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Universidade de Fortaleza
Fortaleza
2006
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Fortaleza
2006
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________________________________________
Prof.ª Dr.ª Gabriela Reinaldo (orientadora)
_________________________________________
Prof.ª Dr.ª Geísa Matos
_________________________________________
Prof. Ms. Ronaldo Salgado
4
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, sobretudo a minha mãe, por sempre ter investido e
acreditado em mim e no meu potencial, incansavelmente.
Ao Ismael, por ter me falado do Gonzo ainda em 2003, quando eu
nem supunha a sua existência; por ter me apresentado ao trabalho do Wesdley
– essencial para o meu encanto e planejamento de novas discussões acerca
da temática –; e por ser minha companhia mais freqüente nesta árdua, porém
encantadora e prazerosa jornada.
A Gabi, que abraçou a minha idéia com empolgação desde o início,
confiando em mim e me deixando à vontade para construir este trabalho. A ela
agradeço igualmente o fato de ter me dado dicas incríveis de leituras, e de ter
aberto minha mente para novas percepções – ao longo não apenas deste
semestre, mas de boa parte da minha graduação.
Ao Xico Sá, pela divertida entrevista que me concedeu, tendo em
vista a confecção desta monografia, e por me fazer acreditar em um jornalismo
senão melhor, mais divertido.
Ao Ronaldo Bressane, redator-chefe da Revista Trip, e a Mariana
Pinheiro, da Trip Editora, que me disponibilizaram com agilidade e simpatia as
reportagens de Xico Sá na íntegra, assim com exemplares antigos da revista.
Ao Carlus, pelas fantásticas ilustrações, que ajudaram a dar cor aos
meus escritos.
6
RESUMO
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................08
1. Jornalismo Gonzo........................................................................................11
1.1 – Pré-concepção: o New Journalism...........................................................11
1.1.2 – Criatura e Criadores: Wolfe, Breslin, Capote, Talese... ........................13
1.2 – É chegada a hora do Gonzo.....................................................................19
1.2.1 – O iconoclasta: Hunter S. Thompson..................................................... 24
1.3 – E o Brasil com isso?.................................................................................27
1.3.1 – Arthur Veríssimo e o caso Trip..............................................................30
1.3.2 – A Irmandade Raoul Duke.......................................................................31
2. Jornalismo e Literatura...............................................................................34
2.1 – Subjetividade versus Objetividade............................................................43
2.2 – Apuração Participativa..............................................................................47
2.3 – Amplitude de vozes: alas para o discurso polifônico................................50
2.4 – Crônica: o híbrido perfeito?.......................................................................53
2.5 – Revistas, magazines, semanários e suplementos: suportes possíveis?..57
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................86
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................88
ANEXOS............................................................................................................91
8
INTRODUÇÃO
1. Jornalismo Gonzo
1
Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/monogonzo01.html>.
Acesso em: 27 de novembro de 2006.
13
jornalistas criaram o hábito de se inserir naquele universo que, logo mais, eles
iriam retratar em suas reportagens.
Esse coro por parte dos críticos, no entanto, não se sustentou por
muito tempo. Já naquele ano de 1966, um jornalista free-lancer controverso do
Kentucky, chamado Hunter S. Thompson, despontava com Hell’s Angels:
medo e delírio sobre duas rodas, livro sobre o dia-a-dia de motoqueiros
arruaceiros da Califórnia; e Truman Capote lançava o livro A Sangue Frio, uma
compilação de reportagens sobre o assassinato de uma rica família do Kansas,
que originalmente foram publicadas na revista The New Yorker.
O sucesso de ambos os livros, escritos por autores desprestigiados
na época e nos moldes do Novo Jornalismo – Truman conviveu cinco anos
com os dois assassinos e fez um extenso trabalho de pesquisa, enquanto
Thompson viajou dezoito meses com sua trupe –, foi a deixa para que todos,
enfim, se rendessem aquilo que Capote passou a chamar de “romance de não-
ficção”, e que um colega de Thompson, mais adiante, cunhou de Gonzo
Jornalismo – movimento que iremos abordar na seqüência.
Truman Capote, na verdade, é considerado um dos grandes
expoentes do Novo Jornalismo. Talvez por sua personalidade egocêntrica e
instigante, e por sua extrema habilidade descritiva ele seja, até os dias atuais,
um dos jornalistas mais lembrados do período. Sua versatilidade e seu trânsito
por diversos estilos de reportagem são fáceis de serem observados.
Em 1956, por exemplo, ele descortinou a imagem de Marlon Brando
em uma das mais ousadas e emblemáticas entrevistas da história, feita com o
astro em seu quarto de hotel em Kyoto, enquanto Brando filmava Sayonara.
Gay Talese é outro nome digno de ser destacado neste rol. Wolfe
confessa seu estado de choque ao se deparar, em 1962, com uma das
reportagens que ele fez para a revista Esquire, sobre um boxeador em fim de
carreira, cujo título é Joe Louis: o Rei na meia-idade.
18
I don't know what the fuck you're doing, but you've changed
everything. It's totally gonzo [Eu não sei que porra você está
fazendo, mas você mudou tudo. É totalmente gonzo] (Carol
apud Othitis, 1994).
2
Disponível em: < http://www.gonzo.org/articles/lit/esstwo.html >. Acesso em: 28 de novembro
de 2006.
21
duas rodas. Mas para, igualmente sob o efeito de entorpecentes, se ater à vida
dos demais drogados e viciados em jogo que se aglomeravam nas
proximidades da competição, nos cassinos, bares, boates e ruas do Estado
americano.
A reportagem, originalmente feita para a revista Sports Illustraded, é
recusada. No entanto, em 1971, a Rolling Stones a publica na íntegra, em
duas edições. Sob o pseudônimo de Raoul Duke, Medo e Delírio em Las
Vegas: Uma Jornada Selvagem ao Coração do Sonho Americano, logo viraria
livro e Hunter passaria a utilizar com mais freqüência a tal alcunha, que ficou
famosa.
Fato ou ficção? Realidade ou despretensiosos devaneios? O que era
e qual foi a verdadeira intenção do tal Gonzo ao desconstruir audaciosamente
regras pré-estabelecidas há séculos pelo jornalismo – desde a escolha das
pautas a confecção de reportagens, artigos, livros?
Para começar, é importante deixar claro que “em essência, o gonzo-
jornalismo caracteriza-se pela ausência de regras rígidas” (Idem, Ibidem: 8).
Partindo deste pressuposto, o próprio autor da afirmação acima continua o
processo de conceituação ao lembrar que um dos grandes e principais
entraves que Thompson sempre encontrou na maneira convencional de fazer
jornalismo foi o outrora intocável “ideal de objetividade”.
Vasconcelos faz questão de registrar que, para Thompson, muito
mais interessante do que supostamente incitar um clima de confiança entre o
meio de comunicação e o leitor por meio de uma questionável isenção, era se
fazer presente em toda a narrativa. Ou melhor, deixar isso bem claro para o
leitor que, ao final, teria a chance, ele mesmo, de fazer seu juízo de valor.
3
Disponível em: < http://eprint.uq.edu.au/archive/00000776/01/mhirst_gonzo.pdf>. Acesso em:
27 de novembro de 2006.
25
4
Disponível em: < http://flashself.blogspot.com/>. Acesso em: 27 de novembro de 2006.
29
5
Disponível em: < http://planeta.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/home3.html >. Acesso
em: 27 de novembro de 2006.
32
6
Disponível em < http://paginas.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/filo.html >. Acesso em: 28
de novembro de 2006.
7
Autor da monografia de conclusão de curso intitulada: Gonzo – O Filho Bastardo do New
Journalism, que citamos ao longo deste trabalho.
8
Disponível em: < http://paginas.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/fgts.html >. Acesso em:
28 de novembro de 2006.
33
2. Jornalismo e Literatura
Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de
fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de
distante, e que se distancia ainda mais. [....] Uma experiência
quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e
desse ângulo de observação. É a experiência de que narrar
está em vias de extinção. São cada vez mais raras as
pessoas que sabem narrar devidamente –
Walter Benjamin
E agora, José? –
Carlos Drummond de Andrade
é assaz pertinente: até que ponto esse conceito pode ser levado a cabo? Isto
é, a objetividade no jornalismo deve mesmo carregar um pretensioso e
limitador “status de verdade tácita”, como nomeia Medina (1988: 20), ao tratar
das amarras que o título impõe?
Já que partimos do pressuposto de que para construir narrativas
mais aprofundadas e prazerosas é preciso fazer um melhor uso de recursos
literários, acreditamos ser pertinente debater esse conceito, tão duvidoso e
controverso quanto aquele que norteia os dilemas entre os gêneros jornalismo
e literatura.
Medina lembra que “como o repórter está sujeito a uma observação
perceptiva pouco objetiva, a única solução teórica é pregar certos cuidados
técnicos” (Idem, Ibidem, 20). No entanto, é ela mesma, mais à frente, que
adverte:
ação narrada. Para ela, essas quebras de estilo são violentas e acabam muitas
vezes por aniquilar o produto final (Idem, 1988: 117).
O uso convencionado da terceira pessoa também é posto em xeque
por Cremilda Medina, já que esse tempo verbal – que pretende partir de um
olhar distanciado, onipresente e onisciente – seria insuficiente para reger uma
boa narração. Sem falar que, em determinadas situações, ele se tornaria até
mesmo entediante. “A terceira pessoa ‘objetiva’ lhes é cômoda e corresponde
à expectativa oficial, inclusive da maioria das empresas jornalísticas que
alegam ser este o ponto-de-vista mais legível” (Idem, 1989: 417).
A respeito do importante papel a desempenhar do narrador, Vargas
Llosa, por sua vez, sustenta que a escolha do local onde se colocar (dentro da
história, fora dela ou numa posição incerta) irá determinar igualmente as
condições a que o mesmo terá que se sujeitar na hora de narrar, “o
desrespeito às quais acarretando um efeito lesivo, destruidor, sobre o poder de
persuasão” (Llosa, 2006: 73). Poder de persuasão que, para Llosa, é uma das
molas-mestras da atividade romanesca e, por que não, da atividade jornalística
– já que esta trabalha mais diretamente com uma suposta realidade verificável.
De fato, ao pensarmos sobre a obrigatoriedade de uma construção
que se diz objetiva e impessoal, não podemos fugir de outros e relevantes
pormenores. Nanami Sato percorre todo o caminho da representação (ou
substituição) do real – feita no jornalismo por meio de signos lingüísticos - para
chegar à conclusão de que essa mesma representação, por si só, já se mostra
bastante complexa, ao contrário do que se pode crer.
Diz ela que, mesmo quando se objetiva a mera representação, é
impossível prever, em decorrência da subjetividade inerente a cada indivíduo,
como o resultado irá atingir diferentes outros receptores. O uso da terceira
pessoa, para ela, também não é menos complicado, já que ele desestabilizaria
o ideal de objetividade por “introduzir tempos diferentes, o do mundo narrado e
o presente da narração” (Sato, 2005: 42).
E mais: essas amarras da objetividade, segundo Sato, quando mal
executadas, ainda correriam o grave risco de resvalar em um percurso
indesejado pelo jornalista.
46
Para encerrar por ora o tópico, nos resta tecer alguns breves
comentários a respeito desta investigação. Como supracitado, embora
admitamos que o fazer jornalístico pressupõe certa dose de pragmatismo
técnico, mesmo assim fica claro que nem por isso as narrativas devem vir
permeadas de restrições impositivas, que nada mais fazem do que podar a
criatividade do repórter ao pregar retrógradas fórmulas feitas.
Fica claro igualmente, por conseguinte, a inexistência de uma única
e objetiva verdade, que deverá ser dita de uma exclusiva e correta maneira. Ao
47
sua ênfase” (Idem, Ibidem: 196). E isso se faz especial por que serão
justamente esses personagens advindos da realidade que darão sustentação à
narrativa. De nada adiantará atingir o ápice no uso de elementos estéticos, se
depois a parcela de humano não possuir consistência.
Nos textos polifônicos, cujo processo de comunicação é interativo,
como prega o dialogismo, o autor consegue a façanha de se ver e se
reconhecer no outro e na imagem que o outro faz dele. Tudo isso, segundo
Bezerra, visa a conhecer o homem em sua verdadeira essência como um outro
“eu” único, infinito e inacabável. O diálogo aqui deve acontecer,
impreterivelmente, em pé de igualdade e, mais uma vez, só se atinge tal
nivelamento com muita entrega e dedicação por parte do mediador.
Colocando mais lenha na fogueira, Cristovão Tezza, em ensaio sobre
prosa e poesia em Bakhtin, indaga em que sentido é válido aceitar que um
prosador abdicará de sua autoridade assim tão altruisticamente para dar vez ao
outro. Para ele, isso ocorre porque
Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a
prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e
situações que, azar dele, criou porque quis. –
Vinicius de Moraes
Gerson Tenório dos Santos9, por sua vez, diz que esse tom de
conversa irá se acentuar na história a partir de João do Rio, que é quando a
crônica se torna igualmente mais literária. Para ele, por fazer referência ao
mundo oral, a crônica deve ser classificada como um gênero primário. Nada,
todavia, que comprometa o seu caráter híbrido.
9
Artigo apresentado durante o X Congresso Internacional da Associação Brasileira de
Literatura Comparada (Abralic), que aconteceu no período de 31 de julho a 4 de agosto de
2006, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Uerj).
57
10
Entrevista com o jornalista. Ver Anexo VIII.
63
11
Segundo o próprio Xico Sá, em entrevista concedida para esta monografia (Ver Anexos), O Carapuceiro
era um jornal satírico, de crônica de costumes, que existiu no século XVIII, no Recife. Ele era feito por um
padre beneditino e anarquista chamado Lopes Gama e apelidado de O Carapuceiro. Ele dizia: “escrevo e
quem quiser que bote a carapuça”. Disponível em: < http://www.carapuceiro.zip.net >. Acesso em: 30 de
novembro de 2006.
12
Disponível em: < http://www.nominimo.com.br >. Acesso em: 30 de novembro de 2006.
65
O Rei está tão serelepe, sem “nóias”, agora até canta, como no show do
navio, um “Negro Gato”, música banida por conta do TOC — nada escuro
podia. Canta e comenta. Já, já, insinua, vão rolar os versos “e de que tudo
mais vá pro inferno”, outro sucesso ainda proibidão pelas forças estranhas
e internas. O Rei ri à toa. Anuncia que, depois de 25 anos, vai voltar a
comer carne vermelha. “Só comi, nesse tempo todo, o que nada ou o que
balança com o vento”, fala, espero que sobre peixes e folhas –
Xico Sá
13
Reportagem publicada em março de 2006 na Revista Trip com título “Roberto marinho”. Ver Anexo I.
67
14
A reportagem intitulada Jornal Nacional , segue a mesma linha de
Roberto marinho. Ela, na verdade, é outro forte exemplo de que um tema de
contornos polêmicos, relevantes e de interesse público, não tem,
necessariamente, que se acorrentar às regras da objetividade e
impessoalidade para permanecer confiável. Logo no abre da narrativa, o editor
de Trip faz uma advertência:
14
Reportagem publicada na edição 135 de Trip, de agosto de 2005. Ver anexo II.
70
filme “O homem que sabia demais” (The Man Who Knew Too
Much, 1956), de Alfred Hitchcock. “Nao é piada, é sério
mesmo”, alertou.
A crise viaja.
Zé Dirceu, já na pele de um simples deputado, vai para São
Paulo, onde se notabilizou por montar o que era chamado na
Assembléia Legislativa de “máquina de denúncias”. Nunca um
gabinete parlamentar denunciou tantos casos de corrupção,
principalmente contra o governo Quércia (1987-91), como o
do petista que agora se vê na condição de caça.
O ar de Brasília está menos punk, embora a gente ainda sinta
o cheiro do ralo.
15
Publicada na edição 137 de Trip, de outubro de 2005. Ver Anexo III.
74
Na boate, ele não encontra Jeany Mary. Por isso, o primeiro diálogo
se dá entre ele e uma das moças, Vanessa, que lá trabalhava.
Cadê tua patroa? “Ah, sumiu, também com essa injustiça toda
contra ela, nome falado na CPI e tudo o mais”, diz,
compassadamente, a gazela. A mulher-esquina está em São
Paulo a essa altura, para escapar do assédio da clientela VIP
que tenta, desesperadamente, apagar o nome da sua valiosa
lista. Antes a cassação do mandato e um linchamento público
do que as garras de uma mulher em fúria no lar doce lar de
outrora.
[....]
Vamos ligar pra ela, sugiro a Vanessa, com quem conversei
sobre o que acabei de pôr aqui na página. A danada pede
metade do seu programa (R$ 150) para me ajudar no
telefonema caça-patroa. Fico em dúvida entre dar uma meia-
foda ou fazer jornalismo-verdade.
Pelo ofício, tudo.
Xico também fala um pouco sobre a crise por que passava a prostituição
em Brasília neste momento particular – já que as tais denúncias e o medo de
ser descoberto vinham afastando os clientes dos programas; assim como
menciona algumas peculiaridades da era Viagra, e como ela teria afetado o
funcionamento dos programas na cidade sem esquinas. E mais: não poupa, de
maneira alguma, os nomes dos envolvidos, citados pelas garotas:
16
Entrevista publicada em junho de 2006. Ver Anexo IV.
78
17
Reportagem publicada na edição 86 de Trip. Ver Anexo V.
80
seu texto, cuida para que ele receba também o suporte de fatos que se
assemelham a ele, em quaisquer sentido que seja, como em “Recife ensaiava
seus passos de Seattle do Quarto Mundo” ou “À moda de Salinger (Para Cima
com a Viga, Moçada), começou a desentupir as veias da Amsterdã das
Américas”. Tudo se transforma em informação; só que apresentada ao leitor de
forma diversa, menos óbvia e objetiva. O jornalismo aqui, pode-se dizer, abre
espaço para a literatura e para a interpretação individual. E o faz com
sabedoria, calculadamente.
Pormenores do acidente também surgem como numa reconstrução
daquele dia em que “o homem-caranguejo deu um pitu na vida - o mesmo que
‘dar um perdido’ no dicionário dos paulistas - e deixou este mundo”. Aqui,
igualmente, notamos o cuidado com o conteúdo informativo. E mais: Xico e
Renato conseguem imprimir à narrativa emotividade, sem que para isso
recorram a depoimentos excessivamente melodramáticos e sensacionalistas.
Qualquer bom dia, boa tarde, boa noite ou "como vai" vira
uma malandragem distorcida ou um galope trance no
pandeiro imaginário que Otto carrega pra tudo que é lugar
desse mundo. ...O samba-rave, meu irmão.
O galego cosmopolita de Belo Jardim, cidade do agreste
pernambucano, tira música de tudo: chacoalham umas
moedas no bolso e lá vem um xote eletrônico, o vento mexe
nas panelas e tome polca de primeira, um bêbado sem-teto
entra num boteco e dá-lhe um fraseado de repente.
18
Resenha publicada na edição 68 de Trip, versão online, de fevereiro de 1999. Disponível em:
< http://revistatrip.uol.com.br//redirect.php?link=http://www.trip.com.br/68/ottomano/home.htm >.
Acesso em: 3 de dezembro de 2006. Ver Anexo VI.
19
Reportagem publicada na edição 89 de Trip, de maio de 2001. Ver Anexo VII.
83
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTERNET
HIRST, Martin. What is gonzo? The etymology of an urban lengend.
Disponível em:
<http://eprint.uq.edu.au/archive/00000776/01/mhirst_gonzo.pdf>. Acesso em:
27 de novembro de 2006.
OTHITIS, Christine. The beginnings and concept of gonzo journalism.
Disponível em: <http://www.gonzo.org/articles/lit/esstwo.html>. Acesso em: 28
de novembro de 2006.
MONOGRAFIAS
ALVARES, Rodrigo O. Jornalismo Gonzo no Brasil. Porto Alegre, PUC-
RS/FAMECOS, 2004. Monografia de conclusão do curso de Jornalismo.
Disponível em: < http://flashself.blogspot.com/>. Acesso em: 27 de novembro
de 2006.
CZARNOBAI, André F. P. Gonzo: filho bastardo do new journalism. Porto
Alegre, UFRS, 2003. Monografia de conclusão do curso de Jornalismo.
Disponível em:
<http://paginas.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/monogonzo01.html>.
Acesso em: 27 de novembro de 2006.
VASCONCELOS, Wesdley da S. Delírio do verbo: o jornalismo gonzo e a
realidade alucinada. Fortaleza, UFC, 2003, 92 p. Monografia apresentada ao
Departamento de Comunicação Social como requisito para a obtenção do grau
de Bacharel em Comunicação Social.
91
ANEXOS
ÍNDICE:
Anexo I
Roberto marinho
Anexo II
Jornal Nacional
Anexo III
Programas de Governo
Anexo IV
Texto de Abertura da Entrevista com o rapper Sabotage
Anexo V
O Brasil de Chico
Anexo VI
O samba-rave, meu irmão
Anexo VII
Os limites do Paraíso
Anexo VIII
Entrevista com Xico Sá
92
ANEXO 1
Não adianta nem tentar... ou esquecer. O Rei está firme e cada vez mais à
vontade no trono. Livre do transtorno obsessivo que o prendia em um
assustador mundo azul, Roberto Carlos volta aos palcos bem mais feliz.
Para entender a quantas anda o coração de nossa majestade e os de seus
súditos, Trip embarca no Costa Victoria, o cruzeiro real que levou ao mar
o show de Robertão – lágrimas, Viagra e muito amor. Foram tantas
emoções...
O FILHO DA LAURA
Eu vivo esse momento lindo, mesmo ar leso de bobo da corte, que
importa! Jesus Cristo, eu estou aqui! O importante é que emoções...
Me belisca, dona Lady Laura. Sim, a mãe do Rei, que virou nome
dos seus iates, o I, o II e o III, está entre nós, aqui do lado. Ligo para a minha,
dona Maria do Socorro, em Juazeiro: “Meu filho...” Ela chora. Choramos o
Atlântico que se formou entre nós nesse tempo todo, o desatino da rapaziada e
de todos os migrantes de todos os mapas, como conta o velho e bom Werneck
que sabe das coisas. Essas recordações me matam, essas recordações me
matam...
“Amor só de mãe, Roberto?”, pergunto, aproveitando uma brecha
entre repórteres de TV e a marcação mais realista do que o Rei da produção
do “Emoções para Sempre em Alto Mar”, projeto que trouxe o ídolo a este
cruzeiro.
“Como?”, o Rei dá uma de desentendido.
“Amor... só de mãe, Roberto?” O Rei ri à beça.
“Bicho...”
93
HUMILDES SÚDITAS
Diante do Rei, não há menopausa. Todas voltam à velha e conhecida
TPM.
“Perdi pai, todos os homens que eu tinha, só me resta o Roberto”,
conta Maria da Penha, cinqüentenária – não adianta, não pergunto idade exata
de mulheres – que tenta furar o cerco dos seguranças e assessores para
entregar uma caixa enorme de presentes. “Artesanato alagoano”, relata o
conteúdo e chora ainda mais, desmancha-se, meu Deus, naifs-corações. Feitos
à mão.
Maria é empresária, bem de vida, dona de oficinas mecânicas e
retíficas em Maceió, é o próprio dilúvio. Conforto a viúva, num abraço
comovido. Sinto as suas lágrimas a deslizarem sobre as lentes verdes dos
meus óculos grandes que nem a terra há de comer enquanto não decifrarem
meu epitáfio.
“Te joga, rompe o cerco, te entrega, segura na mão de Deus e vai,
com presente e tudo”, dou uma de cupido. Ela ameaça, mas, a uns três metros
do obscuro objeto de desejo, freia; o gás azul e paralisante da emoção. “Me
abraça”, pede. Agarro de novo, mais forte ainda. O importante é que ereções
eu vivi. A vida é brega como uma carta de amor.
Pego o presente e levo quase aos pés do XXXXXXXXX de
Cachoeiro de Itapemirim. Os seguranças terminaram o percurso. O Rei, qual
sua capa pendurada, assistia a tudo e num dizia era nada.
E sexo, Roberto, pergunta um amigo.
“Sexo é importante!!!”, diz, solene, seco numa frase como um noir
americano. E uma nova e desabrida risada real, como quem acabou de praticar
o esporte lá na sua cabine, vizinha a do comandante.
Não tenho dúvida, cutuco outra gostosa afilhada de Balzac que se
encontra nas proximidades, o Rei acabou de, digamos, com o perdão às moças
de família, fuder. É incontestável o sorriso de quem acabou de cavalgar por
toda noite uma estrada colorida, usar beijos como açoite e dar um trato com a
mão mais atrevida... Sinto o cheiro de sexo. O rato do amor roeu as roupas do
Rei de Angra.
GENÉRICOS
Sósia – ”você acha que eu sou lóki?” – é o que não falta no cruzeiro
do real. Enquanto não esbarrava com o Rei de fato e de verdade, me diverti foi
com o Roberto Carlos de Penápolis, interior de São Paulo, eita peça, “figura”,
como se dizia no meu tempo... tempo de criança.
Se um outro cabeludo aparecer na sua rua, todo cuidado é pouco,
trata-se de Carlos Antonio Peres Rodrigues, 60, comerciante aposentado, “uma
brasa, mora?!” A diferença entre ele e o Rei de verdade é apenas no fim do
mês. O homem-carbono recebe bem menos, noves fora os gastos no cruzeiro.
Dona Maria Arlete, mulher do Rei-cover, mesma idade ou quase –
não insistam, não conto anos de mulheres — está morta de feliz. “Me sinto
como se fosse casada com Roberto Carlos, além de igualzinho é melhor
ainda”, ruboriza. Valeu a pena quebrar o porquinho das economias. O
importante é que emoções eu vivi.
Laura Mendonza, garçonete peruana entre os tripulantes filipinos,
italianos e brasileiros (quase todos professores de dança, animadores, ou seja,
96
BICHO SOLTO
97
ANEXO 2
Cobertura política não precisa ser maçante, como provou Mr. Hunter
Thompson em suas imersões pela Casa Branca. Em uma homenagem ao
finado mestre do jornalismo gonzo, trip despachou uma dupla insólita
para Brasília no dia mais quente da política brasileira dos últimos anos –
o dia da queda de Zé Dirceu. Apesar da linguagem ousada tanto em texto
como nas ilustrações exclusivas feitas in loco – milhas distantes do
formatão desgastado das revistas semanais e telejornais engravatados -,
tudo aqui é verdade, a exemplo do mais fino new journalism norte-
americano. Com vocês, direto da capital branca, o poder e suas tentações
Se você estiver meio loki, seja lá por qual motivo ou química, o táxi
vai correr na via expressa, saindo do aeroporto, e a sensação é a de que
acabou de pisar nos arrabaldes de Los Angeles. Com cheiro de deserto e tudo
nas narinas, umidade relativa do ar lá embaixo, você desliza no asfalto macio
até cair numa paisagem que lhe transporta, como num pesadelo dirigido por
David Lynch, para o cenário do “JN” narrado por William Bonner & Fátima
Bernardes.
Benvindo a Brasília, benvindo à Brasília que não passa no noticiário.
A bizarrice está apenas começando. “Boa noite”. À nossa direita, a torre. Que
já foi “suicidódromo” oficial da planície. Por falta de cumeeiras e janelas de
prédios residenciais mais altos, muita gente atirava-se lá dali de cima. Ceu
baixo, quase como chapéu de nuvens rasantes sobre a cabeça. “Toda a
plataforma, você não vê a torreeee”, é disso que fala a música de Renato
Russo, hino místico do filho da cidade.
Atravessamos a Esplanada do Ministério. Esse cheiro que você está
sentindo vem do ralo. Mais adiante, o Congresso. Esse cheiro vem do ralo. Ali
a Praça dos Três Poderes. O Palácio do Planalto. O ralo. Quarto andar deste
mesmo palacete. O todo-poderoso ministro da Casa Civil, José Dirceu, está
nervoso. Mas ainda no cargo. Em Brasília, 19 horas. 15 de julho de 2005. A
semana histórica e decisiva para o governo do “Sapo Barbudo” _como Lula era
visto por Leonel Brizola_ que virou Príncipe desse reinado. A semana mais
importante dos últimos anos. E “Trip” estava lá para contar tudo.
E haja namoro de homem. Política é namoro de homem, dizia o
cronista mineiro Paulo Mendes Campos. A CPI dos Correios estoura no
Congresso. O governo leva a melhor e indica o presidente e o relator das
investigações. Algo como se num jogo de futebol um dos times indicasse o juiz.
O cheiro do ralo. Só se fala em uma coisa: o “mensalão”, a mesada de R$ 30
mil repassada, segundo o deputado Roberto Jefferson (PTB), a parlamentares
do PP e PL em troca da fidelidade ao governo.
No setor hoteleiro sul, Sheyla, nome de guerra da linda garota de
programa nas imediações do hotel Saint Paul, segue o mesmo lema: “Pra ser
99
fiel é mais caro. Só de R$ 10 mil por mês para cima”, politiza. “Ah se eu pego
esse Delúbio...”, suspira.
Esse senhor de nome estranho, tesoureiro do PT, seria o
responsável pelo repassas das mesadas. “Fora Delúbio”, pede a própria
bancada de senadores petistas. O cheiro do ralo. José Dirceu, que seria
mentor do mensalão, segundo Jeffersos, deixa o quarto andar do Planalto e vai
dormir ainda ministro. No terceiro, Lula decide: o amigo Zé está fora.
No conforto do seu lar, um homem tem motivo de sobra para rir de
tudo isso: o ministro da Previdência Romero Jucá. Alvo de denúncias de
irregularidades, ele vê-se aliviado. Em Brasília em assim, nada como um
escândalo atrás do outro para tirar o foco de tantos suspeitos e culpados.
“Passou hoje aqui com um sorriso de canto a canto”, diz um lavador de carro
do prédio do Ministério comandado por Jucá. “Meu nome? Tá doido, sô!”.
Sabe-se apenas que é mineiro.
Levo Sheyla para o hotel. Preciso apurar mais sobre o mensalão.
Informações de alcova. Mas cadê a camisinha? Cadê a mala? Este repórter
lesado havia esquecido a bagagem no Aeroporto. Pasme, quase quatro horas
depois, retorno e a dita cuja está lá, intacta com suas rodinhas, em pleno hall.
Quem disse que tem ladrão em Brasília? Isso em plena semana que se discute
pagamento de propina nos Correios e no Congresso... Cidade honestíssima.
“Não levaram a sua mala porque estavam todos entretidos com o
mensalão”, explica o taxista Antonio Santos, 45, piauiense há 15 anos em
Brasília. “Aqui não se rouba mixaria”.
Deixo Sheyla na boate Gol, setor hoteleiro Sul _tudo é por setor em
Brasília, inclusive a prostituição. Boate cara. Um programa de uma garota
custa, em média, R$ 300. Elas fazem por semana mais do que os R$ 3 mil
pagos de propina no caso dos Correios. “Mas damos duro pra isso”, argumenta
Tânia, nome de guerra de uma linda morena goiana. “Conterrânea de Delúbio”,
diz. Só se fala do homem-tempestade.
Quinta-feira, 16
“Você está em que jornal mesmo, conterrâneo?”, me pergunta
Severino Cavalcante (PP-PE), presidente do Congresso. Aqui, agora, a serviço
da “Trip”. O deputado me pega pelo braço _entro inevitavelmente no namoro
de homem_ e saímos conversando da saída do plenário até o seu gabinete.
TRIP – De onde vem esse cheiro?
Severino- Que cheiro?
TRIP – O senhor não está sentindo?
Severino [depois de aspirar fundo três vezes] – Tá cheirando bem
o salão, como sempre.
TRIP – Pois eu estou sentindo um mau cheiro danado...
Severino – Você tá é com presepada, né, meu filho?
TRIP – É o cheiro do ralo, deputado.
Severino – Você quer conversar sério ou não, cidadão?
TRIP – O sr. acha que algum colega seu, aqui da casa, vai ser
cassado?
Severino – Se ficar comprovado o que estão falando _mensalão_
vamos ter que tomar alguma providência nesse sentido. Mas depois das
investigações. E se tiver prova.
100
sabia demais” (The Man Who Knew Too Much, 1956), de Alfred Hitchcock.
“Não é piada, é sério mesmo”, alertou.
No meio da tempestade, Jefferson confessou a amigos que temia
sofrer algum atentado. “O meu cadáver interessa a muita gente nessa hora”,
soprou a um colega de bancada no Congresso.
“Cidade estranha essa, você só vê fachada e carro, a arquitetura
engole as pessoas”. Era o ilustrador destas páginas, Lourenço Mutarelli, autor
de nada mais nada mesmo do que o livro “O cheiro do ralo”, que chegava ao
hotel Eron, onde ficamos hospedados. Primeira visita a Brasília, primeira vez
que vestia um terno, primeira gravata. Haja elegância na risca de giz à moda
da máfia siciliana.
Uma cerveja antes da noitada para ficar pensando melhor. No
restaurante japonês, vários assessores do governo e de deputados petistas.
Eles parecem bem aliviados com a saída de Zé Dirceu do quarto andar do
Planalto. Ufa!
Flanamos pela Asa Sul do avião que é Brasília. A noite da queda
está animada. O Depósito de Bebidas Piauí, um bar improvisado no meio de
grades e mais grades de cerveja, é um raro lugar na cidade onde é permitido
fumar. Por isso está lotado de gente de todos os escalões da República. Fumar
no Plano Piloto, onde fica o centro do poder federal, é proibido por lei. Não há
acordo. Os restaurantes não têm áreas para fumantes. Proibido. E pronto.
Uma da manhã e a noite está apenas começando no Conic, o setor
de diversões sul, onde igrejas evangélicas e puteiros dividem o mesmo espaço
desenhado por Oscar Niemeyer. Cid – ”só Cid mesmo,sem sobrenome por
favor – é o nosso guia na putaria. Ele mora atrás da tela do Ritz, o cinema
pornô, onde ajuda na administração. Veio do Rio Grande do Norte há cinco
anos, depois de esmolar na cidade, dormindo pelas calçadas, encontrou
abrigo. “Cadê que os evangélicos me deram um lugar, um emprego, o que
encontrei de bom foi aqui entre as putas”, discursa.
O Snooker Sunset Ltda, mas conhecido como “Sinucão”, é o point
da madruga numa capital que fecha as portas muito cedo _depois de uma da
manhã é difícil encontrar bares e restaurantes abertos em Brasília.
Depois do Beirute, animado boteco que reúne as tribos mais loucas,
só resta este imenso salão com seis mesas de sinucas e uma radiola-de-ficha
(jukebox) com 310 CDs para embalar a noitada. 310 CDs mas parece que só
toca Renato Russo. Uma atrás da outra. “Toda a plataforma, você não vê a
torre...” Hino oficial de Brasília.
O “Sinucão” ferve. Dois angolanos tiram uma onda de personal-
snooker para as moças. Mutarelli escolhe um ângulo e começa a desenhar as
putas, as meninas que fazem sexo explícito no cine pornô. Ninguém ali fala em
mensalão ou qualquer outra palavrão oficial. E repare que aquela sacanagem
fica colada às sacanagens do poder. Quase na Esplanada dos Ministérios,
pertíssimo do Congresso.
“Isso aqui é casa de família em comparação com o que acontece lá
nos gabinetes dos ministros e dos deputados”, diz o velho Cid. No balcão, o
pedreiro Luciano Santos, de 21 anos, me mostra a foto da noiva. Está
enchendo a cara e quase chorando. Pé-na-bunda bem dado. “Dor de corno”,
ele mesmo ri dele mesmo. “Essa porra num passa com remédio nenhum, só
com cachaça”. Mais uma, garçom.
102
ANEXO 3
para deixar mais sensíveis os homens das pranchetas do que percorrer, com
mãos taradas, as curvas perigosas e bundas que deram a forma final desta
cidade.
Jeany Gomes da Silva, 46 anos, a Jeany Mary Corner, cujo
pseudônimo em inglês embute as esquinas que tanto fazem falta na arte de
rodar a bolsinha em Brasília, tem olhos de Niemeyer na escolha a dedo das
suas moças. Cada um que encontro, com o selo Corner de qualidade, é um
alumbramento. Vanessa, meu Deus, goiana, 19 anos, é de fazer do mais santo
dos homens um corrupto. Impossível não facilitar favores da República diante
dessa mestiça de olhos de gata fugidia. Só de respirar o ar do mesmo
ambiente deixa qualquer um de perna bamba.
Cadê tua patroa? “Ah, sumiu, também com essa injustiça toda contra
ela, nome falado na CPI e tudo o mais”, diz, compassadamente, a gazela. A
mulher-esquina está em São Paulo a essa altura, para escapar do assédio da
clientela VIP que tenta, desesperadamente, apagar o nome da sua valiosa lista.
Antes a cassação do mandato e um linchamento público do que as garras de
uma mulher em fúria no lar doce lar de outrora. Pior: na adorável lavanderia de
Brasília, dinheiro sujo não se lava em casa... então lá vai a patroa, em
entrevista aos homens de imprensa, reivindicar metade dos milhões
depositados naquela conta dos paraísos fiscais.
Mademoiselle Jeany Corner sabe disso. Vamos ligar pra ela, sugiro
a Vanessa, com quem conversei sobre o que acabei de pôr aqui na página. A
danada pede metade do seu programa (R$ 150) para me ajudar no telefonema
caça-patroa. Fico em dúvida entre dar uma meia-foda ou fazer jornalismo-
verdade.
Pelo ofício, tudo.
Mensalão noir
Na Safra Vermelha da corrupção que abateu o PT, como na podreira
generalizada de uma cidade que existe no livro homônimo de Raymond
Chandler, não poderia ser de outro jeito. O sexo continua com a mesma função
de sempre numa imensa repartição repleta de homens que deixaram suas
digníssimas nas metrópoles distantes e nas províncias. O resto é narrativa
hipócrita.
O medo de Vossas Excelências diante da crônica da vida privada,
no entanto, muda a história. “Prefiro endinheirado sem poder. Poderoso dá
muito trabalho e é muito cheio de ordem, organizado demais... até pra gozar é
cheio de lei e nove-horas”, diz Duda, garota de 21 anos, num populismo que
derrete toda a sua maquiagem e deixa as sobracelhas ainda mais sinuosas,
getulismo amoroso da porra.
Também pudera. O efeito Corner, contradição de um pseudônimo em
uma cidade sem esquina, afastou as autoridades, até mesmo aquelas de
terceiro escalão, das sacanagens da noite. Por enquanto. “Até as surubas do
poder são organizadas de dar dó, agora mais do que nunca”, sussurra a
garota, nascida em Brasília mesmo, candanga, várias vezes recrutada pela
cafetina oficial para farras tantas. “Ah, chamou, vamos, na hora!”.
Duda é de uma beleza matadora, olhos mestiços e safados, boca à
Angelina Jolie, parece toda planejada. Só de calcinha, vê a torre de Brasília da
janela do quarto do hotel. Vira-se: “E num vai querer nada não, é, só vai ficar
108
O poder é azul
Que Viagra que nada. Que Cialis que nada. Que catuaba que nada.
O poder ainda é o maior afrodisíaco, como disse certa feita o doutor Ulysses, o
velhinho peemedebista, tempos da Nova República, que perdeu-se entre as
sereias dos mares depois de acidente de helicóptero no litoral do Rio de
Janeiro.
Que o digam as meninas que cercam as autoridades no hall e
corredores do Hotel Blue Tree, um dos melhores da capital. O assédio é tanto
que o ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, teria mudado de endereço
de hospedagem por conta desse “approach”.
Mas de uma coisa a Liga das Senhoras de Santana, ponta-de-lança
do Golpe de 1964, não pode ter queixumes. Algumas surubas em Brasília são
tão organizadas que poderiam, sem problemas, contar até com transmissão ao
vivo pela TV Senado, o canal que passa as sacanagens das CPIs dos Correios
e do Mensalão.
“Pela ordem, presidente!”, diria o organizador do baixo clero. “Vossa
Excelência me permite um aparte”, diria um parlamentar a fim de locupletar-se
de uma garota da cafetina Corner. “Epa!, no caixa dois a despesa é maior,
Excelência”, alertaria a mensalina $alomé, ciente da conta dos seus caprichos
de retaguarda.
De tão burocrática [com a devida exceção do subsolo da putaria do
Conic, o setor de diversões underground colado na Esplanada dos Ministérios],
Brasília é o único lugar do mundo em que puta é treinada para participar de
suruba. Nem mesmo em Sodoma & Gomorra havia tanto zelo por tal arte. Na
secura da capital federal, não rola a suruba-jazz, o improviso. Tudo aqui
funciona na base do acerto, do combinado, como comprovou Ricardo Penna
Machado, sócio de Marcos Valério na empresa Multi Action, que chegou a dar
aulas de etiqueta para garotas que participaram de uma bacanal no hotel
Grand Bittar, em 2003.
“Ele fez tanta pergunta, meu Deus, queria que a gente fosse
intelectual”, conta Carol, 22, estudante de Direito em Brasília. “Vocês vão lidar
com grandes autoridades da República, não podem ser vulgares”, alertou
Machado, que reconheceu a “aula” em depoimento à Polícia Federal obtido por
este repórter. “No dia 08 de setembro de 2003 recebi Jeany (a cafetina) e oito
acompanhantes no restaurante do hotel Grand Bittar”, confessou o tal.
“Tanta frescura e na hora agá peguei um cara tão grosseiro que
queria meter sem camisinha, um filho da puta”, conta, sem revelar nomes, mais
uma pupila de Jeany Corner, aqui doravante denominada apenas senhorita K.,
por razões de extremo sigilo.
O acerto, conforme o depoente disse à PF, era de que cada menina
receberia R$ 500 pela farra. “Me roubaram”, queixa-se K., ao ler comigo as seis
páginas do depoimento do sócio do trem-pagador-mineiro chamado Valério.
“Só recebi 300”.
ANEXO 4
ANEXO 5
Num tem mambo? Num tem calipso? Pois agora tem o mangue!* Foi
assim que Chico Science deu nome ao movimento que tirou o país da
lama e instaurou o caos na música brasileira. No mês em que se
completam quatro anos da morte do líder do Manguebeat, Trip revela
fotos inéditas e histórias desconhecidas de amores, psicodelia, viagens e
descobertas musicais do maior artista brasileiro da última década
Era uma vez uma croata chamada Sladjena, vinte e poucos anos,
daquelas que vão além da larica, do tipo que tem mesmo fome de viver. Estava
de bobeira na margem esquerda do Capibaribe, viagem sem diário de bordo,
sob o torpor e a lesa felicidade guerreira dos Tristes Trópicos. Deixou uma
penca de rapazes com os quatro pneus arriados de paixão na aurora dos 90.
Recife ensaiava seus passos de Seattle do Quarto Mundo, mas os
mangueboys, chapados de lirismo, groove e psicodelia, faziam um minuto de
silêncio para ouvir a saudação gringa:
- Up to the trip! - bradava a croata, com Pernambuco embaixo dos
pés e a mente na imensidão.
Um dos vidrados na estranja, Francisco de Assis França, futuro
Chico Science, pisciano devoto à disciplina amorosa, dono de um parque de
diversão na cabeça, parecia seguir, sem muito trabalho, os conselhos de
Sladjena. À moda de Salinger (Para Cima com a Viga, Moçada), começou a
desentupir as veias da Amsterdã das Américas - como queriam os holandeses
chegados ao Recife - com um levante praieiro que marcou a sua vida de
malungo: a busca da batida perfeita. Ou melhor, nas palavras de Afrika
Bambaata: "Looking for a perfect beat".
Tudo isso acompanhado de um slogan que marcou a sua curta
passagem por estas plagas: "Diversão Levada a Sério" - como ele definia suas
estripulias e atitude. Este mês faz quatro anos que o homem-caranguejo deu
um pitu na vida - o mesmo que "dar um perdido" no dicionário dos paulistas - e
deixou este mundo.
O choque de um Fiat Uno com um poste, em um viaduto na divisa
entre o Recife e Olinda, por volta das 19h do dia 2 de fevereiro de 1997,
arrastou precocemente, aos 31 anos incompletos, o homem-caranguejo. O
inquérito policial de 174 páginas da Polícia Civil pernambucana calculou que
Science corria a 110 km/h - a velocidade média nesse trecho costuma ser alta,
pois a avenida que precede o viaduto é uma reta só. Com traumatismo
craniano, afundamento no tórax e fraturas múltiplas na face, a maior invenção
dos palcos brasileiros pós-suingue de Jorge Benjor foi levada para o Hospital
da Restauração, centro de urgência da capital. Entre vítimas da violência
carnavalesca, o seu corpo foi largado nos corredores, enquanto aguardava a
vez.
Conforme a notícia do acidente corria as ruas do Recife e as ladeiras
de Olinda, os tambores dos maracatus e as pequenas orquestras de frevo iam
silenciando. Amigos e admiradores, inconformados, maldiziam Deus e o
mundo. Embora tenha havido um esforço policial para insinuar que Chico
114
De volta à viagem
Quando Francisco França esticou a mão para aquele Rio
Doce/Conde de Boa Vista, estava acompanhado do amigo b-boy da Legião Hip
115
Hop e dublê de funcionário da Vasp. Jorge Du Peixe (o cara era louco por
tanques e aquários que iam dos rumble-fishes às tilápias, daí o batismo),
grande alma também dos subúrbios olindenses.
- Rapaz, tô com uma idéia do caralho! – exclamou Science para um
contemplativo Du Peixe, que gastava a vista na paisagem que contemplou pelo
menos durante 2 mil viagens naquela mesma linha.
Silêncio no coletivo.
- Rapaz, num tem mambo? Nem tem calipso? – mandou Science.
- Tem... – disse mole o então funcionário do check-in da Vasp no
Aeroporto de Guararapes.
- Pois agora tem o Mangue!
Nascia ali, naquele Rio Doce/Conde da Boa Vista que arrastava
trabalhadores cansados e belas morenas caldo-de-feijão, a busca do beat
perfeito. Na sua curta temporada por essas bandas, encerrada a caminho de
Olinda no domingo de carnaval de 2 de fevereiro (dia de Iemanjá) de 1997.
Chico viveu o bom desassossego de não deixar o som à míngua. Tudo tinha
que ser revigorado. O beat perfeito era uma tentativa constante.
O “pijama assassino”
“O conformismo mata a musicracia – música de todos e para todos.
Temos que correr atrás de novas batidas, novo jeito de fazer coisas velhas,
sem a pretensão de fazer a nova onda, mas sempre com uma preocupação:
tem que se divertido, pois de outro jeito não vale a pena. Só vale com a
diversão levada a sério”, pregava Science, no início de 1994, em conversa
movida a rum autenticamente jamaicano (um dos autores deste texto, Sá,
acabara de voltar de Kingston e Montego Bay com um grande carregamento da
bebida). Nessa mesma noite, num quarto-e-sala do número 812 da Rua Frei
Caneca, na Bela Vista, embalados por uma das primeiras audiência do Da
Lama ao Caos, fomos surpreendidos – Lúcio Maia e Jorge Du Peixe também
faziam parte do bando – com batidas fortes e ameaçadoras na porta. Do outro
lado, dedo no gatilho, um austero senhor de pijama de bolinhas, o famoso
vizinho de baixo, ameaçava todo mundo com um colt.
- Ou pára o som ou eu atiro, bando de vagabundos! – bradava, cheio
de moral e de razão. Para completar, o cara ainda insinuou que estava rolando
uma suruba entre aqueles bravos machos nordestinos.
- O que é que quatro marmanjos estão fazendo juntos a essa hora?!
– inqueriu.
Mesmo com muito rum no juízo, saltei com capítulos inteiros sobre
garantias constitucionais e outros direitos de um cidadão guardado no seu lar.
Nada acalmava o “pijama assassino”, como o batizou Chico, depois daquela
noite.
Deu polícia e tudo. Não sei quantas viaturas chegaram, tudo por
causa de uma merecida audiência do disco que mudaria a cara do pop
nacional. Naquele mesmo prédio, dias antes, um louco disparou seu 38, da
janela do seu apartamento, e tirou a vida de uma adolescente viciada em crack,
conhecida na rua. O motivo do disparo: a menina mexia no carro do elemento,
do qual, segundo ele, levaria o toca-fitas. Grande merda.
Sangue de bairro
Um historiador que procurasse reconstruir a trajetória artística de
Chico Science, a partir de sua coleção de discos, deveria, na verdade,
retroceder ainda mais no tempo e mergulhar na infância do menino Francisco
de Assis, nascido no Recife, caçula de uma corda de quatro filhos patenteados
por seu Francisco, bravo líder comunitário e ex-vereador do PDT de Olinda nos
anos 80 e dona Rita França. (Espirituosa como o artista que levava a diversão
a sério, a mãe de Chico mantinha em sua casa, até 1997, o galinheiro da fama.
Ela criava galinhas que eram batizadas com os nomes dos componentes da
Nação Zumbi, amigos e também namoradas do filho, o que só ampliava o
humor da história.).
Chico estudou até o segundo grau, sempre em escolas públicas de
Olinda. Trabalhou, até formar a Nação Zumbi, na Emprel, a empresa municipal
de processamento de dados do Recife, como arquivista. Um pouco antes,
havia trampado na Clínica Radiológica do Recife, como auxiliar de serviços
gerais. “Completou 18 anos, tem que trabalhar, se virar” – era essa a ordem do
pai.
É a música das ruas de Rio Doce, bairro pobre de casas populares,
porém decente da periferia de Olinda, que vai primeiro influenciar o rapaz.
Como música aqui, entenda-se desde a melodia dos camelôs e vendedores
ambulantes, até a ciranda das festas populares e o maracatu entrevisto nos
carnavais. Os discos só chegaram anos depois, durante a adolescência,
quando, em meio a tantas descobertas, ele encontrou o seu primeiro amor (e
talvez mais profundo, com perdão das musas Sladjena, Risoflora – codinome
117
Baião-de-dois
Na era Mangue, a coleção de discos de Science já era outra. À
busca do groove havia se somado uma procura de melodias perfeitas, um culto
ao Who dos anos 60, aos Byrds e coisas do tipo. Outra de suas qualidades
aflorava com força total: a capacidade de misturar ritmo e melodia como
poucos! Um cara capaz de formar uma banda paralela, o Loustal, que tocava
covers psicodélicas de clássicos dos sixties enquanto desenvolvia o Nação
Zumbi!
Uma última visita a seu quarto e a sua coleção mostrava uma paixão
crescente por música eletrônica e sons latinos. Drum’n’bass e jungle pareciam
ser suas preferências. Pensar o que esse alquimista dos ritmos deixou de fazer
118
com essa batida é para nós fonte permanente de tristeza. “Estava dormindo,
quando ouvia Chico chegar, com amigos, para ouvir música, de madrugada.
Tinham um ar tão grande de felicidade e diversão aqueles encontros que
jamais me incomodei”, diz a irmã Goretti, colo e porto seguro do caçula.
Mas segue a vida, enfim... no quarto de Chico, na casa da irmã, os
tesouros ainda estão guardados desde aquela fatídica tarde de domingo, 2 de
fevereiro. É que o cientista pode chegar a qualquer momento, pegar um vinil ou
CD e pensar em mais uma mágica. O beat perfeito pode nascer a qualquer
instante...
Graças à simpatia de Goretti França, enfermeira e competente
profissional dedicada à área de saúde sanitária da Recife dos mocambos, TRIP
teve acesso à última penca de CDs reunidos por Science no seu case [ver
box]. Foi com essa coleção que ele animou, artista enquanto DJ e vice-versa,
parte da festa do bloco Enquanto Isso, na Sala de Justiça, na véspera da sua
morte, no 1º de fevereiro de 1997, um sábado. Nesse dia, reencontrou velhos
amigos, depois de uma longa ausência de Pernambuco – havia feito uma
temporada na Europa – e mandou ver nas picapes, inspirado, quem sabe, pela
parque de diversão na cabeça de que falava o poeta beatnik Lawrence
Ferlinghetti. Vingou a passionalidade-jungle, estrondo negro e suburbano no
qual comungava e seria, post-mortem, homenageado, via arrabaldes londrinos
de Goldie.
O último scratch
Pela aposta dos amigos, no momento em que o Fiat Uno (Chico não
saiu de Landau devido à dificuldade de estacioná-lo nas ruas tomadas pela
folia carnavalesca) conduzido pelo artista subia o viaduto na divisa entre o
Recife e Olinda, o rapaz ouvia Willie Bobo, La Esperanza, seu vício. Mas isso é
apenas a intuição dos malungos. Na noite anterior, o dublê de DJ na festa com
os amigos, havia incendiado a pista com jungles para acalmar a barbárie
carnavalesca. Acabara de voltar de Paris, com o embornal cheio de discos
novos, e a paixão renovada por Charlene, morena nouvelle-vague da
tradicional família pernambucana que trocara, ainda quando engatinhava, o
Capibaribe pelo Sena. Em momento algum na festa mostrou a “tromba” –
quando estava chateado, Science não escondia a sua imitação de elefante nos
lábios.
Numa roda com os repórteres deste texto, riso escancarado – como
se tivesse tomado um docinha com a marca Druida (Asterix), distribuído
fartamente no Recife pela croata das primeiras linhas desta saga -, que não
tinha sorte no amor. Charlene chegaria dias depois.
ROGER, o Rogê
Roger de Renor não tem nada de francês. Seu avô tirou o nome de um cabra
franco-circense que avistou no meio do mundo. Refrão de "Macô", hino
informal do eixo Recife-Olinda - "cadê Rogê, cadê Rogê" -, o rapaz era dono da
Soparia, sede lúdica, etílica e sentimental dos mangueboys, que depois mudou
de endereço e virou Pina de Copacabana, mesmo nome de canção de Otto.
Inquieto fazedor de coisas, Roger cuida de parte da programação da Torre de
Malakoff, primeiro observatório astronômico das Américas (hoje centro cultural)
e toma conta do Armazém 14, teatro recifense arrumado dentro de um vasto
ex-depósito de açúcar, do tempo em que Pernambuco falava para o mundo.
RISOFLORA
(De Rhizoflora Mangue, folha a mais na diversidade ribeirinha, como reza a
ciência.) Homenageada com faixa homônima do disco Da Lama ao Caos, é o
codinome eco-amoroso de Maria Eduarda Belém, pernambucana que hoje
encanta SP. Science sempre foi um pisciano típico, daqueles que têm uma
tendência atávica a se apaixonar - e sofrer, conseqüência natural de quem
conjuga o verbo amar. Graciosa, com os cabelos encaracolados como os de
um anjinho, seios fartos, jeito dengoso, capaz de incêndios no salão enquanto
baila, ela foi a namorada que trouxe a Chico a felicidade por um bom par de
anos.
JEAN PAUL
Não, o Jean Paul aqui não é o famoso filósofo francês, pai do existencialismo e
hoje pouco lembrado pelos cadernos culturais da vida. O Jean Paul das
crônicas do Mangue é outro, ligado a seu homônimo gringo devido a sua
paixão pela filosofia de beira de praia, alimentada por obras como A Naúsea, O
Muro e outras incursões literárias do marido de Simone de Beauvoir. Irmão
alguns anos mais velho de Fred Zero Quatro, ele delirava, chapado em plena
praia, sobre as impossibilidades do ser. Suas lendárias trips encantaram os
ouvidos de Chico Science e Jorge Du Peixe, e ele acabou indo parar no refrão
de uma música do último disco da Nação Zumbi ("Pela Orla dos Velhos
Tempos"). Jean Paul nunca se envolveu com música, virou mesmo foi um
120
pacato funcionário público, que vai à igreja e canta os hinos do padre Marcelo.
E, ao contrário de sua versão francesa, deixa a mulher bem guardadinha em
casa quando sai pra farra.
DEL CHIFRE
Não se trata de um personagem, mas sim de um lugar meio encantado. Foi aí
que, segundo a lenda, Chico e seus amigos da Nação se iniciaram nos
mistérios do surf. Nunca entendemos bem como isso aconteceu: situada bem
na fronteira entre Olinda e Recife, Del Chifre é uma praia suja e inóspita, o
lugar aparentemente menos indicado para esse tipo de aventura. Mas a paixão
dos caras pelo lugar parece ser tão grande que Del Chifre acabou virando
música do Rádio S.AMB.A: tá lá, uma surf music meio latina fechando o
primeiro disco da Nação Zumbi, composta sem a participação do grande
mestre do surf, da colagem de batidas e do rap-repente envenenado, mister
Francisco de Assis França, Chico Science para os mais chegados.
O QUINTO BEATLE
Toda cena pop que se preze tem seu quinto beatle: aquele sujeito que, como
Pete Best, perde o trem da história e fica para trás, mergulhado no anonimato,
longe das tietes e da possibilidade dos milhões. No Mangue, quem
desempenhou esse papel clássico foi um rapaz magro e de poucos amigos
apelidado de Bob Mofo. Sua biografia de "pobre'star" é um amontoado de
pequenas e grandes tragédias: o pai se suicidou quando ele tinha 4 anos, o
padrasto sempre o discriminou, a família mostrou-se de uma ignorância atroz, o
vestibular foi uma muralha intransponível. A conseqüência de tanto azar foi o
sur-gimento de Bob Mofo, o punk mais radical da filial pernambucana do
movimento. Quando o Mangue surgiu, Vinícius Enter, seu novo alter-ego,
deveria participar da primeira coletânea do movimento. Mas o projeto não
vingou, Vinícius perdeu-se no ano-nimato e seu paradeiro atualmente é
desconhecido.
FILHA DE CARANGUEJO
Estilo é DNA. Louise Taynã Brandão França tem 10 anos, adora cantar, dançar
e preza pela elegância, mostrando a mesma preocupação que o pai tinha em
apresentar um jeito invocado e inovador de vestir. Filha de um romance de
Chico com Ana Luiza Brandão, jovem da periferia de Olinda, mesma quebrada
do malungo da Nação Zumbi, Louise nasceu quando o pai ainda não era
Science, tinha 24 anos, mas já andava com uma penca de vinis de black music
debaixo do braço.
O ÚLTIMO CASE
Conheça os últimos CDs que tocaram na aparelhagem perfeita do velho
Landau 79, carro comprado ao pintor e novo amigo Felix Farfan, por R$ 800 -
"é o papa-gasolina", alardeava Science -, e acompanharam o líder da CSNZ
nos seus últimos suspiros:
ANEXO 6
Qualquer bom dia, boa tarde, boa noite ou "como vai" vira uma
malandragem distorcida ou um galope trance no pandeiro imaginário que Otto
carrega pra tudo que é lugar desse mundo. ...O samba-rave, meu irmão.
O galego cosmopolita de Belo Jardim, cidade do agreste
pernambucano, tira música de tudo: chacoalham umas moedas no bolso e lá
vem um xote eletrônico, o vento mexe nas panelas e tome polca de primeira,
um bêbado sem-teto entra num boteco e dá-lhe um fraseado de repente.
Tudo com muita psicodelia, essência tão importante para o mangue
beat quanto os samples de ciranda e maracatu. "Samba pra Burro" é a música
para viagem feita por um festivo gozador.
Batuqueiro nas ruas e metrô de Paris, onde viveu a sua temporada,
ele não esqueceu nem mesmo de cantar na língua de Gainsbourg, a quem
sempre dedica homenagens noturnas nas mesas de bares. A música "Changez
tout", em parceria com Apollo, é a prova de que a França pode até ter
esquecido Otto, mas Otto não esqueceu o seu francês.
No mesmo espírito parisiense, "Samba pra burro" traz
"Renault/Peugeot", jingle que tira uma onda com um dilema chique, quase
existencialista, entre as duas carroças. Croissant fino para as massas.
123
ANEXO 7
neuronia e euforonha
Em Fernando de Noronha, que era chamada de Fora do Mundo no
século XIX, a mais famosa de uma penca de 21 ilhas e ilhotas que formam o
arquipélago homônimo, existem dois sentimentos básicos: a euforonha e a
neuronia, conforme os neologistas locais.
A euforia é fácil e óbvia ("oh!") para qualquer visitante - filtro solar 30
numa mão e pé-de-pato na outra - que pisa naqueles 17 quilômetros
quadrados na beira do abismo do Atlântico equatorial, como reza tecnicamente
a cartilha de geografia; a neura, estranha para o cenário paradisíaco, parece
herdada da vocação de colônia correcional, com solitárias construídas entre
locas de pedras, espécie de Carandiru de formação vulcânica, mas também
com os seus PCCs - são inúmeros os relatos de rebeliões e fugas ao melhor
estilo Papillon.
Descoberta por Américo Vespúcio, em 1503, em expedição bancada
pelo fidalgo português Fernan de Loronha - daí o onha, rima rica de maconha
que está no batismo do lugar e dos seus sentimentos básicos -, a ilha virou
presídio ainda em 1845, embora o seu período de maior fama tenha sido
depois do 31 de março de 1964, quando a ditadura militar passou a fornecer
passagens forçadas para gente como o então governador de Pernambuco,
Miguel Arraes, um dos presos políticos famosos daquelas plagas [leia no site
da TRIP, histórias e lendas a respeito da ilha]. Muito antes, todavia, foram
enviados para lá milhares de ciganos tidos como "vagabundos" (1979) e todos
os capoeiristas do Brasil, confinados na área de 1890 depois de enquadrados
pela República, que acabara de se instalar, como desordeiros e
contraventores. O famigerado presídio só foi desativado no final dos anos 60.
paraíso-prisão
Com a palavra o pescador Salviano José de Souza, 83 anos, nascido
no Recife, 60 anos de Noronha e mar, misto do velho Santiago de Hemingway
com o zen-budismo de Dorival Caymmi: "O limite entre paraíso e prisão
depende do espírito de cada um que vive por aqui. Para os mais agoniados,
pode ser terrível, para os que têm a alma sossegada, vixe!, é um bálsamo da
vida", diz, enquanto hipnotiza o repórter com o balanço da rede na varanda.
"Aqui se bebe faz séculos. Claro que a vinda de mais turistas, com um
dinheirinho, aumentou um pouco a bebedeira dos meninos, que ficam na cola
deles. Mas num faz mal não. Eles gostam dessa brincadeira. O que faz mal é
cigarro de maço e droga, mas isso é muito pouco aqui", conta o mais velho
habitante do arquipélago, pai de 28 filhos - 14 viveram e 14 "Deus levou" ainda
meninos.
Desde o começo dos anos 60, quando houve o último registro de
assassinato entre presos, não se tem notícia de uma morte por violência no
local. E o velho Salviano olha o mar sob o decote do horizonte logo à frente da
sua rede. E diz mais: "O cabra que matar sabe que será capturado fácil, fácil,
pois não tem para onde correr. O máximo que nego troca aqui é uns tapas,
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carinho, coisa que ela não costuma ter em São Paulo, pois a vida é muito
corrida e os homens chegam cansados em casa".
Nessa mesma noite, o barqueiro cruzou o paraíso, depois de
seguidos forrós e muita birita, com uma paulistana, daquelas que costumamos
chamar, com todo respeito, de balzaca de responsa. "Para as coroas, aqui é o
paraíso", diz, quase repetindo a frase de Américo Vespúcio, o descobridor, que
disse apenas a parte da vírgula para a frente. Mesmo sem a sabedoria do
velho Salviano, muitos habitantes da ilha dizem, sem medo de errar, que
Noronha é hoje o nirvana das afilhadas de Balzac.
Isso não quer dizer que os ativos, que aproveitam a oferta para tomar
umas a mais à custa do turismo, não pensem mais longe. "Muitos caras daqui
sonham em se arrumar com uma coroa, para viver sem fazer força, só fodendo,
ih, peraí, quero dizer, só amando!", relata ainda o barqueiro. Numa dessas
tantas farras, Felipe se apaixonou por uma paulistana de 30 e poucos anos,
que atendia pelo nome de Cláudia e trabalhava como administradora de
empresas em terras bandeirantes. No ano passado, deixou o barco ancorado
no porto de Noronha e se mandou para São Paulo, onde repetiu, por 15 dias, a
paudurescência (neologismo pernambucano que significa "essência do
priapismo ou do pau duro") em um hotel dos Jardins, onde foi acomodado pela
amante.
No bar do Cachorro, a TRIP ouviu dezenas de histórias semelhantes.
E uma variante: os gays também recorrem fartamente aos meninos de
Noronha, que vêem nesses encontros um apêndice do turismo e nada mais.
"Nem todo mundo topa, mas que existe, existe. E muito", conta C. S., 22 anos,
que se diz surfista. "Tem um cara do Rio que, de ano em ano, troca de boy
aqui. Como ele trata bem os amigos da gente, já ganhou boa referência, o que
faz com que os outros sigam o mesmo caminho para as bandas cariocas."
O DJ e gerente do Cachorro, Genilson, 31 anos, testemunha ocular
da história: "Já vi ilhéu ganhar uma mulher em segundos; num piscar de olhos
saíam aqui do balcão, na minha frente, e já estavam se amassando ali naquela
cadeira [aponta um assento que fica quase no despenhadeiro, na paredinha
que divide o bar do abismo que leva à praia]".
Ir a Noronha e não falar com o dono do Cachorro é como ir a Roma e
não ver o papa. Ney Costa, 38 anos, pai de um filho de 10 que mora com a
mãe em São Paulo, conta que a situação da rapaziada da ilha é embaraçosa.
"Aqui é um lugar muito bom para adultos, mas não é confortável pra essa
moçada entre 14 e 20 e poucos anos. Essa turma entra pesado no álcool e na
maconha. Uma coisa é uma pessoa esclarecida fumar maconha pra pensar
melhor, outra coisa é uma moçada sem escola que preste - caso de Noronha -
e sem perspectivas, isolada em uma ilha. Acaba não ligando muito para os
estudos ou para preparar um futurozinho melhor. Agora ninguém vê isso, mas
eles não vão agüentar ficar velhos vivendo a ilusão dos turistas descendo e
subindo trilhas", dá o parecer.
Guilherme Gross, 30 anos, surfista carioca, foi duas vezes a
Noronha. A primeira, atraído pelas ondas do primeiro Red Bull Tube Rider, que
aconteceu em janeiro por lá - quando faturou a categoria "Melhor Tubo",
completando a mais longa onda da sessão. Na segunda ocasião, no mês
passado, esteve na ilha para dar continuidade a um documentário Surf
Adventures que prepara sobre os points de surf em todo o mundo. "Na
verdade, a rapaziada não tem muito o que fazer, não há muitas opções. Acho
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que deveriam investir mais no esporte, que é a grande saída, com incentivo a
competições internas para os surfistas nativos", sugere. "Até a TV aqui, que é
uma opção de lazer em qualquer lugar, só tem dois canais, a Globo e o SBT. A
moçada merecia um cinema, por exemplo."
A assistente social da administração da ilha, Sara Escobar,
reconhece que o alcoolismo e a vida sexual colada ao mundo dos turistas são
um problema que merece todos os cuidados. "É muito difícil convencer os
jovens de que precisam ter uma profissão que não seja obrigatoriamente ligada
ao turismo. Mas nos esforçamos, dando oficinas, palestras e programas sobre
esse tema", conta. "Ora, é muito atrativo e sedutor o mundo em que vivem,
com mulheres e homens de fora, rapazes bonitos, moças bonitas. Mas as
nossas atividades de prevenção, com camisinha e equipes médicas, têm sido
eficientes."
Em Fernando de Noronha há 12 anos, o cientista gaúcho José
Martins, 38 anos, coordenador do projeto Golfinho Rotador, que tem o apoio do
Ibama e da Fundação Nacional do Meio Ambiente e ajuda da Petrobrás, elogia
a educação ambiental dos mais jovens. "Eles sabem que dependem da
preservação como meio de vida e são mais compreensivos que as velhas
gerações", relata a maior reserva humana de conhecimento sobre tudo quanto
é bicho do mar do arquipélago.
Membro da comissão escalada para estudar o Plano de Gestão de
Ecoturismo e Desenvolvimento Sustentável do arquipélago, documento que
serve de guia para futuro do lugar. Martins põe o dedo no alarme para o
momento que vive Noronha. Com problemas de saneamento, abastecimento e
energia elétrica, a ilha, com seus 3 mil habitantes e a presença, como
comprovou TRIP no registro do aeroporto local em janeiro, de até 1 140
visitantes (a lei limita em 750 turistas/dia), está no limite das suas
possibilidades de infra-estrutura.
Segundo Murilo Cavalcanti, 40 anos, coordenador de programas
estratégicos do arquipélago, foi feito um estudo científico de capacidade de
carga que concluiu que a ilha pode receber mais de 800 turistas sem agredir
seu meio ambiente. Mas Murilo salienta que o governo do Estado de
Pernambuco não tem interesse em aumentar demais o número de visitantes
em Noronha. "A idéia é praticar um turismo qualitativo e não quantitativo. Não
queremos turismo de massa".
fantasma da ilha
Esse cenário faz com que os nativos, como Domício Alves Cordeiro,
benzam-se várias vezes quando a eterna polêmica da implantação de grandes
redes hoteleiras rondam a área, como ocorre desde o início do ano. Com cerca
de cem pousadas em casas de família, o que é considerado um ganho em
ascensão social e distribuição de renda para os moradores, o debate é um
assombro equivalente à lenda local da Alamoa, uma galega gigante, que
costuma andar nua, com "fosforescência e maldade nos olhos", para devorar
os homens sem mulheres do lugar.
Os grandes hotéis, pensam os moradores da ilha, vão aniquilar as
pequenas pousadas e engolir a ilha, como ocorre adoidado nas comunidades
de pescadores espalhadas pela costa nordestina. A Alamoa, no imaginário
noronhense, costuma espantar os pescadores e notívagos em geral apenas
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sacaram que uma das saídas do jornalismo seria essa aproximação com a
literatura. Preferem a chatice sempre, por isso que as tiragens despencam a
cada mês. Acho que o jornalismo literário seria grande saída para enfrentar a
concorrência da internet. Um dia eles vão atentar.