Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
A BRAZILEIRA DE PRAZINS
SCENAS DO 'liNHO
PORTO
LIVRARIA CH..\RDRO~
De Lello .\ Irmão. edilorts
18~8
•
PROPRIEDADE DOS EDITOR1ES
INTRODUCCÃO
'
*
Logo que cheguei a casa. entrei a folhear
as paginas dos dous livros, preparado para o
dissabor de encontrai-os n1utilados, defeituosos.
com folhas de menos, comidas pelas ratazanas
collaboradoras roazes do gallicismo na ruina da
boa linguagem quinhentista. Folheei o Enten-
8 I~TRODL'C.ÇÂ.O
*
Pedi que me apresentassen1 ao reitor de
Caldellas na feira de Santo ~rhyrso. Achei-lhe
um semblante convidativo, anin1ador a entabo-·
lar-se com elle uma indagação de curiosidades
sentimentaes.
Fazia respeitavel a sua batina sem nodoas o
padre Osorio. Parece que tambem as não tem
na vida. Passa por ser um velho triste, que não
teve mocidade, netn as ambições que supprem
os dôces afTcctos do coração mutilados pelo cal-
culo ou congelados pelo temperamento. lia trin-
ta e dous an nos q uc pastoreia uma das mais
pobres freguczias do arcebispado. l~régou al-
guns annos com applauso dos intendidos e inu-
tilidade dos peccadores. A rhctorica é a arte de
Il"TRODUCÇÃO 1l
*
·Como a exposição do reitor sahiu muito en-
feitada de joias senti mentaes- dctestavel espe-
cie archeologica que ninguem tolera,- farei
quanto em. mim couber por~ uma a urna, ir
1nondando e refuga ndo as flores de modo que
as scenas dramaticas se exponham aridas, bra-
vias cotno sêrro de montanha por onde lavrou
incendio, sen1 deixar bonina, sequer folhinha de
giesta em que a aurora imperle uma lagrima .
. A .t-\urora a chorar! de que ten1po isto e I Co-
nlo a gente, sem querer, tnostra n'uma idéa a
sua certidão de idade e uma reliquia testemu-
nhal da idade de pedra! .A.h! os bigodes tin-
gem-se; mas as phrazes- madeixas do espiri-
ta- são refractarias ao· rejuvenescimento dos
,-~rn 1zes.
I
P
.
OR esses dias chegou carta de· Pernambu-
c?.• incluindo ordem, prime~_:a .v~a, 488ooo
· rets, dez moedas de ouro. I~ ehc1ano man-
dava I 26000 réis para as arrecadas da sobrinha,
e o resto ao irmão. Dizia-lhe que estava a li-
quidar para vir, emfim, descançar de vez,-
que já tinha para os feijões. Recommendava-
lhe que fosse deitando o olho a un1a ou duas
quintas que se vendessem até trinta ou qua-
renta mil cruzados; que se ainda houvesse con-
ventos á venda, os fosse apalavrando até elle
chegar.
-Quarenta mil cruzados, com um raio de
diabos I - exclamou o Simeão, e foi tnostrar a
carta ao padre-mestre Roque, ao l,rêpa de San-
to l'hyrso e ao ex-capitão tnór de Landim; e,
como encontrasse na feira o dono do mosteiro
dos benedictinos, o Pinto Soares, um deputado
gordo- a rhetorica viva do silencio n1ais fa-
cundo que a lingua, d'utna grande pacificação
2-í A llRAZILEIRA DE PH.All:"iS
------------------------------·
son1nolenta-perguntou-lhe se querit1 vender
as quintas dos frades, que tinha comprador. O
Pinto Soares. como um hotneln que acorda
com espirito e um pouco de atheismo, respon-
deu-lhe que não vendia para não transtnittir ao
comprador a excommunhão que arranjára com-
prando bens das ordens religiosas. ~1as o Si-
meão, en1 matcria e raios do Vaticano, tinha
na sua estupidez a invenção de I~"'ranklin. Con-
tinuava a perguntar a toda a gente se sabian1
de conventos ú venda, ou quintas ahi para qua-
renta rnil cruzados.
O Zeferino das Lamellas, o pedreiro que se
julgava noi,·o por ter o negocio fechado em utn
conto, quinhentos e pico, procurou o lavrador
para se cuidar dos banhos. O velhaco, depois
de o ouvir com ares de abstracção palertna~
disse-lhe a mastigar as palavras :
-l-Iome, o caso mudou muito de figura ..
Então você pelos modos ainda não sabe que
vem ahi o meu irn1ão de Pernambuco comprar
quintas e conventos? -
l~ começou a desenrolar o nastro gorduroso
de uma carteira de coiro em que tinha recibos
da decima, um aviso da junta de parochia para
pagar a congrua, uma conta de azeviche, contra
maus olhados, utna oração manuscripta contra
as maleitas, um officio antigo que o nomeava
regedor, de que fura demittido pelos Cabraes,
uma velha resalva de recrutamento, uns ver-
sos que elle recitára no natal, em um Auto do
nascimento do ~1enino, onde elle fazia de rei
mago, e finalmente o livrinho de Santa Barba-
ra, muito cebaceo, com um lustro azulado de
graxa e a carta do Feliciano tão suja que pare-
cia ter estado em infusão de pingue.
A BRAZILEIRA DE PRAZINS
2
Um historiador moderno disse que D. Miguel cm
1 H55 recebia setenta contos annuacs de donativos. Prova-
.\ RR.\lli.EIR.\ UE Pll:\ZI~:':
S
EIS annos depois, em 184), quando o Zefe-
rino das L.amellas andava em roda viva
-de Barrimáo para Quadros, o Cerveira não
tinha alterado sensivelmente os seus habitas.
Estava muito gordo, saude de ferro- um des-
mentido triumphante aos follicularios que des-
acreditam as ,·irtudes hygienicas, nutrientes do
alcool. Os vomitcrios quotidianos explicavam a
depurada e sadia carnadura do tenente-coronel.
Orçava pelos cincoenta annos, com um arro-
gante aspecto marcial, de intonsas barbas gri-
salhas, -olhos rutilantes afogueados pela calci-
nação cerebral. .A.s filhas não 1nostravam vesti-
gios alguns de educação senhoril. Aquella l,he-
rezinha. que a l~osa de Carucle denunciára, fu-
gira para casar com o minorista das Quintans.
As outras duas, tnuito boçaes e alavradeiradas,
tinham amantes- uns engenheiros e empreitei-
ros do conde de Clarange L,ucotte, que andaYa
fazendo as estradas entre 11raga, Porto e Gui-
.\ BRAZILElR.\ HE PRAZI~~
·
A ·
s sete da noite a soirée do monarcha de
Calvos cotnpunha-sc do visconde Nunes,
seu secretario privado e brigadeiro de in-
faoteria, do abba.de capellào-mór de el-rei, de
dois reitores, conegos despachados, e o ex-sar-
gen to-mor de Rio Caldo nomeado capitão-mór
de Lanhoso. Estavam todos em pé resistindo á
licença de se sentarem. A cadeira de sola esta-
va com o príncipe encostada ao relogio; e, na
meza central, papeis, o tinteiro de chumbo, o
..J.\rovo Principe, de Gatna e Castro, a 13esta es-
folad.:r e o Punhal dos corcundas, do bispo fr.
Fortunato. Em cima das caixas do milho esta-
va utn rneio alqueire com feijões brancos desti-
nados ás tripas, e dois folies vasios que a Se-
nhorinha tencionava encher de grão para a for-
nada quando el-rei se recolhesse. Sobre utn dos
folles resbunava um gato enroscado.
Esperava-se
r .
.c o da vcrve1 r a.
'r
o apresentante da carta de as-
6
R2 .\ RH.-\ZILEIRA DE PRAZlN~
-Carrega-lhe!
-Ora I... ·
-Quanto?
-2.
-3. Anda-me. 3.
-Será muito I ...
-Bolas. 3, por minha conta. Coisa limpa.
E, em voz alta e voltado para o grupo:
-El-rei pergunta se o snr. conde de Qua-
dros tem familia, se tem senhora e filhos.
O Bezerra perguntou ao Zeferino.
-Que soubesse sua magestade-disse o pe-
dreiro, mais animado, que o fidalgo de Quadros
tinha dous rapazes e tres raparigas, uma já ca-
sada; mas que a fidalga, a mulher d'elle, aqui
ha annos atraz tinha fugido com o doutor dos
Pombaes, e nunca mais voltára.
-Desgraças 1- disse o cape lião-mór- Des-
graças! A corrupção dos tempos. . . Se se não
acudir quanto antes a isto, não sei que volta se
lhe h ade dar.
Fez-se um silencio condolente. 1,odos sen-
tiam o caso infausto.
O rei continuava a escrever, de vagar, pu-
lindo a phrase, baleando os períodos; achava
difficuldades em se medir com as locuções re-
dondas e muito adjectivadas da rhetorica do
padre Rocha. Animava-o, porém, a idea de que
D. L'Vliguel não tinha fama de sabio, e que a sua
carta seria mais verosímil com alguns aleijões
gra m ma ticaes.
Releu a carta, e acrescentou ás virgulas. Pe-
diu obreia ao Nunes. Acudiu o padre com uma
quadrada, de certa grandeza, vermelha, cuida-
dosamente recortada.
O enveloppe ainda não tinha subido até La-
A RRAZILEIRA DE PR.\1.1?\S 81'
'i
A RR.\ZlLElR.\ DE PR.\Zl:'liS
l~sta
carta não confirmou nem removeu as
suspeitas do padre l~ocha. Quando o Cerveira
lhe perguntou:- que tal? o que dizia elle ?-
dobrava a cárta vagarosamente, encolhia os
h ombros e respondia:- f~tn fin1 ... não sei ...
.\ Y.R.-\I.ILElR.\ DE PRAZI:\S
Em seguida:
Torqu.:zto Nu?zcs Eli. Js. 1•isconde de S. (;ens,
,f<}ecrcl..JTio prh•ado d'el- rei.
- Nunes! recordava o Pílula.- l~u
Torqu.::tlo
pareçe-rne que conheço este diabo de o vêr cm
11raga no C.:ljé da ;\çucena na Cruz ele Pedra.
_\runes! um pelintra. Onde está o viscoGde que
lhe queria dar un1·cigarro? l~tnf1m cá levo a pa-
pelada para Br-aga- e enrolava os papeis. L"\
gente precisa coo hecer os titulares novos para
os respeitar e acatar, amigo D. Prior de Gui-
marães.
Quando a escolta ~c formou fóra do portão
e o prezo entrou ao centro, corn a fronte ma-
gestosa abatida e os braços cruzados, levantou-
se na residencia um choro como á sahida de
u n1 defunto In ui to querido. l~ram a cosinheira
e a outra creada, n'um arrancar de soluços, cn1
quanto o abbade afogava os gemidos com o
rosto apanhado nas Inãos. O povo da aldeia,
com utn grande terror da tropa, espreitava de
longe por entre as arvores e de traz elas paredes.
O ·rorquato Nunes Elias, acordado pela mu-
lher que recebera a nova ela prisão, saltára da
cama, e correra á residencia, perguntando ao
abbade se cl-rei tinha levado as peças das }~o
telhas de Draga.
-Que sim, que levára; podéra não levar!
-Pois então, abbade, empreste- me a h i rneia
1noeda, que eu vou disfarçado a I-~raga vêr o
que se passa. l~stou sem vintem.
- \' eja lá se o prendem, visconde- acaute-
lou o a bbade.
-O tneu dever é seguir a sorte de cl-rei!
Onde elle morrer, 1norro cu!
XI I
·ri n h a
nascido etn 1 8o6 em AI vações do Car-
go, no Douro. O pai chamavatn-lhe o Norberto
das facadas, quando já era velho, e. meirinho
geral da comarca, etn \Tilla Real. Uns diziam
que a alcunha facadas lhe vinha de ter esfaquea-
do a mulher por ciumes; outros, de ter levado
trez facadas, na Campean, quando pozera cêrco a
uns salteadores que pernoitavam na estalagem
d'aquella aldeia,. nas vertentes do !Vlarão. O
certo é que a quadrilha tinha sovado os aguasis,
e o commandante da diligencia, o meirinho ge-
ral. recolhera á villa en1 uma padiola. ·
-,
XII
•
XV
u1n bêcco e fui co1n elles pela f1·enle dar unza des-
carga no nosso piquete de Santa /_Juiza, e out1·a
no piquete do Castello. Ao nzesnzo tenzpo, não sei
quenz é que eslava e1n u1n 1nonte ao no1·te de Gui-
nzarães que deu uns poucos de tiros que muito aju-
d .lranz o 112eu plano. O «'Triste)) enz l'ista da nossa
p1·evia co1nbinação, nzandou toc . -1r a 1·eun ir e for-
1nou o supporte debaixo dos .4 rcos d ..! Ca1nara.
Eu e os nzeus cinco honzens vienzos surraleirauzente
nzettenno-nos na villa. Fui« passar revista a, sup-
porte » a lenzpo enz que já ua Praça da Oliveira
est:~.va nzuila f?enle arnzada. 1
E d'ali, Pinho L.Jeal foi á casa do Arco, afim
de sal v ar aq uelles homens q úe se ensopavam ern
bebidas de guerra n'uma pacificação de idiotas,
e retardar alguns dias a benemcrita morte do ge-
neral escassez assallariado por Guizot com cre-
denciaes de Costa Cabral.
O Cerveira L,obo, quando soube que a força
n1archava á uma hora d'aquella noite frigidissi-
mJ., encarregou o Zeferino de lhe cornprar u1na
botija de genebra da fina, I~ockink l~gitima.
l'inha utn frasco empalhado que punha a tira-
collo nas marchas nocturnas. Encheu-o con1
ajuda do pedreiro. O tenente-.coronel, n'um gran-
de dcsequilibrio, não acertava a dt!spejar a bo-
tija no frasco. O Zt!ferino dizia depois que o vira
tão borracho que logo desconfiou que malhava
abaixo do cavallo. O Cerveira aftirmava que se
sentia com os seus trinta annos; que andara a
trote largo do seu cavallo treze leguas e não es-
tava cançado. O Zeferino perguntou-lhe se o
Cazal os apanharia ainda de noite; se c~taria
1
Cartade 1odcjunhodc I8í7·
190 A RR.\ZILEIRA DE PH.\ZI~S
.
u1n grâo de calor que ~1s virific:.1; quenl 1ne dera
que o jardine1:ro que as co1npõe nze quz"::;era se-
nze:~.r umas flores no nzeu jardinz e tonzar .i sua
cont . 1. compôl-as e reg .1l- :~.s, que o nzeu cunado
.!Josta muito de flores. Dizei-me, at'es do .:rr, .flo-
res do campo, peixes do 1n.:rr, viventes d.:t lerr;.l,
dizei-1ne se sabeis onde ~..1ssiste este jardineiro.
J1.:ts que dif?o, se este nzesnzo é o anz,.:tdo a quenz
busco c não 1nereço achar! O' saudade ardente, ú
sêde n1atadora, ó sella penetrante, ó anzor escon-
,_/ido I Que fareis, .Senhor, que fareis, se o J'osso
enzpenho é ser a mCido, por ..7ue \:1 n1itzha ventura
est..i enz 1'0S ter anzor, conzo escondeis o n1es1no
..7ue nze h:t1;ia de e1h1nzor..1r? Os seus labios sjo
li1·ios, que distilla1n· 111_}'1T:t excellente, lirios de
pure:;a d' onde sahenz pal..1L'ras que injlanznzanz no
~..1n1or da n-;,ortificação. Oh I se fôra tão ditosa
ininha ahna que recebéra algunza pCirte da myrra
que distillam teus lirios I Oh! se foranz t ..io feli-
zes nzeus olhos que -virarn a engraçada côr de
laes t1bios I Aonde est.;zes escondido, anz ..1do do
1neu co1·.;zção? 1Vão s:thenz por esses la bios as P.:t-
laL'r.:ts com que andais chamando pelas ruas, for-
tale:: ..ls e muros da cidCide: <(Se algunz é peque-
nino t'enha para 1ninz? )) Logo, co1no t'OS escotZ-
deis d' esta pequenina pobre e necessitad,;, que co111
tanto e1npenho vos busca ? Suas nzios s ..io conzo
de ouro feitas ao torno e chei.;zs de jacintos, todas
perfeitas, todas preciosas; 1nas rep:zrai, fillz:ts de
.Terusalénz, e por ::r.qui 1•os será nza·is facil conhe-
cél-o, que, no nzeio do ouro c j . 1cintos,
. tenz e1n
cada nzão unz precioso rubi que a passa de un1a
par ..l a outra. O seu peito e ent1·anlz::~s s . .io de
nzarfinz ornadas de safiras, dando a conhecer a
côr celeste da safira, a br~.-1nca do 11zarjiln c sua
dureza, que os seus affectos s ..io puros, candr"dns,
.4,. RR.\ZILEIR.\ DE PRAZIJSS
li
A RR.\ZlLEllL\ HE PlUZl:'li~