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O APRENDIZ DE

LIVREIRO
Cleber Marques de Oliveira
Esta obra é uma ficção. Qualquer semelhança com a
realidade será uma mera coincidência. No entanto,
todos os livros e autores citados de fato existem.

Todos os direitos reservados ao autor.


Publicado pelo Clube de Autores, 2018.
PARTE 1
LIVROS QUE CURAM
CAPÍTULO I

Aracaju ainda dormia quando Nando desceu


a rua às pressas, tentando ajeitar a gola da camisa
malpassada e ao avesso. – Cabrunco!1 Toda vez é
isso! Resmungou consigo quando percebeu o
atropelo na vestimenta.
Era início de inverno na capital sergipana.
Nando ainda sentia no ar o cheiro de pólvora,
carvão e milho queimado, deixado pelas fogueiras
de São João do dia anterior. Desse jeito perderei
logo meu primeiro emprego, continuou
resmungando enquanto recolocava a camisa, agora
do jeito certo.
O ponto de ônibus da Avenida João Ribeiro
ficava a cem metros de onde morava, na Rua São
João, número 272-B. A casa, ainda no reboco, tinha
dois pavimentos. No térreo, morava um casal de
idosos. Senhor Ladislau, sargento da reserva do

1
Cabrunco é uma palavra que significa uma expressão de espanto,
uma qualidade, um xingamento, uma interjeição ou simplesmente
um elogio, de acordo com o contexto.
4
Exército Brasileiro, e Dona Fátima, costureira
aposentada, proprietários do imóvel. No pavimento
superior, Nando dividia a quitinete com sua mãe,
Dona Iraê. Na humilde residência havia uma sala,
com cozinha conjugada, e apenas um quarto,
grande, com duas camas e uma janela de alumínio
e vidro transparente, voltada para rua. O local era
tranquilo, situado no bairro industrial, região norte
da capital, do qual podia se deslocar a pé até o
centro comercial, pois ficava a apenas dois
quilômetros da catedral metropolitana.
Estou esquecendo algo, mas não sei o quê,
pensou, enquanto caminhava a passos largos,
olhando de relance o barracão ainda iluminado das
quadrilhas juninas, ornado com bandeirolas
coloridas, que no dia anterior havia sido o grande
palco das apresentações folclóricas do estado de
Sergipe.

***

Fernando, carinhosamente chamado pela


mãe de Nandinho, e de Nando pela vizinhança, era
5
um jovem magricelo, pernas e pés enormes,
incumbidos de sustentar sua altura de um metro e
oitenta. A pele era escura, quase negra, cabelos
lisos e lábios grossos, o que revelava sua
genealogia cafuza, já que era descendente de mãe
índia e pai negro. Acabara de completar sua
maioridade, ao mesmo tempo em que se deparava
com sua primeira frustração pós-adolescência, pois
desejava muito servir ao Exército Brasileiro,
especificamente no 28º Batalhão de Caçadores,
localizado no bairro 18 do Forte, o que acabou não
acontecendo, pois havia sido dispensado por
excesso de contingente.
– Excesso de contingente!! Bradava
inconformado.
Sua mãe, descendente da tribo Xocó,
nascida e criada na ilha de São Pedro, no município
de Porto da Folha, era artesã, ofício adquirido com
a mãe e avó, que lhe ensinaram a fazer vasos de
argila, para serem vendidos nas feiras e de porta
em porta na região. Conheceu João Batista, seu
marido, em uma de suas andanças como
vendedora. Logo se engraçou pelo caminhoneiro
6
que acabara de estacionar no posto de
combustível, carregado de cana de açúcar. Com o
tempo, a ainda jovem Iraê acabaria se rendendo
aos galanteios do negro simpático e risonho.
Sabendo que a tribo e, principalmente seus pais,
não iriam aceitar aquela união, subiu na boleia do
enorme caminhão e sumiu com o seu amado pelas
estradas empoeiradas do sertão, deixando apenas
um recado aos pais, dado pela colega que a
acompanhava na castigante rotina, entre os
afazeres domésticos e o cansativo e frustrante
trabalho artesanal, já que raramente conseguiam
algum recurso.
Durante doze anos, deixou-se levar pela
sorte, viajando com seu esposo, ora entre Sergipe
e Alagoas, ora entre Sergipe e Bahia. Com o
passar do tempo, depois de algumas tentativas de
conciliação com a sua família, Iraê ficou grávida de
Nando, fato que a fez pousar na casa onde hoje
mora, pois João Batista temia pelo risco de morte
nas estradas. Somente quando estava próximo do
parto, conseguiu o aval definitivo da família, por
intermédio da amiga da comunidade, com a qual
7
trocava mensagens desde a época da sua fuga.
João consentiu sua ida e a aconselhou ficar por lá
até o nascimento da criança.
O menino Nando nasceu José Fernando dos
Santos, em homenagem ao avô paterno,
satisfazendo assim o desejo do Sr. João Batista.
Nasceu forte e saudável, pelas mãos das parteiras
da tribo.
Passados três dias do parto, Iraê teve uma
trágica notícia. Seu marido havia sofrido um fatal
acidente automobilístico, na SE 200, entre as
cidades de Porto da Folha e Gararu, quando estava
a caminho da tribo. Depois de ter deixado uma
carga de laranja que trouxera do município de
Boquim, Sul do estado, para a central de
distribuição na capital, João se deslocou com o
caminhão a fim de ver pela primeira vez o rosto do
primogênito, fato que, infelizmente, acabou não se
consumando. Naquela madrugada chuvosa, além
da falta de acostamento e sinalização na estrada, o
caminhoneiro, de tão ansioso que estava, acabou
não considerando os avisos dos colegas sobre o
perigo dos animais na pista, com os quais João
8
viria a se deparar, numa colisão trágica.
Depois do sepultamento, que ocorrera em
Itabi, cidade natal do esposo, Dona Iraê resolveu
não mais retornar à casa de seus pais, e decidiu
morar onde passara toda a vida de casada, pois o
local lhe guardava boas lembranças, e ali sentia a
presença de João.
Foram dezoito anos de muita luta, entre
alegrias, sofrimentos e lembranças: das festinhas
de aniversário de Nando, sempre presenteado
pelos padrinhos, Senhor Ladislau e Dona Fátima,
que tinham muita afeição pelo menino; da entrada
dele à escola; de sua formatura no ABC; da
conclusão do ensino médio; do falecimento dos
pais de Dona Iraê, devido a complicações
cardíacas.
Hoje, aos quarenta e um anos, a mãe de
Nando leva a vida realizando costura em geral,
para completar a renda familiar de um salário
mínimo, que até então dispunha como pensionista
do falecido marido. Nando agora podia ajudar, já
que acabara de assinar seu primeiro contrato de
emprego, como auxiliar administrativo numa livraria
9
situada na praça da catedral metropolitana.
O emprego na Livraria Cultural surgiu de um
pedido feito ao dono do próprio estabelecimento,
pela bibliotecária do antigo colégio onde Nando
havia concluído os estudos. A senhora Margarida
era a servidora pública mais antiga da escola, e nos
seus quase trinta e dois anos de profissão, nunca
tinha visto um jovem tão dedicado aos estudos e
apaixonado pelos livros como aquele menino.
Nando chegou até a ganhar um prêmio ao final do
calendário escolar, no projeto leitor amigo da
biblioteca, como o aluno que mais pegou livros
emprestados no ano. Neste evento, Dona Iraê, toda
radiante, comentou à bibliotecária e ao diretor que
Nando gostava tanto de leituras, que mesmo ela
brigando para ele ir dormir e apagar a luz do quarto,
ele, calado, pegava seu livro e ficava na sala lendo
por horas, até a hora que o sono permitisse.

***

Vou desistir do ônibus, pensou com seus


botões, enquanto olhava o relógio, pois tinha
10
certeza que naquele horário seu transporte diário já
havia passado. Com guarda-chuva em punho,
Nando atravessou a avenida, que de uma
extremidade o levava à colina de Santo Antônio e
da outra ao terminal da rodoviária velha, a meio
caminho da livraria. Vendo a cidade deserta, optou
corretamente por caminhar pelo canteiro central da
Av. João Ribeiro e depois seguir adiante pela Rua
Santo Amaro. Atravessou a praça da catedral
driblando as poças d’água e chegou finalmente à
esquina da Rua Santa Luzia, seu paradeiro diário.
Pontualmente, às cinco da manhã de uma chuvosa
segunda-feira de junho, lá estava Nando, pronto pra
encarar seu quadragésimo quinto dia de trabalho
na livraria.
Recebido pelos mendigos que
perambulavam pela praça, buscou nos bolsos o
molho de chaves que suspendia a porta de enrolar
manual e abria a porta de vidro da entrada. Mas
somente se aventurava a fazer isso, após ter
cuidadosamente se certificado de que não havia
nenhum transeunte mal-intencionado por perto. Do
contrário, esperava pacientemente sentado ao meio
11
fio, como quem aguardava alguém chegar para
abrir a loja.
– Cabrunco!! Esqueci as chaves! Acabara de
lembrar-se do que havia se esquecido ao sair
apressadamente de casa. E agora?, pensou quase
que em um milésimo de segundos. Ligeiramente
pegou o celular na mochila e ligou para sua mãe.
– Oi, mãe, esqueci as chaves da loja. Irei
enviar um motoboy para buscá-las.
– Mas meu filho! E onde você deixou?
– Provavelmente na segunda gaveta do
criado mudo.
– Espere um pouco, deixa ver... Achei!
Falou, aliviada.
– Ufa! Obrigado, mãezinha. O rapaz chega já
pra pegá-las. Beijos!
Um pouco refeito do imprevisto, enquanto
esperava em pé, rodopiando à porta do
estabelecimento, um senhor alto, vestindo batina, o
observava da escadaria da igreja, tentando
imaginar o que se passava com aquele garoto, que
ainda demonstrava certo sinal de nervosismo.
Passaram-se quinze minutos. Para Nando
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pareciam uma eternidade. Cansado de tanto pensar
e de andar de um lado para o outro, acabou
sentando-se ao meio fio, esperando pelas chaves,
antes que Senhor Francisco Rezende o flagrasse
ainda sem seus afazeres.
Quando, desolado, já ensaiava algumas
desculpas sem muito sentido, ouviu de longe o
ronco de uma moto que vinha da Rua Capela para
entrar à esquerda após a praça, na contramão.
Sorriu por reconhecer a figura que se aproximava.
Era Roberto que acabara de chegar com a
encomenda, montado em sua moto Honda Titan
CG, azul, de retrovisores pintados da mesma cor,
parando então ao seu lado, agora mais desfeito da
agonia. Ao desligar o motor, tirou o capacete e deu-
lhe uma risada.
– Mas, Tia, como pode um abridor de porta
esquecer da chave? – Zombou o amigo.
– Não fale não, Tia! Você foi minha salvação!
– Sorte sua que pego no batente bem cedo e
durmo com celular ligado. Tá ligado?
– Obrigado mesmo, Tia.
– Se ligue, cara!!
13
Depois disso, Tia, como chamavam um ao
outro, desde o tempo que Dona Iraê vendia doces
na porta do colégio e os meninos a chamavam
assim, ligou seu cavalo mecânico, colocou seu
capacete azul, surrado das marcas de quedas, e
saiu a mil, entrando à Rua Santa Luzia, desta vez
na mão correta de direção. Acompanhando-o se
distanciar, Nando ainda conseguiu enxergar no
para-lama da moto uma figura que o fez sorrir: a
imagem de um dragão azul segurando o escudo do
time do confiança, do bairro industrial, e abaixo o
slogan: Vamos subir Dragão!
Passado o susto, enxugando o suor do rosto,
ele não perdeu tempo e, olhando como de costume
para os lados, abriu bruscamente as portas da
livraria, sentindo o tranquilizante cheiro de incenso
vindo do interior da loja.

***

A livraria era bem agradável. Os quatro


cantos da loja, distribuída entre várias estantes de
madeira de lei mogno, que brotavam do piso de
14
cerâmica até atingirem o teto, acomodavam os
mais variados estilos literários. Também havia
prateleiras horizontais de um metro e meio de altura
por dois de comprimento, que exibiam frontalmente
os livros em destaque: os mais vendidos, os
promocionais, os de autores sergipanos, entre
outros.
Trabalhava ali o livreiro - Sr. Francisco -
senhor de meia idade, divorciado há oito anos,
sereno e empático. Além dele, Marisa, sua filha
primogênita, era a caixa, vinte e dois anos, formada
em contabilidade. A caçula Juliana era a estoquista.
Dezenove anos, estudante de administração.
Fechando o time, o noviço magricelo, o “faz-tudo”.
As mocinhas eram muito diferentes, tanto
fisicamente quanto em personalidade. Marisa tinha
o porte da mãe, que mora em Salvador. Um metro
e setenta, troncuda, olhos grandes e claros,
cabelos longos e cacheados, tingidos de louros. De
nariz arrebitado, tal qual sua nobre arrogância.
Juliana era o pai em carne e osso. Um metro e
sessenta, corpo de menina, olhos pequenos e
escuros, cabelos cacheados pretos, naturais,
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cortados à altura dos ombros. A voz doce soava
como um canto de sereia aos barbados que tinham
uma caidinha por ela. Aos que não tinham também.
O Sr. Francisco era quem fazia o papel do
bom vendedor da loja. Esperava o cliente na porta,
servia um cafezinho, sugeria leituras, tirava dúvidas
e ainda arrumava os livros nas estantes, sempre
classificados em ordem alfabética, por assunto e
título.
O funcionário magricelo dizia aos amigos
que, para o primeiro emprego, até que não estava
ruim. O fichamento em carteira, como auxiliar
administrativo, dava ao inexperiente comerciário
uma alegre sensação de vitória e bem-estar, pois,
de todos seus colegas do último ano da escola,
apenas dois tinham conseguido emprego em
carteira.
Limpar a livraria antes do expediente, desde
a porta de entrada até os banheiros, levar e trazer
documentos diversos às ruas e tirar fotocópias
eram algumas de suas atribuições. Mas o que mais
gostava de fazer era arrumar os livros nas estantes.
Tinha curiosidade pelos títulos, sinopses, textura e
16
cheiro deles.
– Ah, que sensação maravilhosa! Dizia para
si mesmo. O cheiro de livro novo era entorpecente
para ele. Nando ainda não sabia o porquê, mas
sentia algo diferente e mágico que o deixava em
êxtase. Sempre que podia, quando não estava
afogado nas demandas da Xerox, não perdia a
oportunidade de abrir o livro, levá-lo ao rosto até
tocar as narinas, e inspirá-lo profundamente, de
olhos fechados. Um ritual.
Mas esta euforia sobre seu trabalho e suas
atribuições começou a minguar quando, logo
depois do primeiro mês, foi surpreendido pela
chegada do mais novo funcionário. Gilberto era
estudante do sexto período da única instituição
superior do estado que formava bibliotecários, a
Universidade Federal de Sergipe. Isso o deixou
muito contrariado e desanimado. Como a clientela
das fotocópias aumentava, Sr. Francisco logo
providenciou a contratação do aspirante a
bibliotecário, pensando em resolver dois problemas:
não deixar os clientes esperando Nando, enquanto
este saía para resolver algo de interesse da livraria,
17
e desafogá-lo da tarefa de arrumar os livros
enquanto atendia a clientela das fotocópias e
encadernações em espiral. O antigo funcionário
não ficou muito contente com a idéia, pois, sem
estar próximo das estantes, não poderia mais sentir
aquele prazer que só ele compreendia.
Gilberto, ou simplesmente Beto, como assim
preferia chamar Sr. Francisco, era um rapaz de
vinte anos de idade, residente do centro da cidade,
critério este estabelecido pelo livreiro. Era baixo,
tinha pele clara e usava óculos redondos com graus
elevados. Nando o apelidava de Harry Potter, pois
tinha uma vaga lembrança do personagem dos
consagrados livros infantojuvenis.

***

Depois de levantar a porta da livraria naquela


manhã de segunda-feira, pós-festejos juninos,
Nando deixou a de vidro fechada por dentro, como
de costume. Acendeu todas as luzes, ligou a central
de ar condicionado, o radinho de pilhas do Sr.
Francisco, que ficava abaixo, na bancada do caixa,
18
e foi pegar vassoura, pá e pano, a fim de limpar o
piso antes da chegada do primeiro cliente.
Lembrava que, por meio de acordo informal, teria
que trabalhar das 5 às 6h na faxina geral, e das 6
às 8h no estoque, verificando as caixas de livros
que chegavam das editoras, conferindo-os um a
um, pra depois registrá-los no sistema da loja, que
ficava na sala de Juliana. Esse bico o ajudava a
pagar o boleto do plano de saúde de Dona Iraê,
contrariando as ordens de sua mãe em não fazer
isso.
A chuva não demorou muito pra retornar,
desta vez mais forte ainda, obrigando-o a recuar
duas prateleiras que ficavam à frente da loja.
– Nossa! Parece chuva de verão! São Pedro
deve estar mesmo faxinando lá no céu. – exclamou
em tom de piada. Em seguida, também como de
costume, após varrer e passar o pano molhado,
buscou os livros espalhados pelas estantes, mesas
e cadeiras de leitura. Recolheu quatro deles e,
vendo suas capas, tentou adivinhar a que sessões
pertenciam, pois até o momento, esta destreza era
privilégio unicamente do Sr. Francisco, que, num
19
piscar de olhos, já sabia onde deveria guardar cada
um deles. Dois dos títulos denunciavam a sessão,
História da casa de Sergipe 1912/2012, de Ibarê
Dantas, e A história de Sergipe contada em versos,
de Chiquinho do Além Mar. Após acurar no
catálogo bibliográfico, viu que quem pesquisava
deveria estar muito interessado em literatura da
terra, pois os outros dois também se tratavam de
obras de autores sergipanos: Tempo de Almas e
Anjos, de Expedito Souza, e Meninos que não
queriam ser padres, de Antônio F. J. Saracura. Os
quatro volumes foram carinhosamente repousados
na prateleira do meio da última estante à direita,
entre os livros Lembranças de um menino
lagartense, de Paulo Nogueira Fontes, e Eu, o
Magistrado, de Malva Barros Oliveira.
O badalar dos sinos da catedral chamou a
atenção de Nando, fazendo-o olhar por entre a
porta a movimentação de pessoas e carros, o
suficiente pra lembrá-lo que já estava na hora de
preparar o cafezinho, pra depois se trancar na sala
de estoque e começar a segunda batalha do dia.
Nando só não contava com um fato inusitado. Ao
20
abrir a porta da sala de Juliana, encontrou na tela
do computador, preso por uma fita adesiva, um
bilhete assinado por ela que dizia:
Fernando, temos dois problemas: o
computador quebrou e o telefone ficou mudo logo
após sua saída na sexta-feira. Hoje iremos chegar
mais tarde. Favor receber o técnico que agendamos
para as 8h. Assinado: Juliana.
Nando sabia que a linha telefônica era ligada
ao modem digital, que por sua vez era ligado ao
computador. Então resolveu dar uma checada nas
fiações. Retirou e recolocou os plugues duas vezes
e não viu nenhum sinal de anormalidade nos
encaixes. Ligou o computador e pegou no gancho
do telefone. Realmente não havia sinal algum de
bip, mas o computador aparentemente estava em
perfeita ordem, pois acabara de apresentar a tela
inicial e a área de trabalho do sistema. Clicou sobre
o ícone do programa da livraria e, após dois
segundos, viu um aviso retangular que dizia “falha
no sistema. Sem conexão remota.” Lembrou que o
software da livraria só funcionava conectado à
internet, pois era totalmente online, hospedado num

21
servidor de uma empresa de tecnologia em São
Paulo.
Diante da situação, decidiu ocupar as duas
horas restantes com outros afazeres na loja. Ao
retornar ao balcão, desligou o radinho e pegou a
pasta de controle de fotocópias e encadernações.
Olhando a planilha, viu que não tinha nenhuma
encomenda da sexta para a segunda-feira. Como
nunca foi acomodado, mais uma vez pensou em
fazer algo, porém não encontrou nada desarrumado
ou precisando de ajustes ao redor. Sentiu uma
vontade de caminhar pelas estantes e prateleiras.
Apaixonado por futebol e xadrez, direcionou seu
olhar para a seção de esporte e lazer. Ao se
aproximar, agachou-se e fitou as lombadas,
procurando ler seus títulos, mas nenhum despertou
um interesse maior. Olhando pro lado, encontrou os
volumes de literatura estrangeira, o que também
não mudou muita coisa. Distanciou-se, passando
então às prateleiras dos mais lidos e dos
lançamentos. De relance, seus olhos leram algo
diferente. A capa, que exibia a imagem de um
adulto e uma criança, provavelmente pai e filho,
22
caminhando pela calçada de uma paisagem em
neblina, fez seu coração palpitar. Era um misto de
tristeza e frustração. Lembranças de um pai que
não tivera.

23
CAPÍTULO II

A curiosidade foi tamanha que Nando pegou


o livro e sentou num banquinho baixinho, típico
desses lugares. Desejou por um momento estar no
lugar daquela criança, de uns oito anos de idade,
aparentemente. O título, A sombra do vento, de
Carlos Ruiz Zafón, fez com que imaginasse ser de
alguma história triste, levando-o a guardar o
volume, sem pestanejar.
O relógio parecia parar no tempo. Nando
andou um pouco entre as prateleiras centrais,
querendo se desfazer daqueles pensamentos
tristes, que geralmente só apareciam de vez em
quando, em algumas festividades como dias dos
pais, natal ou seu aniversário. Vendo-se em luta
desigual com seus pensamentos, atirou-se à
televisão, em busca de notícias que pudessem
preencher sua mente com informações novas.
Passeando pelos canais, ficou feliz em saber que a
Mocotó, sua quadrilha junina favorita, tinha sido
bicampeã daquele ano. Atento ainda ao noticiário
24
local, ficou entusiasmado com a entrevista de um
senhor cordelista, que também era dono de um
sebo no mercado central. O velho falava com muito
amor e propriedade sobre os benefícios que os
livros proporcionam, na possibilidade de viajar no
espaço e no tempo através da imaginação. Os
livros nos levam sempre a experimentar a
sensibilidade do ser humano, curando as feridas
deixadas pelo tempo, ressaltava o cordelista.
A reportagem continuou com imagens de um
asilo, uma casa de detenção e um orfanato, cujos
cotidianos haviam sido transformados através do
projeto Biblioterapia popular, de autoria do
cordelista e sebista Antônio Matos. Nando ficou
fascinado com fala empolgante e convincente do
entrevistado, a ponto de não pestanejar

A leitura de livros desempenha uma função


terapêutica. Além de atividade prazerosa, ela
também pode contribuir para o restabelecimento de
pessoas com algum transtorno emocional. Em
Portugal, há uma clínica que oferece atendimento
com biblioterapeutas, que receitam livros para seus

25
pacientes. Mas essa prática deve ser realizada por
profissionais terapeutas e bibliotecários
especializados.

A fascinação logo se transformou em


esperança, entusiasmo e alegria. Nando ficou com
muita vontade de conhecer o Sr. Antônio,
entrevistado da matéria. Assim que os caracteres
exibiram o contato do sebista, imediatamente
pegou papel e caneta e anotou número do telefone,
guardando-o com cuidado no bolso.
A programação do jornal já tinha acabado e
ele continuou fascinado com ideia da cura dos
males emocionais através dos livros. Algumas
batidas na porta de vidro o fizeram retornar à órbita.
Era Gilberto que acabava de chegar, fugindo da
chuva que continuava forte lá fora.
– Mas, rapaz.... Por que não veio com
guarda-chuva?
– Isso é para os fracos! Ironizou o novato.
– Pois!!! Pra mim, melhor um fraco enxuto
que um forte ensopado. Vá se trocar antes que
pegue um resfriado.

26
Após as primeiras saudações do dia, Nando
pendurou o cartaz de aberto ao vidro da porta,
enquanto Gilberto, seguindo as suas orientações,
adentrou até os fundos da loja e foi trocar de
camisa, pois na dispensa sempre havia uma
camisa polo com o emblema da livraria, caso
houvesse alguma necessidade.
Um grupo de beatas que passava em
comboio pela porta, como em procissão,
denunciava que já eram oito horas. Todas de
hinários, bíblias e terços em mãos. Duas delas
entraram com sombrinhas molhadas e sorrisos
largos nos rostos, perguntando a Nando:
– Bom dia! O senhor sabe informar se aqui
vende livros de Padre Marcelo Rossi?
– Não só dele, mas também dos Padres
Reginaldo Manzotti, Fábio de Melo e Jonas Abib.
Desejam um em especial de Marcelo Rossi?
– É um que fala de sua biografia. Ele é
maravilhoso!
– O padre ou o livro? Brincou.
– Os dois, claro! Vocês têm ou não têm o
que quero? Resmungou alto a senhora mais baixa,
27
aparentando mais idade, fitando-o como quem não
tinha gostado da graça.
Gilberto, retornando da dispensa e agora
vestido adequadamente para o trabalho, ouviu de
longe a conversa e se antecipou:
– Temos sim, senhoras! Fica na estante à
direita, com a sinalização religiosos. Venham que
vos acompanho.
– Vos acompanho??? Riu sozinho Nando,
olhando para os três, que se afastavam.
Com a habilidade de um quase bibliotecário
e memória espacial de um leitor detalhista, Beto foi
direto ao alvo e pegou com cuidado, pelo meio da
lombada, o livro Padre Marcelo Rossi - Uma Vida
Dedicada A Deus, da jornalista e escritora Heloísa
Marra. Olhando encantadas para o livro, as beatas
iniciaram uma oratória digna dos grandes mestres
do magistério. Em ritmo cadenciado, trocavam de
lugar quando a outra pausava:
– Meu filho, este padre é um santo!
– Aqui é contada sua história de vida.
– De sua infância tranquila, na periferia de
São Paulo, até a sua ordenação, contra a vontade
28
do pai.
– E hoje é consagrado como um dos
sacerdotes mais queridos do Brasil.
Gilberto, como vendedor e aluno obedientes,
não se aventurava em interromper. Tinha em mente
três verdades: que elas eram mulheres de fé,
gostavam de ler e que comprariam não só aquele
livro, mas, no mínimo, qualquer outro que ele
apresentasse sobre a vida dos santos e santas da
igreja. Não demorou muito e, aproveitando um
silencio de dois segundos que elas acidentalmente
propiciaram, comentou:
– Por que não levam também a biografia de
Jonas Abib? Eu já li e recomendo. Também temos
o mais novo livro do Papa Francisco, Quem sou eu
para julgar?, ou o de Padre Reginaldo Manzotti,
Batalha Espiritual - Entre Anjos e Demônios.
– Não, não! Vamos ficar somente com este
aqui. É para presente. Lá em casa só quem gosta
de ler é nossa sobrinha. Obrigada!!

***

29
Pouco tempo depois da saída das religiosas,
a chuva resolveu dar uma trégua. Passavam das
dez horas e nada do suporte técnico nem do Sr.
Francisco e suas filhas chegarem. Beto, um pouco
receoso, lembrava a todo instante que, sozinho,
não teria condições de dar atenção aos clientes e
também observar os suspeitos que transitavam
pela loja, pois, em apenas uma semana, um livro
havia sumido e outro estava com uma página
rasgada e mais duas extraviadas.
A sirene do colégio fez Beto e Nando se
olharem com caras de apreensão. Os seus
convergentes pensamentos alertavam que uma
avalanche de estudantes estavam pra chegar. Só
não contavam com a chegada inesperada do Fiat
Doblò da Distribuidora de Livros Mar Azul.
– Meu Deus! Traduziram em alta voz que
pior não ficaria.
Senhor Domingues, como sempre, abria a
porta como um foguete, perguntava pelo livreiro, e
sem esperar se dirigia ao balcão. Moreno, baixinho
e com um bigode enorme que lhe escondiam os
lábios, olhando para Gilberto, indagou?
30
– Onde está Sr. Chico?
– Ainda não chegou.
– Como assim?
– Isso mesmo. Estamos só nós dois aqui, eu
e Fernando.
– O que houve?
– Ainda não sabemos, mas já é quase meio
dia e nada de notícias. Nem de Sr. Francisco, nem
de suas filhas.
– Já ligaram pra eles ou parentes?
– Só temos o número de celular dele, mas tá
dando desligado. E não estamos recebendo
ligações porque o telefone da loja está com defeito.
– Porque não fecham a loja? Já procuraram
nos documentos, nas pastas, agendas, sei lá?!
– Não temos autorização pra fechar. E
quanto às buscas de outros números, já fizemos e
não encontramos nada. Eles são muito discretos.
Nem sabemos onde moram.
– Bem..., não posso deixar de descarregar
os livros, senão quem levará a bronca serei eu
aqui. Por sorte, são apenas cinco caixas médias,
cada uma com cinquenta exemplares, totalizando
31
duzentos e cinquenta livros, ok?
– Fazer o quê, né? Não tem jeito mesmo!
Descarregue e me passe a nota fiscal, orientou
Nando.
Os dois não conseguiam disfarçar a
ansiedade e medo de notícias piores sobre os
patrões. Desde os primórdios da humanidade que
somos levados a pensar primeiro em coisas ruins
quando alguém desaparece. O que os deixava mais
intrigados é que eram três desaparecidos.
Após uma breve reunião à beira do balcão
do caixa, decidiram interromper os trabalhos das
fotocópias e encadernações, e não deixarem mais
ninguém entrar na loja. Assim que o último cliente
saísse, só reabririam às 14h, caso estejam em
condições psicológicas para isso, pois o
nervosismo já estava estampado na cara de
ambos.

***

Era quase uma e meia da tarde quando


Nando fechou a porta de vidro, colocando um
32
cartaz pra fora que dizia “Fechado até as 14:00h”.
Eles sabiam que depois disso teriam que tomar
uma decisão muito séria. Sem ordem superior e
sem notícias da família Rezende, teriam que deixar
a livraria aberta até final do dia ou fechá-la, pondo
outro cartaz dizendo “Fechado. Expediente interno.
Em balanço de estoque”. A Segunda opção era
mentira, claro. Se ficasse fechado, seria para
pensar em algo ainda não pensado pelos dois.
De costume, Beto saía ao meio dia para
almoçar em casa e retornava às 13h, pois morava
na quadra da Rua Lagarto com Rua Arauá, a
menos de dez minutos do trabalho. Enquanto
Nando, que tinha seu repouso para almoço das 13
às 14h, trazia sempre uma marmita com comida
feita no dia anterior por Dona Iraê. Bastava
esquentar e comer na dispensa da loja.
Devido às circunstâncias, Beto não se sentiu
à vontade de deixá-lo sozinho na livraria. Então,
decidiu ligar para sua mãe comunicando que, por
motivo de muito trabalho naquele dia, iria almoçar
na loja. Notícia esta que não levantou nenhuma
suspeita por sua genitora. Enquanto comiam,
33
tentavam lembrar algum episódio ocorrido na sexta-
feira, mas não se recordavam de nenhuma
anormalidade naquele dia.
– Nando, estou preocupado. Curiosamente,
estou lendo um romance que fala num livreiro que
sumiu, com umas histórias de seitas, sei lá.
– Tá doido, Beto? Isso é coisa de ficção.
Você anda em que mundo?
– Na verdade, estou lendo dois. O outro trata
do desaparecimento de um escritor.
– Cara, você é maluco mesmo. E ainda por
cima lê dois livros ao mesmo tempo. Nando cai em
risadas.
– Bem..., estou me formando pra ser
bibliotecário. Presume-se que tais profissionais
gostem de leitura e de livros, né? Acho que você
iria gostar desses livros. Mistura suspense,
romance e aventura, num ambiente parecido com o
nosso: uma livraria.
– Quais os títulos dos livros?
– Aqui na loja tem. O primeiro é A livraria 24
horas do Mr. Penumbra, de Robin Sloan, e o outro
é A sombra do Vento, de Carlos Ruis Zafón. Tenho
34
certeza que vai gostar. Soube outro dia, por Sr.
Chico, que você gosta de ler.
Antes que desse tempo para resposta, eles
ouviram um barulho de batidas na porta de vidro,
combinadas com algumas palmas bem fortes, que
aumentavam ao passo que os dois demoravam a
dar as caras na porta. Do susto, levantaram-se em
um pulo e foram averiguar o fato. Dois rapazes bem
vestidos, com camisas longas vermelhas, que
traziam o nome SupriTEC bordado em cor branca
no bolso do peito.
– Boa tarde! Somos da assistência técnica
em telefonia e internet, requisitada para atender a
um chamado daqui.
– Ah, ta! Podem entrar. Estávamos
esperando por vocês desde as 8h. Não foi isso o
combinado? Indagou Beto.
– Realmente foi, mas sabe como é
atendimento técnico, né? Dependendo do
problema, a solução pode se estender por horas ou
até mesmo dias. O que houve?
– Bem..., desde o final da tarde da sexta-
feira que o telefone e a internet não funcionam.
35
Os técnicos deram uma risadinha e relataram que
sabiam que isso poderia ocorrer entre seus
clientes, pois trocaram um equipamento local que
replica o sinal de São Paulo para Aracaju e tinham
constatado uma inconstância no tráfego de dados.
Disseram que precisariam também trocar o modem
de todos os clientes, para adequação do hardware
e software à nova tecnologia, que traria mais
qualidade, segurança e velocidade nas
transmissões.
Após as justificativas, os técnicos iniciaram a
manutenção dos equipamentos. Nando,
preocupado, voltou a pensar no sumiço dos chefes.
Chamou Beto para o canto da loja e, discretamente,
disse-lhe que já se passava das quinze horas, e
esperava uma decisão coletiva sobre que rumo
deveriam tomar a respeito da loja, pois as pessoas
chegavam à porta, viam o aviso e voltavam, às
vezes com ar de revolta.
– Vamos fazer o seguinte.... Que tal
deixarmos aberto, já que o sistema voltou a
funcionar e já podemos receber pagamentos a
cartão? – Sugeriu Gilberto, com a mão coçando o
36
queixo.
– Pode ser. Tomara que dê tudo certo pra
gente. Respondeu Fernando, apressando-se em
abrir a porta de vez e retirar o aviso de fechado.
Coincidentemente à saída dos técnicos, o
telefone começa a tocar, e Beto, num piscar de
olhos, corre para puxar o gancho:
– Livraria Cultural, Gilberto, boa tarde!
– Boa tarde, Gilberto, é sobre Francisco.
Beto não conseguiu compreender direito,
pois a ligação estava muito baixa, com chiado e
cortando a sequência dos sons.
– Alô, alô!!? Quem fala mesmo? Aqui é da
Livraria Cultural. – Respondeu ele, com muita
apreensão e dúvida se ouvira realmente a voz do
patrão.
A ligação cai. Os dois, lado a lado, ficam na
angustia de novamente ouvir o telefone tocar.
Tenho quase certeza que foi Sr. Chico. A ligação
estava muito ruim, afirmou Beto.
Passaram-se longos quinze minutos, que
mais pareciam quinze horas de tormento. Para
completar a tensão, a livraria estava sem clientes.
37
Só se ouvia a respiração dos dois. Não conseguiam
pensar em mais nada que não fosse o toque do
telefone. Enquanto se entreolhavam, levaram outro
susto. O telefone volta a soar. Desta vez é Nando
quem pega o aparelho, com agilidade de um
Pizzaiolo. Sem pensar direito, não levou em conta
as boas práticas do bom atendimento.
– Senhor Francisco? É o senhor?

***

Desta vez, a voz do outro lado estava com


boa sonoridade. Além da voz serena do
interlocutor, ouviam-se sons de buzinas,
automóveis e até de ventania.
– Boa tarde! É da Livraria Cultural?
– Sim! Quem fala?
– Eu me chamo Antônio Prado Rezende.
Ouvir a palavra Rezende aguçou ainda mais a
tensão de Nando.
– Bem, sou irmão de Senhor Francisco, e
falo em nome dele e de suas filhas.
– Sim, mas o que houve? A essa altura,
38
Gilberto, do outro lado do balcão, só tinha olhos
esbugalhados e algumas poucas unhas. Seu olhar
fazia a mesma pergunta.
– Senhor Francisco está bem. Teve que
passar por um cateterismo de urgência aqui em
Salvador. Fiquem tranquilos! Marisa pediu apenas
que lessem agora um e-mail enviado por ela para a
loja. Lá explicam tudo. Ela pediu pra avisar que o
endereço é contato@livrariacultural.com.br e a
senha é cultural1997.
– Certo! Já anotei. Iremos ler sim. Obrigado!
Mas voltam amanhã?
Senhor Antônio Rezende, agora com voz de
impaciência, apenas retrucou dizendo que na
mensagem saberiam de tudo e o que deveriam
fazer. Agradeceu a atenção e desligou.
Nando imediatamente acessou o webmail da
loja, digitando o endereço e a senha anotada,
enquanto repassava o diálogo a Beto. Estava tão
nervoso ao telefone que não percebeu que acabara
anotando os dados na capa de um livro novo que
estava sobre o balcão.
– Meu Deus, Beto, mas que segunda-feira
39
agitada!
A curiosidade dos garotos era tanta, que
nem notaram que a claridade do dia já tinha ido
embora e a lua surgia majestosa, escondida por
trás de nuvens carregadas, e que a livraria, sem
nenhuma agitação, estava quase às escuras.

***

A caixa de entrada do webmail sinalizava


mais de cinquenta mensagens não lidas. Tinham
remetentes conhecidos, como as distribuidoras de
livros ou a empresa de contabilidade que prestava
serviços à livraria, como também aqueles terríveis
spams. Nando buscava algo mais importante. Seus
olhos e mente fixaram-se na procura de um
endereço de e-mail com o nome Marisa. Depois de
vasculhar por quatro telas, conseguiu achar. Não foi
tão difícil porque estava destacada em vermelho,
sinalizando como importante. Beto, de ombro
grudado com Nando, sem pestanejar, iniciou a
leitura em voz alta:

40
Bom dia Fernando e Gilberto,
Infelizmente não poderemos estar na loja no dia de
hoje, talvez nem amanhã. Meu pai sofreu um
Acidente Vascular Cerebral, AVC, e estamos em
Salvador com ele. Mas está tudo bem, graças a
Deus! Está internado num hospital daqui e o médico
irá realizar alguns exames hoje e amanhã, e depois
dirá se receberá alta. Peço que cuidem da loja.
Gilberto no caixa e Fernando no atendimento. Vocês
irão fechar no horário do almoço, das 12 às 14
horas. Amanhã enviaremos notícias. Qualquer
urgência ligue para mim neste número de celular:
(71) 9 87887-3500. Obrigada.

Os jovens se entreolharam arregalados e,


com feições de preocupação, iniciaram um diálogo
sério sobre as próximas decisões a tomarem.
– Coitado de Seu Chico. Vamos seguir as
orientações, falou primeiro Gilberto.
– Com certeza! A começar por fechar a loja,
pois já são seis e quinze e eu tô morrendo de dor
de cabeça, respondeu Fernando.
– Calma! Vou respondê-la dizendo que
faremos o combinado e irei passar também nosso
41
número de celular pra ela. Aliás, nós nem temos o
número um do outro ainda, né?

42
CAPÍTULO III

No fim de tarde, a cidade apresentava uma


frenética movimentação, peculiar aos horários de
pico. Transeuntes driblando-se, automóveis
nervosos, em busca de um sinal aberto, apitos de
guardas de trânsito e vendedores ambulantes
recolhendo as mercadorias e empurrando seus
carrinhos. A segunda-feira se despedia com um ar
de cansaço imensurável para os garotos da livraria.
Fernando foi curtindo sua dor de cabeça, da
loja até a sua casa. O Trajeto não duraria menos do
que uma hora e meia. A peregrinação de retorno se
iniciava em frente à Praça da Catedral, cortava as
Ruas Itabaiana e Pacatuba, perpassando a Câmara
dos Vereadores, o Palácio Fausto Cardoso, o
Tribunal de Justiça e a Assembleia Legislativa, até
chegar ao ponto de ônibus da Avenida Ivo do
Prado, conhecida como Rua da frente, próximo à
Ponte do Imperador, uma ponte que não é ponte, já
que não ligava nada a coisa nenhuma.
O magrelo Nando queria até parar de pensar
43
nos acontecimentos do dia, mas a ansiedade e as
preocupações não deixavam, o que fazia aumentar
ainda mais a sua dor de cabeça. Isso sem falar do
busão, como sempre superlotado àquela hora. De
bom apenas a chuva, que naquele momento havia
dado outra trégua. Não lembrava de ter visto o Rio
Sergipe tão vistoso. O reflexo da lua deixava suas
águas mais lindas.
Enquanto procurava uma melhor
acomodação, entre um pisão e outro, pensava nas
possíveis causas do derrame do Sr Francisco. No
tempo de afastamento da família Rezende; na sua
atribuição temporária como atendente inexperiente;
no possível acúmulo de trabalho; no medo do
proprietário morrer e ele perder o emprego; na
inveja que sentia por saber que Beto morava a
cinco minutos de casa e, por fim, na falta de um
remédio no bolso para aliviar sua dor.
Ao chegar em casa, foi imediatamente para a
cama, segurando a cabeça, como se o peso de
uma tonelada ou algo parecido a puxasse para
baixo.
– Seu menino está com uma bela
44
enxaqueca. Informou à mãe, com tormento na voz.
Dona Iraê providenciou um remédio em
gotas e um pano gelado para aplicar em sua testa,
pois diziam que ajudava na diminuição da dor. Fato
comprovado após vinte minutos de agonia. Após
quarenta minutos alisando-lhe a testa, sua mãe já
agradecia à Virgem Maria pela graça alcançada.
Seu Nandinho roncava como um recém-nascido.
Tirou-lhe os sapatos e meias e foi preparar um chá
que só os seus ancestrais da Tribo Xocó sabiam
fazer. Curava qualquer tipo de dor, dizia ela.

***

A terça-feira assobiou como o canto de um


canário belga aos ouvidos de Fernando. Sua dor de
cabeça tinha ido embora e em seu lugar deixou
uma sensação de tranquilidade e sonolência.
Efeitos do chá milagroso de Da. Iraê, tomado ainda
na madrugada.
Abruptamente, olhou para o relógio da
parede. Sem muitas forças para gritar, olhou pra
mãe e disse:
45
– Mãe, vou perder meu emprego! A essa
hora eu deveria estar quase abrindo a porta da loja,
as oito em ponto.
– Calma, filho! Não se preocupe. Já falei com
Gilberto. Ele me contou tudo que aconteceu ontem.
– Ele ligou pra senhora?
– Sim! Ligou ainda ontem à noite, enquanto
você dormia. Estava preocupado contigo, por causa
da dor de cabeça. Por causa da situação também.
– Entendo! Mas eu deveria estar lá com ele.
Sozinho ele não tem condições de cuidar da
livraria.
– Mas já foi resolvido isso. Ontem a filha do
Sr. Francisco tentou falar contigo por celular, mas
como você estava dormindo e eu não ouvi, ela
buscou falar com Gilberto. Pensaram bem e
decidiram enviar Juliana para cuidar da loja.
– Ufa, ainda bem! Então, mãe, prepare um
café pra mim que vou me arrumar.
Dona Iraê sabia que seu filho iria, então já
tinha preparado, não só seu café da manhã, mas
também sua marmita do almoço, além de ter
deixado sua roupa bem engomada, pendurada na
46
cadeira da mesa.
Nando novamente foi obrigado a recorrer à
ajuda do seu amigo Tia, desta vez para levá-lo às
pressas ao trabalho. Como o ponto de motoboys
ficava em frente ao barracão junino da rua onde
morava, não demoraram muito a sair em disparada,
entre um canteiro e outro, procurando o caminho
mais curto.
A livraria já estava aberta quando chegaram,
às oito e vinte. Gilberto estava encostado ao balcão
do caixa, numa aparente conversa tranquila com
Juliana, que ao vê-lo chegar o recebeu com um
sorriso de quem aguardava a chegada de uma
pessoa íntima.
– Bom dia, Juliana! Como está seu pai?
– Agora bem, graças a Deus! O AVC foi
controlado rapidamente, por isso, disseram os
médicos, provavelmente não deixará sequelas.
– Ótimo!
Juliana, das duas irmãs, era a mais
comunicativa e educada. Procurando logo mudar
de assunto, pediu para que os meninos fossem aos
seus postos de trabalho e que esquecessem a
47
ordem anterior. Ela ficaria no caixa e no estoque,
enquanto eles se encarregariam do atendimento e
da arrumação dos livros.
Gilberto comentou com Nando que tinha
gostado de ver Juliana, em vez da Marisa. Os dois
sorriram e confirmaram com a cabeça. Não
gostavam da forma como a mais velha os tratava.
Era como se fossemos seus servos. Desconhecia
as palavras por favor, desculpa, por gentileza ou
obrigada. E ainda nos fazia de meninos de recado,
ora pra comprar ou trocar coisas pessoais, ora pra
fazer pesquisas acadêmicas de uma pós-
graduação à distância que cursava. É um crime!
Um absurdo!! Resmungavam eles.
Certa vez, ela teve a audácia de pedir a
Nando para ir ao Shopping, no horário do
expediente, para comprar um bilhete de um show
que era muito procurado. Ela sempre aguardava o
Sr. Francisco dar uma saída da loja, para impor
inusitadas ordens de comando. Juliana odiava isso
na irmã, mas não tinha forças para denunciar, pois
a mais velha sabia de um segredo que a deixava de
mãos atadas. Dizia que se a caçula falasse ao pai
48
sobre as saídas dos garotos no horário de trabalho,
ela falaria sobre o namorico às escondidas que
Juliana mantinha com um rapaz em Salvador.
Juliana temia que seu pai soubesse, não pelo fato
de ter um namorado às escondidas, mas pelo
passado comprometedor do rapaz. Não podia
desagradá-lo dessa forma, ainda mais agora no
estado de saúde em que o pai se encontrava.

***

A clientela começava a aparecer, o telefone


voltava a tocar e as fotocópias não paravam de
formar filas à porta. Entre um cliente e outro, Nando
decidiu adentrar para perguntar como ficariam os
horários do intervalo. Encontrou Juliana com os
olhos cheios de lágrimas e uma tristeza no rosto
que lhe afligiu o peito. Queria poder ajudar, falar
algo de acalanto e talvez abraçá-la, mas sabia dos
limites impostos pelo profissionalismo e da ínfima
intimidade que dispunha.
Sem coragem de perguntar algo, desviou-se
para o banheiro que ficava ao lado da dispensa.
49
Fechou a porta e lavou o rosto. Lá pode perceber
que algo diferente o ligava àquela menina. Tão
perto e, ao mesmo tempo, tão distante do seu
mundo. Definitivamente sentia algo pela herdeira
mais jovem da livraria. Achava-a bonita, meiga e
inteligente. Tratava-o com docilidade. Nunca tinha
visto alguém assim.
Quando retornou ao posto, percebeu que a
jovem falava ao telefone com uma preocupação no
semblante. Sua testa franzida aparentava confusão,
tensão ou medo. Não combinava com a imagem de
doçura que lhe era tão peculiar.
Depois que desligou o telefone, Gilberto foi
ao seu encontro, pois já a observava também de
longe. Perguntou-lhe se teria notícias atualizadas.
– Soube agora que meu paizinho ficará com
sequelas. Respondeu aos prantos, sem esconder
os sentimentos.
Naquele momento, só havia dois clientes na
parte da frente da loja, ambos atendidos por Nando,
que de relance observava a cena, procurando
adiantar seu trabalho para também ficar a par da
situação.
50
Não demorou muito e Juliana passou pelos
dois comunicando que sairia para resolver algumas
coisas e voltaria depois do almoço. Pediu para Beto
assumir o posto de caixa, e que Nando inventasse
alguma desculpa aos clientes para ficar apenas no
atendimento aos livros.
Mais uma vez os dois funcionários se
entreolharam e, em silêncio, propuseram-se a agir
conforme o pedido. Nando já tinha dispensado os
dois clientes e desligado a máquina de fotocópias,
enquanto Beto, que estava sozinho, caminhou para
detrás do balcão.
A essa altura, o imaginário dos dois só exibia
cenas de desolação, tristeza e um pouco de revolta.
– Como pode uma pessoa tão boa,
aparentemente nova, cinquenta e quatro anos de
idade, ser acometida por uma desgraça dessas?
Desabafou indignado Fernando
– É, amigo, já dizia o escritor Zafón, no livro
A sombra do vento: “O destino costuma estar na
curva de uma esquina”. Seu Chico só não sabia
que a esquina dos males da saúde estava bem
próxima. Comentou o consternado Gilberto.
51
CAPÍTULO IV

A rotina do trabalho continuava com o entrar


e sair de pessoas à procura de livros, fotocópias e
encadernações. No entanto, a cabeça dos garotos
insistia em permanecer estáticas naquelas ultimas
vinte e quatro horas. A desculpa da máquina
quebrada, por falta de tonner, caiu como uma luva.
Dois pensamentos dividiam a mente de Nando, o
dia anterior e Juliana. Nas suas divagações a via
em seus braços. Desejo que o fizera esquecer, por
uns instantes, do tormento do dia anterior. Não
conseguia pensar em mais nada.
Eles revezaram no almoço, por meia hora.
Beto já havia alertado à mãe dos fatos ocorridos, e
que poderiam não ir almoçar em casa. Lamentava
apenas por não ter tempo de estudar para uma
prova da disciplina Desenvolvimento de Coleções.
Tinha em mãos o livro Elaboração de uma política
de desenvolvimento de coleções em Bibliotecas
Universitárias, de Simone da Rocha Weitzel.
– Cara, vou tentar estudar hoje à tarde.
52
Tomara que eu consiga.
Nando apenas assentiu com a cabeça e
procurou também seguir o caminho do colega.
Andou de um lado para outro e, lembrando-se da
conversa que tiveram acerca dos livros, encorajou-
se e pegou A sombra do vento. Abriu ao meio e
cheirou-o profundamente, antes de sentar-se para
iniciar a leitura.
A concentração durou apenas cinco minutos,
pois, junto com Juliana, chegaram duas pessoas,
que suspeitou não serem clientes. Um senhor calvo
e barbudo, com roupas sociais escuras, e uma
jovem com cabelos lisos tingidos de lilás, usando
um vestido tubinho listrado. Chegaram dando boa
tarde aos dois e, aparentando pressa, foram direto
ao escritório para uma conversa privada. De lá, os
meninos não conseguiam ouvir nada, e então se
propuseram apenas a disfarçar a estranheza que
sentiam. Nando reparou que a caçula vestia uma
roupa diferente da que saiu e que seu semblante
estava mais tranquilo.
O diálogo era controlado pelo relógio de
Fernando, que não conseguia mais se concentrar
53
na leitura. Fechou o livro e, após colocar um
marcador de página no final do capítulo um,
acomodou-o na prateleira dos romances
internacionais. De vez em quando, tentando não
despertar nenhuma suspeita acerca da sua
curiosidade, passava pela porta como quem iria ao
banheiro ou dispensa. O vai e vem acabou
interferindo na concentração de Gilberto, que
tentava assimilar os últimos conhecimentos pra
prova de logo mais.
– Meu amigo, você precisa tomar um
remédio para acalmar os nervos, senão vai pirar! E
eu preciso me concentrar para poder estudar pra
essa prova aqui.
Depois do pedido de desculpas, Nando
informou que iria acelerar o cadastro dos livros que
a distribuidora havia trazido no dia anterior, e que o
avisasse caso chegasse algum cliente.

***

Os ruídos de cadeiras sendo arrastadas e da


porta do escritório sendo aberta fizeram Nando
54
entender que a reunião havia acabado. Optou por
ficar onde estava para não aparentar curiosidade, e
deixar entender que estava sendo proativo, ao dar
continuidade aos trabalhos diários. Ouviu vozes ao
longe. Depois de alguns minutos, deu-se um gelado
silêncio, de onde se ouvia unicamente o bater
acelerado de seu coração. Aguardava
ansiosamente o abrir da porta do estoque, para
então vê-la entrar exibindo o sorriso no lindo rosto.
A espera o fez registrar, equivocadamente,
duas vezes o mesmo livro no sistema, e perder o
foco na atividade iniciada. Enquanto reclamava com
seus botões, pode ouvir tocar o telefone do
escritório e, infelizmente, a voz grave do amigo. A
desatenção lhe rendeu outro erro. No lugar do
nome do livro registrou o nome do autor.
– Não pode ser, preciso fazer algo. Bradava
consigo inconformado.
Refeita a edição do formulário de cadastro,
levantou-se e abriu a porta. Num susto, deu de cara
com Juliana, que também estava prestes a abri-la.
Sem jeito, instintivamente, sorriu com os lábios
fechados. Juliana fez o mesmo e disse que queria
55
falar ele. Nando não esperava pela dupla surpresa.
Gaguejou e procurou direcionar o corpo para
retornar à sala. Mas ela, percebendo o trejeito,
antecipou-se e se dirigiu ao escritório do pai,
informando que a conversa seria naquele ambiente.
Gilberto apenas acompanhou com os olhos a
passagem dos dois até lá. Não fazia ideia do que
se tratava. Seu foco na prova de logo mais à noite o
tinha deixado meio desligado dos acontecimentos
momentâneos. No momento, sua cabeça estava
preocupada em entender os procedimentos
necessários para o gerenciamento do acervo de
uma unidade de informação, englobando aspectos
relacionados à composição do acervo, descarte e
aquisição de material, envolvendo as etapas de
compra, permuta e doção. Precisava tirar no
mínimo um sete, pois a prova do primeiro bimestre
tinha sido desastrosa.

***

Fernando não lembrava com detalhes como


era a sala de Senhor Francisco, pois só tinha
56
entrado lá apenas duas vezes. Uma quando foi
contratado, e a outra quando precisou pegar uma
calculadora, a mando de Marisa, que não podia se
levantar porque estava pintando as unhas.
Ao sentar-se de frente à Juliana, esboçou
mentalmente um diálogo, enquanto ela buscava
alguns documentos nas gavetas. Mas desistiu e
ficou admirando o rosto da caçula com o canto do
olho. Notou que a jovem tinha uma minúscula
tatuagem no lado direito, entre a orelha e o
pescoço. Tentou decifrá-la, mas foi surpreendido
pelo olhar da menina, que denunciava seu delito.
Envergonhado, baixou o olhar e apressadamente
inventou de se ajustar na cadeira. Ela deu um
sorriso com o canto da boca e, arrumando os
papéis sobre uma pasta, disse:
– Fernando, preciso de dois favores.
– Pois não!
– Queria que fosse, primeiro ao Sr. Carlos
contador, na Avenida Sete de Setembro, que fica
ao fundo da rodoviária velha, entregar esses
documentos e pegar um contrato com ele. Depois
fosse à distribuidora Paz e Vida, que fica à Rua
57
Divina Pastora, e entregasse o contrato àquele
senhor que esteve aqui com a secretária. Enquanto
isso, eu te cubro no atendimento.
– Tudo bem, sem problemas! Só isso
mesmo?
– Sim, obrigada!
Despediu-se, informando Gilberto de suas
tarefas externas, pegou sua carteira de documentos
e saiu ao quarto e último badalar dos sinos que
anunciavam a hora.
Ele continuava a pensar nela. Em seu rosto
de boneca; no vermelho colorindo seus lábios
carnudos; naquele pescoço tatuado, que imaginava
estar com uma fragrância hipnotizante. Deduziu
que a tatoo havia sido feita em Salvador, durante o
fim de semana, pois era um detalhe novo.
A caminho do primeiro destino, indo pela
Rua Capela, entrou à Rua Divina Pastora e
chegando à esquina com Lagarto, seus olhos te
guiaram até uma pequena fachada de loja, cheia de
livros e discos de vinil.
Encantado com a descoberta, Nando
aproximou-se e, logo da porta, percebeu que se
58
tratava de uma espécie de livraria que comprava e
vendia livros e discos usados. Do lado de dentro,
uma senhora idosa o observava e, estendendo um
grande sorriso, disse-lhe para ficar à vontade, pois
o Sebo Corujão estava à sua disposição.
– O jovem procura algum livro ou disco de
vinil em especial?
– Não, obrigado! Estou apenas admirando o
local.
– Então gosta de livros, né?
– Sim, desde pequeno. Hoje eu trabalho
numa livraria lá na Catedral. Mas somente vendem
livros novos.
– Prazer! Sou Lourdes. Conheço Senhor
Francisco. Somo velhos conhecidos. Conheço toda
a família.
Fernando também se apresentou melhor e
disse estar muito feliz em ter conhecido o lugar,
pois nunca soube de um local na cidade que vendia
livros usados, fora a banca de livros do senhor do
mercado central. Ele tinha mil perguntas a fazer.
Sobre o que ela chamou de sebo e sobre a família
Rezende também, mas o tempo não lhe permitia.
59
Seu relógio o avisava de que as tarefas
dadas por Juliana ainda estavam para execução e,
após ter dado uma olhada rápida pelas prateleiras,
disse que voltaria num outro dia, mas antes lhe
perguntou o horário de funcionamento do
estabelecimento.
– Como sugere o nome acima, o Sebo
Corujão funciona das seis da manhã até a meia
noite. Disse-lhe com um sorriso orgulhoso no rosto.
Sem poder fazer mais perguntas no
momento, por causa da pressa, mesmo curioso,
Nando agradeceu a atenção e ao sair registrou uma
selfie, tendo como cenário a entrada do sebo.
As duas missões ficavam próximas. A
Avenida Sete de Setembro e a Rua Divina Pastora
são paralelas, e de onde estava, bastava apenas
cruzar a quadra da Rua Lagarto. Quando chegou
ao prédio, subiu uma escada estreita. Como havia
explicado sua orientadora, ficava ao pé desta, uma
porta de vidro temperado, com um adesivo enorme
que anunciava o nome do profissional em letras
Arial.
Alguns minutos depois já estava descendo
60
as escadas com a encomenda em mãos, para ser
entregue ao barbudo da distribuidora. Ao chegar, foi
recebido pela secretária com o cabelo lilás. Ela o
fez aguardar um instante e, entrando no gabinete
do diretor, fechou a porta olhando-o de relance.
Ainda entusiasmado com a descoberta do
dia, Nando ficou sonhando com aquelas prateleiras
e livros repletos de história. Questionava consigo se
Dona Lourdes saberia informar quantos livros teria
e que títulos possuía. Ele sabia que o sistema de
sua livraria teria todas as respostas.
Voltou à realidade quando o Senhor Pereira
e sua fiel escudeira deixaram o gabinete e se
dirigiram a ele, com um documento nas mãos do
diretor de vendas, satisfeitos com a presteza no
atendimento da livraria ao pleito deles.
– Avisa à Senhorita Juliana que estamos
muito felizes com o convênio firmado conosco.

***

A distância que separava a distribuidora da


livraria era de quatro quadras, percurso que a pé
61
não dariam mais que quinze minutos. Tempo este
que, após um cálculo de cabeça, possibilitava-lhe
chegar por volta das dezessete horas.
Regressando pelo mesmo caminho, passou
novamente em frente ao sebo, pois ainda tinha em
mente conhecer com mais detalhes aquele
santuário de livros. Sua consciência não o deixou
entrar, mas lhe permitiu dar uma parada do outro
lado da calçada e observar carinhosamente o
entorno do lugar, sua fachada, com banners e
cartazes espalhados por todos os lados. Observou
que o local abrigava no pavimento superior uma
residência, e intuiu que a idosa moraria lá, pois
para abrir a loja às cinco horas e fechar à meia
noite, somente morando ao lado. Outro detalhe
observado foi o fato de não ter notado a presença
de mais ninguém no recinto, compreendendo se
tratar, possivelmente, de um comércio simples, com
apenas um proprietário-funcionário.
Enquanto conjeturava, foi surpreendido por
um aceno vindo de dentro da loja. Era Dona
Lourdes, que ao mesmo tempo em que lhe dava
adeus, lhe chamava para entrar. Ele, meio
62
encabulado, respondeu com outro aceno,
gesticulando com os indicadores, como se
estivesse enrolando um novelo, dizendo em voz
baixa que voltaria depois.
Nando saiu apressando o passo. Em seus
pensamentos achava que o sebo não estava bem
visível, que tinha excesso de informações na
entrada e pouca luminosidade por dentro. Sabia
que com a ajuda de um profissional isso seria
revertido, para que todos pudessem, pelo menos,
saber do que se tratava aquele local,
principalmente quem passasse de carro.
Ao atravessar a Praça da Catedral, pode ver
a livraria com muito movimento. Sorriu e imaginou
que Juliana estaria feliz pelas possíveis vendas,
pois não era comum ver tanta gente lá. Ao entrar,
vislumbrou um grupo de, pelo menos, umas trinta
senhoras, espalhadas entre as prateleiras e mesas,
observando ou lendo algum livro. De perto,
identificou em suas blusas brancas o rosto da
Santa Mãe de Deus estampado na frente, com os
dizeres nas costas “Paróquia Nossa Senhora do
Carmo” e “Fortaleza-CE”. Adentrando com muito
63
cuidado para não esbarrar em ninguém, avistou à
direita uma fila e Juliana ao caixa, com duas
clientes recebendo de suas mãos uma sacola com
livros. À esquerda, em uma estante ao fundo,
suado, Gilberto explicava algo a um padre.
Nando não pensou duas vezes, largou a
pasta com o contrato embaixo do balcão, e se
adiantou dizendo à Juliana que iria ajudar Beto no
atendimento. Ela olhou e assentiu com a cabeça,
voltando sua atenção para a próxima cliente da fila.
Passado o tsunami, às 18:30h, era o
momento de juntar os cacos de Beto, Nando e
Juliana. Diziam estar em pedacinhos. Muitos livros
estavam espalhados entre as prateleiras e mesas
de leitura. Se sumiu algum, só saberemos daqui a
cem anos, exagerava Gilberto, enquanto carregava
uma pilha deles para a caixa destinada às
arrumações.
– Fernando e Gilberto, muito obrigada pela
grande ajuda que me deram! Exaltou Juliana,
enquanto finalizava o caixa.
– Por nada! Responderam os garotos em
uníssono.
64
– Acho melhor abrimos uma filial dentro da
paróquia. Elas têm fome e sede de livros! Brincou
Gilberto com uma voz cansada.
– Que grande coincidência! Hoje fechamos
contrato de consignação de livros teológicos da
distribuidora Paz e Vida, e recebemos a visita
inesperada de peregrinos católicos de Fortaleza,
que estavam num encontro por aqui. – Falou
Juliana com entusiasmo.
– Beto, e sua prova? – Lembrou assustado
Nando, quando olhou para o relógio de parede
marcando dezoito horas e cinquenta minutos.
– Já era. Estudei tanto...
Juliana ao ouvir o lamento ficou se sentindo
culpada. Perguntou se não daria ainda tempo.
Disse até que poderia lhe dar uma carona.
Sugestão não bem vista por Fernando, que
aguardava apreensivo por uma negação do colega.
– Não se preocupe. Farei na segunda
chamada outro dia. Além do mais, com este trânsito
terrível das dezoito horas, não chegaria a tempo na
UFS para a primeira aula. Vou para casa
descansar.
65
Todos sabiam que, em horário normal, os
seis quilômetros entre a livraria e a universidade
seriam superados entre quinze e dezesseis
minutos. Mas passaria de uma hora naquele horário
de pico, ainda mais com ameaça real de chuva
forte para aquela noite.
Finalmente, depois que descansaram, Nando
perguntou se tiveram notícias de Senhor Francisco.
Atenta à pergunta, que sabia ser dirigida em
especial a ela, Juliana disse que tinha recebido
uma ligação da irmã e do tio, informando que o pai
ficaria em Salvador até próximo fim de semana.
Disse ainda que Marisa ficaria cuidando dele no
hospital, e que perdera mais de cinquenta por cento
dos movimentos do braço e perna direita, tendo a
fala também sido comprometida.
– Poxa. Sinto muito! – Disse Nando com
muita tristeza.
– É a vida! Quem não se cuida, um dia a vida
cobra. Fuma muito e não faz atividades físicas! –
Lamentou Juliana.
A conversa rendeu-lhes mais dez minutos,
até apagarem as luzes, fecharem a porta de vidro e
66
descerem a de rolar. Juliana novamente ofereceu
carona, dessa vez aos dois. Gilberto disse que não
precisava, pois morava pertinho da loja. Nando até
que queria, só para ficar mais tempo com ela, mas
rejeitou, dizendo que iria resolver algumas coisas
ainda na rua. Uma mentirinha que não os deixou
convencidos.
A brisa continental, com ventos moderados e
sensação térmica de vinte e dois graus, os fez
sentir arrepios. Despediram-se e foram para suas
casas.

67
CAPÍTULO V

A terça-feira não acabaria ali para Fernando.


Quando chegou à porta de casa, viu uma
ambulância e uma aglomeração de curiosos,
vizinhos espremendo-se para ver algo que vinha
exatamente da varanda de Senhor Ladislau. Aflito,
correu feito um atleta, com o coração na boca.
Diziam, “lá vem o filho dela”.
Ao se aproximar da multidão, Fernando não
hesitou em ser indelicado, empurrando alguns que
ainda estavam atrapalhando a entrada, dizendo aos
gritos:
– O que houve com minha mãe?
A resposta veio antes mesmo que alguém
pudesse lhe dizer alguma coisa. Ao passar pelo
último obstáculo, viu Dona Iraê sentada sobre uma
poltrona, aparentemente desmaiada. Dona Fátima,
que a segurava pela mão, abanando-lhe o rosto
suado, logo tratou de acalmá-lo, afirmando que o
pior já havia passado e que ela apenas dormia sob
efeitos de remédios.
68
– Sim, mas o que aconteceu?
– Sua mãe, hoje pela manhã, me reclamava
de um formigamento e dores no ombro e braço
esquerdo, junto com um suor excessivo. Agorinha
mesmo, à noite, quando estava atendendo a uma
cliente da costura aqui embaixo, sentiu uma dor
forte no peito, deu um grito e desmaiou. Chamamos
uns rapazes que passavam na hora. Enquanto isso,
uma senhora ligou para a ambulância, que chegou
em vinte e cinco minutos. – Resumia Dona Fátima,
com voz de confessionário.
O enfermeiro socorrista da ambulância
explicou-lhe os procedimentos adotados, e que
atualmente ela não corria perigo de morte, mas que
seria necessário levá-la para fazer alguns exames
no hospital. Fernando, sem pestanejar, assentiu
com a cabeça e providenciou a documentação para
acompanhá-la.
Pelas condições em que se encontrava o
serviço de saúde do Estado, Nando já imaginava o
pior atendimento possível. Mas, graças às
amizades que tinha o Senhor Ladislau, sua mãe
não haveria de sofrer muito com as mazelas da
69
saúde pública. Bastaram apenas dois telefonemas
e a enfermeira chefe já estava de prontidão à porta
do hospital, aguardando-os chegar para levá-los ao
setor de urgência cardiológica.
Após o exame clinico, feito pelo médico
plantonista, ela foi levada para um
eletrocardiograma, onde foi constatado um enfarto.
Logo em seguida, Dona Iraê, não mais
acompanhada pelo filho, foi levada para ser
submetida a um cateterismo cardíaco e uma
angioplastia coronária, procedimentos destinados à
verificação e reparação de obstruções arteriais.
Duas horas depois, bem acomodada numa
enfermaria para quatro mulheres, Dona Iraê
acordou e, ainda meio embriagada dos efeitos da
sedação, viu Nando ao seu lado dormindo numa
cadeira. Mesmo assustada e sem forças, resolveu
deixá-lo dormir, porém uma das vizinhas acamadas
providenciou que Nando acordasse, pedindo para
que seu acompanhante o beliscasse de leve.
Passado o susto, ambos ouviram do médico
que, se o atendimento demorasse mais um pouco,
poderia ter sido fatal. Disse que ela teria uma vida
70
tranquila se procurasse cuidar melhor da saúde e
tomasse rigorosamente os remédios de uso
contínuo. Acrescentou ainda que fatores como
tabagismo, hipertensão, colesterol elevado,
diabetes, sedentarismo, obesidade, estresse e
alcoolismo aumentam consideravelmente o risco de
infarto.
Em frente à casa de Nando, a multidão já
havia se dispersado, restando apenas o Senhor
Ladislau, Dona Fátima e Dona Matilde, mãe do
amigo Tia, que morava na rua em frente, todos se
perguntando como deveria estar Dona Iraê, se já
estaria recuperada do ocorrido ou se o seu quadro
de saúde havia sido agravado.

***

A inquietação, aliada à preocupação, pois


até àquele momento não tinham recebido nenhuma
notícia, nem de Dona Iraê, nem de Nando, que
aparentava estar com o telefone descarregado, fez
com que os vizinhos resolvessem chamar Roberto
e pedir-lhe que fosse até o hospital à procura de
71
alguma informação.
A amizade de Nando e Roberto era muito
forte. Desde pequenos trilharam juntos os mesmos
caminhos. As mesmas escolas, o mesmo bairro, o
mesmo time de futebol. Só não combinavam no
hobby. Enquanto um era apaixonado por
automóveis e MotoCross, o outro se deliciava aos
livros e ao mundo da leitura. Desgrudaram-se
recentemente, após a conclusão do ensino médio.
O primeiro emprego dos dois provocava encontros
ocasionais, Nandinho na livraria e Roberto como
motoboy.
– Mãe, nem precisa falar duas vezes. Tenho
Tia como irmão e Dona Iraê como minha segunda
mãe. Falou emocionado Roberto.
Os pingos de chuva anunciavam uma
madrugada chuvosa. Munido de capa e capacete,
Roberto, como não poderia ser diferente, arrancou
em alta velocidade na direção do Hospital. A
caminho, lembrava do tempo em que vivia socado
na casa do melhor amigo. Nando tentava lhe
passar a afeição pelos livros, enquanto ele tentava
transferir para o amigo a adrenalina das corridas de
72
automóveis. As mães, confidentes uma da outra,
buscavam juntas as saídas para as intempéries da
vida. Trocavam e emprestavam roupas, calçados,
remédios e comida.
Até hoje, Roberto guarda com muito carinho
o presente que recebera do amigo no aniversário
de onze anos. Um livreto, escrito e ilustrado por
Nando, tendo como enredo uma história sobre um
menino que queria ser piloto de carro de corrida. Ao
final do livreto de dezoito páginas, ele inseriu o
nome, ano e escuderia dos campeões mundiais de
fórmula 1.
Assim que chegou ao hospital, Tia, foi em
busca de informações de Dona Iraê. Em pouco
tempo conseguiu encontrar Nando, ainda acordado,
junto com sua mãe, que dormia tranquilamente com
um soro preso ao braço. A surpresa e felicidade de
vê-los foi tão grande que os dois, sem cerimônias,
abraçaram-se chorosos por um certo tempo.
As notícias são boas, disse Nando. O médico
a observou e relatou que sua mãe era uma senhora
de muita fibra. Um coração de puro aço! Sua
recuperação estava ocorrendo além das melhores
73
expectativas. Entretanto, concluiu o médico:
– Ainda é cedo para uma avaliação
minuciosa. Vamos aguardar as próximas vinte e
quatro horas. Por hora, adianto apenas que
amanhã ela fará novos exames cardiológicos e
continuará tomando remédios. Quem ficará com ela
à noite?
– Eu, doutor. Afirmou Fernando.
– Vou lhe trazer algo para comer e se
acomodar melhor, interveio Roberto.
Senhor Ladislau já havia lhe passado
algumas instruções, que incluía o consentimento da
enfermeira chefe para que Nando recebesse uma
poltrona e um lençol. O amigo providenciou depois
um lanche e um carregador móvel de celular, para
que pudesse se comunicar com todos sem
problemas.
De volta à Rua São João, Roberto acalmara
a todos explicando o quadro clínico de Dona Iraê. A
notícia foi amplamente divulgada entre seus
vizinhos. Nando manda agradecer ao seu padrinho
pelos préstimos, completou.
***
74
A quarta-feira anunciou a trégua dada por
São Pedro. As nuvens tinham sumido e um sol
matinal abrilhantava o espetáculo do dia. As donas
de casa se apressavam em estender as roupas nos
varais. Eram seis horas, quando Senhor Ladislau já
ajeitava uma marmita com inhame, charque e ovos,
acompanhada de uma minigarrafa com café coado
e leite. Tudo isso para Nandinho, feito
carinhosamente por Dona Fátima.
Na mesma hora, Fernando, que não havia
dormido bem, acompanhava de perto os
enfermeiros que levavam sua mãe ao primeiro
exame do dia. Ao lado da cama, dizia que iria dar
tudo certo e que logo estariam de volta para casa.
Da. Iraê se limitava olhá-lo com ternura e lhe falar
bem baixinho que o amava.
Nando, retornando à poltrona, pegou o
celular e enviou uma mensagem a Beto e à Juliana,
informando-os do acontecido, e que não poderia ir
trabalhar naquele dia. Após meia hora, chega seu
padrinho trazendo sua alimentação e pedindo
notícias atualizadas.
Enquanto comia, detalhava os últimos fatos,
75
agradecendo novamente por tudo que foi feito à
sua mãe. Senhor Ladislau deu-lhe um forte abraço
e disse que a tinha como uma filha. Nando, na
tentativa de esconder os olhos marejados,
providenciou uma saída estratégica até o banheiro
da enfermaria, onde conseguiu lavar o rosto,
buscando apagar algum vestígio de lágrima que por
acaso ainda houvesse.
Ao retornar, Nando ouve o toque do celular.
Ao avistar o nome Harry Potter na tela do aparelho,
lembrou-se de que ainda tinha algo a resolver fora
do hospital: seu emprego.
Gilberto estava sem querer acreditar no
problema de Da. Iraê. Ficou assustado com tanta
coincidência entre a doença dela e a do Senhor
Francisco. Lamentou profundamente o fato e disse
que faria das tripas coração para deixá-lo tranquilo
quanto ao trabalho.
– Daremos um jeito. Pode confiar!
– Valeu, Beto! Se Deus quiser, amanhã
estarei por aí.

76
CAPÍTULO VI

Juliana imaginava poder chegar mais cedo à


livraria naquela manhã, no entanto o maldito
cruzamento entre a Av. Mário Jorge e a Av. Beira
não estava muito disposto a ajudar. Há meia hora
estava em frente ao Shopping Jardins, um dos mais
movimentados da cidade, agora, encontra-se no
semáforo que fica logo após a ponte que dá acesso
à avenida do shopping, o que significa mais ou
menos a distância de um quarteirão, no máximo
Devidos aos empecilhos do trânsito, entrou
na loja às 08:40h, furiosa com a falta de habilidade
e atenção dos motoristas. Encontrou Gilberto já no
balcão do computador, dando início às atividades
do dia. Ainda bradando, afirmou que não aguentava
mais ver, quase todas as manhãs, uma batida de
automóvel. Dizia insistentemente que era muita
falta de atenção. Continuou relatando que pior
ainda era flagrar que, a cada dez carros, apenas
dois sinalizavam com o pisca para entrar à direita
ou esquerda. Um absurdo!
77
Deixou a bolsa abaixo do balcão e finalmente
deu bom dia a Gilberto, que ainda tentava se
recuperar da embriagante fragrância de jasmim,
que brotava da pele da menina. Beto a ouvia
atentamente e informou que havia na caixa postal
vários e-mails recebidos, mas que apenas um deles
chamou muito sua atenção. Uma pessoa
perguntava se a livraria tinha interesse em comprar
uma coleção de livros de um magistrado renomado
sergipano que tinha falecido recentemente. Sua
biblioteca particular contava com mais de duas mil
obras, publicações da década de trinta até os dias
atuais. A filha, única herdeira, não tinha muito
interesse financeiro, estava mais preocupada em se
livrar dos objetos para realizar uma reforma na
casa.
Após a afirmativa de Juliana, Gilberto
prontamente respondera que a loja tinha sim
interesse, perguntando-lhe o valor estipulado da
coleção, além de endereço e telefone pra contato.
Ele já imaginara que Senhor Francisco iria adorar.
Sabia que gostava de livros raros, pois, vez ou
outra, jogava conversa fiada com os meninos sobre
78
bibliofilia e leilão de livros raros pela internet. Certo
dia chegou a afirmar que dispunha no escritório de
três obras sobre teatro, publicadas em 1682, na
Espanha. Desafiou-os a adivinharem o valor das
três obras somadas. Ganhariam um livro novo,
qualquer um do estoque, caso acertassem. Gilberto
olhou para Fernando com entusiasmo e rindo
propôs que primeiro pudessem ver, pelo menos, a
capa dos livros, para terem uma noção para a
aposta. Sem hesitar e com absoluta certeza de que
iria vencer a aposta, Senhor Francisco permitiu-lhes
ver as obras, desde que não pudessem tocá-las.
– E se não acertarmos?
– Aí vocês me pagam um lanche da padaria
do outro lado pra praça.
– Pelo menos dê um intervalo de valores
mínimos e máximos não tão distantes. Continuou
Gilberto.
– Não deveria, mas vou dar, não uma, mas
duas dicas. A primeira é que os valores estão entre
dois mil e três mil reais. A segunda é que o
resultado da soma dá um valor numérico crescente,
lendo da esquerda para a direita, mas com final
79
ímpar. Gargalhou Senhor Francisco.
Fernando e Gilberto entraram na brincadeira,
e após se apresentarem ao escritório e verem de
longe os livros de couro e capa dura na estante
dele, pensaram um pouco e lançaram suas
apostas:
– Custaram no leilão dois mil quatrocentos e
sessenta e nove reais! Respondeu Gilberto.
– Não! Acho que custaram dois mil
seiscentos e oitenta e nove reais! Vomitou
Fernando.
Senhor Francisco gargalhou muito e depois
disso fez um suspense de quase um minuto. Logo
após anunciou que iria pedir milk-shake com
pedaço de pizza portuguesa para Gilberto. Depois
falou que pediria café com leite e um misto quente
para Fernando, voltando novamente a gargalhar.
– Diga logo? Perdemos feio foi? Falou
Gilberto com curiosidade.
A anunciação do resultado foi interrompida
pela entrada de um cliente que desejava comprar
um livro didático. Beto se prontificou a atendê-lo e o
fez com agilidade e eficiência, para logo ver
80
solucionada a aposta.
– Bora, Seu Chico, ganhei ou não ganhei?
– Eu já disse, providenciem meus lanches.
Vocês perderam e feio!
– Sim, mas qual é mesmo o valor das três
obras? Gilberto ainda mais ansioso questionava,
enquanto Nando era só risos para os dois.
– Bem, vou falar sério agora, disse Senhor
Francisco, tentando aparentar seriedade.
– Os dois quase acertaram. O valor foi de
dois mil quatrocentos e oitenta e nove reais.
– Eu cheguei mais perto. Mereço ganhar!
Argumentou Beto, enquanto Nando permaneceu
calado.
– Farei melhor. Vou presentear-lhes com um
livro qualquer, desde que estejam na lista de
promocionais. Podem escolher!

***

Juliana ficou curiosa sobre a tal venda de


uma biblioteca particular. Já ansiosa, aguardava a
resposta do e-mail enviado por Beto. Ela sabia que
81
seu pai se agradava muito com a ideia de comprar
e vender também livros usados, mas sempre
recuava devido às interferências de Marisa, que
dizia não ver vantagens no tipo de comércio. Dentre
as desvantagens, dizia ela, estavam a necessidade
de espaço muito maior e o cheiro insuportável de
mofo.
– Gilberto, vou aguardar a resposta da
vendedora e passarei os detalhes para meu pai.
Talvez isso lhe deixe mais animado, pois soube por
meu tio que ele anda um pouco depressivo.
– Que bom, Juliana! Espero que ele se anime sim.
Durante aquele dia, este foi o último diálogo
longo entre os dois, pois ficaram ocupados com
seus afazeres, que naquele momento eram muitos.
Quando estavam para fechar o caixa do dia,
Gilberto compartilha com a caçula a mensagem que
acabara de receber de Fernando.

Olá Harry Potter, graças a Deus minha mãe


está evoluindo muito bem. O médico acabou de nos
dizer que os novos exames não detectaram nada de
anormal. Devemos sair do hospital ainda esta noite.

82
Darei notícias sobre meu retorno mais tarde. Um
abraço.
A notícia trouxe alívio para Juliana, por dois
motivos. O primeiro, porque a mãe de Nando
estava melhor de saúde, e segundo porque
provavelmente ele poderia voltar no outro dia ao
trabalho e desafogar a todos.

83
CAPÍTULO VII

A enfermeira chefe do hospital falava no


corredor com Senhor Ladislau, quando Fernando
apareceu na porta da enfermaria, aparentando um
cansaço de quem tinha descarregado um caminhão
de sacos de cimento. Ao dirigir-se aos dois,
percebeu um ar de preocupação na face da
enfermeira, que disse ao amigo que o médico só
permitiria a alta, caso Dona Iraê tivesse um
profissional enfermeiro aos seus cuidados, por mais
um dia.
Ouvindo a conversa pela metade, Nando
antecipou-se aos dois e falou ser inviável contratar
um enfermeiro para sua mãe.
– Deve custar caro. Eu cuido dela até sua
alta, sem problemas.
– Nandinho, fique tranquilo! Já está tudo
resolvido entre nós, adiantou o vizinho. Minha
amiga aqui arranjou pra mim uma profissional de
enfermagem por um dia. Ficou quase de graça! E
melhor, já está pago.
84
– Mas quem pagou?
– Eu adiantei um pagamento que devia a sua
mãe por uma costura que ela fez pra mim.
– Seu Ladislau, pelo amor de Deus! O
senhor não sabe mentir. Além de estar escrito em
seu rosto, o senhor não precisa de serviços de
costura, pois foi sua esposa que ensinou minha
mãe a costurar.
Sem contra-argumentos, Senhor Ladislau
confessou que faria isso pelos dois. Não teria como
não o fazer. Puxando-o de lado, disse que a vida
não tinha lhe presenteado com um filho de sangue
e nem netos. E que os tinham como filha e neto.
Fernando sentia vergonha em receber mais
uma ajuda dos padrinhos. Não relatou para ele,
mas ficou sabendo há um ano que Senhor Ladislau
e Dona Fátima não cobravam o aluguel de sua
mãe, apenas exigia o pagamento da água e da luz.
Sempre achava que sua mãe tinha dinheiro para
custear as despesas da casa com a pensão e
costuras domésticas. Então, com a cabeça baixa,
Nando agradeceu mais uma vez ao seu padrinho,
que retribuiu levantando seu queixo e lhe dando um
85
abraço.
– Vamos lá! Precisamos lhe dar a boa
notícia! Disse Senhor Ladislau com um sorriso.
Nando, procurando esconder a vergonha
pelo presente recebido, colocou a mão sobre seu
ombro e caminhou ao seu lado segurando as
lágrimas.

***

A vizinhança foi até a porta de Dona Fátima


que, segurando um terço nas mãos, continuava
relatando os acontecimentos aos demais, com
todos os detalhes que só jornalistas profissionais
sabiam fazer.
O Corcel 1982, de cor bege, surgiu da
esquina do barracão cultural. O ronco do motor era
anunciado desde a curva da Avenida João Ribeiro.
A gurizada corria ao lado acompanhando seu
balançar. Na frente, Fernando e Senhor Ladislau
acenavam para os vizinhos, e atrás Dona Iraê era
cuidada por Isabela, uma enfermeira de trinta e dois
anos, contratada por 24 horas, conforme indicação
86
da colega.
Dona Fátima, Dona Matilde e Roberto foram
os primeiros a recebê-la com um caloroso abraço.
Após as inúmeras recomendações e paparicos,
deixaram-na repousar no quarto de hóspedes da
casa da comadre, que não aceitava recusa do
convite, já que a enferma não podia ficar subindo
as escadas. Ao lado de sua nova cama, foi
colocada outra para a enfermeira. Dona Fátima
disse que já tinha providenciado tudo, e que
Nandinho dormiria na casa dele para não deixar a
cama da mãe esfriar.
Àquela altura, Nando não conseguia se
lembrar da livraria, nem de Gilberto, nem mesmo de
Juliana. Quando conseguiu subir, já passava das
dez da noite. Tomou um banho prolongado, comeu
pão acompanhado de café com leite, e tomou uma
sopa de abóbora com charque, feita pela madrinha.
Foi deitar com o cheirinho da mãe sobre a colcha
da cama.
Tentou por várias vezes se levantar para
pegar o celular na sala e ligar para o colega de
trabalho, mas o peso de suas pálpebras foi maior
87
que sua vontade, e acabou dormindo ainda
enrolado sobre a toalha do banho.

***

O dia seguinte retomava a agitação de uma


véspera de São Pedro. A feira do bairro foi
antecipada, devido às festividades do Santo. O
trecho da rua estava bem movimentado, pois servia
de estacionamento e área de evacuação de
produtos pra feirantes e donas de casas.
Fernando já estava pronto para voltar à
livraria. Arrumado, desceu as escadas e foi tomar
café da manhã com sua mãe e seus padrinhos. A
noite tinha sido tranquila para Dona Iraê. Tomou
rigorosamente todos os remédios, aos cuidados da
enfermeira contratada.
– Mãe, tem certeza que posso ir ao trabalho?
Não vai precisar de mim?
– Estou bem, filho. Graças a Deus! Estou
sendo muito bem cuidada por todos aqui.
– Pelo amor de Deus, qualquer coisa me
avise que venho voando.
88
Depois das recomendações mútuas, Nando
subiu na carona da moto de tia e sumiu pela
Avenida Confiança, já que o caminho do barracão
cultural estava interrompido pela feira.
Ainda no trajeto, foi pensando em tudo que
acontecera desde o início da semana. Um turbilhão
de pensamentos o acompanhava na garupa da
moto do amigo: o sumiço da família Rezende; a
administração da livraria sem seus donos; a
mensagem do AVC de Senhor Francisco; Juliana e
sua estranha e repentina atração por ela; a
reportagem sobre biblioterapia; o início da leitura de
A sombra do vento; a descoberta de um sebo na
cidade; o infarto e internamento da mãe.
Tia o conduzia também em silêncio,
imaginando que o amigo estivesse querendo um
descanso pra mente. Como sempre, pegou a
Avenida João Ribeiro, passou pela Rodoviária
velha e seguiu descendo a Rua Capela. Mas em
vez de dar uma roubadinha na quadra da praça,
continuou pela Rua Arauá e fez o retorno na
Maruim, para pegar a Rua Itabaiana e deixá-lo em
frente à livraria, após dobrar à esquerda na Praça
89
Olímpio Campos, também conhecida como Praça
da Catedral.
Ao descer da moto e tirar o capacete, Nando
elogiou:
– Dessa vez você foi prudente.
– Eu iria até entrar na contramão, mas o
guarda de trânsito estava bem na esquina, justificou
o motoqueiro.
– Obrigado, Tia! Depois nos falamos.
– Você quer que eu te pegue que horas?
– Ainda não sei, pois por aqui as coisas
também estão complicadas. O dono teve um AVC e
estamos tocando a loja com menos dois. Muito
trabalho me espera.
– Vixi! Então tá! Depois te ligo. Vou lá ver se
sua mãe está precisando de algo.
– Vai ver minha mãe ou a enfermeira
bonitinha?
– As duas coisas, respondeu Tia, a
gargalhadas.

90
CAPÍTULO VIII

A livraria tinha acabado de abrir. Juliana


estava ligando o computador do caixa enquanto
segurava o gancho do telefone com o ombro.
Gilberto, ao vê-lo chegar, dirigiu-se à porta para
recebê-lo. Fernando se ateve apenas em dizer que
a mãe estava bem e que sentia muito por não ter
ligado ontem, afirmando que não tivera tempo para
absolutamente nada. O colega entendeu a situação
e propôs levá-lo até Juliana para que juntos
pudessem realizar uma pequena reunião antes da
chegada de eventuais clientes.
Nando fixou seus olhos aos dela. A menina
respondeu dizendo em voz baixa que estava a falar
com a irmã ao telefone. Seu rosto era sereno.
Parecia atenta ao que dizia Marisa. Nesse ínterim,
Beto procurou colocá-lo a par dos ocorridos do dia
anterior, inclusive sobre o e-mail da biblioteca
particular à venda.
Mais uma vez Juliana voltou a falar, desta
vez olhando-o fixamente, quase que em retribuição
91
ao primeiro olhar de Nando, fato que o deixou
completamente sem ação, encabulado. Percebendo
a total falta de traquejo em disfarçar tais situações,
ele resolveu conversar com Beto:
– Essa notícia da venda da biblioteca me fez
lembrar de duas novidades que quero lhe contar.
– Boas ou ruins?
– Boas! Vi noutro dia uma entrevista no
jornal local sobre uma tal de terapia com livros,
chamada biblioterapia. A outra foi que, a caminho
do contador, descobri um sebo aparentemente
grande, que fica entre a Rua Divina Pastora e
Lagarto. Chama-se Sebo Corujão. Funciona das
seis da manhã até meia noite. É mole? – Indagou
contente.
Gilberto ficou fascinado pelas informações
do amigo ligado à cultura, principalmente pelo
horário de funcionamento do sebo, que por sinal
suspeitava já ter ouvido falar. Quanto à
biblioterapia, ele disse que conhecia um pouco
sobre o assunto, pois já tinha feito um minicurso,
num evento oferecido pela coordenação do curso
de biblioteconomia.
92
– Nando, tenho um livro que ganhei no
minicurso. Vou lhe presentear. Deixa ver aqui em
meu celular. Baixei um aplicativo no qual tenho
cadastrado todos os meus livros. Espere um
pouco.... Ah, achei! O livro chama-se Biblioterapia -
Um Cuidado com o Ser, de Clarice Caldin.
– Hum.... Valeu, amigo! Mas me diga uma
coisa: essa tal de biblioterapia funciona mesmo? As
pessoas podem mesmo ser curadas através das
leituras?
– Olha, eu lembro que era um curso de
introdução ao tema. Se eu não me engano, foi uma
professora do curso que ministrou. Acho que foi no
terceiro semestre. Havia bibliotecários, psicólogos e
terapeutas no evento. Acho que funciona sim, mas
precisa aprender as técnicas.
– Parece até que você não prestou atenção
ao minicurso!
– Mais ou menos. Estava de olho numa
gatinha do outro período que me tirava toda
atenção. Justificou Beto.
Após alguns risos entre os dois, Juliana
desliga o telefone e informa-lhes que seu pai e irmã
93
estarão de volta a Aracaju no dia seguinte, dia de
São Pedro.
– Meu pai está ansioso pra voltar a trabalhar
e deseja ver a livraria cheia de clientes no seu
retorno. Está planejando uma festa na loja e quer a
presença de vários amigos escritores, editores,
distribuidores e clientes antigos. Marisa me explicou
como ele deseja que seja realizado o evento,
concluiu a caçula.
Os dois se entreolharam numa mistura de
felicidade, entusiasmo e preocupação. Felicidade
pela volta do Senhor Francisco, entusiasmo porque
iriam conhecer alguns escritores regionais e
preocupação porque achariam que todo trabalho
sobraria para eles.
– Calma, meninos! Estou vendou uma certa
apreensão nos olhinhos de vocês. A única
recomendação é que venham bem arrumados na
segunda-feira. Coloquem uma roupa social, mas
sem blazer e gravata. Têm como conseguir?
Depois de alguns segundos pensando,
confirmaram com a cabeça que sim. Apesar da
confirmação, Nando não fazia a menor ideia de
94
como conseguir tal roupa social. De tudo que tinha
no guarda-roupa de casal que compartilhava com
sua mãe, somavam-se duas calças jeans, quatro
camisas polo surradas e três camisas de manga
curta, além de um tênis e um sapatênis, presentes
da madrinha no seu aniversário de dezoito anos.
– Não se preocupem, que os convites,
garçons, comes e bebes e ornamentação serão
providenciados por mim. Outra coisa, hoje iremos
fechar ao meio dia para que vocês possam curtir o
São Pedro.
De todas as notícias, esta foi a melhor para
os garotos. Beto pensava em levar uma paquera ao
cinema à tarde, enquanto Nando queria ler o livro A
sombra do vento, dar uma passadinha no sebo
Corujão e ir pra casa cuidar da mãe.
Juliana tinha outros planos para a tarde.
Aguardava com muita ansiedade a chegada de um
vôo que viria de Salvador. Seus pensamentos
naquela manhã estavam todos voltados para a
preparação da festa e para a vinda de uma pessoa
em especial.
***
95
Aquela manhã foi mais tranquila e silenciosa
que uma madrugada de inverno num mosteiro
europeu a quilômetros de distância da civilização. O
único barulho que se ouvia era o do vento que saía
do Split central, abaixo do balcão de atendimento.
Juliana, do escritório do pai, providenciava
as encomendas e convidava as pessoas. Gilberto,
sentando no ambiente de leitura, entre mesas e
cadeiras, copiava no caderno alguns conteúdos da
aula que perdera noutro dia, e Fernando, num
banquinho ao lado da prateleira frontal, continuava
a leitura do segundo capítulo de A sombra do
vento. Comparava sua história de vida com a do
protagonista. Um perdera a mãe, o outro o pai. Os
dois trabalhavam numa livraria e acabavam de
descobrir um lugar fascinante, cheio de mistérios e
de livros usados.
O silencio foi interrompido pelo barulho do
telefone do balcão. Gilberto implorou que Nando
atendesse. Do outro lado, uma voz masculina,
aparentando ser de alguém um pouco mais velho,
perguntava por Juliana. Ele pediu que aguardasse
um momento, após ter perguntado quem desejaria
96
falar. A voz respondeu que era Marcos e pedia
urgência.
Ao ser avisada, Juliana largou o que estava
fazendo e correu para atender. Iniciou uma
conversa aos sussurros:
– Eu pedi para você nunca ligar pra cá.
Censurou baixinho.
– Era urgente. Seu celular está desligado ou
sem sinal. Não vi outra saída.
– O que houve?
– Não poderei mais ir.
Juliana, anestesiada, ficou mais branca do
que já era. Seus lábios perderam a cor e uma
vontade de chorar lhe veio à tona. Nando dessa vez
conseguiu disfarçar. Foi até a entrada da loja e
voltando devagar, percebeu em seu semblante que
algo tinha lhe tirado o sangue das veias. Passou ao
lado e sem olhar para ela, foi direto para a
dispensa.
– Por quê? Questionava ela, com uma voz
engasgada e trêmula. – Estava sonhando com este
dia, amor.
– Fui escalado de urgência para trabalhar no
97
batalhão neste final de semana. Se eu fosse hoje
teria que voltar ainda nesta madrugada.
A alegação não soou muito bem aos ouvidos
da menina. A pele já não era mais pálida como de
costume. Em fração de segundos o rosto
avermelhou-se, numa nítida demonstração de raiva.
Da voz meiga de Juliana explodiu um palavrão tão
alto que fez Nando derrubar o café sobre a farda.
Mais um forte barulho fez-se ouvir logo na
sequência, desta vez o do gancho do telefone de
encontro ao aparelho.
Juliana voltou correndo para o escritório aos
prantos, sem testemunhas oculares do que havia
se passado. Fernando sabia apenas que um tal de
Marcos lhe trouxera alguma notícia ruim, mas
Gilberto de nada sabia. Os dois se encontraram
depois, no cruzamento entre a sala de leitura e a
dispensa, e seguiram até a calçada da livraria, local
geralmente usado por eles para reuniões
ultrassecretas, principalmente quando era para
tratar de assuntos que não poderiam ser ouvidos
por outros lá dentro. Paredes têm ouvidos, diziam
eles. Como na rua não havia paredes, este era o
98
melhor lugar para fuxicos.
Após cinco minutos, os dois retornam e se
deparam com Juliana ao balcão. A menina pegou
sua bolsa, desejou boas festas aos rapazes e disse
que não voltaria mais. Seus olhos denunciavam o
choro, e o rosto avermelhado relatava uma raiva
imensurável.
Beto e Nando cogitaram algumas
suposições. Uma delas era que o fato não deveria
estar relacionado ao seu pai, pois se assim fosse,
ela provavelmente lhes diria. Disso tinham certeza.
Outra hipótese era de que tal ocorrido estaria ligado
aos assuntos do coração, sentimentalmente
falando. Nando apostava todas suas fichas nesta
última. Já Gilberto suspeitava de alguma briga
envolvendo a irmã mais velha.
Eram onze da manhã e a hora de fechar o
estabelecimento estava próxima. As cenas não
saíam de suas cabeças. Largaram tudo que
estavam fazendo e ficaram do lado de dentro do
balcão esperando, quem sabe, outra ligação que
pudesse confirmar suas suposições.
Repentinamente, Gilberto, que era mais
99
entendido sobre economia e gestão, tentando
mudar de assunto, questionou como livrarias
sobreviviam numa época em que as vendas caíam
a cada ano no país. Pegou como exemplos o
fechamento das duas livrarias que estavam nos
shoppings, e que apenas mais duas teimavam em
se sustentar: a deles, provavelmente apostando
apenas nas vendas de livros didáticos, entre os
meses de janeiro e fevereiro, e a livraria católica,
que com certeza tem um público cativo e talvez
também receba doações da igreja para se manter.
Fernando observava atentamente o relatório
técnico do estudante bibliotecário e completou
afirmando que naquele mês, se venderam muito,
foram apenas uns trinta livros, que dariam
aproximadamente uns mil reais brutos.
– Cara, desse jeito vamos acabar perdendo
nossos empregos também!
– Calma, Harry Potter! Provavelmente
Senhor Francisco não vive só disso. Além do mais,
acredito que esta festa que ele quer dar deve ser
para melhorar o marketing, fazer negócios e
alavancar as vendas. Outra coisa, acho
100
interessante que ele some à loja a oferta de livros
usados, tipo um sebo, para atrair outros públicos.
Gilberto, perplexo, não esperava uma
resposta daquela. Ficou impressionado com a visão
empreendedora do colega. Mas, sem querer
demonstrar que o amigo tinha alguma razão,
insistiu em dizer que mesmo assim acharia que
corriam risco de fechar o negócio. Ainda contra-
argumentando, concluiu que livreiros não compram
para revender, eles recebem em consignação,
garantindo um percentual sobre as vendas.
– Acho melhor a gente se preparar para
fechar a loja, pois não tem um pé de pessoa nem
aqui e nem nas ruas. Vamos embora que hoje
quero pegar um cineminha com uma mina. – Falou
apressadamente Beto, querendo terminar de vez
aquela conversa que sabia estar em desvantagem.

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CAPÍTULO IX

As ruas estavam desertas, conforme dissera


Gilberto. A passos largos e segurando o livro que
continuava a ler, Nando subiu entusiasmado a Rua
Capela, em direção ao sebo. Na quarta quadra
virou à esquerda, e entrando na Rua Divina Pastora
passou à calçada da direita, para verificar se
realmente o sebo estava aberto.
A uma quadra do destino, pode avistar Dona
Lourdes na porta, conversando com um senhor
negro, aparentemente baixo, que tinha entre as
mãos o que parecia ser um chapéu panamá
branco. Ela gesticulava muito, como alguém que
discursa querendo convencer o outro de alguma
coisa. Bem mais perto, percebeu o que aparentava
ser uma conversa amigável, entre pessoas íntimas,
pois, dentre uma gargalhada e outra, a senhora
toca a sua companhia no braço, com ternura.
Percebeu também que o senhor estava bem
elegante, de barba grisalha e bem definida, que
usava óculos de grau num formato curvado e
102
armação de aro fechado na cor vermelha.
A presença de Nando quase passaria
despercebida, não fosse a buzina irritante de uma
moto que por pouco não o atropelaria. O
motociclista surgiu inesperadamente pela
contramão, o que não o impediu de sair vomitando
palavras não muito afetuosas na direção do
pedestre magrelo, que se refazia do susto.
– Meu filho, cuidado! – Exortou Dona
Lourdes.
Ainda sem graça, ele abreviou dizendo que o
motoqueiro havia surgido do nada, e por isso não
pode antever sua infração. Olhando para dentro do
sebo, pediu licença para entrar, numa tentativa de
abreviar sua falta de jeito. Nando se dirigiu a uma
das estantes da entrada, e agachando-se de costas
para o casal, como se pedisse que esquecessem a
sua presença, pegou um livro qualquer, só para
examinar sua textura e aparência.
Dona Lourdes nem ligou para o jovem.
Continuou a conversa com seu grande amigo,
Professor Alcides Fagundes, que além de notável
Doutor em História da Educação Brasileira, era um
103
ilustre escritor romancista, vice-presidente da
Academia Sergipana de Letras.
A primeira impressão acerca do livro que
Nando examinava lhe foi muito satisfatória,
principalmente sobre a conservação da obra, já que
a ficha catalográfica indicava uma publicação
editada há mais de vinte anos. Passou o dedo
sobre outras obras empilhadas na horizontal e não
percebeu sujidade alguma. Já estava no meio da
loja quando deu uma rápida olhada em 360 graus,
ficando maravilhado com a quantidade e
diversidade de títulos que havia encontrado. O
sorriso discreto no canto da boca foi a confirmação
que dera a si próprio de que tinha acabado de
encontrar um lugar encantado. Na sequência,
aproximou-se curioso sobre uma estante que
tratava de livros sobre História Geral, e fixando o
olhar sobre uma tira escrita à mão, que dizia
Segunda Guerra Mundial, acomodou-se para ler
algumas capas e sinopses que, a seu ver, eram
muito interessantes.
A sebista, depois que se despediu do velho
amigo, procurou suavemente aproximar-se do
104
rapaz, que continuava admirado com tudo o que
estava vendo. Nando, ao vê-la abeirar-se, disse-lhe
estar encantado com o lugar, desde a primeira e
breve visita.
– Ahh... Estou meio velha, mas agora que
lembrei de você. É o rapazinho que trabalha na
livraria de meu querido Francisco.
– Sim, sim! Sou eu mesmo, Fernando.
– Como anda ele?
Após informá-la dos últimos acontecimentos
com o seu patrão, Nando, por impulso, acabou
falando sobre o evento que estavam planejando
para segunda à tarde. Além de comemorarem o
aniversário de vinte e dois anos da livraria, queriam
celebrar seu retorno e recuperação.
Depois de ficar sabendo do ocorrido, Dona
Lourdes não conseguiu aparentar tranquilidade.
Conhecia como ninguém a história de vida de
Senhor Francisco. Ao perceber que o semblante da
senhora havia adquirido contornos de tristeza,
Fernando a convidou para sentar-se, e passou a
fazer-lhe algumas perguntas, das quais tinha
certeza de que a velha sabia as respostas.
105
– Dona Lourdes, a senhora poderia me dizer
como foi que começou a livraria do Sr. Francisco?
Ahh!!... E a sua loja também. É porque me
interesso pelo mercado literário e queria aprender
um pouco da experiência de vocês.
A sebista não esperava por uma pergunta
dessas, mas não titubeou em respondê-la. No
entanto, antes, pediu ao rapaz que pegasse um
copo d’água para ela no fundo da loja. Espantado
com a própria ousadia, Nando não vacilou e,
depressa, foi atender ao pedido de Da. Lourdes. No
retorno, procurou elogiar ainda mais as instalações
do sebo e a conservação dos livros.
Agradecida pela água e palavras de apreço,
a senhora começou uma história:
– Meu jovem, a livraria de Francisco fará
vinte e dois anos, idade de sua filha mais velha,
Marisa. Há exatos vinte e três anos, ou seja, um
ano antes do nascimento da menina, Francisco era
um rapaz de seus trinta e poucos anos. Vindo da
cidade de Salvador, de boa família, buscou seguir o
ofício do pai, Juvêncio, livreiro renomado por
aquelas bandas. O irmão, Antônio, não gostava
106
muito de estudos, mas adorava negociar, desde
pequeno. Com isso, seu pai o ajudou a montar um
comércio no ramo têxtil. Enfim, parece que deu
certo, pois soube que até hoje possui uma loja, que
agora fica num shopping da cidade.
– E Senhor Francisco? Perguntou Fernando
sem ligar para a ansiedade.
– Vou chegar lá. É que sou daquelas
pessoas que só sabem falar com detalhes. Disse
Dona Lourdes, soltando uma gargalhada.
– Bem..., Francisco surgiu na minha vida
quando fui apresentada a ele por meio de minha
sobrinha Betinha, que o conheceu num festejo
junino aqui mesmo em Aracaju. Logo se
apaixonaram e em poucos meses noivaram. Como
ela morava aqui, estudando enfermagem, e ele em
Salvador, onde estudava direito e também
trabalhava com o pai na Livraria Rezende, de
quinze em quinze vinha vê-la, e sempre se falavam
por telefone nesse intervalo de tempo. Eu sei disso
tudo porque quem a criou fui eu, quando ela ainda
tinha 11 anos, já que minha única irmã faleceu em
virtude de uma maldita infecção hospitalar, após
107
uma cirurgia de retirada de útero.
– Nossa, sinto muito! Mas a mãe das
meninas não se chamava Elizabete?
– Calma, menino! Vou chegar lá. Após uns
dois meses, Betinha começou a sentir um
distanciamento de seu noivo. Falava pouco ao
telefone e de forma meio fria. Certa vez, cancelou a
viagem pra cá alegando compromisso de trabalho.
Foi quando minha Betinha começou a suspeitar de
que algo estranho poderia estar acontecendo.
Traição, talvez. Na quinzena posterior ele veio, mas
passava a impressão de uma certa obrigação.
Tinha um ar de preocupação estampado no
semblante. Decidida, ela se propôs a investigar a
situação e, sem que ele soubesse, foi visitá-lo.
– Coitadinha! Lamentou Nando.
– Realmente!! A coitada sofreu muito, pois
conseguiu flagrar seu noivo beijando aquela que
hoje é sua ex-esposa e mãe de Marisa e Juliana. A
desgraçada destruiu a vida de minha Betinha e de
Francisco, pois após alguns anos de casada o traiu
com um rico empresário de Itabuna, na Bahia.
Parece que até hoje vive com ele por lá. Quem
108
sabe, até encontrar outro besta pra fisgar.
– E as filhas dele, quem cuidou? Como
vivem? Vocês continuam amigos? E Elizabete?
– Quando se separaram, elas já eram
grandinhas, de treze a quatorze anos. Ela queria
levá-las, mas nem ele e nem elas queriam.
Sabendo de tudo que houve, as meninas,
decepcionadas, rejeitaram a mãe e se agarraram
ao pai. Só sei que depois de alguns anos, parece
que Marisa voltou a ter contato com a mãe. Acho
que até passou uns tempos por lá. O pai não
implicava, pois sabia que não poderia impedir a
aproximação entre mãe e filha. Juliana, a mais
nova, não queria nem ouvir falar o nome da mãe.
Brigava muito com a Marisa por causa disso.
– Mas vocês ainda são amigos? E Elizabete?
Perguntou novamente Fernando, demonstrando
impaciência.
Dona Lourdes, entendendo o recado,
resolveu acabar com o papo em poucas palavras.
Disse que se afastou por muito tempo dele por
causa de Betinha, mas que sempre procurou saber
de sua vida. E quanto a Elizabete, ela relatou que
109
depois daquele sofrimento e de algumas outras
decepções amorosas, conseguiu se casar com um
homem bom. Finalizou dizendo que o marido é
médico e que juntos foram construir a vida em São
Paulo.
Nando, um pouco desiludido, não conseguiu
extrair da senhora alguma informação sobre um
possível caso amoroso de Juliana. Mas, ainda sim,
tentou uma última cartada. Ao perguntar se
conhecia algum parente dos Rezende que se
chamava Marcos, a sebista prontamente afirmou
que nunca ouvira falar.
Dona Lourdes, ao se levantar para lhe
entregar o panfleto da loja, finalizou a história
dizendo que, mesmo assim, ainda gostava de
Francisco, e lamentava profundamente o estado de
saúde dele. Como uma pessoa muito religiosa,
acreditava que o inimigo de Deus tinha colocado
aquela mulher na frente dele para acabar com sua
vida, pois não suportava ver ninguém feliz.
O jovem aprendiz de livreiro olhou para o
relógio e disse que tinha gostado muito da
conversa, e que voltaria em breve, mas dessa vez
110
só à procura de livros. Ela, toda simpática, disse
que estaria sempre ao seu dispor, mas o corrigiu,
afirmando que livros não são procurados, e sim
garimpados, pois são como tesouros escondidos.
Sempre haverá um que tocará seu coração. Seja
pela maravilhosa história ou conhecimento de uma
área, seja por uma linda lembrança do passado que
ele traz. O leitor não escolhe o livro, o livro é quem
escolhe o leitor. Coisas de sebistas, dizia ela com
um brilho nos olhos.

111
CAPÍTULO X

As horas passavam e Fernando só desejava


agora estar em casa para ver sua mãe, tomar um
belo banho e comer, para depois continuar a leitura
do livro que pegou na livraria. Tinha comentado
com Gilberto que daria baixa no estoque e pagaria
no sábado, pois naquele momento estava sem
dinheiro, e que não gostaria de ficar lendo apenas
no trabalho.
Como estava a meio caminho de casa,
resolveu fazer a pé o percurso de volta. Ao passar
pela rodoviária velha, teve a ideia de levar para
Senhor Ladislau espigas de milho e amendoins
cozidos, pois sabia que o padrinho era louco pelas
comidas típicas dos festejos juninos, e que Dona
Fátima fazia uma magnífica canjica.
A Rua de São João continuava com o
movimento da feira, só que agora se viam apenas
os resquícios das barracas, com seus legumes,
verduras e frutas da época, a preços promocionais.
Diante da porta de casa, flagrou Senhor
112
Ladislau com a barriga de fora, debruçado sobre
alguns pedaços de madeira e um machado. Ele
tinha enfileirado as madeiras, amarrando-as com
dois pedaços de arame. Nando aprovou a ideia e
lhe disse que já tinha as espigas de milho para
mais tarde inaugurar a fogueira que construía.
– Pronto! Então estes aqui que trouxe irão
pra panela. Não podemos nos esquecer dos milhos
cozidos e da deliciosa canjica de minha madrinha,
alertou.
– Você tá certo! Falando nisso, vá lá ver se
ela precisa de minha ajuda pra ralar o milho?
Nando assentiu com a cabeça e se
encaminhou para dentro de casa. Sua mãe estava
sentada em frente à televisão, acompanhando os
noticiários nacionais, enquanto Isabela aferia sua
pressão. Embora contente com a chegada do filho,
reclamou da sua falta de notícias naquela manhã.
Envergonhado, Nando sentou-se ao seu lado e,
beijando-lhe o rosto, pediu desculpas,
reconhecendo que realmente não havia motivos
para não ligar para a mãe. Prometeu que, a partir
daquele dia, iria ligar pelo menos duas vezes
113
durante o trabalho.

***

A noite tinha chegado trazendo os estouros


dos fogos e o estalar das brasas das fogueiras. As
quadrilhas juninas, campeãs e vice-campeãs
daquele ano, das categorias mirins às profissionais,
também compunham a trilha sonora daquela noite
festiva.
Há anos, Dona Iraê e os vizinhos sempre
acompanhavam, da porta de casa, toda a
movimentação da festa. Vibravam com a chegada e
a concentração das quadrilhas nos arredores do
barracão, e se deliciavam com o corre-corre da
meninada vestida como matutos, beliscando os
doces e salgados que ficavam expostos nas mesas
estendidas sobre as calçadas e varandas das
casas.
Nando, como sempre, preferia estar sobre os
livros, enquanto sua mãe, ao seu lado, vendia bolo
de puba, macaxeira, tapioca e milho. Entre um
capítulo e outro de algum romance, retornava da
114
prazerosa viagem literária e pousava sobre uma
comida ou bebida oferecida por Dona Iraê. Ao
mesmo tempo em que lhe dava de comer e beber,
reclamava da falta de entusiasmo do filho para
curtir a festa dos Santos juninos. Mas quem mais
se chateava com isso era seu amigo Tia, que não
suportava vê-lo sentado lendo, em vez de estar
participando das guerras de fogos com os amigos.
Eram épocas de fartura, e Dona Iraê sabia
aproveitar muito bem a situação. Entre maio e
junho, suas encomendas de costura dobravam,
pois as mães sempre desejavam ver seus filhos
com as roupas típicas, principalmente nos eventos
festivos das escolas. Além disso, contava com
ajuda de sua comadre na preparação e venda das
delícias juninas.

***

Aquela noite, em especial, Nando havia


reservado para se dedicar à mãe. Querendo se
redimir da pouca atenção dispensada, da qual Da
Iraê tinha se queixado, colocou-se à disposição
115
para acompanhá-la em tudo que lhe propusesse
fazer. O mimo dado pelo menino foi muito bem
agraciado por ela e seus padrinhos, que a cada dia
mais admiravam sua postura e caráter. Nem dos
livros chegou perto, eram olhos e ouvidos somente
para ela.
Boa parte das risadas da noite deveu-se aos
causos contados por Senhor Ladislau, que era
exímio contador de histórias. Seus feitos no
Exército como prosador corriam os quatros cantos
do batalhão. Dizia ele que não podia ver um recruta
sossegado que logo lhe puxava para contar uma
história, geralmente com fundo cômico. Jurava que
eram relatos de fatos verídicos, como no dia em
que teve que prender um soldado sentinela, que ao
ouvir passos sobre a mata fechada e escura, se
colocou de prontidão. Como as suas sucessivas
ordens de parada e identificação do possível
agressor não surtiram efeito, mirou o fuzil na
escuridão e, com braços e pernas tremendo,
disparou com os olhos arregalados na direção de
onde imaginava estar a possível ameaça. Com o
barulho do disparo, outras sentinelas apareceram e,
116
ao se aproximarem, encontraram o soldado
sentado com a mão na cabeça, lamentando ter
matado uma vaca que comia, não sabia ela, sua
última ceia. Alguns gargalhavam da falta de
experiência dele, enquanto outros, preocupados,
tentavam defendê-lo, com a justificativa de que a
vaca era culpada por não ter obedecido a sua
ordem de parada. Morreu por desobediência,
alegaram.
Nando adorava suas histórias,
principalmente quando o fazia com uma
dramatização digna dos grandes atores de
Hollywood. Já Dona Fátima, implorava pra que ele
deixasse de contar mentiras, pois dava mau
exemplo a quem as ouvia, especialmente se
fossem crianças.
Desta vez, o padrinho estava prestes a
contar uma história sobre o mistério da possível
fuga e exílio de Hitler pelas bandas da Argentina.
Segundo ele, ouvira de um pracinha da Força
Expedicionária Brasileira que Hitler, antes de cair,
arquitetou sua fuga por meio de um submarino, que
atravessou o atlântico passando pela costa
117
brasileira.
Dona Fátima, que não aguentava mais suas
histórias e odiava piamente suas mentiras, alertou
que ele se preocupasse em juntar as brasas da
fogueira e colocasse os espetos com as espigas
sobre elas. Naquele momento, Nando comentou
que tinha visto um livro, lá no sebo, que falava de
um tal submarino alemão que teria bombardeado
alguns navios na costa brasileira, dentre eles, um
que conseguiram afundar em águas sergipanas.
Interessado por relatos de guerra, Senhor Ladislau
desejou ler o tal livro e pediu encarecidamente que
ele conseguisse, não só aquele, mas também
outros que tratassem sobre faroeste e cangaço,
caso encontrasse por lá.
– Nandinho, sabia que quando eu era mais
novo gostava de colecionar livros de bolso de bang-
bang? O velho oeste sempre me fascinou. Cheguei
a ter mais de duzentos livros. Lia geralmente em
menos de três dias, e às vezes trocava com os
colegas do batalhão ou amigos taxistas. Os livros
se tornaram uma febre entre os colegas, lá por
volta da década de setenta. Muitos, de pouca
118
leitura, tomaram gosto pelas histórias que ouviam e
chegavam até a voltar a estudar, para aprender a
ler e poder participar das conversas que se
formavam no meio das feiras e jogos de futebol.
– Que legal! E hoje, onde estão seus livros?
– Infelizmente, alguns eu emprestava, mas
não voltavam, e muitos outros molharam numa
chuva forte que deu aqui. Dona Fátima resolveu,
sem minha autorização, jogar tudo no lixo, pois,
segundo ela, tava juntando mofo e inseto. Na
verdade a culpa foi minha, por não ter guardado no
lugar ideal.
– Verdade, padrinho. Meu colega Gilberto
está se formando em biblioteconomia. Disse que
fez uma disciplina chamada arquivologia, na qual
aprendeu as técnicas de conservação e restauro de
livros. A degradação ocorre por vários motivos
como fungos, roedores, insetos e até mesmo pela
iluminação e temperatura inadequada.
– Pois é, a maioria eu guardava dentro de
caixas de papelão. O resto deixava nas prateleiras
do quintal, sem proteção nenhuma. Mas também eu
creio que não precisa tanta frescura pra se guardar
119
livros, completou impaciente.
– Não, padrinho!! Há muitos anos que os
profissionais dessa área estudam técnicas para
uma melhor preservação do papel, no intuito de
resguardar o conhecimento para a posteridade.
Pois fique sabendo que, se bem conservados, os
livros podem durar até quinhentos anos, alertou
Nando.
Senhor Ladislau, tirando do espeto uma
espiga de milho já assada e a enrolando sobre uma
palha, entregou ao jovem, que agradecendo
perguntou-lhe se havia outras lembranças da época
em que lia muito e colecionava livros. Depois de
pensar um pouco, Senhor Ladislau confessou ter
mesmo outra coisa pra contar ao afilhado. Mas
dessa vez lhe pediu segredo, temendo que fosse
alvo de gozação, caso tornassem públicos alguns
desejos guardados há anos.
Nando não podia ouvir falar em segredo que
ficava em estado de ansiedade generalizada.
Implorou que o fato fosse logo desvendado.
– Amanhã, no feriado, vou procurar e te
mostro. Sei mais ou menos onde guardei, adiantou
120
o padrinho em tom de mistério.
Mudaram de assunto assim que Roberto e
Dona Matilde chegavam para se unir aos demais
junto à fogueira, que teimava em permanecer de
pé, enquanto suas brasas caíam de todos os lados.

121
CAPÍTULO XI

A manhã nasceu trazendo o cheiro da


fumaça que ainda brotava dos restos de fogueira da
noite anterior. Senhor Ladislau acordou agraciado
com uma baita enxaqueca, pois havia misturado
licor de jenipapo, cerveja e vinho, além dos petiscos
à base de carne de porco grelhada. Isso sem falar
dos salaminhos, amendoins e milhos, preparados
das mais inimagináveis formas.
Para Roberto, a festa caiu como uma luva.
Passou a noite inteira conversando e dançando
com a enfermeira Isabela, que mesmo em serviço
não hesitou em ficar bem arrumada, com direito a
blusa xadrez, chapéu e pintinhas sobre as
bochechas. Só não viram o sol nascer por efeito da
determinação expressa do aposentado militar, que
obrigou a dispersão compulsória do motoqueiro
galanteador, justificando que a menina deveria
cuidar de Dona Iraê e descansar para estar apta ao
trabalho no outro dia.
Nando, por sua vez, não demorou muito na
122
festa. Ao perceber que a mãe já desejava se
recolher, apressou-se em levá-la para dentro e,
observando as instruções escritas e presas à
geladeira, levou-a pra cama, afirmando que só lhe
daria a medicação as seis da manhã. Pediu a
benção e beijou-lhe o rosto. Após despedir-se de
todos, recolheu-se em sua morada, onde deu
sequência à leitura que, desde o dia anterior, tanto
lhe instigava a vontade.

***

Acordou com o livro aberto sobre o peito, do


mesmo jeito que o tinha deixado quando o sono lhe
havia tomado. Levantou-se depressa. Mirando as
horas, percebeu que havia dormindo mais que o de
costume. Concluiu que seu relógio biológico te
cobrara, de uma só vez, todas as prestações
acumuladas, e com juros.
Ao cruzar a soleira do pavimento superior,
Senhor Ladislau avistou o afilhado só de cuecas e
com uma escova de dente presa à boca. Indagou a
possibilidade de Isabela se deparar com aquela
123
cena inusitada. Numa gargalhada maliciosa, Nando
disse que só teriam duas saídas: ou ela ficaria
imediatamente apaixonada ou correria com medo
de sua virilidade.
– Tenho outra hipótese. As duas
pressuposições poderiam ocorrer, desde que
complementadas pelo o corte profundo em seu
bucho, feito pelo facão amolado, envenenado e
enciumado de Roberto, seu melhor amigo. Alertou
em risos.
– Como assim? O que foi que o senhor viu
que eu não vi? Indagou surpreso Nando.
– Não só eu, mas todos da vizinhança viram
Roberto, filho de Dona Matilde, retornando do
barracão de mãos dadas com ela. Ele parecendo
um pavão, com chapéu, fivela larga e botas de
cano longo, tal como o rei do gado indo fazer um
abate. E ela, toda graciosa, com brilho nos olhos e
um sorriso tão largo, que de longe dava até pra ver
o siso, concluiu caindo em gargalhadas o padrinho,
desta vez acompanhado do afilhado.
Nando despediu-se do velho e dirigiu-se ao
banheiro. Com certeza, um banho àquela hora o
124
ajudaria a despertar. Já descendo as escadas,
Senhor Ladislau parou, e em voz alta disse-lhe que
já tinha achado aquilo que prometera mostrar.
Ouvindo aquilo, Nando saiu às pressas do
banheiro, com as calças ainda sobre os joelhos, de
tão curioso que estava. Ajeitou as calças e desceu
as escadas às pressas. Viu Tia do outro lado da
rua, acompanhado da sua amada. Ela, meio
envergonhada, olhou-o de fininho e lhe deu um
aceno em câmara a lenta. Roberto, ao contrário,
piscou o olho para o meio-irmão e lhe sorriu
desconfiado. Nando respondeu girando os
indicadores, num movimento que dizia que
conversariam depois.
Dentro da casa, percebeu que Dona Fátima
estava junto a sua mãe no quarto, com as portas
fechadas. Ao fundo, avistou Senhor Ladislau
retornando do quartinho de serviços, carregando
uma maleta preta, do tipo 007, que o chamou com
um movimento de cabeça. Os dois sentaram-se à
mesa da cozinha. O velho puxou da maleta o que
mais parecia um saco amassado de supermercado.
De lá retirou duas folhas de papel ofício
125
datilografadas, aparentando estarem úmidas e com
os cantos amarelados. Junto a elas, preso por um
clipe, um cartão no tamanho A5 em cartolina
branca, com uma foto dele ao lado e quadros que
lembravam um pequeno formulário de dados
pessoais.
– Senhor Ladislau, o que é isso?
– Isso aqui era um de meus sonhos. Veja na
foto como eu era novo.
– Nossa! Nem reconheceria o senhor. Tinha
seus vinte e pouco anos, né?
– Isso mesmo! Exatamente vinte e três anos.
Época em que costumava ler e colecionar livros e
revistas de cowboy. Meu grupo de amigos tinha
fundado um clube, e sempre nos reuníamos no
fundo da igreja, cedinho, após a missa das sete. Ali
conversávamos e trocávamos livros e revistas,
geralmente de faroeste. Eram épocas boas,
Nandinho! Não havia malícia, medo de bandido ou
televisão que prendesse as pessoas dentro de
casa. A leitura nos libertava de tudo, dava-nos asas
para voar e idealizar. Criávamos histórias, peças
teatrais, encenávamos nas ruas, fingíamos ser
126
editores de jornais, escrevíamos matérias fictícias
e, até mesmo, de verdade. Éramos,
verdadeiramente, crianças, no mais puro significado
da palavra, sem restrições para a imaginação.
– Lindo, meu padrinho. Parabéns!
Presa ao clipe estava a ficha de associado
do Clube Literário Cowboys do Sertão, que
curiosamente tinha como mascote o desenho
engraçado de um jegue vestindo roupas típicas do
Velho Oeste. Com as patas traseiras cruzadas e
encostado a um cercado de madeira, fazia
tranquilamente a leitura de um livro. Com certeza,
de bang-bang.
Saudoso, o velho explicava sobre as folhas
de papel que agora segurava.
– Aqui está o início de uma história que
nosso clube estava escrevendo sobre o faroeste.
Lá, todos tinham funções específicas. O Marcinho
era o tesoureiro e desenhista. Zé de Ribamar era o
responsável pelas comunicações e também o
letrista. João de Messias era o vice-presidente e
escritor, e eu, o presidente e também escritor.
– Mas porque interromperam a história?
127
– O problema foi que ocorreu um trágico
acidente com o colega Joãozinho. Desde a morte
do coitado, afogado num açude, decidimos colocar
um ponto final ao clube. No entanto, escrevemos
algumas histórias completas. Algumas foram
publicadas em máquinas de datilografia e
distribuídas entre os amigos, usando um
mimeógrafo emprestado pelo diretor da escola. Às
vezes, adaptávamos para uma pecinha teatral na
escola ou mesmo na rua. Porém, esta última ficou
aqui comigo, sem continuação, falou Senhor
Ladislau, com voz engasgada e lágrimas nos olhos.
– Posso ler em voz alta para nós dois? Pediu
Nandinho.
Assentindo lentamente com a cabeça, o
senhor entregou as folhas ao afilhado, que o
abraçava com um dos braços enquanto fazia a
leitura:
Xerife Corner: Discórdias entre os apaches

Jim descia a colina às pressas em seu cavalo,


quando foi surpreendido por um tiro de advertência
disparado para o alto pelo xerife Corner.

128
– alto lá, forasteiro! Berrou o xerife.
Bem assustado e com olhos arregalados, o cowboy
não parou pra se explicar, apenas retrucou em voz
alta: - Índios, índios!
– Diacho de confusão! Reclamou em voz baixa o
xerife, que imediatamente deitou-se no chão e,
segurando firmemente seu rifle Winchester 44 de
repetição, aguardou calmamente a aparição dos
ditos índios. A espera foi tão curta que só lhe deu
tempo de ajustar o corpo entre os cascalhos
espalhados pela terra vermelha e árida.
– Apaches! Exclamou silenciosamente, ao ouvir os
gritos de guerra e avistar as sombras de seus
cavalos, que levantavam poeira no horizonte. Como
numa cena em câmara lenta, Corner engatilhou seu
rifle e mirou no peito do primeiro nativo à frente, e
sem vacilar disparou, vendo-o cair como uma fruta
madura ao chão.
Pegos de surpresa, os apaches,
instintivamente, lançaram-se a disparar seus rifles
Winchester 22 na direção frontal, sem detectar o
alvo, pois o xerife Corner estava escondido entre as
pedras da superfície irregular do terreno, o que lhe
permitia, deitado, ter uma visão panorâmica daquele
cenário.
129
Na velocidade de um raio, ele pode contar
seis apaches. As caras pintadas e os trajes típicos
de guerra, aliados aos gritos ensurdecedores,
encorajavam os guerreiros e aterrorizavam os
inimigos.
Em notória desvantagem, Corner se viu numa
encruzilhada, mas decidiu pagar para não sair
daquela confusão, na qual acidentalmente acabara
de entrar. Numa distância razoável, concluiu que
tinha condições de mandar chumbo quente em pelo
menos quatro apaches, e contaria com a sorte ou
com os seus revólveres Colt pra abater os dois
restantes.
No entanto, Lua Cheia, líder do grupo apache
e experiente guerreiro, ao ver cair ao chão um de
seus guerreiros, ordenou prontamente a separação
do bando em duas colunas, na qual uma atacaria
pela direita e outra pela esquerda. Mas, mesmo
diante desta inesperada ação do inimigo, o Xerife
Corner manteve a frieza e optou por manter a mira
no flanco da esquerda, pois era onde havia mais
índios e estavam mais próximos dele.
Neste instante, Lua Cheia, que estava no
outro flanco, cavalgando mais lentamente, avistou o
esconderijo do “fantasma” atirador e passou a
130
disparar a arma em sua direção. Os demais
prontamente seguiram o exemplo. No entanto, no
flanco à esquerda, não houve tempo de calibrar a
pontaria. Corner, apesar das várias chicotadas de
chumbo, já contabilizava mais dois apaches pra sua
lista, acertando-os em cheio.
Foi quando Lua Cheia, surpreso pela destreza
do oponente, parou juntamente com seu irmão
Raposa Cinzenta, e com olhar fixo, num grito, deu
ordem ao último apache para voltar. Determinado a
acabar com aquele cowboy, deitou-se ao lado de seu
cavalo e com uma faca entre os dentes avançou
bruscamente na direção do maldito cara-pálida.
De canto de olho, o xerife percebeu quando
os dois, que se encontravam no flanco direito,
pararam bruscamente. Num golpe de rapidez de
pensamento, atirou à queima roupa no cavalo do
índio encorajado. Como já estava muito perto dele, e
pela velocidade que vinha, o animal tombou
desgovernado em sua direção. O apache caído,
mesmo fraco e com a perna quebrada, atirou-lhe
uma faca, com uma habilidade digna dos grandes
atiradores circenses, o que não impediu que o
xerife, num brusco movimento de rolamento, se
desvencilhasse do ataque e o acertasse com seu
131
Colt com um implacável tiro na testa.
Raposa Cinzenta ensaiou uma reação
embalada pelo seu rito de guerra, porém foi
impedido pelo irmão.
– Este pele branca deve morrer! O sangue de
nossos irmãos clama por vingança! Bradou furioso.
– Calma! No tempo certo teremos nossa
vingança. Vamos! Concluiu Lua cheia.
De longe, mandaram outro recado de chumbo para o
xerife, o qual respondeu da mesma forma, mas sem
êxito, com o último tiro do Colt.
Vendo-os se distanciarem em disparada,
Corner respirou fundo e depois olhou atentamente
para cada apache abatido na pequena batalha. –
Diabos! O que aconteceu aqui? – Com as
consequências debaixo do nariz, restava agora
entender as possíveis causas. Algo lhe dizia que
aquele forasteiro apavorado teria uma provável
resposta, caso contrário, iria fazê-lo cuspir uma,
nem que fosse à força!

Ao final, Senhor Ladislau, já vermelho de


tanto chorar baixinho, lembrando daquele tempo
maravilhoso e da saudade do amigo que se foi,
resolveu abraçá-lo. Depois disso, encerrou dizendo
132
que infelizmente a vida era assim: ora morremos,
ora choramos ou lamentamos, mas às vezes
também sentimos felicidade. E que o que mais
aprendemos na vida é: nunca desistir, nunca perder
a fé, seguir sempre em frente, fazendo o bem para
si e para os outros. A vida é breve e devemos vivê-
la com muita sobriedade, paz e amor, concluiu
emocionado.

133
CAPÍTULO XII

Fernando, ainda impressionado por tudo que


viu e sentiu, não conseguiu durante aquele feriado
pensar em mais nada. Disse à mãe e aos padrinhos
que estava ainda muito cansado, com o sono
acumulado da estressante semana que passou.
De volta ao pavimento superior, deitou-se na
cama, onde permaneceu por muito tempo
remoendo toda aquela história contada pelo
padrinho. Não podia desassociá-la de sua própria
experiência de vida. Repentinamente, tentou
lembrar-se do rosto do pai verdadeiro, Senhor João
Batista. Mas havia muitas interferências em sua
memória. De súbito, resolveu pular da cama. Abriu
as gavetas da mãe e passou a fuçar-lhe alguns
pertences, onde encontrou umas pastas velhas que
guardavam algumas míseras fotos do pai, três, pra
ser exato. Uma, ao lado de um caminhão-trem
carregado de cana de açúcar, tendo como
paisagem um canavial tombado pelo fogo; outra, ao
lado de sua mãe, que exibia com orgulho o barrigão
134
da gravidez. A última, infelizmente, trazia o rosto do
pai sobre uns dizeres fúnebres, com as datas de
nascimento e falecimento. Não conseguiu conter o
choro, por mais forte que tentasse permanecer.
Depois de alguns minutos, foi ao banheiro,
lavou e enxugou o rosto e, de um só pensamento,
buscou caneta e caderno, e sem pestanejar
despejou sobre o papel toda aquela dor que sentia
no momento:
Hoje eu queria um pai
Pra juntos corrermos na chuva
Brincando de mocinho e bandido
Ao deitar lhe daria a benção e um cheiro na testa
Seria acordado ouvindo sua voz mansa
Que vindo da cozinha, falaria baixinho:
Bora, menino! Tá na hora de receber um carinho
Vindo da feira cedinho, traria aquilo que
gostávamos
Bolos, beiju e malcasado
Mingau de puba, arroz doce e mungunzá
E com as delícias de suas piadas,
Comeríamos sem perceber que nossos olhos o
admiravam
135
Queria poder brincar de ser meu pai
Onde, fingindo chegar na porta,
Aguardaria os abraços ou as mãos tortas
Que ora aprovaria, ora condenaria suas mentiras
mortas
Com a mente remoendo e doendo,
Via-me pequenininho
Igual a um pontinho
Querendo fingir ser fortinho
Mas no fundo sumindo me deixaria fechar os olhos
E tentando fingir que dormia, eu cansado dormiria
Hoje eu queria um pai
Mas não posso
Estou doente!
Fernando sabia que o incômodo estava
presente em sua alma. Sentia saudade de um pai
que nunca teve, mesmo sabendo que seu padrinho
o tinha como um filho. Queria ter tido a
oportunidade de conviver e aprender coisas da vida
com ele, mas não aprendera ainda a se libertar das
armadilhas da vida. Questionava o sofrimento dele
e das outras pessoas, a maldade humana e o
possível descaso de Deus, principalmente para
136
com ele. Retornou para cama sentindo dor de
cabeça e calafrios. Rezou pela primeira vez para
seu pai e dormiu, com uma profunda tristeza no
peito.

***

Ao meio dia e meia, sobe Dona Fátima


acompanhada por Isabela. Intuíram que o garoto
não estava bem, pois não tinha descido ainda para
o almoço. Ao vê-lo em posição fetal sobre a cama
molhada, tocaram-no e sentiram suor e calor
excessivos em seu corpo.
A enfermeira desceu às pressas para pegar
seu termômetro, mas já sabia que deveria trazer
também um antitérmico. Disse à Dona Iraê que
Nando estava um pouco febril, com o intuito de não
deixá-la preocupada. Vivida como era, exigiu a
presença do filho embaixo ou sua própria ida ao
andar de cima.
Isabela conseguiu convencê-la a ficar e
pediu que se acalmasse, pois se tratava apenas de
uma pequena febre, que logo seria sanada assim
137
que tomasse os remédios que tinha em mãos.
Senhor Ladislau, roncando na rede, tinha
dormido logo após devorar a montanha que estava
no prato, reclamando ainda de ter sido proibido de
comer uma banda da jaca que limpava enquanto
engolia as salivas como sobremesa.
No pavimento superior, Nandinho era
acordado para receber o antitérmico e aferir sua
temperatura e pressão. Os trinta e nove graus e a
pressão arterial em 14x10 deixaram a Isabela
preocupada. A enfermeira sugeriu que
aguardassem uma hora para ver se baixavam,
tanto a temperatura quanto a pressão.
Dona Fátima sabia que naquela sexta-feira
de São Pedro não encontrariam o posto de saúde
do bairro funcionando, e por isso agradeceu a Deus
por tê-la por perto naquela hora.
Nando foi aconselhado a tomar um banho
gelado e a se deitar. A madrinha iria providenciar
uma canja reforçada, enquanto daria as notícias à
Da. Iraê.
Com os olhos pequenos e a testa franzida,
por causa da cólica intestinal e da intensa dor de
138
cabeça, Fernando seguiu atentamente os
conselhos da enfermeira, deitando-se algum tempo
depois, já com lençóis e travesseiro trocados.
Por causa do pulsar forte e anormal das
veias em sua testa, onde ele insistia em colocar a
mão, Isabela pode perceber que o rapaz
apresentava um possível estado de ansiedade e
nervosismo. Com isso, pediu que Dona Fátima
trouxesse também um analgésico e um chá de
camomila.
Perguntou-lhe se lembrava de ter comido
algo diferente ou se teria passado por algum
acontecimento inusitado que lhe deixara
preocupado. Ele, sem querer abrir os olhos, disse-
lhe que alguns acontecimentos no trabalho estavam
realmente o angustiando, mas nada que justificasse
esses sintomas.
– Tenho quase certeza que foi algo de cunho
emocional. Sentenciou a enfermeira.
– Talvez sim! Admitiu Nando.

139
CAPÍTULO XIII

A noite chegou, trazendo consigo o fim do


susto e o retorno de Da. Iraê a sua casa. Dizia que
não aguentava mais ficar embaixo, sem poder
mimar o filhote de perto. Senhor Ladislau concedeu
autorização para que Isabela continuasse a cuidar
dela até o domingo, e que dormisse no colchão de
solteiro que colocaram na sala. Fernando, agora
sem dor e febre, desejava voltar à leitura do livro
que, segundo ele, era o mais cativante de todos
que já havia lido.
Enquanto saboreava as páginas, cenas da
semana iam aparecendo em seus pensamentos. A
que mais lhe perturbara era a da saída furiosa de
Juliana após a ligação do tal Marcos. Sabia que
não teria chances com ela, embora suas fantasias o
castigassem diariamente. O cheiro de seu perfume
ainda estava presente, como uma cicatriz presa à
pele.
A leitura de uma passagem em especial
conseguiu devolver-lhe a sobriedade e a atenção.
140
O texto tratava da importância de se estabelecer
direções concretas no processo de tomada de
decisões, o que, aliado uma ambição positiva,
seriam de grande valia para estabelecer os rumos a
serem tomados na vida. Isso o fez refletir sobre o
que realmente importava naquele momento. Pode
concluir que Juliana, definitivamente, não fazia
parte de seus planos, nem presentes, nem futuros.
– Esse Zafón é bom mesmo! Disse Nando,
elogiando o autor de A sombra do vento.
Ficou tão concentrado no livro que nem
notou que a mãe e Isabela conversavam no quarto,
antes de saírem e continuarem a conversa na sala.
Nem percebeu quando, de longe, ela o chamara
para tomar sopa.
Ele gostava de ler fazendo anotações a lápis,
principalmente daquilo que entendia poder servir
para sua vida. Segundo ele, meditações e
conselhos eram sempre bem-vindos.
Na rua, já não se ouviam gritos de crianças
correndo, nem estouros de fogos juninos. Uma
chuvinha fina caia lentamente, sugerindo que todos
fossem para suas camas.
141
Ainda absorto com a leitura, Nando só
retornou à realidade depois que sua mãe,
propositadamente, desligou a luz do quarto e lhe
obrigou a comer e dormir.
– O senhor deve estar esquecido que
amanhã irá trabalhar, né?
– Eita, mãe! – Pulou da cama e colocou o
livro sobre a mesa, tratando de acatar as ordens da
mãe.

***

Ao acordar, estranhou ao ver o que parecia


ser uma pessoa coberta, deitada num colchão
estendido no caminho que levava ao banheiro.
Lembrou-se que se tratava da Isabela. Sem querer
fazer barulho, andou silenciosamente de um lado
para o outro, a fim de preparar sua refeição matinal,
mais precisamente uma vitamina de banana com
chocolate. Por causa do possível barulho, optou por
uma fatia de bolo e um copo de suco de mangaba.
Pulou novamente a namorada de Roberto, e
após uma breve conferida da porta do quarto em
142
que a mãe dormia, pegou carteira, celular e o tão
estimado livro. Saiu devagarzinho, descendo
lentamente as escadas, um pouco surpreso por não
ter recebido nenhuma mensagem ou telefonema de
alguém do trabalho durante o feriado.
Na porta, Senhor Ladislau recolhia a sujeira
das gaiolas dos dois canários belgas. Nando
conversou brevemente com o padrinho e se
despediu, seguindo a pé em direção à Avenida
João Ribeiro. Um não tão distante e embriagante
cheiro de pão ao forno lembrou-lhe que a padaria
do semáforo abria cedinho. Um convite irrecusável.
Como tinha tempo de sobra, andava lentamente,
curtindo o canto dos bem-te-vis que se
equilibravam nos fios das bandeirolas juninas.
Sentado ao balcão, pediu pão francês com
manteiga e mortadela, torradinho na chapa,
acompanhado de café com leite. O atendente já
sabia que ele gostava do pão com o dobro da
mortadela.
Enquanto esperava, voltou a verificar, sem
sucesso, se teria recebido alguma mensagem pelo
celular. De caneta e guardanapo em mãos,
143
começou a escrever o que não poderia deixar de
fazer naquele sábado.
1) Pagar o livro
2) Pegar no sebo o livro sobre o submarino
alemão
3) Ver o e-mail sobre compra da biblioteca
particular
4) Pedir a Beto o livro sobre Biblioterapia

***

Faltavam quinze para as oito quando Nando


passou em frente às escadarias da catedral.
Reconheceu o padre que o observava naquela
segunda-feira em que esquecera as chaves. Sentiu
que ele também o tinha reconhecido, pois acenou e
disse que visitaria a livraria em breve. Nando,
retardando os passos, retribuiu o aceno e
respondeu que aguardava a chegada de uma nova
remessa de volumes teológicos.
– Que maravilha! Vibrou o sacerdote.
– Até mais, padre!
– Até mais! Tenha um ótimo dia e que Deus
o abençoe!
144
– Amém!
Soltando o freio de mão, Nando seguiu em
frente e chegou a tempo de ajudar Gilberto a abrir
os cadeados que prendiam a porta de enrolar.
– Bom dia, Potter! Como foi o feriado?
– Olá, Nando! Fui ao cinema, fiquei com a
garota da faculdade, mas não gostei muito dela.
Pretendo não sair mais com ela. Fora isso, dormi e
comi muito.
– Por que não gostou da menina? Era mau
hálito? – Gargalhou.
– Quase isso, cara! Descobri que ela fuma.
Odeio cheiro de cigarro. E ainda tenho uma bendita
rinite alérgica.
Lamentando o fato, Nando se propôs a
colocar uma agência de casamentos à disposição
do amigo, e que não lhe cobraria nada por isso.
Gilberto rebateu com um palavrão e Nando não
segurou a gargalhada.
Após abrirem a loja, continuaram a conversa
enquanto cuidavam dos afazeres diários. Distante,
Nando havia dito que precisava resolver algumas
coisas, dentre elas, duas tarefas que precisariam
145
da ajuda do colega.
Anunciados os afazeres, Beto informou que
trouxera o livro que prometera. E que a segunda
tarefa demoraria alguns minutos, até concluir a
iniciação do computador e abrir o sistema.
Pouco tempo depois, toca o telefone da loja.
Beto, que estava ao lado do aparelho, coloca-se à
disposição para atendê-lo. Do outro lado e com o
tom sério de costume, Marisa diz brevemente que
já estavam em Aracaju e que em poucas horas
estariam na loja.
Passando a notícia ao colega, os dois se
viram envolvidos por duas sensações: uma de
felicidade, por ter de volta seu chefe maior, e
apreensivos por não saberem sua real situação
física e psicológica, pois, em nenhum momento
após o incidente tiveram oportunidade de vê-lo ou
ouvi-lo.
Aquela ligação trouxe também uma
inquietação. Por que Marisa ligou para eles, em vez
da Juliana, que era quem sempre os deixava
informados? Marisa sabia que Juliana não estava
na livraria? Estariam os três reunidos?
146
CAPÍTULO XIV

As hipóteses eram muitas, mas a chegada


da van com as caixas de livros da distribuidora Paz
e Vida não os deixou pensar muito. Senhor Pereira
veio pessoalmente acompanhar a entrega. Deixou
uma cópia do documento que indicava consignação
de duzentas publicações, no valor total de sete mil
e trezentos reais, e solicitou a assinatura de um dos
garotos. Na saída, mandou um recado para Juliana,
dizendo que recebera seu convite para hoje à tarde
e que confirmava presença no evento.
– Agora estou confuso! A festa não seria na
segunda-feira? Argumentou Gilberto.
Os telefonemas e e-mails, agradecendo ao
convite e confirmando presença no evento, davam
a nítida impressão de que a festa seria realmente
naquele sábado.
– Meu Deus! A festa é hoje mesmo! Acho
que Juliana deve ter se equivocado conosco, disse
Beto, em tom de preocupação.
– O jeito seria falar a verdade mesmo. Dizer
147
que achávamos que seria na segunda-feira mesmo.
Beto nem ligou para a solução proposta pelo
colega. Vendo os e-mails, comentou que se
realmente todos viessem faltaria espaço na livraria,
pois percebeu que Juliana convidara, além de
ilustres do meio cultural e acadêmico da sociedade
sergipana, clientes da loja e representantes
eclesiásticos, que também confirmaram presença.
Não demora muito e outras pessoas chegam
à livraria. Dessa vez, uma equipe de uma empresa
de cerimoniais, a pedido de Juliana, começa a
descarregar ornamentos, bexigas, flores, taças,
copos e bandejas por toda parte. A intenção é
deixar tudo pronto antes do meio dia, comentam
entre si.
Fernando, que nunca tinha visto os
bastidores de uma preparação de festas finas, fica
impressionado com todo aquele requinte. No
entanto, continuava a achar que não caberiam
todos ali. Pensou até em algumas soluções, caso
alguém viesse com sugestões para a organização
do ambiente.
De repente, Gilberto, que estava atrás do
148
balcão, chama eufórico o colega e lhe pede pressa.
Nando não se preocupou, pois sabia que Beto
sempre se mostrava alegre e imaginou ser alguma
brincadeira por parte do parceiro.
Ao chegar próximo do amigo, olhou para a
tela do computador e viu um e-mail aberto. Beto
pediu que ele lesse em voz alta para ter certeza do
que teria visto e ouvido:

Prezados, como tinha dito anteriormente, a


biblioteca de meu pai possui mais de duas mil obras
catalogadas. Estou pedindo uma oferta de dez mil
reais, a qual se converteria em menos de cinco reais
por livro. Caso tenham interesse, favor nos procurar
até as dezoito horas deste sábado para fechar a
compra. Caso contrário, darei oportunidade para um
outro possível comprador, que já está no aguardo.

Os dois eram só alegria. Tinham certeza de


que Senhor Francisco iria aceitar a oferta. O único
inconveniente estava no prazo, que seria neste dia.
Logo hoje, no dia do evento daqui da livraria,
lamentou Nando.
***
149
Aproximava-se do meio dia quando a equipe
do cerimonial terminou o que prometera. A loja
estava irreconhecível. Parecia estar adaptada para
uma cerimônia de casamento, com festa
conjugada, mas sem o tapete vermelho. As rosas
coloridas, os balões com surpresas dentro, a faixa
na parede, mencionando os parabéns pelos vinte e
dois anos do estabelecimento, trouxeram mais vida
e alegria à livraria.
A equipe aguardava apenas a chegada de
Juliana para vistoriar o trabalho. Voltariam na
segunda-feira para recolher e deixar tudo limpo
novamente.
Enquanto Gilberto atendia um cliente, Nando
conversava com uma senhora do cerimonial.
Perguntou-lhe se sabia pra que horas estava
agendada a festa. A funcionária disse que uma
outra equipe estaria na loja às quinze horas para
trazer bebidas e comidas, o mesmo horário em que
os garçons também chegariam, completou.
– Sabe informar se eles haviam antecipado o
evento da segunda-feira para o sábado? Quis saber
Nando.
150
– Que eu saiba, não! Houve algum
problema?
– Não! Apenas curiosidade mesmo.
Gilberto levava a cliente até a porta da
entrada quando surgiu Juliana com umas sacolas
enormes penduradas entre os braços.
Imediatamente lhe ofereceu ajuda, que foi
prontamente aceita.
Dirigindo-se ao pessoal do cerimonial, a
menina olhou em volta, observando o trabalho que
fora feito.
– Ficou ótimo, Raquel!
– Obrigada! Procuramos fazer conforme
combinado com a senhora.
– Venha ao escritório para acertamos as
contas.
Caminhando para o local, Juliana pediu que
os garotos deixassem as sacolas na dispensa.
Eles, sem emitir nenhum tipo de som, fizeram
segundo a ordem.
A conversa entre ela e Raquel não demorou
cinco minutos. Ao sair, acompanhou a
cerimonialista e a sua equipe até a entrada da
151
livraria. Despediu-se e voltou, admirando com mais
calma a decoração.
Nando e Gilberto retornaram da dispensa e
foram ao seu encontro. Enquanto decidiam como e
quem iria conversar com Juliana sobre o e-mail
recebido e sobre o mal-entendido acerca da data
do evento, viram surgir na porta Senhor Francisco,
acompanhado de Marisa, que o segurava pelo
braço.
A surpresa foi tamanha, que não
conseguiram falar nada. Olharam fixamente,
imaginando o que poderia estar passando pela
cabeça daquele senhor que, estático, parecia estar
registrando como em cliques ou fotografias, os
diversos momentos que passara ali na sua
estimada livraria.
Nando, com olhos cheios de lágrimas e a
garganta seca, via em seu rosto, agora assimétrico,
uma feição aparentemente abatida. Parecia ter
envelhecido uns dez anos. O homem forte que vira
sair da loja na semana passada agora se
assemelhava a um idoso debilitado. A mão trêmula
carregava uma bengala, incumbida de sustentar um
152
dos lados do corpo, quase paralisado.
Olhando para os garotos, deu um sorriso
sem graça e falou pausadamente:
– Estou de volta!
A voz também não era mais a mesma. A
língua parecia presa aos dentes, causando pausas
frequentes e, vez ou outra, algumas gesticulações
desordenadas. Ele queria falar ainda mais, porém
Marisa o antecipou e lhe disse que procurasse
descansar a voz. Levou-o até o escritório,
cabisbaixo, como se tivesse sofrido uma punição
severa.
Nando pediu licença e foi ao banheiro, queria
tirar do rosto e do peito a quase incontrolável
vontade de chorar. Gilberto, deslocado, ficou
parado com a cabeça baixa, tentando esconder o
olhar triste.
Juliana foi até o escritório e fechou a porta,
permanecendo por lá por um bom tempo, junto com
o pai e a irmã. Os jovens não sabiam ainda o que
fazer. Já passava das treze horas, e além da fome
a ansiedade os consumia.
O escritório onde estavam ficava um pouco
153
atrás do balcão. Somente falando muito alto dava
para se ouvir algo lá de dentro. Foi exatamente o
que ocorrera quando ouviram as duas falarem alto.
Concluíram que não se tratava de uma conversa
amistosa. A discussão era acalorada, onde uma
parecia acusar a outra de alguma coisa. A todo
custo, os meninos tentavam juntar os cacos
daquela conversa, muitas vezes obstruída pelos
barulhos dos carros e pessoas na rua.
Gilberto, que tinha um ouvido mais aguçado,
disse ter escutado da boca de Juliana algo do tipo
“você é uma traidora”, acompanhado, antes, por
uma batida forte na mesa. Por um instante, deu-se
um longo silêncio, parecia não haver mais ninguém
lá.
Agora, os dois, além de famintos e ansiosos,
estavam assustados. Temiam por algo que
pudesse agravar o quadro de saúde do Senhor
Francisco, ou até mesmo que as irmãs entrassem
em vias de fato.
Gilberto cogitou a possibilidade de ter no
escritório alguma arma branca ou de fogo. Mas
Nando logo tratou de tirar essa possibilidade dos
154
pensamentos do colega.
Após alguns segundos de tensão, a porta é
aberta, permanecendo ainda o silêncio. Juliana
aparece, e sem coragem de olhá-los no rosto
despediu-se dos dois, saindo calmamente pela
porta da frente, sem mais olhar pra trás.
Alguns minutos depois, ouvem a voz pouco
agradável de Marisa, que os chamava para
adentrar à sala. Antes, pediu que fechassem a
porta da frente da livraria.
Ao entrar, tentando disfarçar a apreensão, os
dois se colocam na frente de Senhor Francisco e
ficam calados, como se aguardassem uma segunda
ordem. O velho, com os cotovelos na mesa e os
punhos cerrados sob o queixo, como que servissem
de apoio para a cabeça, levantou os olhos para os
dois e pediu desculpas, usando apenas esta única
palavra.
Gilberto, tentando amenizar o clima,
desconversou dizendo que já passara das treze
horas, e perguntou se tinha algo mais para ser feito.
Nando, acompanhando o relator, aproveitando-se
da oportunidade, disse que precisava voltar para
155
casa, pois sua mãe se recuperava de um infarto
que ocorrera dias antes.
Marisa, de cabeça baixa, apenas ouvia a
conversa, enquanto o livreiro, surpreso com o que
ouvira de Nando, disse apenas que estavam
liberados. Foi quando se iniciou uma nova
conversa:
– Mas Seu Chico, e a festa? Não vai precisar
da gente não? Disse Beto, quase desistindo da
pergunta.
– Não! Enfatizou.
– Segunda-feira eu retorno para meu horário
das cinco? Questionou Fernando.
– Sim!
Os rapazes saíram arrasados da sala,
pareciam estar em luto ou retornando de uma
batalha perdida. Pegaram seus pertences,
fecharam o caixa, desligaram o computador e se
dirigiram para a rua.
Do lado de fora, fecharam a porta de vidro e
deixaram pai e filha a sós naquele início de tarde,
que esperavam ser de muita festa e alegria, algo
completamente diferente do que aparentava.
156
CAPÍTULO XV

As últimas cenas não saíam da cabeça de


Fernando. Sentia muita pena de Senhor Francisco.
Pena por causa de suas sequelas, pena por causa
da desavença entre as filhas, que provavelmente
lhe tiraria a vontade de celebrar sua volta e o
aniversário da livraria. Mas Nando também sentia
muita raiva das duas herdeiras. Acreditava ser uma
falta de respeito o que fizeram com o pai,
justamente no dia em que retornava pra casa,
depois de enfrentar um problema de saúde tão
sério. Isso sem falar que o evento que estava pra
acontecer seria de grande importância para ele e
para a livraria.
Da mesma forma pensava Gilberto. Mesmo
conhecendo pouco de Seu Chico, já sentia muita
empatia e admiração por ele. Os dois desejavam
uma carreira profissional como a dele. Cercado por
livros e personalidades da área.
Enquanto Beto voltava para casa, ainda
pensando no ocorrido, Nando ia no sentido do
157
sebo, com a ideia de convencer Dona Lourdes a
aparecer no evento, mesmo não sendo convidada.
No entanto, um estalo veio a sua mente.
– Cabrunco! Esqueci de contar a Senhor
Francisco sobre a oferta da biblioteca particular,
bradou inconformado.

***

O sábado continuava limpo, aparentemente


sem nenhum sinal de água. Nando estava com a
cabeça em três coisas que precisava fazer:
convencer a sebista de ir à festa, convencer o
livreiro de comprar a biblioteca particular e comprar
o livro que prometera ao padrinho.
No Sebo Corujão, o sábado era como dia de
feira. Muitas pessoas reservavam aquele dia para
garimpar, pois o agito corriqueiro do meio da
semana não favorecia muito a essa prática, que
requeria tempo e paciência.
Logo quando chegou, Nando tratou de ter
uma conversa com Dona Lourdes, mas não estava
fácil, devido à grande movimentação no
158
estabelecimento. Como não tinha empregados, ela
se desdobrava em muitas para pegar um livro ali,
receber um pagamento aqui e analisar umas
coleções acolá.
Vendo que as horas passavam e que a fome
já começava a apertar, Nando se colocou
abruptamente a sua frente, enquanto ela guiava
uma cliente até uma estante. Ele lhe mostrou um
sorriso radiante e perguntou se ela poderia atendê-
lo com certa urgência, pois se tratava de notícias
importantes sobre seu Francisco e sua livraria.
A sebista coçou a cabeça e, com ar de seriedade,
pediu que aguardasse no balcão, que em breve iria
atendê-lo. O rapaz ficou feliz e antes de ir ao local
combinado aproveitou pra pegar o livro que
prometera ao padrinho.
A fome lhe apertava ainda mais. Como o
balcão ficava quase do lado de fora do sebo, viu
passar um rapaz com um cesto na cabeça,
vendendo o que parecia ser beiju, pé-de-moleque,
malcasado ou coisa do tipo. Não pensou duas
vezes, chamando o vendedor num assobio, logo foi
atendido. Pelo amor de Deus, quero um de cada,
159
suplicou faminto.
Dona Lourdes chegou no momento em que
ele devorava o último pedaço que sobrara. Disse-
lhe que podiam conversar ali mesmo, pois não teria
condições de se ausentar do balcão naquele
momento. Nando compreendeu e contou-lhe todo o
ocorrido de horas atrás.
Dona Lourdes ficou muito pensativa. Andou
um pouco, como se estivesse em busca de algo,
mas depois retornou de mãos e pensamento
vazios. Nando sabia que ela estava indecisa e
procurou resolver aquilo de imediato.

– Vá, por favor! Não por mim, mas por ele.


Tenho certeza de que vai gostar de sua presença.
– Mas não fui convidada.
– Provavelmente, ele temia que a senhora
recusasse ou porque suas filhas não queriam vê-la.
– Tá vendo? Elas não me aceitam lá.
– Mas ele sim! Ainda poderá convencê-lo a
adquirir a biblioteca. Ele já tinha o desejo de incluir
na livraria uma sessão de livros raros, justificava
Nando.
160
– Vou pensar.
– Dona Lourdes, infelizmente não temos
muito tempo pra pensar. O evento começará daqui
a três horas.
Parece que Nando conseguiu deixá-la mais
angustiada. Ela queria ir, mas temia a reação de
Senhor Francisco e das meninas. Ele então deu a
cartada final:
– Vá, que fico tomando conta do sebo para
senhora. Prometo não fazer nada de errado. Só
negociar aquilo que está escrito na contracapa,
como valor de venda, anotar e guardar o dinheiro
pra lhe entregar. Dou minha palavra!
– Sei disso, menino! Mas...
Ela olhou para o telefone. Pensou em ligar
para a sobrinha. Colocou a mão no queixo,
suspirou e lhe disse:
– Eu vou! Mas preciso que você venha
comigo. Não se preocupe que não irá segurar vela.
E seja o que Deus quiser!

***

161
Combinaram de se encontrar na escadaria
da Catedral, pois Nando precisaria ir até a sua casa
para ver a mãe e trocar de roupa. Dona Lourdes
resolveu fechar a loja por algumas horas, em
consideração ao amigo Francisco.
Como sempre, Nando buscava o amigo Tia
para uma corrida de moto táxi, mas desta vez sem
necessidade de emoção. Em casa, teve que se
explicar com a mãe, que voltou a lhe cobrar mais
um pouco de atenção. Deixou sobre a mesa o livro
U-507: o submarino que afundou o Brasil na
Segunda Guerra Mundial, para ser entregue ao
padrinho.
Nando tomou banho, colocou sua melhor
calça, camisa e calçado, e correu para a Catedral,
novamente na garupa do dragão azul, nome
carinhosamente dado por Roberto ao seu veículo
de trabalho.
– Mas, Tia, você não para em casa, né?
Reclamou Roberto das chegadas e saídas do
amigo.

162
– Bom é pra você, que não tem quem lhe
vigie enquanto pega a Isabela, né? Devolveu
Nando.
– Êpa! Não mexa com minha princesinha.
Sabia que vamos nos casar?
Nando deu uma gargalhada e disse que se
ele subisse no altar, dez mil desiludidas iriam
expulsá-lo da igreja aos tapas.
– Mudando de assunto.... Por que você só
anda em meio a tantos livros, cara? Vá namorar!
– Os livros não me traem, não me iludem e
nem me fazem de otário. Ao contrário, trazem paz,
alegria, prazer e conhecimento. Mas não se
preocupe, acharei a pessoa certa na hora certa e,
quem sabe, ela até tenha a mesma paixão por
livros que eu, respondeu Nando com seriedade.
– Não tá mais aqui quem falou! Disse
Roberto, com ar de ofendido.
Ao descer da moto e devolver o capacete,
pediu desculpas a Roberto e lhe sugeriu que lesse
algo de seu interesse.
– Sabia que de qualquer assunto existe livro
publicado? Sei que gosta de futebol e motocicletas,
163
que tal dar uma lida em livros sobre esses
assuntos? Posso te ajudar a garimpar!
– Garimpar? Roberto deu uma risada.
– Deixa pra lá! Disse Nando também aos
risos.
O amigo pagou a corrida e Tia saiu a mil,
soltando fogo pela descarga do dragão azul, só
para impressionar as senhoritas que passavam
pela praça.
De longe, na escadaria da igreja, Dona
Lourdes avistara Nando se aproximando. Ele, do
lado oposto à livraria, no início da Rua Santo
Amaro, viu o aceno da sebista e observou uma
movimentação do lado de fora da loja.
Faltavam cinco minutos pras 18h. A catedral
estava aberta, mas a missa ocorreria apenas às
19h. A amiga aguardou pacientemente sua
aproximação. Estava suada e com mãos frias.
Sabia que não seria fácil rever uma pessoa após
tantos anos, mesmo morando na mesma cidade.
Os dois olharam para a livraria, na
esperança de ver a família Rezende ou alguma
outra pessoa conhecida. Após alguns minutos,
164
decidiram se aproximar. Ela cogitou um
arrependimento, mas Nando não lhe deu bolas.
Ao atravessar o meio fio da praça, em
direção à loja, avistaram o Professor Alcides
Fagundes, amigo pessoal de Dona Lourdes. Nando
se propôs a chamá-lo, mas ela, toda envergonhada,
apenas ensaiou um tímido aceno, atropelado pelo
grito de Nando na sequência.
O ilustre Doutor parou e buscou a voz que
chamava seu nome. Com surpresa, devolveu o
aceno com um imenso sorriso e ficou aguardando à
porta a chegada dos dois.
– Fernando, você me paga! Disse aflita a
senhora.
– Calma, vai dar tudo certo! Disse-lhe
confiante.
O doutor ficou surpreso ao saber que a
senhora conhecia o Senhor Francisco, pois nunca
havia lhe falado dele ou de sua livraria. Ela apenas
disse se tratar de uma visita inesperada para um
apaixonado por livros feito ela.
No meio a tanta gente bem vestida, Nando já
estava se sentindo como um intruso. Olhou para
165
dentro, mas não conseguiu enxergar nenhum rosto
conhecido. Então teve a ideia e ousadia de pedir
para que o Doutor fizesse companhia a Dona
Lourdes enquanto ele iria fazer algo.
Sem cerimônias, ele consentiu, e depois que
Nando saiu às pressas driblando os convidados, o
Professor Alcides perguntou quem era o garoto.
Dona Lourdes disse apenas se tratar de um cliente
dela que trabalhava na livraria.

166
CAPÍTULO XVI

Fernando nunca imaginou que um dia iria se


perder dentro do seu próprio local de trabalho. As
prateleiras e estantes sumiram diante de tantos
convidados, que não paravam de surgir e sair de
tudo que é canto da loja.
Em busca de seu chefe, continuou a
caminhar olhando para todos os lados. Chegou a
avistar, de um lado, Senhor Domingues, dono da
distribuidora Mar Azul, e de outro, Senhor Carlos,
seu contador. Andando em direção ao balcão, deu
de cara com Senhor Pereira, acompanhado pela
secretária e seu magnífico cabelo lilás. Perguntou
por Senhor Francisco, o qual disse que ainda não
havia chegado. Sua filha Marisa é quem está
recebendo os convidados, informou ele.
Àquela altura, Nando não imaginava mais o
que poderia acontecer. Tinha arquitetado ir até o
chefe e levá-lo à Dona Lourdes, ou permitir que ela
fosse até o encontro dele, mas parecia que o seu
plano estava indo por água abaixo, dada a pouca
paciência de Da Lourdes.
167
Voltando sem pressa, Nando desejava
pensar em algo que fizesse a sebista continuar a
esperar. Foi quando, de forma inesperada, alguém
tocou as suas costas. Ao girar o corpo, no intuito de
descobrir quem seria a pessoa, deu de cara com os
olhos de Marisa que, estranhamente demonstrava
certa alegria pelo encontro, perguntado em seguida
por Gilberto, informando que precisaria da ajuda
dos dois para servir os convidados, já que a
quantidade de garçons contratados não estava
sendo suficiente, pois apenas quatro se revezavam
na árdua tarefa de atender aquela quantidade tão
grande de convidados.
Nando, pego subitamente, reagiu com a
cabeça num sinal de positivo. Ela, pela primeira vez
na vida, pegou sua mão, e levou-o até os garçons,
que alegremente agradeceram pela chegada do
ajudante.
Seus braços trabalhavam num ritmo
eletrizante, procurando encher o maior número de
taças possível, enquanto a mente estava voltada
para Dona Lourdes, que provavelmente já deveria
ter sentido a sua falta.
168
Uma música vinda da rua, oriunda de
instrumentos de sopro, suavemente invadiu o
ambiente. Era um presente dado pelo velho amigo
do Senhor Francisco, que hoje regia a orquestra
sinfônica da capital. Os cruzamentos da praça com
as Ruas Itabaiana e Santa Luzia foram fechados, a
pedido do Coronel Simões, também velho amigo do
livreiro.
Parecia que não faltava mais ninguém
naquela festa, não fosse a expressiva ausência do
anfitrião e de sua filha mais nova.
Dona Lourdes já estava sem assunto quando
percebeu o sumiço de Nando, não sabendo ela que
ele havia se transformado no novo garçom da festa.
O professor Alcides também notou a ausência do
rapaz, e se desdobrava para sempre colocá-la
dentro dos temas e apresentações que o Doutor
provocava.
– Preciso ir ao banheiro. Disse ela ao pé do
ouvido do amigo.
– Sim! Estarei por aqui te esperando.
Respondeu o Doutor, desconfiado de sua repentina
necessidade fisiológica.
169
Do outro lado, isto é, na dispensa da loja,
Nando procurava uma saída, e deixando claro para
os demais que era funcionário da livraria, deu
ordens para continuarem o trabalho enquanto iria
buscar mais ajuda.
Sem esperar resposta, largou uma garrafa
de vinho na mesa e saiu devagar da vista deles,
acelerando em disparada logo em seguida, como
quem corria de um touro enfurecido.
Exatamente no meio do salão, os dois
acabam se encontrando. Dona Lourdes, furiosa,
perguntou por Francisco e pediu alguma explicação
para aquele sumiço repentino do jovem garçom.
Nando a deixou informada dos acontecimentos e
lhe pediu paciência, acrescentando que logo o
livreiro apareceria.
– Estou pressentindo algo, Fernando. Acho
que não é coisa boa. Ele está debilitado e
provavelmente arrasado por causa das filhas. Acho
que não vem!
Nando tentou puxá-la pelo braço para levá-la
ao fundo da loja, com intuito de dificultar sua saída.
Porém, Dona Lourdes, forte e decidida, soltou-se e
170
caminhou lentamente em direção à entrada.
– Agradeço muito sua boa intenção, mas pra
mim já chega! Quero voltar pra minha loja e meus
clientes.
– Não faça isso, Dona Lourdes. Eu admiro
muito vocês dois. Sei que se gostam como velhos
amigos e que têm muita coisa para falarem.
Na disputa entre argumentos e obstrução de
passagem, ouvem-se aplausos em meio à sinfonia
que se tocava na rua. Num instante pensaram partir
dos expectadores a elogiar aquelas belas músicas
ritmadas, mas o coro, que alegremente soltava um
“Viva Francisco”, os deixou em estado de alerta,
sentindo um brusco arrepio nos corpos inertes.
Os convidados pediam que abrissem o
caminho para sua chegada, no entanto Nando e a
sebista, ainda surpresos, não conseguiam ouvi-los,
e começaram a caminhar em direção à rua.
Já na porta, viram um automóvel sedan preto
rodeado de pessoas, como se estivessem
aguardando um aceno ou um pedido de autógrafo
de alguma celebridade. Em um instante, foi
organizado um cordão humano para permiti-lo
171
passar, com o cuidado de não o machucar.
A porta do lado do motorista é aberta e deixa
surgir o senhor Antônio Rezende, irmão do livreiro,
que acena ao povo e dirige para a porta traseira. Ao
abri-la, todos em volta avistam um senhor elegante,
vestindo linho branco, chapéu panamá, cinto e
sapato da mesma cor. À mão, trazia uma bengala
em madeira envernizada e com detalhes dourados
nas pontas. O elegante senhor ficou ali por um
tempo, enquanto Senhor Antônio sinalizava com as
mãos, pedindo paciência aos espectadores.
Outro brado de “viva Senhor Francisco”,
seguido de muitos aplausos, anunciou a abertura
da segunda porta traseira. Meio desconfiada, mas
deixando escapar um sorriso discreto, Juliana
atravessa por trás o veículo, estende as mãos e
aguarda a saída do pai’.
Dona Lourdes, que sempre o considerava
como um filho, sentiu o coração acelerar e os olhos
marejarem. Segurou com força sua bolsa e puxou
Nando para a calçada, pois agora queria ver o
livreiro mais de perto.
A banda parou de tocar, e com a ajuda de
172
Juliana e seu irmão, Senhor Francisco ergueu-se e,
olhando em volta, não segurou a emoção. Aquela
quantidade de espectadores em volta, os amigos
de infância e da faculdade, os profissionais da área,
enfim, todas aquelas pessoas ali reunidas, com
único intuito de prestigiar seu retorno e festejar os
vinte e dois anos da livraria, foram mais uma prova
de fogo para o seu coração.
Dona Lourdes passou despercebida, talvez
por causa da luz excessiva, que acabara ofuscando
a vista do homenageado. Isto sem falar que já fazia
vinte anos do último encontro entre os dois.

***

Apoiado pela bengala e pela filha mais nova,


Senhor Francisco decidiu caminhar, da forma que
agora podia, em direção à entrada. Marisa pedia
gentilmente que as pessoas dessem passagem,
informando que lá dentro poderiam conversar com
ele, como numa fila em uma noite de autógrafos.
Nando sugeriu ficar ao pé da soleira, entre
as portas de enrolar e a de vidro. Decisão aceita
173
por Dona Lourdes, que chegando mais próximo do
livreiro, colocou a mão dentro de sua bolsa e puxou
uma bíblia de bolso em couro avermelhado, com a
inscrição “Novo Testamento”, em latim, datada de
1615.
Era a obra mais valiosa que a sebista tinha
em sua coleção. Teria a arrematado num leilão em
Portugal. A obra era a mais cobiçada por Francisco,
que na época dizia para ela que daria tudo para tê-
la. Ela prometera presenteá-lo quando do
casamento com sua sobrinha. Fato não
concretizado, por forças do destino.
Com pernas e braços trêmulos, ela não
resistiu, e por impulso saiu correndo ao seu
encontro. Os convidados ao redor não sabiam se
resmungavam da falta de delicadeza e respeito
solicitados por Marisa, ou se acreditavam se tratar
de algo já planejado por alguém do cerimonial.
Ele olhou fixamente para ela e em poucos
segundos conseguiu reconhecê-la. Ela, segurando
sua mão, entregou-lhe o presente. Juliana, ao lado
e sem entender nada do que estava acontecendo,
ficou parada a observar.
174
– Chiquinho, este presente é para você!
Ninguém nunca havia lhe chamado de
Chiquinho, senão Dona Lourdes.
– Mas... mas...
– Não fale nada. Apenas aceite, por favor!
Este presente é meu pedido de reconsideração de
amizade.
As pessoas em volta, desejando ouvir a
conversa, aproximaram-se dos dois. Nando
permaneceu imóvel em seu lugar.
O livreiro olhou atentamente para o pequeno
livro e o reconheceu, ainda pasmo, voltou a olhar
para Da. Lourdes e pôr-se a tocar em seu rosto,
tentando aparar uma lágrima que ensaiava sair dos
olhos da “convidada”. Ela juntou sua mão à dele, e
num aperto forte lhe disse que o tempo e as
circunstâncias podiam ter afastado os dois, mas
que em seu coração permanecia uma luz acesa e
que ele sempre esteve presente em suas orações.
Em prantos, Senhor Francisco parecia um
menino que acabara de rever sua mãe após uma
longa viagem. As pessoas, sem entender muito o
que estava acontecendo, aplaudiam a cena que
175
acompanhavam, num brinde ao abraço que em
seguida se deu entre os dois.
– Apareça! Disse ele.
– Nunca mais sumirei, respondeu.
Após soltarem as mãos, ela saiu em direção
à praça. Nando, ao vê-la se distanciar correu ao
seu encontro, perguntando-lhe o motivo de ter que
sair às pressas.
– Brigaram de novo?
– Não! O passado já deu um ponto final
nessa história. Agora um novo livro será escrito.

***
Nando chamou um táxi e acompanhou Dona
Lourdes até a sua loja. No caminho comentou que
Senhor Francisco não haveria de aparecer na casa
da vendedora da biblioteca particular.
– Poxa vida, ele perderá uma grande
oportunidade.
– Calma, menino! Eu tenho uma carta na
manga, falou a sebista, com um sorriso no rosto –
A proprietária tinha dito que havia dois
pretendentes à compra do acervo do pai. Um deles
176
era a livraria Cultural.
– E o outro? Questionou Nando.
– Eu! Na pessoa que representa o sebo
Corujão.
Fernando ficou boquiaberto. Não imaginaria
que a sebista teria tanto dinheiro para comprar
aquela biblioteca. Dona Lourdes pôs-se a gargalhar
e lhe confessou outro segredo.
– Saiba que para ser um sebista você
precisa de um bom capital de giro, pois as
oportunidades sempre aparecem. E saiba que,
mesmo sozinha, trabalho de domingo a domingo
sem cessar. Mesmo presa na loja, fico sabendo de
tudo que ocorre na cidade e principalmente no meio
que envolve os livros. Meu jovem, tenho muitos
informantes, e você, sem perceber, foi um deles!
– Nossa Senhora! Então a dona não blefava
quando dizia ter um segundo possível comprador,
caso a livraria não fechasse acordo até as dezoito
horas de hoje?
– Não! Aliás, tenho minhas dúvidas se
realmente Senhor Francisco fecharia a proposta.
Não consigo ainda vislumbrar, nestes meus trinta
177
anos de sebista, se alguma livraria ousaria
diversificar vendas de livros novos com usados.
Falo daqueles novos em consignação com as
editoras e distribuidoras, pois para elas seria uma
concorrência desleal. Como diriam, um fogo amigo.
– Ah, Dona Lourdes!! Tenho muito a
aprender com a senhora.
– Quer trabalhar comigo? Estou mesmo
precisando de uma pessoa de confiança e que seja
apaixonada por livros. Vi que cobre todos os
critérios.
– A senhora promete não me colocar para
tirar fotocopias?
– Farei mais que isso. Te ensinarei todas as
artes e técnicas para preservação de livros.
– E meu chefe, Senhor Francisco? Gosto
muito dele.
– Não se preocupe! Meu informante me
disse por telefone que ele voltará para Salvador.
Deixará as filhas tomando conta da loja. Ficará
administrando uma distribuidora própria por lá.
Ao estacionar o táxi em frente ao sebo, Dona
Lourdes pede ao taxista que leve o amigo até seu
178
destino, e deixa um valor a mais, correspondente à
corrida que faria. Nando se despediu da amiga e
lhe pediu uma semana para tentar colocar as
coisas em ordem na livraria, para depois comunicar
sua saída. Ela prontamente assentiu e lhe disse
que daria um mês, pois seria um bom prazo para
que as jovens arrumassem a casa e as suas
mentes.
Ao chegar em casa, Nando deu de cara com
todos na porta conversando sobre ele. Muito feliz,
disse que dera um grande passo para seu futuro
como empreendedor da área de livros.
Falou que os livros foram o remédio que
trouxe alegria ao seu coração, que lhe curou da dor
da falta do pai, que lhe presenteou com grandes
amigos, antigos e recentes, e que pressentia que,
em breve, os livros também lhe trariam uma
companheira para compartilhar os prazeres e
maravilhas do mundo da leitura.

***

179
PARTE 2
LIVROS PELO CAMINHO

180
CAPÍTULO I

Eu não sabia ainda o que fazer quando fui


surpreendido pela contraproposta do Sr. Francisco
em permanecer como funcionário da livraria
Cultural. Saí de casa naquela segunda-feira, uma
semana após a festa de aniversário da loja,
decidido a pedir as contas. Com a carteira de
trabalho em uma das mãos e a outra segurando
firmemente o telefone, vi-me meio perdido depois
da última oferta. Dizia ele se tratar de um negócio
feito somente entre amigos, algo que iria além de
uma proposta normal entre patrão e empregado.
– Mas, Sr. Francisco, eu dei minha palavra à
Dona Lourdes. Não posso voltar atrás!
– Meu filho, ela vai entender que será melhor
pra você. Aceite! – falou o livreiro com a voz
arrastada e pausada por causa do acidente
vascular cerebral.
Enquanto ele novamente me persuadia
contando todas as vantagens que eu teria, o cargo
de subgerente, dois salários mínimos e mais auxílio
181
alimentação, olhei nos olhos de Juliana e Marisa e
traduzi que imploravam para eu ficar.
Não sei por que, mas o nome soava tão bem
em meus ouvidos que já estava me sentindo
importante. Tentei até vislumbrar uma cena na qual
um editor acompanhado de um distribuidor se
reuniam em minha sala para tratarmos da
publicidade e venda do mais novo livro de um autor
sergipano renomado.
Ao perceber que eu resistia à oferta
tentadora, deu-me um prazo de vinte e quatro horas
e pediu para não dizer nada à amiga sebista. Com
isso, concordei com a “trégua”, mas deixei claro
que não poderia trabalhar naquela tarde porque já
teria agendado uma consulta ao médico com minha
mãe.
Finalizada a conversa, desliguei o telefone e
imediatamente as jovens empresárias iniciaram
uma sabatina e nova rodada de persuasão por
meio de elogios ao meu caráter e profissionalismo,
mas deixei claro que não adiantaria nenhuma
decisão sem realizar uma análise profunda na
consciência e uma consulta à minha mãe.
182
– Fernando, somos muito gratas pelo que fez
por meu pai quando se prontificou em reatar a
amizade dele com Dona Lourdes. Não sabemos o
que aconteceu entre eles, mas percebemos que
isso lhe devolveu a vontade de viver, pois as
sequelas do AVC não seriam superadas se ele
continuasse com aquela depressão – disse Marisa
enquanto entreolhava para sua irmã que por sua
vez ratificava suas palavras.
Juliana agradeceu-me e saiu do escritório
para atender a uma ligação do celular. No mesmo
instante, encerrei o diálogo e me dirigi à saída
seguindo seus passos.
No balcão, Gilberto ocupado com o telefone
e olhos bem atentos para tela do computador, não
ficou nem tentado em me chamar para saber do
diálogo. Uma senhora um pouco confusa do outro
lado da linha teimava em lhe pedir para
encomendar um livro que ele insistia em dizer que
estava esgotado. Eu imaginava suas hilárias
perguntas, mas só ouvia, claro, as respostas de
Beto.
– Senhora, por favor, não posso encomendar
183
uma obra que a editora deixou de publicar! Isso
também não! Senhora, aqui não é permitido
pesquisar se outras livrarias online vendem o livro.
Talvez a encontre em algum sebo da cidade. Sebo
é uma livraria que vende livros usados e raros.
Conheço sim, o sebo Corujão. Fica situado no
cruzamento das ruas Divina Pastora e Lagarto.
Ao mesmo tempo em que eu aguardava a
alforria de Gilberto daquela ligação, observava que
da porta de entrada da livraria, Juliana falava alto
ao celular, gesticulando e pondo várias vezes as
mãos à cabeça, aparentando apreensão.
Não pude deixar de ouvi-la dizer que não iria
mais admitir uma situação. Depois disso, decidi ir à
dispensa pegar um copo d’água e um cafezinho.
Novamente passando a vista em Gilberto que,
dessa vez me olhando e ainda segurando o
gancho, fez-me uma cara de desespero.
Foi apenas na dispensa que eu pude tomar
um fôlego e iniciar uma guerra interna entre meu
lado racional e o emocional. Não queria desagradar
nenhum dos dois. Sr. Francisco me abriu as portas
para o primeiro emprego e Dona Lourdes o coração
184
para a minha paixão por livros. Tinha certeza que
se eu comentasse com ela sobre a proposta dele,
correria sério risco de perder a amizade dos dois.
Quando ela disse que me ensinaria todas as
artes e técnicas do cuidar dos livros, desde uma
negociação para compra e venda até as possíveis
restaurações que precisassem, fiquei sonhando
com aquelas coisas por vários dias.
O sebo era registrado, tinha CNPJ e tudo.
Sabia que não trocaria um emprego formal por um
informal de jeito algum. Ela me deu a oportunidade
de escolher entre colocar na carteira o cargo já
ocupado de auxiliar administrativo na livraria ou de
vendedor. Mas essa agora de ser subgerente, o
dobro do salário e ainda auxílio alimentação
realmente quebrou minhas pernas.
Eu teria vinte e quatro horas para decidir.
Dessa forma, pensei em buscar conselhos com as
pessoas mais experientes e mais próximas a mim:
minha mãe e meus padrinhos, Dona Francisca e Sr.
Ladislau. Mas, antes que eu planejasse a próxima
ação, apareceu-me Gilberto.
– E aí cara, o que houve lá dentro? Não
185
aceitaram sua demissão?
Beto já sabia que eu estava decidido a me
mudar para o Sebo Corujão. Percebi que ficou
espantado com o convite de Dona Lourdes, mais
ainda pela minha impulsiva resposta de aceitação.
Em suas palavras, decisões importantes como
mudança de emprego não poderiam ser feitas de
um dia para o outro, pior ainda, entre um minuto e
outro.
– Ao contrário, fui surpreendido por uma
proposta quase irrecusável de ser subgerente
daqui.
Dessa vez, o espanto de Beto foi maior. Não
só pelo fato de eu ter apenas dois meses de
emprego na livraria e já ser engrandecido por uma
promoção, como também por não ter nenhuma
experiência profissional anterior a de meu primeiro
e único emprego de auxiliar administrativo.
– Alguma das meninas está te paquerando?
Não entrava na cabeça dele o fato de eu ser
reconhecido pelos Rezende como uma pessoa que
transmitia confiança e empatia pelos outros.
Embora eu achasse a mesma coisa dele, acredito
186
ter pesado o reconhecimento e a gratidão de eu ter,
sem querer, ajudado a reconciliar uma amizade de
muitos anos e por isso ter devolvido a alegria ao
patrão.
Essa última hipótese eu deixei claro para
Beto, mas, mesmo assim, ele não acreditou. Foi daí
que comecei a suspeitar de sua inveja e cheguei à
conclusão de duas coisas: que ele desejava que eu
fosse embora para o sebo, o que possibilitaria sua
promoção, e que eu precisava aprender a ficar de
bico calado quando se tratasse de planos pessoais.
Bem, para não dar trela às suas investidas,
optei por simplesmente deixá-lo com uma pulga
atrás das orelhas e saí sorrindo em direção ao
balcão. Ele, não satisfeito, parado e vendo-me
distanciar, disse em alta voz que tinha algo de
estranho acontecendo.
Na presença de Marisa, coloquei-me à
disposição para que, após a consulta médica,
pudesse retornar à tarde para ajudá-los no
atendimento aos clientes ou qualquer outra tarefa
necessária. Ela, por sua vez, aparentando ter se
convertido em moça educada, agradeceu e sugeriu
187
que eu ficasse em casa cuidando de minha mãe e
pensando um pouquinho mais na proposta.
– Fernando! Um raio não cai duas vezes no
mesmo lugar. A conversa que Dona Lourdes teve
com meu pai a seu respeito o fez pensar em
investir em você. Aproveite!
Agradeci e na saída bati de frente com
Juliana que adentrava ao estabelecimento tentando
disfarçar o rosto abatido. Da minha parte, dei um
breve até mais e parti atravessando a praça da
catedral em direção à Rua Santo Amaro para uma
bela caminhada até a Rua São João.

188
CAPÍTULO II

Em casa, as coisas estavam bem mais


tranquilas do que na livraria e em minha cabeça. No
térreo, meus padrinhos, Sr. Ladislau e Dona
Fátima, conversavam na varanda com o agente de
saúde que os visitavam para verificar a possível
presença dos famigerados mosquitinhos do cão. Ao
subir, minha mãe, aparentando boa recuperação,
costurava na sala.
– Oxente, voltou cedo?
– Não marcamos sua consulta ao
cardiologista para hoje às treze horas?
– Sim, mas pensei que iria chegar por volta
do meio dia.
– Mãe, é que tenho uma coisa pra lhe dizer e
preciso de seu conselho. Mas queria falar na
presença também de meus padrinhos. Posso
chamá-los?
– O que houve, pelo amor de Deus?
– Nada de errado, mãe. Apenas uma
proposta de novo trabalho.
189
Após explicações e consentimento de minha
mãe para buscá-los, consegui resumir os fatos,
desde a história contada pela sebista sobre Sr.
Francisco até os convites deles para que eu
assumisse um novo emprego.
Minha mãe e minha madrinha foram
taxativas em dizer que não valia a pena a troca de
emprego e sugeriram que eu aceitasse o novo
cargo na livraria. Mas, meu padrinho ficou em cima
do muro e ainda apimentou meu juízo. Como
homem estrategista de guerra, fez-me uma
provocação e me pôs a pensar ainda mais.
– E se você fizesse também uma
contraproposta?
– Como assim?
– Ficaria com os dois! Um turno para cada. E
com o tempo veria qual seria melhor.
Mais uma vez, as duas foram contra e
defenderam a própria proposta. Meu sargento
aposentado pensou em outra coisa: perguntaria à
sebista se cobriria a proposta dele.
– Não, leilão por mim não! Além do mais,
prometi não envolver o livreiro nisso. Obrigado
190
pelos conselhos, mas ficarei pensando até amanhã.
Ainda não se rendendo à batalha, meu
padrinho finalizou pedindo que eu colocasse no
papel os pontos positivos e negativos atuais das
propostas e em outra coluna os pontos futuros. E
que eu buscasse dados sobre a real situação do
mercado de livros novos e usados do país, do
estado e de Sergipe.
Não resisti. Dei uma bela gargalhada fora de
hora, pois sei que ele falava sério. Em resposta, os
três me olharam com um repúdio que me deixou
envergonhado. Pesaram mais que uma tonelada de
livros.
– Desculpas!
Depois que recebi um beijo molhado da
madrinha e uma tapinha camarada do padrinho,
mudei de assunto deixando uma pergunta no ar
sobre o motivo de estarmos recebendo visitas de
agentes de saúde. Sem aguardar respostas, saí de
fininho e fui resfriar a cabeça no banho. Na mente,
o placar apontava dois votos contra, um empate e
nenhum a favor pela mudança de emprego.

191
De volta da consulta médica, deixei minha
mãe em casa e fui despachar seus remédios. A
atendente, muito curiosa, olhando para o nome do
paciente escrito na receita, lançou-me algumas
perguntas que me fizeram duvidar se realmente eu
estava numa drogaria ou numa delegacia. No
interrogatório ela questionou o significado de Iraê,
se era nome indígena ou africano e se era de
algum parente. Temia que chegasse à enésima
pergunta sobre o que eu achava dela e se
poderíamos sair algum dia.
Enfim, acostumado desde pequeno com
esses questionamentos, fui de forma direta às
respostas sem permissão de aberturas posteriores.
A fila aumentava atrás de mim e minha falta de
paciência também.
– Minha mãe, Iraê, é descendente de índios
da tribo Xocó de Porto da Folha e seu nome
significa gosto de mel. Eu me chamo Fernando e
estou muito atrasado para o trabalho.
Minha grosseria não conseguiu nem de
longe derrubar suas investidas. De forma
instantânea, respondeu que daria tudo para morar
192
comigo numa oca de palha de coqueiro. Na saída
ainda perguntou se o índio Fernando teria celular
para um bate-papo mais tarde. Por sorte, a fila
respeitava uma distância considerável entre eu e os
demais de forma muito contida que não conseguiu
ouvi-la.
Melhor que essa sorte foi a coincidência de
ver chegar ao estacionamento da farmácia meu
velho amigo-irmão Roberto. Fui direto ao seu
encontro e, sem deixá-lo desmontar, soltei algumas
palavras calorosas.
– Diga aí, Tia!
– Opa, chegou o cara altamente mais ou
menos – devolveu em risadas.
– Caso ainda tenha na agenda espaço para
mais uma namoradinha, vou lhe entregar de
bandeja a caixa aí do lado.
– Como assim?
– Só tem um probleminha... Não para de
falar. Deve ter engolido um rádio.
– Deixa comigo. Farei dela a maior de todas
as comunicadoras deste país.
– Bem, vou lhe aguardar aqui fora, pois não
193
quero vê-la novamente. Outra coisa, preciso que
me leve naquele sebo da Rua Divina Pastora.
– Aguarde só um instante.

***

Depois que deixei os medicamentos em


casa, fomos para o sebo Corujão, pois não resisti à
tentação de garimpar alguns livros para mim e Sr.
Ladislau, e bater um papinho legal com a sebista.
Durante o trajeto, conversamos sobre sua
fracassada investida sobre a atendente, pois, dizia
ele, que o coração dela já tinha sido sequestrado
por mim. Rebati imediatamente afirmando que ela
não sabia o que havia perdido.
– Quando a encontrar, espero que nunca,
direi que perdera a chance de se apaixonar pelo
motoboy mais sincero e carinhoso das bandas de
Aracaju.
As gargalhadas sobre suas aventuras
amorosas tiveram fim quando chegamos ao sebo.
Passavam das dezesseis horas e minha missão
estava programada para terminar antes das
194
dezoito, pois tinha prometido ir à missa da colina de
Santo Antônio com minha mãe para agradecer por
sua saúde.
Pedi a Roberto que colocasse a corrida na
conta e que na manhã seguinte acertaríamos todas
as outras. Despedi-me e fui falar com a amiga e
proprietária que ao me ver, colocou-se logo de
prontidão para me receber.
– Oi Nando, que surpresa agradável!
– Boa tarde, Dona Lourdes. Como vão as
coisas? Chegaram novas coleções?
Ela, sempre contente, fazia questão de
apresentar as últimas novidades. Não imaginava
como guardava tudinho na cabeça. Títulos,
assuntos, às vezes até citações breves de algum
livro que lera ou que dera uma breve passada.
– Por aqui tudo bem, graças a Deus!
Lembra-se da biblioteca particular daquele
magistrado? Hoje pela manhã chegaram seus
livros.
– Nossa, que maravilha! E aí?
– Tá tudo lá no fundo ainda pra catalogar e
depois distribuir por suas prateleiras.
195
– Algo de interessante?
– Ainda não tive oportunidade de garimpar,
mas posso adiantar que realmente o negócio valeu
a pena. Foi uma das melhores aquisições que fiz. O
falecido magistrado era uma pessoa muito
organizada e cuidadosa. Sua filha a mesma coisa.
Entregou tudo em caixas numeradas e com títulos
das áreas sobre elas.
Se deixasse, ela continuaria a relatar
detalhadamente os fatos. Mas, eu estava muito
ansioso e não conseguia absorver suas
informações. Queria apressar o relato e ir direto à
caça dos livros que estavam desejosos por serem
mexidos. Por isso, fiz uma interrupção em sua fala.
– Dona Lourdes, onde ficam os livros de
autores sergipanos? Existe alguma estante
específica?
– Com certeza! Você acha que eu não
valorizaria os de nossa casa? Aliás, muitos de
nossos autores não deixam nada a desejar.
Com isso, enquanto caminhava ao local, ela
foi citando inúmeros autores, desde o século
passado, que o tempo não consentiu deixá-los no
196
esquecimento, como também de suas obras
consagradas até em outras terras. Disse-me que
era apaixonada por poesias e suas prediletas
estavam cravadas nas dos saudosos escritores
Silvio Romero, Hermes Fontes, Fausto Cardoso e
Tobias Barreto.
A sebista continuou a prosa:
– Mas, em se tratando de romances, para
mim, nada se compara com o brilhantismo de
Francisco Dantas. Suas colocações sobre a vida do
sertanejo fizeram-me adentrar no sertão da década
de trinta de uma forma tão metafísica que cheguei a
sentir o cheiro, o sabor e as dores de sede e de
fome daquele povo sofrido.
Perguntei se aqui teria alguma obra desse
autor e ela, apontando para a penúltima prateleira,
assentiu dizendo que não apenas a mais
reconhecida dele, Os Desvalidos, mas todos os
seus livros.
– Chegou até a ganhar um prêmio
internacional.
Eu não sabia o que fazer, pois já me
faltavam mãos de tantos livros que durante a
197
conversa me propus a pegar. Se pudesse levaria
todos. – Por que, meu Deus fui gostar logo de uma
coisa que infelizmente no Brasil ainda é tão
custoso? – lamentei para todos os ouvidos do
estabelecimento.
Dona Lourdes sorriu e sem aguardar a
resposta amenizou dizendo que nem todo livro é
caro, principalmente se estivessem à venda em
algum sebo e de maneira especial o dela.
– Nando, os preços dos livros usados nos
sebos são, em média, 40% dos seus valores
comerciais. Isto é, se um livro novo custa cem
reais, no sebo o mesmo livro, porém usado, custará
quarenta. Mas aqui geralmente eu coloco o preço
de 30% de seu valor de capa. Digo, geralmente,
porque há casos dos livros raros, que ao contrário,
valem muito dinheiro por causa de sua falta no
mercado editorial provocada pelo esgotamento ou
interrupção de publicação.
Ela iniciou uma aula demonstrativa sobre
economia e gestão comercial aplicada aos sebos.
Aproveitando que os poucos clientes não lhes
cobravam atenção, explicou-me que preferia
198
adquirir coleções, em vez de negociar por cada
livro, pois dava o preço pelo pacote, o qual ao final
das contas, se traduzia numa média de 10% do
valor de capa de cada livro do conjunto.
– As pessoas não entendem que estamos
num país em que não se investe maciçamente na
educação, com milhões de analfabetos e ainda sem
políticas públicas de incentivo à leitura que
permitam, por exemplo, incentivos fiscais para que
haja descontos plausíveis na compra e venda de
livros. Por isso que não dá para receber um livro
para revenda com oferta acima de 10% de seu real
valor. Em regra, todos devemos ganhar numa
negociação, quem se desfaz do livro, quem recebe
para revender e quem recompra.
A aula me remetia ao conselho dado por
meu padrinho e vejo que caiu em boa hora. Parecia
que ela tinha ouvido nossa conversa. Dessa forma,
aproveitei para lhe dizer que sentia um pouco de
medo de mudar de emprego, pois sabia das
grandes dificuldades em manter um
empreendimento com um público bem específico e
restrito.
199
Minhas palavras fizeram-na franzir a testa e
colocar a mão sobre o queixo. Pensou por um
instante e me respondeu de forma ainda mais
didática e afetiva que não haveria preocupação
para isso, pois como já havia dito em outra
oportunidade, ela estava no ramo a mais de trinta
anos e que toda sua expertise lhe garantia uma
tranquilidade para gerir o sebo por, no mínimo,
mais trinta anos.
– Aguardo até final do mês sua vinda
definitiva pra cá – falou enquanto me abraçava e
soltava um sorriso desconfiado.
Não resisti e lhe disse que não passaria de
julho, conforme combinado. Mas, seu sexto sentido
não havia detectado firmeza em meu
pronunciamento singelo. Resolvi disfarçar mudando
de assunto ao lhe pedir que mostrasse a sessão
que tratasse de livros sobre as guerras mundiais.

200
CAPÍTULO III

As mãos que seguravam firmemente as


sacolas cheias de livros pressionavam a equilibrar-
se sobre a motocicleta de Roberto que, sem
piedade, driblava os automóveis numa corrida
frenética até o próximo sinal fechado. Cheguei a
comentar que pularia da garupa caso continuasse
com sua ideia repentina de incorporar um camicase
em plena segunda guerra mundial.
– Desculpa! Acho que quando me mostrou
aquele livro dos pilotos brasileiros em plena guerra,
meu cérebro tinha perdido o controle da direção.
Realmente, minha breve apresentação do
livro Cartas de um piloto de caça: o treinamento e o
combate 1943 – 1945, de Fernando Rocha, foi tão
entusiasmada que deixei Roberto com espírito de
um destemido desbravador.
Já em casa, sentei-me à cama e espalhei os
oito livros adquiridos na garimpagem. De um lado,
coloquei os dois que iriam ser entregues ao meu
padrinho, e do outro lado, ordenei os demais para
201
uma catalogação.
Dessa forma, registrei o título, autor, número
da edição, editor, local, data de publicação, número
de páginas, ISBN e um breve resumo dos assuntos
abordados no caderno reservado para esse fim.
Além disso, repeti todo o processo no aplicativo que
havia baixado no celular conforme sugerido por
Gilberto lá na livraria e fotografei as capas. Era
importante ter uma cópia de tudo que havia
cadastrado como forma de segurança.
Mesmo sabendo que a sebista havia limpado
os livros antes da entrega, refiz a limpeza conforme
ensinado por ela. Apliquei levemente algodão com
um pouquinho de álcool sobre as capas e lixei as
extremidades dos cortes daqueles que apresentam
sujidades.
Depois fiquei admirando meu trabalho após
posicioná-los nas prateleiras suspensas acima da
cama em ordem alfabética por título. Minha
satisfação era tanta que nem percebi os avisos de
minha mãe para jantarmos.
– Filho, já te chamei três vezes para comer o
cuscuz com leite. Lembre-se que iremos à missa!
202
– Eita, mãe, fiquei empolgado aqui com
meus livros.
A conversa na mesa girou em torno de meus
diálogos com Dona Lourdes e aquisições no sebo
Corujão. Disse-lhe que estava balançado para
rejeitar a oferta do Sr. Francisco e que minha
felicidade era maior junto ao sebo.
– Sei disso, Nando. Coração de mãe nunca
se engana. Você fala com muito entusiasmo sobre
o local. Não irei te atrapalhar mais em sua decisão.
Peça a Deus para te iluminar nessa sua escolha e,
se possível, me diga o que fará amanhã.
– Oxente, mãe, claro!
Enquanto conversávamos, ouvimos a
campainha e as palmas de alguém que de baixo
pedia atenção. Ficamos curiosos, pois não
reconhecemos a voz. Ao abrir, vimos que se tratava
de um entregador numa motocicleta.
– Boa noite. Fernando por favor!
– Sim, sou eu.
– Tenho uma entrega de Dona Lourdes para
você.
Na bolsa de plástico havia um bilhete
203
grampeado e dentro dela um livro. A mensagem
escrita à mão dizia que era um presente e que sua
leitura traria uma dose extra de forças para minha
decisão. Com a obra nas mãos, li sua capa, Livraria
ideal: do cordel à bibliofilia, de Aníbal Bragança.
Passando para a contracapa, fiquei encantado com
o que disse uma historiadora e professora da
Universidade Federal Fluminense sobre o livro.
Agradeci ao entregador e subi correndo para
contar a novidade à minha mãe que de longe sabia
que se travava de mais um livro. A empolgação foi
tão grande que cheguei a tropeçar e trombar os
joelhos na quina da escada.
– Mãe, ganhei um livro de Dona Lourdes.
Parece ser muito interessante. Fala da história de
um italiano que veio ainda moço para o Brasil,
trabalhou como engraxate, apontador de jogo do
bicho até se transformar num livreiro renomado.
Minha mãe ficou mais surpresa pela
coincidência dos fatos. Eu disse que tinha
entendido o recado da sebista para mim. Sua
perspicácia em me deixar mais apaixonado pelos
livros tinha o propósito de me levar ao emprego
204
como vendedor de seu sebo.

***

Na missa, só vinham à cabeça o


agradecimento a Deus pela saúde de minha mãe e
pelas oportunidades surgidas em minha vida
profissional. Meus padrinhos estavam conosco e,
dentro do Corcel, pude relatar os acontecimentos
aos dois.
De volta, subi e desci numa carreira digna de
um velocista mesmo sentindo ainda os arranhões
dos joelhos. Não podia deixar de lhe entregar os
livros que prometi garimpar sobre guerras mundiais
e caubóis.
Retornei ao meu local favorito da casa,
minha cama e acima das prateleiras, agora bem
arrumadas, dormiam sossegadas as obras
recentemente adquiridas e aquela que recebi como
presente.
A leitura de A Sombra dos Ventos havia me
deixado mais fascinado pelos livros e com a Livraria
ideal fiquei ainda mais apaixonado. Numa única
205
sentada de menos de uma hora já estava no quinto
capítulo e rindo com os depoimentos de um livreiro
que odiava quem se propusesse a querer comprar
seus queridos livros das prateleiras.
Como de costume, minha mãe preparou todo
ritual gestual indicando que já estava na hora de
apagar as luzes para se deitar e dormir. Eu,
entendendo toda sua simbologia e comportamento
desde muito tempo, fechei meu livro, escovei os
dentes e vesti um pijama surrado que sinalizava
para ela que entre cinco e dez minutos estaríamos
adormecidos.

206
CAPÍTULO IV

A expressão dia D veio à mente como


analogia entre o grande dia da invasão dos aliados
contra a ofensiva do eixo e minha decisão em
resolver a situação do emprego.
A manhã estava diferente, sem nuvens, mas
com uma brisa ligeiramente fria. Pela janela vi que
o Corcel de Sr. Ladislau estava do lado de fora.
Outra coisa atípica que me fez levantar de uma vez
e buscar me arrumar para uma ida à livraria.
A mistura de curiosidade com preocupação
me obrigou a descer sem fazer o desjejum e nem
avisar a minha mãe que ainda dormia como um
anjinho roncador.
Na porta do padrinho, vi o porta-malas aberto
e duas malas de couro no chão da calçada. Antes
que eu pensasse em adentrar à casa, surpreendi-
me com a saída dos dois carregando um grande e
pesado tapete enrolado.
– Benção, padrinho! Benção, madrinha!
– Deus te abençoe.
207
– O que houve, vão viajar?
Dona Fátima me respondeu com muita
tristeza que sua tia havia falecido naquela
madrugada por causas naturais. A prima tinha
ligado cedinho para avisá-los que o velório e
sepultamento ocorreriam em sua cidade natal,
Propriá.
Depois que os abracei, perguntei se
gostariam que avisassem minha mãe, pois ela
poderia acompanhá-los. Mas, viram melhor deixá-la
dormir e nossos vizinhos a manteriam informada.
– Nando, obrigado pelos livros. Parece que
são muito bons. Outra hora conversamos.
Ao saírem, fiquei na dúvida se não deveriam
pelo menos ter me oferecido para ir com eles.
Como não tinha mais como voltar atrás, coloquei-
me a caminhar lentamente pelas ruas que me
levariam à praça da catedral.
No trajeto, enviei uma mensagem de celular
para Gilberto dizendo que estaria antes das sete na
loja. O coitado, infelizmente, estava na angústia de
saber se eu ficaria ou não. Seu trabalho poderia
aumentar caso eu saísse e demorassem a contratar
208
outra pessoa.
Sr. Francisco já tinha acertado que eu não
iria mais fazer o trabalho de limpeza das cinco às
seis da manhã e que para cadastrar os livros que
chegavam das distribuidoras bastava apenas uma
hora de trabalho que seria das sete às oito. Afirmou
que teria contratado sua secretária de casa para
esse trabalho extra já pensando em me colocar
apenas como subgerente. Fato que provocou em
mim ainda mais apreensão.
Durante o caminho, fui conversando com
Deus sobre a possibilidade de ser agraciado por um
sinal divino que me fizesse recuar da decisão de
trocar de emprego. Nunca imaginei que ao passar
das horas, sentiria-me como se estivesse
magoando alguém.
Os olhos já avistavam a livraria e antes de
prosseguir entrei na catedral. A missa ainda não
havia iniciado e, sentando na última fileira da
esquerda, baixei a cabeça, fechei os olhos e rezei.
Não conseguia rezar em silêncio, então me
pus a falar baixinho comigo e com Deus. Agradeci
por tudo que a vida tinha me dado, mas pedi que
209
me ajudasse a decidir sobre o trabalho. Que algo
me mostrasse o caminho a seguir.
Enquanto rezava o Pai Nosso, percebi a
presença de uma pessoa do meu lado, mas
permaneci com os olhos fechados. Depois que abri,
vi que se tratava do padre que conheci nas
escadarias dias atrás.
Ele ficou curioso pela presença de um jovem
tão cedo na igreja. Imaginou estar necessitando de
alguma ajuda espiritual. Mais surpreso ficou quando
se lembrou de mim.
– Bom dia, jovem. A paz do Senhor esteja
contigo!
– Amém, Padre!
– Está precisando de algo?
– Hum... acho que sim.
– Tenho alguns minutos. Quer conversar
aqui?
– Pode ser.
Ainda meio envergonhado, mas decidido a
receber ajuda, coloquei para fora toda angústia que
estava sentindo naquele momento. Resumi o que
realmente me afligia e pedi que me desse um
210
conselho.
– Filho, que bom que veio até a casa do
Senhor. Fiquei muito feliz por te ver rezando, isso
prova que é uma pessoa de fé! Agradeço,
primeiramente, por procurar Jesus em Sua casa. E
agradeço por confiar em mim, como pastor desta
igreja, onde tenho o dever de, como sacerdote,
zelar pela paz espiritual dos irmãos em Cristo. Ouvi
atentamente tudo que me disseste, não apenas
com a boca, mas senti seu coração que por sinal é
muito cheio de amor fraternal. Percebo que se
preocupa com os demais. Isso é grandioso para
Jesus. Sua atitude de tentar reconciliar duas
pessoas que não se viam por questões de mágoas
foi de uma beleza imensurável. E agora,
preocupado em não os magoar por meio de uma
decisão que terá de tomar, mesmo sabendo que
não provocou essa situação. Pelo contrário, foi
provocado, mas de forma também amorosa pelas
duas pessoas que se sentiram atingidas pelo bem
que você fez.
– Padre, o que faço?
O padre, pelo que percebi, deveria ter menos
211
de quarenta anos, mas de uma sabedoria,
serenidade, simpatia e amorosidade que reluzia
incondicionalmente para todos os lados. Olhou-me
de uma forma tão afetuosa e após alguns
segundos, disse que minha fé e prontidão do
coração guiariam meus passos para a melhor entre
todas as possibilidades de decisão e que nenhum
dos dois livreiros ficariam magoados ou chateados
com o que viria a seguir. Pegou do bolso um
Rosário e colocando sobre minhas mãos, fechou-o
e rezou abençoando aquele objeto.
– Este presente é teu. A Virgem Maria em
suas aparições pediu que rezássemos o Rosário.
Peço apenas que leve consigo aonde quer que vá.
Mas, caso tenha vontade, reze-o também.
Agradeci e respondi ao seu abraço caloroso
da mesma maneira. Tudo que ouvi e senti
compreendi como sendo uma resposta de Deus ao
sinal que pedi. Saí da igreja renovado, com a alma
leve e tranquila. Senti mais coragem e fé sabendo
que as coisas seriam resolvidas da melhor forma
possível para todos.
Quando olhei para o relógio, não tinha
212
imaginado que o tempo passaria depressa.
Aumentei os passos imaginando que aqueles
poucos metros que separavam a escadaria da
livraria fossem diminuir a sensação de atraso de
trinta e cinco minutos do horário estabelecido pelo
Sr. Francisco e prometido ao Gilberto.
Mas, ter visto a livraria com a porta de
enrolar suspensa e a porta de vidro aberta antes
das oito tinha me deixado em estado de alerta, pois
não imaginava que a moça da limpeza iria me
esperar daquele jeito.

***

Da entrada pude perceber algumas


diferenças no visual da loja. A máquina de
fotocópias tinha sumido, as prateleiras verticais e
horizontais exibiam alguns pequenos cartazes com
indicações bem destacadas de obras em promoção
e de novidades. Do alto, dois grandes cartazes
pendurados sobre fios e medindo cerca de um
metro e meio traziam informações sobre um cartão
fidelidade que proporcionaria, além de acúmulo de
213
pontos para trocar em livros, também permitiria
participar de sorteios de viagens com transporte
aéreo e hospedagem para umas das feiras literárias
do país.
– Nossa! O que foi isso?
– Boa tarde pra você também, Fernando!
– Desculpas, Potter. Perdi o horário. Gostei
das mudanças e desse tal de cartão fidelidade com
o sorteio.
Gilberto deu um sorriso e me colocou a par
de tudo que ocorrera no final da tarde do dia
anterior. Sr. Francisco tinha fechado uma grande
parceria com algumas das editoras de renome
nacional e pediu para que ninguém me avisasse
das novidades, até que eu pudesse ver com os
próprios olhos.
– E aí, meu subgerente. Gostou?
– Sim, claro! Ei, pare com essa de
subgerente. Sabe que horas eles chegam?
– Bem, Seu Chico tinha fisioterapia às oito e
Marisa vai com ele. Acho que Juliana chega já.
Meu colega só não sabia que todas essas
mudanças partiram das ideias que eu havia
214
passado a Dona Lourdes por telefone na semana
passada e que a mesma tinha repassado também
ao livreiro. Por isso, fingi surpresa.
Gilberto ficou curioso para saber sobre
minha decisão e me indagou o que estava faltando
para a grande resposta do fico. Claro que ele falou
com deboche, mas não dei ouvidos às provocações
dele. Pedi licença e fui à sala de Juliana para iniciar
meu trabalho já atrasado de digitar as entradas de
livros no estoque. Gilberto queria me seguir, mas
foi barrado pela entrada de dois clientes à loja.
No silêncio da sala, pude pegar do bolso da
calça o presente recebido do padre e, após realizar
uma busca na internet, entendi como se rezava o
Rosário. Não hesitei e iniciei a reza.
– Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos, Deus,
Nosso Senhor, dos nossos inimigos.

215
CAPÍTULO V

A ajuda Divina foi tão perfeita que não


permitiu que Gilberto atrapalhasse a reza. Era
saindo cliente e chegando outros. Ora para fazer
perguntas sobre títulos de obras, ora para
perguntar sobre o serviço de fotocópias e até para
ensinar a um grupo de turistas como chegar ao
Mercado Municipal.
Quando estava preparado a iniciar a
digitação do estoque, ouço a voz de Juliana que
parecia estar conversando com uma pessoa a qual
não reconheci. A certeza, só tive quando ela
adentrou sua sala acompanhada de um moreno
alto de cabelo raspado e tatuagem enorme no
braço direito que descia do ombro até o antebraço.
Pelo sotaque, percebi que era baiano e logo
imaginei se tratar do namorado. Quando falei ao
telefone dias atrás, visualizei se tratar de um coroa.
Infelizmente, era jovem e tinha cara de ser gente
boa. Abriu um largo sorriso e me deu bom dia com
um firme aperto de mão.
216
Juliana se adiantou e apresentou o Marcos
como seu namorado e a mim simplesmente como o
Fernando. Fato que me deixou, não sei porquê,
incomodado. Renascia nesse momento aquele
desejo de tê-la nos braços.
– Fernando... Já tem aquela resposta? –
disse-me com uma voz carinhosa e olhar
sorridente.
– Acho que sim. Mas direi primeiro ao Seu
Francisco. Pode ser?
– Sim, claro. Sem problemas! Mas...
esperamos por um final feliz.
O tipão apenas acompanhava com o olhar
nosso diálogo. Depois que ela me deu um até mais,
o guarda-costas voltou a me cumprimentar e a
seguiu segurando sua delicada mão que vi
desaparecer entre a dele.
Desejei umas coisinhas para ele e imaginei
outras melhores para mim. Acredito que minha
aproximação com Deus e a Virgem Maria me
alertaram do perigo de tais intenções. Foi quando
me repreendi dos pensamentos falhos.
Não tive tempo nem de me concentrar
217
novamente, pois o colega Gilberto já entrava na
sala reclamando por eu não ter lhe ajudado nos
atendimentos lá fora. E ainda me provocou quanto
à chegada dos pombinhos.
– Cara, agora tenho certeza que pelo menos
uma das irmãs não se engraçou contigo. Preferiu a
mais velha não foi seu espertinho?
Aquela conversa chata estava tirando a paz
que eu havia trazido da igreja e dos momentos com
o Sagrado mediados pelo Rosário. Pensei logo nas
tentações e sofrimentos que o Filho de Deus havia
suportado.
– Beto, pelo amor de Deus, preciso me
concentrar para terminar de cadastrar essas caixas
de livros.
Suas gargalhadas foram sumindo quando
percebeu que eu não estava para brincadeiras.
Olhou-me seriamente e saiu aparentando desprezo,
mas ainda assim, antes de fechar a porta, desejou-
me sucesso como subgerente. Da minha parte,
permaneci imóvel e atento à tela do computador.
As horas passaram e as caixas cheias de
livros se transformaram em pilhas delas sobre as
218
mesas e o sabor de missão cumprida devolveu-me
a paz e tranquilidade.
Quando deixei a sala fui ao encontro do
Gilberto que estava aproveitando o momento de
calmaria para arrumar os livros nas estantes e
prateleiras.
– E aí, Potter, tudo tranquilo?
Chamei-o pelo apelido para transmitir o sinal
de que eu já estava calmo. Mas, percebi que
continuava chateado comigo, pois não respondeu à
pergunta. Então, sem graça, fui ao balcão para
verificar a caixa de e-mail.
No entanto, antes de pegar no mouse, vi
sobre o teclado o bloco de recados com uma
mensagem de Dona Lourdes dirigida ao livreiro,
que pedia que entrasse em contato com urgência.
A caligrafia era de Gilberto, isso eu não tinha
dúvida, mas me sobraram dúvidas sobre o assunto.
Do balcão, implorei ao colega que me
contasse algo sobre a anotação do recado. Depois
de alguns instantes, ele veio ao meu encontro e me
falou que ela precisava realmente falar com Sr.
Francisco e que aparentava estar angustiada.
219
– Nando, por que todo esse suspense para
decidir se fica ou não? Não percebe que está
deixando todo mundo apreensivo com tanta
demora? Tá precisando de ajuda?
Seu desabafo conseguiu me convencer de
sua sinceridade. Então, resolvi lhe contar das
conversas que tive com minha mãe, padrinhos,
padre e até com a própria sebista. Ele me disse que
realmente não era fácil e aproveitou para me pedir
desculpas pelas brincadeiras de mau gosto.
Enquanto continuávamos a conversa sobre
minhas possibilidades profissionais, vimos chegar à
livraria Sr. Francisco e Marisa que nos
cumprimentaram com grande alegria.
Depois que trocamos saudações e falamos
dos trabalhos realizados na manhã, Gilberto lhe
entregou o papel com o recado sem falar do que se
tratava, com receio que provocasse alguma reação
inesperada em algum de nós. Mas, Sr. Francisco,
ao ver o nome de Dona Lourdes, tentou até
disfarçar a surpresa dizendo que já sabia do
assunto. Pediram licença e foram ao escritório em
silêncio.
220
Gilberto imediatamente procurou mudar de
assunto e me relatou as novidades em seu curso
de biblioteconomia. Disse que estavam abertas as
inscrições para o processo seletivo da universidade
e que o Conselho Federal de Biblioteconomia havia
autorizado, em comunhão com o Ministério da
Educação, a oferta do curso na modalidade a
distância. Pensou em mim e buscou de todas as
formas me incentivar para fazer a inscrição.
– Nando, tem tudo a ver com você! Como é
louco por livros e já trabalha na área, vai lhe
proporcionar mais condições de crescimento
profissional.
De fato, a mudança de assunto veio em boa
hora, pois já havia me esquecido que estava
curioso sobre a conversa que a sebista e o livreiro
iriam tratar. Para mim, o grande temor estava em
desagradá-los.

***

Naquele fim de manhã, fiquei ocupado no


atendimento aos clientes presenciais e pelo
221
telefone. Foi o dia de pedidos de livros
universitários e autoajuda. Do outro lado da linha,
uma senhorita pedia para reservar o mais novo livro
do Dr. Augusto Cury. Mas, o que me proporcionou
muitas risadas foi um pedido, dessa vez feito
pessoalmente, de um senhorzinho de seus setenta
e poucos anos que queria uma obra que o ajudasse
a conquistar uma donzela.
– Meu jovem, vocês não teriam por aí algum
livro que falasse de, sei lá, conquistar
amorosamente pessoas mais novas? Digo, como
ser feliz novamente no amor após os sessenta ou
setenta anos de idade?
Confesso que até tentei, mas não resisti. As
gargalhadas foram imediatas. Seu inusitado pedido
e sinceridade plena me fizeram sentir vontade de
viver por mais cem anos, pois o vovô esbanjava
uma saúde física e mental invejável.
O melhor ainda foi que ele nem se
incomodou com isso. Mesmo sendo informado que
não tínhamos na loja nenhum livro que tratasse do
assunto, lançou-me outra pergunta, porém, mais
picante.
222
– Nem livros ou revistas com aquelas
fotografias para adultos?
Com isso, entrei na sintonia e lhe disse que
infelizmente não trabalhávamos com esse tipo
específico de material. Mas, consegui deixá-lo feliz
por indicar o mapa da mina.
Depois que saiu, pus-me a rir sozinho, o que
provocou muita curiosidade em Gilberto. Quando
vinha ao meu encontro, fomos surpreendidos pela
saída de Marisa do escritório que pedia numa voz
suave minha presença à sala do pai.
Minha cara de risos subitamente se
transformou em agonia e um frio na barriga
acompanhada de uma queda de pressão
evidenciou a palidez no meu rosto. Olhei para as
horas e confirmei minha ida em um instante. Ela
retornou para dentro e fechou a porta.
Gilberto passou por mim e se colocou ao
meu lado, de frente ao computador, como se
estivéssemos resolvendo algo pela tela do sistema.
Na verdade, queria, além de me render no balcão
enquanto eu resolvia a situação com o livreiro,
desejar-me boa sorte.
223
Um sentimento de culpa me veio à mente.
Talvez por eu achar ter provocado toda aquela
celeuma. Mas, ao fechar a porta e olhar para os
dois percebi que eu estava enganado. A maldita
preocupação crônica tinha me consumido por
dentro e esgotada minha autoestima.
– Meu querido Fernando, sente-se por favor.
Suas palavras serenas soaram como injeção
de ânimo para minhas veias em estado de morte.
Coloquei-me de frente ao mestre e ao lado da
primogênita.
– Estive por um bom tempo ao telefone com
nossa amiga Lourdes.
Minha ansiedade não combinava com sua
quietude. Como falava pausadamente por causa do
acidente vascular, mirei sua íris como se pudesse
decifrar suas próximas palavras. Tenho certeza de
que nem cheguei a respirar durante aqueles
segundos.
– Então, percebe que estávamos falando de
você, né? – respondi com um sim mexendo a
cabeça.
– Nós não queremos te perder. Por nossas
224
experiências profissionais e de vida, Deus nos deu
a graça de reconhecer o dom natural das pessoas
que tem boa índole e que são apaixonadas pelo
universo dos livros. Foi o fato de observar seu
comportamento, suas atitudes e falas que nos fez
competir para ter você em nosso time. Lourdes
havia me dito dos projetos que você criou para loja
dela. Desde ideias de marketing até a organização
do acervo físico e eletrônico me surpreenderam! –
Nesse momento, enchi os olhos de lágrimas e
continuei calado.
– Ficamos nessa parte da manhã buscando
alguma solução para que todos pudessem ganhar e
saírem felizes. Claro que foi ela quem primeiro
enxergou tudo isso em você. Ela poderia ter ficado
calada, mas me parece que não estava ainda com
a ideia de lhe contratar.
Não sei se eles ouviram, mas meu coração
batia forte e acelerado com aquelas palavras. Olhei
por um instante para Marisa que retribuiu com um
breve sorriso aparentemente carinhoso.
– Sr. Francisco, não sou tudo isso que vocês
pensam.
225
– Se não é, está perto de ser. Sabemos que
tem grande potencial e que alçará voos ainda
maiores que esse que iremos te oferecer neste
momento.
A sonoridade da palavra oferecer me fez
alertar por algo que viria a seguir e que poderia me
deixar ainda mais aflito.
– Bem, costumo tomar decisões em conjunto
com minhas filhas, que são também proprietárias
desta livraria que herdei de meu pai. Com seu
falecimento, vislumbrei nossa ida para Aracaju, pois
em Salvador o seguimento não andava bem e por
aqui começava a florescer. Então, voltando ao
assunto, depois que conversei com Lourdes,
fizemos, eu e Marisa, uma breve reunião ao
telefone com Juliana que por motivos de trabalhos
da faculdade não pode estar presente.
Quando iria dar continuidade à sua fala,
fomos interrompidos por três batidas na porta e a
entrada de Gilberto que, envergonhado, pedia
desculpas e avisava que Dona Lourdes aguardava
lá fora.
Pareceu-me que nenhum de nós imaginava
226
aquela visita inesperada. Sr. Francisco, incrédulo,
franziu a testa e pediu que a trouxesse para dentro.
– Boa tarde, meus queridos!
A sebista mostrou primeiro seu rosto na
porta e depois de alguns segundos adentrou ao
escritório com um belo sorriso digno de uma
experiente vendedora carismática.
Depois que me deu um beijo na cabeça, dois
outros na face de Marisa e um abraço no velho
amigo, sentou-se do meu lado conforme convite do
livreiro. Gilberto, com uma cara de quem não
estava entendendo nada, pediu licença, fechou a
porta e retornou ao trabalho.
– Minha querida Lourdes, penso que sua
vinda foi para poder ver com seus próprios olhos o
que iremos neste momento anunciar ao jovem e
futuro livreiro de Aracaju. Não foi?
– Sim. Estava na loja com muita vontade de
vir e por isso não pensei duas vezes, fechei o sebo
e coloquei um aviso que retornaria às quatorze
horas. Queria poder estar junto do Fernando para
lhe dar todo apoio e aprovação de sua oferta que,
tenho certeza, será a mais acertada de todas entre
227
nós todos.
Confesso que fiquei assustado com aquelas
palavras todas e minha mente não tinha mais
energia para imaginar alguma coisa nova. Olhei
para os três e fiquei apenas aguardando os
próximos anunciados.
– Fernando, realmente convidei Lourdes
para vir aqui minutos atrás. Porém ela disse que
não poderia, pois não tinha quem ficasse na loja.
Então disse que comunicaria a você o que
acordamos e que depois falaria pra ela sua
decisão. Mas, parece-me que não aguentou de
tanta ansiedade! – Os três entraram em
gargalhada, mas eu continuei assustado e com um
sorriso amarelo.
– Calma, Fernando! Pai, diga logo, chega de
tanto suspense! – reclamou Marisa.
Nesse momento, todos olharam para mim
com expressão de euforia enquanto Sr. Francisco
iniciava a sentença sobre meu destino.

228
CAPÍTULO VI

Gilberto levou um susto quando ouviu as


longas palmas que vinham do escritório. Não
aguentou e, sem autorização, entrou sem bater e
foi logo perguntando se estava tudo bem.
O livreiro nem ligou para a sua ousadia e
pediu para que pegasse na dispensa cinco copos
porque, na sacola, Dona Lourdes trazia um
champanhe como se já soubesse que eu iria aceitar
a proposta.
– Eu vou pegar, mas pelo amor Deus, me
falem o que iremos comemorar?
– Na volta eu falo. Agora corra! – disse o
livreiro bem animado.
Sua curiosidade foi tão grande que ao
retornar com os copos avistou de longe um cliente
e, aumentando a voz, pediu que aguardasse um
instante que iria atendê-lo.
– Nada disso. Deixe aqui os copos e vá lá
atender nosso cliente! – falou Marisa.
Sua tristeza me deixou compadecido. Então
229
pedi para que não perdesse a calma e a atenção.
Ajudei Dona Lourdes a abrir a garrafa, encher os
copos e servir a todos. Mas, insisti que só fizessem
o brinde depois de sua chegada. Enquanto isso,
ficamos observando o calendário da parede para
ver o melhor dia para nossa viagem.
Para azar de Gilberto, o cliente achou o que
desejava e pediu que embrulhasse para presente.
Com isso, meu colega ainda teve que realizar a
venda no sistema e finalizar dando a via do recibo
que saiu da maquineta do cartão.
– Pensei que não voltaria mais! – brincou
Marisa.
– Agora podemos comemorar as três
decisões – disse Dona Lourdes.
– Três decisões? – Gilberto, já com seu copo
em mãos, indagou com perplexidade.
– Então, três brindes! O primeiro, pela
celebração de contrato entre a Livraria Cultural e o
Sebo Corujão de aquisição mútua de cinquenta por
cento das ações de ambas as lojas. O segundo,
pela abertura da distribuidora de livros Rezende em
Salvador por Marisa. E o terceiro, pelo aceite de
230
Fernando em ser o gerente de vendas da livraria e
do sebo.
– Nossa, que maravilha! – comentou Gilberto
ainda espantado.
Depois do gole de champanhe, perguntou a
todos como ficariam, na prática, suas atribuições e
de que forma eu iria desempenhar minhas funções
como gerente das duas lojas.
Antes que eu pensasse nas respostas,
Marisa se adiantou e disse que deixaria para ele a
escolha entre continuar no atendimento aos clientes
ou ser estoquista e caixa dividindo essas duas
funções com a Juliana. Disse ainda que ela e seu
pai retornariam para Salvador e que viriam visitá-los
mensalmente. Quanto a mim dividiria os dois turnos
entre os comércios. Aconselhei Dona Lourdes a
não abrir a loja pela noite, pois pela minha
pesquisa, ficou evidente que a procura era pouca e
o perigo de assaltos era grande. Depois de
algumas insistências, ela foi convencida pelos
demais a seguir o conselho.
Ao final da conversa, Sr. Francisco informou
à Dona Lourdes que até sexta-feira os dois iriam se
231
encontrar com seu contador para acertarem os
acordos firmados.
Após a saída de Gilberto, pedi um momento
de atenção aos meus três patrões e perguntei se
realmente era aquilo que queriam, pois não
desejaria atrapalhar seus planos. Em resposta, ouvi
de Sr. Francisco que foi bom para todas as partes e
que nos negócios essas transações são normais.
– Fernando, esteja certo de uma coisa, sou
homem de comércio desde pequeno e Dona
Lourdes da mesma forma. Sabemos o que estamos
fazendo e você apareceu na hora certa para nos
juntarmos pela sobrevivência dos dois
empreendimentos que somaram forças com a
distribuidora de livros e servirá ainda de
intermediário para os negócios. Por isso, quero te
levar pra Salvador para participar, aprender com o
nascimento da empresa e conhecer pessoas da
área.
Com isso, minha imaginação voltou a
funcionar e me levou às diversas situações que
envolveriam visitar livrarias, sebos, feiras de livros e
cursos sobre vendas no ramo. Faltava apenas
232
comunicar as novidades à minha mãe e padrinhos.
Quando nos despedimos para o almoço, fui
convidado pela sebista para acompanhá-la. Mas,
ao ver o semblante um pouco desconsolado de
Gilberto, resolvi recusar seu convite e informar que
já havia marcado para almoçar com o colega.
Junto à estante de livros da área jurídica,
Gilberto tentava disfarçar sua tristeza que eu já
imaginava estar associada à minha promoção e ao
negócio bilateral formado pelos dois comerciantes.
– Potter, bora comer aqui? Vou comprar pra
nós dois.
– Pode ser, mas quanto vai custar?
– Hoje eu pago.
– Acabou de virar gerente e já está
esnobando, né?
Isso não havia passado pela minha cabeça.
Queria apenas motivá-lo e fazê-lo entender que
tudo poderia mudar de uma hora para outra. Ele
precisava saber que haveria um momento certo
para sua vida e que a parte que dependesse dele, a
vida e a sorte não poderiam realizar. Paciência,
persistência, foco e fé deveriam caminhar juntos
233
com ele e que eu estaria ao seu lado para o que
precisasse. Dessa forma, após nosso almoço na
dispensa da livraria, falei tudo conforme tinha
combinado com meu coração e ao final recebi um
sincero abraço.
– Beto, certa vez li num livro a seguinte
citação de Robert Herrick...
– O quê? – perguntou Gilberto.
– “Mire o final e nunca pare para duvidar.”
– Nando, você me surpreende a cada dia.

***

Fechamos a livraria por quinze minutos.


Tempo suficiente para engolirmos a comida e
trocarmos ideais sobre nossas vidas. Retirei da lista
o perfil de invejoso registrado para ele. Afinal, quem
não sentiria o desejo de ser promovido no trabalho
e ainda mais em poucos meses de emprego?
Perguntei a ele que cargo iria preferir, se de
vendedor ou de estoquista e caixa. Sua resposta foi
taxativa.
– Não tenho dúvida. Continuarei como
234
vendedor, pois como você, também adoro livros.
Sinto necessidade de contato direto com eles.
Pegá-los, arrumá-los, lê-los, esclarecer dúvidas e
sugerir leituras.
– Potter, vou pedir ao Sr. Francisco para que
receba, além do auxílio alimentação, uma comissão
por venda efetuada.
– Cara, ficarei agradecido se conseguir isso
pra mim.
– Vou tentar. Agora, quero lhe falar como
gerente... – Gilberto olhou para mim e deu uma
breve risada.
Disse-lhe que estava com algumas ideias na
cabeça e queria muito sua ajuda para que
pudéssemos obter êxito. Ele comprou os desafios
propostos e ainda sugeriu outros ainda mais
sensacionais. Faltavam agora convencer os nossos
patrões.
Mas, antes disso, queria um momento a sós
para poder fazer duas coisas muito importantes:
ligar para minha mãe e padrinhos, pois tinha
certeza que ficariam orgulhosos de minha primeira
conquista profissional; e agradecer a Deus e ao
235
padre.
– Potter, vou rapidinho ali na igreja, volto já.
Estava tão ansioso que nem esperei sua
resposta. Fui apressadamente à igreja e me
dirigindo à secretaria, perguntei pelo padre. Soube
que estava realizando alguns trabalhos
administrativos. Aguardei no local e aproveitei para
ligar para casa.
Contei tudo e, ela me fez, como sempre,
repetir em detalhes. Depois falei que estava na
igreja, pois queria agradecer ao padre e a Deus
pela resposta tão rápida e satisfatória que tive. Ao
final, ela me disse que quando meus padrinhos
chegassem de Propriá, iria imediatamente falar da
novidade. Fechei os olhos e agradeci mais uma vez
a Deus.
– Moça, ele vai demorar? É que já estou no
horário do trabalho.
– Vou dar uma olhadinha. É que padre César
precisava despachar alguns documentos.
Minha súplica funcionou. De repente, o padre
veio ao meu encontro com aquele singelo sorriso
cativante. Deu-me um abraço e perguntou-me se
236
gostaria de entrar. Disse-lhe que a visita seria
rápida, pois já estava atrasado. Ele sentou-se ao
meu lado e ouviu todo meu testemunho.
– Glória a Deus e à Virgem Maria! Tá vendo
filho, quando agimos com fé, mesmo que demore, a
benção chega, às vezes até em dobro. Se possível,
continue com o Rosário. Vá em paz e que Nossa
Senhora lhe cubra com seu manto!
Literalmente, corri para livraria. Gilberto
pensou que eu havia demorado porque teria
decidido me confessar contando ao padre minhas
peripécias do nascimento aos dezoito anos de
idade.

237
CAPÍTULO VII

Juliana já estava em sua sala. Quando me


viu, levantou-se e me deu um belo abraço. Já
sentia falta de seu cheiro que me deixou
anestesiado. Pelo jeito, seu capanga não vigiava
seus passos porque o encontro de nossos corpos
foi um pouco exagerado da parte dela. Claro que eu
aproveitei, pois continuávamos abraçados enquanto
falava.
– Fernando, estou muito feliz por ter aceito a
nova e definitiva proposta de papai e Dona
Lourdes. Agora será nosso gerente de vendas.
Desejo sucesso na nova carreira e que possamos
continuar a crescer nos negócios!
Com a anestesia, pensei ter ouvido de seus
doces lábios que desejava que continuássemos
juntos. Infelizmente, desgrudou-se de meu corpo e
continuou a falar sobre as expectativas de
crescimento das vendas.
Falei-lhe que estava na dúvida entre fazer
um curso técnico de vendas e a graduação em
238
biblioteconomia, este último, disse que era
sugestão de Gilberto. Sem pestanejar, disse-me
que seria ótimo fazer os dois cursos, pois unia o útil
ao agradável.
– Nesse caso, vai me faltar tempo. A menos
que eu deixe de dormir para estudar – falei
sorrindo.
– Claro que não! Tenho duas soluções pra
você. Faça biblioteconomia à noite e o curso
técnico de vendas no fim de semana ou a distância.
Lembrei-a que Gilberto havia falado que a
universidade estava ofertando o curso de
biblioteconomia também a distância. Bastaria
apenas que me inscrevesse até domingo para não
perder a oportunidade.
– Perfeito, Fernando. Faça isso!
A estudante de administração de dezenove
aninhos, apenas um ano mais velha que eu, havia
conquistado meu coração não só pelo cheiro de
sua pele, mas seu jeito de menina, forma de tratar
as pessoas e sua aparente alegria, que juro estar
disfarçada por aquele cara.
Saí da sala e fui ajudar Gilberto nos
239
atendimentos. O turno da tarde foi bem agitado,
nem tive tempo de conversar com Sr. Francisco
sobre minhas ideias com o colega quase
bibliotecário, tão pouco oportunidade de fazer os
pedidos em nome dele. Parecia que a clientela
tinha marcado encontro naquele dia e horário.
Melhor momento impossível para realizar o
cadastro da maioria com o cartão fidelidade.
– Gostamos muito dessa novidade.
Parabéns à loja pela grande iniciativa cultural! –
elogiou uma jovem universitária de pedagogia que
resolveu compartilhar o post da livraria no
Facebook.
Minha maior vontade era passar aquela tarde
na sala com Juliana. Se não fosse toda aquela
agitação, planejava me colocar à disposição para
ajudá-la no cadastro dos livros no sistema.

***

O dia escureceu e ventos fortes levaram os


clientes e todo lixo da praça para a porta da loja. Do
lado de dentro e de fora, parecia fim de festa. Livros
240
espalhados por toda parte e sujidade da calçada à
porta de vidro fizeram com que o trabalho fosse
dividido entre Gilberto e eu.
Com pá, vassoura e saco de lixo em mãos,
iniciei a tarefa que havia escolhido. Marisa havia
desaprovado com o olhar a atitude de limpar a
calçada afirmando que, faltando poucos minutos
para encerrar o expediente, era melhor deixar para
a faxineira da manhã.
Por outro lado, Gilberto era só elogios por
minha atitude e ainda disse que todo gerente que
se preze pega no batente sem medo se sujar o
corpo. Sr. Francisco, ao se despedir de mim da
calçada, falou para Juliana que não queria mais ver
seu gerente fazendo esse tipo de trabalho.
– Fernando, por favor, quero que gaste suas
energias com trabalho intelectual. Pense sempre
em estratégias para aumentar nossas vendas.
– Sr. Francisco, não vejo problema em poder
ajudar quando puder. Somos poucos e não pega
bem para a imagem do estabelecimento deixar sua
porta desse jeito aqui.
Não imaginava falar daquele jeito, mas
241
parece que o livreiro compreendeu minha intenção.
Desejei boa noite aos Rezende e continuei o
trabalho. As meninas retribuíram e depois saíram
abraçadas com o pai até a esquina da Rua Santa
Luzia.
– Meu gerente, se eu soubesse que você iria
receber uma bronca, eu faria a limpeza por você.
– Fique tranquilo, Beto. Tenho certeza de
que agi corretamente. Agora vamos guardar tudo,
desligar as coisas, fechar as portas e ir embora,
pois acho que daqui a pouco vai chover.

***

Em casa, pude tomar um belo banho e


saborear a sopa que só Dona Iraê e Dona
Francisca sabiam fazer. Fui paparicado pelas duas
por algumas horas, enquanto Sr. Ladislau me
contava dos problemas que passaram com o
Corcel, tanto na ida quanto na volta do enterro.
– Acho que passou da hora de trocar esse
carro. Não dá mais pra viajar com ele. Na ida foi
problema com a marcha e na volta com
242
aquecimento do motor. Fora que tive que
improvisar umas cordas para poder fazer funcionar
manualmente o limpador do para-brisa. Eu puxava
de um lado e minha veia puxava do outro.
– Mas padrinho, ele é seu xodó!
– De velho já basta minha idade. Vou ver
com Roberto que entende bem de carros quanto
pagariam por ele e então dou entrada em um mais
novo.
– Acho que o senhor só conseguirá vender
bem se for para colecionadores.
Logo após o jantar e saída de meus
padrinhos, peguei o livro de Aníbal Bragança e
continuei a leitura a partir do capítulo cujo título
coincidentemente dava nome ao livro: Livraria ideal.

243
CAPÍTULO VIII

A semana passou depressa e até a sexta-


feira só pensava em três coisas, talvez quatro:
concluir a leitura do livro, convencer agora não só
Sr. Francisco, mas também Dona Lourdes a
melhorar os proventos de Gilberto, comprar
algumas roupas para a viagem a Salvador e
descobrir algum fato da vida do namorado de
Juliana que pudesse me ajudar a conquistá-la.
Claro que esse último desejo viria do anjinho mau
que vivia martelando minha cabeça enquanto eu
repreendia tal pensamento.
Após a assinatura dos contratos entre o
livreiro e a sebista no escritório do contador,
agendamos a primeira reunião geral com todos,
quatro patrões e dois empregados, para o sábado
após o expediente.
A determinação era de fechar as duas lojas
ao meio dia e que as novas diretrizes, metas,
objetivos e ações seriam fixadas na reunião que
ocorreria na residência de Sr. Francisco após o
244
almoço oferecido pelo anfitrião.
Desse modo, fechamos a livraria e partimos
em dois carros. Um comigo, Dona Lourdes e
Marisa, ao volante e o outro com Gilberto, Sr.
Francisco e Juliana, como motorista.
No trajeto até sua casa, nem Marisa e nem
Dona Lourdes comentaram algo relacionado ao
passado entre o livreiro, a sebista, sua sobrinha-
filha e a mãe das meninas. O momento era de
trilhar novos caminhos e de vislumbrar um futuro
melhor para os velhos e novos negócios.
De sexta-feira para sábado, os dois
experientes comerciantes lançaram um desafio que
envolvia levar para a reunião ideias, metas,
objetivos e ações que iriam ser discutidas e votadas
por todos. Só não caberia votar em suas próprias
iniciativas. No desafio, os criadores das três
melhores ideias, excluindo o livreiro e a sebista,
ganhariam um prêmio que, por suspense, seria
anunciado somente após a votação.
Foi um prato cheio para que Gilberto e eu
colocássemos no papel as ideias já pensadas por
nós dois dias atrás. Ainda na sexta-feira à noite, o
245
colega me convidou para sua casa que ficava a
poucos metros da livraria e iniciamos o trabalho de
escrita. Claro que, como não poderíamos
apresentar as mesmas ideias, resolvemos
individualmente distribui-las nos quadros como se
fossem propostas de cada um.
A casa dos Rezende ocupava metade de um
quarteirão. Situada à Rua Monsenhor Edgar Brito,
bairro Coroa do Meio, ao lado do Clube de
Engenharia de Sergipe e a três quadras da Avenida
Santos Dumont onde se podia chegar à admirável
Orla da Atalaia com seus hotéis, bares e
restaurantes de gastronomia regional.
Fiquei tão vislumbrado que sem querer
sussurrei um “nossa, que linda!”. Dona Lourdes,
que tinha ouvido de tuberculoso, disse que parecia
um castelo. Marisa, lisonjeada, agradeceu e falou
que foi projetada pelo pai que sempre admirou
casas enormes com jardins e quintais com gramas,
flores e árvores frutíferas.
Da porta da garagem, ela acionou o portão
eletrônico e, ao adentrar, avistamos o Honda Civic
preto de Sr. Francisco. Do lado esquerdo havia um
246
jardim com gramas verdinhas e piscina, e do outro
lado a casa de dois pavimentos e varanda com
janelas de vidros verdes temperados por todos os
lados. Ao fundo, Marisa nos mostrou a mangabeira,
o cajueiro, o mamoeiro, dois coqueiros e a
mangueira que na parte da tarde fazia sombra do
lado dos quartos. Toda a propriedade era bem
guardada com muros altos e cerca elétrica.
– Sejam todos bem-vindos à nossa casa! –
exclamou o anfitrião.
Para minha felicidade, não percebi a
presença do malhadão. Provavelmente, já tinha ido
embora para Salvador. Pensei que estivesse de
férias ou que viria, infelizmente, morar por aqui.
Pedi a Deus que tirassem essas maluquices de
minha cabeça. Mas, em resposta, fui surpreendido
pela pergunta de Dona Lourdes dirigida à Juliana
sobre o namorado.
– Ele não pôde ficar. É policial, trabalha em
escala de plantão. Ainda por cima, faz faculdade.
Sonha em ser juiz de direito!
Suas palavras soaram como um tiro de
canhão sobre meu coração, levando-o ao seu
247
dilaceramento. Como poderia competir com um
cara que, além de galã, era policial e bem instruído
nos estudos?
– Gente, vamos almoçar, pois a fome não
espera e ainda temos muito o que fazer – convidou
o chefe.
O banquete elaborado pelas suas duas
cozinheiras era digno de um rei. Entre saladas e
grelhados de carne bovina, frango e peixe, havia
uma moqueca de camarão que Gilberto, com cara
de assustado, acreditou estar sonhando.
Indiscretamente, sussurrou ao meio ouvido dizendo
que comeria tanto, mas tanto até ficar triste.
Durante o almoço, a conversa girava em
torno dos próximos eventos literários do país, em
especial, da capital baiana. A Bienal Internacional
do Livro do Rio, a Bienal Internacional do Livro de
São Paulo, a Festa Literária Internacional de Paraty
e a Bienal do Livro da Bahia foram destacadas por
Sr. Francisco como suas prediletas.
– A da Bahia foi a única que participei como
fornecedor. Nossa livraria tinha um stand grande e
diferenciado, graças às excelentes parcerias que
248
buscamos. Trouxemos autores e obras que
representavam o nordeste brasileiro. Além de
cordelistas, repentistas e dançarinos de uma
quadrilha junina daqui de Sergipe. Foi um grande
sucesso!
Meu patrão falava com tanto entusiasmo que
seus olhos brilhavam como os de uma criança que
desejava um brinquedo. Sua alma respirava livros.
Isso contagiou a todos naquela mesa.
Dona Lourdes comentou que em minha ida a
Salvador, não poderia deixar de visitar os sebos da
capital. Disse que conhecia como ninguém os seis
de mais destaque da região. Dentre eles, o do
saudoso Capitão Brás, amigo pessoal dos dois.
Fato confirmado por Sr. Francisco que acrescentou
dizendo que não havia no país indivíduo mais
conhecido, mais culto e de obras literárias mais
raras do que as dele.
– Fernando, seu estabelecimento possui três
pavimentos com cerca de oitocentas mil obras.
Com certeza iremos visitá-lo – disse-me o patrão.
Após as deliciosas sobremesas caseiras
que, orgulhosamente Marisa lembrava terem sido
249
feitas com as mangabas, mamões e cajus do
plantio de casa, fomos finalmente convocados para
a reunião na biblioteca particular do chefe.
Tudo na casa foi bem planejado, explicava
Juliana. As decorações dos ambientes foram ideias
das meninas, menos a da biblioteca que,
evidentemente, teve o gosto e tom rústico do
patriarca.
Cercada por estantes, cujo design lembrava
o da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, Sr.
Francisco comentou também que a madeira era a
mesma, mogno, utilizada por nossa livraria. O piso
era todo revestido por um tapete. Do lado oposto à
porta, havia uma grande mesa de escritório e ao
centro da sala uma mesa comprida com oito
cadeiras utilizada, provavelmente, para suas
reuniões.
– Sentem-se. Vamos iniciar os trabalhos.
Juliana, por favor, peça pra Judite trazer café.
– Francisco. Seria importante começarmos
com um breve histórico das duas lojas até a
celebração de nosso contrato para depois irmos
direto ao planejamento para este semestre.
250
– Sim, Lourdes. Como o sebo Corujão é
mais antigo que a livraria Cultural, sugiro iniciarmos
pela senhora.
Após quase uma hora do que chamaram de
breve histórico das lojas e da definição de Gilberto
no cargo de atendente, Marisa apresentou um
esboço do que viria a ser nosso planejamento para
o resto do ano.
– Bem, as administrações dos três
empreendimentos ficarão assim: meu pai com a
livraria, Dona Lourdes com o sebo e eu com a
distribuidora em Salvador até Juliana terminar sua
faculdade aqui e trocar comigo.
Por essa eu não esperava. Com certeza,
Juliana pediu para ser administradora em Salvador
por causa do soldadinho. Seu batalhão deveria
mandá-lo para Sergipe, desse jeito ela ficaria por
aqui. Enquanto eu arquitetava em meus
pensamentos, Marisa continuava a falar.
– Funcionaremos das oito às dezoito horas
nos três negócios. As equipes serão formadas por
pai, Juliana, Fernando, Gilberto e Maria da limpeza
na livraria. Dona Lourdes e Fernando no sebo. Eu e
251
a prima Lorena, como secretária na distribuidora.
Logo após, iniciamos a discussão sobre as
ideias, metas, objetivos e ações. Propositadamente,
Sr. Francisco pediu que eu e Gilberto fizéssemos
nossas apresentações. Sem interrupções, expomos
tudo aquilo que havíamos planejado e, enquanto
falávamos, observamos a troca de olhares e
sorrisos breves que sinalizavam como boas as
propostas.
Além do desenvolvimento do site para os
três empreendimentos com possibilidade de vendas
online, elencamos a necessidade de exposições
itinerantes nas escolas privadas e faculdades,
participação na forma de stands em eventos
literários nacionais e regionais, e os encontros às
sextas-feiras com autores e leitores convidados,
mesclando entre escritores regionais e nacionais,
regados a uma boa música acústica num espaço
para café que devemos criar. Ofertar em parceria
com eles, cursos e concursos para escritores e
contadores de histórias. Sem contar com o espaço
reservado ao público infantil.
O objetivo era trazer todas as tribos para a
252
livraria e sebo, com intuito de torná-las um espaço
atrativo para cultura e entretenimento. Nossa meta
era de atingir a marca de mil clientes cadastrados
no cartão fidelidade para ambas as lojas e que se
estendesse à premiação da viagem para o sebo.
Além de aumentar em 50% as vendas até final do
ano, deveríamos ampliar também em 50% as
parcerias com as distribuidoras locais e nacionais.
Foi a vez de Marisa e Juliana exporem suas
propostas. As metas eram menos generosas que
as nossas. Não incluíam as construções de
espaços internos para café e cantinho infantil,
apenas reforma na fachada das lojas e substituição
de móveis e equipamentos. Mas de comum, havia a
ideia de participarmos de eventos nacionais e
regionais. Já de diferente, a oferta de entrega a
domicílio e sermos patrocinadores financeiros de
eventos acadêmicos e religiosos para
conquistarmos os públicos dos estudantes,
professores universitários e dos religiosos.
– Tá vendo, Francisco? Precisamos dessa
gente nova, cheias de inspiração para revolucionar
o mercado – comentou Dona Lourdes.
253
– Bem, algumas propostas são viáveis, pois
não demandariam altos investimentos. Talvez,
analisando com mais cuidado, poderíamos ver a
possibilidade de se colocar o café ou o espaço
infantil. Mas, todos estão de parabéns!
Ao final de tudo, Sr. Francisco, depois de
colher os votos, anunciou como ganhadores
Gilberto e eu. Não sei se foi combinado entre eles,
mas ganhamos 90% deles. Como prêmio, cada um
recebeu duzentos reais em dinheiro. Surpresa que
veio em boa hora, pois não sabia ainda como
comprar as roupas necessárias para a viagem.

254
CAPÍTULO IX

Fiquei o resto do sábado ocupado na


atenção à minha mãe, nos afazeres de casa e na
inscrição no vestibular. Já no domingo, após a
missa na colina, fui com padrinho e Roberto vender
o Corcel e dar entrada no carro novo que tanto
desejava.
Dona Fátima não acreditou quando saímos
para esse fim. Ficou triste por saber que iriam se
desfazer do primeiro automóvel comprado pelo
casal, pois dizia já ser um membro da família. Falou
que só aceitava se fosse da mesma cor, bege.
Roberto ficou sabendo por meio de um
amigo mecânico, que um colecionador de carros
antigos desejava comprar o Corcel. Na negociação,
Sr. Ladislau se exaltou com o pretenso comprador
quando quis depreciar seu veículo.
– Meu amigo, essa relíquia numa viu a cor
da praia, não sabe o que é ferrugem e nunca bateu.
Comprei zerinho, em 1982!
De fato, o zelo dado por meu padrinho era
255
algo exagerado. Desde quando se aposentou do
exército, vejo limpá-lo diariamente mesmo sabendo
que sai pouquíssimo com ele. Mesmo na garagem
coberta de casa, só vivia na capa. Os vizinhos
zombavam. Mas, dizia ele, que era para não pegar
resfriado.
– Dou dez mil nele!
– Mas, rapaz... ele é todo original. Mecânica
e chaparia perfeita. Só vendo por vinte!
Claro que havia consertado os problemas da
caixa de marcha, do aquecimento do motor e do
limpador de para-brisas. Além disso, o Ford Corcel
2 tinha um belo acabamento de luxo e seu motor
1.6 deixava os mais jovens de cabelo em pé. Até o
rádio era original e funcionava muito bem. Se eu
tivesse dinheiro não permitiria que vendesse. Mas,
quando ele colocava uma coisa na cabeça, não
tinha quem tirasse, nem por tortura.
A disputa só se encerrou quando passadas
quase duas horas, Roberto fingiu ligar para várias
pessoas que se diziam colecionadores e falar que
levaria o carro para o pessoal dar seus lances.
– Vamos fazer o seguinte, Sr. Ladislau. Nem
256
eu e nem o senhor. Fechamos em quatorze mil.
– Quinze e pronto! – antecipou-se Roberto.
– Fechado!
No táxi, em direção à concessionária para
compra do novo veículo, fiquei sabendo que os dois
haviam decidido que poderiam entregar por até
aquele valor. O colecionador tinha certeza que fez
um bom negócio.
– Tia, que momento vocês acertaram isso?
– Na hora que você subiu pra pegar o
celular. Lembra?
Realmente, na saída de casa, pedi para
voltarmos. Ainda bem que estávamos na esquina
de casa, em frente ao barracão cultural. Padrinho
deu a volta pelo barracão e fomos ao ponto de
partida. Infelizmente, mais um motivo para que
madrinha voltasse a encher os olhos de lágrimas.
Já estava começando a sentir ciúmes do Corcel.
Fechado o negócio, o vendedor da
concessionária nos deixou em casa, pois o carro só
seria entregue na segunda-feira. Não era bem o
que meu padrinho queria, mas, pelo menos,
continuava sendo bege.
257
Eu e Roberto achamos uma boa aquisição.
O Sedan popular da Ford tinha bancos de couro e
era completo. Apenas cinco anos de uso e com
garantia de seis meses para motor e chaparia.
Fiquei feliz por ver que madrinha havia aprovado a
compra e já tinha colocado na cabeça que seu
filhote teria crescido e trocado de roupa. Nada mal,
mudar de Corcel para Fiesta com rejuvenescimento
de trinta anos.

***

A noite chegou e com ela o cansaço. Mas,


ainda teria que planejar a semana que prometia ser
bem agitada. Fora isso, minha costumeira vontade
de ler um bom livro me encheu de ânimo para
concluir a Livraria ideal.
Na agenda, anotei que necessitava comprar
algumas roupas, pegar emprestada a mala com
Gilberto, cortar o cabelo e iniciar os estudos para o
vestibular. Já nos assuntos profissionais, escrevi
que precisava pedir aos patrões para melhorarem
os proventos de Gilberto, ver o curso de vendas e
258
ajudar Dona Lourdes a fazer o primeiro balaço geral
de estoque do sebo.
Durante a leitura, fui pego vagando entre
cenas do abraço caloroso com Juliana e as
conversas sobre sua possível ida para Salvador
após a formatura. Sabia que, de acordo com meus
cálculos, ainda faltavam onze meses, caso não
reprovasse em alguma disciplina.
Voltei para o penúltimo capítulo do livro e
reiniciei sua leitura contrapondo minha imaginação
fértil. Li dois parágrafos e depois o fechei, inspirei
profunda e longamente, apaguei as luzes e curti as
fantasias do coração. Será que Deus perdoaria um
jovem BV?2
Ela apareceu deslumbrante num vestido
branco e sapato alto combinando com as unhas
vermelhas. No pescoço, uma gargantilha de ouro
com um pingente no formato de um coração e
dentro as iniciais “J&F”. Seus cabelos negros
pareciam muito mais cacheados e a maquiagem
destacava com precisão seus lindos olhos escuros.
Veio em minha direção, enquanto eu, ao
2
Boca virgem.
259
telefone, atendia um cliente que, por sinal, tinha a
voz de Marcos. No início, ele pedia um livro, mas
depois, sua entonação e discurso mudaram com
alegações de que fui ousado em beijar sua
namorada. Não entendi o motivo de sua arrogância
e, enquanto vomitava ofensas, vi Juliana se
aproximar de mim até sentir seu corpo tocar o meu.
Sua respiração quente ao pé do ouvido me deixou
eriçado e seu beijo doce e molhado provocou
erupção em minha alma.
Desliguei o telefone com a mesma ligeireza
que minhas mãos percorreram suas costas, as
quais descobri nuas. O telefone não parava de
tocar. De um som baixo e distante, senti que foi
aumentando e se aproximando até me ver acordar
assustado do sonho interrompido por minha mãe
que insistia em falar.
– Fernando, atenda. Fernando, atenda!
– Poxa, mãe, tava dormindo.
– Acho que é importante.

260
CAPÍTULO X

Ainda com a vista embaçada, pude notar o


nome de Gilberto. Quando ia atender, vi que havia
desistido. Então, pensei em não retornar, mas ao
ver que registrava quatro chamadas não atendidas,
imaginei se tratar de assunto sério.
– Que foi, Beto, é quase meia noite e ligou
quatro vezes pra mim?
– Cara, desculpe o horário, queria saber se
conseguiu se inscrever no vestibular, pois finaliza
daqui a dez minutos!
– Bicho, quer me matar? Imaginei mil e uma
coisas.
– Então, vá dormir seu ingrato!
Imediatamente pedi desculpas. Acho que a
raiva era porque havia acordado de um sonho
maravilhoso. Claro que não disse isso para ele.
Então, resolvi amenizar dizendo também que tinha
colocado na agenda uma reunião pela manhã com
Sr. Francisco para tratarmos de seus proventos.
Com isso, o colega reconsiderou meu pedido, disse
261
que ficou feliz por minha decisão em se inscrever
no processo seletivo e que eu não iria me
arrepender do curso.
Voltei a deitar e fiquei por mais de meia hora
tentando retomar aqueles abraços e beijo molhado.
Minha mãe, percebendo que eu revirava na cama,
levantou-se e me serviu um chá de camomila
imaginando que eu estaria ansioso. Tomei sem
maiores explicações. Agradeci, pedi a benção, rezei
mentalmente e apaguei.

***

O dia raiou. Ao abrir a cortina, vi Sr. Ladislau


varrendo a porta de casa. Imaginei estar ansioso
para receber o carro. Olhei o relógio e apressei-me
para não perder a hora. Minha mãe já estava de pé.
O cheirinho de café coado e de cuscuz com
charque abriram ainda mais meu apetite.
– Benção, mãe!
– Deus lhe abençoe!
Tinha mais cheiro de comida na casa. Um
delicioso fígado estava sendo preparado para
262
minha marmita.
– Esqueci de avisar que não precisava fazer
meu almoço porque iria cortar o cabelo e comprar
algumas roupas para a viagem.
– Mas isso não o impede de comer!
– Sei, mas é que vou pegar a mala na casa
de Gilberto e ele me convidou pra almoçar lá.
Não sei por que, mas ela não gostava que eu
almoçasse na casa dos outros. Por isso, tentei não
detalhar os fatos. Mas, não teve jeito.
Depois de tudo, desci correndo enquanto
ligava para Roberto. Se tivesse sorte pegaria meu
amigo ainda no ponto dos motoboys. Ao fechar o
portão de baixo, ainda ouvi minha mãe perguntar se
eu tinha escovado os dentes e colocado perfume.
Havia me esquecido que ela sempre fazia essas
perguntas.
– Claro, mãe!
Sr. Ladislau ainda estava na porta. Dessa
vez, lixando as grades do portão de casa. Perguntei
se estava ansioso para receber seu mais novo
filhote.
– Nem dormi essa noite. Tô contando os
263
minutos para ir à concessionária.
– Já imaginava isso, padrinho.
Roberto não me atendeu. Provavelmente,
estava pilotando seu cavalo mecânico. No ponto,
descobri que havia pegado um cliente, então fui
com um colega dele.

***

A segunda-feira estava diferente. Agitada. O


motoboy me avisou que era volta às aulas. O
engarrafamento e pressa dos motoristas eram
expressivos. Fomos pelo caminho do mercado.
Passamos pela rua da frente e dobramos a Praça
Fausto Cardoso, onde uma manifestação estava
prestes a acontecer. Tinham sindicalistas, carros de
som e muitas faixas.
– Os professores farão greve. Reclamam dos
baixos salários e condições lamentáveis de
trabalho.
– Justíssimo! – respondi ao motoboy.
Ao chegar à livraria, encontrei Gilberto
agachado para abrir a porta de enrolar. Perguntou-
264
me se havia recebido algum telefonema de Dona
Maria, pois ela não havia chegado até o momento
para a limpeza.
– Mas não foi me passado nenhum contato
dela.
– Penso que você, como gerente, deveria tê-
lo.
De fato, precisava ficar mais esperto quanto
às tarefas administrativas. Pois, na ausência dos
patrões eu sou o responsável direto. Limpeza do
estabelecimento comercial não é venda, mas
contribui para ela.
Prontifiquei-me em ligar para Marisa que,
depois de outro telefonema, me passou o contato.
Foi quando soubemos que a funcionária iria se
atrasar por causa também da greve dos
rodoviários. Tive então a ideia de pedir para
Roberto pegá-la na parada do ônibus, ações que
me rendeu uma condecoração por celeridade dada
por Gilberto.
Dona Maria nos relatou que a greve tinha
sido anunciada, mas ninguém acreditava que iria
ocorrer porque o líder do movimento anunciou na
265
rádio que estavam negociando com o Poder
Público e empresários. Mas, depois que souberam
que seus salários não seriam depositados,
resolveram protestar e retornaram para as
garagens.

***

Na praça, a uma quadra da livraria, os


manifestantes do sindicato dos professores
começavam a esbravejar palavras de ordem. Os
boatos das ruas alertavam sobre necessidade de
fechamento das lojas para prevenir possíveis
problemas de ordem pública.
A essa altura, os Rezende tinham chegado e
a ordem dada era de permanecer com o
estabelecimento aberto. Sr. Francisco disse que iria
ficar na porta observando o movimento. Claro que
fiquei ao seu lado.
Enquanto esperávamos, fiquei admirando a
livraria de fora para dentro. Procurei observar cada
detalhe de sua estrutura física. A floresta de livros
me deixava fascinado. Meus pensamentos me
266
levaram a imaginar-me como um cliente, desejoso
de ler um bom livro, mas não sabia qual. Foi
quando tive uma ideia e dialoguei com minha
mente.
– Quero ler algo novo, mas não sei o quê.
Bem, pra me chamar atenção, precisaria de tempo
para ver a sinopse dos livros. Mas se não tivesse
tempo poderia ver apenas as indicações de leitura
de pessoas que leram e gostaram do livro. Bingo!
Já sei o que fazer! E se leitores indicassem leituras
de nossos livros? Bastaria deixar que escrevessem
algo num papel que seria fixado junto com o livro.
Em troca da boa ação, o cliente leitor ganharia
algum tipo de brinde em nossa loja.
De volta ao mundo real, repliquei a ideia com
Sr. Ladislau que, com espanto, me disse que seria
uma ótima forma de atrair leitores e assim
aumentar os lucros. Pena que as vendas, naquele
momento, poderiam ser prejudicadas pelos
acontecimentos sociais do dia.
Com as duas greves, o movimento no
comércio até aquele horário tinha diminuído
satisfatoriamente. Fiquei um pouco preocupado
267
com toda aquela situação, principalmente pelo fato
de que outros boatos diziam que as greves
poderiam provocar efeito cascata e outras
categorias poderiam aderir aos movimentos
grevistas. Sabia que para o comércio isso não era
nada bom.
Após quase duas horas parados em frente à
Assembleia Legislativa, os grevistas iniciaram sua
passeata. Vimos passarem pela porta da livraria de
forma ordeira e muito educada. Alguns acenavam e
outros conhecidos cumprimentavam Sr. Francisco
que dizia se tratar de uma manifestação digna e
justa, pois não concordava com as mazelas e
sucateamento da educação pública que por anos
foi deixada de lado pelos poderes constituídos.
De volta à labuta do meu mundo, fui
chamado pelo livreiro para uma pequena reunião
de trabalho. Na pauta, nossa viagem a Salvador e
encontro ainda em Aracaju com um grupo de
empresários do ramo de distribuição de revistas
para firmarmos parcerias.
Com Gilberto na retaguarda, fui ao escritório.
Sr. Francisco pediu que Juliana me entregasse uma
268
pasta sanfonada cheia de documentos. Nela, havia
quatro compartimentos ordenados por assunto: lista
dos fornecedores, lista dos clientes, estoque,
relatório analítico de vendas, balanço patrimonial e
projetos.
O patrão pediu que eu me apropriasse de
todas as situações da livraria e que não hesitasse
em fazer perguntas, pois um bom gerente precisava
conhecer bem seus negócios para poder prever
situações futuras e agir no presente de forma
planejada, com prudência e firmeza.
Aquele início de conversa estava me
deixando nervoso. Como sou muito ansioso, pensei
um monte de besteiras, menos em questionar por
que precisaria ter conhecimento sobre o balanço
patrimonial da empresa. Sabia por alto que esse
documento contábil descreve toda movimentação e
informações financeiras da empresa. Não queria
saber sobre bens, dinheiro em caixa,
financiamentos, empréstimos, ações ou coisas
parecidas. Queria apenas saber colocar os livros
certos para os leitores certos. Além de saber atraí-
los para a loja de forma a relacionar uma boa leitura
269
à nossa livraria.
Enquanto passava a vista sobre os
compartimentos da pasta, Sr. Francisco foi
sonorizando boa música para meus ouvidos, isto é,
engrossando o mingau do meu ego. Disse que eu
tinha não só boas ideias, mas também uma boa
índole. Pediu que eu continuasse inspirador. A
minha paixão pelos livros refletia em seus olhos e o
fazia se sentir vivo, com vontade de se doar ainda
mais à mesma paixão. Suas palavras estavam me
deixando ainda mais inquieto e acanhado. Finalizou
afirmando que gostava e confiava em mim.
A pausa na sua fala foi combustível para que
eu criasse coragem em perguntar de forma sutil se
eles haviam esquecidos documentos contábeis
dentro da pasta. Juliana se antecipou ao pai e
afirmou que não teria sido equívoco, mas que
também esses documentos deveriam ser
conhecidos por mim. Marisa repetiu enfaticamente
que, além deles, apenas eu e Dona Lourdes
teríamos acesso a todas essas informações.
Queria fazer outra pergunta, porém a
coragem já tinha ido embora. Sobrou-me descontar
270
na consciência.
– Mas, mesmo assim, por que cabrunco eu
deveria saber da vida financeira da livraria? Pois,
direta ou indiretamente também ficaria sabendo um
pouco da vida financeira dos Rezende.
Meu silêncio foi entendido como informação
compreendida. Com isso, Sr. Francisco partiu para
a segunda pauta da reunião. A reunião com o grupo
de empresários do ramo de distribuição de revistas
foi agendada para quinta-feira, véspera de nossa
viagem. Os Rezende estavam animados com essa
nova possibilidade de negócio. Iríamos também
funcionar como revistaria e jornaleiro.
No entanto, ficaria de fora qualquer tipo de
comercialização de revistas de apelação sexual.
Sabiam que seria mais um atrativo para o
empreendimento. Seguindo a tendência nacional,
um percentual considerável de leitores que
consumiam livros também lia jornais e revistas.
Gostei da ideia, mas sugeri que
acrescentássemos as revistas em quadrinhos e
mangás para o público teoricamente infantojuvenil.
Argumentei que além de mim, muitos dos amigos
271
de infância se alfabetizaram com os gibis. Liamos e
colecionávamos nossos personagens favoritos.
Pedi ainda que as prateleiras desses produtos
ficassem próximas aos dos livros da mesma faixa
etária. Sugestões que foram bem aceitas pelos
patrões.
Antes de seguirmos para a última pauta,
Gilberto pediu nossa atenção alegando que
precisava de uma pessoa para ajudar no
atendimento. O guerreiro estava atolado em
trabalho, pois além do caixa tinha o telefone e os
clientes presenciais que não eram muitos por causa
das manifestações de greve, mas impossível de
agradar quando a atenção não é dada. Como já
dizia Sr. Francisco, cliente satisfeito constrói outro,
mas cliente insatisfeito destrói dezoito.
Sabendo da máxima e seguindo os
princípios do bom atendimento, Marisa se ofereceu
a ajudar. Com isso, o livreiro pode continuar a
reunião e passou para mim o bilhete de ida da
passagem de ônibus.
Na minha mente, pensei que iríamos de
carro, mas ele disse que teria uma consulta com o
272
médico na sexta-feira pela manhã e que depois
faria uma sessão inadiável de fisioterapia. Desse
modo, planejou minha ida num horário em que, ao
chegar a Salvador, já estariam me esperando na
rodoviária. Em vez de hotel, ficaríamos hospedados
na casa do irmão, Sr. Antônio, comerciante de
tecidos na capital.
Depois de apresentar algumas curiosidades
da cultura baiana, Sr. Francisco mostrou nosso
roteiro de visitas às distribuidoras, livrarias, sebos e
a uma renomada feira literária internacional. Antes
iríamos, junto com Marisa, nos reunir com o
contador para assinar alguns documentos para
abertura da firma e visitar a sala comercial onde
funcionará nossa distribuidora.
Disse-lhe que estava contando os dias para
esses momentos de aprendizado e enriquecimento
cultural. Nunca imaginei que teria tantos
acontecimentos prazerosos em pouquíssimo tempo
de vida profissional.
– Fernando, é que Deus está contigo.
Agradeça, primeiramente a Ele, e nunca deixe de
ser grato às pessoas que, de uma forma ou de
273
outra, contribuíram para seu sucesso, quer seja na
vida profissional, quer na vida pessoal.
Dito isso, Sr. Francisco deu por encerrada a
reunião. No entanto, pedi um minuto de sua
atenção para lhe fazer aquela solicitação de
aumento salarial para Gilberto. Ele pensou um
pouco e falou que iria pensar no caso. Na saída,
ainda informei que iria realizar à tarde o primeiro
balanço geral de estoque do sebo. Para minha
surpresa, o livreiro deu uma olhadinha breve para
Juliana e depois me disse que eu não iria para o
sebo naquele dia.
– Fernando, ao final do expediente falaremos
sobre o sebo.
Não quis mais incomodá-lo, pois percebi que
estava de saída para resolver algo fora da loja.
Pegou sua pasta de couro, celular e perguntou à
Juliana se estava tudo certo para as onze horas.
Ela, meio acanhada, assentiu com a cabeça.
Fiz de conta que não prestei atenção à
conversa, mas algo me dizia que havia alguma
relação entre a pergunta dirigida à Juliana e a
resposta de Sr. Francisco dada a mim. Saímos
274
todos do escritório. Retornei ao atendimento e
Juliana acompanhou o pai informando à Marisa que
estava de saída.

275
CAPÍTULO XI

Meu olhar vago e pensativo denunciou meu


estado de espírito, tanto para Marisa quanto para
Gilberto. Fiquei perambulando entre as estantes e
não percebi a chegada de uma moça que me
olhava fixamente aguardando minha atenção.
Os dois estavam em atendimento e com isso
tentaram, por um instante, de forma discreta, me
alertar sobre a chegada da cliente. Não obtendo
êxito, Marisa se adiantou e me chamou atenção
para situação.
– Fernando! – apontou com a cabeça para
direção que eu deveria olhar.
– Opa, desculpas! – disse à moça que me
olhava um pouco envergonhada.
– Sem problemas. Na verdade, não estou à
procura de livros. Queria saber se recebem
currículo para vendedora. – Sua fala suave e
tranquila não conseguira tirar a atenção de suas
mãos suadas e trêmulas.
Busquei acalmá-la respondendo de forma
276
também suave e tranquila, porém firme, que sim.
Ela deu um sorriso e me entregou seu currículo
numa folha impressa com poucas linhas e uma foto
3x4 colorida colada no canto superior direito.
– Seu nome, por favor?
– Luana.
– Você é vendedor?
– Não. Sou Fernando, o gerente.
– Desculpa. Tão novo, pensei...
– Não por isso. Estou gerente há
pouquíssimo tempo. Mas, iniciei como vendedor.
A conversa poderia render mais um pouco.
Mas, preferi encurtar porque pressenti que estava
começando a gostar de tudo. Seu jeito, seus olhos
e principalmente sua boca tinham fisgado a área
quase inviolável de meu cérebro que comandava os
hormônios.
– Olhe, Luana, quando soubermos de
alguma vaga, iremos te ligar.
A jovem não queria ouvir apenas aquilo.
Então, resolveu puxar mais conversa enfatizando
seus dotes profissionais.
– Sou formada em letras e, nas horas vagas,
277
além de revisora de trabalhos acadêmicos, escrevo
poesias. Não tenho experiência formal como
vendedora, mas já vendi muitas rifas e doces na
escola e faculdade.
O desejo e curiosidade de conhecê-la mais
vencia minha luta interior de fugir.
– O que te levou a nos escolher?
– Minha paixão pelos livros e necessidade de
emprego. Conheço todas as principais obras da
literatura brasileira clássica e li a maioria dos
romances best-sellers publicados nos últimos três
anos, inclusive os infantojuvenis.
– Sério?
– Devoro romances e poesias desde meus
onze anos. Diga uma obra que te direi algo sobre
ela.
– Dom Casmurro?
– Fácil. Uma das obras-primas de Machado
de Assis. Conta o relato de Bentinho, que crê que
foi traído por Capitu e seu melhor amigo.
– Monteiro Lobato?
– Qual das obras?
– Conhece quais?
278
– Quase todas. Reinações de Narizinho,
Caçadas de Pedrinho, Doze trabalhos de Hércules,
O Picapau Amarelo, O Saci, Memórias da Emília,
Histórias de Tia Nastácia...
– Que maravilha! Você provou que conhece
mesmo.
– Queria puder ter lido Urupês, considerado
por muitos sua obra-prima.
Gilberto achou estranho meu
comportamento, então resolveu se aproximar.
Horas depois disse que meu corpo estava
ligeiramente inclinado para o dela. O semblante
parecia de alguém que havia saciado a sede em
pleno deserto. Relaxado, sorridente e meio
abestalhado.
– Li ainda os sete livros do bruxo Harry
Potter. Quer que eu diga os nomes?
– Não precisa! Veja só isso Beto, ela já leu
todos os seus livros!
Gilberto chegou-se mais perto. Como quem
não ouvia a conversa, disfarçou não entender a
piada. Repeti e expliquei à garota o porquê disso.
– Engraçadinho.
279
– Mas ele parece ou não com o bruxo?
– Lembra um pouco. Mas, bem de longe! –
Luana, já mais solta e se sentindo íntima entrou na
onda.
Depois das apresentações, resumi para
Gilberto a prosa que levava com Luana. Despedi-
me dizendo que precisaria continuar um trabalho no
escritório e que seu currículo estaria entregue e que
no mesmo dia iria encaminhar para o setor
competente. Ela agradeceu, deu uma piscadinha e
pediu que não me esquecesse dela.
– Jamais!
Alguns instantes depois, Gilberto era só
gargalhada para mim. Infelizmente, comentou até
com Marisa, que também havia percebido
comportamento diferente em mim enquanto
conversava com a garota.
– Marisa, ele disse que jamais a esqueceria!
Antes disso, ela deu uma piscadinha pra ele.
Os dois riram muito de mim. Depois ficaram
inventando situações futuras de que como seria
nossa relação no trabalho, Luana e eu trocando o
tempo todo afetividades verbais lisonjeiras.
280
***

Era quase meio dia. Mudei de assunto e pedi


para Marisa autorização para que Gilberto fosse à
sua casa buscar a mala que iria me emprestar para
a viagem. Ela autorizou, mas pediu que fosse num
pé e voltasse no outro.
Disse a Gilberto que, infelizmente, não
poderíamos mais almoçar juntos em sua casa, pois
Sr. Francisco e Juliana tinham saído para alguma
reunião. Com isso, a livraria não poderia ficar só
com Marisa. Estava nos planos deixar as duas por
meia hora tomando conta de tudo. Pura ousadia
minha.
Como o plano falhou, Gilberto disse que
traria também nosso almoço e ficaríamos
revezando no atendimento até o retorno dos três.
Foi só Gilberto voltar que também
apareceram o livreiro e a filha caçula. A cara deles
não era boa. Pareciam que retornavam de uma
batalha perdida. Meu pressentimento acertou.
Antes de qualquer cumprimento, Sr.
Francisco me chamou ao escritório. As duas
281
ficaram no balcão cochichando. Horas mais tarde, o
colega havia me dito que elas estavam numa
mistura de tristeza e revolta. Mas não tocaram no
assunto com ele.
Depois que sentei, Sr. Francisco olhou para
mim, suspirou longamente e iniciou o diálogo
pedindo desculpas. Claro que até então não
entendia o motivo, mas depois vieram as
explicações.
– Fernando, esqueça a viagem.
– Mas, o que houve?
– Na verdade, esqueça tudo.
Não tive mais coragem de fazer perguntas.
Fiquei apenas olhando seu rosto abatido enquanto
me explicava a quase inexplicável fatalidade.
– Bem, queria poder mudar o rumo das
coisas, mas não tenho este poder. Sabemos que
somente Deus e mais ninguém. Antes de você ir
falar com Lourdes ou quem sabe até com seus
parentes, precisava ser o primeiro a te falar, pois
além de comungarmos dos mesmos gostos por
livros, tínhamos os mesmos sonhos de vermos isso
aqui florescer com todas aquelas ideias pensadas,
282
principalmente você.
– Tive também a participação de Gilberto
nisso.
– Sim, verdade. Mas, queria ser mais direto...
– Pode falar, Sr. Francisco.
– Lamento profundamente, mas o contrato
que a livraria tinha com Dona Lourdes foi
cancelado. Tudo aquilo que foi acordado está agora
desfeito.
Comentei com ele que algo me alertava
sobre algum problema entre os dois. Tentei até
pensar com mais profundidade, mas os
acontecimentos do dia não me permitiram fazer
isso.
– Fernando, não sei exatamente o porquê,
mas ela insiste em dizer que foi enganada por mim.
Suspeito de intervenção de sua filha Elizabete.
Iria até comentar que conhecia a história
dele com a sobrinha-filha da sebista, de que eram
noivos quando ele a traiu com sua ex-esposa e
mãe de Marisa e Juliana. Achei mais prudente
continuar calado.
– Elizabete mora em São Paulo. Tivemos no
283
passado um grande desencontro amoroso. Pensei
que já estivesse superado, mas parece que não.
Depois de tanto implorar pra me dizer quem a tinha
convencido a mudar de ideia, ela apenas falou que
se tratava de pessoa de muita estima dela. Claro,
só podia ser Betinha. Ela não tem outros parentes
vivos. Dei toda documentação interna da livraria,
todos os relatórios contábeis, extratos bancários da
loja. Da mesma forma que também te dei. Mostrei
transparência total. Enfim, não consegui convencê-
la a voltar atrás. Então, ela pediu que eu contasse a
você que te queria em tempo integral no sebo dela,
como já havia combinado contigo. Eu não vou mais
brigar com ela. Agora, fica na sua mão a decisão se
fica aqui ou vai pra lá. A proposta que te fiz
continua de pé, porém, a viagem, ela me fez
prometer que iria cancelar pra não influenciar em
sua decisão. Bem, é tudo que tinha a te dizer.
Sugiro que vá almoçar e depois vá lá no sebo. Não
tenha pressa em retornar ainda hoje. Desejo
apenas que me informe da decisão. Sinto muito,
Fernando.
Acompanhei todo o restante do diálogo
284
tentando pensar numa saída para nós três. Mas, a
ansiedade e nervosismo não me deram trégua.
Sabia que seria mais um obstáculo na vida que
deveria enfrentar e sabia que conseguiria
atravessá-lo porque essa mesma vida que Deus
tinha me dado, havia me ensinado desde o
nascimento, a guerrear e vencer com coragem e fé
as adversidades.
– Sem problemas, chefe. Vou lá.
Sem falar mais nada, olhei-o no fundo de
seus olhos, assenti com a cabeça, devolvi o bilhete
do ônibus, despedi-me com um forte aperto de
mãos e saí com os pensamentos no sebo.
Do lado de fora, caminhei em direção à
saída. Dei uma pausa, olhei para as meninas que
estavam com semblantes de quem tinham visto a
morte, disse-lhes que iria ao sebo e voltei a
caminhar até Gilberto que já imaginava algo
desastroso para mim.
– Beto, obrigado pela comida e mala, mas
não precisarei mais delas. Como disse às meninas,
irei ao sebo resolver novamente minha vida
profissional. Se eu não voltar, mais tarde te ligo.
285
– Boa sorte, amigo! – respondeu-me com
uma voz tristonha.

286
CAPÍTULO XII

A princípio, não estava acreditando em tudo


aquilo que ouvi. Parecia-me, se verdade, um
pesadelo, mas, se mentira, uma grande decepção.
Sempre tive os dois como meus grandes exemplos
como profissionais dedicados e apaixonados pelos
livros.
No caminho fiquei repassando o filme de
minutos atrás tentando entender o que havia
provocado de fato a ruptura do contrato que daria
fim aos meus planos e projetos presentes e futuros.
Sonhava com aquela viagem. Conhecer Salvador,
pessoas da área, livrarias e sebos. Estava muito
perfeito para ser verdade.
Dei-me conta que não poderia pensar assim.
Nada estava perdido, ainda. Precisava conversar
com Dona Lourdes, saber dos fatos e o que havia
acontecido. Mesmo sabendo da versão de Sr.
Francisco, aprendi com minha mãe e meu padrinho
que todo fato precisava ser investigado e que nem
sempre a verdade estaria aos olhos. Ouvir o outro
287
lado da mesma história era considerado uma
atitude perspicaz e prudente.
Naquela altura do dia, já tinha me esquecido
que a cidade estava em greve. Nem havia notado a
falta de multidão e automóveis enlouquecidos. O
ponto de ônibus da catedral estava deserto. Da
mesma forma as ruas Capela, Divina Pastora e
Lagarto.
Cheguei no sebo Corujão. Dona Lourdes
estava ao telefone. Enquanto esperava, fui passear
pelas estantes. Passando a vista pelos títulos, dei-
me de cara com algumas obras de Monteiro
Lobato. Isso me fez lembrar de Luana. Que moça
linda! Seus olhos esverdeados, pele parda, estatura
mediana e silhueta de modelo.
Garimpei seus títulos e achei aquela obra de
que tanto Luana desejava. O Urupês estava com a
capa plastificada. Típica ação dos pedidos de
escolas. Tirando o fato de que a fita gomada que
fixava o material plástico sobre a capa estava
acidificada, pelo menos tinha protegido todo livro da
sujidade das mãos e do tempo.
Coloquei debaixo do braço e retornei à mesa
288
da sebista que já aguardava minha presença. Nas
mãos, segurava um documento que eu suspeitava
se tratar do bendito contrato feito entre os patrões.
Sentou-se e pediu para que eu fizesse o mesmo.
– Já soube, né?
– Sim.
– Ele te explicou o motivo?
– Sim, mas não fiquei convencido.
– O que lhe disse?
Com isso, relatei tudo que havia ouvido da
boca de Sr. Francisco. Ela ouviu atentamente e
sorriu sarcasticamente quando falei da parte da
total transparência. Fiz cara de susto e curiosidade.
– Nando, ele me escondeu que a livraria
tinha dívidas. Empréstimos, inclusive, em atraso.
Fora que o contrato, mesmo eu lendo com cuidado,
tinha cláusulas de dupla interpretação, colocada
propositadamente.
– Dona Lourdes, isso ele não me falou.
– Por sorte, numa conversa com minha
Betinha, fui questionada sobre os termos do
contrato, se eu havia conversado com um
advogado ou contador antes de assiná-lo. Disse
289
que não. Tinha acreditado fielmente nele.
Infelizmente, depois de assinado, fiquei inquieta
com aquelas observações e resolvi fazer conforme
sugerido por ela. Resultado: tanto meu advogado
quanto o contador me relataram essas coisas após
uma minuciosa investigação feita por eles. Fiquei
brava com ele. Não disse nada até hoje pela
manhã. Marquei uma reunião para as onze horas.
Disse apenas que era algo muito importante sobre
nosso contrato. Ele apareceu aqui com Juliana,
teoricamente surpreso com minhas descobertas.
Senti-me novamente traída. Pra mim acabou!
Mandei-o desfazer tudo e pedi que, além do
contrato, ele devolvesse você para mim e o valor
que tinha pago pra ele, pois a livraria valia mais que
o sebo.
Ela percebeu meu espanto e decepção com
Sr. Francisco. De fato, o golpe foi armado e
executado, mas graças a Deus não perdurou.
Disse-lhe que estava ao seu favor. Não comungava
com esse tipo de coisa. Mesmo sabendo que para
mim seria melhor uma reconciliação dos dois, mas
não vislumbrava um clima favorável para os
290
negócios, pois a confiança não mais existia.
– Vou lhe dar outro livro que servirá também
para seu crescimento pessoal e profissional. O
autor se chama Gilles Lipovetsky. É um filósofo
francês, teórico da hipermodernidade. Neste livro, A
Sociedade da Decepção, ele fala sobre o culto ao
individualismo e o drama humano na sociedade do
consumo. Serve de reflexão abrangente sobre tudo
que estamos passando neste momento.
Precisamos compreender como anda o todo a
sociedade, para chegarmos a tentar entender o
particular, isto é, o indivíduo.
– Obrigado. Vou ler sim.
Depois de duas horas encerramos a
conversa. Decidi ir para casa. Estava com fome e
com muita dor de cabeça. Sabia que era emocional.
Ela me ofereceu comida, remédio e um táxi, mas
declinei de todos. Pedi apenas que embrulhasse o
livro de Lobato para presente. Queria ficar só.
Precisava pensar, colocar as coisas em seus
devidos lugares. Mas saí de lá decidido a ficar com
ela no sebo e que no outro dia estaria pronto para o
novo trabalho.
291
***

Voltei de moto com Roberto. No caminho fui


atualizado sobre os últimos acontecimentos das
greves, da vida dele e de meu padrinho.
– Cara, nem te conto. Faturei hoje mais do
que teria faturado em um mês. Tô rico!
– Então vá logo me emprestando dinheiro.
– Não é bem assim. Esqueceu que ajudo
mamãe em casa, pago o financiamento da moto e
agora me inscrevi num curso de mecânica?
– Parabéns, Tia!
– Pois é, quero montar meu próprio negócio.
Depois do curso irei colocar uma mecânica de
motos.
– Muito bem!
– Falar nisso, Sr. Ladislau pegou o carro e
na mesma hora teve que levar na oficina.
– Como assim?
– Nada grave. Foi orientado a fazer uma
revisão de rotina.
– Mas não entregaram o carro todo pronto?
292
– Quase. Sabe como é vendedor. Promete
mundos e fundos e depois de ver a cor do dinheiro,
dá pra trás.
– E ele?
– Bem, todo ansioso pelo carro, ficou por
isso mesmo. Sonhava em pegá-lo.
– Sei disso. Acordou cedinho pra isso.
– E a greve, continua?
– Rapaz, soube que termina hoje. Foi tudo
acertado, tanto com o setor de transporte como
pelos professores.
– Ainda bem.
Veio ao pensamento o rosto de Luana. Sem
pensar muito perguntei a Roberto o que entendia se
uma garota piscasse para ele e ainda pedisse para
não se esquecer dela.
– Quem fez isso? Uma das filhas do patrão?
– Não. Uma garota que foi pedir emprego.
– Bem, de duas uma. Ou ela te bajulou por
causa do emprego ou mostrou que tá afim de você.
– Já eu pensei nas duas coisas juntas.
– Pode ser.
Dobramos a esquina da Avenida João
293
Ribeiro e circulamos o barracão cultural. De frente
ao ponto dos motoboys, o colega de Roberto pediu
que parássemos para informar se conhecia alguém
que desejasse trabalhar, pois não parava de chover
pedido de corrida.
– Não tô dizendo, Tia! Vamos ficar ricos é
hoje!
– Tá aí, chama meu padrinho.
Na porta de casa, vi o sedan na garagem. A
madrinha toda orgulhosa e Sr. Ladislau passando
pela segunda vez a pasta de brilho na lataria.
Disse-lhe que ficaria mais brilhante que sua careca.
Antes de subir, pedi que fosse lá em casa
para uma conversa aconselhadora sobre meu
emprego. Como um fiel e verdadeiro padrinho,
sempre disposto a me orientar e ajudar onde
pudesse.
Falei com minha mãe que precisava de um
remédio para dor de cabeça, um bom banho
relaxante e aquele almoço maravilhoso com sabor
caseiro. Ela ficou admirada por saber que até
aquela hora eu não havia almoçado. Inquieto,
banhei-me e comi às pressas. Louco para contar as
294
novidades.
Na presença novamente dos meus três
assessores, mãe e padrinhos, relatei os fatos do
dia. As duas, como sempre, resmungavam e faziam
caras e bocas, enquanto meu padrinho
permaneceu calado até o final da história. Ao final
de tudo...
– Nossa Senhora Virgem Maria! – exclamou
mamãe.
– Ele deveria ser preso! – defendia minha
madrinha.
– Tenham calma. Foi bom que terminasse
assim, pois pior seria se tudo isso fosse
prolongado. Melhor um arranhão no treinamento do
que ter sido alvejado por um tiro de fuzil na guerra –
concluiu, meu querido sargento.
– Só sei de uma coisa, não fico mais lá.
Após algumas ponderações, pela primeira
vez, ganhei com aprovação de todos. Da mesma
forma que falei à Dona Lourdes, disseram que a
confiança tinha sido quebrada. Do mesmo jeito que
aprontaram com ela, poderiam aprontar comigo.
Reunião terminada, agradeci a todos e fui
295
para cama descansar. A cabeça latejava de dor. Na
mente, o desejo de ter sido apenas um pesadelo.
Queria que, ao acordar, tudo estivesse bem, que
nada disso tivesse existido. Mas, a dor me fazia
lembrar da verdade nua e crua dos fatos. Só me
restava pensar em Luana enquanto aguardava a
dor sumir.

296
CAPÍTULO XIII

Acordei às dezenove horas. Assustei-me e


corri para sala chamando por minha mãe. Ela
descia as escadas quando ouviu meus gritos
pensando que havia sido acometido por alguma dor
inesperada ou algo que levaria à minha morte.
– Oh, mãe, deixa de exagero!
– Você tava parecendo um maluco, gritando.
– Não sabia que havia dormido tanto. Além
do remédio, a senhora colocou o que naquela
água?
Confessou-me que havia colocado gotas de
um calmante natural. Disse que era para meu bem.
Teve pena de me ver tão estressado e cansado.
– A senhor colocou quantas gotas?
– Sei lá, fui colocando... Tava aflita também!
– Nossa, aqui na bula pede no máximo
cinco.
– Acho que foi mais que isso.
Depois das desculpas e consentimento de
perdão, corri para pegar o celular. Havia seis
297
chamadas perdidas de Gilberto e nenhuma dos
Rezende. Retornei imediatamente ao colega para
saber das últimas.
Comecei de trás para frente. Contei-lhe
primeiramente da overdose de calmante, falei da
conversa com Dona Lourdes e terminei com aquela
encenação de nosso patrão. Não deixei nada de
fora, tudo bem detalhado e chamativo igual a
relatório de repórter policial.
– Potter, estou muito decepcionado!
– Eu também. Quem ouve não acredita que
ele seria capaz disso, depois de tudo que
aconteceu.
– O que pretende fazer agora?
– Vou amanhã dizer pra ele que ficarei com o
sebo, mesmo sabendo que financeiramente seria
ruim pra mim.
Finalizei dizendo que não conseguiria dormir
com toda aquela confusão. Gilberto lamentou, mas
pediu que eu me acalmasse para que pudesse
tomar uma decisão mais serena e correta possível,
sem exagerar nas emoções.
***
298
Fui para cama com a Livraria Ideal. Queria
pensar em outras coisas, mesmo sabendo que se
tratava de um enredo que envolvia livros, sebos e
livrarias. Mas para mim, servia de inspiração para
continuar a sonhar com meus propósitos.
Como faltavam poucas páginas, concluí em
meia hora. Toda aquela história real e fascinante de
vida profissional do imigrante italiano que, de
engraxate, com muita luta e determinação se
transformou num sebista e livreiro mais renomado
da cidade de Niterói, encheu-me de esperanças em
um dia também seguir seus passos. Até nome de
rua virou, em homenagem.
Com isso, tive uma ideia. Peguei meu
caderno e rascunhei algumas coisas para mostrar a
Dona Lourdes. Sabia que ela conhecia muita gente
importante, não só em Aracaju, mas em vários
municípios de Sergipe.
O cansaço deu as caras. As pálpebras
pesadas delatavam que estava na hora de dormir.
Escovei os dentes, beijei mãe, apaguei as luzes e
caí na cama.
Minutos depois, com os olhos fechados e me
299
revirando, escutei vibrar o celular e sua luz me fez
espiar. Do lado, o danado só tremia e brilhava,
iluminando todo quarto. Minha mãe, teimosamente,
costurava na sala, pois ouvia a tesoura trabalhar.
Inclinei e agarrei o bicho que teimava em
enviar mensagens. Logo imaginei alguma conversa
de Gilberto. Mas, para minha surpresa era de um
número desconhecido. A primeira disse oi. A
segunda pede desculpas pelo horário e disse que
não aguentava mais esperar pela ligação. Já a
terceira, pergunta apenas se sabia quem escrevia.
– Que cabrunco era aquilo? Tiraram meu
sono para passar trote? Vou desligar de uma vez
esse cabrunco!
Quando apertei o botão, vi que chegava
outra mensagem. Ante de apagar, vi a palavra
Luana. Fiquei tão atrapalhado que na agonia de
religar o aparelho deixei cair no chão.
– O que foi, menino?
– Nada, mãe. Apenas o celular que caiu.
Passou-se uma eternidade até que pudesse
abrir novamente o aplicativo de mensagens. Disse
aos meus pensamentos que iria formalizar
300
reclamação aos fabricantes de celulares para que
fizessem um que ao apertar logo fosse acordado.
Meu coração acelerou quando vi na quarta
mensagem seu nome. Dizia na cara de pau que
queria me ver. Nossa! Nunca imaginei uma cantada
tão direta assim. Fiquei sem ação. Passei alguns
minutos relendo todas elas.
Depois passei outros minutos pensando no
que escrever. Não me lembrava mais de ter sentido
aquilo na vida. Nem quando sonhava acordado com
Juliana.
Criei coragem e fui revendo na mente o que
haveria de escrever prevendo algumas
possibilidades de resposta dela. Fiquei me
culpando porque tinha prolongado aquela prosa na
livraria com a garota.
– Oi. Como conseguiu meu número? – Fui
ao banheiro, bebi água e voltei. A resposta só veio
depois de mais três minutos.
– Fui à livraria. Pedi ao rapaz, seu amigo.
– Ah, tá.
– Pensei que havia levado um fora! Como
vai?
301
– Bem e você?
– Mal.
– Por quê?
– Queria te ver novamente.
Depois disso, meu cérebro, por defesa,
passou também a dialogar comigo.
– Meu Deus! Ela é muito direta. Mal dá
tempo de você pensar e já te responde com uma
flechada no peito. Você não pode demorar muito
em seu retorno. Vai pensar que é inexperiente.
– Será? Preciso então pensar e escrever
mais rápido!
Enquanto demorava em respondê-la por
culpa da loucura de conversar com meu cérebro,
ela voltava a escrever.
– Gostei de você. É comprometido?
– Parece-me uma pessoa boa, pois ficou
preocupada em saber se você tinha namorada.
Coitada, não sabe de nada. O cara é virgem de
corpo e alma.
Se continuasse assim, iria realmente ficar
louco. Como podia conversar comigo mesmo?
Parecia uma voz do inconsciente. Foi quando tive a
302
ideia de respirar fundo e voltar ao banheiro para
lavar o rosto naquela pia bem gelada. Finalmente
consegui me concentrar.
– Não sou comprometido. E você?
Depois disso, a conversa começou a fluir
naturalmente e com mais rapidez. Talvez, os
hormônios começaram a ajudar.
– Claro que não, né?
– “?”
– Por que essa “?”
– Perdoe-me.
– Tá perdoado, mas não repita mais isso!
– Tive um dia agitado. Estou muito cansado.
– Imagino. Ser gerente deve não ser fácil.
– Não foi isso. Algo bem grave.
– Como assim?
– Decidir trocar de emprego. Amanhã me
apresento no sebo.
A conversa perdurou por longas horas.
Começou por mensagens e acabou ao telefone.
Imprudentemente, contei-lhe todo ocorrido do dia.
Sabia que não era correto. Talvez, tenha sido
movido pela paixão. Ela me falou de sua vida.
303
Relatou-me fatos íntimos como o trauma de abuso
sexual com o padrasto, que hoje está foragido da
justiça. Muitas coisas nos uniram. Somos filhos
únicos de pais falecidos, nunca namoramos e
adoramos livros. Menos no comportamento. Minha
timidez se contrasta com sua desenvoltura. Disse
ela que foi graças às inúmeras sessões de
psicologia pagas pelo poder público.
Enfim, minha mãe já havia me expulsado do
quarto e só desliguei o telefone quando os
ponteiros marcaram quinze para as duas da
manhã. Despedimo-nos com um amoroso “boa
noite, meu amor”.

304
CAPÍTULO XIV

Minha mãe passou quase meia hora me


dando sermão por causa daquela conversa
baixinha com boca e ouvidos grudados ao telefone.
O interrogatório começou quando me fez acordar
puxando bruscamente meu lençol e travesseiro.
– Dona Iraê, pelo amor de Deus! Não fiz
nada, apenas conversava com uma amiga. – Só a
chamava pelo seu nome quando ficava com raiva.
Ela sabia disso.
Tinha dormido pouco, mas graças a Deus
estava bem. Acho que Luana me ajudou nisso.
Tinha vinte anos, dois mais velha que eu, mas
talvez por causa de todas suas experiências de
vida, parecia uma pessoa intelectualmente bem
madura. Seu vasto conhecimento literário me
deixou fascinado.
Infelizmente, não havia ainda conseguido um
emprego formal. Era apaixonada por pesquisas, por
isso, fazia muitos trabalhos científicos que eram
apresentados e publicados na faculdade. Mas, não
305
gostava muito da ideia de lecionar. Dizia não ser
muito sua praia.
Fazia, vez por outra, papel de professora de
banca por causa da situação financeira da casa,
pois da mesma forma que eu, precisava
complementar a renda familiar.
Sua mãe, Dona Carmen, era empregada
doméstica. Trabalhava dia e noite para lhe dar, pelo
menos, uma boa educação, barriga cheia e saúde.
Diversão, dizia que somente por meio das
leituras de gibis, que eram baratos e ainda a
alfabetizaram e ajudaram a se tornar uma boa
leitora.
As viagens, da mesma forma que eu, foram
proporcionadas pelas belas aventuras dramáticas,
de ação e de suspense proporcionadas pelos livros
emprestados das bibliotecas escolares.
Por tudo isso, a sintonia foi se mostrando,
pelo menos nesses quesitos mais abstratos.
Faltava-nos uma prova concreta, isto é, física,
biológica e corporal. Desejávamos o tato, o abraço,
o beijo, o cheiro e o olhar para continuarmos
cobiçando o mesmo sentimento de pertença um do
306
outro.
***

Fiquei ali, sonhando acordado enquanto


minha mãe resmungava. Será que tudo isso é por
que seria filho único? Ou por que deixava
transparecer um bobão apaixonado? Ou seria o
simples fato de conversar até a madrugada com
uma amiga que até o momento não tinha nome
para ela? Tinha minhas dúvidas.
Sei apenas que não quis mais tocar naquele
assunto. Tomei café, coloquei o rosário no bolso,
pedi a benção de mãe e desci para definitivamente
me demitir da livraria e comparecer, logo em
seguida, ao meu primeiro dia de trabalho no sebo.
Liguei para Gilberto e disse que estava
chegando em vinte minutos. Respondeu que todos
me aguardavam ansiosamente. Novamente peguei
corrida com outro motoboy, pois Roberto já havia
partido com um cliente.
Conforme noticiado por ele, as greves
haviam terminado. Graças à pressão popular, os
políticos agiram de bom senso e acordaram em
307
atender quase todas as reivindicações. Pelo
menos, as principais foram atendidas.
Cheguei na livraria como prometido. Como
não tinha mais obrigação de chegar pontualmente
no horário estabelecido, oito e meia estava num
bom horário.
O clima era de total silêncio e suspense.
Gilberto não havia comentado nada de nossa
conversa da noite anterior. Fui recebido pelo colega
e Marisa, pois Juliana estava em sua sala, da
mesma forma Sr. Francisco em seu escritório.
Marisa foi muito simpática. Gilberto me disse
que o chefe me esperava lá dentro. Antes de entrar,
abri a porta de Juliana e lhe dei um bom dia bem
alegre, diferente dos outros dias. Ela retribuiu-me
com a mesma energia.
Bati na porta. O livreiro pediu para eu entrar.
Educadamente, me ofereceu a cadeira. Sentei-me
e lhe comuniquei a saída. Ainda fazendo uma
última tentativa, perguntou-me se era realmente
isso que eu queria. Não quis machucá-lo.
– Sr. Francisco, tenho os dois como muita
estima. São meus exemplos profissionais.
308
Conversei com ela. Não há mais clima para tudo
isso. Decidi novamente aceitar a proposta dela e
começo hoje lá.
– O que ela te falou?
– Não quero entrar nesses detalhes. Deixo
isso para os dois. Prefiro assim. Sinto muito.
– Entendo, Fernando. Infelizmente, vamos
terminar por aqui todos aqueles nossos projetos e
sonhos. Mas...
Se eu ficasse mais tempo, temia que ele
tentasse me convencer a ficar. Então, cortei sua
fala me desculpando pelo ato e levantei-me para
um sincero aperto de mãos. Ele entendeu e
também se levantou com a ajuda da bengala.
Levantou os braços, agradeceu por tudo que tinha
feito por ele e pela empresa e, com os olhos cheios
de lágrimas, deu-me um forte abraço.
– Deixo com o senhor a pasta financeira e a
carteira de trabalho?
– Não. Entregue tudo à Marisa. Ela também
vai providenciar sua baixa ainda nesta semana.
Caso não deseje voltar aqui para pegá-la, posso
deixar no contador para você buscá-la.
309
– Não vejo problemas em vir aqui
novamente. A menos que o senhor não queira.
– Hipótese alguma. Será sempre bem-vindo!
Saí da sala com a garganta seca, voz
embargada e olhos repletos de lágrimas. Gilberto,
Marisa e Juliana me aguardavam no balcão. Vendo
a cena, também não seguraram as lágrimas.
Recebi de todos abraços firmes e sinceros,
acompanhados de palavras de saudades, votos de
sucesso pessoal e profissional.

310
CAPÍTULO XV

Na porta e de costas para a livraria, olhei


para todos os lados. Era uma vista prazerosa. De
frente, a praça com sua catedral e feirinha de
artesanato; do lado esquerdo, a escola pública e a
banca do jornaleiro; do lado direito, os prédios dos
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Se
apertasse um pouco mais a vista, dava até para ver
o rio Sergipe e o outro lado da ilha.
Suspirei, beijei o Rosário e trilhei o caminho
do sebo com uma sensação estranha de tristeza e
ao mesmo tempo alegria. Na cabeça, ainda pairava
a imagem de desesperança e de profundo desgosto
de Sr. Francisco.
A cidade havia voltado ao normal, exceto,
pelo menos, para um grupo de estudantes que
passava por mim esbravejando contra os
professores que não haviam retornado.
Na chegada ao sebo, admirei-me com meu
nome escrito em azul numa faixa de pano branca
suspensa na entrada que também me dava boas-
311
vindas.
Do lado de dentro, as paredes estavam
enfeitadas com cachos de bexigas coloridas de
festas e atrás da mesa de Dona Lourdes, um cartaz
na horizontal pregado na parede dizia: Nosso mais
novo sebista chegou!
– Mas, Dona Lourdes... não precisa disso.
– Deixe de ser ingrato! Claro que merece!
Logo após uma troca de abraços e sorrisos,
ela confessou que havia outras duas surpresas.
Mas, pediu que eu sentasse para não cair.
– Pode vir, Betinha!
– O quê? Como assim?
Do fundo surgiu sua sobrinha-filha com um
bolo recheado de chocolate nos braços. A
enfermeira era mais bonita que na foto do porta-
retratos. Seu sorriso e olhos eram muito parecidos
com o da sebista. Parecia cópia esculpida pelo
mesmo artesão.
– Seja bem-vindo, Fernando! Minha mãe fala
muito bem de você.
– Muito obrigado, Elizabete.
– Este bolo é para comemorarmos sua
312
chegada. Desejamos que seja muito feliz aqui e
que seu crescimento profissional acompanhe seu
crescimento físico. Mas, claro, de forma bem mais
acelerada. – Todos entramos em risos.
Enquanto comíamos, fomos nos conhecendo
mais. Fiquei sabendo das peripécias de Dona
Lourdes quando era mais jovem. Fato que a
deixava envergonhada toda vez que Elizabete
contava aos amigos na sua frente.
– Certa vez, minha mãe tinha ido com meu
avô à feira livre. Ficava próximo ao atual mercado
municipal. Naquela época, as pessoas vendiam de
tudo nas feiras. Meu avô, além das carnes e
hortaliças, precisava trocar a mangueira do botijão
de gás...
– Lá vem você de novo com essa história né,
Betinha?
– Calma, deixa eu contar pra Fernando.
Então, no caminho, mãinha, lá com seus dez anos,
avistou uma barraca de livros e gibis usados. Do
lado dela, uma senhora vendia cocos que eram
ralados na hora. Como sabia que vovô não iria
parar para que ela pudesse ler, então inventou que
313
vovó tinha pedido que trouxesse três cocos ralados
para que pudesse fazer doces. De fato, vovó fazia
sempre doces. Então, na volta das compras,
pararam em frente à senhora que vendia cocos e
pediu a tal da encomenda. Por pura sorte dela que,
depois de anos dizia que o anjo da guarda sempre
protegia bêbados, professores e criancinhas
leitoras, a fila do coco estava grande e só tinha
esse tipo de fornecedor na feira.
– E aí? – perguntei.
– E aí que ela ficou por quase uma hora
lendo as historinhas dos gibis e nem levou um
sequer! O dono da banca disse pra meu avô que da
próxima vez não deixaria mais ela olhar, nem que
houvesse promessa de comprar. Depois de muitos
desaforos ditas por meu avô ao sebista, ela
recebeu umas palmadas de vovó quando chegou
em casa.
– Coitadinha!
– Pra finalizar, desde aquela surra ela tinha
prometido que nunca mais...
– Contaria mentiras?
– Não... nunca mais passaria necessidades
314
livrescas. Juntava dinheirinho e comprava gibis e
livros. Lia, depois trocava ou vendia para poder ler
ainda mais. Como sabe, hoje vive disso. É sua
paixão!
Depois disso, Elizabete se despediu de mim
alegando que precisaria ir ao comércio comprar uns
cocos ralados. Claro que na brincadeirinha. Seu
esposo já esperava em frente à loja. Como era
paulista e não conhecia o estado, tinham agendado
férias para visitar Dona Lourdes e conhecer as
belezas de Sergipe.
Na saída, a sebista sugeriu que não
deixassem de ir ao Museu da Gente Sergipana, à
histórica São Cristóvão, quarta cidade mais antiga
do país, ao Parque dos Falcões na Serra de
Itabaiana, ao Cânion do Velho Chico em Canindé
de São Francisco e saborear os frutos do mar na
Passarela do Caranguejo na praia de Atalaia.
– Esqueci de algo, Fernando?
– Pelo amor de Deus, Dona Lourdes! Se
conheço muito é o zoológico que fica no Parque da
Cidade e a Ponte do Imperador.
– Veja aí, Betinha, tinha esquecido esses
315
outros dois.
O dia ainda principiava para mim. Depois
daquele momento tenso com Sr. Francisco, a
amável recepção de Dona Lourdes e Elizabete
havia me deixado sereno.
Contei-lhe da prosa com o livreiro, da
despedida com os demais e da sensação que senti
na saída. Ela compreendeu tudo e disse que eu
não iria se arrepender das coisas. Usando uma
conhecida máxima, repetiu-a três vezes.
– Precisamos, às vezes, perder para ganhar.
Essas palavras me fizeram lembrar de
Juliana e Luana. Perdi o que não tinha e ganhei o
amor de quem não conhecia. Fiquei pensando por
um instante e tive uma ideia que achava ser boa
para três pessoas.
– Dona Lourdes, falando nisso, queria lhe
pedir algo.
– Pode pedir, se estiver ao meu alcance,
terei maior prazer em ajudá-lo.
– Sei disso. Por isso tive coragem de falar.
– Então manda!
– Conheci ontem uma garota. Chama-se
316
Luana. Acho que começamos ainda ontem à noite e
por telefone um relacionamento.
– Nossa, que história. Daria um filme!
– Também acho. Bem, ela havia entregue
currículo na livraria para uma possível vaga de
vendedora. Soube que precisava muito do
emprego. É formada em letras e o mais
interessante… como eu, é apaixonada por livros!
– Ah, então aquele livro embrulhado para
presente foi pra ela, né?
– Sim. Ela leu quase todas as obras de
Monteiro Lobato.
Dona Lourdes, ouviu atentamente minhas
considerações. Fitou meus olhos e fez cara de
quem viajava nos pensamentos. O tempo foi o
bastante para que eu imaginasse ter falado besteira
e que mal teria entrado já pediria emprego para
outra.
– Bem, acho que seria uma boa, desde que
levasse à frente aqueles projetos que apresentou
naquela reunião na casa de Francisco. Que tal?
Dona Lourdes levou um grande susto
quando inesperadamente dei-lhe um forte abraço e
317
beijei sua testa. Parecia, não só que a conhecia há
anos, como também sentia muito estreita e familiar
nossa amizade.
Depois da euforia e agradecimento,
comentei sem muitos detalhes algumas das
conversas por telefone que tive com Luana e a
bronca que levei da ciumenta da minha mãe.
– Traga ela aqui ainda hoje no final da tarde.
– Combinado.
Fechado nossos acordos, lembrei-me que
havia tido uma ideia e que esperava a oportunidade
para lhe falar pessoalmente. Falei que havia
terminada a leitura da Livraria Ideal e que na
ocasião tive a ideia de trazermos semanalmente
uma pessoa, quer seja escritor, poeta, cordelista,
educador, bibliotecário, jornalista, editor e
distribuidor de livros e quem mais contribui
diretamente na formação de leitores em Sergipe,
para fazermos uma boa homenagem no sebo. Não
precisaria de muita coisa e gastaria pouquíssimo
dinheiro. Apenas com alguns salgados, água e
refrigerantes. Eu me encarregaria de convidar
gratuitamente um músico amigo meu para
318
abrilhantar o encontro com um fundo musical ao
toque da MPB.
– Excelente ideia, Fernando! Não foi à toa
que lutei por você. Mas, uma ideia parecida não foi
apresentada por você e Gilberto?
– Um pouco diferente. Digamos, mais
apurada. Aquela proposta era de encontros às
sextas-feiras com autores e leitores convidados,
mesclando entre escritores regionais e nacionais.
Esta seria para, além dos escritores, poetas,
cordelistas, educadores, bibliotecários, jornalistas,
editores, distribuidores de livros e quem mais
contribui diretamente para formação de leitores em
Sergipe, com intuito de fazermos uma justa
homenagem.
Meu entusiasmo havia lhe contagiado.
Pegou imediatamente um papel e caneta e
começou a anotar nomes de pessoas com o perfil
que havia lhe sugerido. Lembrou-se que o velho
amigo Professor Alcides Fagundes poderia ajudar
com o projeto. Pois, além de ilustre escritor
romancista, era vice-presidente da Academia
Sergipana de Letras.
319
– Nando, meu querido. Com o dinheiro que
receberei de volta de Francisco, quero dar mais
vida ao nosso sebo. Você será nosso gerente e,
provavelmente, Luana nossa vendedora.
Contei-lhe que havia me inscrito no
vestibular para bibliotecário e que ainda esta
semana iria procurar um curso de vendas.
– Muito bom, Nando. Mas, vá com calma.
Assenti com a cabeça e fui logo pedindo
para começar a trabalhar na que achava ser a mais
importante das tarefas para início da nova fase do
sebo: um balanço geral de estoque.
Nunca tinha sido feito. Nem ela sabia
quantos livros tinha, apenas a quantidade e a áreas
dos que foram vendidos. Pelo menos, um dos fios
do novelo.
Fiquei das onze às treze horas me
movimentando entre subidas, descidas de escadas,
agachado e em pé anotando e carregando livros de
um lado para outro. Pelos meus cálculos ligeiros,
dez por cento do trabalho primário estava
concluído.
Até o momento, dois mil livros foram apenas
320
colocados em suas respectivas estantes e
prateleiras. Faltava, depois de tudo, realizar o
trabalho secundário, que era o de colocá-los na
ordem alfabética por título e inseridos em um
programa de computador com nome da obra, autor,
edição, editora, valor de compra e venda, sinopse e
observações do estado físico, pois se tratavam de
livros usados.
Não havia me lembrado dos discos de vinil,
que ocupavam dois móveis construídos
especificamente para suas exposições. Para eles,
bastava colocá-los ordenados alfabeticamente pelo
nome do artista. Foi visitando aquela seção que vi e
ouvi, pessoalmente e pela primeira vez, um vinil
sendo tocado. Como vendedor, era muito
importante saber limpar, acondicionar e colocar
para tocar na vitrola sem danificá-los. Para isso,
tive uma boa professora, pois aprendi direitinho.
Naquelas primeiras horas, meu trabalho foi
90% físico e apenas 10% intelectual. Dona
Lourdes, ficou entre o telefone e o atendimento aos
clientes que chegavam para comprar, vender e até
trocar livros e vinis.
321
Parei para o almoço na mesma hora que
meu celular tocou. Pensei que fosse Luana, mas
era minha mãe que estava preocupada comigo.
Queria saber se eu havia feito conforme decisão
tomada, se estava bem e se tinha almoçado.
Coisas de mãe mesmo.
Procurei tranquilizá-la. Todas as perguntas
foram respondidas satisfatoriamente. Mas, uma
nova havia deixado para o final.
– Sua amiga voltou a te ligar?
– Não, mãe!
– Pois bem, não deixe ela atrapalhar seu
trabalho. Só atenda em horário diferente do
expediente.
– Tá bem, mãe. À noite te conto tudo. Fica
com Deus. Um beijo!
Dona Lourdes disse que resolveu funcionar
conforme horário estabelecido naquela reunião com
o grupo, das oito às dezoito horas, no qual teríamos
uma hora de intervalo que revezaríamos. Ela, das
doze às treze, enquanto eu e possivelmente Luana,
das treze às catorze horas. Para mim, nada mal.

322
CAPÍTULO XVI

A fome começou a apertar depois de tanto


trabalho árduo. Achei uma lanchonete na Rua
Divina Pastora que também servia almoço.
Enquanto aguardava o pedido, liguei para Luana.
– Oi, amor. Só tive tempo de ligar agora.
Preciso te contar uma notícia boa!
– Boa? Excelente notícia!!!
Expliquei-lhe que deveria comparecer no
sebo para uma entrevista por volta das 17 horas.
Aproveitei também para lhe relatar o ocorrido na
conversa com Sr. Francisco e do árduo trabalho de
reorganizar os livros e discos no sebo. Ao final,
contei-lhe da ideia de realizarmos encontros para
homenagear pessoas que contribuíram diretamente
para formação de leitores no estado.
– Te aguardo às 17.
– Tá bem, amor, beijos!
Almocei rapidamente para não me atrasar,
pois havia gastado bom tempo com Luana. No
caminho de volta, deparei-me com uma cena que
323
me deu inspiração para outra estratégia de
marketing. Na esquina, havia uma igreja evangélica
e da porta, um rapaz entregava um jornal religioso.
Cheguei ao sebo com a ideia quase toda costurada.
Chamei Dona Lourdes e apresentei-lhe a novidade.
– Que tal se fizéssemos um site e um blog
para o sebo? O primeiro seria para venda dos livros
e discos online, enquanto o segundo, traria dicas de
leituras feitas por leitores que, por meio de
pequenos vídeos e pôsteres escritos, teriam a
incumbência de convencer outros a ler e comprar
um livro ou disco indicando a obra e sua breve
descrição.
A sebista ficou imaginando como na prática
isso seria possível. Sabia que precisava se
modernizar senão perderia público, mas também
sabia que isso demandaria tempo e contratação de
mais funcionários. Depois de alguns argumentos e
de minhas novas considerações, ponderou e
resolveu apostar neste novo projeto de comércio
eletrônico.
– Nando, tomara que sua... posso já chamá-
la de namorada?
324
– Sim.
– Tomara que sua namorada seja tal como
você a apresenta.
– Vai gostar dela. Tenho certeza disso!

***

Voltamos para o batente. Outros


milhares de livros precisavam ser reorganizados.
Ficamos naquelas três horas concentrados no
trabalho. Quando não atendia ao público, ajudava-
me com a leitura dos títulos e, às vezes, até
sinopses para uma correta arrumação das obras.
Em uma dessas breves leituras, achamos
algumas raridades e outras excepcionais literaturas
que mereciam estar na minha biblioteca particular.
– Dona Lourdes, veja isso!!!
Mostrei-lhe A Livraria Mágica de Paris, de
Nina George, e Farmácia Literária, de Susan
Elderkin e Ella Berthoud. O encantamento foi
imediato após leitura das sinopses.
Mais ainda ficou a sebista quando reviu o
livro Casa-grande e Senzala, de Gilberto Freyre,
325
publicado em 1933 e com dedicatória na primeira
página. Disse que havia dado como perdido ou
furtado.
– Nando, você não tem noção de quão
valoroso é este livro!
Enquanto a ouvia, fiquei folheando A Livraria
Mágica de Paris. Numa passagem, eufórico, não
hesitei em recitá-lo: um livro é médico e remédio ao
mesmo tempo.
Quando os pegou, intrigou-se pelo fato de
serem publicações recentes e de estarem dentro de
um saco plástico. Cogitei a possibilidade de que
alguém havia despercebidamente os deixado. Mas,
quando ela pediu que eu verificasse se havia mais
alguma coisa dentro do saco, achei um pedaço de
papel no qual tinha escrito algumas palavras:

Se os encontrou, leia-os e depois


compartilhem da mesma forma com outros leitores.
Boas leituras!

Parecia cena de filme, mas era tudo


verdadeiro. Nosso espanto foi imediato. Admiramos

326
com a atitude da pessoa que não havia deixado
nome e nem contato, tanto no bilhete quanto nos
próprios livros, que foram vistoriados várias vezes.
De forma engraçada, a sebista até comentou
que se todos resolvessem fazer o mesmo teríamos
perdido nosso ganha-pão. Rimos, mas pedi que me
deixasse ficar com eles. Prometi fazer conforme
exigira o leitor anônimo.

***

A tarde havia passado como num raio. Meu


celular registrava algumas mensagens não lidas.
Olhei por um instante e vi que se tratava de
Gilberto. Pedia notícias e que tinha um recado de
Sr. Francisco para mim. Em vez de detalhar,
escreveu somente isso. No momento, não podia
responder como queria, então escrevi apenas com
um ok.
Recepcionei Luana com o corpo suado de
tantas idas e vindas de estantes e de subidas e
descidas de escadas em busca de uma perfeita
organização dos livros por assuntos e títulos,
327
respectivamente.
Estava ao fundo da loja e Dona Lourdes me
alertou de sua presença. Recebeu-a de forma
simpática, diria até carinhosa, talvez pelo fato de
ser quase conhecida só de eu falar dela com muito
entusiasmo.
Sua vestimenta estava bem apropriada para
a entrevista. Blusa polo básica de cor azul clara,
calça jeans azul escura, calçada com um All Star de
cor preta e cadarços brancos. Suas bochechas
vermelhas não desfaçaram a timidez, pois havia
dito para ela que a sebista sabia do namoro de nós
dois.
Aproximei-me e lhe dei um beijo no rosto.
Suas mãos estavam suadas e geladas. Fatos ditos
bem baixinho a mim.
– Vai dar tudo certo! – respondi.
Dona Lourdes pediu-lhe que sentasse e,
quanto a mim, que a cobrisse no atendimento ao
público. Vendo-a acanhada, brincou com o lance de
ter ido procurar emprego e ter achado um
namorado lindo, educado e inteligente. Dessa vez,
eu que fiquei envergonhado.
328
– Fernando me falou muita coisa sobre você.
– Como assim?
– Calma, apenas coisas boas e não
comprometedoras.
– Sei que é formada em letras, adora livros,
já leu de tudo, mas não gosta de lecionar. Como
também que mora apenas com sua mãe e que é
filha única.
– Tudo verdade.
– Conseguiria trabalhar no mesmo ambiente
que seu namorado sem que isso viesse a
atrapalhar seu emprego?
– Sim. Sei separar muito bem as coisas.
Eu mantive certa distância, mas conseguia
ouvir, com dificuldade, a conversa das duas. Num
momento fui atender a um cliente e durante o
atendimento ouvi risada das duas. Num outro
momento, vi Luana bem séria gesticulando um
pouco as mãos.
Depois de alguns minutos e após dois
atendimentos, passei por elas e perguntei se
queriam água. Em uníssono, disseram que sim.
Peguei e quando retornei percebi que já
329
conversavam sobre coisas da vida. Pareciam até
amigas de anos.
Nesse momento, Dona Lourdes solicitou que
eu puxasse uma cadeira e sentasse junto delas.
Informou-nos que estava gostando muito da
entrevista, mas que para tirar nota máxima era
necessário superar três desafios.
– Qual? – indagamos juntos.
– Primeiro, você precisa dar uma volta no
sebo e me trazer uma obra de Monteiro Lobato e
apresentá-la como indicação de leitura.
– Vocês têm obra dele aqui?
– Sim. Arrumei hoje suas obras na seção...
– Não diga onde fica, Fernando! Ela precisa
achar.
– Segundo, precisa trazer das estantes um
livro infantil, um qualquer da área técnica e outro de
autoajuda.
– Nossa! – suspirou Luana.
– Falta um. O terceiro desafio é o de me
apresentar uma ideia inovadora pra atrair clientes.
Para as três tarefas, você terá o tempo de vinte
minutos, sem contar com a ajuda do celular e de
330
Fernando, que por sinal irá à casa lotérica fazer um
pagamento de conta pra mim.
Ao final, Luana deu umas risadas e disse ter
gostado de todos eles e afirmou que faria tudo em
menos tempo. Já eu, estava nervoso, não tinha
visto, na prática, suas habilidades profissionais.
Queria poder ajudá-la, mas fui logo colocado para
fora do sebo.
Corri o máximo que pude para não perder o
desfecho da prova. Na fila da lotérica, fiquei
pensando na geografia do sebo, as possíveis obras
que deveriam ser apresentadas e alguma ideia
inovadora ainda não apresentada por mim à
exigente e maldosa jurada.
Infelizmente, perdi muito tempo no
pagamento do boleto e no percurso, pois os
semáforos teimavam em apresentar a cor vermelha
e os carros teimavam em passar nervosos em alta
velocidade.
Chegava com o coração na mão, os pulmões
vazios e a garganta seca. Ainda próximo, tentei até
cuspir, mas nem sinal de saliva. Da porta, consegui
avistar sorrisos e um abraço caloroso das duas. Era
331
o que precisava para acalmar minha alma.
– Nando, essa menina vale ouro. Cuide bem
dela! Aliás, você dois precisam cuidar um do outro.
– Amor... ops! Fernando, passei nos testes!
De trás para frente, Dona Lourdes disse que
Luana havia apresentada a ideia de aluguel de
livros e chamou isso de Locadora de Livros do
Sebo Corujão. E com o gancho de minha ideia
sobre indicação de livros feitas no blog, os clientes
receberiam em troca o direito a uma locação no
sebo.
Pelo segundo desafio, lhe mostrou: O
Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry;
Nunca desista de seus sonhos, de Augusto Cury e
Guia rápido para Turbo Basic, de Douglas Hergert.
Finalmente, trouxe-lhe Aritmética da Emília,
de Monteiro Lobato. Fez-lhe uma apresentação que
envolveu, não apenas deixar o leitor com vontade
de lê-lo, mas de conhecer a vida e demais obras do
autor.
Falando nisso, voltei a correr. Fui ao fundo
da loja, peguei o embrulho e lhe entreguei o
Urupês. Ficou tão feliz que se esqueceu e me deu
332
um beijinho na boca.
– Dessa vez passa! Disse a sebista.
– Dona Lourdes, perdoe-me! É que
procurava esta obra há anos.
– Sei disso. Por isso perdoei. Agora vamos
fechar a loja pois já está na hora.
Despedimo-nos da sebista e fomos em
direção ao ponto de ônibus da rodoviária velha.
Numa mão, sentia agora calor de sua mão; na
outra, A livraria mágica de Paris e Farmácia
literária.
– Amor, sabia que estes livros falam da cura
dos males da vida por meio dos livros? Nina
George diz que há livros que serve de remédio para
diferentes tipos de leitores.

Fim

333

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