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As Normas Sociais no Imaginário Coletivo

Ruthy Nadia Laniado*

As ações coletivas diretas dos movimentos sociais ou


protestos contemporâneos trazem mais do que demandas ou
contestações por parte dos atores. Estes expõem, também,
uma forte individualização voltada para valores e modos de
comportamentos diferenciados, que se confrontam com aque-
les aceitos pelos sistemas sociais de consenso e de legalida-
de. Produz-se, assim, padrões de comportamentos que trans-
gridem as regras instituídas, forçando a presença, os valores
e as demandas dos participantes nas diferentes esferas de
vida em sociedade, assim como o reconhecimento de uma cul-
tura política imbuída de ambiguidade, incerteza e risco, re-
sultando num desempenho mais difuso das regras sociais e
das instituições em geral.

A organização democrática sociais e os protestos populares


da sociedade pressupõe, sempre, a marcaram forte presença, prefe-
possibilidade de se expressar rindo a rua ao voto e à política
livremente sejam os valores organizada (Eckstein, 1989).
culturais sejam as tradições polí- No Brasil, as manifestações po-
ticas de diferentes naturezas. É pulares que se seguiram à distensão
através da voz do indivíduo, dos democrática reagruparam,
grupos ou das categorias sociais frequentemente, milhares de in-
diversas que as reivindicações, as divíduos no cenário mais visível
demandas ou mesmo a expressão possível: a praça pública. Seja ela
dos desejos de viver bem se o cruzamento, a avenida ou o
fazem ouvir. De fato, a combina- edifício de um órgão governa-
ção destes três níveis de atores mental, é lá que se têm aglome-
se encontra na base mesmo das rado as pessoas que procuram se
ações coletivas contemporâneas fazer ouvir e, quem sabe, se
como elas se manifestam nos fazer entender pelo receptor
vários contextos democráticos. mais próximo de sua voz: as au-
toridades, os políticos, os vizi-
nhos, os outros.
Como se colocar a questão
A despeito do fato de que
Recentemente, conforme nos tempos modernos a media e
as ondas de redemocratização, os meios de comunicação tudo
após os longos anos de regimes penetram de forma imperativa,
militares que apriosionaram tantas pode-se dizer que o ethos de
nações e tantas pessoas na uma sociedade assume várias
América Latina, os movimentos formas ao se fazer presente nos

* Professora de Sociologia da Universidade Federal da Bailia.

Cad. CRH., Salvador, n.21. p.90-101, jul./dez.1994


comportamentos coletivos mais as manifestações dos sem-tetos
visíveis nas cidades. Exprime-se urbanos ou dos sem-terras das
pela palavra, pela densidade hu- regiões rurais; (c) aquelas que
mana da multidão, pelas atitu- exprimem uma explosão de fu-
des do corpo e gesticulações e ror e de violência impossível
pelos significados simbólicos de controlar (sem nenhum ou
que irão imprimir o contorno com um muito baixo nível de
da ação coletiva —sua mensagem organização); são atos contra
e o seu objetivo imediato. Enfim, uma vítima pré-condenada, ten-
pode-se dizer que é a partir des- do como objetivo puro e sim-
te ethos que a dinâmica demo- ples exercer a justiça com as pró-
crática que se faz presente no prias mãos: o linchamento.
Brasil contemporâneo se aproxi-
ma das questões do cotidiano, Nestes três grupos especí-
como nas sociedades industriais ficos de ação coletiva os graus
avançadas (Giddens, 1993). No de solidariedade, de organização,
entanto, há um sentido de exclu- de participação, de formulação
são específico que compreende do motivo e de expectativa de
as manifestações coletivas de resultado variam enormemente,
ação direta que aqui nos interes- por causa dos diferentes contex-
sam e que se reproduzem com tos sociais que provocam os ato-
muita frequência no país deste res e os levam a se colocar a
os anos oitenta. questão que neste trabalho mais
nos interessa: porque participar
São as manifestações que e como participar?
dizem respeito, principalmente,
a três categorias de ações (Car- Antes, porém, de iniciar
valho & Laniado, 1992): (a) esta discussão, gostaríamos de
aquelas que se formam de mo- frisar que o rumo dos argumen-
do quase espontâneo (sem ne- tos que se seguem se afasta da
nhum ou com baixo nível de or- discussão mais conhecida em tor-
ganização: os quebra-quebras, no dos movimentos sociais, te-
quando as pessoas atacam um ma coberto por vasta literatura
lugar, visado ou não, a fim de no Brasil. A despeito do objeto
exteriorizar um intenso senti- empírico de estudo ser o mes-
mento de insatisfação; por exem- mo, este trabalho se propõe a
plo, atacar as lojas, os supermer- uma análise paralela, voltada
cados, os meios de transporte para o indivíduo participante
públicos ou os veículos nas ruas; enquanto sujeito "único" dentro
(b) aquelas que se originam de uma ação coletiva. Além dis-
num certo grau de organização, to, o foco da análise adotada
mais institucionalizado ou me- em torno da individualização
nos formal; por exemplo, as ocu- do ator em situações de ação co-
pações de fábricas durante gre- letiva tampouco reflete estudos
ves operárias, os piquetes dos mais clássicos sobre a lógica da
empregados, as demonstrações ação em relação a interesses ob-
dos profissionais mal remunera- jetivados, racionalmente orienta-
dos, tais como os funcionários dos em grupos ou organizações
das agências do governo ou os (Olson, 1971) e os benefícios
professores do ensino básico, ou perdas que disto resultam.

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92 De todas as questões que ra o cultivo, segurança, punição
possam explicar a construção para os criminosos ou ao se re-
das ações coletivas indicadas clamar do preço do transporte
no âmbito deste trabalho, é pre- ou da alimentação.
ciso começar por aquela que pa-
rece, a nosso ver, transcorrer o Quando o fato de "estar
seu conjunto, mesmo consideran- lá" se transcreve numa grande
do as muitas diferenças que exis- manifestação que se confronta
tem entre estes diversos tipos com as autoridades, às vezes até
de eventos. Todos eles parecem com o uso da força - ou mes-
mostrar claramente o sentimen- mo da violência - é, então, que
to de exclusão daqueles que se os políticos e os burocratas en-
juntam à multidão atomizada; carregados das agências do esta-
isto é, aos ajuntamentos de mas- do, responsáveis pelas questões
sa que, malgrado a rapidez de em causa, se tornam acessíveis,
agregação, a efervescência popu- permitindo o diálogo ou talvez
lar, a densidade física e a força a negociação. Eventualmente,
motivadora, mantém um certo um caso poderá ser resolvido a
grau de individualização dos ato- longo prazo ou de forma mais
res (Beauchard, 1985). Os parti- imediata. De fato, ao se observar
cipantes marcam a sua presença uma manifestação, percebe-se que
não somente pelo fato de "estar somente a presença efeti-va dos
lá", mas, sobretudo, porque se atores e o peso simbólico da voz
da multidão (os slogans, os
percebem capazes de criar um gestos, os cartazes, a marcha)
evento e se sentem encorajados a foram capazes de criar um espaço
produzir pela força —ou pela onde eles puderam inserir suas
imposição da ação mesmo — demandas, e permitir que seus
aquilo que foi anteriormente interesses penetrassem as redes da
caracterizado como "a produção de organização social e do poder.
um fato consumado (Carvalho &
Laniado, 1992). É neste momento que a
manifestação produz um fato
Para aqueles que se perce- consumado", o que significa:
bem como discriminados ou bas- agir de forma a obrigar as auto-
tante excluídos dos mecanismos ridades a reconhecer o problema
dos diversos sistemas sociais, levantado e a se pronunciar -
produz-se no seu imaginário qualquer que seja o discurso -
um corpo de referências, não sobre a questão em causa. Po-
necessariamente organizadas, rém, a criação deste fato consu-
que os leva a se misturar com a mado, reconhecido pela força
multidão no espaço público. É, impositiva da ação, casa dois as-
então, que eles se sentem capa- pectos opostos do comportamento
zes de impor sua voz e enunciar dos sujeitos: o da produção
uma mensagem. Apesar desta (criação, liberdade) e o da impo-
nem sempre ser inovadora nos sição (força, cerceamento), o
seus conteúdos, ela está forçosa- que produz, por um lado, uma
mente constituída no mundo da contradição no que diz respeito à
necessidade privada; por validade dos argumentos que
exemplo, ao se reivindicar me-
lhor salário, moradia, terra pa-

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possam justificar e explicar a nos seus diferentes períodos de
ação. formação como indivíduos (in-
fância, adolescência, idade adul-
Por outro lado, a idéia ta). Por isso, devem enfrentar
de que seja possível criar-se fa- as dificuldades que vivenciam
tos neste sentido, apresenta-se no cotidiano, procurando parti-
como uma estratégia de ação cipar dos benefícios sociais que,
orientada por um imaginário co- em princípio, deveriam estar dis-
letivo (Crespi, 1992) que se dife- poníveis.
rencia daquele orientado para
as instituições bem reconhecidas Paradoxalmente, sentem-
e conforme as normas de condu- se atraído pela possibilidade de
ta da legitimidade c do status ter uma escolha para expressar
quo. Logo, esta dinâmica da a sua indignação através do pro-
multidão, que se apresenta sob testo. Ao mesmo tempo, sentem-
a forma de ação direta coletiva, se confusos por esta possibilida-
demonstra que os participantes de de escolha estar voltada pa-
compreendem que sua condição ra uma atitude que se confron-
de excluídos abre a possibilida- ta ou que rompe com as normas
de de não aceitar os constrangi- sociais. Pois a transgressão rara-
mentos das regras consensuais mente é tranquila para a subjeti-
dos ordenamentos sociais. Con- vidade dos atores envolvidos.
sequentemente, eles se permitem Consequentemente, pode-se di-
(isto é, não aceitam impedimen- zer que estas oposições (impo-
tos) expressar sua decepção pa- tência X valores/símbolos; priva-
ra com o seu meio ambiente so- ções X confrontação das nor-
cial através dos comportamen- mas) produzem tanto dificulda-
tos descritos acima. des quanto vantagens para estas
pessoas, face às questões que
Este sentimento de exclu- elas levantam com seus protes-
são se forma a partir de um jul- tos. Os vários casos encontrados
gamento comparativo dos dife- na imprensa sobre a invasão de
rentes sistemas de valores e sím- terras rurais ou de habitações
bolos da vida moderna, os quais, urbanas fornecem exemplos bem
se por um lado massificam atitu- claros sobre as oposições acima
des sociais e modos de vida, por referidas e as consequentes difi-
outro lado são, frequentemente, culdades que os invasores tem
distribuídos de forma desigual em solucionar sua situação, a
entre os grupos e classes sociais. despeito do reconhecimento que
Isto leva os atores a experimen- alcançam junto ao Estado e às
tarem um sentimento de impo- organizações civis voltadas para
tência em relação às perdas ma- questões de interesses populares.
teriais de coisas, frequentemen-
te, nunca conseguidas. Este sen- Em geral, pode-se dizer
timento diz respeito, também, que os excluídos são hoje gru-
à situação de degradação sobre pos sociais tão diversificados,
a questão que os incomoda, tal atraídos por referências simbóli-
como serem socialmente desfavo- cas e alternativas de vida tão di-
recidos ou terem perdido experi- ferentes, inclusive as minorias
ências e oportunidades de vida

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94 organizadas ou não, que as fron- da cotidiana no Brasil de hoje,
teiras da exclusão propriamente que lhes atribui uma importân-
dita são difíceis de se delimitar cia que excede uma simples sé-
(Xiberras, 1993). Isto pode rie de notícias nos jornais. Eles
descrever uma situação prolon- se tornaram, ao longo destes úl-
gada de anomia social, ou, en- timos anos, a expressão viva do
tão, uma forte contestação em imaginário social de uma parte
relação à fixidez e permanência significativa da população. A
das normas que regulam os limi- despeito do fato de se encontra-
tes da permissividade, da legali- rem justapostos aos rituais for-
dade e da legitimidade em socie- mais das rotinas das eleições e
dade. dos discursos dos políticos, tão
frequentes no atual sistema de-
No recorte do contexto mocrático do país, estes eventos
aqui estudado, esta exclusão tem têm sido, de fato, o meio mais
significado ser incapaz de usu- rápido e o mais eficaz de se fa-
fruir dos benefícios da cidadania zer notar e de ser (reconheci-
vis-à-vis: (a) as vantagens mate- do por todos, em todos os luga-
riais para uma qualidade de vi- res, inclusive pelos políticos, pe-
da adequada em vista das desi- los órgãos públicos e seus res-
gualdades extremadas na distri- ponsáveis. Mesmo quando estes
buição da riqueza; (b) o direi- atos, por vezes radicais, não en-
to a uma participação efetiva, contram respostas ou encontram
ofertada pelas garantias da lei, respostas insatisfatórias, a expe-
nas oportunidades do mundo riência vivida expande o senti-
político e no acesso às agências do da força da individualidade
do estado ou nas organizações de cada participante. Através
da sociedade civil; (c) a partici- de sua inclusão na multidão ato-
pação nos valores simbólicos mizada, produz-se um senso de
oferecidos pela diversidade dos poder limitado no tempo, no es-
meios culturais, dos sistemas paço c no alcance deste tipo de
educativos, das condições étni- ação.
cas, etc; (d) os ambientes urba-
nos mais valorizados: residên- A ambivalência desta ques-
cias, bairros, infra-estrutura, etc, tão encontra-se no fato de que
já que no Brasil as diferenças e as manifestações sempre permi-
as desigualdades sociais são tem o recursos à violência e ao
bem visíveis. Logo, a exclusão ritual coletivo que esta engen-
que caracteriza a distinção em dra. A despeito de ser possível
relação ao status quo e ao bem- perceber a violência conforme
estar é percebida pelos sua dimensão útil ou seu aspec-
indivíduos que protestam; ao to positivo (Maffesoli, 1987),
mesmo tempo, sua revolta nestes tipos de ação direta ela
reforça sua imagem de reforça as hostilidades mútuas
excluídos em relação ao resto da entre os excluídos e os outros.
sociedade à qual eles Ademais, ela expõe, sem másca-
pertencem, mas como cidadãos ra, a resistência e a transgressão
diferenciados (Turner, 1990). - tão preciosas à personalidade
do imaginário coletivo na tradi-
É a persistência destes ção cultural brasileira - que se
eventos, que fazem parte da vi-

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encontram na base mesmo da estava indiferente às injustiças
produção de uma política mais e para tomar parte do evento
difusa e da flexibilização das nor- como sinal de protesto (Folha
mas na confrontação às institui- de São Paulo, 19.04.91).
ções sociais.
Mais recentemente, em
É assim que, aqui, as mul- um domingo pela manhã, uma
tidões invadem (pode-se dizer, multidão se espalhou pelas
também, conquistam pela força) praias da grande cidade a fim
o espaço público para protestar de transformar o espaço do la-
ou para reclamar os direitos que zer em um espaço submetido à
lhes são devidos, como os au- sua força e às suas necessidades
mentos de salários para acompa- (o "arrastão" do Rio de Janei-
nhar a inflação, a posse dos ter- ro, em outubro de 1992). As
renos urbanos para forçar as ne- gangs de jovens dos bairros
gociações sobre a habitação, ou mais pobres e dos subúrbios se
quando uma multidão de operá- reencontraram nas praias dos
rios grevistas ocupa uma fábri- bairros das classes média e rica
ca de automóveis e controla, às para se desafiarem umas às ou-
vezes fisicamente (quebrando tras; ao mesmo tempo que impu-
ou incendiando, até), as máqui- nham sua presença, demonstra-
nas que costumam discipliná-los vam sua hostilidade aos banhis-
na rotina do trabalho. Os exem- tas locais, causando ondas de fu-
plos aqui seriam por demais nu- gas c confusão.
meroso para serem enumerados
todos. Caso mais extremo, que
denota o paroxismo de uma ação
Os quebra-quebras são direta, diz respeito aos motoris-
sempre uma ameaça que paira tas de táxi que anunciaram o lin-
no ar, pois a indignação está sem- chamento de um homem suspei-
pre à flor da pele para as clas- to de ter matado um dos seus
ses populares que dependem colegas na véspera, para roubar
dos transportes de massa. Nes- seu dinheiro (o evento de Por-
tes casos, a multidão não perdoa to Velho, de abril de 1991).
quando há uma alta exagerada Em outra localidade, uma multi-
dos preços das passagens dos dão de pessoas de classe média
ônibus, ou quando estes tar- (indivíduos com famílias, profis-
dam, inexplicavelmente, a che- sões e atividades políticas locais)
gar ao terminal (por exemplo, torturou e queimou vivos - até
os eventos da Praça 13 de Maio, a morte -três assaltante que ti-
em São Paulo, em abril de 1991, nham roubado uma casa, man-
em Londrina, em agosto de 1989, tendo uma família como refém
e aqueles ocorridos no centro por algum tempo. Durante o lin-
de Salvador em agosto de 1981). chamento dos três, a multidão
Não é raro que a revolta permi- exigia que as vítimas se arrepen-
ta quebrar e destruir tudo em dessem em voz alta (o lincha-
volta de si. Assim, um participan- mento de Matupá/Mato Grosso,
te de um quebra-quebra decla- ocorrido em novembro de 1990).
rou ter se juntado à multidão Desde alguns anos, o linchamen-
para "lhes mostrar" que ele não to tornou-se muito frequente

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96 no Brasil. Exemplos do conjun- da tem a perder expondo-se ao
to destes eventos existem às de- risco; ademais, que cabe a ele
zenas e centenas nas diferentes (ou ela) - e a ninguém mais -
regiões do país; eles podem ocor- defender seus interesses.
rer em qualquer cidade c são,
também, imprevisíveis. Não se submeter aos regu-
lamentos da ordem social para
A transgressão e a violên- agir, assim como para expressar
cia, potencial e de fato, se colo- as necessidades mais comuns re-
cam como algo mais profundo ferentes à qualidade de vida co-
que um simples comportamento tidiana (a distribuição e a parti-
agressivo. A formação das cipação), parece exprimir uma
multidões, das manifestações reorientação dos limites sociais
organizadas, dos quebra-quebras da permissividade. Vale lembrar
repentinos, das confrontações que as pressões sociais, em épo-
de grupos e dos linchamentos, ca de crise ou de dificuldades
entre outros, se banalizam, o político-institucionais, fazem
que nos permite associá-los à emergir a fragilidade e o risco
natureza dos conflitos (Sluka, de ruptura da compatibilidade
1992 e Nordstrom & Martin, dos sistemas sociais (Melucci,
1992) e da cultura política do 1989). No período observado,
país. Esta constrói no imaginá- percebe-se que o tecido social
rio daqueles que se vêem como coloca em evidência profundas
excluídos não somente uma ne- instabilidades e exige uma dina-
cessidade latente de agir, mas, mização dos processos políticos
sobretudo, a coragem de se ex- e de novas soluções sócio-cultu-
por, ao risco. Um risco para a rais no jogo democrático do pa-
ís. Uns e outros não são sempre
pessoa, ao se estar presente no claros ao longo destas situações.
meio da multidão, e um risco
de perda, ao ver o seu desejo frus-
trado (Crespi, 1992).
A integração social
A análise das reportagens vista pelos atores
e notícias1 que registraram to-
dos estes tipos de manifestações
no Brasil e que expõem o teste- No mundo onde a demo-
munho dos participantes, permi- cracia se coloca como dominan-
te entender que, neste contexto, te, encontram-se, de um lado,
eles dependem menos dos siste- aquelas sociedades, por princí-
mas de consenso para explicar pio igualitárias, que buscam mo-
a significação de seus atos do dernizar as suas instituições so-
que de uma justificativa ad hoc ciais e políticas. De outro lado,
dos motivos que os projetaram encontram-se sociedades com
na multidão. Para eles, estes uma relativa dispersão das nor-
motivos serão sempre plausíveis, mas que dizem respeito à vida
já que é comum entre os partici- nos sistemas complexos (a lei e
pantes dizer que ele (ou ela) na- os regulamentos), assim como

1 Reportagens analisadas nas edições de VEJA, ISTO É, Folha de São Paulo, A Tarde, Jornal
do Brasil - anos: 1980-1992

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uma amiguidade em relação ao go das interrelações sociais. O
reconhecimento da legitimidade indivíduo se reforça sob todos
destas normas e de sua aceitação os aspectos. A imagem de uma
(o consenso e o contrato) -o sociedade integrada num corpo
que se pode notar no Brasil de único -uma comunidade gigan-
hoje. Para aprofundar esta tesca -se quebra no imaginário
questão, 6 preciso considerar a de um grande número de indiví-
cultura política que permeia o duos, já que estes fatos se repe-
sistema social. tem em todo lugar e constante-
mente. As emoções que mobili-
A cultura política modifi- zam o país em uníssono nas com-
ca a estrutura de seus significa- petições internacionais de fute-
dos na medida que as experiên- bol ou nos rituais lúdicos do
cias se reorganizam no imaginá- Carnaval - imagem exterior de
rio coletivo, não somente em re- um país sempre de bom humor
lação aos atores que protestam, mas que, frequentemente, se des-
mas em relação ao conjunto so- pedaça por dentro — não são as
cial como um todo. Foi indica- mesmas que aquelas que entre-
do mais acima o elemento que, cruzam as insatisfações das mul-
a nosso ver, resume o sentido tidões nas ações diretas estuda-
mais aparente destas ações dire- das.
tas coletivas para aqueles que
se percebem como excluídos: a As emoções que fazem ex-
sua capacidade de produzir even- plodir a ação dos que protestam
tos e de tornar a sua realidade são sensíveis a um outro tipo
um fato consumado para propa- de rumor gregário (Beauchard,
gar sua mensagem, assim como 1985). Este percorre as pessoas
para produzir espaço nas redes e as leva em direção a uma mul-
sociais e atingir as instituições tidão, organizada ou não, por-
que lhe dizem respeito. Agora, que conecta os sentimentos e
6 necessário indicar os outros as percepções de cada um sobre
elementos que, do ponto de vis- si-mesmq (o indivíduo e sua iden-
ta de nosso argumento centrai, tidade). É, então, nesta multidão
estruturam o circuito dos senti- que se fundem duas dimensões
mentos e dos símbolos sobre os de sentimentos: de um lado a
quais repousa a energia mobili- frustração do fracasso e da per-
da de cada um em relação à inca-
zadora dos atores engajados nas pacidade de resolver os seus pro-
manifestações. São eles a percep- blemas; e, de outro lado, o dese-
ção da individualização e do ris- jo de ser bem sucedido e de ob-
co que esta engendra ao cons- ter recompensas. Nesta situação,
truir-se a ação, assim como o os atores experimentam uma es-
sentido de justiça que motiva a pécie de status social transitó-
participação nos grupos ou na rio, afirmado pelas suas identida-
multidão. des renovadas como indivíduos
ativos e resolutos por estarem
Em geral, este tipo de presentes em tais eventos.
ação coletiva reduz o papel das
instituições, das medidas regula- A afirmação de um
doras dos benefícios do bem-es- aspecto da identidade através
tar social e das mediações no jo- de uma

Cad. CRH., Salvador, n.21. p.90-101, jul.Alex.1994


98 situação originada na negação sionar nos sistemas disciplinares
de uma condição social digna de normas recebidas. Nos even-
parece, inicialmente, um contra- tos aqui focalizados, parece-nos
senso. Porém, oposições são fre- claro que alguns valores forçam
quentemente formadoras de im- padrões de comportamentos e
portantes rumos da história so- atitudes controversos do ponto
cial. Do mesmo modo que, ante- de vista da política institucio-
riormente, a relação entre o mo- nal. Ao conjunto da sociedade
derno e a tradição foi analisada resta a idéia de que uma socieda-
como uma espécie de movimen- de com um só olhar sobre "ser
to, que faz girar de forma espas- cidadão" se dissolve na idéia
módica o passado e o presente de uma sociedade mais difusa.
sem anular um ao outro (Geertz,
1993), pode-se dizer que, nos Sem elaborar em demasia
tempos atuais da modernidade, as explicações de seus motivos
a relação entre a dinâmica so- mais aparentes, os atores destas
cial da ordem (as normas) e aque- manifestações coletivas, no Bra-
la da transgressão (a ruptura sil, parecem não aceitar facilmen-
das normas) permite perceber te que a sociedade onde eles vi-
que a integração social dos indi- vem não possa oferecer-lhes
víduos não se produz, exclusiva- mais, não os possa incluir de for-
mente, através dos elementos ma integral. Nos eventos analisa-
aceitos como aqueles do equilí- dos, eles sempre se apresentam
brio e da coesão: o cidadão obe- através da incisiva expressão ver-
diente às normas e submisso à lei. bal de sua identidade individual
-a primeira pessoa do singular -
Dito de outra forma, o ci- ainda que, ao participarem des-
dadão é talhado pelos sistemas tas ações vivenciam, também,
de solidariedades típicos das ins- uma identidade coletiva. Isto
tituições modernas, ao mesmo porque, no seio da multidão, es-
tempo que se encontra incrustra- ta identidade coletiva é de natu-
do de tradições e subjetividade reza apenas gregária (quando
que completam seus sentimen- as ações são espontâneas de-
tos gregários mais profundos. mais), ou dotada de solidarieda-
Há, portanto, a convivência de de pontual e móvel (quando as
duas faces bem opostas nos com- ações são mais organizadas).
portamentos sociais de hoje e
que não se anulam uma à outra: Entretanto, o que de fato
a adequação às normas e a trans- pesa é a dimensão de si-próprio;
gressão frequente (às vezes até esta se apresenta como mais per-
sistemática) das mesmas. Ade- manente e mantém o ator enga-
mais, parece necessário lembrar jado com sua motivação, com
que, no mundo onde a mobilida- suas justificativas e com sua ca-
de rápida e as comunicações de pacidade de agir. Para ilustrar
massa enfraquecem as fronteiras esta questão, vale a pena mencio-
materiais ou simbólicas, há a di- nar que, no registro das reporta-
fusão de valores e de referên- gens estudadas, os participantes
cias de vida - pluralistas e sem dos eventos recorrem, principal-
rigidez -que englobam uma re- mente, à primeira pessoa do sin-
alidade um pouco difícil de apri- gular para se expressar: eu que-

Cad. CRH., Salvador, n.21. p.90-101, jul./dez.l994


ro, eu vim, eu devo, eu posso, tura a ação dos participantes
eu preciso, estou cheio, se não nesses eventos é o risco (Gid-
for assim... então eu... E mes- dens, 1993, Crespi, 1992 e Me-
mo quando ele (ou ela) se refere lucci, 1989). Qualquer que seja
a um grupo, 6 sempre em relação o tipo da ação, ela expõe seu
a si-próprio: minha família, agente a um grande risco; mas,
meus filhos, meus vizinhos, aque- do ponto de vista dos envolvi-
les com quem estou agora, etc. dos, ele não é mais penoso que
a frustração, o sentimento de
Pode-se dizer que a indivi- fraqueza ou as privações sofri-
dualização expressa por estes das na sociedade. Ademais, no
excluídos segue a tendência ge- Brasil, o sentido do risco moder-
ral daquilo que define os movi- na extrapola o âmbito da incerte-
mentos sociais contemporâneos za criada por não se poder viver
(Melucci, 1989). Ela não diz res- de forma regular (o trabalho, a
peito à retomada de um indivi- família, o bairro, o bem-estar),
dualismo no seu sentido mais porque, de toda forma, a vida
clássico, ou àquele apregoado estável e previsível não é acessí-
pelos neo-conservadores. Ao vel a todos.
contrário, neste contexto, a indi-
vidualização se distancia de uma A incerteza ocupa um lu-
perspectiva histórica tal qual gar particular na cultura políti-
aquela que buscava construir a ca brasileira e isto se expressa
nação moderna e o progresso tanto no modo de vida como
em torno de um indivíduo-cida- na relação dos atores com as ins-
dão muito abstrato; ou, mesmo, tituições. O papel da lei, a garan-
de retornar aos valores conserva- tia dos direitos do cidadão, a vi-
dores de um passado como tem gilância deste pelo Estado, a re-
sido o apelo da nova-direita. ciprocidade de confiança entre
o desempenho da comunidade
Diferentemente, esta indi- política e as várias esferas da
vidualização (Giddens, 1993) se vida civil, assim como a contra-
aproxima de um tempo presen- partida dos benefícios para os
te, onde a idéia de um destino contribuintes de impostos (dire-
sem solução ou dotado de uma tos ou indiretos) foram sempre
fatalidade que enlaça os menos enormemente fluídos para todos
favorecidos, são refutados pelo os membros da sociedade. Pode-
sentimento de se ser capaz de se até mesmo dizer que têm si-
intervir no cotidiano -não o co- do frequentemente evasivos na
tidiano de todos, mas o meu, o tradição cívica do país.
seu. Associar-se a grupos, mani-
festações, quebra-quebras, gre- Num sentido mais abran-
ves ou linchamentos, torna-se gente, a própria democracia res-
uma atitude limitada não somen- tringe-se a uma rede institucio-
te àquele objetivo mais imedia- nal circunscrita àquilo que foi
to, mas, também, pelo fato de denominado de uma gigantesca
estar centrada em torno da pes- cultura da dissimulação (Santos,
soa. 1993). Isto é, a tendência a ne-
gar ou dissimular o conflito,
O outro aspecto que estru- quando o indivíduo deveria re-

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100 já existe na enunciação da lei. (Rawls, 1992). A que aqui se dis-
Eles buscam, sim, a justiça que cute está mais próxima, sim, de
se aplicará a eles e, em certas um tipo de desobediência civil
situações de risco extremo, bus-
cam esta parte de justiça a to- que permite propagar a rebelião
do preço. até mesmo com o recurso à vio-
lência; se a multidão assim o de-
Primeiro, eles se confron- sejar, esta poderá sempre encon-
tam com a autoridade da lei e trar uma justificativa de ordem
com a das instituições, toman-
do como causa não a idéia de moral (Morreall, 1991), capaz
democracia representativa e da de confrontar os princípios da
ordem institucional, mas a de lei ou até de procurar uma for-
uma democracia da inserção c ma de legitimar este ato rebelde.
do usufruto. Depois, a relação
entre o dever e o direito perde As relações de lealdade
para eles a sua dimensão de jus- para com os elementos visíveis
tiça, devido à distribuição desi-
gual do acesso às instituições de integração social são coloca-
responsáveis dentro do sistema. dos em questionamento no terre-
A justiça é, então, apropriada no político da vida cotidiana. Is-
pelos atores de forma a dispor, to produz novos significados so-
no campo da cultura política, bre aquilo que é aceitável ou
de larga margem de manobra,
onde eles possam situar seus in- não, vis-à-vis à justiça, à cida-
teresses e seus desejos, desestru- dania, etc.; tanto do ponto de
turando os limites da lei e as di- vista dos excluídos, quanto do
retrizes das normas. ponto de vista do resto da comu-
De certa forma, do ponto nidade, já que esta deve, o tem-
de vista da evolução das institui- po todo, conviver com as con-
ções modernas, esta curiosa si- frontações colocadas pelas fre-
tuação parece alterar os proces- quentes transgressões das ações
sos acordados, através dos quais coletivas diretas.
se fazem os jogos de pressão
dos grupos, das classes, dos par- No presente contexto da
tidos políticos, das associações ordem social, pode-se dizer que
civis, tanto por meio dos lobbys o conteúdo formal da socieda-
como das redes do clientelismo de normativa c de seus sistemas
político mais tradicional. está continuamente submetido
às pressões (talvez às mudan-
Esta situação se enquadra ças) dos códigos de vida social,
melhor numa perspectiva de de- expressos pelas atitudes c pelos
sobediência civil, mas não aque- comportamentos dos atores que
la que se restringe a comporta- protestam e que percebem, atra-
mentos disciplinados constitucio- vés de suas experiências de vi-
nalmente e não-violentos, isto da, a sua capacidade de agir so-
é "desobedecer dentro da lei" bre a realidade que os cerca.

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