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Amizade, Recusa do Servir MARILENA CHAUI Passando da prosa narrativa ao didlogo, nico em toda a obra, no quinto livro da Histéria Tucidides poe face a face os magisttados da ilha de Melos ¢ os embaixadores de Atenas, que “antes de atacar 0 pais enviou delegados para parlamentar”. A embaixada vem propor aos melianos uma alianga que os faria, de colonos neutros, inimigos de Esparta, Melos, todavia, argu- menta contra 0 acordo que a converteria em serva de Atenas, 4a desigualdade de forces ¢ as intengSes de dominagio impos- 1m qualquer amizade politica, fundada na igualdade. ‘mos alianga convosco, dizem os de Melos, em breve domi nossa cidade. Como, entao, pretendeis q mos em nossa escravidio para vosso bem? Vossa host replicam os. de ‘Atenas, nos é menos danosa do que vossa amizade, pois esta pareceria aos povos prova de nossa fraqueza ¢ vosso 6 de nossa poténcia, E para vosso bem que deveis deli (© conselho de paz que vos damos quando poderiamos ter usado as armas. Falais como se a guerra ainda estivesse por vir, retru- cam 0s de Melos, quando jé esta presente, Dizeis que nosso bem ‘vos preocupa quando a nds preocupam nossus direitos. Julgais poder propor alianga as cidades que no tomaram partido nessa infeliz guerra, mas como néo se fardo vossas inimigas sabendo o que fazeis conosco? Vossa politica nfo € desastrosa apenas para nés; ela seré vossa ruina futura. acordo nfo é firmado, Atenas cumpre a promessa: cerca m4 MARILENA CHAUL Melos. Escaramucas sucessivas, dos melianos rompendo cereo ¢ dos atenienses a refazé-lo, terminam quando “uma traigao vind do interior” leva & rendigio de Melos. Um tratado de paz ¢ firmado. Atenas mata os homens adultos, escraviza mulheres, jangas © velhos ¢ devasta a cidade, como haviam previsto os ‘magistrados: m A arte de Tu nesse livro dedicado a um tempo de indecisdo, hipocrisia e trai¢ao, desnuda a verdade do imperi ateniense colocando na boca dos embaixadores falas de Péricles € de Aleibjades, porém despidas dos omamentos que thes permi- tiram “fazer o mal fazendo passar algumas palavras bonitas sobre 0 ¢ @ trangiilidade geral”, ou, como disseram os proibindo que os embaixadores falassem 20 povo de far que a multidao, ouvindo um discurso capcioso © sem contraparte, se deixasse enganar”, A linguagem do © da dominagio surge, desta feita, sem carecer de subterfi cloquentes. Porém, arte maior na tonalidade trégi onde o fim de Atenas é prognosticado no fim de Melos, é a propria composicdo das réplicas, marcando o lugar escolhido pelos interlocutores esse fatidico encontro. Tucidides compoe 0 diélogo de maneira a fornecer 20 leitor uum indicio seguro de que a alianca e a paz serdo impossiveis © que o desfecho esta dado assim que os magistrados de Melos falam pela primeira vez, Sabemos de antemio que a alianga nio terd lugar porque os atenienses discursam no género deliberativo, joridade propria de iério. Os primeiros, tendem persuadir, referem-se 0 bem e a0 tempo futuro, oferecendo conselho & deliberacio de Melos. Os segundos, pretendem julgar os acontecimentos presentes © passados em nome do justo. A guerra no esta por vir, nfo tanto porque os navios atenienses cercam a ilha, mas porque se realiza no pr6prio discurso, a palavra politica manifestando em sie por si mesma 0 conflito sem acordo possivel, Os atos que sucederio as palavras apenas cumprem, noutra esfera, 0 que a linguagem jé rativos, fingem proferir um: discurso sobre © presente e 0 justo; os melianos, usando recursos judicid- igem ouvir conselhos € deliberar sobre 0 que ouvem. O AMIZADE, RECUSA DO SERVIR 5 impossibilitando a comunicaedo, mostra sem carecer de explicagées que a diferente amizade proposta pelas partes é impossivel porque Ihe falta o essencial, a confianca rect proca na intepridade dos amigos. Quando o Discurso da Servidao ria se inici, ouvimos es aconselhando um exército rebelde ¢ faccioso a accitar 0 io de um rei. Falando no géneto deliberativo, Ulisses acon selha para. persuadi ‘As primeiras palavras de La Boétie fazem pensar que, como 6 género ju falando “com conhecimento de causa”, lugar de segui-lo. Mais adiante, falando de “pobres. miseries ro epiditico, dedicando-se a vituperar & porém, sugere que a diferenga talvez nao passe mas contra ela, Ulisses discursa “con- pretende persuadir quem olhos: @ némero. Virios, que olham para frente © para weir o presente e conjeturar sobre o porvir, escuta o sil Ulisse, 6 que no pode ser proferido sob pena de impedir a persuasio: senhores, senhor Instalando-se fora da “tormentosa questéo” sobre 0 melhor ro dos que governam, al! fender como tantos home’ burgos, rnagées” servem um senhor forga alguma os obrigue a isso. Diante de Ulisses, ndo posicdo dos magistrados de Melos perante os ardis a Ulirapassando 0 campo retérico, seu lugar é 0 mesmo thera Tucidides, o do historiador que indaga pelas causas ¢ captura nium tempo fugidio ¢ sem medida a contingéncia, dese- jando saber “como enraizou-se tio antes essa obstinada vontade de sorvir™ “Nao ponho em diivida que La Boétie pensasse o que esere via, pois era demasiado consciencioso para mentir, mesmo se MARILENA CHAUL divertindo. E sei também que se pudesse escolher teria preferido nascer em Veneza a nascer em Sarlac; e com razio” *. Por que jgne precisaria atestar a sinceridade de La Boétie? Por que iscurso da Servidao Voluntéria, pois fora um divertimento? Por que a referéneia a “Nao se preste atencio a escolha das matérias que discuto, mas tHio-somente 4 maneira como as trato”, escreve Montaigne *. xt. num panfleto tiranicida r lo de Conir'Un num conjunt cpiteslosdenominade Mémetres dx Enats de Prance sous Chore les le Newvieme, em 1576. Esses acontecimentos nio 36 transtor- naram 0 projeto de Mor data de composisio do Discurso, Prosurando dstan quanto possivel da noite de Si Bartolomeu, Montaigne afirm: que fora escrito em 1544, quando La Bi cae io somente porque La Boétic menciona obras da Pléiade publ de 1549 e 1550, mas sobretudo porque se a io juvenil, as linhas do Da Amizade is. O Discurso da Serviddo Vol ria ocupar 0 centro do primeiro livro dos Essais. Nao seria estra- ho que apés escrever “meu talento nao vai tao Jonge, e nao ouso melhor de su tivo um divertimento adolescents, pelo autor? SS eaHLS Esses indicios, porém, stio menos significativos do que o pré- prio lugar escothido por Montaigne para eserever sobre 0 Discurso, 10 6, no ensaio dedicado & amizade. Com freqiiéncia, a eélebre ssagem — par ce que Cestoit luy, par ce que c' terpretada como um dos primeiros sinais do indi demno, Ora, escrev expressamente a Arist esquecer 0 que torna possivel e duradoura a amizade: a natureza virtuosa dos amigos, “son bon naturel”, como escreve AMIZADE, RECUSA DO SERVIR 7 “Ble” ¢ “eu” designam, sem divida, La Boétic ¢ ‘mas exprimem aquilo que tia natureza de alguém 0 faz amigo, isto é, sua bondade natural, sua virtude, pois “os bons yesmos” ® ¢ a “amizade se origina da natureza © nao rome do amigo seja associado 20s essa associago, Se La Bod Bruto ¢ Céssio, amigos cuja da liberdade politica, no entant foutras empresas que mais tarde foram feitas contra os imperador romanos nio passavam de conjuragies de gente ambiciosa, & qual nao se deve lamentar os*inconvenientes que Jhes sucederam, pois salta aos olhos que desejavam nao eliminar mas mudat a coroa, que pretendiam banir 0 a pode ser colocado entre 0s protestantes, mas posto entre os monarquistas. Amigo, era virtuoso} Sincero; sincero era veraz; veraz. “pensava o que escrevial” € por isso teria preferido nascer numa repablica endo sob a realeza. marcado 0 texto com 0 selo do divertimento académico, Monlaigne pade, scm isco ¢ sem trair a verdade, declarar que 0 Discurso da Servidéo Voluntéria exprime as idéias do amigo. Veneza, a Serenissima, “porto comum de quase toda gente, fou methor, do Universo, nfo <6 porque os vénetos sio muito hospitaleiros, mas também porque em sua patria pode-se viver ‘com suma liberdade”", essas palavras de Bodin reiteram uma representagéo da livre repablica véneta que percorren toda a Re~ nascenga, ainda que essa imagem néo correspondesse & “verit® effetuale”, Representada como um dos raros regimes que escapara do Regnum Ttalicurn, Veneza fez-se modelo civico invejado por ‘aqueles que viviam sob o taco das monarquias absolutas em fase de instauracdo ™. Todavia, algo mais pode auxiliar a compreensio da preferéncia de La Boétie: 0 que Veneza pensava da Franca. Qs franeeses”, eserevin em 1546 0 embaixador véneto na agam impostos pesadissimos e a facilidade ¢ submisso com que 0 povo suporta esse encargo enche de admi- todos os estrangeiros, Os franceses abdicaram inteiramente erdade e puseram sua vontade nas méos do gue se Ihes diga: quero tal ou qual soma, ordeno, consinto, e = execugio & to répida que parece que toda a nagio o teria decidido 180 MARILENA CHAUt ecusa de escutar, que podemos chamar de surdez. voluntéria, & 0 primeiro vicio dos faladores que deveriam, sem diivida, lastimar que a natureza Ihes tenha dado uma s6 lingua, enquanto tém duas orelhas. Com raziio dizia Euripedes de um ouvinte pouco sensato: ‘Como um tonel furado, de onde escapa todo liquido/ Enchei-o & vontade, ficard sempre vazio'” '* Quigé 0 dito de Plutarco se aplique melhor a um outro tipo de leitor do Discurso, “O tratado da ‘Servid’o Voluntaria’ que, bem lido, & apenas uma declamacao cléssica e uma obta-prima de segundo ano de retérica, mas anuneia firmeza de pensamento e lento para escrever, foi composto aos dezesseis anos, segundo tuns, aos dezoito, segundo outros. Como toda juventude de seu tem- Po, € um dos primeiros, La Boétie partiu as carreiras a0 sinal oético dado por Du Bellay © Ronsard (...). Como quero tratar aqui do verdadeiro La Boétic, tenho pressa em me desembaragar desse primeiro tratado supostamente politico que é como uma tra gédia de colégio, obra declamatéria toda greco-romana, contra os tiranos © que provoca as tontas o punhal de Brutus (...). As naturezas nobres ¢ generosas, quando entram na vida e ainda néo conhecem os homens nem 0 estofo de que somos feitos na maior Parte, passam de bom grado por um periodo politico ardente ¢ autero, por uma paixio estdica, espartana, tribuniana (...), Co hecemos essa doenca. O livro de La Boétie & apenas um desses mil pequenos delitos cléssicos que se cometem com a cabeca ainda cheia de Tito Livio © de Plutarco, ¢ antes que se tenha conhecido © mundo moderno ou mesmo aprofundado a sociedade antiga” ‘A imaturidade académica de quem esté acometido pela febre juve- nil da politica s6 poderé redundar em falta de rigor e em ingenui- dade, como observa um leitor, pois “sua argumentagio, sempre apressada e animada, € freqiicntemente incompleta. Mais descreve 6s efeitos da servidio do que busca suas causas, ¢ nao indica remé- dios (...) € um grito contra a tirania, Nao se deve procurar nes- sas péiginas coloridas uma razao politica, uma matutidade de vistas que 0 autor nfo tinha e, portanto, af nao podia por (...) levanta quest®es que nao tem como resolver e agitando com emogio esse {iste assunto para meditagdo das mais nobres inteligénci instrui menos do que nos faz pensar (...). Apés ter omitido a distingdo entre a autoridade que se exerce leg ridade ilfcita, e ter imprudentemente atacado o proprio principio da autoridade, La Boétic emite uma ilusio ingénus. Parece crer que AMIZADE, RECUSA DO SERVIR © hom sia viver no estado de natureza, sem sociedade ¢ sem govern, dena enrver que fal stuagao seria hea de fe cidade pata a bumanidade. © sonho é pueril, mas exposto com clogiiéncia comunicativa, pois sente-se sempre, através da utopia, a convicgdo de uma alma ardente ¢ jovem, e sobretudo sincera em seus transportes” * pensamenio realist opera sempre com rigorosa cascata de conseqiléncias, perfeitamente contrabalancadas pelo panegirico a0 idealismo de outrem: 0 académico de cabeca infestada pela litera- ‘ura greco-romana, jovem ardente e sincero, é inexperiente da vida, dos homens, da politica, da histéria, do mundo, enfim. Por isso € incapaz dessa sensatez 40 simples que é saber distinguir a autorida- de legitima da ilegitima. Porque nao diferencia o bom e o mau po- der, torna-se pueril. Imaturo e fogoso, La Boétie poderia apenas cair na “utopia”, Conseqlientemente, “nada mais inocente do que esse ‘pastiche’ onde se refletem todas as Icituras de um jovem centusiasta, onde paixdo antiga da liberdade, 0 espirito das de- ‘moctacias gregas, da replica romana, dos tiranicidas © dos ret6- ricos, tudo se mistura confusamente ¢ a alma do autor se enche ¢ transborda numa éspera declamaca ‘ ‘Amilgama confuso de idéias alias, 0 texto se reduz & peca inflamada de retérica, malgrado todos 08 sinais oferecidos pelo autor de que nio pretende, como Ulisses falando em publica, es- crever “conformando suas palavras mais ao tempo do que a verdade", conformidade que é regra mestra da retérica , Debalde La Boétie recusa a psicagogia. Inttil sua ironia face a Pléiade. Neutralizado sob 0 manto do exerci lémico, 0 Discurso da Servido Voluntéria continua sendo “ouvido” quando, como assi- nala Lefort, pede para ser lido, porque a leitura revela a dimenséio politica da amizade. © siléncio do pensamento encontra a resis- téncia tagarela qual barreira que se erguesse contia um texto que, se “nos faz pensar”, € justamente porque nao esta empenhada em nos persuadir, : ‘Ourras interpretagses procuraram acstar o desaio filosfico da obra, porém sob a condicdo de nela encontrarem evidéncias seguras € um ancoradouro, Vérios ali encontraram uma hist6ria inédita da dominagao, como foi o caso de Armando Ferrari, fentou situar © texto no pensamento politico do século XVI concluiu pelo carster extemporineo (¢, portanto, extraordinério) da obra, num tempo de absolutismo. Também Pierre Mesnar enfrenta 0 ineditismo do Discurso, considera-o rigorosamente arti- MARILENA CHAUI culado ¢ demonstrativo, e encontra a origem da servidio voluntiria no jogo entre a inércia dos sliditas e a atividade rapace dos domi- nantes. Assim fazendo, porém, o intérprete retorna a suposicao de uma espécie de dialética do senhor e do escravo, cujos polos pre- existiriam & propria dominagdo (passividade de uns contraposta & rapacidade de outros). sem notar aue, partindo do desejo de serve como divsao interna nos sujitos saciis em presenc iscurso expde a génese da divisfo social e da unificagao fantis- tica que a recobre. Outros, como Simone Weil. supuseram encon- trar em La Boétie uma discussio sobre as relagdes de forca a partir da fraqueza do nimero, “pois visto que o grande mimero Por 0 softimento & a morte nquanto 9 pegweno nimero commnds & porque nfo 6 verdade que © niimero seja uma forga. O nimero, seja ld 0 ima; nos aga ere €ums faguens(.”.). 0 powo do eats ues apesar de ser numeroso, mas porque € numeroso” . Curiosamen- "todos unklos" e “todos une” no sentklo inverso. ao do Discurso, quando opde a autonomia do pave unido em revolta a heteronomia do povo disperso pela organizacao do trabalho — “por que si0 muito numerosos, so um mais um, um mais um. e assim por dante", Toda 0 6 expretgdo profunch, pois aq La Boétie mostrara ser a forca da tirania, isto & a dis impede + comunicagao e com ela amieade Sno ta fragmenta eomemporines da da divisdo cia « do processo de trabalho, Ent de partida de sua a1 ¢ € a opressiio jé con: eae t media, escape a expoiio da gene dt sei 2 tacdes do Dis ac ¥ e-apropriada_ los | Siveis apenas soba condigio express de no enfrentarem o propesto por La Bostie, Nao se tata de verfiar ae conformidade das faguilo que “a natureza nega-se ter feito © a lingua se recusa AMIZADE, RECUSA DO SERVIR La Boétie interroga a sociedade e a politica, procura @ ori gem do infortinio que arrasta a liberdade para fora do mundo ¢ ao apresenta tespostas positivas que pudessem ser convertidas fem programa para uma organizagao da prética politica. Nada desconcerta mais 0s Ieitores do que a declaracéo, tida por ingénua ou por conformista, de que face ao tirano, “nao se deve tirar-the coisa alguma, e sim nada Ihe dar”. Quao decepeionante. depois da longa exposieao sobre a génese e os efeitos da tirania, descobrir que La Boétie nada pretende fazer, contando apenas com que os sejam odiadas ¢ vilipendiados pelo povo (ainda que em cio ou depois de mortos) ¢ castigados por um deus “liberal e bonachio", Talvez por esse motivo, grande parte dos leitores fora busca solugdes em nome do autor, ora o vitupera porque no fas fornece, O Discurso simplesmente contrapoe desejo de servir © amizade. Nio retira desse contraponto qualquer projeto de acio, ‘mas apenas a conviegdo de que nao servir ¢ sempre possivel, ¢ sempre vitofioso quando tentado, pois “a bom querer fortuna nunca fatha”, Conviegao que nao afasta outra, ainda que parado- al; a de que desejar servir também ¢ sempre possivel. No tempo sem garantia onde se efetuam liberdade e desejo de servir, a hist6- ria se faze, desde que nao confundamos meméria hibito, 0 recurso ao pasado & maneira de narrar o presente. nl Nascido da poesia épica ¢ da retérica, freqiientemente do concurso de ambas, 0 espellto dos principes, destinado a oferecer ‘© modelo do homem virtuoso no qual o governante deveria rar-se para realizar bom governo **, inimeras vezes reescrito durante @ Idade Média, ressurge com vigor durante a Renas- cenca, Aqui, porém, uma divisio comeca a cavar-se, Com 0 desenvolvimento do humanismo civico, a defesa do governo repu- blicano translada a virtude do governante pai uigdes & substitu o speculum prineipum pelo espelho da historia, O pas sado, nacional ow cléssica, torna-se @ modelo no qual o presente politico deve mirar-se para o estabelecimento da boa tepublica Em contrapartida, 0 humanismo eristéo, de forte tendéncia mondr- quica restaura 0 espelho dos principes, pretendendo fornecer si- multaneamente um espelho de virtudes para o rel, tirania, ¢ um espelho de instituigoes virtuosas, ist garantindo 2 com: mnalidade Ga boa mor MARILENA CHAUL € hist6ria unificam-se sob 0 si ai : Sob 0 signo da imitagio. Que para os hhumanistas efvicos © modelo estejt em Atenas, Esparta ou na Roma republicans, enguanto para 0s humanistas cristios encon- tome Susie Roma imperial ou no reino de Istcl, a imeira e o ultimo também visados pelos reformadores protesta rotestan- les, pode indicar qual o bom modelo escolhido, mas sob a varia a0 da escollia permanece 0 ideal de efetivar o presente pela epetigtio do bom passado ® im © espelho dos principes e 6 © espelho da historia « Pressuposto a nocdo de paradigma, como fi nicest como suporte conceitual a semelhanca, Imterpretada a mancira platénica ow aristo como cSpia ou como suf estéiea ou epicuri como conveniéneia ou como coorde- nacio e disjungio, e a maneira grege, pelos humanstas, ¢ 3. ma- neta hebraica, pelos reformadores, portent, como tipologia épica imovel ou como drama individual de transmutgio , encarada ; lade empfrica ou como aspiracto ideal, profana ou mistica, imitaglo € uma técnica educativa, um procedimento amistico es literério, uma pot ica © uma atitude ético- igiosa “. Fundamentalmentc, porém, ela é um saber, cujo pres- suposto é a semelhanga, “Até o final do século XVI, a semelhanga teve um papel construtor no saber da cultura ocidental, Conduziu, em grande pate, exegesee a inerpretagio dos texto: organo jogo dos si ae Permitiy o conhecimento das coisas visveis iveis, guiou a arte de representé-las."", Convenién cmulacao, analogia, simpatia-antipata, figuras que ariculam o sa- er da semelhanca, demarcam as formas de relag2o que constituem © proprio mundo, como se o fo " snes saber fosse, ele também, redobro da muito rica: monium 5 tinuum, Paritas, Proportio, Si Amizade, consondneia, igualdade, paridade, proporgio: nfo So (0s termos usados por La Botte para qualificar o trabalho da za, “ministra de Deus ¢ yovernante dos homens”? Jurista, portant fildlo; logo © historiador, poeta, tradutor de Plutarco ¢ de Xenofonte, aluno de Anne du Bourg e de Scali- ger, amigo da Pléiade, La Boétie nfo poderia desconhecer os Procedimentos pedag6gicos e estilisticos da “dupla tradugio", os AMIZADE, RECUSA DO SERVIR 185 estudos histéricos ¢ legais do “mos gallicus” #4, nem os recursos manciristas ¢ os anseios da “Brigade © Discurso da Servidao Voluntiria possui a maestria dos es eritos do século XVI franeés ¢ est povoado com todos os recursos formais © materiais de seu tempo: o uso das antiteses e da ampli- ficagio, das metaforas médicas®, os exemplos histéricos cuida- dosamente escothidos e distribuidos de acordo com 0 mais rigoroso ceanone ret6rieo, a descrigao do corpo politico empregando re- feursos maneiristas*, a definigfo da Amizade proveniente de [Aristoteles, Cicero e Plutarco, a deseri¢io da solidao temerosa fem que vive o tirano, oriunda de Xenofonte e de Plutarco, ow de sou arbitrio criminoso, & maneira de Técito, a refeséneia a0 Grande Turco, obrigatGria em todos 0s textos politicos da Renas- cenca , a divida quanto 20 cardter republicano da monarquia, retirada de Cicero e de Técito, dlivida presente em todos os textos do humanismo. civico “. Como nao pensar em Plutarco e em Xenofonte quando vemos a educagdo comparada ao cultivo das plantas © G0 ctidado com as frégeis sementes para que nao ccaiam em mau terreno? ‘Todavia, essa maneira de ler a obra, tirando-Ihe a carne © a vida para ficar com 0 esqueleto de suas “fontes” (procedimento tio a0 gosto do pensamento realista, que julga encontrar a obje- dade somente na anatomia do morlo), mio faz apenas perder © engenho e arte de La Bostie, pordm faz com que percamos 0 sentido de seu trabalho: 0 Cont’Un 6 um contra diseurso. ‘Acreditamos que 0 Discurso da Servidao Volunséria nos dara mais a pensar se pudermos lé-lo tal como Montaigne nos diz que gostaria de ser lido: “Nao me inspiro nas citagoes; vallo-me delas para corroborar 0 que digo e que nio sei to bem expressar, ou por insuficigncia da lingua ou por fraqueza dos sentides, Nao me preocupo com a quantidade ¢ sim com 2 qualidade das citagbes. Se houvesse querido tivera reunido 0 dobro. Provém todas, ou quase, dos autores antigos que iio de reconhecer embora nao (os mencione, Quanto as razdes, as comparagées © aos argumen- tos que transplanto para meu jardim e confundo com os meus, ‘omiti, muitas vezes, voluntariamente, o nome dos autores, a fim de por um freio nas ousadias desses criticos apressados que se espojam nas obras de escritores vivos e escritas na lingua de todo mundo, 0 que da a quem queira o direito de as atacar ¢ insinuar que planos e idéias sejam tao vulgares quanto 0 estilo; eu quero 186 MARILENA CHAUT que déem um piparote nas ventas de Plutarco pensando dar nas minhas, ¢ que insultem Séneea de passagem. Preciso esconder mi- ‘nha fraqueza sob cssas grandes reputacdes, mas de bom grado veria alguér ie as plumas com que me adornei, lesmente pela diferenca de forca € beleza as minhas das alheias. Se por falta de memsria nao consi- g0 deslindar-thes as origens, sei reconhecer eniretanto que minha tetra é pobre demais para produzir as ricas flores que entre elas se acham desabrochadas e que apesar dos maiores esforgos no as igualaria jamais nna floresta cldssiea huma- Je seu texto, eis 0 que gostariamos de fazer. Por quatro vezes, a metéfora do espelho intervém no Discurso da Servidao Voluméria. A natureza, “essa boa mae”, nos fez todos da mesma forma © na mesma férma, “figurou-nos todos no mesmo padréo, para {que cada um pudesse mirar-se © quase reconhecet-se um no ot fro”. Essa primeira referencia 6, ela mesma, um redobro ou um espelhamento, pois a Amicitia € relagao da natureza consigo mes- ‘ma e a amizade, espelho dos homens, espelha a amizade natural. Mas hé, ainda, 0 espelhamento da escritura: aa espelho vem da Magna Moralia **, a natureza a nos fazer da mes- ma forma e no mesmo padrio vem do Amor Fraterno*, “boa mie”, nos lembra Lucrécio e como “ministra de Deus enyia aos estéicos. Os tiranos deveriam ler 0 Hiro de Xenofonte, dor grave e de primeira linha entre os gregos”, para que, diante dos olhos, “o tivessem usado como espelho”. Se 0 fizessem, impossivel ndo se envergonharem, reconhecendo “suas verrugas”, Conservando a nogao de semelhanga, La Bo passa da natureza arte, reenviando o tirano a imagem gravada num livro, Todavia, a imagem de Hierdo, eserita, nao rompe. a imitacéo © sim a reafirma, Que o espelho seja um escrito, nao hd de surpreender, pois 0 mundo, jogo da amicitia ¢ da convenientia, da sympathia © da antypathia, & feito de semelhangas secretas conduzidas a visibilidade tanto pelas marcas naturais quanto pelas areas da escritura, as primeiras pedindo divinatio ¢ as segundas, AMIZADE, RECUSA DO SERVIR we + Estando: num vagem diz as cosas ¢ ano. 20 epelho tspetna livre ete espelha aquela,Porém, a passagem do expe a ao carte Inlrodua duas modiieabes ro de enofonte ri se oferese como specu ea figura rfletida nfo & a de um outro A terceira referénci dos exemplos: Atenas Veneza © 0 impéri co espartanos, os amigos (Harmédio © Aristogitio, Bruto, Casco) os tiranos travesidos em magos ¢ deuses (Pirro, os teh etipcos, medas e persas, Vespasiano, Alexandr os ris france (Jiilio. César Newone:n asticl ‘daquele a quem chamam 8 , @ elefante a romper eee =o , espezinha os as MARILENA CHAUT vontade contar por razio”. Qual imenso Narciso, servidio e tirania se espelham varrendo a sociedade de ponta @ ponta. Espelhamento erverso, pois sc a natureza nos fez “todos uns” ¢ a poe “todos unidos”, € porque o nome de Um des na e pela identificagao fantéstica da sociedade consigo mesma. Esse ltimo espelhamento ndo transtorna a tradigaio. do speculurn? A primeira vista, © Discurso nos evoca governante paradigma para a sociedade, a exis toma impossivel & sociedade ndo espelhar-se nele ¢ nao int Entretanto, a descrigo de La Boétie nio € essa. Nao nos mo sociedade espelhando o tirano, mas espelhando-se a si mesma. Com isso, a idéia de paradigma se estilhaca, estilhacando-se exata- mente ni we em que a sociedade, tornando-se assustadora- mente autérquica, alcanca 0 ponto maximo da heteronomia. Se a titima referencia a0 espelho anula a nogio de paradig- ria no teria efctuado um ra além do campo ¢ do saber fundados na semelhanga, se a dificuldade para compreendetmos a génese da servidio voluntaria nao ada a essa ruptura e se nao seria por intermédio do espelhamento que nos seria dado um indicio para regressarmos aos anteriores indagando, agora, se 0 reconhecimento natural dos amigos, a iden- tifieacdo do tirano com sua imagem e a pos, dos homens e dos animais néo poss “Todos uns” © nao “todos unt, essa diferenga no imprime seereta torcdo no pensamento da semelhanga? A afinidade ¢ a conveniéncia que a natureza espalhou pelo mundo, a simpatia entre os amigos ¢ a antipatia pelos inimigos poderiam dar conta da divisio que antecede os movimentos da imitagdo © que os determina? Em liberdade e desejo de servir? A diferenca entre dos um" poderia ser abrigada no interior desse ‘magio e da disperso) pelo qual o mundo permanece idéntico, as semelhangas continuam a ser 0 que sio e a ajunta mesmo petmanega 0 mesmo e aferrolhado sobre si ctigio nao convém muito mais ao Discours @ la Reyne de Ronsard, do que a0 Discurso da Serviddo Voluncdria, Ronsard quem, imitando as Gedrgicas AMIZADE, RECUSA DO SERVI sedigao e a revolta sio doenca € disformidade? Nao ¢ ele quem, 2 mancira de Aldrovandi, vé na ameaga a0 por d monstro que separa os semelhantes redine os contr. cia orginica da sociedade? Para La Bot indo a coeréneia orgfinica da soc ote ie I mis, mil ouvidos © 5 ‘e mau encontro”, néo decorrem de win processo fesse espethamento do mesmo no mes- , “aferrolhado sobre si Se 0 século XVI “coloca no mesmo plano magia ¢ erudi- pois conhecer é interpretar e a interpretagio se rea pela divinatio e pela repeticao comentada dos ‘onde colocar 0 Discurso da Serviddo Voluntaria que 10 agin do nome do Um e na devogao sos reis magos & ao passado tum dos mais poderosos instrumentos da dominagao? ‘Quando nos acereamos um pouco mais do texto de La otamos que a imitagéo se realiza de modo peculiar: facto. eee adolagdo € contrafagio da amizade e sua marca, 2 imitagio levada ao paroxismo * aga La Be no mundo algo menos suportével do que isso, nfo digo para um hhomem de coragio, nio digo para um bem-nascido, mas para um que tenha senso-comum ou nada mais do que a face de homem? 'A persuasto é contrafagio do pensamento ¢ da comunicacio, fe sua marca, a emulagdo das paixdes do ouvinte, esse fal formando as palavras mais a0 tempo do que a verdac jos que, para perpelear o mal pblico fazem passat 2 gumas palavras bonitas” sobre o bem comum, esse titulo de Tribu- se apossam 05 que pretendem, distribuindo aria neles, como se deles tralagio da educacio; 0 hil suas macs repelgio © a assimilacso “Mas <0 fem em todas as coisas um grande poder sobre nds, sui em lugar nenhum virtude tao grande quanto 2 seguinte: e nar-nos a servir — e como s¢ diz de Mitridates que se habi fa tomar veneno — para que aprendamos a engolir € ndo achar amarga a pegonha da servidao (...); porém, maldita seja a na- tureza se se deve confessar que tem em nés menos poder do que ‘0 costume —, pois, por melhor que seja, o natural se perde se

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