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CURITIBA
2008
2
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................................... 3
ABSTRACT............................................................................................................................... 4
INTRODUÇÃO......................................................................................................................... 5
1 AUTORIDADE POÉTICA E IDENTIDADE FEMININA............................................... 8
2 FRAGMENTAÇÃO, IRONIA E CONFESSIONALISMO............................................ 13
2.1 INTIMIDADE E DIÁLOGOS........................................................................................... 15
3 AS NUANÇAS DA VOZ CONVERSACIONAL.............................................................. 20
3.1 DIÁLOGOS ENTRE CONVERSAÇÕES........................................................................ 25
4 A RELAÇÃO COM O LEITOR NAS OUTRAS SEÇÕES DE A TEUS PÉS.............. 33
4.1 PRECISÃO E METALITERATURA................................................................................ 36
CONCLUSÃO......................................................................................................................... 42
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................. 44
3
RESUMO
Análise dos poemas de A teus pés, publicado pela poeta carioca Ana Cristina Cesar em 1982,
através da identificação de diversas vozes presentes nos poemas e da maneira como
interagem, com o propósito de explorar o processo de criação da identidade poética na poesia
mais madura de Ana C. Baseia-se parcialmente no estudo de Flora Süssekind desenvolvido
em Até segunda ordem não me risque nada: Os cadernos, rascunhos e a poesia-em-vozes de
Ana Cristina Cesar, que identifica algumas das mesmas vozes em Inéditos e Dispersos,
coletânea publicada após a morte da poeta. Demonstra o caráter conversacional da poesia de
Ana C. evidenciado pela insistente presença do elemento da conversa nos poemas, bem como
pela interação com o leitor, e aponta a importância do reflexo do outro na criação da
identidade, salientada através da exploração do tema da conversa ou do elemento do espelho
presente como imagem nos poemas.
ABSTRACT
This paper aims to explore the creation of a poetic identity in Brazilian poet Ana Cristina
Cesar's 1982 book A teus pés, by identifying and analysing several voices present in the
poems and how their interaction and development results in the construction of a self-image
within the poems. The analysis is partly based on Flora Süssekind's Até segunda ordem não
me risque nada:Os cadernos, rascunhos e a poesia-em-vozes de Ana Cristina Cesar, which
identifies some of the same voices analysed here in Inéditos e Dispersos, published after the
poet's death. The paper demonstrates the conversational quality of Ana C.'s work, evidenced
by the presence of the element of conversation in the poems, as well as by the amount of
interaction with the reader; it also points out the importance of the reflection of the other in
the creation of a poetic identity, which can be witnessed in the extensive use of the image of
the mirror or of conversation as a theme throughout the poems.
INTRODUÇÃO
Nascida em 1952, no Rio de Janeiro, Ana Cristina Cesar produziu a maior parte de
seus textos na década de 1970 e no início da década de 1980. Apesar da convivência com
outros poetas do movimento batizado por Heloísa Buarque de Hollanda de 'poesia marginal',
como Chacal, Charles, Waly Salomão, Leila Micolis, Torquato Neto, etc., a dicção de Ana C.
apresentou, desde o início, uma distinção e sofisticação notáveis, bem como algumas
diferenças de cunho mais ideológico: enquanto aqueles praticavam uma total rejeição da
tradição literária que persistia até então, Ana C. evidencia em sua produção literária um
processo de digestão desses textos e formação da própria voz poética. No entanto, alguns
elementos chegam a aproximá-la dessa geração de 1970, também chamada de “geração
mimeógrafo” devido à técnica de impressão que utilizavam para publicação independente de
seus textos; entre eles está justamente o uso dessa técnica, através da qual publicou seus
primeiros livros, Cenas de abril e Correspondência completa, bem como a inclusão da
linguagem coloquial nos poemas e o empenho para criar na própria dicção poética uma
naturalidade que lembrasse a linguagem cotidiana sem, entretanto, perder a literariedade.
Em 1982, Ana C. publica A teus pés, seu primeiro livro em uma editora de grande
porte, que, além do conteúdo novo que compunha a seção homônima do livro, incluiu
também os textos de Cenas de abril, Correspondência completa e Luvas de pelica,
previamente publicados independentemente. No ano seguinte, sua carreira chega ao fim
quando a poeta comete suicídio; em 1985 é publicado o volume Inéditos e dispersos,
organizado por Armando Freitas Filho e constituído de uma seleção dos textos não publicados
de Ana Cristina.
Na segunda metade da década de 1980, Flora Süssekind escreve um ensaio “que
serviria de introdução a um volume que devia incluir toda a poesia traduzida por Ana Cristina
Cesar” (SÜSSEKIND, 2007, p. 7), entre outros textos da poeta; embora o projeto não tenha
sido completado, Süssekind publicou seu ensaio isoladamente com o título Até segunda
ordem não me risque nada: Os cadernos, rascunhos e poesia-em-vozes de Ana Cristina
Cesar. Além de explorar a importância da tradução no desenvolvimento de Ana C. como
poeta, Süssekind faz uma análise de Inéditos e dispersos que descreve vozes distintas e
relativamente nítidas encontráveis nos poemas desse livro. Tendo em mente essa identificação
das vozes específicas surgidas na poesia de Ana Cristina, o objetivo deste trabalho é realizar
uma análise análoga à de Süssekind, concentrada em A teus pés, explorando, assim, o
processo da criação de uma identidade poética na produção mais madura de Ana C..
6
As principais vozes percorridas ao longo desta análise são: a voz irônica, a voz íntima
ou confessional, a voz do diálogo literário ou cultural, e a voz da conversação. A primeira
consiste no papel da ironia no distanciamento e observação de si mesmo por parte do eu
poético; a voz confessional foi batizada dessa forma devido à semelhança de tom com textos
dos poetas americanos chamados “confessionais” ou “confessionalistas” – Sylvia Plath, Anne
Sexton, Robert Lowell, etc. A questão da intimidade com o leitor é explorada nessa segunda
voz, e inclui a abordagem de temas considerados “tabus”, livre trânsito por assuntos
especificamente femininos e uma falta de pudor ao lidar tanto com temas sexuais quanto
sentimentais. O diálogo literário ou cultural aparece na forma de referências mais ou menos
explícitas a textos externos, bem como a elementos da cultura popular, e representa, em parte,
a idéia da “digestão” da tradição literária e a participação dela na construção de uma
identidade própria. A voz da conversação é, talvez, a mais extensamente trabalhada nos textos
de Ana Cristina e um dos aspectos mais enfatizados por Süssekind: a literatura de Ana C.
constrói-se a partir da idéia de interação verbal ou diálogo, que se apresenta de diversas
maneiras – como confissão entre o eu poético e o leitor, como conversa entre dois
personagens (que podem ou não ser identificados com o eu poético dentro do poema), ou
mesmo como o diálogo intertextual já mencionado. De fato, esse elemento parece ser a base
da maioria dos poemas de A teus pés, de maneira que a interação com as outras vozes é o que
forma a dicção única de Ana Cristina Cesar.
Três outras vozes 1 recorrentes na poesia (e prosa poética) de A teus pés, embora menos
centrais que as quatro mencionadas acima, são a voz puramente observadora, que trabalha
com o jogo de imagens seco e reticente, sem necessariamente relacionar as imagens umas às
outras ou com o restante dos versos; a voz da precisão, que aparece para, talvez,
contrabalancear a imprecisão inerente da criação das vozes nos textos de Ana C. – poemas em
forma de verbetes de enciclopédia, textos técnicos, etc.; e a voz do exercício literário, que se
ocupa com elementos mais formais como rimas, aliterações, trocadilhos, metatexto, e também
dá conta do aspecto que tende ao ideológico, referente a idéias sobre o fazer literário ou
questões representativas da geração literária da poeta.
O processo de identificação dessas vozes e de estabelecimento de relações entre elas,
bem como o questionamento do seu papel na construção da identidade poética nos textos de
Ana C. chegam a demandar uma abordagem contínua e fluida ao texto, de maneira que a
1 Süssekind trabalha também com a idéia de uma voz “pictográfica”, referente aos aspectos visuais dos
poemas; em A teus pés a presença dessa voz é mínima e chega a ser questionável. Decidimos, portanto, não
abordá-la no trabalho.
7
segmentação foi feita da seguinte maneira: no capítulo I, discutiremos idéias teóricas gerais de
literatura feminina e autoridade poética, baseados nos textos de Virginia Woolf e Cristovão
Tezza. Em seguida, no capítulo II, exploraremos principalmente a presença da ironia e da
idéia de “confessional” nos poemas; o capítulo III é dedicado à exposição da voz
conversacional e as dimensões que pode tomar no texto de Ana Cristina. O capítulo IV aborda
as questões da relação com o leitor nos três outros livros que compõem A teus pés, bem como
a idéia da precisão e a reflexão sobre o próprio texto. Na conclusão, discutiremos a relevância
da aplicação desse ponto de vista de análise das vozes sobre o processo criativo evidente nos
poemas de Ana Cristina Cesar.
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Se for possível uma classificação da poesia de Ana Cristina César, e de A teus pés,
especificamente, em diferentes vozes que ressurgem ao longo do livro com maior ou menor
freqüência, ela se dá somente na medida em que se aceita a inevitável interpolação e a
intercomunicação entre essas vozes. Süssekind afirma que das duas “possibilidades” surge
“uma terceira dicção – necessariamente imprecisa” (SÜSSEKIND, 2007, p. 28), o que sugere
a noção de que a identidade do eu poético se molda não através das próprias vozes, somente,
mas necessariamente da mistura delas. A poeta constrói esse eu poético de modo
multifacetado, mas simultaneamente homogêneo, e sem fazer questão de esconder os
andaimes: o leitor observa, desnudas, tanto as vozes individuais como a sinfonia que
produzem juntas. O efeito é de exposição; tanto inocente quanto exibicionista.
Tendo em mente essa perspectiva de análise, é inevitável que se note ao longo dos
textos de Ana C. a afirmação de uma presença essencial e explicitamente feminina. Essa
feminilidade permeia todas as outras vozes e surge em um nível mais básico: a marca de
feminino parece mais sutil e inerente à maioria dos poemas e textos de prosa, de maneira que
o uso de pronomes, artigos e mesmo nomes próprios femininos é feito com naturalidade e
com uma aparente falta de pretensão. A questão da busca da identidade associada à noção de
feminino é abordada por Virginia Woolf em Um teto todo seu, texto de 1929, em que a autora
cria uma personagem com o objetivo de refletir sobre as relações entre a mulher e a literatura.
Ao ter em mãos o livro de uma autora fictícia, Mary Carmichael, a personagem criada por
Woolf imagina uma interação com essa autora:
(...)
Todas essas vidas obscuras [da maioria das mulheres] permanecem por registrar, disse eu, dirigindo-me
a Mary Carmichael como se ela estivesse presente; e prossegui em pensamento pelas ruas de Londres[.]
(...) “Tudo isso você terá que explorar”, disse eu a Mary Carmichael, segurando a tocha firmemente em
suas mãos. “Acima de tudo, você deve iluminar a própria alma, com suas profundezas e
superficialidades, e suas vaidades e generosidades, e dizer o que sua beleza significa para você, ou sua
feiúra, e qual é a sua relação com o mundo permanentemente mudando[.] (...)
Woolf propõe que, não apenas a autora mulher tem uma obrigação (talvez moral) de
explorar literariamente a vida das mulheres comuns, “a maioria das mulheres [que] não é nem
de meretrizes nem de cortesãs” (WOOLF, 1985, p. 117), mas tem, “acima de tudo”, que
explorar a própria identidade e explicitá-la, conhecer-se. Ana Cristina Cesar torna público o
processo da busca pela identidade no sentido de que convida o leitor a participar dele, ainda
9
que de maneira passiva. O texto torna-se, então, não apenas o resultado dessa busca, a
produção intelectual realizada e bem desenvolvida, mas a própria busca; a afirmação da poeta
pode ser a de que há relevância sob um ponto de vista artístico e intelectual na própria
construção da identidade.
Em outro momento do texto, a personagem de Woolf, ao refletir sobre as grandes
romancistas da língua inglesa do século XIX, comenta a idéia de presença feminina ou marca
de feminino no texto narrativo:
(...) E pensei em todos os romances de mulheres espalhados (...) pelos sebos de Londres. O defeito no
centro é que os havia estragado. A mulher havia alterado seus próprios valores em respeito à opinião
alheia. (...) Que talento, que integridade deve ter sido necessária diante de toda aquela crítica, em meio
àquela sociedade puramente patriarcal, para que elas se ativessem à coisa tal como a viam, sem se
acovardarem. Apenas Jane Austen conseguiu, e Emily Brontë. (...) Elas escreveram como as mulheres
escrevem, e não como os homens. Dentre todos os milhares de mulheres que escreveram romances na
época, somente elas ignoraram por completo as admoestações perpétuas do eterno pedagogo – escreva
isto, pense aquilo. (...)
Intratável.
Não quero mais pôr poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
muito sóbria e dura,
não pergunto
“da sombra daquele beijo
que farei?”
(...)
(CESAR, 1999, p. 65)
Noite de Natal.
Estou bonita que é um desperdício.
Não sinto nada
Não sinto nada, mamãe
Esqueci
(...)
Entretanto sou moça
estreando um bico fino que anda feio,
pisa mais que deve,
me leva indesejável pra perto das
botas pretas
pudera
(CESAR, 1999, p. 92)
Cada um dos poemas pode ser interpretado tendo em mente a idéia de feminino e
como o restante dos versos caracteriza essa figura, ou como ela se vê refletida neles; no
entanto, o que têm em comum e, talvez, como característica mais marcante, é a própria referência
ao gênero ou sexo do eu poético que fala – ele próprio se assume como uma entidade
feminina, principalmente através de adjetivos (“dura”, “linda, gostosa”, “discreta”, “bonita”),
cuja presença pode ser vista como casual e, até certo ponto, sutil: a afirmação da feminilidade
do eu poético não toma conta dos poemas, apenas existe. É interessante estabelecer um
contraste com a obra de outras poetas, como a paulista Hilda Hilst, cujas primeiras
publicações datam de 1950. Embora a maioria dos poemas de Hilst apresente alguma
indicação de identidade feminina por parte do eu poético, há instâncias em que ele assume
uma identidade masculina através do uso de adjetivos; por mais que a idéia possa ser mais
direcionada a uma neutralidade do eu poético do que a uma afirmação do masculino, é, ainda
assim, a não-afirmação do feminino:
Apesar da sutileza do elemento feminino nos poemas de Ana C., a própria auto-
caracterização do eu poético como feminino acaba por destacar-se; aqui, entretanto, a
masculinidade ou neutralidade do eu poético (e a própria identificação do neutro com o que é,
gramaticalmente, masculino, talvez explique a razão para o estranhamento – o feminino é o
não default) pode até passar despercebida pelo leitor.
Um outro aspecto sob o qual se pode ler a poesia de Ana Cristina Cesar como esse
jogo de vozes é o da idéia bakhtiniana de autoridade poética: dentro do universo do poema, as
palavras passam a pertencer ao poeta – mesmo uma outra voz que não seja claramente a do
seu eu poético, por exemplo. Cristovão TEZZA, no ensaio “Mikhail Bakhtin e a autoridade
poética”, comenta esse ponto da seguinte forma:
(...)
E quanto à autoridade poética? Bakhtin dirá que, ao contrário do que acontece na prosa, na poesia, no
discurso poético em sentido estrito (no máximo do espectro poético, lembrando a relação quantitativa
dessas forças), o autor coloca todo o peso de sua autoridade sobre cada uma de suas palavras. É
evidente que no mundo dialógico da linguagem também o poeta vive imerso no plurilingüismo, nas mil
linguagens sociais que nos rodeiam e que estão presentes em toda enunciação. Mas a palavra alheia,
quando entra no discurso poético estrito, perde a sua autonomia vital, perde os traços capazes de fazer
dela uma voz outra que se contraponha à voz do poeta.
Quando o poeta fala, só o poeta fala – é exatamente dessa autoridade primeira que a poesia conquista o
seu terreno. Todos os recursos técnicos do discurso poético reforçam essa centralização absoluta do
discurso, descolam a palavra da sua vida cotidiana, promovem um corte radical entre a palavra do poeta
e a palavra dos outros, isolam a linguagem num casulo único. O metro, a rima, a música, o ritmo, a
quebra visual da leitura padronizada, o uso do espaço em branco, a fragmentação, a negação da
linguagem prosaica em cada um de seus estratos, o cruzamento de códigos, a singularização máxima
dos sentidos e dos significados, da sintaxe e do léxico, todo esse arsenal é usado a serviço da absoluta
centralização da linguagem.
O poeta tira a linguagem do mundo corrente e congela-a num objeto verbal que concentra em si um
máximo de autoridade. Todo poema é a atualização de uma espécie de púlpito da linguagem. No próprio
impacto visual que ele celebra, (...) em toda parte em tudo o poema se faz púlpito, expressão de uma
autoridade poética que chama a si a responsabilidade total de cada uma de suas palavras.
O poeta pode fazer o que quiser da linguagem; ele é proprietário absoluto dela; ele coloca todo o mundo
da linguagem a serviço de sua voz. O poeta é alguém que outorga a si mesmo o direito de falar com toda
a autoridade possível de sua voz.
(...)
(TEZZA, 2008)
certamente são exemplos dessa não-pureza do texto poético; tanto sua poesia quanto sua prosa
são freqüentemente “contaminadas” uma pela outra. Entretanto, a aplicabilidade da autoridade
poética na questão das vozes criadas por Ana C. torna-se mais plausível à medida que se
considera a construção da identidade – poética e, talvez, pessoal – como objetivo principal da
fragmentação no estilo de composição da poeta. A identidade representa a centralização, a
unificação; a multiplicidade de vozes submete-se a esse eixo central – assim como “a palavra
alheia” submete-se à voz do poeta. Se existe a criação de um leque de vozes a partir do eu
poético de Ana C., ele vai sempre em direção a um ponto único: o de auto-definição.
13
Silêncio
retornando sobre quedas
paralisia em caixa, crédito e cheque onde
risco assinatura de meu nome; hipnótico aconchego dos
números menores, em firmas menores que ainda registram
arabescamente seus lucros; eu queria:
A última estrofe não apenas coloca a imagem do espelho, que em si representa a auto-
imagem do eu poético, em cacos, mas insiste na noção de que “não se deve ter ignorância do
ferimento” (CAMARGO, 2003, p. 129); “saibamos” qual é o processo por que passamos. O
ferimento, representado pelo corte dos cacos “que desaba[m]”, é o da própria fragmentação e
desconstrução, necessária ao processo de auto-conhecimento e descoberta da identidade.
Como crítica (e, conseqüentemente, como poeta – ou vice-versa), Ana C. procura investigar o
fazer poético seu e de seu tempo em relação à tradição assimilada, ligação que CAMARGO
(2003, p. 53) coloca como a questão central da poesia de Ana, e à noção de feminino como
identidade pessoal e literária:
“(...) Ana Cristina dá a [seus ensaios] a mesma forma de distribuição e circulação alternativas que vinha
acontecendo na poesia. Aponta, também através de um elemento marginal ao texto, para a aproximação
entre esses dois gêneros, tradicionalmente muito distintos, e ainda para uma tensão que marca
profundamente sua obra poética: a tensão entre o apreço pela tradição literária e os vínculos com a
poesia 'antiintelectual' e 'espontânea' de sua geração. Outro modo de expressar a tensão entre passado e
presente, entre a tradição de modernidade e o seu próprio tempo aparentemente sem tradições.”
Essa investigação é, talvez, a força por trás da fragmentação voluntária do “eu” que já
existe, refletido no espelho, e da absorção dos cacos através da pele – um processo que, apesar
de machucar, em última instância formará uma amálgama originária de uma nova (no sentido
de recentemente descoberta) identidade. A amálgama, e a identidade, são o que surge nos vãos
homogeneizados das vozes nos poemas, e na produção mais madura de A teus pés o processo
é mais claro e plenamente desenvolvido.
15
(...)
E mais não quer saber
a outra, que sou eu,
do espelho em frente.
Ela instrui:
deixa a saudade em repouso
(em estação de águas)
tomando conta
desse objeto claro
e sem nome.
(CESAR, 1999, 69)
Nesses últimos versos, o eu poético explicita a idéia de “outr[o]” como sendo a própria
imagem no espelho, e um outro que “instrui”, ensina a viver, interage. Neste outro poema,
sem título, a idéia é muito menos explícita, mas ainda assim presente:
Uma outra dessas vozes identificáveis nos poemas é a mais claramente relacionável
com a idéia de ‘confessional’, cujo tom, na resenha “Tédio Machadiano”, a poeta identifica
como “invejado” (CESAR, apud CAMARGO, 2003, p. 63). Trata-se de uma voz que se
apresenta íntima, sem muitos escrúpulos, expondo-se e centrada em si mesma, que é
freqüentemente desenvolvida no texto através do texto “diarístico” e da correspondência,
embora não exclusivamente através dessas formas. De acordo com CAMARGO (2003, p. 60),
os artigos de Ana Cristina publicados na segunda metade de 1976 tratam da questão dos
limites da ficção, das relações entre literatura e biografia, história, documento, da própria
16
idéia de confissão contida em um universo literário – “pensadas a partir das formas literárias,
dos gêneros”. Camargo aponta as formas do diário e da correspondência como “formas que
permitem a elaboração dessas questões a partir do texto”. Esse desenvolvimento parte de uma
reflexão profunda sobre a arte e, especificamente, sobre as questões mencionadas. A título de
comparação, os poetas responsáveis pela propagação do estilo confessional nos Estados
Unidos, mais de dez anos antes, mantinham-se, de maneira geral, contidos ao máximo dentro
dos limites do poema, com raras participações de outros gêneros 2.
O tempo fecha.
Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos que não
largam! Minhas saudades ensurdecidas por cigarras! O que faço
aqui no campo declamando aos metros versos longos e sentidos?
Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não sou mais, veja,
não sou mais severa e ríspida: agora sou profissional.
2 Robert Lowell, em Life Studies, mistura seções de prosa e poesia sem, no entanto, recorrer a estilos
alternativos claros, como é o caso de Ana C.
17
cultura lusitana; isto sustenta a metáfora de “[o] tempo fecha.” A própria exposição do estado
emocional, que, por sua vez, conduz o tom do poema inteiro, vem sutilmente inserir o
ambiente literário da confissão na mente do leitor. Nos dois últimos versos, a ironia surge
novamente, embora sutil: “e agora não sou mais, veja, / não sou mais severa e ríspida: agora
sou profissional.” O eu poético pode estar descrevendo uma diferença na maneira de ver a si
mesmo, mais neutra, ou até mesmo mais adulta, sem o julgamento tão prontamente
emocional; pode, também, estar se referindo à maneira como é visto pelos outros. O tom dos
dois versos sugere um leve deboche, como se, em última instância, a qualidade que lhe foi
designada – por si próprio ou por outros – não fosse importante.
Nos primeiros versos, surge um outro elemento importantíssimo na poesia de Ana C.:
o da conversação. O primeiro verso já sugere a presença de um outro alguém, além do eu
poético: este usa o verbo na primeira pessoa do plural. O segundo verso traz um imperativo,
que define, ao menos parcialmente, o tom da relação entre o eu poético e essa outra pessoa; no
terceiro verso, vê-se um vocativo, enfim: “deusa”. As referências diretas a interações com
essa interlocutora acabam, mas esses primeiros versos podem sugerir inicialmente que o
poema inteiro seria uma conversa (embora a porção narrativa do texto, a partir de “Aí então
19
Um outro exemplo desse diálogo implícito com uma forma narrativa mais
desorganizada é “Segunda história...”:
21
no penúltimo verso. A forma do texto, muito próxima da prosa, é comparável aos versos 9-13
da primeira parte de “Duas antigas”, que, por sua vez, remete ao estilo de Clarice Lispector e,
novamente, pode representar uma assimilação da voz literária de outra como parte do
progresso da sua.
No poema “Sete chaves”, temos o seguinte:
É um outro indivíduo que aparece, ou é o eu poético inicial que cria sua própria
resposta (talvez a mais desejável), como quem conversa com o próprio reflexo no espelho? A
segunda voz (ou será a primeira?) admite estar “tocada pelo fogo” - o fogo do segredo, da
rebeldia, da cumplicidade, talvez – e, em seguida, oferece “[m]ais um roman à clé”, usando,
pela segunda vez, a língua francesa e definindo, dessa forma, o tom mais e elevado e talvez
até blasé do poema. O tratamento casual do “roman à clé” como se fosse uma xícara de chá
ou algo que pode ser consumido mais de uma vez durante uma conversa introduz sem
cerimônias a literatura no cotidiano tal como é descrito pelo eu poético, e introduz, também, o
23
O verso que segue é solitário e definitivo: “[n]em te conheço.” Se esta é a mesma voz
que, no início do poema, ofereceu informações particulares e guardadas “a sete chaves”, a
repentina despersonalização do interlocutor pode simbolizar a liberdade do anonimato, da
revelação de informações a quem é desconhecido. Por outro lado, pode referir-se à hesitação
de definir-se, prontamente, diante do interlocutor, embora este se mostre cúmplice: como
quem diz, “não te conheço, não tenho obrigação de definir a minha identidade para você”. O
processo de auto-descoberta pode se dar em público, mas é, em última instância, pessoal e
particular.
Em “Conversa de senhoras”:
Depois de invocar a imagem do gato, que remete aos poemas que Camargo chama de
“da gatografia”, em Inéditos e dispersos, o eu poético decide que “[e]scritor não existe mais”,
a que uma outra voz (ou a mesma) responde, “[m]as também não precisa virar deus”. A
menção ao escritor pode constituir uma referência metaliterária de algum tipo – é possível que
uma das vozes seja uma projeção da própria poeta. O pessimismo do primeiro dos dois versos
é contrabalanceado com a associação da imagem do escritor à de deus – com 'd' minúsculo, ou
seja, uma divindade, simplesmente, sem a referência específica ao Deus cristão. “Você acha
que ele agüenta?” pode referir-se ao verso anterior (“[t]em alguém na casa”), ou aos
primeiros, lembrando, novamente, o dinamismo da oralidade, em que não há uma seqüência
perfeita de enunciações e suas respectivas respostas.
Em seguida, “[s]r. ternura” traz uma referência um pouco mais vaga à cultura
anglófona; a expressão está em português, mas é típica à língua inglesa; o diálogo com outra
cultura e o fato de estar tão bem absorvida invocam uma sensação de modernidade e
flexibilidade verbal e literária. Os últimos versos mostram, novamente, a dinâmica da
conversa/discussão, inspirando uma necessidade de agilidade por parte do leitor para que este
seja capaz de acompanhar; o último verso, com “[n]ão começa”, reforça o tom de
familiaridade entre as duas (ou mais?) vozes que discutem ao longo do poema. A
espontaneidade da interação familiar pode inspirar insights no eu poético que procura se
conhecer; por outro lado, se as vozes forem criadas pelo mesmo eu poético, a familiaridade,
além de óbvia e natural, lembra, novamente, a imagem no espelho: o eu, no outro.
poético e a esse indivíduo com quem ele se encontra “[f]rente a frente”; nos dois últimos
versos, o eu lírico dirige-se diretamente a ele, pedindo que “não tom[e] medo desta alta
compadecida passional”. A sutileza do papel de observador do eu poético é, talvez,
responsável por introduzir delicadamente o próprio leitor a essa posição; colocando-se na
própria cena que descreve, ele passa seus “binóculos” de observador para o seu leitor, mas
sem abandoná-lo completamente. O tema sustentado pelos elementos religiosos (“catedral”,
“alta compadecida”, “santa”) cria uma atmosfera de gravidade e intensidade que
possivelmente espelha a intensidade do encontro retratado.
Movido contraditoriamente
por desejo e ironia
não disse mas soltou,
numa noite fria,
aparentemente desalmado;
- Te pego lá na esquina,
na palpitação da jugular,
com soro de verdade e meia,
bem na veia, e cimento armado
para o primeiro a andar.
cultura, mas a relação com o álcool (“bitter” é um termo usado para designar um tipo de
cerveja inglesa, e “pub” é um bar, também específico à cultura inglesa) garante, também, o
sentido de fuga mental. Quem toma “bitter” no “pub” não é o eu poético, mas seu interlocutor,
e a idéia de tensão na relação entre eles é explorada nos três últimos versos: “pensando em /
mim entre um flash e outro de felicidade” sugerem que a imagem mental do eu poético difere
da de felicidade (que, por sua vez, pode estar relacionada com o próprio consumo de álcool).
O último verso fala de “sabor do teu amor”, que pode criar uma relação sinestésica com
“bitter”, e introduz uma outra interpretação do eu poético por parte de si mesmo: confessa que
ama “estranha, / esquiva” – mais uma vez, não oferece julgamento sobre si mesmo, mas
descreve-se como é sem esperar pela aceitação alheia.
Poemas como “Atrás dos olhos das meninas sérias” (I) demonstram como a idéia de
conversação é sutil e, talvez, até tratada como default nos poemas, de maneira que outras
vozes têm a chance de expressão mais óbvia sobre o pano de fundo do diálogo, explícito ou
implícito:
O uso da segunda pessoa do plural cria uma dupla camada dialogal, à medida que
simultaneamente indica a idéia de interação verbal e proporciona uma elevação no tom do
poema, lembrando o diálogo entre estilos textuais. A sofisticação do vocabulário presente de
maneira mais geral no poema também é responsável por tal elevação, embora o uso de “-vos”
seja definitivo. O título explicita, até certo ponto, o assunto do qual fala o eu poético;
entretanto, é essencial a idéia de que ele fala a alguém. Na produção de Ana C., como o
poema acima, embora diminuto, exemplifica de maneira clara, é possível dizer que o diálogo
faz o papel de justificativa para a pronunciação do eu poético; sem ter a quem contar o que
conta nos poemas, não há razão para a existência deles. “Atrás dos olhos das meninas sérias”
sugere um tema de exploração psicológica, talvez do próprio eu poético – entretanto, qual é o
objetivo disso, se não o de exposição a um interlocutor, de discussão e exploração do tema
com uma outra voz?
No segundo poema chamado “Atrás dos olhos das meninas sérias”:
O tom mais elevado já foi eliminado; o eu poético impõe-se sem muitos rodeios: “[m]e
entenda faz favor”. Novamente, a idéia de diálogo ou conversa do eu poético com um
interlocutor é a base para o desenvolvimento do poema, introduzindo-se sutil mas firmemente.
A aliteração do início traz à tona uma outra voz relativamente freqüente nos poemas de Ana
C., a do exercício literário: rimas, aliterações, trocadilhos, metatexto, etc. Os primeiros versos
apresentam um jogo de imagens sem relação explícita, que lembra a voz observadora presente
em “Conversa de senhoras”. Tanto “Charlie's Angel”, que faz referência à a série de televisão
norte-americana produzida na década de 1970, quanto o filme “Seven Year Itch”, de Marilyn
Monroe, lançado em 1955, representam referências talvez um tanto icônicas à cultura pop,
além de referências lingüísticas; é possível que não cheguem a datar o poema, uma vez que
remetem a pontos relativamente distantes do século XX; juntamente com as outras vozes no
poema, inclusive a auto-expositiva, presente de maneira sutil em quase todos os versos, cria
uma imagem um tanto elusiva do eu poético, embora sustentada pelos versos: acima de tudo,
alguém com a mesma qualidade blasé presente em outros poemas, como “EXTERIOR.
DIA....”
“Samba-canção” tem uma dedicação mais clara à comunicação com um interlocutor:
A posição em que se coloca o eu poético aqui é bem distinta; sem vitimizar-se, explora
a idéia de submissão emocional a um outro indivíduo, que trata, simplesmente, por “você”. O
título, um trocadilho (invocando, novamente, a voz do exercício literário), remete à linguagem
e a temas comuns à música popular. No entanto, o eu poético toma essas características e
veste-as, moldando-as ao próprio contorno e estilo. A partir do quinto verso, ele passa a listar
diferentes personas que diz ter assumido para fazer “você gostar”, fazendo referência, talvez
às próprias identidades poéticas que assume ao procurar a sua própria voz; a menção aos
“poemas que perd[eu]” no primeiro verso pode sustentar essa interpretação. Em última
instância, olhando sob esta perspectiva, “você” pode representar a entidade ou indivíduo para
quem escreve (ou, simplesmente, fala) o eu poético: o leitor. Através da metáfora do amor
romântico para representar a relação entre o eu poético e o seu leitor, o poema revela, de
maneira inusitada, o tom desse relacionamento sob o ponto de vista do eu poético. Usando a
referência da música popular para comunicar-se com o leitor, descrevendo o processo de
criação poética e a busca pela própria identidade contida nele, o eu poético cria um ambiente
quase divertido, quase brincalhão: um flerte misterioso em que ambas as partes conhecem os
fatos, mas inventam um jogo mútuo de ignorância proposital.
“[R]isinho modernista / arranhando na garganta” faz uma referência explícita à história
literária; além da interpretação sugerida no parágrafo anterior, estes dois versos podem sugerir
a metáfora contrária: é possível que o eu poético tenha adaptado uma analogia ou metáfora do
mundo literário para sua própria história. Assim como a literatura ocidental, de maneira mais
ampla, passou pelo modernismo, um momento de dolorosa e radical mudança nos conceitos
considerados importantes até então, talvez da mesma forma o eu poético tenha passado por
essa mudança bruta em um nível emocional, aceitando completamente o “risinho modernista”,
muito embora ele saia “arranhando na garganta”. Sob esse ponto de vista, é possível uma
interpretação deste “você” tanto como sendo o leitor quanto um outro indivíduo qualquer com
quem o eu poético pode ter tido um envolvimento romântico.
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(...)
Penso pouco no Thomas. Passou o frio dos primeiros dias. Depois, desgosto: dele, do pau dele,
da política dele, do violão dele. Mas não tenho mexido no assunto. Entrei de férias. Tenho medo que o
balanço acabe. O Thomas de hoje é muito mais velho do que eu, não liga mais, estuda, milita e amor na
sua Martinica de longos peitos e dentes perfilados, tanta perfeição.
Atraída pelo português de camiseta que atendeu no Departamento Financeiro. Era jacaré e
tinha bigode de pontas. Ralhei com tesão que me deu uma dor puxada.
(...)
(CESAR, 1999, p. 117)
Como o trecho acima demonstra, além da própria voz da conversação que é, talvez, a
característica primária do texto da carta, é possível a identificação da voz confessional
permeando cada frase do texto, bem como o diálogo com a forma da carta, da qual o texto se
apropria sem cerimônias. A digestão do estilo da carta parece ser completada no conteúdo de
Luvas de pelica, em que a poesia é usada no texto, mas o tom da carta continua evidente. O
texto é formado por pequenos trechos separados apenas por espaço no papel, em que versos e
prosa alternam-se. Alguns dos mais longos adotam o tom tradicional da carta presente em
Correspondência completa; a aparente aleatoriedade das informações apresentadas em cada
trecho remete à cumplicidade compartilhada por dois indivíduos que trocam cartas:
explicações não são necessárias quando ambos estão cientes do que as informações contidas
no texto representam; o leitor, por outro lado, é exposto apenas ao que consta no papel – e
imagina o restante. A própria literariedade do texto talvez esteja contida no mar de
possibilidades que este indica.
34
(...)
Tenho certeza de que você não pintaria as paredes de preto.
“Querida,
Hoje foi um dia um pouco instável em Paris.
Recebeu meu primeiro cartão-postal?”
(Me dei ao luxo de ser meio tipo hermética, “assim você se
expõe a um certo deboche”, amoroso sem dúvida, na mesa do
jantar.)
Não dá para ver, eu sei,
mas meu desenho guarda sim
você
não fala
trai
um desejo pardessus tous les autres,
mesmo nesse penúltimo pato aqui, está vendo, que eu cobri
mais um pouco naquele dia em que não gritei de raiva,
mas não fui eu que pintei a galeria de preto, você sabe que eu
não sou sinistra.
O manequim de dentro, reflexo do manequim de fora. Se você
me olha bem, me vê também no meio do reflexo, de máquina
na mão.
(...)
(CESAR, 1999, p. 128)
O uso dos versos pode ser uma maneira de fazer a referência específica ao leitor,
chamar a atenção deste: se a carta, por não representar tradicionalmente o texto literário, pode
colocar o leitor em uma posição de intromissão, tirando-o de seu conforto, o poema devolve a
ele um lugar mais evidente. A presença do outro, do destinatário, do “você” ou “tu” dentro do
texto não passam de teatro - “[a] intimidade era teatro”. O eu poético que se esconde,
brincalhão ou tímido, dentro do texto prosaico da carta, aqui acaba por revelar-se dentro da
própria carta, relembrando ao leitor que este tem permissão de estar ali, exposto aos segredos
e experimentações do texto. Nos últimos três versos do trecho citado acima, o eu poético
chama atenção às entrelinhas do texto e aos vãos entre as vozes que se manifestam: “Se você /
me olha bem, me vê também no meio do reflexo, de máquina / na mão”. Desta vez, o reflexo
está inteiro, não são cacos perfurando o rosto do eu poético como no poema de Inéditos e
Dispersos citado anteriormente. Não apenas o eu poético convida seu interlocutor (o “você”,
talvez inventado, e também o leitor) a ver a sua imagem refletida, como fica diante dela com
“máquina / na mão”. Se essa “máquina” for uma máquina fotográfica, a posição do eu poético
diante da sua imagem pode ser interpretada como aceitação, interesse – ou mesmo narcisismo.
Em “Fogo do final”, de A teus pés:
Escrevendo no automóvel.
Pedra sobre pedra: você estava para chegar.
Numa providência, me desapaixonei, num risco, numa frase:
Não adiantam nem mesmo os bilhetes profanos pela
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grande imprensa.
(...)
[...] dirijo em círculo pelo maior passeio
público do mundo, nos perdemos – exclamo num achado –,
é tardíssimo, um deserto industrial com perigosas
bocas imperguntáveis.
Não precisa responder.
(...)
Me jogo aos teus pés inteiramente grata.
Bofetada de estalo – decolagem lancinante – baque de fuzil.
É só para você, y que letra tán hermosa.
(...)
A amizade recente com o carteiro do Brasil, que entra vila
adentro e bate na janela e me entrega o envelope pelo nome.
Os grunhidos do ciúme. Minhas escapadas pelo grande mundo,
suas retiradas para dentro da sólida mansão. Não foi nada disso.
Então o quê?
26 de março.
Preciso começar de novo o caderno terapêutico. Não é como o
fogo do final. Um caderno terapêutico é outra história. É
deslavada. Sem luvas. Meio bruta. É um papel que desistiu de
dar recados.
(...)
Nele eu sou eu e você é você mesmo. Todos nós.
(...)
O terapêutico não se faz de inocente ou rogado. Responde e
passa as chaves. Metálico, estala na boca, sem cascata.
E de novo.
(CESAR, 1999, p. 81-83)
Como em vários outros poemas, a presença de “você” logo nos primeiros versos deixa
clara a natureza de interação entre o eu poético e um outro alguém; a confissão é mais uma
conversa franca, verdadeira. Ao assegurar ao seu interlocutor que este “[n]ão precisa
responder”, o eu poético novamente traz à tona a possibilidade da interação implícita com o
leitor. Ambos já sabem que a condição para que tal interação exista é que ela seja apenas de
um lado: o eu poético fala, o leitor absorve, não tem voz explícita. Aqui, o eu lírico aceita
isso, com naturalidade ou, quem sabe, com um leve tom magoado. A inclusão de um trecho
em espanhol (“y que letra tán hermosa”) pode consistir em uma referência a um texto externo
– Borges, talvez? –, uma vez que nada no texto explica ou reforça a presença do trecho. O
verso “26 de março” lembra o início de uma página de diário (ecoando, talvez, os poemas “16
de junho” (I), “18 de fevereiro”, “19 de abril”, “16 de junho” (II), “21 de fevereiro” e “Meia-
noite, 16 de junho”, de Cenas de abril, que também integra a edição de A teus pés lançada em
1982). O eu poético, então, faz referência ao que chama de “caderno terapêutico”, que define
como “um papel que desistiu de dar recados”. Seria esse “caderno” um diário? Ou, quem
sabe, mesmo um caderno de poemas? Ou ambos?
Um “papel que desistiu de dar recados” pode ser interpretado como algo íntimo, feito
36
Tezza explora a idéia de utilidade geral para a poesia, chegando à conclusão de que ela
não existe. Entretanto, essa noção da poesia “entendida como o espaço da liberdade pessoal”
pode ser justamente o aspecto sob o qual é necessário olhar a poesia de Ana C., e o poema
acima em específico. Se para este eu poético o texto literário que possivelmente é o conteúdo
do “caderno terapêutico” representa a liberdade desses “grilhões sociais”, onde “eu sou eu e
você é você mesmo”, pode-se dizer que a utilidade do texto poético aqui é esta. Ainda se o
“caderno terapêutico” não for o texto literário, mas algo como o texto diarístico, é possível
conectá-lo à idéia do poema e da produção literária, uma vez que o eu poético se apropria
desse estilo textual em tantos dos poemas.
Em alguns dos poemas que compõem Cenas de abril, a idéia da conversação acaba
por ocupar uma posição secundária, e muitos deles apresentam uma ênfase em outras das
vozes proeminentes na poesia de Ana C. Uma outra voz, talvez um pouco mais discreta, que
aparece em alguns dos poemas dessa parte é a que representa o “preciso”; talvez diante da
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imprecisão inerente das vozes da poesia de Ana Cristina, surge esta, que procura expressar-se
através do que poderia ser considerado mais “sólido” e preciso em termos de texto: verbetes,
manuais, etc. O primeiro desses que aparece em Cenas de abril é “Primeira lição”:
os longos poemas em que o eu poético abre o coração para um interlocutor dentro do texto
ecoam uma qualidade épica insubstancial; os poemas de um, dois ou três versos espalhados ao
longo de A teus pés podem consistir em um gênero “ligeiro”.
[A] última fala [é] exatamente de Emily Dickinson. Da responsável indireta pela incorporação
sistemática do verbete ao método poético de Ana Cristina Cesar. E não apenas de modo conceitual-
irônico como em alguns de seus textos mais antigos (vide “Enciclopédia” ou “Primeira Lição”). Mas
como uma espécie de carta de orientação. (...)
É em meio à tensão entre a flutuação anônima, sem sujeito pessoal e intransferível, do verbete, e a
marca pessoal, a assinatura em grifo, da citação, que se afirma o sujeito-como-voz do poema de Ana
Cristina. Entre a perspectiva sistemática, ordenada, distanciada, do dicionário e o recorte afetivo de
ritmos, citações e falas soltas é que se armam, em “Estou sirgando, mas”, a difícil meia distância, o tom
“à beira de”. A incorporação de recursos típicos da tradução no processo de composição poética
tornava-se, pois, metódico.
(SÜSSEKIND, 2007, p. 57-58)
o termo “homens” com o sentido geral de seres humanos, aqui é possível que ele tome o
sentido de seres especificamente do sexo masculino, cuja existência é aterrorizada pela deusa.
A afirmação da informação contida no verbete por parte do eu poético, representada
pela simples presença e total dominação do espaço do poema por parte do verbete, bem como
a ironia, podem sugerir uma aceitação dessa imagem negativa. O eu poético não a vê como
negativa, mas talvez como verdadeira. A aceitação da imagem negativa de “deusa da magia
infernal” pode representar uma tomada de poder por parte do eu poético como entidade
feminina.
Um dos outros poemas que exploram temas distintos e enfatizam outras vozes que não
a da conversação é o metapoético “olho muito...”:
lápis e assobios vazios me dizendo: 'Você não é Jack Kerouac apesar das assombrações
insistirem em passar nas bordas da cama exatamente como naquele tempo'.” O diálogo com o
texto de outro autor é claro e bem explorado; novamente, os “andaimes” da literatura de Ana
C. são visíveis a todos, proposital e calculadamente.
Vários dos poemas de A teus pés são curtos e “ligeiros”. É possível que sejam
representantes da geração da poeta, cuja produção “marginal” explora muito a questão do
laconismo do texto (como, por exemplo, nos chamados “poemas-piada”). Embora alguns
poemas de Ana Cristina possam lembrar os “poemas-piada”, a maior parte dos poemas
menores contém um significado mais profundo do que a simples brincadeira com a linguagem
que os contemporâneos da poeta apresentam em suas produções. Talvez fosse mais adequado
chamá-los de poema-minuto, uma vez que essa classificação não necessariamente inclui um
julgamento de conteúdo. Um desses poemas é “Cartilha da cura”:
O poema se apresenta como uma nota mental, ou talvez uma promessa momentânea.
O leitor não sabe que quartos vazios são esses, e nem por que razão estão vazios, mas o eu
poético consegue comunicar ainda assim a melancolia da imagem dos quartos vazios. O
isolamento da palavra “vazios” pode contribuir para a imagem melancólica enfatizando a
idéia do vazio.
ela quis
queria me matar
quererá ainda, querida?
assassinato, talvez até com uma dose de ironia. Quem é que quer matar? Será a imagem no
espelho, que em outro poema representa a juventude que contraria o desejo de morte do eu
poético (“Queria falar da morte”)?
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CONCLUSÃO
A partir da análise de alguns dos poemas que julgamos mais representativos das vozes
presentes na poesia de Ana Cristina Cesar, tivemos como objetivo a investigação do processo
de criação de uma identidade poética através do exercício dessas vozes e da maneira como
elas interagem entre si. Primeiramente, discutimos brevemente questões teóricas relativas às
idéias de literatura feminina e, conseqüentemente, identidade feminina, e de autoridade
poética; tomamos por base os textos Um teto todo seu, de Virginia Woolf, e Mikhail Bakhtin e
a autoridade poética e Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo, ambos de
Cristovão Tezza. Woolf discute a presença feminina na literatura, argumentando que no
momento em que uma autora deixa transparecer em seu texto raiva ou amargura diante da
situação desvantajosa das mulheres, o texto perde o valor artístico e estético que poderia ter e
a autora desperdiça o talento que poderia aparecer “se pudesse ter liberado a mente do ódio e
do medo, em vez de cumulá-la de amargura e ressentimento” (WOOLF, 1985, p. 79).
Mencionando tanto poetas quanto romancistas, Woolf coloca que é necessário deixar de lado
esses sentimentos e deixar a mente tornar-se brilhante. A partir daí, a mulher que quer
escrever deve conhecer a si mesma muito bem, e então estará pronta para escrever
plenamente.
A questão da busca da identidade é central à literatura de Ana C.; entretanto, a ênfase
aqui é no processo de construção dessa identidade, e é aí que o texto se desenvolve – não
depois. O cuidado com que as camadas de cada poema são costuradas para o leitor pode
demonstrar a posição da própria poeta na questão da exposição desse processo. O texto de
Woolf é de 1929; o de Ana C., do início da década de 1980. A produção da poeta representa
uma evolução no sentido de adaptar a escrita às carências da mulher-autora: agora, a
necessidade de auto-afirmação é não para com a comunidade masculina e a sociedade
culturalmente dominada por ela, mas para consigo mesma; daí a ênfase no processo de
construção e não na obra pronta. Da mesma forma, os conceitos de autoridade poética de
Bakhtin aplicam-se, a princípio, à poesia “pura”, sem a contaminação pela prosa; a poesia de
Ana Cristina propositalmente contamina-se dessa prosa e, ainda assim, exerce sua autoridade
dentro do universo poético, criando quantas vozes julgar necessário e sem abrir mão da
autoridade de nenhuma delas – nenhuma voz é uma presença externa ou intrusa, todas
intrinsecamente compõem o poema.
Em seguida, começando pelas vozes irônica e confessional, procuramos criar no texto
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uma dinâmica que possibilite que uma voz “puxe” a outra; os poemas raramente dedicam-se a
uma voz apenas, e a interação entre elas faz com que, ao destrinchar a garganta do texto, seja
possível uma análise múltipla e contínua. Ao explorarmos a voz da conversação, detivemo-
nos longamente nos exemplos do texto para que ficasse cada vez mais evidente a idéia de que
a estrutura da obra de Ana Cristina monta-se sobre a representação do diálogo e a importância
da interação com o outro para a criação da própria imagem – ainda que o outro seja, também,
uma representação. Torna-se mais e mais nítido ao longo dos poemas que o interlocutor do eu
poético é, quase sempre, o leitor: é a partir da interação com ele que os “andaimes” da
construção da identidade poética (e a identidade artística mescla-se profundamente com a
pessoal) são erguidos, e é para ele que ficam sempre aparentes, demonstrando o progresso que
foi feito e o que ainda precisa ser edificado.
Em última instância, uma análise da poesia de Ana Cristina sob o ponto de vista da
criação de vozes acaba por demonstrar que, de fato, a idéia geral da produção da poeta surge a
partir não de cada uma das vozes identificadas, mas da amálgama delas e do significado da
mistura. A imagem exposta ao leitor é a imagem refletida no espelho, formada pelas vozes e
pela própria minúcia da poeta, que, por sua vez, não deseja esconder o processo de formação
dessa imagem. São as vozes que formam as juntas necessárias para remendar e reconstruir o
espelho quebrado em “Estão caindo sobre mim...”, e a participação do leitor é essencial na
preparação da mistura necessária: juntos, a poeta e seu leitor colocam as peças
adequadamente para montar a identidade que não apenas a representa, mas também ao leitor.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos. Uma leitura da poesia de Ana
Cristina Cesar. Chapecó: Argos, 2003.
CESAR, Ana Cristina. Inéditos e Dispersos - Poesia/Prosa. Org. Armando Freitas Filho. São
Paulo: Brasiliense, 1985.
MORICONI, Ítalo. Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1996.
SÜSSEKIND, Flora. Até segunda ordem não me risque nada: Os cadernos, rascunhos e a
poesia-em-vozes de Ana Cristina Cesar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
TEZZA, Cristovão. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro:
Rocco, 2003.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985.