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A REPUBLICA DE
WEIMAR
LIONEL RICHARD
l
A sair:
Richard, Lianel.
A RepJblica de Weimar, 1919-19» / LioneL
Richard. — São Paulo : Companhia das Lentas z
Círculo do Livro, 198B-
(A vida cotidiana)
Bibliografia.
ISBN 85-7164-009-2
L. Alemanha - Condições sociais - 1918-193Í
2. Alemanha - Historia - 1918-1933 3. AUnanhs - PREFÁCIO 9
Vida intelectual - Século 20 I. Titulo. II. Série
CAPÍTVLO I
índices para catálogo sistema l iço: Fim da guerra e fim do regime imperial 13
3. Alemanha i Vida intelectual, 1918-1933 943.085
A miséria, a fome. Da unanimidade nacional à sua
ruptura progressiva. Vasto movimento de oposi-
ção à guerra. Um marechal na legenda. Exigências
de democracia. Capitulação e revolução.
2 4 6 8 1 09 7 5 3 1
89 91 92 90 88
CAPÍTULO IV CAPÍTULO VIU
CAPÍTULO V CAPÍTULO IX
W 11
CAPITULO I
FIM DA GUERRA E FIM DO REGIME
IMPERIAL
A miséria, a fome
13
que se tornara soviética, a Alemanha estava muito mais en- Ainda em Berlim, o espetáculo da rua havia mudado. A
fraquecida do que seus adversários. Em vão se beneficiara atividade parecia reduzida. Por falta de pessoal, os bondes
das riquezas agrícolas da Ucrânia e ocupara os países bálticos e o metro, pela primeira vez, empregavam mulheres para o
e uma parte da Bielo-Rússia nas suas fronteiras orientais; controle das passagens. Nos trens, dava-se prioridade ao
continuava em estado de bloqueia. Nem a Áustria-Hungria, transporte das tropas. Os habitantes dos subúrbios eram
nem a Turquia e a Bulgária, suas aliadas, estavam em me- obrigados a fazer longas caminhadas a pé. As universidades
lhor situação; muito ao contrário. quase não tinham mais alunos nem professores: três quar-
O esforço de guerra havia absorvido a tal ponto as me- tos deles tinham-se apresentado como voluntários por oca-
nores atividades que acabara por esmagar tudo. O número sião da declaração de guerra.
de soldados havia mais do que triplicado desde 1914, atin- Em toda a Alemanha, os ginasianos que não tinham
gindo quase 10 milhões. Nas indústrias, o número de ope- aínda idade para partir para a frente eram submetidos a
rários diminuíra um quarto e o das operárias crescera 50%. exercícios intensivos de preparação militar. Por vezes, eram
No essencial, a mão-de-obra era utilizada para a manutenção mesmo engajados corno auxiliares nos serviços do exército.
ou construção de material bélico. Nas indústrias têxteis e A partir dos dezesseis anos, podiam ser enviados para a
alimentares, pelo contrário, caíra para 60%. Todo o país frente. A imagem do Brecht jovem pode parecer surpre-
havia se transformado, mergulhando rapidamente num de- endente, mas está inteiramente de acordo com a época: na
sequilíbrio económico e social. sua cidade natal de Augsburgo, na Baviera, ele se pusera,
A partir dos primeiros meses de 1916, o descontenta- assim como seus colegas, à disposição da defesa civil, e, en-
mento se havia instalado entre os operários, os artesãos, os quanto publicava poemas patrióticos na imprensa local, en-
pequenos comerciantes, que se queixavam de não mais en- tregava-se da forma mais séria possível à espionagem aérea.
contrar o que comer, enquanto os ricos se abasteciam no As lojas de luxo não tinham fechado, nem os restauran-
mercado negro. A 17 de junho de 1916, em Munique, mi- tes com terraço e os salões de chá. Mas com o passar dos
lhares de manifestantes se tinham revoltado contra a mi- meses a austeridade ganhara as avenidas mais elegantes da
séria e a divisão injusta dos produtos alimentares. Relató- capital. A iluminação a gás era racionada. As senhoras de
rios policiais indicam tensões e riscos de revolta entre a boa família não tomavam mais o chá das cinco em suas
população indigente na região de Hanôver. Com o rigoro- confeitarias habituais, as tardes de tricô tinham lugar na
so inverno de 1916-1917, a situação piorara ainda mais. casa de uma ou de outra. Algumas tinham encontrado uma
Leite, manteiga, batatas haviam passado à categoria de pro- ocupação nas creches improvisadas, que se haviam multipli-
dutos de luxo. A ração semanal de carne oscilava entre 100 cado, pois as crianças estavam cada vez mais entregues a si
e 190 gramas para o habitante da cidade. Beterrabas e na- mesmas. Na maioria dos casos, as mães trabalhavam. Mui-
bos constituíam o alimento mais comum.2 tas escolas eram transformadas em hospitais militares. Ou
Na fábrica de Berlim onde trabalhava em 1917 como fechadas nos meses de inverno, como consequência da in-
jovem operário, conta uma das testemunhas da época em corporação dos professores, ao exército.
suas memórias, as mulheres eram três vezes mais numero- A maioria dos cidadãos careciam dos produtos de pri-
sas do que os homens. Elas pertenciam também às equipes meira necessidade. Quando era possível o abastecimento, o
noturnas e frequentemente desmaiavam de cansaço sobre racionamento instituído dava direito a um ovo, 2,5 quilos de
as máquinas. Em pleno inverno, as oficinas não eram aque- batatas e 20 gramas de manteiga por semana. Em Berlim,
cidas. Na cantina, nabos eram servidos em todas as refei- as sopas populares eram frequentadas por quase 200 000
ções, às vezes com batatas, mas, mais frequentemente, sem fregueses. Haviam sido balizadas pelo comando militar que
c In s.1 as organizava e as controlava de "canhões de guisado".
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gramas de banha por quinzena, quantos horizontes se abriam
Não somente se morria de fome, sobretudo nas cida-
à imaginação culinária!
des, mas era preciso adaptar-se ao sistema de penúria para
As condições de vida dos soldados variavam de acordo
se vestir. Era quase impossível encontrar roupas e calçados
com as frentes, de acordo com as regiões em que estivessem
nas lojas. Couro também. Os têxteis eram racionados. O
acantonados. Mas nada havia na vida deles que a população
Estado chegara a regulamentar a utilização dos tecidos; a fi-
das cidades pudesse invejar. Remendadas, usadas e gastas
xar o número e o tamanho dos bolsos nas vestimentas.
pelos produtos de limpeza, suas roupas de baixo não pas-
Quanto à roupa branca dos hotéis, fora requisitada.
savam de farrapos. Túnicas e calças, de cores alteradas pelas
Todo ano, desde 1914, em setembro e em março, em- intempéries, estavam estragadas, remendadas. Dos víveres,
préstimos de guerra eram lançados. Os escolares desfilavam
pouco restava aos homens da tropa quando o estado-maíor
pelas ruas com imensos cartazes: "Aquele que faz um em-
e, depois, a intendência e o pessoal da cozinha chegavam
préstimo encurta a guerra". Uns 30 milhões de bons cida-
antes deles. Era preciso ser esperto para pegar um prato
dãos haviam colaborado. Entrementes, o preço do pão,
com um pouco de pão e algumas migalhas de carne. E o
da farinha de trigo, da carne, da manteiga, do açúcar e do
fumo, racionado desde fevereiro de 1915, não passava em
café, havia dobrado. O das batatas e dos ovos havia tri-
1918 de uma mistura composta de 85% de folhas de faia
plicado. O poder de compra dos operários diminuíra glo-
secas.
balmente em um terço.
Evidentemente, a desnutrição tornava as pessoas mais
Para economizar carvão durante os meses de inverno,
vulneráveis às doenças. Em Frankfurt, a mortalidade por
os fogões só eram acesos no momento das refeições. Mas
tuberculose subiu de 11,9% em 1914 para 17,3% em 1917.
era preciso achar algo com que fazer fogo. Nas grandes ci-
dades, todas as manhãs, mulheres se agrupavam em torno de Em 1916, Berlim conheceu tantas vítimas da tuberculose
quanto trinta anos antes, quando se começava a tratar dessa
uma carroça sobre a qual dois homens estavam empoleira-
doença. Nas escolas, classes inteiras estavam cobertas de fu-
dos: eles trocavam lascas de lenha por sacos de cascas de
rúnculos. Surgiram casos de tifo e de cólera. Milhares de
batata.
crianças, de mulheres e de velhos sucumbiram à epidemia de
Consequência inevitável dessa miséria: a corrupção e gripe que grassou em 1918.
o roubo. Na rua, arrancavam-se as pastas dos estudantes.
O comércio dos charlatães, no entanto, florescia. Quí-
Nos trens, desapareciam cortinas e correias. No primeiro
micos improvisados ofereciam ao público produtos milagro-
semestre de 1918, o montante das indenizaçÕes pagas pelas
sos para compensar a falta de calorias. Uma imensa indús-
companhias de seguros contra roubo equivalia a quase qua-
tria de sucedâneos se havia desenvolvido. Inventores, espe-
tro vezes o de todo o ano de 1915. Roubavam-se até os
cialistas, médicos e professores punham toda a sua ciência a
cães para matá-los. Muitas crianças haviam se habituado a
serviço da fabricação de vitaminas artificiais. A mais céle-
viver de algumas batatas ou de frutos apanhados nos quin-
bre das descobertas foi a do professor Haber, que permitia
tais.
utilizar a palha como substitutivo da farinha. Visando às fa-
Essas crianças, aliás, haviam sido iniciadas nesse tipo mílias abastadas, estabeleceram-se institutos de ginástica
de expediente pelos altos representantes do Estado. Elas
onde, através de exercícios de respiração apropriados, ten-
deviam recolher caroços de frutos para a extração de óleo, tava-se tornar o jejum suportável!
catar todos os papéis jogados fora para a fabricação de fio,
barbante e tecidos. Nos jornais, abundavam receitas miracu-
losas que ensinavam as mães a transformar em festins, gra-
ças a engenhosos sucedâneos, pratos feitos com batata e ra-
banetes regados com água salgada. Com uma ração de 225
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Da unanimidade nacional à sua ruptura progressiva A guerra havia sido encorajada também por uma orga-
nização poderosa que, sem ter representação parlamentar,
exercia uma sedução sobre as elites: a Liga Pangermanista.
Diante de todos esses problemas, o fervor patriótico Fundada em 1894, era contra os judeus, os eslavos, os so-
que havia arrebatado o povo alemão no início de agosto de cialistas de todas as categorias. Conclamava os povos ger-
1914 começava a declinar. Estavam longe os tempos em mânicos à união e preconizava, para proteger a Alemanha,
que os vagões de soldados carregavam a inscrição feita com a anexação dos pequenos Estados limítrofes. Para ela, a
giz: "Logo nos encontraremos nos bulevares de Paris!" De guerra não era destrutiva, mas salvadora, geradora de pro-
24 greves em 1914, com um milhar de participantes, passa- gresso para a humanidade. Por intermédio de Alfred
ra-se em 1917 a seiscentas, com mais de 600 000 grevistas. Hugenberg, um de seus fundadores e, ao mesmo tempo,
É verdade que de início tinham sido causadas pelas más con- diretor das fábricas Krupp, ela havia estabelecido vínculos
dições de vida, mas traduziam também um movimento de com industriais como Stinnes, Kirdorf, Reusch e Borsig, que
oposição à guerra. haviam aprovado os seus planos de anexação, da Bélgica à
Logo ficara claro que a união sagrada, selada por um Ucrânia.
entusiasmo que, nas ruas de Berlim, se aproximara do de- Dessa bela unanimidade, a maioria dos jornalistas, es-
lírio, não tinha o mesmo sentido para todo mundo. Para a critores, professores e sábios não desejara ficar afastada!
aristocracia, os oficiais da atíva e uma boa parte da burgue- Não apenas os que, havia muito tempo, eram conhecidos
sia, ela queria dizer anexações, conquistas territoriais. As como partidários das ideias veiculadas pelos meios impe-
massas operárias, pelo contrário, tinham se unido a esse rialistas, como os romancistas de sucesso Gustav Frenssen
concerto belicista antes de tudo para defender a nação amea- ou Ludwíg Ganghofer, mas também muitos que até en-
çada. Os acontecimentos lhes haviam sido apresentados, com tão se haviam mantido à distância da política. Mesmo os
efeito, como a resposta a uma agressão exterior. "A espada que haviam adquirido renome por seu espírito crítico, co-
nos é posta na mão", havia declarado o imperador a 31 de mo os escritores da geração naturalista, tinham aderido.
julho de 1914, após a mobilização decretada pela Rússia Entre outros, Gerhart Hauptmann, Hermann Sudermann,
contra a Áustria. Richard Dehmel.
Todos os partidos, sem exceçao, tinham então dado ra- No dilúvio de cantos nacionalistas, havia um cuja le-
zão a Guilherme II. Naturalmente, ele havia obtido a ade- tra tinha por autor Gerhart Hauptmann, que fora agra-
são dos conservadores e dos nacional-liberais, que represen- ciado com o prémio Nobel de Literatura em 1912. Era
tavam as categorias sociais que sustentavam o Estado, os um canto de cavalaria. Primeiro, um francês queria rou-
industriais, os fidalgos, os oficiais superiores. O Partido So- bar a honra a Alemanha. Depois, chegava um russo. Por
cial-Democrata, seguido em geral pelas massas trabalhado- fim, um inglês. Mas a bela e corajosa Alemanha não cedera.
ras, também o havia aprovado. Da mesma forma que os Ela não cederia mesmo que fossem nove em lugar de três.
progressistas, que reuniam uma parte da burguesia liberal Porque tinha a proteção de Deus, do imperador, do exérci-
e intelectual. Finalmente, o influente partido católico do to alemão!. . . Quanto a Richard Dehmel, passara da palavra
centro, o Zentrum: sua ala esquerda, apoiada pelos operá- à ação. Embora tendo ultrapassado o limite de idade para
rios dos sindicatos cristãos, estava próxima dos socíal-demo- ser convocado, pedira para seguir para a frente.
cratas, mas sua direção estava nas mãos da outra ala, forma- Em São Petersburgo, Paris ou Londres, desenrolavam-
da por funcionários e membros do alto clero, que defen- se manifestações patrióticas semelhantes às de Berlim. Não
diam as posições chauvínistas dos conservadores e dos na- faltaram também escritores, para só citar, na França, Mau-
cíonal-liberais. rice Barres e Paul Bourget, que defendessem o extermínio
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do alemão, esse inimigo hereditário. Mas na Alemanha — e
tira-se a princípio constrangido, e distanciado do tumulto.
isso é singular — todas as profissões intelectuais haviam
Depois, enquanto o trem seguia para Munique, passara per-
desejado integrar-se a esse movimento de entusiasmo. Diante
to dos soldados, partilhara da alegria ambiente, vibrara com
da "cultura" alemã, que eles pretendiam ameaçada pela "ci-
vilização" latina, poetas e pensadores se haviam levantado. as aclamações da multidão, e se comovera ao ver os campo-
neses e camponesas que vinham às estações para celebrar
O filósofo Max Scheler exteriorizara sua alegria ao ver uni-
dos pelas mesmas aspirações o indivíduo e o povo. Consi- as partidas.4
derado primordialmente um esteta, o célebre autor dos O círculo dos discípulos de Stefan George havia igual-
Buddenbrook, Thomas Mann, indispondo-se por alguns anos mente mergulhado na vertigem nacionalista. O próprio mes-
com seu irmão mais velho Heinrich, havia saudado a pode- tre ficara à margem, menos porque frequentara os simbolis-
rosa reunião da nação alemã. O historiador Friedrich tas franceses no final do século e traduzira Baudelaire para
Meínecke se rejubilara ao constatar que o tempo da separa- o alemão do que em nome da arte pela arte. No fundo, ele
ção entre a política e a cultura estava definitivamente en- não desaprovava a política belicista. Mas só a poesia lhe
cerrado. parecia digna de ser ativamente vivida. No entanto, entre
a minoria de eleitos aos quais ele as destinava, suas concep-
Desde 1848 a Alemanha não conhecia semelhante im-
ções haviam provocado uma adesão à guerra. Friedrich
pulso de fervor coletivo. Há muito tempo os grandes pro-
Gundolf, mais tarde brilhante professor da Universidade de
blemas da nação não eram colocados no centro dos deba-
Heidelberg, replicou ao famoso apelo que Romain Rolland
tes intelectuais com essa paixão sem discórdia. Nos primei-
lançara em setembro de 1914 em favor da união dos espí-
ros dias de outubro de 1914, toda a imprensa alemã publi-
ritos europeus pela paz, Acima da contenda: "O que é bas-
cara um texto no qual 93 personalidades negavam que a
tante forte para criar", disse ele, "deve sê-lo também para
Alemanha tivesse desejado a guerra. Não, dizia o manifes-
destruir, e a Alemanha, de qualquer forma, é a única em
to com veemência, os alemães não são capazes das brutali- condições de assegurar a ressurreição espiritual da Europa".
dades bárbaras de que são acusados! Assinavam-no histo- Uma torrente de peças patrióticas havia submergido os
riadores e teólogos, os pintores Max Klinger e Max Lieber-
teatros. Nos cartazes, os títulos eram eloquentes: No acam-
mann, os sábios Wilhelm Ostwald, Max Planck, Wilhelm pamento, Sete contra dois, Como batem os corações ale-
Roentgen, o arquiteto Peter Behrens, o díretor teatral Max mães. Cânticos da Guerra dos Trinta Anos e das guerras de
Reinhardt. libertação de 1813 eram reeditados. Os jornais só abriam
Entre os raros que se recusaram a apor sua assinatura suas colunas aos que exaltavam o ódio e a vingança. O mais
estava o físico Albert Einstein. E quando o fisiologista ber- célebre poema, difundido sob forma de panfleto em milha-
linense Nicolal propôs lançar o Apelo aos europeus como res de exemplares, era um Cântico de ódio contra a Ingla-
contramanifesto, apenas três de seus colegas tiveram a co- terra. O que dizia ele? Bala por bala, e golpe por golpe aos
ragem de associar-se -a ele, entre os quais o mesmo Albert russos, aos franceses. Mas para a Inglaterra, era preciso
Einstein. Não obstante, uma organização pacifista nasceu, acrescentar o ódio sagrado de setenta milhões de alemães em
a liga Nova Pátria, que foi proibida em 1916 sob pretexto uníssono! Ernst Líssauer, autor dessa obra imorredoura, era
de manter relações com estrangeiros, com Romain Rolland
de origem judia. Obrigado a emigar em 1933, lamentou o
por exemplo, bem como com países inimigos. Até mesmo que havia escrito quando se deu conta da loucura assassina a
o pacato poeta Rainer Maria Rílke perdeu a cabeça (para
que podia conduzir o chauvinismo.
depois voltar completamente a si) na embriaguez que o cer-
Essa participação de um alemão de origem judia na
cava. Detido na Alemanha no momento em que, provisoria-
histeria coletiva de agosto de 1914 não tinha nada de exe-
mente instalado em Paris, fazia uma viagem a Leípzig, sen-
cepcional. Hoje, ela parece estranha. Como explicá-la? O
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morte para a humanidade", na medida em que é capaz de
anti-semítismo era antigo na Alemanha) existia desde muito
antes de 1914. O primeiro partido a propor abertamente transformar "em possessos milhões de seres dotados de
um combate anti-semita, o Partido Operário Cristão-Soei aí razão".
do pastor Adolf Stõcker, datava de 1878. Em 1879, o jor- Individualmente, no entanto, alguns se recusavam a
nalista Wilhelm Marr havia fundado um liga anti-semita. integrar o coro patriótico. O poeta anarquista Erich Muh-
Em 1881, o pseudo-filósofo Eugen Duhring pretendera es- sam era um desses. Redigiu um Manifesto idealista pre-
tabelecer as bases "científicas" do anti-semitísmo ao denun- gando a paz entre os povos, para o qual solicitou as assina-
ciar uma fantasista "dominação judia". Pelo fato de certos turas de personalidades. Obteve tão-somente a simpatia de
judeus terem escolhido exercer uma atividade na imprensa Heinrich Mann,6 e nada dos outros. Em razão da atmosfera
após sua emancipação política, adquirida na segunda me- local não era muito fácil tomar posição publicamente.
tade do século XIX, Bismarck costumava designar como Hermann Hesse sabia disso. Quando a guerra estourou,
"judeus" os jornalistas de oposição. Mas como, escrevia um ele vivia na Suíça havia dois anos. Espontaneamente, ele se
deles, Theodor Lessíng em 1890, os judeus manifestassem apresentou ao consulado da Alemanha em Berna, a fim de
geralmente sentimentos apaixonadamente alemães, não com- ser eventualmente incorporado às tropas de reserva.7 Julga-
preendiam que se pudesse levantar a menor dúvida com re- va que não devia ficar à margem, que aquela guerra poderia
lação à sua condição de alemães. E, para muitos, a guerra ser uma experiência enriquecedora e sem dúvida fonte de
tinha sido justamente a ocasião de provar sua dependência uma mudança benéfica na Alemanha imperial. Todavia, não
nacional em relação à Alemanha 5 . No seu semanário Die se deu atenção à sua proposta de incorporação. Pouco mais
Zukunft, o temível jornalista Maximilian Harden, que não tarde, desgostoso com o ódio despejado cotidianamente
perdoava nada a Guilherme II e sempre o havia pintado em escritos de todo o tipo, ele se levantou B publicamente
como um fantoche ridículo, expressou dessa forma seu entu- contra a brutalidade satisfeita com a qual todos os valores
siasmo diante da guerra e da coesão nacional que resultava espirituais eram convocados para a destruição. Acreditava
dela: "Jamais a Alemanha foi tão bela", escrevia a 5 de se- que o amor era mais digno do que o ódio, que a paz era
tembro de 1914. Quanto a seu colega, o brilhante carica- mais nobre que a guerra, e que o culto à vida era de um in-
.turista Thomas Theodor Heine, igualmente forçado a emigrar teresse superior à experiência da morte. Por causa disso,
em 1933, orientou o jornal satírico Simplicissimus, até en- foi conspurcado em toda a imprensa alemã como o protótipo
tão muito anticonformista, para um nacionalismo fanático. do apátrida e do canalha intelectual.
Raramente os desenhos do Simplicissimus, que agora ridi- As primeiras medidas draconianas de racionamento e a
cularizavam quase exclusivamente os países da Entente, ti- insatisfação social crescente tinham tido sobre a população,
nham tido um público tão vasto. Poucos povos, alegrava-se
portanto, o efeito de romper a aprovação unânime à polí-
Thomas Mann numa carta da época, possuem um jornal
tica imperial e à guerra. Aliás, no dia 4 de outubro de
dessa qualidade, a um tempo humorístico e nacionalista.
1915, Hermann Hesse escrevia de Berna a Romain Rolland
Entre os escritores, foi somente em torno de pequenas
que, após ter passado alguns dias no sul da Alemanha, tinha
revistas, como fórum, de Wilhelm Herzog, ou Die Aktion,
de Franz Pfemfert, que desde o início se criou um núcleo a impressão de que, entre o povo, o ódio declinara.9
de oposição à política imperial. A 1.° de agosto de 1914, À medida que a hipótese de uma vitória rápida desmo-
por exemplo, Pfemfert publicava um editorial em Die ronava e que, malgrado uma censura impiedosa, afluíam os
Aktion onde lamentava que qualquer resolução em favor da testemunhos sobre a realidade da situação, os raros oposito-
paz fosse inútil agora. Prognosticava um imenso massacre. res não ficaram isolados. No seio da opinião pública, os
Pois o chauvinismo, escrevia ele, representa um "perigo de partidos propriamente ditos logo deixaram de contar verda-
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deiramente. Duas tendências acabaram por surgir. Uma era tava a esperança de alcançar rapidamente a paz e liquidar,
pela guerra a qualquer custo. A outra, pela paz. ao mesmo tempo, o regime imperial. Esse era o objetivo da
propaganda clandestina dos spartakistas. A revolução bol-
chevista, dizia o boletim Spartacus, é apenas o prólogo de
uma revolução europeia.
Vasto movimento de oposição à guerra Entre os artistas e os escritores, sobretudo os jovens,
a militância pacifista também havia progredido considera-
velmente. Em torno de Franz Pfemfert e de sua revista Die
Um partido suportou no seu seio a prova dessa divi- Aktion, se reunira uma parte dos expressionistas, assim cha-
são: o Partido Social-Democrata. Era, no entanto, com 34% mados porque reagiam contra as correntes artísticas anterio-
dos votos nas eleições legislativas de 1912, o elo mais só- res, especialmente o impressionismo. Nascidos em geral por
lido da Segunda Internacional Operária, Em 1914, tinha volta de 1890, eles já tinham se revoltado contra a socie-
mais de um milhão de partidários. Organização modelo, dade de seus pais antes de 1914. Com Die Aktion, fundada
havia desenvolvido por toda parte clubes, bibliotecas, coope- em 1911, as tendências de protesto se estenderam a todas
rativas. A atitude dos seus dirigentes tinha provocado, à es- as artes, da pintura ao teatro. Uma outra revista, Der Sturm,
querda, o nascimento de um novo partido em abril de 1917: fundada um ano antes por Herwarth Walden, canalizava
o Partido Socialista Independente. essencialmente uma revolta estética dirigida contra as for-
Os que permaneciam membros do Partido Social-De- mas tradicionais. Mas todos se haviam reunido contra o
mocrata eram comumente chamados de majoritários, en- conformismo social. Com a descoberta da realidade da
quanto os que o deixavam se deram o nome de independen- guerra, já que poucos dentre eles tinham sido poupados pela
tes. Esse grupo comportava uma ala revolucionária, a Liga hecatombe dos primeiros combates, eles foram levados a
Spartakista, que publicava clandestinamente o boletim interessar-se mais pela política.
Spartacus10 Embrião do futuro Partido Comunista, ela tinha Embora tivessem sido voluntários para a frente de
por principais dirigentes Karl Liebknecht e Rosa Luxem- combate em agosto de 1914, alguns haviam se transforma-
burgo, que haviam sido condenados à prisão. Neles, a po- do, após ter vivido as atrocidades das trincheiras, em opo-
pulação operária tinha encontrado seus porta-vozes da sitores notórios da política imperial. Era o caso de Rudolf
luta pela paz. Advogado e filho de Wílhelm Liebknecht, Leonhard e de Ernst Toller, ou do pintor um pouco mais
um dos membros mais destacados do Partido Social-Demo- velho Heinrich Vogeler, que fora colocado num asilo de
crata nos seus inícios, Karl Liebknecht tornara-se, nas pró- alienados por ter ousado enviar a Guilherme II, em 1917,
prias palavras de seus adversários, o dirigente político mais uma carta em que lhe pedia para ser finalmente o que se
popular nas trincheiras. proclamava — o Soberano da Paz. Outros haviam deserta-
Um movimento organizado de oposição à guerra, im- do. Tinham sido, como Wieland Herzfelde e Franz Jung,
pulsionado ou influenciado pelos independentes e, mais par- condenados à prisão por tribunais militares. Finalmente, al-
ticularmente, pelos spartakistas,11 fora posto em ação. As guns puderam deixar a Alemanha e refugíar-se na Suíça. Foi
greves, por vezes violentas, haviam aumentado a partir do para a Suíça, mais exatamente para Berna, que o alsaciano
final de 1917. Mais de um milhão de manifestantes tinham René Schíckelé transferiu sua revista, Die Weissen Blàtter,
desfilado nas ruas das grandes cidades em janeiro de 1918. onde publicou trechos do romance pacifista de Barbusse,
Em Berlim, a polícia havia reagido, matando inúmeros ope- O fogo. Em Zurique se instalara Hugo Bali, com quem
rários. Nas fábricas, a consciência política crescera.12 A re- Richard Hiilsenbeck viera encontrar-se temporariamente
volução vitoriosa na Rússia em novembro de 1917 alimen- em 1916. Walter Serner fundou aí, igualmente, a revista
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