Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
e fracasso escolar
Magda Floriana Damiani
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
458 Magda Floriana Damiani
risk for failure associated to children’s reprobación y/o evasión) en una cohorte
personal and family variables. The results de los niños nacidos en los hospitales de
confirm findings from other research, la ciudad de Pelotas (RS), en 1982. Esos
suggesting the important influence factores de riesgo fueron identificados por
exerted by factors such as ethnic group, medio de un modelo multi variado que
family income, number of siblings, examinó el riesgo del fracaso asociado a
parents’ level of schooling, type of diferentes variables personales y
dwelling, among others, over children’s familiares de los niños. Estos resultados
academic attainment. The second part of confirman los encontrados en otras
the investigation reports case studies of investigaciones, indicando la importante
two schools (attended by populations that influencia de factores como grupo étnico,
presented the same risk factors) with renta familiar, número de hermanos,
contrasting rates of repetition and escolaridad de los padres, tipo de
dropout among their students (high in vivienda, entre otros, sobre el desempeño
one and low in the other). The results de los niños. La segunda parte del trabajo
indicate that the institutions differ among relata estudios de caso de dos escuelas
themselves and point out to the (que atienden poblaciones con los
importance of intra-school factors, mismos factores de riesgo) cuyas tasas de
especially schools’ pedagogic discourse reprobación y evasión eran contrastantes
(concept defined by Bernstein) for (altas en una escuela y bajas en otra). Los
children’s attainment. The emphasis on resultados apuntan a que las instituciones
the academic aspect of schooling de enseñanza difieren entre sí y también
(instructional discourse), observed in the a la importancia de factores
school that presented lower failure rates, intraescolares, en especial el discurso
enabled an effect modification over the pedagógico de las escuelas (concepto
important correlation (encountered in definido por Bernstein), para el
other research) between children’s failure desempeño de los niños. El énfasis en los
and parents´ low level of schooling. The aspectos académicos de la escolarización
school which presented the highest rates (discurso instruccional), verificado en la
of failure was characterized by a escuela con menores tasas de
regulative discourse. reprobación y evasión, posibilitó el
Keywords: School failure. Extra-school cambio de una de las importantes
factors. Intra-school factors. Pedagogic correlaciones, encontrada también en
discourse. School culture. otras investigaciones, entre fracaso
escolar de los estudiantes y bajo nivel de
Resumen escolarización de sus padres. La escuela
que presentaba mayores tasas de fracaso
Discurso pedagógico y era caracterizada por un discurso
fracaso escolar pedagógico regulativo (asistencialista).
Este trabajo presenta los resultados de Palabras clave: Fracaso escolar.
una investigación que, en su primera Factores extraescolares. Factores
parte, identificó los factores de riesgo para intraescolares. Discurso pedagógico.
el fracaso escolar (entendido como Cultura escolar.
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
Discurso pedagógico e fracasso escolar 459
1
A investigação resultou na obtenção do grau de Doutora em Educação pela Universidade de Londres, Inglaterra, em 1998, com
apoio do CNPq (DAMIANI, 1998) e nunca foi publicada no Brasil. Uma versão resumida do trabalho pode ser encontrada em
(DAMIANI, 1999).
2
A palavra cultura é aqui empregada como “modo de vida” de uma instituição, incluindo seus códigos de conduta, linguagem,
rituais e sistema de crenças.
3
Entre as publicações que relatam estudos correlacionais de larga escala ou que apresentam revisões de tais estudos, pode-se
destacar as seguintes: Cleman e outros (1966), Jencks e outros (1972), Davie, Butler e Goldstein (1972), Brandão e outros (1983),
Tomlison (1983), Bianchi (1984), Grantham-Mcgregor (1987), Mortimore e outros (198), Gottfried, Gottfried e Bathurst (1988),
Lerner e Galambos (1988), Hasenbalg e Silva (1990), Pollit (1990), Ilon e Mook (1991), Psacharoupoulos e Yang (1991), Dauber,
Alexander e Entwisle (1993), Schneider e Coleman (1993), Wolff, Schiefelbein e Valenzuela (1994), Evans (1995), Beyer (1995),
Patrinos e Psacharopoulos (1996) e OFSTED (Office for Standards in Education) (1996).
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
460 Magda Floriana Damiani
4
Excluindo as que morreram (4% da coorte), supõe-se que as não-encontradas mudaram-se da cidade, estudam em escolas rurais
ou em escolas localizadas em áreas que integravam a cidade de Pelotas em 1982 e já se haviam tornado independentes em 1991.
Entre as 4.094 crianças que foram localizadas nas escolas, 173 estavam com as informações incompletas a respeito de seu
desempenho escolar. As 18 que freqüentavam escolas especiais foram excluídas das análises.
5
O modelo não permite, por exemplo, que o efeito das variáveis socioeconômicas (distais), seja absorvido pelo efeito de variáveis
nutricionais (proximais), já que o efeito das primeiras sobre o fracasso escolar é exercido tanto diretamente quanto através do efeito
das segundas (a desnutrição também está associada a fatores sócio-econômicos).
6
Odds ratio é uma medida de efeito; é o número pelo qual se multiplica a chance de fracasso para cada unidade da variável
independente. (MENARD, 1995; KIRKWOOD, 1988). Para variáveis categóricas, escolhe-se uma categoria como base (odds ratio
= 1.00) e calcula-se os outros odds ratios em relação a ela.
7
Esse teste permite comparar valores observados com valores preditos de uma variável dependente (HOSMER; LEMESHOW, 1989).
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
Discurso pedagógico e fracasso escolar 461
Fracasso escolar
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
462 Magda Floriana Damiani
Tabela 1: Fatores de risco para fracasso escolar obtidos através de regressão logística
hierárquica (Pelotas, 1991).
Variáveis Total Fracasso Odds ratios P Odds ratios P
(crianças) (crianças) (brutos) * (ajustados) *
n n (95% (95%
(%) (%) C.I.) I.C.)
Cor <0.001 <0.001
(pele
materna)
Branca 3328 779 1.00 1.00#
(82.2) (24.1)
Outra 698 315 2.60 2.59#
(17.8) (45.1) (2.19 - 3.08) (2.19 - 3.08)
Sexo da <0.001 <0.001
criança
Feminino 1914 481 1.00 1.00#
(48.7) (25.1)
Masculino 2015 1433 1.30 1.29#
(51.3) (30.5) (1.13 - 1.50) (1.12 - 1.49)
Idade <0.01 <0.01
materna
< 21 771 253 1.35 1.22@
(19.6) (32.8) (1.12 - 1.62) (0.99 - 1.50)
21 - 35 2818 745 1.00 1.00@
(71.7) (26.4)
> 35 340 97 1.10 0.81@
(8.7) (28.5) (0.85 - 1.43) (0.60 - 1.08)
Número
de irmãos <0.0001& <0.001&
Nenhum 1058 229 1.00 1.00@
(28.9) (21.6)
1 ou 2 1292 308 1.13 1.21@
(35.3) (23.8) (0.93 - 1.37) (0.97 - 1.49)
3 1011 323 1.71 1.66@
(27.6) (31.9) (1.40 -2.09) (1.33 - 2.08)
4 ou mais 298 149 3.65 2.36@
(8.1) (50.0) (2.78 - 4.79) (1.73 - 3.23)
Aglomeração <0.05 0.7518+
<4 pessoas 2348 628 1.00 1.00@
(71.7) (26.7)
4 pessoas ou mais 927 285 1.24 1.02@
(28.3) (30.7) (1.04 - 1.48) (0.84 - 1.23)
Escolaridade <0.0001& <0.001&
mãe
0 até 2a. série 445 239 2.32 2.34@
(11.3) (53.7) (2.01 - 2.67) (1.79 - 3.06)
3a. até 5a. série 1501 529 1.10 1.49@
(38.2) (35.2) (0.99 - 1.22) (1.24 - 1.80)
6a. série ou mais 1979 325 1.00 1.00@
(50.4) (16.4)
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
Discurso pedagógico e fracasso escolar 463
Tabela 1: Fatores de risco para fracasso escolar obtidos através de regressão logística
hierárquica (Pelotas, 1991) (continuação).
Variáveis Total Fracasso Odds ratios P Odds ratios P
(crianças) (crianças) (brutos) * (ajustados) *
n n (95% (95%
(%) (%) C.I.) I.C.)
Renda familiar
(Salários Mínimos) <0.0001& <0.001&
<1 720 333 13.71 2.94@
(18.4) (30.6) (9.02 - 20.83) (1.88 - 4.85)
1.1 to 3.0 1915 582 6.89 2.25@
(48.9) (53.5) (4.61 - 10.29) (1.41 - 3.59)
3.1 to 6.0 778 142 3.52 1.89@
(19.9) (13.1) (2.29 - 5.43) (1.18 - 3.05)
>6 501 31 1.00 1.00@
(12.8) (2.8)
Ocupação
do chefe <0.0001 <0.001
propriet./administr/ 217 8 1.00 1.00@
profissionais (5.9) (3.7)
não manual 583 65 3.21 1.77@
(16.0) (11.1) (1.52 - 6.80) (0.81 - 3.91)
manual qualificado 170 29 5.15 2.47@
(4.7) (17.1) (2.29 - 11.61) (1.05 - 5.85)
manual semiqualif. 1683 487 10.41 3.07@
(46.1) (28.9) (5.11 - 21.22) (1.41 - 6.72)
manual não qualif.
fora da população 997 422 18.77 3.56@
econom. ativa (27.3) (42.3) (9.18 - 38.37) (1.61 - 7.89)
Tipo de moradia <0.0001 <0.001
apartamento 554 76 1.00 1.00@
(15.2) (13.7)
tijolo 1853 399 1.73 1.22@
(50.8) (21.5) (1.32 - 2.26) (0.92 - 1.62)
mista 246 76 2.90 1.33@
(6.7) (30.7) (2.01 - 4.18) (0.90 - 1.96)
madeira irregular 561 219 4.11 1.74@
(15.4) (39.0) (3.05 - 5.54) (1.26 - 2.41)
tijolo irregular 113 48 4.73 1.83@
(3.1) (42.5) (3.03 - 7.40) (1.14 - 2.94)
“maloca” 319 186 9.03 2.61@
(8.7) (58.3) (6.48 - 12.59) (1.80 - 3.78)
Peso ao nascer <0.001& 0.2406&
< 2,000g 64 26 2.35 1.40$
(1.6) (40.6) (1.34 - 4.14) (0.73 - 2.70)
2,000g to 2,499g 209 72 1.55 1.12$
(5.3) (34.4) (1.12 - 2.16) (0.76 - 1.64)
2,500g to 3,499g 2436 688 1.12 0.95$
(62.0) (28.2) (0.95 - 1.32) (0.79 - 1.15)
> 3,500g 1220 309 1.00 1.00
(31.1) (25.3)
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
464 Magda Floriana Damiani
Tabela 1: Fatores de risco para fracasso escolar obtidos através de regressão logística
hierárquica (Pelotas, 1991) (continuação).
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
Discurso pedagógico e fracasso escolar 465
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
466 Magda Floriana Damiani
8
Existe, na literatura, uma disputa sobre a autoria dos textos de Volosinov. Alguns autores afirmam que Bakhtin escrevia sob esse
pseudônimo por razões de perseguição política. Outros argumentam que Volosinov realmente existiu e trabalhava com Bakhtin
(WERTSCH, 1991; BAKHURST, 1996; EMERSON, 1996).
9
Baseado em Leontiev (1981), Russel (1997) definiu um sistema de atividade como qualquer tipo de interação humana continuada,
dirigida a objetos, historicamente condicionada, dialeticamente estruturada e mediada por instrumentos: uma família, uma
organização religiosa, um grupo de advocacia, um movimento político, um curso, uma escola, uma disciplina, um laboratório
de pesquisa, uma profissão e assim por diante.
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
Discurso pedagógico e fracasso escolar 467
Embora uma análise mais aprofunda- cola com baixo índice de fracasso (BF), 10%
da permita que se perceba esse papel soci- dos estudantes apresentavam esse tipo de
alizador da escola, seu discurso tenta des- desempenho escolar.
vincular a hierarquia de sucesso, existente
em seu interior, das hierarquias externas ao A investigação dos processos intra-es-
sistema educacional. colares associados ao fracasso ocorreu atra-
vés de entrevistas – com 10 professoras (de
As posições teóricas acima contrastam primeira a quarta série) de cada escola,
com a perspectiva individualista que expli- direção e famílias dos estudantes – e atra-
ca as variações no comportamento huma- vés de observações – realizadas nas salas
no em termos de diferenças cognitivas, afe- de aula de todos as professores de primeira
tivas e valorativas e que, conseqüentemen- à quarta série e durante todas as outras
te, atribui as variações no desempenho atividades escolares. Foram também utili-
acadêmico dos estudantes a essas mesmas zadas redações de crianças de duas tur-
diferenças. O enfoque correlacional do fra- mas de quarta série (uma de cada escola)
casso escolar, com sua ênfase em fatores que descreviam suas escolas. Dados só-
extra-escolares, presta-se para reforçar esta cio-econômicos dos estudantes e dos pro-
perspectiva individualista que o estudo qua- fessores foram colhidos nos arquivos das
litativo, realizado na segunda etapa deste instituições. O trabalho de campo teve a
trabalho, tentou desmistificar. duração de dois meses.
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
468 Magda Floriana Damiani
jas e mofadas, falta de vidros nas janelas, A impressão do rapaz era compartilha-
fechaduras quebradas, buracos no piso das da pela pesquisadora, por algumas das
salas e quadros de giz com áreas impróprias professoras que trabalhavam na escola e
para a escrita. BF, por sua vez, tinha um as- por estagiárias do Curso de Pedagogia da
pecto mais limpo e bem cuidado, sugerindo Universidade Federal de Pelotas, que lá
um maior grau de investimento nesta escola, desenvolviam suas atividades, à época do
por parte de suas professoras e funcionárias, trabalho de campo. Dados obtidos através
e confirmando os achados de Sammons e de diferentes fontes indicavam a existência,
outros (1995) que indicam a existência de em AF, de uma atmosfera “aconchegante”
uma relação entre rendimento escolar dos em que predominava a preocupação com
estudantes e características físicas da escola. o bem-estar pessoal e com as relações in-
O interesse em relação às instalações esco- terpessoais - a ponto de sentir-se que os
lares em BF foi confirmado através do con- assuntos acadêmicos eram secundários.
teúdo das respostas dadas pelas professoras
e pela direção à pergunta de como a sua As descrições da escola produzidas pela
escola poderia melhorar nesta área. Enquanto turma de estudantes de quarta série tam-
as professoras de AF apenas mencionaram a bém espelhavam a clara ênfase do discur-
necessidade de consertos, as professoras de so regulativo em AF. Essas descrições não
BF expressaram o desejo de expansão: cons- mencionavam nenhum aspecto instrucio-
trução de mais salas de aula, salas para ví- nal da escola (ensino, aprendizagem ou
deo, biblioteca e área para Educação Física, benefícios da escolarização), como acon-
demonstrando um desejo de que a escola teceu nas redações dos estudantes de uma
crescesse e progredisse. turma equivalente na escola BF. As descri-
ções, em AF, versavam apenas sobre tópi-
Cultura escolar cos ligados aos relacionamentos entre es-
tudantes e entre estudantes, professores e
A partir do referencial de Bernstein,
funcionárias (aspectos regulativos), como
pode-se descrever a cultura da escola AF
ilustram os extratos que se seguem10, que
como apresentando um caráter regulati-
caracterizam a percepção predominante em
vo, isto é, valorizando os aspectos de or-
cada instituição:
dem social: a missão básica da escola
- Hoje na minha escola todos estão sem
parecia ser assistencial. A predominância
dinheiro a diretora da minha escola está
regulativa era tão marcante que o discur-
triste porque ela precisa de dinheiro
so instrucional desta escola - aquele que
para arrumar o rádio e comprar grade
é, em geral, mais saliente - permanecia
para botar nas janelas.
relativamente sufocado. A grande impor-
- A minha escola é a [nome da escola e
tância dos aspectos regulativos foi suma-
a rua onde está localizada]. na escola
rizada com precisão por um ex-estudante
eu me sinto bem causa que eu tenho
dessa escola (um dos integrantes do Estu-
muitos amigos.
do Longitudinal de 1982) que fez o se-
(Estudante de uma turma da 4a. série,
guinte comentário: “Parece que a gente
escola AF).
está em casa lá naquele colégio”.
10
Os textos foram reproduzidos de maneira fiel e, portanto, apresentam alguns erros de linguagem.
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
Discurso pedagógico e fracasso escolar 469
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
470 Magda Floriana Damiani
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
Discurso pedagógico e fracasso escolar 471
mas. Nas palavras de algumas professoras Em AF, a causa priorizada era a falta
de AF, havia necessidade desse procedimen- de estabilidade emocional das famílias que,
to para que os estudantes tivessem “mais segundo as professoras, afetam os proces-
chances de passar”. sos de aprendizagem das crianças. Eis a
fala de uma das suas professoras que ex-
A maioria das professoras das duas pressa esta visão:
escolas considerava que o fracasso é cau- -Problemas familiares influenciam mui-
sado por fatores extra-escolares - relaci- to, eu acho, a vida das crianças, seus
onados principalmente às características estudos. Os pais se separam, cada um
familiares dos estudantes. Este tipo de vai para um lado. Uma criança fica com
entendimento reflete uma forte tendên- o pai, a outra com a mãe. O pai não
cia, observada entre as professoras do quer que ela vá para a escola, a mãe
Ensino Fundamental em diversas inves- não está interessada nela... eles, muitas
tigações realizadas no Brasil (MELLO, vezes, tiram a criança da escola para
1985; VERHINE; MELO, 1988; DAVICO, pedir esmola na rua, como é o caso de
1990; GAMA et al., 1991; PENIN, 1994; uma menina que eu tenho [...]
ARROYO, 1997). No entanto, quando o
conteúdo das respostas foi analisado em Os achados referentes às explicações
relação a um continuum regulativo/ins- sobre o insucesso escolar, pelas professo-
trucional, as opiniões das professoras da ras de AF, assemelham-se aos obtidos por
escola BF localizaram-se mais próximas Rosenholtz (1991) ao investigar as chama-
do extremo instrucional desse continuum das escolas “pobres em aprendizagem”,
do que as opiniões das professoras de AF. onde o rendimento dos estudantes era bai-
As professoras de BF enfatizavam a falta xo. Nessas escolas, as características pes-
de suporte acadêmico dado aos estudan- soais e familiares dos estudantes eram fre-
tes por suas famílias e, um número pe- qüentemente relacionadas às suas dificul-
queno delas, mencionava o desempenho dades de aprendizagem. Segundo esta au-
pobre dos professores ou a inadequação tora, as professoras de tais escolas consi-
do sistema escolar para atender às ne- deravam um alívio poder culpar as crian-
cessidades de crianças da classe traba- ças e suas famílias pelo fracasso acadêmi-
lhadora, como causas do fracasso, como co enquanto se isentavam de examinar os
mostra o depoimento a seguir: problemas de suas próprias práticas.
- Olha, eu vou te dizer isto bem baixi-
nho para que ninguém me ouça. Eu pen- O fato de colocar a responsabilidade
so que uma das causas do fracasso es- do fracasso nas crianças e em suas famí-
colar é a falta de interesse por parte do lias possivelmente levou as professoras de
professor. Eu acho que esta é uma das AF a pensar que havia pouca coisa que
causas, porque o professor que está poderiam fazer para melhorar o desempe-
realmente interessado, ele faz! Ele faz nho de seus estudantes. Esta atitude pare-
alguma coisa, ele descobre um jeito, ele ce ter promovido o clima de total aceita-
procura formas diferentes de ensinar e ção da pesquisadora encontrado nesta
[...] faz alguma coisa! Eu diria que esta é escola. O trabalho de investigação foi
uma das causas principais. muito bem recebido em AF enquanto que,
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
472 Magda Floriana Damiani
em BF, duas professoras recusaram-se a soras, é possível supor que as que tra-
ser observadas e houve diversos tipos de balhavam em AF esperassem que seus
pequenos boicotes ao trabalho da pesqui- estudantes apresentassem um desempe-
sadora (deixaram de notificar a aplicação nho pobre. Esta expectativa era, pro-
de algumas provas e a realização de al- vavelmente, transmitida aos estudantes
gumas reuniões, por exemplo). através do discurso predominante - o
regulativo - que enfatizava os aspectos
As comunidades atendidas pelas assistenciais em detrimento dos acadê-
duas escolas eram similares em diversos micos. Desse modo, os estudantes de
aspectos, como já foi relatado anterior- AF construíam sua identidade como pes-
mente. No entanto, houve um achado soas que estavam fadadas a não ter uma
que se considerou surpreendente, já que participação significativa no sistema
contradizia os resultados do estudo de educacional. Os objetivos que prevale-
correlação realizado em Pelotas e de ciam nesta escola eram os de ensinar
outros estudos realizados fora do país11: às crianças as habilidades escolares bá-
as famílias dos estudantes da escola com sicas e de socializá-las de acordo com
maior índice de fracasso tinham, em os valores e os comportamentos-padrão
média, um nível de escolaridade maior da sociedade, impedindo, ao mesmo
do que aquele das famílias dos estudan- tempo, que ficassem abandonadas nas
tes da escola com menor índice de fra- ruas. O acesso ao conhecimento siste-
casso. Como a escolaridade está asso- matizado, acumulado pela sociedade,
ciada ao nível de renda familiar, isso po- o acesso aos princípios mais abstratos
deria estar indicando que o nível socio- que organizam tal conhecimento e o
econômico de AF era mais alto do que o progresso do estudante dentro do siste-
de BF. As professoras de AF, entretanto, ma educacional não eram metas impor-
afirmavam que a maioria de seus estu- tantes a ser atingidas através da esco-
dantes era proveniente de lares “muito larização em AF.
carentes”, talvez pela existência de um
pequeno grupo de famílias muito pobres Em BF, as professoras esperavam que
que freqüentavam esta escola (aproxima- os estudantes fossem bem sucedidos, já que
damente 10% do total). As professoras eram percebidos como pertencentes a gru-
de BF, ao contrário, descreviam as famí- pos sociais que apresentam essa possibili-
lias de seus estudantes como pertencen- dade. Esta expectativa de sucesso criava
do a níveis de renda “médios”, ou como uma cultura organizada em torno do dis-
sendo “remediadas”. curso instrucional, oposta à cultura socia-
lizante de AF. A cultura instrucional permi-
Como a pobreza e os problemas de tia que um maior número de estudantes
ordem emocional dela decorrentes eram alcançasse níveis de desempenho adequa-
vistos como os principais fatores que le- dos para a promoção e permanência no
vam ao fracasso escolar, pelas profes- sistema educacional.
11
A maioria dos estudos correlacionais revisados indicava que quanto maior o nível de escolaridade dos pais melhor o desempenho
acadêmico de seus filhos (DAVIE; BUTLER; GOLDSTEIN, 1972; BIANCHI, 1984; PSACHAROPOULOS; YANG, 1991; ILON;
MOOK, 1991; DAUBER; ALEXANDER; ENTWISLE, 1993; PATRINOS; PSACHAROPOULOS, 1996).
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
Discurso pedagógico e fracasso escolar 473
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
474 Magda Floriana Damiani
Referências
ARROYO, M. Fracasso-sucesso: o peso da cultura escolar e do ordenamento da
educação básica. In: ABRAMOWICZ, A.; MOLL, J. (Ed.). Para além do fracasso escolar.
São Paulo: Papirus, 1997.
______. Class, codes and control: towards a Theory of Educational Transmission. 2nd
ed. London: Routledge & Kegan Paul, 1977. v. 3.
______. Codes, modalities and the process of cultural reproduction: a model,. Language
in society, Pittsburg, n. 10, p. 327-363, 1981.
______. Pedagogy, symbolic control and identity: theory, research, critique. London:
Taylor & Francis, 1996.
BRASIL. Ministério da Educação. O Brasil quer toda criança na escola. Brasília, DF,
[1998?]. Disponível em: <http://www.mec.gov.br>. Acesso em: 16 ago. 1998.
______. Pedagogic discourse and academic failure in southern Brazil. In DANIELS, H.;
GARNER, P. (Ed.). World Yearbook of Education 1999: inclusive education. London:
Koogan Page, 1999.
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
Discurso pedagógico e fracasso escolar 475
DAVICO, M. I. The repeat and drop-out problem: a study in Brazil on the role of the
teacher. Prospects, New York, v. 20, n. 1, 107-113, 1990.
DAVIE, R.; BUTLER, N.; GOLDSTEIN, H. From birth to seven: the second report on the
National Child Development Study (1958 Cohort). London: Longman, 1972.
EMERSON, C. The outer world and inner speech: Bakhtin, and the internalization of
language. In: DANIELS, H. (Ed.). An introduction to Vygotsky. London: Routledge, 1996.
EVANS, P. Children and youths “at risk”. In: OECD. Our children at risk. Paris: CERI,
1995.
FORMAN, E.; MINICK, N.; ADDISON STONE, C. (Ed.). Contexts for learning:
sociocultural dynamic in children’s development. Oxford: Oxford University Press, 1993.
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
476 Magda Floriana Damiani
ILON, L.; MOOCK, P. School attributes, household characteristics, and demand for
schooling: a case-study of rural Peru. International Review of Education, Hamburg,
v. 37, n. 4, p. 429-451, 1991.
IVIC, I. Reviews: profiles of educators: Lev S. Vygotsky (1896-1934). Prospects, New York,
v. 19, n. 3, p. 427-436, 1989.
LERNER, J. V.; GALAMBOS, N. L. The influences of maternal employment across life: the
New York longitudinal study. In: GOTTFRIED, A. W. (Ed.). Maternal Employment and
Children’s Development: longitudinal research. London: Plenum, 1988.
MORTIMORE, P. et al. School Matters: the junior years. Wells: Open Books, 1988.
OFFICE FOR STANDARDS IN EDUCATION. The gender divide. London: Her Magesty’s
Stationary, 1996.
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
Discurso pedagógico e fracasso escolar 477
PENIN, S. A aula: espaço de conhecimento, lugar de cultura. Campinas, SP: Papirus, 1994.
RUSSELL, D. R. Rethinking genre in school and society: an activity theory analysis. Written
Communication, London, n.14, p. 504-554, 1997. Disponível em:
<http://www.public.iastate.edu/~drrussel/drresume.html>. Acesso em: 4 set. 2000.
SCHEERENS, J. Basic school effectiveness research: items for a research agenda. School
Effectiveness and School Improvement, London, v. 4, n. 1, p. 17-36, 1993.
SCHNEIDER, B.; COLEMAN, J. Parents, their children and schools. San Francisco:
Westview, 1993.
STOLL, L.; FINK, D. Changing our schools. Buckingham: Open University Press, 1996.
VERHINE, R.; MELO, A. M. P. Causes of school failure: the case of the state of Bahia in
Brazil, Prospects, New York, v. 18, n. 4, p. 557-568, 1988.
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006
478 Magda Floriana Damiani
WAXMAN, H.; PADRON, Y. Improving the quality of classroom instruction for students at
risk on failure in urban schools, Peabody Journal of Education, Nashville, v. 70, n. 2,
p. 44-65, 1995.
______. Vygostky and the social formation of mind. Cambridge, MA: Harvard University
Press, 1985.
WERTSCH, J.; MINICK, N.; ARNS, F. The creation of context in joint problem-solving. In:
ROGOFF, B.; LAVE, J. (Ed.). Everyday cognition: its development in social context.
Cambridge: Harvard University Press, 1984.
Recebido: 27/09/2006
Aceito para publicação: 30/10/2006
Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.53, p. 457-478, out./dez. 2006