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OBRAS COMPLETAS

DE

A1ÍT0NI0 FELICIANO DE CASTILHO


"VOXatJlvdE
COMPLETAS DE i . F. DE CASTILHO
evistas, annuUdis, e pr»-.fapiarfas pur uni de sens filhos
LXIV

CASTILHO
PINTADO POR ELLE PR0PR10

V O L U M E I

LISBOA
KMPRKZA DA HISTORIA DK PORTUGAL.
Sociedade Editora
LIVRARIA MODERNA TYPOGRAPHU
Ena Rus-csta. 9 3 45, Bua Ivens
1905»
VOLUMES PUBLICADOS:

I — A M O R E MELANCOLIA.
I I — A CHAVE DO ENIGMA. Ádnrtencia dos Editores
I I I — C A R T A S DE E C C O E NARCISO.
I V e V — F E L I C I D A D E PELA AGRICULTURA (2 vol.)
V I e V I I — A PRIMAVERA ( I vol.)
V I I I a X V — V i v o s E MORTOS — A p r e c i a ç õ e s m o r a e s ,
literarias, e artísticas (8 v o l . )
X V I a X V I Í I — E X C A V A Ç Õ E S POÉTICAS (3 v o l ) Entregamos hoje ás curiosidades insaciaveis
X I X e X X — O PRESBYTERIO DA MONTANHA (2 vol.)
X X I e X X I I - O OUTONO (2 vol.)
o justas do Publico intelligente mais um inédi-
X X I I I a X X V I — Q U A D R O S HISTORICOS DE P O R T U G A L to de Castilho. A historia d'este inédito é a
(4 VOL) seguinte :
X X V I I e X X V I I I — N O V A S EXCAVAÇÕES POÉTICAS (a v.) #
X X I Y a X X X I I — C A M Õ E S , drama e notas (4 v o l )
X X X I U — C A N A C E , tragedia original.
X X X I V — U M ANJO D» PELLE DO D I A B O . — O CASAMENTO Quando se imprimia 110 Rio de Janeiro a
DE OIHO. traducção paraphrástica dos Amores de Ovidio.
X X X V — A R I S T O D E M O , tragedia. — A VOLTA INESPE- desejava o editor, José Feliciano de Castilho,
RADA, farça.
coroal-a com um largo estudo sobre a vida de
X X X V I — A FESTA DO AMOR FILIAL. — A FILHA PARA
CASAR.
seu irmão Antonio. Escreveu-lhe n'esse senti-
X X X V I I e X X X V I I I — P A L E S T R A S RELIGIOSAS E CON- do, pedindo-lhe esclarecimentos auto-biographi-
SOI ACÕES (2 v o l . ) eos, porque a verdade era que, dez annos mais
X X X I X a X L V - CASOS DO MEU TKMPO ( 7 v o l . ) novo que o seu primogénito, ignorava José
X L V I — E S T R E I A S P O E I C A S para o a n n o i 8 s 3 ( I v o l . )
X I V I I a L — T E L A S I ITERARIAS ( 4 v o l . )
Feliciano pormenores interessante da vida d'el-
L I — 0 > CIUMKS DO BARDO, A S FLORES, E A CONFISSÃO Je. A emigração, as viagens de um, a demora
DE AMI-LIA ( I vol.) do outro na Castanheira do Vouga, separaram-
L I I e L I I I — M I L E U>« MYSTERIOS (2 v o l ) n os muito tempo: de modo, que a reconstruc-
L I V — A NOITE DO CASTKLI O.
L V — T R I B U T O PORT"GUEZ K MEMOR>A DO LIBERTADOR.
ção completa de uma tal vida era impossivel.
L V I e L V I — T R A T A D O DE METRIFICAÇÃO ( . v o l . ) para quem não tinha bossa, tempo, habito,
L V I 1 1 a I X — N o \ AS TELAS LITERARIAS ( i vol-) occasião, para pesquisas benedictinas. nem
I . X I L X 1 I , L X I 1 I — M E T H O D O PORTUGU-Z DE LEITUH* possuia o don de adivinhar.
Í3 v o l . ) n DIRECTÓRIO DO MESMO.
L X I V - C».STILHO PINTADO POR BLLE PROPWO Castilho Antonio respondeu pouco mais ou
menos:
NO PRELO• — Homem. deiTa-í«= Homenagens d e:
1 . X I V — C A S T I L H O PINTADO POR ELLE PROVRSO ( \ul). v.ís JH st- proeum a mortvs, »>«.> •nsfUínro ci-
6 Empreza 'da Historia de Portugal (}hr<i* oompl«t«s d* OnsWho 7

neri. Nào sei se as merecerei ou n ã o ; se a-s


viesse a merecer, o futuro m'as prestaria. Por
ora é cedo. Receber palmas por mão de um
irmão eompromette a imparcialidade. Entretanto, depois de ouvir ler os primei-
Replicou Josá Feliciano: ros paragraphos, passou-se no ânimo do Poeta
— Tudo isso assim é, a nada d'is»o vale um phenomeno, que n'elle era vulgar: saltou
dois caracoes. Eu nào pretendo jnlgar-íe : que- da repugnancia, ao gosto; do mero entreteni-
ro apenas juntar materiaes fidedignos para a mento, á p a i x ã o ; ditou paginas, e paginas, <•
chronica da tua vida. Manda, o quanto antes. paginas, que em successivos paquetes foi en-
Tornou Antonio : viando para o Rio de Janeiro. Essas paginas,
— Não mando. Revolver o passado nó traz engendradas ao correr da penna, tem-n-as hoje
saudades amargas, sem fruto nem deleite para o leitor entre mãos. O que era reservado em
leitores mais ou menos indiflerentes. Parece- 1858, deixou de o ser hoje, em 1 9 0 9 ; o tem-
ria fatuidade intolerável subscrever eu notas po é um grande inconfidente, quando se trata
anto-biographicas. Fugi sempre a essas exhi- de homens notáveis. Coqfiamos pois affoita-
bições. A minha vida é obscura; não tem pe- mente ao Publico isso, que o Poeta apenas
ripécias que arrebatem. A minha biographia considerava digno dos olhos e da intimidade
ostá nas minhas obras, boas ou más. Deixa-me. de um irmão.
Volveu ainda J o s é : Servem todas estas declarações, tão minu-
— Não te deixo, e m quanto não ,»muires. ciosas quanto verdadeiras, para mostrar que.
Pouco sei de certos períodos da tua vida, se- se n'um ponto ou outro (e em muitos), o tom
não o pouquíssimo que se colhe de livros tens. das presentes notas biographicas se nos pode
Uma de duas: ou me mandas coisa que me figurar emphaticamente presumpçoso; se o au-
encaminhe, ou n ã o ; no caso affirmativo, posso tor parece contemplar-se a si proprio com be-
produzir obra que se leia, c que venha a guiai' nevolencia excessiva ; se despende longos para-
futuros narradores; no caso negativo, direi, graphos no commentario de actos seus e inten-
com muitos erros e lacunas, o pouco que son- ções suas; tudo isso se deve c o m justiça attri-
ber, até com o risco de incorrer no teu desa- buir á sobrexcitação nervosa, em que o tinha
grado, e na critica publica. VoVn mon dernhr eollocado a campanha longa e sangrenta do
mot. Methodo portuguez. Os principios de justiça,
Forçado aos seus entrincheiramentos. o ven- innatos e firmes no coração de Castilho, dão-
cido da influencia que sobre ellc exercia o ir- lhe ás vezes palavras, e phrases, e paragra-
mão, pediu Castilho a um amigo, o nosso bom phos. e laudas inteiras, de insoffridos sentimen-
Antonio Justino Simoes de Cabe lo, esboçasse tos, que representam á primeira vista inimo-
alguns apontamentos, que elle depois reveria destia exagerada, mas são apenas a reposição
Cabedo .obedeceu, e principiou r-, tarefa. leal da verdade nos seus eixos, o .> possível
Obras completas de Castilho 9
8 1Smpreza da Historia de Portugal

rias advertências das Excavações poéticas, quem


protesto contra muitas offensas. <-• muitas in-
pintou o monumental prologo do Presbyterio da
gratidões.
montanha, devia ter mais vezes tomado para
D e mais a mais: nada d'isso era destinado
confidente o Publico Iedor.
á impressão; o que ahi nos conservou o acaso,
A própria desegualdade no tom geral (Tes-
não passava de confidencias no seio da ami-
tas paginas é encantadora. Muita vez se dei-
sade mais intima: c <; quem é que no seio
xa o Poeta elevar até aos arroubos da elo-
da amisade não desabafa de modo analogo,
quência; outras vezes, no estylo médio da
uma vez ou outra, agora ou logo. aqui ou
sua conversação-, dá-nos a illusão de que esta-
acolá, no seu muito ou no seu p o u c o ? ^;Quem
mos a escutar-lhe a voz na intimidade; o es-
ha, que não desnude a consciência com um
tylo familiar prende-se em certos casos com o
amigo ou um irmão ? O que perante o Publico
sublime; o que tudo presta a esta série de ca-
seria reprehensivel, tem todos os foros de le-
pítulos uma variedade, uma pujança, um ca-
gitimo e justo no silencio o resguardo de uma
minhar libérrimo, que n'outras composições da
correspondência epistolar.
mesma penna se não encontram.
P o r ultimo: <Í Quem sc atreveria a estra-
nhar qualquer exageração immodesta n'uma #
alma de poeta V Um poeta nào é outra coisa,
senão uma exageração permanente, j á de sen-
Este volume é portanto precioso como re-
timentos, j á de ideias, j á de affeiçoes, T e m tão
trato duplo: do homem, e do artista: do es-
pouco das vantagens materiaes do mundo, que
critor, e do conversador.
é bem lh'as consintâmos ideaes, e o deixemos
Basta de prologo. Fale o Poeta.
pairar a seu sabor na região vaga das suas
satisfações de amor proprio. Em Castilho,
esses desabafos, assim lançados no ouvido de
um irmão querido, são a compensação e o cor-
rectivo das severidades inauditas, com que em
muitos passos das suas obras se penitenceia
de desprimores literários.

A ' vista d este precioso inédito, agora sal-


vo da destruição, faz pena que o autor se não
desvelasse em deixar mais pormenores de
si mesmo. Quem escreveu isto, quem deva-
neou 4 chave do enir/ma. quem traçou as va- VOL. LXIV
CASTILHO
PINTADO POR ELLE PROPRIO

APONTAMENTOS AOTO-BIOGRAPBICOS

escritos em 1858, a instancias do Conselheiro José Feli-


ciano de Castilho Barreto de Noronha, como elemen-
tos para uma YIDA que projectava do Poeta.
(De Lisboa para o Rio de Janeiro)

1,° M A S S O

Nascimento.
Nasceu a 26 de Janeiro de 1800 em Lis-
boa, defronte da torre de S. Roque.

II

Sarampão.
Cegou de cinco para seis annos do saram-
po que se lhe recolheu. Seu pae, que era L e n -
te de Medicina na Universidade de Coimbra,
empregou, por si e pelos seus collegas, todos
12 Empresa 3a Historia ãe Portugal Obras completa* de Castilho 13

os exfórços para vencer o m a l ; mas só em Mais de uma vez Peixoto convidou os outros
pequena parte o conseguiu. professores, seus collegas n'aquelle Geral, e
outras pessoas de fora, para presencearem
aquelles singulares exercicios. N u m a sua con-
III ta annual á Junta da Directoria geral dos E s -
tudos dizia elle, fazendo especial menção d'este
Estudo do Latim. discipulo, que, se tivesse impedimento para re-
ger a cadeira, tinha n'elle quem podesse sup-
Estudara o ler e escrever antes da invasão prir as suas vezes.
da moléstia. Estudou o Latim com José Peixoto
do Valle, um dos mestres mais hábeis d'aquel-
la disciplina, que professava havia j á então IV
quarenta annos. Foi isto no Geral do Cunhal
das bolas. Estudo da Rhetorica.
Peixoto do Valle, poeta latino e portuguez
também, havendo-lhe tomado particular amisa- No mesmo L y c e u estudou a Rhetorica com
de, metteu-o na versificação latina, sendo n'esta Maximiano Pedro de Araujo, também poeta,
Lingua que o pequeno versejou antes de sa- traductor de Juvenal e Pérsio, autor de odes
ber a medida dos versos portuguezes. pindáricas, autor e tradutor de varias peças de
Nas quartas e sabbados, quando o Mestre theatro. Também entre este mestre e o discipu-
dava themas para se escreverem na aula, cha- lo se deram relações literarias, notáveis em
mava-o para ao-pé de si, e dava-lhe em por- tamanha differença de edades. 1
tuguez, traduzida fielmente, a matéria de um, Nos dias feriados o Mestre lia em sua casa.
dois, e a final até de quatro, versos de Ovidio e só para aquelle pequeno ouvir, as suas com-
consecutivos, ufanando-se de ver como elle, posições ; ou o exercitava, e se exercitava com
ás vezes extemporaneamente, lhe adivinhava elle, pondo em portuguez Orações de Cicero,
aquelles versos, que nunca ouvira. D'aqui se e recitando com apparato os trechos mais elo-
originou, em parte, o gosto e propensão com quentes.
que ficou para a Musa classica romana, e em
particular para Ovidio e Virgilio.
Nas lições de traducção de latim para por-
tuguez, ou de portuguez, para latim, era o
velho quem lia no original o periodo, ás vezes 1 Maximiano Pedro de Araujo Ribeiro, nomeado
a pagina, que a memoria pronta do seu ou- Professor por despacho de 10 de Novembro de 1771,
segando Innocencio, vivia ainda, diz elle, em 1826.
vinte photographava integral e minuciosamente,
e prontamente lhe restituia na outra Lingua. O s EDITOBES.
14 Empreza da Historia de Portugal Obra* completa» de OastiUo 1"

VII
V
Antonio Ribeiro dos Santos.
Estudo do Grego.
Quando andava ainda no latim, foi apresen-
No mesmo Geral estudou grego com um
tado por seu Pae ao Desembargador Antonio
Fulano Domingues, e depois no Geral de S.
Ribeiro dos Santos (Elpino Duriense), que m o -
José com Antonio Maria do Couto; mas d'isto
rava na sua linda casa da rua do Sacramento
levantou mào. 1
da Lapa.
Esta casa merece dois traços de descripção.
VI
Sem ser grande, respirava um ar de aristo-
cracia, de gravidade portugueza, e ao mesmo
Estudo da Philosophia. tempo de poesia e de affabilidade: paredes for-
radas de damasco, com molduras doiradas, al-
A Philosophia racional e moral, cursou-a na catifas, poltronas estofadas, painéis, bambinel-
aula publica do Convento de Jesus, edifício las, e reposteiros. A livraria, que elle por sua
hoje da Academia Real das Sciencias, e na sa- morte deixou á Bibliotheca publica, cujo fôra
la onde hoje se dá o curso de Introducção á Bibliothecario mór. era separada do edifício:
Historia natural dos tres Reinos, sendo seu sala espaçosa no meio do jardim, para cujas ala-
professor o Padre Mestre Frei José de Almeida medas se abria para toda a parte c o m portas
Drake, pregador insigne, e famigerado Lente de vidraças. Entre as janellas estavam os cor-
d'aquelles tempos. 2 pos das estantes, avergadas de ricas edições,
predominando a Literatura classica, romana
1 O estudo do grego exige a applicação da vista,
e nacional. No meio da casa uma grande m e -
por causa doa caractéres especiaes usados n'aquella
za de saia encarnada era presidida por uma
Língua; isso difficultou immenso a Castilho o dito es-
tudo. Toda a gente lê latim, bem ou mal, com syllaba- estatua de Apollo. '
das ou sem ellas; mas grego, nem todos os secretá-
rios lh'o poderiam ler. 1 À residencia de Ribeiro dos Santos é o prédio que
OA EDITORES.
hoje tem na rua do Sacramentada Lapa o numero 5 4 ;
2 Segundo Innocencio, este Franciscano era Prega- .
de dois andares, o 1.° com sacadas, o 2." com janellas
dor Régio, Socio da Academia Real das Sciencias, e go-
de peitos. Até pouco depois de 1862 conservou a sua
sara de grande reputação como orador sagrado, «para
feiçSo antiquada ; depois amodernaramn-o. Em 1859
o que —diz o douto bibliographo — de certo concorria
ahi residiu provisoriamente Monsenhor D . Inno-
a sua bella disposição physica e agradavel presença,
cencio Ferrieri, Arcebispo de Sida, Núncio Aposto-
como ainda podem depor os que o ouviram». Nascido
lico, antes de se transferir para o palacio da rua do
por 1778, falleceu de apoplexia a 'li de Agoíto de 1828.
Prior, esquina da do Pau da Bandeira. Depois morou
Simão Aranha de Souea e Meneses com sua màe
Oa EDITORES.
O s EDITOBBS.
l('i Empreea da Historia de Portugal Obras completas de Castillo 17

Da vivenda e do viver de Elpino'Duriense


pode formar alguma ideia muito aproximada, VIII
quem lê os três volumes impressos das suas
poesias. Ali se v ê e m os homens de que se com- José Agostinho de Macedo.
punha a sua roda, que eram todos os mais
notáveis d'esse tempo; as arvores do seu quin- Já de tempos um pouco avante são as rela-
tal, inventariadas com amor e complacência; çÕs com José Agostinho de Macedo.
os autores, a cujo estudo mais o levava o seu Começaram estas por occasião de sahir á
pendor. luz, pela primeira v e z , poesia do autor: o Epi-
Ribeiro dos Santos, j á então muito velhinho, eedio á morte de D. Maria I em 1816 (obra
era um homem magro, alto, de chambre e bar- muito fraca).
rete, maneiras cortesans, falar autorisado, cor- José Agostinho publicava então um semana-
tez, e suave, inimigo de visitas vadias, ás rio literário critico, em cada numero do. qual
quaes se costumava negar, como elle proprio havia um artigo obrigado contra o seu analys-
confessa nas suas obras, mas sempre de bra- ta, censor do poema «Oriente», Nuno Alva-
ços abertos para os estudiosos como elle. res Pereira Pato Moniz. Este, como outros
O Doutor Castilho, antigo amigo seu, e seu muitos poetas d'aquelle tempo, sahira também
collega no magistério da Universidade, era um com seu epicédio ao mesmo assumpto.
d'aquelles para quem elle estava sempre em José Agostinho, annunciando com grandes
casa, e de muito boa-mente, e a quem, posto gabos o de Castilho, dizia por essa occasião:
o não reconhecesse por poeta, costumava con- «Vinde, patos, vinde, gansos, vi ide, galeirões
sultar para a correcção das suas obras. de todas as lagoas do Pindo, aprender ali a
Recebeu pois de bom grado as visitas do pe- fazer versos, e a envergonhar-vos dos que
queno, ouviu-lhe as primeiras trovas, latinas tendes feito, e fareis por peccados nossos.»
e portuguezas, e aconselhou ao pae, que o Pelo correr dos annos, nunca este homem,
deixasse proseguir, prontificando-se a encami- essencialmente mordaz, beliscou, nem leve-
nhal-o com as suas luzes. mente, nos escritos ou na pessoa do seu pro-
Sobre estas relações com Antonio Ribeiro tegido, a despeito mesmo das dicordancias po-
dos Santos, ha o que quer que seja de curioso liticas ; antes nas suas obras por mais de uma
escrito no Jornal dos amigos das Letras. vez o tratou com favor egual.
( A g o r a acabamos de o desencantai; elle ahi
vai; bom será que volte, para se nos não mu-
tilar a obra, que temos completa).
l('i Empreea da Historia de Portugal Obras completas de Castillo 19

do mundo, e para o retraduzir faltava-lhe j á o


IX ânimo. Instava então com Castilho para que
elle refizesse a parte perdida, dizendo-lhe que
Thebaida de Estácio. só elle podia dar boa conta d'aquelle recado.
A tumidez porém do cantor de Domiciano não
Houve, de parte a parte correspondência era para tentar ao autor das Cartas d'Ecco e
epistolar, que está inédita. 4 da Primavera ; conformava bem com o estylo
José Agostinho havia traduzido a Thebaida empolado do autor do Newton e da Meditação;
de Estácio; o manuscrito era em dois voluiues; por isso as instancias, do bom Padre n'este sen-
perdêra-se-lhe o primeiro n'um emprestimo; tido não produziram effeito algum.
era perda que o magoava, porque em seu
conceito Estácio era um dos maiores poetas

1 Nào appareceu no espolio de Castilho. Existe uma d'estes gregos velhos. Mas não concedo que os Allemães
carta só, datada de 13 de Agosto de 1824. Copiámol-a e Suissos fossem os primeiros reproductores d'esta an-
em 4 de Fevereiro de 1877 de uma copia por letra de tiguidade de antiguidade, como diz a tal senhora
Innoceneio Francisco da Silva, feita á vista do origi- (de Staelfj; fomos nós, os Portuguezes, e só nós os Por-
nal. Déra elle essa copia a Antonio da Silva Tullio, tuguezes; e primeiro escreveu Bernardim Ribeiro que
que em 3 do dito Fevereiro nol a emprestou. <8annazaro ; primeiro Christovam Falcão que Bernar-
A carta do Padre José Agostinho é como segue: dino Rotta, que Ludovico Paterno; primeiro Jorge de
Montemór que Marco de Leo, que Jeronymo Benerim;
Ill. m ° Snr. Antonio Feliciano de Castilho. e primeiro o mimoso, o delicado, o natural Francisco
Tive a satisfação de ler, e admirar, as suas Cartas Rodrigues Lobo, eo sentimental Fernão Alvaresd'Orien-
de Eccho e Narciso, que me foram enviadas para a cen- te que todos oa pandos e bojudos aHemães (porque o
sura; a approvação e o louvor já vinham na primeira mesmo Haller, de quem tenho o retrato, mostra maior
pagina, apenas se chegava a ler o seu nome. Desde que cabeça e mais vasta corpolencia que Vitellio).
li seus primeiros versos impressos, conheci que a Na- Não posso chamar ear:icter, porem manha, ou mazel-
tureza quiz fazer uma aberração da sua marcha ordi- la, a dos Portuguezes não fazerem caso de coisa ne-
naria, vendo que principiava por onde os outros, e mais nhuma. JUm poeta e a índia é para elles o mesmo;
perfeitos, acabam; e esperei sempre que em cada pro- e perder ambas estas coisas é perder coisa nenhuma ;
ducçào nos desse um maior prodigio ; e onde paVará e para elles é mais bem feito um cavallinho allemâo
isto? Com suas poesias vejo que não podem marcar-se com um assobio no rabo, que o cavallo de bronze com
limites á perfectibilidade do ser humano. El-Rei D. José em cima. Todas as traducções da
Sendo pois tão seu admirador, não posso ser seu ami- collecçâo de Huber nào valem um Christovam Falcão,
go quando me considero procurador de poetas portu- autor d'aquellas namoradas trovas, como diz um his-
guezes que floresceram no tempo dos Portuguezes. Con- toriador nosso. Este Christovam Falcão achou-se com
cedo que a poesia romantica é a primogénita de todas Affonso de Albuquerque na conquista de Malaca, e era
as poesias; os quadros campestres e o amor foram os Capitão de um terço, que por certo vem a ser coisa que
primeiros folies d'esta gaita, hoje tão destemperada! valia mais que trinta Tenentes Generaesdos nossos de
Concedo que Theocrito, Bion, e Moscho, eram os mo- dragonas grandes. Ora, meu amigo, eu julgo que n'essa
dernos de outros antigos, como nós somos os modernos velha Coimbra ainda ha algum ginja como eu, que co-
l('i Empreea da Historia de Portugal Obras completas de Castillo 20

X gente muito honrada, mas muito pouco própria


para criar ou desenvolver verdadeira poesia.
Queima dos primeiros versos. Jmitatores servum pecus.

Quando em 1817, terminado em Lisboa


o seu curso de humanidades, partiu para se XI
matricular na Universidade, fez um auto-de-fé
de toda a immensa versalhada que até então Conselho de Ribeiro dos Santos
tinha escrito; no que, de certo, nada se per- ao nosso Pae.
deu, porque os livros do seu estudo poético
haviam sido Camões, Diogo Bernardes, Fer- Antonio Ribeiro dos Santos havia aconse-
reira, Diniz da Cruz, e Elpino Duriense, tudo lhado ao Doutor Castilho, que favorecesse em

nheça e preze as coisas do Portugal velho (porque o Todos os círculos da Allemanha, toda a Confedera-
moderno não tem coisas, e as trovas ahi foram impres- ção do Rheno, todos os cantos ou canções das vaccas
sas, como diz o Padre Antonio dos Reis no Enthusiasmo dos cantões suissos, não valem metade das naturaes la-
Poético); veja se lá descobre um exemplar, e verá os murias de Francisco Rodrigues Lobo:
AUetnães como fogem, ou se mettem a compor asso-
mardes volumes de Direito. Olhe que os antediluvia- Se ficas atraz,
nos não eram mais chorões que Chrisfal quando diz : como esta alma teme,
guiarei o leme
E por quanto certo sei para onde vás.
Que as lagrimas são salgadas, — D'onde lhe veio esta rez
Aquellas doces a c h e i . . . (que ella poucas vaccas cria) ?
Em uma roca fiando, — Ganhou a n'uma porfia
Mas o fuso lhe caía nas festas que Ergasto fez.
Dos dedos de quando eai quando.
Meu amigo, persuado-me que á excepção de um Caste-
Veja se toda a melodia e sentimentalismo dos românti- lhano velho chamado CastiUejos, ninguém iguala os
cos allemães iguala a sentimental melodia d'eata prosa Portuguezes no espirito e letra da poesia primitiva.
de Bernardim Ribeiro, que com muito;, e com elle todo, Está muito moço, em boa idade, e é, e deve ser sauda-
conservo na memoria: — «Um freixo, que algumas das do poeta; basculbe esses pulverulentos bacamartes,
ramas estendia sobre a agua que ali fazia tamalavez que por certo não são monturos de Ennio, e tenha de
da corrente, que impedida de um penedo que no meio lá mão n'esta caraminhola chamada Poesia, que se vai
d'ella estava, se dividia para um e outro cabo murmu- a terra.
rando. Eu, que os olhos levava ali postos, comecei de In te omnis domus inclinata recumbit.
tomar algum conforto ao meu mal, vendo como aquella Já para mim não ha a gaita de Pan, nem a trombe-
pedra, imiga de seu curso natural o empecia, bem ta de Calliope; para lhe escrever esta carta deitei
como as minhas desaventuras soíam em outro tempo agua no tinteiro, porque a tinta estava reduzida a pol-
fazer a tudo o que mais queria, que agora já não que-
m<!; um giz m<; basta, para lavrar atraz da porta o
ro nada.»
rol da roupa.
Obras completas de Castilho 23
22 Empreza da Historia de Portugal

por ella. Entretanto, forçoso é confessal-o, as


seus filhos a applicação poética, porque (lhe
exercitações poetfcas, que deveriam ter sido
ponderava elle n'uma carta) se os estudos
encaminhadas e fecundadas convenientemen-
amenos, por mais conformes com a índole j u -
te, extravagaram á toa, perdidas a o aparce-
venil, se reputam, e muitas vezes teem sido,
lado maré magnum dos alfarrabios; do que,
hostis a locubraçÕes mais sizudas e proveitosas,
bem se ressentem o Epicedio j á citado, e o
também por outra parte aproveitam como au-
seguinte Poema á acclamação de D . João V I ,
xiliares da sciencia. Quem se acostumou a Cul-
dois escritos, que seu autor daria hoje tudo
tivar bem o estylo e a harmonia para òs ver-
por aniquilar, e desluzir da lembrança de toda
sos, habilitou-se para escrever a prosa com
a gente.
elegancia e número. Quasi todos os melhores
prosadores foram poetas de alguns quilates. P o r esta occasião, é bom fazer uma di-
gressão para pregar aos principiantes o que
Esta observação era justa, e o Pae fez obra
eu tenho amigavelmente aconselhado a muitos,
e muitas vezes: que não hajam pressa de se
Ha quatro annos. sem interrupção, refazia, pulia, e imprimirem, porque a maldita da tinta de
alargava, o poema Oriente. Já renunciei á mania de o
tirar do cahos dos borrões. Pique cá para os futuros
imprensa, uma vez que ennodôa, não ha quem
Saumaises. E' tolice cantar a surdos. n-a lave. Nenhum o crê, e todos depois se
Tive minhas cócegas de passar dois mezes de inver- arrependem.
no em Coimbra, e fazer algum contrabando em letras,
porque n'este meridiano de Lisboa não são fazendas
de lei.
... Nescite vox missa reverti

Folgaria de ver-me as cãs e a fronte dizia H o r á c i o ; e mas ainda então não havia
Esse negro esquadrão que entulha a ponte. prelos.
Mas como ahi Minerva é Pallas, e tudo é pancadaria,
um arcabuz ou um cajado não me parecem muito aza- XII
dos para bater o compasso ás endechas das Musas, que
como raparigas teem muito medo, e muito pouca ver-
gonha. Vá continuando com o seu Eccho, que elle re-
Os meus dois primeiros criticos:
tumbará pelo Universo. Ribeiro dos Santos, e o Pae.
Porque eu, se em verso aos grandes exclamara Os dois criticos que eu tinha n'esse tempo,
•Olhae, que o don das Musas nào se herda»,— e r a m : Antonio Ribeiro dos Santos, e meu Pae ;
Logo o eccho dos grandes me tornára:
o segundo muito mais assíduo, e incomparavel-
«Vai tu e os versos teus b »
mente mais severo, que o primeiro.
Perdoe esta caduquice de um velho, e creia que é sou Dotado de entendimento claríssimo, e de
amigo. uma lógica inflexível, meu Pae não tinha em
Lisboa 13 de Agosto de 1824.
si um átomo de poesia;~nunca fez um v e r s o ;
J. A DE MÀCÉDO.
24 Empresa da Historia de Portttj«J Obras completas de Castilho 25

apreciava as grandes ideias e os affectos no- nas ella me desponta no espirito, e antes de
bres, porque de tudo isso havia n'elle, e mui- descer á voz e ao papel, tenho adquirido uma
to ; mas a linguagem figurada, contrarian- certa intuição pronta, que me facilita o acer-
do as suas tendencias mathematicas, e os seus tar sem andar primeiro tacteando. Para aqui
hábitos mentaes de rigor, a linguagem figu- vem perfeitamente o que diz Quintiliano, a
rada, sem a qual não ha poesia, destoava-lhe quem j á se vê que o mesmo haveria aconteci-
necessariamente. do : Non enim cito scribendo jit ut bene scriba-
Assim, os primeiros movimentos da sua cri- tur; sed bene scribendo jit ut cito.
tica recahiam sobre a folhagem e florescência A segunda, a má, é que muitos moços
dos meus pobres poemas; era uma chuva de presumpçosos, e aliás de bom engenho, pedin-
pedra, que m'os deixava em arvore sêcca. do-me a critica, mas não desejando senão o
louvor, recebendo-a com apparente docilida-
de, mas lá por dentro espinhando-se com ella,
*
e menos justos para comigo do que eu o fora
para c o m os guias da minha inexperiência,
Tudo, até os proprios excessos, produz seus apenas emancipados do thema me regala-
bens. Este Aristarco domestico, este hora- ram com uma roda de coices. Que me pres-
ciano vir bónus et prudens sublimado á ultima te ; o diabo que lh'os pague; não fosse eu
potencia, e em quem a autoridade de sábio asno.
se reforçava ainda com o respeito que a pae A g o r a , lia j á muito que, instruido eu tam-
se não dispensa, ainda quando extremosissi- bém por elles, me retrahi d e s s e tribunal
mo, tornou-me em natureza o hábito da cri- de censura, onde o magistrado honesto e gra-
tica minuciosa, hábito em que os annos me tuito só se senta para leyar lambada; e não
teem vindo confirmando, e que eu não pode- reparto dos frutos da minha experiencia e
ria j á hoje contrastar. Sou um critico severo observação, a não ser com filhos, e um ou
para as poesias alheias, mas não menos se- dois amigos, que me comprazo de metter no
vero para as minhas; com uma differença po- mesmo rol.
rem : que as alheias, só as maltrato com cen-
sura, quando as julgo merecedoras, pelo seu
valor intrínzeco, de serem restauradas, e seus
autores merecem o meu affecto; ás minhas, Queres tu ver uma prova irrefragavel da
porém, não perdoo nunca, nem venialidades. severidade com que eu escoimo as minhas
D'aqui, d'estas duas praxes, teem resultado próprias obras? compára a l . 1 com a 2. a edi-
duas coisas diversas, uma boa, outra ruim: ção da minha Primavera.
A boa, é que, escrevendo de vagar, e indo Houve talvez outra causa coefiiciente para
logo applicando a vistoria a cada phrase, ape- se me criar e radicar este geíto, esta necessi-
VOL. L.X1V Í
24 Empresa da Historia de Portttj«J 26
Obras completas de Castilho

dade de c o r r e c ç ã o : eu fui quem ensinou o L a -


fancia desvalida; casa onde tu nasceste, mas
tim, a Lógica, a Rhetorica, a irmãos mais
de que talvez não conserves muita ideia. 1
novos, e depois, pelos annos além, essas e ou-
tras disciplinas a mais algumas pessoas, j Que
immenso exercício de attenção e de analyse!
XIV

Paço do Lumiar.
Uma coisa,, que eu não acabo de compre-
Ahi, em consequência de um trambulhão.
hender, é como um mestre de latim possa
que a minha ama me tinha deixado dar por
escrever mal; e comtudo, vê-se isso todos
uma comprida escada de pedra de alto a
os dias. <;Não será mais seguro acreditarmos
baixo, em S. Roque, sendo eu ainda de mama,
que esses sujeitos sabem tanto latim como
ahi, repito, na rua dos Calafates, tendo poucos
nós hebraico, e que a sua reputação é uma
annos ainda, e antes da brincadeira do saram-
d'essas mentiras passadas em julgado no tri-
po, deitei uma noite uma postema de sangue
bunal da ignorancia publica?
pela bocca, e estive codilhado; o que fez com
T u , que andas com as mãos na massa lati- que, logo no dia seguinte, me levassem para
na, e tão bem a tens sabido revolver ^conce- o Paço do Lumiar, onde me restaurei.
bes por ventura a possibilidade de entender
A casa onde estivemos era a do então lin-
bem os poetas, e os prosadores (muitas vezes
díssimo jardim, e quinta, do boticário da Rai-
também poetas) d'aquelle magnifico idioma, e
nha, casa sita no largosinho, defronte do po-
de se ir escrever depois sem lógica, sem har-
ço ; jardim e quinta que semearam no meu es-
monia, sem graça, e, quando o diabo é ser,vi-
pirito (d'isto estou intimamente convencido) os
d o , até sem grammatica? Não concebes, de
certo, nem é concebível.

1 Era Reitor d'este Real Estabelecimento o Padre

Cláudio José Gonçalves, tio avô da màe de Castilho.


XIII Desejou a sobrinha para junto de si, a fim de lhe ale-
grar a vivenda; annuiu a tão amavel desejo o Doutor
Collegio dos cathecumenos. José de Castilho, confiando sua mulher ao virtuoso
Ecclesiastico, todas as vezes que o serviço o chamava
ou á Universidade de Coimbra, ou a qualquer outra
Torno atraz. D a edade de um anno, ou pou- parte do Reino nos trabalhos medico-militares de que
co mais, vim, com a nossa familia, da casa de se achava incumbido Por isso vemos que por 1801 ou
S. Roque para o Collegio dos cathecumenos na 1802 a residencia da familia (provisoria em Lisl>o.i)
passou para a rua dos Calafates.
rua dos Calafates, onde é hoje o Asylo de in-
OA EDI TOSES
24 Empresa da Historia de Portttj«J Obras completas de Castilho 29

primeiros germes do gosto campestre e da poe- meira rua as duas cascatas, correspondendo-se
sia descriptiva. 1 de extremidade para extremidade; a da es-
* querda com o seu Bacho a cavallo n'uma pi-
p a ; a da direita com uma sereia; 4 outras
Conservo d'esse tempo, e muitas vezes are- duas, de um brustesco magnifico, nos dois to-
j o e refresco, nas recâmaras mais recônditas pos da rua de arcaria, chamada «do Príncipe
da minha alma, quadros ameníssimos, e que o D . José», que ali costumava espairecer-se; 2
tempo cobriu de um verniz de saudade deli-
cioso. 1 Essas estatuas, provavelmente de loiça, desappa-

Estou vendo no aristocrático páteo, a um receram; o proprio brutesco das cascatas é moderno.
lado o grande tanque esverdeado e doirado, O s EDITORES

onde eu e a prima Maria Amalia trazíamos


2 Consta que a Familia Real algumas vezes escolheu
este jardim no século xvm para ahi passear e meren-
uma frota carregada de bonecas. Estou ven- dar. Pode ser que o esperançoso e mallograda Príncipe
do as duas escadas de pedra, subindo uma pa- D. José preferisse entre todas a alludida rua. Um azu-
ra a capella, outra para as salas. A o fundo lejo, que ainda conhecemos e copiámos, entre as duas
d'esta escada o portão de ferro do j a r d i m . 2 sacadas centraes da frontaria principal do palacete,
sobre o largo do Poço, memorava as visitas Reaes, e
N'elle os alegretes de porcelana e mármore, os
dizia assim:
vasos da China, os azulejos historiados. Napri-
S. MAG. DES FIDELÍSSIMAS
FELIZMENTE REINANTES
1 O poço, que dava nome ao largo, desappareceu.
O S . D. IOZE E AR; N. S .
A quinta dos Azulejos pertence agora (1909) ao
snr. Henrique Scholtz, negociante americano, que, FIZERÃO A ESTA CASA A SUBLIME M. CE DE
ahi habita com sua familia. G randes mudanças se teem SE SERVIREM D'ELLA EM 3 DE NOVEMBRO
operado no prédio e no jardim durante a posse dos
DE 1753 E LHE REPETIRÃO A MESMA
swccessivos proprietários.
HONRA COM TODA A FAMÍLIA REAL
O s EUITOBES.
2 Desde o dominio de certo dono, que não vale a V. R. T.
pena nomear, mudou muito no exterior e no interior o O AGRADECIMENTO DO SEU OLLRIGADIS-
edifício. Este páteo tem com eãeito a uma banda um
SIMO F. HUMILISSIMO CREADO ANTO-
grande tanque; mas não era com as suas altas pare-
des actuaes que os meninos ali poderiam manter uma NIO COLASSO TORRES P" SE ESTABELE-
frota, nem uma falua sequer, porque não chegavam a CER NA DURAÇÃO 1)0 MÁRMORE
tanto as suas estaturas. Duas escadas conduzem ain- FEZ AQUI GRAVAR ESTA ME-
da hoje do dito páteo para o interior da habitação: a
MORIA EM 1760.
das salas, e a de serviço, que outr'ora conduzia á ca-
pella desapparecida. Em frente da escada principal O alludido proprietário vândalo entendeu que este
ainda hoje se abre, como no tempo de Castilho, opor- singelo padrão o incomir.odava, e mandou-o arrancar,
t3o de ferro do jardim. Que houve nas salas azulejos revestindo toda a frente com miserável azulejo de es
velhos, é certo; ainda restam, mas pouquíssimos. tampilha.
O B EDITORES O B EDITOBÍB
l('i Empreea da Historia de Portugal Obras completas de Castillo 31

na meia-laranja, da direita entre estas duas vendo as médas, os nossos mergulhos pela
r u a s , ' a opulenta cascata, com o colosso do palha, os gafanhotos, os pyrilampos. . . l
T e j o reclinado com a sua urna sobre penedias
bravas, e sob um florido pórtico de conchas; *
está entre dois cisnes; as aguas repuxam de
todas as partes. Defronte, um tanque redondo Uma tarde (isto não é para tu escreveres,
repuxa também uma arcaria liquida e prismá- é para conversar c o m t i g o ) . . . foram todos ao
tica até á abóbada de verdura, que alastra convento de Odivellas; fiquei eu só, c o m a
sombras movediças por cima dos assentos, e criada v e l h a ; estamos á janella da casa de
em cujo vértice pompeia, de trombeta em pu- j a n t a r ; avistamos, lá por um oiteiro, o nosso
nho, uma estátua da Fama. rancho em burrinhos de albardas verdes e en-
Quasi ao fundo do jardim uma sala vege- carnadas ; vão subindo; um sol magnifico
tal, com assentos e meza de mármore, guarda envolve tudo aquillo ; ; que invejas para m i m !
tantas sombras e frescura, contém tanto silen- N ' u m recanto da casa arrulham as pombas
cio e mysterio no meio de tão profusos ruídos n'um viveiro de arame, alto como uma torre;
de aguas e folhagem, que um poeta ali se far- eu c h ó r o . . .
taria de inspiração, e dois noivos de ventura. Se eu te disser que não ha uma florinha
Eu e as outras crianças espreitávamos aquillo d'aquelle tempo, nascida entre duas pedras,
de longe, porque uma criada velha, que não ou baloiçando-se do alto de um muro velho,
podia mentir, nos tinha dito que morava lá uma cujo espectro me não venha muitas vezes ins-
Princeza moira. pirar, não te minto.
Lembra-me o carrinho azul de quatro rodas, #
que enfeitávamos de gira-soes, e em que cele-
brávamos os nossos triumphos puchados por Podes, sc te parecer bem, deduzir d'aqui
um carneiro. uma digressão sobre a parte pittoresca da mi-
A o sahir do jardim, a horta, o pomar com nha poesia. Para isso acharás, cuido eu, coisa
a sua nora. as searas com a sna eira. Estou que te sirva, na Epistola ao Sendim, nas Ex-
cavaçdes, e suspeito que também um pouco no
prologo das Cartas d'Ecco, e na Primavera.
1 Essa meia laranja, ou hemicyclo de colutnuas de
alvenaria de azulejo, unidas por uma cornija adorna-
da de medalhões, existe, assim como o tanque redondo
com o seu repnxo. O colosso do Tejo desapparecen. a
estatua dn Fama, e tndo tnnis, a começar pelos bnios ' Certamente essa, parte rústica, essas searas, etc
e outras arvores antipas, que no sen desenho atina- pertenciam então á propriedade; iá n5o pertencem O
vsm com 09 azulejos. Tudo isso é hoje jardim inglês. jardim, que é tudo quanto resta, dá hoje sobre vasto»
terrenos alheios.
Os EDIWBKB O s EDITOR» F
113
112 Empresa, da Historia de Portugal Obras completas de Castilho

N'estes apontamentos, começados por ou- XVI


trem, 1 mas emfim continuados por mim, ape-
sar da minha infinita repugnancia para tal tra- Moradas.
balho, j á d'aqui te declaro, por descargo de
consciência, que has-de notar muita lacuna, e N'outra Nota do Camões, intitulada, cuido eu,
muita inversão e confusão de tempos. Logares memoráveis, tens uma curiosa noticia
Mas, ainda que, por muito mais moço, tu das casas onde assisti, e a que j á se prendiam
ignoras a maior parte d'estas coisas, estou cer- recordações literarias.
to de que, pelas que sabes, pelas que adivi-
nharás, pela tua sagacidade, e pelo teu espi-
rito methodico, farás sahir do meu cahos o XVII
teu universosinho. Para talvez t'o facilitar
irei capitulando. Constituição de 2 0 .

XV Fiz muita versalhada em Lisboa por esse


tempo : parte nos theatros, nos dias de berraria
Ascendentes. enthusiastica; parte em impressos, que j u l g o
haverem perecido, de todo, como se fôram
Se te parecer, tens na Nota do Camões, manuscritos. Mas verdade verdade : nadad'isso
intitulada Castilhos, com que estabelecer lo- prestava para muito; tinha o merecimento da
go no principio uma especie de nobiliarchia occasião: applaudia-se, porque era um ecco
Iiteraria, a única para mim de algum valor, emphático do que ia por todas as almas.
dado seja tão van como todas as outras pe-
rante a philosophia. 2

1 Esse outrem foi Antonio de Cabedo, amigo intimo Quando chegou aqui a noticia de haver
e frequentador diário da casa de Castilho desde 1853. D . João V I declarado officialmente, no Rio de
E ' d'elle a lettra da 1.' parte d'estes apontamentos. Janeiro, que aceitaria a Constituição que fizes-
O s EDITORES sem as Cortes de Portugal, esse officio, trazido
- D'esses assumptos pouco sabia o Poeta. As pesqui-
zas mais authenticas no assumpto foram emprehendi-
por uma nau russa foi recebido pelo Minis-
das sobre documentos pelo Snr. Visconde de Sanches
de Baêna, o algum dia verSo a luz. E ' uma estirpe mo-
destíssima e obscura, mas antiga e. honrada, em quem
o amor das Letras se transmiHii] em suecessivas ge- 1 Pare<v-nos engano. Foi na fragata porlugueza
rações. Tudo isso ha-de sahir lá para o futuro, devi «Maria da Gloria» que chegou a Lisboa a noticia, ao
damcnte authenticado. Os EDITOU vs começar dá noite dc 27 do Abril do l'í-1.
l('i Empreea da Historia de Portugal Obras completas de Castillo 35

terio n'uma noite, em que em S. Carlos se es- fogos, o dos' meus vinte annos e o da minha
tava dando pela primeira vez a Cenerentola. poesia, subo-me a cima de um banco, bato as
A companhia era excellente; o theatro estava palmas, e peço mote. (Ainda então se usavam
chumbando. motes, anti-poetica parvoíce, j á hoje acabada
U m Ministro (creio que o da Marinha, mas felizmente). V e m , não sei d'onde, um verso
j á me não lembra como se chamava) levanta/ heroico. Sem me descer, e sem hesitar um
se no camarote do Governo, bate as palmas momento, lanço corridamente um soneto, que
pedindo attenção, a orchestra pára, emmude- é acolhido com assombro de todos, e meu pro-
cem no palco os actores, tudo está em suspen- prio. Animado, engrandecido, com o descobri-
são. Elle lê o officio, rebentam os vivas como mento, que eu acabava de fazer, de outro eu
um vulcão, como um temporal, como um fim dentro em mim, peço mote novo, recebo-o,
do mundo. Todos gritam e choram de alvoroço, desempenho-o como o primeiro, e assim uma
porque a incerteza de como o Rei tomaria a série de outros, que ali nasceram e morreram,
revolução, e o receio dos sérios perigos que que não valiam talvez muito, mas que deixa-
poderiam sobrevir no caso de elle a desappro- ram nas memorias dos assistentes as mais li-
var, traziam os ânimos gravemente preoccupa- sonjeiras impressões.
dos. E r a portanto uma alleluia aquella para a O que é certo, é que eu fui n'aquella noite
Liberdade, uma Paschoa da ressurreição, uma notável reconduzido a casa, na rua dos Cala-
porta de oiro aberta a súbitas para um futuro fates, em braços, e literalmente no ar, por
indefinido, que a phantasia de cada um dese- um bando de gente desconhecida.
nhava e coloria a seu talante. A s senhoras, Improvisar, o que se chama improvisar,
em pé nos camarotes, voseavam e applaudiam foi a primeira e ultima vez que o fiz na mi-
como os homens, agitando os seus lenços bran- nha vida, e a única por ventura que tal se
cos. Na plateia abraçavam-se conhecidos e des- presencearia desde os dias gloriosos do grande
conhecidos. Os actores queriam recomeçar com Bocage.
a o p e r a ; mas ^onde havia ahi n'essa hora ou- Manuel Borges Carneiro, o Deputado para
vintes para uma opera? E r a o hymno, o en- todo o tempo memorando pela sua hombrida-
thusiastico hymno de 20, o que só se podia de e eloquente denodo, ficou desde aquella
entender e ouvir. Improvisaram-se, improvisei, noite muito meu amigo, e nunca me chamava
quadras para o hymno de 20, que os actores, senão «O nóxo poeta de X a n Carlos.»
as actrizes, a plateia, e os camarotes, cantaram
á porfia com uma desordem encantadora.
E n t ã o . . . (nào ousaria escrevel-o aqui, se
não houvesse ainda muita testemunha de tudo
.-iquillo) arrebatado no turbilhão commnm, e
mais acezo que os outros, pois ardia em dois
112 Empresa, da Historia de Portugal Obras completas de Castilho 113

escultor de mérito, pae e mestre de Francisco


XVIII de Assis Rodrigues, actual Director da Acade-
mia das Bellas Artes de Lisboa.
Adriano Balbi. Faustino mostrava-me muito affecto, dava-
me, para me entreter, pastas de cera verme-
Tive muitas relações com elle quando aqui lha temperada com therebentina e azeite, ma-
esteve em Lisboa, d'onde foi para Paris im- téria em que elle estava commummente mode-
primir a sua Estatística de Portugal. Sei que lando.
n'essa obra faz menção de m i m ; não me lem- #
bra bem como, mas tenho uma ideia vaga de
que não foi com grande exacção. U m dia, com uma porção d'aquella cera,
tão branda e fácil de tratar, emprehendi o
arremedo de um geniosinho de gesso que ali
XVI estava ao-pé de mim, e que eu tinha licença
para tactear muito á minha vontade.
Escultura. Ia ainda em meio a contrafacção, quando,
attendendo casualmente no brinquedo em que
Nas Excavações, em prologo, nota, ou o que me via tão embebido, Rodrigues m ' o pede, e
quer que seja da Epistola ao Assis, vem alle- parte com elle a mostral-o a Joaquim Machado,
gado, e provado com um documento de Ma- o qual, depois de ter descido a mostrar (com
chado de Castro, que eu tinha nascido para a grande vergonha minha) aquelle moníco a to-
escultura. dos os seus discípulos, e tão moníco, que nem
Foi o caso, que, tendo eu talvez oito ou no- eu proprio o dava ainda por acabado, voltou
ve annos de edade, ou talvez dez ou antes para o seu gabinete, escreveu, e assignou
onze (eu em datas sou uma miséria), a Maria aquelle papel, que n'esse livro se lê a pagina
Romana e o Adriano iam todas as tardes das 278. 4
quartas e sabbados dar lição de desenho de fi- A bella cera malleavel não me faltou d'ahi
gura em casa de Joaquim Machado, amigo da em diante; e eu, servindo-me os dedos de
nossa familia, e que morava por cima da »ua paus de modelar, esculpi com paixão, e com
aula publica de escultura no antigo palacio do uma especie de fidelidade, quantos objectos
Thesoiro velho, destruido depois por um in- tangíveis se me deparavam: bustos, animaes,
cêndio, e substituído hoje pelo magnifico e pit-
toreseo Hotel âe Bragança. Eu ia com elles ;
1 Essa pagina é na 1." edição das Excavações; na
mas como não podia desenhar, ia para baixo,
nossa actual edição encontra-se o documento de Ma-
para a aula de escultura, conversar com •
chado de Castro a pag. 10 do tomo III das ditas Ex-
Ajudante do Lente, Faustino José Rodrigues, cavações.
112 Empresa, da Historia de Portugal Obras completas de Castilho 113

•fc
instrumentos, móveis, vazos, t u d o ; e tudo
Joaquim Machado queria ver.
Basta de esculturas. Não sei se n'uma nota
A mais notável, talvez a única notável,
do Camdes não ha também alguma coisa que
d'essas peças, foi uma estatueta nua, de um
para aqui venha, a proposito do A s s i s ; é
palmo de altura pouco mais ou menos, e mo-
talvez na que tem por titulo Honras posthumas.
delada do meu proprio corpo, estudado osso
L á verás, se te parecer.
por osso, e musculo por musculo, com o maior
escrupulo que eu soube e pude. A esta figura,
que hoje me pesa não ter conservado (^mas
. . . que apreço poderia eu então dar a coisas XX
taes'?) divertiu-se em dar alguns toques de sua
mão, i quem ? adivinhem-n-o: o autor da Es- Morgado de Assentiz.
tatua equestre de D . José.
Fui muitissimo amigo d'este interessante
velho, que também tu conheceste, mas em
#
ruinas. Eu alcancei-o ainda inteiro, bem que
arrancado e remoto da sua viçosíssima moci-
Lembro-me de lhe ter ouvido contar, creio
dade.
que a proposito das ceras, e conversando com
E r a em 18*2 ou 33, tempo de D . Miguel.
meu Pae, que o famoso escultor italiano Ale-
Elle morava n'aquella casinha abarracada,
xandre Giusti, de quem se admiram obras ma-
que pega com o chafariz da Alegria, ao fun-
gnificas de mármore no convento de Mafra, e
do das escadarias de pedra. A amenidade do
o qual, se me não engano, fôra mestre do
seu trato, a sua conversação, erudita, noti-
mesmo Machado, achando-se j á muito velho, e
ciosa, amena, ligeira, e inexhaurivel, attra-
tendo perdido totalmente a vista, mas não o
hiam á sua vivenda muita gente letrada. Pas-
seu amor á Arte, passava horas inteiras a pal-
savam-se ali tardes e seroes, que não podem
par os baixos-relevos de maior mérito, fazen-
esquecer nunca.
do o juizo de cada um dos seus primores; e
do mesmo modo descobria e apontava aos seus Tinha um quintal grande; no topo d'elle
aluamos as imperfeições com que topava em umas sallinhas independentes, sancta sancto-
suas obras. rum da amisade e das Musas, a que elle cha-
mava «a sua Thebáida». A musica, a poesia,
— Mas Giusti—acrescentava Machado de
a leitura, a crítica, mas crítica benévola, e
Castro — tinha aprendido, e tinha encanecido
um pouco de politica liberal (j grande e indis-
na p r á t i c a ; o que palpava, tinha-o visto per-
pensável consolação n'aquelles tempos!) eis
feitamente, e perfeitamente o tornava a ver,
ahi com que se enchiam as horas fugazes,
apalpando-o.
fugacissimas, da Thebáida.
24 Empresa da Historia de Portttj«J
Obras completas de Castilho 41

Foi d'ahi que eu travei as minhas primei- como se ainda na vespera tivesse estado a
ras relações com Alexandre Herculano, com conversar c o m elles. Ouvindo-o, julgavamos
o Padre José Theotonio Canuto de F o r j ó , tra- realmente conhecel-os, pois não é v e r d a d e ?
ductor de Tácito, com D . Gastão, e não sei «O B o c a g e » , nunca elle dizia; dizia «O Ma-
com quem mais. nuel». Havia n'aquelle falar um cheiro do pas-
Quem me deu conhecimento do Morgado, sado, que era delicia.
foi o Francisco Evaristo Leoni, que eu co- Se não me engano, ha uma Noticia curiosa
nhecia quasi desde pequeno, que ainda en- da vida d'elle, escrita creio que pelo lnno-
tão não era mais que um poeta agradavel, cencio.
mas que, pelos seus últimos trabalhos, con-
seguiu dar á Literatura patria um dos livros
Sim senhor; h a ; e tanto ha, que ella ahi
mais substanciaes, e mais bem feitos, de que
vai n'esses dois números do Archivo Pittoresco,
podemos blazonar perante estrangeiros: é a
que será bom voltarem para se me não trun-
sua monumental obra, que se está imprimin-
car a collecção.
do, com o titulo de Génio da Lingua por-
tugueza.
XXI
O lnnocencio Francisco da Silva, do Go-
verno civil, que anda compillando preciosas
Oiteiros.
noticias para a nossa Historia literaria, era
também das sociedades do Assentiz. Os oiteiros pertenciam á Literatura tr; nsac-
A respeito d'este Assentiz. creio te pode- ta, não só pela sua indole de farelório, mas
rá dar alguma coisa a epistola que lhe eu es- até porque eram planta própria d'aquelle re-
crevi da Castanheira, e que está nas Exca- manço, de que a Politica deu cabo. Todavia,
vações. ainda alcançámos uns ténues restos d'isso nas
*
funcções de abbadessado de Santa Clara e de
Cellas, e nas festas politicas da sala dos capei-
Nota bem que o Assentiz foi o arco da los. O que eu por ahi fiz, se merece alguma
ponte que prende a nossa poesia actual com m e n ç ã o . . . tens com que a faças nas Exca-
a do princípio do século; duas poesias, que, vações. A prosa que ali vem junta aos versos
parecendo irmans pela Lingua em que se politicos, Appariçtio de Fénelon, etc.., dá-te um
expressam, são tão dissociadas uma da ou- dos lances que se não devem omittir na mi-
tra pela revolução literaria, como pelo estrei- nha biographia. Mas antes d'esse oiteiro tu-
to de Gibraltar o são Europa e Africa. O Mor- multuoso, seguido d'aquelle incidente trágico
gado (até por esta designação se reconhecia dos tiros no Conservador, j á eu tinha na mes-
ser elle um supérstite da era extincta) o Mor- ma sala dos capellos festejado a Liberdade,
gado falava-nos de Bocage e dos Bersanes, em alguns dos seus dias solemnes.
VOL. LX1V 4
42 Empresa da Historia de Portugat Obras oompletas de Castilho 43

poda, ladrão. ^Que diabo de poesia podia eu


então fazer, eu com o sangue na guelra, se-
XXII não aquella de primaveras e a m o r e s ?

Festas da Primavera.
XXIII
Para aqui é que te peço trabalhinho de amor.
No livro da Primavera tens os ingredientes, e Âimé Martin.
de sobra.
A proposito d'esta poesia campestre, recor- Isto não é noticia; mas é uma lembrança,
da-te do que j á a cima apontei falando do Pa- que poderá s e r v i r :
ço do L u m i a r ; e acrescenta que para esse Se tu leres a biographia de Bernardin de
gosto idyllico varias outras causas conspira- Saint-Pierre escrita por Ãimé Martin, e que
vam : v e m n'uma edição das obras d'aquelle, lerás
,..1." — a leitura de Gessner, que n'esse tem- u m a , d a s coisas mais mimosas, mais literarias
pò era para nós contínua; e poéticas, de quantas se teem escrito. JS' um
2.* — os passeios por aquelles tão arcádicos escrito digno do seu objecto. Parece-fqe' que
arrabaldes, pelos sinceiraes do Mondego, pelas essa Leitura te afinaria maravilhosamente/para
quintas das suas margens ; escrever esta biographia.,'
3,.a — as férias, que ás vezes íamos passar H a áli uma simpleza 5e estylo, com quie me ,
na Bairrada, na quinta da Murteira, em Aguim, parece conveniente prevenires-te, inoculares-te,
em M o g o f o r e s . . . j O h ! [tempos, tempos ! . . . para resistires ao contagio do estylo brazilei-
Estou ainda aspirando o cheiro balsâmico dos ro, que é todo paparrotão, -empolado, preten-
pinhaes, e das vinhas em flor, na Murteira, cioso, abominavel; estylo que está para a ver-
quando, ao fim da tarde, atraz do rebanho de dadeira elaquencia, como um orangotango pa-
duzentas cabeças tropeando dentro n'uma nu- ra ò homem, ou um papagaio berrador em dia
vem de poeira, vinha a pastora cantando, e . de vento para um ledor ameno como Andrieux,
tudo aquillo, depois de mungido o leite, e com . ou c o m ò ' t u mesmo.
a lua por cima da eira, se recolhia: o gado
\ Olha que eu não te escrevo isto aqui, conSo
para o aprisco, d'onde as crias balavam pelas
quem dissesse- que j á andas eivado da p r a g a ;
mães, e a rapariga para a cosinha, theatro da
faço-o por me lembrar que podes, sem o cui-
nossa opera, onde a fogueira dispensava lus-
dares (nem eu, teu espreitador, o ter perçebi-
tres, e onde as nossas primas donnas de sáia v d o ) pod^s muito bem ter j á algum saibo í he-
de burel nos encantavam com as suas vozes
resia n e s ' e s c r i t o s d e âpparato.
frescas e afinadas. ;Oh! [tempos, tempos! ^Pois
não é assim, José das M o ç a s ? T u entendes da
112 Empresa, da Historia de Portugal Obras completas de Castilho 113

edifício, bem te lembrarás que era acastellado,


XXIV portas e janellas arqueadas, cheio de escultu-
ras e ornatos gothicos. Ali morava o nosso
Estudos na Universidade. amavel Horácio, Padre José Fernandes de Oli-
veira Leitão de Gouvêa, de quem se faz men-
Cursei, além da Jurisprudência, Historia ção na Festa da primavera, e que era (bem te
natural com o Barjona, Physica, e Chimica. lembras também) o meu maior amigalhão.
D e Historia natural não fiz acto, porque houve A varanda de tijolé, onde elle scismava
perdão de actos n'esse anno; mas fui dos que odes, passeando ao luar, deitava para cima
se deram por prontos para seguir avante. do nosso jardim. Era este de aspecto claus-
A Physica e a Chimica, não as levei ao fim, tral, cercado de paredes de azulejo, e assentos
porque para ali fazia a vista muita falta; con- que eram j á mais de musgo que de t i j o l o ;
tentei-me com as tinturas geraes. entre os assentos, alegretes; era arborisado
de grandes laranjeiras sahidas das quebras do
pavimento ladrilhado. A parte anterior e des-
XXV coberta d'este jardim era uma espaçosa va-
randa, deitando para quintaes inferiores. T i -
Casas de habitação. nha ná esquina da esquerda um Samsão de
pedra escachando o leão; a correspondente es-
Merece-te uma descripção particular a nos- tátua do angulo direito j á havia desapparecido.
sa vivenda junto ao moirisco A r c o d'Alme- No meio um tanque redondo, outr'ora repucho,
dina. mas j á no nosso tempo alegrete de valverdes
* e papagaios.
Esta casa, pegada c o m a da Camara, edi- Por ali passeava eu muitissimo, até alta
ficação também moirisca (a da Camara), ficava noite, ouvindo os rouxinoes do encanamento
com o seu páteo e com os seus quintaes, enta- do Mondego, poetisando por dentro, e ás vezes
lada entre ella, pela parte de baixo, e a anti- também versejando para fora. Ali nasceram
ga casa de Templários em Subripas, que a todos os versos do Amor e melancolia; ali a
dominava a cavalleiro. 2. a parte das Cartas d'Ecco, e não sei quan-
Na casa de Subripas se passára a famosa tas outras coisas.
tragedia de D . Maria Telles. 4 O aspecto do A o meu quarto, independente e desligado
do restante edifício, entrava-se pelo j a r d i m ;
1 A s pesquizas de modernos antiquarios dào como
subia-se-lhe por uma escada de pedra. No pa-
inteiramente infundada a tradição de ter sido ahi a
tragedia de Maria Telles; mas no tempo de Castilho tamar d'ella, e fronteiro á porta, tinha aquel-
era moeda corrente. le terraço alto copado de parreiras; j ai que
O s EDITOBES t e m p o s ! jque tempos! A o lado d'este quarto ;
>
46 Utóprèsa <fa Historia de Portugal Obras completas de Castilho 47

aquella varandinha alta, sombreada de mara- tantas f e s t a s ! ; tanta convivência de familia e


cujás; a janella do topo do quarto senhorean- amigos ! j tanta musica ! j tanta noite bem v e -
do o magnifico panorama da cidade baixa, lada ! i tanta p o e s i a ! . . .
Mondego, e margem d'além. ; Q u e noites de
verão as que d'ali se desfrutavam! ; os gritos
da rapaziada a nadar pelo Mondego! ;os rou-
xinoes, que em nenhuma parte do mundo os Outra casa poética é a quinta de Santa Mar-
haverá em tamanho numero ! j as toadas lon- garida, a Santa Justa, fora de portas, j Que
gínquas de flautas! ; alguma cantiga de mu- ridente moradinha de quatro f a c e s ! j E aquelle
lher, que surdia sem se saber d'onde, como torreão de Prinéipe, olhando para a estrada-,
do fundo de uma espessura se ouve um pas- lá no fim d'aquella rua larga e areada! ; E
saro ! . . . aquellas hortas de verão, aquelles maravilho-
sos improvisos vegetaes ! j ruas e ruas, um la-
O' ubi campi, byrintho, uma cidade, de feijoeiros, de abobo-
Spercheosque, et virginibw baechata laccenis reiras, que em poucos dias se levantavam,
Taygete! ... sombreando um terreno inteiramente nu, e em
cujas ruas almiscaradas se girava ao meio-dia
Virgilio, que fazia estes versos, e outros sem apanhar um raio de sol, e de noite se es-
muitos de egual oiro, tinha por força nas suas tava sentindo no frémito e crepitar das ramas
reminiscências alguma coisa parecida com este o seu crescer ajudado do lentor da noite!
complexo de seducçoes tão variadas, e todas
hoje extintas. Humor ille, quem serenis astra rorant noctibus.
#

; E os romeiros e romeiras, que n'aquella mes-


A casa, habitada depois por uma série de ma quinta pernoitavam em arraial, vindo das
outros moradores, ficou até hoje conservando aldeias de longe em busca do Senhor da Serra,
o nome de casa dos Castilhos; mas o tempo, e e da feira de S. Bartholomeu! jduas festas,
nos últimos annos o desamparo, teem-n-a quasi ambas no tempo estivo! ^Lembras-te como
reduzido a um montão de ruinas. todos aquelles ranchos de melodiosas canta-
Quando fui em 1854 a Coimbra dar o meu " deiras se distinguiam uns dos outros pelos seus
Curso normal, quiz ir visitar aquella minha vestuários pittorescos?
Terra-santa. Não pude mais que saudal-a do
meio do páteo, descalço e afogado em hervan- •
ç a l ; uma rampa de entulho subia até ás saca-
das 1.° andar. Era triste para todos, mas Não sei que uso poderás fazer de tudo isto,
para Sem era horrivel. \ E m que tinham dado nem jaskêsmo se te servirá; mas eu gostei de o
48 Empresa 'da Historia de Portugal Obras coilipletas de Castilho 49

p ô r para ahi, porque refresquei muita saudade pessoal, que eu não sei em verdade como tu
aprasivel. as has-de escrever, que não cáias na taxa de
(íLembras-te também (de certo te lembras) novelleiro, que borda e desfigura a historia.
d'aquellas pescarias de madrugada feitas no Occorre-me que n'esses passos melindrosos
Mondego? poderás dizer que sabes aquillo por m ' o teres
# pescado n'uns desabafos; e alguma v e z mesmo
poderás dizer que tiras de umas cartas minhas,
Quando eu compuz o Amor e melancolia, ou de uns apontamentos que eu fiz, um ou
costumava ir passear nas manhans dos domin- outro paragrapho.
gos, depois do meio-dia, por aquelle immenso,
tão sonoro e solitário, dormitorio de Santa- XXVI
Cruz, que lá no topo desembocava n'aquelle
espaçoso terreiro, onde os Padres tinham os Bindocci.
seus vistosissimos viveiros de aves. O silencio
que eu ali desfrutava, indo e vindo sosinho, Antonio Bindocci, de Siena, o primeiro im-
não ouvindo senão o som dos meus passos por provisador italiano do nosso tempo, autor de
cima do lagedo polido, dava-me azas á imagi- um jornal satyrico-politico todo em verso, pu-
nação, e me permittia transportar-me em espi- blicado em Turim sob o titulo de II taglia
rito aos claustros de Vairão. Suppunha-me code, veio a Portugal, 1 para visitar na cidade
estar lá realmente. Muitas vezes me surpre- do Porto os logares onde Carlos Alberto pas-
hendia, falando em voz baixa com a mulher sára os últimos dia e jazia, a fim de se inspi-
que eu amava, de quem era amado, e com rar para um poema de que elle era o heroe.
quem me correspondia sem ainda a conhecer. Antes de fazer essa peregrinação, demorou-
D'aqui podes fazer alguma coisa de um certo se aqui em Lisboa algum tempo, dando ses-
interesse, se te parecer; eu mais do que isto sões pagas de improvisação; sessões duás v e -
não te posso dizer, senão que ainda estou ou- zes notáveis: j á pela torrente de pensamentos
vindo as coisas deliciosas que se me cantavam que lhe borbotavam em bellos versos, j á pela
dentro n'alma, e que se ajudavam do zinir das escacez do seu auditorio. Parecia, na verdade,
cigarras lá por fora. O Anacreonte tinha ra- incrivel, que uma Capital tão populosa, tão
são: as cigarras são umas grandes musicas, cheia de estrangeiros, com tanta fanfarrice de
umas grandes poetisasinhas, e umas alcovitei- Academias e Sociedades, e com um tamanho
rinhas também menos más. enxame de literatos, não enchesse uma sala,
Misture, e mande. em que se passava um phenómeno d'aquelles,
*

i Em 1853.
H a certas coisas, de natureza tão intima e O s EDITOBÊS.
24 Empresa da Historia de Portttj«J Obras completas de Castilho 51

que muitas vezes em séculos se nSo repetem; cer a inscripção posta pelo Dante na entrada
um phenómeno literário, um phenómeno psy- do i n f e r n o :
chológico de primeira ordem.
A primeira parte onde Bindocci foi apresen-
Lasciate ogni speranza, o voi che intrate.
tado, e se fez admirar, foi a minha sala do pa-
lacio Sarmento, á Estrella, por signal em uma
noite de curso popular de leitura, e por con- Foi cantar a surdos. O Porto portou-se como
sequência perante um grande numero de da- Lisboa.
mas e cavalheiros, que ali affluiam oonstante-
Queria-te mandar aquelle artigo, mas não o
mente.
acho.
Algumas outras de sabbados, que eram as
Ignoro o que Bindocci escreveria de nós de-
consagradas aos saráus, ahi veio também.
pois de tornado á sua Italia. Nunca havia de
Foi uma pena que, assim como tantos outros
ser coisa muito lisonjeira. Elle tinha um génio
fogos de artificio e bouquets do seu espirito
atrabiliario e turbulentíssimo, e conhecia bem
vulcânico, se perdesse, por falta de tachigra-
o seu mérito.
pho, o inspirado canto em que elle celebrou a
formosura, verdadeiramente majestosa e to-
Gentis irritabile vatum.
cante, d'aquella instrucção de amor e luz libe-
ralisada por mim a tantos centenares de rapa-
zinhos descalços, e de operários rotos e enfar- E de mais (aqui para nós): elle não ia só
ruscados. dorido da frieza dos nossos literatos; o Paço
* também o tinha escandalisado, pois lhe não
concedeu (por mais que elle]a sollicitasse) a hon-
Quando Bindocci partiu para o Porto, com ra, de o ouvir improvisar nas suas salas. Por
cartas minhas de recommendação a muitos ami- isso também, quando falava da Rainha, ou do
gos e influentes d'aquella cidade, puz eu aqui D . Fernando, era uma espada.
n u m jornal um artigo, deplorando o como Lis-
boa se portára para com elle, e mettendo em
brios os Portuenses, para que lhe fizessem me- XXVII
lhor as honras de Portugal. A o s de Lisboa
applicava eu o verso de Virgilio: Antonio Galleano Ravara.

;Heul fuge cruâeles terras, fuge littus avarum. Este outro Italiano, também improvisador,
foi perna fixa, e muito interessante, dos meus
saráus no palacio Sarmento, e um dos maiores
A o s tripeiros dizia, que não quizessem mere- apreciadores, e aproveitador sem duvida, dos
52 Empresa da Historia de Portugal Obras compUta» de Castilho 58

meus trabalhos escolares, como se provou no cere e mi avvelezava il sangue solo furono
Curso que elle aqui deu de Lingua italiana, e cagione di quel mio fare arrabbiato, che ora,
em que, para o ensino do ler e pronunciar a grazie a Dio, mi sono levato di dosso con
sua Lingua, seguia literalmente os meus pro- una crisi di 30 giorni di letto, che mi ha in-
cessos de decomposição da palavra em syllabas teramente purificato.
e em elementos, a leitura em commum e rythmica no signor
«Il quadro Campoamor,
preto, etc. per cui la Signo-
ria V o s t r a mi dava quella lettera dattata in
T u lá tens no Gabinete de Leitura o Album casa mia, stà in Valenza nella qualità di G o -
Italo-Portuguez, com um prologo meu, onde vernatore ; e, ben che lontano, mi ha giovato
talvez haja que aproveitar. più di tutti.
Ravara partiu d'aqui a tentar fortuna em «Il Canto dos Lavradores è stato tradotto
Hespanha, e de Hespanha se passou com o in spagnuolo da un poeta gaditano, e vedrà la
mesmo intuito ao Brazil, onde sabes que se luce nella mia prima publicazione colle note
estabeleceu bem no Collegio de Pedro II, e che di ragione.
morreu. Para Hespanha dei-lhe eu cartas para «Finora non ho potuto occuparmi del Me-
D . Ramon de Campoamor, Martinez de la Rosa, todo di lettura per la cagione di cui sopra 1 ;
e n l o sei quem mais. appena appena ho potuto finire i primi due
Aqui vai (não sei para quê) uma que me canti del Colombo, che leggerò quanto pri-
elle escreveu de Madrid: ma all'Ateneo, e in casa del Duca di Rivas.
«Vidi Martinez de la Rosa, che diede la sua
«Madrid, 17 Ott. b r e 1853 approvazione come presidente per la lettura
«Chiarissimo Signor Dottore ed amico. previa ch'egli fece del mio lavoro.
«Il mio partir da Lisbona all'inglese, il mio «Appena questo affare sia concluso, pro-
lungo silenzio, spero che non le avrano messo curerò per il nuovo alloro che deve procurar-
in core che tutti gli Italiani sono ingrati. No, mi quest'importante rivelazione. Durerò fatica,
per Dio ! che io mi v e r g o g n e r e i di pagare perchè (fra noi) l'orgoglio spagnuolo è prover-
con la sozza moneta dell'obblio la persona biale.
a cui debbo tutto il mio esito lettirario in «Il mio Album Italo-Espafìol porta in fron-
Lisbona. te un suo testo tolto dalle Estreias: iQue diz
«Nè creda che questa sia menzogna o ser- este volume? máguas; e con di seguito.
vile adulazione, perchè prova che io penso «Io credo che a quest'ora si saranno già
alla Signoria V o s t r a ; sì è che io non scara-
bocchio un canto poetico, senza mettervi a 1 Tencionava elle introduzil-o em Hespanha; para o

capo un testo portoghese del D r . Feliciano di que, levava d'aqui as necessarias mudanças do portu-
Castilho. guez para o castelhano, feitas por mim e por elle, com
o auxilio do José Maria Grande.
« L a penosa infermità che mi rodea le vis- CASTILHO
54 Empresa 3a Hintoria de Portugal Vbras completa» de Castilho 5õ

cominciate le serate letterarie nel Palazzo Sar- «Mi saluti il signor Maria G r a n d e , 1 e lo
mento, e fremo di non potermi trovare costì. assicuri del mio rispetto.
«Mi sarà molto caro se la Signoria Vostra «Volesse il Cielo ch'io ritornassi a Lisbona
mi onorerà di sua risposta, palesandomi lo per leggere o declamare quelche poesia spa-
stato di tutta la famiglia, e in particolare della gnuola.
ottima Signora di Castilho, e dandomi nuove «Mi abbracci e mi creda
della buona salute della Signoria Vostra. Tutto suo
A . GALLEANO RAVARA.»
«Vado a scrivere (un francesismo ; pazien-
za !) al Signor Antonio J. Viale, a cui sono
pure debitore di scuse non poche, le quali oso
sperare verranno accettate, à ragione di ciò XXVIII

che sopra scrissi al riguardo.


«Mi parli di Bindocci, e mi dica quale ne Saraus poéticos.
fu il fine ; dico fine, perchè i giornali ne annun-
ziavano la partenza da Lisbona. Não sei se j á ahi para traz deixei toca-
«Mi ricordi alle buone signore che furono do este assumpto. Na dúvida, aqui o sub-
mie maestre di Lettura repentina, 1 al Signor stancio.
Latino Coelho, 2 e al protettore fierissimo del E m todos os meus cursos de leitura, a sa-
gran Improvisatore, il nostro ottimo amico D e b e r : nos dois de Lisboa (no palacio do Sar-
Silva Tullio. 3 mento e nos Paulistas), no de Leiria, no do
«Spero che la Signoria Vostra non vorrà Porto, e no de Coimbra, instituí saraus poéti-
prendersi la rivincita, e che non tarderà a ris- cos. Todos elles floresceram bemquistos das
pondere, com'io tardai a scrivere. Conosco il mulheres e dos rapazes, todos promettiam e po-
gentil animo della Signoria Vostra per dubitar- diam dar muito, mas todos morreram a súbi-
ne. H o stabilito intieramente il mio metodo tas, apenas eu lhes levantei mão de cima. P o -
d'insegnar l'Italiano, rubando un poco (convien des dissertar agradavel e proveitosamente
confessarlo) alla lettura repentina. n'este ponto.

1 A s senhoras Mellos, então professoras no Asylo *


da rua dos Calafates.
O s EDITORES. Ora, snr. Conselheiro José Feliciano de
2 José Maria Latino Coelho, Lente da Escola Poly- Castilho, isto vai uma tal salamôrda, que o
technica, e um dos literatos então mais em evidencia.
Os EDUOEES.
1 O Conselheiro Doutor José Maria Grande e Cal-
3 Antonio da Silva Tullio, o exceliente Tullio, sem-
pre bemvindo nas phalanges literarias. deira, Par de Reino, Lente da Escola Polytechnica
O s EDITOBEB.
Os EDITORES.
56 Emprtta 3a Historia d* Portugal Obras completas de GastUko 57

diabo terá Y . E . no corpo, se com semelhan- para sacares do meu cahos coisa que se veja,
tes elementos fizer coisa que se veja. reveja, e admirei
Fica-me ainda matéria para mais de outro
tanto; salamordal-a-hei do mesmo modo, para XXIX
a remetter pelo paquete seguinte.
F o i muito bom o arbitrio de transferir a Boa memoria.
biographia aã calcem totius operis. Assim, tens
tempo de coordenar, redigir, corrigir, enrique- E ' certo, e geralmente sabido, que o nosso
cer, enflorar, e emfim fazer obra que te dê homem tinha uma memoria natural peregri-
muito mais nome a ti do que a mim. Nada n a ; uma prova d'isso está no attestado de José
de pressas; é só o que te recommendo; non Peixoto do Valle, que ahi vai trasladado inte-
enim cito scribendo jit ut bene scribatur. — De- gralmente :
pressa e bem, não ha ninguém. — Cito facta
cito ãilabuntur. — E emfim o dito de Apelles: «Ill. m o S. nr — D i z Antonio Feliciano de Cas-
« L e v o muito tempo a pintar, porque pinto para tilho, que precisa se lhe passe por certidão na
a eternidade», que eu a todos vos desejo; e Directoria Geral dos Estudos a Conta que a
com isto te lanço a minha benção. Vade in respeito do supplicante á mesma Directoria re-
pace. V a e á tabúa. metteu, com a data de 15 de Setembro de 1815,
José Peixoto do Valle, Professor de Latinida-
de em o Estabelecimento do Bairro Alto em
Lisboa;
P . a V . S. seja servido mandar
S.° M A S S O . que se lhe passe.
E . R. M.
Snr. José.
Pelo vapor precedente (hoje são 19 de Ju- «Antonio Barbosa de Almeida, Cavalleiro
nho ') foi a primeira porção de materiaes e professo na Ordem de Christo, Secretario da
achêgas para a tua obra, ou monumento bio- Junta da Directoria Geral dos Estudos, e E s -
graphico. V o u continuar, a ver se concluo. E ' colas, etc.
este para mim um trabalho antipathico, pois «Certifico que entre os papeis respectivos
quasi todo elle versa no vago, faz-se ás apal- está a Conta de que o supplicante faz menção,
padellas, e não ha fio nem luz que nos enca- e é do teor seguinte :
minhe. Emfim, sáia o que sahir; tu lá estás, § 1.° « S e n h o r — Antonio Feliciano de Casti-
lho, filho do Doutor José Feliciano de Castilho,
é quasi inteiramente cego, de sorte que não po-
1 De 1858.
O s EDITOBES
de ler coisa alguma. E u lhe vou repetindo o
VOL. 1 XIV 5
24 Empresa da Historia de Portttj«J Obras completas de Castilho 59

L a t i m de Horácio, de Virgilio, L i v i o , Cesar, com a differença de não ter tão desmarcada


etc., e elle tranduzindo muito bem, e em bellis- memoria como este tem, e que o tem feito ad-
sima Linguagem. Dou-lhe, v . g . , para verter mirar dos que veem á minha Aula somente
em Portuguez alguma das descripçÕes (le Ovi- para ouvil-o. 1
dio, elle o faz em excellente e harmonioso v e r - § 4." «Estes são os dois Estudantes, que,
so. Dou-lhe alguma passagem de Cicero, ou pela sua applicação, talento, e bons costumes,
alguma das eloquentissimas falas que Livio se teem feito mais distinguir^ e ambos mere-
faz pôr na b o c c a de algum Pretor, Cônsul, cem egual elogio: Antonio Feliciano, porque,
Tribuno, ou Dictador Romano, e de qualquer não vendo nem podendo estudar, conserva tan-
d'estas passagens elle faz uma excellente ver- to o qué se lhe diz e tem ouvido, que merece
são. Dou-lhe do mesmo modo alguns períodos o applauso dos que o ouvem responder bem e
em Portuguez, tirados do mesmo Cicero, ou promptamente ao que se lhe pergunta; e José
das Epistolas aã amicos et familiares, ou dos Silvestre, porque tendo menos de tres annos
Diálogos De amicitia, De senectute, De para- de estudo, está bem capaz de servir a V o s s a
doxis, De somnio Scpionis, etc., e elle os tra- Alteza Real na regencia de uma cadeira.
duz em muito bom Latim.
§ 5.° « E se elles, Senhor fossem animados
§ 2.° « E ' costume na minha aula. no sabba- por algum premio ; que poderoso estímulo para
do de manhan, fazer-se recopillação do que se os o u t r o s !
fez na semana; em cujo trabalho eile tem a «Vossa Alteza Real, que tanto sabe apreciar
maior parte, mostrando uma boa analyse e re- o mérito e a virtude, mandará o que F ô r Ser-
gencia grammatical a tudo que se lhe pergun- vido.
ta. D e tarde, no dito sabbado, se faz na aula, «Lisboa 25 de Setembro de 1815.
e minha presença, Thema tirado de Sallustio ou « O Professor de Latinidade, José Peixoto
de Livio, que elle compõe muito bem, ou se lhe do Valle.
dê de Portuguez para Latim, ou de Latim para «No § 5.° accrescente-se á palavra outros:
Portuguez. Também, á minha vista, tem fei- ; e quantos se não exforçarão por imital-os!
to bons versos latinos, sendo então necessá- « E declaro que ao supplicante j á se passou
rio dar-lhe as partes. Sabe perfeitamente todos outra certidão somente dos dois primeiros para-
os rudimentos. Sabe pratica e especulativamen- graphos da mencionada conta.
te a syntaxe e suas figuras, e tudo quanto per- « Coimbra, na Secretaria da Directoria Ge-
tence á prosódia, todas as especies de versos ral dos Estudos, em 14 de Abril de 1826.
e suas figuras, e as de metaplasmo. Antonio Barbosa de Almeida.»
§ 3.° «José Silvestre de Andrade, com mui-
to menor tempo de estudo (pois principiou co- 1 Jose Silvestre de Andrade, bondoso homem, e poli-

migo em Outubro de 1812) faz em tudo o mes- díssimo, falleceu Official Maior da Secretaria de Esta-
do dos Negocios da Guerra.
mo ou mais que o dito Antonio Feliciano; só O s EDITORES.
60
24 Empresa da Historia de Portttj«J Obras completas de Castilho

L o g o concluirei o que tinha para dizer so-


bre a memoria. A g o r a aqui vai outro docu- XXX
mento, que inesperadamente achei junto ao
precedente: Memoria.

«Diz Antonio Feliciano de Castilho, que elle E ' esta uma faculdade de que se não deve
frequentou a Aula de Rhetorica este presente ter grande jactancia, porque geralmente me-
anno no Geral da Rua da R o s a ; e porque pre- moria e entendimento, ou se não casam, ou
cisa mostrar, por attestação ou certidão j u r a - vivem mal avindos. A s faculdades criadoras e
da do seu Professor, a sua frequencia, apro- a faculdade conservadora teem seu antagonis-
veitamento, e procedimento, mo, como a actividade do voluptuario pródigo,
P . a V . S. seja servido mandar e a frialdade paralytica e triste do avarento.
que o referido Professor certifique Exemplos ha de memoriões em entendimen-
tudo que aos ditos respeitos lhe tos fecundos; mas esses exemplos são raros;
constar. e talvez que, se podessem ser estudados mais
E . R. M . a fundo, mais raros ainda se reconhecessem.
Seja como fôr, eu tive uma memoria, que
«Maximiano Pedro de Araujo Ribeiro, Pro- devorava, digeria, assimilava, e convertia em
fessor Régio de Eloquência e de Historia Uni- substancia própria tudo quanto se lhe apre-
versal em o Real Estabelecimento Litterario sentava. U m soneto, que ouvisse recitar uma
do Bairro-alto, etc. só v e z , estava fisgado e seguro. A s lições de
«Certifico que em Outubro do anno passado Latim, os trechos clássicos, mesmo de certa
matriculei ao supplicante Antonio Feliciano de extensão, escutava-os, repetia-os, sem discre-
Castilho, filho do Doutor José Feliciano de pância de uma syllaba.
Castilho, natural d'esta Cidade de Lisboa, e Foi assim que estudei, ou antes que apren-
de edade de dezasseis annos, o qual foi effe- di sem estudar, as lições da Universidade.
ctivo todo o anno lectivo, e mostrou indole Lembro-me que um só livro zombava (mas zom-
dócil, costumes pacíficos, talento methodico, e bava em cheio) d'esta minha potencia conquis-
digno de ser contemplado em primeira classe tadora: eram as Ordenações do Reino. Nunca,
pelos conhecimentos litterarios e philologicos por mais que forcejasse, foi para o meu prato
a que se tem app/içado. E por ser verdade o aprender-lhes um só paragrapho.
referido, lhe passei a presente em virtude do
despacho supra, a qual vai por mim feita e Digam agora os sábios sabichões
assignada. que segredos são estes das Ordenações.

« L i s b o a aos 12 de Agosto de 1816.


Maximiano Pedro de Araujo Ribeiro. t V ê tu mesmo se os explicas, tu, cuja me-
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moria é tão milagrosa, que abarca até a Juris- do, quando, trazendo-o á cinta, dá costas pela
prudência, e os algarismos, e, com ser tama- ultima v e z á Minerva de pedra, e ao convento
nha, não te impede possuires um entendimen- de Santa Clara, tudo isso a mim, depois de
to dos mais insignes. muito scismar para lhe descobrir algum prés-
timo real, só me s e r v i u . . . ( j O h ! profanação!
exclamaria o claustro pleno; j O h ! profanação
XXXI — l h e responderia o ecco do Seminário, lá do
fundo do jardim botânico) sim, sim, só me ser-
Quesilia á Jurisprudência. viu para guardar e moer o rapé. Guardei-o
muitos annos no canudo, especie de obuz scien-
T i v e isto de commum com muitissimos poe- tifico do calibre de duas libras (que tantas
tas, e nomeadamente com o nosso proprio Ovi- eram as que levava). O pergaminho da carta
dio : que a vida forense me repugnou sempre prestava-se de molde ao esterroamento do chei-
de um modo invencivel. Nem os desejos e o roso pó ; e os sellos metallicos pareciam inven-
empenho paterno, nem os conselhos dos cinco tados para essa mesma operação; por isso a
annos gastos a seguir um Curso de Direito, po- sábia mão académica lh'os tinha indissoluvel-
deram acabar comigo que eu emprehendesse, mente vinculado. 1
por conta alheia ou própria, o minimo processo.' A s perturbações de familia, os atropellamen-
• tos de direitos, as usurpações, as sophisticarías,
que, em mãos de alcunhados jurisprudentes,
fazem todos os dias o preto branco, e o bran-
Muita gente sabe, assim como tu, o uso que co preto, tudo isso se contém n'aquelles fataes
fiz dos documentos da minha formatura. Aquel- canudos, foguetes de Congrève que todos os
la folha de pergaminho nobiliario-scientifica, estios se diífundem aos centenares, do seio
em Latim razo e tarjado, com seus sêllos uni- de Coimbra para toda a superfície do Reino
versitários pendentes de fita verde, e mettida e províncias ultramarinas. Mas da minha lata
n'um protector canudo de folha de Flandres, nunca sahiu, senão, sob a fórma de fragrante
essa peça cujo valor era estimado n'aquelles pó americano, o prazer da inspiração poética,
tempos não sei se em cinco se em dez mil cru- e o da convivência desafiada e promovida pela
zados, e que faz a ufania do Bacharel forma- pitada, da convivência que é só por si muitas
vezes uma poesia.
1 Castilho duas vezes vestiu a toga nos tribunaes:
1 Tudo isto é rigorosamente exacto ; om tempos co-
uma vez em Lisboa, n'um processo de liberdade de
imprensa, a outra em Aldeia-gallega, n'um caso de fur- nhecemos o obuz scientifico, que infelizmente j 4 nâo
to. Refere-se ahi aos primeiros annos depois da for- existe Existe a carta, que bem mostra pela côr o uso
matura. a que a destinaram.
O s EDITORES O s EDITORES,
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0 que sei, é que se eu tivesse feito provará», só tirei foi confírmar-me na minha aversão
todos elles juntos não valeriam uma pitada de instintiva.
tabaco, a não ser do Contrato de Lisboa, que *
o vende podre.
• Quando depois fomos para a Castanheira,
os serranos, que me ouviam chamar Doutor,
Quando, depois de formado, nos tornámos lá entenderam, na sua benevola innocencia,
para Coimbra, para a casa do Arco de A l - que eu devia por força saber de leis, e come-
medina, quiz o Pae (e tinha rasão) que fos- çaram a procurar-me para me consultarem
semos praticar, começando por meros ouvintes como tal.
no escritorio do Letrado Migueis, visinho nosso. Também, nunca me ha-de esquecer a pri-
Fomos, o Augusto e eu. j Que tempo! nunca me meira d'essas visitas: Era de uma mulher,
lembrarei d'elle sem horror: uma casa do tama- que tinha dado a criar um porco de meias,
nho de meio alqueire, cercada de in-folios de e pretendia exigir do criador do porco não me
Direito, sem a mínima mistura profana, m o - lembro j á o quê. Eu creio firmemente que a
bilada de autos, que muitas vezes nos servi- Ordenação manuelina ha-de falar algures da
am . . . de assento; consultantes plebeus, tra- criação dos porcos de meias; mas o que a tal
tando em linguagem plebeia questões tão en- respeito dispunha, eis ahi o que eu ignorava, e
leadas como frívolas; a Musa, dentro em mim, não tinha vontade nem possibilidade de saber.
a debater-se contra toda aquella prosa v i l ; ella P o r honra da Universidade, não lhe confessei
succumbia de c a n ç a d a ; eu arrumava a cabeça a minha inópia; mas o apêrto em que me via
aos expositores, e dentro em poucos minutos me suggeriu um expediente, que surtiu o mais
roncava como um Epimênides. 1 D'aquella offi- invejável resultado : antecipei a instituição dos
cina de diz, provará, e receberá mercê, o que juizes de paz ; préguei-lhe com toda a força da
lógica, com toda a uncção do Evangellho, com
todos os raciocinios da economia e da hygiene,
1 Foi Epimênides um dos sábios da Grécia, poeta e

philósopho. Queria fazer crer ao vulgo aehar-se em


e com um sem-numero de factos (os quaes, se
communicaçào directa com os deuses. Contava que, não eram verdadeiros, bem o podiam ser), que
tendo-o seu pae mandado para uma serra guardar os não havia nada melhor que uma composição
seus rebanhos, se entranhára n'uma gruta, adormecêra amigavel; que o socêgo, a paz entre visinhos,
a somno solto, e só viera a acordar setenta e cinco
annos andados. Sahiu estremunhado, voltou a casa,
a caridade, valiam mais que os mais brilhantes
achou mortos todos os parentes e amigos, menos um triumphos judiciários; e que emfim, a alma e
irmão a quem ainda reconheceu. a salvação valiam mais que todos os porcos do
Este caso lembra a linda historieta que narra o Pa- mundo, mesmo de meias de seda e sapatos.
dre Manuel Bernandes, do fradinho que dormiu trezen-
Imagina, ; se o meu interesse de encobrir a pró-
tos. annos.
O S EBITORBS.
pria inópia me não tornaria persuasivo e até
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eloquente! A mulher chegou a chorar; de-


sistiu; foi uma demanda de menos n'este
mundo. Quando por aqui andou (não sei se dura
; O h ! ; se todos os advogados fossem pouco ainda) certa moda reaccionaria contra a Lite-
mais ou menos como e u ! ratura greco-romana, exageradíssima, intole-
O curioso foi perguntar-me ella á despedida rante, absurda, como todas as reacções, o que
quanto eu tinha merecido. mais me fazia desadorar era o empenho de pro-
— O que eu te m e r e c i . . . — disse eu com clamarem para a Poesia, e para a Literatura
os meus botões — não és tu capaz de m'o dar. em geral, a barbárie da edade-média, com de-
Sahiu, levantando ás nuvens o meu desin- cisivo predominio sobre a legitima e opulenta
teresse. herança, que houvéramos dos Romanos, e que
O que é verdade, ó que, durante os annos tão inteira e tão inalienavel conservávamos na
da minha residencia n'aquella serra, os escri- linguaguem, nas instituições e na legislação,
vães nunca tiveram que fazer por culpa mi- no culto mesmo, e até nos mínimos pormeno-
nha ; e mesmo pouco tiveram que fazer, porque res das superstições e crendeirices populares.
por aquelles contornos havia raposas e lobos, Ignoro o como aquelles adoradores dos G o -
mas advogados não. dos, e os que nos conservámos fieis ao Capito-
lio, deveremos ser avaliados pela philosophia.
Nem elles nem nós podemos ser juizes onde so-
XXXII mos partes; o que sei, o que, pelo menos, julgo
saber, é que, posta a questão sob a luz unica-
Amor á Antiguidade. mente da Arte, e avaliada pelo que se chama
geralmente gosto, um Godo não vale um Roma-
Predilecção para com a Antiguidade roma- no ; nem todos os gelos e todas as florestas do
na, tive-a desde que me entendo, e posso dizer norte teem que ver com uma chapada do sol
que enthusiastica. de Nápoles, ou com um prateamento do Colli-
Concorreu para isso o bom estudo que fiz seu pela suave lua da Cidade Eterna.
do Latim, e o não ter conhecido senão autores Fiquem-se com os seus Cossacos a comerem
pagãos, n'aquella edade em que cerebro e cora- carne crua, só aquecida em cima do lombo do
ção parecem duas esponjas sêccas e em folha, cavallo e debaixo do pezo do cavalleiro, que eu
que se impregnam do primeiro fluido em que antes me quero a cear em espirito com Apício,
as lançam. Esta mesma quéda para as coisas c o m Lucullo, com Cicero na sala de Apollo,
d'aquella nação poética e heróica, ainda hoje com Horácio em casa de Mecenas, sobretudo
a sinto com toda a energia de um preconceito com Ovidio nas suas grandes patuscadas, ou
da infancia. E m todas as minhas obras ressum- mesmo com o hortelão e com a preta d'aquella
bram vestígios claros d'esta verdade. tão fresca choupaninha, onde Virgilio (se por
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ventura foi elle) nos ensinou a receita do More- se iam purgando da sua rudeza ferina, e pon-
tum. (Recommendo-te que leias o poema do
do no logar das suas virtudes agrestes outras
Moretum attribuido -por alguns a Virgilio, mas
mais amenas; se o quizerem antes, no logar
que em poucas edições se encontra; é delicioso).
dos seus vicios ferozes, outros vicios mais en-
E m summa: tanto é verdade que o bom-
nervadores talvez, porém de certo mais sym-
gôsto natural, fundo commum de todos os ho-
pathicos.
mens, se quer antes com a polidez que illus-
A historia dos Hunos, Vandalos, Alanos, e
trou a Grécia, e da Grécia se transvasou para
Suevos, invadindo, devastando, e senhorean-
a Italia, do que não com as selvajarias de
do as amenas regiões da Hespéria, offerece
uma edade brutalmente guerreira e assoladora,
em si um natural ponto de contacto com a
beatorra e supersticiosa sem g r a ç a ; que em
historia d'esta Literatura, que em nossos dias
todo o tempo este sol meridional attrahiu
para as regiões suaves dos bellos ocios, das veio, incendiaria e intolerante, arrazar e pros-
imaginações fecundas, e das mulheres divini- crever a que herdáramos de nossos avós os R o -
saveis, os bandos alarves e silvestrissimos do manos.
norte. Se lêste o livro de Méry intitulado Les nnits
italiennes, notarias n'elle um artigo, que (se
Não era, nào, a Arte nas suas mais ele-
bem me lembra) é o ultimo da obra, sobre a ci-
gantes manifestações architectónicas, pictó-
dade franceza de Aries. Se o não lêste, lê-o,
ricas, esculturaes, etc., que os attrahia para
que te não has-de arrepender. O que ali fize-
c á ; n ã o ; e a prova está em que todas essas
ram ás grandes obras romanas os invasores
coisas as devastavam elles apenas appareciam.
Sarracenos, que ás vezes não foram menos
Para apreciar as conservadas pelos séculos, é
barbaros que os Barbaros do norte, os Barba-
mistér ser-se também j á civilisado, pois «quem
ros por antonomasia, e o que, posteriormen-
não sabe da Arte não a estima» : e os invaso-
te aos Sarracenos, por lá continuaram de der-
res boçaes e instintivos do nosso bello meio
rota os Christãos, pacíficos possuidores d'aquelle
dia, invasores, que ainda hoje o são como o
santuario da Arte, é o que ao estudo e ao gosto
foram nas edades antigas, não tinham nem o
da tão bem assente Literatura greco-romana,
primeiro alvor d'esta civilisaçao.
por entre nós lograram em grande parte infli-
O que os atrahia era, literalmente, o sol, gir estes fanáticos da ideia gothica, a quem eu
o grande magico dos grandes portentos. Como não posso deixar de querer mal, por sua into-
o achavam, tomavam á viva força a terra em lerância.
que elle batia tão em c h e i o ; varriam-n-a de N'este cartório tem o snr. Châteaubriand não
criações com que ainda se não entendiam; es- pequena culpa. Foi elle o Titão centímano,
tiravam-se no solo quente para se desenrege- que, amontoando sobre Ossas de sophismas, e
larem; e sobre elle, a pouco e pouco, por in- Pélions de eloquencia, Olympos de um Catho-
fluxo do mesmo astro que para ali os chamára, licismo absorvente e esterilisador, mais pro-
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fundos estragos consumou na veneranda Anti- esses quadros contrapostos por Châteaubriand,
guidade. Châteaubriand foi o Brenno moderno para que triumphe a Verdade christan e cátho-
da Roma literaria. lica, nada mais fazem, em ultima analyse, do
T o d a v i a . . . (eu estou conversando comtigo ; que radicar-nos na vontade os suaves erros,
tu lá farás d'isto o uso que entenderes, ou ne- de que (ao menos em poesia) nos é lícito ser-
nhum) todavia, repito, lendo-se com attençâo mos adoradores.
O Génio do Christianismo, sobretudo Os Már- A g o r a (aqui para nós): que diabo tirou
tires, e ainda mesmo as Recordações de Itália Châteaubriand d'aquellas dúplices exagerações
pelo grande escritor, sente-se que não podia i a s bellezas do Christianismo, e das não-bel-
ser de muito boa-fé que elle pugnava em fa- lezas do Paganismo ? tirou o ser posto em Roma
v o r da Poesia severamente christan contra a Poe- o seu livro no index expurgatorio; a tal R o -
sia d'aquellas Musas millannarias, que nunca ma sempre paga bem a quem a serve.
de todo envelheceram, e que ainda hoje con- A exageração é sempre mentira, e a men-
servam boa parte do seu culto primitivo. tira sempre damnosa.
E digo que não podia ser de boa-fé, porque Châteaubriand fez, quanto a mim, b o m
todas as vezes que elle contrapõe as crenças do serviço á Literatura, dando-lhe a mina ame-
povo baptisado ás do povo pagão, e ás práti- ricana, e pondo o seu oiro virgem e abundan-
cas soltas, engrinaldadas e perfumadas, das tíssimo ao olho do sol esplendido. Fez-lhe ser-
eras dos grandes poetas as melancólicas e som- viço não menos valioso, mostrando o que se p o -
brias usanças do mundo actual, que será me- dia auferir de poesia folheando as memorias
nos devasso, mas que é muito menos deleitoso, dos mui poéticos Sarracenos. Finalmente : pode
o senso intimo do leitor é sempre de opinião merecer bênçãos pelos thesoiros de affecto que
contrária á d'elle. desencantou no claustro, no cemiterio, e na m e -
P o r mais que o seu talento vire e revire ditação. ,)Mas por que se não contentou c o m
o oculo da imaginação, augmentativo quando essas tres propostas pacificas, e ás quaes a v e r -
encara a Egreja, diminutivo quando percorre dade dava tanta f o r ç a ?
de longe os templos olympicos, os sacellos rús- Se o selvagem e a floresta, se o Moiro e
ticos, as theorias, os pervigilios, e todo aquelle a sua Alhambra, se o seu mosteiro e o seu
mundo de voluptuosidade, é tão possante o sen- solitário, eram, cada um de per si, e olhados
sualismo natural d'aquelle mundo, que, depois ás suas diversas luzes, outros tantos modelos
de sumido no occaso, nos está branquejando o para as bellas-artes e para a Poesia, ,icomo
horizonte; é de si tão immortal a dose de ver- não viu elle que o Olympo e Homero, o Olym-
dade, de que todas essas fabulas se aviven- po e Virgilio, o Olympo e Ovidio, não eram
tavam ; e é, por consequência, tão humana a menos fontes e mananciaes inexhauriveis de
sua indole, e a sua seducção tão incontrastavel; poesia?
que, por parte do praser, do gosto, e da Arte,
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* como o Rodrigo m ' a concedeu para eu ir á


A m e r i c a ; a 2 . a é , que, além de me não suspen-
Mas basta j á de sermonada. Estou a rou- derem o ordenado, me dêem pelo contrario uma
bar-te o tempo com coisas, que, se não são subvenção, ou ajuda de custo, para a minha
verdadeiras, de nada te servem; e se o são, tu peregrinação, que eu lhes hei-de representar
mesmo as deves saber, e de certo as sabes tão como podendo e devendo ser vantajosa para a
bem como eu, e talvez hoje melhor do que eu, instrucção primaria popular, pois devo em
pois, se me não engano, continuas a trazer as França e Italia examinar o que ha de novo
mãos na massa, o que eu, por duas mil e duas e aproveitável n'este capitalissimo ramo do
rasoes, deixei de fazer ha muito. serviço publico.
Se Rodrigo fosse ainda Ministro do Reino,
bem convencido estou de que se prestaria, e
XXXIII de boa-mente, a ambas estas concessões. D o
Marquez de Loulé, porém, não tenho bastante
A nossa viagem projectada. conhecimento para poder aventurar uma pro-
phecia.
Mostrou-me o Paiva 1 na tua carta o que lhe A s Cortes vão-se fechar antes do fim d'este
dizes relativo á tua viagem comigo a Paris, mez, e creio se não tornarão a abrir senão para
de Paris á Italia, e da Italia até á Grécia. Janeiro. Para a minha pretenção b o m é, por-
Supérfluo seria encarecer-te eu, depois do que, em presença do Parlamento aberto, não é
que deixo dito no capitulo precedente, o quan- tão fácil que o Ministro ouse coisas d'estas, que
to esse projecto me seduz; mas <:realisar-se-ha não são de rigorosa tarifa, ainda que também
elle ? i O x a l á ! Se para isso faltar alguma coi- se não possam chamar exorbitações de auto-
sa, não ha-de ser da minha vontade, nem da tua x-idade. Emfim, lá veremos a seu tempo ; por
certamente; poderá ser porém do Governo em quanto não convém falar senão aqui de-
portuguez; porque eis aqui a coisa: baixo dos nossos lençoes.
Para eu realisar essa magnifica excursão, Precedentes para eu esperar que o Loulé
são necessarias duas clausulas, que não de- condescenda, não deixa de os haver. Muitis-
pendem senão do Governo: a l . a é a licença, sima gente tem sido mandada d'aqui, com sof-
sem suspensão dos meus vencimentos; e tal friveis e mesmo boas subvenções, sem desfal-
que nos seus ordenados, para irem estudar
1 Thomaz de Paiva Kaposo, dedicado cofrespon-
coisas úteis em França, em Inglaterra, e em
dente do Conselheiro José Feliciano de Castilho em Allemanha. O Albino e o Antonio Joaquim de
Lisboa. Falleceu por 1863 empregado na Secretaria Figueiredo foram dois d'esses viajantes ad
da Camara dos Deputados. Honrado e pontualissimo studendum; agora mesmo lá andam por fora
caracter de homem. alguns outros.
Os EDITOBSS.
V O I . LXIV 6
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Verdade é, que o pretexto com que toda


e dois ou tres actores cabalmente afinados, co-
essa gente tem sido enviada é o desnvolvi-
mo Talma e Rachel.
mento das coisas materiaes, caminhos de ferro,
A Declamação, que é também uma arte, e
telegraphos, minas, engenharia, agricultura, e
arte dificillima, pode-se dizer que passou em
mesmo arte militar, em quanto o que lhes eu
nossos dias por tanta revolução, como a Lite-
oífereço é uma ridicularia, pois se limita na
ratura, de que ella é parte, ou, quando menos,
instrucção do Povo. ,jQue diabo importa aos
accessório importantíssimo.
Governos que os povos sejam instruídos? pelo
contrario: o camello, que é corcunda, e o dro-
*
medário, que é corcunda duas vezes, são os
animaes que mais carga levam pelas areias do
D'antes, a Recitação (para nos adstringirmos
deserto, e com menos alimento se manteem.
ao nosso proprio assumpto) era affectada, e
E ' uma parte da Historia natural applicada,
excessivamente modulada e monótona. Os poe-
que todos os governantes sabem por instinto.
tas podiam dizer, e diziam com certa verdade
Emfim, v e r e m o s ; a coisa não se ha-de ir pelo
no principio dos seus poemas : «Eu vou can-
mal cosinhado.
t a r » , ou « E u canto».
D o s antigos Romanos procedeu naturalmen-
XXXIV te para os povos seus successores a cantilena
obrigada, de que se arrebicavam as composi-
Declamação. ção métricas, e que a própria Eloquência não
desdenhava; pois sabemos o como Cicero,
nos seus brilhantes discursos curiaes e comi-
A Declamação é para a Eloquência e para a ciaes, se fazia auxiliar de uma flauta, para to-
Poesia o mesmo que para o Desenho o colo- mar d'ella os tons que lhe deviam illuminar os
rido. Poesia e Eloquência, sem Declamação períodos.
acertada, nem mesmo sobre o espirito dos ver-
A s Línguas neo-latinas, despojadas, no seu
sados e entendedores chegam a actuar, senão
herdado falar, d'aquella prosódia, tão minu-
muito imperfeitamente.
ciosa e tão musical, a que os Romanos, volup-
Entretanto, é muito menos raro encontrar- tuosos discípulos dos Athenienses, tanto va-
se quem escreva muito bem, do que um bom lor attribuiam, conservaram não obstante (e a
ledor ou um bom recitador. Italiana mais que todas, como testamenteira que
A França, tão adiantada em tudo que per- era, além de herdeira), o gosto, o costume, quasi
tence ao gosto, a França, que encheria volu- a necessidade, das entoações affectadas e semi-
mes com o catálogo dos seus autores de vulto, musicas para a recitação da poesia, para a da
aponta apenas três ou quatro ledores de pri- prosa mais subida, e quasi até para o falav
meira ordem, taes como Delille e Andrieux, corrente e quotidiano.
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* mais poeta de todos os tempos e de todo o mun-


do, não podia deixar de ser o porta-bandeira
Veio a revolução philosophico-democratico- n'esta importante parte da revolução literaria,
literaria; proclamou-se o predominio da rasão, que tanto em tudo lhe devia. Quem sabe ler, e
o culto da Natureza, em summa, a verdade lê devidamente as poesias d'este homem extraor-
em tudo, a despeito de tudo, e por todos os mo- dinário, reconhece do modo mais claro, mais
dos. A Declamação cantarolada e falsa, que evidente, mais incontestável, o como elle as de-
harmonisava com os buxos aparados e murtas clama, as recita, e o como ellas se d e v e m reci-
contrafeitas, com os donaires, os riçados, as tar. Segundo me dizem, ouvil-o é um verdadei-
unturas, e os signaes, dos nossos pautados e tú- ro feitiço. E u por mim daria tudo por poder
midos avós, reconheceu-se que desafinava no ir á Inglaterra, ao semi-deserto onde elle m o -
meio do systema todo outro das modas con- ra, unicamente para o escutar, e confirmar-me
temporâneas ; ousou-se ser simples e verdadei- nas theorias, que a este respeito tenho vindo
ro. Fez-se aos tons o que Horácio diz do trá- criando e amadurecendo para meu uso, e das
gico a respeito do estylo como condição para quaes espero ainda expremer um livro de al-
commover a espectadores ouvintes: gum proveito. Estou certo de que, se j a -
mais lhe fizesse aquella visita, nos havia-
Projicit ámpuUas et sesquipedalia verba, mos d », entender ás mil maravilhas, e a nossa
si curat cor spectantis tetigisse querela. Literatura patria alguma coisa havia de apro-
veitar.
A Declamação ficou sendo, por uma parte, #

livre, caprichosa, inspirada, como os jardins Peço-te e recommendo-te instantemente que


inglezes modernos; por outra parte, justa e leias attento, e sem prevenções de especie al-
severamente adaptada aos pensamentos e af- guma, o poema, que sob o titulo de Réponse à
fectos que tinha de interpretar. Considerou-se un acte d'accusation vem no 1.° tomo das suas
como um vestido diáphano, Coa vestis, do dis- Contemplations.
curso. Assim como, á semelhança da alma, que A s theorias que elle professa a respeito da *
anima o corpo, o espirito e o coração translu- metrificação, obrigariam Boileau a enforcar-se
zem na Linguaguem, assim as várias intenções no primeiro lampião apagado. São talvez exa-
da Linguagem, se entendeu que deviam trans- geradas, mas assim era necessário: as exigên-
parecer na Declamação. cias da escola ultra-aulica de Luiz X I V haviam
sido excessivas; a reacção forçosamente havia
# de ir para o extremo opposto.

Victor Hugo, o coripheu da escola moder- Est modus in rebus; sunt certi denique fines,
na, o poeta mais philosopho, e o philosopho quos ultra citraq ie nequit consistere rectum.
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100 Emprega 3a Historia de Portugal Obras oompletas de Castilho

Este nosso Horácio dá realmente para tu- que d'elle formo, de todo em todo discordo do
do ; e b o m seria que lesses nas citadas Con- seu juizo.
templations o lindo poemeto intitulado A pro- E, c o m effeito, que receita mais efficaz
pos d'Horace. para magnetisar leitores, do que vazar n'uma
* forma única todos os versos de um longo
poema ? Que maior absurdo do que dar a
Victor H u g o , como dizia, dotado de senso todos elles o mesmo andamento, quando o pen-
poético e philosophia no maior gráu, philoso- samento e o affecto podem, e devem, de uns
phia e senso poético, de que o Satvrico não para outros, diversificar, e até oppôr-se ? Tal
recebera ao nascer nem um só átomo, des- medida, que harmonisaria com a pintura de
truiu, pelo que pertence á metrificação, as bar- uma dança rapida e tumultuosa, seria um con-
reiras da Arte velha, e franqueou aos poetas tra-senso para representar a serenidade de
um campo vastissimo para effeitos, que d a n - um regato ; e tal outra, que muito bem condi-
tes lhes eram impossiveis, e impossivel até o ria com uma intercortada declaração de amo-
desejal-os. Deu n'elle, verdade seja, algumas res, regelaria a alma applicando-se a uma sce-
topadas, direi mesmo algumas quedas; ,;mas na de batalha, de temporal, ou de terremotos,
que importa isso? a sua conquista foi im- porque a onomatopeia não depende só do acer-
mensa, e prospérrima; consumou uma ver- to de vogaes e consoantes, da extensão, pau-
dadeira redempção artística, e (se é licito di- sas e andamento, dos vocábulos; requer egual-
zel-o) completa, porque, não pago de libertar mente (e não dispensa) o discreto uso das for-
e engrandecer o pensamento, de profundar o mas de que é susceptivel cada especie de me-
sentimento até aos abysmos, de revolucionar e tro.
opulentar a Linguagem e o Estylo, aviventou Tanto isto é assim, e tão errado anda no
a Versificação, e com ella e por ella a Decla- seu retrógrado systema o snr. Decoudret, que
mação. elles proprios, os Romanos, cuja recitação
poética era muito mais entoada do que a nos-
*
sa, e que, segundo j á observei, abriam os seus
poemas proclamando eu vou cantar, muitas ve-
Não li ainda o livro de que tu me falas, in- zes se permittiam misturar irregularmente,
titulado Essai de Rythmique Française por De- com o seus hexâmetros puros, hexâmetros
c o u d r e t ; mas pelo titulo, pelos extratos que spondaicos.
d'elle me fazes, e pelas amostras que me trans- Quanto aos pentâmetros, todos sabem que,
creves das suas poesias, julgo poder concluir sendo o uso mais geral terminal-os com pala-
que é um systetnatico reaccionário, um Boileau vras de duas syllabas, muita vez os remata-
refinado, um antípoda de Victor H u g o . Se o vam com vocábulos tri-syllabos, e mesmo
tal Decoudret corresponde em verdade á ideia quadri-syllabos. Ovidio, que era o Bocage ro-
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mano, pouquíssimo usava d'esta licença; mas uma syllaba no principio. E ' uma licença, em
Tibullo j á a tomava com certa franqueza; e contrario sentido, semelhante á que Virgilio se
então de Catullo e Propércio não falemos. permittiu na Eneida, nestes dois v e r s o s :
Tornando aos hexâmetros: se Claudiano,
Lucano, Silio Itálico, tres poetastros maçantes, Jamque iter emensi turres ac tecta Lalinorum
. os faziam sempre, todos, por uma bitola inva- ardua cernebant juvenes, murosque subibant.
riável, j á Horácio, o padre-mestre do gosto,
lia por outro breviário. No primeiro d'estes dois versos, trasborda
Nada mais caprichoso, nada mais acciden- da medida, como v ê s , a ultima syllaba, que
tido, como hoje dizem, e nada mais infrene vai ser absorvida na primeira do verso imme-
(á laia de Hugo), do que a metrificação de diato. Nota ainda mais : que o único motivo que
Horácio, não só nas Epistolas e Satyras, mas poude obrigar o Poeta áquella extravagação,
até na própria Arte poética, n'esse livro, que, foi o dar mate á monotonia, porque aliás nada
legislando a Poesia em todas as partes de que mais fácil do que ter posto, em vez de Latino-
ella se compõe, devia também exemplifical-a. rum, Latini; com o que, o verso lhe sahia ca-
Se passamos dos hexâmetros aos versos bal, excellente, e nada inferior para o pen-
propriamente lyricos, vemos que o mesmo samento.
mentor poético dos Pisoes, o primeiro e único Finalmente: os versos chamados senarios
lyrico romano, aquelle a quem se encommen- em que Phedro escreveu as suas Fabulas,
dou o memorável Carmen sceculare, aquelle, admitiam uma tal variedade de pés, um tal
emfim, a quem Ovidio honrou com o epitheto ad libitum de contextura, que todos elles pare-
de numeroso, numerosus Jíoratius, não hesitou cem estar fazendo figas, cada um da sua parte,
em quebrar, aqui ou acolá, a regularidade mé- para o rythmo inflexivel exigido, contra o uso
trica das suas o d e s ; e para não citar mais do de todos os poetas do mundo, pelo snr. semi-
que um exemplo, mas esse bem frisante, vê a poeta Decoudret.
2. a Ode do Livro I (e nota bem que é logo a
2.® do Livro I), em que a indole do assumpto
o persuadiu a esmerar-se. Na õ. a estrophe o 3.° Eu não digo que n'uma bagatella de uma
verso aãonio dúzia de versos, n'uma arieta por exemplo,
feita de proposito para ser cantada, não seja
Labitur ripa, Jove non probante,
muito plausível essa conformidade que elle re-
mette em si a primeira syllaba do seguinte sa- quer, e de que a Natureza, que é a mestra dos
phico mestres, em nenhuma coisa nos deu ainda, nem
jamais de certo nos ha-de dar, exemplo. Mas,
TJxorius amnis; afora essa hypóthese, o que antes se deve re-
commendar aos poetas é que, sem quebranta-
sem o que, ficava este errado, por excesso de
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rem as leis essenciaes do metro que adoptarem, carrada de madeira se vai enfiando tábua a
procurem introduzir n'elle a maxima variedade, tábua pela porta da estancia dentro.
regulada (quanto possível) pelo senso das con- A Recitarão não é uma coisa mecânica ; não
veniências secretas, que se possam dar entre é um carrilhão de M a f r a ; não é uma mulla a
as ideias e os sons representativos d'ellas. chôto compassado por uma estrada fora, com
E quando não, pergunto: ^qual.será me- o almocreve em cima a cabecear. A Declama-
lhor? <>metter quasi toda a Poesia, quanta appa- ção entende o que diz, e deve ser entendida;
rece na alma, em versos dotados todos de uma caminha, mas não ao som de tambor ou de
vida commum, mas animado cada um d'elles banda marcial, como um s o l d a d o ; passeia,
de uma mobilidade privativamente sua, ou es- anda, ou corre, ou pára, á feição do terreno, das
crever, com uma teima de lundum de taberna, perspectivas, do que tem de fazer, ou. do que
metade só, e muitas vezes só a terça ou a leva no pensamento.
quarte parte, das ideias que se queriam e se Eu creio ter j á dito alguma coisa semelhan-
deviam expressar? te, e talvez aproveitável, no prologo á traduc-
A s poesias de Decoudret podiam ser tão ção das Metamorphoses, e não sei se também
cheias e valentes como as de Victor H u g o , sem no capitulo sobre Declamação, que puz no Tra-
que assim mesmo provassem coisa alguma em tado de Versificação pertugueza.
abono da sua proposta; mas, de mais a mais,
são vazias e nullas; trabalham muito, para não
#
fazer nada; lembram um realejo para ensinar
canarios a cantar; expressam toda a sua sol-
fasinha, porque no cylindro não falta nem meio E m consequência de ser este o meu pensar
preguinho; mas, a final de contas, ninguém e sentir acerca de Recitação, com que a Poe-
pára para ouvir tal, em quanto todos corremos sia se deve revestir, tenho feito, de muitos an-
enthusiasmados para as caprichosas improvisa- nos para cá, muitos ensaios severamente ana-
ções de um Verdi ou de um Meyerbeer, que lyticos de Declamação applicada a escritos
nos levam, de novidade em novidade, atra- meus, e a um cardume de composições de ou-
véz das regras, por fora das regras muitas tros autores, de que a minha memoria se tor-
vezes, até o inesperado, até o sublime, até o nou uma especie de Pantheon.
assombroso. E ' pois a minha Recitação, segundo dizem, e
* me obrigam a acredital-o pela insistência c o m
que nos saráus poéticos me forçavam a repe-
D o exposto se deprehende o como deve ser tir até á saciedade as mesmas coisas, é, digo,
em geral a Declamação : variadíssima c o m in- natural e verdadeira, clara e transparente, le-
telligencia: sem encobrir o metro, mas sem o vemente musica, mas infinitamente variada,
embutir pelos ouvidos, como de cima de uma tanto no andamento, como na força e volume
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da v o z , como nas subidas e descidas da esca- lisou em mim a prophecia biblica inundatio
la natural. camelorum opperiet te. Como é ignorantíssi-
Quem sabe ver n'estas coisas, vê bem que mo, é também atrevidíssimo. E m quanto os bis-
estudei conscienciosamente esta arte, cuja exis- bórrias seus collegas se limitavam em murmu-
tência a maior parte da gente, ignobile vulgus, rar verbalmente da reforma do ensino, e de
nem suspeita; porque ella mesma, quando che- mim, este, paródia de D . Quichote, sahia a pro-
ga a ser de veras Arte, põe tudo em se es- vocar-me em artigos sobre artigos n'um jornal
conder. E m summa: requestei-a, importunei-a, chamado A Lei. O que o bruto desejava era que
e (se me não engano, e me não enganam) con- lhe eu batesse, para se gabar de me haver me-
segui-a, como o Demósthenes e o Cicero; com recido attenção; nunca lhe respondi; nunca
a differença, porém, pelo menos em quanto ao alludi a elle nem por longe. Chegou com este
primeiro, que não tive que inventar uma v o z desprêzo a tal ponto a sua exasperação, que es-
nova, ou desbastar de asperezas a natural creveu para a mesma folha um artigo tão des-
e primitiva, pois um bom orgam tinha-o eu orientado, que, entre outras muitas da sualavra,
recebido da Natureza, sonoro, flexivel, e oiço até dizia que eu tinha sido queimado em estátua
que agradavel. nas praças publicas das nações civilisadas; e
Coisas d'estas, podem-se dizer sem grande acrescentava, para mostrar a minha incompe-
quebra da modéstia, pois não somos nós os tência em matérias de ensino primário, que eu
que fazemos o nosso physico. era g a g o , e não sabia pronunciar o S ; coisa
Não tenho á mão o Tratado da Eloquência que elle tinha feito observar a outros professo-
do Palpito, essa obra-prima do Cardeal M a u r y ; res durante o meu Curso Normal dos Paulistas ;
emprestei-o; mas, se me não falha a memoria, notando-lhes, ao mesmo tempo, que essa miséria
acharás n'elle observações justas, didacticas, minha era effeito inevitável de defeito de cons-
proveitosas, relativas a esta matéria, e com que trucção, não me lembro se no queixo, se na
poderás augmentar muito o interesse do teu barba. O artigo chegou a ser composto; o autor
opusculo. Peço-te que assim o faças, porque, remetteu-me pelo correio, e eu conservo, uma
segundo o meu código, em tudo onde couber prova d'elle; mas, fosse pelo que fosse, nunca
instrucção devemos embutil-a. chegou a apparecer.
Ora aqui tens tu como os bernardos escre-
* v e m a Historia.
Se o alarve dissesse, pelo contrario, que eu
Concluirei este capitulo com uma ratice pronunciava as palavras com demasiado escru-
curiosa: pulo, com excessiva nitidez, fôra ainda uma
Um Professor régio de primeiras Letras, tolice, porque a perfeição nunca é excessiva;
que n'esta Cidade tem cadeira, devendo ter mas ao menos . . não era uma torpeza.
tripeça, é um dos muitos, c o m quem se rea- Esta anecdota veio para aqui per modum
Obras completas de Castilho 87
24 Empresa da Historia de Portttj«J

cavaqui, pois por caso nenhum deves immor- é que se me não façam perder mezes, nem
talisar o selvagem, esculpindo-lhe o nome no semanas, nem dias, nem horas.
teu monumento. «(iQuer-se este meu serviço ? aceite-se-
m'o j á j á . <iNão se quer? recuse-se-m'o j á j á .
«Se m ' o aceitam, confessar-me-hei despa-
XXXV chado, porque haverei ensinado a talentos da
minha Terra, que por ahi se perdem, o de
Outro Post-scriptum a respeito de Deccla- que elles carecem, o que eu sei ensinar, o que
mação, e nada mais: nunca por cá até hoje se ensinou. Remunera-
Estando a ponto de acabar-se o meu Curso ção, nem a pedi, nem a p e ç o ; dou-m'a eu mes-
normal dado na livraria do extinto convento mo; tenho-a dentro.
dos Paulistas em 1853, officiei ao Ministro do « S e m'o recusam, desço d'estas utopias de
Reino, em 27 de Dezembro de 53, offerecendo- utilidade publica para o fundo da minha poisa-
me a dar gratuitamente na mesma casa, e logo da humilde, a tratar dos meus interesses do-
em seguida áquelle, outro de Versificação, de mésticos, demasiadamente transcurados.
rudimentos de Poética, e Declamação; para o «Ainda uma vez : o sim dado j á , é uma
que, pedia se continuasse a franquear-me a grande mercê, pela qual, como cidadão, eu
sala, e a abonar-se a illuminação. Para este beijarei as mãos a V . E. ; o não, dado j á , é
novo Curso pedia dois mezes. Aqui tens tu o outra mercê também, pela qual não menos
final do meu ofíicio: hei-de beijar as mãos a V . E . , como pae de
familias.
«Digne-se pois V . E . de me despachar, com
« A mercê que eu peço muito instantemente um bom não, ou com um bom sim, o mais rá-
a V . E . é a brevidade na decisão d'este ne- pido que n'uma Secretaria possa haver.»
gocio. Se o meu offerecimento é aceito, con-
vém principiar desde j á trabalhos fundamen-
taes para o supra-indicado Curso ; se não con- #

vém, ou por qualquer motivo se não pode rea-


lisar, o tempo que me haviam de levar esses E m 10 de Janeiro de 54 respondia-me o Mi-
preparativos empregai-o-hei de qualquer ou- nistro, em nome do Regente, elogiando e agra-
tro modo. decendo o meu zelo, e terminava o seu ofíicio
« A s vidas são todas curtas; as dos homens de aceitação com estas palavras:
ardentes para o bem, muito mais curtas; a «devendo ser restricta a
minha vai manifesta e impetuosamente na va- duração do novo Curso ao periodo de um m e z . »
sante. Não quero j á agora repoisar, senão no Repliquei-lhe em officio de não sei quantos,
cemiterio. O que imploro, como favor summo, que elle tinha muito bem conciliado na sua
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Obras completas de Castilho

resposta o não e o sim, porque, dando-me um de tudo, no assumpto da actualidade, pode-se


mez, me dava coisa que eu, por inútil, não po- dizer que não sahia do theatro, salvo quando
dia aceitar; pelo que, lhe ficava obrigado os actores mesmos vinham ensaiar-se em mi-
duas vezes. nha casa. Ensinei-os a todos, a um e um, a
declamar com verdade e sentimento. Fui c o m
XXXVI elles o que são as aves-mães com os passari-
nhos: dava-lhes a papinha j á mastigada. O re-
Ainda duas linhas sobre Decla- sultado foi que o Salitre, até então deserto,
mação. teve enchentes, e merecia-as.
Theatro do Salitre. Foi ahi, que eu emprehendi, e completei, a
façanha de pegar n'uma Italiana, que viera
Quando aqui arribou um moço italiano de j á adulta para Portugal, e fazel-a representar
L u c c a , dotado de bastante talento dramatico, em portuguez, quasi sem accentuação estran-
chamado Cesar Perini, que se dizia emigrado, geira, e com inteira aceitação. Essa dama foi
e me trazia cartas de recommendação de um a Grata Niccolini.
amigo de Gibraltar, condoí-me do seu desam-
E agora, nada mais de Declamação, senão
paro, puz em portuguez, corrigindo-as e arran-
que, d'estas comedias que para o Salitre ar-
jando as a meu modo, comedias d'elle, taes
ranjei, uada conservo, porque dei tudo ao
como Os tres dias de um sentenciado, Filippe
actor Dias, que era o melhor do meu Salitre,
Mauvert, Geraldo sem pavor, e não sei que mais,
e tudo elle levou para o Brazil, onde foi aca-
e fil-as representar em seu beneficio no thea-
bar com uma apoplexia.
tro do Salitre, que então andava, ainda que
fraquíssimo, e sem especie alguma de protec-
ção, em guerra de rivalidade com a Companhia
XXXV11
de Emilio D o u x no theatro dos Condes.
Por essa occasião arranjei para o mesmo Sa-
As minhas correspondências
litre algumas farças imitadas do francez, taes
com o Governo.
como As mulheres romanticas, A volta inespera-
da, Os cincoenta annos, O avôsinho, etc.; o Davam j á hoje uns poucos de volumes bem
Herculano a comedia O fronteiro d'Africa, e curiosos, porque encerram toda a incrivel e
O tinteiro não é caçarola, traducção do vaude- melodramatica historia do Methodo portuguez,
ville Le secrétaire et le cuisinier; o Rodrigo e pode-se dizer que, fragmentadamente, um
Felner Os empyricos de algum dia, de Scribe, curso amplissimo e preciso de Methódica, de
e não sei que mais. Pedagogia, da Philosophia do ensino, em
N'essa temporada, com o meu génio que tu summa.
sabes, de me absorver todo, e com exclusão A Secretaria do Reino nunca recebeu, of
VOL. I X I V 7
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ficialmente, nem extra-officialmente, nem em mo de affectos consumados nas aras do inte-


descomposturas dadas á porta a Officiaes ou resse publico, muitas vezes utopístico (e uto-
a Ministros por gente desattendida em preten- pistico até quando mais real), sinto, collocan-
çoes justas, nunca jamais recebeu, nem ella do-me fora de mim como espectador neutral,
nem Secretaria alguma de quantas esfervilham ora uma certa veneração pelos sentimentos,
pela superfície d'este planeta, um montão mais ora uma certa lástima pelo juizo. Cuido estar
compacto de verdades duras, ora temperadas vendo um longe do Camille Desmoulins, e não
só com pimentão, ora adubadas com sal, ora posso impedir-me de comparar a minha rasão
com um e outro tempero. Só a paciência do a uma chamma, que os ventos apostadjs con-
Rodrigo é que me aturava. tra ella enfurecem, que luta doidamente com
Por isso também, depois, e por occasião da as trevas, ora vencedora ora vencida, e que,
sua sahida do Ministério, eu lhe dirigi aquella criada originariamente para allumiar, muitas
carta, que lerias no jornal d'aqui O Futuio, vezes incendeia e destroe.
de 12 de Maio d'este anno. No mesmo jornal
vem a resposta d'elle. O Gabinete de leitura #
deve ter isso.
Prégam-me todos, e nào poucas vezes m'o
XXXVIII tenho eu dito a mim mesmo, que o zelo exces-
sivo damna os negocios. Reconheço lucidissima-
Genío violento e amoravel. mente esta verdade, quando discorro sobre os
actos consumados; mas repugno-a sempre c o -
Esta parte é a mais difficil de ser auto-bio- mo um absurdo, e repulso-a como uma cobar-
graphicamente escrita. E ' delicada, e muito dia, em se tratando de encetar uma nova em-
importante para o trabalho que emprehendes. preza. E' porque um dos meus maiores defei-
Aqui é que o nosce te ipsum offerece mais es- tos é um incurável amor á verdade nas coisas
cabrosidades. capitaes do Genero humano.

# #

Percorrendo em espirito os meus versos, as Quero transcrever-te para aqui, por vir a
minhas prosas, as minhas correspondências pêlo, o que eu dizia ao Viale n'uma longa car-
officiaes, as minhas numerosas e acerbas po- ta que elle devia mostrar, e diz que mostrou
lémicas, os meus comettimentos civilisado- a este Rei actual:
res, os meus actos de dedicação espontânea-
e os meus sacrifícios de toda a especie, de re,
poiso, de saúde, de haveres, de gloria, e mes- «N'este conjunto cerrado de circumstancias.
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^que podia a autoridade nominal do Commissa- só e única fonte: o amor entranhado, crente,
rio do Governo para a diffusão do Methodo heroico, sem limites.
p o r t u g u e z ? o mesmo que o lenho atirado por «Quando Cicero orava contra os Romanos
Júpiter ao meio do charco das rans; saltaram- inimigos de Roma, ia muito mais longe do que
lhe em cima, conspurcaram-n-o, e grasnaram eu fui contra estes Portuguezes inimigos de
sobre elle o seu triumpho. E u só differia do Portugal. O seu odio levava-o até a perse-
lenho em ter v o z , e em levantal-a no meio guil-os nos seus vicios individuaes, e devassar
d'estes descompostos alaridos. as vergonhas de suas casas. Ahi, sim que era
«Com muita, ou pouca, ou nenhuma esperan- o excesso do patriotismo; mas Roma salva ap-
ça, eu não cessava de queixar-me ao Governo, plaudia isso mesmo.
em officios acszos de amor e energicos de lealda- « S . Jeronymo, cheio do zelo da Religião,
de ; nas escolas, em discursos de convicção e cujo era athleta, cujos Livros santos elle vul-
demonstração; na Impresa, em artigos, em que garisára, e a quem, por isso, o espirito de
muitas vezes o patriotismo exacerbado pela mansidão evangelica devia ser familiar, S. Je-
brutalidade das injurias transbordava por cima ronymo fulminava com os mais desabridos im-
de todos os diques da moderação. Não apre- propérios os seus adversarios, só porque o
sento estes artigos como modelos; mas quem eram da verdade.
m ' o s condemnasse absolutamente, quem fosse «Moisés, irritado de ver a adoração do be-
capaz de moderação em tal assumpto, quem zerro de oiro no P o v o a que elle trazia o có-
estivesse escolhendo expre*ssÕes, amaciando e digo do Sinai, fíz-lhe muito peor que flage-
perfumando affectadamente o estylo, contra taes lal-o com palavras: metteu-o á espada, e que-
e tantos envenenadores da educação, falsifica- brou as táboas da L e i .
dores do Evangelho, martyrisadores da inno- «Jesu-Christo, finalmente, levou do azurra-
cencia, espoliadores das familias, Eróstratos e g u e contra os profanadores do templo, e, por
Ornares do futuro; quem, pisado, calcado, es- sua divina e caridosa mão, lh'o assentou mui
carnecido, quasi j á derrotado por elles, que bem assente nas espaldas.
são innumeraveis, podesse apresentar-se-lhes
modelo de urbanidade, urbanidade contrafeita, ISemper ego auditor tantumf ! gNunquamne reponam,
sobre posse, impossivel; esse faria tudo quan- vexatus toties ?!
to quizessem d'elle, mas nunca se haveria sa-
crificado, como eu, pelo interesse c o m m u m . «A brochura Ajuste de contas com os adver-
«Os serviços largos, que, ha annos agros e sarios do Methodo portuguez, de que também
muitos, j u r o a Deus tenho prestado a este envio a V . E . um exemplar, se V . E . tiver a
Paiz, e a acerbidade com que indignado re- paciência de a correr pelos olhos, bastará pa-
pulso os que, sem nunca o terem servido, veem ra que V . E . , com ser varão tão moderado,
impedir-me na boa obra, tudo nasce de uma admire mais, com semelhantes adversarios e
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24 Empresa da Historia de Portttj«J Obras completas de Castilho

em tal assumpto, a minha paciência, que as senti perdido de todo para mim, olhei para o
minhas iras.» fundo do meu coração, e vi que fazia noite.
Por mim, posso dizer o que de si escre-
veu D u c i s :
#
Ou m'a trompé souvent, je ríai trompé personne.
Ora, José, anda lá. L ê agora uma vez, sem
preconceitos, e pondo-te mentalmente em meu Antes assim. Alegro-me de ver que, atra-
logar, a Tosquia de um cumello. Com esse véz das mutações das edades, e criança bon-
opusculo te aparelharás para formar n'esta ma- dosa e simples que ao principio fui, ainda não
téria um juizo equitativo a meu respeito. morreu, nem j á agora ha-de morrer senão comi-
E m summa: mais amante do que eu, não go. E ' ella, essa parvoinha innocente, a minha
quero que o haja; mas o amor é como o leite, única verdadeiía Musa, a minha mais cons-
é como o mel, é como os frutos mais d o c e s : se tante, mais donosa, e mais querida inspi-
o não aproveitam, azeda, e pode tornar-se em radora.
fel ou em veneno. T u deves conhecer-me um tanto. ,jNão será
D e meu natural pendor fui sempre para os isto verdade?
capuanos e floridos ocios do bem-querer. Be-
nevolencía immensa e profunda é o estado ínsi- XXXIX
to da minha alma, como o da agua é estar-se
muito quêda, mettendo em si as imagens dos Sentimento innato de indepen-
objectos circumstantes, e cambiando com elles dencia.
colloquios mudos suavíssimos. Se caem fura-
cões sobre um lago, o descompõem, o aprocel- Dispartiu-me a Natureza (porque eu não
lam, e o arremeçam contra as circumvisinhan- me fiz) um grande cabedal de altivez, a qual,
ç a s ; ou se lhe veem frios, que o apertam, a não ser temperada da minha nativa benevo-
regelam, e petrificam, são variações acciden- lencia, se tornaria odiosa, além de ridicula
taes que elle padece, e em que não tem culpa. (nota bem que estou conversando comtigo). O
Fizeram-n-o parecer assim, que elle de si era sentimento e consciência da dignidade humana,
outra coisa. apanágio principalissimo que devera ser de
Tenho semeado e cultivado muitas amisa- todos os indivíduos, tem-me vindo acompanhan-
des ; algumas feneceram; outras degeneraram do, e talvez crescendo, desde os tempos mais
em malquerenças; nem uma só por minha culpa. antigos de que me posso recordar.
E mais ainda: a algum coração, depois de me Ha um não-sei-quê na desegualdade, na
ter fugido, reprocurei-o, armei-lhe redes, en- humiliaçâo de uns para elevação de outros,
visquei-lhe ramos para o c a ç a r ; e quando o que, por mais que os raciocinadores da or-
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dem o defendam e apologiem, me repugna, don, fizeram-n-o perder no ocio, e de puro de-
quer eu em espirito me colloque entre os mor- sanimado, largos annos, e dos mais bellos e
gados, quer entre os filhos expostos da fortuna. fortes annos, da sua vida.
(Eu não estou pliilosophando; registo phenóme- A posteridade revê quasi sempre os proces-
nos moraes, que em mim se passam; assim, sos d'esta especie, e reforma as sentenças
meu corcunda, excusado é fazeres polemica a apaixonadas, e vinga o merecimento desconhe-
este respeito). cido; mas a perda está consumada, e não tem
# remedio.
0 peor é que essa reparação tardia, não a
Muita gente, que me não tem tratado, ima- pode antever com certeza o interessado; a es-
gina e diz que sou despresador, sobranceiro, perança lhe serviria pelo menos de consolo, e
que me diviniso para a plebe literaria. Nada talvez lhe reporia as forças para perseverar
mais falso. Não ha principiante, a quem eu na lida ingrata.
não dê a mão se elle me procura, ou a quem
eu não procure, se o posso. Não ha entre 1 Insere nune, Melibcee, piros, pone ordine vites !
os meus pares um, a quem eu recuse o que
lhe é devido. Não ha uma só superioridade D i g o que nem o alvor do futuro reanima a
intellectual, seja de que especie fôr, que lhe um trabalhador de bem, desatendido e menos-
eu não dê pleno reconhecimento. Nunca vi, cabado dos seus coetâneos, porque, a julgar
em grau algum da escala, um literato per- dos outros pelo que em mim sinto, esses po-
seguido pela inveja ou pela ignorancia, que, bres párias, tão bons e tão infelizes como
sabedor por experiencia do que esses tiros aquelle da Choupana india, de Saint-Pierre,
doem, lhe não acudisse. E m summa: ingra- não podem ter certeza alguma de que os vin-
tidões, nunca ninguém com mais pródiga mão doiros hajam de rehabilitar a sua memoria.
as semeou. Delille disse de Cicero:

II écoutait de loin son immortalitè.


Então me concentro no mais profundo re-
tiro, evitando até os eccos do que vai lá
por fora no alcunhado mundo literário. <:Mas é por ventura, ou poderá jamais ser,
jQue vezes não deve ter acontecido outro provado que Cicero, mesmo com toda a su-
tanto a outros poetas ! e d'ahi, que inapreci- perioridade do seu talento, do seu caracter, e
ável, que ignorada desherdação para a L i - do seu saber, com todos os louvores, c o m to-
teratura! Olha Racine: as injustiças ignaras da a glória, com todas as ovações que havia
ou maliciosas de muitos dos seus contemporâ- obtido, tinha a convicção segura, inabalavel,
neos, que á bocca cheia lhe antepunham Pra- inconcutivel, evidentissima, do seu m é r i t o ?
9á dmpreea da Historia de Portugal Obras completas de Castilho 99

,jNão é um principio assente, que ninguém No A c t o V do meu Camões pintei eu, taes
pode julgar em causa própria ? Como as conhecia, 011 as julgava conhecer, es-
,;Nâo ensinou sempre a experiencia que o tas pungentes dúvidas de um poeta desaven-
amor proprio, além de ser sujeito a miragens, turado e desconhecido, que se revira a esprei-
usa de oculos ? tar para dentro de si como para o fundo de
^Não é natural o duvidar no que mais se um poço negro e vertiginoso. N'essas falas do
ambiciona ? talento chegado pelo infortúnio ao scepticismo,
,JO talento, como o amor, não tem fluxos e á horrível negação da própria individualida-
refluxos ? de, pintei eu (e sei que muito bem) um estado
,;A alma, que n'uma estação floreja, n'outra que j á então conhecia, e hoje conheço muito
arde, n'outra frutifica, não tem em todas ellas melhor. E o orgulho, o justo orgulho, que ali
interrupções tenebrosas e frias, e apóz ellas se debate contra a injustiça, como um condem-
um completo despir de folhas, e um inverno nado, sem culpa, alguma vez se viu lutar contra
glacial, nocturno, tempestuoso ? o verdugo, até ficar nu e em sangue. E' Ché-
[Ainda mal que assim é! pois aliás, se o nier, dando murros na testa quando o levavam
apreço, ao menos, dos que ainda não nasce- ao cadafalso, e exclamando, poeta até ao fim,
ram, nos fosse prophetisado com todos os cri- e poeta ceifado em flor: II y avait pourtant là
térios de infallivel, teríamos de sobra com que encore quelquc chose. E ' " Lavoisier, suppli-
reagir contra a barbárie dos contemporâneos, cando, e supplicando em vão, ao cutello revo-
contra a inveja dos vivos, funesta paixão que lucionário que espere algumas horas mais pa-
os Romanos confundiam n'um só e mesmo vo- ra o deixar concluir um descobrimento precio-
cábulo com o odio: invidia. so para a sciencia. E ' . . . este martyrológio
Poderia dizer-se a esses cultores do mundo nào se esgotaria tão depressa.
intellectnal, o que ao seu Daphnis disse o Po- O orgulho, que transparece no fundo de to-
eta das Georgicas-. dos estes factos, por uma parte honrosos, por
outra infames para a Humanidade, pousará
Insere, Daphni, piros; carpent lua poma nepofes; alguém, por ventura condemnal-o? ,;Não é el-
le a v o z da justiça, que ordena dar a cada um
o que é seu, sem exceptuar o proprio indivi-
e muitos Daphnis, que aliás se vão dormir, duo? ^Não é o pregão reiterado das Letras
aturdir-se, ou comer-se e matar-se de tristeza, santas, que ora nos ordenam curar do nosso
enxertariam com effeito as suas tardias arvo- bom nome, ora que não mettâmos sob o alquei-
res, e gosariam como recompensa as bênçãos re a luz destinada a esclarecer ?
dos seus netos ainda não nascidos, que algum Sem duvida; sem duvida. Fique pois assen-
dia ali haviam de vir regalar-se com os fru- tado que, tenho orgulho, mas não um orgulho
tos. impertinente, insultuoso, e a que melhor qua-
100 Emprega 3a Historia de Portugal Obras oompletas de Castilho 101

drára o nome de vaidade; não nm orgulho que tão duras, e tão contínuas, contrariedades?
aspira a dominar, sim um orgulho que se indi- Mas eu, a Historia diluo-a na Poesia.
gna contra a oppressão, como a palma que sem Não é quando me ponho a ditar, que mais
estrondo se levanta com o pezo. phantasío e góso ; porque ahi está j á uma tes-
D'este orgulho, e de um poucochinho de temunha ; está uma penna, como que escar-
philosophia estóica juntos, combinados chimi- neando com o seu sussurro o meu pensamento
camente (se assim se pode dizer), resultou-me que ella materialisa; estão as demoras força-
uma certa indifferença para com a opinião, das ; está a reflexão importuna do como toarão
uma aversão para as sociedades, uma grande depois, nos ouvidos dos indiíFerentes, dos ma-
perguiça de falar, e mesmo de escrever, que lignos, e dos despresadores, as expressões,
por vezes me tem feito lembrar o Morra e vin- que, por mais inspiradas do sentimento, ou
gue se, aconselhado por Vieira ao soldado mal por mais remontadas na concepção, não vão
galardoado. titiktl-os no seu gosto. N ã o ; os meus melhores
E u podia levar muito por diante este abor- poemas são os que eu não dito, nem d i g o ; são
recido capitulo, mas não quero. os que eu improviso comigo, e para mim, na
cama antes do adormecer, na solidão de uma
XL grande sociedade onde não converso, n'uma
jornada a cavallo por uma estrada fora, e,
Vis trabalhandi, inertia mais que tudo, passadas as primeiras violências
Iazaronis. do enjoo, estendido no beliche, entrecortando
os dias com somnos, e as noites com vigílias.
Sou como o V e s ú v i o : ha sempre fogo den- N'estas, e n'outras semelhantes circumstancias,
tro em mim, mas só de tempos a tempos se todo eu me desfaço em Poesia; é uma activida-
manifesta em erupção. Fóra d'esses lances, só de a que não conheço limites.
quem applicar o ouvido ao fundo da cratera, L o g o que se trata de fazer um livro, mudou
é que preceberá o que la vai por baixo, e de tudo ; é uma obrigação, ainda que imposta por
que algum dia borbotará uma torrente inflam- mim m e s m o ; é um trabalho prescrito, e ser-
mada. vil, de que eu fui, sim, o architecto, de que
Poetar, pode-se dizer que poeto sempre; sou o dono, mas em que lido como operário;
hoje, còmo n'outro tempo. aborrece-me, repugna-me. Por isso também,
O meu espirito vive mais, por tendencia e quando o concluo, sinto um alvoroço compará-
por hábito, na realidade subjectiva de um vel ao de um estudante no dia do p o n t o ; lem-
mundo ficticio, do que nas falsidades desafina- bra-me laurear a penna, e illuminar o escri-
das e mal compostas do mundo ..objectivo. Se tório.
não fosse esta reacção, ^que haveria sido de #
mim, ha j á muito, cercado e batido de tantas, Ora, se isto é com o escrever uma obra de
112 Empresa, da Historia de Portugal Obras completas de Castilho 113

prosa ou verso, mas sempre do dominio do qualquer dos muitos actos solemnes em que
coração ou da phantasia, ; que não será quan- ténho sido constrangido a representar, con-
do se trata de qualquer^outro trabalho árido, tentando-me com o que o momento me offe-
positivo, materialissimo, amaldiçoado das Mu- recer, em estylo qua"si sempre chão e desam-
sas, como quasi tudo de que se compõe a blcioso. E então, de banquetes onde ha espi-
galé da v i d a ! Isso para mim é intolerá- ches ostentosos, fujo eu sempre com horror,
vel. A tal custo, rejeitaria os maiores inte- que antes comer uma sardinha onde m'a não
resses. obrigam a pagar com eloquencia.
Para corrigir a basófia de me ter compa- Para essas festas do talento extemporâneo,
rado com o vulcão, comparo-me agora com o em que tu brilhas maravilhosamente, sou eu
lazarone de Nápoles, que, em tendo para um um decepadinho. 1
prato de macarrão e um peixe frito, se es- E ' , finalmente, em grande parte, por esta
tira ao sol um dia todo, a devanear, com os boa rasão negativa, além de outras positivas,
olhos n'uma barca ao longe no golfo de Ná- que não quero ser Deputado, nem vou a bei-
poles; e ninguém lhe proponha por um mi- ja-mãos, nem jamais appareci em sessão Real
lhão, e pelo palacio do Rei, o fazer um da Academia, nem procuro Ministros, nem
frete. frequento o Grémio.
* 0 meu espirito aprendeu do meu corpo, se
não foi o meu corpo que aprendeu do meu
E ' ainda por effeito d'esta minha nativa espirito, a viver em mangas de camisa, com
indolência (nem louvável, nem condemnavel, o pescoço desengravatado, e estirado (bem
porque não fui eu que a fiz), é, com certeza sabes) em cima de uma esteira, a escutar
o digo, só por effeito d'ella, que muitas e pianos e cantorias, mas de longe.
muitissimas vezes saio de assemblèas, mes- Resultado liquido: não hei-de deixar gran-
mo literarias, verbi-gratia das sessões da A c a - de coisa em testamento, nem hei-de ter nun-
demia, sem ter despendido uma única plira- ca em minha casa uma corte de admiradores
se, em quanto sobre asssumptos em que eu, e desfrutadores, como tantos outros.
se não sei mais, também não sei menos
1 Verdade testa da por' .tfodo.s os que o conhece-
do que outros que os estafam, os mais some-
ram, é que. Jo|é Feliqianí^pfimava como orador, ruti
nos arrotam erudição, bandejam philosophias, lava no imprcwiso, tinrça-m talento da intimativa, da
e destillam uma coisa que por ahi chamam imagem, da cor, auxiliado ^or uma voz sonora e mal-
espirito, e que, em ultima analyse, se não leavel, por um gesto largi e imperioso, e por uma
é um caput mortuum, não passa de uma quin- bella figura. Nas Camaras bateu-se com as primeiras
espadas; n'uma sessão literaria era encantador; n'um
ta essencia de nada. brinde de sobremeza era inimitável. Dotes quo seu ir-
E ' ainda por effeito do mesmo vicio, ou mão não possuía.
virtude, que nunca preparei u-m discurso para O s EDITJBES.
100 Emprega 3a Historia de Portugal Obras oompletas de Castilho 101

* não provir só da obrigação de responder, er&


que tirannicamente me vem pôr cada missiva,
Para quem faz confissão de perguiça, creio mas que prende sobretudo n'um certo pressen-
que não tenho escrito pouco. Assim, sim se- timento pusillanime, de que, dentro n'aquelle
nhor; com este trabalho me entendo eu; é ca- papel, fechado e mudo, ha-de vir alguma n o -
vaquear correntemente; é deixar-me boiar á ticia desagradavel, alguma coisa que perturbe
tona do pensamento. o meu descanço, ou (quando menos) me e x -
travie do álveo costumado dos meus pensa-
* mentos.
Muitas vezes me tem succedido conservar
Ainda uma reflexão. cartas, recebidas em occasiÕes em que tenho
Sendo o meu génio assim, como t'o acabo que fazer, ou em que gósto de não fazer nada,
de pintar, imagina tu jquão sincero e ardente fechadas muitos dias, e ás vezes semanas, á
não deve ter sido o meu zelo pela civilisação espera de uma hora de heróica resolução. Pa-
contida na Instrucção primaria popular, quan- ra isto podem ter contribuído as anonymas,
do por ella tenho andado ha tantos annos n'u- com que n'outro tempo me mimoseavam, e de
ma guerra viva, escrevendo obras, sustentando que emfim me descartei, j á de annos para cá,
polémicas, multiplicando longas correspondên- por um modo muito simples.
cias, fazendo viagens, dando Cursos normaes, Quero-te ensinar a receita, porque é boa,
e requerendo a Ministros, a Parlamentos, e a o todos a devem saber para seu uso, que se-
Reis, que todos são surdos, etc etc. etc. ! rá o único modo de se dar cabo d'estas sevan-
Não ha nada mais frenético do que a acti- dijas invisiveis, cuja existencia só se denun-
vidade do mandrião. cia pela picada venenosa:
No que deixo candidamente exposto, está a *
explicação da minha insigne, e j á proverbial,
despontualidade em correspondências epistola-
res. T u bem o sabes; e mas ainda não és tu L o g o que se abre uma carta, e se v ê que
dos que o sabem melhor; pelo contrário; nun- não traz assignatura, ou que a traz contrafei-
ca ningnem se benzeu com tantas cartas mi- ta e desconhecida (ellas conhecem-se pelo chei-
nhas estiradas, como tu. ro), ou que a escritura das paginas é disfar-
çada, queima-se sem mais inquirições assim
como se esborracha uma aranha, sem mais
exames, antes que ella nos morda. Se nenhum
Quanto a isto de cartas, tenho ainda outra d'estes indicios materiaes nos revelou a anony-
comigo, que é uma certa quesilia involuntária, midade, começa-se a ler; mas, apenas se reco-
instintiva, a recebel-as; quesilia que eu julgo nhece que é de inimigo sollapado, pára-se re-
VOL. LXIV 8
100 Emprega 3a Historia de Portugal Obras oompletas de Castilho 101

solutanente, inflexivelmente, e rasga-se tão meiro c a n ç a : se elles de escrever, ou eu de


miudinho, que, ainda que depois viesse tenta- queimar.
ção de recompor a cataplasma, j á não seja j Coisa notável! nunca mais recebi uma li-
possivel. Se é de noite, e ha lume ao-pé, quei- nha anonyma.
ma-se tudo. Se é de dia, deita-se pela janel- Lembra-me que sobre este assumpto j á eu ti-
la fora; e, para sobremeza de um dever cum- nha escrito um artigo na Revista Universal.
prido, tem-se um divertimento, que é ver vol- A matéria parece-me digna de que faças uma
tear nos ares aquellas borboletinhas brancas
boa digressão.
originadas todas de uma odiosa lagarta, cria- *
da n ' u m casulo babado, e cujo desembargo
do Paço é vir a ser aranhão. D i z e m os physicos ser a inércia uma força
Adoptado este systema, faz-se constar; e natural dos corpos, com que elles resistem a
d'ahi por diante, bem asnos seriam os tratan- mover-se, quando quedos, ou a quietar-se,
tes se perdessem, em se cartear com quem os quando em movimento. A minha alma tem
não lê, a sua folha de papel, a sua estampi- essa força dos c o r p o s : resiste quanto pode á
lha, a sua preciosa eloquencia, e o tempo que mudança, não só da quietação para o movi-
tão ricamente empregam. mento, mas também do movimento para a quie-
A efficácia d e s t e recipe está provada. tação. Esta segunda parte, que parece menos
* intelligivel, tenho-a averigado muitas vezes.
Quando ando com trabalhos didácticos, re-
pugna-me pensar em versos ; quando faço ver-
sos, desadoro com a lembrança de passar pa-
Duranto o Curso Normal que dei nos Pau- ra a prosa. Passo oito dias deitado, e passarei
listas, causticavam-me com cartas anonymas; quinze e trinta sem uma veleidade de sahir ;
respondia-lhes verbalmente, no principio ou no e passarei seis mezes sem desejo de me reco-
fim da sessão; ellas continuavam, e recresciam. lher. Esta inércia das duas especies, e applica-
U m a noite disse e u : da a quasi tudo, é que me tem dado uma certa
Aqui estão duas cartas anonymas recebidas reputação de inconstante e inconsequente.
hoje ; nenhuma d'ellas foi lida: — (e era ver- O que mais é para notar, é que, não tendo
dade)— mas vão ser respondidas. eu aproveitado senão a parte mínima do meu
E pul-as immediatamente sobre a chamma tempo para producção literaria, pois dedu-
de uma vella a arder, por entre o estrépito zidos os quinhões dos trabalhos prosaicos, dos
das palmas de todos os espectadores. doutrinaes, e dos impedimentos de toda a es-
— Estas estão respondidas — conclui eu ; pecie, bem pouco é o que vem a sobrar, eu
— os seus autores, que provavelmente se acham tenha todavia escrito tão alentado numero de
na sala, podem continuar; veremos quem pri- obras como as que estão impressas, em volu-
108 Emprwa 3a Historia de Portugal Obras completas de VastUhò 109

mes e em jornaes ; não falando nas inéditas, «Quando estavamos para ir de S. Miguel
e nas correspondências, que, se algum dia se para o Rio, e viemos para Lisboa, continuan-
colligissem, não dariam j á hoje menos (nem, do o curso que havia dado ás minhas ideias
aqui para nós, seriam talvez muito menos im- para a civilisação, e entendendo que a instruc-
teressantes) que as dé Voltaire. ção e educação se deviam dar por modo mui-
to diverso do que em geral se costuma, fazen-
do do entendimento caminho para a memoria,
XLI e do praser o vestíbulo'para o estudo, em-
prehendi a fundação de um Collegio: o Pór-
O meu actual retiro tico.
na Lapa. «Abriu-se em Outubro de 1850 no palacio
da rua dos Machadinhos. Trasladou-se em
L o g o que me convenci da inutilidade, da 52 para a rua dos Doiradores; de lá, n'esse
inconveniência, do grande prejuiso mesmo, que mesmo anno, para o palaeio Sarmento á E s -
havia para mim, em teimar na utopia de trella, onde durou perto de um anno.
mostrar praticamente, por via de um Collegio « O que devia dar vida a este estabeleci-
meu, o como se devia fazer o ensino e a -mento, matou-o: o fundador e director decla-
educação, tomando por bases fundamentaes rava em tudo guerra ao ramerrão; succumbiu.
a intelligencia e a brandura, isto é, as duas E ' ahistoriade todos os innovadores. Foi ali, que
mais bellas e naturaes coisas que ha no mun- elle encetou, com admiraveis resultados, a refor-
do, a luz e o amor, senti-me de veras cançado, ma philosóphica do ensino do latim. O livro, on-
não tanto do exfôrço de criação mental, que de esse systema, natural e ao mesmo tempo en-
fora muito, das lidas escolares, que eu proprio genhoso, fruto de muito trabalho, estudo, e
exercia quotidianamente desde a madrugada até experiencia, se acha explanado, é offerecido
ao sol posto, e dos sérios cuidados de uma admi- pelo autor á Academia Real das Sciencias de
nistração quasi sem meios, como dos desgostos Lisboa, pela qual deverá ser impresso.»
contínuos que de toda a parte me suscitavam, *
o ramerrão (que é uma omnipotência), e os
mestres e directores das escolas e collegios
communs (que são os seus ministros). Foi a minha torresinha de Babel arrojada
A tudo resistira eu pertinaz, cerca de tres e ambiciosa na traça, mas fadada a não vin-
annos. gar, porque fora emprehendida em menoscabo
# de uma divindade, a mais possante -das divin-
dades terrestres: o preconceito universal petri-
Eis aqui o que a este proposito encontro ficado pelos séculos. Obra que ninguém che-
nos àpontamentos: gou a ver senão em espirito, e de que apenas
Obras oompletas de Castilho 101
100 Emprega 3a Historia de Portugal

restam, como pedras soltas e meio desbastadas, não desertar, ha j á hoje cinco annos. Aqui me
o j á citado Methodo de latim, o Methodo por- levanto tarde, e me deito tardíssimo, gosandO
tuguez, que ahi se desenvolveu na prática, o não obstante, e & despeito das regras hygieni-
melhor ensino da Versificação, e o único racio- cas," óptima saúde em mim e em todos os
nal da philosophia da Linguagem, posta no lo- meus. Aqui trabalho muito, ou mandreio
gar da Grammatica nonsense cunhada na me- muito. Aqui, emtim, estou livre d,í ser visita-
moria c o m o balanceiro da férula. do, salvo de longe em longe por algum amigo
Havia, com effeito, em tudo isto rasões de verdadeiro, e mesmo com um bom pretexto
sobra para me sentir cançado, rendido, preci- para eu não visitar.
sado de me refocillar n'um bom remanço, esque- Se alguma r.ira vez vou á cidade, como o
cidas ou afugentadas as importunas imagens do Tityro de Virgilio, a quem o Melibeu pergun-
passado sonho. tava
#
Eque tanta fu.it Rumam tibi causa viden íif

A Fortuna, que me devia uma compensa-


ê só para o theatro italiano, de que tu ahi me
ção, tirou d'essa vez a venda dos olhos, pro-
tornaste apaixonado, e onde nunca falto, ou
curou, descobriu, e offereceu-me uma casinha
para o theatro francez em Maria I I , quando o
tal qual eu mesmo a haveria riscado para o in-
tento. E ' esta, no beco do Norte, á Lapa, entre ha. E m passeios, Marrares, e pasmatórios não
pateo e quintal, sem visinhos por cima nem me pilham senão uma vez na vida. ao menos
por baixo, composta de rez do chão e um an- como explorador (esta é a pura verdade) para
dar único, com muitas janellas sobre o quin- comparar, e, pela comparaç to toda em favor
tal para o sul, e algumas sobre o páteo para da Lapa. me podei' repetir a mim mesmo,
o poente. cada v e z mais convicto:
O bairro merece o seu nome de Buenos-
ayres. O T e j o saúda-nos lá de baixo. Estron- .. Deus nnbis hm •. o/ia fecit.
do de carroagens e pregões não nos incommóda.
Para animar o quadro, temos patos, gallinhas,
pombos, rolas, e crianças; um cão, um gato,
Esta casa não é ainda exactamente a que
um papagaio, e um saguim; um tanque, arvo-
eu, em quanto formava projectos, debuxava
res, roseiras, e parreiras; muito sol, grilos no
em espirito para meu definitivo e ultimo refu-
tempo d'elles, e uma óptima livraria.
gio. Faiíam-lhe muitas condi j f í e s :
E ' um suburbano delicioso; é uma viven-
a 1 . ' — é nào ser própria;
da aldeana, que parece ter vindo espreitar
a "2. a —é que, ainda que própria fo-se, care-
a cidade, mas sem se atrever a entrar para den-
cia de reedificada, e não valia o custo, pois
tro. Aqui permaneço, com animo assente de
112 Empresa, da Historia de Portugal Obras completas de Castilho 113

está caduca. T e m cento e um annos. Não se a vida, hei-de fazer muito por me conservar
parece c o m os preconceitos, que se reforçam n'esta choupana, apesar das paredes rachadas,
c o m a velhice. e das táboas do solho a dançarem c o m demen-
Depois, está riscada prosaicamente; e eu cia de velhas.
n'isto de domicilio para um poeta entendo que Antes me quero aqui, do que no palacio da
o bom-gôsto é uma condição essencial; e tenho A j u d a , que é longe de mais, ou na melhor
a presumpção de que ninguém havia de edifi- casa do Rocio, que é demasiadamente coração
car (sem grande dispêndio) vivenda mais vis- da Babylonia. Aqui estou perto da cidade que
tosa, mais commoda, mais de apetite, do que serve, e longe da cidade que importuna. So-
eu, se não estivesse em fortuna muitos furos a bretudo, respiro dos literatos que falam, por-
baixo do Ariosto, que, extranhando-lhe um que dos literatos que escrevem me descarto
amigo, creio que foi o Cardeal d'Este, o ter eu j á ha muito tempo. Podem imprimir e
edificado para si uma baiuca mal estreada, reimprimir á sua vontade, que os não leio.
elle, que tão soberbos palaeios havia erigido
no seu poema, lhe respondeu:
—Custa menos a ajuntar palavras, do que XLII
pedras.
No prologo, que se chegou a imprimir, do
meu Presbyterio da montanha, está, se bem As minhas medalhas de oiro.
me lembra, alguma coisa menos mal escrita I.4 — A de S. Miguel.
sobre o encantamento que eu punha em ser
proprietário de uma vivendasinha campestre Quer tu hajas de dizer que não, quer con-
a meu modo. cordes, quer discordes, a pura verdade é esta:
O Marcial enumera, entre as clausulas da que a Torre-e-Espada e a Rosa não teem si-
vida feliz, res non parta sed relida. E u enten- gnificação ou valia, que se compare- á das mi-
do pelo avesso non relida, sed parta. nhas cinco medalhas de oiro.
U m economista politico j á me disse que este V o u t'as descrever, e historiar quantum sa-
furor que eu tinha de dormir sobre um torrão tis de cada uma.
a que chamasse meu, e entre paredes a que A l . a é da Ilha de S. Miguel. Por um lado
chamasse minhas, era uma estultícia, porque, tem: A Sociedade dos Amigos das Letras e Ar-
segundo os aphorismos da sciencia lá d elle, tes em 8. Miguel a A. F. de Castilho. No re-
o torrão e as paredes, cujo usufruto eu pagava verso, uma Minerva com todos os seus attri-
com o meu dinheiro, eram meus. Não o mandei butos de artes, e por cima Se queres podes.
bugiar. por civilidade. Essa medalha foi-me enviada para Lisboa de-
E m f i m : uma vez que j á não posso ter aquelle pois da minha partida de S. Miguel.
gáudio supremo das minhas ambições de toda
11* Emproa da Historia de Portugal* Obras completas de Castilho 115

* velmente; e esse opusculo é o que, c o m ap-


provação do Conselho superior de Instrucção
Cabe aqui uma digressão. publica do Reino, se imprimiu em Lisboa com
A 1> de Agosto de 47 -fui para S. Miguel, o titulo de Leitura repentina no anno de 1850.
na escuna Michaelense, procurar fortuna, por- Esse Methodo, quando a experienci-a pro-
que em Portugal não tinha meios para supprir pria,me amestrou, cessou de ser L e m a r e , tor-
a minha numerosa familia. Permaneci ali tres noiiíse original, e mereceu sahir na 2. a edição
annos, durando os quaes tive muitos desgostos de 1853 j á com o titulo de Methodo Castilho.
e pouco de fortuna. Reformado ainda, e j á completamente nacio-
A Sociedade de Agricultura nomeou-me seu nalisado da 2." para a 3.% sahiu com a deno-
Socio, e cometteu-me a redacção do seu jor- minação de Methodo portuguez Castilho e m . . . .
nal, a que satisfiz, coadjuvando-me para ahi Finalmente no anno d e . . ! . . teve a 4. a edi-
efficacissimamente o meu grande ainigo e com- ção, de uma incontestável superioridade sobre
padre José do Canto, um dos homens de mais as precedentes, edição de mil exemplares, of-
saber e gosto d'aquelle Archipelago, e que ferecida gratuitamente pelo autor á Associação
perfeitamente justifica a parcialidade que a promotora da Educação popular, de Lisboa,
fortuna tem para com elle. E ' o rico mais be-
para ajnda dos seus gastos.
néfico, e de melhor gosto, de quantos tenho
conhecido. #
A Sociedade promotora da Agricultura, tra-
tando-se n'uma sessão da necessidade de der- Mas, voltando a falar de S. Miguel (porque
ramar pela povoação campestre muitos conhe- esta historia de S. Miguel ha-de ser tratada
cimentos uteís de Agricultura, e de fundar pa- á parte): fundei ali uma Sociedade, que se in-
ra isso comícios ruraes, inclinava-se toda pa- titulou dos Amigos das Letras e Artes em S.
ra que se começasse pela fundação de escolas Miguel. Essa Sociedade fundou, e mantém a
primarias. expensas suas, numerosas escolas de ler, es-
Ponderei eu, que, antes de tudo, convinha crever, e contar, na cidade de Ponta-Delgada;
estudar seriamente se o ensino primário não e pelas aldeias escolas nocturnas regidas gra-
poderia ser encurtado, simplificado, aperfeiço- tuitamente por Socios; escolas, que em actos
ado de alguma sorte; que me parecia que sim, públicos e solemnes provam por exames a sua
e o entrevia vagamente. proficiência e utilidade.
Pediram-me que examinasse essa questão; Nos tres annos da minha residencia ali,
tomei-a a mim; procurei e scismei muito; dei além do Agricultor Michaelense, compuz vá-
com o Methodo de Lemare; imitei d'elle o que rios livros: taes como Noções rudimentaes
era imitavel; transformei o que exigia trans- para uso das escolas da Sociedade dos Amigos
formação; desenvolvi-o; accrescentei-o nota- das Letras e Artes, livrinho que fiz imprimir
100 Emprega 3a Historia de Portugal Obras oompletas de Castilho 101

em proveito exclusivamente da mesma Socieda- queria, e para a sua mobilação, e para a c o m -


d e , Felicidade pela Agricultura, o drama Ca- pra da livraria e de instrumentos de Physica,
mões, o jornal A Verdade, sem falar dos tra- e para o árranjamento de um theatro, que tam-
tados de Versificação e Mnemónica, escritos lá, bém ali devia existir, era evidente que taes d o -
mas impressos posteriormente em Portugal. nativos não podiam bastar, completei eu a
ideia da minha proposta, com a de mandar
# a Sociedade uma deputação do seu grémio
correr todas as freguesias d a Ilha mendigando
Encarregou-me a Sociedade dos Amigos das para este fim a aceitação de esmolas, não só
Letras de vir requerer em seu nome a conces- de dinheiro, mas até de generos.
são da cerca do extinto convento das Freiras Para esta mendicancia, que devia ser feita
da Conceição, de Ponta-Delgada, e as ruinas com solemnidade, e ao som da musica da S o -
da egreja de S. José, o velho, que lhe estão ciedade, e por pessoas das mais distintas, para
adjacentes, para ahi se edificar, segundo a mo- esta nobre mendicancia, digo, é que eu fiz
tivada proposta que eu mesmo lhe fizera, e o meu Hymno da caridade, publicado d e -
que a Sociedade approvou unânime, uma for- pois, c o m musica do Arthur Frederico Rein-
mosa casa para as escolas literarias e indus- hardt, nas Estreias poetico-musicaes para o
triaes, para hibliotheca, para gabinete de Phy- anno de 53.
sica, sessões, etc. Este solar das Letras e *
Artes tinha de ser um brasão para aquella
cidade; não só por ser util, mas até pelo con- V i m pois a Lisboa requerer o referido ter-
vidativo do seu aspecto, e pela amenidade do reno. O que n'isso se passou, está na Feli-
seu jardim, que ficaria sendo um passeio pu- cidade pela Agricultura, da qual muitíssimo se
blico para a terra, além de um campo para pode aproveitar para esta biographia. O que
exercícios gymnasticos dos alumnos. lá não v e m , é que a concessão do terreno foi
A ideia do autor do projecto era que a So- depois feita (quando j á se não esperava) por
ciedade só então se poderia julgar certa de movimento espontâneo do Ministro da Fazenda
permanecer, quando, tornando-se proprietária Marino Miguel Franzini.
de todo o seu preciso, se houvesse agarrado O solar das Letras e Artes, porém, apesar
ao solo com raizes de pedra. de tantas rasões, e de tanta possibilidade para
Essa ideia aprouve de tal modo, que de existir, parou em nada, apesar de ainda h o j e
toda a parte rebentaram espontâneos os offe- se conservar a benemerita Sociedade dos A m i -
recimentos, j á de dinheiros, j á de madeiras gos das Letras e Artes, e por ella muitas es-
para a auspiciosa edificação, logo qne o terre- colas de leitura pelo Methodo portuguez.
no se conseguisse. O tal terreno, e as ruínas da egreja, foram
C o m o , porém, para o edifício, tal como se concedidos em conjunto á Sociedade de que
100 Emprega 3a Historia de Portugal Obras oompletas de Castilho 101

falamos, e á Promotora da Agricultura Mi- Ainda para a sessão legislativa passada


chaelense, que também o havia requerido. mandou a Sociedade, pelos seus Deputados,
Esta ultima aproveitaria a parte agricultavel; um documento, em que dava testemunho, pe-
a primeira, o edifício. rante o Corpo legislativo, das vantagens ahi
* obtidas pelo Methodo portuguez, para que essa
noticia podesse servir de luz quando se tratasse
No grémio da mesma Sociedade se enceta- da promettida reforma dos estudos.
ram, por proposta minha, prelecções publicas ,íQue valem, ou que significam, as Gran-
de Geometria applicada ás artes, de H y g i e n e , Cruzes, comparadas com uma tal medalha?
de Chimica ao alcance do povo, de Versifica- N a Felicidade pela Agricultura, e creio que
ção e Poesia, de Desenho, de Francez, e de nas Estreias, tens com que completar este
Inglez. capitulo, se o achares conveniente; eu não faço
H o u v e mais, também por indicação minha, questão ministerial d'isto, nem de coisa ne-
uma esplendidissima Exposição de industria in- nhuma.
sulana e estrangeira. Houve saráus poetico-
musicaes magnificos celebrados no theatro. XLIII
A l é m d'isso, fundei ali uma typographia
minha; com o que, se principiou a aperfeiçoar 2, a -Medalha. - A de Lisboa.
a impressão em Ponta-Delgada, arte tão atra-
zada antes da minha ida para lá, que as pri- T e m no anverso um pelicano picando o
meiras provas que se tiravam eram logo de peito. P o r baixo d'elle: A. F. de Castilho; e
prelo, e nenhum compositor queria crer na no exergo: Offerta dos alumnos do Curso Nor-
possibilidade de as tirar á mão. mal. 185?. No reverso tem dois ramos: um de
Finalmente: fiz encetar a gravura em ma- carvalho, o outro de loiro, formando coroa; e
deira por filhos da terra, e sem mestre. Ten- dentro n'ella o mote Se queres podes. Estas
tei ainda a lithographia. Fiz exfórços inúteis são as palavras que dei por divisa á Sociedade
para que sahisse um jornal literário, poético, e de S. Miguel, e de que faço commummente o
artístico, A Sereia. thema dos meus sermões civilisadores. Conse-
T u d o isto explica assaz o por que lá me gui tornal-as proveitosas, e b o m é.
fizeram o Hymno de Castilho, que tocavam em Este Curso normal de que a medalha résa,
toda a parte. N'um saráu me oífereceram uma foi o dado nos Paulistas no ultimo trimestre de
coroa de loiros com fitas bordadas de o i r o ; e 53 aos mestres primários da Cidade, quasi
depois da minha retirada, não só me nomearam todos, e alguns de fora.
Presidente honorário e vitalicio da Sociedade A l é m d'esta medalha, foi-me n'esse Curso
dos Amigos das Letras, porém me enviaram a offerecido, em noite de saráu, o meu retrato
medalha de que tratamos. bordado a seda pela poetisa e mestra primaria
112 Empresa, da Historia de Portugal Obras completas de Castilho 113

D . Maria José da Silva Canuto, e em três festejava c o m todas as demonstrações de af-


diversas noites, também de sarau, tres co- fecto, como amigo prático do P o v o , qual me
roas: uma offerecida por uma senhora em via ser, e não tribuno de palavreado, como
nome das mães portuguezas; é de loiro; outra tantos, que só o são em quanto "se não podem
de perpétuas ornada de fitas das cores portu- fazer aulicos.
guezas e brazileiras, offertada pela mesma Foi também n'este Curso popular, que se
Canuto de parte da sua escola, e symbolisando estreou outro hymno feito a mim, tudo, musi-
a fraternidade dos dois Paizes a que o Methodo ca e palavras pelo nosso compositor, que eu
promettia melhores futuros; a terceira de flo- então conhecia apenas, e boje é meu amigo,
res, tributada pelas meninas do Asylo da Francisco Antonio Norberto dos Santos Pinto.
L a p a ; tudo isto acompanhado de discursos e E r a j á o segundo hymno que me faziam, sem
versos. eu ser Rei.
*
XLIY
Este Curso foi o primeiro verdadeiramente
Normal, porque, ainda que o curso popular, 3. a Medalha.—A de Leiria.
que eu n'esse mesmo anno havia dado no pa-
lacio Sarmento a muitissimos centos de operá- T e m no anverso um livro engrinaldado de
rios, de rapazinhos rôtos, descalços, enfarrus- loiros, e no exergo: O Centro promotor de Ins-
cados, pretos, criados de servir, emfim a gen- trucção primaria no Districto de Leiria. —
te de todas as castas, fôra immediatamente se- No reverso lê-se: A A. F. de Castilho o Centro
guido de outro, chamado Normal, para Of- e os seus alumnos em Leiria. —Abril de 1854.
ficiaes inferiores da Guarda Municipal e de O Centro promotor de Instrucçào primaria
outros corpos, não me atrevo a dar-lhe o no- no districto de Leiria era uma coisa tão boa,
me de Normal, pela irregularidade da frequên- que não podia durar muito. T e v e por funda-
cia dos militares, pelo pouco tempo que durou, dores principaes:
e pelo imponderável do fruto que produziu. D . Antonio da Costa de Sousa de Macedo,
Mas esse Curso do palacio Sarmento fôra filho do Conde de Mesquitella, moço de gran-
muito brilhante, muito fecundo, ainda que mui- de saber e talento, formado em Direito, escri-
to tempestuoso. tor de mérito relevante, tanto em Sciencia co-
D o s saráus d'elle nada te digo, porque ain- mo em Literatura, Deputado na Camara ul-
da tu apanhaste alguns. Ahi tocava-se e can- timamente dissolvida, mas n'aquelle tempo
tava-se todas as noites o meu H y m n o do tra- Secretario geral do Governo Civil de L e i r i a ; 1
balho, executado muitas vezes por uma mu-
sica marcial, pertencente a uma sociedade de 1 E' engraçado notar que D. Antonio da Costa, al-

operários chamada «de Minerva», e que me guns annos depois tào conhecido pelos seus cargos, e
VOL. L X I V 9
100 Emprega 3a Historia de Portugal
Obras oompletas de Castilho 101

Antonio X a v i e r Rodrigues Cordeiro, tam-


bém formado em Direito, Administrador do
Concelho de Leiria, escritor historico e poeta,
O Centro recebeu-me com os braços aber-
e que dera em Leiria, á sua custa, e com
tos; o Governador Civil, com a Junta do Dis-
grande trabalho, dois Cursos de Leitura repen-
tricto, vieram comprimentar-me em acto so-
tina, nas noites de dois invernos rigorosos, mo-
lemne; D . Antonio hospedou-me, e coadjuvou-
rando elle a uma légua da cidade;
me sempre nos meus trabalhos, que se realisa-
José de Barbosa Leão, facultativo militar,
ram na principal sala do mesmo Centro, tendo
m o ç o de muito saber, liberal de convicção e
eu por ouvintes todos os mestres do Districto,
de obras; e
que o Governador civil convocara, abonando-
o proprio Governador Civil, Commendador
se a muitos, e abonando elle mesmo da sua
Antonio Vaz da Fonseca e Mello, Portuguez
algibeira a alguns, os gastos da jornada e os
antigo, homem crente no trabalho e no futuro,
da residencia em Leiria.
e Chefe administrativo como ha-de custar a
encontrar outro. Curso mais aproveitado nunca o tive. Criei
ahi uma grande ninhada de bons mestres; gra-
Essa gente, só á sua custa, e á de alguns
ças porém aos manejos do apaixonadissimo Com-
poucos amigos que se renderam á sua excita-
missario do Conselho Superior n'aquelle Dis-
ção, e quasi sem amparo algum do Governo,
tricto, que usou e abusou da sua influencia
alugou umas casas grandes, mobilou-as e abas-
sobre os pobres homens, um apenas (coisa in-
teceu-as para escolas, illuminou-as, e proveu-
crível), apenas um perseverou fiel, intrépido,
as de mestres gratuitos de ler e escrever pe-
incorruptível, no novo ensino, de que tem sido
lo Methodo portuguez, de Doutrina, de Arith-
um grande sustentáculo, até como escritor.
metica, de Grammatica, de Geographia, de
Desenho, e de Francez. Este era o Centro O Commissario j á lá v a i ; mas este profes-
promotor da Instrucção no Districto. Para ali sor, José Joaquim Serra, teve ainda a glória
affluia todas as noites (e também era o único de o obrigar a confessar, depois de um exame
divertimento da terra) tamanha multidão, que mais que severo, barbaro, que elle fez aos seus
se enchiam as salas. E m todas ellas se traba- alumnos, que o Methodo era realmente coisa
lhava com ardor; parecia uma Universidadesi- grande.
nha em miniatura. Quando eu não tivesse adquirido mais do
que este Serra, j á dava por muito bem empre-
gadas as minhas fadigas em L e i r i a ; mas, de
principalmente pelas suas obras, precisava então ser mais a mais", conservo saudosas lembranças
qualificado assim, para o apreciarem. Tinha em 1858
trinta e quatro annos, e ainda pouco produzira; o seu d'aquelle Curso, porque nos cinco normaes que
periodo de fecundidade veio passados tempos. Foi um dei, quatro em Portugal e um ahi, foi este o
dedicado amigo e discípulo de Castilho. único isento de interrupções, de mexericos, e
O s EDITOBES dissabores; contribuindo muito para isso a pre-
124 ámpreza Ha Bistorii de Portugal Obras completas de Castilho 125

sença, quasi todos os dias, do Governador ci- informações na matéria, mas que nunca fez
vil ; do Secretario geral todos os d i a s ; e todas obra de verdade e de patriotismo, nem por esse
as noites, n'outro Curso aos rapazinhos, a do nem por outro algum dos testemunhos que rece-
Administrador do Concelho Rodrigues Cor- beu, favoraveis á regeneração da escola, alar-
deiro. deando aliás nos seus Relatorios ao Governo o
* que, em sentido contrario, lhe diziam mestres
rábulas, tão asnos como elle, tão marotos como
Também aqui houve uma vez por semana elle, e que, por mandreice, tanto como por es-
saráus poéticos e músicos, frequentados a final tupidez, preferiam a tudo quanto podesse vir
até por senhoras, o que, para aquella terra, aquillo com que se tinham criado.
não foi pequena façanha. Posso dizer que rea-
lisei a obra phantasiada por Francisco Rodri-
gues L o b o : a Corte na aldeia. XLV
Os poetas éramos poucos, mas faziamos o
que podíamos. Éramos : eu e o meu filho Julio, 4. 3 Medalha. — A do Porto.
que me tinha acompanhado, o D . Antonio e o
Cordeiro, o Augusto Luso, e mais algum curioso. Mostra no anverso dois meninos lendo, sen-
Foi no ultimo d'estes saráus, que D . Anto- tados ao-pé de uma arvore. No exergo lê-se:
nio, como Presidente do Centro, me lançou ao Os alumnos do Carso normal dado no Porto;
pescoço a medalha, com um bello discurso, em e no reverso: A. F. de Castilho.—Setembro
que juntamente me offereceu, em nome do de 1854.
mesmo Centro, o diploma de seu Primeiro So- Este Curso começado a 1 de Setembro de
cio Honorário. 54, e encerrado no ultimo d'este mez, foi o
# mais dessaboroso e o menos próspero que eu
nunca dei. Conspiraram para isso diversas
H o j e Leiria não tem j á nem aquelle G o v e r - causas. O Secretario geral servindo de G o v e r -
nador Civil, nem aquelle Secretario Geral, nem nador civil, , cumpriu
aquelle Administrador do Concelho, nem aquel- com pouca vontade, e mal seguindo (ainda hoje
le Centro promotor, nem a escola do Cordeiro, o suspeito) as instrucções que do Governo re-
que, desde que o fizeram Deputado ás Cortes cebêra para me coadjuvar. Os mestres do Dis-
passadas (e nem isso mesmo j á é), abriu mão tricto não foram tão rigorosamente intimados
de taes occupaçÕes. D o seu brilhante ensino para comparecerem, como era necessário; não
ficou porém um monumento; e é um Relatorio se lhes concederam facilitações e ajudas de
dos sous trabalhos escolares enviado por elle custo. Os Commissarios do Conselho Superior
ao Governador Civil, e pelo Governador Civil fizeram c o m elles o seu officio de sizaneiros.
ao Conselho Superior, que havia requisitado D e mais, aquella Província, empapada em j o r -
126 Empresa da Historia de Portu&J Obras oomphtds de Castilho 127

naes malignos e asnaticos, tinha tomado da Trabalhavamos pois, os tres, quanto se po-
leitura de alguns d'elles, dos que menos cré- dia trabalhar, apesar de que o número escaço
dito deviam merecer, mas que a sua maledi- dos mestres-alumnos. a irregular frequência e
cência tornava mais populares, uma opinião ruim vontade de não poucos d'elles, não era
geral e profundamente avessa ao Methodo muito para nos animar. A isto acrescia que
Tinha-se feito obra no juizo público, segun- parte da Imprensa nos não auxiliava, e uma
do é e ha-de ser sempre costume, pelos dicho- folha, aquella cujos compositores e collabora-
tes e chufas de quatro bandalhos corresponden- dores estavam ouvindo o nosso trabalho, todos
tes de aluguel dos snrs. redactores, que fala- os dias nos incommodava com as suas imper-
v a m do que não sabiam, do que nunca tinham tinências semsabores. A final, lá se fizeram os
estudado nem visto, mas contra que era fácil exames; lá se expediram diplomas de habilita-
descambarem, de vez em quando, sua pulha dos aos que pareciam merecel-os, ou não os
de arrieiro, ou sua sentença de papalvo. Era desmerecer de t o d o ; e elles recolheram-se ás
entre as officinas d'estes periodicos, era mes- suas terras, para ensinarem quasi todos pela
mo n'uma sala da Associação Industrial Por- antiga, sem mesmo experimentarem a novi-
tuense, que para esse fim me offerecêra, e por dade ; no que os asnos dos Commissarios do
baixo da qual trabalhava o prelo de um dos Conselho demasiadamente descobriram o seu
taes publicistas de obra grossa, que eu tinha jogo.
de dar,-que eu dei, as minhas prelecções, com
as portas francas a amigos e a inimigos indis- Triste porém como era, e por isso mesmo
tintamente, segundo o meu costume. que era triste, este Curso não devia ser privado
Como o Curso se havia de reduzir todo de saráus; teve-os, e muito brilhantes, porque
áquelle mez, trabalhei sem descançar, todas as o Porto actualmente é uma terra literaria, e em
manhans e todos os serões, excellentemente que se contam poetas de muito mérito, alguns
coadjuvado por dois bons mestres: José de Ma- até de muitíssimo, como Alexandre Braga,
cedo Araujo Júnior, estudante da Polytechnica Soares de Passos, Faustino X a v i e r de Novaes,
do Porto, e que viera a Lisboa, mandado pela etc. A q u i , como em toda a parte onde se fi-
Associação Industrial, aprender comigo o Me- zeram saráus artísticos, havia um verdadeiro
thodo, para lá o ir ensinar, como ensinou, não furor de assistir a elles. Nas salas e suas
só a populares e operários, mas também a avenidas não cabia metade dos curiosos de um
muitos curiosos, que das Províncias do norte e outro sexo.
acudir?m a escutal-o, e sahiram bem instruí- D'estes saraus, o ultimo, celebrado na bella
dos ; e além d'este Macedo de Araujo, um Fran- e espaçosa sala da Assemblêa Portuense, foi
co, discípulo também d'elle, e que, mais tarde, para ficar lembrando aos que o presencearam,
foi encarregado, pela Camara Municipal do
pela quantidade de senhoras, pela musica, e
Porto, de dar outro Curso pelo meu Methodo.
pela abundancia de poesia.
112 Empresa, da Historia de Portugal Obras completas de Castilho 113

Foi 11'esse acto, que uma menina de oito doutrina, enfurecidos com a profanação que
annos, D . Guilhermina de Macedo de Araujo, se lhe intentava no dia do seu triumpho, se
irman e discipula que fôra de leitura do j á levantaram bramando para irem ás ventas ao
mencionado José de Macedo Araujo Júnior, temerário.
criança vivíssima, e muito galante, vindo col- Nunca houve coisa mais bem calculada, e
locar-se de pé junto á minha cadeira da presi- que mais fizesse rir.
dência. e recitando-me de cór um bonito dis- Coisas d'estas, fora da sua sezão, perdem
curso. me offereceu e lançou ao peito, como todo o v a l o r ; entretanto, ahi vai o diálogo,
emissária dos professores meus alumnos, e por tal como depois foi impresso, mas ainda com
entre uma salva de palmas, a medalha supra- asperezas, resultado da pressa com que foi for-
descrita. jado.
*

Houve n'este sarau um incidente curioso: Diálogo entre um mestre antigo


Augusto L u s o , de quem j á falei, Professor e um moderno.
no L y c e u de Leiria, achava-se j á então a fe-
rias no Porto, d'onde é natural. Henrique L u -
so, seu irmno, ali residente, compôz com elle, MODERNO
sem dizerem nada a ninguém, uma poesia em Thesoiro immenso, que jamais roubado
diálogo, que n'essa noite se recitou, ou antes pode na vida pelos homens ser,
se representou; representaram-n-a elles com és, ó estudo, cujo fruto amado
a maior naturalidade. não amarga ao comer.
E ' um diálogo entre dois mestres, cada um Tu és o balsamo,
sectário de um dos Methodos antagonistas; que vens dulcíssimo
Augusto era pelo moderno, Henrique pelo an- ás mentes áridas
tigo. Começou Augusto, como poeta, recitando frescor trazer.
o elogio do invento; quando, lá de um canto
da sala, o interrompe o irmão, contradizendo-o,
e chasqueando; o que dá origem a um debate H o j e , que a base do subido estudo
entre os dois. levantando-se o Henrique do seu um génio singular gostosa fez,
logar, e vindo para defronte do seu adversá- mudando o mal em bem, o nada em tudo,
rio, mas recitando um e outro por tal arte, pelas letras, talvez;
que pareceu estarem conversando'. ,jquem chamar-te áspero
O curioso foi, que a piaior parte da gente, pode, ó benéfico
que os não conhecia, tomou a coisa por de suave Methodo
v e r a s ; e alguns dos professores fieis da nova tão portuguez?
Emprega 3a Historia de Portugal Obras oompletas de Castilho

ANTIGO ANTIGO
;Ora ahi vem o repentino Não senhor, não é por isso;
a fazer-se agora fino, mas é porque este toutiço
gabando-me as cantarolas, não entende a tal história.
e aquellas cherinólas! ,;Pois como é que uma memoria
Na verdade causa dó. ha-de taes coisas reter?
i Já não prestam as escolas je então sem palmatória
em que aprendeu minha avó ! . . . p'ra na cabeça as metter!

MODERNO
MODERNO
Ora agradecido, a m i g o ;
Deixe-se d'isso, collega.
l quem foi que falou comsigo?
D a palmatória o que allega
<jp'ra que veio interromper-me ?
é falso; d'ella dê cabo.
Ora b e m ; queira attender-me;
<>Pois pode ninguém dar gabo
não dê coice sem ter p é ;
a tão barbara invenção?
mas sempre queira dizer-me:
F o i invenção do diabo;
<;quem é o senhor? ,;quem é ?
são restos da Inquisição.
ANTIGO
ANTIGO
Olhe p'ra mim, seu p o e t a ;
en não sou nenhum pateta; Mas olhe que era um respeito,
digo-o mesmo á bocca cheia; quando um professor perfeito
esta verónica feia como eu (não sei se lh'o diga)
que está vendo, meu senhor, fazendo inchar a barriga
saiba que é na minha aldeia dizia com todo o gaz
a de um hábil professor. pegando na tal amiga:
« D ê cá a mão ó seu rapaz.»
MODERNO
,?Sim? aceite o meu respeito; MODERNO
mas diga se, com effeito, Mas ao Methodo tornando,
este Methodo o, enfada. diga o que viu d'elle, e quando,
Diga; não lhe custa nada; e se d'elle faz ideia.
as rasões venham de lá;
ou se o outro mais lhe agrada, ANTIGO
por ser o do Bê a ba. Isso não, pois lá na aldeia
só tenho ouvido falar
24 Empresa da Historia de Portttj«J Obras completas de Castilho 138

que na aula a patuleia Pois ,jnão acha uma tolice


não faz mais do que cantar. chamar a um P mastareo?!

MODERNO MODERNO
,>Mas d'elle nunca viu nada? Não sei que mal isso tenha,
quando a servir assim venha
ANTIGO para ajudar as memorias.
Fui v e l - o . . . mas não me agrada,
que nada d'elle entendia. ANTIGO
Meu caro, sem palmatórias
MODERNO nada se pode aprender.
tornou lá outro dia?
MODERNO
ANTIGO Ora deixe-se de historias,
E r a melhor; ;outra v e z ! . . . e oiça o que lhe vou dizer.
Se tomar os meus conselhos,
MODERNO verá que os methodos velhos
<>E que tempo lá estaria? perdem muito da bondade.
N'este a superioridade
ANTIGO em pouco tempo ha-de ver.
U m quarto de hora talvez. Estude-o bem, e a verdade
do que digo ha-de appar'cer.
MODERNO Verá, em tempo bem breve
^E com isso j á resolve?! o bem que se lê e escreve,
jEis como tudo se envolve! com branduras e consolos.
«Não presta; não quero tel-o,
porque nada o entendi.» ANTIGO
jOh! /Tosquia de um camelo! jOh, homem ! ,mias sem dar bolos
[quantos ficaram sem t i ! . . . como é que pode isso s e r ?
^E se vantagem tivesse
tão grande, que o c o n v e n c e s s e ? . . . MODERNO
,$E como pode haver tolos
ANTIGO que não n-o queiram saber?
Era o mesmo; j á lh'o disse.
Não presta tal modernice. ANTIGO
Hei-de pôr lhe a calva ao leo. Ora é verdade: eu devia
Empresa da Historia de Portugal Obras completas de Castilho 135

ver primeiro o que dizia; que onde quer, afucinhou.


devia ver se é verdade Pois se elle atirai os rapazes,
o que dizem na cidade; amigo, façamos pazes;
e d e p o i s . . . . ou sim, ou não; ha-de ser bom; arrumou.
se sim, queimava a maldade; #
se não, *rapaz dá cá a mão.»

MODERNO Os cinco saráus do Porto, isto é as poesias


Para a escola hoje as crianças de que se elles composeram, sahiram á luz
correm como para as danças; em quatro folhetos, com o titulo de Saraus
porém no Methodo antigo poéticos portuenses, publicados em beneficio do
fugiam (bem via, amigo) Asylo de mendicidade do Porto por J. A. de
como o demónio da Cruz. Freitas Júnior.

ANTIGO XLVI
E eu n'isso pequei, e digo
que nunca, nunca, o suppuz. 5. a Medalha.—A de Coimbra.

MODERNO A n v e r s o : o sol a n a s c e r ; as insígnias do


<iE você não se arrepende? tempo, ampulheta e foice, quebradas. E x e r g o :
<>Então é assim que se aprende Ao autor do Methodo portuguez. R e v e r s o : uma
<;Assim lhes abre a m e m o r i a ? coroa de loiro e carvalho; dentro: Novembro
IAssim os conduz á g l ó r i a ? de 1854. E x e r g o : Os alumnos do Curso Normal
em Coimbra.
ANTIGO *

T e m rasão: é assim; é assim.


V o u pegar na palmatória, Duríssima campanha foi este 4.® e ultimo
e dar seis bolos em mim. Curso Normal, começado a 18 de Outubro e
findo a 18 de Novembro de 54.
MODERNO Sobre os meus trabalhos em Coimbra, e
;Ah ! ,)Então j á se convence ? sobre tudo isto que ultimamente deixo tocado,
tens de sobra no Ajuste de contas, que te re-
ANTIGO metto, e no Leiriense, que te remetterei se o
Pois se tudo isso me vence, achar. A medalha foi-me offerecida pelos Pro-
eu não quero ser caturra. fessores meus alumnos.
Deixo isso p'ra a minha burra, Os saráus, que eram celebrados no lindo
112 Empresa, da Historia de Portugal Obras completas de Castilho 113

Theatro Académico, convertido o palco em Andei lá por longes terras;


sala para os poetas, foram de grande esplendor. j tantas cidades que v i !
Os camarotes eram apinhados de senhoras, len- ; outros climas! ; outras serras!
tes, e estudantes; a platêa de estudantes e pes- e ás vezes scismava em ti.
soas da cidade. Havia satisfação, e enthusiasmo. D e Londres vi a g r a n d e z a ;
A l i vieram de proposito figurar entre os recita- vi o encanto de V e n e z a ;
d o r e s : de Leiria o Rodrigues Cordeiro, de Con- de Paris a seducção;
deixa o João de Lemos. Transcrever-te-hei aqui vi de R o m a os monumentos;
a poesia d'este, que faz, de algum modo, pendant e, mesmo n'esses momentos,
ou correspondência symétrica á Lua de Londres: foi fiel meu coração.

COIMBRA. O Rheno com seus castellos,


Vienna, Milão, Berlim,
(RECORDAÇÕES).
da Suissa os cantões bellos,
não me falavam a mim;
Coimbra, terra de encanto, não falavam como falas,
do Mondego alegre flor, Coimbra, nas tuas galas,
venho pagar-te em meu canto que eu sei, que aprendi de cór;
tributo de antigo amor. não diziam o que dizes
Não m'o enjeites por que é pobre, n'esse estendal de matizes
por que tens o canto nobre que tens de ti ao redor.
do Cantor da linda Ignez.
Não m'o enjeitos desdenhosa, Se não contas tantas glorias
não, que est'alma saudosa quantas por lá querem tér,
se inflamma ao ver-te outra vez. és um livro de memorias,
que um Portuguez sabe ler.
Sou quasi teu filho; amei-te E u , por mim, n'essa tua fronte,
da vida no alvorecer; n'essas collinas defronte,
de Minerva o sacro leite no teu rio de crystal,
por tuas mãos vim beber. na tua Fonte dos amores,
Foi n'estas margens virentes, no ar, na terra, nas flores,
que co'as azas incipientes leio em tudo: Portugal.
meu estro voar tentou;
foi aqui, que me sorria A o s que pedirem façanhas
o mundo, a vida, a poesia; de audaz guerreiro valor,
sou quasi teu filho, sou. tu as podes dar tamanhas,
VQL. L I I V
Empreza 3a Historia de Portugal '' Obras corriphtas de Castilho

eram lá por dentro eguaes;


que os faças mudar de côr.
crenças vivas, rosto puro;
Se quizerem da Cidade
olhos fitos no futuro;
provas de antiga lealdade,
no amor da Patria, rivaes.
apontas-lhe o teu Martim;
tens sobeja altiva gloria;
mas não é, não, tua Historia Esta mesma c a s a . . . ;oh! (quantas,
o que só me fala a mim. quantas lembranças me traz!
Palco amigo, tu me encantas
Tudo aqui me fala, tudo, co'as imagens que me dás;
d'esse tempo que lá vai, compÕe-me inteiro o passado,
quando nas lidas do estudo e d'esse viver sonhado
tive em cada mestre um pae. deixa-me agora e n g a n a r . . .
Fala-me o sino da torre Mas não; logar ao presente,
com um som qne nunca morre que eil-o se ergue nobremente
nos eccos que a vida tem; c o m loiros novos sem par.
falam-me os dias de o u t r o r a
co'um folguedo em cada hora,
Quaes fomos, sois hoje a esp'rança,
com horas que mais não veem.
mancebos, da Patria a flor,
do futuro a segurança,
Lembram-me aquelles passeios das nossas glorias penhor.
lá em baixo no Salgueiral, Entre vós o rei da L y r a
ou na Lapa dos Esteios, bem vêdes que vos inspira
ou no fulgente areal. brandindo um facho de luz.
Lembram-me as idas a Cellas, B e m vêdes o immenso brilho,
as suaves tardes bellas c o m que o n o m e de CASTILHO
passadas da ponte no O, em nossas glorias reluz.
e quando, j á n'essa edade,
no Penedo da Saudade
saudades gemia só. ^ ;Eia, mancebos ! j Avante !
vencei-nos; vencei-nos vós.
Seja a Patria triumphante,
Nem me ficais esquecidos,
que é o que importa a todos nós.
antigos sócios de então,
Tendes crença, f o g o , e vida,
que a esses dias volvidos
e tendes a alma despida
vossos nomes nome dão.
i do fogo das vis paixões;
Foi vida de irmãos a nossa;
aqui o palacio e a choça ' levae ao mundo essa aurora;
112 Empresa, da Historia de Portugal Obras completas de Castilho 113

e sobre os brasões de outr'ora trictos administrativos do Reino e Ilhas, e


levantae novos brasões. haveriam até chegado ás nossas outras posses-
sões ultramarinas.
;Eia pois ! Coimbra seja Para o meu commodo melhor foi assitn.
primavera do porvir; Quem perdeu perda incalculável, foi o futuro
e n'ella, mau grado á inveja, nacional.
Portugal sempre a florir.
[ O h ! possa eterno este sólio,
este augusto Capitolio
das patrias Letras bilhar,
que eu, tomado de respeito,
eu sempre dentro do peito
hei-de seu nome guardar.
FIM DO VOLUME I

Coimbra 25 de Novembro de 1854.

JOÃO DE L E M O S .

A Camara Municipal de Coimbra também


me obsequiou no que poude, offerecendo-me
para o Curso uma sala, de que me não apro-
veitei, e illuminação.
N'aquelle Curso approvei crescido numero
de mestres que o mereciam, e que ficaram de
veras partidarios do Methodo. Entretanto, quasi
todos, se não todos (des-graças ás suggestões
do Conselho Superior pelos seus Commisasrios)
continuaram no pseudo-ensino.
Foi por ver n'essa 4. a prova real, que to-
dos os meus exfórços se despedaçavam em
espuma contra aquelle penedo, ou penedia, do
Conselho, que parei com os Cursos normaes,
que aliás haveriam sido tantos como os D i s -
ÍNDICE

Pag.
Advertencia dos Editores 5

CASTILHO FIHTADO POB ELLE PBOPBIO:

I — Nascimento 11
II — Sarampão 11
III — Estudo do Latim 12
IV — Estudo da Rhetorica 13
V — Estudo do Grego 14
VI — Estudo da Philosophia 14
VII — Antonio Ribeiro dos Santos 15
VIII — José Agostinho de Macedo 17
IX — Thebaida de Estácio 18
X — Queima dos primeiros versos . . . 20
XI — Conselho de Ribeiro dos Sant03
ao nosso Pae 21
XII — Os meus dois primeiros criticos:
Ribeiro dos Santos e o Pae 23
XIII — Collegio dos cathecumenos 26
XIV — Paço do Lumiar 27
XV — Ascendentes 32
XVI — Moradas 33
XVII — Constituição de„20 33
XVIII — Adriano Balbi 36
XIX — Escultura 36
XX — Morgado de Assentiz 39
XXI —Oiteiros. 41
XXII — Festas da Primavera 42
XXIII — Aimê Martin 43
XXIV — Estudos na Universidade 44
XXV — Casas de habitação 44
144 Empresa da Historia de Portugal

P«g.
XXVI — Bindocci 49
XXVII — Antonio Galleano Ravara 51
XXVIII — Saraus poéticos 55
XXIX — Boa memoria 57
XXX — Memoria 61
XXXI — Quesilia á Jurisprudência 62
XXXII — Amor á Antiguidade 66
XXXIII — A noBsa viagem projectada 72
XXXIV — Declamação 74
XXXV — Post-scriptum 86
XXXVI — Ainda duas linhas sobre Decla-
mação. Theatro do Salitre 88
XXXVII — As minhas correspondências com
o Governo 89
XXXVIII — Génio violento e amoravel 90
XXXIX — Sentimento innato de indepen-
dencia 95
XL — Vis trabalhandi, inertia lazaro-
nis 100
XLI — O meu actual retiro na L a p a . . . 108
XLII — As minhas medalhas de oiro.—
1.» A de S. Miguel 113
XLIII — 2.* Medalha—A de Lisboa 119
XLIV — 3.' Medalha—A de Leiria 121
XLV — 4.' Medalha—A do Porto 125
XLVI — 5." Medalha—A de Coimbra . . 135

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