durante 16 dias, impedindo o funcionamento
GUIOMAR INEZ GERMANI

do escritório, como estratégia para forçar uma negociação.


Para Santa Helena também confluíram importantes manifes-
tações de apoio, de organizações, de Igrejas e de políticos,
regionais, estaduais e nacionais.
Voltei para Santa Helena, não mais para pesquisar
ou entrevistar, mas para somar, arregaçar as mangas e ver o
179
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

que eu poderia fazer. O ônibus que peguei para ir de Foz do


Iguaçu ia recolhendo gente pelo caminho, todos iam rumo
àquela cidade para participar do movimento. Perguntei:
como souberam? “A gente estava esperando que aconte-
cesse alguma coisa, deu na rádio, e a gente está indo acam-
par também”, responderam.
No acampamento, trabalhei na “mesa de reclama-
ções” ou “consultório” do Movimento Justiça e Terra: uma
barraca com uma mesa onde, junto com outros voluntários,
anotava as situações específicas de cada área e as reivindi-
cações individuais para transformá-las em demandas coleti-
vas e serem apresentadas na próxima assembleia. Naquele
momento, eu era uma pesquisadora numa frente de batalha.
Vivia uma situação peculiar: eu não ia a campo, o campo
estava ali, eu fazia parte dele. Meu conhecimento anterior
da área ajudava a identificar melhor as situações específicas
que eram relatadas.
Pelo “consultório” passavam muitas pessoas que da-
vam depoimentos de como Itaipu estava interrompendo
seus planos e projetos de vida. Passaram por ali posseiros,
arrendatários, o pessoal da Faixinha (em Guaíra), da “Bacia
do Prata” (em Porto Meira, Marechal Cândido Rondon); dos
Pousos (em Marechal Cândido Rondon); da Vila de Porto
Mendes, uma localidade atingida na quase totalidade; da
Linha Guarani e Porto Verde, em Santa Helena; do Imóvel
Rio Paraná. Vinham pessoas do PIC-Ocoí (Projeto Integrado
de Colonização – Ocoí), que em 1971 haviam sido transferi-
dos do Parque Nacional do Iguaçu e que estavam sofrendo
sua segunda remoção; também os indígenas Avá-Guarani;
MEMÓRIAS DA LUTA DOS ATINGIDOS POR ITAIPU

chegava gente das grandes fazendas, os peões e agrega-


dos que não tinham aparecido antes, com os quais até en-
tão as comissões dos expropriados não tinham conseguido
ter contato. Esses demonstravam que na região não havia só
descendentes de italianos e de alemães, mas também mui-
tos mineiros, baianos, migrantes nordestinos que haviam pas-
sado pelas fazendas de café do norte do Paraná e trabalha-
vam nas grandes propriedades da região, e que não tinham
nem como sair da área. Passaram por ali também pessoas do
Paraguai, que atravessavam o rio, escondidos, durante a noi-
te, e contavam a situação dos paraguaios e dos brasiguaios
que seriam atingidos.
180
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Percebi, com clareza, como a Itaipu Binacional – isto


é, o capital atuando através do Estado – redefinia a utiliza-
ção de um espaço, porém, antes de “limpar” a área (é este
o termo até hoje usado pelos construtores), de expulsar sua
população e alagar a terra, punha a nu todo o caos fundiá-
rio no Extremo Oeste do Paraná.
Por um lado, a atuação da Itaipu Binacional desmas-
carava a aparente igualdade da população e proprietá-
rios da “área em conflito”, na medida em que privilegiava
aqueles que obedeciam à lógica capitalista da proprieda-
de privada. Isto porque indenizava a terra e a propriedade
dos que possuíam a escritura pública de compra e venda,
devidamente registrada, mas não pagava nada pela terra
aos posseiros, que só tinham a posse garantida pelo trabalho,
mas não a escritura. Estes só recebiam o valor das benfeito-
rias, sendo, portanto, sujeitos de direitos socialmente diferen-
tes perante a lei, tratados de forma distinta e desigual.
Por outro lado, a Itaipu Binacional os colocou na
mesma condição social, a de “expropriados”. Isto é, pessoas
de situações e condições diferentes – proprietários, possei-
ros, arrendatário, peões, agregados, chacareiros, indígenas
– uniram-se em vista da ameaça do inimigo comum: a Itaipu
Binacional. Esta, ao tomar-lhes a terra, colocava em risco a
sua reprodução de produtor familiar e de trabalhador rural
– atuando igual aos jagunços que, tempos atrás, haviam en-
frentado quando chegaram para domar a terra. Portanto, foi
a atuação da Itaipu Binacional que criou, também, as condi-
ções para a emergência do movimento de resistência orga-
nizada na dimensão do Movimento Justiça e Terra.
Este é o fato novo apresentado pelos expropriados
de Itaipu organizados no Movimento Justiça e Terra. Não o
da resistência em si, mas o da resistência organizada, consti-
tuindo-se numa das primeiras experiências frente a obras des-
ta natureza no país. Em especial, pela grande repercussão
que ganhou Movimento Justiça e Terra ainda num momento
GUIOMAR INEZ GERMANI

de plena Ditadura Militar.

APROXIMAÇÕES COM O MOVIMENTO

A construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu não


ocorreu isolada de toda uma política de Estado preocupa-
181
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

da em criar as condições favoráveis ao desenvolvimento do


processo de acumulação de capital, inclusive jogando com
as questões internacionais e de geopolítica entre Paraguai
e Argentina. O Estado assumiu a responsabilidade da cons-
trução de uma grande obra de infraestrutura para garantir
as condições gerais de produção através da geração de
energia, questão fundamental para o processo produtivo e
acumulação capitalista. Neste processo, distintos setores do
capital também se beneficiaram participando na constru-
ção da obra. As empresas de colonização também foram
favorecidas nesse processo, orientando os fluxos migratórios
para abertura de novas frentes de expansão do território na-
cional, no Acre, Rondônia e, também, no Mato Grosso, onde
surgiram cidades como Sinop e Cláudia, entre tantas outras.
Algumas estratégias adotadas pela Itaipu Binacional
são recorrentes das empresas construtoras, ainda nos dias
atuais. A cada confronto, a Itaipu reagia, inicialmente, não
reconhecendo a representatividade dos agricultores, e impri-
mia legitimidade alternativamente a quem melhor lhe convi-
nha em cada momento. Se, inicialmente, aceitava sentar-se
à mesa de discussão com representantes dos expropriados e
com as entidades que lhes davam apoio – como a CPT, os
Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR), a Comissão Pontifí-
cia de Justiça e Paz (CPJP) e a Federação dos Trabalhadores
na Agricultura do Estado do Paraná (FETAEP) –, à medida que
o interesse das partes se mostrava cada vez mais antagôni-
co, os assessores dos expropriados não eram mais aceitos.
Assim, quando a CPT se mostrava mais comprometida com
os interesses dos expropriados, a Itaipu passou a aceitar só
MEMÓRIAS DA LUTA DOS ATINGIDOS POR ITAIPU

a FETAEP e quando esta assumiu posições mais comprome-


tidas, passou para a hierarquia superior da Igreja Católica.
Posteriormente, só a comissão dos colonos expropriados era
recebida, ficando de fora das reuniões os assessores, media-
dores e as representações.
A resistência da Itaipu Binacional ao atendimento
das reivindicações, consideradas justas inclusive por órgãos
do próprio estado – como o Instituto de Terras e Colonização
(ITC) –, obedecia não apenas à lógica capitalista na busca
de minimizar os custos, mas visava quebrar a espinha dorsal
da organização dos expropriados, no sentido de impedir o
surgimento de resistência em outros grupos em igual situa-
182
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ção. A empresa sabia que, em casos desta natureza, a vitó-


ria não é individual, deste ou daquele colono, deste ou da-
quele grupo; é do movimento social e, portanto, do conjunto
das lutas populares.
Outro aspecto a se destacar é que a Itaipu Binacio-
nal se esforçava para parecer desvinculada do Estado. As-
sim, o governo do Estado era chamado a mediar a situação
de conflito como elemento externo à empresa. À medida
que o confronto vai se intensificando, o Estado altera sua tá-
tica de mediador e passa a intervir abertamente a favor da
Itaipu Binacional, atuando, inclusive, de forma militarizada,
como quando, em março de 1981, com baionetas, impediu
que os colonos se aproximassem do escritório central da em-
presa, em Foz do Iguaçu.
Quando impedidos de entrar na área da empresa,
mais de 1.200 pessoas acamparam no trevo de acesso a Itai-
pu – ao Paraguai e a Foz de Iguaçu –, um lugar de grande
visibilidade, permanecendo ali por 54 dias. O seu lema agora
era: “preço justo ou terra por terra”!
Este conflito ocorreu num momento bastante signifi-
cativo, pois de um lado havia um forte envolvimento do Esta-
do nos conflitos de terra e, por outro, um processo crescente
de resistência dos pequenos produtores à expropriação. Estes
começam a se organizar, também, em todo o país, trazendo
como consequência o aumento das contradições relaciona-
das coma questão agrária no campo brasileiro.
Em 1981, um Seminário realizado pela Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul com a temática “Questão
da Terra” reuniu, numa mesa, os representantes do Movi-
mento Justiça e Terra, os agricultores acampados em Encru-
zilhada Natalino e os ameaçados pela construção de Barra-
gens no rio Uruguai. Três frentes declaradas de conflitos que
extrapolavam o âmbito local e começavam a se organizar
nacionalmente.
Neste sentido, o Movimento Justiça e Terra, da resis-
GUIOMAR INEZ GERMANI

tência dos expropriados de Itaipu, é um marco na história dos


movimentos sociais no Brasil. Se, por um lado, a população
atingida foi sacrificada para permitir a geração de energia
da usina hidrelétrica, por outro, sua resistência organizada
em um movimento de grande amplitude configurou-se como
fonte de outra energia, que impulsionou as turbinas dos movi-
183
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

mentos sociais, gerando uma nova dinâmica às suas organi-


zações, em distintas escalas e dimensões
As significativas conquistas alcançadas pelo Movi-
mento Justiça e Terra comprovam que, quando se trata de
movimentos sociais, os resultados transcendem aos interesses
individuais e deles se beneficiam toda a sociedade. Destes
resultados destaco aqui dois, que considero muito importan-
tes para a análise da realidade agrária brasileira.
Primeiro, o Movimento Justiça e Terra, contribuiu para
que não fosse mais tão fácil “limpar” a área destinada à cons-
trução de reservatórios. Nesse sentido, o movimento somou-se
a outras experiências, como as de Itá e Machadinho, no rio
Uruguai; das barragens do rio Iguaçu; de Tucuruí (PA); de So-
bradinho, Itaparica na (BA), entre outras. Em conjunto, esses
movimentos serviram de base para a formação de Comissões
dos Atingidos por Barragens que, em 1989, realizou o I Encontro
Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens, em Goiâ-
nia. Em março de 1991, foi realizado o I Congresso Nacional
de Atingidos por Barragens, que aprovou a fundação formal
do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) que, desde
então, vem contribuindo decisivamente para organização e
luta dos atingidos por barragens em de todo o país.
Se há ainda muitos problemas decorrentes de
construções de usinas hidrelétricas carecendo de solução –
como ocorre na Bahia, com as “heranças” de Sobradinho,
Itaparica, Pedra do Cavalo –, o MAB, atuando em todo o
território nacional, vem imprimindo outro rumo nesse tipo de
processo. Tudo isso significou um avanço na organização
dos trabalhadores rurais, com algumas contrapartidas ou
MEMÓRIAS DA LUTA DOS ATINGIDOS POR ITAIPU

garantias implementadas pelo Estado, como o pagamento


de Compensações Financeiras pela Utilização de Recursos
Hídricos (CFURH), os royalties aos municípios lindeiros; a rea-
lização de estudos de impactos ambientais, que passaram
a ser obrigatórios para construção de grandes obras, ain-
da que muitas vezes sejam “forjados”, mas também, muitas
vezes, contribuem para dar sustentação à resistência, pois
“gente” acaba não contanto nos estudos ambientais, sendo
a presença de animais e plantas que acabam colocando
obstáculos à construção de uma obra. A questão ambiental
significou, também, uma oportunidade de aliança entre as
populações atingidas e os ambientalistas. A obrigatoriedade
184
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

do Cadastro dos Atingidos e a próprio alargamento do con-


ceito de “atingido”, não restrito apenas à população direta-
mente atingida e nem só à área alagada, também foi um
avanço relacionado à mobilização.
Embora tenha havido avanços na legislação, estes
não impedem que obras como Santo Antônio e Jirau ou Belo
Monte sejam construídas, ao arrepio da lei.
O segundo destaque dos avanços decorrentes do
Movimento Justiça e Terra está relacionado com a diversi-
dade da composição do movimento. Embora todos fossem
atingidos por Itaipu, nem todos estavam na mesma situação:
havia proprietários que reivindicavam o preço justo; havia os
posseiros que reivindicavam o reconhecimento de suas posses
para então reivindicarem o preço justo; os arrendatários que
não tinham terra, mas tinham máquinas e equipamentos.
Havia, também, aqueles que não eram nem proprie-
tários, nem posseiros, mas trabalhavam nas fazendas, eram
agregados, peões, ou moravam nas barrancas do rio. Estes
não tinham nada para dar em troca do preço justo, não ti-
nham nem como sair da área. Foi a partir da mobilização
desses sujeitos que se formou, no âmbito do MJT, um segmen-
to de atingidos que eram trabalhadores rurais sem-terra, ao
qual se juntaram, também, outros trabalhadores rurais sem
terra da região, não atingidos por Itaipu, que se organizaram
através do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Oeste
do Paraná (MASTRO). A base dessa organização tinha outra
identidade: o que os unia não era o fato de serem atingidos
por Itaipu, mas o de não terem terra, de serem sem-terra. É a
partir do MASTRO que vai se organizar uma das bases do que
veio a se transformar no mais significativo e organizado mo-
vimento de massa dos trabalhadores no país: o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), analisado por João
Fabrini em outro capítulo desta coletânea. Não é sem signi-
ficado o fato de que o 1º Encontro Nacional do MST ter sido
GUIOMAR INEZ GERMANI

realizado em Cascavel (PR), em 1984, pois, em São Miguel


do Iguaçu, estava o Sindicato dos Trabalhadores Rurais que
congregava o MASTRO.
Todo o relato dessa história foi apresentado como
dissertação de mestrado, em 1982, e publicada, em 20039, no
9 Guiomar I. Germani, obra citada.

185
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

contexto das comemorações de 25 anos do Movimento Jus-


tiça e Terra, e do Encontro dos Atingidos por Itaipu, em agos-
to de 2003, em Santa Helena. Nesse encontro de Santa Hele-
na, foi inaugurado, na “praia” na borda do lago, um marco
alusivo ao encontro, com o lema “Lembrar para prevenir!”.
Foi uma publicação tardia, mas é o testemunho de uma his-
tória com o intuito, como disse Hobsbawm, de relembrar coi-
sas que muita gente faz questão de esquecer; é uma forma
de contá-las aos que desconhecem. Ou até mesmo uma
maneira de preservar a memória dos expropriados de Itaipu,
considerando que, como observou Ecléa Bosi: “na maior par-
te das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do
passado. A memória não é um sonho, é um trabalho”10.

PARA IR CONCLUINDO

Atualmente a visita a Usina Hidroelétrica de Itaipu faz


parte do roteiro turístico de Foz de Iguaçu. Por muito tempo
não tive nem vontade, nem coragem de ver o lago e muito
menos Itaipu. Somente quando das comemorações dos 25
anos do Movimento Justiça e Terra, em 2003, visitei Itaipu,
junto com Juvencio Mazzarollo11. Perguntei para a amável
guia e também a várias pessoas que visitaram a obra sobre
o que existia antes no lugar do lago. Perguntei sobre as pes-
soas que moravam lá, sobre o Movimento Justiça e Terra.
Todos, entretanto, só souberam comentar sobre a grandio-
sidade da obra, considerada uma das sete maravilhas do
MEMÓRIAS DA LUTA DOS ATINGIDOS POR ITAIPU

mundo moderno.
No site oficial de Itaipu Binacional, na “linha do tem-
po” da história da maior hidrelétrica do mundo, os atingidos
pela obra também não existem! É como se a história das mais
de 7.000 famílias e de sua resistência organizada no Movimen-
to Justiça e Terra também tivesse sido submersa, ou como
se nunca tivesse existido! Não se trata de lastimar, mas de
não deixar que o tempo apague a história e a memória que
as águas afogaram. Nem deixar de reconhecer a força e a
10 Ecléa Bosi, obra citada, p. 55.
11 Jornalista que foi o “último preso político” do país e escreveu a “Taipa da injustiça”.
Faleceu em 05/06/2014.

186
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

herança deixada pelos que se insurgiram no Extremo Oeste


do Paraná. Memória de luta, resistência e enfrentamento dos
“Expropriados de Itaipu”, sempre viva!

GUIOMAR INEZ GERMANI

187
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A LUTA DOS SEM-TERRA NO PARANÁ


João E. Fabrini

O espaço agrário paranaense é caracterizado pela


existência de um conjunto de conflitos relacionados, princi-
palmente, ao uso e apropriação concentrada da terra. Nes-
se contexto de conflitos, destaca-se a luta dos camponeses
sem-terra, que ocupam terras latifundiárias do agronegócio
em praticamente todas as regiões do estado do Paraná.
Os latifundiários do agronegócio reagem à luta dos
camponeses sem-terra, muitas vezes de forma violenta. Um
exemplo de violência recente, dentre tantos outros, foi o
assassinato, pela Polícia Militar do Paraná, de dois trabalha-
dores sem-terra acampados na área grilada pela empresa
madeireira Araupel, no município de Quedas do Iguaçu, em
2016. São significativas, também, as ações de milícias priva-
das contra os camponeses sem-terra.
A luta dos sem-terra não está relacionada apenas à
estrutura da propriedade e à exploração capitalista da ter-
ra, muitas vezes especulativa. Existem também aquelas lutas
de natureza reivindicativa, vinculadas à cidadania e ga-
rantia de direitos previstos na legislação. Esse é o caso das
reivindicações por políticas públicas, como a que expressa
demandas por educação, moradia rural, crédito de custeio
JOÃO E. FABRINI

e investimento, agroecologia, energia elétrica rural, dentre


outras. Observa-se, no entanto, que os sem-terra aliam “lutas
estruturais” a “lutas reivindicativas”, o que resultou num con-
junto de conquistas.
189
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Entretanto, apesar das conquistas e ações dos sem-


-terra organizados nos movimentos sociais, existe um pro-
blema agrário estrutural, uma questão agrária, que não foi
resolvida no Paraná. Esse problema agrário está vinculado,
principalmente, à apropriação concentrada e ao uso produ-
tivo e improdutivo da terra latifundiária.

A GEOGRAFIA DA LUTA DOS SEM-TERRA NO PARANÁ

A luta pela terra no Paraná vem desde passado dis-


tante. Ela ocorreu no início do século XX, no conflito do Con-
testado – analisado neste livro por Paulo Pinheiro Machado –
que envolveu camponeses expulsos da terra na divisa entre o
Paraná e Santa Catarina. Estes eram camponeses despossuí-
dos e seu movimento não se confunde com a luta dos sem-
-terras pela reforma agrária. O sujeito sem-terra se constituiu
em passado recente, no início da década de 1980, a partir
da formação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra).
Também na década de 1950, o Paraná foi espaço de
intensas lutas em torno da terra com a formação da “Guerri-
lha” de Porecatu, no norte do Estado, onde os camponeses
se armaram para manter a posse das terras de Jaguapitã e
Porecatu, pois o governo estadual havia repassado tais terras
para grandes proprietários. Diante dessa situação, os cam-
poneses do Jaguapitã e Porecatu, organizados com parti-
cipação do Partido Comunista, lutaram contra os despejos,
buscando garantir sua existência, que dependia principal-
mente da manutenção na terra, como mostra Angelo Priori,
em capítulo deste livro.
Ainda na década de 1950, conforme foi tratado por
Paulo Koling em outro capítulo desta coletânea, o Sudoeste
A LUTA DOS SEM-TERRA NO PARANÁ

também foi espaço de intensos conflitos e lutas campone-


sas. Ali, as lutas surgiram quando os camponeses-colonos fo-
ram expulsos de suas terras por meio de manobra empreen-
dida pelo governo estadual, que concedeu as terras a uma
empresa colonizadora. Organizados em “assembleias gerais
do povo” e “juntas governativas”, os camponeses avança-
ram sobre a cidade de Francisco Beltrão, expulsando as
autoridades constituídas e tomando a estação de rádio da
cidade. Medidas para resolver os problemas vieram com a
190
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

“militarização da questão agrária” e a criação do Grupo


Executivo de Terras do Sudoeste do Paraná (GETSOP), no
início dos anos 1960.
No final da década de 1970, o Oeste paranaense se
constitui em outra região de lutas no Estado, com a mobiliza-
ção e a organização dos agricultores expropriados pela bar-
ragem de Itaipu – Guiomar Inez Germani, em capítulo deste
livro, trata desse movimento. Nele, os atingidos, organizados
na CPT (Comissão Pastoral da Terra), formaram o “Movimen-
to Justiça e Terra”, que reivindicava a justa indenização das
áreas alagadas pelo reservatório/Lago de Itaipu. Destaca-se
também a ação de alguns sindicatos de trabalhadores rurais,
como o de Medianeira, pastores e adeptos da Igreja Lutera-
na na mobilização dos expropriados contra a barragem de
Itaipu. Nesse processo organizativo dos atingidos por barra-
gem surgiu também a luta contra a construção da barragem
de Salto Santiago, no Rio Iguaçu.
A luta pela indenização e contra a construção da
barragem de Itaipu no “Movimento Justiça e Terra” deu im-
pulso à organização camponesa no Paraná, conforme des-
tacam Martins (1990), Germani (2003), dentro outros1. Nessa
luta, foram montados acampamentos e realizadas assem-
bleias diárias de camponeses. Com isso, o ganho maior foi
a experiência política e a coragem de reivindicar direitos
sociais em época de exceção do regime militar, iniciado
em 1964.
A experiência das lutas contra a construção de Itaipu
foi base para o surgimento de um forte movimento de pe-
quenos agricultores despossuídos da terra no Oeste, em 1981:
o MASTRO (Movimento dos Agricultores Rurais Sem Terra do
Oeste). Entre os camponeses organizados nesse movimento,
encontravam-se arrendatários e posseiros “sem direito” à in-
denização da Itaipu. Enquanto no “Movimento Justiça e Ter-
ra” os camponeses lutavam para garantir a indenização da
terra, no MASTRO se inaugurava uma nova luta: a da reforma
agrária, defendendo que os camponeses sem terra conquis-
tassem o direito à posse da terra e condições para produzir,
JOÃO E. FABRINI

bem como para nela permanecer.


1 José de Souza Martins. Os Camponeses e a Política no Brasil. Petrópolis: Vozes.
1990. Guiomar Inez Germani. Expropriação terra e água – o conflito de Itaipu. Canoas:
Ulbra. 2003.

191
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

O MASTRO também serviu de inspiração para o sur-


gimento de outros movimentos de agricultores sem terra em
outras regiões do Paraná. Juntamente com a CPT (Comissão
Pastoral da Terra), STRs (Sindicato dos Trabalhadores Rurais) e
a ASESSOAR (Associação de Estudos, Orientação e Assistên-
cia Rural), esse grupo permitiu o surgimento do Movimento
dos Agricultores Sem-Terra do Sudoeste do Paraná (MASTES).
Nesse contexto, no Litoral surgiu o Movimento dos Agricultores
Sem-Terra do Litoral do Paraná (MASTEL), no Norte o Movimen-
to dos Agricultores Sem-Terra do Norte do Paraná (MASTEN) e
no Centro-Oeste o Movimento dos Agricultores Sem-Terra do
Centro-Oeste do Paraná (MASTRECO), coordenados por uma
secretaria estadual. Assim, organizados em diversos movimen-
tos regionais, os camponeses despossuídos e expulsos da terra
foram forjando a identidade de sem-terra. Esses movimentos
regionais no Paraná, bem como em outros Estados, foram a
base para a criação do MST, em 1984, em Cascavel2.
A partir desse período, o MST realizou ações “massi-
vas”, com ocupações e formação de acampamentos em
latifúndios nos mais variados municípios do Estado do Para-
ná. A maior ocupação de terra no Brasil foi realizada no Pa-
raná, em 1996, quando mais de três mil famílias em marcha
acamparam na então fazenda Giacomet, no município de
Rio Bonito do Iguaçu, que tinha à época 83 mil hectares e,
atualmente, pertencente ao Grupo Araupel. Resultante des-
ta ocupação, parte do latifúndio Giacomet foi conquistada
pelos sem-terra nos assentamentos Ireno Alves dos Santos e
Marcos Freire, no município de Rio Bonito de Iguaçu, e assen-
tamento Celso Furtado, em Quedas do Iguaçu.
Os brasiguaios, camponeses migrantes que retorna-
ram ao Brasil após um período de fixação no Paraguai, tam-
bém estiveram presentes nas lutas pela terra no Paraná. Em
A LUTA DOS SEM-TERRA NO PARANÁ

meados da década de 1980 eles acamparam no Estado do


Mato Grosso do Sul, mas a partir de 1998, passaram a atuar
de forma mais intensa em conjunto com os sem-terra, com
ocupação e acampamentos em municípios paranaenses,
principalmente os de São Miguel do Iguaçu, Mariluz e Cas-
cavel. Em Cascavel, sem-terras, entre os quais havia muitos
camponeses brasiguaios vindos em sua maior parte dos mu-
2 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Encontro Nacional dos Sem-Terra.
Cascavel: MST. 1984.

192
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

nicípios paraguaios de Santa Rita, Hernandarias, Minga Porã


e Naranjito, acamparam no distrito do Rio do Salto em 20063.
Na década de 1980, as lutas estavam mais concen-
tradas no Oeste e Sudoeste, devido as mobilizações dos
atingidos pela barragem de Itaipu e as ações de pequenos
agricultores. Na década de 1990, sobretudo no seu final, os
movimentos estiveram centrados no Noroeste do Estado,
principalmente nos municípios de Querência do Norte, Santa
Cruz do Monte Castelo e Marilena, onde ocorreram ocupa-
ções, manifestações, despejos e violências generalizadas, in-
clusive com assassinato de diversas lideranças de sem-terras.
Este foi o período recente de maior violência contra os sem-
-terra no Paraná, em que as lutas pela reforma agrária eram
tratadas pelo governo estadual de Jaime Lerner como ques-
tão de polícia, como se verificou nos despejos de sem-terras
realizados em municípios do Noroeste do Estado.
O início de 2000 foi marcado por intensos conflitos,
sobretudo naquelas regiões que passaram por um importan-
te processo de modernização da agricultura, como o Nor-
te e o Oeste do Paraná. A partir de 2005, a região Oeste se
tornou espaço caracterizado por conflitos diversos, onde, no
combate às lutas dos camponeses, se destacou a força con-
servadora do agronegócio latifundiário em torno da SRO (So-
ciedade Rural do Oeste do Paraná).
Observa-se que durante os dois mandatos do gover-
nador Roberto Requião (2003-2010), o convívio entre os mo-
vimentos camponeses e o governo do Estado foi “amistoso”.
A partir de 2011, Beto Richa assumiu o governo do Paraná e,
em vista da capacidade de luta dos movimentos, o governa-
dor tomou cuidado para realizar acordos com os movimen-
tos para não haver novas ocupações de terra. O governo
do Paraná instituiu em 2011 a Secretaria Especial de Assuntos
Fundiários, pasta comandada por Hamilton Serighelli, vincu-
lada à Secretaria da Casa Civil4.
Mas, a suposta pacificação do campo pretendi-
da pelo governo Beto Richa não ocorreu, gerando, inclusi-
ve, atritos recentes entre o secretariado do governo, como
JOÃO E. FABRINI

3 J. Eduardo. Brasileiros enfrentam a xenofobia dos paraguaios. Fatos, Cascavel, ano


VIII, n. 58, 2006.
4 M. E. Buchi. Governo federal indica Paraná como exemplo na solução de conflitos agrá-
rios. Agência Estadual de Notícias do Estado do Paraná, Curitiba, 10 jun. 2012.

193
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

aquele que aconteceu entre Hamilton Serighelli e Valdir Ros-


soni, da Casa Civil, em vista do despejo de 1.200 famílias do
acampamento Sebastião Camargo, em Santa Terezinha do
Itaipu. Observa-se ainda que a criação de uma secretaria
especial para mediar os conflitos fundiários, embora pudes-
se ser um canal importante, não se atentou para a estrutura
de tais conflitos, ou seja, o “modelo” de agricultura de negó-
cio, o agronegócio latifundiário, hegemônico no campo pa-
ranaense. O agronegócio latifundiário, embora responsável
por conflitos diversos, é considerado pelo governador Beto
Richa, como expressou em discurso na Assembleia Legislativa
do Estado, um “dínamo da economia paranaense”5.
Nesse contexto conflituoso no campo emergiram
diversos movimentos de sem-terra no Paraná, muitos deriva-
dos de conflitos internos no MST, como foi o caso do MAST
(Movimentos dos Agricultores Sem Terra), MLST (Movimento
de Libertação dos Sem Terra), Movimento Sindical, Bandeira
Branca, dentre outros. Mas, o MST, considerando dados do
Dataluta/PR (2016)6, é o movimento de sem-terra que mais
realiza ações e lutas no Paraná.
Os movimentos de sem-terra são os principais respon-
sáveis pela realização de acampamentos e ocupação de
terras latifundiárias. As ocupações de terra são o principal ins-
trumento de luta e permitiram conquistas diversas. Contudo,
em vista de vários fatores, verificou-se a diminuição dessas
ações no Paraná. As 123 ocupações ocorridas em 1999 no Es-
tado rapidamente diminuíram para 23 no ano 2000, cinco em
2001, seis em 2002 até chegar em 2016 com três ocupações
de terra, segundo dados do Dataluta/PR (2016). É necessá-
rio considerar ainda que as ocupações não são somente de
sem-terras, pois se somam a esses números as “retomadas
de terras” indígenas, sobretudo no Oeste, nos municípios de
Guaíra, Terra Roxa e Marechal Cândido Rondon.
A LUTA DOS SEM-TERRA NO PARANÁ

Apesar de muito importantes, os dados levantados


pelo Dataluta/PR mostram queda na intensidade das ocupa-
ções de terra no Paraná. O gráfico a seguir, sobre as ocupa-
ções de terra no período de 1988 a 2016, mostra acentuado
decréscimo a partir de 2003.
5 Carlos Alberto Richa. Discurso do governador Beto Richa na Assembleia Legislativa.
Agência Estadual de Notícias do Estado do Paraná. Curitiba, 3 fev. 2012.
6 Dataluta/Paraná. Banco de dados da luta pela terra no Paraná. Relatório Dataluta de
2005-2016. Marechal Cândido Rondon: GEOLUTAS, 2016.

194
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Gráfico 1 – Paraná – Ocupações de Terra (1988 – 2016).

Fonte: DATALUTA/PR, 2016.

O mapa a seguir revela a localização espacial das


ocupações de terra no período de 1988 a 2013, no Estado do
Paraná. É possível verificar que na trajetória dos sem-terra, as
ocupações se constituíram numa importante forma de luta no
campo paranaense. Destacam-se no conjunto das ocupações
realizadas pelos diversos movimentos de sem-terra e indígenas
as regiões Oeste, Centro-Sul, Noroeste e Norte do Estado.
Mapa 1 – Paraná – Ocupações por Município (1988-2013).

JOÃO E. FABRINI

195
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A diminuição das ocupações está relacionada a um


conjunto de motivos, tais como os vínculos do Movimento com
o Estado nos governos Lula e Dilma, o fato do governo não
entender a reforma agrária como parte de um projeto de de-
senvolvimento e a atuação política dos setores ruralistas, forte-
mente representados no Congresso Nacional. Acrescenta-se
ao contexto político a aliança pragmática dos governos do
PT (desfeita em 2015/2016) com o setor ruralista para garantir
governabilidade, o que se colocou como obstáculos para as
desapropriações de terra e realização de assentamentos.
A arrecadação de terras também se constitui numa
dificuldade, pois a valorização de produtos primários, sobre-
tudo o soja, no mercado internacional, fez com que muitos
proprietários se dedicassem às lavouras de exportação. Isso,
aliado a não correção dos índices de produtividade dos imó-
veis rurais – que não exige produção superior das grandes
propriedades – pressionou para a diminuição de imóveis dis-
poníveis para desapropriação para fins de reforma agrária
no Paraná.
Atualmente existem no Estado aproximadamente
de cinco mil famílias em 100 acampamentos. Embora haja
o registro de diminuição no número de ocupações de terra
realizadas pelos movimentos sociais no Brasil e no Paraná, é
importante destacar que houve avanços em outras formas
de lutas, como as mobilizações, manifestações, ações de
resistência, dentre outras. Acrescenta-se a esse contexto de
mobilização pela terra as realizadas pelos indígenas, que
têm sido intensificadas por diversos meios, dentre os quais
se destacam as “retomadas de terra”, conforme dados do
Dataluta/PR (2016).
A diminuição na intensidade das ocupações de ter-
ra feitas pelos sem-terra, aliada à política governamental de
A LUTA DOS SEM-TERRA NO PARANÁ

não valorização da reforma agrária, reflete na criação de


novos assentamentos no Paraná.
Apesar das dificuldades enfrentadas pelos movimen-
tos de sem-terra, existe um conjunto de conquistas. O gráfi-
co a seguir mostra a evolução no número de assentamentos
criados no Paraná no período de 1981 a 2016, evidenciando
que houve significativa queda no número a partir de 2002,
com alguma retomada nos anos de 2004 e 2005, e diminuin-
do posteriormente.
196
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Gráfico 2 – Paraná – Número de assentamentos rurais (1981-2016).

Fonte: DATALUTA/PR, 2016.

O mapa a seguir mostra os espaços da conquista


da terra de assentamentos no Paraná no período de 1981 a
2013, no qual se destacam as regiões Centro-Sul, Nordeste,
Noroeste e Norte.
Mapa 2 – Paraná – Assentamentos Rurais por Município (1981-2013).

JOÃO E. FABRINI

197
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Essas conquistas de terra não foram uma concessão


das classes dominantes, sobretudo da oligarquia rural, que
possuem elevada força política no Paraná. Elas foram deri-
vadas de lutas, muitas das quais se desdobraram em forte
violência contra os camponeses sem-terra.
A violência contra os camponeses está presente em
praticamente todo o território paranaense, praticada tanto
pela Política Militar, quanto por milícias privadas. Estas são
motivo de vergonha para a própria força pública, que não
é capaz de garantir segurança no campo. Verifica-se que
a violência cometida contra os sem-terra, inclusive nos dias
atuais, é indicativa de que o MST tem feito forte luta pela re-
forma agrária, contrariando a ideia de que o Movimento foi
cooptado pelos governos do PT.
A impunidade da violência contra os sem-terra é
uma regra no Paraná, como foi o caso do assassinato de Di-
niz Bento da Silva, o Teixeirinha, em 1993, em Campo Bonito.
A Comissão de Direitos Humanos da OEA (Organização dos
Estados Americanos) chegou a condenar o Estado brasileiro
pela falta de investigação efetiva que atribuísse responsabi-
lidade aos que cometeram o crime de assassinato contra o
sem-terra7.
Outro caso de impunidade foi o assassinato de Séti-
mo Garibaldi por uma milícia armada em 1998, em Querên-
cia do Norte, no Noroeste do Paraná, em uma ação realizada
por pistoleiros encapuzados em despejo criminoso no acam-
pamento do MST. Segundo testemunhas, a ação foi coman-
dada pelo fazendeiro Morival Favoreto e pelo capataz Ailton
Lobato. A impunidade do assassinato de Sétimo fez a Corte
Interamericana de Direitos Humanos condenar por unanimi-
dade o Estado brasileiro por ausência de investigação eficaz
e responsabilização pelo assassinato. Em 2012, o Tribunal de
A LUTA DOS SEM-TERRA NO PARANÁ

Justiça do Estado do Paraná arquivou ação penal, apesar


das tentativas de reabertura do processo pelo Ministério Pú-
blico do Paraná, após depoimento do MST na OEA.8
Outro exemplo de impunidade foi o assassinato de
Antônio Tavares Pereira (2000) pela Polícia Militar do Paraná
às margens da rodovia 277, próximo ao município de Campo
7 Terra de Direitos. Mais de 18 anos depois, Estado do Paraná se retrata pela morte de
trabalhador rural sem-terra. http//www.terradedireitos.org.br/notícias. 2016.
8 Idem.

198
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Largo, numa caravana de sem-terras a Curitiba. Até o mo-


mento não foi possível identificar e responsabilizar criminal-
mente os executores e mandantes do crime.9
Um dos poucos casos de condenação foi o assas-
sinato de Sebastião Camargo, morto durante um despejo
ilegal na fazenda Santo Ângelo, no município de Marilena,
Noroeste do Paraná. Nesse despejo ilegal feito por milícia pri-
vada formada por 30 “pistoleiros”, Sebastião Camargo foi as-
sassinado e 17 pessoas ficaram feridas, entre elas, crianças.
Depois de 18 anos de processo, a justiça condenou o fazen-
deiro e ex-presidente da UDR (União Democrática Ruralista),
Marcos Prochet, em 2016, a 15 anos de prisão.10
São muitos os casos de violência cometida contra os
sem-terra no Paraná, não sendo possível, nesse capítulo, tra-
tar de todos os exemplos. Mas, além desses já apontados,
destacam-se dois casos recentes que se tornaram emblemá-
ticos no processo de luta do movimento, ambos no Oeste do
Paraná: os casos da “Estação Experimental da Syngenta” e
“Araupel”.
A Syngenta Seeds é uma empresa transnacional que
atua na pesquisa, inovação e difusão de biotecnologias no
setor do agronegócio. No Brasil, a corporação possuía, den-
tre outros centros de pesquisa, a Estação Experimental de
Santa Teresa do Oeste. Em 2006, a Syngenta teve apreendi-
dos na Estação Experimental, 12 hectares de plantio de soja
transgênica pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis) porque o cultivo/experi-
mento estava localizado na “zona de amortização ambien-
tal” do Parque Nacional do Iguaçu, que compreendia um
raio de dez quilômetros, conforme previa a legislação brasi-
leira. Uma semana após a empresa ser multada pelo Ibama,
mil integrantes da Via Campesina ocuparam a Estação Ex-
perimental. A ocupação da gleba e o estabelecimento do
acampamento tinham o objetivo de chamar a atenção da
sociedade para os crimes ambientais contra a biodiversida-
de que a multinacional vinha cometendo. Aproximadamen-
JOÃO E. FABRINI

te 80 famílias permaneceram acampadas por mais de dois


meses na área da Syngenta até serem despejadas, quando
9 Idem.
10 Idem.

199
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) al-


terou o raio da “zona de amortecimento” do Parque Nacio-
nal do Iguaçu de dez quilômetros para 500 metros para servir
aos interesses da empresa. A alteração do raio foi o caminho
aberto para a realização do despejo dos sem-terra, que se
instalaram na faixa de domínio da BR 163, em frente ao Cam-
po Experimental.
Após nova ocupação, o governo do Paraná iniciou o
processo de desapropriação da Estação, assinando decreto
para transformar a fazenda experimental de OGM (Organis-
mo Geneticamente Modificado) em área de ensino e pes-
quisa voltada para a produção agrícola sustentável. A área
foi identificada pela Secretaria de Agricultura do Paraná, na
época, como local ideal para instalação de um centro de
pesquisa em agroecologia, sendo sua criação aprovada
pela Assembleia Legislativa do Estado.
A desapropriação da área gerou indignação nos
ruralistas da região Oeste do Paraná. Os sem-terra, desde a
primeira ocupação, passaram a ser duramente combatidos
pela empresa Syngenta e pela Sociedade Rural do Oeste,
esta fundada para defender os interesses dos grandes pro-
prietários fundiários da região. Para os setores dominantes
e ligados ao agronegócio latifundiário, seria uma afronta
ocupar uma área localizada entre as terras mais férteis do
país e próximas à cidade de Cascavel, importante centro
de produção, consumo e circulação de mercadorias do
agronegócio.
As várias ocupações e reocupações resultaram em
final trágico, com o assassinato de Valmir Mota de Oliveira,
o Keno, coordenador estadual do MST que atuava no Oeste
do Paraná. Uma milícia armada da empresa “NF Seguran-
ça” invadiu o local, disparando em direção às pessoas. Além
A LUTA DOS SEM-TERRA NO PARANÁ

da morte de Keno, mais quatro sem-terras ficaram feridos.


Segundo a Via Campesina, a ação fora promovida pela
Syngenta, juntamente com a SRO e o MPR (Movimento dos
Produtores Rurais), vinculado ao agronegócio da região. Em
2015, a Syngenta foi sentenciada a indenizar por danos mo-
rais e materiais os familiares de Keno e a sem-terra Isabel dos
Santos, que ficou gravemente ferida no conflito11.
11 Terra de Direitos. Syngenta condenada: Justiça responsabiliza empresa por morte de
sem terra no Paraná. http//www.terradedireitos.org.br/notícias. 2015.

200
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Na área da Estação onde ocorreu o massacre (de


acordo com o juiz que proferiu a sentença), funciona o Cen-
tro de Pesquisas em Agroecologia Valmir Mota de Oliveira,
mas, o atual secretário da Agricultura do Paraná, Norberto
Ortigara, do governo Beto Richa, afirmou que a área deve
ser um centro de pesquisa para os vários sistemas de cultivo e
não somente agroecologia.
Assim, verifica-se que a empresa moderna transna-
cional vinculada ao agronegócio recorre à violência e ao
desrespeito às normas estabelecidas (legislação) para fazer
valer a acumulação capitalista, ou seja, articulam-se rela-
ções de produção modernas e de pesquisa científica com
práticas de uma “acumulação primitiva” de capital.
Outro exemplo recente (2016) que demonstra, não
apenas a violência contra os sem-terra, mas também o poder
de mobilização desse movimento, ocorreu nos acampamen-
tos Dom Tomás Balduino e Herdeiros da Luta pela Terra, for-
mados por 1.200 famílias na área grilada pela Empresa Arau-
pel, no município de Quedas do Iguaçu, reconhecida pela
Justiça Federal de Cascavel como terra pública, pertencen-
te à União, destinada à reforma agrária. A Araupel domina
cerca de 30 mil hectares de terras nos imóveis Pinhal Ralo e
Rio das Cobras nos municípios de Rio Bonito do Iguaçu, Que-
das do Iguaçu, Espigão Alto do Iguaçu e Nova Laranjeiras.
Originalmente, a empresa detinha a posse de aproximada-
mente 80 mil hectares, mas 49 mil deles foram destinados aos
assentamentos Ireno Alves dos Santos, Marcos Freire e Celso
Furtado nos últimos 20 anos, após intensas lutas dos sem-terra.
Em 2016, numa “tocaia” e ação truculenta da Polí-
cia Militar do Paraná, dois militantes do MST, Vilmar Bordim e
Leonir Orback, foram assassinados, e Pedro Francelino e Hen-
rique Pratti feridos gravemente. As investigações conduzidas
pela Polícia Federal e pelo Gaeco (Grupo de Atuação Espe-
cial de Combate ao Crime Organizado) desmontam a ver-
são apresentada pela Polícia Militar de que os responsáveis
pela ação seriam os militantes do MST.12
Um fato que chamou atenção foi o de que logo
JOÃO E. FABRINI

após o massacre na Araupel, os assassinos foram soltos e as


12 Terra de Direitos. Cronologia aponta massacre de trabalhadores rurais em Quedas do
Iguaçu: Polícia Militar emboscou e atirou para matar. Disponível em: <http//www.terrade
direitos.org.br/notícias>. Acesso em: 2016.

201
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

vítimas foram presas em flagrante pela delegada de Polícia


Civil, num hospital do município de Cascavel. A alegação da
prisão foi a de que, mesmo gravemente feridos, os sem-terra
eram um perigo à ordem pública. Além disso, a Polícia Civil
coletou o depoimento de feridos sob efeito de sedativos no
hospital onde foram submetidos à cirurgia, num grave desres-
peito aos direitos humanos.13
Em ato de protesto contra a violência da Araupel
e da Polícia Militar em Quedas do Iguaçu, o MST prometeu
“vingar” a morte dos dois membros do movimento ocupando
outras glebas. Nos protestos, as lideranças afirmaram que o
objetivo do movimento é ocupar todas as terras da empresa,
transformando-as em terras camponesas de assentamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As lutas dos sem-terra estão inseridas num contexto


estrutural de conflitos entre a expansão das relações capita-
listas de produção e a existência camponesa. As demandas
dos camponeses sem-terra vão, em muitos aspectos, na con-
tramão das relações capitalistas de produção no campo. A
força do movimento é verificada por um conjunto de ações
de resistência que se desdobram, entre outras, na realização
dos assentamentos de reforma agrária.
A partir das mobilizações feitas, sobretudo por meio
das ocupações de terra, verifica-se que o MST é a principal
organização camponesa de enfrentamento ao agronegó-
cio latifundiário na defesa pela reforma agrária no Estado
do Paraná. Embora as ocupações de terra ainda se consti-
tuam numa importante forma de atuação, observa-se tam-
bém uma queda substancial no seu número por motivos di-
versos. Nesse contexto, ações visando políticas públicas se
A LUTA DOS SEM-TERRA NO PARANÁ

fortaleceram.
Verifica-se ainda que existe uma geografia da luta
dos sem-terra, ou seja, uma distribuição espacial dos emba-
tes, que estão relacionadas à existência de latifúndios, ter-
ras griladas, capacidade de mobilização, etc. Na década
de 1980, quando se formou o MST, os enfrentamentos, no
Paraná, estavam concentrados principalmente no Oeste.
13 Idem.

202
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Posteriormente, na década de 1990, destacaram-se as re-


giões Noroeste, Centro-Sul e Norte. A partir de 2000, o Oeste
e o Centro-Sul se tornaram as principais regiões de luta dos
sem-terra.
A organização e as ações dos sem-terra são enfren-
tadas pelos ruralistas, com ações violentas realizadas pela
Polícia Militar ou milícias privadas, contando, inclusive, com
a participação direta dos próprios latifundiários nos atos vio-
lentos, como foi o caso da ação comandada pelo fazen-
deiro Morival Favoreto em Querência do Norte, que resultou
na morte de Sétimo Garibaldi. Além disso, os latifundiários do
agronegócio, para combater os sem-terra, organizam-se em
diferentes entidades patronais, que recebem apoio de ou-
tras entidades, políticos conservadores, veículos de comuni-
cação, entre outros.
Por isso, é possível afirmar que está em disputa no Pa-
raná, bem como em todo o Brasil, dois projetos: o projeto dos
latifundiários do agronegócio e o projeto dos camponeses.
Nesse contexto, há ainda a existência de um problema agrá-
rio estrutural no campo paranaense, ou seja, a existência de
uma questão agrária que não foi resolvida.

JOÃO E. FABRINI

203
PARTE III:
TRABALHADORES URBANOS:
MILITÂNCIA E LUTA POR DIREITOS
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A POLÍTICA NAS RUAS:


PROTESTOS, ASSOCIATIVISMO E
MILITÂNCIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA
Jhonatan Uewerton Souza

Em plena manhã de 1º de Maio, quando a cidade


se preparava para as festividades do Dia do Trabalhador, os
proprietários de panificadoras, em protesto contra a nova le-
gislação de higiene lançada pela municipalidade de Curiti-
ba, anunciaram que dobrariam o preço do pão, no que fo-
ram prontamente acompanhados pelos donos de açougue,
que aumentaram para 800 réis o quilo da carne. Corria o ano
de 1913 e os periódicos curitibanos publicavam sucessivas
notícias sobre manifestações contra o elevado custo de vida
realizadas em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Por-
to Alegre. Os mais exaltados, como o colunista do Diário da
Tarde, Gastão Faria, anunciavam que havia uma “revolução
da fome” em curso.1
Este capítulo trata das manifestações contra a ca-
restia e de outros protestos de rua. Aborda greves, passeatas
e manifestações protagonizadas pelo movimento operário
JHONATAN UEWERTON SOUZA

e pela população pobre de Curitiba na Primeira República


(1889-1930). Nas linhas que se seguem, analisaremos o inten-
so movimento associativo desses sujeitos, preocupados tanto
com aquelas experiências organizativas voltadas à conquista
de direitos no mundo do trabalho, quanto com as agremia-
ções recreativas, direcionadas à promoção de divertimentos
1 Gastão Faria. A revolução da fome. Diário da Tarde. Curitiba, 14 mar. 1913, p. 1.

207
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

nos tempos livres. Falaremos ainda de militantes, partidos, pe-


riódicos, utopias e ideias radicais que circularam pelos am-
bientes frequentados por trabalhadores curitibanos. Ao fim,
pretendemos proporcionar ao leitor um voo raso pela agita-
da paisagem social do Paraná nos anos iniciais do período
republicano. Um passeio comprometido, que nos estimule a
ousar novos voos nessas primeiras décadas do século XXI.

A PRAÇA É DO POVO (E A RUA TAMBÉM)

Elaborada pelas sociedades operárias, a programa-


ção daquele 1º de Maio, em 1913, iniciou com uma confe-
rência na sede da Associação Curitibana dos Empregados
do Comércio, promovida pela União Central dos Operários
Paranaenses, na qual o líder operário e socialista, José Lopes
Netto, fez um balanço histórico das conquistas dos trabalha-
dores e da “importância do operariado como fator de pro-
gresso e civilização”.2 Na sequência, o presidente da União
A POLÍTICA NAS RUAS: PROTESTOS, ASSOCIATIVISMO E MILITÂNCIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

Central, Dr. Azevedo Macedo, voltou-se ao tema do momen-


to, a carestia, propondo a fundação “de uma cooperativa
de gêneros de primeira necessidade, podendo, assim, o ope-
rariado minorar as suas condições.”3
Ao final da tarde, “o proletariado afluiu à Praça Tira-
dentes onde, anunciavam os boletins distribuídos, se realiza-
ria um meeting”4. No dia seguinte, o redator de A República
noticiou o motivo da aglomeração: “O procedimento inqua-
lificável dos proprietários de padaria dessa capital [...] moti-
vou o primeiro meeting popular, ontem, contra a carestia”.
Conforme narrado na publicação, às 16h 30min, um grupo
de pessoas se reuniu “no gradil da estátua de Floriano [Pei-
xoto]”, na Praça Tiradentes. Pouco tempo depois, como nos
informa A República, já era “considerável a multidão aglo-
merada no centro do jardim”. O meeting iniciou com a de-
legação de operários responsável pela organização do pro-
testo nomeando os oradores Aldo Kepler da Silva e Vicente
Nascimento Junior como seus porta-vozes. Ambos discursa-
2 O dia do trabalho. A Republica. Curitiba, 2 maio 1913, p. 1.
3 Aos sábados. Diário da Tarde. Curitiba, 2 maio 1913, p. 1.
4 Meeting é um termo em inglês que pode ser traduzido como encontro ou reunião. Na
imprensa da Primeira República, o termo era utilizado para designar protestos, manifes-
tações ou comícios reivindicatórios.

208
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ram sobre os motivos da mobilização e sobre o problema do


alto custo de vida em Curitiba. Ao final propuseram “a ideia
do povo pedir aos poderes públicos as medidas que forem
reputadas justas para salvaguarda dos interesses da popula-
ção ameaçada na sua economia.”5
Elegeu-se, então, uma comissão responsável por re-
digir e apresentar “ao presidente do Estado, prefeito do mu-
nicípio e camaristas municipais um memorando no sentido
de adoção de providências.”6 Outro protesto foi marcado
para o domingo seguinte, oportunidade na qual a comissão
prestaria contas dos resultados da negociação. Deliberações
tomadas, a manifestação terminou “entre vivas ao povo e
ao operariado”, sob o olhar vigilante do delegado de polí-
cia auxiliar “a cujas ordens se achavam alguns guardas civis
para manterem a ordem no caso de qualquer alteração.”7
Quando, quatro dias depois, o segundo meeting
contra a carestia foi realizado, Nascimento Junior, em nome
dos “emissários do povo”, anunciou a resposta da prefeitura
às demandas populares: “o dr. Cândido de Abreu promete-
ra à comissão popular [...] que agiria energicamente no sen-
tido de coibir a desarrazoada ganância dos padeiros, para
o que já está essa autoridade munida de uma autorização
do poder legislativo municipal”.8 Efetivamente, temendo
que os protestos se tornassem mais violentos, a exemplo do
que ocorria na capital federal, a Câmara Municipal respon-
deu rapidamente às pressões populares, aprovando uma
indicação que autorizava a Prefeitura Municipal a “dispen-
sar do pagamento de todos os impostos municipais e do
aluguel de quartos do mercado, os padeiros e açougueiros
que se propuserem a fornecer pão e carne à população
por preço razoável”. Além disso, o prefeito poderia “elevar
os atuais impostos até o triplo” caso os comerciantes combi-
nassem de “elevar os preços dos mesmos gêneros, em pre-
juízo dos consumidores.”9
JHONATAN UEWERTON SOUZA

Os meetings e comícios em praça pública compu-


nham um quadro mais amplo de politização das ruas na
5 O dia do trabalho. A Republica. Curitiba, 2 maio 1913, p. 1.
6 Idem.
7 Idem.
8 Meeting. Diário da Tarde. Curitiba, 5 maio 1913.
9 A carne e o pão. Diário da Tarde. Curitiba, 3 maio 1913, p. 1.

209
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Primeira República. Investigando o Rio de Janeiro, a historia-


dora Hebe Mattos observou que, ao menos desde o último
quartel do século XIX, emergiu “uma cultura política que pas-
sava a valorizar a ocupação dos espaços públicos.”10 Outras
cidades brasileiras, como Curitiba, também sentiram os efei-
tos dessa nova dinâmica urbana. Nelas, os debates nos ca-
fés, nas portas das redações dos jornais e nas agremiações
dos mais diversos tipos se convertiam em caixa de ressonân-
cia para as mais variadas demandas populares e em fórum
aberto de debates sobre a vida na cidade e no país.
A rigor, reclamações contra o aumento do preço de
gêneros de primeira necessidade não eram uma novidade
republicana. Carlos Antunes dos Santos nos informa de re-
clames publicados na imprensa paranaense sobre o assunto
desde a segunda metade do século XIX.11 Uma série de ou-
tros temas, além da carestia, motivaram manifestações públi-
cas no período. Comícios contra o excessivo poder da Igreja,
pela jornada de trabalho de oito horas, pelo direito político
A POLÍTICA NAS RUAS: PROTESTOS, ASSOCIATIVISMO E MILITÂNCIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

das minorias parlamentares, contra os “fanáticos” do Con-


testado e favoráveis à entrada do Brasil na Primeira Guerra
Mundial, são apenas alguns exemplos das dezenas de even-
tos desse tipo que aconteceram no Paraná no alvorecer da
República. Por meio dessas manifestações, a população, em
grande parte alijada do processo eleitoral, encontrou uma
maneira de participar e influenciar nos rumos da vida política
da cidade, do estado e do país.
Em 1904, por exemplo, os organizadores de um pro-
testo contra a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que
beneficiava Santa Catarina, em detrimento do Paraná, no
caso do Contestado, chegaram a pedir “ao comércio e aos
industriais para fecharem, à tarde, seus estabelecimentos a
fim de todos poderem tomar parte no grande préstito.”12 Entre
os organizadores da manifestação, estavam algumas socie-
dades operárias, como a Associação Curitibana dos Empre-
gados do Comércio, a Sociedade Protetora dos Operários,
a Sociedade Beneficente dos Trabalhadores da Erva Mate,
10 Hebe Mattos. A vida política. In: Lilia M. Schwarcz. A abertura para o mundo 1889-1930.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. p. 86.
11 SANTOS, Carlos Antunes. História da alimentação no Paraná. Curitiba, Fundação Cul-
tural. 1995. p. 135-151.
12 Grande reunião. Diário da Tarde. Curitiba, 20 jul. 1904, p. 2.

210
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Sociedade dos Operários Alemães e a Sociedade Operário


Beneficente 13 de Maio, indicando que o movimento asso-
ciativo dos trabalhadores também se engajava em questões
que ultrapassavam o universo das relações laborais, militan-
do no que a imprensa da época classificava como “causas
cívicas”, num evidente esforço de projeção pública dessas
instituições.

QUESTÃO DE CLASSE

Em que pese o engajamento nos meetings cívicos,


era principalmente nas comemorações do Dia do Trabalha-
dor e nas greves que o operariado tomava as ruas da cida-
de. Alcina Cardoso e Silvia Araújo indicam que manifesta-
ções públicas no 1º de Maio ocorreram ininterruptamente em
Curitiba desde, pelo menos, o ano de 1906 até 1920, quando,
na esteira da repressão às greves de 1917 e 1919, boa parte
das organizações que promoviam os protestos foram desba-
ratadas e seus principais dirigentes presos ou perseguidos.
Conforme as autoras, depois de um período de reclusão, no
qual as associações operárias celebraram internamente a
data, as manifestações no dia internacional de luta da clas-
se trabalhadora voltaram à tona em meados dos anos 1920.
No decorrer das três primeiras décadas do século XX, além
de ocorrerem em Curitiba, manifestações comemorativas
do 1º de Maio eram organizadas também em outras cidades
do Estado, como em Antonina, Morretes, Paranaguá, Ponta
Grossa, Imbituva, Prudentópolis, União da Vitória, São Mateus
do Sul e Rio Negro.13
O 1º de Maio, originalmente uma data de luto, em
memória aos trabalhadores mortos na repressão às manifes-
tações pela redução da jornada de trabalho organizadas em
Chicago, em 1886, se converteu rapidamente, e no mundo
todo, em um dia de luta pela adoção da jornada de traba-
JHONATAN UEWERTON SOUZA

lho de oito horas e pela instituição de outros direitos trabalhis-


tas. Os atos em Curitiba não fugiam à regra, sendo organiza-
dos pela Federação Operária Paranaense (FOP) – entidade
que aglutinava sindicatos e agremiações de trabalhadores
de diversos ofícios – ou pela Liga Operária 1º de Maio, funda-
13 Alcina de Lara Cardoso; Silvia Pereira de Araújo. 1º de Maio: cem anos de solidariedade
e luta. Curitiba: Beija-Flor, 1986. p. 35-56.

211
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

da em 1908, especificamente para esse fim. Contavam com


passeatas pela cidade, como a de 1907, que teve à frente a
banda do 14º Regimento de Cavalaria e “os estandartes da
Federação Operária Paranaense, da Liga dos Sapateiros e a
bandeira anarquista com as cores vermelha e preta, com os
dizeres ‘Liberdade e Terra.’”14
Os préstitos do 1° de Maio normalmente passavam
pelas sedes das associações de trabalhadores, pelas reda-
ções de jornais e terminavam em algum auditório, geralmen-
te o do Teatro Guaíra – à época situado na rua Dr. Muricy,
onde atualmente se localiza a Biblioteca Púbica do Paraná15.
Ali, oradores tomavam a palavra em comícios que versavam
sobre a situação operária e as lutas internacionais dos traba-
lhadores. Durante o evento, músicas eram executadas por
bandas da cidade e peças socialistas e anarquistas – como
o “1º de Maio”, “Inimigo das Mulheres”, “Cenas da Miséria”
e “A Honra do Operário” – eram encenadas por grupos tea-
trais como a Liga Internacional dos Filhos do Trabalho ou o
A POLÍTICA NAS RUAS: PROTESTOS, ASSOCIATIVISMO E MILITÂNCIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

Grupo Dramático Renascença. Não raro, as manifestações


terminavam com todos em pé cantando o hino do 1º Maio,
de autoria de Pietro Gori, ou o homônimo, composto por Go-
mes Leal.16
Da mesma forma que os eventos comemorativos do
1º de Maio, também as greves já tinham uma história na ci-
dade. Os primeiros registros de ações dessa natureza reme-
tem à década de 1880, antes mesmo da proclamação da
República. Em 1885, os ferroviários de Morretes cruzaram os
braços por conta dos maus tratos que recebiam de um su-
perintendente da estrada de ferro.17 Em 1886, segundo o his-
toriador Elton Luiz Barz, houve uma greve dos trabalhadores
que construíam o Passeio Público.18 Em 1887, conforme publi-
cação do jornal Der Pioner, os trabalhadores na construção
da Igreja Matriz, a Catedral Nossa Senhora da Luz “fizeram
14 Ibid, p. 28.
15 Um histórico do Teatro Guaíra é apresentado pela Secretaria Estadual de Cultura do
Estado do Paraná em: http://www.teatroguaira.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.
php?conteudo=849 (04/09/2017).
16 Idem. O leitor interessado poderá ouvir a canção com letra de Pietro Gori em https://
www.youtube.com/watch?v=bRD2DfLKbyw (04/10/2017).
17 Nemo. Correspondência Morretes. Dezenove de Dezembro. Curitiba, 11 jul. 1885, p. 2.
18 Elton Luiz Barz. Posfácio. In: Ricardo Marcelo Fonseca; Mauricio Galeb. A greve geral
de 17 em Curitiba: resgate da memória operária. Curitiba: IBERT, 1996. p. 99.

212
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

greve por ver desautorizado o seu antigo mestre, o laborioso


e inteligente Sr. José Moreira de Freitas”. 19
Iniciadas no Império, as greves se intensificaram no
período republicano. Entre 1890 e 1930, segundo Cardoso e
Pereira, ocorreram 40 greves no Paraná, mobilizando diver-
sas categorias, como os ferroviários, trabalhadores da erva-
-mate, carroceiros, funcionários da empresa de saneamento,
estivadores, tipógrafos, leiteiros, fosforeiros, boleeiros, telefo-
nistas, cervejeiros, entre outros. Os trabalhadores envolvidos
lutavam por melhores salários, pelo fim de impostos conside-
rados abusivos, contra atrasos no pagamento de seus salá-
rios, pela redução da jornada de trabalho, por alterações
nos regulamentos vigentes nos locais de trabalho e em soli-
dariedade a companheiros demitidos ou a outras categorias
em greve. Esses movimentos paredistas ocorreram nas cida-
des de Curitiba, Paranaguá, Antonina, Rio Negro, Colombo e
Ponta Grossa.20
Alguns movimentos extrapolaram os limites da rela-
ção patrão e empregados, repercutindo em toda a socie-
dade. Foi o caso da greve dos sapateiros, em 1906, liderada
pela Liga dos Sapateiros, associação de resistência fundada
naquele mesmo ano. O movimento inicialmente reivindica-
va um aumento de 25% nos jornais (remuneração diária) e
conseguiu paralisar a maior parte das fábricas de sapatos
da cidade. Aos poucos, notícias sobre a manipulação do
movimento por alguns industriais, desentendimentos e trocas
de acusações entre as lideranças da categoria e os demais
trabalhadores, além de denúncias de que os grevistas esta-
vam ameaçando operários que não haviam aderido ao mo-
vimento, ganharam as páginas dos periódicos curitibanos,
chegando ao ponto da polícia instalar piquetes de cavalaria
nas ruas: “a pretexto de garantir a liberdade do trabalho.”21
Por vezes, ainda, as reivindicações por melhores con-
JHONATAN UEWERTON SOUZA

dições de trabalho terminavam em atos de violência. Em 13


de novembro de 1908, os policiais do Regimento de Seguran-
19 Greve. Der Pioner. Curitiba, 17 set. 1887, p. 2.
20 Alcina de Lara Cardoso; Silvia Pereira de Araújo. Obra citada. p. 37-41. E: Silvia Pereira
de Araújo; Alcina de Lara Cardoso. Jornalismo e militância operária. Curitiba: Editora
UFPR. p. 149-158.
21 Esses episódios foram estudados por Luiz Carlos Ribeiro. Memória, trabalho e resistên-
cia em Curitiba (1890-1920). Dissertação em História – USP. São Paulo, 1985, p. 157.

213
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ça de Curitiba se amotinaram contra seu então comandan-


te, João Candido Muricy. Além de protestarem contra os bai-
xos salários, os soldados reclamavam dos maus tratos sofridos
e pediam a destituição imediata do comandante. O saldo
do motim foi a morte de um praça, a prisão de nove lideran-
ças, a dispensa do serviço de alguns revoltosos e a exonera-
ção, à pedido, de João Candido Muricy.22 Na greve geral de
1917, liderada pelos anarquistas – movimento tratado por Luiz
Carlos Ribeiro no próximo capítulo deste livro – houve tiroteio,
trens foram descarrilhados, pontes derrubadas e o abaste-
cimento de energia da cidade foi cortado pelos rebeldes.23
Em outras ocasiões, o tom era mais ameno, privile-
giando a negociação. Foi o caso da greve de 1919, conduzi-
da pelos socialistas da União Operária do Paraná (UOP), que
reivindicavam a adoção da jornada de trabalho de oito ho-
ras e aumentos salariais. Os dirigentes da UOP negociaram,
em nome de diversas categorias, com as lideranças patro-
nais, tentando evitar a deflagração do movimento paredis-
A POLÍTICA NAS RUAS: PROTESTOS, ASSOCIATIVISMO E MILITÂNCIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

ta. Quando as negociações emperravam, como no caso da


Rede Viação Paraná-Santa Catarina, as lideranças operárias
solicitavam a intervenção estatal, apelando à mediação do
próprio presidente do Estado, para evitar o prolongamento
do dissídio. Eram utilizados também outros expedientes, como
a organização de abaixo assinados e o boicote a empresas
que se negavam a reconhecer os direitos trabalhistas. Isso
não impediu que algumas categorias cruzassem os braços
em 1919, como os próprios ferroviários e os trabalhadores do
porto de Paranaguá, por exemplo.24

ASSOCIATIVISMO E REDES DE SOLIDARIEDADE

Dando suporte às manifestações, greves, campa-


nhas, boicotes, abaixo-assinados e petições, havia um vigo-
roso movimento associativo entre os trabalhadores curitiba-
nos. Desde o final do século XIX, as populações excluídas do
projeto de modernidade republicana fundaram um número
22 Clóvis Gruner. Paixões torpes, ambições sórdidas: transgressão, controle social, cultura
e sensibilidade moderna em Curitiba, fins do século XIX e início do XX. Tese em História
– UFPR. Curitiba, 2012, p. 133.
23 Ricardo Marcelo Fonseca e Mauricio Galeb. Obra citada, 1996, p. 35-53.
24 Luiz Carlos Ribeiro. Obra citada, 1985, p. 185-204.

214
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

significativo de sociedades para os mais variados fins: auxílio


mútuo, instrução, luta por direitos, reivindicações trabalhistas,
recreação, atividades físicas, militância política, enfim, para
cada dimensão da vida, organizava-se uma agremiação,
não sendo incomum que as mesmas pessoas frequentassem
mais que uma delas. Associar-se, formar redes de solidarieda-
de e proteção eram formas de driblar as incertezas do perío-
do, instaurando alguma estabilidade material e afetiva em
tempos de enormes carências.
Em 1883, foi fundada a Sociedade Protetora dos
Operários, formada por trabalhadores de diferentes ofícios
e nacionalidades, com significativa presença negra em suas
instâncias diretivas.25 No mesmo ano surgiu a Sociedade Ita-
liana de Mútuo Socorro Giuseppe Garibaldi, congregando
italianos e seus descendentes residentes em Curitiba e nas
colônias no entorno da cidade. Ambas as agremiações fixa-
ram sede no bairro São Francisco, região na qual, nos anos
subsequentes, outras entidades mutualistas seriam funda-
das, como a Sociedade Polono-Brasileira Tadeusz Kosciusz-
ko (1890) e a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio
(1888), a primeira voltada aos poloneses e a última direciona-
da à população negra da cidade. A Sociedade Recreativa
e Beneficente dos Operários Alemães (1884) completava o
circuito do mutualismo de recorte étnico na cidade.
Essas associações de socorro mútuo eram formadas
por sócios que contribuíam mensalmente com a entidade,
que prestava auxílio aos filiados em casos de doença, licen-
ça para tratamento médico, invalidez, morte, viuvez e orfan-
dade. Em um período no qual o Estado não assegurava direi-
tos como licença médica, aposentadoria e pensão para os
trabalhadores e suas famílias, o mutualismo era uma forma
de garantir um mínimo de estabilidade na vida dessas pes-
soas. Era comum, ainda, que além da caixa de auxílios, essas
JHONATAN UEWERTON SOUZA

associações contassem também com bibliotecas, espaços


culturais, salões de baile e mantivessem atividades de ensino
voltadas aos seus associados. As escolas noturnas para tra-
balhadores foram particularmente importantes para garantir
o acesso à cidadania política nesse período, uma vez que,
25 HOSHINO, Thiago A. P.; FIGUEIRA, Miriane. Negros, libertos e associados: identidade
cultural e território étnico na trajetória da Sociedade 13 de Maio (1888-2011). Curitiba:
Fundação Cultural de Curitiba, 2012.

215
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

desde a Lei Saraiva (lei eleitoral de 1881), o direito ao voto


mantinha-se limitado aos indivíduos alfabetizados.26
Além das agremiações de caráter étnico, outras
associações de trabalhadores foram formadas, reunindo
indivíduos de bairros específicos, como a Sociedade Be-
neficente Internacional do Água Verde (1905), Sociedade
Beneficente dos Operários do Batel (1905), Sociedade Ope-
rária Beneficente do Abranches (1910), Sociedade Operá-
ria Beneficente e Recreativa Vila Morgenau (1918) e Socie-
dade Operária Beneficente do Mercês (1919). Havia ainda
aquelas associadas a categorias específicas de trabalha-
dores e que transitavam entre o mutualismo e a represen-
tação de classe, como a Sociedade Beneficente dos Tra-
balhadores da Erva-Mate (1896), a Sociedade Beneficente
dos Barriqueiros da Água Verde (1909), a Sociedade Benefi-
cente dos Barriqueiros do Ahú (década de 1920) e a União
Beneficente dos Barbeiros (1930).27
Por fim, existiam as entidades propriamente de clas-
A POLÍTICA NAS RUAS: PROTESTOS, ASSOCIATIVISMO E MILITÂNCIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

se, que se constituíam como sindicatos e ligas de ofício, como


a União dos Pedreiros (1892), a Associação Paranaense dos
Empregados do Comércio (1899), o Centro Tipográfico Para-
naense (1906), a União Gráfica Paranaense (1907), a Liga dos
Sapateiros (1906), a Sociedade dos Condutores de Veículos
(1910), a Sociedade dos Padeiros (1907), a Sociedade Prote-
tora dos Boleeiros (1911), a União dos Chauffers de Curitiba
(1913), Associação dos Empregados Públicos do Estado do
Paraná (1913), Sindicato do Mate (1917), Sindicato dos Ope-
rários da South Brazilian Railway Company (1920), Associação
dos Professores Primários do Paraná (1920), entre outros.28
Em 1906, depois da greve dos sapateiros, uma par-
cela dessas agremiações se uniu para formar a Federação
Operária Paranaense (FOP), que congregava sindicatos e li-
gas de ofício de trabalhadores de diversos segmentos e que
foi uma das principais responsáveis por organizar e unificar as
lutas do operariado curitibano naquela década. Conforme
26 Noemi Santos da Silva. O “batismo na instrução”: projetos e práticas de instrução
formal de escravos, libertos e ingênuos no Paraná provincial. Dissertação em História
– UFPR, 2014.
27 Elton Luiz Barz. Obra citada, 1996. Alcina de Lara Cardoso e Silvia Pereira de Araújo.
Obra citada. 1986. Alcina de Lara Cardoso e Silvia Pereira de Araújo. Obra citada. 1992.
28 Alcina de Lara Cardoso e Silvia Pereira de Araújo. Obra citada. 1992, p. 149-156.

216
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

noticiado no Diário da Tarde, estava entre os planos da FOP:


“estender sua propaganda em todo o Estado.” Para esse fim,
“nomeou uma comissão composta dos srs. Carlos Torti e Lo-
pes Netto” que foi “a Ponta Grossa fazer conferências nos
dias 23 e 24 do corrente, nos salões do Club Democrata.”
Sobre os assuntos debatidos: “O sr. Carlos Torti falará sobre a
‘Organização operária e os operários presentes e futuros’ e
sr. L. Netto sobre ‘A necessidade de união’ e ‘Fins da propa-
ganda iniciada”.29
Como desdobramento desses esforços, a FOP or-
ganizou o Congresso Operário Estadual, em 1907, reunindo
delegados de agremiações da capital com representantes
de associações de outras cidades, como a Sociedade dos
Operários, de Antonina, a Sociedade Protetora dos Operá-
rios, de Morretes, a Liga da Resistência, de Ponta Grossa, e o
Clube Operário de Paranaguá.30 Dentre as teses aprovadas
no Congresso, estavam o estímulo à formação de ligas de
resistência, a não permissão de mediação externa em ca-
sos de greve, realização de reuniões permanentes durante
as greves, boicote às classes parasitárias, não contratação
de advogados para defender as ligas de ofício, não esta-
belecimento de armazéns de consumo para trabalhadores,
aceitação de jornalistas em reuniões operárias, criação de
um jornal, realização de conferências e fundação de esco-
las, os três últimos, visando “o levantamento moral da classe
trabalhadora”.31
Em 1908, estendendo suas redes para além do territó-
rio estadual, a FOP se filiou à recém-formada Confederação
Operária Brasileira (COB), central sindical criada a partir das
deliberações do 1º Congresso Operário Brasileiro, de 1906.32
Mas as atividades da Federação Paranaense, assim como as
da Confederação Brasileira, se encerraram antes mesmo do
fim daquela década. Outras experiências organizativas surgi-
JHONATAN UEWERTON SOUZA

riam nos anos posteriores, como Liga Operária 1º de Maio, de


29 Factos Diversos. Diário da Tarde. 20 nov. 1906, p. 3.
30 Congresso Operário Estadual. A Notícia. 11 abr. 1907, p. 1.
31 Para os debates do Congresso, consultar: Congresso Operário. Diário da Tarde. 16
abr. 1907, p. 1. Congresso Operário. Diário da Tarde. 17 abr. 1907, p. 1. e Congresso
Operário. Diário da Tarde. 18 abr, 1907, p. 1.
32 Cláudio Batalha. Dicionário do movimento operário. Rio de Janeiro do século XIX aos
anos 1920 militantes e organizações. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2009. p. 218.

217
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

1908, e a Federação Operária de Resistência, criada meses


antes da deflagração Greve Geral de 1917.
Maior organização teria a União Operária do Paraná
(UOP), fundada em 1919, que, mesmo adotando um discurso
conciliatório, que valorizava a negociação em detrimento da
greve, ainda assim foi fechada em janeiro de 1920, na esteira
da perseguição nacional às lideranças das greves de 1917 e
1919, deixando: “sem ação quatrocentos operários reunidos
em sua sede, surpreendidos pela polícia”.33 A UOP seria reor-
ganizada naquele mesmo ano, chegando a 5.000 filiados em
1921, mas teria suas atividades limitadas pelo ambiente políti-
co da década de 1920, marcado pelo estado de sítio, pelas
leis de censura à imprensa e perseguição a militantes socia-
listas, anarquistas e subversivos de origem estrangeira.34 Em
1931, a entidade chegou a fundar uma Universidade Popular
em Curitiba, almejando “o melhoramento imediato da vida
do proletário” e “a formação da consciência revolucionária
do proletariado”.35
A POLÍTICA NAS RUAS: PROTESTOS, ASSOCIATIVISMO E MILITÂNCIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

POVO EM FESTA, POLÍCIA EM GUARDA

Não era só em relação à atuação e organização das


atividades sindicais que os trabalhadores encontravam res-
trições. Nos espaços de lazer a situação se repetia. Como
notou Eduardo Spiller Pena, desde as últimas décadas do sé-
culo XIX, a polícia e as autoridades municipais declararam
guerra aos bailes, batuques, fandangos e sumpfs (bailes or-
ganizados por imigrantes alemães com a participação de
libertos e escravizados) e tudo quanto era festejo popular. A
ordem do dia era “combater os excessos de uma ociosidade
condutora em potencial à criminalidade”36. Estava em jogo,
também, limitar os espaços de sociabilidade, onde pessoas
de origens e condições distintas, como imigrantes pobres, ne-
gros livres, libertos e escravizados, caboclos, indígenas e cai-
çaras pudessem, entre um gole e um bailado, construir laços
de identidade e solidariedade.
33 Alcina de Lara Cardoso e Silvia Pereira de Araújo. Obra citada. 1986, p 43.
34 Alcina de Lara Cardoso e Silvia Pereira de Araújo. Obra citada. 1992, p. 132.
35 Universidade Popular. Diário da Tarde. 7 set. 1931, p. 5.
36 Eduardo Spiller Pena. O jogo da face: a astúcia escrava frente aos senhores e à lei na
Curitiba provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999. p. 2.

218
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Em 1907, uma nova onda de perseguição às festas


populares tomou conta de Curitiba, com a polícia invadindo
residências onde aconteciam festejos e proibindo o funciona-
mento de clubes de baile populares, onde se dançava maxixe
e cake walk, um modismo “lúbrico e coceguento, de origem
africana”, na expressão racista do colunista Celso, do Diário
da Tarde.37 Nem todos aceitaram os desmandos calados. De-
pois de ser detido em um desses bailes, um grupo de rapazes
escreveu um abaixo assinado à imprensa, protestando contra
os maus-tratos recebidos na delegacia e denunciando o ca-
ráter de classe da “cruzada moralizadora”, empreendida pela
polícia. Segundo o grupo, o chefe de polícia andava:
[...] perseguindo sem motivo legal os pequenos e os fra-
cos, para quem é um espantalho, quando, entretanto,
tratando-se de influentes e poderosos, deixa em silên-
cio, sem proceder a respeito, como toda Curitiba sabe
[...]. Fomos presos, mas isso não nos desabona, porque
fomos simples vítimas do abuso policial.38

Os clubes de futebol formados por trabalhadores


pobres e frequentados pela população negra da cidade
também não tiveram vida fácil nesse período. De modo si-
milar ao que ocorria no campo do mutualismo e das ligas de
ofício, no terreno esportivo também assistimos a um intenso
movimento associativo de trabalhadores nas primeiras dé-
cadas do século XX. Nesse processo, diversas agremiações
foram fundadas, como o Operário F. C. de Curitiba, que se
orgulhava de ser: “constituído somente de empregados fer-
roviários”39 e o Graphico F. C., que congregava os tipógra-
fos. O mais famoso desses clubes foi o Britânia S. C., fundado
em 1914, pelos empregados da Fábrica de Vidros Solheid &
Engerke, que se definia, em uma carta direcionada à Liga
Sportiva Paranaense (LSP), como um clube: “composto por
na sua maioria de operários honestos e educados [...] que
JHONATAN UEWERTON SOUZA

labutam desde o amanhecer ao entardecer numa oficina


de trabalho, ou num armazém da Estrada de Ferro ou numa
Fábrica de Vidros.”40 Conforme as memórias de juventude de
37 Celso. A Dança. Diário da Tarde. 14 nov. 1907, p.1.
38 Ao Público. Diário da Tarde. 1 nov. 1907, p. 2.
39 O Spor. Commercio do Paraná. 5 set. 1914, p 2.
40 Berthier Oliveira. A A. S. P. e o Britannia. Commercio do Paraná. 9 abr. 1921. p 1.

219
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Luiz Carlos Pereira Tourinho, “o Britânia era o clube dos pretos


– o que não condizia com o nome”.41
De origem operária e com significativa participação
negra, o Britânia chegou à primeira divisão da Liga Sportiva
Paranaense, em 1916, driblando os diversos obstáculos le-
vantados pelos clubes de futebol da elite paranaense para
dificultar o acesso de agremiações com esse perfil ao princi-
pal torneio da cidade (cobrança de joias caras, exigência
de construção ou arrendamento de praça esportiva, apro-
vação da filiação pelos membros da liga etc.). No mesmo
ano, entretanto, uma nova regulamentação começou a ser
debatida no Rio de Janeiro, sede da Federação Brasileira de
Sports (FBS), à qual a LSP era filiada, ameaçando excluir das
ligas de futebol trabalhadores pobres, por não considerá-los
dignos da prática esportiva amadora.42
Esse regulamento, batizado de “nova lei do amado-
rismo”, pretendia proibir que na principal liga de futebol ca-
rioca se inscrevessem atletas “que tiram seus meios de subsis-
A POLÍTICA NAS RUAS: PROTESTOS, ASSOCIATIVISMO E MILITÂNCIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

tência de qualquer profissão braçal [...] ou cuja profissão lhes


permita receber gorjeta”. A lista citava nominalmente cerca
de 30 profissões, excluindo da prática futebolística os pesca-
dores, barqueiros, condutores de veículos, operários de fábri-
ca, barbeiros, guardas civis, caixeiros, criados de servir, entre
outros. Por fim, o último parágrafo do regulamento determi-
nava que não seriam aceitos como atletas, todos os indiví-
duos: “que exercerem qualquer posição profissão ou empre-
go que, a juízo do Conselho Superior, esteja abaixo do nível
moral e social exigido pelo esporte do amadorismo”43. Como
os dirigentes cariocas controlavam a direção da Federação
Brasileira de Sports, havia o temor de que esse regulamento
fosse extendido às ligas futebolísticas de outros estados, ga-
nhando, assim, alcance nacional.
Em Curitiba, a reação ao novo regulamento, rebati-
zado de “lei da seleção”, foi contundente. Luiz Guimarães,
importante dirigente local, publicou diversos textos na im-
41 Luiz Carlos Pereira Tourinho. Toiro Passante V – Tempo de República Democrática.
Curitiba: Estante Paranista, 1994, p. 265.
42 Nesse período, a prática esportiva era exclusivamente amadora, sendo proibido o pro-
fissionalismo. Jhonatan Uewerton Souza. O jogo das tensões: clubes de imigrantes ita-
lianos no processo de popularização do futebol em Curitiba (1914-1933). Dissertação
em História – UFPR. Curitiba, 2014, p. 119-168.
43 SECÇÃO SPORTIVA. Diario da Tarde. 3 maio 1916, p 2.

220
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

prensa combatendo o projeto e denunciando seu real obej-


tivo: “o rebaixamento das classes trabalhadoras”. O debate
sobre a exclusão de atletas, protestou Guimarães: “chegou
até a ridícula questão de cor, como se todos nós, brancos
ou pretos, não tivéssemos os mesmos direitos a gozar.” E
prosseguiu na argumentação: “precisam os dirigentes do
esporte carioca se lembrar que há muito operário preto e
honrado e muito homem de posição social elevada branco
e venal.”44 Para marcar posição, alguns clubes de futebol
de Curitiba realizaram um festival em celebração ao 13 de
Maio, data de assinatura da Lei Áurea. Em outros estados,
como São Paulo, ocorreram manifestações similares de re-
púdio ao novo regulamento.45
Os protestos surtiram efeito e a “nova lei do amado-
rismo” foi revogada no Rio de Janeiro e nem chegou a ser
implementada no Paraná. Assim, clubes com o perfil do Britâ-
nia conseguiram se estabelecer nas principais competições
futebolísticas. Dos oito campeonatos disputados entre 1916 e
1923, o Britânia faturou nada menos que sete taças.46 Miran-
do em perspectiva, não é dificil entender por que as elites te-
miam tanto competir contra trabalhadores pobres e negros.
A garantia da exclusividade sempre foi um mecanismo mais
eficaz de produção de falsos sucessos, que o verdadeiro mé-
rito derivado da competição em condições de igualdade.

MILITÂNCIA E AGITAÇÃO POLÍTICA

Um turbilhão de ideias e projetos de sociedade cir-


culavam pelas associações de trabalhadores. Militantes dos
mais diversos matizes políticos e publicações de toda ordem
aqueciam os debates nas mesas de conversa e nas salas
de leitura das agremiações de caráter sindical e recreativo.
Araújo e Cardoso identificaram nada menos que 40 periódi-
cos operários publicados no Paraná entre 1890 e 1930.47 Eram
JHONATAN UEWERTON SOUZA

títulos como: O Operário Livre, Terra Livre, Paraná Graphico,


O Proletário, O Rebate, A Vanguarda, A Pátria Livre, 1º de
Maio, A Voz do Operário, Il Diritto, A Emancipação, Ferroviário

44 Luiz Guimarães. Selecção Sportiva. Commercio do Paraná. 29 out 1916, p. 2.


45 SPORT. Commercio do Paraná. 14 maio 1916, p. 2.
46 Jhonatan Uewerton Souza. Obra citada, 2014.
47 Alcina de Lara Cardoso e Silvia Pereira de Araújo. Obra citada, 1992, p. 13.

221
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

e A Flama, para ficar apenas em alguns exemplos. À frente


desses periódicos, um agrupamento de gráficos, jornalistas,
operários e profissionais liberais animados pelas ideias anar-
quistas, sindicalistas revolucionárias ou socialistas juntavam
forças, em redações provisórias, para manter essas publica-
ções, com poucos recursos e equipamentos obsoletos. Esses
militantes não reduziam sua atuação à publicação de pan-
fletos e jornais de tiragem reduzida e periodicidade irregular.
Eles disputavam a direção das agremiações operárias, orga-
nizavam grupos de estudo, convocavam manifestações, fun-
davam partidos e, por vezes, concorriam a eleições.
Desde a década final do século XIX, uma intensa
atividade socialista se desenvolveu nos meios operários de
Curitiba, enfatizando a necessidade de construção de um
partido que defendesse os interesses dos trabalhadores e
que elegesse vereadores e deputados que representassem
os anseios da classe no parlamento. Em 1890, o jornalista ne-
gro Agostinho Leandro da Costa, redator dos periódicos O
A POLÍTICA NAS RUAS: PROTESTOS, ASSOCIATIVISMO E MILITÂNCIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

Operário e Operário Livre, ajudou a fundar o Partido Operário


objetivando disputar as eleições daquele ano ao Congresso
Nacional.48 No mesmo ano, um grupo de trabalhadores auto-
denominados “Congresso de Operários” rompeu com o par-
tido, por discordar dos candidatos escolhidos para concorrer
ao pleito em nome da legenda, uma vez que, justificavam:
“a chapa apresentada contém nome de pessoas que [...]
não pertencem ao grêmio operário.”49
Em 1893, duas agremiações com esse perfil concor-
reram às eleições para o legislativo estadual: o Partido União
Operária e o Centro Operário Cosmopolita. Três anos depois,
novas candidaturas operárias concorreriam às eleições mu-
nicipais. Entre os candidatos a camarista naquela eleição,
estava o nome de João Fernandes Cunha, filiado à Socieda-
de 13 de Maio e membro da diretoria do Partido Operário.
Outro que concorreu a esse pleito, provavelmente pelo mes-
mo partido, foi o ex-escravizado Vicente Moreira de Freitas,
então presidente licenciado da “13 de Maio” e importante
dirigente da Sociedade Protetora dos Operários no início do
48 Pamela Beltramin Fabris. Quando Curitiba sobe o morro: associativismo e experiência
política de afrodescendentes. Anais do 8º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional. Porto Alegre, 2017, p. 16.
49 Congresso de Operários. A República. 10 set. 1890, p. 3.

222
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

século XX. A presença significativa de negros na linha de fren-


te dessas organizações problematiza a memória recorrente,
segundo a qual, a militância socialista no Brasil teria iniciado
e se restringido aos imigrantes europeus, especialmente os
italianos.50
Nesse mesmo sentido, não parece casual que, em
1908, lideranças socialistas como José Lopes Netto, o ora-
dor da manifestação de 1º de Maio que abre esse capítu-
lo, tenham recorrido ao passado abolicionista do ex-sena-
dor Ubaldino do Amaral como forma de justificar seu apoio
à candidatura de alguém que não tinha qualquer relação
com o movimento operário: “Desde moço dispensou culto à
liberdade pela abolição da escravatura que foi um atentado
contra a civilização [...] o seu governo será uma vitória da
classe operária às vezes reduzida à posição de escravo.”51
Eram muitas as cores, memórias e experiências que forma-
ram o caldo do qual emergiu a primeira leva de socialistas
paranaenses. E, as lembranças das mobilizações pela abo-
lição e as frustrações com a realidade que em seguida se
impôs à população negra eram ingredientes fundamentais
neste caldeirão.
Houve, também, espaço para os imigrantes e seus
descendentes. Eles estiveram, ao lado dos nacionais, entre
aqueles que fundaram o Partido Socialista do Paraná, em
1915; o Centro Socialista do Paraná, em 1916; e o Partido So-
cialista Paranaense, em 1921. Entre os alemães, por exemplo,
circulava o jornal de tendência socialista Der Beobachter,
dirigido pelo austríaco Anton Scheneider, um dos candida-
tos do Partido Operário nas eleições de 1908.52 Os imigrantes,
notadamente os italianos, foram particularmente numerosos
entre os anarquistas e sindicalistas revolucionários que funda-
ram inúmeros círculos libertários em Curitiba, como os grupos
Germinal, Terra Livre, Leon Tolstói e Cultura Revolucionária; ou
JHONATAN UEWERTON SOUZA

os jornais Il Diritto, Electra, O Despertar, O Escalpello, O Dever,


A Revolta e A Terra Livre, que propagandeavam os anseios
revolucionários contra o Estado e a ordem burguesa, na es-
50 Pamela Beltramin Fabris. Obra citada, 2017, p. 16.
51 ´Diário da Tarde citado por Luiz Carlos Ribeiro. Obra citada, 1985, p. 229.
52 Pamela Beltramin Fabris. “Nós, os selvagens, não reverenciamos os símbolos kaiseria-
nos”: conflitos em torno de uma identidade germânica em Curitiba (1890-1918). Disser-
tação em História – UFPR, 2014, p. 49.

223
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

pera da greve geral insurrecional que abrira caminho para a


construção de um novo mundo sem hierarquias, pátrias e pa-
trões. Disputando a direção do movimento operário com os
socialistas, fundaram a Federação Operária de Resistência,
que conduziria a greve geral de 1917.53
Alguns desses militantes estavam inseridos numa ex-
tensa rede de contatos de abrangência transnacional. É o
caso de Gigi Damiani, agitador anarquista com atividades
em núcleos libertários de Roma, Gênova e diversos centros
da Toscana e da Ligúria, além de algumas passagens pela
prisão e ao menos uma experiência de degredo. Emigrado
para o Brasil em 1898, provavelmente por pressão da polícia
italiana, viveu em São Paulo, onde se tornou uma das prin-
cipais lideranças anarquistas do Brasil, e, de 1902 a 1908, se
estabeleceu no Paraná, entre Paranaguá e Curitiba. Nesses
locais, além da intensa atividade na Federação Operária
Paranaense e o envolvimento com Congresso Operário Es-
tadual, dirigiu, com Egízio Cini, o periódico Il Dirito. Manteve
A POLÍTICA NAS RUAS: PROTESTOS, ASSOCIATIVISMO E MILITÂNCIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

constante correspondência com um dos principais teóricos


do anarquismo, Errico Malatesta, com o qual debatia a situa-
ção do operariado brasileiro e aspectos da teoria revolucio-
nária. Parte de suas reflexões pode ser encontrada na coluna
“Cartas Paranaenses”, que escrevia periodicamente para o
jornal La Battaglia, principal publicação anarquista brasileira.
De volta à Itália, depois de ser expulso pelo governo brasilei-
ro, em decorrência de sua participação nos eventos paulis-
tas da greve geral de 1917, dirigiu com Malatesta o periódico
Umanità Nova, órgão da União Anárquica Italiana. No exílio,
durante o fascismo, militou, ainda, na França, Bélgica, Ale-
manha e Tunísia.54
Outro que se correspondeu com Malatesta e escre-
veu para diversos periódicos anarquistas e socialistas do mun-
do foi Giovanni Rossi, um militante anarco-comunista, como
ele mesmo se definia, que fundou, em 1890, no município de
Palmeira, a Colônia Cecília, um experimento cooperativista
horizontal, inspirado nas ideias anarquistas e socialistas, que
abrigaria cerca 250 integrantes, se dissolvendo em 1893. Rossi
53 Silza Maria Pazello Valente. A presença rebelde na cidade sorriso: contribuição ao es-
tudo do anarquismo em Curitiba (1890-1920). Londrina: EdUel, 1997. p. 110-167.
54 Luigi Biondi. Gigi Damiani. Dicionário da elite política republicana (1889-1930). Disponí-
vel em: http://cpdoc.fgv.br/dicionario-primeira-republica. Acesso em: 20 ago. 2017.

224
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

era membro da Associação Internacional dos Trabalhadores


– AIT (Primeira Internacional) desde 1873, filiado ao Partido
Socialista Revolucionário da Toscana e havia participado da
comuna experimental de Cittadella, na província de Cremo-
na, antes de emigrar para o Brasil e tentar aprofundar seu
experimento social no município de Palmeira, construindo
uma comunidade horizontal, autogestada e de propriedade
coletiva.
Em 1891, como delegado da Colônia Cecília, parti-
cipou do Congresso Socialista Revolucionário Italiano, onde
seria formado o Partido Operário Italiano. Nos anos subse-
quentes, escreveria para vários periódicos de todo o mundo,
refletindo sobre as potencialidades e limites da experiência
na Colônia Cecília, comparando-a a iniciativas análogas em
outros países.
Os artigos escritos em periódicos estrangeiros, as cor-
respondências trocadas e a própria inserção de militantes
como Damiani e Rossi em redes transnacionais permitia que
eventos ocorridos no Paraná fossem discutidos e analisados
em outras partes do planeta, inserindo a região num movi-
mento de trocas de experiências revolucionárias de exten-
são global.55

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O PARANÁ NO SÉCULO XX E XXI

Em 1895, após o fim da Colônia Cecília, Giovanni Ros-


si publicou a utopia “O Paraná no século XX”, um empreen-
dimento ficcional voltado a repensar o “comunismo anárqui-
co”, à luz das experiências que vivenciara nos anos anteriores
e em diálogo crítico com as vertentes autoritárias do socialis-
mo. A obra inicia com o próprio Rossi, seu protagonista, dei-
tado em uma rede, na cidade de Morretes, às margens do
rio Nhundiaquara, sorvendo café e aguardente, enquanto
baforava um charuto aromático e debatia a existência de
JHONATAN UEWERTON SOUZA

espíritos com seu amigo e anfitrião, o médium Diego Diaz. De-


pois de entornadas algumas doses de cachaça, ambos, em
estado de “semi-inconsciência”, decidiram evocar o espíri-
to de um amigo em comum, o doutor Grillo, um médico so-
cialista de Palmeira, morto durante a Revolução Federalista.
55 Helena Isabel Mueller. Flores aos rebeldes que falharam: Giovanni Rossi e a utopia
anarquista. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999. p. 115-221.

225
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Qual não foi o espanto do cético anarquista, quando Grillo


apareceu “em carne e osso” sentado na poltrona à sua fren-
te. Interrogado por seus interlocutores, o médico começou
a narrar as surpresas que o futuro reservava àqueles que se
dedicavam à causa da revolução social no Paraná.
Conforme Grillo, em fins do século XIX um amplo mo-
vimento de trabalhadores passou a se rebelar contra a cor-
rupção da casta política paranaense e a exploração patro-
cinada pelos patrões. Reunidos em um eclético movimento
socialista, esses trabalhadores fundaram associações, jornais,
bibliotecas e escolas, onde debatiam as teorias de Marx, Ba-
kunin e Kropotkin, encenavam dramas sociais e liam poesia
revolucionária. Em 1916, um forte partido socialista já havia
se formado em Curitiba e, nas décadas seguintes, o “Paraná
tornou-se a vanguarda do movimento socialista em toda a
América do Sul”56. O golpe final veio em 1931, quando os tra-
balhadores tomaram o poder e o “proletariado teve, por fim,
o seu 13 de maio.”57 O que se seguiu foi a abolição da pro-
A POLÍTICA NAS RUAS: PROTESTOS, ASSOCIATIVISMO E MILITÂNCIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

priedade privada e a libertação da mulher, com a derruba-


da do capitalismo e do patriarcado. O Paraná se modernizou
e o trabalho deixou de ser um fardo ao operário: “cada um
trabalha como pode, como sabe e, principalmente, com a
intensidade que quiser.”58 A narrativa prossegue detalhando
cada um dos aspectos da nova realidade social que emergiu
com a tomada do poder pelos trabalhadores paranaenses.
É certo que a utopia de Giovanni Rossi não se con-
cretizou. De todo modo, como procuramos demonstrar nes-
te capítulo, parte da agitação pré-revolucionária descrita
na ficção – ainda que com uma intensidade bem menor, é
necessário assinalar – ocorreu efetivamente entre os traba-
lhadores paranaenses. Entre fins do século XIX e início do XX,
havia um movimento associativo robusto no estado, ideias
revolucionárias e ativistas circulavam por essas agremiações,
greves e protestos foram realizados, lutava-se por direitos no
terreno laboral e nos espaços de lazer, mas os partidos socia-
listas e os círculos anarquistas nunca passaram de pequenas
organizações de vida efêmera e reduzida capacidade de
56 Giovanni Rossi. Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial, 2000. p.
147.
57 Idem, p. 152.
58 Idem, p. 160.

226
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

mobilização política e eleitoral. Por que toda essa energia


social não encontrou uma tradução política à sua altura? Eis
aí uma boa questão para começarmos a repensar as utopias
para o Paraná no século XXI.

JHONATAN UEWERTON SOUZA

227
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

EXPERIÊNCIA OPERÁRIA EM
CURITIBA: A GREVE GERAL DE 1917
Luiz Carlos Ribeiro

A década de 1910 foi particularmente tensa no oci-


dente. A eclosão da guerra mundial de 1914 revelou o esgo-
tamento da expansão imperialista. No plano social, o cresci-
mento das massas proletárias, ao longo do XIX, colocou em
xeque a democracia liberal. Liberalismo e expansão indus-
trial, que eram até então expressão máxima do apogeu da
burguesia davam, nesse início de século XX, sinais claros de
desgaste.
Guardadas as diferenças, no Brasil esse fenômeno
também era visível. O impacto da expansão capitalista re-
configurou a esfera pública, tingida agora por uma massa
de homens e mulheres livres – negros libertos ou brancos imi-
grantes. A formação do mercado de trabalho livre fez-se es-
culpindo organizações e ações de interesse das classes, em
especial a dos trabalhadores.
Em Curitiba, a criação, em 1888, da Sociedade Ope-
rária Beneficente 13 de Maio foi um marco nesse movimento.
A greve dos sapateiros, de 1906, e na sequência a criação
da Federação Operária Paranaense, visibilizaram a existên-
LUIZ CARLOS RIBEIRO

cia de um movimento operário que se manifestava através


das diversas ligas ou sociedades mutualistas de artesãos ou
operários fabris, como a dos boleeiros, cocheiros, sapateiros,
barriqueiros, assim como, entre muitos outros, os trabalhado-
res da estrada de ferro.
229
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

JULHO DE 1917: CURITIBA É TOMADA PELA GREVE GERAL

Quando a greve eclodiu em Curitiba, em 1917, o


auto reconhecimento dos trabalhadores como constituintes
de uma “classe operária” era visível. Apesar dessa visibilida-
de como classe, ela precisou se impor. O grau de violência
que em alguns momentos marcou o movimento paredista
criou um clima de grande medo na cidade, como expressa
essa nota do Diário da Tarde:
O aspecto da cidade era terrível às 7 horas da noite.
Às escuras e cheia de boatos alarmantes, parecia que
nos achávamos em verdadeira revolução.
Os veículos de toda a ordem haviam desaparecido.
O povo aglomerava-se pelas esquinas, naquela hora
fria, dando ainda aspecto mais contristador.
Cobertos por negros capotes, os grupos pareciam hor-
das de carbonários, assim a espera de um assalto, (...).
Era funambulesco o aspecto da cidade às escuras,
mas acima disso estava o terror que se espalhou, ao
ouvir-se um renhido tiroteio1

Era o terror das turbas de operários e operárias que,


armados de revólveres e bandeiras vermelhas, percorriam as
ruas da cidade, de noite e de dia, contaminando com a sua
anarquia a vida e a propriedade.
As coisas realmente não estavam fáceis naqueles
EXPERIÊNCIA OPERÁRIA EM CURITIBA: A GREVE GERAL DE 1917

anos de guerra. As fábricas e oficinas quase paradas, seja


por falta de matéria-prima, seja por falta de consumo. Os ali-
mentos, em especial os importados, haviam atingido os pre-
ços mais altos. O desemprego e a carestia criavam uma mas-
sa revoltada de homens pobres que, nervosos, ocupavam a
cidade. Faziam-se presentes, vazando da marginalidade dos
subúrbios e para dentro da urbs. “É preciso que se saiba que
na nossa linda capital, já existe gente com fome, sem lar e
maltrapilha. Bairros da miséria, já temo-los nós”, reconheceu
o articulista do Diário da Tarde.2
A região não havia ainda curado as feridas da Guer-
ra do Contestado (1912-1916) que, como mostra Paulo Pi-
nheiro Machado em capítulo deste livro, vitimou centenas de
1 Diário da Tarde, “A greve em Coritiba”. 20/07/1917, p. 1
2 Gastão Faria. “A greve terminou e os gêneros sobem assustadoramente de preço”.
Diário da Tarde, 26/07l/1917, p. 1.

230
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

homens e mulheres, em violenta luta pela terra. O que a elite


temia é que a fome colocasse em risco a propriedade: “Mes-
mo porque é sabido e as leis penais consagram, que diante
da suprema necessidade desaparece o direito da proprie-
dade”.3 Ecoava na imprensa local a leitura que se fazia sobre
o movimento revolucionário russo: o principal problema dos
levantes sociais era a fome.
Mas, para a imprensa, o povo trabalhador não se en-
contrava nas ruas fazendo arruaças, encontrava-se confe-
renciando com o presidente da República. Meetings, só para
vagabundos desordeiros.
E, por acaso, é o povo, são as classes produtoras que
estão promovendo meetings subversivos? Não! Essas
classes vão conferenciar com o presidente da Repú-
blica, vão expor soluções à crise; trocar ideias sobre o
modo de atender às necessidades da República, da
honra do país, sem sacrifício completo do povo, sem a
paralisação da sua vida comercial e industrial.4

Porém, grande parte dos trabalhadores não se en-


contrava no Palácio, conferenciando com o Presidente; re-
unia-se nas sociedades operárias. Octavio Prado, do grupo
libertário Terra Livre, e Adolpho Silveira, do Cultura Revolu-
cionária, desenvolviam conferências na sede da Sociedade
Protetora dos Operários. Octavio falava sobre “O anarquis-
mo, seu fim e sua razão de existir”; Adolpho sobre “Formas de
governo, liberdade e anarquia”.
O 1º de maio desse ano foi organizado nesses encon-
tros. Muitos operários reuniam-se na Praça Tiradentes para
ouvir os líderes anarquistas Octavio Prado, Bortolo Scarmag-
nan e Adolpho Silveira. Uma passeata foi organizada em di-
reção à Sociedade Protetora dos Boleeiros, onde se realizou
nova reunião e ficou decidida a criação da Federação Ope-
rária de Resistência.
Estourou a greve geral paulista. Milhares de trabalha-
dores tomaram as ruas de São Paulo. Lutavam por melhores
LUIZ CARLOS RIBEIRO

salários, pelas 8 horas, pelo direito de organização sindical e


greve, pelo combate à carestia. A multidão nas ruas levou
lideranças operárias e classes dominantes a perderem o con-
3 Idem.
4 Idem.

231
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

trole por vários momentos. As ruas de São Paulo tornaram-se


um verdadeiro campo de batalha.5
Quando a greve paulista estava praticamente en-
cerrada, em Curitiba, o jornal libertário Terra Livre distribuía
pelas ruas um panfleto convocatório:
Convidam-se a todos os operários para o grande comí-
cio que deve se realizar quarta-feira, 18 do corrente, às
7 horas da noite, na Praça Tiradentes, para ser manifes-
tada a nossa solidariedade aos valentes companheiros
de São Paulo que se batem corajosamente pelo direito
da classe. A Terra Livre.6

No comício da Tiradentes, os oradores manifestaram-


-se “mostrando as dificuldades por que tem passado a classe
operária com o aumento do preço dos gêneros alimentícios
e a permanência da baixa dos salários”.7 Mas a greve de
Curitiba não era apenas de solidariedade aos paulistas. Ape-
sar de repercutir demandas operárias de outras localidades,
uma pauta foi discutida e aprovada localmente.
Na Sociedade dos Boleeiros, foi decidida a decre-
tação da greve, bem como redigida uma nota à imprensa,
onde constavam os pontos reivindicados:
A greve deve ser declarada hoje.
1. Dirigem-se a todos os operários para evitar que
eles continuem a trabalhar.
2. Jornada de 8 horas
EXPERIÊNCIA OPERÁRIA EM CURITIBA: A GREVE GERAL DE 1917

3. A abolição completa de multas


4. Impedimento de crianças menores de 14 anos
no trabalho
5. Impedimento de moças menores de 21 anos
6. Os que ganharem por dia terão tabela de
5$000.
7. Os por hora a 800
8. Abolição dos trabalhos noturnos, excetuando-
-se os necessários, não trabalhando mais de 6
horas.
5 Boris Fausto. Trabalho Urbano e Conflito Social. Rio de Janeiro; São Paulo: DIFEL,
1977, p. 197.
6 Commercio do Paraná, 18/07/1917, p. 2
7 Gastão Faria. “A greve em Coritiba”. Diário da Tarde, 19/07/1917, p. 1.

232
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

9. O patrão não pode dispensar os empregados


sem prévio aviso de 18 dias, dando em cada
dia, 1 hora de folga para procurar trabalho.
10. A responsabilidade dos patrões nos acidentes.
11. A extinção de caixas beneficentes obrigatórias
como as do bonde e estrada de ferro.
12. A redução dos impostos para os carroceiros.
13. As 8 horas são compreendidas das 7 às 11 ten-
do duas horas de descanso e depois da 1 hora
às 5.
14. A redução do preço dos gêneros alimentícios.
15. Exigir a baixa imediata da farinha de trigo e
açúcar.
16. Diminuição dos preços de aluguel de casa.
17. Exigir do governo fiscalização dos gêneros ali-
mentícios.
18. Abolição dos trabalhos por peça.
19. Higiene nas fábricas.
20. Reintegração dos grevistas nos seus primitivos
lugares, uma vez cessada a greve, sob pena do
movimento paredista continuar.8
Visualiza-se nessa pauta a postura por uma gre-
ve geral. Ou seja, não eram reivindicações específicas de
uma categoria, mas de todos os trabalhadores. Reivindica-
ções que iam além dos problemas de carestia. Revela-se
uma consciência de que a organização dos trabalhadores
passava pela luta e conquista de direitos trabalhistas. De-
mandas que o discurso liberal de empresários e governo
negava-se a reconhecer formalmente. A informalidade das
relações ou negociações realizadas no interior dos estabe-
lecimentos, entre o patrão e os empregados, eram até en-
tão práticas recorrentes.
Logo pela manhã do dia 19 de julho, começaram os
LUIZ CARLOS RIBEIRO

piquetes. A partir da Praça Tiradentes, os paredistas foram


envolvendo vários trabalhadores que iniciavam suas jorna-
das. Os primeiros foram os condutores de bondes. A partir das
nove da manhã paralisou-se por completo o tráfego carril
8 Commércio do Paraná, 19/07/1917.

233
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

urbano. Este sistema só voltou a ser parcialmente reativado


pelo fim da tarde quando, garantidos por praças da polícia,
alguns carros voltaram a trafegar.
Dirigindo-se às oficinas da The South Brazilian Railway
Company, os grevistas passavam por oficinas e casas de co-
mércio, chamando os empregados aderir ao movimento.
Na central de bondes, encontraram uma força policial. Pelos
grevistas falou o operário Bortolo Scarmagnan, que solicitou a
adesão de seus colegas, no que foi atendido integralmente.
O grupo, que ia aumentando com a participação
de operários e populares, dirigiu-se às oficinas da Estrada
de Ferro, onde novamente se defrontaram com a polícia.
Uma comissão dirigiu-se aos operários, mas ali só uma parte
aderiu.
Percorreram diversos estabelecimentos fabris e co-
merciais, encontrando em todos eles uma força policial ar-
mada, mas não se verificando nenhum conflito. Na fábrica
da cervejaria Atlântica, depois de uma exposição feita por
uma comissão de operários, os trabalhadores aderiram, mas
declararam que o faziam por solidariedade, o que configu-
rou alto grau de politização.
No Engenho Jacaré, a adesão foi quase total. Na fá-
brica de pregos de Santiago, Colle & Cia, os operários não
aderiram, argumentando que a produção encontrava-se
paralisada já havia algum tempo por falta de matéria-prima.
Na fábrica de fósforos Hurllemann, os operários aderiram,
EXPERIÊNCIA OPERÁRIA EM CURITIBA: A GREVE GERAL DE 1917

com exceção das moças.


Pela hora do almoço, o grupo paredista dirigiu-se à
Usina de Eletricidade, onde encontraram novamente o Chefe
de Polícia. Designada uma comissão para falar com os ope-
rários, foram indicados Octavio Prado, Bortolo Scarmagnan e
mais dois outros. A massa, que se encontrava fora, pretendeu
forçar a passagem, tendo sido impedida pela força policial.
Como os empregados se encontravam fora, para almoço, os
ânimos se acalmaram. De volta ao centro da cidade, várias
obras de construção civil foram visitadas, recebendo novas
adesões de trabalhadores, que se incorporavam ao cortejo.
No cair da tarde, vários proprietários de fábricas e
oficinas solicitaram à polícia garantia a seus estabelecimen-
tos, como por exemplo a Hervateira Americana, de David
Carneiro, e a Indústrias Reunidas Matarazzo. Os serviços de
234
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

bonde e de transporte de carne só voltaram a funcionar com


escolta policial. Eram 18:00 horas, “começava a escurecer e
a cidade apresentava um fúnebre aspecto: sem luz, o co-
mércio todo fechado, a nossa urbs oferecia um espetáculo
inédito para a população curitibana”.9
A massa que vagueava pela cidade, flanando como
se não fosse dia de trabalho, conseguia agora, ao findar o
expediente, a adesão das moças da fábrica de fósforos “Mi-
mosa”. Tiros de exaltação ecoaram na cidade. “A massa,
tendo moças operárias à frente, a carregar bandeiras verme-
lhas, dirigia-se para a estação de bondes, com intuito ainda
não conhecido”.10
Na altura do viaduto da Rua João Negrão, empilhan-
do grossas toras de lenha nos trilhos e desengatando os car-
ros, pararam o comboio da linha Norte-Paraná. Os passagei-
ros foram obrigados a desembarcar e terminar o trecho a pé.
Na volta, em direção ao centro da cidade, a polícia
os esperava de tocaia, por detrás do Congresso Legislativo e
nos fundos da Estação South. Os primeiros tiros foram de fes-
tim, intimando-os a retrocederem. “Mas, os operários como
que levados por uma mesma misteriosa força, avançaram
ainda mais, respondendo com tiros de revólveres e pistolas
e golpes de cacetes e bengalas os tiros que a polícia dera
para fazê-los voltar.”11 Nova carga da polícia e a massa se
desfez. Alguns correram para a estação, outros socorreram-
-se em hotéis e pensões da vizinhança. Segundo relato da
imprensa, cerca de cem pessoas furaram o cerco policial e
dirigiram-se para o centro. Três soldados caíram feridos, acer-
tados por balas ou contundidos a pancadas. Do lado dos
operários, Miguel Cimbalista foi ferido à bala na perna. Mui-
tos, pelo atropelo, sofreram ferimentos leves.
Mas a cidade continuava às escuras. A Usina de
Eletricidade, guardada por mais de 30 soldados, foi invadi-
da por mais de mil paredistas, que obtiveram a adesão dos
empregados. Provocaram o desligamento da energia que só
pôde ser restabelecida quase duas horas depois, quando de
LUIZ CARLOS RIBEIRO

lá se retiraram. A força policial retomou a Usina e restaurou a


energia à cidade.
9 Commércio do Paraná, 20/07/1917.
10 Idem.
11 Idem.

235
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Passado o impacto que deixou todos atônitos, alguns


sem entender o que acontecia, começaram as reflexões. A
postura da grande imprensa foi do reconhecimento ao “di-
reito que assiste ao operariado de nossa terra” à repulsa aos
atos que denominou de violentos. A forma de enfrentar essa
contradição foi a de atribuir a violência a anarquistas e vân-
dalos. Os agitadores não eram os operários. Esses eram pa-
cíficos e ignorantes demais para entenderem os “meandros”
da subversão e da revolução. A questão da violência das
lutas operárias em Curitiba não era um problema local, pois
não tínhamos, aqui, propriamente operários:
não se pode dizer com verdade que o operário em
nossa terra é explorado pela burguesia, porque em
realidade nem temos puramente um operariado, su-
jeito a regulamentação severa, e nem temos grandes
fábricas, nem burgueses rotineiros e nem pseudo se-
nhores da gleba.12

Como o problema era o de um quisto que penetrara


no corpo sadio da sociedade curitibana, era preciso extirpá-
-lo, com violência se necessário.

AS EXPERIÊNCIAS DE MOBILIZAÇÃO E NEGOCIAÇÃO

Apesar das ameaças pela imprensa, as agitações


nas ruas continuavam. A posição ambígua da polícia não
satisfazia aos proprietários e tampouco aos trabalhadores. A
EXPERIÊNCIA OPERÁRIA EM CURITIBA: A GREVE GERAL DE 1917

pauta de suas reivindicações desde o princípio era clara. E


para ela queriam respostas. Foi deles, então, a inciativa para
tentar resolver o impasse. No 19 de julho, uma pequena multi-
dão acompanhou uma comissão de grevistas, composta por
Adolpho Silveira, Bortolo Scarmagman, Octávio Prado, entre
outros, no sentido de se entender com o Lindolpho Pessoa,
Chefe de Polícia. A comissão solicitou que Pessoa conferen-
ciasse com o Presidente do Estado a fim de que este tratasse
das exigências dos grevistas. Nesse ínterim, uma força de in-
fantaria militar retornava de sua ronda. Ao ver aquela massa
em frente à delegacia de polícia, o Tenente Sarmento, no
comando, compôs os soldados em linha de combate e man-
dou calar baioneta, dando cerrada carga contra o povo.

12 Diário da Tarde, 19/07/1917.

236
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

O Chefe de Polícia interveio a tempo de evitar o confronto.


Com um ambiente tenso, organizou-se um rápido comício,
onde falaram Lindolpho Pessoa e Bortolo Scarmagman.
Enquanto esse evento ocorria na Praça Carlos Go-
mes, uma turma de grevistas tentava tomar o Matadouro Pú-
blico, com o objetivo de cortar o fornecimento de carne ver-
de para a cidade. Novamente fez-se a intervenção policial.
A comissão que esteve com o Chefe de Polícia vi-
sitou também o Diário da Tarde. Segundo relato do jornal,
o líder operário Adolpho Silveira manifestou-se contrário “a
qualquer ato de violência dos operários, porquanto esperam
conseguir os interesses da classe dentro da ordem”.13 Temen-
do que qualquer desordem trouxesse o enfraquecimento da
greve, solicitaram a todos os operários que se mantivessem
em protesto pacífico, “para evitar o sacrifício de todos”.14
No dia 20, às 8:00 horas da noite, o Chefe de Polícia
reuniu-se na Associação Comercial com industriais e proprie-
tários de oficinas da Capital. A postura dos empresários foi
ambígua, pois ao mesmo tempo que negavam a existência
da greve, exigiam ação severa contra os agitadores. Era evi-
dente a intenção de tirar o movimento das ruas.
Mas, se a proposta do jornalista encontrava dificul-
dade de consenso na classe patronal, que evidente queria
uma solução mais radical, não era diferente a insatisfação
no meio operário. Nesse ínterim, enquanto a reunião acon-
tecia, houve tentativas de dinamitar a sede da Associação
Comercial, além de outros atos com o objetivo de não per-
mitir que o comércio funcionasse. No sentido de manter a
ordem a qualquer custo, a polícia divulgou nota informando
que reprimiria os movimentos nas ruas.
A liderança operária, ao tomar conhecimento da
posição policial, solicitou autorização para realizar uma as-
sembleia com objetivos de se posicionarem. Autorizada a re-
união pela polícia, a comissão fez circular o seguinte aviso:
a comissão à qual foi confiada a solução da greve,
pede aos seus companheiros não se aglomerarem,
LUIZ CARLOS RIBEIRO

a fim de evitar mortes e massacres, de parte a parte.


Entretanto às 14:00 horas, na Sociedade dos Boleeiros,
haverá uma grande reunião para serem discutidos

13 Idem.
14 Idem.

237
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

pontos de capital importância. Mantenha-se a greve


calma, se é que de calma depende a vitória.15

Na hora marcada, era grande o número de operá-


rios que se encontravam na sede da Protetora dos Boleeiros.
Presente à reunião Lindolpho Pessoa, abriu a sessão Octávio
Prado, justificando a nota da comissão operária, que convo-
cara aquela reunião. Argumentou o líder operário que não foi
por receio que se afixou a nota pedindo calma, mas apenas
“uma atenção dos operários para com o apelo feito pelo Dr.
Chefe de Polícia”.16 Afirmou também que a trégua proposta
poderia não ter muita duração, caso as exigências dos grevis-
tas não fossem aceitas.
Falando em nome da comissão de greve, Napoleão
Lopes solicitou ao Chefe de Polícia a retirada da força policial
das ruas, “comprometendo-se o operariado, sob palavra de
honra, de não perturbar, de modo algum, a ordem pública”.17
Adolpho Silveira reivindicou também, a soltura dos operários
presos durante a greve.
Após a retirada de Lindolpho, a reunião prosseguiu
com a aprovação da seguinte nota:
1º – Manutenção firme e decidida da presente greve,
conhecida a verdade de que os operários atualmente
em greve, explorados no seu trabalho, como têm sido,
não fazem mais que cumprir um dever para com a sor-
te da sua condição de escravos do capitalismo e por
isso devem ser dignos do seu gesto, mantendo-se firmes
EXPERIÊNCIA OPERÁRIA EM CURITIBA: A GREVE GERAL DE 1917

e inabaláveis até a conquista do que exigem.


2º – A máxima calma no seu modo de conduzir-se, disso
depende a imediata providência por parte do Gover-
no, que assim prometeu à comissão.
3º – A fundação, incontinente, da Federação Operária
de Resistência, composta de todos os sindicatos de clas-
ses, para salvaguardar os interesses das classes operárias
e afirmar a força da união para sempre que se tornar
necessária, como em ocasião semelhante a presente.
4º – Pedir a liberdade para os operários presos em con-
sequência da greve.
5º – Nomear uma comissão para tratar dos assuntos re-
lativos a greve.18
15 Idem, p. 6
16 Diário da Tarde, 21/07/1917.
17 Idem.
18 Commércio do Paraná, 24/07/1917.

238
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Esta comissão ficou composta dos seguintes operá-


rios: Octávio Prado, Adolpho Silveira, Lino Motta, Caetano
Grassi, Manoel de Oliveira e Sá, Bortolo Scarmagman, Amaro
Sant’Anna e Thomaz Camilli. Em detrimento à proposta con-
ciliadora de Napoleão Lopes, as decisões tomadas eviden-
ciam a vitória anarquista pela radicalidade das ruas.
No mesmo dia, logo depois de encerrada a reunião
operária, foram soltos os 12 padeiros presos pela prática
de piquete, e também alguns carroceiros presos porque se
achavam “promovendo desordem”.
Outra tentativa de acabar com a greve, apontando
para que a mesma saísse das ruas e que as reivindicações
operárias fossem encaminhadas individualmente por cada
categoria, foi apresentada pelas lojas maçônicas “Unione e
Fratelanza”, “Fraternidade Paranaense” e “Cardoso Júnior”.
As lideranças operárias afirmaram que estavam constituindo
os sindicatos das classes para, dessa forma, levarem as suas
reivindicações à classe patronal. Era noite de sábado.

RECRUDESCE O CONFRONTO E A REPRESSÃO

Ao cair da tarde de domingo, tudo parecia estar vol-


tando ao normal na cidade. Os bondes circulavam e o cine-
ma funcionava normalmente. De súbito, entretanto, recome-
çou o corre-corre pelas ruas da cidade. Do interior do Estado
vinham notícias de que quase todo o sistema de transporte
ferroviário encontrava-se paralisado pela greve que havia
atingido também os trabalhadores daquele setor.
Na Capital, verificou-se um rápido enfrentamento en-
tre a polícia e um grupo de grevistas que tentavam um pique-
te impedindo a saída do trem para o litoral. No alto Bigorrilho,
vários postes telefônicos foram derrubados. Outro grupo arran-
cou a ponte sobre o rio Barigui e sobre o rio Belém, cortando
desse modo a ligação com o Matadouro. Uma tentativa de se
arrancar os trilhos da via férrea foi frustrada por ação policial.
Uma bomba foi arremessada contra um bonde elétrico que
LUIZ CARLOS RIBEIRO

transitava com passageiros. Foi preso um popular que condu-


zia uma bomba de dinamite, ainda intacta. Padeiros, verdu-
reiros, leiteiros e demais negociantes de gêneros, que vinham
das colônias, foram bloqueados pelos grevistas, impedindo o
abastecimento da cidade. O aqueduto do Cajurú foi danifi-
239
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

cado, privando a cidade de água potável. Parecia não haver


mais condições para uma trégua:
O Chefe de Polícia do Estado, previne à população or-
deira de Curitiba, que tendo de acordo com os princípios
democráticos e as boas normas de moderação, esgota-
do os meios brandos para manter a ordem, vai empregar
a força e os meios que julgar mais convenientes. Avisa,
por isso, ao público e especialmente às famílias, que se
abstenham de transitar pelas ruas da Cidade.19

A partir de então a polícia passou a agir de forma se-


letiva: não era mais contra a massa que incidia a repressão,
mas contra as lideranças, que eram presas e desapareciam
do cenário. Durante a noite, foram efetuadas inúmeras pri-
sões. As cadeias ficaram cheias de grevistas, sendo necessário
enviar parte deles para as prisões da força militar do Estado.
As lideranças foram as primeiras a serem detidas. Amaro Santa
Rita, um dos líderes presos, mereceu uma nota de destaque
na Imprensa:
Amaro Santa Rita, ex-empregado da Estrada de Ferro,
há muito que anda desocupado, isto é, “trabalhando
no desvio”. Estourando o movimento grevista, Amaro jul-
gou ser-lhe conveniente tomar parte ativa entre o ope-
rariado e nesse propósito aliou-se aos cabecilhas, com
os quais andou explorando os verdadeiros homens pre-
judicados no trabalho.20
EXPERIÊNCIA OPERÁRIA EM CURITIBA: A GREVE GERAL DE 1917

Amaro, portanto, não era visto como um “prejudica-


do” social, mas como um contumaz desocupado. Outros líde-
res foram presos e deportados não se sabe exatamente para
onde. Nomes como Octávio Prado, Caetano Grassi e Bortolo
Scarmagman desapareceram do cenário curitibano, como
noticiou um jornal operário.
Aí é que está o mistério, sendo que nesta questão a polícia
se comportou odiosamente, negando à Justiça a prisão
das vítimas de sua prepotência e, para coroar essa burla
mandando-os daqui para fora a fim de que os três cida-
dãos não fossem favorecidos por algum habeas corpus.21
19 PARANÁ. Relatório apresentado dr. Eneas Marques dos Santos, Secretário do Interior,
Justiça e Instrucção Publica, pelo Dr. Lindolpho Pessoa da Cruz Marques, Chefe de Polí-
cia do Estado. Coritiba, PR: Typographia da Penitenciaria do Estado, 1917.
20 Commércio do Paraná, 25/07/1917.
21 O Rebate, 18/08/1917.

240
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Com aumento da repressão policial e as principais


lideranças presas e/ou deportadas, chegava ao fim a greve
curitibana de 1917. Não há notícias de que tenha ocorrido
alguma negociação imediata em relação à pauta da greve.

UM BALANÇO DA EXPERIÊNCIA OPERÁRIA EM CURITIBA

A greve geral de 1917, em Curitiba, revelou a existên-


cia de um sistema de controle e pressão direta que os em-
presários exerciam sobre os seus empregados. Um modelo
paternalista característico do regime liberal. Um regime que
o formato de greve geral colocou em xeque. A radicalidade
das ruas e o caráter coletivo do movimento enfraqueceram
a prática patronal do controle direto. Diante da força do le-
vante, os proprietários oscilavam entre reclamar a ação efi-
caz do chefe da polícia – o principal negociador na maior
parte do tempo – e a proposição para que os trabalhadores
desfizessem o caráter de movimento coletivo e se apresen-
tassem disciplinados em sindicatos individualizados.
Apesar dessa posição não ser compartilhada pela
liderança anarquista, ela estava presente em parte do co-
mando grevista. Como a radicalidade do movimento fora
basicamente conduzida pela liderança anarquista, com a
eliminação desta o comando passou para mãos menos ra-
dicais e mais negociadoras, contando inclusive com o apoio
patronal e o de autoridades políticas.
Para o jornal operário O Rebate, lançando após a
greve de julho, “o insucesso da última greve” deveu-se à “fal-
ta de organização”. Analisando a repressão policial ao movi-
mento, admitia a perda de controle:
Justos, que somos, admitimos que realmente houvesse
desorientação no movimento, cujos chefes, sem o ne-
cessário domínio sobre cerca de 4.000 homens em gre-
ve, não pode impedir que um ou outro se entregasse a
excessos lamentáveis...22
LUIZ CARLOS RIBEIRO

Os “excessos” que extrapolavam ao “domínio” dos


“chefes”, foram de tal modo lamentados que se justificou a
repressão coordenada pelo Chefe de Polícia, “um moço de
22 Idem.

241
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

alta cultura e nobres sentimentos.”23 Os “vândalos e desordei-


ros”, porque fora do controle da organização e dos chefes,
deveriam ser presos. O que não se aceitava era a repressão
indiscriminada.
Ora, se os vândalos e desordeiros existiam entre os
grevistas, a polícia poderia tê-los prendido, de forma
a fazer a repressão contra os infratores e não mandan-
do para a rua um bando de soldados para atropelar
o povo, gente inerme e que desprevenida, transitava
nas ruas do centro. Entretanto, por ironia da sorte pou-
cos, muitos poucos foram os grevistas atingidos pela
brutalidade policial, recaindo esta sobre pobres senho-
ras e homens que nada tinham com o movimento e
até sobre cidadãos de destaque no governismo. (...)
Esse crime os jornais da terra tentaram ocultar...24

A crise do liberalismo, do qual a primeira guerra é a


face mais visível, e o crescimento da orientação marxista-le-
ninista no meio sindical, a partir de revolução de 1917, re-
configuraram as lutas sociais nas sociedades capitalistas. Por
conta da crise econômica e das lutas sociais, cresceu nessas
sociedades o reconhecimento aos direitos trabalhistas, em
especial o regime das oito horas e a legalização dos sindica-
tos. A pauta social do capitalismo, pós-primeira guerra, dei-
xou de ser a da livre concorrência entre capital e trabalho e
passou a se constituir de mecanismos de proteção aos traba-
lhadores. A questão trabalhista tornou-se mais uma questão
EXPERIÊNCIA OPERÁRIA EM CURITIBA: A GREVE GERAL DE 1917

social e menos uma “questão de polícia”.


O discurso do jornal operário O Rebate, de 1917, é
claramente de condenação às estratégias radicais anarquis-
tas. Anarquismo é sinônimo de “falta de organização”, de
“vândalos e desordeiros”, de “desorientação no movimen-
to”. As palavras de ordem, a partir de então, iriam se referir à
organização e à disciplina sindical.

23 Idem.
24 Idem.

242
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

MILITÂNCIA OPERÁRIA NO PARANÁ


DAS DÉCADAS DE 1930 E 1940
Claudia Monteiro

Os trabalhadores do setor de transporte, ferroviários e


portuários, foram protagonistas do movimento operário para-
naense pelo menos desde os fins do século XIX até a primeira
metade do século XX. Estas duas categorias são fundamen-
tais para entendermos também a importância da militância
político-partidária entre os trabalhadores, pois foi no meio em
que viviam ferroviários e portuários onde houve maior efer-
vescência política de esquerda no Paraná. Foi nesse ambien-
te que o Partido Comunista do Brasil (como era denominado
na década de 1940 o PCB), principal núcleo aglutinador das
esquerdas na época, teve significativo número de adeptos e
exerceu maior influência.
Desde os primeiros anos após a Proclamação da
República, ferroviários e portuários já se destacavam como
categorias combatentes. A primeira greve de que se tem no-
tícia no Paraná, segundo levantamento realizado por Alci-
na de Lara Cardoso e Silvia Pereira do Araújo, foi deflagrada
em 1892, pelos ferroviários de Paranaguá, por aumento de
salários.1 Ao longo de todo o período pesquisado por estas
historiadoras, destaca-se a importância das greves protago-
CLAUDIA MONTEIRO

nizadas pelos ferroviários e portuários, em Curitiba e no Litoral.


A importância dessas duas categorias naquela épo-
ca era devida à expressiva quantidade numérica de traba-
1 Alcina de Lara Araújo; Silvia Pereira Cardoso. 1º de maio: cem anos de solidariedade e
luta (1886-1986). Curitiba: Beija Flor, 1986. p. 30-43.

243
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

lhadores necessários para as atividades, tanto na ferrovia


quanto no porto, pois a mecanização ainda era muito inci-
piente. A centralidade do setor de transporte para a eco-
nomia paranaense, principalmente por sua ênfase no setor
agrário exportador, também ajuda a entender a importân-
cia desses trabalhadores, a grande capacidade de pressão
e de negociação e o sucesso de sua organização.
Este cenário se altera drasticamente depois dos pro-
cessos de reestruturação, privatização e mecanização ocor-
ridas de forma gradual na rede ferroviária e no porto a partir
da década de 1950. Essas mudanças impõem a redução do
número de trabalhadores e a progressiva decadência da in-
fluência dos ferroviários e portuários no movimento operário
paranaense, da segunda metade do século XX em diante.
Neste capítulo nos concentraremos na conjuntura da
década de 1930 e 1940, quando os ferroviários e portuários
ainda eram hegemônicos no movimento operário paranaen-
se, sendo bastante evidente a politização e militância entre
esses trabalhadores.

FERROVIÁRIOS EM AÇÃO: MILITÂNCIA E REPRESSÃO

As intensas transformações ocorridas na conjuntura


nacional e internacional na década de 1930, com os desdo-
bramentos da crise de 1929 e a subida ao poder de Getúlio
MILITÂNCIA OPERÁRIA NO PARANÁ DAS DÉCADAS DE 1930 E 1940

Vargas, acarretaram a radicalização e polarização política


entre direita integralista e esquerda comunista, bem como
o crescimento das mobilizações em apoio ou resistência aos
fascismos em ascensão na época. Para os trabalhadores fer-
roviários, uma das primeiras consequências da tomada do
poder por Getúlio Vargas, em 1930, foi a encampação e es-
tatização das ferrovias paranaenses e catarinenses que pas-
saram a ser designadas como Rede de Viação Paraná-Santa
Catarina (RVPSC). Tal fato acarretou mudanças também no
mundo do trabalho, com alterações na estrutura administrati-
va, interferência na incipiente estrutura sindical e implantação
de projetos de educação, controle e disciplina na ferrovia.
Além disso, o Paraná também foi palco da intensifi-
cação dos embates políticos da época, com o crescimen-
to tanto dos movimentos da direita integralista, quanto da
esquerda comunista. Uma ampla frente de esquerda criou
244
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

a Aliança Nacional Libertadora (ANL), que tinha entre suas


pautas a posição contra a guerra e os regimes nazifascistas.
A ANL no Paraná conseguiu eleger um deputado federal em
1935, o médico e professor universitário da Faculdade de Me-
dicina, Octávio da Silveira. Logo depois, em março de 1936,
esse deputado seria cassado e preso, acusado de ser um
dos principais articuladores do movimento comunista ocor-
rido em novembro de 1935, apenas por ter se manifestado
publicamente em favor das atividades da ANL e contra as
arbitrariedades promovidas pelo governo Vargas.2
A efervescência política do começo da década de
1930 também se evidencia no mundo do trabalho, com o
crescimento da politização dos trabalhadores. No Paraná o
auge deste processo foi a grande greve ocorrida em outubro
de 1934, protagonizada pelos ferroviários, conhecida como
a “greve dos 7.000”, que unificou as lutas dos trabalhadores
paranaense e catarinenses da RVPSC. A pauta da greve in-
cluía aumento de salários e o cumprimento de uma portaria
expedida pelo governo federal, em 1926, que classificava
os serviços e os cargos desempenhados pelos empregados
da ferrovia.3 Naquela ocasião, mais de 7.000 trabalhadores
interromperam suas atividades, realizando uma das maiores
greves ocorridas no Paraná, sobre a qual foi inclusive escrito
um livro em memória daquele evento.4
A análise da greve de 1934 evidencia alguns elemen-
tos sobre a militância no mundo do trabalho e também sobre
a maneira como a polícia e as classes dominantes agiram
no sentido de contê-la. Por um lado, as lideranças que se
destacaram naquela greve – a maior parte delas figuraria
posteriormente como militantes do PCB – mostram a influên-
cia da atuação política de esquerda entre os trabalhadores.
Por outro, os desdobramentos e as punições que se seguiram
ao final da greve demonstravam o quanto a luta por direitos
não era reconhecida como um aspecto da vida política pa-
ranaense. Muitos ferroviários foram demitidos e outros tantos
foram presos. Enquadrados na Lei de Segurança Nacional
CLAUDIA MONTEIRO

2 Cezar Augusto Carneiro Benevides. Terra sem passado: um estudo do Paraná contem-
porâneo. Tese (Doutorado em História), USP, 1991, p.166-174.
3 Claudia Monteiro. Ferroviários em greve: Relações de dominação e resistência na
RVPSC. Revista de História Regional, v. 12, n. 1, p. 9-24, 2007.
4 Altino Borba. 7.000 ferroviários em greve. Curitiba: Gráfica Paranaense, 1941.

245
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

de 1935 e condenados por envolvimento com o comunismo


na onda de repressão que se seguiu à tentativa frustrada de
tomada do poder dos comunistas de 1935, aqueles ferroviá-
rios eram julgados por fatos alheios à sua ação. Ou seja, as
questões oriundas do mundo do trabalho eram observadas
pela polícia e pelas autoridades como meros pretextos para
a agitação. Mais uma vez, como tem sido comum em toda
a história nacional, os trabalhadores eram vistos como “caso
de polícia”.
Mesmo durante os anos de maior repressão do Esta-
do Novo, houve corajosas mobilizações dos trabalhadores
ferroviários no Paraná, como as greves brancas. Estas não
eram grandes, não juntavam toda a categoria, pois isso era
impossível naquele momento. Eram, ao contrário, paralisa-
ções espontâneas nos local de trabalho, como a que ocor-
reu no dia 06 de agosto de 1943, em Curitiba: “os funcioná-
rios da Rede Viação Paraná Santa Catarina se conservaram
inativos, desde as 7h., nos seus postos de serviço, em protesto
pacífico motivado por um pretendido aumento de salário”.5
Como fim do Estado Novo, a abertura política e a le-
galização dos partidos políticos em 1945 ocorreu uma rápida
reorganização dos trabalhadores, com grande quantidade
deles se filiando ao Partido Comunista do Brasil. Comitês do
Partido Comunista foram fundados nos locais de trabalho,
MILITÂNCIA OPERÁRIA NO PARANÁ DAS DÉCADAS DE 1930 E 1940

nos diversos ambientes da ferrovia, no interior do Estado e


principalmente em Curitiba. Isto é indício de que as experiên-
cias das lutas anteriores já haviam lançado raízes, apesar dos
longos anos de ditadura do Estado Novo.

MILITÂNCIA E ELEIÇÕES

Também os portuários foram trabalhadores bastan-


te ativos e organizados ao longo dos anos de 1930 e 1940.
A importância da politização dos portuários na cidade de
Paranaguá pode ser verificada nos dados eleitorais, de 1945
e 1947, que mostram expressiva votação nos candidatos ad-
vindos do Sindicato dos Portuários, como os estivadores José
Bezerra de Vasconcelos e Manoel Leandro da Costa Júnior,
filiados ao Partido Comunista do Brasil.
5 Gustavo Silveira Siqueira. Experiências de greve no Estado Novo. Revista Direito e
Praxis, v. 06, n. 11, 2015, p.233; 226-253.

246
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Esses candidatos operários introduziam uma novida-


de na esfera pública: por meio de jornais, comícios, cam-
panhas eleitorais e diversos eventos, um partido apresenta-
va propostas e um programa de esquerda; seus membros e
candidatos buscavam agir e falar de acordo com as dire-
trizes partidárias, o que não acontecia com a maioria dos
demais partidos políticos da época. Representavam uma
mudança porque falavam para um público desacostumado
a ver candidatos advindos das camadas populares defen-
dendo propostas de esquerda. É preciso destacar também
que, considerando-se a curta trajetória de existência legal
do PCB, (legalizado em novembro de 1945 e cassado logo
depois em maio de 1947) a quantidade de votos conquis-
tados pelos candidatos comunistas em Paranaguá aponta
para uma considerável aceitação por parte dos eleitores.
Na documentação da Delegacia de Ordem Política
e Social do Paraná, a DOPS, que desde o seu surgimento e
durante todo o período de sua existência estabeleceu um
olhar vigilante sobre as movimentações dos trabalhadores
paranaenses, há um vasto material acerca da atuação dos
estivadores de Paranaguá. Em um prontuário com fichas dos
sócios contribuintes da célula dos estivadores do porto en-
tre 1945 e 1947, havia um total de 117 estivadores filiados ao
PCB,6 que contribuíam mensalmente para o partido. Entre
eles, figurava José Bezerra de Vasconcelos, líder importan-
te dos estivadores e dos comunistas de Paranaguá que, nas
eleições de dezembro de 1945, como mencionamos, foi can-
didato ao cargo de deputado federal.
Uma breve “biografia” de José Bezerra, escrita com
o objetivo de apresentar a trajetória de militância do can-
didato no material de propaganda da campanha eleitoral,
caracterizava-o como um “[…] velho lutador sindical e líder
entre os estivadores, antigo militante do Partido [Comunista],
onde ingressou no ano de 1932, na única célula que se estru-
turara em Paranaguá”. Esta célula do PCB permaneceu em
funcionamento até o movimento de 1935 e tinha o objetivo
CLAUDIA MONTEIRO

de manter ligações entre as diversas partes do país e do es-


trangeiro, por meio dos navios que ancoravam no porto. Ou
6 “Fichas dos sócios contribuintes da célula dos estivadores do PCB em Paranaguá”.
Arquivo Público do Paraná, Fundo DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), pasta
temática “Célula do PCB com fichas dos sócios contribuintes”, n. 180 b, cx. 21.

247
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

seja, tal como foi observado entre os ferroviários, também en-


tre os portuários houve grande mobilização política, pelo me-
nos até 1935, quando começou a onda de repressão política
que culminaria com a implantação do Estado Novo.
Segundo a propaganda eleitoral do estivador José
Bezerra, sua atuação “[…] se fez notabilizar durante os anos
de vida ilegal do Partido. Preso em 1935, respondeu a inquéri-
to junto com outros membros e simpatizantes, tendo sido ab-
solvido pelo Tribunal de Segurança Nacional”.7 No momento
em que se candidatava, em 1945, era também presidente
do Sindicato dos Estivadores, além de Secretário Sindical do
Comitê Municipal do PCB em Paranaguá, em sua nova fase
de vida legal.
José Bezerra de Vasconcelos recebeu naquelas elei-
ções 443 votos.8 Representando 10,3% do total de votos apu-
rados em Paranaguá, esse número pode parecer inexpressi-
vo do ponto de vista eleitoral, sendo, entretanto, significativo
se levarmos em conta a falta de recursos financeiros do Parti-
do Comunista e a modesta campanha eleitoral.
A possibilidade de atuação do PCB na legalidade
abriu espaço para que os militantes participassem da disputa
eleitoral. A propaganda de campanha mostrava que o can-
didato do partido em Paranaguá, José Bezerra de Vascon-
celos, já havia conquistado seu lugar público como militante
operário no porto muito antes disso, através de uma trajetória
MILITÂNCIA OPERÁRIA NO PARANÁ DAS DÉCADAS DE 1930 E 1940

política de lutas antigas que remetia ao começo da década


de 1930, atravessando dez longos anos de clandestinidade e
repressão entre 1935 e 1945. O elevado número de eleitores
e filiados ao Partido Comunista entre os trabalhadores da es-
tiva de Paranaguá que, além disso, também estavam orga-
nizados no sindicato liderado por um membro do PCB, revela
a importância da militância política entre os trabalhadores,
evidenciando a participação dos militantes comunistas na
organização do movimento operário paranaense e para-
nanguara, desde pelo menos o início da década de 1930.9
7 “Biografias dos Candidatos a deputados federais – carta datilografada”. Arquivo Público
do Paraná, Fundo DOPS, pasta temática “Comitê Comunista do PCB de Paranaguá”, n.
274b, cx. 030, p. 185-187.
8 “Mapas estatísticos das eleições realizadas em 02 de dezembro de 1945”. Arquivo Públi-
co do Paraná, Fundo 039, TRE – PR (Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Paraná),
cx. 393.
9 Sobre a militância comunista no Paraná no período da legalidade do PCB ver: Claudia

248
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Na eleição seguinte, de 1947, outro estivador de Pa-


ranaguá, Manoel Leandro da Costa Júnior, também can-
didato do PCB, conquistou 775 votos, quase sendo eleito
deputado estadual. A quantidade expressiva de votos em
candidatos do Partido Comunista em Paranaguá não foi um
fato isolado, demonstrando fidelidade partidária e uma cla-
reza da consciência do eleitorado, que deliberadamente es-
colheu candidatos operários em dois pleitos seguidos.
Também os ferroviários foram candidatos a cargos
no legislativo federal. Entre eles, Claudemiro Batista, que era
maquinista da ferrovia, morava em Curitiba e, em um docu-
mento (datado de 1940) foi descrito como membro ativo do
PCB, que “não havia abafado” quando foi preso em 1935,
isto é, “abafar” era uma gíria da época que significava que
apesar de toda a dificuldade e sofrimento advindo da prisão,
mesmo assim não havia desistido da militância. Na época,
tinha “[…] cerca de 30 anos, [era] branco, não grande figu-
ra, cabelos pretos penteados com separação do lado, usa-
va bigode, vestindo geralmente escuro, tipo empregado do
comércio médio”.10 Segundo a autoridade que o descreveu
no documento, não convinha procurá-lo de dia e nem em
presença da mulher, pois esta possivelmente não esperava
ver o marido novamente envolvido com o comunismo. No
entanto, apesar da resistência da esposa, Claudemiro conti-
nuou um militante dedicado.
Na propaganda para a campanha eleitoral de 1945,
ele era apresentado como um líder ferroviário que havia in-
gressado no PCB em novembro de 1932, sendo, por isso “[…]
um dos mais antigos militantes das gloriosas fileiras” do partido,
“[…] onde sempre demonstrou firmeza, resolução e atitudes
proletárias”. Figurando entre as “atitudes proletárias”, estava
a participação na greve dos ferroviários em 1934 e também
no movimento da Aliança Nacional Libertadora, quando de-
senvolveu intensa atividade, “[…] granjeando cada vez mais
prestígio no meio ferroviário onde se impôs como um dirigen-
CLAUDIA MONTEIRO

te capacitado e fiel intérprete das justas reivindicações de


Monteiro. Política entre razão e sentimentos: a militância dos comunistas no Paraná
(1945-1947). Tese (Doutorado em História), UFPR, 2013.
10 Arquivo Público do Paraná, Fundo DOPS, pasta individual de “Claudemiro Batista”, n.
756, top. 315, p. 6.

249
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

sua classe e do proletariado”.11 Tal como o estivador parnan-


guara, José Bezerra, Claudemiro também havia passado por
várias detenções e prisões. Entre novembro de 1935 e julho
de 1937, estivera detido na Penitenciária do Ahú em Curitiba,
na Casa de Detenção no Rio de Janeiro e no presídio de Ilha
Grande. Nas eleições de dezembro, Claudemiro obteve 344
votos, quantidade inexpressiva, considerando-se o porcen-
tual populacional de Curitiba.12
É interessante notar o fato de que os dois candida-
tos do PCB, o ferroviário curitibano Claudemiro e o estivador
parnanguara José Bezerra, faziam parte de uma geração
de trabalhadores que militavam no meio operário já há al-
gum tempo, evidenciando um ambiente de ativos debates,
conscientização e luta por direitos entre os trabalhadores
desde começo da década de 1930. Ambos haviam pas-
sado por uma trajetória parecida, que incluía a militância
no mundo do trabalho, a adesão à Aliança Nacional Liber-
tadora, as prisões e a “volta por cima”, possibilitada pela
anistia e a abertura política em 1945. As perseguições e as
prisões posteriores a 1935 são mencionadas e celebradas
como uma espécie de martírio, sinal da firmeza do caráter,
da honestidade e da sinceridade desses antigos defensores
das causas proletárias que, apesar de todas as dificulda-
des, não haviam desistido dos seus ideais. A referência ao
passado vivido pelos dois exercia um importante papel na
MILITÂNCIA OPERÁRIA NO PARANÁ DAS DÉCADAS DE 1930 E 1940

campanha eleitoral, revelando o gosto pelas lembranças,


pelas comemorações e pela busca de um passado mítico
e heroico.
Os dados analisados acima, acerca da documenta-
ção relativa aos mapas eleitorais e à campanha e propagan-
da político-partidária nos revelam um universo de militância e
de debates políticos pouco considerado se observarmos da-
dos mais contínuos sobre as eleições. De fato, em sua gran-
de parte, os dados eleitorais dos pleitos ocorridos no Paraná
confirmam um conservadorismo por parte do eleitorado que
preferia votar nas elites econômicas, as mesmas família cujos
11 “Biografias dos Candidatos à deputados federais – carta datilografada”. Arquivo Público
do Paraná, Fundo DOPS, pasta temática “Comitê Comunista do PCB de Paranaguá”, n.
274b, cx. 030, p. 185-187.
12 “Mapas estatísticos das eleições realizadas em 2 de dezembro de 1945”, cx. 393. Arqui-
vo Público do Paraná, Fundo 039, TRE – PR (Tribunal Regional Eleitoral do Estado do
Paraná).

250
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

sobrenomes têm dominado o cenário político paranaense


por décadas.
No entanto, se analisarmos os detalhes da documen-
tação podemos observar fissuras neste comportamento elei-
toral, tais como as expressivas votações dos candidatos ope-
rários de Paranaguá, o que indica que, por maior que tenha
sido o consenso, havia no passado vozes dissonantes com
projetos diferentes e outros horizontes de expectativas.
Apesar da brevidade do intervalo de tempo em que
os comunistas puderam atuar legalmente, eles foram respon-
sáveis por inserir uma série de novidades no cenário político
paranaense de meados da década de 1940. Eram candida-
tos provenientes das camadas populares, eram trabalhado-
res, como o estivador José Bezerra e o ferroviário Claudemiro,
não tinham o refinamento letrado que até aquele momento
era exigido pelas elites que sempre haviam monopolizado o
espaço das campanhas eleitorais. Também os membros do
PCB, através da dedicação intensa ao trabalho político rea-
lizado entre moradores dos bairros, trabalhadores urbanos e
rurais, apresentavam a estes a possibilidade de participarem
da vida política, reclamando os seus direitos, ampliando a
noção de esfera pública.

TRABALHADORES INTEGRADOS EM REDES SINDICAIS

Além da atuação nos locais de trabalho e em par-


tidos políticos, os trabalhadores paranaenses procuraram
atuar de maneira integrada por meio da fundação de uma
intersindical, a União dos Trabalhadores do Paraná, criada a
partir do II Congresso Sindical dos Trabalhadores do Paraná,
que foi realizado nos dias 28 e 29 de julho de 1946, em Curiti-
ba, na qual estiveram presentes diversas entidades represen-
tativas dos trabalhadores da capital, do litoral e do interior
do estado.
É impressionante a variedade de entidades, sindica-
tos e associações participantes desse congresso sindical, que
CLAUDIA MONTEIRO

resultou na criação da União Sindical dos Trabalhadores do


Estado do Paraná:
De Sertanópolis a União Camponesa do Distrito de Ja-
guapitã;

251
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

De Londrina o Sindicato dos Trabalhadores em Estabe-


lecimentos Bancários; o Sindicato dos Trabalhadores
em Construção Civil do Norte do Paraná; o Sindicato
dos Trabalhadores em Madeira do Norte do Paraná;
a União dos Lavradores do Patrimônio de Marrecas; a
Liga Camponesa do Córrego do Mitaim e a Comissão
dos Comerciários;
De Monte Alegre a Associação Profissional dos Traba-
lhadores da Indústria do Papel e Papelão;
De Antonina o Sindicato dos Trabalhadores em Moi-
nhos de Trigo, Milho e Mandioca e o Sindicato dos Tra-
balhadores no Comércio Armazenador;
De Paranaguá o Sindicato dos Trabalhadores do Co-
mércio Armazenador; a Associação Profissional dos
Trabalhadores da Indústria em Construção Civil; a As-
sociação dos Conferentes em Cargas e Descargas; o
Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Panifica-
ção e o Sindicato dos Estivadores;
De Irati o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da
Extração de Madeira;
De Ponta Grossa a Comissão Sindical dos Operários em
Bebidas;
De Curitiba a Associação Profissional dos Oficiais Mar-
ceneiros; a Associação dos Trabalhadores da Indústria
do Fósforo; a Associação Profissional dos Ferroviários
da RVPSC; a Associação Profissional dos Barbeiros, Ca-
MILITÂNCIA OPERÁRIA NO PARANÁ DAS DÉCADAS DE 1930 E 1940

beleireiros e Manicures; a Comissão dos Trabalhadores


em Construção Civil; a Comissão Jornalística do Estado
do Paraná; o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria
Gráfica; o Sindicato dos Trabalhadores em Carris Ur-
banos; o Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do
Paraná; o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do
Mate; o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de
Panificação; o Sindicato dos Trabalhadores na Indús-
tria de Cervejas e Bebidas; o Sindicato dos Trabalha-
dores na Indústria dos Artefatos de Couro e o Sindicato
dos Bancários.13

O II Congresso dos Trabalhadores do Paraná propu-


nha a defesa da unidade sindical como o princípio básico do
movimento operário, contrapondo-se às leis regulamentado-
ras da organização e da estrutura sindical, que cassavam
13 Resoluções do II Congresso Sindical dos Trabalhadores do Paraná. Arquivo Público do
Paraná, Fundo DOPS, pasta temática “União dos Trabalhadores de empresas de carris
urbanos de Curitiba”, n.1952, cx. 226.

252
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

completamente a autonomia e a liberdade dos sindicatos


e dificultava, pelas diversas exigências burocráticas, a orga-
nização dos trabalhadores, separando-os em grupos estan-
ques de caráter corporativista e beneficente. Neste sentido,
as propostas do congresso condenavam a pluralidade sindi-
cal (lei instaurada no governo provisório de José Linhares que
assumiu a presidência da república em 1945, após a depo-
sição de Getúlio Vargas), bem como toda tentativa de divi-
sionismo, considerada traição aos interesses reais da classe
trabalhadora.
Sobre a organização sindical, o congresso defendia
que os sindicatos se estruturassem com base na indústria e
não por empresa, exceto em pequenas cidades sem setores
industriais consolidados e em certos serviços públicos, como
ferrovias, água, energia elétrica, etc., que naquele momento
não tinham direito de sindicalização. Por isso, uma das reivin-
dicações foi a extensão da sindicalização a todos os servido-
res públicos federais, estaduais e municipais e funcionários ex-
tranumerários, autárquicos e paraestatais, como era o caso
dos ferroviários da Rede de Viação Paraná-Santa Catarina.
Os trabalhadores reunidos no congresso também defendiam
o direito de sindicalização dos trabalhadores domésticos e
agrícolas. Sobre os assalariados agrícolas, uma resolução es-
pecial recomendava que eles facilitassem por todos os meios
a criação de ligas e uniões camponesas, associações e sindi-
catos de trabalhadores do campo.
Visando expandir a organização dos trabalhadores,
uma das propostas apresentadas foi criar comissões nos lo-
cais de trabalho para incentivar a sindicalização e manter
o contato com os trabalhadores através de assembleias pe-
riódicas, cursos e conferências para a elevação do nível cul-
tural dos mesmos. Ainda como teses e reivindicações gerais
dos trabalhadores, propunha-se a luta por diversos benefícios
sociais, considerando-se que o elevado custo de vida e os
baixos salários os colocavam em estado de pobreza, obri-
gando-os a residirem em “pardieiros”, casas coletivas e cor-
CLAUDIA MONTEIRO

tiços. Entre os benefícios demandados estava a construção


de habitações proletárias “confortáveis e higiênicas”, próxi-
mas dos locais de trabalho, cujo aluguel não ultrapassasse
15% da renda do trabalhador; cessão gratuita de terrenos
destinados à edificação; licença para a construção de ca-
253
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

sas de madeira nas zonas habitadas por operários. Também


eram expressas demandas pela regulamentação das apo-
sentadorias por invalidez, auxílio-maternidade, auxílio-enfer-
midade e auxílio-funeral.14
As reivindicações revelam os interesses ligados ao
cotidiano dos trabalhadores, seus problemas diários, as ques-
tões e dificuldades materiais, como a luta por melhores sa-
lários, moradias e condições de vida dignas. Mas também
demonstram interesses políticos, como o direito de se sindi-
calizar e a luta pela construção de um movimento sindical
autônomo, que denota um novo horizonte de expectativa
diante das possibilidades da luta por direitos, possibilitada
com a abertura política após o fim do Estado Novo.
A grande quantidade de entidades envolvidas nesse
Congresso evidencia que, mesmo não existindo no Paraná
da época um parque industrial considerável que pudesse
concentrar um grande número de operários, havia ali uma
grande movimentação dos trabalhadores de diversas cate-
gorias, dispostos a se organizarem e lutarem por seus direitos.
Neste sentido, utilizavam-se tanto da estrutura sindical oficial,
implantada durante o governo Vargas, quanto de estraté-
gias alternativas. Essas se realizaram com a criação de as-
sociações profissionais, comissões, uniões e ligas, no caso de
categorias excluídas da CLT e proibidas de se sindicalizar,
MILITÂNCIA OPERÁRIA NO PARANÁ DAS DÉCADAS DE 1930 E 1940

como os trabalhadores agrícolas. Estes formaram, por exem-


plo, a Liga Camponesa do Córrego de Mitain, de Londrina, e
a União Camponesa de Jaguapitã, na região de Porecatu,
palco do posterior conflito por terras na região, tratada nesse
livro pelo capítulo escrito por Angelo Priori.
Tal fato indica que os trabalhadores paranaenses já
tinham uma experiência vivida enquanto classe, construída
nas décadas anteriores, por meio de movimentos grevistas
e do associativismo, principalmente entre categorias mais
numerosas.
A União dos Trabalhadores do Estado do Paraná teve
uma duração efêmera. Sustentado por um decreto-lei fede-
ral, em 1948, o procurador da República propôs, por ação
judicial, sua dissolução, com a alegação de que a agremia-
ção não estava registrada no Ministério do Trabalho, Indús-
14 Idem.

254
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

tria e Comércio, como prescrevia a Consolidação das Leis do


Trabalho. Além disso, o procurador alegava que “[...] desen-
volvendo intensa ação política no meio trabalhista e crian-
do um ambiente de agitação subversiva, se fez a União um
foco de ativa propaganda comunista, reunindo em seu seio
os mais ativos adeptos do credo vermelho”.15
A ação judicial acrescentava que a militância políti-
ca no meio sindical era expressamente vedada pela lei. Tal
como a cassação do mandato do Partido Comunista, o de-
creto que cassou a União dos Trabalhadores do Estado do
Paraná indicava um novo cenário de perseguição política,
fruto do começo da Guerra Fria em 1947, que teve impacto
direto na atuação dos trabalhadores paranaenses. A par-
tir daí, uma grande quantidade de sindicatos, associações,
uniões e confederações de trabalhadores foram considera-
das ilegais, por realizarem atividades consideradas contrárias
à ordem política e social.
No entanto, apesar do pouco tempo de atuação
da União dos Trabalhadores do Estado do Paraná, sua exis-
tência e suas reivindicações demonstram o quanto os traba-
lhadores paranaenses estavam cientes de seus problemas e
o quanto estiveram ativos em busca de lutar por melhorias.
Por outro lado a sua cassação bem como a perseguição
política aos líderes operários revela que, mesmo em perío-
dos ditos democráticos, como aquele posterior a 1945, as
organizações operárias continuavam sendo cerceadas, vi-
giadas e limitadas.
O decreto de cassação da União dos Trabalhadores
do Estado do Paraná evidencia o argumento do anticomunis-
mo que, na época, estava presente não somente no discurso
policial, mas também, nos discursos da Igreja Católica, na im-
prensa, nas campanhas eleitorais, na propaganda política,
nos debates da Câmara de Deputados, nas mensagens dos
governadores, etc. Tal discurso reduzia toda ação política
dos trabalhadores a mera agitação, subversão e propagan-
da comunista. Assim se justificava a repressão num contexto
CLAUDIA MONTEIRO

já pouco propício a debates, como aquele que emerge da


Guerra Fria.
15 Cópia de ação de dissolução de acordo com o contido no Diário Oficial, p.3 (17/03/1948).
Arquivo Público do Paraná, fundo DOPS, pasta temática “União dos Trabalhadores de
empresas de carris urbanos de Curitiba”, n.1952, cx. 226, p.11-12.

255
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A DOPS sempre partiu do pressuposto de que todo


ato político de luta por direitos era subversão da ordem social.
Principalmente depois de 1947, os limites de organização e
de mobilização dos trabalhadores sempre foram muito estrei-
tos, como demonstra o intenso trabalho da DOPS no Paraná,
resultando disso um vasto material de fichários e prontuários.
Para corroborar sua versão, os investigadores construíam dos-
siês, relatando as trajetórias dos militantes, os atos e o envol-
vimento destes em partidos políticos ou movimentos sociais,
além de reunir depoimentos e anexar materiais apreendidos.
Esta documentação constitui um importante subsídio para a
história social e política do Paraná, pois demonstra também
a constante resistência dos trabalhadores.

CONCLUINDO

A existência de um ativo movimento operário com


lideranças de esquerda, que promoveu grandes greves, pro-
curou influir nos debates da esfera pública, lançou candida-
tos, lutou por melhorias e denunciou a precariedade da si-
tuação dos trabalhadores, evidenciada na pesquisa histórica
dos documentos encontrados nos arquivos, contribui para a
desconstrução de um discurso hegemônico sobre povo pa-
ranaense, ao qual sempre foi atribuída a insígnia de pacífico,
ordeiro e conservador. É necessária a desconstrução desde
MILITÂNCIA OPERÁRIA NO PARANÁ DAS DÉCADAS DE 1930 E 1940

discurso porque ele nega ou subtrai as tensões e os confli-


tos próprios à história paranaense, minimizando a importân-
cia dos movimentos sociais e políticos no Estado, apagando
as lutas dos trabalhadores, suas organizações, suas greves e
suas ações de resistência.

256
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

TRABALHADORES DO LITORAL
PARANAENSE: ORGANIZAÇÃO,
SINDICATOS E SUBVERSÃO
Thiago Ernesto Possiede da Silva

Na cidade de Paranaguá, litoral do Estado do Para-


ná, fundou-se, no carnaval de 1963, o bloco carnavalesco
“Os Cangaceiros”. Seu fundador, João Euclides dos Santos,
ensacador no porto daquela cidade, era também o “chefe”
do bloco. A partir de sua fundação, o grupo passou a se fazer
presente não só no desfile de Paranaguá, mas também nos
de outras cidades do estado, como a de Mafra, Rio Negro e
Matinhos.
Em 1969, uma série de eventos marcou a atividade
festiva do bloco. “Aos vinte dias do mês de agosto” daque-
le ano, foi aberta na Delegacia de Ordem Política e Social
de Paranaguá uma “sindicância sigilosa e confidencial ins-
taurada sobre desmoralização das Forças Armadas”1, para
investigar João Euclides dos Santos e outros. Na cidade de
Matinhos, em 5 de março de 1969, o bloco “Os Cangaceiros”
THIAGO ERNESTO POSSIEDE DA SILVA

foi “impedido de terminar o desfile em virtude de seu estan-


darte ser de moral um tanto duvidosa, chegando mesmo a
constituir afronta às autoridades Militares e Policiais do País”.2
1 Secretaria de Segurança Pública, Delegacia de Polícia de Paranaguá, Autuação. Arqui-
vo Público do Estado do Paraná, Fundo da Delegacia de Ordem Política e Social. Pasta
“Subdivisão Policial de Paranaguá (2º)”, nº: 2214-8, caixa 242, p. 235.
2 Relatório Confidencial. Secretaria de Segurança Pública, Delegacia de Polícia de Para-
naguá, Autuação. Arquivo Público do Estado do Paraná, Fundo da Delegacia de Ordem
Política e Social. Pasta “Subdivisão Policial de Paranaguá (2º)”, Nnº: 2214-8, caixa 242,
p. 234.

257
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

De acordo com o relatório policial,


O estandarte do bloco carnavalesco “OS CANGACEI-
ROS” foi aplaudido na localidade de MATINHOS/PR, por
fazer alusão, em pintura a punho livre, às autoridades
constituídas do Poder Judiciário. [...] apresenta uma
alegoria que desmerece as Polícias Militares, poden-
do mesmo ser confundido com o EXÉRCITO NACIONAL
em virtude da cor da roupa do enforcado, podendo-
-se mesmo em análise mais profunda, julgar a alegoria
incompatível com o atual regime de moralização que
se faz no BRASIL, para a sua recuperação moral e cívi-
ca, levando-se em conta o Policial enforcado sob os
olhares escarnecedores de um grupo de homens histo-
ricamente revoltados contra a sociedade3.

A imagem de fato, parecia representar um militar


enforcado:
TRABALHADORES DO LITORAL PARANAENSE: ORGANIZAÇÃO, SINDICATOS E SUBVERSÃO

Estandarte do bloco carnavalesco “Os Cangaceiros”, 1969. Reproduzida


pelo autor a partir de documento do Arquivo Público do Estado
do Paraná, Fundo Delegacia de Ordem Política e Social. Pasta
“Subdivisão Policial de Paranaguá (2º)”, Nº: 2214-8, Caixa: 242, p. 242.

As autoridades militares incomodavam-se a tal ponto


com o desfile de carnaval daquele ano, que abriram uma
sindicância para produzir dados sobre as pessoas envolvidas.
O país estava sob o comando militar de uma ditadura instau-
rada a partir de um Golpe de Estado, no dia de 31 de março
3 Idem.

258
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

de 1964, realizado pelas Forças Armadas, que destituíram o


Presidente João Goulart, em um processo de ruptura com o
regime democrático, inaugurando um período autoritário de
mais de duas décadas, o qual terminaria apenas em 1985.
O Ato Institucional Número 5 havia sido instituído no
ano anterior ao do desfile do bloco “Os Cangaceiros”, que
tanto incomodou a autoridade policial. Esse dispositivo, ela-
borado e promulgado pelo Estado ditatorial brasileiro em 13
de dezembro de 1968, eliminou todas as liberdades civis indi-
viduais, dissolveu o parlamento e aprofundou a violência do
Estado, intensificando a repressão a qualquer indivíduo que,
segundo se entendia, apresentasse ameaça à nação e ao Es-
tado, constituindo-se um “inimigo interno”. Este guardava cor-
respondência com o inimigo externo, perigoso por estar sujeito
a influência das políticas sociais e econômicas dos partidos
socialistas e comunistas, cujo maior representante, naquele
contexto, era a União Soviética. A disseminação do anticomu-
nismo se intensificara ainda mais a partir da revolução vitorio-
sa em Cuba, no ano de 1959, capitaneada por Fidel Castro,
Ernesto Guevara e Camilo Cienfuegos, bem como pela vitória
de Salvador Allende no Chile, em setembro de 19704.
O golpe de estado ocorrido no Brasil e a instaura-
ção da ditadura fez parte de um processo mais amplo, que
atingiu de forma mais geral a América Latina, e fez parte de
uma conjuntura marcada por tensões, conflitos e ameaças
de conflitos bélicos. Com o fim da Segunda Guerra Mundial,
em 1945, a ameaça para o Ocidente eram os trabalhadores,
estudantes, intelectuais, políticos, sindicatos e partidos, enfim,
todas as pessoas que tinham projetos alternativos ao capi-
talismo e que se opunham às opressões empreendidas em
sociedades e Estados autoritários5.
É a partir desses elementos que devemos, inicialmen-
THIAGO ERNESTO POSSIEDE DA SILVA

te, compreender a manifestação “chefiada” por João Eucli-


4 Para compreender o contexto anticomunista, de modo mais profundo, sugerimos ver:
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: O anticomunismo no
Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002. Para entender a história cubana con-
temporânea e o processo da revolução, ver: BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. De Martí
a Fidel: A Revolução Cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1998. Sobre o governo de Salvador Allende e o Golpe de Estado no Chile, ver: HU-
NEEUS, Carlos. El Régimen de Pinochet. Santiago: Editorial Sudamericana, 2000.
5 Para uma síntese destas questões, ver: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha
Viz. (Orgs.). A construção social dos regimes autoritários: Legitimidade, Consenso e
Consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilizaçao Brasileira, 2010. 3 Volumes.

259
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

des dos Santos no litoral paranaense, através do bloco carna-


valesco “Os Cangaceiros”. O relatório policial resultante da
sindicância feita nos oferece dados importantes, referentes à
crítica ao autoritarismo dos anos de ditadura. Segundo o do-
cumento, ocorreram “aplausos” ao estandarte com o enfor-
cado. Isso só já contradiz qualquer afirmação de que a popu-
lação estava imobilizada pela violência do Estado, incapaz
de contestar ou de se opor ao regime ditatorial.
É possível que muitas das pessoas que presenciaram
o desfile do estandarte e o aplaudiram não eram passivas
em relação à política vigente naquela conjuntura, isto é, não
concordavam como as coisas estavam sendo conduzidas.
Dessa forma, expressaram insatisfação, num ato de resistên-
cia, ao verem um representante do Estado sendo enforcado,
ainda que de modo simbólico.
As figuras do cangaço e do cangaceiro também são
significativas, pois demonstra que os envolvidos poderiam estar
se reconhecendo como herdeiros de um passado insurgente,
violento, insubmisso e organizado. Lembrar os cangaceiros,
TRABALHADORES DO LITORAL PARANAENSE: ORGANIZAÇÃO, SINDICATOS E SUBVERSÃO

elevá-los em um estandarte representando o enforcamento


de um militar, ir para a rua durante o desfile de carnaval e se
apresentarem como “Os Cangaceiros” são atos de enfrenta-
mento e de ousadia, se considerarmos aquele contexto, que
era o da vigência de uma ditadura. Esta foi uma manifesta-
ção estética e política dos trabalhadores, em que o combate
a um regime político violento – a Ditadura Militar –, foi feito com
uso da violência simbólica – representação do enforcamento/
morte do militar/destruição da ditadura.
Segundo os dados contidos no relatório policial, ao
menos 21 pessoas participaram do desfile com o bloco “Os
Cangaceiros” – 19 homens e 2 mulheres. Apenas a profissão
de João Euclides dos Santos foi mencionada – ensacador do
porto. Sobre os outros participantes, o relatório informava:
“são todos residentes em Paranaguá/PR e facilmente locali-
záveis.”6 É possível que estes também realizassem seus traba-
lhos ligados ao porto de Paranaguá ou outras atividades de
comércio local. Em minha pesquisa de mestrado, localizei as
profissões e ocupações mais recorrentes dos que aderiram à
6 Relatório Confidencial. Secretaria de Segurança Pública, Delegacia de Polícia de Parana-
guá, Autuação. Arquivo Público do Estado do Paraná, Fundo da Delegacia de Ordem Política
e Social. Pasta “Subdivisão Policial de Paranaguá (2º)”, nº: 2214-8, caixa 242, p. 234.

260
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

militância política nesta cidade portuária. Em geral, eles eram


comerciantes, padeiros, confeiteiros, barbeiros, estudantes,
operários, motoristas, operadores cinematográficos, vigias,
ferroviários, pintores, lavradores, domésticas, bancários, gar-
çons, mecânicos, carpinteiros navais, carroceiros, eletricistas,
pescadores, pedreiros, estivadores, ensacadores, encanado-
res e marceneiros.7
Partindo das questões suscitadas pelo desfile do blo-
co “Os Cangaceiros”, este capítulo busca traçar um pano-
rama das ações, greves, manifestações e reivindicações dos
trabalhadores do litoral paranaense, com destaque àqueles
mais relacionados ao porto. Nele, apresentarei alguns aspec-
tos de militância que, no ano de 1963, ocorreram na cida-
de de Paranaguá e em algumas outras localidades, com as
quais os militantes estabeleceram relações.

A CLASSE ORGANIZADA E O PAPEL DOS SINDICATOS

No início dos anos 1960, ocorreram em todo o Brasil


muitas greves e paralisações dos trabalhadores. Em Parana-
guá não foi diferente. Alguns jornais impressos, como A Últi-
ma Hora e o Correio do Paraná circulavam notícias a respei-
to das greves e reivindicações dos trabalhadores do porto
da cidade. O primeiro, em dezembro de 1963, comunicava:
“tomando parte ativa na greve nacional dos arrumadores,
a classe local cruzou os braços, paralisando, desde as pri-
meiras horas de ontem, o movimento de exportação e im-
portação no porto de Paranaguá”8. O texto apresentava,
indiretamente, comentários do presidente do Sindicato dos
Arrumadores, Cesar Batista. De acordo com a reportagem,
Batista
THIAGO ERNESTO POSSIEDE DA SILVA

declarou que todos os trabalhadores da orla marítima


estão solidários com a sua categoria, não havendo
ameaça de que uma outra classe viesse ”furar” a gre-
7 Thiago Ernesto Possiede da Silva. Entre Sapatos & Livros: A trajetória de um sapateiro
na militância comunista em Paranaguá/PR, 1935 a 1964. Dissertação (Mestrado em
História). Curitiba: UFPR, 2014. p. 67.
8 “Paranaguá: Greve Nacional de Arrumadores Parou Exportação”, A Última Hora,
20/12/1963. Arquivo Público do Estado do Paraná, Fundo da Delegacia de Ordem
Política e Social. Pasta “Dossiê: Delegacia de Polícia de Paranaguá”, nº 584B, Caixa
65, p. 43.

261
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ve dos arrumadores, já que existe pacto sindical firma-


do entre arrumadores e estivadores, que trabalham
conjugadamente, para paralisação simultânea”.9

A continuidade da matéria jornalística evidencia que


a situação entre trabalhadores e patrões estava tensa. O Sin-
dicato dos Arrumadores, segundo o jornal, havia sofrido um
duro golpe

Esclareceu ainda o Sr. Cesar Batista que o processo de


aumento salarial da classe, depois de assinado pelo
Ministro de Viação e Obras Públicas desapareceu mis-
teriosamente de seu gabinete, fato considerado como
autêntico boicote de grupos interessados em evitar a
concessão à classe, de melhores níveis salariais. Por
isso, o órgão nacional dos arrumadores decretou gre-
ve geral no País, paralisando desde ontem todos os
portos. Em Paranaguá, a única operação que se fazia
ontem era a de descarga de madeira de vagões para
os armazéns do porto, serviço executado pelo pessoal
da APP [Administração dos Portos de Paranaguá]10.
TRABALHADORES DO LITORAL PARANAENSE: ORGANIZAÇÃO, SINDICATOS E SUBVERSÃO

O superintendente do porto na ocasião, o engenhei-


ro Arthur Miranda Ramos, defendeu a hipótese “de que a
greve não irá longe”. Isso não intimidou os trabalhadores,
pois, “permanecerá a decisão dos sindicatos de não efetuar
qualquer serviço com navios desviados da rota de São Fran-
cisco do Sul, onde há mais de três dias o porto está parali-
sado, em virtude da greve geral decretada pelo Pacto de
Unidade e Ação (PUA) daquela cidade.”11
Uma das entidades presentes em São Francisco do
Sul foi o Fórum Sindical de Debates de Paranaguá, uma or-
ganização fundada em 1º de maio de 1962, que congre-
gava sindicatos de várias categorias, de todo o litoral para-
naense12. De acordo com a notícia, o Fórum Sindical esteve
presente em São Francisco do Sul, “em caravana especial
9 . Idem.
10 Idem.
11 “Paranaguá: Greve Nacional de Arrumadores Parou Exportação”, A Última Hora,
20/12/1963. Arquivo Público do Estado do Paraná, Fundo da Delegacia de Ordem
Política e Social. Pasta “Dossiê: Delegacia de Polícia de Paranaguá”, nº 584B, caixa
65, p. 43.
12 Valéria Villa Verde. Fórum Sindical em Paranaguá: Tecendo um princípio. Dissertação
(Mestrado em História). Curitiba: UFPR, 1988. p. 20. Importante destacar que o Porto de
Paranaguá, neste período, era o segundo maior porto do Brasil em exportações.

262
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

[...] prestando integral solidariedade aos grevistas e prome-


tendo-lhes não operar com navios que tenham desviado
suas rotas para fugir aos efeitos daquele movimento.” Um
desses navios, segundo o jornal, era o “Helga Schroeder,
de bandeira alemã, agenciado pelo Loide Brasileiro, e já se
encontra em Paranaguá, aguardando o fim da greve dos
arrumadores para carregar madeira. Segundo apuramos,
os trabalhadores se recusaram a efetuar esse embarque”.13
Dois movimentos são evidenciados nessas passagens.
O primeiro é a organização, mobilização e deslocamento
dos trabalhadores do porto através do que está evidenciado
na documentação como “solidariedade” e “pacto sindical”.
O segundo movimento evidenciado pela docu-
mentação analisada até aqui, se define em torno de con-
vicções daqueles favorecidos pelo capital. No episódio en-
volvendo o navio Helga Schroeder, o superintendente do
porto de Paranaguá, Arthur Miranda Ramos – expressou a
certeza de que a greve não iria longe, e, de forma cínica
e mesmo sarcástica – referiu-se ao fato de as autoridades
alemãs a bordo do Helga Schroeder estarem aguardando
o fim da greve, sugerindo que estas não acreditam na força
dos trabalhadores e nos objetivos concretos que buscavam
conquistar: melhores salários para poder obter benefícios
em suas próprias vidas, mesmo que fossem mínimos, como
quilos a mais de alimentos básicos do dia a dia para suas
famílias, alguma economia para a educação dos filhos ou
para qualquer outra coisa que pudesse fazer no tempo livre
que lhes restava.
É importante considerar que o agir destes trabalha-
dores estava compreendido dentro de uma lógica mais am-
pla, baseada na exploração de uma classe por outra, com
THIAGO ERNESTO POSSIEDE DA SILVA

expropriação de tempo e força de trabalho de pessoas, que


muitas vezes não tiveram oportunidades de ascender social-
mente, devido ao pouco ou nenhum acesso a serviços bási-
cos de melhor qualidade – saúde, educação, moradia, trans-
porte. Algo que se reproduz e que se insere em um processo
de longo prazo, que aprofunda as desigualdades sociais.
13 “Paranaguá: Greve Nacional de Arrumadores Parou Exportação”, A Última Hora,
20/12/1963. Arquivo Público do Estado do Paraná, Fundo da Delegacia de Ordem Política
e Social. Pasta “Dossiê: Delegacia de Polícia de Paranaguá”, nº 584B, caixa 65, p. 43.

263
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ESTUDANTES E TRABALHADORES EM LUTA E RESISTÊNCIA

No começo do ano de 1963, o Correio do Paraná


publicou uma matéria com título enfático: “Greve sem pre-
cedentes paralisou Paranaguá, zona portuária e armazéns
gerais interditados”. Segundo o jornal, os trabalhadores, ar-
ticulados pelos sindicatos, demandavam pelo pagamento
atrasado do 13º salário. O Centro do Comércio de Café da
cidade mostrava-se “intransigente na recusa de não atender
os reclamos dos trabalhadores das diversas categorias. Isto
significou completa paralisação dos serviços nos armazéns
gerais [...]”14.
A notícia sugeria ainda que algo mais estava em
gestação, não apenas em Paranaguá, mas em todo o Brasil.
Imediatamente,
[...] o Sindicato dos Ensacadores e Carregadores de
Café declarou-se solidário aos Auxiliares, articulando
no setor externo dos armazéns outra parede. Estes dois
movimentos forçaram a paralisação de todos os traba-
TRABALHADORES DO LITORAL PARANAENSE: ORGANIZAÇÃO, SINDICATOS E SUBVERSÃO

lhos de exportação estando no porto e ao largo nume-


rosos navios ancorados. [...]15.

Em torno destas ações, “presumia-se então que os


estivadores tomariam a si o encargo de cargas e descargas
de caminhões dentro e fora do porto, mas estes também em-
prestaram em seguida seu apoio à causa dos auxiliares e de-
clararam-se em greve”16.
De acordo com o Correio do Paraná,
Como uma reação em cadeia, a seguir todas as cate-
gorias profissionais filiadas ao Fórum Sindical de Deba-
tes seguiram os passos dos auxiliares, ensacadores e es-
tivadores e, às seis horas da manhã, Paranaguá viu-se
frente ao maior movimento grevista até hoje efetivado
no litoral17.

Por fim, os patrões reagiram, solicitando ao Juiz de


Direito da Comarca de Paranaguá garantias de que todos os
14 Correio do Paraná, 16/02/1963. Jornal consultado no Arquivo Público do Estado do
Paraná, Fundo da Delegacia de Ordem Política e Social. Pasta “Dossiê: Delegacia de
Polícia de Paranaguá”, nº 584B, caixa 65, p. 26.
15 Idem.
16 Idem.
17 Idem.

264
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

trabalhadores voltassem ao trabalho imediatamente. Foi re-


quisitado também um contingente policial de Curitiba, para
servir de reforço ao de Paranaguá e proteger o Centro do
Comércio de Café. Desta forma, com ameaças aos grevis-
tas, “a petição foi efetivada mediante coação de demissões
em massa”.18
No dia 9 de maio de 1963, um jornal informava “a
realização de conferências que tinham o objetivo de pro-
mover esclarecimentos a respeito da reforma agrária e das
demais reformas de base, como parte da campanha que
estava sendo estimulada pela Frente de Mobilização Popu-
lar, criada “pelas cúpulas sindicais, estudantis e parlamenta-
res-nacionalistas para a defesa das reformas de base, cujos
projetos foram encaminhados pelo presidente João Goulart
ao Congresso Nacional.”19
A discussão concentrava-se em buscar o
Indispensável apoio para a definitiva aprovação dos
projetos, com as emendas julgadas progressistas e in-
dispensáveis ao progresso do país [...] especialmente
no meio rural realizaremos várias palestras a trabalha-
dores rurais e pequenos proprietários [...]20

As expectativas diante das reformas de base eram a


principal motivação de luta da classe trabalhadora. O direito
à terra, à moradia, à saúde e à educação pareciam estar
mais próximos, a cada incursão pelas cidades litorâneas pa-
ranaenses, onde o Fórum Sindical mostrava ser um dos princi-
pais meios de organização e debates sobre a realidade que
tantos trabalhadores esperavam alcançar e realizar. O líder
sindical Vitor Horácio da Costa, de acordo com o jornal, teria
comentado que,
THIAGO ERNESTO POSSIEDE DA SILVA

Também faremos sentir aos homens do campo, em to-


das as colônias do litoral, a necessidade de se mobili-
zarem para que a assistência técnica, agrícola e me-
canizada, e mais a educacional e a hospitalar, de que
tanto carecem, sejam aprovadas junto ao projeto de
18 Idem.
19 “Reforma agrária: sindicatos do litoral mobilizam-se para esclarecer as massas”. A Últi-
ma Hora, 09/05/1963, documento consultado no Arquivo Público do Estado do Paraná,
Fundo da Delegacia de Ordem Política e Social. Pasta “Dossiê: Delegacia de Polícia de
Paranaguá”, Nº 584B, Caixa 65, p. 25.
20 Idem.

265
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

reforma agrária. Com essa mobilização, o Fórum Sindi-


cal de Debates estará cumprindo com as suas sadias
finalidades, quais sejam, as de esclarecer o trabalha-
dor da cidade e do campo, recuperando-o para os
grandes debates da vida nacional21.

Passados alguns dias, em 13 de maio de 1963, novas


notícias eram publicadas: “intensificando a mobilização das
classes trabalhadoras pelas reformas de base, o Fórum Sindi-
cal de Debates realizou ontem reunião de todos os sindicatos
do litoral, à qual compareceram, inclusive, representantes de
Antonina e Morretes [...]”, ocasião esta em que o “relato per-
feito da situação das reformas, especialmente a agrária, foi
feito aos trabalhadores”22.
O presidente do Fórum Sindical, Vitor Horácio da Cos-
ta, comentou com a reportagem do jornal que esta reunião
“fazia parte da campanha de esclarecimento das massas
trabalhadoras, para incorporá-las à Frente de Mobilização
Popular Pró-Reformas que se constitui em todo o país, com
estudantes, operários, parlamentares e, mesmo, militares”23.
TRABALHADORES DO LITORAL PARANAENSE: ORGANIZAÇÃO, SINDICATOS E SUBVERSÃO

Discutiram, precisamente, a ação e opção pela greve geral


e sua organização,

a consulta feita pelo Comando Geral dos Trabalhado-


res sobre a realização de uma greve geral no país du-
rante 24 horas, como manifestação dos trabalhadores
sobre os seus anseios a respeito das reformas, encon-
trou parecer favorável do Fórum Sindical de Debates,
a maior entidade obreira do sul do país, que se mostra
disposto a incorporar-se com posição de destaque a
esse movimento que ganha corpo nacional24.

Em Antonina, a Delegacia do Fórum Sindical de De-


bates se reuniu com a presença de 200 pessoas, entre traba-
lhadores e estudantes. Na oportunidade, discutiram as refor-
mas de base e a incorporação do “Clube dos Estudantes”
de Antonina ao Fórum Sindical, solicitando, via ofício, que a
21 Idem.
22 “Paranaguá: prossegue mobilização total de estudantes e operários pró-reformas”. A Úl-
tima Hora, 13/05/1963. Documento consultado no Arquivo Público do Estado do Paraná,
Fundo da Delegacia de Ordem Política e Social. Pasta “Dossiê: Delegacia de Polícia de
Paranaguá”, Nº 584B, Caixa 65, p. 43.
23 Idem.
24 Idem.

266
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

entidade de secundaristas engrossasse as fileiras da luta no


movimento pró-reforma. A notícia terminava destacando
que as atividades do movimento iriam se intensificar em todo
o litoral, concentrando-se em Paranaguá25.
Para a Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS),
o Fórum Sindical estava sob influência do Partido Comunista.
De acordo com um relatório, “dentro do Estado do Paraná,
é nesta cidade que se concentra o maior número de comu-
nistas e simpatizantes”, sendo o mencionado órgão sindical o
“‘foco’ de comunistas convictos”26.
Dois dias depois, as notícias informavam que “o im-
passe entre ensacadores e carregadores do Porto de Para-
naguá e membros do Centro do Comércio do Café, culmi-
nou na tarde de ontem, na sede da Delegacia Regional do
Trabalho”. As propostas do Centro do Comércio, dirigidas aos
ensacadores e carregadores do porto, giravam em 30% de
aumento salarial, sem mais discussões. Por outro lado, a co-
missão que representava cerca de 2 mil trabalhadores, de-
fendeu 80% de aumento27.
A resposta do Centro do Comércio, de acordo com
o jornal, foi: “[...] negaram-se a levar em conta outros itens da
reivindicação, como férias de 30 dias, salário chuva, detalhes
no manuseio do café, alegando que o plano de contenção
de despesas do Governo Federal preconiza que os salários
não sejam ajustados em bases superiores a 40%”.28
No dia 17 de maio, a resposta dos trabalhadores
apareceu estampada em A Última Hora, a manchete “Ensa-
cadores: reduzir nossos salários para salvar café imprestável é
crime”. A matéria destacava que, “em assembleia realizada
anteontem, os ensacadores e carregadores de café recu-
saram unanimemente a proposta feita pelo IBC, que previa
THIAGO ERNESTO POSSIEDE DA SILVA

a redução de 20% em parte dos seus salários”, como uma


consequência dos alegados prejuízos feitos pelo caruncho,
25 Idem.
26 Relatório Policial. Secretaria de Segurança Pública. Arquivo Público do Estado do Para-
ná, Fundo da Delegacia de Ordem Política e Social. Pasta “Dossiê: Subdivisão Policial
de Paranaguá”. nº 2214B. caixa: 242. p. 263-264.
27 “Não houve acordo: trabalhadores do porto de Paranaguá e de Arapoti ameaçam gre-
ve”. Correio do Paraná, 15/05/1963. Documento consultado no Arquivo Público do Esta-
do do Paraná, Fundo da Delegacia de Ordem Política e Social. Pasta “Dossiê: Delegacia
de Polícia de Paranaguá”, Nº 584B, Caixa 65, p. 24.
28 Idem.

267
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

de modo que o IBC justificava “acumular recursos para com-


bater” tal praga no café. Os trabalhadores reagiram a tal
proposta, “taxando-a de imoral e criminosa”29.
O jornal expressava ainda que “na assembleia reali-
zada fizeram-se ouvir vários sindicalizados, todos contrários à
aceitação da proposta do IBC, ‘principalmente porque os
atrasados dessa mesma taxa que querem reduzir ainda não
foram pagos aos ensacadores’”, afirma a nota da assembleia,
publicada em “A Última Hora”, estando este processo “na Jus-
tiça há mais de seis meses”30. Como informava o mesmo jornal,
Um dos sindicalizados havia comentado que, “a ex-
portação em Paranaguá vem caindo porque aqui só
estão depositados cafés velhos, mofados e caruncha-
dos, sem aceitação fora do país e tampouco dentro,
os quais só servem para encher bolsos das companhias
de armazéns, de seguro e de transporte, que, no fun-
do, pertencem a um só grupo, quase sempre.”31

Temos material suficiente, apresentado até aqui,


TRABALHADORES DO LITORAL PARANAENSE: ORGANIZAÇÃO, SINDICATOS E SUBVERSÃO

para podermos compreender que os trabalhadores estavam


em um processo de elaboração de suas próprias consciên-
cias. Os conflitos evidenciados nas páginas dos jornais expli-
citam as lutas cotidianas por melhores condições de vidas,
com objetivos imediatos de obtenção de aumentos salariais,
negociação de férias e outros benefícios. Por outro lado, ao
mesmo tempo, vemos outra luta, a empreendida pelas mes-
mas categorias de trabalhadores e estudantes do litoral pa-
ranaense, que foi a empreendida em prol das reformas de
base, nos anos pré-golpe de Estado de 1964.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No curto lapso entre a renúncia de Jânio Quadros, no


mês de agosto de 1961, e a deposição de João Goulart, em
abril de 1964, o Brasil vivenciou um crescimento das lutas so-
ciais, polarizando-se entre as propostas das reformas de base
29 Idem, p. 27.
30 “Ensacadores: ‘Reduzir nossos salários para salvar café imprestável é crime’”. A Última
Hora, 17/05/1963. Jornal consultado no Arquivo Público do Estado do Paraná, Fundo da
Delegacia de Ordem Política e Social. pasta “Dossiê: Delegacia de Polícia de Parana-
guá”, nº 584B, caixa 65, p. 27.
31 Idem.

268
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

e a reação conservadora.32 Contudo, não é possível entender,


em profundidade, as mobilizações em Paranaguá e no litoral
do Paraná se não for compreendido o histórico das relações
entre sindicatos e o Estado no Brasil na década anterior.
Nos anos 1950, João Goulart ocupou por oito meses
a pasta do Trabalho e, pelos partidários do trabalhismo foi
considerado um líder nacionalista, reformista e defensor da
causa dos trabalhadores urbanos e rurais. Deixou o cargo
quando propôs que o salário mínimo, depreciado em seu
poder de compra, fosse duplicado.33
A conjuntura anterior às reformas de base teve como
objetivos, após a morte de Getúlio Vargas, atualizar o tra-
balhismo brasileiro num contexto internacional, influencia-
do pelos avanços dos valores democráticos e dos modelos
de Estado de Bem-Estar Social, que avançaram na Europa
Ocidental. O projeto que estava sendo gestado não era o
de romper com o capitalismo, mas estabelecer vias de com-
promissos entre empresários e trabalhadores, permitindo a
ampliação do mercado interno, os lucros das empresas e a
distribuição de renda, com o nacionalismo como eixo para o
desenvolvimento econômico e social.34
As demandas crescentes formuladas pelos trabalha-
dores foram ao encontro com o trabalhismo brasileiro que
estava sendo proposto, principalmente, pelo PTB com João
Goulart no comando partidário. Os anos entre a eleição de
1955, em que a chapa de Juscelino Kubitschek e João Gou-
lart saiu vitoriosa para a presidência e o golpe de Estado de
1964, foram decisivos na disseminação das mobilizações de
trabalhadores por todo o país, acompanhados por instabi-
lidades políticas na qual resultou a renúncia do presidente
eleito em 1960, Jânio Quadros.
Os anos iniciais da década de sessenta conheceram
THIAGO ERNESTO POSSIEDE DA SILVA

o programa de governo do presidente João Goulart, após a


renúncia de Quadros. As reformas de base foram um conjun-
to de medidas que tinham por objetivo alterar as estruturas
32 Daniel Aarão Reis. Classe operária, partido de quadros e revolução socialista. O itinerá-
rio da Política Operária – Polop (1961-1986). Daniel Aarão Reis; Jorge Ferreira (orgs.).
In: Revolução e Democracia: 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 57.
33 Jorge Ferreira. Entre a história e a memória: João Goulart. Daniel Aarão Reis; Jorge
Ferreira (orgs.). Nacionalismo e Reformismo Radical: 1945-1964. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 2007. p. 515.
34 Idem, p. 517.

269
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

econômicas e sociais do Brasil, para possibilitar o desenvol-


vimento econômico autônomo e a incorporação da justiça
social. As principais reformas visadas eram a bancária, fiscal,
urbana, tributária, administrativa, agrária e universitária; am-
pliar o direito ao voto para os analfabetos e oficiais não-gra-
duados das Forças Armadas; o retorno à legalidade do PCB,
o controle do capital estrangeiro e o monopólio estatal de
setores estratégicos da economia nacional35.
De acordo com o historiador Jorge Ferreira, o objeti-
vo também era o de retomar o modelo de desenvolvimento
preconizado por Getúlio Vargas, investindo na infraestrutura
econômica e na ampliação dos direitos sociais dos traba-
lhadores. Entre as ações empreendidas, foi efetivada a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação, que determinou 12,45%
do orçamento federal fosse investido, de modo exclusivo, na
Educação. Além de incentivar a sindicalização rural e a re-
gulamentação do Estatuto do Trabalhador Rural.36
Foi nessa conjuntura que os trabalhadores do lito-
ral do Paraná estavam inseridos. Compreendê-los a partir
TRABALHADORES DO LITORAL PARANAENSE: ORGANIZAÇÃO, SINDICATOS E SUBVERSÃO

de suas lutas por direitos, através do conhecimento de suas


ações no passado, nos oferecem possibilidades de poder
entender que o processo de luta e de tomada de consciên-
cia das condições em que estamos é fundamental para nos
orientar no tempo. Conhecer a violência e golpes que o ca-
pital e o Estado desferiram e desfere contra a maioria da po-
pulação é uma ferramenta que pode e deve ser utilizada,
concentrando a atenção nas contradições, na reprodução
das desigualdades sociais e na exploração de ampla cama-
da da população pobre e trabalhadora deste país.

35 Idem, p. 520.
36 Idem, p. 522.

270
PARTE IV
COMBATES EM TEMPOS DE REPRESSÃO
E DE INVESTIDAS NEOLIBERAIS
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A DITADURA CIVIL-MILITAR
NO PARANÁ: MEMÓRIAS DE
MULHERES MILITANTES
Carla Cristina Nacke Conradi

As mulheres participaram da luta contra a ditadura


civil-militar no Estado do Paraná? Essa pergunta poderia ser
inapropriada, não fosse o fato de que muitas pessoas des-
conhecem a militância política feminina. Isto, em grande
medida, resulta do lugar subalterno destinado à experiên-
cia política das mulheres na história da ditadura civil-militar
no Paraná. Sim, muitas mulheres paranaenses participaram
da resistência contra a ditadura, elas estiveram presentes no
movimento estudantil, nas organizações de esquerda, nos
partidos políticos; sofreram perseguições, sequestros, prisões,
torturas, exílio políticos e viveram na clandestinidade.
A história da ditadura no Paraná não pode ser escrita
sem que levemos em conta o protagonismo de mulheres que
lutaram pela liberdade. Essa afirmação baseia-se no estudo
que realizamos sobre a invisibilidade da militância feminina
CARLA CRISTINA NACKE CONRADI

na memória social da história sobre a ditadura civil-militar


no Paraná.1 Nesse estudo, demonstramos que a invisibilida-
de em relação decorreu de um silenciamento estabelecido
pela historiografia e pela memória, que negaram a presen-
ça e a atuação de mulheres na militância política. No estu-
do, mapeamos e analisamos as produções sobre o período
1 Carla Cristina Nacke Conradi. Memórias do sótão: vozes de mulheres na militância po-
lítica contra a ditadura no Paraná (1964-1985). Curitiba, 2015. 266 p. Tese (Doutorado
em História), Universidade Federal do Paraná.

273
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ditatorial, trilhamos o caminho da invisibilidade para saber


como ele foi construído; problematizamos uma historiografia
já consolidada e uma produção memorialística bastante re-
ferendada, que insistem em identificar a mulher como coad-
juvante na luta contra o Estado repressor, mesmo com tantas
evidências do protagonismo que tiveram.
Neste capítulo, não é sobre a invisibilidade que que-
remos tratar. Ao contrário, o nosso objetivo é tornar visível
a participação das mulheres naquele cenário político. Ao
apresentar a experiência de vida das mulheres militantes, por
meio de suas narrativas, retomaremos suas interpretações
sobre o caráter conservador e ao mesmo tempo repressivo
da ditadura no Paraná. Evidenciaremos também a multipli-
cidade de formas que assumiu a participação feminina na
luta contra esse regime político. Ao contarem suas experiên-
cias nos tempos de ditadura, essas mulheres mostram não
somente a expressão de uma militância feminina no Estado,
mas também auxiliam a relativizar o entendimento de que a
ditadura no Paraná foi mais branda. Algumas militantes, em
suas narrativas, comparando o que ocorria no Paraná e em
outros estados, evidenciam o quanto foi repressiva e violenta
a ação da polícia política nas terras paranaenses.
A DITADURA CIVIL-MILITAR NO PARANÁ: MEMÓRIAS DE MULHERES MILITANTES

A DITADURA CIVIL-MILITAR NO PARANÁ:


ENTRE CONSERVADORISMOS E RESISTÊNCIAS

A história da ditadura civil-militar no Paraná, consti-


tuída pela experiência da resistência e da repressão, é cons-
tantemente atrelada aos processos ocorridos em âmbito na-
cional, o que não difere das abordagens sobre a história do
período ditatorial em outros Estados. O Paraná, no entanto,
é em geral considerado um estado de perfil político de direi-
ta e conservador, o que teria feito com que se alinhasse ao
governo militar desde a instauração do golpe em 1964, sem
muita resistência, tanto da esfera governamental quanto da
sociedade civil.
É difícil especular o ponto de partida desse entendi-
mento, pois nós o encontramos no senso-comum dentro do
próprio Estado, bem como na historiografia sobre a ditadura
de outros Estados. Por vezes, os estudos sobre a história desse
período destacam as mobilizações de resistência que indi-
274
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

víduos impuseram à ditadura, no contexto do eixo Rio-São


Paulo. Os estudos produzidos por historiadores/as sobre a di-
tadura em outros Estados são considerados complementares
a essa pretensa história nacional. Em geral, é nessa perspec-
tiva, que a história do Paraná no período é narrada.
Para Marionilde Dias Brepohl de Magalhães, a popu-
lação do Paraná é entendida pelo senso comum como “pa-
cata e ordeira”2. Essa percepção é confirmada pela descri-
ção que Teresa Urban, militante política paranaense, faz da
capital do Estado em tempos de repressão:
Em 1968, Curitiba tem pouco mais de 500 mil habitan-
tes e 10 mil estudantes universitários, pouco mais, bem
acima da média nacional, pois no Brasil de então, 2
em 1000 habitantes chegavam ao ensino superior. [...]
Pela cidade se espalham 141 cursos avulsos de dati-
lografia, 42 de corte e costura e 39 de educação fa-
miliar e social. Para quem pode fazer o segundo grau,
existem duas escolhas, um tanto dirigidas: as meninas
fazem a escola normal, que formam professoras para o
curso primário, e os rapazes, curso de comércio e con-
tabilidade. [...]
Curitibano é conservador, vive na média: para as ga-
rotas minissaia um pouco acima do joelho; para os ra-
pazes, costeletas, sim, mas cabelos longos jamais; resis-
te a novidades, mas gosta de ouvir dizer que Curitiba
é cidade teste dos meios publicitários. Vota na direita,
assina manifesto da TFP contra a politização da igre-
ja, lota as missas de domingo, principalmente aquelas
com sermão bem empolado, casa no mês de maio.
[...]
[...] As moças aguardam casamentos e, enquanto
isso, os rapazes frequentam os antigos casarões da
Riachuelo. A prostituição é considerada crime apenas
para as prostitutas. Qualquer mulher rondando as cha-
madas casas de lenocínio, tarde da noite, é levada
à Delegacia de Vigilância e Captura e diariamente
CARLA CRISTINA NACKE CONRADI

cerca de 60 mulheres são detidas por fazerem trottoir.


Lá, sofrem todo tipo de maus tratos e humilhações e
depois são liberadas para continuar a rotina, até nova
prisão. 3

As considerações da autora permitem imaginar o co-


tidiano e os costumes de Curitiba e identificar alguns com-
2 Marion Brepohl de Magalhães. Paraná: política e governo. Curitiba, SEED, 2001. p. 89.
3 Teresa Urban. 1968 ditadura abaixo. Curitiba, Editora Arte & Letra, 2008. p. 55-56; 92.

275
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

portamentos conservadores de homens e mulheres, que não


deixavam de desempenhar os papéis preestabelecidos para
cada identidade de gênero, naquela época. Esse seria o per-
fil dos sujeitos adeptos do Estado repressor. O Paraná, e uma
parte de sua população, dado o inerente conservadorismo,
não teria se indisposto com o novo rumo político e econômi-
co do país até mesmo porque o comunismo, incansavelmen-
te combatido pelos órgãos do Estado, aterrorizava a família
curitibana. A Sociedade de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade – TFP, tinha uma visibilidade considerável na ca-
pital e, para Teresa, não poderia ter sido diferente, “numa ci-
dade tão bem comportada”.4 Em 1968, a política da TFP era
criar meios para impedir a “infiltração comunista” na Igreja
Católica e, para isso, reuniu mais de um milhão e meio de as-
sinaturas, dentre essas, setenta e três mil eram paranaenses.5
A passividade da população do Paraná, no entanto,
pode ser facilmente questionada com uma breve consulta
ao acervo da Delegacia de Ordem Política e Social do Para-
ná, a DOPS-PR. Neste acervo há 218 dossiês individuais de mu-
lheres que foram fichadas por esse órgão no Estado. Diversos
outros dossiês temáticos registravam grande presença femi-
nina na política daquele período. Os inúmeros documentos
A DITADURA CIVIL-MILITAR NO PARANÁ: MEMÓRIAS DE MULHERES MILITANTES

que foram produzidos e reunidos por esse órgão estatal sobre


as atividades de homens e de mulheres que contestavam a
ditadura civil-militar no Estado evidenciam quanto a repres-
são aos movimentos de esquerda foi intensa, comprovan-
do, portanto, que as insurgências contra a ditadura foram
igualmente expressivas. Nesse sentido, observou Marionilde
Magalhães: “ou bem a resistência ao regime militar foi muito
expressiva, ou bem a repressão se tornou uma prática ob-
sessiva, independentemente do risco efetivo oferecido pelos
indivíduos ali indiciados”.6
Com o objetivo de pesquisar a ação política de mi-
litantes paranaenses, entrevistamos muitas mulheres. Estáva-
mos em buscar de conhecer suas histórias de vida, saber os
motivos que as levaram a participar de movimentos de re-
sistência e as atividades que desenvolveram junto às orga-
nizações de esquerda. Procurávamos também conhecer os
4 Idem, p. 90.
5 Idem, p. 68.
6 Marion Brepohl de Magalhães, obra citada, p. 89.

276
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

dilemas, as dificuldades e os sentimentos envolvidos nas ex-


periências de ser mulher, militante, esposa e, por vezes, mãe
em um período tão conturbado. Neste sentido, as entrevistas
tiveram como eixo norteador a militância política durante a
ditadura no Estado.
Todavia, as narrativas das militantes não se restringi-
ram a este tema, pois, para muitas, falar sobre suas ações
políticas era também contar suas histórias particulares, como
por exemplo, sobre maneira como, grávidas ou com filhos
pequenos, realizaram determinada tarefa que lhes havia
sido confiada pelas organizações de esquerda; ou sobre
como mobilizaram aspectos de sua identidade de gênero
para procurarem seus companheiros e familiares, de porta
em porta, nas delegacias.
Algumas entrevistadas, ao narrarem suas experiên-
cias de militantes no Paraná e em outros Estados, possibilita-
ram a identificação de um parâmetro do poder repressivo
da polícia e a diferenciação da ação repressiva em cada
Estado. Um conjunto de situações vividas pelas militantes fez
com que elas considerassem que, no Paraná, o poder re-
pressivo dos agentes da ditadura era menos ostensivo, em
grande medida pelo conservadorismo do Estado. Tal ques-
tão nos despertou para o tema e, assim, recorremos às suas
narrativas, para refletir sobre o período ditatorial no Paraná,
questionando, especificamente, o conservadorismo narrado.

NARRATIVAS DA RESISTÊNCIA

Uma das mulheres a narrar sua experiência foi Clair


da Flora Martins, que iniciou sua atuação política depois de
1964, quando cursava Direito na Pontifícia Universidade Ca-
tólica – PUC – e Letras na Universidade Federal do Paraná
– UFPR. Ela participou de reuniões e discussões políticas em
CARLA CRISTINA NACKE CONRADI

ambas universidades e se identificou com a mobilização es-


tudantil. Nesse período, vinculou-se ao Diretório Acadêmico
de Direito e foi morar na Casa do Estudante Universitário –
CEU. Ambos eram espaços de resistência à ditadura.
As atividades desenvolvidas por Clair no movimen-
to estudantil foram muitas. Ela nos conta que participou
ativamente de todo o processo, ajudando a organizar dois
eventos que ficaram marcados na história da resistência à
277
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ditadura no Paraná: a tomada da Reitoria pelos estudantes,


com a derrubada do busto de Flávio Suplicy de Lacerda,7 e o
comício relâmpago no Centro Politécnico da UFPR, onde os
estudantes enfrentaram a Cavalaria da Polícia, espalhando
bolinhas de gude pela rua.
Clair tornou-se uma liderança política no movimen-
to estudantil no Estado e, posteriormente, fez parte da dire-
ção da Ação Popular – AP –, uma organização de esquerda
formada por militantes estudantis da Juventude Universitária
Católica – JUC. No dia de sua formatura em Direito, ao sair
com o diploma da Reitoria da PUC, os agentes da DOPS esta-
vam à sua espera com uma intimação. Ela deveria compare-
cer àquele órgão para prestar esclarecimentos.
Em sua entrevista, Clair definiu que sua visibilidade
política, pela militância e pela sua liderança, teria desper-
tado a atenção dos agentes da ditadura do Estado. Ela nos
narra que em 1972, ao ser presa em São Paulo, foi transferi-
da para Curitiba e, depois de prestar depoimento ao Fórum
Judiciário, foi liberada. Isso ocasionou um desentendimento
da DOPS-SP com a DOPS-PR. Parece-nos que cada órgão se-
guia uma prática. Em geral, no Paraná, mesmo que a prisão
não tivesse sido feita no Estado, ela era mantida quando o/a
A DITADURA CIVIL-MILITAR NO PARANÁ: MEMÓRIAS DE MULHERES MILITANTES

preso/a era transferido/a. No caso de Clair, isso não acon-


teceu. Ao contrário, ela foi liberada. Por que? Clair era uma
liderança no Estado e, segundo a DOPS, uma subversiva de
alta periculosidade. Então qual seria o motivo de sua libe-
ração? Talvez o legalismo falasse mais alto, pois sem prisão
decretada não se tinha nada contra a militante. Clair, em
sua reflexão, personifica o motivo, que, para ela, estaria no
comportamento diferenciado do juiz auditor Ramiro Motta:
“ele que era uma pessoa bastante liberal e não concorda-

7 Flávio Suplicy de Lacerda, paranaense nascido na cidade da Lapa, foi reitor da Univer-
sidade Federal do Paraná. Em 1964, no governo de Humberto Castelo Branco, foi con-
vidado a assumir o Ministério da Educação e Cultura - MEC, período que formulou a Lei
nº 4.464, de 6 de novembro de 1964, que se tornaria conhecida como Lei Suplicy. A nova
lei transferiu para o âmbito universitário dispositivos da legislação eleitoral, proibindo as
atividades políticas desenvolvidas pelas organizações estudantis e regulamentando a
própria formação dessas organizações. A Lei foi violentamente criticada por ser contrária
à livre atuação dos/as estudantes. Inúmeras manifestações de protesto foram promovi-
das em todo o país contra a Lei Suplicy e em Curitiba os/as estudantes da UFPR, num
ato de protesto, derrubaram o busto que homenageava o ex-reitor Suplicy, localizado na
Reitoria da Universidade Federal do Paraná. FGV-CPDOC. Dicionário Histórico Biográ-
fico Brasileiro. http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/lacerda-fla
vio-suplicy-de (acesso 15/06/2017).

278
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

va com esses métodos utilizados pelo regime; ele falou: Oh,


você pega a mala e suma no mundo. E foi o que eu fiz. Aí
eu fiquei foragida e com prisão preventiva decretada no dia
seguinte”.8
Buscando interpretar essas experiências, Clair com-
parou o Paraná com São Paulo, e estabeleceu um argumen-
to interessante para explicar porque considerava que em
São Paulo a repressão teria sido mais ostensiva:

o Paraná, ele, como eu falei, ele teve um papel des-


tacado nas mobilizações estudantis dos bancários, e
outros seguimentos, a repressão ela atuou aqui repri-
mindo essas manifestações, prendendo inúmeros com-
panheiros, muitos companheiros foram presos, tortura-
dos, inclusive aqui naquele processo da UNE, muitos
companheiros naquele episódio de Ibiúna foram pre-
sos aqui, ficaram por muitos meses presos em Curitiba,
mas se nós formos avaliar talvez o grau da repressão,
da tortura aqui e lá e da repressão com certeza lá é
mais, é maior, porque a presença da repressão ela es-
tava nas ruas, em vários momentos nós presenciamos
as patrulhas da repressão parando veículos, parando
cidadãos nas ruas de São Paulo, coisa que talvez a
gente não vivenciasse aqui em Curitiba ─ essa repres-
são ostensiva em São Paulo e nas outras capitais, havia
uma repressão ostensivamente, né, ostensiva e muito
maior, talvez, do que aqui, em Curitiba.9

Apesar de elencar diversas ações de resistência de


homens e de mulheres militantes, Clair parece ter considera-
do que um Estado era mais repressivo que o outro pela ação
de repressão da polícia nas ruas, fato que ela diz ter observa-
do em São Paulo e não no Paraná.
Outra militante a narrar suas experiências foi Ligia
Aparecida Cardieri. Em seu relato, ela disse ter sentido na
pele o conservadorismo do Paraná. Ligia participou das ativi-
CARLA CRISTINA NACKE CONRADI

dades organizadas pelo movimento estudantil, mas não quis


se filiar a nenhuma organização de esquerda. Sua decisão
de aderir à militância foi tomada pelo entendimento de que
a população deveria saber o que acontecia no país. Para
ela, esse era o caminho que possibilitaria a mudança. Des-

8 Clair da Flora Martins. 70 anos. Entrevista em 11 de julho de 2013, Curitiba. Entrevista-


dora: Carla Cristina Nacke Conradi. Acervo da autora.
9 Idem.

279
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

se modo, a estratégia foi promover um trabalho educativo:


“minha militância estava muito ancorada no trabalho de
educação popular, que eu vou pertencer a um grupo que
adotava o jeito de Paulo Freire e no trabalho de educação
dos oprimidos”.10
Em 1970, Ligia e seu companheiro foram presos em
São Paulo pela polícia política. Ficaram presos por quase um
ano no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Depois da prisão, o
retorno à vida legal não foi fácil. Resolveram mudar-se para o
Paraná em 1976, em busca de formas de se manterem eco-
nomicamente, porém, mais do que isso, para Ligia foi a pos-
sibilidade da retomada da sua militância. Sua participação
política no Paraná começou espontaneamente, reflexo de
suas concepções políticas libertárias, amparadas no senso
de justiça e de seu comportamento questionador. Tais ca-
racterísticas bastaram para que ela fosse considerada sub-
versiva, e denunciada à DOPS do Estado.
A trajetória política de Ligia, no entanto, tem uma
singularidade, pois as constantes perseguições e as seque-
las dos sofrimentos a impulsionaram no sentido de redefinir
a sua militância, atuando em domínios até então inexplo-
rados por ela. Foi presa em São Paulo por ter emprestado o
A DITADURA CIVIL-MILITAR NO PARANÁ: MEMÓRIAS DE MULHERES MILITANTES

apartamento para reuniões do Partido Comunista Brasileiro


– PCB, mas no Paraná ela foi perseguida por ser subversiva,
sem ao menos estar vinculada a alguma organização de
esquerda ou partido. O motivo foi o seu espírito contestador,
“comunista demais para os paranaenses”11. Seus colegas de
trabalho denunciaram Ligia à DOPS por identificá-la como
subversiva. Ela lia o jornal Folha de São Paulo e “pensava
em voz alta”12, expressando críticas às ações do regime au-
toritário. O conservadorismo também foi sentido por Ligia no
contexto de sua prisão em 1978, acusada de ensinar comu-
nismo às crianças de uma escola que tinha um projeto polí-
tico pedagógico alternativo. Sua vida particular foi atingida
e utilizada pelos agentes da repressão. Quando foi presa,
estava na casa de um novo companheiro – mencionado no
jornal como seu “amante”. O episódio tornou pública, até
10 Ligia Aparecida Cardieri. 66 anos. Entrevista em 9 de novembro de 2012, Curitiba. En-
trevistadora: Carla Cristina Nacke Conradi. Acervo da autora.
11 Idem.
12 Idem.

280
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

para sua família, a separação com o antigo marido. Fotos


suas, em que aparecia nua e grávida, foram publicadas nas
páginas de um jornal, caracterizando-a como transgressora
do código de gênero da época. Nas fotos, a imagem que
se sobrepôs foi a de uma mulher nua e não a de uma mulher
grávida, estabelecendo uma conotação sexual, que des-
toava do modelo normativo de maternidade vigente na-
quele momento.
Ligia não estava presente no momento em que suas
fotos foram confiscadas, mas durante o interrogatório ela foi
questionada sobre sua atitude “desrespeitosa” de posar nua
em um momento sagrado da vida de uma mulher, a gravi-
dez. Na edição do Jornal Repórter, de abril de 1978, ela foi
uma das entrevistadas sobre as prisões da Escola Oficina e,
naquele momento, revelou que foi inquirida sobre as fotos:
“Perguntaram-me se eu as mostrava às minhas filhas. Respon-
di que sim. Disseram se eu não considerava isso pernicioso.
Contestei, com veemência. É pernicioso agora que já não
está no meu quarto”.13 Segundo Ferreira, as mulheres, quan-
do interrogadas, “não eram xingadas somente por serem
‘terroristas’; eram duplamente desclassificadas por serem
‘terroristas’ e mulheres – infame combinação para os agen-
tes da repressão”.14 Nesse sentido, no momento em que inter-
rogaram Ligia, o que estava em destaque não era somente
a sua conduta de militante, sua atitude subversiva de partici-
par da criação de uma escola comunista, mas também sua
identidade de gênero.
As militantes, em suas narrativas, expõem que, no
momento das suas prisões, muitos materiais considerados
subversivos foram apreendidos. As mulheres citaram que
perderam livros, documentos das organizações de esquerda
e dos partidos políticos, roupas e outros objetos que foram
associados à sua militância. No caso de Ligia, as fotos não
CARLA CRISTINA NACKE CONRADI

estavam associadas diretamente à sua militância, ou seja,


não tinham relação com suas atuações políticas, mas foram
confiscadas. Para ela, essa seria uma das provas de que o
Paraná era tão conservador que até suas fotos nuas foram
consideradas de alta periculosidade.
13 Idem.
14 Elizabeth F. Xavier Ferreira. Mulheres, militância e memória ─ histórias de vida e histó-
rias de sobrevivência. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 155.

281
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

POLITIZAÇÃO E LIDERANÇA

Duas outras militantes ouvidas na pesquisa foram Eli-


zabeth Franco Fortes e Ana Beatriz Fortes. As duas são irmãs e
tiveram grande parte da escolaridade feita em colégios pú-
blicos, apesar de o ensino inicial ter sido em colégio religioso.
Elizabeth ingressou no Curso de Jornalismo na PUC-PR e, no
terceiro ano do curso, transferiu sua matrícula para a UFPR.
Ana Beatriz iniciou o Curso de Ciências Sociais na UFPR, mas
se mudou para São Paulo e cursou a Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP.
Elizabeth entrou na universidade em 1966, período
em que os estudantes conheciam sua força política pela
mobilização estudantil e em que ela estava “descobrindo
o mundo, o teu mundo é muita ebulição, é muita informa-
ção”15. A adesão ao movimento estudantil foi muito rápida,
“quase uma consequência natural (...) Você tem certeza e
cada vez mais você tem certeza que é aí mesmo”16. Estas
foram a base das convicções políticas de Elizabeth.
Por seu grau de politização, Elizabeth era uma das
lideranças do Diretório Acadêmico Rocha Pombo, da Facul-
dade de Filosofia da UFPR. Foi escolhida com mais quatro es-
A DITADURA CIVIL-MILITAR NO PARANÁ: MEMÓRIAS DE MULHERES MILITANTES

tudantes para ser delegada do Paraná no 30° Congresso da


União Nacional de Estudantes ─ UNE, na cidade de Ibiúna,
em São Paulo. O Congresso ocorreu em 17 de outubro de
1968, para eleger a nova diretoria da UNE. Começou clan-
destino, mas foi descoberto pelos agentes da repressão da
DOPS, que cercaram o local e prenderam 1.240 estudantes
que eram representantes de diversas organizações estudan-
tis do Brasil. Pela primeira vez, Elizabeth foi presa, cadastrada
no fichário dos subversivos da DOPS e, depois de uma sema-
na, remetida para o Paraná, onde foi liberada pelo governa-
dor Paulo Pimentel. Apesar de ter sido liberada no Paraná, a
identidade de militante estudantil ficou conhecida da DOPS,
e ela foi considerada, a partir de então, uma militante peri-
gosa, que deveria ser vigiada e perseguida.
Tempos depois, Elizabeth foi presa ao participar do
encontro de estudantes que ocorreu em um local conheci-
15 Elizabeth Franco Fortes. 70 anos. Entrevista em 20 de abril de 2013, Curitiba. Entrevis-
tadora: Carla Cristina Nacke Conradi. Acervo da autora.
16 Idem.

282
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

do como “Chácara do Alemão”, em Curitiba. Sua situação


se complicou ainda mais. Não havia contra ela um pedido
de prisão preventiva, mas, por ser ela reincidente, acredita-
va que não conseguiria sair livre. Eram tempos de Ato Institu-
cional n° 5 – AI-5 – e a DOPS procurava os principais líderes,
as pessoas que estavam em evidência, os integrantes de Di-
retórios, de Centros Acadêmicos, da UPE. Dos 42 estudantes
aprisionados, apenas 15 foram condenados à prisão, 13 ra-
pazes e 2 moças. Uma delas era Elizabeth. A outra era Judite
Barboza Trindade. Ambas foram condenadas a dois anos de
prisão, a serem cumpridos no Presídio do Ahú, em Curitiba.
Ana Beatriz Fortes começou sua militância política
no movimento estudantil secundarista, quando estudava o
Científico no Colégio Estadual Professor Guido Strauber. O
movimento secundarista não era muito diferente em rela-
ção às bandeiras de luta do movimento estudantil univer-
sitário. Talvez se diferenciassem em relação às estratégias
adotadas, uma vez que cada movimento tinha suas pró-
prias lideranças. Esses movimentos, no entanto, dialoga-
vam, tanto nos espaços públicos das assembleias e reuniões
clandestinas, como no âmbito privado, como a casa, onde
as irmã Ana e Elizabeth discutiam os posicionamentos de
cada organização.
Dada sua atuação engajada, em maio de 1970 Ana
foi presa. O motivo era o suposto envolvimento da estudante
na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares – VAR-Pal-
mares. Ela foi sequestrada e levada para o Quartel da Polícia
do Exército, onde as torturas tiveram início. Ana não recorda
ao certo quanto tempo ficou presa, pois, com a intensidade
dos interrogatórios e da tortura, ela havia perdido a noção
do tempo: “Eu ficava o dia todo no quartel sendo interro-
gada, torturada, levando choque, amarravam, punham a
arma na cabeça, e o objetivo principal era isso, quem tinha
CARLA CRISTINA NACKE CONRADI

dado essa carta para você e para quem era essa carta”17.
O motivo real da prisão somente foi descoberto por
Ana durante os interrogatórios. Ela tinha emprestado um livro
de teor político a um aluno do colégio, ele foi preso e o livro
estava entre os seus pertences. Sob tortura, contou que havia
emprestado de Ana, e como ele era ligado ao VAR-Palma-
17 Ana Beatriz Franco. 65 anos. Entrevista em 20 de abril de 2013, Curitiba. Entrevistado-
ra: Carla Cristina Nacke Conradi. Acervo da autora.

283
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

res, os agentes fizeram o que estavam acostumados a fazer:


associar as evidências.
A maior parte da atuação da VAR-Palmares foi no oes-
te do Paraná, sendo o Batalhão de Fronteira de Foz do Iguaçu
o local em que muitos/as militantes dessa organização foram
presos e torturados. Assim, Ana foi transferida, em um pequeno
avião, para esse quartel, e as torturas continuaram: “Eu tinha
o cabelo bem comprido, o cabelo ficava caído, eles punham
um balde para o choque ficar mais forte e também ficavam
torturando nesse esquema, choque, pau de arara, interroga-
tório”18. Depois de algumas semanas, ela voltou para a DOPS
de Curitiba, e depois foi liberada para voltar para casa. Ana
foi escoltada pela polícia até em casa. Seu pai estava à sua
espera, “chegaram lá, ele [um policial] me levou para casa e
falou para o meu pai: “Ah! Desculpa. Foi engano”19.
Talvez eles tivessem mesmo esse entendimento. Tudo
havia sido um engano. Ela não era uma militante da luta ar-
mada da VAR-Palmares, quiçá tivesse algum envolvimento
com a luta contra a ditadura.
Possivelmente, o passado de Ana Beatriz, que foi
presa e torturada em Curitiba e em Foz do Iguaçu, seja des-
conhecido dos paranaenses, que, descrentes até na atuali-
A DITADURA CIVIL-MILITAR NO PARANÁ: MEMÓRIAS DE MULHERES MILITANTES

dade em relação à violência da ditadura, acham que o re-


gime foi brando no Estado, e contra ele não se insurgiram os
paranaenses. Em seu relato, Ana narrou que um colega de
natação, já de meia idade, ficou pasmo ao saber que ela
havia sido uma das militantes torturadas pela ditadura. O real
motivo do estranhamento dele foi a descoberta de que no
Estado houve repressão e tortura aos/as militantes:
engraçado que outro dia eu estava falando com um
colega meu de natação, eu contei que eu tinha sido
presa e torturada e ele: “Nossa, eu não sabia. Eu sabia
que tinha tortura no Brasil, mas eu não sabia que no
Paraná teve tortura, nossa, nem imaginava que aqui
no Paraná teve tortura”.20

A princípio, Ana Beatriz recebeu essa manifestação


do colega com bom humor e com certa indignação. Para
18 Idem.
19 Idem.
20 Idem.

284
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ela, ele era apenas um “ser sem noção”. Mas, em seguida,


ela própria parecia concordar: “Mas a gente era uma mino-
ria mesmo, Curitiba era uma cidade pequena e a gente era
minoria”21. O desconhecimento do colega já não parecia
tão absurdo. Nesse momento, sua irmã Elizabeth rebateu a
declaração: “Provinciana ainda, mas, mesmo assim, não era
pouca gente, cada passeata que tinha era gente que não
acabava mais, muita gente nas passeatas”22.
Parece que Elizabeth não concordava com a irmã.
Para ela, a violência política da ditadura até poderia ter tido
um grau diferente, mas havia muitos homens e muitas mulhe-
res militantes na luta contra a repressão no Estado do Paraná.
Essas reflexões foram produzidas no momento da narrativa.
Ambas recordavam juntas, em uma entrevista que decidi-
ram dar em conjunto; mas cada uma tinha sua opinião sobre
o assunto.
Ao analisar as reflexões de Clair, de Ligia, de Ana
Beatriz e de Elizabeth, não podemos deixar de perceber o
quanto o tempo presente influenciou na maneira como essas
mulheres rememoraram o tema. Na atualidade, após um re-
cuo ao passado, para Clair a repressão dos agentes políticos
da ditadura no Paraná teria sido branda. Talvez a militante
estivesse considerando isso por ter sido liberada pela DOPS-
-PR. Todavia, anos antes, Clair precisou seguir para a clandes-
tinidade no mesmo dia que ela se formou em Direito na UFPR,
dado o controle e a perseguição de sua vida pelos agentes
desse mesmo órgão repressor. A opção pela segurança da
vida na clandestinidade evidencia que a ditadura, naquele
momento, de forma alguma parecia ser branda.
Para Lígia, o conservadorismo do Estado teria sido
tão ostensivo que aumentou o grau de repressão sobre os
homens e sobre as mulheres. Para Ana Beatriz, havia poucos
homens e poucas mulheres militantes engajados/as, con-
CARLA CRISTINA NACKE CONRADI

sequentemente poucos espaços de resistências também.


Assim, portanto, apesar de ela mesma ter participado do
movimento estudantil secundarista e da Ação Popular, con-
fundida como uma militante da VAR-Palmares, ou seja, ape-
sar de ter transitado em múltiplos espaços de atuação de
21 Idem.
22 Elizabeth Franco Fortes. 70 anos. Depoimento em 20 de abril de 2013, Curitiba. Entre-
vistadora: Carla Cristina Nacke Conradi. Acervo da autora.

285
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

resistência no Estado, constrói uma ideia diferente. Já para


Elizabeth, que militou no mesmo momento que Ana Beatriz,
era imensa a participação de homens e de mulheres na resis-
tência contra a ditadura no Estado.
A conjuntura da repressão militar do Paraná foi re-
memorada pelas impressões do presente, pois como salienta
Beatriz Sarlo “pela memória o passado não só vem à tona
das águas presentes, misturando-se com as percepções ime-
diatas, como também empurra, ‘desloca’ estas últimas, ocu-
pando o espaço todo da consciência”.23 Assim, não sabe-
mos o quanto, entre o passado vivido e o presente em que
ele é narrado, a tese de que no Estado do Paraná a ditadura
foi branda marcou a narrativa das militantes.
Nesse sentido, se partimos do pressuposto de que
o conservadorismo inato do paranaense resultou no atrela-
mento e cooperação da população ao governo da ditadu-
ra, poderíamos aferir que, quanto mais conservador o Estado
era, maior teria sido o seu aparato repressor e seu controle
de vigilância e, portanto, respectivamente, maior seria a re-
pressão sobre homens e mulheres que não pertenceram à
parcela da população adepta a ditadura.
A DITADURA CIVIL-MILITAR NO PARANÁ: MEMÓRIAS DE MULHERES MILITANTES

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As experiências transgressoras de homens e mulheres


que lutaram contra o autoritarismo da ditadura evidenciam,
no presente, que o Paraná foi palco, no passado, de resistên-
cia, de guerrilha e de militância. No Estado, toda uma gama
de categorias e sujeitos estiveram sob a vigilância da DOPS,
todos/as foram considerados/as subversivos/as e vigiados/as
pela repressão. Segundo Milton Ivan Heller, “a repressão no
Paraná atingiu centenas de pessoas, entre políticos, milita-
res, estudantes, intelectuais e dirigentes sindicais”.24 Podería-
mos acrescentar à afirmação do autor, que novas pesquisas
sobre a ditadura no Estado têm mostrado que milhares de
homens e mulheres foram investigados/as, perseguidos/as,
sequestrados/as, torturados/as e alguns/as mortos/as.
23 Beatriz Sarlo. Tempo passado – cultura da memória e guinada subjetiva. Campinas:
Editora Unicamp, 2007. p. 93.
24 Milton Ivan Heller. Resistência democrática: a repressão no Paraná. Rio de Janeiro: Paz
e Terra; Curitiba: Secretaria de Cultura do Estado do Paraná, 198. p. 35.

286
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

As narrativas das mulheres mostram que essas militan-


tes foram agentes históricos e sociais que tinham como re-
ferência um dado grupo, participando de um determinado
projeto coletivo, que era o da resistência à ditadura. Com
suas memórias, construíram um lugar político a partir do ato
de relembrar o passado de militância. Elas são sujeitos com
autobiografias em construção, que fizeram escolhas e en-
frentaram os desdobramentos. Este é um dos aspectos que
gostaríamos de enfatizar: a história da ditadura civil-militar no
Estado deve ser escrita através de narrativas de homens e
mulheres que participaram dessa história e foram, assim, por
ela modificados/as.

CARLA CRISTINA NACKE CONRADI

287
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

EXCLUÍDOS DA XV:
VINTE ANOS DE REGIME MILITAR
OU A POÉTICA DA POBREZA
Artur Freitas

A resistência cultural aos vinte e um anos de regime


militar (1964-1985) foi um dos mais relevantes capítulos da
história das artes no Brasil. No campo da visualidade, o ima-
ginário político-afetivo da arte de vanguarda fez da utopia
revolucionária o centro nervoso das proposições poéticas
experimentais. Ao longo dos anos 1980, o processo de rede-
mocratização propiciado pela abertura política foi acompa-
nhado por diversas manifestações artísticas de cunho com-
bativo, público e participativo.1
No contexto paranaense, merece destaque a esse
respeito a atuação do coletivo Sensibilizar, ainda pouco estu-
dado pela historiografia da arte e da cultura no Brasil.2 Funda-
do em 1983 durante a Semana de Artes Plásticas do Encontro
de Cultura da Fundação Cultural de Curitiba3, o grupo se no-
tabilizou pela proposição de performances coletivas de viés
1 Cabe aqui um agradecimento especial ao artista Sergio Moura, pela entrevista con-
cedida, aos funcionários do Setor de Pesquisa do Museu de Arte Contemporânea do
Paraná, pelo acesso à documentação, e à Rosane Kaminski, pela leitura prévia deste
texto.
2 Como exceção que confirma a regra, merece menção a ótima pesquisa de Tatiane
ARTUR FREITASI

Bissoli sobre o coletivo Sensibilizar: Tatiane Bissoli. Grito Manifesto: estética e política
na ação do grupo Sensibilizar (1984), Monografia (Curso História, Memória e Imagem),
UFPR, Curitiba, 2015.
3 Jair Mendes citado por Sergio Moura e outros. Sensibilizar: arte na rua. Curitiba: Im-
prensa Oficial, 1984; Sergio Moura. “Entrevista a Artur Freitas”, Curitiba, 25/01/2017.

289
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

crítico e colaborativo, via de regra realizadas diretamente no


espaço urbano. No auge de sua atividade, o Sensibilizar che-
gou a contar com a participação de cerca de 40 pessoas,
entre artistas plásticos, fotógrafos, jornalistas e colaborado-
res em geral.4 Dentre todos os envolvidos, merece destaque
o artista Sergio Moura, idealizador do coletivo e responsável
desde o início pela coordenação dos eventos. Pela força éti-
co-poética de suas ideias, marcadas pelo imaginário vitalis-
ta das vanguardas, Sergio reuniu à sua volta um ativo grupo
de artistas paranaenses, entre os quais Ailton Silva (o Carú),
Alfi Vivern, Djalmir Alves, Genésio Siqueira Júnior, Jarbas San-
tos Schünemann e Walter Montenegro Júnior. Apresentadas
como grandes happenings muldimidiáticos, as obras do co-
letivo apostavam na recuperação da capacidade criadora
do público participante, e com ela se opunham à alienação
política e ao embrutecimento das relações humanas no âm-
bito do capitalismo avançado. Entre 1983 e 1987, enquanto
esteve ativo, o grupo realizou pelas ruas de Curitiba um ex-
tenso rol de ações que agenciavam temas diversos, como a
educação dos meninos de rua, a vida árdua dos sem-teto e
o caráter público da experiência estética, expandida para
EXCLUÍDOS DA XV: VINTE ANOS DE REGIME MILITAR OU A POÉTICA DA POBREZA

além dos dispositivos museológicos tradicionais.


Em 1984, por ocasião dos 20 anos de vigência da dita-
dura militar no Brasil, o Sensibilizar planejou uma obra que mar-
caria época. Inspirados pela recente retomada do espaço
público do movimento Diretas Já, e motivados pela denúncia
do intenso contraste social de um país em plena crise econô-
mica, os membros do Sensibilizar decidiram realizar uma ação
urbana e coletiva que envolvesse os moradores da Vila Pinto,
atual Vila das Torres, já à época uma das maiores favelas de
Curitiba. De acordo com Sergio Moura, a ideia do evento sur-
giu do contato direto com um morador daquele espaço, um
catador de materiais recicláveis que passava com frequência
na frente do ateliê do coletivo, situado na Rua Desembarga-
dor Westphalen, na região central da cidade.5 A partir de en-
tão, o grupo elegeu o carrinho de coleta como “o principal
motor da obra” – uma espécie de emblema ético-poético da
4 Sergio Moura citado por Guilherme Guinski. Brincadeira de criança vira livro. Laborató-
rio da notícia, Curitiba, 17 maio 2005.
5 Sergio Moura. “Entrevista a Artur Freitas”, obra citada.

290
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

proposta como um todo.6 Depois de apresentarem o projeto


básico da ação para os moradores da vila, os membros do
coletivo passaram a frequentar a favela pelos próximos três
meses, entre janeiro e março de 1984.7 Nesse meio tempo,
artistas e carrinheiros reuniram-se três vezes por semana para
planejar em conjunto a dinâmica do ato. Irônica e beligeran-
te, a ideia era realizar o evento durante o fatídico dia 31 de
março, aniversário exato dos 20 anos do golpe de 1964. Reple-
ta de sentidos e evocações, a ação, veremos agora, foi um
poderoso libelo contra os regimes de opressão.

O DIA D
Era sábado cedo, dia 31 de março de 1984.8 A som-
bra ainda longa das coisas anunciava uma promissora ma-
nhã de sol em Curitiba. A Vila Pinto ia acordando. A quietude
matutina dos barracos aos poucos se eriçava num pequeno
alvoroço. Dezenas de carrinhos vazios de coleta aguarda-
vam em fila, estacionados sobre uma longa rua de terra.

Coletivo Sensibilizar, Grito Manifesto, 31 mar. 1984. Evento


urbano realizado em Curitiba. Disponível em: CD-ROM,
arquivos com imagens do evento, Curitiba, s.d., Setor de
Pesquisa do Museu de Arte Contemporânea do Paraná.

6 Idem.
7 Ailton Silva citado por Joel Sampaio. Artistas promovem novas intervenções visuais em
Curitiba para lembrar o golpe, Folha de Londrina, 31/03/1984.
8 Parte considerável das descrições do evento apresentadas abaixo são oriundas da
ARTUR FREITASI

análise da ampla documentação fotográfica (cerca de 50 imagens) disponível nas ma-


térias de jornal da época, nas imagens disponibilizadas por Sergio Moura para o autor
e, sobretudo, no livro Sensibilizar: arte na rua, acima mencionado. De resto, as demais
informações de natureza textual e/ou oral serão devidamente referenciadas nas notas
de rodapé subsequentes.

291
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Simples mas funcionais, os carros exibiam a forma


de praxe: grandes engradados de tábuas sobre rodas. Era
um dia especial. Como combinado, os membros do coleti-
vo Sensibilizar, que haviam chegado cedo ao local, acom-
panhavam de perto a movimentação, fotografando o
evento e auxiliando na organização.9 Um casal sorriu para a
foto, ambos com as mãos postadas num carrinho. Algumas
crianças se aproximaram, curiosas. O clima era familiar e um
pouco festivo. Uma parte dos moradores da comunidade
recebeu dos artistas camisetas especialmente preparadas
para o dia. Com a palavra “Sensibilizar” estampada no pei-
to, os carrinheiros se aprumaram e a fila começou a andar.
No total, eram cerca de 50 a 150 catadores de papel, cada
qual com seu carrinho.10 Pé ante pé, a Vila Pinto logo ficou
para trás e a insólita marcha ganhou as ruas rumo ao centro
da cidade.
Um carro de bombeiros e um outro de polícia, pre-
viamente contatados, escoltavam a passeata, gerenciando
o trânsito.11 Três quilômetros depois, carrinheiros, artistas e de-
mais acompanhantes chegaram à Praça Santos Andrade,
na região central. Da ação à reflexão, a caminhada deu lu-
EXCLUÍDOS DA XV: VINTE ANOS DE REGIME MILITAR OU A POÉTICA DA POBREZA

gar a uma breve pausa para descanso e diálogo. Era preciso


decidir sobre os próximos passos. Ponderar as estratégias e
ações subsequentes. Com os carrinhos estacionados dian-
te da escadaria do prédio histórico da Universidade Federal
do Paraná, os participantes formaram um grande círculo de
conversa. Eram nove horas da manhã.12
Plano traçado, a passeata prosseguiu rumo à cé-
lebre região da Boca Maldita, situada nas imediações da
Praça Osório, também no centro de Curitiba. Sob escolta
de policiais à pé, os carrinheiros percorreram em fila indiana
9 Sergio Moura. “Entrevista a Artur Freitas”, obra citada.
10 O número de carrinhos e carrinheiros varia conforme a fonte. De acordo com algumas
matérias de jornal da época, “cerca de 50 catadores participaram da ação”. Nas palavras
de Sergio Moura, todavia, “havia bem mais de 100 carrinhos, talvez até passando de
150”. Nos registros fotográficos do evento, as fotos com enquadramento mais amplo
mostram pouco mais de 40 carrinhos, embora a fila de carrinhos se prolongue para fora
das imagens. Respectivamente em: “Sensibilizar protesta com Monumento ao Lixo”,
Tribuna do Paraná, Curitiba, 1º/04/1984; “Na XV, passeata de artistas e catadores”, O
Estado do Paraná, Curitiba, 1º/04/1984; Sergio Moura. “Entrevista a Artur Freitas”, obra
citada.
11 Sergio Moura. “Entrevista a Artur Freitas”, obra citada.
12 Joel Sampaio, obra citada.

292
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

todas as seis quadras pedestrianizadas do calçadão da Rua


XV de Novembro, logradouro símbolo da cidade.

Coletivo Sensibilizar, Grito Manifesto, 31 mar. 1984. Evento urbano


realizado em Curitiba. Disponível em: Sergio Moura (e outros).
Sensibilizar: arte na rua. Curitiba: Imprensa Oficial, 1984.

Foi um momento revelador. De uma hora para ou-


tra, a invisibilidade social da periferia dava lugar a um cor-
po estranho mas ostensivo, uma cobra serpenteante que
ousava atravessar impune, como uma verdadeira força co-
letiva, a artéria central da capital paranaense. Alguma coi-
sa parecia fora da ordem. Um pequeno grupo de crianças
pobres disputou a atenção de um fotógrafo. Adiante, um
carrinheiro retardou o passo para exibir um cartaz do coleti-
vo Sensibilizar em suas mãos. Encadeados numa inesperada
ARTUR FREITASI

corrente de carrinhos, os catadores empurraram adiante


seus instrumentos de trabalho, e com eles cobraram passa-
gem entre policiais e transeuntes.
293
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Em pouco tempo, o alvo simbólico foi atingido. De-


pois de seis quadras de navegação, por assim dizer, a Boca
Maldita surgiu como o ponto de deságue, a foz de um rio de
gente anônima e de sonhos inconfessos, o maior palco da
urbe transfigurado em estuário dos excluídos. Alguns mem-
bros do coletivo Sensibilizar aguardavam a passeata no lo-
cal.13 Diante da terra prometida, os carrinhos foram dispostos
lado a lado na parte mais larga da Boca, bloqueando parte
do trânsito de pedestres, sempre intenso na região. Estaciona-
dos com capricho, os carros de coleta desenharam um vasto
paredão circular, logo alongado numa espécie de ferradura
que isolava uma área do calçadão em seu interior. Atravan-
cado pelo bloqueio, o tecido da urbe foi ativado pela pro-
clamação moral dos despossuídos. À revelia do Estado e da
sociedade, uma forma de vida marginalizada declarou sua
existência, e o anel distante e desassistido da periferia fechou
seu próprio círculo no coração da cidade. À semelhança
das desobediências civis, um dispositivo estético se anunciou
em meio ao caos do espaço público. O assombro era certo.
Os transeuntes diminuíram o passo. Ciclistas interromperam a
pedalada matinal. A polícia permaneceu a postos, acompa-
EXCLUÍDOS DA XV: VINTE ANOS DE REGIME MILITAR OU A POÉTICA DA POBREZA

nhando tudo à distância. Ao cabo de instantes, um público


tão eclético quanto espontâneo foi se avolumando ao redor
da instalação.
Uma operação teve início. Juntos, catadores e artis-
tas começaram a carregar um conjunto de cubos vazados
de madeira. Confeccionado pelo coletivo Sensibilizar, o ma-
terial, montado com pedaços de caixotes, havia sido pre-
viamente transportado de automóvel para a Boca.14 Eram
seis peças no total: três cubos menores, com cerca de um
metro de aresta, e três maiores, com a altura aproximada de
uma pessoa. O transporte das peças mais volumosas exigia
o esforço conjunto de pelo menos quatro homens. O públi-
co acompanhava atento. Todos os cubos foram preenchidos
com dezenas de sacos de lixo amarelos recheados de jornal
amassado.15 As peças foram arrastadas, erguidas, reposicio-
nadas. Além de planejamento prévio, era preciso força e
13 Sergio Moura. “Entrevista a Artur Freitas”, obra citada.
14 Idem.
15 “Sensibilizar protesta com Monumento ao Lixo”, obra citada; Sergio Moura. “Entrevista a
Artur Freitas”, obra citada; Sergio Moura e outros. Sensibilizar: arte na rua, obra citada, p. 71.

294
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

cuidado na montagem. O trabalho em equipe ia dando re-


sultado. Ladeados pelos cubos menores, os três cubos maio-
res foram empilhados no centro da ferradura de carrinhos,
formando uma grande coluna de vários metros de altura
em meio ao calçadão. Batizado de Monumento do Lixo16, o
imenso totem podia ser visto à distância.

Coletivo Sensibilizar, Grito Manifesto, 31 mar. 1984. Evento urbano


realizado em Curitiba. Disponível em: Sergio Moura (e outros).
Sensibilizar: arte na rua. Curitiba: Imprensa Oficial, 1984.

Simultaneamente, artistas e catadores distribuíram


centenas de cópias em xerox de um manifesto ao público.17
Assinado por quatro integrantes do coletivo Sensibilizar, o tex-
to, sintomaticamente intitulado 31 de Março 20 Anos18, fazia
menção às nefastas duas décadas de duração da ditadu-
ra militar no Brasil, cujo aniversário se completava naquele
dia exato. Finalizada a montagem do Monumento do Lixo,
os participantes do ato deram início à leitura pública do ma-
nifesto. Diante de todos, carrinheiros e artistas entoaram em
uníssono – com “voz teatral e em coro”19 – um grito de repú-
dio ao governo autoritário. Como uma espécie de oração
profana, o ritual de leitura associava os anos de repressão ao
avanço endêmico da pobreza no país.
16 Joel Sampaio, obra citada; “Sensibilizar protesta com Monumento ao Lixo”, obra citada;
“Na XV, passeata de artistas e catadores”, obra citada.
17 Sergio Moura. “Entrevista a Artur Freitas”, obra citada; “Sensibilizar protesta com Monu-
mento ao Lixo”, obra citada; “Na XV, passeata de artistas e catadores”, obra citada.
ARTUR FREITASI

18 Sergio Moura; Ailton Silva (Carú); Jarbas Schünemann; Genésio Siqueira Júnior.
“Manifesto 31 de março 20 anos”, texto datilografado, assinado, folha única, Curitiba,
31/03/1984 (disponível no Setor de Pesquisa do MAC-PR).
19 Sergio Moura. “Entrevista a Artur Freitas”, obra citada.

295
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

“Palavras, traição, hipocrisia, perseguição e anos se-


guidos de medo. Castração das liberdades humanas. Golpes
políticos impelem as pessoas à corrupção e desintegração
social. A violência rasteja nas cidades, massacrando até ino-
centes. A pobreza avança de norte a sul”.20 Foram essas as
primeiras palavras proferidas pelo corpo coletivo. O públi-
co ouvia de perto. A TV filmava o evento. O sorriso triste da
ditadura escancarava seus dentes podres. “Em 20 anos de
imposição”, prosseguiram os presentes, “não descobrimos o
caminho adequado. O povo está mais pobre do que nunca”
e, “sem perspectivas, logo estarão miseráveis”.21 Reflexão e
sensibilidade. Era essa a aposta, ainda que circunstancial,
de um ato poético que, como aquele, entoado pela alian-
ça entre anônimos e artistas no espaço público, presumia a
força também moral dos dispositivos estéticos. Mais do que
propriamente uma instalação ou uma intervenção no espa-
ço urbano, o ato era uma performance coletiva, e como tal
chamava para si a responsabilidade moral da vida – já que,
nessa chave, o objeto de arte não era bem um objeto, como
uma escultura ou um desenho, mas sim um outro ser humano,
ou seja, um semelhante que, como nós, espera o tratamento
EXCLUÍDOS DA XV: VINTE ANOS DE REGIME MILITAR OU A POÉTICA DA POBREZA

de um sujeito. No âmbito discursivo do manifesto, que afinal


refletia os pressupostos ético-estéticos da ação, a liberda-
de criativa surgia como uma precondição para a liberdade
subjetiva, sensível, e a vida material não deixava de ser uma
condição necessária à vida do espírito. “Enquanto os indiví-
duos não encontrarem sua própria liberdade”, concluíram os
participantes, eles “serão escravos fáceis, submissos, subor-
nados, derrotados, fracassados. É imperativo que as pessoas
reflitam sobre a estranha realidade nacional. Necessitamos
urgentemente cultivar a sensibilidade criadora”.22 O público
aplaudiu com entusiasmo.23
Com o fim da leitura, os membros do coletivo Sen-
sibilizar começaram a entrevistar os presentes por meio de
um questionário previamente elaborado.24 Inquerido sobre o
20 Sergio Moura; Ailton Silva (Carú); Jarbas Schünemann; Genésio Siqueira Júnior. “Mani-
festo 31 de março 20 anos”, obra citada.
21 Idem.
22 Idem.
23 Sergio Moura. “Entrevista a Artur Freitas”, obra citada.
24 Idem.

296
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

futuro da sociedade brasileira após duas décadas de regi-


me militar, um entrevistado foi enfático: “Acho que a nossa
sociedade está amedrontada pelo autoritarismo”.25 Toda-
via, embora o medo da repressão tenha sido mencionado
em outras ocasiões, o fato é que a maior parte das respos-
tas girou ao redor de aspectos macroeconômicos, como a
concentração de renda e o avanço da pobreza nacional.
Nesses 20 anos de governo, afirmou um entrevistado, o que
se viu foi “só decadência; o povo cada vez mais miserável”.26
Um carrinheiro, também entrevistado, era a prova viva dos
alarmantes índices de desigualdade social:
Eu acho que nós encontramos [com esta manifesta-
ção] um meio de refletir o que está acontecendo com
o povo brasileiro. O povo brasileiro sai de casa, diga-
mos, na minha condição, desempregado, sem saber
o que fazer e [vai] procurar papel. [...] A gente sai e
fica andando o dia inteiro, caminha na base de doze
horas por dia para ganhar Cr$ 1.000,00, às vezes nem
isso. E a família passando fome em casa e a gente se
desesperando cada vez mais.27

O vigor simbólico do evento, à revelia dos interesses


apartidários da proposta, acabou atraindo as forças políticas
tradicionais. Aproximando-se do ato, o vereador do PMDB
Ivan Ribas pretendeu, sem a menor cerimônia, associar-se às
demandas do grupo. “Preocupados em não vincular a ma-
nifestação a algum partido político, o grupo ‘Sensibilizar’ ten-
tou inutilmente convencer o vereador Ivan Ribas (PMDB) a se
afastar da passeata”.28 De acordo com Sergio Moura, “nós
chegamos junto a ele e esclarecemos que nossa bandeira
única era a Arte e não tínhamos nenhum vínculo partidário
político senão com nós mesmos. Foi suficiente para ele não
incomodar no local da ação”.29 Entrevistado na ocasião pelo
coletivo, o vereador mostrou-se solidário à manifestação. “A
maioria desse pessoal” – ponderou, em referência aos cata-
dores de papel – é gente “da lavoura, pessoal que tinha até,
25 Citado por Sergio Moura e outros. Sensibilizar: arte na rua, obra citada, p. 62.
26 Citado por idem, p. 63.
ARTUR FREITASI

27 Citado por idem, p. 45.


28 “Sensibilizar protesta com Monumento ao Lixo”, obra citada; “Na XV, passeata de artis-
tas e catadores”, obra citada.
29 Sergio Moura. “Entrevista a Artur Freitas”, obra citada.

297
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

talvez, seu pedacinho de terra”, mas que de lá “foram enxo-


tados por essa política econômica”.30 Na prática, eles “foram
enxotados para as cidades onde, sem outro meio de poder
sobreviver, são obrigados a catar papel. Mas o pior de tudo”,
concluiu, “é que eles continuam a ser explorados por pessoas
intermediárias” que compram “seus produtos a preço vil”.31
A leitura era coerente. Entre outros motivos, a con-
centração da propriedade de terra, a mecanização da la-
voura, os altos índices de desemprego e a falta de qualifica-
ção operária eram alguns dos fatores que, por vias diretas ou
indiretas, forçavam os migrantes rurais a sobreviver por meio
do lixo das grandes cidades.32 Além disso, a exploração dos
intermediários, mencionada pelo vereador, foi talvez a pauta
mais urgente levantada pelos próprios carrinheiros, que, va-
lendo-se da presença da imprensa na Boca Maldita, reivin-
dicaram melhores condições de trabalho. “Os catadores de
papel”, de acordo com uma reportagem, “apesar de não
entenderem bem o sentido do ato público, aproveitaram
para reivindicar melhor preço para o papel, e uma forma de
evitar os intermediários, a fim de conseguir repassar o produto
arrecadado diretamente às fábricas”.33 A sujeição era óbvia.
EXCLUÍDOS DA XV: VINTE ANOS DE REGIME MILITAR OU A POÉTICA DA POBREZA

Muitas vezes impossibilitados, por simples carência material,


de construir o próprio carrinho, os catadores dependiam em
sua maioria do empréstimo de carros feito pelos depósitos
de papel, que em contrapartida, como intermediários, não
apenas fixavam o baixo preço do material coletado, como
também exigiam exclusividade na venda.34
O evento foi chegando ao fim. Da Vila Pinto aos jor-
nais, a ação havia cumprido um percurso completo e expan-
sivo. Um totem de lixo em plena Boca Maldita, a presença
ostensiva dos carrinhos de coleta enfileirados, um manifesto
distribuído, a alusão deliberada aos desmandos da ditadura,
o coro coletivo de catadores e artistas, as entrevistas com
30 Ivan Ribas citado por Sergio Moura e outros. Sensibilizar: arte na rua, obra citada, p. 62.
31 Ivan Ribas citado por idem, p. 62.
32 Para mais informações sobre o assunto: Tatiane Bissoli. obra citada; Veraluz Zicarelli
Cravo; Marília Kraemer. “Catar papel: trabalho necessário?”, Boletim do Instituto Históri-
co, Geográfico e Etnográfico Paranaense, Curitiba, v. XL, 1983; Antônio de Pádua Bosi.
“A organização capitalista do trabalho ‘informal’: o caso dos catadores de recicláveis”,
Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 67, jun. 2008.
33 “Sensibilizar protesta com Monumento ao Lixo”, obra citada.
34 Veraluz Zicarelli Cravo; Marília Kraemer, obra citada, p. 174-175.

298
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

o público e a voz na imprensa: o recado, em resumo, esta-


va dado. Ao final da manhã, os carrinheiros desmontaram
o Monumento do Lixo, o público dispersou e o material do
totem foi levado pelos próprios catadores para a comerciali-
zação.35 Fim de ato. Dali em diante, a obra, conhecida como
Grito Manifesto, existiria apenas como registro e memória.

“CIDADE MODELO” E TECNOCRACIA:


ENTRE O LIXO E A MISÉRIA

O jornalista Joel Sampaio publicou um artigo sobre o


ato antes mesmo de sua realização, no próprio dia 31 de mar-
ço de 1984.36 A ideia era dar sentido e visibilidade ao evento.
Na matéria, Ailton Silva, o Caru, integrante do coletivo Sensi-
bilizar e um dos idealizadores da empreitada, revelou parte
das estratégias desenvolvidas, bem como alguns dos propó-
sitos poéticos e ideológicos da ação. Nas suas palavras:
Estamos a três meses trabalhando neste projeto. A
preocupação é de abordar o 31 de março, os vin-
te anos de golpe, e quando estudamos o que fazer
chegamos ao catador de lixo, responsável por reco-
lher o detrito urbano. Seu trabalho é muito importante,
mas eles não são reconhecidos como seres sociais. O
catador de lixo é um símbolo desse projeto. Além da
preocupação plástica com a passeata e o monumen-
to, queremos sensibilizar a população para que veja
o catador no seu papel, como qualquer profissional.37

A solidariedade ética com o Outro fez do Grito Ma-


nifesto uma espécie de partilha política do sensível. Imanta-
dos num corpo único, artistas e catadores compartilharam
os prazeres e os riscos públicos de uma performatividade co-
mum, ainda que temporária e evidentemente marcada por
dissonâncias sociais internas. De todo modo, apesar do ine-
gável desnível socioeconômico entre artistas da classe mé-
dia e moradores da Vila Pinto, o fato é que a união simbólica
daquele corpo coletivo, sem dúvida efetiva, revelava a exis-
tência de um mesmo investimento afetivo na forma-protesto.
ARTUR FREITASI

35 Sergio Moura e outros. Sensibilizar: arte na rua, obra citada, p. 71; Sergio Moura. “En-
trevista a Artur Freitas”, obra citada.
36 Joel Sampaio, obra citada.
37 Ailton Silva citado por idem.

299
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

De acordo com Caru, “o objetivo fundamental [da ação] é


a crítica social”, ou seja, denunciar o “atual estado do país
como resultado destes vinte anos. A gente quer chamar a
atenção da população, assim como também levantar a
bandeira do próprio catador na sociedade”.38
Na sequência da reportagem, Joel Sampaio arriscou
uma interpretação política mais abrangente quando afirmou
que o Monumento do Lixo foi planejado “para lembrar da
chamada Revolução de 64, que veio para tirar o país das
mãos do comunismo internacional, segundo se alegou, mas
acabou jogando a todos nas mãos da tecnocracia e do ca-
pitalismo internacional”.39 Embora genérica, a interpretação
do jornalista evocava, ainda que por vias indiretas, um im-
portante aspecto do Grito Manifesto. No tempo reduzido de
uma manhã, dezenas de moradores da favela construíram
juntos um totem de lixo e pobreza no coração da Curitiba
“cidade modelo”, em pleno calçadão da Boca Maldita, na
célebre Rua XV de Novembro, logradouro que sob muitos
aspectos simbolizava o sucesso, falacioso e excludente, do
modelo tecnocrático de desenvolvimento fomentado pela
ditadura.
EXCLUÍDOS DA XV: VINTE ANOS DE REGIME MILITAR OU A POÉTICA DA POBREZA

Nomeado pelo governador José Richa, Maurício


Fruet, do PMDB, assumiu a prefeitura de Curitiba no início
de 1983, pondo fim ao longo ciclo de governos sucessivos
da ARENA, então responsável pela difusão da ideia de uma
Curitiba-modelo. Todavia, embora Fruet tivesse prometido re-
ver os instrumentos de planejamento urbanístico das gestões
anteriores, o fato é que a capital paranaense ainda simboli-
zava, no plano político, o propalado sucesso da moderniza-
ção autoritária.40 Durante o regime militar, os governos locais
de Curitiba e do Paraná deram preferência ao exercício da
competência técnica. Baseada num modelo autoritário de
desenvolvimento, a rápida transformação política do Paraná
representava um verdadeiro “triunfo da tecnoburocracia”.41
Em âmbito municipal, as reformas administrativas da capital
paranaense indicavam uma renovação no quadro político,
38 Ailton Silva citado por idem.
39 Joel Sampaio, obra citada.
40 Isabel Cristina Costa. “Olhares da cidade: Curitiba e suas representações”, Tuiuti: Ciên-
cia e Cultura, Curitiba, n. 28, mar. 2002, p. 237-241.
41 Marion Brepohl Magalhães. Paraná: política e governo. Curitiba: SEED, 2001, p. 80 e ss.

300
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

que desde o início da década passada havia se baseado


sobretudo na parceria técnica e ideológica entre jovens ur-
banistas e o empresariado local. Entre 1971 e 1983, durante
os governos consecutivos de Jaime Lerner, Saul Raiz e nova-
mente Lerner (todos da ARENA), a imagem de competência
urbanística das prefeituras curitibanas logo se transformou na
principal arma do marketing político municipal, dando ori-
gem ao mito da Curitiba “cidade modelo”.42 Como símbolo
da eficiência tecnocrática dos governos locais em tempos
de ditadura, o urbanismo lernista pensou o espaço público
como um “todo orgânico”43, ou seja, como um organismo
pretensamente saudável e harmonioso, cujo cérebro seria o
Estado e o coração corresponderia à região central recente-
mente pedestrianizada.
O ápice desse empreendimento e a verdadeira arté-
ria aorta de Curitiba seria o calçadão da Rua XV, a primeira
via pública do Brasil livre de automóveis e voltada para a
circulação de pedestres, uma verdadeira “sala de visitas ao
ar livre”44, de acordo com a propaganda política da época.
Dentre todas as realizações da era Lerner, a transformação
da Rua XV de Novembro em calçadão ou Rua das Flores foi o
maior emblema “do início das grandes intervenções urbanas
da década de 1970”.45 Na entrada dos anos 1980, portanto,
a imagem de Curitiba como “cidade modelo”, apresentada
como a vanguarda urbanística da modernização autoritária,
tinha no centro da cidade, e particularmente na Rua XV, o
seu signo mais triunfante. À revelia da crise econômica, da
segregação social e da crescente favelização da urbe, o
calçadão ainda representava um espaço voltado não ape-
nas à festa do consumo classe média, mas sobretudo à con-
vivência estética cordial e apaziguadora.
Desse modo, é inegável que a passeata de carrinhei-
ros em plena Rua XV, seguida da instalação de uma coluna
42 Dennison Oliveira. A política do planejamento urbano: o caso de Curitiba. Tese (Dou-
torado em Ciência Política), Unicamp, Campinas, 1995, p. 113-117. Uma versão revista
desta tese foi publicada como livro: Dennison Oliveira. Curitiba e o mito da cidade mode-
lo. Curitiba: Ed. UFPR, 2000.
43 Fernanda Garcia. “Da cidade modelo à cidade virtual: lastros da cultura urbana de uma
ARTUR FREITASI

Curitiba emblemática”, Cidades: temporalidades em confronto, Anais do V Seminário de


história da cidade e do urbanismo, PUC, Campinas, 1998, p. 5.
44 Idem, p. 5.
45 Idem, p. 5.

301
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

de detritos urbanos na Boca Maldita, podia ser entendida,


ao menos no plano narrativo, como uma forma de contra-
comunicação, algo como uma retórica reversa que, na con-
tramão dos “êxitos” tecnocráticos, opunha-se abertamente
ao discurso hegemônico das elites. Em termos concretos, as
ações do poder público local
se baseavam em práticas comumente observadas no
restante do país, que em nada se aproximavam da
imagem “inovadora” de Curitiba. As ações se carac-
terizavam por remoções de favelas e construção de
conjuntos habitacionais “provisórios” em locais distan-
tes da malha urbana e carentes de infraestrutura. [...]
Temática esta ausente no discurso hegemônico sobre
o planejamento de Curitiba.46

Como se vê, a estratégia do Grito Manifesto era irô-


nica e deliberadamente anti-celebrativa. Em pleno processo
de abertura política e de luta pela redemocratização do país,
o coletivo Sensibilizar decidiu “comemorar” o aniversário de
20 anos do regime militar por meio de um presente de grego.
Como um cavalo de Tróia simbólico, a ação conjunta de artis-
tas e carrinheiros fazia coro ao recente furor cívico nacional, à
EXCLUÍDOS DA XV: VINTE ANOS DE REGIME MILITAR OU A POÉTICA DA POBREZA

época marcado pela retomada crescente do espaço públi-


co. Em 1983, ano de criação do Sensibilizar, a cidade de São
Paulo havia vivido quatro dias de saques e depredações. Co-
nhecida como “guerra da fome”, a movimentação, que teve
início com uma passeata de desempregados, transformou-se
numa série de confrontos violentos que se espalharam pelas
ruas da cidade, deixando um rastro de centenas de deten-
ções e uma morte.47 Agora, no início de 1984, as ruas estavam
tomadas pela campanha nacional das Diretas Já. O primeiro
grande comício aconteceu justamente na capital paranaen-
se, em 12 de janeiro, abrindo caminho para manifestações
em todo o país. A divulgação do ato em Curitiba contou com
2 milhões de panfletos, 500 mil volantes e 10 mil cartazes. A
prefeitura disponibilizou 110 ônibus para transportar a popula-
ção para o centro da cidade. No dia marcado, cerca de 50
mil pessoas reuniram-se na Boca Maldita para acompanhar
46 Laisa Stroher. A metrópole e o planejamento urbano: revisitando o mito da Curitiba-mo-
delo. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo), USP, São Paulo, 2014, p. 56.
47 Marcos Napolitano. 1964: história do regime militar. São Paulo: Contexto, 2014, p.
304-305.

302
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

o comício, que contou com a presença de artistas e políticos


de oposição, entre os quais Ulisses Guimarães, que, diante de
todos, disparou: “vamos tomar essa Bastilha nojenta e repug-
nante que é o Colégio Eleitoral”.48
Cerca de dois meses depois, o Grito Manifesto ocu-
paria a mesma Boca Maldita. O confronto com um símbolo
urbanístico da tecnocracia, a denúncia do abismo social, a
luta pela redemocratização e a retomada das ruas seriam
alguns dos fatores determinantes para a nova proposta do
coletivo Sensibilizar. Lembrando-se do evento, o artista Ser-
gio Moura, idealizador e coordenador do coletivo, fez ques-
tão de enfatizar as conexões entre a conjuntura histórica e a
ação desenvolvida em parceria com os carrinheiros:
No Brasil inteiro, saturado pelos atrasos impostos pela
ditadura, ecoava o bordão principal das “Diretas Já”,
grito que me enchia os ouvidos: BUM!!! Foi um toque
criativo para ocuparmos as ruas, toque que deu início
às primeiras reuniões de um grupo enorme de artistas
convidados por mim mesmo. Quase quarenta [pes-
soas], entre artistas e não artistas, compareceram ao
nosso atelier e permanecemos durante meses com re-
uniões de trabalhos, tarefas e providências. [...] Defini-
mos o leitmotiv, as pautas, objetivos caminhos e rumos.
Táticas estratégias de ações e abordagens... Tudo era
pensado coletivamente, exaustivamente discutido e
detalhadamente dimensionado.49

Além disso, em oposição ao caráter apolíneo da mo-


dernização militar, o Grito Manifesto propôs o desregramento
dionisíaco dos desejos. Ao presentear o aniversário da dita-
dura e seus espaços tecnocráticos com um totem de lixo, o
coletivo opôs a abjeção poética à assepsia clínica do proje-
to autoritário. Como centauros inconsequentes infiltrados na
festa racionalista do capitalismo tardio, artistas e carrinheiros
atualizaram um amplo repertório de luta política e institucio-
nal da arte contemporânea. Além de expandirem as frontei-
ras da experiência estética para além dos limites consagra-
das da arte de museu, os envolvidos na ação recuperaram
ARTUR FREITASI

48 Domingos Leonelli; Dante de Oliveira (2004). Diretas já: 15 meses que abalaram a
ditadura. Rio de Janeiro: Record, p. 343. Para mais informações: Vanderlei Nery. “A
campanha Diretas Já e a transição brasileira”, Lutas Sociais, PUC-SP, São Paulo, v. 18,
n. 32, 2014.
49 Sergio Moura. “Entrevista a Artur Freitas”, obra citada.

303
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

algumas das formas reprimidas pela sociedade, validando


assim não aquilo que já está assente num determinado hori-
zonte de cultura, mas, ao contrário, aquilo que dele normal-
mente se exclui. “A arte do século XX”, escreveu Maria Alice
Milliet, apresentava “um fascínio por tudo aquilo que tradi-
cionalmente vinha sendo excluído. Voltava-se para o que
era rejeitado no corpo individual ou social: o inconsciente,
o excesso, o desequilíbrio, a deformação, o sexo, os detritos
urbanos, o pobre, o marginal, o louco, o primitivo, o selva-
gem”.50 Nessa linha, comentou Sergio Moura, o Monumento
do Lixo “foi, entre outras considerações, uma provocação
que queríamos fazer contra a civilização doente e violenta,
insensível e embrutecida. Com aquele objeto, achamos que
nosso alvo estava visível para todos”, concluiu, “pois era cla-
ro para nós que o lixo era, em síntese, a desumanidade total
da civilização”.51
Como gesto poético e ideológico, a positivação
do lixo, do precário, do perecível inscrevia-se numa longa e
combativa vertente da arte de vanguarda. Das fezes de Pie-
ro Manzoni às carnes de Artur Barrio, da baba de Lygia Clark
às baratas de Lygia Pape, do suíno empalhado de Nelson
EXCLUÍDOS DA XV: VINTE ANOS DE REGIME MILITAR OU A POÉTICA DA POBREZA

Leirner ao porco vivo de João Ricardo Moderno, a proposta


do Sensibilizar só seria um reflexo da realidade, como diria
Herbert Marcuse, se dela refletisse não a beleza do mundo,
mas sim a sua própria negação.52 Além disso, a ação pro-
longava alguns dos vetores mais radicais da vanguarda bra-
sileira, em especial da chamada arte de guerrilha, vigente
durante os anos mais duros do regime militar.53 Em oposição à
arte tecnológica, asséptica e bem acabada dos países ricos,
o crítico de arte Frederico Morais já havia defendido, num
influente manifesto de início dos anos 1970, que a arte dos
países subdesenvolvidos, em confluência com as propostas
performáticas de Hélio Oiticica e Lygia Clark, deveria se valer
da positivação de suas próprias condições adversas, valori-
zando, nesse sentido, os materiais baratos, a efemeridade, a
50 Maria Alice Milliet. Lygia Clark: obra-trajeto. São Paulo: Edusp, 1992. p. 157.
51 Sergio Moura. “Entrevista a Artur Freitas”, obra citada.
52 Herbert Marcuse. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1967
[1964]. p. 75.
53 Sobre o assunto, cf.: Artur Freitas. Arte de guerrilha: vanguarda e conceitualismo no
Brasil. São Paulo: Edusp, 2013.

304
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ocupação do espaço público, o trabalho coletivo e a cor-


poreidade mesma do ato poético.54 O caráter performático,
precário, grupal e urbano dessa proposta reverberaria nas
ações artísticas realizadas em diversos eventos expositivos no
Brasil, como Apocalipopótese, Arte no Aterro, Domingos da
Criação e os Encontros de Arte Moderna, vários dos quais or-
ganizados pelo próprio Frederico Morais.
Tendo participado dos Domingos da Criação no Rio
de Janeiro55, Sergio Moura trouxe para Curitiba parte des-
sa poderosa amálgama ético-poética, e com ela desen-
volveu diversos projetos de arte público-participativa, com
destaque para o Artshow, realizado na Galeria Júlio Moreira,
no centro da cidade, em 1978. A partir de 1983, o coletivo
Sensibilizar, coordenado por Sergio, deu sequência a essa
abordagem, ocupando o espaço da urbe com uma série
de ações polêmicas, colaborativas e performáticas, quase
sempre voltadas à sensibilização imediata do corpo social.
Instigado pela atmosfera geral de redemocratização, o Grito
Manifesto acabou radicalizando os pressupostos dessa rede
de referências. Para além da positivação da miséria nacio-
nal, implícita nos procedimentos da arte de guerrilha, a ação
na Rua XV transfigurou a alegoria da exclusão num rito social
concreto. Mais do que a mera referência discursiva à alteri-
dade da miséria e aos desmandos de um regime político, a
insólita marcha fez dos carrinheiros os agentes reais da luta
contra a degradação humana e o arbítrio de Estado. Via de
regra tratados eles mesmos como o descarte espúrio da so-
ciedade, os catadores, aliados aos artistas e ao público pre-
sente na Boca Maldita, presentearam ao abjeto regime po-
lítico com um totem igualmente abjeto. Como uma espécie
de contra-monumento, a coluna de lixo instalada em plena
Rua XV fez do ataque à assepsia e à normalidade um modo
de reiterar, por meios repugnantes, a própria repugnância do
mundo. “O que a arte abjeta fez”, resumiu Arthur Danto, “foi
apoderar-se dos emblemas da degradação como um modo
de bradar em nome da humanidade”.56
54 Frederico Morais. “Contra a arte afluente: o corpo é o motor da obra”. Vozes, Rio de
Janeiro, n. 1, jan./fev. 1970.
ARTUR FREITASI

55 Maria José Justino. “Sergio Moura: entre a terra e o ar”, Gazeta do Povo, Curitiba,
1º/04/1997.
56 Arthur Danto. O abuso da beleza: a estética e o conceito de arte. São Paulo: Martins
Fontes, 2015 [2003], p. 63.

305
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A GRATUIDADE DO ENSINO NAS


UNIVERSIDADES ESTADUAIS DO PARANÁ:
UMA CONQUISTA DA LUTA SOCIAL
Reginaldo Benedito Dias

Em dezembro de 1987, a Lei Estadual 8.675 autorizou


“o Poder Executivo a instituir a gratuidade do ensino em todas
as instituições de ensino superior mantidas pelo Estado do Pa-
raná”. A medida foi efetivada no exercício seguinte, mediante
regulamentação do Decreto 2.276, de janeiro de 1988.
Para dimensionar o alcance da mudança, deve-se
salientar que a rede estadual de instituições superiores de en-
sino foi sistematizada em 1969, por intermédio da Lei 6.034,
e absorveu as características da reforma universitária patro-
cinada pelos governos da ditadura implantada a partir de
1964, baseada na expansão do ensino pago e no estabele-
cimento de autoritárias estruturas de poder.
A introdução da gratuidade ocorreu em fase avan-
çada do processo de redemocratização do país e de de-
mocratização das universidades. Talvez não seja um fato
suficientemente divulgado e sedimentado na memória co-
REGINALDO BENEDITO DIAS

letiva que a Lei 8.675 traduziu uma negociação consignada


no desfecho da greve sindical de 1987. Mais amplamente,
resultou do acúmulo das mobilizações em favor da “univer-
sidade pública, democrática e gratuita” que grassaram, em
anos anteriores, no seio das instituições de ensino superior,
envolvendo docentes, estudantes e servidores técnicos. Foi,
portanto, uma conquista da luta social.
307
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Em 2017, vive-se o trigésimo aniversário da conquista


da gratuidade do ensino na rede estadual de ensino superior.
Não se sabe qual é a memória que cada instituição envolvi-
da e beneficiada mantém com essa efeméride, mas trata-se,
potencialmente, de uma densa “data convocatória”. Em ou-
tras palavras, a “data redonda” é uma convocação para
que se promova uma reflexão sobre a história das instituições
e as transformações que vivenciaram.
Em si mesma, a efeméride ensejaria reflexões des-
sa natureza. Considere-se, no entanto, que há o estímulo da
conjuntura em que tal aniversário acontece, visivelmente
marcada por uma ofensiva politicamente conservadora, in-
teressada em subtrair ou limitar os direitos sociais.
Nesse diapasão, o objetivo deste capítulo é abordar
A GRATUIDADE DO ENSINO NAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS DO PARANÁ: UMA CONQUISTA DA LUTA SOCIAL

o processo de conquista da gratuidade do ensino, demons-


trando sua relação com as lutas promovidas pela comunida-
de e com o processo de democratização das universidades
estaduais do Paraná. Embora haja, potencialmente, fatos
relevantes e densos em todas as instituições, a abordagem
focalizará, privilegiadamente, a história da Universidade Esta-
dual de Maringá (UEM).
A prioridade não resulta de nenhum tipo de hierar-
quia previamente estabelecida. A escolha decorre do fato
de o autor ter realizado, em períodos anteriores, pesquisas
sobre a história da UEM1 e ter, assim, familiaridade com a
bibliografia relacionada e com a documentação. Espera-se
que a contribuição estimule a produção de estudos análo-
gos a respeito das demais instituições.

A GÊNESE DA REDE DE UNIVERSIDADES ESTADUAIS

Dando encaminhamento ao disposto na Lei 6.034/69,


o governo do Paraná2 implantou três universidades estaduais,
sediadas em Londrina, Maringá e em Ponta Grossa. Tal medi-
da inseria-se em seu projeto de “desenvolvimento integrado”.
Esse projeto implicava aporte de investimentos em infraestru-
tura, sobretudo na expansão da oferta de energia elétrica e

1 Reginaldo Benedito Dias. Uma universidade de ponta-cabeça: a ocupação da reitoria


e a luta dos estudantes da UEM pela gratuidade do ensino e pela democratização da
universidade. Maringá, Eduem, 2008.
2 Era governador do Paraná o Sr. Paulo Cruz Pimentel.

308
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

da malha rodoviária. Quanto ao setor educacional, foco da


presente exposição, o diagnóstico apontava a deficiência
de formação de recursos humanos qualificados como gar-
galo a ser superado para a promoção do desenvolvimento.
Nos termos que compõem os documentos elabora-
dos pelo governo, o ponto de estrangulamento não era a
escassez de matéria-prima ou de capital, mas a acentuada
deficiência de recursos humanos, motivo pelo qual muitos
empreendimentos deixavam de ser viabilizados. Isso limitava
“não só a execução de obras fundamentais. Incluía (...) a
própria elaboração de projetos técnicos de que elas não po-
dem prescindir”.3
Em uma primeira fase, foram planejadas ações vol-
tadas ao ensino fundamental e médio. Logo em seguida,
contudo, seriam consolidadas as medidas de expansão do
ensino superior, mediante a interiorização das universidades.
Até aquele período, o Paraná dispunha da Universidade Fe-
deral, mais antiga, e da recentemente criada Universidade
Católica, ambas sediadas em Curitiba. Em 1969, pelo mesmo
ato, foram criadas três universidades, todas localizadas em
cidades do interior.4
Deve-se registrar que essa expansão contemplava
demandas das populações regionais, para as quais a intro-
dução das universidades era justificadamente vista como
uma conquista. Segundo Maria Rosemary Coimbra Sheen,
“desde a década de 1950 o interior já pleiteava a sua uni-
versidade, numa tentativa de superar a exclusividade que
Curitiba detinha”.5 No caso da UEM, por exemplo, há um
processo de reivindicação bem documentado pelo poder
público municipal.6
Não é possível, todavia, abstrair as dimensões mais
amplas da política nacional. Não apenas porque havia gran-

3 Maria Rosemary Coimbra Sheen. O contexto da política de criação das universidades


estaduais do Paraná. Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual de Campinas,
REGINALDO BENEDITO DIAS

1986, p. 195.
4 Maria Rosemary Coimbra Sheen. “Estado e educação no Brasil: análise histórica do
contexto de criação das universidades estaduais do Paraná na década de 60”. Maria
Rosemary Coimbra Sheen (org.). Recortes da história de uma universidade pública: o
caso da Universidade Estadual de Maringá. Maringá, Eduem, 2001, p. 11-45.
5 Idem, p. 39.
6 Alfredo Barbedo. A criação da UEM. Maringá, 1992. Mimeo. Trata-se de uma coleção
de documentos organizada pelo gabinete do prefeito Adriano Valente, cujo mandato foi
exercido no período 1969-1973.

309
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

des divergências sobre o modelo econômico vigente, mas


também porque aquela década como um todo, antes e de-
pois de 1964, foi pontuada por disputas acerca da reforma
universitária e sobre a sua articulação com os projetos de de-
senvolvimento nacional.7
Ao longo da década de 1960, a juventude brasileira
havia se mobilizado por uma reforma que democratizasse a
gestão da universidade e o acesso a ela.8 Apesar dessa gran-
de luta social, a reforma universitária promovida pelo gover-
no ditatorial tinha características diferentes.
De acordo com João Roberto Martins Filho, a ante-
rior organização universitária passara a ser um obstáculo à
dinamização da formação de recursos humanos para as ta-
refas do desenvolvimento monopolista. A política governa-
A GRATUIDADE DO ENSINO NAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS DO PARANÁ: UMA CONQUISTA DA LUTA SOCIAL

mental voltou-se à modernização das estruturas educacio-


nais, visando à formação de mão de obra e de tecnologia
necessárias às demandas do modelo econômico. Como
a hegemonia do capital monopolista conduzia à necessi-
dade de economia de recursos em áreas não diretamente
produtivas, a política educacional norteou-se pela progres-
siva privatização do ensino superior e pela expansão do en-
sino pago.9
No Paraná, como lembrou Maria Rosemary Coimbra
Sheen, “a criação dessas instituições ocorreu em uma con-
juntura nacional que já havia levado à Reforma Universitária
de 1968 (Lei 5.540/68)”.10 Para as nascentes universidades es-
taduais paranaenses, instituídas como “fundações de direito
público”, uma consequência foi a vigência do ensino pago
como forma de completar seu financiamento, conforme es-
tabelecia o quinto artigo da Lei 6.034/69. Outra consequência
era a vigência de um sistema de poder autoritário, em que
eram escassos os espaços de participação democrática.
As representações internas (reitor, chefes de depar-
tamentos etc.) eram constituídas por meio de listas triplas e
sêxtuplas, sem participação decisiva das comunidades. Além
7 Sandra de Cássia Pelegrini. A UNE nos anos 60: utopias e práticas políticas no Brasil.
Londrina, Eduel, 1998.
8 Idem.
9 João Roberto Martins Filho. O movimento estudantil e a ditadura militar. São Paulo:
Papirus, 1987.
10 Maria Rosemary Coimbra Sheen, obra citada, 2001, p. 40.

310
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

disso, não se pode olvidar que o sistema nascia sob o Ato


Institucional nº 5, de dezembro de 1968, e de sua tradução
para o circuito universitário, o Decreto Lei 477, de fevereiro de
1969. Esses instrumentos draconianos limitavam e puniam as
possibilidades de contestação ao modelo implantado.
Adicionalmente, havia a introdução dos regulamen-
tos disciplinares inspirados no Decreto Lei 477 e das assesso-
rias de informação, um serviço de vigilância interna integra-
do ao Sistema Nacional de Informações.11 Para exemplificar
com os dados relativos à Universidade Estadual de Maringá,
o Regulamento Disciplinar do Corpo Discente foi aprovado
pela Resolução 32/1976 do Conselho Universitário, enquanto
a Assessoria de Informações foi oficializada pela Resolução
20/1977 do Conselho de Administração.12
Essa formalização ocorreu após o reconhecimento
oficial da UEM e de sua completa adaptação aos precei-
tos da Lei 5.540/68,13 mas já havia mecanismos de controle
no período anterior. A disciplina interna estava garantida por
legislação superior e o serviço de vigilância, com análoga
retaguarda, operava e produzia documentos.14
Em 1979, um jornal estudantil afirmou que a UEM
nascera em um dos mais obscuros períodos da história do
país.15 Não exagerou. Na verdade, a definição é válida
para o conjunto das instituições criadas pela Lei 6.034/69.
Seja como for, mesmo em um contexto tão repressivo e
inibidor, não é difícil mapear, nesses primeiros anos da dé-
cada de 1970, manifestações de resistência no interior das
instituições, orientadas pela bandeira da universidade públi-
ca, democrática e gratuita.
Na UEM, embora o DCE viesse a ser formado apenas
em 1980, é possível identificar, desde os primeiros anos da dé-
cada que se encerrava, a sedimentação de um ambiente
de resistência. Em 1972, por exemplo, a incipiente universida-
de gerou um fato que mereceu diligências da polícia civil. O
REGINALDO BENEDITO DIAS

11 Rodrigo Patto Sá Motta. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
12 Reginaldo Benedito Dias, obra citada.
13 O reconhecimento oficial foi consumado pelo Decreto Federal 77.583, de maio de 1976.
14 Reginaldo Benedito Dias. “A cidade sob vigilância: Maringá nos arquivos da Delegacia
de Ordem Social e Política (DOPS) do Paraná (1947-1981)”. Revista de História Regio-
nal – UEPG, v. 22, n. 1, p. 7-33, 2017.
15 Reginaldo Benedito Dias, obra citada, 2008.

311
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

relatório produzido, e encaminhado à Delegacia de Ordem


Política e Social, registra que havia a hipótese de protesto
estudantil na UEM por causa de uma portaria, baixada pela
reitoria, que impedia a frequência de alunos inadimplentes.
Havia rumores de que poderia haver uma greve e de que
o reitor utilizaria o Decreto Lei 477 para contê-la. No final, o
agente policial apontou que o impasse tendia a ser supera-
do mediante parcelamento das dívidas.16
Em meados daquela década, a resistência era vei-
culada por meios próprios do movimento estudantil. Exem-
plo era o jornal “O Brado Universitário”, editado pelos aca-
dêmicos da Faculdade de Direito. Eram temas presentes
em suas edições: críticas aos aumentos das anuidades e à
elitização do ensino; defesa da gratuidade do ensino; reivin-
A GRATUIDADE DO ENSINO NAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS DO PARANÁ: UMA CONQUISTA DA LUTA SOCIAL

dicação da formação do DCE; Decreto Lei 477. Usando o


formato tabloide, o periódico era divulgado como encarte
de “O Diário do Norte do Paraná”, um jornal de âmbito re-
gional, o que evidenciava a dificuldade para a circulação
da imprensa estudantil de oposição. Nos termos do regula-
mento disciplinar, os acadêmicos precisariam submeter seus
comunicados à autorização da administração universitária.

OS TEMPOS ESTÃO MUDANDO

A resistência verificada nos primeiros anos de exis-


tência da UEM prenunciou e preparou o adensamento das
mobilizações em favor da universidade pública, democrá-
tica e gratuita, que ocorreriam no final da década de 1970
e no início da seguinte, período da abertura democrática.
Os ventos da mudança foram canalizados pelo
aperfeiçoamento da organização representativa da comu-
nidade universitária. Em 1978, foi criada a Associação dos
Docentes da UEM (Aduem); em 1980, houve a fundação do
Diretório Central dos Estudantes (DCE) e da Associação dos
Funcionários da UEM (Afuem). Em 1985, superando uma inter-
dição histórica que impedia o servidor público de constituir
representação sindical, houve a formação do Sindicato dos
16 Cf. Relatório 9/72, de 27 de novembro 1972. Disponível na pasta “DOPS 3 (70 71 72)”,
codificada como PT 851.104, do Fundo Documental “Delegacia de Ordem Política e
Social”/Departamento Estadual do Arquivo Público do Paraná. O relatório faz referência
à Portaria 28/72-FUEM, de 17 de novembro de 1972.

312
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino de Maringá


(Sinteemar).17
No âmbito da UEM, nos anos finais da década de
1970, há um acúmulo de campanhas estudantis contra os
aumentos e em favor da gratuidade. Em 1978, os diretórios
acadêmicos reivindicaram o congelamento de todas as ta-
xas e das mensalidades. No ano seguinte, além de atualizar
a campanha reivindicatória em face da administração in-
terna, o movimento estudantil articulou-se para pressionar o
governo do Paraná, por meio de passeatas e de outras ma-
nifestações públicas, com vistas a negociar sua pauta. No
início de 1980, promoveu-se um boicote ao recém-fundado
Restaurante Universitário (RU), como forma de combater os
aumentos.
O início de vida do DCE, criado no final de 1980, foi
marcado pelo choque de sua pauta e de suas formas de
ação com os limites tolerados pela administração central
da universidade. Circulando no início do ano letivo de 1981,
a primeira edição do jornal do DCE, repleta de críticas ao
sistema educacional e à administração da UEM, gerou o
fechamento temporário da entidade e a abertura de um
procedimento disciplinar para apuração de responsabilida-
des. Mediante mobilização e articulação políticas, o diretó-
rio conseguiu atenuar as sanções, que foram mais brandas
do que se previa, e prosseguiu com sua identidade e sua
pauta.
A cada ano, dependendo da orientação das direto-
rias da entidade e das circunstâncias, foram desencadeadas
variadas formas de combater os aumentos. Em 1982, houve
negociações que fixaram os índices em patamares que os lí-
deres estudantis consideraram razoáveis. Em agosto de 1983,
uma forte mobilização, com ameaça de ocupação do pré-
dio da reitoria, resultou em rebaixamento dos preços prati-
cados pelo RU. Em seguida, foi feita uma campanha pelo
REGINALDO BENEDITO DIAS

boicote ao pagamento das mensalidades.


17 A partir de então, no período aqui analisado, o sindicato exerceria a representação ofi-
cial, mas as entidades associativas manteriam sua representatividade política e parti-
cipariam do comando das mobilizações. Cf. Ângelo Priori; José Maria de Oliveira Mar-
ques. “A formação das entidades associativas e as greves de docentes e funcionários
da Universidade Estadual de Maringá – 1980/1991”. Maria Rosemary Coimbra Sheen
(org.). Recortes da história de uma universidade pública: o caso da Universidade Esta-
dual de Maringá. Maringá: Eduem, 2001. p. 295-338.

313
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Em meados de 1984, irrompeu uma nova conjuntura


de enfrentamentos de alta intensidade, norteados por uma
pauta que reivindicava o congelamento de todos os preços:
mensalidades, RU, fotocópias etc. Em 14 de agosto do mes-
mo ano, o processo culminou na ocupação das instalações
da reitoria, gerando uma paralisação de forte impacto na
instituição.
Aquele foi um ano de agitação estudantil em todo
o Paraná. Em junho, havia ocorrido um movimento de ocu-
pação da reitoria da Universidade Católica, sediada em
Curitiba. Quando foi deflagrada a mobilização em Marin-
gá, estava em curso uma greve estudantil, com ocupação
do campus, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Paranaguá, iniciada por um boicote ao pagamento
A GRATUIDADE DO ENSINO NAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS DO PARANÁ: UMA CONQUISTA DA LUTA SOCIAL

das matrículas. No dia 19 de agosto, no final da semana


em que acontecia o movimento de ocupação da reitoria
da UEM, estava programado o lançamento da campanha
“Gratuidade-Já”, coordenada pela União Paranaense dos
Estudantes (UPE).18
Nesse contexto, apesar de a mobilização da UEM ter
sido impulsionada pelo impasse nas negociações relativas ao
congelamento dos valores das mensalidades e das demais
taxas, foi gerada a expectativa de que era possível avançar
para a conquista da bandeira principal, a gratuidade do en-
sino. A adesão de outras instituições poderia dar o impulso e
o suporte necessários. Seja como for, o movimento dos estu-
dantes da UEM procurou soluções próprias e foi encerrado
com a negociação de um subsídio que garantiu o congela-
mento temporário do preço das refeições.
Do ponto de vista econômico, houve uma conquis-
ta parcial, mas as principais consequências foram de ordem
política e, no médio prazo, repercutiriam no processo de de-
mocratização da universidade. No período de ocupação, o
movimento estudantil apropriou-se dos espaços de poder e
instaurou dinâmicas políticas, baseadas na autogestão e na
democracia direta, que contrastavam frontalmente com a
hierarquia da instituição. Em outras palavras, os locais da hie-
18 Após a conclusão do movimento de ocupação da reitoria da UEM, na Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Cascavel (Fecivel), precursora da Universidade Esta-
dual do Oeste do Paraná, haveria um robusto processo de boicote ao pagamento das
mensalidades. A alusão a esses movimentos de âmbito estadual tem como suporte a
abordagem contida em Reginaldo Benedito Dias, obra citada, 2008.

314
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

rarquia acadêmica foram convertidos, ainda que por um pe-


ríodo excepcional, em territórios da democracia estudantil.
Por meio de um documento de balanço emitido no
final da ocupação, a liderança estudantil afirmou que o mo-
vimento havia provado que era possível construir uma “co-
munidade verdadeiramente justa e democrática”. A tomar
como parâmetro as rígidas assimetrias institucionais, pode-se
dizer que a universidade havia sido colocada de ponta-ca-
beça.19 Apesar da volta à normalidade administrativa após o
seu encerramento, o movimento de ocupação, ao acirrar e
desnudar as contradições internas, fincou fendas profundas
nas autoritárias relações de poder da universidade.
Por seu turno, a formação da Aduem, malgrado o
fato de não ter o estatuto de entidade sindical, ensejou a ar-
ticulação das demandas corporativas, em defesa de salários
e dos direitos dos trabalhadores, com a pauta mais ampla da
democratização da universidade. Ao reportar-se ao proces-
so de formação da entidade, o “Memorial da Aduem” assim
circunscreveu a sua identidade: “o objetivo mais amplo seria
a luta pela democratização da universidade. Outras bandei-
ras de luta estavam, em geral, contidas no objetivo maior ou
eram dele derivadas”.20
Sob o comando da Aduem, foi deflagrada, em 17
novembro de 1980, uma greve contra a não aplicação da
Lei 6.708/79, que concedia reajustes semestrais aos trabalha-
dores. A paralisação foi encerrada em 17 de dezembro, com
avaliação positiva quanto à reivindicação salarial e ao apoio
político obtido, sobretudo pela unidade dos segmentos inter-
nos, docentes, servidores e estudantes. Era o desabrochar de
um período de lutas que se estenderia pelos anos seguintes e
contribuiria para a transformação da universidade.21
A literatura econômica costuma se referir aos anos
1980 como a década perdida.22 Foi um período caracteriza-
do pelo debate da dívida externa e pela inflação galopante.
REGINALDO BENEDITO DIAS

A coalização oposicionista que chegou ao poder federal em


19 Idem.
20 Associação dos Docentes da Universidade Estadual de Maringá. Aduem-Memorial. Ma-
ringá: Ideal Gráfica, 1997.
21 Ângelo Priori; José Maria de Oliveira Marques, obra citada.
22 Amaury Patrick Gremaud; Marco Antônio Sandoval de Vasconcelos; Rudinei Toneto Jr.
Economia brasileira contemporânea. São Paulo: Atlas, 2007.

315
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

1985 desencadeou uma série de planos econômicos com o


objetivo de debelar a inflação. Houve momentos de calma-
ria, sucedidos pela volta da tormenta. A moeda mudou de
nomes algumas vezes.
Na perspectiva das lutas democráticas e da mobili-
zação popular, em contrapartida, não se pode dizer que te-
nha sido uma década perdida. Desde o final da década de
1970, o país assistira ao ressurgimento das lutas sindicais. Nos
anos 1980, a tendência se confirmou, em razão da luta pela
defesa salarial e por pautas mais amplas, como reformas que
ampliassem o direito de organização e assegurassem a rede-
mocratização do país.23
Na UEM, as paralisações do mundo do trabalho volta-
riam a ocorrer em 1984, logo após o encerramento do movi-
A GRATUIDADE DO ENSINO NAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS DO PARANÁ: UMA CONQUISTA DA LUTA SOCIAL

mento de ocupação da reitoria promovido pelos estudantes,


envolvendo agora duas categorias profissionais, docentes e
servidores técnicos. No período de 1984 a 1991, houve greves
todos os anos. Além do frequente engajamento dos trabalha-
dores de cada instituição, formou-se um circuito estadual de
mobilização, em razão das afinidades de pauta e da necessi-
dade de potencializar as ações.24
Não é objetivo deste texto avaliar o sucesso ou insu-
cesso de cada mobilização encetada. Para a presente refle-
xão, é suficiente selecionar dois aspectos, sem hierarquizá-los.
O primeiro é a relação entre as campanhas pela qualidade
do exercício profissional com a defesa da universidade como
um todo. Em um período de tantas vertigens econômicas, ha-
via a questão do financiamento da instituição e a proteção
dos salários e das condições de trabalho. Sem isso, seria am-
pliado o risco de fuga de profissionais.
Considere-se, também, que a UEM, a exemplo das
demais universidades estaduais do Paraná, vivia uma fase de
consolidação acadêmica, ou seja, os cortes de verbas e a per-
da de profissionais de alto nível prejudicariam seu futuro estra-
tégico. Derivou das mobilizações sindicais a reivindicação pelo
regime de trabalho de dedicação exclusiva (TIDE) e pela ado-
ção de uma carreira docente regida por mérito acadêmico.25
23 Gelsom Rozentino de Almeida. História de uma década quase perdida – PT, CUT, crise
e democracia no Brasil: 1979-1989. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.
24 Ângelo Priori; José Maria de Oliveira Marques, obra citada.
25 Idem.

316
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

O segundo aspecto refere-se à forma como esses


movimentos incidiram sobre a estrutura de poder das institui-
ções. Em um ambiente nacional em que florescia a sensibili-
dade da participação política, a pauta da democratização
da universidade ganhou o primeiro plano. Em 1982, coorde-
nada pelas entidades associativas (Aduem, Afuem e DCE),
foi feita uma consulta extraoficial à comunidade interna, por
intermédio da captação de voto em urna, para aferir quais
seriam os nomes preferidos aos cargos de reitor e vice.
Seguindo as determinações legais, o Conselho Uni-
versitário compôs a lista sêxtupla em ordem alfabética, mas o
governador indicou o segundo colocado na preferência ma-
nifestada pelos votos. Para as circunstâncias de um período
de transição, fez-se uma avaliação positiva do processo. Na
sequência, proliferaram processos de eleições diretas para
chefe de departamento e coordenador de curso. Em 1986,
finalmente, houve a eleição direta para reitor, conquista for-
malizada pela Lei Estadual 8.345/86.26
Na UEM, quando se concluiu o primeiro processo
eleitoral para a escolha de reitor, foi vencedora a chapa de
oposição, constituída pelo Movimento Universidade Demo-
crática – MUDE. Na polarização típica daqueles anos, essa
chapa canalizou os esforços da grande maioria dos setores
que se engajaram e organizaram os movimentos em favor da
Universidade Pública, Democrática e Gratuita.27 O resultado
das eleições foi homologado pelo governador.

A CONQUISTA DA GRATUIDADE DO ENSINO

Em 1987, estimulado pelas mudanças ocorridas no


comando da universidade, traduzidas nas eleições diretas
para reitor, o DCE deflagrou uma campanha pela gratuida-
de do ensino e encaminhou um abaixo-assinado reivindican-
REGINALDO BENEDITO DIAS

do o congelamento das mensalidades, dos preços cobrados


no RU e de todas as taxas. O diretório argumentou:
26 Publicada em 22 de junho de 1986, conforme se lê em sua súmula, a Lei Estadual
8.345 “prevê a composição de listas de nomes para escolha de Reitores e Vice-Reitores
das Universidades Estaduais e Diretores das Faculdades Estaduais isoladas, mediante
consulta à comunidade universitária”. http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/listarA
tosAno.do?action=exibirImpressao&codAto=7546. Acesso em 2 de julho de 2017.
27 Associação dos Docentes da Universidade Estadual de Maringá, obra citada.

317
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A luta pela gratuidade do ensino sempre norteou o mo-


vimento estudantil. Prova disso é que neste ano a co-
munidade universitária – especialmente os estudantes –
conseguiu, através das eleições diretas, eleger um reitor
comprometido com essa luta. Assim, os estudantes da
UEM (...) reivindicam o imediato congelamento. (...) Essa
é uma forma concreta de combater a reprodução do
ensino pago, assim como um passo em direção da uni-
versidade pública, democrática e gratuita.28

O Conselho de Administração da UEM, após algumas


negociações, autorizou o congelamento das mensalidades,
um fato inédito, considerando “o compromisso de desenvol-
ver propostas pedagógicas e científicas enquanto uma ins-
tituição pública e gratuita”.29 Ecoando os dizeres do reque-
rimento estudantil, o conselho asseverou: “o congelamento
A GRATUIDADE DO ENSINO NAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS DO PARANÁ: UMA CONQUISTA DA LUTA SOCIAL

das anuidades constitui-se no ato concreto para a implanta-


ção do ensino gratuito da UEM”.30
A gratuidade do ensino seria negociada ainda na-
quele ano com o comando de greve sindical. Na UEM, a pa-
ralisação teve início no final de março de 1987, reivindicando
106,7% de reajuste nos salários. Onze dias depois foi promovido
um acordo com a administração da universidade, pactuando
um reajuste de 70,16%, com aplicação retroativa ao mês de
março. Como o governo recusou-se a repassar o valor acor-
dado e tentou retirar, por meio de decreto, a autonomia fi-
nanceira das universidades, a greve foi retomada em maio.31
No final de junho, a greve sindical da UEM estendia-
-se pelo quadragésimo dia e vivia-se um impasse nas nego-
ciações. Embora tivesse declarado a legalidade da greve, a
Justiça não fora direta quanto à responsabilidade do governo
estadual pelo reajuste. Na Universidade Estadual de Londrina
(UEL), em meados de junho, a greve havia sido suspensa, com
a aprovação de uma trégua de 15 dias ao governo do Esta-
do. A UEM não seguiu o mesmo caminho. Seu comando de
greve avaliou que o governo vinha sendo evasivo e tentava
impor que as universidades encontrassem soluções domésti-
cas para garantir o reajuste.32
28 Reginaldo Benedito Dias, obra citada, 2008, p. 202.
29 Idem, p. 203.
30 Idem, p. 203. Grifo nosso.
31 Idem.
32 Idem.

318
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Os fatos se precipitaram e a questão das mensalida-


des ganhou o primeiro plano. Estava programada uma reu-
nião de negociação para o dia 23 de junho, cuja pauta não
previa o tema da gratuidade. Colocado em debate pelos
sindicalistas, converteu-se no ponto principal das negocia-
ções e foi objeto do acordo.
Em 26 de junho, a assembleia de docentes e funcio-
nários aprovou um acordo, negociado entre sua representa-
ção sindical e o governo do estado, suspendendo a greve. A
questão salarial ficou pendente, a ser conduzida por outras
vias.33 Em dezembro daquele ano, foi aprovada a Lei Esta-
dual 8.675. A grande conquista foi a implantação, a partir de
1988, da gratuidade do ensino.
A análise das séries estatísticas da UEM contribui
para interpretar o processo. A efetivação do congelamen-
to reduziu a proporção que as mensalidades pagas pelas
estudantes representavam no cômputo geral das receitas
da instituição. Nos anos anteriores, a faixa era de aproxi-
madamente 8%. Em 1986, houve o congelamento promo-
vido pelo Plano Cruzado. Em 1987, em vez de promover o
reajuste da defasagem acumulada, a UEM garantiu novo
congelamento. Com isso, a proporção caiu para 2,1% das
receitas. A negociação sindical assegurou o passo adiante
e consolidou o processo.
Os efeitos do acordo que resultou na Lei Estadual
eram extensivos a todas as IES paranaenses, incluindo a que
estava em compasso diferente de mobilização (UEL) e as que
não estavam mobilizadas. Mas a UEM efetivava “atos con-
cretos” para promover essa grande mudança e contribuía
para que ela acontecesse em todas as instituições. As duas
faces da democratização, participação política e acesso
por meio da gratuidade, caminhavam juntas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
REGINALDO BENEDITO DIAS

A implantação da gratuidade do ensino no sistema


estadual de instituições superiores do Paraná foi, efetivamen-
te, uma conquista da comunidade, sedimentada em contí-
nuas jornadas de reivindicação. Em coerência com o fato de
que os passos mais importantes foram realizados por meio da
33 Idem.

319
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

luta social, é significativo constatar que a grande conquista


tenha sido consolidada no desfecho de uma greve sindical.
Entretanto, deve-se ressaltar que tal conquista não se
fez por um ato exclusivo ou por um episódio singular. Foram
os movimentos descritos nesta exposição, somados às mo-
bilizações ocorridas em outras instituições, que construíram
uma cultura de resistência ao modelo implantado pela re-
forma universitária de 1968, sob a qual o sistema paranaense
foi constituído em 1970. Mais do que isso, forjaram o caminho
para a democratização das instituições e para a criação das
condições que favoreceram a negociação de 1987.
Não se pode entender esse complexo processo de
forma linear e a partir de uma relação de causalidade direta
e imediata. No universo heterogêneo das instituições, houve
A GRATUIDADE DO ENSINO NAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS DO PARANÁ: UMA CONQUISTA DA LUTA SOCIAL

embates com forças que detinham visões opostas de qual


deveria ser a identidade da universidade. As mobilizações
encontraram vicissitudes que não puderam ser abordadas
aqui e os resultados, em muitos momentos, pareceram insa-
tisfatórios. Não obstante alguns insucessos momentâneos e
eventuais descontinuidades, quando se analisa o processo
em uma escala mais ampla, constata-se que houve acúmulo
de forças e de vontade política em favor da sedimentação
do projeto da universidade pública, democrática e gratuita.
A introdução da gratuidade do ensino não foi um
mero marco administrativo, relativo à modificação das for-
mas de financiamento das instituições. Do período da criação
das universidades estaduais até 1987, o ensino pago restrin-
gia sua dimensão pública. Em reverso, a gratuidade signifi-
cou a ampliação de sua natureza pública e de seu caráter
democrático. Tal transformação tornou-se um valor para as
instituições, espécie de bússola para o conjunto de suas polí-
ticas. Por isso, salvo melhor juízo, trata-se de uma refundação.

320
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A BATALHA PELA COPEL


Cátia Cilene Farago

A grande dificuldade de buscar compreender nossa


realidade atual implica num esforço necessário de olhar para
trás e perceber que as forças sociais que predominam na so-
ciedade, em dada época, podem não só influenciar a orga-
nização do Estado como incutir-lhe tendências que atuem
sobre o jogo das forças sociais e o conjunto da sociedade.
Daí, nem sempre estar explícito que “forças” encontram-se
acopladas ao Estado ou disputando-o. Um exemplo é o re-
cente processo de impeachment da ex-presidenta Dilma
Rousseff. Também, as chamadas reformas indiscriminada-
mente neoliberais – o ajuste fiscal, a privatização, a liberaliza-
ção comercial, a desregulação, a reforma da administração
pública, entre outras, deflagradas no Brasil nos anos 1990 e
internacionalmente pelos governos de Margaret Thatcher e
Ronald Reagan. Quando bem sucedidas, tais reformas pas-
sam a ser concebidas como medidas que fortalecem o Esta-
do em vez de enfraquecê-lo e, para alguns, são considera-
das ações capazes de devolver a governança democrática.
Os pacotes de ajuste fiscal e a política econômica
de austeridade a que o Brasil encontra-se submetido, promo-
CÁTIA CILENE FARAGO

vida por determinação de organismos internacionais e pela


subserviência do governo atual e de um Parlamento cuja le-
gitimidade é, no mínimo, questionável, estimulou a ocorrên-
cia, no final do ano de 2016, de mais de 1000 ocupações
de escolas por estudantes pelo país afora, num movimento
que buscou rechaçar as desigualdades aprofundadas pelo
321
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

modelo e reformas neoliberais em curso na economia: PEC55


– hoje Emenda Constitucional 95, que estabelece teto para
os gastos públicos com saúde, educação, segurança, etc.,
entre outras, pelos próximos vinte anos; na educação: a
MP746/16 – hoje Lei 13.415/17, que reformula o ensino médio
no país priorizando a flexibilização da grade curricular, cau-
sando verdadeiro ‘apartheid’ nesta etapa do ensino: uma
escola rica em conhecimento, cultura, com a marca de uma
educação integral para os que terão tempo de estudar e
uma escola rápida, pragmática para os que não têm muito
tempo, pois se destinam ao duro ofício do trabalho. Comple-
mentam a ideologia do estado mínimo na educação os pro-
jetos de leis que tratam do Projeto Escola Sem Partido e seus
genéricos e/ou complementos); na previdência a PEC287/16,
que representa um dos maiores ataques aos trabalhadores/
as e tem sido duramente combatida; e, na legislação traba-
lhista, denominada de “Lei da modernização trabalhista” – a
Lei 13.467/17, flexibiliza a CLT – Consolidação das Lei Traba-
lhistas (Lei 5.452/43) que, entre outras medidas, estabelece a
prevalência dos acordos sobre a legislação, verdadeira des-
truição da Justiça do Trabalho, entre outras consequências
nocivas aos trabalhadores/as.
Diante de todo este cenário, não é por acaso que o
“Movimento Ocupa Escolas” que suplicaram condições dig-
nas para estudar e sentir-se bem no espaço escolar, tem sua
origem no Estado do Paraná, que desde 2011 agoniza com
um governo adepto dessas reformas, exercido por Carlos Al-
berto Richa (PSDB). O protagonismo paranaense não é sur-
presa, uma vez que, inserido no contexto neoliberal, o estado
vem sendo laboratório experimental dessas reformas desde
1995 e, também, palco de grandes mobilizações, como a
realizada pelo Fórum Popular Contra a Venda da Copel, ob-
jeto de abordagem deste capítulo.

PROJETOS PRIVATISTAS EM CONSONÂNCIA


A BATALHA PELA COPEL

O Fórum Popular Contra a Venda da Copel formou-


-se no ano de 2000, com objetivo de lutar contra uma das
principais estratégias do neoliberalismo – a privatização –, em
específico, da Companhia Paranaense de Energia Elétrica
do Paraná, a Copel.
322
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Criada em 1954, através do Decreto nº 14.947, essa


empresa atuava já, nos anos 1990, na geração, transmissão e
distribuição de eletricidade no Estado do Paraná, bem como
nos ramos de telecomunicações, fornecimento de gás natu-
ral, agribusiness, consultoria internacional entre outros. Para
se dimensionar a importância estratégica dessa empresa,
cabe-nos destacar que o Estado do Paraná possuía (direta e
indiretamente) aproximadamente 58,6% de suas ações ordi-
nárias, e consequentemente, o poder de controlar a eleição
da maioria dos membros do Conselho de Administração, a
designação da Diretoria, as futuras operações e as estraté-
gias de negócios.
Em estudo mais aprofundado sobre o Fórum Popular
Contra a Venda da Copel1 pude evidenciar detalhadamente
que tanto o Executivo Federal – Fernando Henrique Cardoso
–, quanto o Congresso Nacional e a Assembleia Legislativa
paranaense dispuseram-se a facilitar a tramitação das pro-
postas privatizadoras do Executivo Estadual, exercido então
por Jaime Lerner, mantendo entre essas esferas de poder um
relacionamento mais cooperativo do que conflituoso. Esses
fenômenos envolvendo situacionismo, governismo e a distri-
buição de recursos clientelistas configuraram o que se pode
denominar de “um pacto homologatório sustentado”, imple-
mentado pela cooptação dos deputados, que se eximiam de
participação e não se responsabilizavam pelas políticas públi-
cas implementadas pelo executivo2. A isso somou-se a postura
do governador Jaime Lerner, que em 1998 se aliou ao Executi-
vo Federal, exercido por Fernando Henrique Cardoso, passan-
do a executar uma cartilha imposta desde Brasília, justificada
pela necessidade de manutenção do Plano Real3.
Em consonância com o projeto de FHC, várias em-
presas estatais foram privatizadas a partir do início do ano de
1 Cátia Cilene Farago. A Batalha da Copel: governo, parlamento e movimento social em
ação. Dissertação. Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do
Paraná. Curitiba, 2006.
CÁTIA CILENE FARAGO

2 Esse aspecto foi ressaltado por Fabiano Santos (org.). O poder legislativo nos estados:
diversidade e convergência. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001 e Fernando Luiz Abrúcio.
Os barões da federação: os governadores e a redemocratização brasileira. 2. ed. São
Paulo: Hucitec, 2002.
3 Fernando Luiz Abrúcio; Cláudio Couto. “O segundo governo FHC: coalizões, agendas e
instituições”. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. Departamento de Sociologia,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, v. 15,
n. 2, nov. 2003.

323
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

2001. Nesse ano, cerca de 30% das estatais que pertenciam


a governos estaduais e municipais já haviam sido atingidas
por um processo de privatização através da desregulamen-
tação do setor de energia, que tivera início em 1995. Em 2001,
das 25 distribuidoras de energia, 18 haviam sido privatizadas,
entre elas, a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) e a
Bandeirantes, ambas em São Paulo; bem como a CEEE, do
Rio Grande do Sul. O Governo Federal esperava poder priva-
tizar as geradoras Furnas e Chesf ainda nesse mesmo ano4.
Foi nesse contexto que o governo estadual do Para-
ná conduziu a privatização da Copel, tendo a Assembleia
Legislativa aprovado o projeto privatista em dezembro de
1998, por 30 votos contra 13, via Lei nº 12.355 de 08 de dezem-
bro de 1998, que autoriza o Poder Executivo a implementar a
reestruturação societária da COPEL, alienar, dar em caução
ou oferecer em garantia ações do Estado no capital daque-
la Companhia, bem como, contratar operações de crédito,
financiamentos ou outras operações por si ou pela Paraná
Investimentos S/A, e adota outras providências. Em maio de
1999, o governo Lerner iniciou o processo de venda da em-
presa, através da criação do Conselho de Desestatização
da Copel, presidido pelo então ex-governador Ney Braga.
É importante lembrar que em 1998, quando encaminhou o
projeto de privatização da Copel ao legislativo estadual, o
governador Jaime Lerner tinha apoio de ampla maioria dos
deputados; por isso, os 30 votos pela privatização, mesmo
com ausência de seis parlamentares da base governista e
da abstenção de outros cinco.
Porque o projeto convergia com o encaminhamento
que o Governo Federal dava à questão e pelo amplo apoio
que tinha no legislativo estadual, Jaime Lerner estava seguro
de, em 2001, realizar de pronto a privatização da Copel. Só
que não.

UMA FRENTE POPULAR SE ORGANIZA E SE ESTRUTURA


A BATALHA PELA COPEL

O cenário sociopolítico e cultural de surgimento do


Fórum Popular Contra a Venda da Copel foi ensejado, por-
4 CATHARINO, 1997; VIRIATO, 2001; BIONDI, 2003; OLIVEIRA. D, 2000; Destacam
que a partir da década de 1990 no Brasil como na América Latina em geral, as políticas
de privatizações tomaram ares de Cruzadas Nacionais. Ver também notícias: Senado
aprova plebiscito para vender a Chesf - Folha de São Paulo – Mercado, de 26/04/2001.
Acesso em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2604200120.htm.

324
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

tanto, pelas políticas de privatização encaminhadas pelo


governo federal – FHC – e estadual – Jaime Lerner -, quan-
do este último procurou acelerar a privatização da Copel.
O movimento, do qual apresentamos nesse capítulo apenas
um recorte, atuou pela mobilização e conscientização polí-
tica, científica e social, além de impetrar ações judiciais nas
esferas estadual e federal. Dessa maneira, questionou fron-
talmente a proposta de privatização no Estado do Paraná,
alterando os rumos desse processo.
O Fórum Popular Contra a Venda da Copel inicial-
mente contou com a presença de partidos políticos, parla-
mentares, sindicatos – como o dos engenheiros do Estado
do Paraná (SENGE) – e conselhos profissionais, como o de
Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CREA). Dele também
participaram a Associação Comercial do Paraná (ACP), a
Federação das Indústrias do Estado do Paraná (FIESP), além
de movimentos estudantis e sociais. No auge da sua mobiliza-
ção, em 2001, agregou mais de 400 entidades da sociedade
civil organizada. Para a coordenação da comissão executiva
do movimento, a não privatização da Copel representava a
suspensão de todo o processo de privatização no país, pois,
ao lado da Cemig, a Copel era uma das melhores empresas
públicas brasileiras do setor de energia.
Membros do fórum, como Luiz Antônio Rossafa, en-
tão Presidente do CREA/PR, consideravam que a necessi-
dade e urgência do processo de privatização visavam “o
favorecimento de corporações que mantêm relações pro-
míscuas com os governos de plantão. Títulos podres conhe-
cidos como moedas podres e toda a sorte de papéis sem
valor são recebidos como panaceia.”5 Era, portanto, visível
a desconfiança que as mais de 400 entidades da sociedade
civil organizada lançavam sobre o processo. Em 21 de feve-
reiro de 2000, em discurso intitulado “Copel: energia e poder
que o Paraná não pode abrir mão!”, Nelton M. Friedrich6 – a
exemplo dos nacionalistas que no final da década de 1940
CÁTIA CILENE FARAGO

haviam se engajado na campanha o “petróleo é nosso” –


5 Luiz Antônio Rossafa. “O Paraná e o Brasil não podem ficar no escuro”. Revista do
CREA/PR, ano 4, n. 12, mar./abr. 2001.
6 Friedrich era homem público de projeção no estado, tendo sido secretário do interior
(Energia, Habitação Popular, Saneamento, Meio Ambiente e Controle da Erosão) no
governo José Richa; presidente do Conselho de Administração da Copel (por 4 anos),
ex-deputado Estadual e Federal e à época do discurso, presidente do PDT do Paraná.

325
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

mobilizou sentimentos identitários – nesse caso os paranistas –


para realizar um resgate histórico da situação energética no
país e no Estado do Paraná, desde o século XX até o XXI. Nes-
se sentido, ele resgatou os sacrifícios econômicos e sociais
realizados para que a Copel tivesse sucesso como empresa
pública.
No sentido de se contrapor ao projeto de privati-
zação, o movimento mobilizou argumentos de vários tipos,
tornando-os públicos e acessíveis a toda população para-
naense. Entre estes: A nossa Copel: 1. Atua no Brasil, China,
Argentina, Colômbia, Malásia, Paraguai e Chile; 2. É a melhor
empresa de energia do Brasil; 3. Atende perto de 3 milhões
de consumidores e segundo pesquisa nacional da ANEEL fei-
ta em 2000 quanto a satisfação dos usuários de energia de
todo o Brasil a Copel alcançou o primeiro lugar; 4. Obteve
lucro expressivo no ano passado de quase R$ 430 milhões; 5.
Tem o controle de um patrimônio invejável; 6. Mantém en-
volvimento em pesquisa e inovações; 7. Possibilitou a cons-
trução de uma ‘inteligência paranaense’, um conhecimen-
to, um ‘know-how’ respeitado no Brasil e lá fora, de valor
incalculável; 8. Domina o saber fazer de diversos produtos e
serviços, tem atuação em 18 empresas, como a maior rede
de fibra ótica no Estado – a Copel/Telecomunicações; a de
comercialização de energia – Tradener; a de distribuição de
gás – Compagás; a de telefonia fixa e celular – Sercomtel;
a provedora da Internet – CNI/Onda; 9. Tem nas barragens
volumes extraordinários de água – a nova cobiça, o petróleo
deste século7.
Na primeira reunião, em 21 de fevereiro de 2000, os
membros do fórum não sabiam concretamente o que fazer.
Ainda em sua fase embrionária, foi o Edital de Licitação e
Agendamento do Leilão de Privatização da Copel, lançado
no final do segundo semestre do ano 2000, que precipitou e
determinou uma agenda de ações do movimento. Já no iní-
cio de 2001, o Presidente do CREA/PR apontava que a ques-
A BATALHA PELA COPEL

tão da privatização da Copel não estava associada a um


posicionamento contrário ou favorável à empresa pública ou
7 Intervenção feita por Nelton M. Friedrich (41-252-9459-9957721-252-5039) no Encontro
em Defesa da Copel realizado no Plenarinho da Assembleia Legislativa do Paraná, em
21-02-2000, e que decidiu pela criação do FÓRUM DE ENTIDADES DA SOCIEDADE
PARANAENSE CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA COPEL. Cátia Cilene Farago, obra cita-
da, p. 120.

326
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

privada. “Isso vai muito além”, argumentava ele. “A empre-


sa”, dizia, “atua numa área estratégica para o desenvolvi-
mento do Estado e do país, quem detém água doce e ener-
gia, detém efetivamente o que há de mais precioso hoje”8.
Por perceber na questão energética um ponto estratégico,
o CREA/PR se engajou numa campanha de conscientização
para alertar a sociedade sobre a venda da Copel. Utilizando
para isto toda a sua estrutura, o conselho contava com a aju-
da das associações, sindicatos e federações de engenharia
e arquitetura do Estado. Isso significava um contingente de
mais de 42 mil profissionais.
A participação do CREA foi fundamental e foi moti-
vada por toda uma discussão que o órgão vinha realizando
desde o ano 2000, em eventos com os sindicatos dos enge-
nheiros, arquitetos, técnicos industriais, técnicos agrícolas e
associações. A partir dessas discussões, o conselho se mani-
festou a respeito, colocando-se contrário não à privatização
em si, mas ao modelo de privatização e às consequências
que isto traria para o Estado do Paraná, especificamente no
caso da Copel9. O mesmo posicionamento foi expresso tam-
bém pela Associação Comercial do Paraná (ACP)10, pela Fe-
deração das Indústrias do Estado do Paraná (FIESP)11, pelo
Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (SENGE)12.
8 Luiz Antônio Rossafa. Energia de todos: CREA/PR quer união dos paranaenses contra
a privatização da Copel. Revista do CREA/PR, ano 4, n. 12, mar./abr. 2001.
9 Luiz Antônio Rossafa. Energia de todos: CREA/PR quer união dos paranaenses contra
a privatização da Copel. Revista do CREA/PR, ano 4, n. 12, mar./abr. 2001.
10 70% dos empresários do comércio, segundo Associação Comercial do Paraná. Fonte:
Jornal Gazeta do Povo de 15/08/2001.
11 Nota das entidades empresariais: Federação da Agricultura do Estado do Paraná,
Federação das Associações Comerciais Industriais e Agrícolas do PR, Federação do
Comércio do Estado do Paraná, Federação das Industrias do Estado do Paraná, Fede-
ração das Empresas de Transportes de Cargas do Estado do Paraná, Organização das
Cooperativas do estado do Paraná, “recomendam que o programa de privatização da
COPEL seja postergado. Quando de sua retomada, as nossas instituições empresariais
apreciaram, junto com o Governo e demais segmentos representativos da sociedade
paranaense, contribuir para a escolha de um modelo que esteja em sintonia com a ex-
pressão social, econômica e política do Paraná”. Jornal Folha do Paraná. 15/06/2001.
12 Marlise de Cássia Bassfeld. Foi bonito de ver, foi emocionante estar junto! Edição Me-
CÁTIA CILENE FARAGO

morial do Senge – PR – Gestão 1999/2002 – maio de 2002. Curitiba, p. 14-24. Aldi-


no Beal. A Copel que o Paraná precisa. Edição Memorial do Senge – PR – Gestão
1999/2002 – maio de 2002. Curitiba, p. 29-30. Carlos Roberto Bittencourt. Mobilização
Sindical; A luta do povo também é nossa. Edição Memorial do Senge – PR – Gestão
2002/2005 – junho de 2005. Curitiba, p. 11. Sérgio Inácio Gomes. Energia: Quando a
riqueza é a nossa luz. Edição Memorial do Senge – PR – Gestão 2002/2005 – junho de
2005. Curitiba, p. 16-17. Vender a Copel é mau negócio para a maioria. Edição Memo-
rial do Senge – PR – Gestão 1999/2002 – maio de 2002. Curitiba, p. 11-12. Ulisses Ka-

327
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

A organização interna do Fórum Popular Contra a


Venda da Copel, que se realizou no Plenarinho da Assembleia
Legislativa, evidencia as articulações que se estabeleciam em
torno de uma agenda de ações que, num primeiro momen-
to, por meio de um Conselho Diretivo, estruturou as seguintes
ações: 1º. Grande mutirão de coleta de assinaturas contra a
venda da Copel, lançado nos dias 23 e 24 de março de 2001,
com o objetivo de atingir um milhão de assinaturas; 2º. Mo-
bilização para aprovação do projeto de lei 13/2001, que tra-
mitava na Assembleia Legislativa, visando revogar a lei que
autorizou a venda da Copel (lei 12.355, de 08 de dez/1998);
e 3º. Realização de atos públicos, caminhadas em defesa da
Copel, reuniões, palestras, reprodução de material de divulga-
ção do movimento, atividades motivadoras e mobilizadoras.
Nesse contexto, a participação popular foi fundamen-
tal. Por envolver um aspecto tão presente na vida de toda a
sociedade – a energia elétrica – as passeatas, caminhadas,
e outras manifestações mobilizavam muitas pessoas. Merece
destaque a concentração realizada no calçadão da Rua XV
de Novembro, em Curitiba, onde o fórum entregou à popula-
ção milhares de velas, cada uma com a frase: “Essa é a Copel
de amanhã”. A mensagem, de forte impacto, sugeria que a
privatização resultaria em um futuro iluminado por velas!

O MOVIMENTO GANHA AMPLITUDE

À medida que recebia adesões e que empreendia


ações como as mencionadas, o fórum, passou a receber
grande destaque na imprensa paranaense. O Estado do
Paraná, por exemplo, em 16 de março de 2001, divulgou
manchete que havia sido lançado o Fórum Popular Contra
a Venda da Copel. O título da reportagem trazia informação
sobre as várias entidades que apoiavam o movimento, infor-
mando, inclusive, o calendário de ações programadas, entre
elas a realização de visitas às principais entidades da socie-
A BATALHA PELA COPEL

dade civil. “Está previsto ainda, um ato público na capital,


com presença de 100 mil populares”13, informava a matéria.
Entre os questionamentos feitos pelo movimento, des-
niak. De quem é mesmo a Copel? É Nossa! Edição Memorial do Senge – PR – Gestão
1999/2002 – maio de 2002. Curitiba, p. 27.
13 O Estado do Paraná, 16/03/2001.

328
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

tacavam-se os relativos ao preço da empresa. Nesse sentido,


o coordenador executivo do fórum indagava: “como que
uma empresa não competitiva consegue ter o maior lucro
entre as empresas públicas e privadas do país?”. Contestava
também as declarações do governo do estado, para o qual
a privatização era um problema federal:
O governo federal acaba de modificar decisões. A
portaria 32 dos ministérios do planejamento e Minas e
Energia autoriza a Petrobrás a aumentar o capital e se
endividar. Se o governo do Estado quisesse tratar o as-
sunto em nível de magistrado, que convoque um ple-
biscito estadual com amplo debate sobre o assunto.14

A posição da imprensa se alterou no curso da mo-


bilização. No início, as informações sobre o fórum reprodu-
ziam os argumentos do governo do Estado a favor da venda
da empresa. Na medida em que foram se intensificando as
manifestações públicas, o posicionamento da imprensa se
modificou. Foram de vários tipos essas manifestações: pas-
seatas, apresentações artísticas, panfletagens, carreatas,
audiências públicas em assembleias municipais, palestras,
seminários, publicação de cartilhas, confecção e distribui-
ção de adesivos; realização de cultos ecumênicos e de mu-
tirões para coleta de dados para a realização de plebiscito
e de uma Ação de Iniciativa Popular. A própria divulgação
dessas ações na mídia fez com que o movimento fosse bas-
tante noticiado. De fato, uma mobilização que conseguiu
138 mil subscritores no Projeto de Iniciativa Popular que or-
ganizou – ocorrência inédita, quiçá no Brasil – não podia ser
ignorado.
Na medida em que o Fórum desenvolvia suas ações,
na capital e no interior do Estado, a identidade do movi-
mento foi sendo definida e difundida, destacando o seu
caráter antiprivatização, nacionalista e ao mesmo tempo
regionalista:
CÁTIA CILENE FARAGO

Durante a entrevista coletiva de lançamento do Fó-


rum, os participantes deram as mãos e cantaram o
Hino Nacional, vestindo a camiseta com dizeres: A Co-
pel é nossa. Não deixe vender.15
14 Nelton Friedrich, O Estado do Paraná, 16/03/2001.
15 O Estado do Paraná, 16/03/2001.

329
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

O mesmo slogan estava nos adesivos distribuídos pelo


movimento que, neste ponto, já reunia muitas entidades pro-
fissionais, sindicais, estudantis e partidárias, além de receber
o apoio de parlamentares16.
É importante registrar que não havia no interior do mo-
vimento uma concepção única. Algumas entidades, como a
APP-Sindicato, por exemplo, tinham uma postura acentuada-
mente anti-neoliberal. Outras, entretanto, eram enfáticas na
defesa dos princípios do capitalismo como era o caso da Fe-
deração da Agricultura do Estado do Paraná, da Federação
das Associações Comerciais Industriais e Agrícolas do Paraná,
da Federação do Comércio do Estado do Paraná, da Federa-
ção das Indústrias do Paraná, da Federação das Empresas de
Transportes de Cargas do Estado do Paraná, da Organização
das Cooperativas do Estado do Paraná17, recomendavam
que o programa de privatização da COPEL fosse postergado.
Quando de sua retomada, as instituições empresariais apre-
ciaram, junto com o Governo e demais segmentos representa-
tivos da sociedade paranaense, como contribuir para a esco-
lha de um modelo que estivesse em sintonia com a expressão
social, econômica e política do Paraná.
Também a amplitude das ações empreendidas era
diferente entre as entidades engajadas: enquanto o CREA,
por exemplo, engajou-se integralmente na campanha con-
tra a venda da estatal, o Instituto de Engenharia preferiu
promover debates sobre o tema, “contribuindo para uma
decisão madura de seus associados”; nesses debates eram
trazidos, inclusive, os argumentos favoráveis à privatização18.

A BATALHA DEFLAGRADA

Em 07 de junho de 2001, já com personalidade jurídi-


ca definida pelo registro no Cartório de Registro de Títulos e
Documentos e pela eleição de um Conselho Diretivo, o Fó-
rum Popular Contra a Venda da Copel protocolou Projeto
A BATALHA PELA COPEL

de Decreto Legislativo em 29 de setembro de 2001 à Direto-


ria Legislativa, de autoria do Deputado José Maria Ferreira,
16 Uma relação das entidades e as respectivas comissões das quais participaram pode ser
encontrada em: Gazeta do povo de 15/08/2001.
17 Jornal Folha do Paraná. 15/06/2001.
18 Folha do Paraná, 29/07/2001.

330
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

subscrito por 26 deputados que exigiam a realização de ple-


biscito para que a população paranaense decidisse sobre o
destino da empresa. Entre as razões que fundamentaram a
justificativa do Projeto alegava-se que independentemente
da posição que se tenha, a favor ou contra a privatização, é
de bom senso que a decisão sobre a privatização da Copel
seja legitimada pelos paranaenses. Mesmo porque a venda
do controle acionário da empresa não foi tema da campa-
nha eleitoral que elegeu o atual Governo, a época Jaime
Lerner, o que torna ilegítima a sua posição.
Outra estratégia foi a organização da Ação de Ini-
ciativa Popular19, realizada em 241 municípios do estado, que
agregou um total de 120.984 proponentes com assinaturas
19 A Ação de Iniciativa Popular está prevista nos termos do artigo 67, da Constituição
do Estado do Paraná, in verbis: “Art. 67 – A iniciativa popular pode ser exercida pela
apresentação à Assembleia Legislativa do projeto de Lei, subscrito por, no mínimo um
por cento do eleitorado estadual, distribuído em pelo menos cinquenta municípios, com
um por cento de eleitores inscritos em cada um deles.” O preceito constitucional esta-
dual retro descrito, está amparado pelo mandamento superior da Constituição Federal,
do Título II – Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo IV – dos Direitos Políticos,
através do inciso III, do artigo 14, in verbis: “Art. 14 – A soberania popular será exercida
pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos e, nos
termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III - iniciativa popular”, O Regi-
mento Interno disciplina a matéria de iniciativa popular através dos incisos do artigo 244,
impondo condições para apresentação desta modalidade de proposição: “Art. 244 – ...
I – assinatura de cada eleitor deverá ser acompanhada de seu nome completo e legível,
endereço e dados identificadores de seu título eleitoral; II – as listas de assinaturas se-
rão organizadas por municípios e Distritos Administrativos ou Judiciários, em formulários
padronizados pela Mesa as Assembleia; III – o projeto será instruído com documento
hábil do Tribunal Regional eleitoral quanto ao contingente de eleitores alistados em cada
território municipal, aceitando-se, para esse fim, os dados referentes ao ano anterior, se
não disponíveis outros mais recentes; IV – será lícito a entidade da sociedade civil pa-
trocinar a apresentação de projetos de iniciativa popular, responsabilizando-se inclusive
pela coleta de assinaturas; V – o projeto será protocolado e encaminhado ao presidente
da Assembleia, que verificará se foram cumpridas as exigências constitucionais para
sua apresentação; VI – o projeto de lei de iniciativa popular terá a mesma tramitação
dos demais, integrando sua enumeração geral; VII – nas comissões ou em plenário,
transformado em Comissão Geral, poderá usar da palavra para discutir o projeto de lei,
pelo prazo de vinte minutos, o primeiro signatário, ou quem estiver indicado quando da
apresentação; VIII – cada projeto de lei deverá circunscrever-se a um mesmo assunto,
podendo, caso contrário, ser desdobrado pela Comissão de Constituição e Justiça em
proposições autônomas, para tramitação em separado; IX – não se rejeitará, liminar-
mente, projeto de lei de iniciativa popular por vícios de linguagem, lapsos ou imperfei-
ções de técnica legislativa, incumbindo a Comissão de Constituição e Justiça escoimá-lo
CÁTIA CILENE FARAGO

dos vícios formais para sua tramitação; X – a Mesa designará deputado para exercer,
em relação ao projeto de iniciativa popular, os poderes ou atribuições conferidos por
este Regimento ao autor da proposição, devendo recair sobre quem tenha sido, com
a sua anuência, previamente indicado com essa finalidade, pelo primeiro signatário do
projeto.” Fica evidente que organizar uma ação de iniciativa popular não é tão simples,
um dos fatores que pode explicar por exemplo a sua não utilização, sem desconsiderar é
lógica a pouca vontade dos parlamentares em trazer à tona na sociedade questões que
sejam de extremo e relevante valor a população.

331
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

qualificadas com título de eleitor. A ela foram anexadas ou-


tras 80 mil assinaturas coletadas em abaixo-assinado. Foram,
portanto mais de 200 mil assinaturas em apoio ao projeto de
iniciativa popular que visava impedir a venda da Copel –
muito mais do que as 60 mil necessárias para o encaminha-
mento do projeto, o que bem demonstra a dimensão do cla-
mor popular contra a venda da empresa estatal. A batalha
travou-se dentro da Assembleia Legislativa e fora dela!
Neste contexto, o repúdio à venda era manifestado
também por várias câmaras municipais20. Intensificavam-se
também as manifestações, passeatas e vigílias às portas das
casas dos deputados. Foi organizado por várias entidades,
nesse contexto, o seminário “Quanto vale a Copel?”, no
qual, por meio de perícia técnica, se questionava o modelo
de privatização proposta.21
A primeira sessão que decidiria se Ação de Iniciativa
Popular contra a venda da Copel (Projeto de Lei n.º 248/2001
que revoga a Lei n.º 12355 de 8 de dezembro de 1998) foi
realizada no dia 14 de agosto de 2001. Foi a mais longa re-
gistrada até então na história da Assembleia Legislativa do
Paraná, com mais de 22 horas de duração. Ocorreu em duas
datas, a primeira em 14 de agosto de 2001, e a segunda em
20 de agosto de 2001. Nestas ocasiões as bancadas de sus-
tentação governista e da oposição ao governo realizaram
várias manobras regimentais.
Na primeira data, os governistas, entre outras mano-
bras: tentaram impedir a pressão sobre deputados do gover-
no que poderiam mudar seu voto pela não privatização22;
tentaram através de emenda ao Regimento Interno da Casa
proibir o retorno à pauta de votações de matérias no mes-
mo ano em que foram arquivadas, dois projetos poderiam
ser resgatados pela oposição – um do bloco e outro do líder
do PPB, à época Tony Garcia, a volta dos projetos poderiam
estimular novas rebeliões entre os aliados e levar o governo
a se envolver em exaustivas negociações para aglutinar sua
A BATALHA PELA COPEL

base; e ainda, realizaram a manobra que garantiu o regime


20 Como a de Campo Largo, publicada na Folha do Paraná, 22/04/2001.
21 Ver, entre outros: Luís Antônio Rossafa. O Estado do Paraná, 10/07/2001 e Gazeta do
Povo, 02/09/2001.
22 A pressão da oposição contrária a venda da Copel conseguiu mudar a posição de voto
de dois deputados da base de sustentação do governo: Tiago Amorim (PTB) e Chico
Noroeste (PFL), além da Deputada Serafina Carrilho (PL).

332
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

de urgência para a votação de projetos que pretendiam


obstruir a desestatização da Copel23.
Por outro lado, a disputa entre oposição e governo,
se acirrava na medida que a oposição necessitava de 28
votos para aprovar o projeto para derrubar a autorização
concedida em 1998 para vender a estatal. Nesse sentido
as manobras iam das emendas ao corpo-a-corpo entre os
políticos, em especial a oposição que procurava aliciar os
deputados que apoiavam o governo, em especial os que
demonstravam certa vulnerabilidade na sua convicção. A
tentativa passava pelo adiamento da votação e derrubada
do quórum, numa tentativa de ganhar tempo para mobilizar
a sociedade e convencimento de alguns governistas a mu-
dar de opinião sobre a venda da Copel, aprovação do re-
querimento pedindo regime de urgência para o projeto que
propõe o plebiscito24.
Nessa mesma sessão foi posto em votação um outro
projeto – do deputado Braz Palma – que propunha a poster-
gação do processo de venda da Copel e a realização de
um plebiscito. Para o Fórum, a aprovação desse projeto era
importante, pois o adiamento da privatização representava
a possibilidade de aumentar o número de subscritos na Ação
de Iniciativa Popular contra a venda da Copel, bem como
a intensificação da mobilização popular. A votação resultou
em empate técnico de 26 a 26, e o presidente da Assembleia
Legislativa deu seu voto de minerva a favor do governo, e,
em consequência, o projeto de Lei de Braz Palma foi arqui-
vado. Os deputados contrários ao projeto de privatização do
governo tentaram ainda encaminhar a proposta de votação
para realização do plebiscito, o que não foi aceito pela As-
sembleia Legislativa25.
23 Em maio, por exemplo, cabe destacar o recuo do governo ao seu objetivo de barrar a
apresentação do projeto de iniciativa popular contra a privatização da companhia de
Energia (Copel). Temendo um desgaste ainda maior o líder do governo na assembleia
legislativa, Durval Amaral (PFL), foi a tribuna anunciando que iria congelar temporaria-
mente a tramitação de seu projeto de resolução, permitindo que o projeto popular e a
CÁTIA CILENE FARAGO

proposta do Deputado Tony Garcia (PPB) fossem votados. Para ele o governo tinha a
maioria e conseguiria derrubar os projetos que revogam a autorização do estado para
vender a empresa de energia. Confiando também que esta mesma maioria garantiria a
aprovação das mudanças no Regimento Interno previstas no seu projeto. (In: Governo
desiste de barrar projeto popular. Folha de Londrina, 30/05/2001)
24 Orlando Pessuti. Oposição muda estratégia para impedir privatização. Gazeta do Povo,
15/04/2001.
25 Braz Palma. Anais da Assembleia de 14/08/2001.

333
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Neste ponto, a tensão já era incontrolável e a sessão


foi interrompida pela ocupação da Assembleia por estudan-
tes, professores, funcionários públicos, diversos manifestantes
que, tendo sido impedidos de acompanhar a votação do pri-
meiro projeto de iniciativa popular da história do nosso país,
derrubaram as grades da Assembleia Legislativa do Paraná
e a ocuparam, fazendo dela, novamente, a Casa do Povo.
A participação direta dos manifestantes colocou fim
àquela primeira sessão em que estava em pauta a Ação de
Iniciativa Popular contra a venda da Copel. Os estudantes
foram os principais protagonistas do movimento naquele
contexto, destacadamente os engajados na União Para-
naense dos Estudantes (UPE) e na União Paranaense dos Es-
tudantes Secundaristas (UPES), que vieram de muitas cidades
do interior do estado, determinados a expressar seu repúdio
à política excludente e dilapidadora do patrimônio público.
Os estudantes permaneceram nas dependências da Assem-
bleia Legislativa até o dia seguinte, o governo os acusou de
provocarem prejuízos devido às depredações26 decorrentes
da ocupação. Estes, podemos considerar, certamente foram
irrisórios perto dos que resultariam da venda da Copel.
O episódio de repressão e violência que marcou o
dia 20 de agosto de 2001, é também descrito pela oposição
em Carta Aberta a População no interior da Assembleia, a
partir dela podemos rever o cenário que marcou o dia da vo-
tação do primeiro projeto de lei de iniciativa popular do país:
Neste exato momento em que redigimos este comuni-
cado, mais de 1500 policiais, do Batalhão de Choque
e da Cavalaria, tomam a Assembleia Legislativa, espa-
lhando-se pelos corredores, salas e pátios. Portando ar-
mas pesadas, próprias a uma batalha, com cães fero-
zes, cavalos, e uma disposição à violência nunca vista,
os policiais intimidam deputados e manifestantes, que
26 A participação direta dos manifestantes colocou fim a primeira sessão então iniciada em
14 de agosto de 2001. Sobre a legitimidade dos manifestantes declarou Carlos Bitten-
A BATALHA PELA COPEL

court presidente do Senge-PR: “Foi legitima a entrada deles no prédio. Com coragem,
a união Paranaense dos estudantes (UPE) e a União dos Paranaense dos Estudantes
Secundários (Upes), mobilizaram alunos que vieram de muitas cidades, determinados,
entre outros objetivos, a expressar seu repúdio pela política excludente e dilapidadora
do patrimônio público. Os estudantes permaneceram nas dependências da Assembleia
Legislativa até o dia seguinte. Por mais que o governo tenha propalado a ocorrência de
depredação, os estragos foram irrisórios perto do que poderia acontecer com o estrago
da venda da Copel.” (Edição Memorial do Senge-PR – Gestão 1999/2002 – Maio de
2002, p. 19).

334
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

se opõem a venda da Copel. O Poder Legislativo do


Estado do Paraná, principal garantidor das liberdades
democráticas do povo paranaense, não pode por pres-
são do poder Executivo sofrer esta enorme humilhação.
O direito e as prerrogativas dos deputados Estaduais, re-
presentantes da vontade popular, não podem ser vio-
lados de forma tão brutal. Estarrecido, todo o Paraná
esta vendo este espetáculo deprimente da polícia do
governador Jaime Lerner reprimindo, buscando intimi-
dar e acuar os que resistem ao escândalo da venda da
Copel. Mais de 93% dos paranaenses já deixaram claro
que não querem a venda da empresa. Como é pos-
sível esta poderosa demonstração de força bruta, de
irracionalidade, em plena vigência de um regime que
se diz democrático? Na verdade, nem mesmo nos anos
de chumbo da ditadura militar, a Assembleia Legislativa
do Paraná sofreu uma intervenção repressiva como a
que está ocorrendo agora. (Subscrevem os 26 Deputa-
dos contrários a venda da estatal)

Os jornais noticiavam que o episódio teve característi-


cas de uma batalha. O governo tratou de reforçar o esquema
policial fora da Assembleia. A tropa de choque da Polícia Mi-
litar esteve de prontidão nos portões. A possibilidade de inva-
são agitou os ânimos. O arcebispo de Curitiba à época, Dom
Pedro Fedalto, e representantes da igreja Católica dirigiram-se
até a Assembleia com a intenção de intermediar as negocia-
ções e evitar confronto de maior vulto entre os manifestantes e
a polícia. Noticiou-se, por exemplo, com a manchete “A mais
longa sessão”, que com a proibição, os populares decidiram
invadir a Assembleia, tomando o plenário e todas as galerias.
“Os cálculos eram de que 800 pessoas entraram no local, em
uma manifestação inédita na história da Casa”27.
Como a condição para a liberação do prédio pelos
estudantes foi a definição de uma data para a continuação
dos trabalhos, uma sessão foi agendada para o dia 20 de
agosto de 2001, data que ficou marcada pela violenta re-
pressão empreendida pelo governo Jaime Lerner. Na Carta
Aberta à População28, os 26 deputados contrários a venda/
CÁTIA CILENE FARAGO

privatização da Copel descrevera a invasão da casa legis-


lativa por mais de 1500 policiais do Batalhão de Choque e
da Cavalaria, que espalharam-se pelos corredores, salas e
27 Gazeta do Povo, 16/08/2001.
28 Cátia Cilene Farago, obra citada, p. 157.

335
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

pátios, montados em cavalos e dispostos à violência sem li-


mites, munidos de armas pesadas próprias a uma batalha,
acompanhados de cães ferozes. Os policiais, segundo os
parlamentares, intimidaram e agrediram deputados e mani-
festantes que se opunham à venda da Copel. A descrição
parece não dar conta do cenário de horror vivenciado por
estudantes, professores, servidores e manifestantes.
Assim, o debate em torno da sessão de 20 de agos-
to ser uma continuidade ou uma nova sessão foi objeto de
ação judicial entre outras ações que envolveram a votação,
algumas foram caçadas, mas em especial decisão contrária
ao governo, tramitou no Tribunal de Justiça decisão contrária
ao governo dada, no dia 30 de novembro, pelo desembar-
gador Clotário Portugal Neto, do Tribunal de Justiça. Ele con-
cedeu liminar num mandado de segurança ajuizado pelo
Deputado Caíto Quintana (PMDB). A decisão anulou a ses-
são da Assembleia que votou o projeto de iniciativa popular
que proibiria o governo do estado de vender a Copel. O de-
sembargador alegou vícios no processo de votação e con-
siderou inválido o voto do secretário de Transportes, Nelson
Justus (PFL), que, na última hora, substituiu o suplente Apa-
recido Custódio da Silva (PFL). Com essa decisão, o projeto
deve ser votado novamente. A votação do projeto popular
– que teve 140 mil assinaturas – aconteceu em 20 de agosto,
e foi marcada por irregularidades, autoritarismo e violência.
A base aliada ao governador Jaime Lerner conseguiu barrar
a matéria por 27 votos a favor da venda e 26 contra. Decisão
derrubada pelo governo.
A derrota, entretanto, não foi somente do movimen-
to contrário à privatização da Copel. A recusa em ouvir o
clamor da população teve efeitos deletérios para o gover-
nador Jaime Lerner, que não conseguiria, nas próximas elei-
ções, eleger seu sucessor no governo. Também os deputados
de sua bancada de sustentação sofreram consequências
A BATALHA PELA COPEL

eleitorais: dos 27 deputados que votaram contra o projeto


de iniciativa popular, 10 não se reelegeram. Portanto, pode-
mos concluir que, se os episódios do dia 14-15 e 20 de agosto
de 2001 significaram uma “derrota política” do Fórum Popular
Contra a Venda da Copel, esta derrota atingiu também os
defensores do projeto de privatização da empresa.
336
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

MAS A LUTA CONTINUOU

O Fórum Popular Contra a Venda da Copel não


se rendeu diante da derrota na votação do projeto de ini-
ciativa popular. Em que pese os comitês de coordenação
do Fórum não acreditarem que poderiam obter qualquer
vitória na esfera judicial, foi ali que se efetivaram os resul-
tados. A desconfiança em relação ao judiciário não era
sem fundamento. Desde 1998, Fernando Henrique Cardoso
e seus correligionários bateram recordes em privatizações,
transferindo das mãos do estado lucros líquidos e certos
à iniciativa privada, na maioria das vezes multinacionais.
Quando levados ao judiciário questionamentos sobre esse
“entreguismo”, a resposta dos tribunais, principalmente
os estaduais, tinha sido até então uníssona e unânime de
apoio às privatizações.
As esperanças no judiciário, entretanto, foram se
restabelecendo na medida em que as respostas passaram
a ser à demanda popular contra a privatização da Copel.
Uma dessas foi a decisão de 1º grau do Tribunal de Justiça
do Estado que determinava nova votação do projeto de ini-
ciativa popular proibindo a venda da Copel, atendendo a
ação proposta pelo deputado Caíto Quintana29 (PMDB), que
alegava irregularidades na sessão em que o projeto foi rejei-
tado, em 2001.
Foram inúmeras as ações contra o governo, desde
o início da desestatização até 28 de outubro de 2001. A três
dias do leilão de privatização da Copel, que ocorreria em
31 de outubro de 2001, cerca de 100 processos tramitavam
na Justiça Federal e na Estadual. Por fim, em 20 de outubro
de 2001 a resposta definitiva veio com a liminar à ação pro-
posta por Guilherme Amintas, membro do Fórum, concedida
pela Juíza Federal substituta Ivanise Corrêa Rodrigues, da 9ª
Vara Cível30, suspendendo o leilão de privatização da Co-
pel marcado para 31 de outubro de 2001. O Superior Tribunal
de Justiça (STJ) reforça a impossibilidade da continuação do
CÁTIA CILENE FARAGO

processo de privatização – pelo menos até o julgamento de


todas as ações (cerca de 100) contra a venda que tramita-
vam em diferentes instâncias judiciais.
29 O Estado do Paraná, 23/09/2003.
30 “Justiça federal suspende leilão de venda da Copel”. O Estado do Paraná. 20/10/2001.

337
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Entre os motivos da não privatização é oportuno


destacar os pontos de vista, por exemplo, da Associação
Comercial do Paraná: para o presidente da instituição, a de-
cisão foi acertada, pois “atende ao desejo da maioria da
sociedade paranaense, que vinha se manifestando contra
a venda do controle acionário da melhor companhia ener-
gética do país”31. Já para o vice-presidente da ACP, Cláudio
Slaviero, “nós só temos a aplaudir essa decisão, que agora
sim é coerente, inteligente, racional – diferentemente da in-
sistência em vender a Copel, até porque não existem empre-
sas interessadas em participar do leilão”.32 Este comentário
do presidente da ACP foi realizado por telefone, posto que
este se encontrava nos EUA.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os episódios do dia 15 e 20 de agosto de 2001 mar-


cam uma “aparente derrota política” por parte do Fórum
Popular Contra a Venda da Copel. Ela foi evidenciada na
aprovação pela bancada de sustentação política do gover-
no Jaime Lerner na privatização da Copel. A consequência,
e daí a derrota, se revelou pela impopularidade deste gover-
no e de sua bancada por agirem arbitrariamente ao dispor
capciosamente da “liberdade e dos bens do povo”. O “exe-
cutivo empregou a força, os recursos do Tesouro e os cargos
públicos da sociedade para corromper os representantes e
obter sua conivência com seus propósitos”33
Ao contrário do que supunham, o povo, ou seja, os
eleitores tiveram a partir do debate instigado pelo Fórum Po-
pular Contra a Venda da Copel e dos argumentos por ele
suscitado clara compreensão desta imposição. Quadro visí-
vel que se revelou nas eleições do ano de 2002, e acome-
teu tanto legislativo quanto executivo. E aí, portanto, a vitó-
ria destes no parlamento acabou se tornando o “feitiço que
virou contra o próprio feiticeiro”, uma vitória formal frente à
A BATALHA PELA COPEL

derrota política diante da sociedade como um todo. Mesmo


acreditando conseguir “alívio eleitoral” e por fazer uma tro-
31 Repercussão: ACP desejo da maioria. Gazeta do Povo, Curitiba, 26 jan., 2002, p. 18.
32 Idem.
33 John Locke. Carta acerca da tolerância; Segundo tratado sobre o governo, ensaio acer-
ca do entendimento humano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p.219.

338
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

ca vantajosa: “perdeu o ingresso de dinheiro que espalharia


placas de obras pelo Estado, mas afastou o carimbo de liqui-
dante da empresa preferida dos paranaenses”34
Diante da falta de recursos também padece o go-
verno diante do que nós poderíamos denominar de derrota
econômica, ou ainda a inviabilidade de concretização de
um “caixa dois”. É importante lembrarmos que é no governo
de Jaime Lerner, mesmo com o consentimento do Legislati-
vo, que a privatização da Copel é suspensa, atribuindo a de-
cisão às novas regras que aumentam o controle estatal sobre
o setor. Seja pelas novas regras advindas do “apagão”, pelo
cenário internacional pós-onda de terror ou pela influência
da crise Argentina, o principal balde de água fria no proces-
so de privatização foi, sem dúvida, o impedimento pelo Su-
perior Tribunal de Justiça (STJ) da continuação do processo
– pelo menos até o julgamento de todas as ações (cerca de
100) contra a venda que tramitavam em diferentes instâncias
judiciais. O que sem dúvidas nos deixa claro o entendimento
da justiça sobre a violação do interesse público neste pro-
cesso, que, aliás, já se encontrava evidente nos argumentos
levantados pelo Fórum Popular Contra a Venda da Copel.
O Fórum Contra a Venda da Copel não manifestou
mais do que Locke35 enunciara no século XVII, apesar de não
assim compreenderem os políticos da Assembleia Legislativa
e nem o Poder Executivo. O Fórum representou a possibilida-
de de revolta, de manifestação popular contra o arbitrário
Governo de Jaime Lerner, bem como a repulsa a nefasta po-
lítica neoliberal empreendida por ele. O entrave político que
se deu a partir da votação do Projeto de Iniciativa Popular
Contra a Privatização da Copel, representou, sobretudo, a
possibilidade de dissolução do governo, ainda que de forma
idealizadora.
Ainda que institucionalizado como Fórum, ele se re-
vestiu de um caráter popular. Nesse sentido, a sua institucio-
nalização, definição de metas e objetivos estratégicos para
CÁTIA CILENE FARAGO

concretizá-los, não retira o seu caráter de movimento social.


É necessário compreender que o Fórum atuou em questões
que diziam respeito à participação dos cidadãos na gestão
34 Lerner desiste de vender a Copel. Gazeta do Povo, Curitiba, 26 jan., 2002, p. 18.
35 Ibidem.

339
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

dos negócios públicos. Sobretudo à medida que as políticas


neoliberais avançam, a organização da sociedade civil se
impõe.
A BATALHA PELA COPEL

340
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

OS ORGANIZADORES
Jhonatan Uewerton Souza nasceu em Japurá, no
noroeste do Paraná e atua como professor efetivo no Insti-
tuto Federal do Paraná (IFPR), Campus Avançado Goioerê.
É graduado em História pela Universidade Estadual de Ma-
ringá (UEM) e mestre em História pela Universidade Federal
do Paraná (UFPR), com a dissertação O jogo das tensões:
clubes de imigrantes italianos no processo de popularização
do futebol em Curitiba (1914-1933). Desenvolve estudos nas
áreas de história do esporte, lazer, cultura popular, trabalho,
imigração e pós-abolição. Coordena, no âmbito do IFPR, o
projeto Driblando a exclusão: o futebol dos trabalhadores em
Curitiba (1900-1950).
Joseli Maria Nunes Mendonça é professora no De-
partamento de História da Universidade Federal do Paraná
(UFPR). É doutora (2004) em História pela Universidade Esta-
dual de Campinas (UNICAMP), instituição na qual também
se graduou (1988) e concluiu mestrado (1995). Pesquisa nas
áreas de História do Trabalho, Imigração, Escravidão e His-
tória Pública. Está em Curitiba há oito anos apenas, mas já
se sente bastante paranaense. Tem muito respeito pelos mo-
vimentos sociais desse território e aspira que a justiça social
prevaleça em todos os lugares desses Brasis.

OS AUTORES
Angelo Priori é doutor em História pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP), com estágio
de Pós-Doutoramento em História na UFMG. Professor do De-
partamento e do Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Estadual de Maringá/PR. Publicou, entre ou-
tros, os livros: O Protesto do Trabalho (Eduem), O Levante dos
Posseiros (Eduem), História do Paraná: novos caminhos e no-
vas abordagens (CRV) e O Anticomunismo e a Cultura Auto-
ritária no Brasil (Prismas).
Antonio Marcos Myskiw é professor da área de Histó-
ria da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus
341
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Realeza. Graduado em História pela Universidade Estadual


do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Mestrado e Doutorado em
História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Coordenador Adjunto do Mestrado em História, da UFFS,
Campus Chapecó. Tem dedicado atenção e pesquisa à his-
tória da região de fronteira entre Brasil-Argentina-Paraguai,
sobretudo com ênfase aos movimentos sociais, campesinato
e conflitos agrários. Dentre as principais publicações está  A
fronteira como destino de viagem: a Colônia Militar de Foz do
Iguaçu (1888-1907), resultado de tese de doutorado. Desde
meados de 2015, exerce a função de Diretor Geral do Cam-
pus Realeza, da UFFS.
Artur Freitas é pesquisador em história da arte, pro-
fessor da Universidade Estadual do Paraná (campus Curitiba
II – FAP/UNESPAR), professor do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR
- Mestrado e Doutorado) e autor de Arte de guerrilha (São
Paulo: Edusp, 2013), Festa no vazio (São Paulo: Intermeios,
2017) Arte e contestação (Curitiba: Medusa, 2013), Arte e po-
lítica no Brasil (org. São Paulo: Perspectiva, 2014), Imagem,
narrativa e subversão (org. São Paulo: Intermeios, 2016) e His-
tória e arte (org. São Paulo: Intermeios, 2013). É doutor e mes-
tre em História pela Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/
UFPR), com pesquisa sobre arte e política no Brasil. Graduou-
-se em Artes pela mesma instituição (DEARTES/UFPR).
Carla Cristina Nacke Conradi é formada em História
pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOES-
TE), mestre em História pela Universidade Federal da Gran-
de Dourados (UFGD) e doutora em História pela Universida-
de Federal do Paraná (UFPR). Autora da tese de doutorado
Memórias do sótão: vozes de mulheres na militância política
contra a ditadura no Paraná (1964-1985). Docente adjunta
do curso de História da UNIOESTE, coordenadora do LAPEG
(Laboratório de Pesquisa e Ensino de Gênero) da mesma ins-
tituição. Orientadora do Projeto de extensão “NUMAPE: vio-
lência contra as mulheres e Políticas Públicas afirmativas no
Oeste do Paraná”, do Programa Universidade Sem Fronteiras,
da Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do
Paraná – SETI.
342
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Cassius Marcelus Cruz é licenciado em História pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Especia-
lista em História e Cultura Africana e Afrobrasileira, Educação
e Ações Afirmativas no Brasil pela Universidade Tuiuti do Para-
ná (UTP); Mestre em Educação pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR); Acadêmico do Curso de Doutorado em Ciên-
cias Sociais, pela Universidade Estadual de Campinas (UNI-
CAMP); Pesquisador vinculado ao Laboratório de Pesquisa
e Extensão com Povos Tradicionais Afro-americanos – LAPA
UNICAMP e ao Núcleo de Estudos Afrobrasileiros da UFPR. Di-
retor do Colégio Estadual Quilombola Diogo Ramos e mora-
dor da Comunidade Quilombola João Surá.
Catia Cilene Farago possui graduação em Filosofia
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e em Direito pelo
Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), é especialista em
Ciências Criminais pelo Praetorium – Instituto de Ensino, Pes-
quisa e Atividades de Extensão em Direito e mestre em Socio-
logia pela UFPR (2006). É docente efetiva do Instituto Federal
Baiano (IF-BAIANO) onde coordena o Grupo de Estudos em
Ciências Humanas – GEHU.
Claudia Monteiro possui graduação em História pela
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), mes-
trado em História pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) e doutorado em História pela Universidade Fe-
deral do Paraná (UFPR). Atualmente é professora adjunta do
curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Pa-
raná (UNIOESTE). Autora do livro Fora dos Trilhos: a militância
comunista na Rede de Viação Paraná-Santa Catarina (1934-
1945).
Guiomar Inez Germani é bacharel em Administração
pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Mestre em
Planejamento Urbano e Regional na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), tendo sua dissertação publicada
sob o título Expropriados Terra e água: o conflito de Itaipu.
Doutorou-se em Geografia pela Universidade de Barcelo-
na, defendendo a tese “Cuestión Agraria y asentamientos
de población en el área rural: la nueva cara de la lucha por
la tierra. Bahia. Brasil (1964-1990)”. Atualmente, é professora
permanente do Programa de Pós-graduação em Geografia
343
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

(PPGEO-UFBA) e coordenadora do Grupo de Pesquisa Geo-


grafAR – A Geografia dos Assentamentos na área Rural. Tem
direcionado sua vida acadêmica e militância junto aos mo-
vimentos sociais do campo e, como reconhecimento de seu
trabalho, recebeu o título de “Cidadã Baiana”, em 2016.
Isabela da Cruz é graduada em História pela Univer-
sidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO) e
acadêmica do Curso de Direito pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR). Integrante da Comunidade Remanescente
de Quilombo Paiol de Telha, da Federação das Comunida-
des Quilombolas do Paraná (FECOQUI) e da Coordenação
Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas. Integrante da Rede de Mulheres Negras-PR,
compôs o Grupos Assessores da Sociedade Civil da ONU Mu-
lheres durante o período de 2015-2016.
João E. Fabrini possui graduação, mestrado, doutora-
do e pós-doutorado em Geografia. Professor de graduação
e pós-graduação da Universidade Estadual do Oeste do Pa-
raná – UNIOESTE e Universidade Federal da Grande Dourados
– UFGD. Escreveu vários artigos científicos e livros publicados
sobre movimentos sociais, lutas camponesas, assentamentos
de sem-terra, reforma agrária, cooperativas agrícolas.
Luiz Carlos Ribeiro é professor do Departamento de
História da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Realizou
mestrado na Universidade de São Paulo (USP) e Doutorado na
Université Sorbonne Nouvelle – Paris III (1991), trabalhando com
História Social e Política contemporânea. Coordena o grupo
de pesquisa sobre Futebol e Sociedade. Atualmente coorde-
na projeto sobre emigrantes brasileiros em Portugal e a circu-
lação irregular de jogadores brasileiros no mercado europeu.
Maria Luiza Andreazza é doutora em História pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estágios de
pós-doutorado na UFRJ e na UNICAMP; professora dos cursos
de graduação e pós-graduação em História da UFPR entre
1991 e 2014 e pesquisadora do CEDOPE/UFPR desde 1997.
Suas pesquisas, largamente apoiadas pelo CNPq, buscam
relacionar movimentos de população e contatos culturais
bem como famílias e sociabilidades nos Paraná tradicional
e moderno. Publicou Paraíso das Delícias: um estudo da imi-
344
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

gração ucraniana para o Paraná (1895-1995) e, em co-auto-


ria, Paraná: cultura e educação e Portuguesas na diáspora:
histórias e sensibilidades, além de capítulos de livros e artigos
publicados no Brasil e no exterior.
Noemi Santos da Silva é graduada e mestre em His-
tória pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmen-
te é doutoranda em História na Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP) e bolsista FAPESP. Sua área de estudos
abrange a educação de escravos e libertos e o associati-
vismo negro durante a abolição e pós-abolição no Paraná.
Esses temas foram desenvolvidos na Dissertação intitulada O
batismo na instrução: projetos e práticas de instrução formal
de escravos, libertos e ingênuos no Paraná provincial (2014) e
na colaboração com os livros A escrita da História: fragmen-
tos de historiografia contemporânea (2013) e Rascunhos Ca-
tivos: educação, escolas e ensino no Brasil escravista (2017).
Pamela Beltramin Fabris é mestra e doutoranda pelo
Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Fe-
deral do Paraná (UFPR). Autora de artigos e capítulos de livros
sobre conflitos interétnicos, debates raciais e trabalhadores
em Curitiba durante a Primeira República. Atualmente pes-
quisa formas de sociabilidades de trabalhadores e intelec-
tuais negros durante o Império e a Primeira República. 
Paulo José Koling é professor na Universidade Esta-
dual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Câmpus de Marechal
Cândido Rondon, vinculado ao Curso de Graduação de His-
tória e no Programa de Pós-Graduação em História, Poder e
Práticas Sociais. É graduado em Filosofia na Universidade de
Passo Fundo (UPF) e Mestre e Doutor em História pela Ponti-
fícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS),
atua na disciplina de História da América (graduação) e na
Linha de Pesquisa Estado e Poder (PPGH).
Paulo Pinheiro Machado é professor do Departamen-
to de História da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), onde leciona no Curso de Graduação e no Programa
de Pós-Graduação em História, Bolsista em Produtividade de
Pesquisa II do CNPQ, autor dos livros A política de Coloniza-
ção do Império (Ed. UFRGS, 1999) e Lideranças do Contesta-
do (Ed. UNICAMP), entre outras obras.
345
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

Reginaldo Benedito Dias é Professor Associado do


Departamento de História e do Programa de Pós-graduação
em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mes-
tre e doutor em História Política pela Universidade Estadual
Paulista (Unesp); pós-doutor em História pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além de vários artigos cien-
tíficos extraídos dessas investigações, como autor, coautor e
organizador, tem alguns livros publicados sobre a história de
movimentos políticos e sobre história regional, entre os quais
podem ser citados: Sob o signo da revolução brasileira: a ex-
periência da Ação Popular no Paraná (Eduem, 2003); Marin-
gá e o Norte do Paraná: estudos de história regional (Eduem,
1999); Uma universidade de ponta-cabeça (Eduem, 2007).
Tatiana Takatuzi é Bacharel e Licenciada em Histó-
ria pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2001 e
mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) em 2005. Com foco de pesquisa
na História Indígena e do Indigenismo, defendeu a disserta-
ção de mestrado com o trabalho Águas Batismais e Santos
Óleos: uma trajetória histórica do aldeamento de Atalaia,
sob orientação do prof. Dr. John Manuel Monteiro, que foi
publicada, em 2014, pela Sociedade de Amigos do Museu
Paranaense. Tem experiência na área de Antropologia e
Etnologia, atuando na consultoria de estudos e pesquisas
envolvendo comunidades indígenas e quilombolas. Desde
2011 é coordenadora do Setor de História do Museu Para-
naense, exercendo atividades na organização e pesquisa
do acervo histórico, na curadoria e montagem de exposi-
ções, no atendimento a pesquisadores, na consultoria téc-
nica e realizando conferências a respeito das coleções mu-
seológicas do Museu Paranaense.
Thiago A. P. Hoshino é doutorando do Programa de
Pós-Graduação em Direito da UFPR, vinculado ao Núcleo de
Constitucionalismo e Democracia, e professor universitário.
Concluiu o mestrado na mesma instituição, com a disserta-
ção Entre o espírito da lei e o espírito do século: a urdidura de
uma cultura jurídica da liberdade nas malhas da escravidão
(Curitiba, 1868-1888). Pesquisador do INCT Observatório das
Metrópoles e do Grupo de Estudos Multidisciplinares em Ur-
banismos e Arquiteturas do Sul (MALOCA/UNILA), desenvolve
346
PARANÁ INSURGENTE: HISTÓRIA E LUTAS SOCIAIS – SÉCULOS XVIII AO XXI

investigação nas áreas de História Social, Relações Étnico-Ra-


ciais, Antropologia Jurídica e Direito à Cidade, havendo pu-
blicado trabalhos como O Atlântico Negro e suas margens:
direitos humanos, mitologia política e a descolonialidade da
justiça nas religiões afrobrasileiras (2014) e Law into the Far
West: Territorial Rights, Indigenous Peoples and Spatial Imagi-
nation in the Baptism of the Brazilian Nation-State (2017). Entre
os anos de 2011 e 2012, integrou o projeto Negros, libertos e
associados: identidade cultural e território étnico na trajetória
da Sociedade 13 de Maio (1888-2011), o qual obteve apoio
do PAIC – Programa de Apoio e Incentivo à Cultura do Muni-
cípio de Curitiba.
Thiago Ernesto Possiede da Silva é nascido em Para-
naguá, graduado em História pela Universidade Estadual do
Paraná (UNESPAR), Campus de Paranaguá, em 2010. Mestre
em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), em
2014, com a dissertação Entre sapatos & livros: A trajetória
de um sapateiro na militância comunista em Paranaguá/PR -
1935 a 1964. Atualmente é doutorando em História, também
pela UFPR, com defesa de tese prevista para 2019. Tem inte-
resse de pesquisa nos seguintes temas: História Social do Tra-
balho e da Cultura; Pensamento Autoritário e Autoritarismo
de Estado; Teoria Política e História dos Conceitos.

347
CASA LEIRIA
Rua do Parque, 470
São Leopoldo-RS Brasil
Telefone: (51)3589-5151
casaleiria@casaleiria.com.br
A leitura deste livro é imprescindível,
pois nele estão narradas as lutas dos po-
vos oprimidos, com ênfase no Estado do
Paraná, e seus significados. Resultado de
um notável trabalho de pesquisa históri-
ca, cuidadosa com suas fontes, rigorosa em
sua cientificidade, é também estimulante,
incitante e, admito, emocionante, porque
mostra o esforço de nossos antepassados –
e o alto preço que pagaram – para tentar
fazer deste mundo um lugar melhor.
A atualidade desta obra se apresenta as-
sim de duas maneiras: primeira, ao res-
gatar as lutas de escravos, posseiros, imi-
grantes, operário, trabalhadores faz justiça
àqueles que não tiveram voz no tempo em
que atuaram. Dá vida aos seus mártires
e heróis - sua maioria anônimos -, conta
a sua história e a história do mundo em
cada época, em reconhecimento à sua im-
portância. Coloca seus lutadores em lugar
de destaque, merecido, necessário; em
segundo lugar, encoraja à luta as pessoas
deste século, a partir dos exemplos do pas-
sado, despertando em nós o gérmen da re-
sistência e da transformação.
Encerro com trecho de um poema de Edé-
sio Passos, insurgente paranaense que na
atitude e nas palavras também desvela
este sentimento que a obra nos passa:
Não desdenham os perigos, embora
os saibam muitos.
Armam-se de paciência, mas não
mais
resignada. Passou o tempo da espera
inútil.
Vale sim o tempo necessário para
transitar
De uma margem para outra, atentos
Para que essa energia não se perca.
Na certeza de que agora vai ser faca
amolada.
(Agora Vai Ser Faca Amolada,
Edésio Passos)

André Passos
Presidente do Instituto Edésio Passos
A leitura deste livro é imprescindível, pois nele estão
narradas as lutas dos povos oprimidos, com ênfase no Estado
do Paraná, e seus significados. Resultado de um notável traba-
lho de pesquisa histórica, cuidadosa com suas fontes, rigorosa
em sua cientificidade, é também estimulante, incitante e, ad-
mito, emocionante, porque mostra o esforço de nossos antepas-
sados – e o alto preço que pagaram – para tentar fazer deste
mundo um lugar melhor.
André Passos
Presidente do Instituto Edésio Passos

CASA LEIRIA

Vous aimerez peut-être aussi