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Este é o primeiro dos sete estudos da série sobre a orquestração do compositor francês
Maurice Ravel (1875-1937). A série abordará as seguintes obras:
A Orquestra Impressionista
Características
1- Naipe das madeiras: são os instrumentos principais (ainda mais do que as cordas) para
expor melodias. Elas são usadas em registros pouco brilhantes favorecendo as qualidades
"suaves" tessituras graves (como por exemplo a flauta na região médio-grave). Toda a família
das madeiras funcionam como melodistas, com a exceção do clarone (clarinete baixo) e
contrafagote (ou sarrusofone). Quando empregadas em um contexto harmônico, os
instrumentos são geralmente agrupados homogeneamente, com uma mistura suave da
sonoridade como um critério inicial.
4- Naipe das cordas: aparecem menos como tradicionais expositores do material melódico e
mais como complementação sonora à textura orquestral. São constantemente divididas em
mais vozes (divisi), utilizadas mais com elementos sonoros verticais (simultaneidade
harmônica) do que com elementos horizontais (linhas melódicas). Suas propriedades únicas de
timbre - alcançadas usando surdinas e tocando com diferentes técnicas de arco (tremolo (de
arco e de notas), sur la touche, au chevalet (ou sul ponticello ) e os harmônicos naturais e
artificiais (explicados no último post deste blog) - foram muito requisitados pelos
compositores Impressionistas, muitas vezes, as cordas são mais utilizadas com estes recursos
do que ao contrário.
Parte 1
Uma pradaria está à beira de um bosque sagrado. No fundo estão as colinas. Para a
direita se encontra uma gruta escavada na rocha, na entrada do que é uma escultura antiga de
três ninfas. Um pouco em direção ao fundo, à esquerda, uma grande pedra se assemelha
vagamente à forma do deus Pã. No fundo ovelhas estão pastando. É uma tarde de primavera.
Quando a cortina sobe, o palco está vazio. Introduction et Danse Religieuse. Jovens e meninas
entram trazendo cestas com presentes para as Ninfas. Aos poucos, o palco é preenchido
enche. O grupo se curva diante do altar das Ninfas. As meninas montam pedestais com
guirlandas. Neste momento, ao fundo, Daphnis é visto após o seu rebanho. Chloé se junta a
ele. Eles prosseguem em direção ao altar e desaparecem em uma curva. Daphnis e Chloé
entram em primeiro plano e se curvam diante das Ninfas. A dança cessa.
As meninas atraem Daphnis e dançam em torno dele. Chloé sente os primeiros sinais de
ciúmes. Naquele momento, ela é arrastada para a dança dos jovens. O pastor Dorcon revela-se
especialmente audaz. Daphnis por sua vez, parece chateado. Danse Générale. No final da
dança, Dorcon tenta beijar Chloé. Ela inocentemente oferece -lhe o rosto, mas com um
movimento abrupto Daphnis empurra o pastor e se aproxima carinhosamente de Chloé. Os
jovens interveem. Eles se posicionam na frente de Chloé e gentilmente levam Daphnis a uma
certa distância. Um deles propõe um concurso de dança entre Daphnis e Dorcon. O prêmio do
vencedor será um beijo de Chloé. Danse grotesque de Dorcon . O grupo imita sarcasticamente
os movimentos desajeitados do pastor, que termina a sua dança no meio do riso geral. Dança
leve e graciosa de Daphnis . Todos convidam Daphnis a aceitar a sua recompensa. Dorcon vem
para a frente também, mas é perseguido pelo grupo, acompanhado de gargalhadas.
O riso cessa com a visão do grupo radiante formado pelo abraço Daphnis e Chloé. O
grupo se retira, levando juntamente Chloé. Daphnis permanece, imóvel, como se estivesse em
êxtase. Então ele se vira para baixo na grama, com o rosto entre as mãos. Lyceion entra. Ela
percebe o jovem pastor, ela se aproxima e levanta a cabeça dele, colocando as mãos sobre os
olhos. Daphnis acha que isso é um jogo de Chloé. Mas ele reconhece Lyceion e tenta se
afastar. Danse de Lyceion. Como se, inadvertidamente, ela deixa cair um de seus véus. Daphnis
pega e coloca-o de volta em seus ombros. Ela ironicamente retoma sua dança, que, num
primeiro momento é mais lânguida e torna-se cada vez mais animada até o final. Outro véu
desliza para o chão, e é novamente recuperado por Daphnis. Contrariada, ela foge zombando
dele, deixando o jovem pastor muito perturbado. Sons e gritos de guerra são ouvidos,
chegando cada vez mais perto. No meio, as mulheres correm pelo palco, perseguido por
piratas. Daphnis pensa em Chloé, que talvez ela esteja em perigo, e corre para salvá-la. Chloé
corre em pânico em busca de abrigo. Ela se joga diante do altar das Ninfas, implorando por sua
proteção.
Uma estranha luz permeia a paisagem. De repente, um pequeno fluxo de luz brilha da
cabeça de uma das estátuas. Uma das ninfas ganha vida e desce de seu pedestal, então a
segunda Ninfa, e depois a terceira Ninfa. Elas se consultam juntas e começam uma dança lenta
e misteriosa. Elas percebem Daphnis. Elas se curvam e secam as suas lágrimas. Elas o
reanimam e o conduzem em direção à grande rocha a invocar o deus Pã. Aos poucos, a forma
do deus começa a se delinear. Daphnis se prostra em súplica. O palco fica escuro
Parte 2
Vozes são ouvidas fora do palco, a princípio muito distantes. Longe, um trompete soa e as
vozes vão chegando cada vez mais perto. Há um brilho fosco. É um território pirata e em um
litoral muito acidentado. Ao fundo, o mar. À direita e à esquerda, uma visão de grandes
rochedos. Um trirreme é visto perto da costa e há ciprestes espalhados. Piratas são vistos
correndo para lá e para cá transportando o que foi saqueado. Mais e mais tochas são trazidas
que violentamente iluminam a cena. Bryaxis ordena que tragam o que está em cativeiro.
Chloé, com as mãos atadas, é escoltada por dois piratas. Bryaxis ordena a ela a dança. Chloé
executa uma dança de súplica. Ela tenta fugir, mas ela é trazida de volta violentamente.
Desesperada, ela retoma sua dança. Mais uma vez ela tenta fugir, mas é trazido de volta
novamente. Ela é abandonada ao desespero, pensando em Daphnis. Bryaxis tenta levá-la.
Embora ela implora, o líder a carrega triunfantemente. De repente, a atmosfera parece
carregada com elementos estranhos. Vários lugares são iluminados por mãos invisíveis, e
pequenas chamas começam a incendiar. Seres estranhos engatinham e saltam aqui e ali, e
satyros aparecem de todos os lados e cercam os bandidos. A terra se abre. A sombra temível
do Pan é delineada nas colinas ao fundo fazendo um gesto ameaçador. Todo mundo foge
aterrorizados.
Parte 3
São muitas as razões pelas quais eu resolvi realizar esta série de estudos sobre a obra
de Ravel, porém uma delas, é pela importância da habilidade, coerência e precisão pelo qual
Ravel se expressa através da orquestra. O material harmônico e melódico são encontrados
facilmente em outras estéticas do século XX, incluindo boa parte da música popular americana
(e vice-versa). Gardner Read aponta em seu livro Style and Orchestration: "Toda composição
de Ravel encarna a precisão e lógica, a limitação e a delicadeza do equilíbrio formal de um
Classicista instintivo. A maior parte das obras evidentemente Impressionistas ainda preservam
a clara forma exterior e a tensão interior, empregando por meios Impressionista para fins
Classicistas(.....). Acima de tudo, Ravel deve ser considerado o expoente pela excelência de sua
habilidade de orquestrador que é virtuosística em todos os sentidos".
Piccolo
2 Flautas
Flauta em Sol
2 Oboés
Corne-Inglês
Clarinete Baixo
3 Fagotes
Contrafagote
4 Trompas em Fá
4 Trompetes em Dó
3 Trombones
Tuba
Tímpanos
Tam-Tam
Triângulo
Gran Cassa
Pratos
Tambor (Tambour)
Pandeiro
Celesta
Crotales
2 Harpas
Contralto
Tenor
Baixo
Violinos I & II
Violas
Violoncelos
Contrabaixos
A Suite n. 2 é formada por três movimentos: Lever du Jour (Nascer do Sol) - Pantomime
(Mímica) - Danse Genérale (Dança Geral) .O primeiro excerto que será analisado são os quatro
primeiros compassos do primeiro movimento Lever du Jour:
(fig. 1) compassos 1 a 4
fig. 3
fig. 3a
Perceba a mudança dos pedais da primeira harpa para dó bemol e si natural para o
terceiro compasso (que é a repetição quase literal do primeiro compasso se não fosse esta
pequena mudança) que adicionará ao acorde a 9ª (extensão).
No segundo compasso, especialmente nas violas e parte dos cellos (A), Ravel utiliza o
artifício dos harmônicos naturais (discutido no post anterior neste blog) para formar uma
tríade de dó maior. Lembrando, que para conseguir uma boa sonoridade (com volume) dos
harmônicos, principalmente de parciais mais altas, o compositor retira as surdinas destes
instrumentos (fig. 5):
fig. 5
fig. 6
Para sabermos quais as notas que serão produzidas com esses harmônicos, é
necessário consultar a tabela dos harmônicos naturais por instrumento, ou se você já possui
experiência, estabelecer qual a nota que o harmônico irá gerar. Neste tipo de escrita, o
compositor coloca apenas o ponto do "nó" do harmônico sendo que a fundamental é a corda
solta. Na figura abaixo (fig. 7) constam as notas em que cada harmônico irá gerar, começando
pela viola, que está em divisi por 3, porém a parte C (primeiro pentagrama) neste momento
possui um outro divisi (resultando uma pequena parte das violas tocando este divisi)
resultando em 4 partes (mas não com a mesma proporção de instrumentos), depois o
harmônico nos cellos (parte A do divisi). Além dos harmônicos mostrados na figura abaixo, o
trecho ainda possui os harmônicos naturais das oitavas das cordas mais graves de ambos os
instrumentos (dó) que estam notadas não com o losango, mas como uma nota real com a
posição (0) em cima das notas, conforme figura da parte das violas (fig. 8):
fig. 7
fig. 8
Nos compassos 8, 9 e 10 o texto indica " Pouco a pouco o dia nasce (comp. 8)" e "É
ouvido o canto dos pássaros (comp. 9)". Exatamente neste ponto que o tema principal deste
movimento começa a ser exposto por parte dos contrabaixos (divisi). No compasso 9 (figura
11b), 3 violinos solos imitam os pássaros com harmônicos, que no compasso 10, o piccolo é
adicionado a este elemento. Como comentado anteriormente, o tema inicial é exposto de
maneira repetida (com a repetição sempre uma quinta acima).
comp. 7 e 8 - fig. 11a
comp. 9 e 10 - fig. 11b
Abaixo, o detalhe dos 3 violinos solo realizando harmônicos no compasso 9 (fig. 12) e
com a adição de uma apogiatura, contribui ainda mais para com a semelhança com com um
instrumento de sopro (e com a indicação de en dehors, ou "para fora"):
fig. 12
fig. 13
A partir do compasso 11, o elemento concernente ao "canto dos pássaros" começa a ficar
cada vez mais intenso, portanto a partir do compasso 8 (numero 156 de ensaio), podemos
estabelecer a seguinte textura (com alguns elementos só entrarão alguns compassos a frente
em relação ao comp. 8):
Elemento C (background): Contrabaixos (B) + Cellos (B) + Trompas + Flautas + Oboes + Corne
Inglês + Clarinetes + Harpa II;
fig. 16
Nesta pequena digressão harmônica que ocorre no compasso 26 (n. 159), é inciado o
pequeno solo de flauta sur la scêne (em cena) que pontua o texto: "Ao longe, um pastor é
visto com o seu rebanho (Au loin, un berger passe avec son trupeau), o desenvolvimento do
tema apresentado é visto logo após esta exposição da flauta ( neste caso, ainda pelas violas,
parte dos cellos clarinetes e clarone - uma escolha pelo timbre mais "escuro". O mesmo ocorre
no compasso 31(n. 160) , porém com o clarinete em Eb também sur la scène, que pontua o
texto: "Um outro pastor atravessa ao fundo da cena" (Un autre berger traverse le fond la
scène). Abaixo, apenas a redução estrutural dos compassos 26 a 37 para traçar o paralelo com
as escolhas orquestrais de Ravel em relação ao desenvolvimento harmônico. Para isso, sugiro
que tenha a partira em completa em mãos (você poderá baixar gratuitamente no site
imslp.org):
comp. 26 a 37 - fig. 17
Quando a peça é realizada sem coro, bastante usual na versão das suítes, Ravel substitui,
de modo geral, pelas trompas. Na partitura completa do Ballet, como apêndice, a edição
acompanha as partes de substituição do coro. No compasso 38 (n. 161), o tema apresentado
no compasso 20 (n. 158), porém de forma expandida e com algumas alterações texturais.
Observe os elementos (que estão separados por cores no compasso 38) e, como exercício,
tente categorizar por elementos toda a seção, separando também estes elementos em
camadas de foreground, middleground e background:
comp. 37 e 38 - fig. 18
Abaixo, uma redução estrutural para ajudar novamente a entender como Ravel compõe a
textura orquestral dos compassos 38 (n. 161) a 49 (n. 163). Lembrando que a redução é um
ótimo treinamento para aqueles que desejam entender o processo da orquestração do
compositor.
comp. 38 a 49 - fig. 19
fig. 22
Perceba o detalhe do elemento C, cellos estão parte em pizzicato e parte com arco. Os
segundos violinos apenas apoiam nas notas acentuadas. Abaixo a redução dos compassos 52 a
54.
comp. 52 a 54 - fig.21
No compasso 55 (fig. 22a), Ravel expõe o climax do tema com praticamente todas as cordas
em uníssono (neste caso, uníssono orquestral ou seja, o termo abrange também as oitavas
entre as vozes) em um grande Em. Também é estreitamente ligado ao texto: "Eles se jogam
nos braços um do outro" (Ils se jettent dans les bras l'un de l'autre). Mais uma vez, a textura é
divida em três partes:
Para os que gostam de sempre lembrar as referências dos compositores mais importantes
do mundo do filmscoring, existe uma similaridade muito inetressante que é possível
estabelecer Daphnes et Chloé com o tema principal do Preludio do filme de Alfred Hitchcock
chamado "Marnie" composto pelo importante compositor, dentrop e fora dos cinemas,
Bernard Herrmann. Este mesmo tema é desenvolvido e variado durante todo o filme.
No exemplo abaixo é possível ouvir a versão de Ravel e a versão de Herrmann. A
similiridade do material é muito grande, pois depois da vorlata (rápida subida escalar nos
violinos) a melodia repousa em um fá # sobre um acorde de mi menor, exatamente como
Ravel. Claro que existem diferenças texturais como: as figurações de Ravel que não aparecem
no Preludio; o movimento contrário realizado na vorlata por Herrmann e o acompanhamento
com figurações de arpegio; a harmonia de Herrmann é mais ligada ao Romantismo de Wagner
(com as passagens com acordes diminutos) o que obviamente é evitada em Ravel (tornando as
relações e direcionalidade modais). Além do audio, coloco ambas as partituras para a
realização de uma análise comparativa. Apenas um detalhe: a partitura de Marnie é um
manuscrito do próprio Bernard Herrmann:
comp. 55 e 56 - Daphnis et Chloe - fig. 23
comp. 9 a 17 - Marnie's Prelude - fig. 24
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A continuação deste primeiro dos sete estudos sobre obras sinfônicas do Ravel, será dada
no próximo post, que trará a análise do segundo e terceiro movimento ainda da Suite n.2
(Pantomine e Danse Genérale).
Espero que tenham gostado e qualquer pergunta sobre o assunto ficarei feliz em
responder!
Abraços!