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Thiry viveu num tempo muito propício para a feitura da sua obra – prova-o não
somente o seu apreço pela química nascente, à qual dedicou nada menos do que 396 artigos,
mas também as figuras que frequentaram sua propriedade, tais como Diderot, Hume,
D’Alembert e Rousseau. Nos encontros organizados em sua casa, o empirismo de Locke era
muito propagado por ele. Aliás, Holbach fez parte da Encyclopédie1. Esses encontros eram
jantares luxuosos promovidos pelo próprio barão (o que lhe rendeu a alcunha de Le premier
maître d’Hotel de la philosophie). Algumas das figuras que os frequentavam eram, assim como
Holbach, ateístas. Sobre a questão do ateísmo de Holbach, Rousseau fizera uma alusão em La
nouvelle Heloïse, dando a entender que Hobach era o ateu que incorporava todas as virtudes
cristãs. Como veremos, Holbach elaborou um sistema materialista no qual incluíra uma ética; o
fato de Holbach ser ateu lhe rendeu muitas animosidades, que não passavam de preconceitos,
pois o filósofo se preocupou com a moral e o bom convívio entre os homens. O próprio
subtítulo do Système de la nature é Des lois du monde physique et du monde moral.
1
Araújo, Robson Jorge de. O materialismo radical de Holbach e a química moderna. Dissertação de
mestrado. UFMG, 2006.
2
Stanford Encyclopdia of Philosophy. Acessível em: https://plato.stanford.edu/entries/holbach/#1
3
Holbach. Système de la nature ou des lois du monde physique et du monde moral, p.5
4
Holbach. Op. cit. p. 8
“Tomemos a experiência por guia; consultemos a natureza.”5 Mas, ao contrário de Locke,
Holbach não admitirá a existência de Deus senão como uma quimera proveniente da
imaginação e do desconhecimento da natureza, uma quimera de cujo nosso conhecimento
não pode haurir nenhuma ideia fiável.
Holbach dirá que o homem é produto da natureza, isto é, o homem é apenas parte
deste todo a que chamamos natureza: a reunião de diferentes matérias e suas diferentes
combinações. Por considerar o homem um ser puramente físico, a distinção entre homem
físico e homem moral é uma distinção feita meramente a partir de um ponto de vista: “O
homem físico é o homem que age pelo impulso de causas que os nossos sentidos nos fazem
conhecer; o homem moral é o homem que age pelas causas físicas que os nossos preconceitos
nos impedem de conhecer”6.
Assim, vemos que, para Holbach, mesmo o agir moral não é senão uma cadeia de
causas e efeitos físicos. Notamos também a influência da química sobre o filósofo, uma vez
que ele admite o movimento mecânico, mas reconhece que os corpos estão sempre em
movimento do ponto de vista químico: a natureza está sempre em movimento, está sempre a
desenvolver-se. A própria essência da natureza, diz Holbach, é agir; não há corpo que goze de
repouso absoluto: o corpo não goza senão de um repouso aparente, porquanto o movimento
dos átomos e o movimento de composição das moléculas, por exemplo, são imperceptíveis
para nós.
Mas de onde a natureza recebe seu movimento? ora, se não há nada fora da natureza,
o movimento deve provir dela mesma. A matéria está sempre em movimento em razão de
suas forças internas e inerentes. Holbach falará do movimento das moléculas insensíveis
internas aos corpos e usará como exemplo o processo de fermentação, ou seja, um processo
químico. Outrossim, a vontade humana também resulta desse movimento chamado interno.
Cito Holbach:
Não há, para Holbach, segundo a mecânica dos corpos e a sua composição interna,
movimento que seja estritamente espontâneo: toda mudança ocorre devido à ação recíproca
dos corpos e das moléculas imperceptíveis; ocorre devido aos movimentos visíveis ou ocultos
aos nossos sentidos. Ora, mas em que isso implica? Se a vontade que inclina o homem para
uma ação em particular é determinada por causas exteriores, não há livre-arbítrio; de igual
modo, se a matéria se move a partir de sua própria energia, excluímos a possibilidade de um
Deus que criou este mundo. Nietzsche também negará o livre-arbítrio, considerando o
indivíduo uma polifonia de forças com um único sentido; a ação – para Nietzsche, ser é agir –,
não é determinada por um sujeito isolado do mundo que possui o pensamento como atributo,
mas pelas forças que se relacionam.
5
Holbach. Op. cit. p. 11
6
Holbach. Op. cit. p. 7
7
Holbach. Op. cit. p. 16
Portanto, vemos que no sistema de Holbach, nenhum lugar é reservado para Deus ou
para o livre-arbítrio, uma vez que “suas (i.e., do homem) ações visíveis, assim como os
movimentos invisíveis excitados no seu interior, devenientes de sua vontade ou do seu
pensamento, são, igualmente, efeitos naturais, sucessões necessárias de seu mecanismo
próprio e dos impulsos que ele recebe dos seres que o cercam”8. De igual modo, todo
desenvolvimento da humanidade não é senão uma “longa sucessão de causas e efeitos”
daquilo que a natureza dotou o homem.
Com isso, poderíamos erroneamente supor que Holbach não está preocupado com
problemas éticos e morais, uma vez que ele considera Deus uma quimera criada pelo homem a
partir da ignorância acerca de sua própria natureza – mais, a partir da ignorância do homem
em relação à natureza como um todo, da qual ele é apenas uma parte – e não há no seu
sistema nenhum espaço para o livre-arbítrio. Porém, Holbach se preocupa verdadeiramente
com os problemas de natureza ética e moral. Para ele, o fundamento das ações humanas não
deve derivar de um ser metafísico e inexperienciável pelos homens; o fundamento das
relações e ações humanas devem, ao contrário, derivar do conhecimento da natureza, uma vez
que, conhecendo a natureza, o homem conhece a si mesmo. Neste ponto, vemos Holbach dar
um passo além de Locke, para quem a moral é pensada no nível das ideias complexas de
relação, que o pensamento engendra a partir de operações da reflexão; para Holbach, como
dissemos acima, o homem é puramente físico. O conhecimento e a ação conforme à natureza
é também o ponto de convergência entre Holbach e o estoicismo. Comparemos o que
dissemos com essa passagem de Marco Aurélio:
Como produto da natureza, o homem está submetido às suas leis. Nessas leis, nessa
natureza ao qual o homem pertence, reside a felicidade. “Todo erro é nocivo”, diz Holbach: “é
por ter se enganado que o gênero humano se tornou infeliz”11. Holbach considera, então, que
os erros morais devêm da ignorância em relação à natureza. Ele acredita que, se o homem
tivessem recorrido ao conhecimento da natureza pela experiência, ele não se enganaria. Até
então, os homens mergulharam no abismo do oceano metafísico e negligenciaram que é no
conhecimento da natureza que está a cura para os infortúnios e o caminho para a felicidade: a
partir dessa negligência, criaram uma fantasia responsável tanto pelas suas penas quanto
pelas suas glórias: Holbach, então, atribui à falta de conhecimento da razão imanente à
natureza a criação dos deuses.
8
Holbach. Op. cit. p. 6
9
Marco Aurélio. Meditações, livro V, meditação 3.
10
Marco Aurélio. Op. cit. Livro VI, meditação 58.
11
Holbach. Op. cit. p. 8
Nietzsche trilhará um caminho similar: para ele, o ressentimento cristão cinde o
mundo numa dicotomia, qual seja, a do mundo ilusório, passageiro e de sofrimentos, que é
este, e do mundo verdadeiro e estável, no qual reside a felicidade post-mortem. Já no século
XVIII, Holbach quererá demonstrar que não existe dicotomia entre homem e natureza: o
homem não precisa esperar e nem acreditar na vida após a morte para viver bem consigo e
com os outros, mas deve fazê-lo aqui, visto que não existem dois mundos, mas apenas um,
onde homem e natureza estão unidos. Cito Holbach:
Olhando para a natureza como um objeto, no sentido mais etimológico da palavra, isto
é, como aquilo que lhe é oposto, o homem cria fantasias, quimeras, como se a natureza lhe
fosse alheia. O problema que Holbach levanta é muito atual. Cuidar da natureza é cuidar de si;
cuidar do outro, como parte integrante da natureza, também é cuidar de si.
12
Holbach. Op. cit. p. 9
13
Holbach. Op. cit. p. 11
14
Holbach. Op. cit. p. 9
O sistema de Holbach é uma prova de que o homem não precisa buscar na
transcendência uma felicidade vindoura, mas que ele pode ser feliz aqui, na única existência
que lhe é possível. Para tal, o homem deve mergulhar no conhecimento da natureza, uma vez
que, adentrando as portas da natureza, o homem conhece também a si mesmo como parte
integrante da natureza. Homem e natureza estão de tal forma unidos que o conhecimento de
um deságua no conhecimento do outro.