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CAMILLO CASTELLO BRANCO

A BRAZILEIRA DE PRAZINS
SCENAS DO 'liNHO

2.a edição~ conforme a 1. 3 revista pelo Auctor

PORTO
LIVRARIA CH..\RDRO~
De Lello .\ Irmão. edilorts
18~8

PROPRIEDADE DOS EDITOR1ES
INTRODUCCÃO
'

E 'JTREas diversas molestias significativas da


minha velhice, o an1or aos livros antigos-
a mais dispendiosa -leva-me o dinheiro
que me sobra da botica: onde os outros acha-
ques n1e obrigam a fazer grandes orgias de pílu-
las e tizanas. E, quando cuido que me curo
com as drogas e me illustro com os archaismos,
arruíno o estomago e enferrujo o cerebro em
uma caturrice academica.
Constou-me aqui ha dias que a snr.a Joaqui-
na de Villalva tinha um gigo de livros velhos
entre duas pipas na adéga, e que ás pipas, em
vez de malhaes de páo, assentavam sobre mis-
saes. O meu informador denomina mt:ssaes todos
os livros grandes; aos pequenos chama ca1·tz·-
lhas. ~andei perguntará snr.a Joaquina se dava
licença que eu visse os livros. Não só m'os dei-
xou vêr, mas até m'os deu todos- que esco-
lhesse, que levasse. Examinei-os com alvoroço
de bibliornano. Elles, gordurosos, humidos,
IYJ'ROIH-GÇlO

en1poeirados, pareciarn·1:ne seductores como ao


leitor delicadamente sensual se lhe figura a
face da mulher querida, oleosa de cold-creatn,
pul verisada de bisn1utho.
llavia sermonarios latinos, um Marco Ma-
rullo, trcs rhetoricas, muitas theologia5!_ moraes,
UOl [_;;uclides, comn1entarios de versões li.tteracS
de l"ito Li vi o e \'irgilio. Deixei tudo na bene-
merita podridão, tirante uma versão castelhana
do mantuano por Diego Lopez c um muito raro
Entendinzenlo liter ..1l c constrvt"çanz poTtuguez::t
de tod.:ts as obras de 1-loracz"o, po1· z"ndustria de
Fr ..1ncisco da Costa, itnprcsso em 1639·
J)isse-n1e a dadivosa vi uva de Villal va que
os livros estavam na adéga, havia mais de trin-
ta annos, desde que seu cunhado, que estudava
para padre, tnorrêra ethico; que o seu homem-
Deus lhe falle n'alma- n1andára calcar o quarto
onde o estudante acabára, e atirou para as lojas
tudo o que era do defunto- trastes, roupa e
livralhada. Contou-me isto seccamente do ex-
tincto cunhado, ao tnesmo tempo que roçava
com a mão fagueira o ventre gravido de uma
gata malteza que lhe rcsbunava no regaço. pas-
sando-lhe pela Cara a Cauda em attritOS d'ULTia
flacidez de arminho. E eu que dedico aos bi-
chos um afTecto nostalgico, uma sensibilidade
retroactiva, um atavismo que me retrocede aos
meus saudosos tempos de gorilha, .olhava para
a gata que tne piscava um olho com un1a mei-
guice antiga- a das meninas da minha moci-
dade q uc piscavam. Onde isto vai! -
A snr.a Joaquina, para -me obrigar a utn
eterno reconhecimento, offereceu-me uma das
crias da sua gata que andava para cada hora e
se chamava Velhaca- ajuntou com a satisfação
li'iTRUDCC(,:.\u

de quem completa um esclarecimento interes-


sante. Agradeci o porvindouro filho da lrclhaca,
fiz uma caricia no dorso crespo da mãe. que
m'a recebeu familiarmente~ e sai com os livros
velhos empacotados em duas bulas de 1816 e
1817 que a snr.a Joaquina, com utn riso scepti-
co. indisciplinado, me disse serem do ten1 po
dos Affonsinhos.- Porque o seu sogro, acres-
centou, era um asno ás direitas que comprava
a bula para poder comer carne em dia de jt:jum;
e. sem que eu a provocasse a vomitàr heresias,
disse que os padres vendiam a bula e compra-
vam a carne; e. ajuntando á heresia um aneÀim
de li1npeza muito duvidosa, disse o que quer
que fosse a respeito dos pcccados que entram
pela bocca·.
Depois, informaram-tne que esta viuva, bas-
tante estragada no moral e ainda mais no phy-
sico·, andára de arnores illicitos con1 un1 escri-
vão do juiz de paz, o Barroso, um dos 7:5oo do
.\1i ndello, que lê r a o Bonz senso do cura João
~\leslier, e a saturára de má philosophia, e tatn-
ben1 a esbulhára de parte dos seus bens de raiz
e do melhor da sua riqueza- a Fé, o bordão
com que as velhas e os velhos catninham resi-
gnados e contentes para os n1ystcrios da eterni-
dade.

*
Logo que cheguei a casa. entrei a folhear
as paginas dos dous livros, preparado para o
dissabor de encontrai-os n1utilados, defeituosos.
com folhas de menos, comidas pelas ratazanas
collaboradoras roazes do gallicismo na ruina da
boa linguagem quinhentista. Folheei o Enten-
8 I~TRODL'C.ÇÂ.O

'-lz"mento literal e conslr1;iça1n até paginas 1 S·t, t:


aqui achei utn quarto de papel almaço amarel-
lecido, com umas linhas de lettra esbranquiça-
da, mas legivel e regulartnente escripta. O con-
theudo do papel, onde se conheciatn vincos de
dobras, era o seguinte:
José: teu 1:nnâo, quando eu hoje sahz"a da·
Igreja, onde fui" pedir a Nossa Senhora a tua
vida ou minha 11201"/e, disse-me que eu não tarda-
ria a pedir· a Deus pela lua alma. Eu já não
posso cho1·a1· 1nais nem rezar. Agora o que peço
a Deus é que tne leve lambem. Se não mo1Tcr.
endoudeço. Perdoa-1ne, Jose, e pede a Deus que-
me leve depr~ssa para ao pé de ti.
Martha.

Não é preciso ser a gente extraordinariamente


romantica para interessar-se, averiguar, querer
noticias das duas pessoas que tem n' estas I i-
nhas uma historia qualquer, mais ou menos
vulgar. Occorreu-me logo que o estudante. a
quem o livro pertencêra, tinha morrido na flôr
dos annos. Além d'isso, na margem superior do
frontespicio do vo lu me, está escripto o nome do
possuidor -José Dias de Villalva, e a carta é
dirigida a um .Tosé. Conclui ser o cunhado da
viuva quem recebêra a carta.
Voltei a caza da snr.a Joaquina, tnuito aço-
dado, como utn anthropologista que procura um
dente pre-historico, e perguntei-lhe se o seu cu-
nhado se chamava José Dias; e se tinha alguma
conversada, quando morreu.- Que sim, que o
cunhado era José J)ias e que morrêra pela ~la­
ria da Fonte.
-Pois elle amou a ~\aria da 1:;-onte ~-per-
lSTRODUCc;ÂO

guntei com ardente curiosidade· historica, para


~sclarecer a minha patria com um episodio ro-
manesco das suas guerras civis. Ella sorriu c
respondeu:
--A' gora! Quer dizer que o meu cunhado •
morreu quando por ahi andavam os da 1\laria
da Fonte a tocar os sinos e a quein1ar a papel-
lada dos escrivães. sabe vm.cê?-Acho que foi
então ou por perto. E ajuntou:- Elle gostava
ahi muito d'uma moça, isso é verdade. Era a
_,lartha ...
- -'lartha?- disse eu com a satisfação de
ver confirmada a assignatura do bilhete.
- Vm.ct: conhece-a?
-Não conheço.
-É a brazileira de Prazins, a mulher do
t~"'cliciano da Retorta, que ten1 quinze quintas
·entre grandes e pequenas.
-Bem sei ; mas nunca vi essa mulher.
-Não que ella nunca sae do quarto ; está
assin1 a 1nodos de atolambada ha muito tempo.
Credo! ha muitos annos que a não vejo. Dá-lhe
a gota, salvo seja, e es!rebucha como se tivesse
coisa má no interior. E uma pena. Não sabe o
que tem de seu. O Feliciano é o homem mais
rjco d'est~s arredores, e vivem como os caba-
neiros, de caldo e pão de milho. Elle quando
vai ao Porto receber um alqueire de soberanos
que lhe vem do Brazil todos os annos, vai a
pé, e mette ao bolso umas côdeas de borôa e
quatro maçãs para não ir á estalagem.
·Interrompi com interesse de artista:
-Disse-me que eH a endoudt!cera. I~ o i logo
depois da morte do seu cunhado?
-Isso já me não escordo. Quando eu vim
cazar para aqui já meu cunhado tinha morrido.
10 I~TRODUCc,.:.\o

O que me lembra é dizer-me o 1neu defunto.


que Deu~ tem, que o rapaz ganhou doença do
peito p'rámôr d'ella. l~sses casos ha muita gente
que lh'os conte. I-Ia por ahi muito homem do
seu tempo. Pergunte isso ao snr. reitor de Cal-
dellas que andou com elle nos estudos c sabe
todas essas trapalhadas.- E n'utn totn de noti-
cia festival:- Olhe que o gatinho nasceu esta
noite; lá lh'o n1ando assim que estiver creado.
Quer que lhe corte as orelhas e o rabito?
- Faça-tnc o favor de lhe não cortar nada.
Eu tinha lido, dias antes, a judiciosa critica
de utna dama ingleza ú nossa costumeira de
desorelhar e derrabar gatos. Elia~ lady Jackson,
escreve que lhe fazen1 compaixão os pobres bi-
chanos que, sem cauda netn orelhas, estão co-
mo que envergonhados de si mesmos. Exccl-
l~nte senhora!

*
Pedi que me apresentassen1 ao reitor de
Caldellas na feira de Santo ~rhyrso. Achei-lhe
um semblante convidativo, anin1ador a entabo-·
lar-se com elle uma indagação de curiosidades
sentimentaes.
Fazia respeitavel a sua batina sem nodoas o
padre Osorio. Parece que tambem as não tem
na vida. Passa por ser um velho triste, que não
teve mocidade, netn as ambições que supprem
os dôces afTcctos do coração mutilados pelo cal-
culo ou congelados pelo temperamento. lia trin-
ta e dous an nos q uc pastoreia uma das mais
pobres freguczias do arcebispado. l~régou al-
guns annos com applauso dos intendidos e inu-
tilidade dos peccadores. A rhctorica é a arte de
Il"TRODUCÇÃO 1l

fallar ben1; mas os vtctos são a arte de -vi ver


bem c alegremente. Assim se pensa~ embora
não se diga.
Corno préga\·a gratuitamente. u vig:ario d~
Caldt.>llas era chamado por todos os tnordomos
c confrarias [esteiras. Quando se esgotavatn os
panegyricos dos santos mais ou menos hypo-
theticos, pediam-lhe que prégasse da cura n1i-
lagrosa d'umas mal citas ou d'u m leicenço-
casos que a pobre Xatureza e o periodico cha-
n1ado Esculapio só de per si não poderiam ex-
plicar.
O vigario subia ao pulpito e improvisava
coisas de grande engenho em linguagetn muito
sing~la. Affirmava que Deus era tão bon1, tão
previdente, que dera á condição infermiça do
homem forças vitaes, sobrecelentes que resis-
tiam á destruição; e que a Natureza, grande
milagre do seu Creador, só de per si era bas-
tante para a si mesrna se restaurar. Ora, um
abbade rico, bacharel cm thcologia, q uc lhe
ouvira estas ideias assaz naturalistas, pergun-
tou-lhe. á puridade, se ellc negava os milagres.
O reitor respondeu que,Jl respeito das sezões e
dos leicenços acreditava mais na lanceta e no
sulfato de quinino. Depois, acrescentou:- Deus
fez o supremo tnilagre da sciencia para centu-
plicar as forças á natureza enfraquecida.- O
theologo enrugou scientificamente a fronte cheia
de suspeitas e replicou:- O snr. reitor foi fe-
rido da peste do seculo. Está iscado de \' oltaire
e de Alexandre l-lerculano. Deixou-se contan1i-
nar. l\'\u ndifiq ue-se. Estude mais e melhór.- O
reitor de Caldellas afastou-se triste, c nunca
mais frequentou o pulpito.
Estas informações e o aspecto lhano, har-
12 I~TRODCC(:ÂO

monica do padre, animaram-tne a dizer-lhe que


~olicitára o seu conhecimento para lhe pedir
alguns esclarecitnentos a respeito de uma carta
encontrada etn um livro que pertencera ao seu
condiscípulo José Dias de Villalva. l{ecorda-se?
perguntei.
-Se me recordo do meu pobre José Dias!
Pois não reco_rdo? Parece-me que ainda sinto
n'este braço o peso enorme da sua face tnorta,
e já lá vão trinta e cinco annos. E' preciso ter
na alma dolorosas reminiscencias para se re-
cordar um amigo morto ha tantíssimo tempo,
não lhe parece? Como sabe v. que existiu esse
obscuro filho de um lavrador?
.\lastrei-lhe a carta. O padre olhou para a
assignatura, gesticulou affirmativamente, e, após
uma breve pausa de recolhimento com as suas
recordações, disse:
-Fui eu que puz esta carta entre as pagi-
nas de utn livro do Dias. O meu pobre condis-
cípulo, quando este papel lhe foi rnandado á
cama, já não o podia lêr. T'inha cahido no tor-
por, na indifferença que, a meu vêr, é a com-
paixão da Providencia pelos que morrem an1an-
do e não querendo morrer. Já não via a vida
nem a morte. Li esta carta; e, como elle nada
me perguntou, eu nada lhe disse ... Agora me
recordo perfeitamente. Era um comtnento de
lloracio que eu lia nos seus intervallos de mo-
dorra, afim de dar ao meu animo uma folga que
me fortalecesse para resistir ao golpe final. Já
sei pois o que você deseja. Quer saber se esta
~\artha está no caso de merecer a consagração
romantica que Bernardin de Saint-Pierre usur-
pou ás dôre·s verdadeiras, para coroar d'uma
eterna aureola a sua phantastica Virginia.
ISTnont·cçlo t3

-N"ão vou tão longe, respondi com a lno-


destia genial dos escriptores que·itnn1ortalisa1n .
..-\ brazileira de Prazins não póde contar com o
seu immortalisador em tnim, nem me parece
bastante fecundo o assumpto. Sei que temos um
namoro de uma tnenina con1 um estudante, o
estudante morre e a menina casa cotn utn su-
jeito que tem quinze quintas. Se não h a mais
do que isto ...
O cura interrotnpeu: -\'ejo que sabe quem
é .\lartha; 1nas não a conhece betn. \'irginia e
I-~·rancesca e Julieta não são mais dignas de pie-
dade nem de romance. Parece- me que o amor
que enlouquece e pern1itte que se abram inter-
cadencias de luz no espirita para que a sauda-
de rebrilhc na escuridão da den1encia, é incom-
paravelmente mais funesto que o amor fuhni-
na.nte. O que é vulgar é morrer logo ou esque-
cer quinze dias depois. Quando eu tinha un1a
innã que lia noYellas, á custa de lh'as ouvir
ana]ysar com um enthusiasmo digno de melhor
emp~ego, achei-tne envolvido na Llitteratura de
Sue, de Soulié e de Balzac, a ponto de fazer
presente do tneu santo 1\fTonso ~laria de Ligo-
rio e da minha rrheologia n1oral de Pizelli a
un1 padre bom e atinado que n1e prophetisou
que 1ninha innã havia de tnorrcr douda, a seis-
mar nas patacuadas das novellas. ]~]la não mor-
reu douda: mas pensaYa e1n romancear a his-
toria de Jlartha. porque dizia ella que, tendo
lido trezentos Yolumes de novellas, não encon-
trára caso in1ita ntc. -1·:, dando-n1e o bilhete de
'lartha: I·:ste quarto de papel é o e-xordio de
un1a agonia original.
l~TRODl"CÇÃO

*
·Como a exposição do reitor sahiu muito en-
feitada de joias senti mentaes- dctestavel espe-
cie archeologica que ninguem tolera,- farei
quanto em. mim couber por~ uma a urna, ir
1nondando e refuga ndo as flores de modo que
as scenas dramaticas se exponham aridas, bra-
vias cotno sêrro de montanha por onde lavrou
incendio, sen1 deixar bonina, sequer folhinha de
giesta em que a aurora imperle uma lagrima .
. A .t-\urora a chorar! de que ten1po isto e I Co-
nlo a gente, sem querer, tnostra n'uma idéa a
sua certidão de idade e uma reliquia testemu-
nhal da idade de pedra! .A.h! os bigodes tin-
gem-se; mas as phrazes- madeixas do espiri-
ta- são refractarias ao· rejuvenescimento dos
,-~rn 1zes.
I

~ra filha de utn lavrador me?iano


M ARTHA
que· tinha em Pernambuco um trmão
rico de quem dizia o diabo. Chamava-
lhe ladrão porque, no espaço de vinte annos,
lhe mandára trez moedas. com os seguintes en-
cargos: á 01ãe ú{)ooo réis fortes, as almas do
Purgatorio, de ~egrellos~ )r,ooo reis tambem
fortes, que lh'os promettera quando en1barcou,
e o resto para elle- « 5~-too réis, dizia, é que o
maroto, podre de rico, tne mandou em vinte
annos!»
A rapariga conversou diversos mancebos,
uns da lavoura, outros da arte, e, afinal, quan-
do o pai lhe negociava o casamento com um
pedreiro, mestre de obras, muito endinheirado
e já maduro, appareceu o jose Dias, filho d'um
lavrador rico de ,,.illalva, a namoriscai-a. l~ste
rapaz estudava latim para clerigo; mas, como
era fraco, de poucas carnes e an1arello, o cirur-
gião disse ao pai que o môço não lhe fazia bem
1H A BRAZILElH.A DE PRAZINS

puxar pelas rnetnorias. Os padres do l\1inho.


n'aquelle tempo., não puxavam q uasi nada pelas
memorias; ordenavam-se tão alheios ás facul-
dades da alma que, sem memoria nem intendi·
menta, e ás vezes sem vontade, eratn soffrivei~
sacerdotes, davan1 poucas syllabadas no Missal
e liam os psaln1os do Breviario con1 tuna gran-
de incerteza do que queria dizer o penitente
David. Pois . assim mesmo. sendo tão facil a
ordenação-· uma coisa que. se fazia com· tuna
perna ás costas, diziam certos vigarios- sen1
precisão absoluta de puxar pelas memàrias. o
joaquitn Dias quiz tirar o filho do laliln que lhe
ensinava um egresso da Ordetn l'erceira, o Fr.
r~oq ue. Este padre-mestre tinha Ulna innã pa-
ralytica: sabia ler, e prendas de costura, mar-
cava, fizera um pavão de missanga, não desco-
nhecia o crochet e ensinava raparigas para se
distrahir.
No quinteiro do padre-mestre Roque foi
que o José de \rillalva se afTez a reparar na
.\1artha de l'razins, utna rdpariga muito alva.
magrinha, de cabello atado, n1uito li1npa, cotn
a sua saia de chita amarella com dois folhas~
jaqueta de fazenda azul com o forro dos punhos
escarlates, muito séria com proposito de mulher
e ares n1uito sonsos- diziam as outras, qut.:
lhe chamavam a songuinha. Os outros estudan-
tes, rapasolas verm~elhaços, refeitos, grandes
parvajolas, com grandes nacos de borôa nas al-
gibeiras das vestcas de saragoça de varas, e os
velhos Virgilios ensebados em saquitos de es-
topa suja. diziam graçolas a ..,1artha- chatna-
vam-lhc boa pequena, franga e peixão. O José
Dias, arredado do grupo dos trocistas alvares,
\'ia-a passar silenciosa, indiffcrentc aos gracejos,
A BR.A7ILEIRA. DE PR.Aze,;·s 1"7

olhos no chão, e um grande resguardo na barra


da saia quando subia a escada. Os rapazes.
aquelles embriões de abbades. como a escada
de pedra era ingreme e aberta do lado do quin-
teiro, punham-se a espreitar as pernas das alu-
mnas da paralytica, pela n1aior parte raparigas
entre doze e dezeseis annos, muito musculo-
sas, corn pés grandes e os tecidos repuxados e
cheios pelo exercicio dos carrêtos nas safaras da
lavoira.
_\\artha ia nos quatorze quando o pai a qui~
tirar da mestra. Chegára-lhe aos ouvidos que
os estudantes, má canalha, lhe impeticavam com
a filha. Queixou-se a Fr. Roque.
O egresso~ resfolegando honradas coleras e
pulverisações de esturrinho, tnandou enfileirar
os gargajolas na quadra da aula, e chamou a
_,lartha.
-Qual foi d~estes tratantes o que implicou
conitigo, cachopa~- perguntou o padre-mestre
olhando-a por cima dos oculos, orbiculares, com
as hastes oxidadas d'um cobre antigo. E~ apon-
tando para o primeiro da fileira que era o José
de \'i lia Iva :
-Foi este:
-Esse nunca tne disse nada- respondeu
com a voz tremula, toda vermelha, a rapariga.
E o frade pondo o dedo no segundo:
- f.""oi este?
.\lartha não ergueu os olhos nem respondeu.
-Então, môça? qual foi dos nove: Dize lá.
-ru que te queixaste é que algum embarrou por ti.
-Eu não me queixei· ... -murmurou a in-
terrogada.
\perdadeiramente ella não se qucixára. I..,oi
o Zeferino, o filho do alferes da Lamclla, o
i
A RRAZILEIR.\ UE PRA1ll'iS

rnestre pedreiro que andando a construir um


canastro na eira.do padre-mestre, observára que
os estudantes rentavam á cachopa, e·ageitavam-
se en1 attitudes a brejeiradas, corno de q uerr1
espreita, quanào ella subia a escada.
O denunciante ao pai de Martha foi elle, o
pedreiro abastado, não porque o espicaçassem
n'essa denuncia o zelo dos bons costumes, e un1
justo odio ás concupiscentes espionagens dos
rapazes, mas porque gostava, devéras, da n1ôça.
Elle passa va já dos trinta e dois e era a prinlei-
ra vez que sentia no coração as al varadas do
atnor. 1-i"'r. Roque, averiguado o caso, advértiu
o pedreiro que não fosse má lingua, que não
andasse a dif,unar os seus discipulos, que se
preparavam para o sacerdocio- uma coisa séria.
O episodio acabaria assim menos mal, se dois
dos estudautcs. que se preparavam para o sa-
cerdocio, n1ais fortes no fueiro que nas conj u-
gações, desistissem de o moer a pauladas, uma
noute, n'un1 pinhal. O mestre d'obras iniciou-:se
pelo martyrio obscuro n'um amor que princi-
piava bastante mal. l~lle nunca soube ao certo
qucn1 lhe batêra, e attribuiu a sova a étnulos
na arte. covardes e mysteriosos. por ca-qsa da
construcção de uma cgreja que elle desdenhára,
citando as regras do Vignola. Vinha a ser o de-
sastre uma tunda por rnotivos de architectura-
um martyrio de artista. Invejas. Por causa da
.. \rtc padecêra o seu collega Affonso Domingues,
o architccto da Batalha, c João de Castilho, o
clo convento de ~rhomar. e já tinha padecido
seu mestre, o Nlanoel 'Chasco a quem inimigos
quebrara 111 a cabeça na feira dos 2 1, por que c lle,
desfazendo na obra d'um collega, dissera que o
batareo d'um cunhai estava torto.
A RRAZILEIRA DE PRAZii\"S 19

Passado tempo, 1\lartha sahiu prompta da


mestra. Lia a cartilha do Salamondi e o Grz"to
das almas, decifrava menos mal umas sentenças
velhas que havia na casa de Prazins, monumen-
tos das ruinas de antigas demandas, e escrevia
regulartnente. A primeira carta que escreveu
por pauta foi para o tio de Pernambuco, o tio
Feliciano. Pedia-lhe a sua benção e duas tnoe-
das de ouro para umas arrecadas. Era o pai que
lhe ditava a carta, cheia de lastimas mendigas,
mentirosas, historietas velhacas de penhoras,
as grandes decimas, a ferrugem das oliveiras, o
bicho da batata, o gorgulho que pegára no mi-
lho, muitas alicantinas.
-Que era a vêr se o ladrão mandava algu-
ma coisa, dizia elle, pondo cuspo na obreia ver-
melha para fechar a carta.
· A segunda carta, que ella escreveu já sem
pauta, foi a José Dias, ao estudante, que já não
estudava por causa das memorias nocivas á sua
saude fraca, um pelém.
~'este tempo já o Zeferino da lJamella se
tinha declarado com o Simeão de Prazins, de
um modo quasi original.
-Você quanto deve, ó tio Sitneão?-per-
guntou.
-Quanto devo? \T ocê quer pagar-tne as di-
,- idas?
-Pode ser. Você deve á Irmandade de N.
Senhora de Negrellos um conto e cem mil reis;
você deve de tornas a seu irmão q uatroccntos.
llade andar lá para um conto e quinhentos, p'ra
riba qt}e não p'ra baixo.
- E isso; você sabe a n1inha vida melhor
que eu a sua- um conto e quinhentos e pico.
-Quanto é o pico ?
A RRAZILEIRA DE PRAZir\S

-Obra de dez moedas, tnais pinto menos


pinto. l\1iudezas na loja ao mercador e um rés-
tito da vacca amarella que comprei ao l""arracha
na feira dos IJ·
-Você quer fazer um cambalacho ?-tor-
nou o pedreiro recuando o chapeu para a nuca
c pondo-lhe as mãos espalmadas com força nos
hombros.
-Se pintar. . . Já sei o que você quer ...
Xão n1e serve. Você quer comprar-me o lameira
da azenha- não vendo.
-Eu ainda lhe não disse o que queria, tio
Sin1eão. Olhe bem para mim. Você está a fal-
lar c'um home. Pago-lhe as dividas, você não
fica a dever nada, e eu cazo com a sua Martha.
Póde dar os bens ao outro filho que eu não lhe
quero uma de X.
- \T ocê falia se rio, ó sôr Zeferino?
-Se fallo seria? I Então você não sabe com
quem trata.
-Ora bem- entendamo'-nos- é a rapariga
que você quer, a rapariga estreme, sem dote
nem escriptura?
-Eu não tenho senão uma palavra. Já lhe
disse que sim.
-A rapariga é sua.

~egociára a filha com o Zeferino con1o tinha


negociado cotn o ·rarracha a vacca amarella na
feira dos 13. Eis utn caso exquisito de aldeia
que pela torpeza parece acontecido n'uma cida-
de culta. Conversou-se este dialogo de baixo de
um castanheiro frondoso, com um pavilhão de
folhagem gorgeado de passares, con1 uns tons
de luz esverdeada, na dôce placidez crepuscular
de utna tarde de agosto, entre dous homens de
A HRAZILEIRA DE PRAZI~S 21

t,:unancos, arremangados, com os peitos cabel-


ludos a negrejar d'entre os peitilhos da can1isa
surrada de suor e poeira, brutos no gesto e na
phrase. Analof!as passagens, com estylo pouco
melhor, ten1 sido dramatisadas nas salas, entre
homens da melhor polpa e casca social- uns
que mandaram ensinar ás filhas os verbos fran-
cezes e são assignantes do J ourn~l des Danzes
que marca ás meninas a balisa até onde póde
chegar o arrojo da língua franceza e os seus tnais
avançados destinos. Da outra parte, hotnens ri-
cos, de figado engorgitado, fatigados, sedentos
de senhoras finas que ponham no luxo das suas
salas os tons vivos da carne constellada de dia-
mantes. E o epilogo de vinte annos de lavra
dura, o substr~.1tum da compra de negras a mi-
lhares:- comprar uma branca, das que o an1or
pobre e o talento esteril não poden1 negociar.
O contracto feito em Prazins- eis a differen-
ça-por parte do pedreiro era um heroismo:
dava o seu dinheiro por aquella mulher; daria
mais depressa o seu sangue. Era uma paixão
das que não pegam com os dentes anavalhados
em corações civilisados, quasi desfeitos. Ora, os
pedreiros que vem d'além-mar, e se vestiratn no
Pool ou no Keil, não amam nem compram
assim. Fazem o dote economico, comezinho á
esposa. Compram uma machina de propagação,
condicionalmente. Se extincto o comprador, a
machina, não deteriorada, ti ver pretendente, o
substituto que a compre. O defunto prefere
que a sua viuva, adelgaçada e espiritualisada
por jejuns, lhe converse com a alma.
II

P
.
OR esses dias chegou carta de· Pernambu-
c?.• incluindo ordem, prime~_:a .v~a, 488ooo
· rets, dez moedas de ouro. I~ ehc1ano man-
dava I 26000 réis para as arrecadas da sobrinha,
e o resto ao irmão. Dizia-lhe que estava a li-
quidar para vir, emfim, descançar de vez,-
que já tinha para os feijões. Recommendava-
lhe que fosse deitando o olho a un1a ou duas
quintas que se vendessem até trinta ou qua-
renta mil cruzados; que se ainda houvesse con-
ventos á venda, os fosse apalavrando até elle
chegar.
-Quarenta mil cruzados, com um raio de
diabos I - exclamou o Simeão, e foi tnostrar a
carta ao padre-mestre Roque, ao l,rêpa de San-
to l'hyrso e ao ex-capitão tnór de Landim; e,
como encontrasse na feira o dono do mosteiro
dos benedictinos, o Pinto Soares, um deputado
gordo- a rhetorica viva do silencio n1ais fa-
cundo que a lingua, d'utna grande pacificação
2-í A llRAZILEIRA DE PH.All:"iS
------------------------------·
son1nolenta-perguntou-lhe se querit1 vender
as quintas dos frades, que tinha comprador. O
Pinto Soares. como um hotneln que acorda
com espirito e um pouco de atheismo, respon-
deu-lhe que não vendia para não transtnittir ao
comprador a excommunhão que arranjára com-
prando bens das ordens religiosas. ~1as o Si-
meão, en1 matcria e raios do Vaticano, tinha
na sua estupidez a invenção de I~"'ranklin. Con-
tinuava a perguntar a toda a gente se sabian1
de conventos ú venda, ou quintas ahi para qua-
renta rnil cruzados.
O Zeferino das Lamellas, o pedreiro que se
julgava noi,·o por ter o negocio fechado em utn
conto, quinhentos e pico, procurou o lavrador
para se cuidar dos banhos. O velhaco, depois
de o ouvir com ares de abstracção palertna~
disse-lhe a mastigar as palavras :
-l-Iome, o caso mudou muito de figura ..
Então você pelos modos ainda não sabe que
vem ahi o meu irn1ão de Pernambuco comprar
quintas e conventos? -
l~ começou a desenrolar o nastro gorduroso
de uma carteira de coiro em que tinha recibos
da decima, um aviso da junta de parochia para
pagar a congrua, uma conta de azeviche, contra
maus olhados, utna oração manuscripta contra
as maleitas, um officio antigo que o nomeava
regedor, de que fura demittido pelos Cabraes,
uma velha resalva de recrutamento, uns ver-
sos que elle recitára no natal, em um Auto do
nascimento do ~1enino, onde elle fazia de rei
mago, e finalmente o livrinho de Santa Barba-
ra, muito cebaceo, com um lustro azulado de
graxa e a carta do Feliciano tão suja que pare-
cia ter estado em infusão de pingue.
A BRAZILEIRA DE PRAZINS

-Você ainda não ouviu fa11ar d~esta carta I?


-perguntou com sobranceria impertinente,
dando saliva aos dedos para a desdobrar. -Xão
se falia n'outra cousa. T'oda a gente sabe que
ven1 ahi do Brazil o meu Feliciano para com-
prar quintas.
-Já me constou -disse o pedreiro,- mas
você roe a corda á conta d'isso, acho eu ... -E
como o lavrador hesitasse:- O negocio da ra-
pariga esta feito ou não está feito? Os homens
conhecem-se pela palavra e os bois pelos cor-
nos. Ponha p'ra'hi o que tem no interior.
O Simeão mascava, torcia-se, mettia com
dois dedos a carta estafada na carteira e res-
mungava:
-Você, emfitn, isto é um modo de fallar,
c? mo o outro que diz; você bem entende que ...
Stm •••
--O que eu entendo physicamente fallando
é que você não me dá a rapariga.
-Deixe vêr, deixe vêr o que diz o meu ir-
mão- tartamudeava.
-Sabe você que n1ais?-volveu iracundo o
architecto dando com o ôlho do machado n'utn
canhoto.- Você c de má casta. Não tem pala-
vra nem vergonha n'essa cara estanhada. Você
é da geração dos Travessas da Serra Negra, e
basta ... Não lhe digo mais nada ... -A Ilusão
pungente a um tio do Simeão, o Bernabé, ca-
pitão das maltas de salteadores que infestaram
em 1835 aquella serra.
-Veja lá co:no falia. . . interrotn peu o la-
vrador ferido na sua linhagem.- Você não me
deite a perder ...
E o outro, n'um itnpeto de conscicncia ro-
busta:
A RRAZILElR.\ DE PRA7.1l'S

-Você é utn safado. É o que lh'eu digo.


Não guarda palavra em contracto que faça. l~u
já devia conhecêl-o. Faz para as tnat'anças seis
annos que você justou comigo uma porca por
quatro moedas e foi depois vendei-a ao Antonio
do Eido por mais um quartinho. Lembra-se,
seu alma de cantara ?--1~ n'uma irritação cres-
cente:- Se você não fosse um velho, dava-lhe
com este machado na caveira.- E muito esban-
dalhado nos gestos, com sarcastno: -Guarde
a filha que eu heide achar mulher muito me-
lhor que ella pelo preço, ouviu você? que leve
o diabo a burra e mais quetn a tange, como o
outro que diz. Livrei-tne de boa espiga. De você
não póde sahir cousa boa; e mais da tnãe que
ella teve, que já lá está a dar contas ...
E o lavrador com cxtretnada prudencia e na
pacatez de u 111 grande espiri to de ordem e paz :
-Você não tem que desfazer na minha fi-
lha, ouviu?
-Ouvi., que não sou mouco. Ainda hontetn
a topei na bouça do Reguengo de palestra com
o estudante de Villalva. Espere-lhe a volta. A
songuinha, que não olha direita p'ra um home,
que anda alli esmadrigada de cabeça ao lado, lá
estava de mão na ilharga a dar trela ao estu-
dante, aquelle páo de encher tripas, que hade
ser mesmo um padre d'aquella casta! Olhe se
elle lh'a quer para casar... Pois não quizes-
te?- e arregaçava a palpebra do olho esquerdo
mostrando o interior inflammado com uns pon-
tos amarellos, purulentos, indicativos de insuffi.
ciente lavagem, utn tregeito de garotice.- E
continuava:- Quetn lhe déra dois pontapés,
n'elle a mais n'ella! - e muito rubro de colcra
dava pancadaria nas pedras, nas raizes nodosas
A BRAZILEIRA DE PRA7.I!'IiS

dos castanheiros, e mettia grande terror no ani-


mo do Simeão quando faiscava lume nos calhaos
com a percussão do machado.
Esta situação promettia acabar pela fuga pru-
dente do pai de i\1.artha, se o estudante de Vil-
lalva não asso·masse ao fundo do castanhal com
uma matilha de coelheiras que ladravam a um
porco muito erriçado, que as esperava com o fo-
cinho de esguelha, bufando e grunhindo. Oca-
çador chamava os cães, assobiava, fazia uma bu-
lha convencional para que a .l\1artha
. o ou visse.
Elle não tinha visto o pedreiro; os cães é
que o viram e deixaram o porco destemido para
atacarem o homem, com uma velha birra que
lhe tinham. O Zeferino, n'outra occasião, segun-
do o seu costume, desprezaria a arremettida da
matilha; mas, n'aquella conjunctura de adio ao
· caçador, esperou a canzoada com o machado em
riste, empunhava o cabo com as mãos cabellu-
das, e fazia, com o corpo inclinado, avanços
provocadores. José Dias chamava os cães obe-
dientes; mas o Zeferino, muito azedo, engelhan-
do na cara uns trejeitos de basofia, dizia sarcas-
tico:
-Deixe-os vir, deixe-os vir, que o primeiro
que chega faço-lhe saltar os miolos á cara de
você.
Que se accommodasse, concilia va pacifica-
tnente o estudante -que os cães não tinhatn ou-
tra falia. E o pedreiro insistente, muito arrogan-
te: -que venham para cá, e mais o dono, o caça·
dor de borra I e dizia palavradas canalhas, muito
damnado por que vira apparecer a Martha na
varanda, a fazer meia com a cêsta do novêllo
no braço.
-O' snr. Zeferino, falle bem, ponha côbro
28 A RRAZILEIRA DE PflAZI~S

na lingua- advertiu o José Dias com utna se-


renidade de máo agouro-quando cu lhe ladrar
então se fará com o machado para mim. Os cães
ladraram-lhe, eu charnei-os, que n1ais quer você,
homem? Siga o seu caminho.
-O meu caminho? o meu caminho é este-
disse batendo com o machado na terra.- Quer
voe~ mandar-me e1nbora d'aq ui? Ora não seja
tolo.
l\ presença da môça enfurecia-o; contra o
seu costume, sentia-se valente. O an1or, como
um vinho indigesto, dava-lhe a coragem interina
dos bebedos, e berrava:
-Se é homem, venha para cá I Você man-
da-me sahir d'aqui, seu pedaço d'asno?
E o estudante já an1arello:
-Eu não o mando sahir d'ahi, nem lhe
consinto que me chame asno. Olhe que eu lar-
go a espingarda, tiro-lhe das unhas o machado
e dou-lhe com elle.
-O' alma do diabo!- exclamou o pedreiro
crescendo para o caçador.
N'isto, um dos cães, atravessado de cão de
gado e cadella coelheira, que aprendêra a mor-
der nas occasiões rasoaveis, atirou-se-lhe ao as-
sento das calças de estopa e puxou até lhe des-
cobrir a epiderme da nadega esquerda.
O pedreiro floreava de balde o machado; os
golpes cortavam o ar, e nem de leve apanhavam
o cão, que dava pulos de esconso, atacando-o
pela nadega direita. A restante matilha frater-
nisára com o outro e juntavam os focinhos n'um
complexo de dentuças minacissimas com os
olhos sanguineos cravados nos movimentos do
machado. Jose Dias, no entanto, espancava a
cainçada, e l\1artha não sabia se havia de descer
A RRAZILEIR.\ DE PRAZI~S 29

para ajudar o pai a acommodar a bulha~ ou se


havia de cahir na varanda a rir-se. Elia sentia-
se envergonhada do espectaculo que exhibia a
calça esfarrapada; mas não havia pudor que re-
sistisse áq u illo. O pedreiro sabia que o cão lhe
chegára um pouco á calça; mas, no calor da
lucta. não sentira esfriar-se-lhe a pelle desco-
berta. nem se lembrou que andava sen1 ceroulas.
Depois, cotno sentisse uma frescura extraordina-
ria na cutis, exposta ao contacto da atmosphe-
ra. levou a mão conscienciosamente ao sitio, e
achou em si aquelle specimen obsoleto do Adão
primitivamente innocente. Xo entanto, .:\lartha,
não podendo já comsigo, entalada de riso. fu-
gira da varanda e atirára-se de bruços sobre a
cama, a rebolar-se, a espernear con1o se tivesse
uma colica. O estudante retirou-se assobiando
·á matilha ainda refilada ás nadegas do homem.
O Simeão cassava-se com as dez unhas e dizia
velhacamente commovido:
- .'\\êtta-se ahi na córte da egua que eu
vou-lhe buscar umas calças, seu Zeferino, ou
dá-se-lhe ahi quatro pontos p"ra remediar. Dê
cá as calças, e não se a fflija ...
O pedreiro respondeu-lhe porcamente, e de
modo tão trivial, que o outro lhe replicou:
- \'á você!
I~ tnetteu·se en1 casa como quem receava
contra-replica menos suja c mais dura.
III

O L:EFERINO era afilhado do n1orgado de


Darrimáo, um 1najor de cavallaria, con-
vencionado em Evoramontc. n1iguelista
intransigente, mas cordato. Vivia no seu esca-
lavrado solar com un1 irmão egresso benedicti-
no. Fr. Gervasio~ muito cevado e inerte. conti-
nuava em casa a sua n1issão monastica. Era um
~ontemplativo. Não lia senão no livro da Xatu-
reza. Se não dormia, estrumava o seu vegeta-
lisino com mui tos adubos crassos de toicinho e
capoeira. com um grande farfalhar de mastiga-
ção, porque dispunha de dentadura insufficien-
te. ·rinha outro signa I ruidoso de vida- era utn
pigarro de catarral chronica, arrancado dos gor-
gomilos com tamanho estrupido que parecia ao
longe o grito rouco de un1 estrangulado, no 5. 0
acto de um drama de costumes. A velha crcada
da cozinha, muito flatulenta, nunca podéra af-
fazer-sc ás explosões d'aquella garganta esca-
brosa de tnucos empedrados. Quando o grasni-
A BRAZII.EIUA DE PR.\ZINS

do asperrtmo de pavão lhe feria os ouvidos,


reboando nos concavos tetos dos salões, a mu-
lher estremecia e raras vezes deixa:va de res-
mungar:- Que mêdo I credo! diabos leve a es-
gana do hotne, Deus me pcrdôe I
])e dois etn dois n1ezes appareciam e1n Bar-
rimáo dous egressos de Cabeceiras de I3asto.
companheiros de noviciado de fr. Gervasio. Jun-
tavam-se os tres amigos em uma intimidade dt:
palestras saudosas. Com intercadencias n1udas
de poetica tristeza, cotnmen1orava1n os seus con-
ven tuaes fallecidos, resa va n1 juntos pelos seus
breviarios benedictinos; depois, a passo cadl!n-
cioso, claustral, iam para a 1neza con1 o reco-
lhitnento prescripto pela Reg1·a do patriarcha.
Ahi, pegava de puxar por ell'es a natureza obje-
ctiva, e dava-lhes horas de salutar esquecimento
do p~ssado irreparavel. Gorgolejavan1 copiosa-
rnente os vinhos engarrafados, traiçoeiros, da
companhia, em que fr. Gervasio derretiá a pres-
tação; porque, de resto, a n1eza do mano olor-
gado era farta e a sua bolça generosa para as
moderadas necessidades do egresso.
O major Zeferino Bezerra de Castro não ti-
nha grande caza; n1as, con1o era solteiro e quin-
quagenario, fazia de conta que os bens lhe ha-
vianl de sobejar á vida, vendendo os allodiaes c
empenhando, se neccssario fosse, o n1orgadio.
que era insignificante. Concorria com vinte moe-
das para as miseraveis 1000 libras que o snr.
)). }liguei recebia annualmente de donativos de
monarcas e dos seus partidarios portuguezes. 1

2
Um historiador moderno disse que D. Miguel cm
1 H55 recebia setenta contos annuacs de donativos. Prova-
.\ RR.\lli.EIR.\ UE Pll:\ZI~:':

Festejava dispendiosarnente os natalicios do rei,


convidando a jantar os realistas notaveis da co-
marca; ~. contando os annos da proscripção~ ia
calculando a patente que lhe cornpetia quando
o soberano legitimo se restaurasse. Correspon-
dia-se com alguns camaradas, esquecidos e atro-
phiados nas aldeias, o general Povoas, o Ber-
nardino, o .\lagessi, o 4'1ontalegre, o José ~lar­
cellino. ~las. as cartas quem lh'as redigia era o
tnano frade, recheando-as de trêchos de politica
de pulpito- resultado das suas digestões moro-
sas, contemplativas- que servirarn de ornamen-
to nas colu n1nas do Portugal 1Jelh.o, periodico
miguelista da época.
N'aquelle anno, por meado de 184s. espa-
lhára-se no ambiente dos realistas, como um
aro1na de jardins floridos, o boato de que vi-
nha o snr. 1). 4'\iguel. O seu enorme partido
·sentia-se palpitar no anceio d'aq uelles vagos

Ydmcnte deu causa a esta liberalidade de ciiras um lapso


do snr. Joaquim l\\artins de Carvalho que a pag. 2 5 4-2 55
dos 5eus Apontamentos tara a lliston·a contcmpo,·anea,
transcreveu de uma carta de l~ortrenço Vieg·as o seguinte
período: ... « Os rendimentos de d-rei co'rnpoem-sc da~
fJOO libras que vem de Lisboa da com missão alimentt"cia.
1 uon lrancos mensaes que com toda :1. exactidão lhe; manda
o conde: de Chambord, 5 ooo francos que annualmentc Jhe
manda o duque de .\loden.:~ e hooo irancos do imperador
Fernando d'.t\uslria, tambem annuacs, mas sem época lix:1,
juncto a alguns c:\traordinarios da pro\·incia do 1\\inho,
fazem subir a renda annual a 400,000 francos, e esta
(:hc;;a apenas para a despeza e economia domestica.• Clze-
.f.:a1ldo atenas pa,·a a de.ç;pe:;.:~ domcslic.:r. de n. l'\\iguel.
12 :ooo~ooo, quanto lhe seria necessario para as despcza.s
de fóra? Um dos Z(!ros do snr •.Martins de Carvalho dc:\·e
passar· para a direita do 4 1 e reduzir a annuidadc do prin-
\:Íp;.; a 7: 2oo!ooo r~is ou -JO,ono francos.
3
3i A RRAZILEIRA DE PRAZl!"S
------- --

anhelos que estremecian1 as nações pagans ao


•. visinhar-se o prophetisado apparecitnento do
~lessias. ;\ffi.nnám-no os Santos Pçdres, e os
padres do J.\linho asseveravan1 o rnesmo a res-
peito do príncipe proscripto. Fr. Gervasio rece-
bia do alto da província cartas mysteriosas d'uns
padres que parochiavam na Povoa de lJanhoso
e \'ieira. Era alli o foco latente do apostolado.
X'aquelles estabulos de ignorancia supersticiosa
é que devia apparecer, pelos modos, o presepio
do novo reden1ptor. Citavan1-se profeçias apo-
calypticas de frades que estavatn inteiros sob as
lages das claustras. Convergiatn áquelle ponto
missionarias de aspectos seraphicos, olhando
para as estrellas como os magos e os pastores
da Palestina. O frade mostrava as cartas ao ir-
mão e dizia-lhe: « Elle ha coisa ... )}
-l\las muito grande 1- Corroborava o ma-
jor com cabeçadas affinnativas muito exageradas.
-A l{ussia rnove-se,.. é o que é- ~ffirn1ou
fr. Gervasio, correlacionando a iniciativa de 1-.~a­
nhoso coo1 a propaganda autocratica da Russia.
I::tn un1 d'estes dialogas, em que havia des-
abafos, exuberancias de jubilo, entreveio o Ze-
ferino das I_Jamellas, o pedreiro afilhado do ma-
jor. Vinha contar o caso do Simeão de Prazins
e a péga que teve con1 os cães do Dias de Vil-
lalva. _\lastrava a calça remendada-que por
pouco lhe não entravam no coiro os cães- di-
zia, e protestava vingar-se. O egresso pacifica-
va-o; que deixasse lá a rapariga c tnais o estu-
dante; que se fosse preparando para desembai-
nhar a espada de seu pai cm defeza do throno
e do altar. ]~ o tnajor:
-l~stan1os chegados a ellas, Zefcrinü.
A BR \ZILEIRA DE PRAZI~:' 35

E o pedreiro esfregando as mãos coreaceas",


que ringiam como duas lixas friccionadas:
-A elles, snr. padrinho! A espada vae-se
amolar ... Vou pedil-a ao velho!
O pai de Zeferino, o Gaspar das Lamellas,
tinha sido alferes do 17 de linha; e, em 1834,
como o perseguissem os li beraes do concelho
por pancadaria c teste1nunhos falsos nas devas-
sas de 28, andou foragido alguns rnezes. Se-
questraranl-lhe os bens; e o filho que já era
m_uito barbado e não tinha modo de vida, fez-
se pedreiro. Depois, applacadas as furias dos
vencedores e restab~lecida a justiça, restituiram
ao Zeferino as terras devastadas. O ex-alferes
sahiu do s~u esconderijo, e recúlheu-sc a casa
~om a espada muito cheia de verdete, dizendo
que havia de lavai-a no sangue dos tnalhados.
E.m 1838, dia de natal, embebedou-se despro-
positadamente e sahiu para a rua a dar l'ivas ao
snr. D. ~liguei. Outros piteireiros, do mestno
credo, e affectos ás velhas instituições, respon-
deram aos 1'Ú,as com um enthusiasmo homici-
da. O Gaspar foi bu~car a espada, cingiu a
banda sobre a niza de saragoça, poz a barretina
com os amarellos tnuito oxidados, e, á frente
d'um grupo de jornaleiros e garotos, caminhou
para a cabeça do concelho afim de ofTerecer
batalha campal ás auctoridades. Além da es-
pada do caudilho, havia na jolda tres espingar-
das reiuoas; o restante eram foices de gancho
encavadas em grossas varas. Um porqueiro co-
lossal floreava uma lamina brunida da faca de
matar os cevados . .c\ guerrilha, já engrossada
por outros bebedos encontrados nas tavernas do
transito, chegou à porta do morgado de 13arri-
tnáo, c a clamorosos brados elegeram-o gene-
.\ nU.\llLF.lTI.\ DE PRAí'.lflõS

ral. Já se ouvia tocar a rebate en1 diversas tor-


res, á discrição dos garotos destacados. O nlor-
gado mandou-lhes dar vinho, e que debandas-
sern, que recolhessetn a suas casas, porque ian1
lev-ar grande tareia inutilmente. O egresso veio
a uma janella que abria sobre o atrio, e tentou
dissuaclil-os do desvario que mais parecia um
excesso de vinho que de patriotismo- dizia.
~ão fez nada~ Cada vez mais picado, o alferes,
faminto de vingança, bradava que estivera quin-
ze mezes escondido, que lhe tinham estragado
a sua casa. e que ia pedir contas aos ·rrêpas e
aos 1\nclrades de Santo ·rhyrso, uns malhaJos,
cujas cabeças h a via de deixar espetadas em pi-
nheiros.
~a villa -ouvia-se o toque a rebate. Dizia-se
que era i ncendio . .Alg·u ns vadios atravessara n1 a
ponte muito açodados em d irecçào ás freguezias
d'onde soavam as primeiras badaladas. O rege-
dor de \Tillalva, o pai do José ])ias, descia es-
baforido do tnonte do Barreiro a dar parte á
auctoridade. Assin1 que se espalhou a nova etn
Santo 1'hyrso, já se ouvia alarido de vozes. A
garotage1n dava tJÍvas, e guinchava uns apupos
prolongados que punham eccos nas tnargens
tortuosas do rio Ave. Os liberaes de Santo
·rhyrso rodearam o administrador, armados,
com os seus criados. Os negociantes com me-
do de saque tambetn sahiram_ de clavinas. As
familias nas janellas faziam clatnores, n 'uma
grande desolação. N'aq uella villa lembra va ain-
da a mortandade do tempo do cêrco do Porto,
e haYia velhos que presencearan1 outra seme-
lhante no tetnpo dos francezes. O regedor de
,.illah·a dis·sera que o com mandante da guerri-
lha era o morgado de Barrimáo. Esta noticia fez
-\ BRAZILEIR 't DE PRAZI~S :r;

augmentar o pavor, porque, se o n1orgado, se-


rio, prudente e bravo, acceitára o commando
dos populares é porque a cousa era séria. Os
homens de negocio dépozeram as armas, enfar-
delaram os valores e fugiram, caminho do I~or­
to. Os proprietarios, os empregados publicas,
os ofliciaes de justiça, alguns que haviam mili-
tado e emigrado, desceram á ponte armados en1
numero de oitenta. Outros seguiram vereda dif-
ferente para passar o rio. A guerrilha cuja vo-
zeada se aproxima\la, no trajecto de uma legua,
pegou a sua febre a mais de trezentos homens.
Era utn domingo de festa solemne, consagrado
á descida do 1-~"'ilho de Deus, para applacar os
barbaras odios do g~nero humano:- un1a gran-
de alegria que passaria despercebida, se o vinho
não preparasse as almas a cotnprehendel-a e
sentil~a. Depois. Jnuito communicativa, como se
vê. Gaspar das I.Jamellas emborracha-se ao jan-
tar e faz brindes ao i\lenino Jesus e ao snr. D.
l\1iguel 1. Pica-lhe na caneca, pungem-o sauda-
des do rei, e sahe para o terreiro a dar-lhe vit'llS.
Outros vinhos em ebulição respondem-lhe n'um
grito de sinceridade compacta. 'T'rava da espa-
da, que se tingira no sangue de tres batalhas á
volta do Porto; entra com'elle a convicção em
deli rio acrisolada pela allucinação da em bria-
guez. E o arrojo temerario dos grandes guer-
reiros o que é senão uma embriaguez de gloria,
quando não é uma embriaguez de genebra? Kas
guerras civis portuguezas houve ahi um bravo
soldado de fortuna que, no vigor dos annos,
ganhára as charlateiras de general e uma corôa
de conde. Os seus camaradas, mais retardados
na carreira por causa da abstinencia, diziam que
elle nunca sahira victorioso de campanha onde
38 A flR.-\.ZII.ElUA DE PRA7.1NS

não entrasse bebedo. Este general, ao declinar


da vida, casado e absten1io, não deu u1na pagi-
na gloriosa á sua historia, presidiu sen1 inicia-
tiva tnilitar nem politica á Junta Suprema do
Porto, e fechou o cyclo das suas façanhas a par-
lamentar em \'ieira com o padre Casimiro, o
General Defensor das cúzco chagas.
'Tambem no cerebro vinolento do alferes das
Lamellas rutilavam os relampagos da gloria
quando, a brandir o gladio ferruginoso, descia,
na vanguarda da guerrilha, o outeiro sobreja-
cente á Ponte de Santo .Thyrso. A' entrada da
ponte de páo havia taverna, com as prateleiras
alinhadas de garrafas da Companhia, com ro-
tulas.
A n1ultidão parou, avistando gente armada
que descia a calçada d'além, ao nivel da quint~l
do mosteiro de S. Bento. O taverneiro, muito
caloteado d'essa vez, disse ao co1nmandante, ao
Gaspar, que não cahisse em se tnetter á ponte.
-Vocês vão cahir ahi n'essa ponte como
tordos, e os que não cahirem tem de largar os
sócos a fugir-avisava, porque sabia que os de
lá eram têzos, e vinhan1 todos armados.
O cabecilha tinha o seu vinho quasi digeri-
do; a bravura começa va a ceder ás reflexões sen-
satas do taverneiro; mas o seu estado maior,
uns facinoras da quadrilha que tres annos antes
infestára as encruzilhadas da l,erra Negra e 'fra-
vagem, não transigiam, e forçavam-o a beber
copos de aguardente.- Que o primeiro que
mostrasse os calcanhares ia malhar da ponte
. a baixo I -protestavam os velhos salteadores do
Minho, batendo com as cronhas no balcão.
Entretanto, o administrador do concelho
com dous empregados inermes atravessava a
A RRAliLEIR.\ DE PR.\ZI:\S

ponte ...-\ guerrilha estupefacta da audacia, espe-


rava-o n'uma attitude pacifica, estupida, .un1 re-
trahimento de covardia, olhando-se uns para os
outros e todos para o alferes. Elle, empurrado
pelos valentes, collocou-se á frente, na bocca
da ponte. co:n a espada nua. O ad1ninistrador
chegou muito de passo e perguntou se estaYa
ali i o snr. morgado de Barrimáo, que desejava
falia r-lhe.
-Que não estava; eu sou o chefe- disse o
Gaspar.
-Logo me pareceu que u1n homem sério,
como o morgado, não estaria á frente d'este
bom povo enganado- ponderou a auctoridade.
- E ,-ocemecê quem é?- perguntou ao chefe.
-Que era o alferes das L.amellas, ben1 co-
-nhecido cm toda a parte; que perguntasse aos
n1alhados de S. ·rhyrso, a esses ladrões que o
perseguiram e lhe roubara1n os seus bens.
O administrador, um bacharel, de cabelleira
á Saint-Simon, era discursivo e não perdia lanço
de eloquencia em casos d~un1 romanesco medo-
nho . .--\. torrente do rio rugia quebrada pelo
triangulo dos pegGes. U n1a rica e funcbre pay-
sagem, cortada de um lado pelos cataventos que
ringiam nas cristas das torres do mosteiro, e
do outro pela matta verde-negra, erriçada de pi-
nheiros gementes. U n1 pittoresco cheio de sug-
gestões, d'uma palpitação cyclopica. Depois o
enorme auditoria, trezentas cabeças, fluctuando
com as boccas muito escancaradas n'uma bestia-
lidade feramente spasmodica de lobos espanta-
dos por um archote acceso. O meio era demos-
thenico, inspirativo. Dorbotou-lhe a gôlfos um
palavriado discreto, aconselhando a turba a re-
tirar-se l.1os seus aprz"scos, á honrada labutação
iO .\ RRAZlLEIH.\. DE PRAZI:"S

dos seus nzesleres, e a não perturbare1n con1 de-


tnagogi~.ls a pacificação dos anin1os e çz sae1·atis-
sin1a inriolabilidade das instituições. Quando o
funccionario fechou a parlenda,· um dos n1ais
bebedos, quer por chalaça" quer por insufficiente
cotnprehensão dos principias politicas da aucto-
ridade, atirou o chapeu ao ar e exclatnou: «\1 iv~
o snr. D. ~\1iguel 1, rei de Portugal!>>
l\. auctoridade ia replicar; mas a gritaria aba-
fou-o. I~lle voltou as costas a canalha, e .foi-se
con1 bons exemplos de oradores antigos. Os li-
beraes, logo que o viran1 retroceder, entraran1
na ponte de n1adeira cotn um sonoro estrondo
de marcha cadenciada.
Capitaneava-os un1 escrivão de direito, dos
7500, cavalleiro da ·rorre e l~spada, o Lobato,
que pedira baixa de tenente no fin1 da campa-
nha.
Outro bravo, o ex·sargento Lopes, que era
guarda-chefe dos tabacos, tinha pedido vinte
homens, e atravessâra con1 elles o .r\ve, na re-
volta do rio, sem ser visto, na bateira do José
l~into Soares. l~lle não podia levar a bem que
aquelles patêgos se retirassem sem uma sova
pela retaguarda e outra pela frente. Contava
com a debandada pela ladeira das tnattas, e pro-
mettia, lá do alto, escorraçai-os de modo que
elles se espetassem entre dois fogos. Os seus
vinte homens eran1 soldados com baixa, guar- ·.·.
das do tabaco, e socios aposentados das quadri-
lhas de 183-t-um mixto de politicas, de ladrões
e martyres das enxovias.
Os quatro facínoras da horda do alferes,
quando virarn a n1archa firme e solemne dos de
Santo l'hyrso,- é agora, rapazes!-- exclatna-
ram, desfechando as espingardas. Os populares
A l!RAZILEIR.\ •DE PRAZI~~ -H

que as tinham, descarregaram as suas, e avan-


çaram, ponte dentro, n'uma arremettida impe-
tuosamente -esbandalhada, de rodilhão. Uma
das bailas prostrára um arrieiro da primeira fila
dos liberaes; havia n1ais alguns feridos que se
amparavan1 gementes ás guardas da ponte. O
bravo do .\lindello ''iu cahir n1orto o seu homem,
e, contendo a furia das fileiras n'uma disciplina
rigorosa, deu a voz da descarga á primeira, e
mandou abrir p~ssagem á immediata, que sus-
tentava o fogo em quanto a outra carregava as
armas.
Os pelouros cortavam fundo pelas carnes da
populaça. Viam-se homens .que fugiam a co-
xearem, atiravan1-se ás ribanceiras, escabujando
em arrancos de 1norte. Os que não tinhatn es-
pingardas e ainda os que as tinham sem cartu-
xame, pegavam dos tamancos e galgavam so-
calcos, buscando o refugio dos pinhaes e car-
valheiras.
O alferes sentiu utn choque duro de coisa
que lhe contundia as costas e lhe apertava o
pescpço. Era o Retrinca de S. ·r·hiago d'~\ntas,
o mais feroz da sua tnalta, que se amparava
n'elle, quando cahia varado por um pelouro.
Este espectaculo trivial não aterrava o soldado
de Ponte Ferreira, das Antas e da Asseiceira;
mas dava-lhe as antigas pernas que o serviram
n'essas gloriosas batalhas. ·rinha cincoenta ao-
nos, e fugia ganhando a dianteira aos garôtos
do seu bando destroçado. Porém, quando elle
escalava a ladeira barrenta que se precipita ao
sopé do monte, desciam em saltos de bezerros
mordidos por vespereiros os seus homens, n'um
turbilhão, acossados pelo tiroteio da companhia
do ex-sargento L.opes- uns barbaçudos q uc
A Rll.\ZlLElHA DE PR.\ZI~S

pareciam gigantes no tôpo da collina, c davam


uns berros clang.orosos irnitantes a mugidos ele
bois. O dia de juizo!
O Gaspar arripiou carreira c desfilou por
urna varzea alagada que ia esbciçar cotn o rio.
Como a banda do alferes vermelhava ao longe,
e a espada a prumo no punho lhe dava ULna
caracterisação geitosa e provocante para alvejar
as espingardas, as balas sibilavam-lhe por per-
to, chofrando nos pantanos. Alguns homens
perseguiam-o chapinando no latneiral, porque
o chefe dos tabacos, o Lopes, dizia-lhes: «O'
rapazes, vê de se n1ataides aq uelle cl iabo q uc é
o cabecilha I)) Os mais velleiros levavam-o es-
falfado, cambaleando, atortemelaclo, q uanclo o
viram clesapparecer ele subito entre uma espessa
moita ele platanos. D'ahi a instantes, abeiran-
do-se á ourela elo rio, viram a barretina e a niza
ele saragoça sobre uns comoros hervecidos; e,
a distancia ele dez varas, aq uelle bebeclo imtnor-
tal atravessava o rio a nado, n'utna tarde de
dezembro, com a espada nos dentes, e a banda
a tiracolo.
- 0 ' alrna do diabol-dizia o Patarro de
-'1onte Cordova, cevando a ar1na com zagalotes
para lhe atirar.-Vou matar aquelle pato bravo I
E o mais novo dos quatro, utn imberbe que
tinha pai:
-Não lhe atire, ó tio Patarto! I~' um ve-
lho, coitado l Não lhe vê os cabellos brancos?
Aquelle hometn não se eleve matar. Elle vai
morrer afogado antes ele chegar á outra banda.
Verá. Que raio de a1nizade elle tem á espada!
Aquillo é que .é!
A meio elo rio, onde a veia d'agua resvalava
tnais impetuosa, deixou-se derivar sem esforço
A BRAZILEIIL\. DE PRAZI~S

de natação. :\'lal bracejava. Depois, o Ave es-


praiava-se c1n murmurios de lago dormente,
tnuito barrento, e deixava-se apégar. O alferes,
cotn agua pela cinta, desatascou-se dos lama-
çaes d'além; e. horas depois, repassando o Ave
na Ponte da Lagoncinha, e, vencidas duas le-
guas de chafurdeiras e barrocas, entrava na sua
casa das Lamellas, bebia um grande trago de
genebra, e~ floreando a espada, bradava: << 'tiv:1
o sn r. D . .\'liguei 1 I ~·
Depois, sqbreveio-lhe un1 rheumatismo arti-
cular, c ficou tolhido.
Sete annos passados, quando todas as al-
deias do l\\inho conclamavam D. 1'1iguel, elle
ainda vivia, mas entrévado n'um carrinho, e
chorava, em impotentes arquejos do corpo pa-
ralytico, porque não podia amolar a lamina da
espada nos ossos dos tnalhados.
·rinha-a diante dos olhos pendurada n'uma
escapula com o boldrié e a banda. A's vezes,
depois de beber, punha-se a olhar para ella com
os olhos envidraçados de lagritnas, e pedia que
a mettessem na sua sepultura, que o enterras-
sem com ella. E enterraram. Espera-se que o
esqueleto d'este legitimista, com as phalanges
esburgadas e recurvas no punho azevrado da
espada, resuscite, ao ulular da trombeta, na
resurreição geral das Legitimidades. Ponto é
que a Russia se môva- como dizia o frade de
Barrimáo.
IV

o alto ~linho ~ontinuavam as ~oticias ale-


D gremente agttadoras. O Chnstovão Be-
zerra, ex-capitão mór de Santa .\lartha
de Ilouro, escreveu ao seu parente de Barrimáo.
Dizia-lhe que constava que o snr. D. 1\liguel es-
tava no seu reino, e - o que mais era- muito
perto d'alli. Que não se podia explicar mais pelo
claro sem ter a certeza de que seu pri1no inten-
dia a cifra de communicação entre os membros
da ordem de S. 1'liguel da Ala, instituida pelo
snr. D. Affonso Henriques e renovada ultima-
mente pelo monarcha legitimo- explicava. O
major Bezerra era comme-ndador da ordem e
conhecia a cifra:- que escrevesse francarnente.
E, desconfiando do correio, mandou a Santa
~lartha de Bouro o afilhado, o filho do alferes
Gaspar, com uma carta n1uito importante. O pe-
dreiro, a ímpar de soberba por tal mensagem,
posto que não participasse do segredo do pa-
drinho que era discreto, disse ao pai:
ít) .\ RR.\/.ILEIRA DE PRAZI:'\8

-Ou eu me engano, ou o snr. D . .'\liguei


está por ahi, não tarda ...
O alferes sentiu uma dt!scarga el~ctrica na
columna vertebral e convulsionou-se extraordi-
nariamente. Fazia lembrar phenomenos que se
contam de movimento galvanico nos paralyticos,
colhidos de improviso pelo terror ou pela exul-
tação; mas o Gaspar, como só tinha o esophago
desempedido~ bebeu, com a escorrencia absor-
vente d'um olho-marinho, muita aguardente~ e
desatou a berrar o Rei-chegou.
O filho, com a discrição propria d'um agen-
te secreto da restauração realista, zangou-se com
o berreiro civico do pai e perguntou-lhe se esta-
va bebedo. O velho enthusiasta, ferido no seu
coração de vassalo e de progenitor, teve um
honrado intervallo lucido, quando lhe replicou:
- St! eu não t!Stivesse aqui tolhido, respon-
dia-te, malandro I
Deitou o albardão á egua e partiu para ter-
ras de Bouro o Zeferino. Quando passava de-
fronte da casa do Simeão, en1 Pr::tzins, olhou de
esguelha, por debaixo da aba do chapéo, para
o lavrador que estava apondo os bois ao carro,
e regougou un1 arrastado pigarro de go_elas en-
tarroadas; e, dando àe espora á andadeira, dei-
xou cahir o páo ferrado ao longo da perna.
«Qualquer dia~ estou-te e1n cima I)) dizia de si
comsip-o~ ladeando a bêsta etn corcovos chiban-
tes. O Simeão, quando o perdeu de vista, mur-
murou:- Valha-te o diabo, banaboia!
O ex-capitão mór de Santa .l\lartha respon-
deu ás perguntas do prin1o de l-~arrimáo; e,
como o portador se recommendou na qualidade
de afilhado do fidalgo e filho d'um alferes que
co1nrnandára o ataque de 1838 sobre Santo
.\ BR.AliLEIR.\ DE PR \ZI~S

l",hyrso, o Christovão Bezerra tratou-o muito


bem e pediu-lhe noticias d'esse ataque- a Santo
·rhyrso que ellc não conhecia. O pedreiro con-
tou a façanha do pai, a nadar, com a espada
nos dentes; e o fidalgo quando soube que elle
estava intrevado, disse pungidan1ente: .\lal em-
pregado!- que un1 general romano fizera o
n1esmo e que o levasse ás caldas de Vizella á
bomba quente.
Como estava conversando com o filho de ta-
manho realista, fez-lhe confidencias: -que D.
~v\iguel estava perto d'alli; mas não 'recebia nin-
gue•n porque os malhados já o espreitavam cm
Portugal. Que a acclamação havia de começar
em terras de l1ouro, e estender-se até Lis-
boa; e que estivesse certo que el-rei nosso se-
nhor lhe daria a patente do pai ou talvez mais.
O pedreiro esfregava os joelhos com as mãos e
bamboava-se hilariante na cadeira como um
idiota. 1,irou da algibeira da véstia urna saqui-
ta de missanga, onde tinha tres peças e sete
pintos. Põz o dinheiro com estrondo deante do
J~ezerra,- que o tnandasse a e l-rei para as suas
despezas: que eu, accrescentou, ha quatro annos
que lhe dou uma moeda d'oiro por anno; elle
hade saber pelo rol quem é o Zeferino das La-
mellas, por que o padre L.uiz de Sousa Couto,
do Porto, disse-me que el-rei conhece de notne
todos os que lhe mandam dinheiro. () fidalgo
recusou: -que não estava auctorisado a rece-
ber donativos~ nem os julgava por emquanto
nccessarios, por que em poder do Dr. Candido,
de Anêlhe, estavam cincoenta contos, dados
pela senhora infanta D. Isabel .\laria, para pôr
a procissão na rua .
..-\ carta de que Zeferino foi o ditoso porta-
-i8 A BR.\ZILEIRA DE PIL\Zil'i~

dor era lnais explicita. Contav~ que D. ~1iguel


estava escondido na residcncia do abbade de S.
Gens de Calvos, no concelho da Povoa de La-
nhoso~ o r~verendo .\1arcos Antonio de Faria
Rebello. 1 Que pouquissin1<1s pessoas o tinham
visto, porque sua n1agestade só se mostra ria
aos seus amigos fieis quando entrassem pela
Galliza os generaes estrangeiros que se esp~ra-

t Como seria de má o gosto inventar este -épisodio, im-


ponho-me o devl!r de affirmar que estas noticias me foram
transmittidas por um illu:-;trado cavalheiro da Povoa de La-
nho~o, o snr. José Joaqu-im Ferreira de 1\\ello e Andrade.
da casa nobilissim:.t das Argas. fallecido, com mais de oi-
tenta annos de idade, cm t 88 t. Co:nquanto a imprensa
eontcmporanea, que eu saiba. não fallasse no pseudo-D.
_,\ig·uel, as revelaçÕ:.!S do ancião de Lanhoso merecem -me e
s<.lo dig-nas de toda a confiança.
Al~m d'isso, consultei o 1·evercndu Casimiro José Víci-
t·a, tão celebrado quando dirÍJÍa com mão armada a ,-c..,·o-
Ju<;~io do 1\\inho, que se chamou 1l1:tria d:t F"onte. Hoje,
com oú annos de idade. vive na sua c.xsa da Alegria, no
concelho de Felgueiras, ao sop6 do monte de Santa Quite-
ria, preparando as suas -1\lemori.xs, que devem esc1arccer as
obscuridades originaes da insurreição de duas províncias.·
Este padre que, aos trinta annos, fui conclamado genera I
pelo povo, e parlamentou face a face com o conde das An-
tas. respondeu assim á minha consulta: Eu aj>ellas posso
.ii::.cr a v. que foi verd.u{e ter estado o tal únpostor occulto
cm '-·as~z do abbade, por que elle mesmo m'o disse; mas 11ada
llze perguntei a t.xl n:spezto, por me lembr,n· que elle leri.1
t'er}:! on h a de se dei.1.·.xr enganar, depois de /lu ter heijado
.x mjo 111 uit.zs ve:;es. no tempo de estudante c seminarista.
quando o snr. D. M Í.!fuel esteve em /Jraga, a pollio de se
ler lorn~do s:diente p:tr.x o mesmo snr. /J. l\t!t~gucl, como o
mesmo abba.:le me contou lambem, mas pm· isso mesmo nad.-,
mais posso acrcscenl~r • .. I

1 Carla de r 1 de norcmbro de 188.2


A RRAZIJ.EIRA DE PRAZI!\S

van1, uns do antigo exercito carlista, outros de


Inglaterra.
·Esta noticia dos generaes estranhos beliscou
a vaidade nacional do major Zeferino Bezerra.
l~arecia-lhe irnpossivel que o principe proscripto
não confiasse na pericia e lealdade do Santa
-'lartha, do \'ictorino, do Povoas e Bernardino.
Era uma ingratidão, dizia elle ao mano frade,
que acrescentou:- e uma bestialidade. El-rei
deve saber o que lhe valeram o Bourmont e o
Pussieux e o .:\lac-Donnell, no fin1 da campa-
nha. Sabes tu?-rematou o morgado-aqui
anda marosca. O que tratam é de se abotoarem
com os cincoenta contos da infanta D. Isabel
i\laria, e o primo Christovão e um asno chapado.
-Escreve-se ao Povoas e ao Bernardino-
aconselhou o egresso- que digam alguma coisa.
Os militares realistas responderam que sem
duvida estava a levedar alguma tentativa deres-
tauração; que o Ribeiro Saraiva trabalhava de-
véras; que o snr. D. _,liguei era esperado em
Londres; mas que não estava no reino, nem cá
viria senão para se assentar de vez no seu thro-
no usurpado.
-Deixa-te de asneiras, Zeferino- dizia o
fidalgo ao afilhado com as cartas na mão-
el-rei hade vir; mas não veio. !\1eu pritno foi
codilhado pelo abbade de Calvos, e eu vou-lhe
escrever que não seja palenna, nem caia com
uma de X para o alevantamento que é uma co-
n1edella.
O pedr.eiro, não obstante, apostava dobrado
contra singelo que D. :\liguei estava em Calvos,
e puxava pela saquita de missanga cotn gestos
de troq uilha de burros em feira:
-.\posto! Aqui está dinheiro I O fidalgo de
4
A RR.\ZlLElH.A DE PR.\ZI::-.;s

Quadros, o snr. tenente coronel Cerveira Lobo


tambetn diz que -el-rei já por cá anda.
-O Cerveira Lobo! olha que botrachão!-
disse o frade.
-Quem cá está é o rei dos bebedos no cor-
po d 'elle- acrescentou o morgado.
- ~1as diz que o snr. D.l\1igueli gostava mui-
to d'elle-objectou o pedreiro.- Ouvi-lh'o eu.
-Não duvido ... - explicou o frade-que o
snr. D.•\liguei gostava de grandes patifes ...
O pritno Christovão redarguiu, magoado na
sua esperteza, que era tão certo estar e l-rei em
<~alvos co1no era certo ter-lhe beijado a regia
tnão em casa do abbade, na noite setnpre me-
moravel de 16 de abril de 1845. Que só o tinha
visto de relance em Braga en1 32, mas que o
conhecêra pelo retrato; que até tnanquejava urn
pouco. tal e qual, como se sabe, depois que sua
n1agestade quebrou a perna em 28. Que el-rei
non1eára o abbade de Calvos seu capellào-mór,
que déra a mitra de Coimbra ao abbade de
Priscos, c fizera chantre o padre ~lanoel das
Agras, e a elle lhe fizera a mercê de duas com-
rnendas e o titulo de barão de Bouro, afora
outras graças a diversos clerigos e leigos.
-Que te parece isto? perguntou o 111orgado
ao frade. ·
-Parece-me a notoria estupidez do primo
11ezerra e mais dos padres; mas~ se o homen1
que lá está é o D. i\liguel, então o estupido é
elle, e que tnc perdôe sua 1nagestade fidelissi-
ma ...
J~screveu-se novamente ao l)ovoas, ao '"rava-
res de Fagilde e ao Pontes, um collaborador da
.V:~ção. Responderam-lhe que não h a via tal D.
·'liguei em Cal vos; n1as que deixasse correr o
A HRAZILEIR:\ DE PR:\ZI~S :íl

marfim, por que era necessario uma agitação


preparatoria, um simulacro, uma apalpadella ...
-Quer dizer-reflexionou o frade-que o
tal impostor é um Baptista, o precursor do
verdadeiro .\lessias. Pois deixemos correr o
marfim, e n1ais o simulacro ... que palpem,-
e, pondo as duas mãos engalfinhadas sobre o
umbigo proeminente, fazia girar um dedo po-
legar á volta do outro. Que o que fosse soaria,
e não cahisse o mano Zeferino na estulticia de
se comprometter sem que os generaes portu-
guezes sahissem á rua.
~a correnteza d'estas coisas, o Zef~rino das
Lamellas não trabalhava de pedreiro; abando-
nou as obras de alvenaria aos officiaes, e anda-
va n'uma dobadoira de casa do padrinho para
casa do tenente-coronel realista, o \Tasco Cer-
veira Leite, morgado de Quadros~ utn homem
nas-cido illustremente, que, desde Evora .\lonte,
não cortára as barbas nem sahira das ruinas da
casa-solar em Vermuim.
Cotno a sua paixão era inconsclavel com o
destino, deu-se á distracção do alcool; e, por-
que tinha a consciencia da sua miseria de be-
bedo, fechava-se no seu quarto, onde ás vezes
cahia amodorrado sobre o vomito. lmbecilisa-
ra-se. Cerveira tinha sofirido um ataque cere-
bral quando o brigadeiro José Urbano de Car-
valho infamemente se passára com alguns es-
quadrões de cavallaria para o centro da divisão
do duque da 'T'erceira, na Chamusca. Elle vira
o seu coronel Antonio Cardoso de Albuquerque
dar vivas á carta constitucional e a[). i\laria 11.
Achou-se arrastado. illaq ueado e prisioneiro,
quando procurava abrir com a espada uma se-
pultura honrosa. Ali se extinguira coberto de
··-
,..~)
.\ nnAlli.ElllA DF: PRAZINS

opprobrio, n'aquella hora, o bravo e leal regi-


mento de Chaves que nunca dera um desertor
para as fileiras do inimigo. O tenente-coronel,
desde esse dia, foi um desgraçado incompre-
hendido que se embriagava para esquecer ore-
viran1ento subito da sua carreira. Depois, a
corrente travada das miserias. 'Tinha filhos que
se ernborrachavam como elle, e filhas que se
namoravam dos engenheiros das estradas, e an~
davam pelas romarias de roupinhas escarlates,
com botinas de ponteira de verniz e chapeos
desabados de seda preta com borlas e plumas.
Sua rnãe tinha sido açafata da apostolica D.
Carlota Joaquina, fizera-se mulher no Rama-
lhão, e gabava-se de ter sido amada do conde
de Villa Flôr. Quando entrou no vasto e velho
casarão de Quadros, teve hysterismos formida-
veis c acordava os eccos das montanhas com
gritos que punham terrores -sobrenaturaes na
visinhança. O Cerveira Leite poderia viver abun-
dantemente na côrte, por que os seus rendi-
mentos e foros eram tnuito importantes: é o
que O. Honorata lhe pedia com lagrimas; mas
elle. colerico:- que não podia encarar os ma-
lhados, e não sahiria mais de casa sem as suas
divisas de tenente coronel de dragões. E, apon-
tando-lhe para os cinco filhos: .
-Sê boa n1ãe, trata d'essas creanças que
andam ahi porcas que fazem nojo!- Tinha es-
tas equidades cm jejum.
E ella:
-.:\la is nojo tne fazem as borracheiras de
você!
. I~ o fidalgo então disciplinava-a militarmen-
te. (luando lhe não dava alguns pontapés, des-
fechava-lhe un1 tiroteio de palavradas de tarim-
A RR.\ZlLEIRA DE PRAZe-iS 33

ba, e perguntava-lhe se tinha saudades dos


bordeis do Ramalhão, aq uelles pagodes reaes.
O' esta procacidade esq ualida. derivou a um nlu-
tismo estupido. ~ão lhe respondia. Fechava-se
no seu quarto, contigua á garrafeira.
D. Honorata Guião teria vinte e oito annos,
quando sahiu de L.isboa para o ~linho em 3.t·
Era formosa das finas graças aristocraticas.
lJma elegancia nervosa, inquieta, mordiscada
de. desejos como utna flôr branca muito picada
das abelhas. Acceitára o major Cerveira, porque
era rico e estadeava na côrte as suas libres. 'fi-
nha trinta annos, e dizia-se que aos quarenta
seria general, porque D ..\1iguel gostava muito
d'elle. Rosnava-se que o Cerveira tinha sido um
dos assassinos do marq uez de Loulc.
Este rapaz de côrte e da intimidade do rei c
·das infantas, disputado pelas damas da rainha,
era aq uelle e brio encanecido que, debruçado na
janella do seu quarto, forte1nente fincado no
peitoril de ferro da sacada, revessava ao cami-
nho publico golfos aziumados de vinhaça, e di-
zia garotices de lacaio ás raparigas que passa-
vam medrosas e o saudavam:- Guarde Deus
v. s.a, snr. fidalgo 1-~renha v. s.a muito boas
tardes, snr. morgado! -l~ elle, almofaçando as
barbas conspurcadas de vomito:- O' brejeira,
deixa lá vêr O patriotisn10; que tal e a anca?
Xão respondes, catraia? Olha como aquella re-
bola os quadris, o grande coldre!- .\s cacho-
pas não respondiam; safavam-se com un1 gran-
de medo, porque eram suas cazciras; mas com-
mentavam:- Que levasse o diabo o piteireiro
do fidalgo 1- que a fidalga fizera bem em se
pisgar com o doutor dos Pombaes.- Quer não-
contrariava uma lavradeira idosa- foi má mu-
....
~,. A P.RAI.ILEIRA DF. PRAZII'.~
-------- ----

lher que deixou assim os filhos, cinco creanças!


utna desgraça! Nem as cadellas faziam isso. Os
mais velhos já se emborracharn, e as tneninas
estão quasi mulheres e ainda não foram ao con-
fêsso nem sabem a doutrina. Que uma d'ellas,
a 'Therezinha, já se enfeitava para o estudante
das Quintans que andava por lá feito caçador,
c que o morgadinho o snr. Heitor namora\'a a
filha do José Alho, e até se dizia que lhe fallára
casamento. \'êde vós que desgraça, ó môças!
lJ m menino tão rico e tão fidalgo vi-o aqui ha
tempos na taberna de \'illaYerde que se não
larnbia, a pagar vinho ao Alho e mais á croia
da filha, e a comerem todos iscas de bacalháo
com as mãos I Ao que eu vi chegar um senhor
dos fidalgos de Quadros! Quando eu era rapa-
riguita, aquelles senhores nunca sahiam sem os
seus mochillas fardados e tinham liteiras com
as armas reaes pintadas. Faziarn mesmo um
respeito! O snr. Rodrigo, pai d'este rnorgado
velho, era d'isto dos governos lá de l . . isboa, e
quando vinha vêr as suas quintas. 6 senhores,
cahia ahi o poder do mundo de Braga e Gui-
marães a visitai-o I E as fidalgas? isso então a
gente, quando as via, corria logo a beijar-lhe a
mão, e ellas no dia de Pascoa tnandavam ás
cachopas lenços para a cabeça e regueifas de pão
podrê. Aquella casa estava sempre cheia de fra-
des das ordens ricas ...
-Isso, isso ... eu logo vi que essas fidalgas
haviam de estar cheias de frades de ordens ri-
cas-dizia o José Dias de Villalva.-.:\luito
cheias de frades aq uellas fidalgas, heitn?
- - Ahi vens tu com as tuas alicantinas- re-
truca va, pronostica e solem ne, a tia Rosa de
Carude.- I~' o que tu estudas, meu valdcvinos.
_\ DRAlll.ElR .\ I>F. PR.\ZI;\~

Agora é tnelhor que então, pois não foste? As


fidalgas d'hoje em dia presentemente fogem
c' os dou tores e deixam os fi I h os. . . Is to agora
é que é bom ás direitas, pois não é? No tetnpo
antigo, valha-me Deus, as fidalgas eram umas
desavergonhadas que conheciam frades e crea-
. vam os seus filhos.
-Os filhos dos frades?- perguntava o Dias.
- Calla-te ahi~ bôca damnada l Olha que
padre havia de sahir de ti! .Ainda bem que a
~lartha de Prazins te fez mudar de rutno.

A fuga da Honorata Guião com o Sihreira


dos Pombaes não amotinara a opinião publica
cscandalisada. A' excepção da austera Rosa de
Carude, toda a gente deu razão á fidalga. O
Cerveira tinha amigas da ralé, que mettia em
casa-urna diversão á embriaguez, quando não
exercia as duas distracções em uma pron1iscui-
dade desaforada. D. Honorata visitava-se unica-
mente com a D. r'\ndreza da Silveira, da casa
dos Pombaes, irmã d'um bacharel delegado em
Amarante. Chorava muito com ella e pedia-lhe
que perguntasse ao n1ano doutor se poderia se-
parar-se por justiça, antes de se atirar a uma
cisterna. D. Andreza p'ediu ao irmão que viesse
ou':ir as tristes alleg·ações da sua desgraçada
amtga.
Estava 1-Ionorata nos trinta e trez annos,
quando o Silveira a encontrou nos Pombaes. O
delegado era um romantico. Emigrára em 28,
sendo estudante, quando alguns metnbros da
sociedade dos Dirod_ignos padeceram o suppli-
cio da forca pelo homicídio dos lentes. Comple-
tara a fonnatura em 38 e fôra despachado. l\lui-
A RRAZILElHA DE PRAZl~S
-------------- -----------

to lido en1 Schiller e Arlincourt. Fazia solaus


em que havia abencerragens e infantas christàs
apaixonadas que tocavam arrabis, batihadas de
lua nos revelins dos castellos roqueiros. ·ram-
bem fazia prosa na Gazeta litteraria do Porto,
-scenas dramaticas em que se jurava pela gor-
ja e havia homens de prol que arrastavam man-
tos negros, cravavam latninas de ·roledo ás por-
tas de Dom Fuas·, e, cruzando os braços. rugiam
cavernosamente: «A h I Dorn ribaldo, Dom ri-
baldo I>> E depois, os arrepios d'uma casquina-
da secca, d'um estridente grasnido de gaivotas
que se espicaçatn por sobre o tnar banzeiro.
A Honorata, esposa deplorativa, dama da
rainha, esbeltamente magra, d'uma elegancia
de raça afinada nos salões da Bemposta, palli-
dez eburnea, esmaecida, airs évaporés, um sor-
riso nobre de ironia rebelde á desgraça, com a
dupla poesia do martyrio e da belleza, ultra-
passou a encarnação viva dos ideaes do bacha-
rel. Elia tinha pejo de lhe contar os seus iofor-
tunios, a vida crapulosa do marido, a liberti-
nagem de portas a dentro com as _iornaleiras,
e o abandono da educação dos filhos. Andreza
é que contava -tudo ao mano ·Adolpho na pre-
sença da martyr. Que o Cerveira se embriaga-
va todas as tardes e tinha amasias da ultitna
gentalha que punham c dispunham em casa.
Que os meninos erarn creados bruta mente; que
o mais velho, o Heitor, netn lêr sabia; porque
o pai tambem fazia mal o seu nome. Que tive-
rarn um padre de dentro para os ensinar, n1as
que o padre, em vez de lhes dar lição, traba-
lhava de carpinteiro en1 retnendar os sobrados,
c quando era a· hora do estudo largava a enxó
e vinha etn mangas de camisa, sem gravata e
A BRAZILEIRA DE PR.\7.1~8 ,J I

de socos para a sala. Que os tneninos não lhe


tinham respeito nenhutn, por isso o Heitor,
quando elle o atneaçou com a palmatoria, res-
pondeu que lhe dava utna navalhada. O pai
achou-lhe graça, e o padre foi-se ctn hora. De-
pois. entrou utn velho que dava escóla em Gui-
marães, e os quizera ensinar com muita pacien-
cia; mas o I-leitor e mais o r~gas taes arrelias
lhe faziam que o pobre hon1en1 fugiu. Que O.
llonorata soffria aquelle flagello desde a queda
da realeza, como se fosse a culpada da victoria
de O. Pedro. Era da fatnilia dos Guiões. tnui-
to intimas do snr. O. ~\liguei e do conde de
Basto; mas todos os seus parentes foratn per-
seguidos, roubados, de modo que ella, ainda
que quizesse fugir ao marido, não tinha em
l_..isboa familia que a pudesse sustentar ;-que,
se não fosse isso, já teria acabado o seu suppli-
cio, ·e que muitas vezes pensára etn se matar,
mas ...
-Os filhinhos ... - atalhou Adolpho senti-
mentalmente.
-:\ão, snr.-accudiu a datna de Carlota
Joaquina- não são os filhos. O coração de
mãe so se enche do atnor aos filhos quando se
evapora o amor ãos pais. Eu nunca amei este
hornen1. lmposeram-me o casatnento, aprovcita-
ratn-se do despeito que eu sentia pelas ingrati-
dões d'um conde que eu amava, e casaram-me
a pressa. o caractc.:r d'este hometn não peorou
com a desgraça da politica; elle c o que sem-
pre foi, com a diffcrença de que na côrte em-
briagava-se com os fidalgos, no Alfeite e em
Queluz, e por lá donnia ....-\s mulheres que cor-
rompia ou o corrompiam não eram minhas crea-
das nc1n aninhas conhecidas; e, se o eran1, eu
.:\ BR.\ZILEIR.-\ DE PUAZI~S
-------------------- ---- -

apenas tinha a convicção de que elle era un1


devasso. l,enho cinco filhos d'este homem; tnas
basta que eu lhe diga, snr. doutor Adolpho, que
são d'elle, são os productos amaldiçoados de
uma obrigação estupida-a aviltadora obriga-
ção de ser mãe quando se é esposa.
·rinha dito. O bacharel nunca ouvira coisa
assirn, nem se lembrava de ter achado nos ro-
mances uma razão tão philosophica e concluden-
te da justiça com que a mãe póde aborrecer os
filhos.
-Sentia vontade de me ajoelhar diante
d 'e II a ! - diz ia Ado I p h o á i r m à. - Q u c fo nn os u-
ra e que talento, Andreza! O' tnana, eu viajei
cinco annos, vi as mulheres n1ais encantadoras
da Europa, estive no Pardo, no Bois de Bou-
logne, no Ilyde-Park, e nunca vi mulher que
tanto me penetrasse os intimas seios d'alma I
Nunca, por estranha fatalidade. nunca l Como é
que eu sinto aos vinte e oito annos as palpita-
ções d'um coração que nasce? Que faisca de
amor é esta que me lavra urn incendio devasta-
dor das alegrias d'alma que ainda hontem ·me
douravam a existencia?
Era o estylo hydropico de Arlincourt ~ mas
é de crêr que exprimisse garrafaltnente a singe-
la e natural comrnoçào que lhe· fez a gentileza,
a poesia elegiaca. a tnagestade i nflexa d~aq uel-
la tnulher a quern a desgraça dera uma critica
moderna e revolucionaria na religião das mães.
· O. Andreza, escandalisa.da, cortava-lhe os
voadouros perguntando-lhe se a separação ju-
dicial poderia dar meios de su bsistencia a llo-
norata. O bacharel, tnuito abstracto, parecia es-
quecido do codigo. O estado da sua alrna não
A BR.\Zli.F.IR.\ DE PR.\Zl~S

lhe consentia folhear a infame prosa com mão


j urisperita.
-Que havia de estudar a questão; mas que
lhe parecia que ella, requerendo o divorcio.
apenas tinha alimentos por não ter trazido na-
. da ao cazal.- Estas phrases eram mastigadas
com um tedio, un1 engulho, como se, depois
de declamar uma Contemplação de Lamartine,
- tivesse de recitar dois paragraphos da lei da
emphyteuse.
D. Andreza era senhora ajuisada, muito sé-
ria, educada no convento de \'airão; tinha mis-
sa em casa, e escrevia cartas a diversas freiras,
-pondo sempre no alto do papel: Jesus, fA1ar.,·a,
José . •<\ndava nos trinta e cinco annos, muito
lymphatica e um grande horror aos vícios da
carne. O 1nano Adolpho conhecia-lhe a indole.
~ào podia esperar d'ella applauso, nem sequer
condescendencia. e muito menos auxilio á sua
afT~içào a mulh~r casada. Andreza concordava
com o irmão na formosura de Honorata; 1nas
observava com um risinho malicioso que o não
chamára para saber se a sua amiga era bonita
ou feia; mas sim para aconselhai-a c dirigil-a
na separação do marido por justiça.
O doutor Adolpho absteve-se de enthusias-
mos, e poz-se a estudar a questão, em conferen-
cias com o I3ento Cardoso, de Guimarães, e o
·rorres e Almeida, o Rasqueja de Braga, dois
chavões. ~las o qu~ elle queria era córar as de-
longas nos Pombaes, ganhar tempo, a salvo das
suspeitas da mana e do seu capellão. um rea-
lista finorio que sabia da poda, e trazia a pedra
no sapato. dizia, cacarejando uma risada velha-
ca - e conhecia até onde podia chegar a fragi-
A BRAZILEIRA DE PRAZINS

lidade de um hornem sem solidos principias de


religião, estragado por essas nações.
D. Andreza andava assustada, porque o mano
nem ia para 1\marante nem dava con1eço ao pro-
cesso. i\ Honorata apparecia-lhe radiosa, com
u1n grande esmero no trajar, vestidos fóra da .
moda, mas elegantes, ricos, de mangas perdi-
das, com uns decotes que punham nos olhos do
capellão luzernas exq uisitas, escrupulos. Adol-
pho era discreto na presença da mana. Conta va
as suas viagens, durante a emigração, citava no-
mes de litteratos desconhecidos á fidalga, seus
amigos Íntimos em Pariz; ai! Pariz I - excla-
mava.- Se eu então me passaria pela mente que
havia de vir de Pariz para Amarante!

- Elle porta-se muito serio- dizia D. An-


dreza ao padre Rocha. Ella é que me parece
mais levantada, muito azevieira, não acha?
-Acho, acho ... confirrnava o capellão. })'a-
qui rebenta coisa, minha senhora; rebenta,
v. ex. a vera, ...
1~, com effcito, estava a rebentar, na phrase
explosiva do padre l{ocha. O delegado tinha
corrcspondencia diaria cotn Honorata, mediante
utna caseira de sua mana, irmã d'uma criada do
Cerveira L.obo. Cartas incendiarias escriptas du-
rante a noite trocavam-se de manhã, quando o
Adolpho sahia a respirar os balsamos das riban-
ceiras orvalhadas. A's vezes, subia a encosta até
á crista do monte do castello de \ 7ermuim.
D'aq ui, a vista va-se por sobre as sei vas verdes
de carvalheiras e pinhaes a vasta casaria parda-
centa de Quadros, com dous torreões denticu-
lados. No andaime de um dos torreões via-se
A BRAZILEIRA DE PRAZil"S 61

um vulto branco, com o braço amparado em


uma das atneias, e a cabeça encostada á mão
como nas baladas de Baour Lormian. Era Ho-
norata, com o binoculo assestado na fraga onde
estava Adolpho, alaranjado pela primeira res-
plandeccncia do sol nascente.
Ao cabo de duas semanas, sahiram dos do-
mínios da bailada. Uma noite, partiram de Gui-
marães, carninho do Porto, dous cavallos do
Gaitas, e pararam na Ponte de Brito. Utn dos
cavallos era arreiado com selim de senhora. Por
volta da meia noite, Adolpho e I-lonorata, n'um
passo miudo, com uma anciedade, mixto de
exultação e de susto, chegaram á Ponte de Bri-
to. Elle ajudou-a a sentar-se na sella; cavalgou,
disse aos dois arrieiros o seu destino, e partiram
a trote largo.
'.
v

S
EIS annos depois, em 184), quando o Zefe-
rino das L.amellas andava em roda viva
-de Barrimáo para Quadros, o Cerveira não
tinha alterado sensivelmente os seus habitas.
Estava muito gordo, saude de ferro- um des-
mentido triumphante aos follicularios que des-
acreditam as ,·irtudes hygienicas, nutrientes do
alcool. Os vomitcrios quotidianos explicavam a
depurada e sadia carnadura do tenente-coronel.
Orçava pelos cincoenta annos, com um arro-
gante aspecto marcial, de intonsas barbas gri-
salhas, -olhos rutilantes afogueados pela calci-
nação cerebral. .A.s filhas não 1nostravam vesti-
gios alguns de educação senhoril. Aquella l,he-
rezinha. que a l~osa de Carucle denunciára, fu-
gira para casar com o minorista das Quintans.
As outras duas, tnuito boçaes e alavradeiradas,
tinham amantes- uns engenheiros e empreitei-
ros do conde de Clarange L,ucotte, que andaYa
fazendo as estradas entre 11raga, Porto e Gui-
.\ BRAZILElR.\ HE PRAZI~~

tnarães. Ninguem decente as queria para casar


porque, alérn do descredito, o pai não dava dote~
e, desde que a mãe fugira, convenceu-se de que
não eram suas filhas. I-leitor c Egas, dous ga-
lhardos tnoços, de jaqueta de alatnares de pra-
ta, facha vennelha, e sapatos de prateleira com
ilhozes an1arellos, tinha1n eguas travadas que
' entravam pelas feiras n'utn arranque de ropia e
pimponice, que ia tudo razo. De resto, valentes
e bebedos. possantes garanhões de femeaço re-
les, e muito esquivos a trataretn com senhoras
- canhestros e bestiaes. Roubavam o milho e o
vinho; vendiatn, nas mattas distantes, ao des-
barato. córtes de tnadeira e roças de matto; alén1
d'isso tinham urnas pequenas n1ezadas que o pai
·, lhes dava. Ainda assin1, a casa de Quadros não
estava empenhada. prosperava, e era das pri-
meira·s do concelho. O luxo do fidalgo era a
garrafeira. ~Vlais nada. As 'filhas de l-Ionorata
quando, entre si, fallavam da rnãe, chamavan1-
lhe « aquella desavergonhada''~ os rapazes con1
utn desapego desleixado que poderia fingir di-
gnidade, nem se lembravam que tinham mãe.
Quanto ao pai, esse antes de jantar, era tacitur-
no, casn1urro, con1o quen1 se esforça por sacu-
dir um pesadello; c, de tarde, sumia-se para re-
começar as suas visf>es luminosas interceptadas
pelas trevas 1110111entaneas da razão. \Tão se sabe
o que elle pensava d~ mulher ..
Admittia pouca gente en1 sua casa c pou-
quissima á sua pr~sença ...\lém dos caseiros que
lhe pagavam as grossas rendas d~ \rílla do Con-
de, de l~smoriz c S. Cosme do \ 7 alle, apenas
recebia o pedreiro das L,amellas que lhe fizera
os canastros· e reconstruira algumas paredes des-
abadas. c:onhecia-lhe o pai~ o alferes, desclt; a
A BR.\liLEIR.A DE PRAZI~S 65

batalha de Ponte Ferreira . .\landava-lhe botijas


de genebra e n1assos de cigarros; -que bebes-
se, que se embebedasse, que os tempos não iam
para outra coisa. E o alferes com vaidade de
fino:
. -A quetn elle o vem dizer!
Ultimatnente, fallavam muito da chegada do
snr. D. ~liguei-« o meu velho amigo,» dizia
o Cerveira, pondo as mãos no peito e os olhos
no tecto.
7
- \ enha elle, e vêr-me-has, Zeferino, á fren-

te dos meus dragões de Chaves l - Relampa-


gueavam-lhe então as pupillas e fazia largos
gestos marciaes, com o braço tremulo como se
brandisse a espada, rompendo um quadrado;
montado na phantasia arqueava as pernas, des-
cabia o tronco sobre um imaginaria cavallo em-
pinado e bufava com trejeitos ferozes. Era d'u m
ridic-ulo lacrymavel. O Zeferino dizia ao pai que
ás vezes lhe tinha medo quando elle fazia aguei-
las partes.
- 0 vinho do Porto é o diabo!-dizia o
alferes com u tna grande experiencia d'essas fa-
çanhas incruentas- é o diabo!
O Zeferino, na volta de Santa .\lartha de
Bouro, contou-lhe o que soubera em casa do
capitão-mór. O tenente-coronel quiz immediata-
mentc partir para Lanhoso; mas não tinha
roupa decente para se apresentar a el-rei. As
fardas estavam traçadas, podres com um bafio
de rodilhas no fundo de uma arca; dos galões
restava um tecido esbranquiçado com laivos
verdoengos; o casco das dragonas esfarinhou-
se-lhe nas mãos roido pelos ratos. Não tinha
cazaca. Desde a convenção d'Evora L\lonte, man-
dava fazer a Guimarães uns ferragoulos de mes-
5
6G -~ RR.~ZILEIRA DE PRAZI~S

~ ela á laia de capote de soldado para o inverno;


de verão, para equilibrar o calor artificial inter-
no com o da atmosphera, andava em ceroulas e
fazia h:que da fralda. Por decencia, fechava-se
nos seus aposentos. L'Vlandou chamar um alfaia-
te a Braga, o Cambraia da rua do Souto, para
se vestir á militar e á paizana.
Entretanto o Zeferino, utn pouco desanima-
do, contou-lhe" que o seu padrinho de Barrimáo
e mais o frade não acreditavam que cl-rei esti-
vesse em Calvos; que era uma comedella do
dr. Candido d'Anêlhe e dos padres para apa-
nharem cincoenta contos á D. Isabel1\laria; que
os generaes do snr. D. J\1iguel não sabiam de
nada.
O Cerveira Lobo esfriou. -l'ambem tne
parece, dizia, que se o meu velho- amigo D. 1\li-
guel ahi estivesse, já me tinha mandado chamar .
.\las, depois que o Bezerra de Bouro asse-
verou que beijára a mão d'el-rei, o pedreiro e
o tenente-coronel já não podiam duvidar. Com-
binou o fidalgo com Zeferino que partisse elle
para Lanhoso, e dissesse ao capitão-n16r que o
levasse a Calvos, e o abbade que participasse a
el-rei que estava alli um proprio com uma car-
ta de \'asco da Cerveira L.obo, tenente-coronel
de dragões.
-Assim que el-rei ouvir o meu nome, en-
tras logo, immediatamente, n,um prompto. De-
pois, põe-te de joelhos, e entrega-lhe a carta,
percebeste? rru vais e trazes-me resposta. Por
estes oito dias, o mais tardar, tenho cá o farda-
mento. No caso que sua magestadt: tne mande
ir, vou; se não, trato de chatnar ás armas c i o-
co ou seis m"il homens com que posso contar.
Zeferino, para evitar questões atrasadoras,
.-\ P.RAZILEIR.~ DE PR.\ZI~S 61

não disse nada ao padrinho nem ao pai, recean-


do as expansões usuaes da carraspana.

O Cerveira dizia ao padre Rocha, capellão


de D. Andreza:- ldéas não me faltam; mas es-
queci aquillo que se chama ... sim aquillo com
que se escreve, quero dizer .. .
- Ortographia?
-E' como diz, padre Rocha 2 ortographia.
Era o exordio para lhe dar parte que o seu
amigo e rei D. -'liguei estava no concelho da Po-
voa de Lanhoso; que lhe queria escrever; mas
que não se mettia n'isso; e acrescentava : - elle,
o rei, aqui ha treze annos sabia tanta ortogra-
phia como eu; mas agora dizem as gazetas que
elle estudou coisas e loisas e tal. Pedia, portan-
to, ao padre Rocha que lhe escrevesse a carta
para elle a copiar de seu vagar. E, pondo-lhe a
mão no hombro:- E ouviu, padre? Vá pensan-
do no que quer; uma boa abbadia, S. Thiago
d'Antas, heim? serve-lhe? ou antes quereria ser
conego? Emfim, pense lá... Nos cá estamos
ás ordens.
O padre era a fina flor do clero realista. Sen-
sato, intelligente e honesto. Primeiro, quando
o Cerveira lhe revelou a meia-voz a chegada do
seu amigo e rei D. ~liguei, imaginou-o no seu
estado normal de bebedeira. Depois, reparando
mais nas attitudes firmes e desempeno da lin-
gua, julgou-o sandeu, amollecimento cerebral
pela alcoolisação;- por fim convenceu-se de que
o pobre homem era enganado e escarnecido por
alguns disfructadores. O padre tinha muita com-
paixão do fidalgo que a mulher e as filhas en-
lameavam torpemente. Elle avisára D. Andreza
A BRAZILEIRA DE PRAZll'S

que, no dia em que o snr. doutor Adolpho en-


trasse nos Potnbaes pela porta principal, elle sa-
hiria pela porta travessa; e a fidalga levára tão
a mal o proceder do irmão que pensava em fa-
zer testamento para que os filhos d'elle e de 1-Io-
norata lhe não herdassem as quintas. Sabia-se
n'esse tempo que o doutor Adolpho da Silveira
era juiz de direito nos Açores e tinha comsigo
uma forn1osa amante com trez meninos.
A unica idéa com que o Cerveira contribuiu
para a redacção da carta foi que escrevesse: -
«se vossa magestade precisa de dinheiro, diga
o que quer que eu até onde chega rem as mi-
nhas posses está tudo ás ordens d'el-rei meu
senhor.))
O padre Rocha não se esq uivou a collaborar
na indromina, dizia elle a D. Andreza,- porque
«eu~ pela resposta da carta, hei de seguir o fio
da esparrela que querem armar ao parvo do
homem.))

A carta ia pomposa, a ponto de Cerveira pe-


dir commentarios, explicações. Que estava uma
obra profunda- dizia o fidalgo instruido em fim
nas obscurezas do estylo.
E, tirando seis pintos do bolso do colete:
--Ahi tem para o seu rapé! merece-os.
O capellão não aceitou; pediu que os appli-
cassc por sua intenção ás necessidades do snr.
1) . 1\1 i g u e I.
-1~' um realista ás direitas~ padre, um gran-
de realista l E, guardando os seis pintos~ abra-
çou-o efTusiyamente e offereceu-lhe um calice
d_c 18 I 7.
A BR.\ZILEIR.\ DE PR.\ZI~S 69

-Eu desejaria muito vêr a resposta de sua


magestade -dizia o padre Rocha.
-Isso é logo que ella chegar, padre! pois
então? Cá entre nós não ha segredos; e, se o
amigo quizer, no caso que el-rei me mande ir,
vai con11nigo, e pode logo vir despachado. Pois
então?
-Está dito I -e o padre com um regosijo
. muito comico, e o calice aromatico de baixo do
nariz:- Quem sabe se eu ainda serei arcebispo,
ó snr. tenente-coronel!
-Ora I como dous e dous são quatro! Hade
ser arcebispo, não ~nha duvida. Isto vai tudo
mudar 1- E carregava-lhe forte no 1817.-Ar-
re I estou aqui mettido ha doze annos n'estes
montes, que me tem levado os diabos ! l,en h o
-19 annos: mas este punho ainda pode com a
espada! ~Jade haver pancadaria de criar bicho I
Olé! Eu dizia ás vezes ao meu amigo D. ~liguei
quando o Sedvem, e o ~1atta e o j\iguel Alcai-
de davam cacetada nos malhados que aquillo
não era bonito. Pois agora, padre l(ocha, heide
dizer-lhe: «E' p,ra baixo, real senhor! mocada
de metter os tampos dentro a esses malhados!
E' acabar com elles por uma vez I uma forca em
cada concelho, real senhor, muitas forcas! Ah I
tneu camarada l,elles Jordão! tu é que a sa-
bias toda I
O Cerveira começava a gaguejar, a camba-
lear, e entornava o calice. O padre despediu-se.
VI

N A residencia do abbade .:\'larcos Rebello,


em S. Gens de Calvos, havia uma sala
com alcova e janellas sobre utna horta
arborisada. As pereiras, macieiras e abrunhei-
ros principiavam a florir. Era no começo de
abril. Alli, n'aquellas frigidas alturas, sopram as
ventanias mordentes de Barroso, do Gerez, e ge-
lam a seiva nos troncos filtrados da neve e das
cristalisações glaciaes. Fazia frio. Na saleta caia-
da, muito excretnenticia de moscaria, com tecto
de castanho esfumaçado e o pavimento lurado
do caruncho, havia a um lado duas caixas de
cereaes, no outro algumas cadeiras velhas de
nogueira de diversos feitios, esfarp~ladas no as-
sento; nas paredes duas lytographias -o retrato
de D. João v1 com o olho velhaco e o beiço
belfo, e o marquez de Pombal sentado com o
decreto da expulsão dos jesuítas, apontando par-
lapatonamente para a barra onde alvejam pannos
de navios que levam os expulsos. Na velha cal
72 A RHAZILEIR..\ DE PHAZI~~

esburacada e emporcalhada de escarros seccos


de antigas catarrhaes . destacavam r1;1olduras de
carvalho com dois paineis a oleo cheios de grê-
tas, S. Jeronytno no deserto, com uma cara atlli-
cta; de tic doloroso, e Santo Antonio de Padua,
n'um sadio en bon point, utn bom sorriso inge-
nuo, com o ~lenino-Jesus sentado, muito nutri-
do, en1 uma bola que os agi o logos diziatn ser o
globo terraqueo. No centro da quadra estava
uma banca de pinho pintada a ocre, co1n uma
coberta de cama, de chita vermelha, com ara-
ras, franjada de requifes de lã variegada. Ao
lado da banca, uma cadeira de sola, com espal-
dar etn relevo e pregaria atnarclla com verdete;
do outro lado havia um fogareiro de ferro com
brazas c uma cesta de vêrga cheia de carvão.
Entre as duas pequenas janellas de rotulas in-
teriores e cachorros de pedra, trabalha va estron-
dosamente um relogio de parede com os frisos
do mostrador sem vidro, cheios de moscas tnor-
tas, penduradas por un1a perna. de ventres bran-
cos muito inchados e as azas abertas.
Dez horas. Abriu-se então a porta da alcova
que ringiu ligeiratnente na couceira desengon-
çada, e sahiu um sujeito de mediana estatura,
hombros largos, barba toda com raras caos,
olhos brilhantes, pallido-trigueiro, um nariz
adunco. Representava entre trinta e seis e qua-
renta annos. Sentou-se á brazeira e preparou um
cigarro, vagarosamente, que acendeu na aresta
chammejante de u1na braza. Com o cigarro ao
canto dos labias e um olho fechado pelo conta-
cto agro do fumo, foi abrir uma das vidraças, e
poz fora a mão a sondar a ten1peratura. Co-
xeava um pouco. Recolheu a n1ão com desagrado
e fechou a janella. Vinha subindo a escada de
A BRAllLEIRA DE PR.-\Zil'I'S

- communicação com a casinha uma mulher ido-


sa, em mangas de camisa~ meias azues de lã e
oure los achinelados. Pediu licença para entrar,.
fez uma mezura de joelhos sem curvar o tron-
co, e perguntou:
7
- \ ossa magestade passou betn ?

-Optimamente, Senhorinha, passei muito


bem.
-Estimo muito, real senhor. O snr. abbade
foi chamado ás oito horas para confessar tuna
frcgueza que está a morrer d'uma queda, e dei-
xou dito que pozesse o almoço a vossa mages-
tade, se elle não chegasse ás nove e meia.
-Quando quizer, Senhorinha, quando qui-
zer, visto que o abbade deu essas ordens e quem
manda aqui é elle.
Da casinha vaporava utn perfume de salpicão
frito com ovos. Sua magestade farejava com as
na-rinas anhelantes, n'um furte appetite. A creada
voltou co1n toalha, guardanapo, loiça da India,
talheres de prata, e uma travessa coberta. Sua
magestade, muito familiar, tirou de sobre a
n1eza uns cadernos tscriptos, cosidos com seda
escarlate, e um grande tinteiro de chumbo com
pennas de pato.
-Ora vossa magestade a incommodar-se f
\Talha-me Deus! eu tiro isso, real senhor! Xão
que uma coisa assim I Um rei a ...
E o real senhor:
-Ande lá, Senhorinha, que eu ajudo. Um
réi é um homem como qualquer hotnem.
-Credo! faz muita differença... mesmo
muita ...
Elia descobriu a travessa a rir-se :
1
- \ ossa magcs ta de diz que gosta ...
74 .\ HH.\ZILEIR.\ DE PRAZI~S

-Sardinhas de escabeche? Se gosto I ...


Vamos a ellas que estão a dizer-con1ei-me.
E atirou-se ás sardinhas con1 umá soffregui-
dão pelintra.
Depois, serviu-lhe rodelas de salpicão com
ovos. Sua magestade gostava muito d'estas co-
mezanas nacionaes. Já tinha con1ido tripas, e
dizia que no exilio se len1brára n1ui tas vezes
d'esta saborosa iguaria com feijão branco e chis-
pe, que tinha comido em Braga. O abbade de
Calvos sensibilisava-se até ás lagrimas quando
via el-rei a' esbrugar uma unha de porco e a
litnpar as regias barbas oleosas das gorduras
suinas. O terceiro prato era vitella assada. A
Senhorinha trazia-lh'a no espêto, porque sua
magestade gostava de ir trinchando finas talha-
das, emquanto a cosinheira, de cocaras ao pé
do fogareiro, conservava o espêto sobre o brazi-
do, a rechinar, a lourejar. Bebeu harmonica-
mente o real hospede um vinho branco antigo,
da lavra de un1 fidalgo de Braga, proprietario
do Douro, que estava no segredo do ditoso ab-
bade de Calvos-capellão-mór d'el-rei e dotn
prior eleito de Guimarães.
A creada assistia muito jovial áq uella deglu-
tição formidavel, e dizia particularmente ao a b-
bade:- Este senhor, pelo que come, parece que
ten1 passado muitas forninhas! Ninguem hade
crêr o que sua magestade atafulha n'aquelle ban-
dulho 1- e dizia que lhe dava vontade de cho-
rar, lembrando-se das lazeiras que elle tinha
apanhado; porque o abbade contava que lêra
no Deus o que1·, do visconde de Arlincourt, que
o snr. D. i\1iguel, en1 Roma, não tinha ás vezes
1 o reis de seu para aln1oçar uma chicara de lei-
te. l~, perguntando a el-rei se era verdade aq uil-
A BRAZILEIR.\ DE PR.\Zl~S

lo-que sim, que chegára a essa extremidade;


mas que preferia a fome a ceder os seus direi-
tos e a felicidade dos seus vassallos pelos ses-
senta contos annuaes que lhe offereceram da
Casa do Infantado, e que elle regeitára.
Por fim, vinha o café. As fatias eram torra-
das ali, no fogareiro. S. magestade barrava-as
de manteiga nacional,- preferia a manteiga do
seu paiz, como a vitela, e o Iom bo do porco no
salpicão portuguez, e o pé do porco nas tripas
tam bem portuguezas- tudo do seu paiz. Que
rei, que patriota! -meditava o abbade de Pris-
cos, bispo eleito de Coimbra, esmoncando-se e
aparando as lagrimas ternas no alcobaça.
No fim do copioso almoço, el-rei fumava cha-
rutos hespanhoes. de contrabando; desabotoava
o colête, da va arrôtos, repoltreava-se na cadeira
de sola um pouco desconfortavel, e vaporava
grandes columnas de fumo que se espiralavam
até ao tecto.
A Senhorinha veio á beira d'el-rei, e disse
baixinho:
-Saberá vossa magestade que está ali o snr.
Trocatles.
-0 ... ?
-Ai! já me esquecia ... o snr. visconde ...
-Que suba.
O sujeito que entrou era o l'orquato X unes,
um sargento do exercito realista, de S. Gens.
O rei ergueu-se e fecharam-se na alcôva.
A cosinheira dizia em baixo á outra creada
·de fóra:- O' coisa! ~lal diria cu que ainda ha-
via de chamar l'Ísconde ao safardana do l'ro-
·Catles!
E a outra, benzendo-se~- ~ão que elle, o
mundo sempre dá voltas! 'T
eja você I aquelle
76 .\ RR.\ZILEITI.\ DE PR.-\ZINS

moinante que me pediu uma vez dois patacos


p'ra cigarros, e- por signal que nunca n1'os pa-
gou I ·
-Pois vês-ahi I Foi elle o primeiro que co·
nheceu o snr. O. l\liguel, é o que foi, e sua ma-
gestade gosta muito d'elle. Foi feliz o diabo do
ho1nem! i\q uillo vae a governo, tu verás; e já
ouvi dizer que o sobrinho d'elle, o padre Zé da
Eira, o de Rio ·caldo, que é zanagra, está cone-
go. l~imparan1-se da carepa, é o que é. A mu-
lher d'elle já botou no domingo passado a sua
saia e jaq ué de pan no azul.
- E que rico panno!
-Pois vês-a h i... _..
I~ntrava n'esta conjunctura o abbade, esfa-
digado, suarento-que levasse o dia b9 a fregue-
zia, que pouco tempo havia de aturar massadas
d'aquellas, para confessar uma bebeda de uma
velha que ti oh a bebido de mais na feira da Po-
voa e cahira d'um valado abaixo. I~ elle? - per-
guntava -almoçou bem?
-Ora I não ha que perguntar, senhor! Aquil-
lo, salvo ~eja, é como a cal d'uma azenha. E'
quanto lhe deitarem p'rá tripa. Coisa assim I
Subiu agora p'ra lá o Nunes. Ai I já me esque-
cia, ó snr. abbade l Olhe que na villa já pergun-
taram se cá na casa estavam hospedes, porque
vinham p'ra cá muitas comidas. Que não vão
elles pegar a desconfiar ... Esta pergunta á moça
traz a~ua no bico.
-I~ tu que respondeste, 1noça?
-Que vinharn por cá jantar uns senhores
padres, que agora era tempo de confesso •..
-Andaste bem.
Quando o padre Marcos l"{ebello subia á sa-
la, pedindo licença a meio da escada, já o rei e o
.\ RR.\ZILEIR.\ DE PR.\ZI~S

visconde vinham sahindo da alcôva- um, apru-


mado na attitude da magestade, o outro, na do
respeito, muito composto. .
-Pede licença na sua casa, dom Prior? dis-
se el-rei.
O dom prior de Guimarães genuflectiu a per-
na direita~ o soberano apressou-se a erguei-o.
-Nada de etiquetas, já lh'o disse duzias de
vezes.
-Não posso nem devo proceder d'outra ma-
neira, senhor l
- Póde e deve que o mando eu.
E o abbade, inclinando-se com os braços em
cruz sobre a batina:
-Saberá vossa magestade que o snr. capi-
tão-mór de Santa ~lartha, a quem vossa real
magestade fez barão de Bouro ...
-Bem sei. . . aq uelle a rna vel cavalheiro ...
-- Perfeito cavalheiro-attestou o Nunes.
-Escreveu-me a carta que tenho a honra de
depositar nas mãos de vossa magestade.
El-rei leu alto:

Anzigo Don1 Prior de G_uilnar..ies.- Un1 rea-


lista do concelho de F.:unalzc ..io chegou ha pouco
a esta sua casa, afim de que eu escrevesse ao meu
nobre e t'elho anzigo para obter de S. lV!. licença
para lh' o ~presentar co1no port .:zdor de zuna carta
do snr. Vasco Cerveira Lobo, morg:rdo de Qua-
dros, e tenente-coronel que foi do regimento de
d1·agões de Ch:rves. Diz elle que o snr. D. Afiguel
(ôra anzigo pessoal do dito tenente-coronel, e por
isso entende, e eu t;unbenz que será nzuito do real
agrado do nosso 1·ei e senhor receber a carta d'este
legitúnisla que nos pódc ser nzuilo util, jd pelo
78 A RRAZILEIRA DE PRAZI~S

seu no1ne, conzo /,:unbenz pela sua riqueza. Ouvidas


as ordens de S. M. F., queira transnzz"(tir-n1' as . .•

-Estou-me recordando- dizia o príncipe


pausando as suas reminiscencias- Cer7Jeira Lo-
bo . .. tenente-coronel de dragões . .. Sim, snr..•
l"{ecordo-me muito bem ... O Cerveira, o meu
amigo Cerveira~ . . ·
-·Que foi prisioneiro na Chamusca, quando
o Urbano se pas~ou para os liberaes co1n a ca-
vallaria e mais o coronel de dragões, o Albu-
querque -lembrou o Nunes, o visconde Nunes
-\r. magestadc lembra-se?
- Ptrfeitamente. Don1 prior, queira escrever
ao barão e dizer-lhe que espero anciosamente a
carta do meu a tnigo Cerveira.
Emquanto o abbade ia ao seu quarto escre-
ver, o hospede disse ao ouvido do outro:
-Is to corre mal ...
-Porque?!
-Se o homem cá vem, o meu g1·ande amigo •.•
-l{ecebel-o como o teu grande a1n(f?o ...
-Se me falia em particularidades ..•
- Elle não sabe fallar em particularidades.
E' uma besta, muito rico, e disse-me o morgado
do 'fanque, de Braga, seu primo, que está sem-
pre bebedo. Nern elle cá vem, tu verás ... Eu
até acho que as coisas correm perfeitamente.-
Ouviam-se os passos do abbade. -Tem dinhei-
ro, elle tem muito dinheiro, ouviste?
Entrou o abbade.
-Só duas palavras. E leu: S. 1l1agestade
recebe conz nzuito prazer a carta do snr. tenente-
coronel Cerveira l...obo.
-·'lu ito bem,- approvou e l-rei.- I Ioje á
.\ BR.\llLEIR.\ DE PR.\ZI~S 79

noite, com todos os resguardos que urgem as


cautellas.
-Um homem, o Caneta de I~raga, o cha-
pellciro con1 uma carta- annunciou Senhori-
nha- só a entrega em mão propria ao snr. ab-
bade.
-Que entrasse.
O rei e o visconde n1etteram·se á alcova, si-
mulando receios.
Era urna carta do abbade de Priscos, bispo
eleito de Coimbra. Tinha a honra de enviar a
el-rei cem peças, donativo que as senhoras Bo-
telhas, de Braga, offereciam de joelhos a S. ~l.
F. e diziam que todos os seus haveres estavam
ás ordens d'el-rei seu senhor.
E entregou dois grossos cartuchos~ cintados
por fitas cruzadas de sêda escarlate. E o Caneta
rnuito pontual:
-Queria um recibinho, se lhe não custa, re-
verendo snr. abbade.
- \'enha d'ahi que eu passo· lhe o recibo.
Os dois sahiram da alcova. Os rolos esta-
vam sobre a meza. Elles tinham ouvido fallar
em recibo. O visconde Nunes, esgaziando os
olhos, foi apalpar o embrulho, e muito baixinho:
-Arame! peza que te1n diabo I é oiro! Co-
meça a pingadeira! Vês?
O outro arregalou os olhos e deitou a lingua
de fóra quanto lhe foi possivel. Nem parecia u1n
rei I
VII

·
A ·
s sete da noite a soirée do monarcha de
Calvos cotnpunha-sc do visconde Nunes,
seu secretario privado e brigadeiro de in-
faoteria, do abba.de capellào-mór de el-rei, de
dois reitores, conegos despachados, e o ex-sar-
gen to-mor de Rio Caldo nomeado capitão-mór
de Lanhoso. Estavam todos em pé resistindo á
licença de se sentarem. A cadeira de sola esta-
va com o príncipe encostada ao relogio; e, na
meza central, papeis, o tinteiro de chumbo, o
..J.\rovo Principe, de Gatna e Castro, a 13esta es-
folad.:r e o Punhal dos corcundas, do bispo fr.
Fortunato. Em cima das caixas do milho esta-
va utn rneio alqueire com feijões brancos desti-
nados ás tripas, e dois folies vasios que a Se-
nhorinha tencionava encher de grão para a for-
nada quando el-rei se recolhesse. Sobre utn dos
folles resbunava um gato enroscado.
Esperava-se
r .
.c o da vcrve1 r a.
'r
o apresentante da carta de as-

6
R2 .\ RH.-\ZILEIRA DE PRAZlN~

A's oito horas annunciaram-se os adventícios.


O barão de Bouro entrou primeiro a passo
mesurado, com o peito alto, e o pescoço hirto
n'uma gravata enchutnaçada, preta, de cordão-
sinho de aratne, sem laço, atacando os lobulos
das orelhas, um pouco reintrante na altura dos
gorgotnilos. Usava oculos de oiro quadrados, e
uma pêra grisalha; de resto, rapado. Enverga- ·
va casaca nova de lemiste, muito refestelada, de
abas compridas com ancas proeminentes, segun-
do a moda; do coz das calças, côr àe gemn1a
de ovo, pendiam berloques com armas, uma
medalha con1 o retrato de O• .\1igu~l aos vinte
e dous annos, e uma peça de oiro com a mesn1a
real effigie. No peito da camisa, entre as }apel-
las do collete de velludo côr de laranja, trazia
pregado um punhal esmaltado, em tniniatura,
enygma convencional dos cavalleiros de S. l\1i-
guel da Ala, obra patriota do ourives Novaes,
pai do poeta l~austino.
De pos elle, entrou o Zeferino das I..~amcl­
las, muito enfiado, n'um spasrno, sentindo-se
aluir pelos joelhos. Ia de niza de panno azul con1
botões amarellos, calça branca espipada com
joelheiras pelos atritos do albardão. As pernas
das calças chegavam apenas a meio cano das
botas, que pelo tamanho dos pés dir-se-iam
roubadas a um gigante.
O Bezerra dobrou o joelho, .inclinando o
tronco á mão esq uiva de sua magestade. t=>or
de traz d'elle, o Zeferino ajoelhára ·batendo com
ambas as rotulas no taboado. O barão ia fallar,
quando o rei, reparando no outro, disse:
-Levante-se, homem. Isto agui não é ca-
pella.
A BRAZILEIRA DE PRAZI!IíS 83

O pedreiro teimava, achava-se bem n.,aquella


postura que o dispensava de procurar outra.
-Sua magestade manda-o levantar- disse
o visconde Nunes.
Ergueu-se, e n'um impeto silencioso ia en-
tregar a carta ao da cadeira, quando o capellão-
tnór lhe observou que as cartas se entregavam
ao secretario.
O barão expoz que não podéra resistir aos
pedidos que aquelle honrado legitimista lhe fi-
zera para o acompanhar, porque não se atrevia
a entrar sósinho á presença d'el-rei, seu amo.
Que era filho de um bravo alferes, o Gaspar das
Lamellas, que etn 1838, á frente de 300 homens,
·atacára a villa de Santo Thyrso, dando vivas a
el-rei. Contou a façanha de atravessar o Ave a
nado em janeiro. com a espada nos dentes, e
·que por causa d'isso intrévecera e nunca mais
se levantou.
-Oh 1- interjeicionou compungidamente o
monarcha.-Eu ignorava esse notavel ataque ...
estava em Roma, sem noticias ... Digno homem
o meu honrado e bravo ... como se chama seu
pai?
-Saberá vossa magcstade que se chama
Gaspar Ferreira.
E o rei:
-Visconde, escreva na lista.
O Nunes sentou-se á meza, pedindo venia a
sua magestade que ditou:
-Gaspar Ferreira, 1·eformado em co1·onel de
z"nfanteriJ, co1n vencimento desde 1838. Escreva
á margem: Batalha de Santo Thyrso. E voltan-
do-se para Zeferino que ladeava para a parede:
-Diga a seu bravo pai que lhe dei a reforma
A RRA/.ILF.IR.\ DE PR.\Zlr-IS

em coronel, e vencerá soldo dos sete annos pas-


sados. .
O Zeferino abriu a bôca para dizer o que
quer que fosse.
-A carta do meu velho amigo l"eixeira?-
perguntou o rei ao visconde Nunes.
-Cerveira, perdôe vossa magestade, Cer-
veira Lobo.
-A h! sim ... Cerveira Lobo.
Abriu, leu para si, passou a carta ao secre-
tario, e commentando exultante:
-Um grande amigo I dos raros l um dos
nossos melhores esteios l Com hotnens assim de-
dicados, o triumpho é certo. Posso dizer com o
grande vate Camões:
E dir-me-he·is qual é ma·is excellente,
Se ser do mundo rei, se de tal gente.

U tn dos reitores que estavam na penumbra,


lá etn baixo ao pé das caixas, olhou com espanto
para o outro, que lhe disse á puridade, discre-
tamente:
-Diz que elle tern estudado o diabo ... até
o latim I
l~l-rei proseguiu:
-Vou responder por meu proprio punho ao
meu nobre amigo. E' digno d'esta e de maiores
considerações. Visconde, escreva na lista: Vasco
da Cerveira Lobo, ~eneral de cal'allaria, e conde
de Quadros. Depois, tirou de uma velha pasta
de papellão uma folha de almasso, sentou-se a
escrever-e que conversassem.
O abbadc, capellão-mór, aproveitou o ensejo
para servir vinho do Douro e pasteis de Guima-
rães, cavacas do convento dos I~emedios e for-
minhas.
A BR.AZILEIRA DE PRAZI::\S

11avia mastigação de tnandibulas pesadas; as


forminhas eram frescas., n1uito torriscadas, da-
vam rangidos n'utna trincadeira voluptuosa.
Conversava-se en1 dous grupos. O sargento-mór
de Rio Caldo contava passagens de caça no Ge-
rez, com emphaticos arremedos, movimentados,
da alteneria. Que o porco bravo viera direito a
elle, e cortava matto, troncos de giestas como a
sua coxa- e tnostrava-; tinha apanhado de
raspão a cadella, a Ligeira, raça de todos os
diabos, que o atacava pela orelha, e ficou alei-
jada para nunca mais; e elle então cahira sobre
a esquerda, e trepára a fraga da Portella, e es-
perára o porco na clareira; e mal elle apontou,
pumb.:?. 1 tnetteu-lhe tres zagallotes no quadril.
--A gente a falia r incotnm6da talvez e l-rei ...
-observou o barão de Bouro.
-Podem conversar á vontade, que não me
incommodam.
- Aquillo é que é cabeça!- disse baixinho,
tocado, utn dos conegos a outro concgo.
Generalisou-se a cavaqueira. Faziam-se brin-
des laconicos, circumspectos, com um grande
respeito, indicando-se e l-rei por um simples gesto
d'olhos.- r\ virar! a virar!- Carminavam-se os
conegos. O dom prior de Guimarães suggeriu
uma lembrança graciosa ao barão. Que havia
dois padres . ~l~1rcos,
. ambos priores de Guima-
rães. ·'las o legitimo, o de S. Gens de Calvos,
dizia do outro:
-Forte bebedo I
O visconde Nunes ria-se sarcasticamente; e
emquanto os padres n 'um crescendo palavroso,
expluiam sarcasmos ao outro padre ~1arcos, o
secretario privado curvou-se sobre o hombro
d'el-rei e segredou-lhe:
A BRA71LEIRA DE PRAZINS

-Carrega-lhe!
-Ora I... ·
-Quanto?
-2.
-3. Anda-me. 3.
-Será muito I ...
-Bolas. 3, por minha conta. Coisa limpa.
E, em voz alta e voltado para o grupo:
-El-rei pergunta se o snr. conde de Qua-
dros tem familia, se tem senhora e filhos.
O Bezerra perguntou ao Zeferino.
-Que soubesse sua magestade-disse o pe-
dreiro, mais animado, que o fidalgo de Quadros
tinha dous rapazes e tres raparigas, uma já ca-
sada; mas que a fidalga, a mulher d'elle, aqui
ha annos atraz tinha fugido com o doutor dos
Pombaes, e nunca mais voltára.
-Desgraças 1- disse o cape lião-mór- Des-
graças! A corrupção dos tempos. . . Se se não
acudir quanto antes a isto, não sei que volta se
lhe h ade dar.
Fez-se um silencio condolente. 1,odos sen-
tiam o caso infausto.
O rei continuava a escrever, de vagar, pu-
lindo a phrase, baleando os períodos; achava
difficuldades em se medir com as locuções re-
dondas e muito adjectivadas da rhetorica do
padre Rocha. Animava-o, porém, a idea de que
D. L'Vliguel não tinha fama de sabio, e que a sua
carta seria mais verosímil com alguns aleijões
gra m ma ticaes.
Releu a carta, e acrescentou ás virgulas. Pe-
diu obreia ao Nunes. Acudiu o padre com uma
quadrada, de certa grandeza, vermelha, cuida-
dosamente recortada.
O enveloppe ainda não tinha subido até La-
A RRAZILEIRA DE PR.\1.1?\S 81'

nhoso. Sua magestade dobrou cm quatro a fo-


lha do almaço e sobrescriptou-Ao conde de Qua-
d1·os, general do exe1·cz"to real.
N'esta occasião, o Christovão Bezerra cha-
mou de parte o Nunes, fallou-lhe em segredo, e
terminou em voz alta: «se fôr do agrado de sua
magestade.))
-Eu vou fallar a el-rei- disse Nunes com
satisfatoria condescendencia.
Acercou-se do outro, com os braços penden-
tes, os pés juntos, un1 pouco inclinado, t! fallou-
Ihe baixo.
-Sim, respondeu o monarcha.
-Está servido, snr. barão-communicou o
secretario e foi registar no livro das mercês, pro-
ferindo em voz alta: Sua 1nagestade ha por bem
nomear sarg·ento-1nór das Lanzellas Zeferino Fe1·-
reira, em attenção aos serviços -de seu pai o coro-
1lel Gaspar .Ferreira.
-Vá agradecer a el-rei, snr. sargento-mór
-disse o Barão de Bouro ao pedreiro. Zeferino
foi ajoelhar, querendo beijar as botas ao homem.
-Levante-se, atnigo -disse o príncipe-
Aqui tem a resposta da carta do tneu arnigo Cer-
veira Lobo. E' necessario que .ninguem veja este
sobrescripto. l~ome sentido, que ninguetn saiba
a quem esta carta é dirigida. Vá com Deus, e
estimarei vêl-o aqui, snr. sargento-1nór, com ou-
tra carta do meu honrado amigo, em quanto não
posso abraçai-o pessoalmente. Adeus.
A côrte sahiu em recuansos, dando-se mu-
tuos encontrões para não voltarem as costas á
magestade.
A creada appareceu então esfandegada para
pôr a meza, que estava a ceia prompta, e que o
frango com arroz não esperava- que era preciso
A P.R.\ZILEIR.\ DE PRAZINS

con1el-o logo que estava feito. Ficou para cear


o Nunes. Ceava· sempre com el-rei e com o
abbade.
O Zeferino, que tinha ali a egua e conhecia
o caminho, não quiz ir pernoitar a Santa l\'lar-
tha de Bouro. f-lavia luar e sabia um rancho de
ro1neiros para o Bom jesus do .\lonte. Partiu
em direcção a Braga, e ao outro dia de tarde
apeava no sonoro pateo da caza de Quadros por
onde entrara com a egua en1 grande estropeada,
com a cara escandecida n'uma congestão de
jubilo.
O Cerveira estava a dormir a sesta.
-Apanhou-a hoje d'aquella casta! Cotno
um cacho! -informou um cazeiro.- J1andou
apparelhar a poldra castanha do snr. Egas,
com os coldres das pistolas, escanchou-se na
sella, com a espada de sem bainhada, e desatou
a galope por de baixo das ramadas, a dar gritos:
« .•:\ vança, dragões! carrega, esquadrão!)) Eu es-
tava a v~r quando o levava a breca de encontro
a um esteio de pedra, que malhava abaixo da
burra como U!TI dez I ... Depois o snr. Egas e
1nais o snr. fleitor lá o apearam como pode-
ram, e foram-n'o pôr a dorn1ir. Arre diabo! lá
que um hon1em uma vez por outra apanhe um
pifão, vá; mas embebedar-se todos os dias,
é rnuito feio! E depois ninguem se entende
con1 elle. ~ledra com o suor dos- pobres. Cm
fona. Que vá para o diabo, que o carregue.
'fanto se tne dá como se n1e deu. Se me man-
dar embora, boas noutes. Não é capaz de per-
doar um alqueire de milho a utn cazeiro t l"em
vinte mil cruz?dos de renda, não gasta nem
cinco, andam os filhos a vender o matto e os
pinheiros, uma vergonha, porque elle, a dois
A RR.\liLElR.\ DE PR.\11~8

hon1ens gastadores. que ten1 an11gas. urna a


cada canto, dá cada n1ez vinte pintos para os
dois I O hornem deve ter muita somma de pe-
ças enterradas! Qualquer dia cae-lhe ahi em
casa o José Pequeno da L.ixa que lht: põe a
faca ao peito até eile pôr ali o dinheiro á vista.
l)iz que quer comprar mais terras, e aqui ha
dias offereceu seis contos pela quinta do L. . opes
de Requião. \leja você. T'em seis contos ao can-
to da gaYeta, e ainda não deu cinco réis que
são cinco réis á filha, á D. rrheresinha que ca-
sou com o estudante das Quintans. Anda por
lá de socas, sem n1eias, a fazer o serviço da ca-
sinha. E estão ahi as outras duas, que parecem
urnas fadistas, nas romarias, e~ quando Deus
quer, topa a gente de noute por esses quincho-
sos esses marotos dos engenheiros e empreitei-
-ros a saltarem paredes para se irem metter com
ellas na casa do palheiro. Uma vergonha, tnes-
tre Zeferino, a vergonha das Yergonhas I l~u
sou urn pobre; tnas raios me parta, que se eu
ti,·esse assim umas filhas ... ()lhe ... (batia com
o pé em cheio na relva) esma~ava-as como quetn
esborracha uma toupeira. Deus nos livre de
bebedos~ Deus nos livre de bebedos! \T ocê bem
sabe o que isso e, tnestre Zeferino, que pelos
modos lá por casa não tetn pouco que aturar a
seu pai que tambern as agarra muito profeitas I
Olhe voce como elle se tolheu quando foi, dia
de natal, dar fogo aos de S. ~l'hyrso! Aquillo
só com meio almude no bucho!
- Xão é tanto assim- atalhou o sargento-
mór de Lamellas.- :\:ão lhe digo que meu pai
não ti,·esse algum graieiro nH aza; mas o que
elle fez não era você capaz de o fazer, tio 1\·la-
noel.
~)0 A BRAZli.ElRA DE PR.\ZlNS

- Ah! isso não, bern o póde dizer, tnestrc


Zeferino. Nunca me emborrachei, aq,ui onde me
vê com cincoenta annos já feitos; mas, se algum
dia me etnborrachar, que ninguem está livre
d'isso, prego-me a dormir e não vou atirar-me
ao Ave em dezembro! ágora vou, se Deus qui-
zer. Vai-se pôr o alma do diabo a dar vivas ao
D. Miguel! Qual l\1iguel nem qual carapuça!
Se D. Miguel cá vier hade fazer tanto caso de
seu pai con1o eu d'aquella bosta que ali está.
O que elle devia era tratar de conservar os ter-
rões, e fazer como você q uc se pôz a trabalhar
e se fez pedreiro quando viu que os n1alhados
lhe tomaram conta das terras. E d'ahi? Você
hoje tem o seu par de 112el cruzados, ganhados
com o suor do seu rosto, e até já tne disseram
que você dava quinze centos ao de Prazins. para
lhe casar com a rapariga. E' assim ou não é?
-Isso acabou- respondeu com desdetn,
irritado.-t\gora não a queria nem que elle a
dotasse com tres contos; intenda você o que
lh'eu digo, tio Manoel, nem com seis contos!
Você não sabe quem eu sou, mas brevemente
o saberá. Pouco hade viver quem o não vir.
-Não sei quem você é? Ora essa ... Já
lhe disse que você é hometn capazorio, honra-
do ...
-Quero cá dizer outra coisa ... Você não
intende ... -l~ ouvindo abrir uma janclla -lá
está o fidalgo ... [)eixe-me lá ir.
E afastando-se do caseiro, ia dizendo com-
stgo:
-Que tal está o labroste! Um homem vem
de falia r com. el-rei, e topa com uma cavalga-
dura d'estas! Canalha ordinaria! ...
VIII

Q ANDO Zeferino entregou a carta com um


gesto soberbo da sua intervenção entre
o fidalgo e o rei, o Cerveira olhou para
o sobrescripto com estranheza, e disse que a
carta não era para elle; e lia : Ao conde de Qua-
dros, general do exercz"to real.- Isto que diabo é?
-E' isso mesmo, fidalgo; isso que ahi está
vi-o eu com estes olhos escrever el-rei o snr.
D. ~liguei, hontem á nou te, das nove para as
dez. O snr. conde é vossa excellencia mesmo,
e eu sou sargento-mór das Lamellas; lá ficou
o meu notne no livro e n1ais o de meu pai, que
foi despachado coronel por el-rei.
-O teu pai? f coronel!. ..
-E' como diz.
-Ora essa I... coronel! caramba! -disse
despeitado; parecia-lhe iniqua a promoção; mas
occorreram-lhe os velhos caprichos analogos
d"el-rei; as injustiças d'algumas patentes supe-
riores desde 1828 até á convenção. E abriu a
.\ RRAliLEIH.A DE PRA7Il'S

carta com moderado enthusiasmo. Parecia que


a sua rasão imtnergida, restaurada depois de
duas horas betn roncadas, de papo acima, queria
duvidar da authenticidade de um J). I\·liguel que
fazia sargento-mór um pedreiro, e coronel utn
reles alferes que passára das rnilicias de Barcel-
los para infanteria. Achava natural e plausível
em si as charlateiras de general e a corôa de
conde; mas as merces feitas aos dous ple-
beus ... Caramba!- Uma intermittencia de jui-
zo. Etnfim, abrira a carta e lêra para si cotn
uma custosa interpretação, ora aproximando,
ora distanciando o papel dos olhos.
l\ pouco e pouco, desavincou-se-lhe a fronte
carregada, illuminaratn-se-lhe os olhos, coava-
se-lhe no sangue o suave calor do convencimen-
to. L.ia coisas que lhe evidenciavam un1 snr.
D. ~liguei authcntico, o auctor da carta. Co-
nhecia-lhe a lettra. Lembrava-se muito bem;
era assim; e então a assignatura- Miguel,
Rei- era tal qual. Chegou a un1 certo pe_riodo.
que devia irnpressional-o mais pela mudança
subita que lhe transluziu no sctnblante. Depois
dobrou vagarosamente a carta.
O Zeferino esperava a confidencia do con-
theudo; mas o fidalgo, apesar da nobilitação do
sargento-mór continuava a considerai-o o pe-
dreiro que lhe fizera os canastros e reconstruíra
as paredes da casinha. Não estava assaz bebe-
do para confidencias.- Conta lá o que te acon-
teceu, Zeferino- e sentando-se, metteu o saca-
rolhas á botija de I lollanda.
O Zeferino contou tudo com muita particu-
laridade. Descreveu a figura do rei, as barbas
que mettiam respeito: pausava como elle os di-
zeres, dando ao braço direito, com a mão aberta,
A RRAZILEIRA DE PRAZI~S ·93

um movimt!nto cotnpassado. l{~petiu, peorados


na íórma, os elogios que o snr. O. ~liguei fize-
ra ao seu amigo Cerveira; que quando esta va
a escrever, perguntou se o conde de Quadros
tinha filhos.
O fidalgo sentia muita sêde. ~listurava de
meias a genebra com agua assucarada. E ao
passo que lhe sorria1n as alvoradas do seu mun-
do phantastico, e as trevas da rasão se destc-
ciam, crescia-lhe o interesse na narrativa do pe-
dreiro. Reperguntava pormenores já respondi-
dos. ~ão havia já no seu espirita passageira
sombra de duvida. Era o seu amigo D. l\liguel
quem estava em S. Gens de Calvos; e, s~ elle
fizera coronel o plebeu das Latnellas e sargen-
to-mór o pedreiro, foi decerto com a intenção
de o obsequiar a elle, para lhe mostrar com que
prazer recebera a sua carta.
-Sua magestade disse-me que estimava lá
vêr-me com outra carta do snr. conde, emq uan-
to não ia lá a braçal-o -esclareceu Zeferino.
-Tens de lá ir amanhã. Apparece cêdo.
- Prompto, senhor.
-~las, se vais para casa, passa pelos Pom-
baes e dit parte ao padre f{ocha que preciso fal-
lar-lhe hoje á noite ou amanhã cêdo.

O padre Rocha preferiu vir de manhã. antes


dos transportes civicos do tenente-coronel. [{e-
pugnava-lhe o ebrio e professava uma ~incera
cornpaixão pelo homem.
Pouco depois do sol nado, o capellão de D.
Andreza estava em Quadros com um grande in-
teresse. Queria salvar o visinho d'uma ratoeira
armada ao seu dinheiro, ou convencer-se de que
J\ BRA7.1J.EIRA HE PRAZIJI.S

realmente o principe proscripto estava no con-


celho da Povoa de Lanhoso.
Chegara um pouco tarde. O Cer"O"eira Lobo
ja tinha matado o bicho copiosamente, um bi-
cho muito antigo, invulneravel, que não se afo-
gava em pouca genebra.
-Não ha duvida, padre Rocha I Ca esta o
homem l-exclamou o fidalgo.
-l\1áo! -disse com sigo o padre, quando lhe
apanhou em cheio as inhalações alcoolicas do
bafo.- Então é certo, snr. tenente-coronel?
-Se me quer chamar o que eu sou, atnigo
padre Rocha, chame-me general e conde. Veja.
-Oh I sitn? muitos para bens, snr. conde,
muitos para bens I Quanto folgo 1- e lia o so-
brescripto.
- Póde abrir e leia alto.
-1\luito boa forma de lettra, sim senhor ...
~=' do proprio punho do snr. D. Miguel?
-Leia e verá. E' d'elle mesmo. Conheço a
assignatura muito bem. 'fal qual, sem tirar nem
pôr. Vai um copito ?-perguntava cotn a botija·
inclinada sobre o calice.
-Muito obrigado a v. ex. 8 • Tenho de dizer
a missa a snr.~ D. Andreza ás dez horas.
- L.eia la então. Olhe que o nosso homem
estudou. Explica-se muito soffrivelmente. Veja
o padre que espiga se eu lhe mando uma carta
cscripta p'ráhi a tôa, heim? Bem diz a Nação que
elle andava a estudar lá por fora.
-.Se d~ lic~nça, _leio- interrompeu o padre
com 1mpactenc1a cunosa.
-Vá la! - e puxou a cadeira e a botija para
junto do capellão.

Velho, honrado e leal amz"go, Vasco da Cer-


A BRAZILEIRA DE PRAZI::'o'S

rcz"ra Lobo, conde de Quadros e general dos nzeus


exercitas. Eu El-Rei vos enl'io n1uito saudar. Não
podeis imaginar o grande prazer que sentz" quan-
do ouvi o vosso nome e o li escr1:pto no final da
Possa ma1:s que todas preciosissima carta.
- ~leim ?-interrompeu o Cerveira.
-1Vluito bem-e proseguiu lendo:
lrluit.1s 1 ezes me lenzbrou no desten·o de on.:e
1

..1nnos o vosso no1ne, porque não podia esquecer o


de unz a1nigo que tão de perto conheci c tanto me
..lcompanhou nas alegrias dL1 nzinha mocidade.
-Eu não lhe disse, padre, que o rei e mais
eu tinhamos feito pandegas rasgadas quando
eramos rapazes?
-Sim, snr., v. ex. 3 tinha-m' o dito.
_ -Ora ahi tem, eu nunca minto. Ah I que
bambochatas 1-e recordava-se com os olhos
n'um spasmo entre a saudade e as iniciativas da
borracheira.
-Continuo, se v. ex.n permitte.
-Ande lá ... Quem te viu e quem te vê,
Cerveira Lobo! -disse com tristeza, muito aba-
tido. Padre Rocha encarava-o com piedade,
sentia ancias de a braçal-o, e dizer-lhe: <<Rege-
nere-se I»
-.Ande lá. Leia. que o melhor está p'ra baixo.
Logo que cheguez" a Portugal ch:zmado por
amigos de primeira o1·denz e fui pa1·a aqui envz·a-
do, perguntei se ainda ereis vivo. Alegraranz-me
com a resposta; mas delicad..1mente nze obrigara1n
a não escre1'er a alguem, emquanto o triunzpho
infallivel da nzinha justiça dependesse de ce1·tas
negociações pendentes entre as naçôes da Europa
e o meu m·inistro e1n Ingl:~terra, -o Ribeiro s~,raiva
..)() A IlB .\ZILElRA DE PRA/.Il'S

que 11Hl'ito betn d.-:peis conhecer de 120111e. Tendo eu


sido riolentanze~ztc ~.1ccusado pelos nzeus proprios
anz(~·os de ter s:rcrijicado os nzeus ·direitos aos
nzeu s cap1 ichos. subnzetti-1ne ás deliberações da
Junta de Lisboa c por isso 1•os não escrevi para
·vos abraçar e clz ..un ..-zr p.1r..1 nzcu lado.
O Cerveira começou a soluçar co1n a cara
coberta de lagrimas que destacavam no rubor
da epiderme.
-Então que é isso? São lagrimas de ale-
gria?- perguntou o padre.- Se são, deixe-as
correr.
-Qual alegria! estou velho ... já não pos-
so fazer nada a favor d'el-rei ... Este pulso ...
- e retezava o braço. O padre assustava-se.-
Ora leia para baixo, que está ahi uma· passagem
1nuito bonita.
Nunca 1ne "esqueceu nenz jd nzais esquecerá
que ereis o tenente coronel dos nzeus queridos
drazões de Chaves; que fostes 1•ós o conznzandan-
te da carga solenzne que so({re1·a1n as tropas li-
bcraes enz u1na das fH·inzeú·as sortidas do Porto;
c que fostes traiçoeiranzente arrastado pelo infa-
me general l/rbano qua11do co1n outro in_fanze,
o co.ronel ~4lbuquerque, fi::eranz acabar deshon-
Tosamenle na Chamusca os ultinzos esquadrões do
Cf\eginzento de Cha7Jes. iA1as ·vós, honrado Cer-
l'cÍra, ficastes z'lleso da ignonzinia {Zeral, porque
1·egeitastes o pe1·dão e dissestes que ereis unz prz·-
sioneiro de guerra, e aceitaveis as consequencias
da vossa posição.
-Foi assim! -exclamou o Cerveira erguen-
do-se de salto. O Saldanha era meu capitão
quando cu era cadete; conhecia-1ne. 1\landou-
.\ nn.\ZILEIR.\ I>~: l'lL\Zl~~
e,-
• I

tnc charnar á sua presença; q uc me fizesse li-


beral. c n1e entregavam a minha espada: e eu
(batia duramente no peito co1n as 1nàos atnbas)
eu, padre, eu, aqui onde me v~, disse-lhe que
levasse o diabo a espada para as profundas dos
infernos; que a 1ninha espada tinha-m'a dado o
snr. D . .\liguei 1 e que elle n1e daria outra,
quando fosse precisa. Ficararn estarrecidos~ e
o patife do Saldanha, que tinha sido un1 rea-
lista de todos os diabos, quando era o gajo da
Isabel ~\laria, charnou-me estupido. E eu, ''ai
n à o va i , estive a rn a n da 1- o . . . '
Disse o resto. O padre riu-se, e pediu-lhe
li~cnça para continuar a leitura, porque se che-
gava a hora de ir dizer a missa.
-1\nde lá.
·JJesgr:zçada1nente o vosso lzeroisnzo e anzor d
nzinlz ..1 causa le;:itilna 111.io foi 1nuz"to inzit,:zdo. é"'u
perdi a corôa, 111w1S a perda 1naior foi a de a1ni-
~~o~ co1no ·vós, be11z poucos, 1n.:ts que ralenz unz
rezno.
-'l'orne a lêr esse bocado que é cousa mui-
to profunda, 6 padre Rocha.
l·. . ez-se-lhe a vontade. O Rocha tan1bem ad-
mira,·a, e de si comsigo dizia que o rei tinha
bon1 palavriado sentirnental, ou que o irnpostor
não era qualquer pedaço de asno. Continuou:
\./ou responder co1n repug·n.lncia e tristeza ás
ulti1n ..1s linlz ..-zs d.:1 vossa c~.1rla enz que 1ne offere-
ceis Liberahnenle recursos. Eu vivo lz .1 doze an-
nos dos beneficias dos nzeus vassalos: seria lou-
cur ..1 fin.~ ir que _n:io preciso que nz' os preslenz ho-
je. c 1 denzora que ten1 lz.1-vido no 1neu appareci-
n1enio .:lOS 1neus anziaos e p.utid ..1rios não 111'a
~

'i
A RR.\ZlLElR.\ DE PR.\Zl:'liS

explic1n1 ~ nzas supponho que é f.:tlta de dinheiro.


Sei que 1ninh:z innâ, a senhor~-z infanta f). Is ..l-
bel fAf~..1ria, deu cincoent~,1 contos p.11·a· co1neçar o
11l0i.'Íinento, e esse dinheiro est.i enz poder de u1n
~,/outor Candido Rodrigues . A.lvares de Figuei-
redo e Liln ..1, lente de Coúnbr~..1. 1.'f..1s o que sio
cincoent~..1 contos p .1ra
. sustentar ll112.:l insurreição
e1n que lz.:tde lzarer necessz"dade de sustentar, de
t_·estir e de arniar ce1n nzil honzens! Vós, Jllell
lzonr ..1do ..1migo que sois 1nilit~..1r, conzprelzendeis
. Jue
. n~d.l se tóde {a:;_er senz que os poderosos, os
opulentos, cooperenz co1n .1 nzinh ..1 bo.:t nzana ...1 •
senhor ..1 L). Isabel fJv/~,1ria.
-Dizenz-nze que tenho amigos muito ricos que
/zJo de app.:~,recer a tenzfJo ~· 112~.1s eu necessito de
pref>.lrar ..1 occasiio enz que elles pron1etlenz ap-
Pw1recer. vl' prinzeira voz tenho ..-z certez:z de lc-
1' ..112l...1r 12:ooo homens n'unz pequeno circulo de
legu ..1s; nzas nio nze atre·vo a {..1:-el-n, a lentai-o,
se1n nze ·vêr bastante provido de recursos, par ..l
nio recear o peor ç{os inimi![os que é a necessi-
d~1de. Por tanto •nuito anzado conde, nzeu valo-
roso .r:eneral, acceito o vosso cnzprestÍino; e to-
nz ..1rei d~,1 vossa fortuna lrez contos de reis que
t'OS reconzpensarei co1n o 1nenos, que é o dinheiro~
e conz o nzais, que é a nzinh ..-z eterna gr .1Lidão. .
Deus 1Vosso Senhor vos tenh:t e1n sua s ..1nt ..1
gtt..1rda. De S. Gens de Calvos aos 12 de n11.1Ío
ae 18.15·
Jligucl, I~cy.

l~sta
carta não confirmou nem removeu as
suspeitas do padre l~ocha. Quando o Cerveira
lhe perguntou:- que tal? o que dizia elle ?-
dobrava a cárta vagarosamente, encolhia os
h ombros e respondia:- f~tn fin1 ... não sei ...
.\ Y.R.-\I.ILElR.\ DE PRAZI:\S

- Xão sabe o quC: ~ L.á que eu lhe levo o di-


nheiro, isso levo. Podéra não! ·rudo o que eu
tiver até a camisa do corpo. Ou se é amigo ou
não se e amigo, heim ~ Que diz a isto! padre?
-Se quem escreveu esta carta é o snr. D .
.\liguei, faz \T. exc.n o que deve porqut faz o que
póde; mas seria bon1 ter a certeza ...
-De que e o rei que me escreve?
-Sim ... a prudencia ... I la muito maroto
por esse mundo.
-O padre está então a ler! Cuida que eu
lhe dava o meu dinheiro sem o vêr? Heide vêl-o
con1 estes, e ouvil-o fallar prirneiro. ~las dei-
xe-se d'asneiras, padre Rocha! E' tão certo Deus
estar no céo como elle estar em Calvos.
- Betn!- atalhou o Rocha apressado. er-
guendo-se-quando vae v. exc.a a Calvos?
- floje é terça-feira; a roupa chega de Braga
na sexta, e parto no sabbado. Ora agora, vou
lá mandar o Zeferino a dizer-lhe que vou bei-
jar-lhe a mão e levar-lhe os tres contos. Se faz
favor, escreva-me ahi duas linhas, só duas li-
nhas. a dizer isto.
O padre escreveu, e sahiu rnuito preoccupa-
do. Celebrou a missa a O. Andreza, e pediu-lhe
licença para se ausentar por tres dias. Relatou
ú fidalga as suas desconfianças, o dever que se
itnpunha de sah·ar o pobre idiota de alguma ci-
lada á sua i1nbecilidade, e talvez de u n1 roubo
ú mão armada.
-.\las quem sabe se é na verdade o D ..\li-
guei que lhe pede o dinheiro?- reflectia D. An-
dreza, discreta e sensibilisada.
- J~' o q uc eu \-ou saber.
IX

.N ,_\f{t;E~LE te~po, (1845) no Porto, rua ~e


~- Sebastião n .0 1, morava o padre Lu1z
· de Sousa Couto, paleographo da Jliseri-
cot~dia. Representava sessenta e tantos annos,
uma nutrição doentia, pesado, com os pés tur-
gidos da gota, cheios de nodosidades. Era jo-
vial. ~rinha um sorriso lhano, conversava tnoro-
samcnte pausado com admiravel correcção; dei-
xava-se interromper sem impaciencias e não in-
terrompia nunca os desatinos, tnassadas, e até
as tolices de quen1 quer que fosse. E ouvia mui-
tas. Este padre obscurecido na sua paleographia
que lhe dava oito tostões por dia, n'aq uella as-
querosa alfurja chamada rua de S. Sebastião,
com o aljube á esquerda e as itn~nundicies da
Pena \ 7entosa á direita, era o impulsor, a alma,
o cercbro do gigante miguelista nas provincias
do norte. A junta de J.Jisboa consultava-o. Ri-
beiro Saraiva enviava-lhe de Londres os elemen-
tos para os seus calculos, pedia-lhe conselhos; e
D. ·'liguei escrevia-lhe freq uentemt:nte. Dizia-se
102 _\ P.n.\Zli.ElR.\ DE PIL\ZI=':-'

que o principe proscripto o elegêra bispo ou pa-


triarcha de l.Jisbqa- não n1e recordo qual era a
mitra.
A sua. presença veneravel in1punha sen1 arti--
ficio; uma grande bondade obsequiadora; não
proferia palavra offensiva dos seus adversa rios
politicas~ não acceitava donativos dos seus cor-
religionarios; vivia com severa parcimonia dos
seus Soo réis haYidos da Santa Casa, e morre-
ria de penuria antes de pedir ao governo liberal
a paga dos seus lavores illustrados, correctissi-
mos de interprete de velhos e q uasi indecifraveis
codices. 1
Ao entardecer do dia I 5 de tnaio de 1845 o
padre L.uiz de Sousa escrevia a sua correspon-
dencia para L.ondres. Annunciou-se o padre
Bernardo l{ocha, perguntando a hora tnenos
occupada para poder dar duas palavras ao reve-
rendo dono da casa. Foi logo recebido.
-Que todas as horas eram livres para rece-
ber os amigos.
Padre l{ocha principiou allegando que os
seus sentitnentos politicas eráin betn conheci-
dos; que cumpria sempre as ordens que recebia
do centro realista, e que facilmente daria o so-
cego da sua vida en1 sacrificio das suas con-

1 O auctor teve rclacões muito saudosas com este ve-


nerando sacerdote, que e~1 r ~51 residia n~um antigo casa-
rão da rua de St. Antonio, que depois se tran~formou cm
casa de banhos. Por esse tempo, se congregavam ali os ho-
mens eminentes, por intelligencia c haveres, do partido rea-
lista. N'estc anno, padre Luiz de Sousa passava os seus
dias rodeado de pergaminhos, immobilisado cm uma pol-
trona, gemendo as· dôres da gota . .1\lorrcu muito pohrc c
muito desamparado.
A RIUZlLEIR.\ DE PRAZI~S

vicções. Que se julgava com direito a fazer urna


pergunta e a exigir que lhe respondessem a
verdade.
-Sr.! a pergunta for feita a n1irn, não pode-
rei respondt!r d'outra maneira. Que quer saber,
padre l~ocha ~
-Se o snr. D. ~\liguei está em Portugal.
- Xão, snr. f-Ia Is dias esta\·a em Italia.-
E, abrindo utna gaveta, extrahiu de uma pasta
tnuito ordinaria de carneira surrada con1 atilhos
um papel que n1ostrou. - ..--\qui está uma carta
assignada pelo snr. D. L\liguel de Bragança~
datada no 1. 0 de maio. Quanto a isto, está sa-
tisfeito. Que mais quer saber?
- .\lais nada. Agora corre-tne o dever de
justificar a pergunta.
-l3em sei -preveniu o padre Luiz.- Essa
rnesma pcrgun ta me fez ha dias o Bezerra de
l3árritnao, seu visinho, e tnais de um cavalheiro
de Draga. o Barata, o 1\lanoel de .\lagalhàes,
.
etc. Diz-se por lá que o snr. D. ~liguei está no
.Alto ~linho, no concelho da Povoa de Lanhoso.
Propalam-o certos padres, não sei com que al-
cance. A estupidez tetn intui tos i tnpenetraveis.
Xão percebo para que fim espalham tão absur-
do boato, se não é para alarmar o governo ou
logra r incautos ...
-E' isso mesmo: lograr incautos- inter-
rompeu o Rocha e contou o que se estava pas-
sando com o tenente-coronel de Quadros, a
carta do supposto D . .\liguei e o emprestimo
dos trez contos! que o fidalgo tencionava levar
no proximo sabbado ao in1postor.
-Seria bom evitar a perda ao tenente-co-
ronel c o opprobrio ao partido legitin1ista- ai-
vitro u o paleogra p h o.
A RRA/.ILEIRA DE PRAZI~~

-Eu não o podia fazer sen1 a certeza de não


praticar algutna imprudcncia. Para isso vin1 con-
sultar o reverendo L.. uiz de Sousa, e d'aqui irei
para Braga intender-me cotn o governador civil.
-·Faz betn. ~ão lh'o aconselharia, se po-
dessen1os dar remedio mais suave á doença
d'essc tniseravel impostor, de quem eu sei tnais
algumas traf-icancias. Constou-me ha poucas
horas, que tunas beatas de Braga, abastadas, e
de a p p e li ido Do t c 1h as, tinha n1 enviado u ma i 1n-
portante quantia, por intermedio 'de um certo
abbacle. a un1 D ..\liguei que esta escondido em
Portugal. l~u podia dar aviso d'esta ladroeira;
mas tenho con1paixão do abbacle: não sei se ellt
é ladrão ou tolo. A segunda hypothese é que o
salva de ser processado. Portanto, amigo padre
l~ocha. faz um bon1 serviço á humanidade e ao
partido. solicitando o castigo d'esse ho1ncn1 que
conspurca o norne d'el-rci e a honra do partido .
.. \gora. visto que veio, vou dizer-lhe o que ha ..
Sarai,·a trata de contrahir utn en1prestimo e de
·negociar generaes que infelizmente precisan1os.
O Povoas está decrepito e q uasi morto para a
nossa fé desde Souto l<.edondo. As patentes su-
periores, pela 1naior parte, estão etn pessoas que
regulatn pela intelligencia do seu amigo tenente-
cor0nel de Quadros. ·Ha por ahi outros que
aprenderam a tatica da covardia desde o cêrco
do Porto . .:\1al podemos contar com elles, quan-
do os vêtnos intervir nas facções dos liberaes a
fim de abrirem brecha na mesa do orçatnento
com as espadas postas em almoeda. No anno
proximo futuro, o partido legitimista deve dar
signaes de vida_; se esses signaes hão de ser
como os do cadaver galvanisado que se convul-
siona "e recahe na sua podridão, isso não sei._ O
.\ nn_\/.lLEIR.\ DE PR .\ZI:-.;s

snr. D. J.\liguel tem de vir a l.Jondres; e quando


lhe constar, padre Rocha, que el-rei está em In-
glaterra, prepare-se com a sua energia para nos
dar o muito que esperamos da sua influencia e
do seu aff~cto á legitirnidade. E adeus q uc sahe
depois d'amanhã de Lisboa o paquete: estou
escrevendo ao nosso l{ibeiro Sarai va.

O secretario geral governador ci\·il interino


de Braga na ausencia do conselheiro João Elias,
-uma victima burlesca de troça dos seten1bris-
tas -era o .\\arques .\lurta, uma gigantesca acti-
vidade phrehetica n'um corpo 1nediano, fino,
acepilhadu aristocraticamente, com a bossa da
perspicacia politica muito saliente. De resto, ser-
viçal, agradavel, corn uns requintes de delica-
- deza de bom tom.
- O padre Rocha procurou-o no seu gabinete
e contou-lhe os casos succedidos e a necessida-
de de não deferir a prisão do impostor até além
do dia seguinte, porque no sabbado sahia de
("!uadros o Cerveira Lobo com os trez contos.
-·ralvez fosse mais curial e exen1plar pren-
dei-o depois~ e entrar com os trez contos no co-
fre do districto, visto que o Cerveira os quer
applicar ás necessidades da monarchia;- opi-
nou o secretario sorridente.
O padre não percebeu a ironia, e entendeu
que de qualquer dos n1odos já não podia obviar
que o seu amigo fosse roubado, ou em nome de
}) . .\liguei 1. ou de D ..\\aria 2.a
0

-\Tá descansado- emendou a authoridadc


com o seu sorriso intelligente, habitual.- Se o
homern estiver em Calvos, ámanhã a esta hora
hade estar na cadeia de l3raga.
iOô .\ BIL\ZII.EIH .\ llE PR.\ZI~:.-

Pela meia noute d'este dia sahiu do quartel


do Populo. uma escolta de in fanteria 8 que che-
gou a S. Gens ao apontar da tnanhã. 'Era guia-
da por urn pratico sabedor das avenidas da re-
sidencia abbacial, utn socio convertido e apro-
veitado da quadrilha de ladrões que devastára
o concelho da Povoa en1 34, e saboreava agora
na policia secreta uma qualquer prebenda ho-
nestamente ganha. Elle dispôz a soldadesca á
volta da casa~ debaixo das janellas, rente ao
rnuro do passai, e mostrou ao sargento a porta
de carro. H.ompia a aurora quando a passarada
do arvoredo se esvoaçou piando, alvorotada pelo
estrondo das cronhadas á porta principal, e üns
berros fonnida veis :
-Abra I abra I se não vai dentro a porta!
O abbade saltou da catna, espreitou por u1na
fresta das portadas, e viu um cordão de solda-
dos, a olharem para as janellas, e cotn as bayo-
netas nas espingardas. Correu descalço para a
sala contigua á alcôva do hospede, c encontrou-o
no meio da quadra~ ern fralda, a enfiar as cal-
ças, q uasi ás escuras, com a respiração anciada.
-Que é ?- regougou o homem n'utna es-
trangulação de susto, muito offegante.
-rrropa, senhor, tropa! Fuja depressa, que
eu vou esconder vossa magestade na adega an-
tes que arrombem a porta.
As cronhadas e as intin1ações ameaçadoras
repetia1n-se. I.; rna algazarra de inferno. Vozes
roucas pediam machados e ferros do monte. A
Senhorinha, muito esganiçada, espectorava agu-
dos ais na cozinha; não acertava a infiar o saio-
to pelo direito. Os cães de Castro-L.aboreiro,
1nuito ferozes, arremettiam ás portas com a den-
tuça refilada. Porcos grunhiam dando bufidos
A BR.\ZILEIRA DE PR.\.ZI:--;~ lO&

espavoridos. l\ 1noça dos recados chamava a sua


)lãe Santissima e a alma da tia l:tcinlra do Rei-
nzundles que estava inteira na igreja. Dous cria-
dos da lavoura, estranhos ao segredo do real
hospede, como estavam recrutados, cuidaram
que a tropa os vinha prender; enterraram-se
nos fenos do palheiro. promettendo esmolas de
quartinho ao Botn Jesus· do ~lnnte e ao 11l:l1-L)·le
Swio Troc..1lles~ se os livrassem d'aquella. Entre-
tanto, o outro de chinellos de· tapête, guiado
pela mão do abbade até á cozinha, passou d~a­
qui para a adega que a creada abriu com muita
subtileza. Ilavia lá dentro um recanto encoberto
por duas pipas vasias, postas ao alto; pela con-
vexidade das aduellas c entre as pipas e a pare-
de, abria-se um vacuo onde cabia á vontade um
homem. O abbade muito afflicto:
-Suba depressa vossa rnagestade que cu
ajudo por cima das pipas e deixe-se escorregar
p'r'ú lado de lá. Coza-se betn com a parede; se
vierem revistar, não se bula, não se bula, se-
nhor!
O homem ficou em cega escuridade. Quando
resvalava com as costas pela parede, as teias d'a-
ranha despegavam-se dos vigamentos de que pen-
diam, enrodilhavam-se-lhe viscosas ao nariz e
aos beiços. f~lle sacudia-as, cuspinhava cotn
nojo, queria acocorar-se, mas não cabia. Ouvia
rôjos de ratazanas por debaixo das pipas, e lá
fóra o rodar das portas que se escancaravam com
estridor.
Em cima, o sargento e trez soldados entra-
ram e examinaram vagarosamente os quartos e
recantos.
-- Snr. abbade, ponha p'r'áqui o rei, disse o
sargento, um farçola, o Pilula do 8,- queremos
lO~ _o\ BRAZILEIRA DE Pll.-\Zl:\S

c rei e algumas botijas de genebra. A garrafeira


da casa real deve ser coisa muito rica! \Tenha
primeiro o snr. O. _\liguei que lhe quéremos fa-
zer uma saude. ·
-,0 snr. está a mangar! -disse o abbade
afinando pelo t0n1 da chalaça.-- (;enebra, se a
querem, dou-lh'a; n1as a respeito de rei~ só lhe
posso dar o de copas, que tenho ali utn.
-Pois sim, traga o rei de copas, e não será
n1áu q~1e ponha en1 guarda tambetn o az domes-
tno na1pe.
-Dá-se-lhe já duas biqueiras n'este padreca,
<') n1eu sargento!- propoz o 2-l·
- Deixa vêr se a coisa se arranja setn biquei-
ras. Ande lá~ snr. abbadc, vatnos á genebra, á
adega ..\1exa-se.
- t\ genebra está cá en1 cima- observou o
abbadc um pouco enfiado.
-- .\lande-a ir p'r'a baixo, que é tnais fresco.
_\\~xa-se, n1êxa-se que temos pressa. Abra a
porta da adega.
- Sin1~ snr., abro tudo o que vocetnecê qui-
zer- resoluto, corn um ar iro nico de condescen-
dencia, setn rcc~io.- Os senhores te ln coisas!
Onde diabo procuratn o snr. D . .\liguei!-· E
descia, pedindo a chave á Senhorinha.
I\ creada den1orava-sc a procurai-a, a fingir;
e o sargento:
-Se se demora, ó santinha, vai dentro a
porta! O' 24, vai buscar utn machado que eu ali
vi na casinha. Salta un1 machado I
-~ão é preciso, camarada-acudiu o ab-
bade.- Aqui está a chave. Eu abro. Entrem,
procurem á vontade.
O sargento parou á porta a familiarisar-se
com a escassa luz da adega:- O' padre! isto
A RR.\ZILJo:IR.\ DF. PP..\71~~ 10~)

aqui é que é a sala do throno: ou é o subter-


raneo da inquisição? .\lande lá accender uma
candeia. se não ten1 u n1 archote.
-o· mulher, traz d"ahi urna placa accesa-
disse o abbade .\\arcos, contrafazendo o seu
terror.
E o homem. lá dentro atraz das pipas, tiri-
tava cotno 1-Ieliogabalo na latrina, seu derradeiro
refugio.
r\ Senhorinha entrou adiante com a placa,
um luzeiro tnortiço de cebo com morrão que pa·
recia condensar n1ais as trevas da lobrega ca-
verna.
-Arranja ahi um fachogueiro de palha, ó
Lt! Que raio de placa \"OCê Ca traz, mulher f
-1~' emquanto não péga bem a torcida-
explicou a creada catninhando atraz do padre
para o lado opposto ao esconderijo. Co1n efTei-
to, a claridade difunàia·se~ mas tão de "'agar
que ninguetn diria a velocidade que os natura-
listas marcam a um raio de luz. Os soldados ba-
tianl com os nós dos dedos nos tatnpos das pi-
pas que toavan1 o som abafado de cheias.
E o 1 -t: -6 meu sargento, o tanso do ab-
bade casca-lhe rijo no verdasco! Estão chei-
inhas! E apontando para as duas pipas vasias
do canto, o sargento perguntava se o vinho d'a-
quellas já lhe tinha cahido na sachristia- e dava
piparotes na barriga do padre.
O abbade tinha uns sorrisos pallidos, con1-
promettedores como uma denuncia. O 24 escu-
tava e dizia que a tnodos que ou\·ira m~xer coisa
a traz d as p1. pas .'
-·IIade ser ratos- conjecturou o abbade,
tren1 ulo, engasgado.
110 A BH.\ZILElR.\ DE PHAZI~S

-Palpa com a bayoneta por traz das pipas,


6 l-disse o sargento .
2--f
..-\ssim que o aço da bayoneta raspou na pa-
rede a Sen horín ha começou a dar gritos, sen-
tou-se a espernear, e perdeu os sentidos.
-Que diabo tem a velha?!-perguntou o
Pilula.- Dão-lhe estupores, heim?
-E' flato, costuma-lhe a dar- elucidou o
abbade.- O 24 voltára-se a vêr a velha escabu-
_jar, e retirára a bayoneta de traz das pipas. O
abbade teve un1 momento de esperança, cuidan-
do que o exame estava feito:
-·rem visto, snr. sargento? Aqui não ha
nada. Os senhores vieram enganados a minha
caza.- E ca1ninhou para a porta com a luz.
- J~spere ahi, seu padre! Anda-me com a
bayoneta 24. Escarafu ncha-tne esses ratos.
O outro soldado entrou no tnesmo exame;
e, apenas as bayonetas resvalaram por corpo
que lhes abafava os tinidos metalicos das pon-
tuadas, ouviu-se un1 grande estrupido de coisa
que trepava pelas pipas. E n'isto appareceu uma
cabeça ~om enormes barbas sobre um das tam-
pos.
-Oh!- bradou o Pilula!- muito bem ap-
parecido n'esta funcção, snr. D. ~1iguel 1 I Suba
p'ra cin1a d'esse throno e dê lá de cima um bo-
cado de cavaco ás tropas ! !\las o melhor é des-
cer cá p'ra baixo, real senhor l
O 24, muito espantado, a olhar para a ca-
beça do homern:
-Parece o padre eterno, ó meu sargento I
-Com quem ellc se parece é com o Renze-
xido do 1\lgarvc,- affirmava o I.J.
-Desça d'ahi que ninguem lhe faz mal, ho-
mem. l~stá prezo á ordem do governador civil
·"- TIR.\ZILEUL\ DE PR.\Zl~~ tll

-concluiu o sargento con1 scricdad~ impotH:ntc.


-l~ste senhor~ ... não ... -disse o abbade
com as 1nãos postas. 1
- Xão seja asno!-- volveu o sargento. Este
homem não e D..\liguei. E' um faiantç que o
está aqui a comer a vocc e rnais dOS patólas da
.;ua laia. \rá-lhe buscar a roupa~ senão clle entra
na escolta em mangas de can1isa.
-Dê licença que este senhor se vá vestir ao
seu quarto-supplicou o abbade.
-Sim, que se arranje com ~uardas à vis-
ta.- E acompanhou-os á saleta.
Quando envergava o casaco de panno piloto,
o abbade disse-lhe, com um gesto, que o di-
nheiro das Botelhas de l~raga ia nas algibeiras
do paletó.
O sargento perguntou que papelada era
·aquella que estava sobre a meza. Leu a prirnei-
ra folha e desatou a rir e a dizer ao barbaças:
-Olha que grande pandego voe~ é I \'oce
como se chama, ó seu coisa? 1~ leu alto:
Rol das 1nercJs que szt.1 112..,1gestadc o snr. [).
Jliguel I {e{ enz Portug.:tl e que se descret•cnz
n 'este lil,1·o de .:tponl..vnenlos provisori. vnen
. te.
E na primeira pagina :
i.1!.1rcos . . ~ntonio de Fari:z E~ebello . .:zbb . 1de
. de
.S. Gens de Calvos, c .1pelLio-11u1r
. de .el-rei e D.
Prior de Guinzaries. I~ perguntava ao abba-
de: -l~ste ratão d~este dom prior é voce, heim ~
Para bens!

1 São as textuaes palavras c a attitude do padre, si-


gnificativas da crença intranhada na realeza do prezo, e da
sua paixão n·aquelle lance. Part:ce que intentava mover á
piedade a escolta, increpando-a pda profanação de pôr mãos
no rei legitimo. (lnfonn . lç..io de Ferreir.1 de .\nd1·ade}.
112 A BR \llLEIR.\ DE PlL\ZI::\S

Em seguida:
Torqu.:zto Nu?zcs Eli. Js. 1•isconde de S. (;ens,
,f<}ecrcl..JTio prh•ado d'el- rei.
- Nunes! recordava o Pílula.- l~u
Torqu.::tlo
pareçe-rne que conheço este diabo de o vêr cm
11raga no C.:ljé da ;\çucena na Cruz ele Pedra.
_\runes! um pelintra. Onde está o viscoGde que
lhe queria dar un1·cigarro? l~tnf1m cá levo a pa-
pelada para Br-aga- e enrolava os papeis. L"\
gente precisa coo hecer os titulares novos para
os respeitar e acatar, amigo D. Prior de Gui-
marães.
Quando a escolta ~c formou fóra do portão
e o prezo entrou ao centro, corn a fronte ma-
gestosa abatida e os braços cruzados, levantou-
se na residencia um choro como á sahida de
u n1 defunto In ui to querido. l~ram a cosinheira
e a outra creada, n'um arrancar de soluços, cn1
quanto o abbade afogava os gemidos com o
rosto apanhado nas Inãos. O povo da aldeia,
com utn grande terror da tropa, espreitava de
longe por entre as arvores e de traz elas paredes.
O ·rorquato Nunes Elias, acordado pela mu-
lher que recebera a nova ela prisão, saltára da
cama, e correra á residencia, perguntando ao
abbade se cl-rei tinha levado as peças das }~o­
telhas de Draga.
-Que sim, que levára; podéra não levar!
-Pois então, abbade, empreste- me a h i rneia
1noeda, que eu vou disfarçado a I-~raga vêr o
que se passa. l~stou sem vintem.
- \' eja lá se o prendem, visconde- acaute-
lou o a bbade.
-O tneu dever é seguir a sorte de cl-rei!
Onde elle morrer, 1norro cu!
XI I

CERYEtR.\ Lobo sahira_, com o Zef~ri:!o~


O para Braga na sexta-fetra de manhã. l·.. s-
tariam aqui até á madrugada de sabba-
do, e partiriam então para a Po\·oa de Lanhoso
con1 os trez contos de ré is repartidos c1n li br ..1s
p eIas a Igi beiras dos do is. A Lé1n d ·um c r i ado d ~
velha li bré. a vi \·ada de azul, de botas de prate-
leira e chapeu de solla, leva \·am bacarnartes nos
arçõcs dos scllotes, todos trez. Foram descançar
e jantar á hospedaria dos Dous :Z11lz".f50S. o c~r-­
veira vestia casaca no trinque muito lustrosa. e
gravata de cambraia com laço: o peitilho posti-
ço atado ao p~scoço sahia muito rijo de go1n 1na
r~les d'entre as lapellas derrubadas do collete
de velludo pr~to. ..-\ calça de prégas, a Lnpla, á
cavallaria, afunila\·a-se no artelho, quebrando no
peito do pé. As botas de polin1ento no\·as r a n-
giatn e as esporas amarcllas no tacão, con1 gran-
d~s rosetas, tilintavam n~um estardalhaço de ca-
zerna. Comprára chapeu de pasta con1 tnolas
que faziam saltar a copa, e enchiarn con1o un1a
b~xiga, que parecia p;r,nlonzinice d~1s conzedl._1s,
diz i a o Zeferino .
s
114 A BRAZILEIRA DE PRAZI?IiS

A's quatro horas o fidalgo de Quadros e n1ais


o pedreiro sentaram-se á n1eza redonda. Já cons-
tava en1 Braga que estava alli o Cerveira Lr,bo
que desde 1835 não sahira da casa solar de \\~r­
nluim. Alguns primos visitaratn-o; as fan1ilias
legitimistas e principalmente senhoras \·elhas
tnandavam-lhe bilhetes.
Dizia ao Zeferino que o encommodavarn tan-
tas etiquetas. que estava morto por se safar. não
estava para lerias; que as taes senhoras Sotto-
n1ayores e as Peixotas e as ~Vlenezes devia rn ~ . .·r
n1ais velhas que a Sé, uns estafermo~. l~lle ~c­
grcdava ao ouvido do Zeferino coisas. ratices
suas cm Draga, quando era rapaz.- Que fiz~.:ra
un1 destrôço nas primas. tudo pelo pó do gat11.
Que pagára bem o seu tributo á asneira; c Cd~­
quinava com vaidade paparrêta. carregando-lhe
a mão no verde. Quando entravam pelo ass;tdc).
chegou um tenente do 8 a contar a um atTIÍf!'O,
que estava á rneza, que chegara n'aquellc l11b-
Jnento prezo ao g·overno civil, vindo da Pov(ia
d·~ Lanhoso. um marôto que dizia ser ·D ..\li-
guei, c ouvira dizer a um realista que o vira ern
H.oma, havia trez annos, que se parecia bastant~
con1 elle.
O Cerveira erguera-se n'um grande espanto
i ndiscrcto a olhar para o official que o fixa \·a
crJm uma curiosidade ironica. Convergira n1 to-
dos os olhares para o homem das. barbas re..;.-
p~itaveis. Quedou-se momentos n'aquelle ~pas·
1no . n'um tremulo, e perguntou:
--E é com efTeito o snr. D. ;\1,iguel cs~e h o--:
:nl!rn que chegou prezo?
-. l~llc diz que é- respondeu o tenente.--
''!..!remos o que se averigua no governo ci\·il
-~a falta do verdadeiro O. Sebastião, appa-
.~ BRAZILEIRA DE PR \ZINS Hã

receram trez falsos- disse en1phaticamcnte un1


professor de latim, com um sorriso pedante. O
Cerveira olhou-o de esconso~· e sahiu da tneza,
seguido do Zeferino~ muito enfiados ambos.
-Esta tudo perdido!- disse dolentemente
o fidalgo- l~l-rei prezo!. . . E não se levanta
este J.\li n h o a 1i vral-o!. . . Vamos vêl-o, q ucro
vêr se lhe posso fallar. ])entro de trez dias en-
tro em Braga com dez mil homens e arrazo a
cadeia.
Fez saltar a copa do chapeu de molas e sa-
hiu para a rua. a bufar.
O campo de Santa Anna par~cia um arraial.
..\glomeravam-se alli as duas Bragas- a fiel, a
caipir.:t~ pletorica de fidalgos~ de grandes pro-
prictarios, conegos, de chapeileiros c da clere-
.zia miuda;- a liberal, n1uito anemica, encos-
tada ao 8 de infanteria, toda de bachareis c em-
pregados publicas, o :\lanso . o ~\lello (:avacão,
o _\1otta, o l{ocha \'eiga, o .Alves Vicente; ne-
gociantes de tendas mesquinhas, professores
muito rhetoricos, o Capella, que ensinava fran-
cez, o Pereira Caldas soneteiro e polygrapho, o
velho .Abreu bibliotecario, lacrimoso, o Pinhei-
ro, muito grande, philosopho sensualista, mas
bom visinho~ todos á volta do \lont'Alvernc, um
Lonego muito assanhado que foi, mezes depois,
cotnmandantc da brigada dos Seresinos.
l~erveira L.. obo in1punha e dominava com
LiS suas barbas, o trajar aceado cotn muito lus-
tro. e o bater metallico, patarata das esporas .
. \briram-lhe passagem, rodeavam-no cavalhei-
ros da primeira plana, os Vasconcellos do ·ran-
que, os ~lagalhàes, o Freire Darata, o Cunha
das ·rra v essas, a gem ma d'aq uclle enorme ovo
realista, chocado no seio da religião da Carlota
1t6 A RR.\ZILElRA DE PRAZI:r\S

Joaquina, do conde de Basto e do rrelles Jor-


dão. o c~rveira 'perguntava aos seus.: -13:'?-
uns encolhiam os hoinbros, outros nega vatn
gesticulando. E elle, com intin1ativa:- Pois
saibam que é!- O ~lanoel de .\\agalhães dizia
ao ouvido do 1-lenrique Freire:
-Deixa-o fallar, que está idiota.
O Bernardo de l1arros, um fidalgo de Bas-
to que fôra capitão de cavallaria, cotn un1 bi-
sarro sorriso de corte· e ademanes d'utna sele-
cção rara:- ~leu tenente-coronel, el-rei, q uan-
do vier. não hade estar ao alcance da canalha.
Descance vossencia.
Os janotas acercavam-se, disfructadores, do
Cerveira. Eram o Russel. o Antonio Gaspar, os
de Infias. o Bento ~\liguei de ~'laxitninos, o Pai-
va Brandão, o D. L\1anocl da Prelada, o D. João
da T'apada, o .Antonio L.uiz de \ 1 ilhena, utn
loiro, muito enamorado, com un1a rosa-chá na
lapella da cazaca azul com botões amarellos.
D'ahi a pouco fez-se utn tor\Telinho de povo
á porta do governo c i \Til. A soldadesca afTasta va
a multidão com phrases persuasivas de cronha
d'arn1a. Formou-se a escolta, e o prezo sahiu,
de rosto leYantado 'c affoito. para a multidão.
Cerveira I .. obo fitava-o com uma anciedade af-
flictiva. -Que se parecia ... e ia jurar que era
elle! --quando um realista convencionado e que
estava no grupo, o major de \'illá Verde, disse
com um desdem de achincalhação:
-Olha quem elle é! Oh que traste! que
grande mariola! Forte n1alandro!
- (~ucm é~ quctn é~- perguntavatn todos.
-l~' o \' cri.ssin1o, foi furriel da tninha com-
panhia, andou co1n o H.cinexido, c safou-se de
.\1cssi nes com o pret dos guerrilhas.
.A BR.AZILEIR.A DE PR.-\Zl~S 111

O Cerveira inclinou-se ao pedreiro e disse-


lhe ú orelha:
-Ouviste, 6 Zeíerino?
-Estou banzado!- n1unnurou o outro.
-Olha que espiga! 3 contos! heim?
-Raios parta o diabo!-- disse o pedreiro,
n'uma synthese condensada da sua incommen-
suravel angustia .
.\linutos depois. o padre Rocha encarava de
frente o Cerveira, chamava-o de parte e dizia-lhe:
-Está desenganado, meu amigo? Eu, para
corr~sponder á confiança de \T. Ex.a, in1puz-me
o dever de o salvar d'urn roubo de trez contos,
e da vergonha de ser logrado por um impostor.
O maior serviço que podemos fazer ao snr. D.
_\liguel é entr.:gar á justiça um infatne que se
serve do seu sagrado nome para roubar os ami-
gos do augusto principe. Snr. Cerveira, vá pa-
ra sua casa~ e, quand_o eu lhe disser que é tem-
po, então desembainhará a sua espada.
O Cerveira, abraçando-o:
- f lonrado amigo, honrado amigo! Ainda
os h a ...

O Verissitno entrou na cadeia de Braga, e


na n1adrugada do dia seguinte foi transferido
para a Relação do Porto.
O nome e appellidos que elle deu no gover-
no c i vil eram verdadeiros: \' erissimo Borges
Camêlo da ~lesquita. 1

1 Segundo as informações tcxtuacs do já referido José


Joaquim Ferreira de i\lello e Andrade o dialogo da autho-
ridade e do preso correu assim: «Sendo apresentado ao
A BRA71LEIRA DE PRAZINS

·ri n h a
nascido etn 1 8o6 em AI vações do Car-
go, no Douro. O pai chamavatn-lhe o Norberto
das facadas, quando já era velho, e. meirinho
geral da comarca, etn \Tilla Real. Uns diziam
que a alcunha facadas lhe vinha de ter esfaquea-
do a mulher por ciumes; outros, de ter levado
trez facadas, na Campean, quando pozera cêrco a
uns salteadores que pernoitavam na estalagem
d'aquella aldeia,. nas vertentes do !Vlarão. O
certo é que a quadrilha tinha sovado os aguasis,
e o commandante da diligencia, o meirinho ge-
ral. recolhera á villa en1 uma padiola. ·

governador civil e respondendo a varias perguntas disse:


<<Que era das immediações de Villa Real, em Traz-os-
.Montes, e um dos amnistiados em Evora Monte, na qua-
lidade de sargento do exercito realista;
<<Que n'uma sortida que fizeram os do Porto fôra ferido
n'um quarto por uma bala. ficando um pouco côxo: mas que
não dcixára ainda assim o serviço;
«Que achando-se no ultimo carnaval no logar de S.
Gens, alli tomára parte nos folguedos do povo com o abba-
dc da freguezia, o qual o convidára no ftm para sua casa;
a Que o tratára muito bem, e que, passados alguns dias,
lhe disséra, depois de ceia, de uma maneira muito recolhi-
da e sonsa: que desconfiava ter em sua casa sua magesta-
de el-rei o snr. D. 1\\iguel 1 (por que elle era em tudo um
fac-simile);
• Que nem lhe negára, nem confessára, mas que, pas-
sados d~as, á mesma hora, lhe repetira aquella suspeita;
p_?rém que ainda d'essa vez lhe respondêra com uma eva-
SlVa.
..4 uthoridadc
<<Que utilidade tirava em manter o abbade n'essa illu-
são?
'JJreso (cynico)
«Que a tirava toda, porque só assim podia continuar
no goso da commodidade que se lhe offerecia;
<• Que d'ahi por diante lhe ficára dando o tratamento de
A BRAZILEIRA DE PRAZINS 119

~orberto Borges Catnêlo tinha pedra de ar-


mas na casa de Alvações, uma edificação do se-
cul~J xvu. Dava-se como descendente do bispo
do i\Jgarve D. João Camêlo. Contava a origem
do brazão da sua casa, concedido ao seu sexto
a \·ô L.opo I~odrigues. Habituado a contar aos
juizes de fora e corregedores da cotnarca o facto
provado por incontestaveis pergaminhos, era
con\·idado muito a miudo disfructadoramente á
exposição heraldica do seu escudo, que elle fa-
zia n \1 n1a toada monotona de quetn resa. 1

.;.\IJ.Ç!estade, corno coisa decidida, e lhe revelara o desejo de


qu~ o devasse á dignidade de seu capellão-rnór, ao que an-
nUira ~
«Que, passados alguns dias, lhe propozera a admissão
á sua presença nocturna e clandestina d'alguns ecclesiasti-
cos c tambem seculares, consummados realistas, no que
concordá r a ;
«Que d'esse dia por diante principiaram a concorrer
ali i, por alta noute, um ate dois por vez, pedindo-lhe todos,
depois de lhe beijarem a mão, commendas, beneficios, laga-
res civis, postos militares e até prelazias- o que ellc tudo
lhe' concedeu de bom grado.
A u tlzon"dade
E depois?
Preso
• Depois? que lá se aviessem, porque o seu fim era con-
servar aquella commoda situação, ma.n:me quando as suas
finanças c:sta varn no maior apuro. •
1 .Vota erudita. A historia, aliás exacta, que o fidLllg·o
-de Alvações contava, acha-se nos Nobiliarios, e está grava-
da no escudo d'esta familia. Lopo Rodrigues Camélo foi
moço da estribeira d'el-rei D. Sebastião, e muito querido do
seu real amo. Viajára muito e era primoroso em pontos de
cortezia. Uma vez acompanhára o rei a Coimbra; c, na pas-
sagem de S. l\\arcos para Tcntugal, encontraram a ponte do
i:?O A RR.\ZILEIRA DE PR.-\ZI~S

O \r erissi 1110 era 1lfesquit:t pela mãe. que não


conhecera. ·rambern florira da cêpa illustre
dos Jlcsquitl1s de 11ill:zr de JL.1çadcz; tnas o l'\or-
berto. achando-a ·etn flagrante adulterio con1
um primo Pizarro, anavalhou-a n1ortalmente~
cscond~u-se, fugiu com o ju not no regitnento
do conde da Ega. e quando voltou, estava es-
quecido o caso.
t:nl 182;. o \ 7erissimo estudava em Coim-
bra hun1anidades para seguir a jurisprudencia.
Fra bon1 estudante, applicado e sério. Em 28 teve

i\londego cahida. O rei quiz passar a váo, e o estribeira ob-


servou-lhe que o passo alli era perigoso. D. Sebastião re-
darguiu: Então passai vós primeiro.»-Se vossa a1teza me
(I'

engana,-Yolveu o cortezão-ditoso engano é esse.- E,


mettendo-se á vala espapada de limos e lodo, submergiu-se
a ponto ele ficar só com a cabeça e um braço de fóra. El-rei
acudiu-lhe, tomando-o pela mão, e tirando-o com valente
pulso para a margem. Lopo Rodrigues, afim de que os seus
descendentes lêssem este caso no marmore do seu brazão de
armas, pediu a el-rei que lhe mandasse reformar o escudo
em Iem branca de tal successo.
E assin{ lhe foi debuxado o escudo: Em campo verde
uma ribeir.'l de prata o11deada. D'esta 1·ibe·h·a eme1·1Je um
braço vestido de a:::.ul, do qual pega outro vest-ido de broc~l­
d.o com letf1·as de negTo que di:::.em REY. Este br:1ço 1·eal
sahe da b:rnd.1, direita do escudo, na e.ç;querda está uma es-
t,-ella de oiro de o·ito 1·aios, e no canto direito de baz"xo uma
.flôr de I i::; de ouro. Timln·e o b1·aço vestid_o de a::u L com a
estn:lla nos dedos. A carta foi registada no <<Livro dos
Privilegias>>, no anno de 1 5 74·
~\larcial fez rir os romanos á custa de um genealogico
esquadrinhador de tal casta, que, não tendo já humanas
gerações que espa neja r do I ixo dos seculos, entrou a deslin-
dar os remotos avoengos de um cavallo chamado Herpino.
Passarei tambem á.s caudelarias quando o brazão subir da
tenda ao sport, e derivar dos cspecieiros esparramados ás
bestas elegantes.
A BRAZILEIR.\ DE PRAZDiS 121

uma vertigem politica. Fez-se caceteiro do par-


tido dominante. quiz atacar na Ponte a punhal
os estudantes prezas no Cartaxo como salteado-
res assassinos. Perdeu o habito de estudar e a
~o m postura de que f à r a ex e tn p 1o. Em 2 9, aba n-
clonou a IJniversidade e assentou praça em in-
fanteria. Quando o Porto se fechou, era sargen-
to aspirante e bravo. Em u1na das prin1eiras
sortidas dos liberaes~ foi ferido em u n1a perna;
e, apezar de côxo levemente, não quiz a baixa
nem a reforma. Era um bonito hon1em. rosto
o\·aJ, olhos de rara belleza~ nariz ligeiramente
aquilino. Diziam-lhe que era o vivo retrato de
O. ~liguei, aperfeiçoado pelo desaire de coxear.
Depois da convenção, \r erissimo Borges re-
colheu a Alvações de Cargo. onde encontrou o
pai n'um grande abatirnento de tristeza c de re-
cursos ..A. sua lavoira de vinho era pequena. Pri-
Yado do officio e rnalq uisto como ladrão, o re-
presentante de Lopo Rodrigues soccorria-se a
beneficencia de uma irmã~ a D. r\g-ueda, viuva
d 'um major de milícias que n1orrera no ataque
ao forte da~ ~-\ntas. O convencionado, n'aquella
estreiteza de meios, quiz voltar á fileira; rnas o
pai negou-lhe a licença. arguindo-lhe a baixeza
de sentimentos, etn querer servir o usurpador~
e citava-lhe as côrtes de Lamego. O \'erissin1o,
argumentando contra estas cortes, allegava que
antes queria encontrar na casa de seu pai, en1
vez das velhas instituições de J_,amego, os mo-
dernos presuntos da mesma cidade.
O ~orberto gabava-se de que na sua gera-
ção, Camêlo liberal não havia um só, e que a
s na maldição. pesaria como eh um bo derretido
sobre a cabeça do filho que perjurasse a ban-
deira do throno e do altar.
12::? A BRAZILEIH.A DE PRAZINS

A tia Agueda, a viuva do major, tinha pou-


co. Desde 1828 ?té 1833 gastára seis mil cruza-
dos em festejar os natalicios e as victorias do
snr. D. ~\1iguel con1 banquetes e illun1inações
que duravam trez noites, n'um delirio de bom-
bas reaes c foguetes de lagrimas, com adéga
franca. ~\'\andava cantar Tc-Deunz na egre.ia de
.c-\lvações assim que nó paiz vinhateiro soava a
noticia de alguma victoria do exercito fiel. Ora,
os realistas~ a contar por cada Te-Deunz de ..'\1-
vações, entravam no Porto ás quinzenas para
sahire1n por uma barreira e voltarem logo pela
outra. D. Agueda começava a desconfiar que o
Deus de Affonso Henriques voltára a casaca.
Restava-lhe pouco; mas não queria que o
Verissimo se fizesse malhado. Sacrificou-se á
honra da familia, levou-o para casa, deu-lhe
mesa farta, e consentiu que o vadio se manti-
vesse regaladarnente, de papo acima, tocando
flauta, a tresfegar en1 si o resto da garrafeira.
Aconselharam-na que ordenasse o sobrinho,
visto que elle já tinha exames de latim e logi-
ca. O Verissimo disse que sim, que queria ser
·padre. l'inha-se esclarecido nos encargos do
officio, observando a vida socegada e farta dos
parochos. U tn seu parente, o abbade de Lobri-
gas, tinha liteira, parelha de machos, matilha
de cães e hospedes na sua residencia episcopal.
Outros, com menos rendas, eram ainda inveja-
veis~ um viver espapaçado etn dôce mollêza,
inoffensiva, com grande estupidez irresponsa-
vel, um regalado epicurismo. Verissimo achou
que, se não podesse ser bom padre, h a via de
pertencer á maioria; e, se désse escandalo, um
de tnais ou de tnenos não perturbaria a ordem
A BRAZILEIRA DE PRAZINS 123

das coisas. Os seus amigos e parentes abunda-


vam no dilen1ma.
D. Agueda fazia concessões á fragilidade do
clero:-que seu sexto avô tamben1 fôra bispo
e pai de sua quinta avó, por Camêlos. O pa-
rente abbade de Lobrigas, em confirmação das
preclaras linhagens de coitos sacrilegos, affir-
mava que a serenissima casa de Bragança des-
cendia de padres pelo pai de D. Nuno Alvares
Pereira, que era prior do Crato, e pelo avô, o
padre Gonçalo, que fôra arcebispo de Braga; e
que os condes de \'imioso e Atalaya, e todos
os ~oronhas oriundos de certo arcebispo muito
devasso de Lisboa, c muitas outras familias da
côrte descendiam de prelados. Estas genealogias
orientavam o Verissimo no futuro do sacerdo-
cio. Queria ser abbade, resal vando tacitamente
.certas condições a respeito dos rebanhos e par-
ticularmente das ovelhas.
Em outubro de 183 5 foi para Braga. Tinha
trinta annos: sentia o cerebro moroso na di-
gestão da theologia, andava enfastiado e triste.
Acaso encontrou um camarada, sargento do
mesmo regimento, o T_orquato Nunes Elias.
que andava a estudar para procurador de cau-
sas. Eratn inseparaveis, identificaram-se n'urna
intimidade de tasca e de alcouce. O \rerissimo
nunca 1nais abriu compendio nem o outro um
processo. f). Agueda mandava regularmente a
m~sada, e perguntava-lhe quando cantaria a
mtssa.
Em 1836 appareceu no Algarve a poderosa
guerrilha de José Joaquim de Souza Reis~ o
Remexz"do, em S. f3artholomeu de l\lessincs.
Os dous ex-sargentos alvoroçaram-se cotn a
noticia e resolveram apresentar-se ao formida-
124 A BlL\ZILEIRA DE PRA7INS

vel caudilho. Verissin1o pediu á tia uma quan-


tia mais avultada para pagar as ultimas despe-
zas do sacerdocio. A velha mandou-.lhe o preço
ele uma vinha vendida e a sua benção. Os aven-
tureiros partiran1 para o Algarve. O general re-
cebeu-os nos braços . c deu-lhes divisas ele ca-
pitães. \'erissimo Borges escreveu ao pai~ a
dar-lhe parte do seu heroico destino: que advo-
gasse a sua nobre causa na presença da tia
Agueda, e lhe dissesse que ellc não podia lar-
gar a espada vencida em quanto visse no cam-
po brilhar o ferro de um realista. Que o gene-
ral Sousa Reis estava destinado a repôr o snr.
D. ~liguei 1 no throno, ou ser o ultimo a mor-
rer en1 sua defeza; que elle e um seu amigo e
camarada tinham sahido de Braga juramenta-
dos a n1order o pó onde cahisse o seu general.
Que eratn já commandantes de cornpanhias. e
tinham duas carreiras abertas-uma que leva-
va á gloria, outra á sepultura,-que tan1be1n
era un1a gloria morrer pela patria.
José Joaquitn, o l?e1nexido, era un1 bem fi-
gurado homem de trinta e oito an nos. Nascera
ctn Estombar, estudára para clerigo no senlina-
rio de Faro, e distinguira-se e1n perspicacia e
subtileza na percepção das theologias. O amor
inutilisou-lhe o talento applicado a um pacifico
e humanissimo destino. Viu uma esbelta môça
de S. Bartholomeu de .\lessines quando ahi foi
prégar um sennão, sendo minorista. As serenas
visões do levita deslumbrou-lh'as a forn1osa al-
garvia. Não hesitou entre o amor da humani-
dade e o culto egoista da família. Casou, e de
hotnem estudioso e contemplativo, volveu-se
lavrador, lidoq rudetnente nas searas, e redo-
A BRA7ILEIRA DE PRAZI~S 12:-i

brou de esforços á proporção que os filhos lhe


multiplicavam o atnor e os cuidados.
Insensi \·elmente compenetrou-se da paixão
politica. x~esta provÍncia, onde em 1808 estalou
o primeiro grito contra o don1inio francez, a li-
berdade proclamada em 182o abriu ura abystno
entre duas facç<Jes que pol_"' espaço de dezoito
annos se despedaçaram. jose Joaquim de Sou-
sa Reis alistou-se entre a clerezia de quem re-
cebera as boas e as más idéas. e manifestou-se
em 1823 utn ardente sectario das más, perse-
guindo os aff(!içoados á revolução do Porto. I~m
1R:d> emigrou para llespanha. e voltando em
1828 extremou-se entre os acclamadores do rei
absoluto. D'ahi e1n diante. receoso das retalia-
Cl-H~s, não te\Te n1ais urna hora de retnancoso
. ~nntenta1ncnto netn abriu n1ào da espada . tão
afroita quanto cruel.
Logo q uc o duque da ~rerceira a portou con1
a divisão e"\:pedicionaria ás praias da Lagoa. em
24 ele junho de 18 33, Sousa l~eis com alguns
cutnplices, foragiu-se nos reconca vos do Penedo
Cirande, cujas ver(!das tnontanhosas conhecia.
1) c i xo u 1n u 1h c r e fi Ih os, n a p r i tn e i r a flor dos
annos, inculpados das paixões de seu pai. tia-
dos na generosidade dos vencedores e na pro-
pria innocencia ... \ Yingança f~z reprezalias na
fa mi lia do fugi ti vo . .t\ llj u l hcr e os filhos foran1
espancados pela tropa, depois do roubo e do in-
cendio da sua casa de .\lcssines. O leão. con1o
se ouvisse bramir os cachorrinhos nas garras
do tigre~ irrompeu da ca,;erna, precipitou-se dos
penhascaes á frente da sua alcatéa, e atacou Es-
tonlbar cotn irresistivel impeto. Esta\·a ahi a
sua farnilia sob a pressão das bayonetas que a
v ig ia\. a rn c o 1n o a nn adi lha á queda do ; u c r r i-
12t3 A BRAZILEIRA DE PRAZINS

lheiro; mas a tropa não pôde resistir á furia de


pai. Elle atirava-se ás descargas, abrindo com
a espada a vereda do seu ninho. o·s inimigos
que o viram n'esse dia conservaram longo tem-
po a lembrança da sua catadura transfigurada
pela desesperação. E todavia era um homem
gentilissimo. Depois, senhoreou-se de povoações
importantes do Algarve e estendeu até ás fron-
teiras do Alemtejo os seus domínios. Nloveranl-
se contra elle n1uitos regi1nentos de primeira
linha e de batalhües ela guarda nacional. J~lle
tinha adoecido de fadigas incomportaveis, e
dcscançava cotn algun1as centenas de hon1~ns
n'um desfiladeiro da serra, chamado a Portella
da corte das 1Jelhas. Ahi o atacou un1a columna
de caçadores 5. O Remexido, a final, faltou-lhe
a coragem de se fazer 1natar. Viu talvez a mu-
lher e os. filhos, entre a sua agonia e as bayo-
netas. f)eu-se á prisão, e cinco dias depois era
arcabuzado em Faro.
O regimento em que eram capitães o Vcris-
sitno e o Nunes dispersou, e elles, claro é, fu-
giratn á maneira dos muito discretos e bravos
generaes de que rezam os fastos militares.
O pret das guerrilhas devia ser quantia di-
minuta, urna bagatella ridicula, que não mere-
cia a pomposa qualificação de ladroeira. <:orno
não tiveram ten1po de fazer o pagatnen.to, reti-
raram-se com o cofre nas algibeiras. E o que
foi, c a historia não póde dizer outra coisa.
Queria tal vez o major de Villa Verde. o de-
nunciante de 11raga, que clles andassern á cata
das praças dispersas pelas montanhas, a repar-
tir os quatro vi ntens dia rios e o vintem do 1nu-
nicio! ·
Vcrissimo foi para Alvações e 0uncs para
-'- HRAZILEJRA DE PRAZINS 12'i

S. Gens. O :Norberto morreu por esse tetnpo


d"uma congestão cerebral; alguem diz que o
esganaram na catna dois malhados de L.obri-
gos contra os quaes elle tinha jurado em 28.
D. 1\gueda recebeu o sobrinho carinhosamente.
1\ herança do pai estava empenhada; foi á
praça; sobejaram uns nove centos mil reis e a
casa com as armas, pagadas as dividas. O Nu-
nes dizia-lhe da Povoa que andava por lá mise-
ravcl. U01 piranga, na gandaia; que O pai dava-
lhe um caldo de feijõt:s e o tratava como um
cão vadio. Que. depois da partida do 1\lgarve~
não tinha con1 quem praticar cm Braga para
solicitador~ nem tinha que vestir. O Verissin1o
chamou-o para AI vações com generosidade. Ves·
tiu-o. e dava-lhe meios para elle poder estudar
em Villa Real, com advogados miguelistas, que
o t:stimavam muito.
A velha passava os dias a chorar entre ore-
trato do defunto major e o do snr. IJ ..\ligucl
das illuminações, que se parecia muito con1 o
sobrinho.
~o inverno de I8-t-o, D ..Agucda rnorreu de
uma indigestão de castanhas. complicada com
intervte chronica e saudades da realeza. Deixou
<JO sÕbrinho a casa, as vinhas n1uito delapidc:t-
das ~ e o retrato do snr. O. ~liguei ás freiras
de Santa Clara de Villa Heal e mais dez ·moe-
das de ouro com a condição de lh~ accenderem
quatro velas de cera no dia dos an nos de sua
mag-estade.
·verissimo viveu então largamente. Fl·z-se
chefe d~ partido nas redondezas de 1\lvaçf>cs do
<:orgo. onde era conhecido pelo c..1pitão- \leris-
simo. Deitou cavallo c moxilla; jogou rijo Jous
annos na F~ira de Santo ,\ntonio c:n \'illa
128 A BRA7ILEIRA DE PRAZl~S

l{~al~ e perdeu tudo. O Xunes~ que já sollicita\·a


causas na Po\·o.a. repar!ia com elle dos seus
proventos muito escassos, porque o juiz e os
escrivães faziam-lhe guerra in1placavel. e as par-
tes fugiam d'elle.
O \ erissitno sahiu de . -\h·ações. onde não
possuía pahno de terra; e, como tinha boa for-
ma de lettra, ofE~reccu-se para amanuense a un1
tab~llião de ~\lijó. Ganhava trez tostões por
dia e jantar. Como era boa figura, a mui hcr do
tab;;!llião. uma trigueira de n1á casta. entrou a
comparai-o com o marido qu~ tinha os d~ntes
rnuito lurados e os olhos tortos ..\'las o tabel-
lião viu as cousas pelo direito, e pôz o atna-
n uense na rua. e a mulher ern lençoes d~ vi-
nho. dizia-se. \T erissirno conhecia o c a pi tão-1111 ,r
de .\lurça, o Can1pos, un1 hebreu realista. muito
abastado. Oficreceu-se-lhe para escudeiro e foi
a~cite com botn ordenado. O capitão-múr era
\·iu\·o: mas tinha urna ~overnanta fresca. d"un~a
fon1e de peccado irritada pela. i_ndiffcrcnça j u-
daica do an1o en1 n1ateria de reii~ião. O \?cris-
si[no tinha a fatalidade f~mieira do seu Sosi.I.
do snr. D . .\liguei. O capitão-n1úr corn o seu
fino ôlho de raça, lobrigou as sentimentalida-
des da rapariga. Pagou generosarnente ao es-
cudeiro. e impõl-o. \ oltou ao Douro, e procu-
rou o amparo d'um realista poderoso, o \nt0-
n i o d c .\ l e ll o, de G o u vi n h as, o pai d o s n r. L o p o
\-az, um grande n1i n istro liberal cheio de c tn-
briües de coisas. O fidalgo de Gou\·inhas no-
n1cou-o feitor das suas quintas. Estava regala-
do: feitorisava pouco; o fidalgo admittia-o as
suas palestras intimas de politica: mas un1 so-
brinho do ~lello. um \'alente navalhista qu~
chamava;.n em Coimbra o Jf.:~.lagu<-:1~1, ganhou-
A RRAZlLElR.\ DE PR.\Zl~S 12?

lhe adio, por ciumes d~ uma tecedeira chibante~


uma raparigaça de tremer. de quadris roliços~
a Libania de Co\·as. ·rravaratn-se de razões.
O ~\tl~Llguêt,J ·correu sobre elle com um punhal.
\\·rissi tno acoyardou-se na sua posição depen-
dente e despediu-se .
.-\ Libania tinba cord(-)es e umas n1oedas ga-
nhadas com o pudor diluido no suor do seu bo-
nito rosto. a corso das algibeiras copiosas dos
vinhateir9~. Seguiu-o para o Porto em 1844· O
neto do bispo D. João Camêlo, abriu uma escola
de primeiras lettras en1 ~'liragaya. Ao cabo do
primeiro tnez, dava pontapés impacientes nos
t;arotos. andava ralado, não podia com aquella
bestialidade da instrucção primaria. A Li bania
queixou-se um dia de dôr de dentes. Foi uma
inspiraç-ão. O \T erissi rno rc:sol veu fazer-se den-
-tista, e foi estudar corn o Pinac, á rua de Santo
~\ntonio, um botn homem. Anda\·a n'este tyro-
cinio. quando encontrou no ·rivoli, defronte da
eibliothcca, o Xunes. A Libania gostaYa tnuito
de resvalar pela 1nont~.:vzlzcz russa, dava umas ri-
sadas argentinas. batia as palmas e queria mon-
tar os cavallo5 de páo que girava1n no jogo da
argolinha.'
Quando se encontraram. o ·rorquato vinha
pedir-lhe dinheiro. O pai tinha morrido deixan-
do a casa ao outro irmão. Esta\·a casado, e tinha
dous filhos. (2ueria ir tentar a fortuna ao Brazil,
trabalhar em mangas de camisa, se fosse neces-
sario. O \rerissimo respondeu-lhe que o unico
fa\'Or que ~he podia fazer era tirar-lhe um dente
de graça. Confidenciou-lhe as suas 1niserias
tnais intimas; que aquella boa rapariga tinha
~·astado C0rr! élle quinze tnoedas e vendera o
seu oirc; mas~ tão generosa~ tão honrada que
9
130 A RRAZILEIRA DE PRAZINS

nunca lhe vira no rosto uma sombra de tristeza.


Que estava resolvido a ir estabelecer-se con1o
dentista na provincia, logo que podéiise comprar
o estojo que custava 121$ooo réis, c não os tinha.
-Se os não tens- disse o l"orq uato- n1Í-
nha mulher tem um cordão que peza trez n1oe-
das: para mim não lh'o pedia; mas para ti vou
buscal-o ámanhã.-l~ acrescentou. de excellente
humor:- Deus pennitta que na terra onde te
estabeleceres sejam tantas as dores de dentes
que não tenhas tnãos nem queixos a znedir.
Sahiram alegres do 'T'ivoli. Sentiatn-se bem
aquellas duas organisações esquisitas. Havia alli
duas altnas que se amavam dcvéras, dous nau-
fragas a quererem chegar um· ao outro a tnesma
taboa de salvação. E' n'estes esgotos sociaes
que ainda, uma vez por outra, se encontra n1
Piladcs e Orestes.
O Verissimo morava atraz da Sé, na rua da
L. ada, uma casa d'um andar, tnuito empenada,
com o peitoril de ferro de uma unica janella des-
encravado de uma banda, e urna porta viscosa
e negra cotno a bôca de um antro. Cearan1 to-
dos. Havia cabeça de pescada cosida cotn cebo-
las, sardinhas fritas e pimentões. O Nunes foi
buscar duas garrafas da companhia de tostão ;'t
rua (~hã, e enfiou no braço uma rôsca de Vai-
longo que cotnprou na bodega da Caçoila, utna
esmamaçada com cordües de ouro que frigia pei-
xe á porta e dava arrôtos. ·
Cearam n'uma esturdia de rapazes, ~orno en1
13raga, nove annos antes, na tasca do Catram-
bias, na rua do Alcaide. A Libania de (~ovas
muito laraxenta-que levasse o diabo paixões,
e mais quem com ellas n1edrava; gue, en1 se
acabando o dinheiro, fazia-se cruzes na bôca;
A BR-\ZILEIRA DE PRAZINS 131

mas que deixar o seu \T erissimo, não o deixava


nem á quinta facada."
-~os devia mos ir todos para o Brazil-
lembrou o l,orquato, que tinha meditado n'um
recolhin1ento extraordinario.
- E chelpJ?- perguntou a Libania.
-Se tu quizeres, Verissi1no, dentro de um
mez temos um conto de réis.
- 13oa! ... - disse o outro.- Bern se vê que
as duas garrafas deram o que podiam dar-
uma fantazia de um conto de réis. Por dous
tostões é barato.
- f=<~stás disposto a ouvir-me sem interru-
pção de chalaça? Eu não estou bebedo, palavra
de honra!
Libania pàz a face entre as mãos e os coto-
vellos na toalha suja de vinho e tnigalhas, com
os olhos muito fitos e rutilantes na cara do ~u­
nes. O V crissimo atirou com as pernas para ci-
•na da banca. accendeu um charuto de 10 réis
e disse que fallasse á vontade.
- ·ru sabes que te pareces muito com D.
_,\ iguel ?
- Cotncças bem. 'ren1os asneira.
-.,láo I ~ão me falles á n1ão.
-Já sei onde queres chegar. Vaes dizer-me
q._1C me faça acclatnar rei, c, para evitar efTusão
de sangue, venda a tninha sobrinha D. Jlaria
2.r. os meus direitos á corôa por um conto de
réis. Dou-os n1ais em conta.
-,\deus minha vida I - retrucou o Nunes
impaciente. ,.\'manhã conversaremos.
- Deixa fallar o homem I -interveio a L.iba-
nia.- Ora diga lá, ó sê ~unes.
<) ·rorq uato expôz a sua theoria do conto
de réis, desfez atritos, removeu difliculdades,
t!l2 A BRAZILEIRA DE PRAZINS

convenceu afinal. 'T'inhatn de partir para o Alto


i'1 i n h o, os do is. L i b a n i a ir i a par a }(a n1 a 1d c t r a-
balhar nos teares da Grainha que lhe dava co-
mida, cama e doze vintens por dia. \'enderian1
a um adeleiro da rua Chã os trastes para o v·c-
rissimo se enroupar de panno piloto, quinzena
e calças com alguma decencia, roupa branca.
reforma das botas cambadas, chapcu de fêltro
e um paletó de agazalho.
l\a quinta-feira gorda~ a L.ibania, com excn1-
plar coragem, foi para Ramalde. A Grainha ne-
gociava em teias, ia Yendêl-as ao Douro, tinha
visto em Gouvinhas o litnpo trabalho da rapa-
riga, e quando a encontrou no Porto:- Olhe.
môça, quando quizer ganhar a vida honrada-
mente lá estamos em Ramalde. Un1a de doze.
comer como eu e lençoes lavados na cama.
O Nunes e o Verissimo foram juntos até per-
to de Draga. 1-\hi, o de Calvos seguiu para casa.
e o outro no sabbado gordo partiu para a Po-
voa de I.. an h os o.
XI

O ·roRQUATO, antes de entrar em casa, foi


á residencia. Ia mvsterioso, circuinva-
gava uns olhares c"'autelosos:- se nin-
guem o ouviria ?-perguntava ao abbade ~lar-
cos.
l~ o ahbade, entrcpondo as cangalhas nas
paginas do breviario,- pode fallar, que estou
sósinho. Oue é?
- D. \liguei 1 está em Portugal- disse,
curvando-se-lhe ao ouvido, com un1a voz gut-
tu ral.
-Você que n1e diz?! Como sabe isso? Pa-
taratas!
-Chego agora do Porto; estive cotn o es-
crivão fidalgo, o Ferreira Rangel c com o ab-
bade Goncalo Christovão. El-rei está n'esta
província. ~Desconfia-se que é em Braga, e o
José Alvo llalsemão disse-me que talvez eu o
visse brevemente no nosso concelho, porque o
levantamento hade começar por aqui.
134 A BRAZILEIRA DE PRAZINS

-Que me diz você, amigo l'orquato?- sa-


cudia os braços,. fazia estalar os dedos como
castanholas, tinha gestos mudos de ·exultação
extatica- que ia escrever ao abbade de Priscos,
que indagasse, que apparecesse ... -E' preciso
trabalhar, preparar os animas .. .
-Chiton!-acudiu o Nunes com o dedo
a prumo sobre o nariz. :'\ada de espalhafato!
Não ferva em pouca agua, abbade. Se dér á
lingua, esbarronda-se o negocio. O rei so hade
apparecer aos seus amigos quando os generaes
entrarem pela Gallisa. Não falla a ninguem;
não se dá a conhecer. Diz que só fallára etn
Lisboa com o conde de Pombeiro e com o Bo-
badella, c no Porto com o José Antonio, o
morgado do Bom Jardim, e mais cotn o padre
L,uiz do ·rorrão ... O abbade conhece.
-Pois não conheço? como as minhas mãos;
é o vice-rei nas províncias do norte ... o nosso
bom padre l..~uiz de Souza que pelos modos es-
tá nomeado patriarcha de Lisboa ... Que pe-
chincha . hei 111?
-E' esse mesmo ... Bem! até logo; vou vêr
a mulher e os filhos a casa~ que ainda la não
fui. Um abraço, amigo abbade I Para bens! A
choldra vai cahir I \'ida nova I D'aqui a um tnez
está todo esse ~\'linho em armas, e el-rei á fren-
te dos seus vassallos. Outro abraço, e viva el-
rei I
Lagrimas jubilosas, como contas de vidro
sujas, tremelusiam nas palpebras· inflammadas
do abbade.
-Jante comigo, Nunes, jante comigo I \'ai-
se abrir uma de 181 ), á saude d'el-rei I
-Parece que tne estoira a pelle! Não estou
cm mim! -Que ia vêr a mulher e que voltava já.
A BRAZILEIRA DE PR.<\.ZINS 135

~a noite de sabbado para domingo de car-


naval, o \rerissimo pernoitou na Povoa de La-
nhoso. na estalagem do Rêlhas.
Disse ao estalajadeiro que eía de longe e
anda va a viajar pela provincia. Perguntou se
por ali não se festejava o entrudo. O bodeguei-
ro informou que na Povoa havia guerra de la-
ranjadas e ás vezes pancadaria de senhor Deus
m isericord ia: tnas que na freguezia de Cal vos
havia comedias nos trez dias de entrudo. por
signal que o seu filho~ um barbado que ali es-
tava, com uma cara angulosa muito alvar, fazia
de namorado no Medico fing·ido, um entremez
coisa rica. que era de um hometn malhar de
costas n'aquelle chão a rir- que se elle quizes-
se ver as comedias, podia ir com o seu rapaz,
que lhe arranjava lá utna cadeira de casa do
· abbade.

O scenario para a representação do Medico


jin.r:ido arranjou-se na eira do Gonçalves, muito
\!Spaçosa e ageitada. porque as figuras entravam
e sahiam. conforme a rubrica, do palheiro que
tinha trez portas. O palco. barrado de fresco,
ainda humido! estava ao abrigo de cobertas de
chita alinhavadas umas nas outras, retezadas
nas pontas por postes de pinho que rematavam
cm forquilhas para receberem uns varaes lan-
çados transversalmente. f-lavia dous mastros de
castanheiro descascados, afestoados de buxos,
alecrim e camelias, coroados por bandeiras ver-
Jnelhas esburacadas. Parte dos mastros tinha
uma listra etn zig-zag pintada a zargão que se
ia espiralando pelo pau acima, com cercadura
de cruzinhas: -era obra do Chêta, um trôlha
136 A BR."-ZlLEIRA DE PR.~Zl!'S

inspirado que já tinha pintado un1 painel das


..-llnH"nlz.Js, onde .h a via a l ln as do sexo fraco com
grandes tetl:JS lambidas por la v a redes,. e um r e i·
coroado cotn a bôca aberta no acto de berrar
queil)1ado, e tan1anha bôca que so cedia á de
um bispo n1itrado. muito in1pertigado, com o
seu baculo. O trôlha ensaiára o entremez, e não
entrava, porque lhe tinha morrido o pai, havia
quinz\.? dias. contava clle a un1 senhor de fóra,
desconhecido, que tinha vindo com o :zalan,
o filho do estalajadeiro da· Povoa. c

O \Te r iss imo foi a d tn itt ido a os c a tn a r i n s onde


esta\·am sentados em caixas de rnilho e na sal-
gadeira, os figurantes á ·espera da sua vez, já
vestidos. \:riam-se os personagens do entremez.
i'fatliilde~ amante de Alnzenio, un1a ingenua, d
protagonista da peça, a doente nanzorada, que
levou o pai a trazer-lhe a casa o amante, o nze-
dico .fin,gido. Este papel fôra confiado a um la-
tagão oH1cial de carpinteiro, com os pulsos ca-
belludos e os nós dos dedos con1 umas protu-
berancias callosas que pareciam castanhas pila-
das antigas. Xas maçãs do rosto mascarrára duas
zonas de carmitn, que pareciam a distancia
umas chagas de tnendigo de rotnaria aperfei-
çoadas. ·rraja v a u n1 vestido de sctim branco da
fidalga velha de Rio Caldo, feito em 1824 para
um baillc que houve em Braga aos annos de
D. João vr. O peito chato do carp-inteiro ficava
á altura dos quadris da fidalga, e as claviculas
espipavam as hotnbreiras do corpête, prendendo
os movi n1entos ao desgraçado ldathilde. Posto
que a scenwl fosse a Casa de .A stolfo, pai da
doente fingida, a velhaca estava de chapeu de
palhinha com enorme telha enconchada e plu-
mas brancas 1nuito amarellecidas do môfo. O
A BRAZILEIRA DE PRA7l~S rn

vestido era-lhe curto, mas lucravam com isso


as pernas que se deixavam ver até cima do jar-
rete, cingidas de fitas cruzadas que subian1
d'uns sapatos de duraque sem tacões, feitos de
proposito e em concordancia com os angulos
reintrantes e sali~ntes dos pes. l~ra o grotesco
do horror ....\ creada de .Jlatlzilde, a Laberca, tam-
bem vestia de sctitn azul-ferrete., um pouco me-
nos antigo, emprcstitno das senhoras de S. Crau,
que o assoalhavam de vez em quando para os cn-
tremezes. ~ão tinha chapeu ncn1 sapatos dedu-
rdque: obedecia mais á caracterisação natural.
\a cabeça usava touca de folhas com laços de
fita escarlate e nos pesos butes do amo com pon-
teira de verniz; ellc era o creado do juiz de di-
reito substituto; gosava creditas de representar
papeis de lacaia faz~ndo rebentar a gente.
O \ 7 erissimo fez ,os seus cumpritnentos ás
duas damas, e manteve uma seriedade vcrdadei-
ratnente real. O ~ lbnenio era o filho do estala-
jadeiro da Povoa de L.anho3o, o F~êlhas. Cal-
ças brancas, quinzena de veludilho, bengala de
castão de prata. chapeu branco de castor e ocu-
los. Disse ao \'erissirno que punha os oculos
para fingir de medico. Estava a urn canto o
gallego, o Gonçalo, aguadeiro da casa. Cotno
não havia cm Calvos o costume rigoroso dos
aguadeiros, o trôlha ensaiador vestiu-o de al-
mocreve, com as botas refegadas, faxa branca
e em mangas de camisa, com u1na monteira
comprada em 'fuy. A cara era ao proprio,
d'uma verdade t\-pica. O P~1ntu(o, um saloio
rico que queria càsar com Afathilde, e foi bigo-
deado pelo tingido rnedico, vestia a melhor an-
daina de fato do presidente da can1ara, um
apaixonado pelos cntretnezes, que a gravidade
13~ A BRAZILEIRA DE PRAZINS

das suas funcções impedia de representar; mas


empresta va a roupa e a intelligencia dramato-
logica. Havia mais duas figuras, o Falcete, e o
~4.stolfo, que se estavam vestindo lá dentro, por
detraz d~um ripado, que os deixava vêr e1n ca-
misa enfiando as pernas sujas nas pantalonas,
emquanto o trôlha lhes rebocava de vermelhão
as caras.
O Nunes atravessára a eira, e endireitára
para o palheiro, quando lhe disse o Gonçalves
que estava lá dentro u1n fidalgo de longe. En-
costou-se ao batente da porta, trocou um lance
de olhos co1n o Verissin1o, e sahiu apressada-
nlente, arranjando pelo caminho uma physiono-
nlia cheia de alvo roço, de surpreza.
Entrou pela residencia, muito esbofado:
-O' abbade, já esteve na eira do Gonçalves?
-Não; estou a acabar de jantar, e lá vou
vêr essa borracheira da comedia. Você vem aga-
nado!
-Vinha perguntar-lhe se conhece u1n sujei-
to de fóra que lá está na eira.
-Aqui veio um rapazola da Povoa pedi,r-
Ine uma cadeira ha coisa de meia hora para
um fidalgo que tinha vindo com clle. Pergun-
tei-lhe quem era o fidalgo. Diz que não sabe.
Esta canalha em vendo um bigorrilhas de ca-
saco chama-lhe fidalgo.
- \'enha já d'ahi con1igo ... Por quem é,
não se demore ... O' abbade, lembra-se de vêr
el-rei em Braga ha treze annos!
-Ora se lembro l ... f1eijei-lhe a mão trez
vezes.
-E. se o vir agora, conhece-o? ...
-Parece-me que sim-o padre limpava á
pressa os beiços amarellos dos ovos do arroz
A BRAZILEIRA DE PRAZI:\"S

dôce. -jlas isso que quer dizer? \ .. ocê está doi-


do, ou temos carraspana! amigo Nunes?
-Homem! venha cornigo, e depois chatne-
me doido ou borrachão, la corno q uizer; mas
não se demore que eu estou em bra-zas vivas.
- Ahi vou, ahi vou, não se atrigue. y· ai uma
pinga do chôco?
-\Tenha de lá isso.- Bebeu d~um trago, e
pediu outro: -Agora~ á saude de el-rei! á sau-
de d'aquelle que talvez esteja bem perto de nós!
a ce1n passos !
-·roque 1- exclamou o abbade.
Pelo caminho, disse-lhe o ~unes que era pre-
ciso o maior disfarce, não olhar muito de frente
para elle, e só deviam fallar-lhe, se a occasião
viesse muito a geito.
-\'ocê está a sonhar. ho1ne1n I
Quando entraram á eira~ ja tinha con1eçado
a festa. \ 7erissimo esta va em pé, com a mão di-
reita apoiada nas costas da cadeira. D'um e
d'outro lado remexia-se a turba= muitas rapari-
gas a rirem dos actores vestidos de mulheres,
e uns rapazes com chalaças de uma graça apar-
valhada. muito local, a que os do palco respon-
diam á lettra com manguitos, e os que faziam
de n1ulheres batiatn palmadas no trazeiro, vol-
tando-o para o publico. Cães ladravan1 ás figu-
ras; os rapazes davam--lhes pauladas e elles ga-
niam. As velhas mandavam calar o gentio para
poderem perceber as falias:- Canalha brava,
calaidc-vos ahi! -U1na balburdia que parecia
um theatro de cidade de primeira ordem. O tio
Gonçalves, o dono da eira, dizia que estavam
todos bebedos, e voltava-se para o desconheci-
do, como a pedir desculpa.
-E' entrudo, dizia, é entrudo, senhor l
140 .\ nnAIILElRA DE PH.AZI:'\S

Quando appareccu o padre na cancella da eira,


h ou v e silencio com algu n1as fu ngadellas de riso
das cachopas~ e recomeçou a comedia em obse-
quio ao abbade e- à Arte ultrajada pela hilari-
daqe bruta da plateia. ~ataram alguns velhos
sisudos que o forasteiro das grandes barbas se
n1antivera tnuito sério durant~ a troça da cana-
lha ..Assim o dizia o (i onça lve~ ao a bbade, per-
guntando-lhe se conhecia aquelle senhor.
- ~ào conheço,- e acotovelava o Nunes,
segredando-lhe com o disfarce:-\7oce adivi-
nhou. E' elle ...
-Que me diz, abbade?
-1~· elle.
O Verissimo déra trez passos para accender
utn cigarro no de um musico que estava senta-
do n'um borr1bo.
-E' clle!- repetiu o a bbade.- \ 7 ocê não o
viu coxear?
- Falle baixo, fallc baixo, c não olhe muito
para elle, que eu já o vi deitar-nos os olhos,-
acautellou o Nunes.
-T'atnbem eu ...
Estalou n'este comenos uma. gargalhada ge-
ral. \'erissimo tambem se riu, e deu paln1as.
-Olha! olhal a dar palmas l-notou o ab-
bade com transporte. Aquillo sensibilisou-o até
ás lagrimas I O snr. D. !Vliguel 1 a dar palmas
ás figuras do ilfedico fingido na- eira do Gon-
çalves cm S. Gens de Calvos! 'focante!
A risada geral e as palmas e os apupos não
era:n rigorosa mente uma ovação ao auctor do
entren1ez nem aos curiosos. Eis o caso. Na
scena I .a o Astolfo pede carinhosamente á filha
que côma alguma coisa. ~lathilde diz que não
póde, que não estâ enz si; que lhe acuda, que lhe
A BRAllLEIR.\ DE PRAZl~=-- 1-H

acudJ, porque unz suor frio lhe j":r.:; perder os sen-


tidos.
O gargajola esperava ser arnparado pelo ou-
tro. em harmonia cotn a rubrica que diz: Fz"nge
desnz .1io~ e . .-lstoljà \.1 susleJn nos br"1ços . .'\las ou
porque se antecipasse a desmaiar, ou porque . .4s-
toifo se d~1norasse a amparai-a, J'l.lthildc . escor-
regou de costas sobre o barro ainda fresco do
palco~ e. no acto de se erguer debaixo dos apu-
pos da multidão~ arr~gaçaram-se-lhe as saias c
saiotes até á cintura. Ora a Jl .1thilde não usa~:a
calcinhas. LT 111 escandalo.
\'erissimo Borges não pôde sustentar a gra-
vidade competente á sua pessoa. A natureza re-
bentou por elle fóra n'umas casquinadas convul-
sas que poderiam custar-lhe uma rnócada, se a
deflagração do riso não fosse geral.
i1l\.1tlzilde fugiu do palco, enfiou pelo palheiro
c nào voltou a scena. O ensaiador. o trolha, sa-
hiu ao terreiro a explicar ao publico a suspen-
são do entremez n'estas palavras: -Aquelle alma
do diabo despiu a farpella, t.: diz qut.: raios o
parta, se cá tornar. \T ocês póde ir á sua vida
que não ha hoje treato.
Corneçou a debandar o auditoria em grande
algazarra. \~erissimo parecia esperar que o galã,
o ~~~lhas junior, se despisse para se retirar. O
(..:i onça l vcs pergunta\. a -I h e : - e que tal este ve a
chalaça. senhor! .\\á n1ez pr'ó hotnem, que se
mais tivesse rnais punha ó léo!- e \·oltando-se
para o abba:le que. a pedido do Xunes, guar-
dava respeitosa di~tancia: -ó snr. abbade! coisa
assim náo consta! Eu. se me succedesse uma
d~ aq ucllas, tnettia a cabeça n ·um folie.
- Sã•) acasos, dis.s\! \Terissi!no co1n indulg~n-
142 A BRA7ILEIRA DE PRAZINS

cia. -~ão se lembrou que estava vestido de se-


nhora.
O abbade ganhou animo, abeirou-se do Gon-
çalvt!s, cumprimentando o outro cerimoniosa-
menh:. e disse:
·--O entren1ez não presta para nada. Se o
homem não ca hisse~ ninguen1 se ria.- Provavel-
Inente ... --assentiu o Verissimo~ correspon-
dendo á cortezia do l,orquato Nunes que pare-
cia aproximar-se mais acanhado.- Estes casos
de escorregar, accrescentou o desconhecido~
acontecem nos prin1eiros theatros do mundo e
até nas salas onde se dança; e de ordinario as
senhoras que desastradan1ente cabem são verda-
deiras senhoras. E' muito peor e n1ais melin-
droso.
O abbade e o ~unes com tnuitos gestos af-
firmativos-que sim, que era muito peor, e mais
melindroso, muito n1ais.
Ot!rivou a conversação para as bellezas natu-
raes do .Vlinho. O desconhecido sentia ter vindo
no inverno, quando apenas se adivinhavam as
pompas da primavera.
Principiava a choviscar. O abbade offereceu
a sua casa ao forasteiro, en1q uanto não estia va
a chuva. Verissin1o acceitou por tnornentos, visto
que não se prevenira com guarda-chuva- um
traste que detestava.· Os aguaceiros repetiram-se
com pequenas intercadencias, :varejados pelo
sul; por fim, as cristas da serrania empardece-
ram, as nuvens rolavam pelos declives como es-
carceus a despenharem-se, fechou-se o horisonte
sem un1a nesga, e a chuva não parava. O ab-
badc não permittiu que o hospede sahisse com
tal tempo e já perto da noite.
Durante a ceia: appareceram algumas rapa-
A BRAZILEIRA DE PRAZC'S 143

rigas mascaradas corn lcnçoes, abraçando a Se-


nhorinha que servia a meza, e dizendo em fal-
sete pilherias ao Xunes a quem chamavam Tro-
cl..Jtes e préczu·ado1· de causas perdidas. \T erissi n1o
n1ostrava-se contente e dizia :
- flotn povo! excellente povo I Este .\linho
é o bom coração de Portugal, c os seus habi-
tantes, segundo me consta, possuern os melho-
res corações do reino. r..:ram dignos de ser mais
felizes do que são, carregados por tributos. es-
magados pelo peso dos empregados publicos que
sã o o flagello de Portugal. ..
O padre escutava-o corn religiosa attenção ~
o Xunes beliscava a cô-xa do abbadc que tomára
a presidencia da 1neza e pozera o hospede á sua
direita.
No fim da ceia, o padre ~\arcos com o copo
na mão, c de pé, disse que fazia uma saud~ 30
seu- hospede.. porque lhe parecia que tinha a
honra de bebe r á s a u de de um r e a I is ta, c1' u m
partidario de sua magestadc o snr. D ..\liguei
1. 0 que l)eus guardasse I O hospede agrad~ceu.
declarando que mesmo n'uma roda de liberaes
não negaria os seus sentimentos politicas: que
era realista, e como tal brinda va á sa ude de to-
dos os amigos do principe proscripto.
O ~unes dava canelões intelligentes ~ ás
vezes dolorosos no abbade, que o encarava de
escon"o como quem diz:- percebo: não faça
de_ mim asno ; se i q u ~ estou fali ando com c l-
rei.
A creada deu parte que estava pron1pta a
cama;-quando Vossoria qtlizer-disse ella ao
hospede. \'erissimo sorriu-se agradavclrnentc:
- (~ue inco"tnmodo estou dando a esta cx-
cellente familia ... Irei descançar, snr. abbade,
1-H A RR.\ZlLEIRA DE PRAZl~S

e snr. l"orquato ... parece-me que lh~ OU\ i


chamar To1·qualo . .
-~unes E rias, um creado de v.ossa ... - ~
su~teve-se.

Dizia-lhe depois o abbadc no quinteiro:--


\7 oée ia-se estcndc·ndo, X u nt:s! l~steve por urn
triz a dizer. unz cri:;.do de 'Vússa nz~lgest.:Lde, não
esteve?
-Por um tril. abbade, que me estendia!
rral é a certeza de que está e l-rei n \:sta casa!-
r: conl transport~ olhando para as janellas:-
Onde está pernoitando o snr. D. ~liguei 1. 0 ! o
rei amado dos portuguezes. na pobre residencia
d~ S. Gens de Cah·os! Isto parece um sonho!

. . \ segunda-feira de entrudo foi u1n chover


d~sabalado. Não houve entremez nem se via
vi,·a alma no cruzeiro. O abbade não consentiu
que o hospede se retirasse; e, aconselhado por
:'\unes, mandou á Povoa buscar a bagage1n.
Era um bahú de lata amolgado na tampa com
um cadeado roído de ferrugeni. O legitimista
ainda não tinha dado nome algum, nem os ou-
tros ousavam abrir ensejo a que elle tivesse de
o inventar. Seria indelicadeza obrigai-o a nlen-
tir. Alétn de que, o padre ~'larcos, tratando-o
sempre por senhor.- o senho1· isto~ o senhor
aq uillo- cn tendia que se a proxin1a va do tra-
ta n1en to que se deve aos reis, e ao n1esmo ten1-
po ia insinuando ao reai hospede que já o co-
nhecia.- I~om é que elle se vá persuadindo
que não somos patêgos -dizia o abbade ao :\u-
nes.- Sim, bon1 e que se persuada... \·ocê
percebe ... E piscava com esperteza.
-Ora, se percebo! O abbade tem andado
A BRA71LEIRA DE PRAZI!-;S

cotn uma cabula n1uito fina. Eu é que n1e custa


a ter mão em mim . ..t\ minha Yontade era dei-
tar-me de joelhos aos pés d'elle, e dizer-lhe:
{< l{eal senhor, nada de disfarcc:s! Aqui estão
dois vassallos de Yossa magestade que lhe offe-
recem o ~eu sangue!~,
-Deixe estar. acommodava o padre, deixe
estar, Nunes ... As coisas não vão assim ...
(~uando fôr tempo. eu lh"o direi ... Nada de
espantar a caça.
O Verissimo pediu ao abbade algum livro
para se entreter, e não o obrigar a atural-o. O
padre levou-o ao seu quarto onde havia uma
estante de pinho com trez lotes de livros. 1\1os-
trou-lhe o Punhal dos Corcundas, a Defesa de
Porturzal do padre AI vi to Buela, a Besta esfo-
Lld a. (_os Bu1To~ ~ e o . .Vovó Principe. O \-r erissi-
_tno levou-os para o seu quarto, excepto os Bu,·-
ros; disse que não gostava de poesia. Fallou
com louvor do padre José .t\gostinho e de Fr.
Fortunato de S. Iloaventura- columnas do al-
tar e do throno, que tinham deixado dois va-
cuos impreenchiveis na phalange realista. Per-
g-untou-lhe o abbade se os tinha conhecido pes-
soalmente.- Que sim~ como as suas mãos ...
I~ sorria, como o príncipe proscripto, se lhe fi-
z~ssen1 semelhante pergunta.
-Que prazer teria o padre José Agostinho,
se hoje vivesse e podesse vêr el-rei! ... meditou
o abbade com a sua grande perspicacia obser-
vadora.
-De certü ... -concordava o \rerissimo in-
dolentemente.- ~.\1as quem ten1 agora esperan-
ças de vê r l). :\'liguei em Portugal?
-l·:u, senhor, eu!- respondeu o padre ba-
tendo na arca dn peito com as mãos ambas-Eu!
10
146 A RRAZILEIR.\ DE PRAZI~S

O Verissimo folheava o Punhal dos Co1·cun-


das, e parecia não perceber a vehemencia do
padre.
-Bons desejos, bons desejos do caro ab-
bade ...
-. l~ de q uasi toda a nação portugucza, se-
nhor! D. i\'\iguel 1. nunca deixou de reinar nos
0

corações do seu povo. Eu tenho na tninha alma


o retrato cl'elle desde que o vi ha treze annos
em Braga e lhe beijei as suas reaes mãos!- f:s-
candecia-sc o enthusiasmo, punha as tnãos,
chammejavam-lhe nos olhos reflexos do fogo
jnterno; e o \rerissimo continuava a folhear o
Punhal dos Corcundas.
-Então viu-o, abbade?
-Sim, meu senhor, vi-o com estes olhos,.
toquei-lhe com estas 1nãos.
-Ainda se recorda das suas feições ?
-Perfeitamente.
- Ah I se o visse hoje~ decerto n não conhe-
cia ... Está tnuito acabado .. .
-Conhecia, conhecia .. .
: :O abbade sentiu um raio de dramatisaçào
que o vibrou todo. Eriçaram-se-lhe os cabellos?
e coou-lhe pela espinha utna faisca electrica.
Fez um passo atraz~ e quando o Verissirno re-
petiu:« l~ra impossível conhecêl-o )) o padre pôz
um joelho em terra, estendeu o braço direito, c
com o dedo indicador em riste, exclamou:
- Eil-o I eil-o l
-O' abbade! o snr. está allucinado I Por
quem é, levante-se! J..:u não sou quem pensa!
-Estou cotno devo estar deante do meu
rei!- tei1nou o abbadc, com os dous joelhos no
sobrado.
A BRAZILEIRA DE PRAZINS 147

- l. . evante-se que vem gente I - dizia o ou-


tro, ouvindo passos na escada.
Era o Nunes.
-Entre, amigo l-disse o abbade, respon-
dendo ao visinho que pedia licença.
l'orquato encontrou o abbade de joelhos e
o Verissimo esforçando-se por levantai-o.
-Ajoelhe a meu lado, Nunes! que eu estou
aos pés d' e l-rei I -exclamou o padre.
I~ o outro, ajoelhando:
-Eu já o sabia, real senhor!

I~. oi assim que se Inaugurou a côrte de D .


.\liguei t. em S. Gens de Calvos, segunda-feira
0

de entrudo de 1845, ás 3 horas da tarde.

-,
XII

·DEPOis, bem sabem, senhores, como aquelle


padre Rocha despenhou abruptamente o
desfecho da farça, cuidando que vingava
a moral e punia com degredo o scelerado que
infamava o sacratissimo nome de el-rei D. 1\'li-
guel. No transito para a l~elação, a meia legua,
na estrada do Porto. o Verissimo com delicadas
maneiras e o seu aspecto veneravel, obteve que
o sargento da escolta lhe permittisse alugar a
mulla de um a.lmocreve que seguia a mesma
direcção. Cavalgou na albarda da tnula arrea-
tada com chocalho, sem estribos; empunhou a
corda do c a brêsto, e ladeado de doze praças do
8, entrou ao cahir da tarde em liamalicão.
O 'Torres de Castellões, o administrador,
legitimista no fundo, bom lavrador, mandou-lhe
cama para a cadeia e permittiu-lhe que ceasse
com um amigo que o seguira de longe. Era o
~unes, o Pylades das horas certas e incertas.
Orestes estava desanimado; queixava-se das
150 A BRAZILEIRA DE PRAZINS

phantasias do outro, considerava-se perdido.-


Pobre Li bania I-=-- deplora va, quando ~lia souber
que eu estou na Relação!
Como tinha algutna pratica do fôro criminal,
o Nunes consolava-o: que não havia tnateria
para pronuncia; e, quando fôsse pronunciado,
a f{elação o despronunciaria. Eu é que vou ser
o teu procurador, se tnc não prenderem -ac-
crcscentava tnuito confiado na lei e na sua acti-
vidade.- Quanto á phantasia do conto de réis,
já não falta tudo, porque tens as cen1 peças das
llotelhas. Se te deixatn ser rei mais um dia ou
dois, tinhas n~esta santa hora 3:7so8ooo réis.
-1'u gracejas e eu vou esperar na cadeia
uma sentença de degredo-atalhou o Verissi-
nlo, n'aquella estranha situação, nunca experi-
mentada, de ouvir os passos da sentinella ren-
tes com a grade do seu quarto. A's oito da noi-
te~ fechára-se a porta da cadeia, e Nunes sahira
triste, com um pungitivo arrependimento de
mctter o atnigo n'aq uella rascada.
Ao escurecer do dia seguinte, o preso foi
conduzido do governo civil do Porto para a l{e-
lação com um 1T1andado do carcereiro na Dayo-
ncta do sargento. Quando sabia do governo ci-
vil, já Libania e o Nunes, que se antecipára a
procurai-a em Ramalde, o esperavam. A Libania
era uma forte mulher para os trabalhos da vida.
Fitou-o con1 um semblante acceso de coragetn,
utn sorriso affoito, e disse-lhe muito animosa:
Altna até Almeida e d'Almeira p'ra dicnte alma
sempre!
Verissimo occupou o quarto de 1\'lalta n. 0 2,
com uma rasgada janella sobre o Douro, um
quarto cheio de luz e de sol, d'onde tinha sa-
hido o Gravito para a forca- elucidou o car-
A BR.\.llLElR.\. DE PRAZIISS 151

c~reiro, e mostrou-lhe no grosso alisar da por-


ta as iniciacs de alguns padecentes com a data
de 1 82q. ·
A 1-.~ibania e mais o ·rorquato pernoitaram
na estalage1n do Cantinho na rua do Loureiro
c passavam o mais do tempo na Relação ....4-.o
fim de seis dias já o Nunes requeria a soltura
do prezo, por falta de nota da culpa; mas a
pronuncia chegou ao oitavo dia da comarca da
Povoa. O prezo aggravou para a Relação. Era
jui/ relator do aggravo o conselheiro Fortunato
Leite, natural do Douro, que, quinze annos an-
tes, no reinado de D. L'1iguel, tinha sido amigo
de Norberto Borges, c lhe dcvêra a fineza rara
de o avisar na vespera do dia em que lhe havia
de cercar a casa por ordem do facinoroso cor-
.regedor de ·villa Real, o Albano que os liberaes
matara1n, no n1eio de Ulna escolta, en1 1836.
Quando o relator folheava o processo, os appel-
lidcs do prezo, a naturalidade, os pormenores,
suggcriram-lhe meLnorias da sua perseguição
em r83 I, e o salvar-se tão extraordinariamente
pela amisade do meirinho geral. lnfonnou-se e
evidenciou que o Norberto Borges, de Alvações
de Corgo, era o pai do prezo. Estava pois sal-
\O o filho do seu bemfeitor, sem grande violen-
cia á justiça. porque a pronuncia fôra precipi-
tada, irregular, as testemunhas citadas-os pa-
dres suspeitos de frequentaren1 a residencia de
Cal vos- nada depozeram que proYasse proje-
ctos revolucionarias do aggravante.
E lavrou o accordão Lnuito recheado de gry-
pho:- Que aggravado era o aggravante pelo
juiz da comarca de L.anhoso, porquanto na pro-
nuncia de primeira instancia haviam sido des ;----__
prezadas as formalidades rnais curiacs, pois qu
1;)2 .\ RRAZILEIRA DE ~·RAZlN~

nenhuma testemunha depozéra que o aggravan-


te se inculcasse J). Miguel para pcrtJJrbar a or-
dem conslituida, charnando o povo á revolta; e
das respostas do aggravantc no interrogatorio a
que procedeu a authoridade administrati\·a
constava que o prezo guasi que fôra ob1-igado
por um clerigo cstupido e esturrado nziguelista a
deixar-se· chamar D. J_11iguel 1. o; mas não cons-
tava nem se provava que o _aggravantc se apro-
veitasse de fal fraude e irn postura para extor-
qui r valores aos seus estupido.'; cortezâos; o que-
decerto praticaria um Ranz2nho decidido a fin-
gir-se fJ. i11iguel para ç>s· espoliar. Que a pro-
nuncia fôra iníqua, atabafada apaixonadamente,
e sem baze, visto que nada se colhia dos depoi-
mentos das testemunhas~ e apenas se fez obra
por hypnthcses c indicias, fundada em un1 rol
de individuas alar7'es a quem o supposto Jno-
narcha fazia tnercês de comtnendas, de titulos~
de patentes e até de mitras, sem que d'ahi re-
sultasse alvoroto ne1n leve perturbaç~,io na orden1
publica, nem mesmamente datnno para os tnen-
cionaJos burros que pcdian1 as mercês, c que
deviam ser pronuncia_dos etn prin1eira instancia,
se a côrte de S. (;ens de Cal-nos. não fosse uma
fàrça de entrudo.
l~, dilatando-se filosoficatnentc c chistoso,
o juiz relator, addicionava~ aconselhando, que
seria bon1 e proveitoso que nas terras selvaticas
do .\linho se espalhassem n1uitos 1lfigueis d'a-
q uella casta e feitio até que os novos Sebastia-
nislas se convencessem de que sânzenle assim
poderian1 arranjar um. l\1iguel que lhes désse
comn1endas, titulos, postos tnilitares e prelasias.
Os desembargadores~ com o seu rapé enga-
tilhado aos narizes, riram muito do final do ac-
A BRAZILEIRA D~ PRAZI~S
---------

cordão, e, sorvidas as pitadas sibilla n tes. assi-


gnaram por unanimidade.
Reformada a sentença e pagas as custas pelo
juiz d3 primeira instancia, Verissimo foi posto
em liberdade; e. quando chegou ao escriptorio
do carcereiro _,\ello para se despedir, encontrou
a L.ibania de Covas desmaiada de jubilo. nos
braços da mulher do chaveiro. Cotno era feliz .
deixou-se ser mulher-chorou; e quando lhe
cumpria dar animo ao prezo, no pateo do go-
verno civil, riu-se com a valentia dos homens
extraordinarios.
O conselheiro L,eite recommendou ao Nunes
procurador que lhe mandasse a casa o Verissi-
mo. O filho de Norberto apresentou-se timora-
to, receoso. com tnaneiras s.ubn1issas, mas di-
_gnas d'um f~orges Camêlo inf~liz .
.O desetnbargador explicou-lhe que o cha-
n1Úra para lhe fa.ler conhecer a divida que lhe
pagou, posto que as situaçücs fossem n1uito
di\·crsas. I~npropcrou-lhc severan1ente o seu
delicto; estygmatisou a acção de permittir que
o julg-asscn1 ·[). {j\figuel; fallou acerba mente
contra este tyranno parricida, incestuoso. cana-
lha, e tenni nou por lhe aconselhar o trilho da
honra, o trabalho, e a expiação das suas irre-
gularidades. mostrando-se digno da compaixão
que lhe inspirára, despronunciando-o. O \ 1eris-
simo beijou-lhe a mão~ e recusou dez pintos
que o conselheiro lhe dava-- que, se um dia
necess~tasse, lh'os pediria. J~: o Fortunato l_ei-
te, a nr:
-l~ntão as b~stas dos abbadcs sempre ca-
hiram? Fez você n1uito bem. Devia esfolar es-
sas cavalgaduras I
O \'erissimo recuava muito agradecido.
154 A BRAZILEIRA DI<: PRAZll\S

O conselheiro Fortunato t!Xerceu uma ener-


gica influencia vitalisadora na nova .encerebra-
çào de \r erissi mo liorges e bastante na do ·ror-
quato ~unes l~lias.
Por tnedeaçào do bondoso desetnbargador,
obteve o Nunes alvará de solicitador de causas
nos auditorias do Porto. Ganhou boas relações.
- Era esperto, zeloso e paga va-se regularmente.
Chamou para a cidade a mulher e os dois
filhos. Alugaram casa na rua de ·rraz as duas
famílias. Davatn-se n1uito bem, e gastavan1 eco-
nomican1ente os 7 so/Jooo ré is das Botelhas, de
n1eias com os sala rios de procurador. O \T eris-
siino frequenta va á noite o café das Hortas, jo-
gava o quino, e, de vez em quando, ia ao· café
da rua de Santo Antonio ouvir os demagogos
dos manos Passos, que o festejavam e catequi-
savam. Dava-se com os Navarros, com o Al-
meida Penha, com os Peixotos vidraceiros.
Elle, sobpondo ao reconhecimento os escrupu-
los de espião, contava ao conselheiro L.eite, Ca-
bralista intransigente, os planos dos setembris-
tas, os clubs, as lojas de carbonarios, as tra-
moias arranjadas etn Braga pelo barão do Ca-
sal, muito setembrista, padre Alves Vicente, de
co1nbinaçào com o Passos José, com o Faria
Guimarães, com o medico Resende, com o Da-
masio, com o Alves 1\'lartins. O governador ci-
vil, visconde de l3eire, estava em dia com as
conspirações da vi e lia da Neta -aq uelle baluarte
da I. . iberdade que demorava paredes-meias com
os escombros do Deboche, não griphado, muito
á franceza;- tudo acabado hoje em dia, e soter-
rado debaixo cl"uma loja de modas, d'utn café
c d'uma taverna,- o vitalismo soez e chato da
decadencia.
A BRAZILEIRA DE PRAZI~S 155

Verissimo arrecadava utna gratificação, umas


seis libras tnensaes, tncsquinha paga dos servi-
ços que fazia á ordem, á tranquillidade civica
da rua das Flores c das Congostas.
Na contra-revolução de 9 de outubro de 46,
quando foi prezo o duque, José Passos encon-
trou o Verissitno na Praça Nova, cha1nou-lhe
patr1:ota, pôz-lhe a mão no hotnbro, sacudiu-o
pelas lapellas, c disse-lhe que tnovesse, que
agitasse as massas, por que o duque estava a
desembarcar. Os sinos tangiatn a rebate, a ple-
be ondeava para Villar, n'um restrugir de tem-
pestade, quando o Verissimo e o Nunes procu-
raram o conselheiro Fortunato que tiritava de
mêdo com as suas enxundeas espapadas entre
as filhas, n'uma consternação. Disseram-lhe que
~e iam armar para se constituirem sentinellas
da segurança do seu betnfeitor. O conselheiro
abraçou-os muito commovido, n'uma excitação
apopletica.
Depois formaram-se os batalhões nacionaes.
Verissimo e 'forq uato foram promovidos. a te-
nentes do batalhão da Vista Alegre. Quando
foi da refrega de \ 7 alpassos tinhan1 cotnprehen-
dido intclligente_mente que a retirada de Sá da
Bandeira, da veiga de Chaves, era a fraqueza
precursora de uma derrota. Conheciam o per-
tido espirito do 1 5 e do 3 de infanteria,- pre-
viram a traição. rrinham pensado maduramente
os dois tenentes, sem enthusiasmo, com a pru-
dencia dos quarenta annos apalpados pelos re-
vezes de vinte batalhas. Resolveram desertar
quando os batalhões de linha se passassem para
as forças reaes.·1,ravou-se o encontro de Valpas-
sos. Com os dois regimentos que n'um turbilhão
e a gritos de Vi~·a a l~ainlz ..1 se abraçaram ás van ..
A BRAZILEIRA DE PRAZINS

guardas do Casal, tamben1 elles, por debaixo


do fogo do seu batalhão, se passaram, dando vi-
7Jas ..i Car/..1 Cnnslilucion::el. Eram a obra cla pru-
dencia e do conselheiro Fotunato Leite.
Quando o barão de Casal foi espostejar os
tniguelistas a Braga, os dois tenentes apresen-
tados pediratn venia ao general para servirern
na columna do visconde de Vinhaes;- que ti-
nham repugnancia de pelejar cara a cara corn
os seus parentes bandeados nas guerrilhas do
padre Casitniro José Vieira e tlo padre José da
Lage. A vergonha in1punha·lhes o dever de
dourar a rnentira. Não lhes pareceu decente
irem acutilar nas ruas de llraga o Christovào
llezerra, de f3ouro c o abbade cfe Calvos e o pa-
dre 1\\anoel das ;\gras. Não poderiam vêr sen1
magua a soldadesca a dar sdque aos dinheiros
das snr.as 13otclhas. ·
Ainda assin1 não poderan1 esquivar-se a per-
seguir os realistas da comitiva de l\1ac-I)onald,
desde Vi lia I<ea 1 até Sa broso; !nas não desem-
bainharam as espadas, porque o visconde de Vi-
nhaes. os acln1ittiu ao seu quartel-general, e os
cadavcres que encontraram pela serra do ,'V\ezio
até Sabroso, onde pereceu acutilado o caudilho
escassez, eram façanhas das guardas avançadas.
Os dois tenentes não deran1 nem tiraram gôta
de sangue n'esta lucta fratricida. _Um triumpho
a sêcco.
(~oncluida a guerra civil pelo convenio de
(~ran1ido, depositaratn as arn1as e pediram em-
pregos. O conselheiro L.eitc, o Casal, o Vinhaes,
o Alpendurada, o Carneiro Geraldes, o Joaquim
l'orq uato, o centro cabt:alista recomn1endou-os
á consideração magnanima de sua magestade.
O Nunes: como sabia do fôro, foi despachado
A BRAZlLEIRA DE PRAZl~S i 57

escrivão de direito para a Extremadura. \Teris-


simo Borges obte\·e tuna fiscalisação rendosa dos
tabacos e ~abão em rrraz-os-~lontes: depois foi
transferido, cotn vantagem, para a alfandega de
Vianna do .\linho: e por ultitn~) para uma direc-
ção aduaneira do Ldtramar. Ainda \·i \"ia ha pou-
cos annos, porque utn jornal da localidade, de-
baixo de um. symholo funebre -um anjo cur-
vado e deplorativo sobre a sua urna, enlutada
pelas madeixas de un1 chorão-publicava:

\rerissilno Borges Canzêlo da 1lfcsquita dá


p.11·teaos seus 1Ht1nc1·osos e respeila7Jcis an1igos
que foi Deus sen,ido clzan1ar á su.1 di~'ina presen-
ça~ hoje pelas 5 horas da 1nanhã, sua chorada es-
posa D. Libania de ColJas Borges da 1'fesquila,
a cujo cadavcr, etc. Pelo seu profundo estado de
consternação pede desculpa de czu11prinzentos.

O jornal, depois de uns adjectivos lugubres


e velhos como a morte, acrescentava: A exc.ma.
snr.C' D. Libania, que todos clz.oran1-os conz seu
exc. 1110 ·viuvo~ era zuna senhora de esnzeradissi1na
educaç.io, pertencia á illuslrc familia dos CoJJas;
- nzodêlo no tracto 1:nsinuanle co1n que captivalJa
o 1·espeito c a anzi:adc de todas as pessoas d'esta
Ilha,_ que li~'eranz a fortuna de a conhecer. Rece-
ba s. exc.a o snr. conselheiro-director os nossos
mais sentidos pesanzes pela desJ:raça que acaba de
o ferir ilnplacarcbnenle.

\·cris~imo e :\unes podem ainda \·iver, por-


que eram robustos de corpo c d'alrna.

XIII

O ZEFERl::'oJO deixou o Cerveira Lobo en1


Quadros~ com os trez contos de réis, foi
para as L. amellas, c entrou de noite para
que o não vissem. Elle tinha-se gabado aos vi-
sinhos de que estava despachado sargento-mór
e seu pai coronel reformado. .Ao José Dias de
Villal va e mais ao pai que era regedor, n1a ndá-
ra-lhes dizer que elles brevemente haviarn de
topar com o seu hotnetn. Da 'lartha de Prazins
dizia trapos e farrapos. r\ sua paixão não tinha
outro respiradoiro. r\lém d'isso, não podia es-
quecer-se da nádega exposta pelo cão ás dcs-
~ompostas gargalhadas da rapariga. l~ra un1a
vergonha chronica. r.:, para remate de desastres.
voltava para as Larnellas, a ouvir as rabugices
do pai que lhe chamava cavalgadura- que se
deixasse de politica e fosse fazer paredes. q llt.: e
o que elle sabia.
Constava-lhe de mais a rnais que o jose Dias,
o estudante, estava sempre em Prazins, e tinha
tGO A BRAI.ILF.lRA DI<~ PRAZli\S
--------

ido com l\1artha e mais o Simeão ao fogo preso


da ron1aria de S. ·rhiago da cruz. \'iram-os to-
dos tres a tom<:tr café de madrugada. n'un1a bar-
raca, a coxixaretn os dois muito aconchegados~
en1quanto o velho tosquenejava a dormitar.
O pai de José Dias, o Joaquim dt! \'illal va
era um lavrador de prin1eira ordem. L.. avrava
quarenta carros de tnilho e centeio, uma pipa
de azeite~ dez de vinho, tnLiita castanha. tinha
trez juntas de bois chibantes e poldros de crca-
çào. O José~ meeiro no cazal, a não se ordenar.
era um dos primeiros cazan1entos do concelho.
O rapaz amava castamente a l\1artha com a
pudicicia do pritneiro amor. l~lla tinha uma for-
lllO'Ura tneiga, delicada e supplicante. Parecia
pedir que a não Ítnmolasse1n a uma paixão sen-
sual ~ mas, se o seu a1nado o exigisse. a victima
coroar-se-ia de flores, e iria risonha e mansa-
mente para o sacrificio. rrinha extasis a contem-
plar-lhe os cabellos loiros e a pallida face doen-
tia; deixava-~e beijar com a impassibilidade de
utna santa de jaspe- um quadro paradisíaco
sem fructas nem cobras.
O José .não necessitava pedil-a ao pai na in-
certeza de uma recusa. Disse-lhe que ella haYia
de ser a sua esposa: a creança contou ao pai as
palavras do amado c o Simeão:- Ora venha
de lá esse abraço, amigo e sê Zé I-- e apertou o
futuro genro con1 a ternura de pai que arra1~ja
a sua filha conzo se quer. .
l\1as os paes do estudante já tio hatn dito ao
rapaz que mudasse de rumo, que a n1ôça de
Prazins não era fôrma de seu pé. A mãe prin-
cipalmente protcstavà que, etn quanto ella fosse
viva, a tal tllha da l~enoveva de Prazins não ha-
' ia de ser sua nora, nem q uc a levasse o diabo,
A BRAZlLKlRA DE PRAZINS 16i

e Deus lhe perdoasse, se peccava. Justificava-se


dizendo que a ~lartha era de ruim casta; que a
mãe, a Genoveva, dera desgostos ao homem,
pintava a tnanta nas romarias, andára muito
fallada com um frade de Santo ..fhyrso! e um
dia pegára a dar gritos na egreja; toda a gente
disse que ella tinha o demonio no corpo, e afi-
nal morrêra douda, atirando-se ao rio A \·e.
E constava-lhe que o avô d'ella tambem nào
era escorreito, e quando já tinha sessenta annos
mandára fazer uma sobrepeliz, abrira corôa, e
onde houvesse um defunto lá ia con1 um ripan-
so á egreja e punha-se a cantar como os padres.
A tia .\laria de Villalva tinha inconscientemente
este horror moderno, scientifico da hereditarie-
dade; mas o que mais a impulsionava na sua
resi..,tencia aos rogos do fi I h o era ter sido 1ná
mulher a mãe de ~\lartha. De nzá an,ore ruim fru-
cto-era toda a sua philosophia que se encon-
tra diluída modernamente nas explorações phy-
sio-psycologicas de Janet, de J.\laudsley e no de-
terminismo.
O Joaquim de Villalva, muito instado pelo
filho e pelo padre Osorio, o de Ca Ide lias, pro-
mettia fazer o que a sua companheira fizesse;
mas dizia-lhe a clla ean particular: -l,u aguen-
ta-te, ..'laria; nunca digas que sim, ouviste? E
ella:- Deixa-me cá, homem! \'em barrados.
Credo!
1\ tia jlaria era muito rezadeira, erguia-se
de noite para não perder a sua missinha nove-
rão ao romper do dia, e garganteava com uma
melopêa fanhosa a via-sacra na quaresma, á vol-
ta da egreja; presenteava os santos dos altares
com os mimos da sua lavoira que se leiloavam
ao domingo no adro, dava cama e meza unctuo-
u
t62 A HR.\ZlLElR.\ DE PRAZl!'ol~

sa aos tnissionar.ios, confessava-se todos os rne-


zes. e sentia pelas suas visinhas rnenos beatas o
inefTavel prazer de atfirmar que haviam de cahir
vestidas e Cétlçadas no inferno. O filho pene-
trou-se d'uma idéa trivial a respeito de sua mãe:
-Que os sentimentos religiosos a levariam a
dar o consentitnento, se .\1artha commettesse um
d'csses pcccados que se ren1edeiam com o ma-
trimonio O padre Osorio dizia-lhe que a inten-
ção era honesta, mas o expediente mau. Não lhe
citou tht.>olngns nem precl'Ítos de origem divina.
Argurnt·ntou-lhe com a hypothese da pertinaz
rcsistencia· da tnàc. Que não esperava nada da
sua r lig-iãn,- um habito de tregeitos de mãos
e de b içf,s, o autotnatismo idolatra dos selva-
gens da America que davam guinchos mecha-
nico~, prostrando-se por terra, quando ouviram
a pri•neira mi~sa; que a religião das aldeias,
sobre a dos indianos da caterht>se dos jesuítas,
as Vitntagens que tinha era a hypocrisia em uns,
e o fanati~mo em outros, quando não se ajun-
tavam arnbas as coisas nos mesmos fieis. O pa-
dre Osorio parochia\'a c conhecia o seu rebanho,
joeirétndo-o pL·los crivGs do confessionario. r\ão
conhecia mt"nos a tia .:\laria de \ 7 illalva. Attir-
mava que a fragilidade de .\\artha seria para a
velha mais utn 1notivo de adio e desprezo; por
que. na sua cartilha c nos dictames dps seus
directores espirituaes, não se· lia nen1 ouvia que
a mãe devia encobrir a deshonra de uma rapa-
riga casando-a com o seu filho, seductor d'ella.

As reflexões do vigario de Caldellas eram


opti mas, n1as ·ex tem para neas.
Um offi.cial de pedreiro de Prazins, que tra-
balhava corri o mestre Zeferino, contou-lhe que
A HRAIILEIR.\ DE PRAZINS 163

utna noite se enganára cotn o luar, e, cuidando


que era dia nado, se levantára para ir para a
obra: mas que ao passar por diant~ da casa do
Simeão ouvira duas horas no relogio, e vira luz
pelas frestas de uma janella. Que se pozera á
coca debaixo de um carvalho, a desconfiar que
a luz aqut.>lla hora não era coisa boa, e \:stivera,
1'ai nin 1'~i, ó f>ern::zs p'ra que te quero, lembran-
do-se se seria bruxedo ou édma penada, por que
se di~ia que a Geno\·eva do Simeão. a que ~e
deitara ao rio, não podia entrar no purgiltorio,
e rnorrera corn o diabo no corpo, salvo Slja.
Esta va n'isto q uandn a luz se ~ tuni u, c se coou
pelas frestas d'outra janella. e logo depois n'ou-
tra mais baixa. onde um homen1 podia chegar
corn o cabo d'urn rnachado. l\:'isto apagou-se a
luz e abriu-s~ a janella de portaJas sem vidros.
Dava-lhe a chapada do luar; -~ra con1o ~e fos-
se d1a. O p,cdr\.·iro, muito no ~scuro da rarna6a
do carvalho'! viu apontar urna cab~·ça e dl·pois
meio corpo de homem que se pôl ás cav111Jl-iras
do peitoril da janella, quedou-se a olhar e a
escutar a um lado e outro; depois. desmontou-
se muito devagarinho, sem tugir nen1 mugir,
pendurou-se no peitoril e deixou-se cahir, fi-
cando em pé ..A janella fechou-se! e o José Dias,
que o opera rio conheceu como se o \ is~e ao
meio dia, metteu-se ao caminho de \'illah·a,
por signal que levava sapatos de borracha que
brilhavam ao luar como um e~pelho.
O oratoriano .\lanoel Bernardes, como é no-
torio, escreveu um livro edificante, muito pie-
doso, chamado "1 r1nas da é,astidade. O my~tico
filho de S. Philippe Nery, com duas palavras
sãs, d'um realismo seraphico, cabalmente ex-
plicou a situação d'outro José Dias a respeito
164 A BRAZILEIR.\ DE PRAZINS

d'outra :\'lartha. Conlzccia-lhe o lez"to, dizia .elle.


E' o lnais qu~ se póJI.'.! dizt!r setn escandalisar
ninguern. Cqnhecia lht! o leito. ·
.\las o z~r~rino é que sentiu em cheio no
peito arnante a fa :ada di) escandalo. O official
viu-o sc.:n ta r-se sob r~ urna padieira que esta va
eSLJuadriando. e. C•>m o rostq entre as mãos,
d~sfazt!r-s~ t:m pranto. Ell~ tinha amado aquella
raparig-a d\.!s:l~ qLJe a vira ao~ trL·z~ annos. ·rra-
balhára e roubara corno ~·all'-·go para a P'•der
corn pra r ai) pai por u rn C•>nt•) ~ qui n hentns e
pi-.;o. \L:tt~u-se na p •liti.:a: L:z·st! sarg~nto-rnór
a vêr se SI.'.! l~vantava a uma altura ern que a
1\1 trtha o a~h ts..;e dig 10 d\:lla e superior ao es-
tuJante. O..:sabaJas a..; t."'~pL·ranças com a pt1 i~ão
do patife d~ Calvos s~is,nava ainda ern voltar
de novo ao ca1npo quc1ndo vi~sse o D . .\\ig-ul."l
auth~nticn~ porqut! o t~n~nte-coronel de Q aa-
dros lh~ dilia qu\! t:l-rei ch~g-ava a Portugal na
pritnavera do anno seguinte- affirmava-lh'o o
padre H.o..:ha para o con,olar juntaanente corn as
b..:bed~iras quotidianas. ·ru lo acabado. perdido.
corno St! lh.: rnorrl..!sse a Eva do seu paraiLI)!
E por isso o pedr~iro chora va como os grandes
pot:tas trahidos. cqmo Calnõc.:s, como ·rasso,
como ;\lfred dt! ~lu..;set. 1\s lagrimas na cara
tostada d'aquelle op;:rario tinham o travo das
qui:! a poe~ia crystalisou no pantheon dos mar-
tyres do a n1or. ·
0\!pois, l~vantou-se, limpou as faces á man-
ga da camisa, peg•)U da t:squadria e continuou
a trabalhar, assobiando a musica triste d'uma
cantiga d'esse t~mpo:

O' mar, se queres.


Tem dó de rnz"rn.
o\ BR.AZILEIRA DE PR.AZINS 165

Ec;;tes assobios eram o silvo da serpente da


vingança; mas o seu rancor não punha a ponta-
ria em ~lartha. s~ deixava de cinzelar a pedra,
e fitava os olhos extaticos n'um immenso vacuo,
via passar lucilante a ima{.!em da pequena pura,
angelical como a vira aos treze annos. Um
grande romantico- urna explosão de idl'aes
que flnn.-j;J,am d'aqucll'-' pedreiro como um can-
teiro de boninéis no:' musgcss de un1 pt:nhascal.
lia, ia d\:stas tran~i~cncias com os anjo~ cle~pe­
nhados. Dir st·-i~ que clle ticl-a lido as Cln-
jis.,ões de un1 filho do seczdo, oquella tor rl·nte
d ~ Ili g r i 111 as i!! n <., b t: is q u e 1a\' a os pés d t: u ma
dissoluta illustradéJ.
Elll~, de~de es~a hora funesta, pen~ou em
matar o jusé Dias; nléiS. nas ri . . as protuberan-
cids os~eas do ~eu grande cranl'O, a bos~a do
h o fl) i c id i o e ra n1 u i to r u d i n1l' n ta r. ·r i n h a tido
varias oc(a~iões dl: pndl'r-~c gabar d'e~sa per-
f~ição. llaviam-lhe batido dois estudantes n'um
pinhaL por causa déts denunc1as ao padre mes-
tre Roque; e. quando o cão do Dias lhe rasgou
a calça n'um sitio melindroso. o Z'-'fl:rino des-
confiou que, se fosse capaz de matar um ho-
nlem, deveria ter atirado cotn o machado á cabe-
ça do caçador. Elle queria espesinhar o cadaver
de José Dias, espostejal-o, trincai-o, mascai-o,
esmoêl-o, devorai-o. mas á maneira dos devo-
ristas incol u mes que compram um porco já
morto na 'Ribeira \ 7elha, e o esquartejam co1n
um grande regosijo anthropophago, com as
mãos ensopadas nas banhas da victima.

O pedreiro denunciante ~a contando em se-


gredo a toda a gente a descoberta que fizera
166 A lll:tAZiLI!:lRA DE PHAZINS

n'aquella noite em que se enganára com o luar.


A .\\drtha esta v a desacreditada na fr.eguezia; as
mulheres que sachavam os milharaes faziam
cotnlnentarios perpêtuos ao texto do pedreiro,
recordavan1 as façanhas da Genoveva, contadas
pelas velhas. e as mais antigas diliam que a
Brigida Galinheira. a\Ó da ~\lartha, já tinha
dado o cxen1plo á filha.- Uma geração de ma-
ra fanas do alto. dizia a tia Rosa de Carude,
cuspindo no chão. e pondo a soca em cin1a.
Riam-se do Zeferino que andava como a cobra
qut! perdeu a peçonha, muito escamado: que
lhe tinham sabido dois casan1entos com boas
lavradeiras, e elle diz que havia de ir morrer
solteiro ás Pedras Negras, depois de matar um
homern; e houve quetn affirmasse que o vira
com um bacatnarte debaixo dos carvalhos, por
essa noite fóra, defronte da casa· do Simeão.
Uma calumnia.
Avisaram a mãe do José Dias da espera do
pedreiro, e ella fez dormir o filho etn uma tra-
peira que não tinha janclla por onde saltasse,
e fecha va-o de no i te por fóra. rogando pragas
á serêsma de Prazins:- Que um raio a partis-
se e o diabo a lt!vasse para as profundas do
abysmo! Depois ia rezar a corôa cotn os crea-
dos, e rogava a Deus pelos que andavam sobre
as aguas do mar e pelas almas de todos os seus
parentes e visinhos, com uma intonação chora-
da que fazia devoção.
O José Dias vivia amargurado. Tinha sido
creado n'um grande respeito aos paes, e sentia-
se inhabil para lhes reagir. A doença de peito
que principiava a desvigorisar-lhe o corpo, im-
plicava-lhe com a atonia da alma. Sentia o
egoismo indolente dos infermos minados pela
A BRAllLElRA IJI:!: PHAZl!l.~ 161

~onsu1npção lenta. Invejava a robustez do ir-


mão, um trabalhador fort~ que dormia dez
horas, e ao romper da aurora ia lavar a cara ao
tanque e pensar o gado com uma grande al~gria,
de a~sobios remedando as requintas das chulas.
Passava tnuitas hnras corn o seu confidente, o
padre Osorio. Pedia-lhe conselhos- que arran-
jasse modo de elle poder casar com a .\lar tha.-
Que eu, dizia com desalento, não vou longe;
mas queria remediar o mal que fiz.
A .\1artha escrevia-lhe para Caldellas, porque
a tia .\1dria de Villalva, uma vez que lá \iu um
garoto com carta para o filho, deu sobre elle
com um engaço . que por pouco o não apanha
pela cabeça com os dentes do instrumer.to. 1\s
cartas eram desconfianças, recl·io do abandono,
lagrimas. O pai não a mortificava. J"lelo contra-
rio, dizia-lhe a miudo:- Se o Zé de Villalva
não casar comtigo, talvez seja a tua for tuna,
por que póde ser que teu tio adregue de gostar
de ti, e mais mez _menos mez elle r~ benta por
essa porta dentro rico como um porco. O bra-
zileiro da }{i ta Chasca que chegou agora diz que
elle tem quatrocentos contos fortes, p'ra riba,
que não p'ra baixo.- A -'lartha escondia-se a
chorar; e, ás vezes, lembrava-se do fim da mãe-
o suicidio; e punha-se a olhar para o Ave e a
escutar o rugido cavo de uma levada que pare-
cia trazer-lhe os gemidos agonisantes de muitos
.afogados .
. O Dias fallava-lhe na sua doença, no des-
fallecimento de forças q~e já o não deixavam
caçar, da tristeza que o consumia, do desamor
com que a familia o via padecer, do odio que
começava a ter it mãe, c das saudades dilaceran-
tes que sentia pela sua querida ~'lartha.-Que
168 A. BRAZILEIRA DE l 1 flAZINS

o seu amigo padre Osorio trabalhava para obter


o consentimento do pai; mas que, se o não ob-
tivesse, estava resolvido a fugir com clla, tnesm.o
sern recursos, ou com os poucos que o seu amt-
go lhe podia emprestar.
De tempo a t~mpo ia vêl-a de dia; mas a
mãe trazia-o muito espreitado, e ralava-o:-
que a tal croia havia de dar cabo d'elle. O
cirurgião tinha-lhe dito delicadamente que o
José ~1 busava do 6 ° Elia, como sabia os man-
damentos de cor e salteados, entendeu logo, e
dizia a toda a gente que o seu Zé andava assim
um pilharengo por causa do 6. 0 l~ra o resultado
de saber a doutrina chri~tã esta decencia no ex-
plicar-se por nu meros. As vis i n h as entendia n1-
na e diziam-lhe que o José andava forgado~ que
lhe mettesse uma enxada nas unhas e o pazes-
se a ro'jsar tnatto oito dias, que t·lle perdia o cio.
Decorreratn alguns n1ezes. Com a primavera
a saudc dt! José Dias pareceu restaurar-se. Elle
attribuiu as suas tnelhoras ao contentamento.
O pai, que era regedor, a pedido do governador
civil que o mandou chamar a Braga, por inter-
venção do padre Osorio, dava o consentimento;
mas a mãe recalcitrava. Esperava-se, porém . a
vinda dos missionaria<; a Requiào, para a redu-
zirem ao dever de catholica. O vigario de Cal-
dellas já tinha prevenido urn egresso do Vara-
tojo, fr. João de Borba da ~\1ontanha, das terras
de Celorico de Basto. d'uma força prodigiosa
em emprezas mais difficeis.
!\1artha recobrava alegres esperanças, e o 7e-
ferino das Lamellas digeria a sua dôr, assobian-
do a musica da mela ncolica ballada:
·o'mar, se queres,
Tem dó de mim.
.\ BlU.ZILElRA DI<: PH.\Zl~~

Para seu de~afôgo'l ia a miudo a Quadros


saber quando chegaria o snr. D.l\liguel. O Cer-
vt:ira estava relacionado com os setembristas.
Formára-se a juncção dos dois partidos hostis
aos Cabraes, aproximados pelas eleições san-
guinarias de tR-tS· O tenente-coronel reunia es-
pingardas em Quadros e dava dinheiro para o
fabrico de cartuxame no concelho da Povoa de
Lanhoso e nos arrabaldes de Guimarães. O pa-
dre Rocha communicava-lhe as noticias en' ia-
das de L. ondres pt:lo Saraiva. e consL"guiu que
ell~ fosse ao Porto receber o gráo de cotnmen-
dador da ord~m de S . .:\\iguel da ~t\la a ca~a do
João d'~\lbuqucrque, da lnsua. que representava
nas províncias do norte o (~rào-.\lestrado. O
z~fcrino sentia momentqS de jubilo de tigre que
se agacha a medir o salto á preza. 'l'inha um
·riso que era um ringir de dentes. Parecia-lhe
que estava a mastigar os figados do .José l)ias.
XIV

E Mmarço d'aquelle anno, 1R46, os setem-


bristas de Braga fomentaram os motins
populares do concelho de Lanho~o. Na In-
glaterra, na camara dos communs. Iord Bt:ntinck
explicou tragicarnente, em phrases pomposas. a
origem d'essa revolução. que u tn desdt:m indi-
gena chan1ou « rebelliào da canalha}). Elle disse
que os Cabraes nz:Ind:u·am construir cemite1·ios;
mas não os nzuraran1; de n1odo que ent1·avanz n'el-
les cães, J?alos e porcos braros e1n tan1anlza quan-
tidade que clzeglr1ranz a desenle1-r~.tr os cad:~:veres. 1
As nações e os naturalistas deviam formar uma
ideia assás agigantada do tamanho dos gatos
portuguezes que desenterravam cadaveres, e das
boas avenças dos nossos cães- com os referidos
gatos na obra da exhumação dos mortos, e não

1 Carta dirigid~t ao caJHtllzeiro)ost; /lume. Yt.:rsüo dt.:


Antonio Pereira dos Heis, 184 7, pag. 90.
172 A BRAZILEIRA DE PRAZINS

menos se espantarian1 da tàn1iliaridade dos ja-


valis que vinhatl) do Gerez collaborar com os
cães c gatos n'aq ue11a tnineraçào das 'Carnes po-
dres das terras de l ... anhoso. A origem pois da
insurreição nacional de 1846 está definida nos
fastos da Europa revolucionaria. Foi un1a reac-
ção. un1a batalha social á canzoada e gataria
confederadas com o focinho profanador do porco
mon tL·z. E d'a h i- procedeu escreverem os jorna-
listas da .•\li L rr an h a, um paiz sério. que a r~vo­
lução do ~\lir,ho era o <• typo da legalidade)>. Os
cadaYercs ser,,idos nos banquetes illl·gaes e no-
cturnos dos ja \'alis. com a convi vencia de gatar-
rôt.'S a rosnarem com o lornbo arriçado. c tno-
lossos de C<-·ltnilhos t:nsanguentados foi caso que
i 111 pressionou gra nd\;'men te as raças tud~scas,
por ser um acto prohibido pela Carta Constitu-
cional. Quer ft)~sem os setembristas de Draga,
quer a al..:att.·a das ft:ras col1igadas, o certo é que
a in~urreiçáo do ,\]to ·'linho talou esta provín-
cia e a transmontana. devastando as papelt:tas
impressas e os vinhns das tascas sertanl'jas. A
guerra rnotivada pelos gatos e seus cutnplices
fez soffrer ao capital do paiz uma diminuição de
77 milhões e n1eio de cruzados, segundo o cal-
culo do tninistro da f~zenda Franzini, muito re-
trógrado, mas utn genio no algarismo.
O Zeferino das Lamellas, ás primeiras com-
moções do ,·ulcão popular, nos arredores de
Guimarães, preparou-se; e assim que ouviu re-
picar a rebate etn Ronfe, cheio de ciun1es como
o sineiro de Notre-D ..vne,_ agarrou-se á corda do
sino, reuniu no adro os jornaleiros e vadios de
tres freguezias, e pegou a dar 1norras aos Ca-
braes com applauso universal. Depois, explicou
o que era o cadastro, confundindo este expe-
A BRAZlLEIRA DE PRAZI~~ 113

cliente estatístico com canastro :-que os Cabraes


e os seus empregados andava1n a tornar as ter-
ras a rol para empenharem Portugal á Inglater-
ra; que esses roes esta\·am nos cartorios das
administrações e em casa dos regedores; que
era preciso queimar as papelêtas e matar os Ca-
bralistas.
Etn seguida, invadiram a administração de
Santo Thyrso, quebraram as vidraças dos car-
tistas fugitivos e queimaram os impressos e quan-
tos papeis acharam, no Campo da Feira. De-
pois, abalaram para Farnalicão. Zt:f.:rino norneá-
ra-se chefre da gentalha embriagada nas adegas
arrombadas dos cabralistas. e alvitrou que se
prendessem os regedores que topassem. Dizia
que o Joaquim d~ Villah·a, nas eleições do anno
_anterior, muito socô.das, cascára nr.> povo c mais
os _cabos. na assembleia de L.andim, cacetada
brava. A bebedeira dos ouvintes dera á ped-ida
aleivosia do pedreiro vingativo o valor de facto
historico. O plano de Zc:ft>rino era abrir oppor-
tunidade a que José Dias fosse assassinado ou,
pelo menos, prezo e degredado como cabra lista.
\Tillalva fica,·a-lhes a g~ito, no caminho de
Famalicão. O amante de 1\lartha ouvira grande
alarido e vira ao longe a multidão que galgava
um outeiro turbulentamente. \'ia-se desfraldado
no ar, en1 oscillações largas, o pano escarlate
de uma bandeira: era um pedaço do velho es-
tandarte que servia nas procissões de Santa
"laria d'Abbade. José pediu ao pai que fugisse.
O regedor disse que não-que nunca tinha
feito mal a ningucm, nem sequer prendêra um
refracta rio: que o mais que podiam fazer era
tirar-lhe o governo.
José Dias tinha medo ás covardes ameaças
t74 .\ BRAZILEIRA DE PRAZIN$

do Zeferino; diziam-lhe que o pedreiro jurára


matai-o, e já constava que era elle o chefe da
guerrilha. etn que se alistaram todos os ladrões
e assassinos conhecidos na comarca. A rnàe
empurrava-o pela porta fora- que fugisse para
Caluellas; que não fosse o diabo armar-lhe al-
guma trempe por causa da .\lartha. da tal be-
bl!dinha que não dera cavaco ao pedreiro. r:lle
deitou o sellote á egua e fugiu a galope; mas o
regedor, com a sua consciencia illibada . espe-
rou os revoltosos com o Zl!ferino á frente, bran-
dindo a espada do pai, que não se desenlbai-
nhára desde o ataque a Santo 'T'hyrso.
-Está você prezo por cabralista 1- intitnou
o pt:dréiro. d~itando-lhe a mão á lapella da
vé~tia; e voltado para a turba:·- Rapazes, cer-
caide a casa: tudo y•1e esti\·er. prezo l
-Os mt>US filhos sahirarn; mas entrem,
busquem á vontade -- disse o regedor; c. olhan-
do para o pedrt>iro. ironicarnente:- i\ h seu Ze-
fl.!rino. seu Z\.:ferino. voce não veio aqui p'ra rne
prender a mitn ... I~' outra historia que você lá
SC:J be. Isto de mulheres são os nossos peccados,
mestre Zl.'feri no ...
-Não me cante!- bradou o das Lamellas
com furiosos ar n.·mêços. -l~stá prezo, e me-
cha-se já para a cadt·ia.
-Você não pode prender-me. mestre Zefe-
rino- contrariüu a a uthor idade dentro da lei-
Va buscar primeiro urna ordem do meu admi-
nistrador ou do governador civil.
-Já não ha governador civil! -explicou o
caudilho -Agora são outros governos. seu as-
no! Quem reina é o snr. D..\liguei 1. 0 • E você
não me esteja ahi a fanfar, que eu já o não en-
xergo. Ande lá p'ra cadeia com dez milhões de
diabos!
A BRAZILEIRA DE PRAZINS 175

O regedor entrou em Villa Nova de ~.,ama­


licão na onda de alguns milhares de homens e
rapazes que davam 1'ivas a D. 1\liguel. ás leis
novas. á santa religião e 1norras aos ca bralistas.
Quando queimavam os pCJp~is, um brazileiro
setembrista. o Sá ,\liranda. disse ao comnlan-
dante que não convinha por em quanto aclamar
D. .:\liguei: que dessem 1n017as ao governo e vi-
vJs á religião. N'esta barafunda. o regedor prezo
entre meia duzia de jornaleiros que discutiam
as leis velhas e as novas na taverna do Folipo,
comprehendera um acêno do tavern~iro e fugira
pelos quintaes. -'letteu-se ao caminho de Braga,
onde tsta\·a o general conde das Antas. O Jose
Dias, receando que o persegui~sem em Caldei-
las, refu~iara-se tambem em Braga e alistou-se
no batalhão dos serezinos commandado pelo
concgo .\lont' AI verne.

N'este meio tempo, chegou da .America o


r.,eliciano Rodrigues Prazins, tio de "lartha.
Demorou-se poucos dias. Ganhára medo que· o
roubassem as guerrilhas. Foi para o Porto pôr
em segurança as suas lettras e voltou quando
a queda dos C a braes garantia o socêgo dos ca-
pitalistas. Na volta a Prazins. olhou mais atten-
tamente para a sobrinha. deu-lhe alguns cor-
dões~ e disse ao ir1nào que não se lhe da\·a de
cazar com ella. O Simeão affirmou logo c0m
um descaramento perdoavel:- que não se fosse
sem resposta o mano que a moça dava o cavaco
por elle.
Feliciano tinha quarenta e sete annos. ~ão
se parecia com a maioria dos nossos patricios
que regressam do Brazil com uma opulencia de
t~ü A RRA/.lLElflA DE PRAZl~~

formas almofadadas de carnes sucadas. Era ma-


gro csqueleticamentc, urn organismq de poeta
sugado pelos \'ampiros do sf'leen. Dizia, porém,
que tinha ft!bras de aço e nunca tomára reme-
dios de botica . .\1uito rnyope . usava de rnono-
culo redondo n'um aro de bufalo barato. Como
era economico até á mi.;.eria, dilia-se em Per-
narnbuco que o l-4.,cliciano usava um vidro só
para não comprar dous: c que. se pudésse~ ven-
deria um olho como coisa inutil. Com a econo-
mia e o trabalho bem propiciado em trinta an-
nos arredondára trezentos contos. Chegara aos
quarenta e sete, ao outono da vida. sem ter
amado. Nunca se conspurcára nos latibulos da
Venu·s vagabunda. t\ sua virgindade era ad mi-
rada e notaria; dt:-punham a favor d'ella os seus
caixeiros, os fei ttJres e-u que ma is e -as suas
escravas. Os seus patrícios devassos chamavam-
lhe o F~liciano Pudicicz"o. Elle não se envergo-
nhava de confessar a sua ca-..tidade ao parocho
de Caldellas. ·rinha vivido corno um desst·xua-
do;- que trabalhava tnuito nos seus armazens,
que dormia poucas horas, e não dava fulga ao
corpo nem péga aos vicias. Originalíssimo. Que
lhe sahiratn casarnentos ricos; mas que elle pa-
ra ser rico não tinha precisão de anulher; que
vira algumas tneninas pobres a namorai-o; mas
que desconfiára que lhe narnorasse1n o st=u di-
nheiro. Não tinha queda para o sexo que elle
dizia seixo. :\'uma palavra, estava virgen1. Elle
podia dizer como ~lamh:t: Não 1ne deleita1n os
hon1ens nem tão pouco as nudlzeres.
A sobrinha reformára aquella natureza alei..
jada. l,alvez o çlesdem com que ~\\artha o tra-
ta va na crise da sua paixão, fosse grande parte
no amor do brazileiro. Além d'isto, a môça,
A BRAZILEIRA DE PRAZil\8 111

muito parecida com elle na delgadeza das fôr-


mas, tinha encantos que dispensavam a esqui-
vança para se fazer amar de um homem de
quarenta e sete annos -intacto de mais a mais.
O presente que lhe fez de uma meada de cor-
dões de ouro significava uma ,desordem, pelo
menos interina~ na sua condição sovina. Martha
acceitou a da di \·a s~m enthusiasmo nem alegria.
L.. embrava-se que o pae a pre\·enira da possibi-
lidade de ser mulher de seu tio, se adregasse
. .f:;ostar d'ella. Quando o tio lhe deu os cordões,
teve-lhe uma nauzea, um quasi adio, suspeitan-
do-lhe os projectos; e quando elle fugiu para o
Porto, com medo ás guerrilhas, sentiu ella uma
satisfação incomparavel. Entretanto, apezar das
más informações do brazileiro da Rita Chasca,
. o Feliciano sentia filtrar-se-lhe nas cellulas im-
pollutas do coração ó veneno dôce de uma pai-
xão cheia de condescendencias, pouco superci-
liosa em pontos de honra~ como quem pensa
que no thalamo conjugal não se faz tnister a
Yirgindade em duplicado. 1\1as não era assim
que elle pensa\-a. i\inguem lhe desdourára a
honra da sobrinha, nem o derriço com o José
Dias fazia implicancia á sua honestidade. Elle
não tinha os rudimentos de malicia necessaria
para desconfiar que uma menina de dczeseis an-
nos, creada nos seios da Natureza immaculada
de uma aldeia do l\1inho, podesse abrir de noite
uma janella, debruçar-se no peitoril e ajudar a
subir um homem. O official do pedreiro é que
sabia casos, anomalias, desde aquella noite em
que o luar o enganou.
j\artha ouvira aterrada a noticia que o pai
lhe deu da vontade do tio. Irritou-se. ·rinha sido
crcada com muito mtmo, sem mãe, voluntario-
12
17~ .\ BR.\ZILEIRA DE PRAZI!~S

sa, e com uns ares senhoris que desauthorisavam


o respeito que o· pai, rustico lavrador... não sabia
incutir. En1 vez de chorar como as filhas des-
graçadas e humildes, respondeu desabridamen-
te qüe não casava cotn o tio; que o desenga-
nasse, se quizessc; e~ se não quizessc, ella o
desenganaria. A terrível noYa golpeára-lhe o
coração cheio de saudades de José Dias que lhe
escrevêra de Braga, por intervenção do padre
Osorio. dando-lhe coragem e e~perança no ca-
samento logo que cessasse a guerra. Foi esse
alento que a revoltou contra o pai quando elle
instava com ella a casar con1 o tio, que era tal-
vez, dizia, o hon1em rnais rico de Portugal:-
abaixo do rei. ~\lartha replicava corn tre"geitos
de ted io desdenhoso; e, exaltada pela boçal in-
sistencia do pai, protestava, se a apouquentas-
sem, atirar-se ao rio como sua mãe.
O Sirneão perdeu a ,-ontade de cotner; an-
dava atordoado n'uma tristeza estupida a dar
uns ais pela casa que pareciatn mugidos de be- ·
zerro perdido na serra. A pequena já não queria
ir d. meza, mcttia-se na cama e fingia-se doente
para não encontrar o tio Feliciano.
José Dias e o pai pennaneciam cm Draga,
por que cm difTerentes pontos da província con-
tinuavam as agitações miguelistas; o novo tni-
nisterio não tinha força, c o Zeferino das La-
mellas nunca depozcra as armas.· Os seresinos
fazidrn excursões e batiam os realistas ou pren-
diam os agitadores. José Dias, cm un1a d'cssas
sortidas a Villa-Verdc, a pé c com pouca saude,
ganhára un1a bronchite que o teve de cama largo
tempo. Quando se levantou, n'uma apparente
convalescença, a tisica tuberculosa recrudescia
pessimamente caracterisada. O padre Osorio
A BRAZILEIRA DE PRAZI~S 179

fôra visitai-o, ouvira o medico e sabia que o


seu amigo estava perdido. Fallou ao pai. em
particular, no estado do filho. J_Jernbrou-lhe a
sua promessa de consPntir no casan1ento com a
pobre ~lartha, que se perdera confiada nos com-
promissos do José. O· lavrador mostrou não per-
cebt:r a conveniencia de 'lartha em casar. se o
seu filho tinha de morrer cedo.- Que a viuva,
dizia~ nada ganhava com isso, porque os her-
deiros de José eram seus paes. ~ão comprehen-
deu a questão por outra face. ·'la~, apertado
pela pala\·ra que dera. repetiu '-}Ue elle pt:1a sua
parte concedia a licença, se a mãe a désse; c
justifica\'a-se d'este respl'ito á mulht:r, allt:gando
que a casa de \'illah·a era toda da sua cotnpa-
nheira. e o que c-lle levára para o cazal não valia
dois caracoes.-Emfim, concluia, se o rapaz ar-
rijar, caza querendo a mãe; nldS, emquanto elle
assim estiver, faça favor de lhe não fallar na ra-
pari~a ... J3~m lhe basta o seu mal ... I~ um
hotnem que está doente devéras não deve pen-
sar em mulheres, é na salvação da sua alma.
Eu penso assim, an1igo padre Osorio.
-O ''Ígario aprende o t~1dre-nosso, dizia o
de c~ddellas.
Entretanto, o doente .. n1uito animado, não
sentia aquelles desalentos e presa~ios de morte
q u e m eze s antes o a fll igi a m. li a bit u á ra-se a o
sofTrimento; já não tinha memoria das perfei-
tas delici<.Is da saude. Quando espectorava sem
violencia. c a dyspnea -cedia aos "Xaropes e ao
pez de Borgonha julgava-se em uma quasi com-
pleta restauração. Escrevia ao Osorio e a .'lar- .
tha cotn rnuita alegria e devotos agradecimentos
a Deus e a ·'la ria Santissin1a com q ucm se ape-
180 A RH.AliLEIHA DE PRAZll\8

gára fervorosamente desde que padecia, e taro-


bem com o oleo de figado de bacalháo.

A· repugnancia de !\'lartha, face a face do tio


Feliciano. seria um affrontoso desengano para
o millionario. se não interviesse o implacavel e
engenhoso cium.e do Zef~rino. Este chefe de
' guerrilha em arn1isticio soube que o brazil\.!iro
queria casar com a sobrinha e que o José Dias
estava en1 Braga muito acabado. a dar a casca.
O pedreiro chamou os bravos da sua jolda e fez-
lhes sab~r que o brazileiro de Prazins pedira
para Famalicão urn regimento da divisão do
Antas para deitar cêrco ás casas dos reali~tas, e
suj~itára-se a su~tentar o regirnento á sua custa.
ResohTcram atacar o l·i.. eliciano, prendei-o como
cabralista, e fazei-o pôr á tná cara o dinheiro
que h a via de dar á tropa. LJ m dos da malta,
visinho do brazileiro, o 1\lelro, tinha-o convi-
dado para padrinho de urn filho. Procurou-o
ás escondidas c a visou-o que se escóndl!sse.
f .. cliciano fugiu para o Porto a toda a pressa.
Queria que a sobrinha tambern fosse. Escrevia-
lhe que, se quiz~sse ir, cornpraria casa no Porto.
l\1artha respondia que estava muito doente, que
não podia sahir da carna. O pai chegava a des-
compôl-a:-Que não tinha molestia nenhunWt,
que era por causa do Zé Dias; tnas que per-
desse d'ahi a idéa por que estivera cotn o dou-
tor Pedrosa, de Santo Thyrso. que o vira em
l~raga, e lhe dissera que o Dias estava ethcgo
e mais mez tnenos n1ez esticava a canella.
l\1artha respondia com serenidade de altna
forte, e escorada n'uma resolução suicida:- Se
não casar com clle n'este mundo, casarei no
outro.
.\ BR.o\ZILEIRA DE PH.\Zl!lõS 181

-Que te leve o diabo 1- res1nungava o Si-


meão, rissando phreneticamente as suissas. De-
pois voltava manso e velhaco á beira do lei-
to:- Olha, menina. teu tio está velho e esma-
griçado. Aquillo não póde ir longe. l,u ficas
p'r'ahi podre de rica, e podes casar depois com
um fidalgo, se quizeres ...
-Valha-me nossa Senhora J- murmurava
i\1artha, pondo os olhos na litographia da ~1ãe
de Jesus traspassada das sete espadas.- Quem
me dera morrer ...
. ~ tisica do José Dias com as frialdades hu-
midas de novembro entrou no segundo periodo.
Recrudesceram as dôres de peito e a dyspnea,
co1n accessos febris nocturnos. Expectoração es-
verdeada com istrias amarellas, e extrema ma-
greza com repugnancia a todo o alimento. Pela
· auscultação ouvia-se-lhe o som gargarejado do
fervor cavernoso. Os medicas disseram ao pai
que o tirasse de Braga, das incomtnodidades
da estalagem, e o levasse para casa onde lhe
seria mais suave a morte na sua cama com a
assistencia.da f-·.,atnilia. Foi para Villalva trans-
portado n'uma liteira, e dizia ao pai que se sen-
tia melhor, que respirava mais desafogado; e
que, se ha mais ten1po tivessem sahido de Bra-
ga, já elle estaria rijo.
A mãe, quando o viu entrar tão acabado, tão
desfigurado, fez um berreiro descommunal, e
não teve mão em si que não rogasse pragas á
~1artha, que lhe matára o seu querido filhi-
nho. As visinhas concordavam:- que diabos
levasse a mulher que o tolhêra I
O doente affligia-se, chorava como creança,
e pedia ao pai que o deixasse ir para Caldellas,
para casa do seu amigo; que não podia vêr a
182 .\ HlL\ZlLEifi.\ DE PHAZl!SS

mãe~ que lh'a tirasse de diante dos olhos; e que,


se elle tiYesse Jc n1orrer, que lh'a não deixassem
ir á beira da sua catna. E fazia tregeitos furio-
sos, corn os olhos a estalar das orbitas escava-
das, incenuido pela febre.
Chegou o padre Osorio. e o doente appla-
cou-se sob riS consolações caln1antes do seu san-
to amigo. D~itou-se. com promessa de ir no dia
seguinte para Caldellas; n1as nunca rnais sele-
vantou, nern r~z inuteis esforços.
Osorio não o desamparou. la á sua igreja
dizer a missa dominical e voltava para \'illalva
corn as respo~tas de ~\1artha aos bilhetes que
José lhe escrevia- poucas linhas en1 que ainda
por vezes larnpejavarn alegres esperanças.
T'oda a influencia de Osorio não conseguiu
que o inf~rrno recebesse a mãe no seu quarto.
:\fão lhe podia perdoar o odio que clla tinha· a
l\lartha; e bradava que a fazia responsavcl pe-
rante o~us da deshonra da desgraçada tnenina.
A velha escut.Jva estes tremendos emprazamcn-
tos para a et~rn idade, e dizia de si comsigo, a
beata:- bem me fio eu n'isso.
Por firn. já não podia escrever, nem levantar
a cabeça do travesseiro; n1as pergunta va ao Oso-
rio se tinha noticias de ~\\artha; que pedisse ao
irmão que fosse lá, e lhe dissesse que elle esta-
va mais doente, e não podia escrever.
Um d'esses recados tnoti.vou o bilhete q u~ se
copiou na Introducção d'estc livro, e que o 1110-
ribundo já não pôde l~r. Desde que a mãe lhe
metteu á força dentro do quarto o viga rio con1
a extrema-uncção, utn homem de opa com d
campainha, outro com a agua benta na caldei-
rinha, mais dous com tochas, e outros com a
sua devota curiosidade, o moribundo cahiu na
A RRAZILEIRA DE PRAZll'õS

tnodorra con1atosa, e apenas, corn longos espa-


ços. tinha uns acccssos sibilántes de ligeira tos-
se sêcca. Abria então os olhos que fitava no
rosto de Osorio, e ás vezes circutnvagava-os es-
pavoridos como cn1 busca da visão espectral da
tnãc que o Yigario de Calde lias cuidadosan1ente
e cotn doloroso constrangimento defendia de
entrar á alcôva.

Em l"lrazins ouvia-se dobrar a defunto en1


\'illalva. ~\'lartha perguntou ao pai quem tinha
morrido.
Etle-- respondeu serenamente:- l)izem que
· foi o Dias que está con1 Deus. l{eza -1 h e por
alma que "é o que ell~ precisa agora.- .\lartha
deu um grande grito. c com as mãos na cabeça,
a correr, deitou a fugir pelos can1pos. Elia sa-
bia onde era o remanso fundo do rio Ave em
que a rnãe se suicidára. O pai correu atraz d'el- ·
la, a gritar, que lht: acudissem. F·óra d'aldeia,
andava uma rossa de matto, com rnuitos jorna-
leiros que correram todos atraz de ~\lartha. e a
levavam quasi apanhada quando ella cahiu, a
estrebuchar, em convulsões. Conduziram-na para
casa com os sentidos perdidos, e pozeram mu-
lheres a vigiai-a na cama. Esta nova chegou a
Caldellas. D. rrhereza, a irmã do padre Osorio,
foi corn o irmão a Prazins, e convencerarn o Si-
meão a deixar ir a filha para a companhia d'el-
lcs algum tempo.
~lartha chorava muito, abraçando-se no ami-
go de José Dias; e elle, quando o lavrador com
impertinencia_dizia á filha «está bom, está bom)),
observava-lhe com azedumes:- Deixe-a chorar~
deixe-a ch.orar 1- E voltando-se para a irn1à:-
i\ estupidez é cruel!


XV

O SniEÃO de Prazins tinha sido antiga-


mente regedor um anno; depois, cahido
· o tninisterio c o governador civil que o
nomeára, voltou ao poder o Joaquim de Villal-
va, cartista puritano, com a restauração da Car-
ta. Duas restaurações boas. O Simeão lembra-
va-se cotn saudades da sua importancia no anno
em que governára a freguezia- o respeito dos
rapazes recrutados, as considerações dos taver-
neiros, que davam jôgo em ca~a, das raparigas
solteiras que andavam gravidas, a authoridade
do seu funccionalismo na junta de parochia, etc.
Ora, como o Joaquim de Villalva, desgostoso c
doente com a morte do filho, pedira a demis-
são, o administrador nomeou a regedoria no de
Prazins. O brazileiro achou que era bom ter de
caza a authoridade para n1aior segurança dos
seus cabedaes e pessoa. I-4,oi uma desgraça.
Depois do convenio de (~ramido, Zeferino
recolhêra ás l...amellas com alguns dos seus pri-
l~ci A HRA/lLEIR.\. 1>~ PHAZl:'\:'o:

mtttvos lcgionarios. l~lle tinha passado trances


amargos. 1\junt~ra-se ao aventureiro Reinaldo
~'lac-Donell, cm Guin1aràes, quando o escassez
descia do L'larco de Cana vezes para lJraga; es-
teve nas barricadas da Cruz da Pedra quando o
barãÓ do Cazal espatifou a resistencia d'aquel-
les desgraçados illudidos pelo caudilho estran-
geiro; foi dos primLiros a fugir por Carvalho
d'Este, a comprehender a inutilidade da def~za,
e por tnontes e valles deu comsigo em Porto
d'Ave, e d'aqui foi para Ciuitnarães onde se
aquartellaratn o .\lac-Oonell com o seu estado-
maior. L.ogo que chegou foi procurar o tenente-
coronel Cerveira Lobo, que fazia parte do cor-
tejo do gL·neral. ~landaram-o ao palacete do vis-
conde da Azenha, onde o escassez se tinha
aq uartellado co1n o seu estado-maior. O Cerveira
L. obo estava a beberricar cognac velho copiosa-
mente sobre uma ceia farta, comida sem sobre-
saltos. A' meza, onde faiscavam os crystaes dos
licores, avultavatn, scintillando os 1netaes das
suas fardas, o quartel-mestre general \'ictorino
·ravares, de Fagildc, José Jlaria de Abreu, aju-
dante de ordens, o morgado de Pé de l\1oura. o
Cerveira Lobo c o Sebastião de Castro, do Co-
vo, cornmandante do batalhão de voluntarios
realistas de Oliveira de Azemeis, que arredon-
dava 42 praças, e seu irmão Antonio Carlos de
Castro, ajudante de ordens do general, -dois
homens gentilmente valorosos; -o coronel Abreu
Freire, morgado d' Avanca, e o l3andeira de Es-
tarreja que é hoje padre.
A noite era de 2í de dezembro de 184ú, muito
fria. lJebia-se forte. A garrafeira da caza do
\rco era um calorifico. O 1\lac-Donell, muito
rubro, n'aquella bebedeira chronica que lhe as-
A BRAZILI::IR.\ DE PRAZI~S 1~1
--- -------------------

s1sttu na vida e na morte, esmoia a ceia pas-


seando n'utn va~t0 salão, de braço dado com
uma forn1osa senhora da casa, D. Ernilia Cor-
reia Leite d' Almada. Dir-sc-ia que o bravo scp-
tuagcnario tinha vencido uma batalha decisiva,
e procurava n1atizar cotn flores de Cupido os seus
louros de .\lavorte. E o Cerveira Lobo bebia c
relata va proezas dos seus saudosos dragões de
Chaves com g~stos bellicos e as pernas desvia-
das cotno se apertasse nas côxas a sella de um
cavallo empinado no fragor da peleja. ~'isto en-
trou um camarada, ás 1 I da noite, a chamar
apressadamente o quartel-mestre generaL que o
procurava co1n tnuita urgencia um capitão de
atiradores do batalhão do Populo.
O \rictorino de Fagild~ en::ontrou na sala de
espera o capitão Pinho Leal, 1 um robusto e
jovialissimo rapaz, de trinta annos, cotn uma fé
politica~ antipoda da sua forte intelligencia -
uma especic de poeta anedieval. corn um grande
atnor romantice ás cathcdraes e ás instituições
obsoletas c extinctas. l~lle tinha muitos d'estcs
camaradas visionarias e respeitaveis na sua pha-
lange da ~ladre-Silva ...
-Que h a? -perguntou o quartel-mestre ge-
neral.
- Ha que estamos cercados pelos Cabracs.
Os nossos piquetes de Santa Luzia e do Cas-
tello já foram atacados, e ouve-se fogo de fuzil
em outros pontos. \Teja lá o que quer que eu faça.
O \ 7 ictorino ficou passado de terror, e levou

1 Era o meu actual c presado amigo Augusto Soares


d~Azevedo Barbosa de Pinho Leal, auctor do «Portugal an-
tigo e moderno •.
.\. BR.\ZlLEIRA DE PR.\?.lNS

o capitão á sala em que o ~lac-Donell passeava


pelo braço de D.. Ernilia Azenha, e o visconde,
o hospedeiro fidalgo palestrava com numerosos
hospedes, conegos, abbades, capitães-mó-res, an-
tigos magistrados. Pinho Leal repetiu ao escas-
sez o que dissera ao seu quartel-mestre.·« O
~<alma do diabo- escreve o snr. Pinho Leal-
« ficou com a mesma cara in1perturbavel, e dis-
'-< se- me : Isso não vale nada. Tenho tudo preve-
'< a i . lo. A/ande recolher a gente a qua1·teis. }) Mas
a dama assustada desprendeu-se dt:> braço do
general, e foi preparar os bahus para a fuga; e
os do estado-maior compelliram o general a fu-
gir tambem. Era uma hora da noite quando o
exercito realista abandonou Guimarães e entrou
na estrada de Amarante.
Pinho Leal inventára o ataque dos cabralis-
tas para salvar-se a si e aos outros da carnice-
ria inevitavel; por que, ao romper a manhã do
dia seguinte, entraram em Guirnarães seiscentos
soldados do Cazal ainda embriagados da san-
goeira de Braga. _Reproduzem-::;e textualmente
no seu estylo militarmente pittoresco os vera-
cissirnos esclarecimentos de Pinho Leal: ... « "'4
bésta do escosse{_ continuava na sua panria senz se
ilnportar da f:Uerra para nada, e o mes1no .fazia1n
os da sua «côrte}). Eu, vendo que de um nzonzento
para outro, podianzos ser surprendidos e trucida-
dos pelos Cabraes, aproveitando a .circunzstancia
de estar <<superior do dia}) e tendo na casa da ca-
1nara u1n. « supporte }) de cem ho1nens, colnman-
dados pelo al{e1·es José Maria (o morgado do
Triste) dei-lhe a elle sómente parte do que ia pôr
e1n execução. [;;scolhi da gente do « supporte }) u1n
sa1·g·ento e quaf1·o soldados da mesnza co1npanhia,
de todo o seg1·edo e confiança. Sahi co1n elles por
A BRAZILEIRA DE PRAZll\S

u1n bêcco e fui co1n elles pela f1·enle dar unza des-
carga no nosso piquete de Santa /_Juiza, e out1·a
no piquete do Castello. Ao nzesnzo tenzpo, não sei
quenz é que eslava e1n u1n 1nonte ao no1·te de Gui-
nzarães que deu uns poucos de tiros que muito aju-
d .lranz o 112eu plano. O «'Triste)) enz l'ista da nossa
p1·evia co1nbinação, nzandou toc . -1r a 1·eun ir e for-
1nou o supporte debaixo dos .4 rcos d ..! Ca1nara.
Eu e os nzeus cinco honzens vienzos surraleirauzente
nzettenno-nos na villa. Fui« passar revista a, sup-
porte » a lenzpo enz que já ua Praça da Oliveira
est:~.va nzuila f?enle arnzada. 1
E d'ali, Pinho L.Jeal foi á casa do Arco, afim
de sal v ar aq uelles homens q úe se ensopavam ern
bebidas de guerra n'uma pacificação de idiotas,
e retardar alguns dias a benemcrita morte do ge-
neral escassez assallariado por Guizot com cre-
denciaes de Costa Cabral.
O Cerveira L,obo, quando soube que a força
n1archava á uma hora d'aquella noite frigidissi-
mJ., encarregou o Zeferino de lhe cornprar u1na
botija de genebra da fina, I~ockink l~gitima.
l'inha utn frasco empalhado que punha a tira-
collo nas marchas nocturnas. Encheu-o con1
ajuda do pedreiro. O tenente-.coronel, n'um gran-
de dcsequilibrio, não acertava a dt!spejar a bo-
tija no frasco. O Zt!ferino dizia depois que o vira
tão borracho que logo desconfiou que malhava
abaixo do cavallo. O Cerveira aftirmava que se
sentia com os seus trinta annos; que andara a
trote largo do seu cavallo treze leguas e não es-
tava cançado. O Zeferino perguntou-lhe se o
Cazal os apanharia ainda de noite; se c~taria

1
Cartade 1odcjunhodc I8í7·
190 A RR.\ZILEIRA DE PH.\ZI~S

tudo acabado com outra mastigada como a de


Bra~a. Cerveira respondeu iracundo que o ge-
neral era um asno, e que elle estava resolvido e
mais o \'ictorino a matai-o como traidor ao snr.
J). ;'1 i gu e l 1.
.\1oveu-se o exercito em direitura á J...ixa. O
Cerveira ia no ~rupo do quar tel-gcnt:ral. 1\lac-Do-
nell, de- vez etn qucmdo, regougava monossíla-
bos em hespanhol ao quartel-n1estre. O Cervei-
ra retardava-se ás vezes um pouco e emborcava
o candil. f!rognle_iando e despegando pigarros
teitnosos. O \lictorino notava-lhe que elle bebia
de n1ais-que o calor da genebra não se espa-
lhava pelo corpo, mas si 111 concentra va-se na ca-
beça-que era un1 perigo. O Cerveira dizia que
estava afTeito ~ mas queixava-se de dôres nas
fontes e zunidos nas orelhas; que não se podia
lamber com somno, e que dava cinco mil cru-
zados por estar na sua cama. E abaixando a voz
tartamuda:- Est~ ladrão d'e~te inglez mt:tto-
lhe a espada até aos copos! Palavra d'honra que
o mato ámanhã!
· O \'ictorino deu tento de que o tenente-co-
ronel gagut·java; mas attribuiu á embriaguez o
embaraço na falia. l~ntrou a queixar-se o Cer-
veira de que estava tonto da cabeça, que se que·
ria apear. por que não podia agarrar as redeas;
e chan1ava cotn anciedade o Zeferino que vinha
muito ú retaguarda. O quartc.:l-mestre ~eneral
charnou um ajuda nt~ de ordens, e pediu-lhe g uc
o ajudasse a apear o tenente-coronel. Cerveira
L.obo dobrava o tronco ao longo do pescoço do
cavallo que estranhava o peso e o sacudia, sen-
tindo-se livre .da pressão do freio. ·
O apopletico ia resvalar, quando os dois
off)ciaes o a1npararam nos braços, n'urna syn-
.-\ 'i·:RAZILEIR.\ DE PR.-\ZI':":";

cape. l ~m d~elles acccndcu um palito phospho-


rico no lume do charuto~ e disse que o tenente-
coronel tinha o rosto inchado e muito vermelho.
Chamavatn-o, sacudiam-no; não dava signal de
·vida; nem um ronquido estcrtoroso. Inclina-
ram-o sobre um com bro de matto Inolhado;
não lhe acharam pulso; a bô2a cntnrtára-se, e
os olhos mui to abertos com u tnas istrias sa n-
guineas. Estava morto, fulminado pela apople-
~ia alcoolica.
A respeito d'estc desastroso rctnate do ebrio
illustre, ~screve Pinho L.. eal : 1.V'esla retira{L.1
pel..1s duas ou Ire= horas d::z unite, 17lOTreu enz
1narclz~..1 conz znna apotlexÍ~..1 ji,Z,ninanle o }., . .. 1
Coit:zdo! quando 1nc lcndJr~.1 isto aind . 1 lenho c..i
1neus 1·en1orsos de consciencia. ()uenz sabe se se-
ri~l eu a causa d~.1 1norte d'~.1quelle pobre di~.1 bo '!
ConsoL1-n1e foriln a cerle::..1 de que- 1ncsn1o que
eu fosse .1 LlliS:t indirecl~1 da nuirle do jid~.1lgote.
poupei nzuitas '1..'id ..1s de {!ente nzoça (e ..1 1niniL1
que er ..1 o principal par ..l 111 in1}; e n 111orlo já pau-
LOS annos podi.l durar~ pois eskl7'a no c:tlç.zdo
7'ellzo. ~
z~ferino e alguns homens da cotnitiva do
(~crveira passaram o restante da noite á beira
do cadaver do fidalu-o .._, de Ouadros
'- ..-\' claridad~
fusca ela manhã invernosa viram-lhe o semblan-
te que mettia pavor. Quizeram cerrar-lhe as pal-
pebras que resistiam á distensão, coriaceas,
n'utn retezamcnto orgastico .... \ maxilla inferior
parecia deslocada e torta, rcpu~ando a commis-

1 Quando Pinho I .eal publi~ar as sua~ J'lt:mori.l"· ~n­


t~io se saberá o Yerdadeiro nome do morto.
2 Carta citada.
A RHA.llLElRA DE PRAZli'S

sura direita dos labias n'um esgar de escarneo


ou de angustia· dilacerante. A côr do rosto era
agora d'uma amarellidão de barro, molhado pelo
orvalho que se filtrára atravez do lenço com que
lh'o cobriram. l'inha os dedos aduncos, infle-
xíveis e uma das mãos afincada con1o garra nas
correias da pasta.
O Zeferino disse que o seu tenente-coronel
devia trazer um cinturão com dinheiro em ou-
ro; n1as ninguern ousou desabotoar a farda do
morto defendido pelo sagrado terror da rnorte.
Apenas uma das sentinellas, intanguidas de
frio, votou que se bebesse o resto da genebra.
Assim que foi dia claro, o Zeferino de~ceu á
egreja proxima, a ~'1argaride, avisar o parocho
que tinha 1norrido na estrada um fidalgo do
exercito do snr. D. !\liguei. O padre, estremu-
nhado e liberal, respondeu que não era coveiro~
que se dirigisse ao rcg~dor. 1\ authoridade, setn
as delongas dos processos legaes, depositou o
cinturião com as peças na rnáo do administra-
dor, e 1nandou abrir uma cova no adro da egrc-
ja, onde o baldearam com um responso econo-
mico. Passavam jornaleiros pdra as rossas. Pu-
nhatn as enxadas no chão e encostavam ás mãos
callosas as caras contetnplati vas. O regedor con-
tava que lhe acharatn mais de um conto de réis
en1 ouro.
- rJ'oma 1- disse um dos jornaleiros- Ull1
conto de réis! E inclinando-se á orelha d'outro
jornaleiro :-O' rronio, se tenlOS ido mais cedo
para o monte ... e topamos o rnorto ...
-Que pechincha! ...
l{estos de .virtudes antigas. Estavatn a fazer
um idyllio e1n prosa.
A HRAZIL~~ IR.\ DE PR.\ZI~S

O Zeferino acompanhou a guerrilha até que


mataram o general em 1,raz-os-.~1ontes os solda-
dos do 'Tinhaes; depois passou com alguns che-
fes realistas para a Junta do Porto; e, acabada
a lucta, foi para casa, e entregou a espada ao
pai, que o recebeu con1 estas caricias:- Eu setn-
pre te disse que eras uma cavalgadura I Que te
não fiasses no bebado de Quadros; que não sa-
hisses a campo setn lá vêr o morgado de Bar-
rirnáo. Agora, pedaço d~asno, torna a começar
com as paredes, e tem cuidado que te não dei-
tem a unha. l.. . etnbra-te que prendeste o regedor
de Villal\'a, e qüizeste agarrar o brazileiro de
Prazins que tem agora àe mais a mais o irmão
regedor. Olha se te lembras ... A mãe do José
fJias anda por ahi a ·berrar que a )1artha e mais
tu lhe mataste o filho. Lume no olho, homem,
lume no olho!
-Se alguem embarrar por mim, dou-lhe
cabo da casta!- protestava o pedreiro cortando
cotn o braço c punho fechado punhadas aereas.
-Se tne matarem... até lh'o agradeço!- E
com desalento: Sou o maior infeliz e desgraçado
que cobre a rosa do sol! \ 7 eia você: ha trez an-
nos que aão tenho uma tnigalha de estifação,
c'utn raio de diabos I Isto acaba mal, digo-lh'o
eu! Voe~ verá, sôr pai, que ou tne matam ou
eu acabo n'uma forca pr'ámor d~aquella rapariga
que foi o diabo que m'apparceu, e não me passa
d'aqui!- e apertava o gorgornilo nodoso entre
dois dedos con1o quem apanha uma pulga.

Os administradores de concelho receberatn


ordem de recolherem as espingardas reiunas que
se encontrassem nas aldeias, em poder do po-
t3
A BR.\ZlLElRA DE PRAZINS

vo. Para as cabeças dos districtos ramificaran1-se


destacan1entos afitn de coadjuvare1n a authori-
dade. Simeão de Prazins, cotno regedor,_ foi cha-
n1ado a Fan1alicão c incumbido de dirigir a di-
ligencia n1ilitar que devia dar u1n assalto a La-
mellas, a casa do Zeferino, onde se havia~n de-
nunciado as espingardas com que alguns mi-
guelistas se tinham recolhido, contra as condi-
ções estipuladas no protocolo de Gran1ido. O
regedor cotnprehendeu o perigo da etnpreza;
pediu que o detnittissem; tnas a authoridade
in1poz-lhe con1 azedume o cun1pritnento dos seus
deveres, e negou-lhe a den1issão.
Quando o Zeferino, succumbido á carga dos
revezes, indifferente á vida e á morte, se cha-
mava z"nfelz"z e desgr~.1çado, o destino in1placaveL
preparava-lhe novo desastre. Elle, ao romper da
tnanhã, depois de uma insomnia febril, sonhava
que era sargento-mór das Lan1ellas e assistia á
fortnatura do regimento de n1ilicias de Barcel-
los debaixo do solar de D. t\laria Pinheiro. Na
janella gothica do velho edificio da época de D.
i\ffonso IV estava O. ~liguei 1 assistindo ao des-
filar do seu exercito vencedor, em que havia
tnuitas tnusicas marciaes, de fulgurantes tron1-
pas, tocando o Rei-chegou; e o abbade de Cal-
vos, dentro de um carroção e vestido de ponti-
fical, burrifava o povo com hyssopadas de agua-
benta, cantando o BenzdittJ. As tropas esten-
diam-se até J3arccllinhos, e pelo Cavado abaixo
velejavam InLÚtos barquinhos embandeirados de
galhardetes con1 as bandas musicaes de S. 1'hia-
go d' ..L\ntas e de l~uivães tocando a Ca1hl-t'erde
e Agua leva .o regadinho. En1 um d'esses ber-
gantins com pavilhão de colchas vermelhas vi-
nha sentada a irmã do padre Roque, mestre de
A BRAZlLElRA DE PRAZI:'I.S

latim, com os seus oculos, a fazer meia; e ao


lado d'ella, vestida de setin1 branco e borzeguins
vennelhos dourados, com os cabellos soltos, ves-
tida como os anjos da procissão da Senhora da
Burrinha em Brag~, a Jlartha de Prazins. Elle
estava na ponte. absorto na visão da noiva -que
chegava pelo Cavado para se casar quando um
visinho lhe bateu com o cabo da sachola na ja-
nella tres pancadas. Saltou da cama atordoado.
-Que fugisse pelo quintal que já estavam
soldados a entrar nas Lamellas com o regedor.
Zeferino ganhou de pro1npto os desvios d'um
pinhal, e por dctraz d'um socalco enxergou o
Simeão ao lado do sargento da escolta parar em
frente da sua casa c apontar para as ja nellas.
Ouviu bater estrondosas cronhadas no portal, e
viu alguns soldados in\·adirem depois o quintal,
e entrarem pela porta da casinha que ficára aber-
ta. Depois avistou a escolta a retirar-se co1n dou.s
homens carregados de armas.
O velho alferes. entrévado, estava muito af-
flicto quando o filho entrou. O sargento quizcra
levar-lhe a sua espada; e compadecera-se d'elle
quando o vira a chorar e a dizer-lhe que era
um alferes do antigo exercito. e que o deixasse
morrer ao lado da sua espada, já que elle não
podia defendei-a porque estava tolhido.
O Zeferino perguntou pacificamente:
-r: o Simeão que dizia?
- ~ão dizia nada. Eu é que lhe disse ...
~4.1Tieiros somos, na esh·ada andL.1mos, visinho
Simeão.
O pedreiro quedou-se longo tempo sentado
com as mãos afincadas na cabeça: olhava para
o canto em que tivera duas duzias de espingar-
1Pô A BRAZILEIRA DE PRAZII"iS

das compradas pelo Cerveira Leite, e dizia com


resignação contrafeita:
-Elias assim con1'ássim já não ser~iam de
nada ... A guerra acabou ... Que leve o diabo
tudo ... -E~ passados alguns segundos de re-
colhida angustia:-.\' eja você, sôr pai I O Si-
meão dá-me a filha, depois diz que m'a não dá;
isto não se fazia a um hornem que põe navalha
na cara ... Eu levava a tninha vida muito direi-
ta, estava rnuito bem, você bcrn sabe; deitei-me
a trabalhar quanto podia; e vai depois, por
causa da tninha paixão~ fiquei areado do juizo,
deixei a arte, andei por esse mundo a gastar á
tninha custa, ao frio e ao calor, em términos
dé me levar o diabo com uma bala; e vai agora
o Simeão entra-me pela porta dentro, leva-me
as arn1as, e, se me pilha, mettia-tne uma baio-
neta no corpo ...
- llon1e1n- atalhou o pai com JUIZO- não
fosses tu lá a Prazins en1 birrar con1 o brazi-
leiro ...
-Eu tenho a minha paixão- objectou o fi-
lho com transporte- tinha cá d~ntro do peito
esta navalha de ponta espetada; e elle ... ·que
mal lhe fiz eu p'ra me querer n1al?. . . Sabe
você que mais? ... Assim com'ássim, estou per-
dido ...
Sahiu arrebatadarnente e foi para o 1\lonte
Cordova conversar con1 o Patarro, um velho
scelerado que se batêra em Braga com a caval-
laria do Cazal e podéra sal var-se com o sacrifi-
cio de trez dedos e do nariz acutilados.

Na sernana· seguinte, quarta-feira, era o mer·


cado de Famalicão. O regedor tinha cornprado
.\. BRAZILEIRA DE PR.\ZI~S 101

duas juntas de bois para o cazeiro da Rctorta,


uma quinta solarenga, torreada, com o brat:ão
dos Drandões, que o brazileiro comprára a um
fidalgo de Afife. O negocio deitára a tarde. Si-
meão sahira ao desfazer da feira com o cazeiro
da Retorta e mais dous lavradores d'outra fre-
guezia que montavatn eguas andadeiras de mui-
tos brios. O Simeão cavalgava a sua velha russa,
d'uma pachorra mansa, invulneravel á espora.
Recebia as chibatadas encolhendo os quadris e
andando para traz. Elia não podia tnanifestar
de um modo mais sensível a sua repugnancia
pelas pressas. O dono gabava-se de só ter cahi-
do- juntamente com ella poucas vezes. Sahiram
da feira conversando a respeito de 1\lartha.
Constava aos outros que ella se quizera matar
.a conta do José Dias. O Simeão achava que sim,
que clla quizera atirar-se ao rio; mas que esta-
va q uasi boa etn Calde lias; que o viga rio e n1ais
a ir1nã lhe tinham dado um geito ao n1iôlo; e
logo que ella estivesse fina, casava com o tio.
--E elle quél-a?-perguntou o Bento de
Penso.
-Pois então!. .. T'omára-a elle já.
-Emfim --tornou o Bento-você hadc per-
doar que eu lhe diga o que tenho cá no senti-
do. O povo diz que o Dias entrava lá de noute.
Eu não vi, mas é o que diz o povo. Ora um
home sempre se atriga de casar com mulher de
maus cretos. O seu brazileiro pelos modos é de
bô comer •..
-Tem bô estomago, é o que é-confirmou
o Belchior da Rechousa.
O Simeão não estranhava estas franquezas
muito tri viaes nas aldeias ainda immaculadas do
resguardo das conveniencias; mas defendia a
A RRAZILEIRA DE PRAZI~S

honra da filha, attribuindo ao Zeferino as caiu-


moias que espalhava para se vingar.
-Em fim- disse o Belchior- você. tinha-
lh,a dado por quinze centos. E' o que diz o
povo, e palavra d'home não torna a traz.
-Isso cá -da tnin h a parte foi chalaça ... -
defendia-se o Simeão, quando trez homens,
mascarados com lenços, fincando as argolas dos
paus no caminho, saltaram de uma ribanceira,
á frente das trez eguas que caminhavam a passo.
Um dos trez jogou uma paulada á cabeça do
Simeão e derrubou-o.
Os dois lavradores das eguas travadas deram
de calcanhares e pareciam dois duendes de co-
media magica vistos á luz crepuscular. O cazei-
ro abandonou as sôgas dos bois, galgou pare-
des e seáras e1n desapoderada fuga até Famali-
cão, e á entrada da villa gritou- aqui d'el-rei
ladrões! Contou o successo ao povo alvorotado,
accudiu a authoridade, encheu-se a estrada de
gente em cata de Simeão e da tnalta dos la-
drões. Acharam-o prostrado, de costas, arque-
jando, com a cara empastada de sangue que
borbota va empoçando·se dos dois lados da ca-
beça. A egua rilhava entre os dentes c o freio
umas vergonteas tenras de tojo, e de vez em
quando tossia a sua pulmoeira com os ilhaes
cnfolipados. O Futrica, um ferrador da Terra
Negra, examinou a cabeça do ferido, e disse
que tinha o miôlo á vista; não podia durar
muito, que lhe dessen1 a santa uncção. Pediu-
se uma padiola ao lavrador mais proximo e le-
varam-o para Prazins promettendo duas de doze
a dous jornaleiros. O cazeiro montou a egua
para ir a Santo 'Thyrso chamar o Baptista, o ci-
rurgião da casa; mas a burra estranhando as
A BRAZILEIRA DE PRAZl~S

esporas dos tamancos, levantou-se com o caval-


leiro, deixou-se cahir sobre os jarretes trazeiros.
voltou-se de lado como quem se ageita para
dormir: foi necessario levantai-a. O povo dava
risadas estridentes quando o cazeiro puxava de-
baixo do ventre da egua a perna entalada, muito
cabelluda; e alli perto esta\·a a padiola com um
velho gemente, agonisante, a pedir a confissão.
Assim que a padiola entrou em Prazins, foi
a Yiso á !\lartha que o pai esta va a morrer com
pancadas que lhe deram os ladrões de estrada.
D. l'hcreza e o prior acompanharam-a. Quando
chegaram~ sahia o parocho de o confessar e to-
cava o sin'J ao viatico. llaYia uma agitação de
angustiosa curiosidade no povo que confluía á
egreja chamado pelo signal. J)izia-se que eram
ladrões que sahiram ao lavrador em S. Thiago
·d'L\ntas; havia opiniões mais individualistas:
segredava-se o nome do pedreiro; utn pastor de
cabras dizia que vira passar de madrugada para
as Latnellas o Patarro de L'lonte Cordova e mais
outro mal encarado; 1nas todos á uma diziam
que não tinham visto nada, nem queriarn saber
de desgraças, com tnedo á malta do Zeferino.
O Simeão esta va ainda com a face arregoada
de sangue, vestido sobre a cama, resfolegando
com muita ancieàade, gemendo com dores, e a
cabeça um pouco elevada sobre um magro tra-
vesseiro muito comprido dobrado etn trez pelo
vigario. Esperava-se o cirurgião. A filha teve
um desmaio quando viu a cara ensanguentada
do pai, á luz mortiça de uma vela de cebo
n'uma placa de lata. D. l'hereza com a i\lartha
oos braços, disse ao irmão:- Que miseria de
casa! Pede luzes e ·agua para se lavar aquelle
sangue.-E, assim que ~lartha voltou a si, le-
2ú0 .\ HHAliLElnA DE PRAZl~~

vou-a para o seu quarto,- que a viria chamar


quando o pai a podésse vêr. Queria retirai-a do
espectaculo dos paroxismos. .
Quando chegou a extre1na-uncção com o
prestito clamoroso do Bé1ndito e o tilintar es-
pacejado da campainha, l\lartha carpia-se em
altos gritos, e pedia que a deixassem despe-
dir-se de seu pai.
Elia tinha ouvido dizer a uma das visinhas
que lhe invadiram a alcôva:- quem lhe bateu,
ó mulheres, não foi outro senão o Zeferino das
Lamellas. juro que não foi outro. -Esta affir-
mativa cravou-lhe no coração o remorso de ser
ella a causa da morte do pai. Queria ir pedir-
lhe perdão; rogava á sua amiga que pelas cha-
gas de Christo a deixasse ir ajoelhar-se á beira
de seu desgraçado pai. D. l'hereza conteve-a,
receando novo ataque de loucura; que espe-
rasse que se fizesse o curativo; que o cirurgião
não queria no quarto senão o barbeiro que·lhe
estava a rapar a cabeça.
Pouco depois chegava o tio Feliciano da
quinta da R e torta, onde residia assistindo its
obras. Vinha aterrado. Disse ao Osorio que já
estava arrependido de comprar a quinta; que
Portugal era uma ladroeira e um bando de fac-
cinoras; que se ia embora tnuito breve~ E, en-
trando no quarto onde a sobrinha chorava, dis-
se-lhe consternadamente que, se morresse o pai,
fiz~sse de conta que tinha em seu tio utn segundo
pal.
O cirurgião sahiu desconfiado do ferimento.
Uma das pauladas despegára um pedaço de te-
~mento, deix~ndo descoberto o craneo que o
ferrador da rrerra ~egra chamàra o miôlo. A
hemorrhagia era grande, e havia receio de com-
.\ BlUZli.ElR o\ DE PR.AZIXS

moção cerebral. O facultativo, depois de o san-


grar, mandou-lhe pôr pannos molhados na ca-
beça, de quarto em quarto de hora. 1\'lartha e
l'hereza não abandonaram um momento o ca-
tre do infermo; o padre Osorio passou a noite
na saleta attendcndo o brazileiro que lhe fallava
muito na sobrinha, na paixão que ella tivera
pelo José Dias, e não lh'o levava a mal, pelo
contrario.
Ahi pela madrugada o ferido sentiu-se muito
angustiado, tinha estremecitnentos, dizia dispa-
rates; queria arrancar os pachos da cabeça, bra-
cejava, e puxava para o peito a face da filha la-
vada em lagrimas. O padre acudiu e mais o
Feliciano; receavam que elle estivesse agoni-
sando. Depois aquella agitação esmoreceu n'um
dormitar sobresaltado, com a cabeça no regaço
de _J,lartha que brandamente lhe compunha o
pacho ria ferida. Quando espertou da modorra
conheceu a filha, e repclliu-a. Fallou no pe-
dreiro que o tnatára, e recahiu no estado coma-
toso. O padre Osorio attribuia aquella somno-
lencia a derratnatnento de sangue no craneo,
um symptoma de morte provavel. O cirurgião
veio de madrugada, mandou-lhe deitár sangue-
sugas atraz dás orelhas, e disse ao vigario de
Caldellas que estava mal encarado o negocio;
que aquelle diabo de sotnno lhe parecia de máo
agouro. Que ia vêr uns doentes e voltava logo.
Martha fazia muitas promessas á Senhora da
Saude; dez voltas de joelhos ao redor da sua
capella, um resplendor de prata, jejuar a pão e
agua seis mezes a fio, não comer carne durante
um anno, ir descalça~ á romaria da milagrosa
Senhora. Com estas promessas sentia-se menos
opprimida do seu remorso; o pai estava alli a
A RRAliLElR \. D~ I'UAZll'\S

morrer por causa d'ella, e a 1\laria de Villalva


já dizia tambetn que fôra ella a causa da n1orte
do seu filho. Uma desgraçada, que vinh.a assim
a causar a tnorte do noivo e do pai.
O ferido teve u tna intermittencia de repou-
sada vigília. Olhou para a filha, e disse-lhe que
morria, que a deixava sem pai nem mãe. O Fe-
liciano acudiu:
-Isso não ·lhe dê cuidado, mano Simeão.
~ada lhe hade faltar. E' tninha sobrinha; não
tenho mais ninguem n'este tnundo.
-Eu morria contente- balbuciou o Simeão
lacrimoso- se ella fosse sua mulher ...
Fez-se utn silencio exquisito. l\1artha abaixou
os olhos; a D. Thereza olhou para o irmão a
vêr o que elle dizia; o padre Osorio olhava para
o brazileiro a vêr cotno se expressavatn as suas
idéas; o Feliciano esperava que os outros dis-
sessetn alguma coisa. E então o pai de l\1artha,
aconchegando-a de si, com tnuita ternura:
Casas com o teu tio, minha filha? E' o ui-
ti mo pedido que te faço ...
1\1artha fez um gesto affirmativo, e cahiu de
joelhos, curvada sobre o leito, ~ soluçar; de-
pois, deu um grito e escorregou para o chão,
em convulsões, com o rosto muito escarlate e
a bocca a espumar. D. 'Thereza e o irmão con-
duziram-a ao seu quarto. Deitaram-a já soce-
gada, mas n'uma rigidez insensíve-l, com a bocca
ligeiramente torta.
O cirurgião chegava n'esta conjunctura e
disse que a rapariga herdára a tnolestia da
mãe, que eratn ataques epilepticos; e ao tio
l~eliciano disse-lhe particulannente que o peior
da herança nãó era a epilepsia; era a clemencia
que levou a mãe ao suicídio. Que a rapariga
A BRAZlLElRA DE PRAZI~S

era fraca, e tinha sido creada con1 umas mima-


lhices de rnenina da cidade, que estragam o
corpo e a alma; que era preciso ter muito cui-
dado com ella, não a affligir, distrahil-a, casal-a,
etnfim, que seria bom casal-a, e dar-lhe vinagre
a cheirar, quando viesse outro ataque, e ter cui-
dado que ella não apanhasse a lingua entre os
dentes; que lhe mettessem um panno dobrado
entre os dois queixos, quando lhe désse outro
ataque.

- Elle disse que o melhor era casar-se-


lembrou o Feliciano ao padre Osorio.
XVI

R ELATAVA o vigario de Caldellas:


-O cerebro do Simeão, se era refra-
ctaria aos golpes da dignidade, não era
mais sensi vel ás com moções das pauladas. Duas
vezes feliz quanto á cabeça: nem honra nem pre-
disposições inflamn1atorias. Cicatrisou a ferida;
começou a comer gallinhas com a fome de um
cannibal e co1n o prazer carnívoro d'uma raposa.
Dera tacitamente .\lartha ·o consentimento de
casar com o tio; esperava cm soturno abatimento
que a casassem; e, se minha innã lhe· tocava
n'esse assumpto, dizia: «Façam de mim o que
quizerem ... Para o que eu hei de viver ... tanto
me faz ... » Quanto ao casamento, proseguiu o
padre Osorio, eu scismava se a primeira noite
nupcial seria a véspera de escandalosas desaven-
ças, arrependin1entos, choradeiras, divorcio, ver-
gonhas, coisas; mas occorria-me que Feliciano
me confcssára repetidamente que sahira da sua
aldeia aos doze annos e tornára casto e puro
A RRAZli.EIRA DE PRAZII\S

como sahira. E eu então, attendendo a que a


castidade, além de ser em si e virtualmente uma
coisa boa, tem umas ignorancias anatomicas, e
un1as inconscientes condescendencias co-m as irn-
purezas alheias, descançava, tranq uilisava o meu
espirita escrupuloso. U1na falsa comprehensão
da honra alheia ás vezes rne aconselhava que
n1andasse o brazileiro conversar sobre o assum-
pto com o operario que o luar cnganára em
certa noite; mas a honra, como a consciencia,
não são quantidades constantes no geral das
pessoas; são condições da alma tão variaveis
como a rnateria exposta ás rnudanças climateri-
cas. Ora as condições mentaes c moraes de Fe-
liciano l"lrazins eram as melhores e as mais ga-
rantidas para a sua felicidade. Corn que direito
ia cu estragar aquelle excellente organismo?
. L\té aqui o padre Osorio corn a sua grande
pratica ethnologica dos usos e costumes dos n1a-
ridos sertanejos do Minho.
O mano lavrador não era mais apontado em
tnelindres de pundonor. Assim corno curára cm
silencio o coração, golpeado pelas deslealdades
da defunta Genoveva, do mesmo modo se âcorn-
modára com os estragos soffridos nos tegumen-
tos da cabeça. Dizia-lhe o administrador que
querelasse contra o -Zeferino, porque ·havia tes-
teinunhas indicativas que faziam prova. Não
qu_iz.- Depois é que tne dão cabo do canastro;
-dizia co1n um dom prophetico, e circumspec-
ção admiravel em um homem sem instrucção
pnmar1a.
~o etntanto, Zeferino debatia-se n'urn aze-
d u rne de desesperado, muito má lingua, insano
tlc paixão, a degenerar para faccinora em theo-
rias de escavacar 1neio mundo. Con1eçou a su-
A BRAZILEIRA DE PRAZI:'~oS t07

perar-lhe nas entranhas o vicio do pai com sê-


des ardentes de vinho do Porto e genebra. Sen-
tia allivios, consolações ineffaveis, quando se en1-
bebedava; rejuvenescia; a vida encarava-se-lhe
n1elhor. .t\rranchava con1 vadios nas noitadas das
tavernas onde se jogava esquineta e monte. l'ro-
cava na n1eza da tavolagcm peças de duas caras
que co~nprára no ten1po crr1 que amealhára dez
rnil cruzados com dez annos de trabalho. Os
parceiros roubavam-no. Vinham de noite de I;a-
tnalicão a Landim, perto das l...atnellas, jogado-
res professos, armar a forquinha ao pedreiro
com cartas marcadas e pêgo. Depois das perdas,
quando se via atascado na esterqueira do jogo
e da borracheira, embriagava-se de novo, e n'es-
sas allucinações ia a Prazins, de clavina ao hom-
bro, com o l'agarro de ~lonte Cordova, e fal-
lava alto, com petulancia, para que l\lartha o
ouvísse. O brazile.iro e o Simeão tinham-lhe
medo e não abriatn as janellas depois do sol-posto.
Espalhou-se então a noticia de que o brazi-
leiro ia effectivamente cazar com a sobrinha.
O Zeferino escreveu ao Feliciano uma carta
anonyma, que era um traslado augmentado do
depoimento do pedreiro que vira o José Dias
saltar da janella. E por fim ameaçava-o:- que
se cazasse conz a 1"'\.tfartha, néi.o . :z havi;~ de gosar
nzuito lenzpo. O 1-~.. eliciano mostrou a carta ao ir-
mão. Concordaram que era o pedreiro com a sua
paixão, damnado de raiva. O brazileiro entrou a
scismar que o scelerado era capaz de levar a vin-
gança ao cabo- bater-lhe, mata l-o. Os tiros des-
fechados á sua honra de marido de 1\lartha res-..
valavam-lhe na coiraça da consciencia: «eu sei
o que faço>> diLia elle; mas a idéa de um tiro
ao seu physico, inquietava-o devéras. «E' pre-
A BRA/.lL!<;IH..\ DI:<~ PR.\Zl~:\

ciso dar cabo d'cste ladrão)) dizia o brazileiro


ao mano, n'un1. grande mysterio.
Lembrou-lhe o seu compadre, o Francisco
1\lelro, da Pena, um taverneiro de olhos estra-
bicos, d'alcunha o "4lnza-ncRTa, um que o ti-
nha avisado, quando a malta '-da patuleia tencio-
nava agarral-o. O L\1elro rompera relações com
o Zeferino, por causa da partilha de uns dinhei-
ros apanhados ·na mala do correio de Guimarães,
e dizia hyperbolicamente ao seu cotnpadre que
o Zeferino, quando andára na patuleia, era la-
drão como rato.
O 1\ielro era tná bisca. Estivera trez annos
na Relação como cumplice etn um homicidio
que se fizera na sua tasca. \'ivia apertadamente
com mulher e quatro filhos, e não cessava de
pedir emprestimos ao compadre desde que o
avisára. Quando o Sitneão foi espancado, o
l\lclro logo lhe disse en1 segredo que q uctn lhe
batêra fôra o Zeferino, con1 as costas guardadas
por dois pimpões do ~1onte Cordova. E accres~
centou:- Elle bem sabe a quctn as faz. Havia
de ser com migo ou con1 pessoa que me doesse ...

O Feliciano deu um passeio para os lados


da Pena, onde moraya o cotnpadre. Disse-lhe
que ia vêr a quinta da Commenda que se ven-
dia; que lh'a fosse mostrar. Conversaram; e,
no regresso, pararam em frente de uma casa
com trez janellas e urrÍ quintal espaçoso.
-E' aqui, disse o Melro.
O brazileiro poz o monoculo e leu um bi-
lhete pregado na porta co1n quatro tachas: [)o-
nzingo, ás 10 da 1nanhã, depois da nzissa, vai á
praÇa a quenz 1nais dé1· sobre a a·valiação judicial
A BR_\ZlLEIRA DE PRAZI)t'S 209

de sool$ooo 1·éis est~..1 casa, di~inla a Deus, par..,.,


partilhas. O Feliciano leu, retirou-se apressado
para que o não vissetn, murmurando quaesquer
palavras a que o compadre i\lelro respondeu:
-\'ossaria então está a lêr! rrão certo ti-
vesse eu o ceu como tenho a casa ...
Feliciano seguiu para Prazins e o J\1elro
disse aos freguezes da taverna que o seu com-
padre ia comprar a quinta da Commenda, e que
estivera a lêr o escripto da casa do Cambada
que se Yendia, e dissera que talvez a comprasse
para a dar a· um afilhado ...
-Ao teu pequeno?l-perguntavam.
-Pois a quem h ade ser! Aq uillo e que é
um hon1em ás direitas!
-l~lle não sabe o que tem de seu. rranto
lhe monta dar-te a casa como a mim pagar-te
um quarteirão d'agua-ardente- encareceu um
pedreiro.- Anda agora a trabalhar no palacio
da Retorta. Que riqueza! Parece utn mosteiro.
Pelos modos vai para lá viver logo que caze
com a ~'Vl.artha. I .Já o mestre Zeferino rebenta
que o leva os diabos l Isso diz que dá cada ar-
ranco ...
-O . .__ eferino~ a falia r a verdade, tem rasão
-disse o ~1elro.- O Simeão tinha-lh'a pro-
mettido. Gente sem palavra que a leve o diabo!
r~u, se fosse commigo ... .\las, em fim~ é irmão
do meu compadre ... não devo dizer nada. Que
se Q"overnem.
,_

O 1\lelro, ás -8 da noite, qllando os freguezes


desalojaram, fechou a taverna; e, espreitando
se os pequenos dormiam~ disse á mulher:- ..-\
).(
210 A BRAZILEIRA DE PRAZINS

casa do Cambado é nossa, mas é prectso vin-


dimar o Zeferino ...
-Credo! -exclamou a tnulher com as tnàos
na cabeça. -Nossa Senhora nos acuda!
-l.Jeva ru n1or! - e punha o dedo no nariz.
-O' Joaquirn, ó marido da minha alma,
alembra-te dos trez annos que penaste na ca-
deia! Olha para aquelles quatro filhos! .•.
-Já te disse que tne não cantes- e relan-
çava-lhe o seu formidavel olhar vêsgo incendido
com os latnpejos da candeia em que afogueava
o cachin1bo de páo. Depois, foi tirar d'entrc a
cama de bancos e a parede uma velha clavina.
Sentou-se á lareira e disse á n1ulher que tives-
se mão na candeia. I~nroscou o sacatrapo na
ponta da vareta de ferro e descarregou a arma,
tirando primeiro a buxa de musgo, e depois,
voltando o cano, vazou o chumbo na palma da
mão.
-o~ Joaquim, vê lá o que vaes fazer l-in-
sistia a mulher, limpando os olhos com a estopa
da camisa. E elle, assobiando o hytnno da Maria
da Fonte, despejava a polvora da escorva, des-
aparafusava a culatra e tirava as duas braça-
deiras. A mulher soluçava, e elle, cantando
n'uma surdina rouca:

l..eva ávante, portuguezes,


l..e1.1a ávante, e não temer·. •.

-Pelas chagas de Nosso Senhor, lembra-h~


dos nossos pequenos.
J~ o ~\lelro n'uma distracção lyrica:

Pela santa liberdade,


Triumpha1· ou padecer .• .
_\ BRAZILEIRA DE PR.\ZI~S 211

Depois, bufava para dentro do cano e punha


o dedo indicador no ouvido da culatra para sen-
tir a pressão do sopro, que fazia um fremito as-
pero itnpedido pelas escorias nitrosas. Pediu á
tnulher umas febras d'algodão cm rama, enros-
cou-as n'uma agulha de albarda e escarafunchou
o ouvido do cano.-- Está suja- disse clle- dá
cá utn todo-nada de aguardente.
-Joaquitn, vamo-n'os deitar, pelas aln1.as.
~ão te desgraces I
-·rraz aguardente e cala-te, já t'o disse,
mulher. com dez diabos l-1~ poz-se a assobir
a Luizt"nha. Enroscou algodão embebido em
aguardente no saca trapo e esfregou repetidas
vezes o interior do cano até sahirem brancas e
seccas as ultimas farripas da zaracotea. Soprou
novamente e o ar sabia sctn estorvo pelo ouvido
com um sibillo egual. Parecia satisfeito, e can-
tarolava, 1nezz.:t voce:
e;lgora, :JJ[Ora, agora,
Luizz'ttha, agora •

..\rn1ou a clavina, aparafusou as braçadeiras,


a culatra e a fecharia, introduzindo a agulha.
- . . \perrou e desfechou o cão repetidas vezes,
acompanhando o movimento com o dedo polle-
gar, para certificar-se de que o desarmador, a
caxêta e o fradête trabalhavam harmonicamente.
L. evantou o fusil de aço que fez um sotn rijo na
tnola c friccionou-o com polvora fina ; c, cotn o
bordo de utn navalhão de cabo de chifre, lascou
a aresta da pederneira que faiscava.
-Valha-me a Virgem! valha-me a Virgem I
soluçava a mulher.
E elle, zangado com as lastimas da mulher,
com expansão raivosa, n'um s[ng~1lo:
212 A ARAZlLElRA DE PRAzn.;-s

E vil'a- a nossa 1·ainlza,


Lul"zinlza,
Que "é uma linda capitôa • ..

-v· ai a loja a traz. da ceira dos figo-s e traz


o tnasso dos cartuxos e uma cabacinha de pol-
vora de escorvar que está ao canto.
A mulher dava-lhe as coisas, a tremer, e fa-
zia invocações ao Bom jesus de Braga, e ás al-
Inas santas bemditas. Elle encarou-a de escon-
so, e rcgougou : - .\láo I. . . tnáo I ...
Carregou a clavina con1 a polvora de un1 car-
tuxo; bateu com a cronha no sobrado, e deu al-
gumas palmadas na recamara para fazer descer
a pol vora ao ou vido. Fez duas buxas do papel
do cartuxo, bateu-as cotn a vareta ligeiramente,
uma sobre a polvora e a outra sobre a bala.
~-1gora, ago,·a, ago1·a,
Lui;;inlza, agora.
Depois, pegou da clavina pela guarda-matta,
e poz-se a fazer pontarias vagamente, passeando
um ·olho, com o outro fechado, desde a mira
ao ponto.
A tnulher fôra sentar-se no sobrado, á beira
da enxerga de tres filhos a chorar; o rnais novo
esperneava, dava ,-agidos na cama a procurai-a.
O . ..4lnza-negra fôra dentro beber uns tragos de
aguardente, voltou enroupado n'um capote de
militar, despojo das batalhas da J.'WaTia da Fonte.
-Ora agora- disse clle- ouvistes? porta da
cosinha e a cancella da horta aberta, porque eu
venho pelo lado do pinhal.
- Vae com i'\ossa Senhora- disse a mulher
- c poz-sc de joelhos a uma estampa do Bom
Jesus a rezar rnuitos Padre-nossos, a fio.
A BRAZILEIRA DE PR.\Zl~S 2l3

Era uma noite de fev(!reiro, de nevoa cerra-


da, um céo de carvão pulverisado em brumas
molhadas, sem clareira onde lucilasse uma es-
trella. :\Tão se agitava um galho de arvore nua
movido pelo ar nem ondulava uma erva. Era a
serenidade negra e immota das catacumbas. A's
vezes rugia nas folhas ensopadas de nebrina no
chão esponjoso das carvalheiras a fúga rapida
das hardas, dos toirões e das raposas que se avi-
sinhavam do povoado a fariscarem as capoeiras.
O Joaquim i\lelro estremecia e punha o dedo no
gatilho. O restolhar d'um gato bravo, o pio da
coruja no campanario distante punham arrepios
de medo na espinha d'aquelle homem que ia ma-
tar outro- chamai-o á janella e varal-o á trai-
ção com uma bala.- Era o traçado.
-Que raio de escuro I-- dizia, esbarrando
nos espinheiros perfurantes.
I~m noites assim, o universo seria o immenso
vacuo precedente ao Fiat genesiaco, se os vian-
dantes não esbarrassem com as arvores e não es-
corregassem nos silvêdos das ribanceiras. O no-
ctivago sente na sua individualidade, nos seus
callos e no seu nariz, a doce impressão pantheis-
ra das arvores e dos calháos. Que este globo está
muito bem feito. Os transgressores do descanço
que Deus estatuili nas horas tenebrosas, os sce-
lerados das aldeias que larapeam o presunto do
visinho, que fisgam a moça incauta ou empu-
nham o trabuco homicida, se não temem encon-
trar as patrulhas civicas das grand~s municipa-
lidades, encontra1n os troncos hostilmente nodo-
sos das arvores que são as patrulhas de Deus.
Alguns, porém, protegidos pelo _,lephisto a quem
venderam a alma pelo preço da consciencia elei-
toral, ou mais barata, chegam incolumes ao de-
2U A BRAZlLElR.\ DE PH.AZll'í~
--- -- -----------------·--------------
li c to, passando i Ilesos como o _lobo e o javali
por entre os troncos das carvalheiras esmoita-
das, hirtas, com os galhos a esbracejaren1 retor-
cidos n 'uma agonia patibular.
O j.~elro, cotno o porco tnontez e o lobo cer-
val, embrenhára-se por pinhaes e carvalheiras;
ás vezes, parava a orientar·se pelo cucuritar dos
gallos tresnoitados e latir dos cães. Ao fundo
das bouças ladeirentas, rugia o rio Peile nos açu-
des das azenhas e nas guardas dos pontilhões.
Lamellas era da parte d'além. 1\~as o rio, de
monte a n1ontc, rugia intransitavel nas peque-
nas pontes. Foi á de Landitn, uma aldeia en-
gravatada, onde ainda se avistavam clarões de
luz nas vidraças das familias distinctas que jo-
gavam a bisca em ricos saráos do faubourg
Saint-Hono1·é~ com uns deboches sardanapales-
cos de sueca a feijões.
l-Iavia tambem um rumorejo de vozes que
altercavam na taverna do Chasco. Tinia dinhei-
ro lá dentro. Jogava-se o tnonte.
O 1\~elro cuidou ouvir proferir o nome do
Zeferino. Abeirou-se, pé ante pé, do postigo da
taverna, e convenceu-se de que estava alli o pe-
dreiro. Era elle quem reclamava um quartinho
que pozéra de porl . -7, e o banqueiro recolhêra cotn
as paradas que estavam dentro, quando tirou a
contraria de ca1·a.
-Que não admittia ladroeira·s!
E o banqueiro desfeiteado observava-lhe que
nada de chalaças a respeito de ladroeiras; que
todos os que estavam d'aquella porta para
dentro eram cavalheiros. O Zeferino replicava
que não queria saber de cavalheiros; que que-
ria o seu quartinho ou que se acabava alli o
A BRAZILEIRA DE PIL\Zll't~ 2ij

mundo. Que quem queria roubar que fosse para


a l'erra Negra.
A allusão era muito certeira e inconveniente.
l~stavam na roda dos cavalheiros alguns vete-
ranos da antiga quadrilha do Faisca, na Terra
Xegra, muito desfalcada pelo degredo e pela
forca. 'fravou-se a lucta a sôco e páo; havia
lampejas de navalhas que davam estalos nas
tnollas; o l'agarro de -'lonte Cordova tinha fei-
to afocinhar o banqueiro sobre os dois galhos
do baralho com un1 murro herculeo, phenome-
nal. O taberneiro abriu a porta para escoar o
turbilhão. Elles sahiram de roldão; e, quando
cntestaram com a treva exterior, quedaram-se
cegos como n'um antro de caverna. Um, porem,
dns que estavam, não sahiu; encostára-se ao
mostrador com as tnãos no baixo ventre, gritan-
do que o mataram; e, vergando sobre os joelhos,
n'um escabujar angustioso, cahiu de bruços,
quando o taberneiro e o ·ragarro o seguravam
pelos sovacos. Era o Zeferino.

Quando, á meia noute, o _-l bna-ne.!.[ra en-


trava em casa pela porta do quintal, encontrou
a tnulher ainda de joelhos diante da estampa
do Bom Jesus do .\lonte. Ao lado d'ella esta-
varn duas filhas a rezar tambem, a tiritar, em-
brulhadas em uma manta esburacada, aq uecen-
do as mãos com o bafo.
O -'1elro mandou deitar as filhas, e foi a
loja contar á mulher, lívida e tremula, cotno o
Zeferino morreu sem elle pôr para isso prego
nem estopa. Elia poz as mãos com transporte
e disse que fôra milagre do I3om Jesus; que
~stivcra trez horas de joelhos diante da sua
216 A RB.Aí'ILEIRA DE PRAZI~S

divina i1nagen1. O marido objectava contra o


n1ilagre- que o· compadre não lhe dava a casa,
visto que não fôra elle quem vindimára o Ze-
ferino; e a mulher-que levasse o demo a casa;
que elles tinhan1 vivido até então na choupana
alugada e que o Bom Jesus os havia de ajudar.
Ao outro dia, o Joaquim 1\'lelro convenceu-se
do milagre, quando o compadre, depois de lhe
ouvir contar a morte do pedreiro, lhe disse:
- Emfin1, você ganha a casa, compadre, por-
que n1átava Zéférino. se os outros não mátam
elle, heim?
XVII

C ELEBROu-sE o casatnento na capella da


quinta da Retorta. Foi o vigario de (~al­
dellas o ministro do sacramento, D. l'he-
reza madrinha, e o padrinho veio do Porto, o
barão do Rabaçal, um gordo, casado com as
brancas carnes velludosas da filha do Eusebio
:\1acario. O padrinho, muito faceiro, dizia ao
Feliciano:- Jli pérdoe, a migo Prázins, você si
casa com minina mágrita, muito secca di en-
contros. A mi mi dá na tineta para gostar das
redondinhas, heim? E' a minha philosophia . .t\
tnulher si quer roliça, de manêras que a gente
ache nos braços ella.
O devasso fazia corar o casto noivo ....'\. -'lar-
tha, á sobremeza, não lhe percebia umas gra-
çolas obrigatorias em bodas canalhas, que fa-
ziam nauzeas á aristocratica D. ·'"rhereza. muito
pontilhosa em- não admittir equivocas. O viga-
rio achava no barão a salôbra brutalidade que
faz nos intelligentes a cocega do riso que o (~er-
21<:; A BRAZlLEIRA DE Pl-L\ZlN!'S

vantes, o Rabelais, o S\\. ift e o portuguez snr.


L.uiz d' Araujo nctn sempre conseguetn quando
querem.
A ~lartha, n'un1a tristeza inalteravel, ·desde
que sahiu da egreja. Ao fin1 da tarde, fechou-se
cotn 1). 'fhereza no seu quarto, abriu o bahu, c
tirou do fundo o pacotinho das cartas do José
Dias, c d issc-lhe:- A senhora h ade guarda l-as;
e~ quando eu morrer, queime-as, sim?
- E se eu morrer adiante de ti?- perguntou
Do l'hereza risonha. .
-Diga então ao snr. padre Osorio que as
queime: porque olhe- e abraçou-se n'ella a
chorar, a soluçar- eu. o o ou rnorro, ou endou-
deçoo Cheguei a esta desgraça~ estou casada
para fazer a vontade a meu pai, cuidando que
elle morria; não sei como heidc sahir d'isto
senão acabando de vez ou perdendo o juizo cotno
a minha tnàe ... bem sabe como ella acabou.
Do T'hereza Osorio banalmente a consolava
com o vulgarismo das coisas que se dizem ao
con11num das meninas casadas cotn maridos re-
pugnantes e ricos.- Que se havia de affazer, que
tudo esquecia com o tempo. Ella, um pouco aris-
tocrata por bastardia, não acreditava em melin-
dres de sentirnentalidadc na filha do lavrador
parrana e da Genoveva da vida airada. O apai-
xonar-se pelo Dias, um bonito rapaz d'aldeia,
parecia-lhe trivial; tentar suicidar-se quando elle
morreu, para uma senhora lida en1 novellas ro-
manticas, era um caso ordinario e pouco signi-
ficativo; porém, condescender con1 a vontade do
pai, casando com o tio, pareceu-lhe um acto de
condição plebea, a natureza reles da filha do
Simeão que afinal do1ninava estupidamente as
A BRAllLEIHA IH.: PHAZDi~

indecisas manifestacües de uma indole artificial-


mente delicada. .
O padre comprehendia mais hun1anamente
.\1artha, dizendo á irmã :-Elia quando consentiu
em casar com o tio já estava doente da moles-
tia nervos a que a h ade Ie\' a r ao s ui c idi o. D. l'h e-
reza, com o seu criterio um pouco adulterado
pelas excentricas heroínas de Sue e Dumas, não
podia introncar aquella rapariga d'uma aldeia
minhota na genealogia d'essas parisienses nau-
fragadas em romancscae tempestades. E de
tnais. se ~'lartha, como o irmão dizia, estava sob
a influencia da loucura, a sua desgraça parecia-
lhe utna doença e não uma tragedia, segundo
as exigencias de uma senhora que tinha lido o
mais selecto da bibliotheca ron1antica franceza
.desde 1835 a 1845- tudo o que ha de mais falso
e tolo na litteratura da Europa. D. l,hereza que-
ria mais drama na desgraça de ~lartha ~ porque,
se alguma poesia elegiaca lhe concedêra pela
tenta ti va de matar-se, toda se resolvia em chilra
praza pelo facto de a imaginar no thalamo con-
jugal com o arganaz do tio.

Eram horas de deitar. O padre tinha ido


para Caldellas a fim de dizer a missa de madru--
gada. e dcixára a irmã a pedido de l\lartha; o
barão do l{.abaçal escancarava a bocca n'uns bo-
cejos ruidosos e levantava uma perna espregui-
çando-se; o noivo olhava para o mostrador do
relogio collado aos olhos; e ~lartha, muito acon-
chegada de D. 1'hereza, queixava-se de caim-
bras; que lhe zuniarn coisas nos ouvidos, que
via faiscas no ar, e tinha muito calor na cabeça.
D. 'fhereza dizia-lhe que se fosse deitar, que
precisava de recolher-se . .\lartha pedia-lhe q uc
220 A RRAZILEinA DE PRAZl:\S

a deixasse ir dormir ao pé d'ella, pedia-lh'o pela


aln1a de sua mãe, pela vida de seu irmão.
A hospeda comprehendia, compadec~a-se, re-
ceava o ataque epileptico, precedido sempre das
faiscas e caimbras de que se queixava a noiva;
mas não sabia como dirigir-se ao marido de
&\lartha a pedir-lhe que se fosse deitar s6sinho.
~os seus numerosos romances não achára um
episodio d'esta especie. Interveio na critica con-
junctura o Simeão, dizendo à filha:
-São horas de irá deita. O teu marido está
a cahir com somno.
~\artha fixou o pai com os seus olhos esme-
raldinos rutilantes de colera, n'um arremesso de
cabeça erguida, e com os labias a crisparem.
Era a nevrose epileptica. Seguiran1-se as con-
vulsões, o espumar da bocca, um paroxismo
longo de vinte tninutos. D. 1'hereza pediu que
a ajudassem a levai-a pata a sua cama, e disse
com fidalga impertinencia ao Simeão que a dei-
xassem com ella, e não lhe fallassem no marido.
Simeão cassava-se com grande desgosto. O bra-
zileiro contava ao barão que a sua sobrinha era
atreita áquelles ataques; mas que o cirurgião
lhe dissera que lhe haviam de passar em casan-
do. O do Rabaçal notou que o remedia então
bom era, e seria bom começai-o quanto antes.
JJisse mais chalaças a proposi to e foi-se deitar.
Feliciano ainda foi saber como estava a esposa;
mas já não havia luz no quarto de D. ·rhereza.
Recolheu-se á cama, e continuou mais uma
noite no seu leito solitario, virginalmente.

D. Thereza sentia-se mal, n'um embaraço


quasi ridiculo, · n'aquelle meio. Martha não a
largava, parecia uma creança espavorida, agar-
A BRA.liLEIRA DE PRAZI.;"iS 2tl

rada ao vestido da mãe, assim que ouvia os pas-


sos do tio. Elle, muito carinhoso, com o n1ono-
culo no olho direito, a off~recer-lhe castanhas
d'ovos. toicinho do céo, a pegar-lhe da mão e a
fazer-lhe festas no rosto muito corado de pudor.
D. 'rhereza discretamente deixou-os s6sinhos.
A .\lartha ficou a olhar para a porta por onde
a amiga se evadira, e fazia uns g~stos de quem
rneditava raspar-se; mas o marido tinha-a se-
gura pelas mãos rnimosas. beijando-lh'as ambas
com uma sensualidade delicada, um pouco ba-
bada-: mas muito commcdida, estendendo os
beijos qu~ntcs e humidos até aos pulsos lacteos
e redondinhos . .\lartha,. n_'utna impassibilidade,
não s~ recusava ás cancias, e pareceu mesmo
inclinar um pouco o rosto quando o esposo com
u..m bon1 sorriso do amor dos quinze annos lhe
pediu um bc:ijinho. que foi mais demorado do
que· era de espt!rar da sua candura e da inex-
periencia de ta~s delicias. Estavam ambos rosa-
dos; rr1as o rubor de ~1artha era carminado de
mais e nos seus olhos havia uma rutilação vaga
pela extensão da grande sala. Elia via a som-
bra de José Dias: era o José Dias cm pessoa, di-
zia ella depois a D. 'fhcreza, quando recuperou
os sentidos, c não sabia como,.a transportaram
para a cama da sua amiga. i\ penas se lembrava
de que o tio, depois que a beijára no rosto, ale-
vára pelo braço e entrára com ella no seu quarto,
apertando-a muito ao peito, levantando-a nos bra-
ços cotn muita força, não a deixando fugir e suf-
focando-lhe os suspiros com os beijos. ;\'"ão se
lembrava de mais nada. E O. 'Thereza, quanto
cabia na sua a_lçada. contava-lhe o resto imper-
feitamente; isto é q uc o marido a fora chamar
ao laranjal, um pouco afHicto, dizendo que a
.\ BRAZII...EIR.\ DE PRAZI~S

sua esposa estava na catna sem sentidos; e pe-


dia vinagre para lhe chegar ao nariz.
Padre Osorio veio jantar e buscar a irmã.
Observou no aspecto do brazileiro utna- irradia-
ção de felicidade~ o jubilo de um homem que
se sentia impavidamente completo, na integri-
dade da sua missão phyloginia. Foi então que
o padre assentou as suas theorias um pouco
fluctuantes áccrca das vantagens da castidade
em beneficio das impurezas alheias.
O f .. eliciano, quando o cirurgião chegou á
tarde, contou-lhe com pouco recato de pudicicia
conjugal as circumstancias, particularidades oe-
corridas no -«fanico da sua esposa)), dizia elle.
O facultativo, un1 velho patusco~ disse que não
se admirava, porque a snr.a D. Martha era mui-
to nervosa; imperfeita ainda na sua organisação,
c que as impressões desconhecidas e um pouco
violentas nas constituições fracas produziam ex-
traordinarias perturbações; mas que não se as-
sustasse, que não era nada; que as segundas
naturezas se faziam com o habito.-Banhos de
tnar, aconselhava, bife na grelha e vinho do Por-
to, quanto mais chôco melhor. O que se quer
cá fora é um rapaz; não ha con1o utn filho para
fortalecer a compleição d'utna 1nulher debil;
um filho, quando sae do ventre da mãe, traz
co1nsigo para fóra os máos nervos, e acabam os
cheliques. Ande-me cotn um rapagão p'rá frente!

Na auscncia de D. 'fhereza, a melancolia de


V'\artha cerrava-se de dia para dia. O governo
da casa era-lhe de todo indifferente, como se
fosse hospeda. () marido não a compellia. a in-
tere,sar-sc n'esses arranjos de que, dizia o Si-
_\ RRAZILEIR.\ DE PRAZIN~ 223
- ---------------
tneão, c lia nunca quizera saber em Prazins. O
barão do Rabaçal mandára-lhe do Porto cosi-
nheira e governante. \lartha sahia raras vezes
de uma saleta onde tinha um oratorio que trou-
xera de casa. Confessava-se mensabnente a frei
Roque, o irmão da sua mestra, e professor do
de Villalva; e demorava-se no confissionario com
perguntas desvairadas a respeito da alma de
José Dias, por que dizia ella ao padre-mestre
que o via n1uitas vezes em corpo e alma, e até
o ouvia fallar e lhe sentia as mãos no seu corpo.
O frade, sem re\·elar o sigilo da confissão, dizia
á irrnã que a .\lartha dava em douda como a
mãe.
O Feliciano ficou espavorido quando a tnu-
lher, n'um dos paroxismos epilepticos, se pôz
a rir para elle com os olhos espasmodicos e a
chamar-lhe José, seu ~fosésinlzo. Passada a ne-
vrose, quando ella in1mergia n'um torpor phy-
sico e mental, o tnarido contou-lhe o caso de
lhe chamar Josésinho. Elia parecia esforçar-se
muito para recordar-se, e dizia que não selem-
brava de nada. Vinha o cirurgião a miudo:-
que era hysteristno, e consolava o marido com
a esperança no tal rapa~ão, esperanças bcn1
fundadas, segundo as confidencias do pai; mas,
consultado pelo padre Osorio, o Pedrosa, um
grande clínico, dizia que a brazileira não tinha
simplesmente a gota coral; que havia ali epi-
lepsia complicada com delírio, alienação men-
tal intermittente, um estado de inconsciencia ou
consciencia anorn1al, e que verdadeiramente se
não podiam determinar bem quaes eram os seus
actos de lucidez intercorrente. .
-Elia está gravida- observou o viga rio de
Caldcllas.- Parece que este facto denota uma
2t-i A BR.\ZILEIR.\ I>E PH.\ZINS

tal ou qual normalidade de consciencia, un1a


concepção racional dos deveres de esposa ...
-Não denota nada-refutou o medico.-
F'aça de conta que é urna somnambula. -E, cotno
a sua clemencia é funccional e não organica, não
h a desorganisações physicas que a estorve1n de
ser mãe. O meu collega que lhe assistiu á ulti-
ma vertigem disse-me que, alguns tninutos an-
tes do ataque; ella, n'uma grande irritabilida-
de, lhe dissera que fugia para Villalva, que
queria vêr o José Dias ... O marido felizmente
fôra n'essa occasião prover-se de vinagre á dis-
pensa. Eu considero-a perdida, a menos que se
lhe não dê uma prompta e completa diversão
élO espirita, e nen1 assim se consegue senão tem-
porariamente desherdar os desgraçados que ti-
veram mãe e avo con1o esta Martha. Eu assisti
ao primeiro e ao ultimo periodo da Genoveva.
]{epetiram-se as vertigens, veio a decadencia
gradual da razão, delirios, ideias confusas, con-
cepção difficil, nevroses vesanicas, c por fim'l
suicidou-se já n'um estado de clemencia epilc-
ptiça, que os especialistas consideram a mais
incuravel. Este me parece o itinerario da 1\'lar-
tha~ e o casal-a com o tio deixou de ser um acto
immoral para ser um estupido arranjo de for-
tuna por lado do pai e de luxuria por parte do
marido. l~sta pequena tinha de vir a isto, e ha-
de ir á clemencia, tnesmo setn drama nem pai-
xão. 1,cm o cerebro defeituoso assim como po-
dia ter a espinha vertebral rachitica. Como se
faz a perda da vista? Pela paralysia dos nervos
opticos; pois a perda da vista normal da alma
é tambcrn a paralysia d'uma porção de massa
cncephalica. Dem sei que isto embaraça um
pouco os senhores theologos-methaphysicos,
mas lá se avenham: a verdade é esta.
XVIII

·C HEGARAM por este te!llpo, vindos das t_crras


de Basto a l~equiào, os tão almeJados
missionarias, interrotnpidos no seu este-
ri! apostolado pela revolução da J.'1aTia da Fon-
Je . .:'\larth~ ouviu _a noticia com alvoroço, e ?isse
que quena seguir os sermões,- que precisava
de sal var a sua alma. O Feliciano viéra un1 pouco
estragado de Pernambuco a respeito de religião;
1nas respeitava as crenças alheias, e não contra-
riava as devoções da sobrinha. O padre Roque
era de parecer que se não deixasse -'lartha en-
trar muito pela mystica; aconselhava o marido
que fosse viajar com a mulher, que a tirasse
d'aquella terra, porque as suas enfcnnidades não
podiam curai-as os serinões nem as hostias. O
egresso conhecia a pharmacia do varatojano de
llorba da l\lontanha, e sabia que a primeira re-
ceita de frei João era exorcismal-a como detno-
n•aca.
-Dão cabo d'ella, voc~s v~rão, dão cabo
d~ella-di7ia o padre-mestre.
:22() A RR.\ZILElR.\ DE PRAZI~~

Era n1 quatro os n1issionarios que assentaram


o vestibulo do paraizo en1 H.equião.
O padre José da Fraga ainda novo, be.m cotn-
posto e lin1po nas suas vestes sacerdotaes, grave
c sen1blante intelligente. ·rinha-se ordenado em
13rancanes con1 o proposito de ir propagar o
christianismo na China; depois, interesses e ro-
gos de fan1ilia detern1inaram-o a ficar na patria,
sem abrir tnão da vocação apostolica. l_Jêra c
percebl!ra I~aulica, Lacordaire, e itnitava o se-
gundo com bastante engenho. O padre Osorio
dizia-lhe que guardasse as suas perolas para ou-
tro auditorio menos suino. l~, de feito, as mu-
lheres, quando de 1nadrugada o vian1 no pulpi-
to, aconchegavatn-se umas das outras para com-
n1odan1ente tosquenejarem o seu somno da ma-
nhã; c os homens diziatn que não o chamava
Dt!us por aq uell~ catnin ho-q ue não calha1.'t.l p'r'á
f'réde.~·a.
O padre (:osmc de ·ragilde, robusto, de n1eia
idade, auctor da Rscada do céo pelas csc~.-1rpas do
(;olgotha e da Via scraphica para o Teino dns
Clzerubins, era prégador de sentimento. ·rinha
sido furriel no exercito realista 4 e ordenára-se
para herdar uns bens de un1a parenta beata que
tinha horror á tropa. l . . era as novellas do Pre-
vost e ~\aclame de Genlis, quando era furriel.
Ficou-lhe d'essas leituras uma linguagetn amei-
laçada, cotn interjeiçt-)es tragicas, ·e um geito es-
pecial de tocar as tnães corn in1agens ternas ti-
radas das coisas infantis. Por exemplo: E o teu
jilhinho, nzulher, o filhinho que Deus te levou para
a có1np ..1nhz~a dos anjos, quando lá do céo te vê
pccca1·, estende par~.-1 ti os seus bracinhos, e dz".;:
l'rfi e,. ú nzãc! n'...io peques: 1nãe, n..lo peques! peL1s
l .1grinzas '-]!te po1· n1inz choraste, 11i.lO ·caias na len-
\
A BRAZILEIRA DE PRAZI~S 227
------------ -

laç.io, porque, se te perdes, se te ~~fund3s no abys-


nzo eterno nâo lorn~.1Tás a vêr o teu filhinho qu~
te ch:zm:z do céo, nzãe, ó nLie! E infantilisava o
timbre da voz, inclinava a um lado a cabeça
n'um langor tnenineiro, estendia 'os braços do
pulpito abaixo com as mãos abertas, alongava
os beiços no geito da boquinha de criança, e
muito mavioso, n'urn tren1ulo de voz e braços:
J.}fie! ó 1nãc! E todas as que tinham perdido fi-
lhinhos desatavam n'um berreiro.
O padre Silvestre da i\zenha, hotnem anti-
go, d'uma porcaria de sotaina digna dos agio-
logios, boa pessoa, incapaz de rnentir volun-
tariamente, era forte na topographia do inferno
e nas genealogias, usos e costumes dos diversos
diabos. 1\ffirmava que a legião d'elles se dividia
~m esquadras, capitaneadas por Lucifer, prín-
cipe da Luxuria, por 1\smodeu, Satanaz, Del-
zebut c outros, cada urn com a pasta mi-
nisterial dos seus con1petentes vicios. Dava
noticia de um caudilho de esquadra, cha-
mado Behemoth, cujo empenho era hestia-
lizar os fieis- verdadeira superfluidade.-- rJe-
viathan capitaneava o esquadrão da Soberba;
c o n1inistro e secretario de estado encarregado
da pasta da . -\vareza
. chamava-se J/.1nzona ...:\
sciencia moderna matou este diabo, extra h i u-lhe
'> oleo, e pôl-o ao serviço dos intestinos dos pec-
cadores- oleo de 1tl:vnona. Explicava o padre
ás mulheres o que era a corja dos denzonios in-
cubas. Contava cazos de algumas que ficaram
gravidas d'esses devassos, e dizia em latim que
taes demonios fecundos podiam, mesmo contra
a vontade da tnulher, 1·c1n lz:~bere cu1n ill . .1. E
as tnulheres~ sem pôr mais na carta, farejavam
o latim e murmura\ram indignadas:- ·r·arre-
228 A RRAliLEIRA DE PRAZII'i'S

nego! Catixa I cruzes, canhoto!- e benziam-se .


cuspinhando nos calcanhares umas das outras.
Fr. João de Borba da l\1ontanha, com quan-
to não frequentasse o pulpito, era o vulto mais
proeminente da missão. Sahira já velho do \'a-
ra tojo~ peito fraco, um pigarro chronioo de ca-
tarrho pituitoso, com poucos dentes, por onde
as palavras lhe sahian1 assobiadas que nem
n1elro nos sinceiraes de julho. Por isso o con-
fissionario era a sua faina de prosperrimas co-
lheitas para o céo, e os exorcismos a sua famo-
sa gloria cheia de triumphos sobre todas as es-
quadras dos demonios conhecidos do seu cotn-
panheiro padre Azenha. Eram ambos, de mãos
dadas, o terror do inferno: un1 a explorar dia-
bos no planeta, o outro a enxotai-os. A' onlni-
potencia d'este varatojano é que o vigario de
Caldellas confiára a reducção da mãe de José
Dias.
Este egresso tinha feito á sua custa a ter-
ceira edição do Peccador C01l1'ertido ao c..vninho
da t'e1·da.de, obra do seu conventual varatojano
frei i\1aouel de Deus. Vendia o liYro por 720,
meia-encadernação. Chamava-lhe elle o seu bal-
de de tirar abnas do p1·o[undo poço do enxofre
infenz·~.ll. ·rodas as beatas se consideraYam mais
ou menos empoçadas, e por 720 mettiam-se no
balde de frei João. l~arato.
Foi este o missionaria escolhido por Simeão,
de harn1onia com o genro. l\1artha lernbrava-sc
que o seu José Dias lhe fallára n'ellc con1 mui-
ta esperança etn qut! desfizesse os obstaculos do
casamento. Quiz confessar-se ao varatojano, e
revelou para .esse acto uma espectativa seraphi-
ca. grande deliberação anciosa~ um sobresalto
jubiloso em que parecia influir a cooperação so-
A BRAZlLEIRA DE PRAZI:'S

brenatural do seu querido morto. O padre Oso-


rio entrevia preludias de loucura nas alegres
disposiçües com que ~'lartha, n'um recolhimen-
to conten1plativo, desde o apontar da aurora,
esperava á porta da egreja que chegassem os
missionarias com o cortejo das mulheres enca-
puchadas, n1uito ramellosas, estrallejando os
"eus tamancos ferrados na grade do adro que
vedava a passagem aos porcos.
Em quanto na egreja, depois da missão~ se
depunha a hostia nas línguas saburrentas e gre-
tadas das beatas- que enguliam aquella farinha
triga como quem devora sevamen te um Deus-
cá fora armava tn-se no adro dois ta boieiros,
assentes em tripêças de engonços, com seus
pavilhões de guarda-soes de panninho azul. AI~
gumas mulheres de aspectos repellentes, sujas
·da pójeira das jornadas, com os canellos callo-
sos e encodeados, expunham nos tabolleiros as
suas mercadorias, e ao mesmo tempo injuria-
vam-se reciprocamente por velhas rixas invejo-
sas á conta de subornarem freguezas con1 cara-
munhas e palavreados. ~o silencio do templo,
ouvia-se cá de fora: -Arre, bebeda!- Cala-te
ahi, calhamaço !
A exposição bibliographica, feita nos tabo-
leiros, além das obras em brochura e encader-
nadas dos missionarias, constava da Re.~ra de
.S. Bento, da illz"ssão augn1entada, da .1\llissão
abreviada, das P·iedosas tneditações, das Hor .1s
do ch1·istão, do Me:z de Alaria, do Afez de Jesus
e do Lit•ro de Santa Barb .~ra. llavia tambem
Novenas, Via-sacras com estampas d'um horror
sacrílego, uns Christos que pareciam manipan-
sos do Bihé. Seguia-se a camada dos Escapu-
larios: uns eram de N. S. do Carn1o, de J.V. S.
2!30 A RHAZILEIR.\ DE PRAZI~8

das Dôres, da Concez"ção; outros do l~reciosissi-


1no sangue de Jesus, do Coração do 1nesmo, da
Santissitna Trindade e de S. Francisco. ~finham
grande sahida os Cordões do n1csn1o santo, e
as Correias de S . .c1goslinho, co1n un1 botão de
ôsso, a apertar na cintura,- arnez impenetra-
vel ao diabo, por causa do botão, que~ posto
na correia, tem virtudes para ôsso muito admi-
raveis, q uasi con1o as da carne. mas no sentido
inverso- ella atrahindo o cão tinhoso, e elle re-
pulsando-o. De Santo Agostinho e do Anjo da
Guarda tan1b~m havia Rez:Js enfiadas e1n me-
tal, ou em cordão sin1plesmente, mais barati-
nhas. Na especie medalheiro, grande profusão:
as medalhas mais procuradas eram as do Cora-
• çao de JJ!aria, do Co1·ação de Jesus, do Anjo d.:t
Guarda e de Santa Tlzereza, a r o ré is.
As corôas, penduradas em barbantes ou es-
tendidas em meadas, eram diversas no tamanho
e na nomenclatura: as seraphicas com sete nzys-
terios. c cada mysterio com dez A 7Je-1\1arias;
as d~ S. da Co1;ceição com doze Aves e trez
11l)'Slerios:- uma certa conta que os missiona-
rios lá graduavatn com a gafaria espiritual das
confessadas. Havia algumas que se aguentavam
cotn os I~osarios de quinze 1nysterios~ e a Corôa
dos nove coros dos Anjos, e a do Preciosissúno
sangue e coração de Jesus . .\\as o grande con-
summo era de contas de a=e7,iche, refractarias
aos tnáos olhados; de modo e maneira que, se
o azeviche é legitimo, senhores, logo que um
inimigo nos encara a conta racha de meio a meio.
1\lartha, a beata, a senhora brazileira de Pra-
zins, como lhe chamavam as regateiras das dro-
gas da salvação, fornecera-se de tudo em du-
plicado; mas sobre todos os devocionarios o da
A BRAZILEIHA DE PRAZI~~ 231

sua leitura dilecta era o Pecc ..1dor co7n•ertido ao


ca1ninho da verdade, ed~ção do seu confessor
varatojano, fr. João de Borba da \1ontanha.
São irnpenetravcis os segredos revelados no
tribunal da penitencia por l\1artha ao seu dire-
ctor e~piritual. O padre Osorio, não obstante,
suspcitaYa que a penitente revelasse, corn es-
crupulosa consciencia, solicita da por tni udas
averiguações do missionaria, saudades, remi-
niscencias sensualistas, carnalidades que se lhe
forma lisa vam no espirito dementado, em fitn,
visõe s e sonhos c o tn o José Di as. Inferi a o pa-
dre a sua conjectura, sabendo que frei João lhe
mandára ler no Peccado1· con1'ertido, tres vezes
por dia, o capitulo 33, intitulado I?.csistencia ás
tentações conl1·a ~1· castid . Jde. Fortalecia esta hy-
. pothesc ter dito Jlartha a D. 'fhereza que a al-
Ina de José Dias lhe apparecia etn sonhos; e ás
vezes. mesmo acordada, lhe parecia sentil-o na
cama á sua beira; e então mordia o travesseiro
para que o ti"o a não ouvisse chorar. Pódc ser
que estas revelações, comn1unicadas ao confes-
sor, um sin1plorio incapaz de destrinçar entre
doença e peccado, fossem acompanhadas de par-
ticularidades sensitivas que :\lartha por vergonha
não contava á sua amiga. I~' certo que a con-
fessada do varatojano lia. declamando, deante
do seu oratorio, trcz Yez~s por dia, a Resisten-
cia ás tentações contra a castidade.
A oração dizia assim:

Senho1· anzorosissi11zo, nio l'OS escondais, n ..io


112e deixeis sósinha, que nze cerca, o leão para 1ne
de1'o1·ar; os seus 1·ugidos n1e alonnenlwl11l par:t que
nio goste as suavidades do 1•osso anzo~·. Cercarei
todo o 112undo, subirei aos céos, 11 ..io desc:rnçarei
23:? A RRAZlLEIR.\ DE PRAZINS

en1. qu.Jnlo não qcha1· o 1neu atnor. {~onjuro-vos,


.filhas de J entsalenz, crcaiuras da terra que, se
encontrares o meu a11zado, lhe digaes que nzorro
d' amor. E, se quereis os sig·naes p ..1ra conlzecél-o,
Ollt'·i. O 1neu a1nado é C,;t,ndido e ntbicundo, esco-
lhido entre 11zilhares; candz"do por dz"vino, e ru-
hicundo por humano, candido porque innocente,
~ rubicundo po~· chag·ado . ..4 i I doce arno1·, onde
vos escondestes? T'ende compaixão de qucnz vos
busca. Estes s(gnaes que de vús tenho só servenz
de avivar-1ne a saudade, são se tias que me fe1·enz ~­
'norro, desfalleço, se 1'0S não acho.
Os cabellos da sua cabeça são corno o ouTo
nzais puro e mais precioso, são como paln2Z.tos e
pretos como o co1"vo. Se não intendeis, filhas de
./ erusalem' nem eu vo 'l' o saberei explica1·; o que
1·os digo é que os seus cabellos seio fortes laços
que bastam para prender 1.1 todo o nzundo, bas-
la1n par~.l abrazar tudo de amor. A i! a1nado do
rneu co1·ação, se as adn12"rações do que sois ab1·a-
zam a alnza, que 1'0S 1Jé por' enigmas, que será
quando vos 1'i1· cla1·,:unenie I Os seus olhos são
como pombas sob1·e co1-rentes de aguas, mansos.
puros, suaves, benignos, amorosos. Que magcs-
tosos, que humildes, que g1·aves, que serenos, que
doces, que suaves I Oh dulcissinzo anzo1·, já que
tanto fechais os olhos para não serem vistos, ao
1nenos não os fecheis para nze não l'e1·enz I .t1s
suas faces são con1o canteiros de jlvres a1·omati-
cas, se1npre bellas, senzpre cheirosas; passa11z os
dias, os 1ne:.es e os annos, e os seculos, e as fa-
ces do 1neu an2o1· sempre s.io _flores, nenz o sol
"ls tnurcha nem o frio as co1·ta, nem a agua as
corrompe, nen~ o vento as desfolha; são 1·osas,
.ção assucenas, são brancas e encarnadas. Oh!
quem me der:r tana gota da agua que as 1·et::a,
.\ BRAZli.ElRA DE PR.\Zl~S 233

.
u1n grâo de calor que ~1s virific:.1; quenl 1ne dera
que o jardine1:ro que as co1npõe nze quz"::;era se-
nze:~.r umas flores no nzeu jardinz e tonzar .i sua
cont . 1. compôl-as e reg .1l- :~.s, que o nzeu cunado
.!Josta muito de flores. Dizei-me, at'es do .:rr, .flo-
res do campo, peixes do 1n.:rr, viventes d.:t lerr;.l,
dizei-1ne se sabeis onde ~..1ssiste este jardineiro.
J1.:ts que dif?o, se este nzesnzo é o anz,.:tdo a quenz
busco c não 1nereço achar! O' saudade ardente, ú
sêde n1atadora, ó sella penetrante, ó anzor escon-
,_/ido I Que fareis, .Senhor, que fareis, se o J'osso
enzpenho é ser a mCido, por ..7ue \:1 n1itzha ventura
est..i enz 1'0S ter anzor, conzo escondeis o n1es1no
..7ue nze h:t1;ia de e1h1nzor..1r? Os seus labios sjo
li1·ios, que distilla1n· 111_}'1T:t excellente, lirios de
pure:;a d' onde sahenz pal..1L'ras que injlanznzanz no
~..1n1or da n-;,ortificação. Oh I se fôra tão ditosa
ininha ahna que recebéra algunza pCirte da myrra
que distillam teus lirios I Oh! se foranz t ..io feli-
zes nzeus olhos que -virarn a engraçada côr de
laes t1bios I Aonde est.;zes escondido, anz ..1do do
1neu co1·.;zção? 1Vão s:thenz por esses la bios as P.:t-
laL'r.:ts com que andais chamando pelas ruas, for-
tale:: ..ls e muros da cidCide: <(Se algunz é peque-
nino t'enha para 1ninz? )) Logo, co1no t'OS escotZ-
deis d' esta pequenina pobre e necessitad,;, que co111
tanto e1npenho vos busca ? Suas nzios s ..io conzo
de ouro feitas ao torno e chei.;zs de jacintos, todas
perfeitas, todas preciosas; 1nas rep:zrai, fillz:ts de
.Terusalénz, e por ::r.qui 1•os será nza·is facil conhe-
cél-o, que, no nzeio do ouro c j . 1cintos,
. tenz e1n
cada nzão unz precioso rubi que a passa de un1a
par ..l a outra. O seu peito e ent1·anlz::~s s . .io de
nzarfinz ornadas de safiras, dando a conhecer a
côr celeste da safira, a br~.-1nca do 11zarjiln c sua
dureza, que os seus affectos s ..io puros, candr"dns,
.4,. RR.\ZILEIR.\ DE PRAZIJSS

c.:tstos, 1'ÚJ{inaes, fortes, celestiaes e dit'inos, ~in­


ccros, co1npostos, solidas e constardes. O' peito
d'anzor, entranhas- de piedade, COillO assitn 1'os
fec/z_zcs para quenz 1'0S a11za? .A. qui de1•e de ha1'er
nzysterio! Goslacs tal1'CZ de 112e vêr afflictLI para
pro1'ar se sou aníante! Quereis que nze custe nzuilo
o que Jnuito 1•ale, porque, se o lograr a pouco
custo, (arei fjlJ•ez pouco c.Jso do que não ten1
preço. JI.:~s ai, anzado nzeu, que, se 1ne não di-
::.eis aonde passaes a sesta ao nzeio dia, te1no que,
and:tndo vagabunda, 1'enha a cahir nas 1nãos dos
rossos contrarias! .1l sua apparencia é conzo a
do Lib ..1no, ~.1 sua conzposiçJo co1no a do cedro;
cnz J udéa o nzonte nzais fornzoso é o Libano, no
l.Jibano ..1 arl'ore nzais excellentc é o cedro: assinz
é o nzcu anzado entre os filhos dos lzonzens. A
,~u::t garganta é suavissÍ1na, porque sahenz f)o1·
ella as vozes, as Tespirações do peito, que é ar-
clzivo de a1norcs e suaJ•idades; cnz finz todo é for-
nzoso, todo perfeito, todo anz;_11'el. Tal é o nzcu
t.1112..1du, este é o nzeu anzigo, filhas de Jcrusalcnz,
creatur~.1s da ten·a; se o achardes, dizei-lhe que
nzorro d'anzor . ..

.\lartha dizia a oração em voz alta, em mo-


dulaçõt!s cantadas, n'um arrobamento de pre-
.:;hiera. Aquelles dizeres, alinhavados pelo vara-
tojano, são extractos e irnitações das escandecen-
cias erothicas do poema dramatico da Sul:unila
no '<Cantico dos CanticoS))-OS trêchos mais ly-
ricamente sensuacs da antiguidade hebraica. El-
lcs deram o tom de todas as exaltações nevroti-
cas, desde os cxtasis hystericos de 'Thereza de
Jesus até ás allucinações da beata 1\laria .Alaco-
que e da portugueza madre .\laria do Céo, a can-
.4,. BRAZILEIRA DE PRAZli'i~

tora dos passarinhos de Villar de I~rades. D'esta


peçonha doce, elanguecente, vibratil e enervan-
te, cheia de meiguices epidermicas de um corpo
nú em frouxeis de artninhos, é que se fizeram
uns l\1anuaes modernos em França por onde as
adolescentes principiam a conversar com Jesus
e a comprehendêl-o em linhas correctas, sob
plasticas macias, a esperai-o, a desejai-o, como
lh'o figuram cotn todas as pulsações, redonde-
zas e flexibilidades da carne.
1\lartha, entre o Deus incomprehensivel e o
Christo-homem, via um ser tangivel, o seu unico
termo de comparação-o José Dias, esposo da
sua alma e dominador dos seus nervos reacen-
didos e abraseados pela saudade. Nas apostro-
phes a Jesus, palpitavam-lhe nitidas as curvas
do amante que a ouvia de entre as nuvens, n'uma
clareira azul., com a sua li vi dez marmorea e os
aneis dos cabellos louros esparsos como nas ca-
beças dos cherubins. l'inha aquelle namoro no
céo quando abria a pagina do livro com que o
confessor lhe dissera que havia de exorcisar as
tentações voluptuosas da sua alma e do seu corpo.
XIX

REt João já não se entendia con1 a sua


F
. confessada. Deviam ser grandemente dis-
paratadas as revelações de l\lartha para
que o \'aratojano desconfiasse que ella estava
obsessa e que as suas ''isões deviam ser mal-
feitorias de demonio incubo. Feliciano discor-
dava da opinião do inexoravel exorcista, quan-
do elle o interrogava sobre tniudezas de alcôva.
O n1arido contava singelamente que sua mulher
passava a maior parte do dia a rezar pelo livro
no oratorio; que tinha dias de comer betn ~
outros dias de não comer nada; que não dava
palavra ás creadas, nem se mettia no governo
da casa; que con1 elle tambcm fallava pouco.
e não desatremava. Que dorn1ia bem e sempre
na mesma caana com elle. Verdade era que ás
vezes ellc acordava e a via sentada con1 os olhos
postos no tecto.
-Pois é isso ... -atalhava o varatojano.
-E' isso quê, snr. frei João ?-pergunta\a
o marido.
A RHAZILEIRA DE PRAZINS

O confessor não podia explicar-se. O seu


praxista f3rognolio, ampliado pelo padre-mes-
tre arrabido frei José de jesus lVlaria, -admoes-
tava-o a occultar de terceiras pessoas os signaes
evidentes da obsessão de utna altna, sen1 estar
devidamente apparelhado para o co1nbate e na
presença do inimigo. O apparelho, n ,este caso,
era a estola, ~~ agua benta, o latim- utna lin-
gua fatniliar ao diabo. Além dos preceitos da
arte, havia a inviolabilidade do segredo da con-
fissão; c uma caridade decente aconselhava que
Feliciano ignorasse as tentativas adulteras do
demonio incubo, figurado na pessoa espectral
do José Dias. Coni o vigario de Caldellas foi
menos reservado o exorcista. Asseverou-lhe que
a brazileira de Prazins estava possessa, muito
gravcn1ente energumena. O padre Osorio abriu
UlTI SOrriso importuno, cl"estes que vem de den-
tro cm golfos involuntarios como a nauzea d'um
embarcadiço enjoado. O egresso reparou no
tregeito heretico da bocca do padre, e pergun-
tou-lhe se tinha alguma duvida a pôr.
-Uma pequena duvida, snr. frei João, res-
pondeu intemeratatnente o viga rio.- Não posso
acceitar que o diabo, sendo filho de Deus, seja
o ente perverso que faz soffrer a pobre lVlartha ...
-O diabo, filho de Deus 1- interrompeu o
varatojano, levando as mãos inclavi-nhadas á
testa. Padre Osorio, o snr. disse uma blasfemia
enorme ... Santo nome de Jesus I O dz"::~bo jilhn
de 1)eus l Ana th etna I
- Anathetna á logica, ao raciocínio, por tan-
to!- contraveio sereno c risonho o outro.
-A logica_? a logica de Calvino, de Voltaire.
-~ão, senhor, a logica do professor que
A HRAZILEllL\ DE PRAZl~S

tn'a ensinou no seminario bracharense. Creador


não é pai?
- E ' , stm. e d' a h"'
o 1 :-
-Deus é pai de todas as suas creaturas; ora
o diabo é creatura d~ [Jeus; logo: l)eus é pai
do diabo.
- DislÚ1J?llO! contrariou o -varatojano.
E o vigario, sem attender á interrupção es-
colastica:
-Se Deus é bom, as suas creaturas não
podem ser más; ora, o demonio e máo: logo,
o demonio não póde ser creatura de Deus; mas,
<;e o diabo não é creatura de Deus. pergunto
cu o mesmo que um negro da . .-\frica pergunta-
va ao n1issionario: Quem é o pai do diabo?
-'Distinguo!-insistiu o varatojano apoia-
de;> nas velhas formulas da dialectica esmagado-
ra- Deus creou os anjos; d'estes houve alguns
que se rebellaram contra o seu creador, e foran1
precipitados do céo: são os espíritos infernaes.
Alguns d'esses anjos não desceran1 ás trevas in-
feriores, e pcrmaneccn1 para t1agello do genero
humano no ar caliginoso. -~ \er c:t.liginosus esl
qu.Jsl· carcer drenzonibus usque in die1n judicii,
diz S. Agostinho. Deus permitte que os demo-
nios vexem as crcaturas, pelo ben1 que póde re-
sultar ás creaturas d'esse vexame. E' o que se
colhe do Evangelho de S. João: 01nni~l fer
ipsLun f'.:tcta sunl. Por tanto, Deus permitte o
mal? logo: este mal é bom, por que Deus é o
Summo Bem. \Terdadc é que os males não são
bens ...
-Ia eu dizer ... --atalhou o padre Osorio;
ao que o missionaria acudiu prestes e victoriosa-
nlentc:
-·'las Deus tira os bens d'esses mesmos n1a-
lcs, como diz S. 'Thon1az: lJonzun invcnire potes!
sine nzalo, sed 1nalzun non potes! t"nvenire sine
bono. LJogo: o~us permitte o tnal como cauza
do bem; id est, permitte o domonio como exer-
citação saudavcl do genero humano. flvlelius
judica,.vit Deus de nzalis bona facerc, qua1n 1nal ..1
nulla esse pennillere, diz S. Agostinho; e S. ·rho-
maz ainda é tnais claro e persuasivo: c1 A divina
sabedoria permitte que os demonios façam mal
pelo bem que d'ahi resulta.)) 'Dil·ina sapientia
fennillit aliqua nzala fieri pe1· 1nalos c4. n.zelos
t1·opter bona qure ex eis elicit. São doze as causas
por que Deus pennitte que os demonios ator-
tnentem as creaturas humanas. Primeira: para
que o hon1em obstinado na culpa seja n'e~te
Inundo e no outro atormentado; segunda ...
·-Estou convencido, snr. frei João- atalhou
o Yigario.- v~ssa reverencia já esclareceu a mi-
nha duvida. E o caso que Deus permitte demo-
nios flagellantes para depurar com tlles os pec-
cadores, -uns e outros creaturas da sua di\·ina
ju~tiça.
- f·: isso mesmo.
-O espirita do tnúo ho1nen1-do pcccador
que é em si um demonio interno, depura-se pela
acção de outro detnonio externo, ambos cre<ttu-
ras do seu divino amor ... Percebi. Estou con-
vencido ... Deus é comú un1 pai que azorraga o
seu filho querido a vê r se ellc recebe as mortifi-
caçücs como caricias. f{ico pai!- E acrescentou
corn amargura:- Ah! 1neu frei João, receio
muito que as superstiçües venhatn a desabar o
catholicisn1o que deve a sua existencia á victoria
que alcanço~ sobre as mentiras da idolatria cotn
as armas da verdade. 1~. ~:-o su1n ve1·itas.
Frei João ia fulminar segunda vez a argütnen-
A .tm.AZILEIRA IJf.; PR.\Zl;_\i:-\ 2H

ta·ção do padre Osorio, quando os outros rnissio-


narios chegavam, para assistirem ao jantar de
despedida en1 casa da brazileira.
Fechára-se a missão; os padres iatn d'ali para
Barcellos; mas frei João, empenhado em desen-
demoninhar a pobre l\\artha, hospedou-se na
quinta da Revolta, em cuja capella celebrava mis-
sa e confessava as suas filhas espirituaes insacia-
\"eis do pão dos anjos, que digeriam n'uma Ya-
diagem dorminhoca. amezendradas nos adro~
das egrejas e nos soalheiros, catando as proprias
pulgas e as Yidas alheias.
Frei João anda\'a apercebido com todos os
utensilios infestes ao diabo. Resolvido a dar-lhe
batalha, armou a energumena das tnais provadas
armas nos seus triumphos sobre o inferno. I..~an­
çou-lhe ao pescoço um santo lenho, um bre,·e
da .\\.arca, a veronica de S. llento, o Syn1bolo de
~anto Athanasio, cruzinhas de Jerusaletn. vera-
nica com a cabeça de Santo Anastacio, reliquias
de ,·arios santos. umas esquirolas de ossos gru-
dadas em farrapinhos, orações manuscriptas da
lavra do varatojano, mettidas em saquinhos sur-
rados da transpiração d'outras obsessas.
~lartha de\·ia jejuar, como preparatorio. Pa-
rece que o demonio se compraz de habitar esto-
nlagos confortados na quentura do bôlo alimen-
ticio. O exorcista jejuava tatnbem conforme o
preceito dos praxistas, e aconselhaYa ao Felicia-
no que jejuasse, em harmonia com o texto de
Jesus que dissera pela bocca de S. !\latheus que
c taes diabos, sem jej u n1 nern oração, não sahiatn
do corpo: » 1-/oc genus demoniorzt112 in nullo p()~
lest ex ire rz is i o1·atione cl jcjuino. O Feliciano
dizia que sim, que jejuava; mas, ás escondidas
do frade, comia bifes de presunto com ovos;
16
2·t2 .\ RHAZlLElR:\ Dg PHAZINS

começava a revelar ideas egoístas, um cuidado


da sua aliment.ação e do seu repouso, certo des-
preso cynico pela parte que o diabo tomára na
sua família.
Frei João de Borba da Montanha expendeu
ao vigario de Caldellas os fortes symptomas que
..:\lartha apresentava de estar possessa. Eram nlui-
tos, e bastava-lhe citar os seguintes:
Ouvir a voz de José Dias que a chamava, no
sonho e na vigília. E mostrava o texto: quando
patiens audit quasdanz voces se vacantes. Por que
aborrecia a carne e o pão, e tinha grande fas-
tio. O Osorio lembrava-lhe que seriam inôjos
peculiares da gravidez; mas o varatojano con-
fundia-o cotn o latim. Quando quis non potuil
.!?ustare pancnz aut carnem. Ella digeria com mui-
ta difficuldade os alimentos. Era obra do diabo.
por que o livro dizia,- betn Yê- mostrava frei
João ao padre Osorio : Quando quis sanus cibunr
digerere non potesl in slomacho. Chorava e não
dizia por que chorava. J)iabrura com toda a cer-
teza :-Quando lacrynzas ploral et nescit quid
plo1·et. I la via um artigo que accentuava as mais
fortes presumpções da obsessão incuba de ~'lar­
tha. Parece que ella no confissionario se accu-
sava de repugnancias, de concessões violenta-
das, de resistencias ás caricias do esposo; e tal-
vez revelasse que a itnagem de José Dias inter-
vinha n"essas luctas da alcova. E' o que se de-
prehendc do Si:;:nal decimo terceiro que frei
João mostrava cotn o dêdo no seu l1rog·nolo, e
vai e ln latim, co1no lá está, para que poucas
pessoas possam alegar intelligencia:- Qu~.1ndo
1.-ir uxori el uxor ~viro apropinqua1·e non potes!,
~-Jlli.I 1•idct aliud corpus inlennediunz, aut sibi vi-
dclur esse.-- 1\q ui é onde bate o ponto!- dizia
.'\. BRAZILEIR.\ DE PR.\Zl!\8 2-!3

frei João martellando com o dêdo indicador na


pagina indecente.
- Jlas não será essa vizão o introito de uma
alienação mental?- perguntava o de Calde lias.
- ~ão vê, padre João, que esta rapariga está
abatida por uma grande amargura que prende
com actos da sua vida passada? ~ão a vê tão ca-
hida, tão melancolica ...
-Os tnelancolicos são os mais vexados pelo
demonio- replicou o egresso. Veja Galeno e
Avicena, que aqui ve1n citados.- E folheou o
Brognolo, até encontrar o texto triumphal.
-Aqui tem; leia, verá que a clemencia póde
~;er obra do demonio.
O padre Osorio leu com uma grande igno-
r ancia curiosa : Os denzonios ..1conuneltenz nzais
os melancolicos. Pr1:nzeiro, porque o hunzor nze-
lancolico co1n difficuld:zde se tir . 1. e é de sua n:t-
ture:.a inobediente e rebelde. Segundo, por ..Jue o
hu1nor 11zelancolico é 1nais 1pto p.:zra ge1·ar diver-
sas in[er1nida.des incurareis, por ..Jue, se é 1nuito
enxuto, offende as nze1nbr:uzas do cerebro e [..1-:: ao
homenz doztdo; se o{fende os renlriculos c..1usa .:!po-
plexi:l, e ger ..1 r:ziv~1s, frenesis e odios; c estes ef-
fcitos de nzelancolia nzuitas re=:es os tostunza c . .ut-
sar o denzonio, etc.
-O padre Osorio está-se a rir?!- invecti-
vou fr. João abespinhado. Sabe o snr. que mais?
Eu já tinha ouvido dizer ao abbade de S. l'hia-
go d'Antas que o snr. padre vigario de Caldei-
las não era muito seguro em materia de fé·; que
tinha um bocado de fedor heretico nas suas pre-
dicas, e que dava mais importancia á quina do
que aos santos milagrosos na cura das maleitas.
-Se isso fede a heresia, então, snr. frei João,
estou de todo pôdre- obtcmperou Osorio, e con-
2 i-i A RIL\Zll.EliL\ DE PIL\ZI~S

tinuou deixando.impar de espantada indignação


o tnissionario.- A respeito da infennidade de
l\1artha, sou a dizer-lhe que em vez de exorcis-
mos quereria eu que lhe ministrassem banhos
de chuva, calmantes, distracções; e, baldados
estes recursos, que a internassem n'um hospital
de alienadas, porque esta mulher é filha de uma
douda, é neta de outros doudos, e pouco ha de
viver quem a não vir de todo mentecapta. 1\lém
de herege ·sou propheta, meu caro senhor frei
João. A sua energumena tem infelizmente o de-
monio que raras vezes a sciencia vence- o de-
Inonio da clemencia hereditaria que a não se cu-
rar com a agua en1 chuveiro. tambem se não
cura con1 a agua benta. Seria bom que vossa
reYerencia, antes de pôr á prova os exorcismos,
OU\ isse a opinião dos tncdicos.
-Eu sei o que dizem os medicos- e sorria
com tnenospreço da pobre medicina. Eu~ aqui
onde n1e vê, con1 os exorcistnos, com este renle-
dio que náo inventei, mas que a igreja de nos---
so Senhor Jesus Christo ~e deixou, e que elle
mesmo, o divino .'\1~stre usou, como o senhor
padre Osorio deve ter lido nos seus Evange- -'
lhos ... ou nega a authoridade dos l~vangelhos?
Nega que Jesus Christo expulsava demonios?
- ;\fão senhor, eu sei ·a historia da legiüo
q uc se metteu nos porcos. . . _
- E outras; os livros sagrados estão cheios
d·esscs factos a que o padre Osorio chama lzis-
lo1·ias; não são historias, são factos.
- Ah! snr. frei João! jesus Christo, a sua
·vida e. os seus milagres não são historia? não
pertencem á historia? Máo é isso então I
A polemica prolongou-se un1 tanto azeda;
Osorio escandalisava os pios ouvidos do egres-
A BR.\ZILEIRA DE PR.\ZI!"S

so que, pondo as mãos no peito e os olhos no


céo, exclamava com S. Paulo que era necessa-
rio que houvesse escandalos. Interrompera-os o
brazileiro dizendo que a sua sobrinha estava com
um ataque e que lhe dera no jardim. I~rei João
entrou na alcôva para onde a tinham levado em
braços, e o padre Osorio ficou ouvindo a reve-
lação da governanta., que lhe dizia:
-.~ desgraçadinha está de todo varrida I Eu
estava no tanque a passar uns lenços por agua
quando ella entrou no pomar sem fazer caso de
mim, como se alli não estivesse viva alma. E
vae depois poz-se a cortar rosas e a dizer que
eram para o seu atnado José . -\lves,
. para o seu
esposo José Alves. \'. S.a não me dirá quem
diacho, Deus tne perdoe. é este José Alves?
--- E depois ?
_-Depois, sentou-se debaixo da ramada, es-
teve a chorar com o ramo das rosas muito che-
gado á cara e d'ahi a pouco cahiu para o lado
a dar aos braços e a espernear. Eu então cha-
mei a cosinheira c levamol-a para o quarto·com
os sentidos perdidos! O José .Alves, quanto a
mim~ acho que foi derriço que ella teve em
solteira. Já ouvi dizer que a casaram com o aren-
que do tio contra vontade ... E' o que tem es-
tes casamentos ...
O padre Osorio não illucidou a governante.
Assim que o Feliciano lhe disse que se iam lêr
os exorcismos, retirou-se, pretextando deveres
parochiaes, e observou-lhe:
-Não deixe mortificar tnuito sua sobrinhd
com os exorcismos, snr. Prazins. O demonio
que ella tem é a doença. Faça o que lhe disse
o padre mestre Roque que é um velho illustra-
do e ' irtuoso. Vá dar um giro com ella. Leve-a
7
A RIL\liLEIR.\ DE PRAZINS

á capital; detnore-se por lá; e, quando a vtr


distrahida, contente e com bom appetite, volte
para sua casa.
O brazileiro disse que bem sabia que os exor-
cistnos eram cherinolas; mas que o frade se lhe
mettera em casa, e dizia que não se ia embora
sem curar ella. Accrescentou que não podia ago-
ra sahir do l\linho porque estava á espera que
os filhos do Cerveira de Quadros perdessem na
batota do Porto a sua parte de alguns contos de
réis, que acharam por morte do pai: -que lhe
convinha muito comprar a quinta da r::::rmida que
partia cotn a d'elle, e havia outro brazileiro que
a trazia d'olho. Que a respeito da sobrinha ten-
cionava levai-a a banhos do tnar, e havia de
.comprar o lVlan ual do Raspai!, a vê r o que eH e
dizia da moles tia, porque em Pernambuco toda
a casta de doença se cura va pelo Raspa ii, e que
levass.e o diabo o frade e mais a caiporice dos
exorctsmos.
-Que sitn, que comprasse o 1\1anual do Ras-
pail-concordou o padre Osorio e sahiu n1uito
cançado -dizia elle á irmã -de lidar com as
duas cavalgaduras.
XX

estava no quarto~ onde tinha o seu


M
·
ARTHA
oratorio de pau preto com frizos doura-
dos, e dentro uma antiga esculptura em
marfim d'um Christo dignatnentc representado
na sua agonia humana. De cada lado da cruz ar-
dia uma véla de cêra benzida. Frei João entrára
de sobrepeliz e estola ; seguiam-no o r~. eliciano
com uma vé la de arratel aceza, e o Simeão con1
a caldeirinha da agua-benta. !\lartha, com um
pavor -na vista, tremia, de pé, encostada á cotn-
Inoda. O exorcista sentou-se, e chamou a ener-
gumena com um gesto imperativo de cabeça.
Elia aproximou-se hesitante e ajoelhou. Fr. João
compoz o semblante e d~u á voz uma toada lu-
gubre em conforn1idade ~om a rubrica de l-Jro-
gnolo- conz grave aspecto e 7'o.:t lzorrivel, diz o
demonómano. Começou por exercitar o Preceito
f1"0t':lii·vo, a vêr se havia effectivamentc demo-
'nio. E então bradou. fazendo estremecer .'\lar-
tha: ln nonzine Jesu Ch1·isti. Ego Jo:znnes cst
A BRA.llLEIRA DE PRAZINS

nzznzsler Clzristi ... Vinha a dizer, em vulp-ar, ao


demonio ou aos espíritos immundos, 7.Jel vobi.,·
sph·z"tis inznzundis, que, se estavam no corpo d'a-
quella creatura, déssem logo um signal evidente,
ou vexando-a, ou movendo-lhe os humores. se-
gundo o seu costume, pelo modo que por o~us
lhe fosse pern1ittido, eo 1120do quod .i ]Jeo fue1"if
pernzisszun . .\lartha estava retranzida d'um sa-
grado horror, posto que não percebesse do la-
tim do padre senão de1nonio e espiritos itn-
nlundos. Nunca lhe tinham dito que ella estava
endctnonin h ada, e á sua mentalidade faltava-
lhe n'este lance a força convincente e a energia
da palavra para combater o engano do seu con-
fessor. Não tinha vigor de caracter nem rudi-
nlentos de intelligencia para reagir. Educada
em melhores condições, succum biria com a rnes-
•na vontada inerte sob a violencia do confessor.
lia condescendentes humildades mais vergonho-
sas sem o diagnostico da den1encia que as des-
culpe. Elia estava de joelhos; mas, não podendo
suster-se, sentou-se n'um arfar de sus·piros, an-
ciada, até que as lagritnas lhe explosiram n'un1a
torrente.
Frei João fez um tregeito de satisfação, un1
agouro de victoria, e poz-lhe o Preceito lenitivo:
«Que a vexação cessasse immediatamente-in-
punha elle aos demonios malditos-e toda a
afflicção cauzada por elles » et onuzia alfliclio :r
vnbis causala. E atacou logo os demonios cotn o
Preceito instructivo: <<que immediatarnente a
prostrassem na presença d'clle, se ella estava pos-
sessa :o et slali1n coranz 1ne illam proslern:tlis. i\1ar-
tha, com efTeito, estava prostrada, com a face no
pavimento, estirando os braços no paroxismo
A BRAZILEIRA D~ PH.\.ll~:;;

epilcptico, e o collo e o tronco hirtos n'uma in-


flexibilidade tetanica.
-Não ha que duvidar- disse o exorcista ao
tnarido e ao pai da obsessa.- L~evem-na d'aq ui
l! depois continuaremos.
_\lartha, passado o lethargo, diss~ au tio que
tnal se lembra va do que passara no oratorio
com o snr. frei João; mas que lhe tinha medo,
que não queria mais confessar-se com elle.
-(_:ada vez mais provado que está obs~ssa.
Ji não é eJla quem falia; é o den1onio que me
teme! -excla1nou o exorcista con1 uma santa
bazofia. refutando as vacillações um pouco sce-
pticas do brazileiro; ao passo que o Simeão as-
severava que a filha tinha o den1onio; porque a
sua defunta tnulher tambem o tinha, e se dei-
~ára ao rio porque nunca quizera que lhe fizes-
sem_ as rezas.
Ao outro dia, vencidas as repugnancias de
·'lartha~ continuou o exorcista, carranqueando
cada vez mais c pondo vibrações horrorosas na
lar) nge. Deu-lhe a ella o seu I3rognolo para que
]êsse em voz alta os Preceitos que a creatur:e
vexad ..-z púde pôr ao de1nonio. l\1artha, de joelhos,
diante do oratorio, leu: Demonio maldito, eu
conzo r ..1cion:tl creatura de Deus, redinzida conz o
seu p1·ecioso sangue, depo,:s que para me sab. ·ar se
hunzanou, chcz"a de fé, te nzando enz virtude do
s~1ntissúno no1ne de .Jesus, que logo 112e obedeças
e 1ne alonnentes lcvenzente, ou [3-:.cndo tre1ner o
nzeu crn·p~J _ou L1nç~.1ndo-o e1n terTa, dei:xando-1ne
enz 1neu Jlll::.o.
O corpo de .'\1artha visivelmente tremia; ella
deu o livro ao exorcista com um arremesso im-
paciente! e murmurou soluçante:
A RHA/.Il.EllL\ og PRAZI~S

-Deixem-me, deixem-me pelas chagas de


Christo!
Frei João sorriu-se, e resmuneou á orelha do
Feliciano:- o maldito serve-se do nome de
Christo para me affastar t l~u vou escangalhar-
te, Satanaz l •
E lançou mão do gladio das Objurg·açues. As
objurgações são perguntas feitas ao diabo, it má
cara, e latinamente. Dize, nzaldito denzonio, se1·-
pente insidiosa, conheces que ext"ste Deus 'I Conhe-
ces que ~foste creado anjo allunziado de nzuitas
prendas, c que pela tua soberba te perdestes? Sa-
bes que, ,·epulso do pa1·aiso, pc1·deste pa1·a se1nprc
a gr ..1ça de Deus 'I Pergunta-lhe a final, depois
de n1uitas injurias, se reconhece n'elle utn minis-
tro de Deus, e como ousará a não tnanifestar-se?
Quo11zodo (r;itur poleris cont1·a est·únulu1n calci-
11-are?
O detnonio não respondeu ainda: mas o
frade ia apertai-o~ tnandando que se ajoelhassem
todos. Elle então, n'uma postura seraphica, bra-
ços cruzados no peito e olhos no Christo, de-
clamou:
V cni, sane te spiritus: rcplc tuorunz corda fi-
deliunz, et tui anzorcs in ez"s 1:gnenz accende. Pedia
ao Espírito Santo que descesse a encher os cora-
ções dos seus fieis, e abrazal-os no fogo do seu
amo;. Depois: Vonzinus 7..-'obiscunz.
1;; de co espi1·ituú --respondeu o Simeão, que
sabia ajudar á missa.
Seguiram-se varios Oreuzos e deprecações, e
a Lad:tinha de Nossa Senho1·a; mais outros Orc-
nzus, e a detestação da energumena, uma estirada
que principia v a: E tu, den1onio nzaldito, co1n que
authoridade ·tntentas possu·h· já1naz"s 1neu corpo ou
1nolestar-1ne por 1nndo alg·um ? !\~artha regeitou
A P.P..AZILEIRA DE PR.\ZI~~

o livro, e disse que não podia l~r nem estar de


joelhos; que tinha vágados e que se queria ir
deitar. l\1as o exorcista, severo e formidavel no
seu ministerio- que não, que não se ia deitar,
que não lhe fugia, que se pozésse de joelhos a
seus pés I Elle então, segundo a rubrica do li-
vro director, sentou-se, cobriu-se, voz gTare e
hon·,:vel, 1n:rado contra o den1onio, con1o jui:: para
t:zl 1·éo já convencido, aspergiu a possessa de
agua benta, ululando: Asperge nze, Donzine . ..
e recommendou aos circumstantes que apagas-
sem duas velas, e não déssem palavra. Profun-
do silencio. Ouvia-se apenas o zumbido das
moscas que se esvoaçavam do tecto attrahidas
pelo calor da luz unica, e pousavam na fronte
chagada do Christo. O recinto era espaçoso e
quasi em trevas. A vela. encoberta pelas curvas
la.teraes do oratorio, não alumiava senão o curto
espaço da projecção em que 1\1artha, retrahida
n'um terror, tinha os dedos das mãos postas,
chegad3:s aos labios, como se quizesse abafar
os susptros.
Passados minutos, o exorcista começou a
conjurar e ligar o demonio em nome do Padre
c do Filho ·e do Espirita Santo, tratando-o de
z"nunundo, affrontando-o bravamente com epi-
thetos que deviam offender o mais desbragado
patife. l\lartha fez um movimento de afflictivo
desabrimento; parecia querer fugir; mas o pa-
dre prendeu-a com a estola, cm harmonia com o
Brognolo: Se n3o estiver quieta, pode-a p1·cndc1·
conz unza estola. F'eitas novas e mais terrivcis
conjurações, o exorcista levantou-se com pavo-
rosa solelnnidade, e exclamou : Exurgc, Clu·z"stc!
adjura nos! Levanta-te, Christo, c auxilia-nos!
A BH.AZli.ElnA DE PRAZlNS

O egresso continuava as evocações ao Chris-


to, quando .\tlartha cahiu sem acôrdo.
- \1ictoria!- exclamou o exorcista- victo-
ria I
E, mostrando ao brazileiro uma pagina do
livro: ouça lá, snr. r~,eliciano: o signal lnais
certo de que o dernonz"o obedeceu e se retirou de
lodo é v que a s.:zgrada Escrzptura nos expõe no
capitulo IX de S. Marcos:- Deixa1· a creatura
por terra "'llgunz tempo co1no 1norta. Isto se viu no
endemoninhado surdo e 1nudo que Clu·isto nosso
bcnz curou, e do qual diz o texto: Et factus est
sicut morluus. Depois, com jubilo, limpando o
suor:
-Poden1 levai-a, dciten1-na, ponham-lhe as
relíquias todas debaixo do travesseiro.
Os dois não podia1n facilmente levantai-a;
na rigidez, como empedernida do corpo, pare-
cia collada ao pavimento. O brazileiro pedia ao
exorcista que a amparasse por um dos braços;
mas o frade, artista austero, respondeu que lhe
era defêso pôr n1ãos nas possessas. E, de feito,
Carlos I3aucio, na ATte do exorcista, legisla:
\{que os exorcistas não ponham as mãos physi-
camente sobre a creatura. principaln1ente sendo
mulher (propter peTiculzt1n), pois que as mulhe-
res nen1 com o signal da cruz se devem tocar
- .Afulieres nec signo cru c is sunt tangendce.
~lartha passára a noite muito agitada, febril,
com delírio; dava risadinhas n1uito argentinas,
fallava no José Alves; sacudia a roupa com fre-
nesi, e, quando emergia do turpôr, sentava-se
no leito a olhar para o tio, com uma fixidez re-
pellente. I~"'eliciano não se deitára, e de madru-
gada disse áo irmão que fosse chamar o n1edi-
co, que a .\1artha estava com um febrão; e que
A BR.\ZIL~:lR \ I>F. I.. R.\/.1:\"S

le\·asse o diabo o frade para as profundas do


inferno e n1ais os exorcismos.
Já quando era dia. o brazileiro foi descançar·
um pouco na cama de O. l"hereza, porque re-
ceava que se lhe pegasse a febre da mulher. i-\'s
nove horas. a governante foi accordal-o, muito
alvoroçada, para lhe dizer que a snr.~ D ..\lartha
tinha sahido sósinha ao nascer do sol e que un1a
mulher a encontrára já perto da casa do vigario
de Caldellas~ a correr, que parecia urna doudi-
nha. Fr. João recebeu tambe1n a nova da fuga,
quando acabava de dizer missa em acção de gra-
ças pelo triurnpho obtido sobn.! o demonio. O
medico ch~gava ao mesmo tempo, e informado
das scenas dos cxorcisrnos, disse ao \·aratojano
injurias que o frade não tinha dito a.o diabo;
chatnou ao orazileiro c ao irmão corja de estu-
pidos,- e partill para Caldellas com o Feliciano.
O frade, insultado peio medico, c pelos rnodos
bruscos e c!csabridos do brazileiru, citoü umas
palavras de Jesus que manda sacudir o pó das
sandalias no limiar da casa dos impios, c foi-se
en1bora. Scguiran1-o algumas beatas n'um alto
chôro por longo espaço: e. quando ellc desap-
pareceu no cotovcllo da estrada. houve q'ellas
que arrancavarn cabellos, cheios de lendias; ou-
tras davain-sc bofetadas, e as mais histerica'-i
guinchavam uivos estridentes.
O .\lelro. o taverneiro, o compadre do Feli-
ciano, quando e lias lhe passararn á porta a cho-
rar, atraz do missionaria, sahiu fóra, c di~sc-lhcs
com urn racionalismo brutal :
- 1\h grandes coiras!
CONCLUSAO

M ARTI-L\ regressou com D. rrhereza, alguns


dias depois. O brazileiro conveio no tra-
tamento hydropatico da esposa; e a cotn-
padccida irmã do vigario offereccu-se como en-
fermeira da pobre senhora que se abraçava n'ella
com um medo imbecil, a pedir-lhe que a não
deixasse, que a defendesse do tpissionario.
D. l'hereza assistiu ao nascimento da pri-
meira filha de .\lartha. Imaginava a irmã do vi-
gario que no espírito da n1àe se havia de operar
un1a benigna mudança; que o amor á filha se-
ria diversão á saudade de José Alves; mas a
medicina não esperava alteração sensivel, por-
que era tnateria corrente nos tratados alienistas
que um cerebro lezado não se restaura sob a
in1pressão do amor maternal que só actua nas
organisações nonnaes. Porém, D. l,hereza não
podia crer que .\lartha estivesse confirmadamen-
te louca, posto que nas suas conversações, em
que, raras vezes, se interessava, disparatasse,
A URAZII.EIRA D~: PRAZI~~

aflirma ndo que \'ia a aln1a de José Alves, con1o


qu~1n conta um caso trivial. '·
Quando lhe mostraratn a filha recc·m-nasci-
da. conten1plou-a alguns segundos: mas nern
balbuciou urna palavra carinhosa, netn fez gesto
algurn de contentamento. A amiga dizia-lhe coi-
sas muito tneigas da filhinha, a vêr se lhe espcr-
tava o coração~ Punha-lh'a nos braços, dava-lh~a
a beijar. ~\1artha cedia cotn tristeza e constrangi-
mento, beijando a filha cotno se fôra urna crean-
ça alheia ...:\. atna ia dizer ás creadas que a bra-
zileira era uma cafra, .que não podia vêr o an-
ginho do céo.
Os paroxismos eratn n1enos frequentes; ma~,
tres dias antes do ataque, a torvação de .~1artha
manifestava-se co1n extravagancias, delirios. Ft:-
cha\·a-se no quarto con1 n1uitos vasos de flores,
que enfileira va no sobrado . como se ajardinasse
un1 passeio. LJma vez disse a D ... rhereza, á ma-
drinha de sua filha, que arranjára aquelle cami-
nho de rosas, porque o seu José .Alves lhe di~­
sera em Prazins que havia de fazer-lhe un1 jar-
dim cm \rillalva quando cazassen1, e ella fizera
aquclle jardim para passearem juntos quando
elle viesse á noite. D. 'Thercza encarou-a cotn
utna grande piedade, porque se convenceu en-
tão que estava perdida.
O Feliciano, quando ella se fechava no quar-
to, já sabia que estava a preparar-se o ataque;
ia dormir n'outra cama; necessitava do seu re-
pouso, dizia cllc: tinha de erguer-se cedo para
vê r o que faziatn os jornaleiros, c não podia per-
der as noites. Como o arrependimento de seca-
zar jú o 1nortificava, evadia-se ús irremediaveis
apoq uentaç{)es, olhando egoistam~ntc para o seu
betn-estar, c lembrando-se ás vezes que, tendo
A RR.\llLEIRA DE PRAZI.:\S

utna mulher assim doente. não lhe seria muito


desagradavel ficar viuvo. 1\ão obstante, co1no,
passado o ataque epileptico, a esposa recahia
n'un1a serena indolcncia, n'un1a in1passibilidade
tnansa c tranquilla, o tio ia dormir cotn clla,
tendo setnpre em vista as condições do seu ben1
estar, as necessidades imperiosas da sua physio-
logia. Assin1 se explica a fecundidade de .\lar-
tha, q uc deu cn1 sete an nos cinco filhos a seu
tnarido. O tnedico jú tinha explicado satisfato-
riainentc ao padre Osorio q uc a den1cncia de
~ \artha era fu nccional, c as qualidades reprodu-
ctoras não tinhan1 que vêr com as anormalida-
des cerebraes. A Providencia não teve a bonda-
de de fazer estereis as dementes.
l~ntretanto, nos tres dias precedentes ús cri-
ses epilepticas, parece que o marido lhe era re-
pulsivo. lJava-se então a revivcncia de José .t\1-
vcs, o seu atnado sahia do sepulchro, c trans-
portava-a nas suas azas de anjo ao paraizo de
Prazins. O. ·rhereza. collando o ouvido à fecha-
dura da porta, ouvi~-a conversar como cm dia-
logo, ficar silenciosa, depois d'uma interrogação,
por largo espaço de tempo; vinha de mansinho
á porta espreitar que a não escutassem. ·Dizia
palavras confusas, a bafadas, cariciosamen te pro-
ieridas, como se ti v esse os la bios postos en1 con-
tacto de um rosto an1ado. O nome de Jo;5é real-
çava com uma nitidez jubilosa, corn utn tirrtbre
de meiguice infantil; e ás vezes, um grito em
esforçado desespêro como se elle se lhe desatasse
dos braços par a I h c fugi r. ( Trn e s pi r i ti s ta cl a c s-
Cí·.ta de 1\ardet tiraria <J'esta loucura un1 argu-
Jnento a l~t\'Or das JIL11ltj~·~l .1<;·,ics risircis. cn1 que
o tluiJo, o f'crisfin./tJ se apresenta scn1i-rnate-

li
A RR.\ZlLEllL\ HE PlUZl:'li~

ria I, com as formas vagas do corpo, q uast tan-


gível ao 11zediu'1n.
O I~.. eliciano ignorava estas sccnas extra-na-
turaes. Elle, ao sexto anno de casado, encoura-
çúra-se n'un1 impenetravel egoísmo de avarento,
cortando fundatnente por todas as despezas que
en1 vista da sua grande fortuna se reputavam
sovinarias. A medicina já o considerava lunatico,
mais ou menos inficcionado da alienação da tnu-
lher. E a loucura que é se não a exaggeração
do caracter? Porque o viam ás vezes atravessar
os seus pinhaes, com o monoculo, gesticu Iando,
c fallando sósinho, chamavatn-lhe doudo. Er-
rada hypothese do vulgo ignorante. Elle fazia
operações arithmeticas etn voz alta cotno os ve-
lhos poetas inspirados faziam madrigaes n'urna
declatnação rythmica ao ar livre e ao luar. O
certo é que ninguem o apanhava em intervallo
escuro para o defraudar n'um vintem. Comprou,
u tnas apoz outras, todas as quintas que foram
do \'asco Cerveira Lobo, de Quadros; umas á
viU\'a, e outras aos filhos. A D. 1-Ionorata c;uiào,
casada em segundas nupcias com o descmbar-
~·ador do Ultramar Adolpho da Silveira, veio á
n1etropole assim que viuvou para se habilitar
herdeira de metade do casal não vinculado do
tenente-coronel. Os filhos ~~~gas e l--leitor, saben-
do que sua mãe estava nos Pombaes, corn o tna-
rido e filhos, tentaratn escorraçai-a cotn amea-
ças e insultos, atirando-lhe tiros ii janella. O
magistrado fugiu cotn a sua familia e acompa-
nhou com força annada os actos jucliciaes. Afi-
nal, llonorata, vendeu a sua parte, ao desbara-
to, ao brazilciro Prazins; c o rnorgado, vendido
o seu patrimonio desvinculado, c rnais o irmão,
vcrgonhosan1cnte casados, csfarrapan1 hoje ores-
.\ BH.\ZII.EllL\ DE PR.\ZI~S

to da torpe existencia na tabolagem das taver-


nas. 1\s filhas sal varam-se do naufragio agarra-
das ús pranchas dos seus dotes. Arranjaram fa-
cilmente maridos que desempenharam os seus
cazaes e as sovavam de pontapés injustos e ex-
temporaneos, quando se lembravam dos enge-
nheiros do conde de Clarange I.Jucotte.
A brazileira de Prazins tem hoje cincoenta c
trez annos. Os seus visinhos que contam trinta
annos,. nunca a viram, por que ella, desde que,
em I8.J8, morreu D. rrhereza, nunca mais sahiu
do seu quarto. já ninguem a vae escutar; mas
repete as mesmas palavras do seu amor de ha
quarenta annos. pede que lhe levem flores. ten1
as tnesmas allucinaçües, e-o que mais é-ainda
tcn1 lagrimas, quando, nos intervalos dos deli-
rios, entra na angustiosa convicção de que .Josl.-
))ias é morto. O padre Osorio ainda a procura
n'esses períodos de rasão bruxuleantc c falla-Jhc
da irmã por sentir a inefavel amargura doce de
se vêr acompanhado nas lagrimas ....'\las o padre
diz que nunca pudéra vêr nitidamente a linha
divisaria entre a rasão e a insania de l\lartha.
Depois do delirio, sobreven1 a monotnania hy-
pocondriaca. A alma continúa a dortnir sen1
sonhar, sem as allucinações. N'essa segunda
crise de torpor, elle e só elle é admittido ao
seu quarto, depois de esperar que desça ela
catna ou se embrulhe n'um chaile para enco-
brir a sordidez do corpete dos vestidos. J·:stc
chaile é uma scintilla resistente de instincto
feminil que raras vezes se apaga no con1mun1
das dementes. excepto no 1naior numero das
h \·stcricas co1n crothisn1o.
· ~\artha tem duas filhas casadas e já lll~LCS •
.. \·~ tcn1pnradas, vestem serenamente os seus
A RHAZILEIR.\ DE I'RAZI:\S

tragcs domingueiros e vão para casa dos pacs.


onde continuam na sáfara dos carnpos a sua
lida ele solteiras. O pai educúra-as na lavoira~
de pé descalço, e sachola nas unhas: 'l'raba-
lhanl nas Ia vras con1 uma grande al<:gria e gar-
ganteiam cantigas muito frescas. E os tnari-
dos, cheios de bon1 senso, já as não procuran1.
()uando regressam, receben1-.as sem as interro-
g~tren1; porque, se as aflligern, dão-lhes vágados
c choran1. Nos outros filhos intanguidos, escro-
fulosos, tristes e setn infancia predon1ina a dia-
thcse da imbecilidade e a falta de senso-tnora I
q uc é utna especie pathologica menos estudada
dos alienistas. l~ntre estes filhos ha utn que es-
tudou para clerigo. PassaYa por ser o n1ais e~­
correito. O pai achava-lhe talento. I~studou seis
annos latitn, em J3raga, debaixo das tnais rigo-
rosas violcncias ú sua incapacidade; e quando
Feliciano, prodigo de dinheiro para este filho.
c desenganado pelo professor, o mandou bus-
car com trez reprovações: elle trazia en1 u n1a
caixa de lata cinco tnil c tantas hostias corn que
se prevenira para as suas consagraçGes de sa-
cerdote. E o pai foi tão feliz q Ul! pôde vender
as hostias cotn o pequeno prejuízo de dez por
cento.
- Ahi tetn o brazileiro de Prazins, se nunca
o viu-dizia-tnc ha trez tnezes o padre Osorio
mostrando-me no n1crcado de Famalicão utn
velho escanifrado, muito escanhoado, direito.
cotn o tnonoculo fixo, vestido de cotitn~ con1
un1 guarda-pú sujo, esfarpelado na abotoadura,
c utna chibata de tnanneleiro cotn que sacudia
a poeira das calças arregaçadas.
-·rem 8.f annos-continuou o vigario ele
Caldellas-veio a pé de sua casa, que dista
.-\ RR.-\ZILF.IRA BE PR.\Zl:'\~ 2til

d'aqui legua e meia. janta um ,·intenl de arroz,


be b~ outro yj n te1n de vinho, ten1 quinhentos
conto~. e volta para sua casa a pé~ atravez ou
pouco n1enos das suas quatorze quintas. Con1
a frugalidade, con1 o exercício c com o seu
cgoisn1o sordido viverá ainda 1nuito tempo~
porque o Yelho /\lcxandrc Dun1as disse que os
egoistas c os papagaios ,.i\·ian1 cento c cin-
cocnta anno~.
o~\os subsídios ministrados pelo cura de
t ~ Caldellas compuz esta narrativa, espraian-
'--' do-me por accessorios de duvidoso bom
senso, cuja responsabilidade declino dos hom-
bros d'aquelle discreto sacerdote. ·rudo que n'es-
te livro tem bafio de velhas chalaças, ironias e
satyras é meu; e, se alguem por isso n1e arguir
de pouco respeitador do vicio c da tolice, retiro
tudo.
Se o meu condescendente. informador me
permitte, ouso dizer-lhe- para nos esquivar-
rnos ambos ás insidias da critica portugueza -
que a clemencia de .\lartha não é extremamente
orif!'Ínal nem o meu romance uma sinf!"ularida-
cle incontroversa. O que, sem disputa, é origi-
nal. é duvidar eu de que o sou.
En1 um Conto de Charles ~odier, auctor rc-
n1oto que se perde no crepusculo da litteratura
archcologica~ ha uma I .~YDL\ que indoudeceu
quando o marido, um barqueiro ele limpo nas-
cimento e generosa indole, pereceu n'un1 incen-
dio salvando trez creanças e sua mãe.
Lydia enlouquece e cuida que seu esposo
está no céo de dia c a visita de noute. l·:lla,
desde o repontar da aurora, sae ao jardi1n, c
colhe flores para o brindar quando clle desce do
at.ul com azas ele pcnnas de ouro. 1\o cabo de
.\ nH.\ZlLEIR.\ DE I'IL\Zl;\;~

seis' annos d~estc sonhar delicioso, a ditosa dou-


da, quando anelava a recolher as flores dilectas
para o bou . .Jucl elas nu pcias con1 o aFl jo de cacl a
nou te, scn to u-se cn1 duicissirna sotn nolcncia e
C'\prrou.
As analogias de I..,yclia a ·'lartha frizarn pela
visão dominante na clen1encia de ambas- un1a
cspccie ele resurreição do an1ado. No que ellas
diversificam essencialn1ente é que un1a sonhou
seis annos c a outra vai no trigcsimo setin1o ela
sua clen1encia ; L. ycl ia sonhou a bsorvicla na sua
ideal alliança cori1 un1 celicola, um bt!n1-aven-
turado con1 azas de ouro; ~1artha quando en1-
n1crge allucinada no seu lethargo, é a paixão
leal ao an1ado sen1pre vivo na terra e no seu co-
ração. L.yclia passa as noutes em amplexos do
:na rido celestial; .\lartha, sem consciencia da
sua vida orga n i c?, ten1 cinco filhos. con1o se ar-
rancasse ele si a porçáo ignobil ele seu ser e a
regeitassc ao sl;vo sensual do rnariclo resalvando
a aln1a d'essa inconsciente n1atcrialiclade. (!uer-
n1c, portanto, parecer que nào ha nodoa de pla-
giato no rneu livrinho- un1a coisa original co-
n1o o peccado.
O leitor pergunta:
- () u a l é o i n tu i t (J s c i e n t i (i c o , cl i s c i p l i n a r ,
'-
n1oderno, d' cs te ron1a ncc ? (J_ue prova c conclue?
(J_ue ha ahi proveitoso con1o elernento que reor-
ganise o individuo ou a cspecie?
H.espondo: Nada, pela palavra, nada. O n1eu
rotnance não pretende rcorganisar coisa nenhu-
n1a. E o auctor cl'esta obra csteril assevera. en1
non1e clo patriarcha \rolt<.!irL', que dci.rLli"L'IIlos cslc
lllllndu lufo c oz.io, /.._zl qu ..d c:rLl ~Jll . .ll~tlo <.:~i cn/1.1-
1/IOS.

S. Mil!ucl de Scidc, dctcmbro de 18J.i:!.

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