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A
projeção externa do Brasil cresceu e Nenhum país, por mais poderoso que seja e
consolidou-se nos últimos quinze anos, mais globalizada a sua economia, pode deixar
com a natural ampliação de sua agenda de dar atenção à sua vizinhança por razões de
externa, tanto econômica como política, e com parceria comercial, mas, sobretudo, por uma
uma atuação mais desinibida. questão de exigência política. Somente desse
A crescente projeção externa do Brasil não modo será capaz de acompanhar e entender
seria possível sem a estabilização da economia e as transformações regionais que afetam seus
a continuidade da política econômica. Do ângulo interesses. É o que mostram o exemplo dos
político, ajudou também o fato de um candidato EUA com relação ao México e ao Canadá, na
do Partido dos Trabalhadores (PT ), percebido América do Norte, e o da China com sua vi-
inicialmente como radical, ter sido eleito para zinhança asiática.
a presidência do Brasil e ter-se revelado um O presente artigo desdobra-se em dois seg-
moderado. Lula demonstrou que a esquerda por mentos: descrição e análise da atual política exter-
ele representada, eleita democraticamente, pode na para a América do Sul na esfera bilateral e no
ser uma alternativa ao populismo de esquerda contexto do processo de integração regional e, por
para os países da América do Sul. fim, exame da posição do governo brasileiro em
A multiplicação dos exemplos de presença e relação ao ingresso da Venezuela no Mercosul.
da ação do Brasil mostra que a atuação brasileira Como a atual política externa está lidando
transcende significativamente o âmbito regional. com a América do Sul no contexto mais geral
O fato de se estar transformando num ator de suas prioridades externas? Qual o contexto
global não deve fazer com que o Brasil descuide regional em que os países, inclusive o Brasil, se
do seu entorno geográfico. A América do Sul movimentam? De que forma o Brasil vê a inte-
– descrição geográfica mais apropriada do ponto gração regional? Que fatores, inclusive ideoló-
de vista dos interesses brasileiros do que Améri- gicos, condicionam essa visão? Em que medida
ca Latina, denominação com viés mais político e sob que condições o ingresso da Venezuela
– representa o espaço territorial onde o peso es- no Mercosul, a ser examinado neste semestre
pecífico do Brasil é preponderante sob qualquer pelo Congresso, seria não apenas justificável
critério, seja o território, a população, os recursos mas também favorável à integração regional?
naturais, a indústria ou o avanço tecnológico. O respeito à cláusula democrática do Merco-
sul deveria ser ou não uma condição prévia da
rubens barbosa foi coordenador nacional do Mer-
admissão da Venezuela?
cosul (1990-1994) e ex-Embaixador junto a ALADI, Política externa não se faz no vácuo e deve
Londres e Washington. sempre levar em consideração as circunstân-
A
ideologização das decisões e a politiza- no geográfico.
ção das negociações comerciais, carac- A prioridade declarada pela região e pela
terísticas que moldam as prioridades integração regional é uma das três principais
da política externa do atual governo, também linhas de atuação do Itamaraty nos dois go-
se refletem na ação diplomática do Itamaraty vernos Lula (sendo as outras a busca de um
na América do Sul. assento permanente no Conselho de Segurança
O mapa político e o cenário econômico na das Nações Unidas e as negociações comerciais
América do Sul estão sob profundas transfor- multilaterais da Organização Mundial de Co-
mações. A emergência de movimentos sociais, mércio no âmbito da Rodada de Doha).
do poder indígena e de novas lideranças fez res- O discurso oficial proclama a América do Sul
surgir como foco principal um acentuado apelo como a primeira preocupação da política externa
popular nacionalista, antiglobalizante e de forte e não se cansa de repetir que nunca na história do
viés antiamericano, cujo epicentro são os países Brasil o relacionamento com os países da região
andinos, especialmente a Bolívia, o Equador e foi tão próximo e tão positivo, não só em termos
a Venezuela. Esse fenômeno político se dá no de relação bilateral como também em termos de
quadro de sociedades que se caracterizam por integração regional, em especial no Mercosul.
níveis elevados de pobreza e desigualdade e de No inicio do primeiro mandato, o atual go-
economias que se vêem beneficiadas pela explo- verno procurou atuar de forma proativa, não es-
são dos preços internacionais das suas poucas condendo sua intenção de exercer uma liderança
commodities de exportação, ensejando processos efetiva, base para uma estratégia de poder regio-
de estatização dos recursos naturais e polariza- nal, que projetaria o país no exterior. Em virtude
ção política interna. Os efeitos ideológicos do da reação negativa que essa atitude despertou na
fenômeno político em questão transbordam as vizinhança e do ativismo cada vez mais incômo-
fronteiras dos países mencionados. do de Chávez, o governo brasileiro modificou
A esse ingrediente somam-se outros, na re- seu discurso público, sem, no entanto, abando-
definição dos cenários em que opera a política nar o papel protagônico da política externa sul-
externa brasileira na América do Sul. A presença americana. Agora, apresenta-se como um fator
da China, a expansão dos laços econômico-co- de equilíbrio e moderação para a região.
merciais dos países sul-americanos do lado do Cabe registrar algumas das principais mu-
Pacífico com os países asiáticos e a forma pela danças ocorridas na política externa do Brasil
qual está evoluindo o relacionamento dos países na região em relação aos governos anteriores.
da região com os Eua são desafios adicionais para
os formuladores da política externa brasileira. Criação de canal paralelo à relação
Como está o governo brasileiro reagindo a institucional entre governos
essas transformações e qual a política que vem
sendo desenvolvida em relação a seus vizinhos Ao lado do contato regular do Itamaraty com
geográficos? os governos do nosso entorno geográfico, foi
De modo geral, a política externa do atual estabelecida uma relação oficiosa entre o PT
governo para a região não trouxe inovações, e os partidos de esquerda, no governo ou na
A
o procedermos a uma análise crítica da mente se fará sentir nos próximos anos.
política externa do Brasil na região, in- O Brasil não parece estar captando correta-
dependentemente da falta de consenso mente o significado das transformações políti-
A
atual política externa pretende que o lítica externa do governo do PT e é a base da
Brasil, sendo o maior e mais rico país estratégia visando a fortalecer uma união polí-
da região, tome a dianteira nas políticas tica e econômica da América do Sul.
de integração, faça concessões aos países me- A novidade, no atual governo, reside no fato
nores e assuma a responsabilidade de reduzir de que o fortalecimento do Mercosul está no
as assimetrias estruturais existentes, difíceis de centro de uma visão geopolítica segundo a qual
serem superadas. O fundo cogitado para ini- o Brasil deve atuar no sentido de influir para
ciativas dessa natureza – o Focem – represen- evitar a vinculação da região aos interesses es-
ta menos de 1% do PIB do Mercosul, sendo, tratégicos dos Eua e favorecer a gradual evolu-
portanto, relativamente ineficaz para corrigir ção de um sistema internacional unipolar, tendo
os problemas identificados, sobretudo quando os eua como única potência hegemônica, para
o sentido imprimido a essas ações governamen- um sistema multipolar. A retórica oficial ajuda a
tais leva pouco em conta tendências de mercado melhor entender essa visão, quando afirma que
e orientações da economia privada. o Brasil quer transformar a geografia econômica
O presidente Lula resumiu, durante a última do mundo e mudar o eixo comercial brasileiro
reunião de presidentes do Mercosul em Mon- das regiões americana e européia (hoje nossos
tevidéu, em dezembro de 2007, as frustrações principais parceiros comerciais), para a Ásia e
do governo brasileiro com a lentidão no pro- em direção aos países em desenvolvimento em
cesso de tomada de decisões e com as razões geral, ou seja, fazer a opção Sul–Sul.
alegadas para as dificuldades por que passa o A verdade, contudo, é que, passados dezessete
Mercosul. Com propriedade e concordando anos desde a criação do Mercosul pelo Tratado de
com os críticos do funcionamento das institui- Assunção e depois de muito esforço negociador,
ções do Mercosul, Lula disse que “o Mercosul o processo de integração regional, do ponto de
tem inimigos internos e externos”. “Os inimi- vista institucional, está abalado e sem perspectiva.
gos internos”, continuou, “são o corpo técnico A agenda negociadora interna está paralisada e os
e burocrático; dentro de nossos governos, de países-membros não demonstram possuir qual-
nossas burocracias, há gente que não assimila quer estratégia para superar essa crise.
o Mercosul”. Por isso, agregou, “a vontade polí- O seguido descumprimento do Tratado pe-
tica deve prevalecer sobre as decisões técnicas”. los países-membros e a gradual ampliação do
Nesse contexto, mencionou as decisões de in- comércio administrado com acordos de restri-
vestimento adotadas na Bolívia e na Venezue- ção voluntária, negociados por diversos seto-
la, que não tinham apoio técnico da Petrobrás. res empresariais, criam paulatinamente maiores
“Os inimigos externos são os que sonham em obstáculos para a expansão mais rápida do li-
vender tudo para os Eua e a União Européia”, vre-comércio e fazem aumentar a insegurança
afirmou com certo exagero e imprecisão. Disse jurídica, sobretudo para os investimentos. De-
mais: “a lentidão do avanço do Mercosul não cisões recentes, como o eventual ingresso da
é culpa dos Eua, da Alemanha ou do Japão, é Venezuela, deverão ter impacto sobre a futura
culpa nossa de não tomarmos as decisões que dinâmica do Mercosul. O crescimento do in-
temos de tomar ”. “Se não avançamos mais, a tercâmbio comercial dentro do Mercosul, que
culpa é eminentemente nossa.” alcançou nível recorde em 2007, não é suficien-
Em que pesem as ressalvas do presidente te para superar as contradições do processo de
Lula, o discurso oficial registra a grande in- integração sub-regional.
A
de integração comercial. Venezuela, em outubro de 2005, soli-
Senão vejamos: citou formalmente sua inclusão como
• Argentina e Uruguai estão às turras por membro pleno do Mercosul e, em
conta da instalação de duas fábricas de pa- dezembro, os países-membros assinaram um
pel e celulose na fronteira dos dois países; acordo-marco nesse sentido. Em julho de 2006,
• A Venezuela já saiu formalmente da Comuni- foi assinado o Protocolo de Adesão, que deve-
dade Andina de Nações; Bolívia e Venezuela rá entrar em vigor após sua aprovação pelos
protestaram fortemente contra a assinatura de Congressos dos quatro países-membros e pelo
um acordo de livre-comércio entre a Colôm- Congresso venezuelano. Os Congressos da Ve-
bia e o Peru com os EUA ; nezuela, Argentina e Uruguai já aprovaram o
• o Presidente da Venezuela, Hugo Chávez, referido Protocolo. Brasil e Paraguai ainda não
engajou-se numa escalada verbal contra o completaram o processo de ratificação.
México, a Colômbia e o Peru, além de man- O ingresso da Venezuela como membro
ter disputa de fronteira com a Guiana; pleno poderá modificar a lógica do processo
• a Bolívia nacionalizou – sem que nenhum de integração, assim como enfraquecer o eixo
vizinho manifestasse solidariedade ao Brasil Brasil–Argentina. A decisão, tomada mais por
– recursos petrolíferos do país, expropriando considerações políticas do que econômicas e
os ativos da Petrobrás e colocando em ris- comerciais, se levada a cabo da forma como
co, pelo aumento do preço, o fornecimento prescreve o Tratado de Assunção, ampliará em
de gás natural à indústria e aos automóveis 14% o PIB do Mercosul e reforçará a posição
brasileiros; dos países-membros no campo energético. A
• Peru e Chile continuam na disputa sobre os Venezuela não mudará o perfil econômico do
limites do respectivo mar territorial; Mercosul, mas passará a influir nas agendas te-
• a invasão de território do Equador pela máticas e setoriais.
Colômbia para o combate a guerrilheiros Do ponto de vista do interesse nacional, é
da Farc provocou grave crise diplomática positiva a inclusão no Mercosul de um país com
entre esses países, com o rompimento das um grande mercado para os produtos e serviços
relações por parte do Equador. A Venezue- brasileiros como a Venezuela. O intercâmbio
la agravou a situação ameaçando intervir comercial bilateral está crescendo, tendo alcan-
militarmente. çado mais de us$ 4,5 bilhões em 2007, com um
O Brasil pouco fez para tentar impedir o superávit brasileiro de cerca de us$ 4 bilhões. O
crescente distanciamento entre o Norte e o Sul Brasil ocupa hoje um lugar de destaque como
L
tica. Dessa maneira, a Venezuela já está obri- evando em conta esse quadro regional, não
gada a cumprir os compromissos inscritos no seria exagero concluir que todo o esforço
referido protocolo e não caberia ao Congresso diplomático brasileiro dos últimos vinte
Nacional colocá-los como condição de ingres- anos foi prejudicado e levará tempo para que a
so. Os países-membros do Mercosul é que de- influência brasileira e os ressentimentos genera-
vem julgar se os princípios democráticos estão lizados contra o Brasil sejam superados.
sendo seguidos na Venezuela. Claramente não Torna-se assim urgente a despolitização da
há vontade política suficiente para condená-la política externa para a região e a discussão de
por esse critério entre os países-membros. Basta uma agenda brasileira para o futuro no sentido
lembrar a declaração do presidente Lula de que de assegurar a efetiva defesa do interesse nacio-
na Venezuela, se problema há, é excesso e não nal na América do Sul, em meio a um mundo
falta de democracia. em mutação.