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Máquina
Pára
de E. M. Forster1
1 Traduzido e anotado por Renato Pincelli. Mais informações sobre o autor e o tradutor nas notas biográficas após o conto.
I
A Aeronave
Imagine, se puder, uma pequena sala, hexagonal em forma, como a célula
de uma colmeia. É iluminada, não por janelas ou lâmpadas, mas por uma
suave radiância. Não há aberturas para ventilação, embora o ar seja
fresco. Não tem instrumentos musicais, e, ainda assim, neste momento em que abro estas meditações,
esta sala está pulsando com sons melódicos. Ao centro, repousa uma cadeira com braços, ladeada por uma
mesa de leitura; é toda a mobília. E na cadeira está um pedaço de carne — uma mulher, com cerca de um
metro e meio e uma face esbranquiçada como um fungo. Esta é a sua sala.
Uma campainha elétrica toca.
A mulher gira um botão e a música silencia.
“Acho que devo ver quem é”, pensou ela, ao colocar a cadeira em movimento. A cadeira, como a mú-
sica, funcionava a base de mecanismos e saiu a rolar até o outro lado da sala, onde a campainha, inoportuna-
mente, ainda tocava.
“Quem é?”, interrogou ela. Sua voz estava irritada, pois ela havia sido interrompida várias vezes des -
de o início da música. Ela conhecia alguns milhares de pessoas. Em certo sentido, as interações humanas ha-
viam avançado enormemente.
Mas ao ouvir o receptor, sua branca face enrugada sorriu e ela disse:
“Muito bem, vamos conversar. Só vou me isolar, mas espero que nada importante acontecerá nos
próximos cinco minutos. Posso lhe dar cinco minutos inteiros, Kuno. Depois, tenho que apresentar minha
palestra sobre 'Música durante o Período Australiano'.”
Ela alcançou o botão de isolamento, de modo que ninguém mais poderia falar com ela. Depois, ela
tocou o aparato iluminador e a pequena sala mergulhou numa escuridão.
“Rápido!”, exclamou ela, com a irritação de volta. “Seja rápido, Kuno. Aqui estou eu no escuro per-
dendo meu tempo.”
Mas foram necessários quinze segundos completos antes que a placa redonda que ela segurava nas
mãos começasse a brilhar. Uma luzinha tênue e azulada, quase púrpura, derramava-se e então ela pode ver a
imagem de seu filho, que vivia do outro lado da Terra. E ele pôde vê-la também.
“Kuno, seu lerdo.” — e ele sorriu seriamente — “Eu realmente sei que você adora vadiar.”
“Eu te procurei antes, mãe, mas você sempre estava ocupada ou isolada. Tenho algo em particular
para dizer.”
“O que é, meu filho? Seja breve. Por que você não manda pelo correio pneumático?”
“Porque eu prefiro dizer essa coisa. Eu quer...”
“Sim?”
“Eu queria que você viesse aqui pra me ver.”
Vashti via o rosto dele em sua placa azul.
“Mas eu estou te vendo! O que mais você quer?”
“Eu quero te ver, mas não através da Máquina.”, explicou Kuno. “Eu quero lhe falar, mas não por
meio de uma Máquina monótona.”
“Xiiii...”, reagiu ela, meio chocada. “Você não devia dizer nada contra a Máquina.”
“Por que não?”
“Ninguém pode.”
“Você fala como se um deus tivesse feito a Máquina.”, indignou-se o outro. “Eu sei que você ora pra
ela quando está infeliz. Homens a fizeram, não podemos nos esquecer disso. Grandes homens, mas apenas
homens. A Máquina é muito, mas não é tudo. Vejo algo parecido com você nessa placa, mas não vejo você.
Ouço algo como você por esse telefone, mas não é você que ouço. É por isso que quero que você venha. Faça-
me uma visita, para que possamos nos encontrar face a face e falar sobre as esperanças que estão em minha
mente.”
Ela respondeu que mal tinha tempo livre para uma visita.
“A aeronave leva menos de dois dias para voar entre você e eu.”
“Eu detesto aeronaves.”
“Por quê?”
“Detesto ver essa terrível terra parda, o mar e as estrelas, quando está escuro. Não tenho ideias em
uma aeronave.”
“Não tenho ideias em lugar nenhum.”
“Que tipo de ideias o ar pode lhe dar?”
Por um instante, ele fez uma pausa.
“Você não conhece quatro grandes estrelas que formam um paralelogramo e três estrelas que se jun-
tam no meio do paralelogramo e, partindo destas, três outras estrelas pendentes?”
“Não, não conheço. Detesto as estrelas. Mas elas lhe deram uma ideia? Que interessante. Conte-me.”
“Eu tive uma ideia de que elas eram como se fosse um homem.”
“Não entendi.”
“As quatro estrelas grandes são os ombros e joelhos do homem. Depois, tem as três estrelas do meio,
que se parecem com cinturões que os homens usaram um dia. E as três estrelas pendentes são como uma es -
pada.”
“Uma espada??”
“Os homens costumavam levar espadas com eles, para matar animais ou outros homens.”
“Não me parece uma ideia muito boa, mas com certeza é original. Quando lhe ocorreu?”
“Na aeron...”
Ele foi interrompido, e ela notou como ele parecia triste. Ela não podia ter certeza, porém, pois a Má-
quina não transmitia essas nuanças de expressão. Apresentava apenas uma imagem geral da pessoa — uma
imagem muito boa para fins práticos, como pensou Vashti. O imponderável rubor, que um desacreditado fi -
lósofo considerava a essência de um contato, era corretamente ignorado pela Máquina, assim como as man-
chas das frutas eram ignoradas pelos fabricantes de sucos artificiais. Era algo “bom o bastante”, que há muito
havia sido aceitado por nossa raça.
“A verdade é que...”, reapareceu ele. “...eu quero ver essas estrelas novamente. São estrelas curiosas es-
sas. Eu quero vê-las não da aeronave, mas da superfície da Terra, como nossos ancestrais fizeram há milhares
de anos. Eu quero ir pra superfície da Terra.”
Ela estava chocada. Outra vez.
“Mãe, se puder, venha. Se puder, explique pra mim qual é o risco de visitar a superfície da Terra.”
“Risco nenhum.”, disse ela, mantendo a compostura. “Mas vantagem nenhuma. A superfície e apenas
lama e poeira e não vale a pena. Apenas lama e poeira, sem nenhuma vida e você ainda precisaria de um res -
pirador. Ou então o frio do ar livre acabaria por lhe matar. Morre-se imediatamente ao ar livre.”
“Sei. É claro que devo tomar todas as precauções.”
“E, além disso...”
“Bem?”
Ela considerou e escolheu suas palavras com muito cuidado. Seu filho tinha um temperamento sen-
sível e ela queria dissuadi-lo da expedição.
“É contrário ao espírito da época.”, sentenciou ela.
“Você quer dizer que é contrário à Máquina?”
“De certo modo, mas...”
A imagem na sua placa azul se apagou. — “Kuno!” — Ele havia se isolado.
Por um momento, Vashti sentiu-se solitária.
Então ela acendeu as luzes e a vista de sua sala, inundada pela radiância e temperada com botões elé -
tricos, reanimou-a. Há botões e interruptores por todos os lados — botões para pedir comida, ou música, ou
roupas. Há um botão de banho quente que, ao ser pressionado, eleva uma banheira de (falso) mármore rosa
— cheia até a borda com um líquido quente e desodorante — de seu subsolo. Também há o botão para o ba -
nho frio. E o botão que produzia literatura. E, é claro, o botão através do qual ela se comunica com seus ami -
gos. Embora não comportasse nada, a sala estava em contato com tudo que lhe importava no mundo.
Em seguida, Vashanti2desligou o botão de isolamento e todas os acúmulos dos últimos três minutos
foram lançados sobre ela. A sala foi tomada pelos ruídos de campainhas e alto-falantes. Como era a nova co -
mida? Ela a recomendaria? Ele havia tido alguma ideia recentemente? Alguém lhe contou uma de suas ideias
próprias? Ela confirmaria um compromisso de visitar os berçários públicos em tal dia e tal hora?
A maioria destas questões foi respondida com irritação — uma característica cada vez mais comum
desta era acelerada. Ela disse que a nova comida era horrível. Que não poderia visitar os berçários públicos
por pressão de outros compromissos na data marcada. Que ela não tivera ideias por si mesma, mas havia ou -
vido uma — que quatro estrelas permeadas por outras três de certa maneira eram como um homem, mas ela
não levou isso muito a sério. Depois, desligou-se de seus correspondentes pois era a hora de apresentar sua
palestra sobre música australiana.
O desajeitado sistema de reuniões públicas havia sido abandonado há muito e nem Vashti nem sua
audiência saíram de seus aposentos. Sentada em sua cadeira, ela falou; eles, em suas respectivas cadeiras, vi -
ram-na e ouviram-na, bastante bem, aliás. Ela começou com um relato cheio de humor da música da Era
Pré-Mongol e prosseguiu a descrever a grande explosão de canções que se seguiram à Conquista Chinesa.
Remotos e primitivos como eram os métodos de I-San-So e da Escola de Brisbane, ela ainda sentia (disse)
que o estudo destes seria válido para os músicos de hoje: eles tinham vigor e, acima de tudo, tinham ideias.
Sua palestra, que durou dez minutos, foi bem recebida. Após sua conclusão, ela e muitos de seus ouvintes
acompanharam uma conferência sobre o mar. Era possível encontrar ideias no mar e o palestrante relatava
ter usado um respirador para visitá-lo recentemente. Depois, ela alimentou-se, conversou com alguns ami-
gos, tomou um banho, conversou mais um pouco e chamou por sua cama.
A cama não era do seu agrado. Era muito grande e ela tinha uma preferência por camas pequenas.
Reclamar era inútil, pois as camas eram todas do mesmo tamanho no mundo inteiro e conseguir uma altera-
ção de tamanho envolveria vastas modificações na Máquina. Vashti isolou-se — o que era necessário, pois
nem dia nem noite existiam sob o solo — e relembrou tudo o que havia lhe acontecido desde sua última ida à
cama. Ideias? Quase nenhuma. Eventos? O convite de Kuno poderia ser considerado um evento?
Ao seu lado, na pequena cabeceira, havia um sobrevivente dos tempos das desordens — um livro.
Era o Livro da Máquina. Nele havia instruções para qualquer contingência possível. Se ela estava com febre,
ou com frio, ou dispéptica, ou à procura de uma palavra, ela procurava no livro e nele havia a instrução de
qual botão pressionar. Fora publicado pelo Comitê Central e era ricamente encadernado.
Sentada na cama, ela tomou o livro nas mãos com toda a reverência. Olhou à sua volta, como se pu -
desse haver mais alguém observando-a em sua sala. Então, meio intimidada, meio exultante, ela murmurou
— Ó Máquina! — e aproximou o volume de seus lábios. Beijou-o três vezes, três vezes reclinou sua cabeça e
por três vezes sentiu o delírio da aquiescência. Terminado o ritual, ela passou à página 1367, que informava
os horários de saída das aeronaves da ilha no hemisfério meridional, no subsolo da qual ela vivia, para a ilha
no hemisfério setentrional, sob a qual morava seu filho. “Não tenho tempo”, pensou.
2 “Vashanti” [sic]; possivelmente é um erro tipográfico do original, embora também possa ser da transcrição para o meio
digital. (N. do T.)
Ela escureceu a sala e dormiu. Acordou e acendeu as luzes; comeu; trocou ideias com amigos; ouviu
um pouco de música e ouviu algumas palestras; escureceu a sala e dormiu novamente. Sobre ela, sob ela, ao
redor dela, a Máquina murmurava eternamente e ela não notara nunca o ruído, pois ouvira-o desde seu nas -
cimento. A Terra, por sua vez, carregava-a enquanto atravessava velozmente imensidões silenciosas, ora vol-
tando-a para o sol invisível, ora para as estrelas invisíveis. Ela acordou e iluminou a sala.
“Kuno!”
“Eu não vou conversar com você”, respondeu ele. “A não ser que você venha.” Sua imagem apagou-se.
Novamente, ela consultou o livro. Estava muito nervosa e palpitante ao sentar-se em sua cadeira. Era
como se não tivesse mais dentes ou cabelos. Pediu que a cadeira a levasse até a parede e apertou um botão
quase desconhecido. A parede abriu-se lentamente. Pela abertura, ela pôde ver um túnel levemente curvado e
cujo fim, portanto, não era visível. Se ela fosse encontrar seu filho, este seria o começo de sua jornada.
É claro que ela sabia tudo sobre os sistemas de comunicação. Não havia mistério algum naquilo. Ela
chamaria um carro e ele voaria com ela pelo túnel até alcançar o elevador que daria na estação aeroviária. O
sistema estava em uso há muitos e muitos anos, muito antes do estabelecimento universal da Máquina. E é
claro que ela havia estudado a civilização que havia precedido a sua própria — a civilização que havia se
equivocado quanto às funções do sistema e que o havia utilizado para levar pessoas às coisas e não trazer coi -
sas às pessoas. Aqueles dias engraçados, quando homens saiam para mudar de ares em vez de trocar o ar de
suas salas! Mesmo assim... ela estava assustada com o túnel: ela não o via desde que seu último filho havia
nascido. Era curvo, mas não tanto quanto ela se recordava. Era brilhante, mas não tanto quanto um pales-
trante havia sugerido. Vashti foi paralisada pelo horror da experiência direta. Ela recolheu-se em sua sala e
fechou a parede novamente.
“Kuno”, disse ela. “Não posso ir te ver. Não me sinto bem.”
Imediatamente, um enorme aparelho saiu de uma abertura do forro e um termômetro foi automati-
camente colocado sob uma de suas axilas. Ela estava impotente. Compressas de água fria resfriavam sua
fronte. Kuno havia telegrafado para o médico dela.
Assim, ainda havia altos e baixos na existência humana dentro da Máquina. Vashti tomou o remédio
que seu médico mandou para sua boca e o aparelho recolheu-se no forro. A voz de Kuno lhe perguntava
como ela se sentia.
“Melhor”. Depois, um pouco irritada, completou: “Mas por que você é que não vem me visitar??”
“Porque não posso sair deste lugar.”
“Por quê?”
“Porque, a qualquer momento, algo tremendo pode acontecer.”
“Você já esteve na superfície da Terra?”
“Ainda não.”
“Então o que é?”
“Não vou lhe dizer através da Máquina.”
Ele encerrou a chamada. Ela retomou sua vida.
Mas ela lembrava-se de Kuno quando ele era bebê. Seu nascimento, sua remoção para os berçários
públicos, sua própria visita para vê-lo lá e, depois, suas visitas para ela — visitas que haviam sido interrompi -
das quando a Máquina lhe designou para uma sala situada do outro lado do mundo. “PAIS, Deveres dos.”, di-
zia o Livro da Máquina, “cessam no momento do nascimento. P.422327483”. Certo, mas havia algo especial
em relação a Kuno— na verdade havia algo especial em relação a cada um de seus filhos. Depois de tudo, ela
deveria enfrentar essa jornada, se esse fosse o desejo dele. E esse “algo tremendo pode acontecer”? O que sig -
nifica isso? Sem dúvida era um disparate de um jovem homem, mas ela deveria ir. Novamente ela pressionou
aquele botão pouco familiar. Novamente, a parede deslizou e abriu-se lentamente e ela pôde ver o túnel que
se curva além da vista. Agarrada ao Livro, ela levantou-se, cambaleou até a plataforma e chamou pelo carro.
Atrás, sua sala fechou-se. A jornada para o hemisfério norte havia começado.
E era mesmo perfeitamente simples começar. O carro aproximou-se e, dentro dele, ela viu cadeiras
idênticas à sua. Quando ela fez o sinal, ele parou e ela sentou-se. Havia outro passageiro a bordo: a primeira
criatura viva que ela via face a face em meses. Poucos são os que viajam nestes dias pois, graças aos avanços
da Ciência, a Terra era exatamente igual em todos os lugares. Uma rápida turnê, que a antiga civilização tan-
to desejara, havia se tornado completamente inútil. O que havia de bom em ir pra Pequim quando era o mes-
mo que Shrewsbury? Porque voltar a Shrewsbury se era igual a Pequim? Os homens, agora, mal moviam seus
corpos. Toda sua concentração estava voltada para suas mentes.
A aeronave era uma relíquia da antiguidade. Foi mantida apenas porque seria mais fácil isso do que
interromper ou diminuir seus serviços, embora a oferta excedesse em muito a demanda da população. Nave
após nave elevava-se dos vomitórios de Rye ou de Christchurch (seus antigos nomes), navegavam pelos céus
lotados e atracavam — vazias — nos embarcadouros do sul. Tão preciso era o sistema e tão independente da
meteorologia que o céu, calmo ou nebuloso, lembrava um vasto caleidoscópio no qual os mesmos padrões
sempre se repetiam periodicamente. A nave na qual Vashti embarcou zarpava ora ao pôr-do-sol, ora na auro-
ra. Mas sempre que passava sobre Rheas, aproximava-se da nau que servia entre Helsingfords e os Brasis 3 e, a
cada três cruzamentos sobre os Alpes, sua rota cruzava-se com a da frota de Palermo. Noite e dia, ventos e
tempestades, marés e terremotos não mais impediam os homens. Ele domara o Leviatã. Toda a literatura an-
tiga, com seu louvor à Natureza e seu temor à Natureza parecia agora tão falsa quanto a tagarelice de uma
criança.
Mesmo assim, quando Vashti viu o casco da nave manchado pela constante exposição ao ar livre, foi
tomada novamente pelo horror à experiência direta. Não era como a aeronave do cinemafoto. Pois aquela
coisa cheirava — não intensa ou desagradavelmente, mas cheirava. Com seus olhos fechados ela podia saber
por isso que havia algo diferente diante dela. Então ela teve que andar até o elevador e submeter-se aos olha-
res de outros passageiros. Um homem à sua frente deixou cair seu Livro — não era nada grave, mas deixou
todos inquietos. Nas salas, se o Livro caísse, o chão levantava-o mecanicamente. Mas o passadiço da aeronave
não estava preparado para isso e o sagrado volume ficou ali, inerte. Eles pararam — aquilo nunca havia sido
visto — e o homem, em vez de reaver sua propriedade com as próprias mãos, retesou os músculos de seu
braço procurando entender como eles podiam ter lhe traído. Então alguém disse, em voz alta e com bastante
autoridade: “Nós vamos nos atrasar”. Enquanto todos subiam a bordo, Vashti agarrava-se ainda mais ao seu
volume.
Lá dentro, sua ansiedade aumentou. A decoração era antiquada e rústica. Havia até mesmo uma co -
missária de bordo, a quem ela deveria se dirigir para fazer seus pedidos durante a viagem. É claro que havia
uma esteira rolante correndo por toda a extensão da nave, mas ela esperava ter que ir a pé até sua cabine. Al-
gumas cabines, aliás, eram melhores que outras, mas ela não conseguiu uma das boas. Ela pensou que a co-
missária havia sido injusta e tremia de raiva por causa disso. As válvulas de vidro foram fechadas e ela não
podia mais retornar. Ela viu, no fim do vestíbulo, o elevador no qual havia ascendido; vazio, ele ia tranquila-
mente para cima e para baixo. Debaixo daqueles corredores e telhados brilhantes havia salas, camadas sob
camadas, até as profundezas da Terra. Em cada uma delas havia um ser humano a comer, a dormir ou a pro -
duzir ideias. Enterrada lá no fundo daquela colmeia estava sua própria sala, perdida em algum canto. Vashti
sentiu-se amedrontada.
“Ó, Máquina!”, murmurou ela acariciando o Livro para se aliviar.
Então os lados do vestíbulo pareceram fechar, como acontece com as passagens que vemos em so-
nhos; o elevador e o Livro que foi deixado para trás desvaneceram-se; telhas polidas corriam feito um curso
d'água; houve um pequeno tremor e a nave, saindo de seu túnel, decolava sobre as águas de um oceano tropi-
cal.
Era noite. Por um momento ela viu a costa de Sumatra bordejada pela fosforescência das ondas e cra-
vejada de faróis, que ainda emitiam seus desprezados fachos de luz. Eles também desapareceram e havia ape-
nas estrelas para distraí-la. Elas não eram totalmente fixas, mas balançavam para lá e para cá acima de sua
seraficamente livre
Notas Biográficas
Sobre o autor
NO PRIMEIRO DIA DE JANEIRO DO ANO DE 1879 nasceu em Londres um menino que se chamaria
Edward Morgan Forster e cuja vida seria longa e cheia de contradições. Seu pai, um arquiteto de
uma família evangélica muito conservadora, acabou falecendo como um romântico das antigas — vitimado pela
tuberculose — pouco depois do nascimento de Morgan (como o menino era tratado pela família). Sua mãe era
mais liberal e algo errática, mas o pequeno Morgan acabaria criado — com ajuda de uma tia paterna — em um
ambiente de uma rigidez tipicamente vitoriana, a quinta de Rooksnest. Mais tarde, o menino seria educado em re-
gime de semi-internato na Tonbridge School, em Kent. Quando chegou ao King's College, em Cambridge, ele final-
mente encontrou um ambiente onde poderia exercitar livremente sua curiosidade intelectual. Foi em Cambridge
que ele entrou em contato com culturas estrangeiras (apaixonou-se pela cultura mediterrânea), deixou de ser Mor-
gan e passou a ser apenas E.M. Forster .
Foi pouco depois de sua graduação no King's College que E.M. Forster começou a escrever. Suas primeiras
obras eram, como não poderia deixar de ser, reflexos de sua época: contos ambientados em meio às rápidas mu-
danças sociais durante o fim do vitorianismo. Em dois aspectos, porém, esses primeiros trabalhos já se destacavam.
Primeiro, em termos estilísticos: Forster era muito mais coloquial e acessível que seus contemporâneos. Segundo,
em termos ideológicos: já ficava bem clara a convicção de Forster de que homens e mulheres precisam estar ligados
ao campo, à terra — muitas vezes à terra natal — para serem capazes de cultivar seus sentimentos e manter a sani -
dade física e mental. No entanto, esse tema constante de ligação com a terra ou a natureza nada tinha de patriotis -
mo ou nacionalismo. Há um quê de naturalismo saudosista, meio rosseauniano, nessa ligação defendida por Forster
ao longo de sua obra. Mais provável é a pesada influência da educação em regime de internato sobre um garoto que
adorava a vida ao ar livre.
Esse retorno ao ar livre, ao campo, à natureza e à humanidade como parte da natureza — bastante explíci-
to no conto The Machine Stops [A Máquina Pára] — também está presente de alguma forma em seus dois primei-
ros romances, Where Angels Fear to Tread [Onde os Anjos temem Pisar], de 1905; e The Longest Journey [A Mais
Longa Jornada], de 1907. Sua obra seguinte, publicada em 1908, é uma novela cômica, A Room With a View [Um
Quarto Com Vista], mas mesmo essa obra mais leve traz o tema do afastamento do país natal ao retratar as experi-
ências de uma jovem britânica na Itália. Conto publicado originalmente na Oxford and Cambridge Review em
1909, The Machine Stops foi a única visita de E.M. Forster ao gênero da Ficção Científica.
Foi somente o seu quarto livro, Howards End (1910), que chamou a atenção do público e da crítica.
Howards End tem uma trama típica de Forster e o título é o nome da quinta onde vive um grande empreendedor,
Henry Wilcox, e sua mulher, Ruth. Insatisfeita com o casamento, Ruth monta um complô contra o marido com as
liberais irmãs Schlegel. Estas acabam se apossando de Howards End. Apesar de ser expulso da quinta da família,
Henry Wilcox acaba retornando ao se casar com Margaret Schlegel. Assim, o segundo casamento reestabelece a li-
gação de Wilcox com a antiga propriedade da família. Alguns críticos veem um quê de autobiografia em Howards
End. Embora o final dessa novela pareça conservador e até previsível, Forster o redigiu enquanto se aproximava do
Bloomsbury Group, um grupo de pensadores britânicos boêmios e inconvencionais. Entre eles, Virginia Woolf,
John Maynard Keynes, Dora Carrington e Lytton Strachey.
Durante a maior parte da I Guerra Mundial, E.M. Forster passou a vida em Alexandria, no Egito, traba -
lhando como funcionário público do Império Britânico. Pouco antes de sair do Reino Unido, em 1914, publica sua
primeira coletânea de contos, The Celestial Omnibus [O Ônibus Celestial], onde The Machine Stops foi republicado.
Nos anos seguintes, E. M. esteve por duas vezes na Índia, experiência que lhe daria inspiração para seu próximo ro-
mance, A Passage to India [Uma Passagem para a Índia], de 1924. Nesta obra Forster examina a ocupação colonial
da Índia pelos britânicos. Há menos política do que pode parecer, pois o romance é centrado apenas na amizade
que nasce entre um médico indiano e um professor britânico após um julgamento no qual o médico havia sido fal-
samente acusado de um crime. A Passage to India foi o último romance publicado pelo autor em vida.
A partir da segunda metade dos anos 1920, Forster começa a parecer cada vez mais antiquado para o pú -
blico. Em resposta, ele se isola de um mundo que lhe parece cada vez mais industrializado, massificado e totalitário
e publica cada vez menos. Apenas dois livros são publicados depois desse período: em 1928 sai The Eternal Mo-
ment [O Momento Eterno], coletânea de contos; oito anos mais tarde, em 1936, Abinger Harvest [Colheita de Abin-
ger], antologia que reúne poesias, ensaios e diversos textos de ficção e não-ficção. Forster ainda escreveu o libretto
para Billy Budd, ópera de Benjamin Britten. Após a II Guerra Mundial, seus ensaios e palestras, cada vez mais poli-
tizados, lhe garantiram a reputação de pensador liberal e árduo defensor da democracia. Por isso, em 1953, foi pre-
miado com a Order of Companions of Honor [Ordem dos Companheiros de Honra] e agraciado com a Order of
Merit [Ordem do Mérito] pela rainha Elizabeth II em 1969.
Em 1970, após uma série de derrames, chegou ao fim a conexão de E.M. Forster com a vida. Em sua lápide
lê-se as palavras que mais prezava — Only Connect. Por fim, dois romances foram publicados postumamente, a pe-
dido do autor: Arctic Summer [Verão Ártico], obra iniciada nos anos 1920 mas inacabada; e Maurice, escrita por
volta de 1914 e que surpreendeu o público por sua temática homoafetiva.
Uma ironia póstuma é que E.M. Forster – que sempre se opôs a qualquer tipo de adaptação de suas obras,
seja para o teatro, o cinema ou a televisão — acabaria sendo redescoberto e reconhecido justamente quando seus
maiores romances foram transformados em obras cinematográficas: A Passage to India (1984), A Room with a
View (1986) e dois filmes em 1991, Where Angels Fear to Tread e Howards End.
Sobre o tradutor
NASCIDO MAIS DE UM SÉCULO DEPOIS DE Forster (111 anos depois, para ser exato), Renato Pincelli
vive num mundo muito parecido com o descrito em A Máquina Pára. Troque A Máquina por A Internet ou A
Rede Social e é fácil perceber como E. M. Forster soa profético neste conto que retrata uma sociedade que é a um só
tempo multiconectada e super-individualizada; avessa ao ar livre e com vontade de ser saudável; curiosa enquanto re-
jeita tudo que seja estrangeiro; tecno-racionalista e fundamentalista. Digitalizado há muito em língua inglesa, o conto
foi descoberto pelo tradutor justamente por meio da rede mundial de computadores. Fica aqui, portanto, o agradeci-
mento à Máquina por ter se revelado ao tradutor por meio d'A Máquina.
Formado em jornalismo pela Unesp-Bauru em 2013, quando começou a tradução deste conto, Pincelli levou
anos para concluí-lo, menos por dificuldades técnicas e mais por uma mistura de procrastinação, esquecimentos e dis-
trações (on- e off-line). Entre essas distrações esteve a redação de um livro — Patentes Patéticas, baseado em material
publicado no hypercubic, blog que mantém desde 2007 — e o início do mestrado em 2017, após uma tentativa frus-
trada de retorno à academia. O fato de ter esquecido o arquivo num notebook sem uso também dificultou a publica-
ção deste conto traduzido. Pois é: depois de se revelar, minha Máquina parou. Pensei ter perdido o texto, mas ele foi
reencontrado – Ó Gloriosa Máquina! Mais difícil do que traduzir, porém, foi decidir o que escrever sobre si mesmo
neste espaço pois não havia máquina que fizesse isso por mim sozinha. Felizmente (ou não).