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Rio de Janeiro
2015
Fernando de Azevedo Lopes
Rio de Janeiro
2015
O “CONSERVADORISMO PROGRESSISTA” DE SÍLVIO ROMERO
Naturalismo e política na Primeira República brasileira
Aprovada por:
Titulares:
_____________________________________________________
Prof.Dr. André Pereira Botelho (PPGSA / IFCS / UFRJ)
_____________________________________________________
Profª Drª Gabriela Nunes Ferreira (PPGCS / UNIFESP)
_____________________________________________________
Profª Drª Aline Marinho Lopes (UFF)
Suplentes:
_____________________________________________________
Profª. Drª. Helga da Cunha Gahyva (PPGSA / IFCS / UFRJ)
_____________________________________________________
Profª. Drª. Tamara Rangel (PPGHCS / COC / FIOCRUZ)
Rio de Janeiro
2015
RESUMO
Rio de Janeiro
2015
ABSTRACT
The present thesis aims to reconstruct the intellectual movement of Sílvio Romero
(1851-1914) in the early years of the First Brazilian Republic, where the latter has
mobilized a range of scientistic theories in order to deal with Brazilian national
development dilemmas and also pondering over open challenges and possibilities as from
Republican coup. This analytic movement intents to open for another interpretative path
about the author’s work which allows to perceive his adoption of European repertories,
mostly from Herbert Spencer’s reputable liberalism, in a singular and reflexive way
related to a political conjuncture of early years of the First Brazilian Republic and also in
a complementary aspect of his approach for scientific literary criticism.
KEY WORDS: Sílvio Romero; First Brazilian Republic; Liberalism; Social Brazilian
Thought; literary criticism.
Rio de Janeiro
2015
AGRADECIMENTOS
Dos tempos de Gragoatá e de UFF, devo muito ao Professor Marcos Alvito. Seu
curso sobre Machado de Assis nos tempos de graduação em História mudou minha
concepção sobre o ofício de historiador e me apresentou, de forma indireta, o objeto que
pesquisei nesta dissertação. Além disso – como se fosse pouco – sua postura docente e
intelectual são exemplares e inspiradoras.
Aos amigos e amigas devo muito do suporte emocional que foi imprescindível
para a realização da tarefa árdua e quase sempre solitária que é a escrita e a pesquisa.
Impossível citar nominalmente todos, mas sintam-se abraçados por mais essa etapa
concluída. O Ferreira Vianna, mais do que um curso técnico em telecomunicações, me
forneceu amizades que constituem hoje parte inseparável da minha vida. Klaus,
Carlinhos, Moura, Helliton, Mari, Ganso, muito obrigado pelo apoio de sempre. Hermio,
agradeço pela amizade, pelas cervejas e também por ter me ajudado na formatação final
desta dissertação.
À Marina Ayres agradeço por me ouvir tantas e tantas vezes nesses últimos
tempos e por levar o conceito de amizade até as últimas consequências.
Aos amigos Adriana Xerez, Maria, Dirceu e Pedro, agradeço muito pelo
acolhimento nos momentos difíceis desses tempos e os ouvidos sempre disponíveis para
as lamúrias da vida e da carreira docente. E também agradeço pela rede mais
aconchegante da Grande Tijuca! Agradeço também ao Pedro pela leitura do primeiro
capítulo dessa dissertação e pelos sempre instigantes diálogos que travamos. Agradeço
especialmente também a Maria que leu o esboço do que viria a se tornar o segundo
capítulo da dissertação.
À Mônica Mourão, agradeço as trocas intelectuais que tivemos durante esses dois
anos e a amizade nova e especial com que Fortaleza me presenteou. Sua generosidade é
coisa rara no “mundo cão” de hoje em dia.
Aos meus pais, Noêmia e Euclides, pela ajuda importantíssima em toda minha
formação e por acreditarem nas escolhas que fiz, além de todo suporte afetivo e material.
Agradeço também a minha irmã Nathália pela alegria e pelo carinho.
Agradeço também à CAPES pelo auxílio financeiro que viabilizou este trabalho.
Dedico esta dissertação aos meus
alunos e alunas
O respeito das convicções alheias não
consiste em julgá-las boas e
verdadeiras, mas só em tê-las por
íntimas e sinceras
Tobias Barreto, O atraso da filosofia
entre nós, 1872
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO______________________________________________________12
2 – SPENCERIANISMO HETERODOXO.................................................................49
2.1 - Positivismo e o “spencerianismo crítico” romeriano..............................................49
2.2 - Parlamentarismo como “conservadorismo progressista”.......................................61
2.3 - Crítica ao hiperfederalismo e a questão da interferência estatal...........................69
3 – MESTIÇAGEM CONCEITUAL_____________________________________ 78
3.1 - Meios e fins, logos e práxis......................................................................................78
3.2 - Sílvio Romero, Herbert Spencer e a geração de 1870.............................................86
3.3 – Mestiçagem conceitual........................................................................................... 95
CONSIDERAÇÕES FINAIS___________________________________________108
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS___________________________________117
12
INTRODUÇÃO
Com isso, busco a abertura de um outro caminho analítico sobre a obra do autor
sergipano que permita perceber sua adoção dos repertórios europeus de forma original.
Assim, sugiro que a forma como o liberalismo foi lido por Sílvio Romero foi debitaria da
tensão frente a tarefa de construção de uma perspectiva interpretativa que advogasse a
adaptabilidade de doutrinas sociais e políticas frente a realidade e a história brasileira,
mediante o cenário de impossibilidade de negação da mestiçagem e da necessidade de
afirmação do país nos rumos da modernização ocidental. Para dar conta desse movimento,
tento demonstrar e desestabilizar algumas continuidades acerca da recepção crítica do
intelectual sergipano e descortinar outras possibilidades interpretativas sobre o autor, que
destaque sua elaboração ativa e criativa dos repertórios “importados”.
1
A dissertação não pretende dar conta de forma sistemática e linear da trajetória de Sílvio Romero. Existem
inúmeros trabalhos que tentam escrutinar o percurso biográfico do autor, relacionando seu percurso às
ideias que defendeu. Cf Sussekind, 1938; Rabello, 1967; Mota, 2000. Para uma abordagem sistemática
sobre a “Escola do Recife” e o papel de Sílvio Romero neste cenário ver Paim, 1966; Chacon, 1969.
13
e sua obra foi objeto de muitas análises, indo da História e Literatura até a Filosofia. Além
disso, o autor é comumente associado ao movimento renovador de ideias políticas e
filosóficas no Brasil, a chamada “geração de 1870”, formada por intelectuais que se
caracterizavam pela oposição à “ordem saquarema” que vigorou quase ininterruptamente
entre 1848 e 1878 e também pela tentativa de superação dos três pilares da ordem imperial
conservadora: o catolicismo hierárquico, o indianismo romântico e a escravidão, com
todas suas limitações à ampliação da participação política. Apesar das contribuições do
crítico sergipano terem sido mobilizadas em trabalhos muito diversos, onde sua
contribuição foi esmiuçada em áreas diferentes de conhecimento, esse é um traço
característico da bibliografia crítica sobre Sílvio Romero. O juízo que o autor teria
lançado mão de formulações conflitantes entre si, ora motivado por leituras pouco
sofisticadas das teorias formuladas na Europa, ora pelo seu temperamento fluído,
agressivo e pouco dado a sistematização, percorre quase toda a fortuna crítica sobre o
autor.
2
Nas palavras da socióloga “embora se tenha tornado uma convenção, a divisão da geração de 1870 em
um grupo de cientificistas pouco atentos às questões nacionais e outro de pensadores politicamente
empenhados é um anacronismo. É resultado do arbítrio dos intérpretes, que selecionaram características
intelectuais em detrimento das políticas.” (Idem: 38)
14
eventos políticos. Para a tarefa de interpretar o movimento como uma resposta coletiva
ao fechamento das oportunidades políticas no outono do Império, a autora mobiliza a
literatura sociológica que trata dos “repertórios contenciosos” (Tilly, 1978, 1993)
operando com base na ideia de “tool kit”, onde as ideias seriam como ferramentas a
serviço de um uso pragmático de intervenção política em determinado contexto
(Swindler, 1986; Tilly, 1993).
3
O corte cronológico da presente pesquisa é a Primeira República, período posterior ao delimitado por
Angela Alonso em seu livro, que se dedica ao estudo da geração reformista na crise do Império. Entretanto,
a análise e mobilização crítica que realizo das problematizações da autora para a geração que Sílvio Romero
foi formado, a meu ver, não se impossibilitam por esse fato pois a abordagem teórico-metodológica
empreendida pela autora se torna uma agenda generalizável na abordagem da intelectualidade num quadro
de não-autonomização do “campo” intelectual, quadro que permanece inalterado na Primeira República.
15
Como forma de enfrentar o paradoxo discutido entendo que uma saída possível
seja realizar uma análise que leve em conta que a teoria se constitui em movimento,
reflexivamente em relação a “matéria social”, onde a conjuntura não funciona apenas
como determinante exterior, mecanicamente, mas sendo incorporada internamente ao
texto. Assim, dialeticamente, imbricam-se mudanças na forma sociológica das
interpelações e o movimento político e social mais amplo a qual as formulações de Sílvio
Romero dialogam de forma analítica, mas também normativa. Entretanto, o contexto,
entendido como exterioridade, não é descartável na minha análise, mas o propósito
também é entender como ele dialoga e se integra (e se transforma) internamente na obra
romeriana. Inspiro-me aqui nas proposições de Schwarz(1999) e de Candido (2000)4,
segundo as quais a matéria social funciona como elemento interno ativo na constituição
da forma. No caso dos dois autores, se referindo à literatura de ficção e no caso aqui
proposto como “modulador” das construções e deslocamentos de temas, abordagens e
referenciais teóricos. Além de romper com a disjunção entre “texto” e “contexto”, essa
perspectiva pode ser útil por revelar como a migração e adaptação das ideias em contextos
periféricos pode trazer úteis mecanismos para desvelar não somente a sua forma,
deslocamentos e aplicabilidade (ou não) fora do centro, mas também para desvelar as
contradições no funcionamento das teorias no centro (Ricupero, 2008: 68).5
4
Brasil Jr (2013), inspirando-se nos mesmos autores, demonstra como a aclimatação realizada por
Fernandes e Germani não foi simples reprodução acrítica da sociologia da modernização, em especial a de
inspiração parsoniana, mas sim foi uma síntese teórica original que deslocou os pressupostos dessa matriz
original em função da interpelação de conjunturas específicas em que as pesquisas de cada autor estavam
inseridas.
5 A interpretação de Bernardo Ricupero refere-se diretamente ao ensaio “As ideias fora do lugar” de
Roberto Schwarz (2012).
6
A citação completa, em resposta a Bosi, salienta a pertença do liberalismo à ordem global capitalista. Nas
palavras de Roberto Schwarz: “Assim, ao mostrar que o liberalismo foi coado pelo filtro de um interesse
16
acredito, pode ser compreendido de forma mais ampla por meio do cotejamento com
outras abordagens sobre a suposta inadequação entre ambiente social e ideias, também
partindo de sentimentos de “estranhamento” frente a necessidade de releituras a partir de
realidades muito diferentes dos países centrais e suas narrativas acerca do mundo social.
Surgidas dentro do movimento de crítica e tentativa de superação do
eurocentrismo das narrativas sociológicas “clássicas” e da consequente dependência
epistemológica e acadêmica das ciências sociais do sul em relação às do “Norte
atlântico” (Keim, 2008), esses “discursos alternativos” (Alatas, 2010) sinalizam para a
necessidade de se construir alternativas em relação à aplicação acrítica do repertório
intelectual europeu na análise das realidades dos países do sul global. Essa aplicação
“servil” do repertório teórico europeu, além de representar uma dependência acadêmica
e intelectual que reflete uma conjuntura de subordinação econômica mais ampla, não
auxiliariam para a compreensão dos contextos específicos das sociedades do sul.
Produções que nasceram em realidades histórico-sociais específicas são universalizadas,
sendo utilizadas em contextos bastante diferentes daqueles do seu surgimento,
não possibilitando assim uma análise mais abrangente das realidades dos países
periféricos.
de classe execrável, ao qual serviu bem - o que é verdade -, Bosi julga haver dissipado a ilusão, ou melhor,
a ideologia de desconcerto e nonsense que acompanhou a sua associação com a escravatura. A meu ver este
segundo passo joga a criança com a água do banho. A começar pelo propósito mesmo do raciocínio. A
mencionada convicção da excentricidade e do deslocamento local das idéias modernas não é uma invenção
dos historiadores do século XX, cuja supressão nos pudesse devolver uma visão mais exata das coisas. Pelo
contrário, sem prejuízo do caráter ideológico, aquele sentimento de despropósito é justamente o fenômeno
que se deveria explicar em sua necessidade histórica, pois foi uma presença notória no Brasil oitocentista,
e estava por assim dizer inscrito nas coisas, tanto que a maioria dos exemplos lembrados por Bosi para
provar a funcionalidade escravista do liberalismo serve igualmente para abonar a feição desconjuntada da
mesma combinação.” (Schwarz, 1999: 82; grifos nossos)
17
dicotomia entre unidade e diversidade. Para a autora, a saída para tal situação seria
escapar dos caminhos propostos pelo positivismo e também pelo relativismo pós-
moderno e pensar a sociologia com base no realismo crítico, como uma unidade entre
diferentes formas e métodos de análise, mas com possibilidade de se conseguir alcançar
um norte comum e garantir as potencialidades da disciplina enquanto forma de
conhecimento. Analogamente ao que propõe Berthelot (2000), esse movimento analítico
pode ser entendido como uma conjugação entre pluralismo (de formas, de objetos de
análises e de fontes de construção teórica) e racionalismo (Idem:111). Convém salientar
que, para o autor, pluralismo não seria sinônimo de relativismo mas sim uma concepção
ainda nos marcos do pensamento racional, como fica claro no trecho citado a seguir:
Hussein Alatas foi um dos primeiros intelectuais que lançaram as bases da, assim
chamada, “autonomização” da Sociologia. Sua proposta consiste no desenvolvimento de
métodos e teorias capazes de incorporar dados e de pensar a prática analítica com
pressupostos que partam “de dentro” das sociedades estudadas “para fora” (Alatas, 2006).
Segundo o autor, os conceitos clássicos das ciências sociais europeias, como classe,
estratificação social, mobilidade social, cultura etc. teriam uma validade universal no
nível abstrato, mas suas manifestações históricas e concretas seriam condicionadas pela
conjuntura que foram desenvolvidas (Idem: 07). O movimento que as sociedades e os
intelectuais não ocidentais deveriam tomar, no intuito de promover uma ciência social
com maiores ganhos heurísticos, seria o de construir uma tradição de conhecimento
autônoma, que levasse em conta os aspectos locais, “aplicando um conceito independente
de relevância na coleta e na acumulação dos dados de pesquisa” (Ibidem). Isso
possibilitaria uma contribuição genuína e verdadeiramente local a uma sociologia
supostamente universal, livre da imitação e da cópia de referências alienígenas àquelas
sociedades.
18
the principal aim of this paper is to contribute to a general body of explanatory principles
by demonstrating how some ideas and notions contained in a type of African oral poetry
can be extrapolated in the form of propositions for testing in future sociological studies
in Africa or other world societies (Idem : 343).
Essas duas perspectivas podem abrir possibilidades interessantes para pensar as
formulações intelectuais com fins a intervenção na realidade e também com intuitos de
fomentar uma produção teórica generalizante sem cair numa divisão estéril entre “Teoria”
e “prática” ou intervenção política. Entretanto, deve-se tomar cuidado para não considerar
ao extremo essas duas propostas intelectuais e, consequentemente, incorporar uma visão
essencialista sobre conceitos como “identidade”, “nacional”, “autóctone” etc. Nota-se,
porém, tanto no projeto de autonomização da sociologia quanto no de indigenização, uma
forte tentativa de balizar localmente as premissas analíticas de seus trabalhos, de forma a
7
Após esse movimento inicial surgiram desenvolvimentos críticos a esse projeto, como os estudos de
Makinde (1988) e Lawuyi & Taiwo (1990), e também contraposições às premissas básicas de Akiwowo e
à maneira como seu desenvolvimento conceitual ainda mantinha relações espelhadas e estruturais com
conceitos europeus e com a vertente do funcionalismo estrutural (Adesina, 2002). Por outro lado, Archer
(Ibid.) retoma o projeto intelectual de Akiwowo e afirma que, ao contrário de leituras equivocadas que viam
na análise do autor nigeriano um exemplo do relativismo cultural, esse estudo possibilita o entendimento
de que “humankind universally thinks and talks about sociality – about creation, social origins,
consanguinity and cohabitation. In Isichei´s terms this leads to an anti-relativistic quest for basic conceptual
categories whose empirical referents exist whenever human beings are found “ (Ibid. : 143) . Assim, a
autora defende que uma das saídas para a falsa dicotomia entre unidade e diversidade, criando-se um
conhecimento universal longe das armadilhas do positivismo e do pós-modernismo seria o recurso a
universalidade da razão humana, apesar dela se revelar, dependendo do contexto, em manifestações práticas
e cotidianas diferentes (Ibid. : 140).
19
8
Em relação à análise do processo de formação das teorias sociológicas clássicas, essas duas correntes
sociológicas, além de “provincializar a Europa” – transcendendo o chamado de Chakrabarty (2000) –,
indigenizaram-na (cf Alatas, 2001: 01)
20
Em artigo recente, João Marcelo Maia (2015) aplica essa concepção de Alatas ao
estudo do pensamento de Guerreiro Ramos. A aproximação propõe uma abordagem
transnacional do estudo do autor de Redução Sociológica e, com isso, inserir seu
pensamento na dinâmica mais ampla, global, das formulações sociológicas do pós-guerra.
A partir desse estudo de caso, Maia propõe algumas possibilidades de pesquisa dentro do
campo de pensamento social que tentem dar conta da mobilização dos produtos
intelectuais periféricos dentro de uma lógica relacionada ao movimento mais amplo das
formulações teóricas ocidentais, como fica explicitado no trecho que reproduzo em
seguida:
9
A referência aqui é ao trabalho clássico do teórico da literatura Edward Said e sua obra fundadora dos
chamados Estudos pós-coloniais. Cf. Said, 2011.
10
Convém relembrar o papel que o liberalismo pensando por Stuart Mill teve na “domesticação” das
perspectivas liberais no contexto inglês, esvaziando a perspectiva de uma ação do mercado livre de
contingenciamentos outros, como aquela ligada à uma concepção liberal atreladas às máximas
evolucionistas que enfatizavam o papel positivo da “competição” livre das intervenções do aparelho
estatal. Sobre o tema, conferir Bellamy, 1994.
22
11
Utilizei os textos em suas edições primeiras. Quando alguma edição posterior for mobilizada faço as
indicações necessárias.
23
Itinerário de Sílvio Romero, assinada por Sylvio Rabelo (1967). Acredito que o esforço
de unir o debate doutrinário feito pelo crítico sergipano conjuntamente com suas
intervenções públicas permitam perceber as tensões que a conjuntura de organização do
modelo republicano e federalista gerava nos esforços intelectuais do autor e como uma
série de impasses a serem resolvidos pela classe política do período, como a questão da
representação política e papel do Estado, acabaram por influenciar uma recepção
específica do liberalismo de corte spenceriano.
Antonio Candido foi o primeiro autor que tentou entender, em estudo sistemático,
as tensões da proposta crítica romeriana12. Como salienta no prefácio a segunda edição
de O Método Crítico de Sílvio Romero (2006), uma das conclusões que alcançou ao
analisar a obra crítica do autor sergipano foi a relativa fidelidade de sua proposta teórica
desde seus estudos iniciais sobre a literatura até a consolidação de seu projeto de crítica
literária que se concretizou em História da Literatura Brasileira (Candido, 2006: 15)13.
Entretanto, Candido salienta que, apesar desta fidelidade na proposta de crítica, a ideia de
uma coerência do autor seria exagero e não deveria ser levada em absoluto (Idem: 14).
Em parte o trabalho que apresento aqui é tributário dessa percepção de Antonio Candido,
12
Sobre a influência do método de Sílvio Romero para o próprio Antonio Candido, ver Prado, 2009. Sobre
a perspectiva crítica de Antonio Candido, salientando seu método comparativo, ver Ewbank, 2014.
13
Ao analisar a relação da proposta crítica de Antonio Candido e de Sílvio Romero, Arnoni Prado afirma
que “por mais inadequada que se configure a Antonio Candido a fisionomia literária do crítico projetado
por Sílvio Romero, é – digamos – no preenchimento de seus intervalos, na iluminação gradual dos
conteúdos implícitos no que Sílvio sugeriu, mas não fez avançar, esboçou, mas não soube exprimir,
pressentiu, mas não conseguiu formular; é na discussão integradora desses intervalos que as análises de
Antonio Candido redimensionam a contribuição positiva de seus desequilíbrios” (Prado, 2009: 107)
24
muito marcante: a sua sociabilidade, que se regia por um modo cortês de interação
(Aguiar, 2012). Praticamente a concretização em termos de conduta pública e intelectual
do “tédio à controvérsia” de Conselheiro Ayres, notória peça da ficção machadiana.
Assim, todas as disputas deveriam manter a boa convivência e a harmonia entre os
participantes, ensejando um ambiente agradável e longe da imagem de campo de batalha
intelectual que tanto agradava a Sílvio Romero. A criação da Academia Brasileira de
Letras (1897), tentativa de especialização do ofício literário14, e a partir de seu surgimento
também ambiente preferencial da elite intelectual no Rio de Janeiro, pode nos trazer
informações importantes sobre a sociabilidade nesse contexto. Machado de Assis, ao
contrário de Romero, pregava o distanciamento e a independência do literato frente às
questões políticas do seu tempo. Em um trecho de seu discurso de inauguração da
Academia, ele diz:
Romero, ao contrário, defendia que o homem de letras deveria ser atuante, quase
um “militante” em torno das questões caras à realidade social e cultural do país, tendo ele
mesmo defendido esse tipo de fazer literário na sua pequena mas nada discreta atuação
dentro da Academia. Ao comentar sobre a postura do homem de letras frente às “pugnas
e dores da pátria”, delineia assim a postura intelectual que considera adequada:
E' prova de desamor deixal-a gemer ao peso das facções e não ter para ella
siquer uma palavra de consolação. Entrar no meio dos que pelejam, travar
das armas da batalha, quo para muitos de nós é apenas a palavra falada ou
escripta, não é acto de heroísmo, chama-se apenas o cumprimento estricto
de um dever. Por nossa parte temol-o cumprido sem pretenções e sem
alardo, discutindo, repetidas vezes, os homens o os factos brasileiros nos
últimos oito annos. Não nos glorificamos disto, que se nos afigurava, e
afigura ainda hoje, mera obrigação. Erramos, por certo, em muitas
occasiões, mas erramos de boa fé, pelo muito que amamos este formoso
paiz, onde nascemos, d'onde nunca sahimos um momento, d'onde não
14
Sobre a Academia Brasileira de Letras e a tentativa de Machado de Assis de criação de um ambiente
mais livre e autônomo para os homens de letras no Brasil, ver Miskolci, 2006.
27
desejáramos jamais sahir, e que nunca trocaríamos por outro, se nos fora
dada a liberdade da escolha. (Romero, 1897: XI-XII)
não importa isto uma aprovação a certos absenteísmos muito do gosto dos
ânimos fracos, que entendem de salvaguardar a própria pureza, fugindo
sistematicamente das tentações. É proceder que nunca aplaudiremos. A
15
Roberto Ventura indica que os ataques de Sílvio Romero a Machado de Assis e a intelectualidade da
capital se inserem no escopo maior de combate a qualquer tipo de oligarquia, incluindo as “panelinhas”
literárias. Cf, Ventura, 1991.
28
O diagnóstico esposado acima apresenta paralelos com o cenário descrito por Simmel em
seu ensaio que tenta dar conta das mudanças que a monetarização trouxe a vida urbana
berlinense. Como indica o autor alemão, lá, como aqui, pode se notar a tensão
modernidade/tradição, como fica claro no trecho abaixo:
16
Aguiar mobiliza principalmente dois momentos da obra simmeliana para construir sua pesquisa: os
ensaios sobre a sociabilidade (2006) e o estudo sobre Schopenhauer e Nietzsche (2011).
29
Lafayette Rodrigues Pereira, que assina o livro sob a alcunha de “Labieno”, tem
nesse opúsculo sua única produção literária. Apesar deste livro não ter tido repercussão
grande dentro do círculo literário fluminense do período, posto que não era figura literária
de peso, apesar de político com longa e prestigiosa carreira que remonta ao Império, seus
argumentos teriam reverberação para além de seus esforços17. “A urbanidade é também
17
Lafayette Rodrigues Pereira viria a entrar na ABL, por exemplo, em 1909, sucedendo o próprio Machado
de Assis, recém-falecido em momento já de início da crise da instituição (crise essa que atingiria seu clímax
30
uma qualidade literária!”. José Veríssimo condensa, assim, o argumento em torno do qual
constrói sua crítica em torno da obra de Sílvio Romero (Veríssimo, 2001: 273). Ele
“acusou o golpe”, respondendo e construindo boa parte de sua crítica de forma reativa,
num movimento de acusação e defesa de argumento. Pode-se notar, nesta conjuntura, o
nascimento da representação de Sílvio Romero como uma personagem difícil no
ambiente intelectual do Rio de Janeiro, aparecendo como polemista fervoroso e dono de
uma retórica agressiva, com uma personalidade egocêntrica dada com muita frequência
as autocitações (Idem: 241) sem pouco apreço e respeito, portanto, à reserva, rotinização
básica derivada do caráter blasé (Simmel, 2005) que caracterizou os esforços do
mainstream intelectual fluminense do período. Convém lembrar que a polêmica que deu
origem às críticas de Veríssimo a Romero tinha como cenário os primeiros anos de
formação da ABL e a recepção crítica em torno do romance machadiano. Nesta
conjuntura, antigas questões referentes à crítica literária e ao caráter nacional tomaram o
centro dos debates e propiciaram grandes polêmicas. Como exemplo, podemos citar o
seguinte ataque de Veríssimo a Romero:
Eis a que chegou nas mãos incapazes do Sr. Sílvio Romero a “crítica
cientificista” como ele próprio chama a sua: à rebusca de coincidências de
opiniões, de plágios e reminiscências com cujo achado impavam de gozo
críticos das velhas escolas que o Sr. Sílvio Romero veio justamente
suplantar e destruir. Não pode haver mais estupenda revelação de
incapacidade critica. Igual só aquela de confrontar os versos patuscos e
quejandas chulices de Tobias Barreto com o fino e percuciente humorismo
de Machado de Assis (Veríssimo, 2001: 267).
Sua suposta incoerência e o ardor e ferocidade para com as querelas em que esteve
envolvido marcaram uma tradição de análise que por muito tempo balizou o debate sobre
sua contribuição para o pensamento social brasileiro. José Veríssimo, mediante esse
quadro, parece inaugurar uma vertente interpretativa sobre a obra do autor ao se
posicionar antagonicamente em relação à crítica literária romeriana, do que o trecho
abaixo citado constitui exemplo emblemático:
[...] ele não é uma natureza complicada e difícil, antes clara, espontânea e
aberta. Mas também incoerente, impulsiva, sem medida nem
comedimento. Isso explica as suas incoerências, a sua inconstância de
em 1914) marcada pela descaracterização dos membros ingressantes, muitos deles pouco ou nada ligados
a vida literária brasileira. Sobre o tema, ver Rodrigues, 2003.
31
18
Rocha (2004), em ensaio que aborda as possiblidades de releitura das proposições de Sílvio Romero
acerca da obra machadiana classifica o embate dele com Machado como um ataque, pelo primeiro, de uma
postura típica de “homem de letras cordial” (Rocha, 2004: 261). A interpretação do ensaio e do livro a que
pertence gira em torno de problemáticas da vida intelectual e crítica brasileira sendo vistas sob o prisma da
cordialidade, aos moldes codificados por Sérgio Buarque. Segundo o autor a condição do homem de letras
no Brasil seria marcada pela cordialidade, sob o risco de, caso contrário, ser excluído dos “círculos de
amizade que costumam assegurar visibilidade no sistema intelectual"(Ibidem: 37). Avançando no
argumento, Rocha sinaliza para a similaridade na questão da relação intelectuais e o Estado nos casos
brasileiros e francês mas salienta que, aqui, seguindo a fórmula contida em Raízes do Brasil, o
embaralhamento entre público e privado criaria intelectuais dependentes do Estado, assumindo cargos de
funcionários públicos (como o caso de Machado) mas que não saberiam compreender a função impessoal
que o ofício demandaria, ocorrendo consequentemente na capitalização privada dos recursos simbólicos do
cargo público. Contra essa situação, segundo Rocha, Sílvio Romero se levantaria e basearia sua acirrada e
conhecida polêmica, pois segundo ele, a característica de mecenato, própria do romantismo sob a égide e
financiamento do Império, seriam características que afetariam a independência do escritor (Idem: 261).
Acredito que, por um lado, a tese mereça atenção pois a validade da hipótese da cordialidade e da ideologia
do favor na interpretação da sociedade brasileira em geral e na sociabilidade específica em particular possa
ser frutífera para a montagem de um quadro mais completo da nossa vida intelectual do oitocentos.
Entretanto, torna-se necessário matizar que para Sérgio Buarque de Holanda, cordialidade não é sinônimo
de “civilidade”. Como o autor indica, a polidez significa um mecanismo de defesa perante a sociedade onde
o ritualístico só é mantido ao nível das aparências, na “epiderme” do indivíduo (Holanda, 2013: 147).
Portanto, a tese de que Sílvio Romero combatia Machado porque ele simbolizava a ligação condenável do
homem de letras com o status quo não se sustenta. Além do fato de que Sílvio Romero não era um outsider
em relação a esfera do poder, tendo sido deputado federal com apoio explícito do Barão do Rio Branco (Cf.
Silva, 2008), fundador da Academia Brasileira de Letras e relacionado com círculos políticos de prestígio
do Brasil da Primeira República, a hipótese me parece descabida pois mesmo que funcionasse como retórica
apenas e que não se realizasse e aplicasse nem mesmo para seu caso - se especularmos que ela seja correta
- as mobilizações contra Machado de Assis não podem ser lidas dessa forma pois outro escritor “funcionário
público”, Euclides da Cunha, teve grande simpatia e apoio do crítico sergipano, tendo até proferido seu
discurso de introdução à ABL(1896), por mais que esse discurso tenha sido utilizado mais para um ataque
à Afonso Pena, presidente à época, do que elogio ao autor d´Os Sertões...
32
Prosseguindo em seu argumento, o autor salienta que o caráter pouco criativo de nossas
formulações intelectuais seria fruto de uma característica “auditiva” da cultura letrada
brasileira, em que a produção intelectual seria influenciada e teria como destino final a
alegoria do discurso público (Idem: 08)19, visto que não existia público leitor que
19
A tese que Costa Lima sustenta neste capítulo de seu livro Dispersa Demanda é de que o Brasil possuí
uma sociedade baseada na tradição oral, portanto auditiva. Logo, a intelectualidade seria marcada por essa
35
Quatro visões sobre o mesmo cenário intelectual, o mesmo objeto e, levados em conta
suas enormes diferenças analíticas, uma face interpretativa comum: a percepção de que
no oitocentos brasileiro as ideias parecem um corpo estranho à realidade nacional. Essa
perspectiva, nos termos da crítica literária proposta por Sílvio Romero, encontra em
Antonio Candido uma importante inflexão conjuntamente com algumas permanências
interpretativas. Vamos a elas.
acomodação de uma tradição basicamente oral em um mundo de predomínio da escrita. Em suas palavras:
“a dominância oral” significa que a escolha das palavras e a composição das frases visam a suscitar um
efeito de impacto sobre o receptor, sem que este se confunda com uma recepção propriamente intelectual”
(Lima, 1981: 16)
36
Anos após a esse estudo de sua juventude, Candido salienta como a obra crítica de Sílvio
Romero exprimiu de forma viva as contradições e impasses do Brasil do século XIX, por
meio de seu projeto crítico (Candido, 2011: 10). Além disso, a contradição em sua obra é
matizada e identificada por Antonio Candido como uma ‘dialética sem síntese”. O vaivém
de seus posicionamentos, a tensão entre os paradoxos de seu pensamento, “visão
simultânea do verso e do reverso” comporiam o mecanismo de sua produção intelectual,
o que, segundo Candido, poderia ferir a lógica mas enriqueceria o “senso de realidade”
de sua obra (Idem: 123).
Por tudo isso, a obra vasta e multiforme de Sílvio Romero está viva. Sua
incansável atividade, sua dedicação à literatura, não ficaram perdidas.
Como todos os pioneiros, teve deficiências enormes, erros indiscutíveis,
desvios apaixonados, que devem ser vistos a luz das condições de seu
tempo e do meio em que trabalhou. Ninguém, entretanto, realizou, no curto
espaço de uma existência, e sob dificuldades tão grandes, uma obra de tal
porte. Sílvio Romero não pode, evidentemente, ser apreciado segundo a
paixão de seus julgamentos, a deficiência de sua crítica, as falhas de seu
método histórico. O saldo de tudo o que fez é dos maiores já alcançado por
um pesquisador entre nós. (Sodré, 1969:366)
Essa postura intelectual do crítico sergipano é destacada por Sodré como parte de uma
abordagem bem comum na intelectualidade brasileira que visava o enfrentamento da
questão da “transplantação cultural” (Idem: 473). Arrolado conjuntamente com autores
38
como Azevedo Amaral, Alberto Torres, Oliveira Vianna, entre outros, Sílvio Romero é
considerado por Sodré como pioneiro na formulação da questão problemática da imitação
na vida cultural brasileira. Essa questão levava em conta a separação entre elite intelectual
e o povo e também a suposta alienação dos textos usados em relação as temáticas
brasileiras mais candentes (Idem: 475).
Uma forma de explicar as contradições tão evidentes seria dizer que Sílvio
Romero absorveu as teorias europeias da época e, como essas teorias eram
erradas, fatalmente provocariam contradições quando aplicadas a casos
concretos. Embora isso seja verdade, ainda não explica porque Sílvio
Romero pode sustentá-las. Aparentemente, não tinha recursos intelectuais
para opor-se aos mestres europeus e isso o obrigava a repetir afirmações
que a realidade desmentia a todo instante [...] Uma interpretação possível
– mas que no caso de Sílvio Romero parece discutível – seria dizer que
nele existia o preconceito de classe e de raça que será tão nítido nos autores
seguintes. O que sugere esse preconceito é o fato de Sílvio Romero insistir
no branqueamento da população, na necessidade de manter a imigração.
Além disso, a caracterização que faz de índios e negros é nitidamente
desfavorável a esses. Outra prova desse preconceito pode ser encontrada
na sua descrição no negro na África, onde procura mostrar todos os seus
aspectos aparentemente desagradáveis. No entanto, como repetia
descrições europeias, poderia ser vítima do preconceito desses autores.
(Idem: 204-205; grifos do autor)
repertório cientificista atuando como um arsenal retórico que foi utilizado para os anseios
modernizadores da intelectualidade brasileira do último quartel do século XIX e início do
século seguinte. O autor relaciona o recurso à polêmica como reflexo de uma prática da
intelectualidade brasileira e que representaria certos aspectos tradicionais – a questão da
honra e da busca pela manutenção da integridade pessoal – e aponta na direção de que
forma e conteúdo das críticas feitas pelo autor sergipano seriam fruto de uma conjuntura
influenciada por um modus operandi tradicional. Relacionando esse aspecto as leituras
posteriores sobre a obra de Sílvio Romero, Roberto Ventura indica que a permanência da
chave da luta e do combate nos intérpretes é aspecto que impede uma visada crítica sobre
a obra do polígrafo sergipano. Em seus próprios termos, Ventura define a questão:
Essa abordagem pode ser útil para ver como o repertório intelectual se realiza,
como forma, numa ferramenta retórica de debate e disputa, como apresentada linhas
acima. As tensões da vida social brasileira são questionadas frente a um repertório de
certa forma deslocado das suas matrizes originais e encontram no ambiente social
pessoalizado e marcado pelas regras de convívio baseadas na honra e no prestígio pessoal
seu nexo. Entretanto, a polêmica para Romero não era algo determinado exteriormente
apenas - pelo mundo social - mas foi algo plasmado pela sua leitura de Spencer e a ideia
de Struggle for life adaptada, em suas construções críticas, para se pensar a sucessão
supostamente natural entre teorias mais fortes em detrimento das mais fracas (cf. Romero,
1894: Introdução).
44
Não nego que Machado de Assis não comungava e sempre foi um crítico do
cientificismo nas suas mais variadas vertentes e o fez com muita perspicácia no seu
tempo. Entretanto, entender a prevalência de Machado de Assis em relação a Romero
através dessa chave de leitura me parece um exercício eivado de anacronismo, posto que
essa interpretação desconsidera a realidade do momento em que os agentes estavam
inseridos, ocorrendo assim em uma leitura teleológica. Como nos lembra Quentin Skinner
(1996), o estudo do contexto em que a obra foi produzida não significa apenas adquirir
uma informação adicional sobre uma etiologia, mas também implica em perceber e ter
maior visão interna sobre o que seu autor queria dizer, o que ele “estava fazendo”20
quando escreveu suas obras. A proposta metodológica do contextualismo linguístico
transcende a simples análise do argumento do autor e possibilita dar conta das “questões
que Sílvio Romero lançava e tentava responder e, em que medida, aceitava e endossava,
ou contestava e repelia – ou às vezes até ignorava – as ideias e convenções
predominantes” (Idem: 13).
20
Skinner não defende que esse “fazer” seria o de adentrar a mente do autor e, em um esforço subjetivista,
dar conta dos meandros de sua mente. O que ele coloca é o fato de entender a produção dos textos dentro
dos seus contextos linguísticos específicos e compreender como os mesmos têm uma função estratégica e
instrumental de agência na realidade (Skinner, 2005).
47
Entretanto, a crítica que se não gereralisa, que não atinge a região dos
princípios, que não é capaz de discernir as leis que dirigiram o
desenvolvimento complexo da nacionalidade, que não abarca na sua
integridade, por mais interessante que se possa mostrar, não passa de uma
negaça illusoria, de um entretenimento de ociosos. E é dessa que hemos
tido a fartar, espéce de chocalhice alvissareira de maravilhas literárias que
não possuímos, quando não são diatribes grosseiras contra os escriptores
de que os analystas não gostam. O meio de evitar estes desacertos dissonos
e comprometedores é, repetimos, generalizar: ver o povo, onde de
ordinário só se costuma enxergar o indivíduo; tomar a evolução das letras
e das artes como alguma cousa de impessoal, de superior às cotteries de
momento, uma como espécie de expoente da vida nacional, uma função da
capacidade espiritual da raça. Olhada desta altura a região das sciencias,
letras e artes, não deixa ella ver os rancorosos conflitos do egoísmo, a
pequenez dos temperamentos, o lado passageiro das paixões, para só
descortinar aos olhos do observador os grandes, os nobres esforços da alma
do povo para a luz para a gloria, para o belo, para os deslumbramentos do
porvir (Romero, 1897: XXIII)
ter a nobreza das boas convicções e a fé dos bons estímulos” (Idem: 04). Logo, os bons
estímulos, ou seja, o repertório intelectual europeu empregado na descoberta dos
caminhos e formas que possibilitariam nossa entrada na modernidade exporiam a
mestiçagem como o fator democratizante que levaria o Brasil ao concerto das nações
civilizadas (Romero, 1894).
21
Spencer em Do Progresso, sua lei e sua causa (1857) esboça de maneira sistemática sua teoria sobre o
progresso. Nela, toda a realidade seria explicável pelo modelo mecanicista de passagem do homogêneo
para o heterogêneo. Assim, tanto a formação do universo, a diferenciação dos animais e a sociedade em
suas mais variadas questões (economia, política, estética e vida social) seriam regidas por essas leis. Daí
vem a necessidade da aplicação de um método de compreensão da realidade, por Sílvio Romero, que dê
conta do caráter processual e histórico dos fenômenos, sejam eles literários ou políticos, pois estariam todos
sendo afetados pela mesma lei definidora e ao fim e ao cabo a separação em esferas especificas desses
fenômenos não ajudaria, muito pelo contrário, impediria o projeto intelectual levado a cabo por ele.
49
definiriam o jogo político da Primeira República. A forma que a nova carta constitucional
assumiu dependeu de traduções que definiriam os lados em litígio pelas disputas em torno
de sua significação (Idem: 98)
Sílvio Romero não se isentou de marcar posição nesse debate mas torna-se difícil
seu enquadramento nas duas vertentes apresentadas anteriormente. Entretanto, não deve-
22
Hollanda, em sua pesquisa sobre as discussões acerca da representação política na Primeira República
apresenta uma terceira vertente, a do conservadorismo realista, que negava o formalismo presente na
questão das mudanças institucionais e indicava a necessidade de um arranjo político que se adequasse as
características sociais do Brasil (2009). Contudo, esse debate se torna público e reverbera com maior
notoriedade apenas a partir das primeiras décadas do século XX, na obra de intelectuais como Alberto
Torres e Oliveira Vianna, logo escapando do recorte cronológico que realizo neste segundo capítulo.
Entretanto, algumas características dessa vertente se apresentam na obra de Sílvio Romero mas a análise
mais detida sobre seus alcances e limites heurísticos será feita com maior profundidade no capítulo III da
dissertação.
23
O “pacto Campos Sales”, também denominado pela literatura especializada de “política dos
governadores”, significou um rearranjo que visava a sobrevida política dos grupos locais, enfraquecidos
durante a última década do século XIX, ao contrário do que aparentemente pode parecer uma força maior
das oligarquias estaduais frente à União no complexo jogo de correlação de forças do período. Como lembra
Leal (1976), o alinhamento dessas elites com o governo federal permitiu para essas oligarquias a sua
hegemonia nas eleições estaduais e para o executivo nacional um suporte para seus projetos, devido a
decorrente estabilidade política que esse arranjo estabeleceu na cena política brasileira da Primeira
República.
51
se, a meu ver, tomar essas posições divergentes e seus antagonismos de forma cristalizada
e torna-se frutífero ir além das retóricas dos agentes, inclusive de Sílvio Romero, para
uma compreensão mais abrangente do processo. Isso não significa ignorar suas
formulações, suas representações, mas tentar compreender os rótulos políticos que
arrogava para si – e que também eram localizados por adversários e intérpretes – como
algo em tensão permanente.
Assim, o autor britânico defende que, em grande parte, a aceitação do filósofo inglês no
Brasil foi devido a possível correspondência do pensamento científicista e de seu papel
na contestação à tradição e as permanências decorrentes do Império com o pensamento
liberal. No mesmo diapasão, Angela Alonso avança e afirma que, além disso, positivismo
e spencerianismo representavam pólos opostos de concepções político-ideológicas para
os rumos do país, e de forma geral, o spencerianismo tendeu a fornecer uma via liberal
para o progresso, enquanto o positivismo comteano trazia uma perspectiva autoritária.
(Alonso, 1995: 05).
Por outro lado, o liberalismo era parte da retórica (e da “motivação para a ação”)
de grupos com concepções políticas para o país muito diferentes entre si. Ninguém
53
Continuando sua análise dos primeiros anos da República, Romero se esforça para
desvencilhar o advento da República à ação dos positivistas. Para ele, que como
mencionado anteriormente localizava o positivismo como sinônimo às doutrinas do
Apostolado, os adeptos ortodoxos da doutrina se esforçaram para criar uma mitologia
autoindulgente que ligava os avanços em relação a modernização cívica, legal e
institucional do país a sua atuação num projeto de construção de uma hegemonia política
que concedesse legitimidade a seus projetos autoritários, como fica claro no trecho abaixo
citado:
24
Advogado e publicista sergipano também oriundo da Escola de Direito do Recife, como Sílvio Romero.
Participou em 1894 da derrubada de José Calasans, presidente do Estado do Sergipe, conjuntamente
com o grupo liderado, entre outros, por Sílvio Romero. Sobre o tema, ver Passos, 2009.
55
25
A terceira edição de sua História da Literatura Brasileira foi lançada após sua morte, em 1943, e
compilada por seu filho, Nelson Romero. Esta edição é basicamente a reprodução fidedigna da primeira
edição, excetuando as mudanças na grafia de algumas palavras e nos títulos das seções, além da inclusão,
por Nelson Romero, de outros livros de seu pai, como Novas Contribuições para o Estudo do Folclore
Brasileiro(1897) e O Brasil Social e os elementos que o plasmaram (1912). Para a análise costurada aqui
nesta dissertação, torna-se interessante levar em conta que o capítulo sobre o histórico das relações
econômicas, sociais e institucionais (Cap. VIII) manteve-se intacto desde a primeira edição de 1888,
alterado apenas no título, ao incluir no subtítulo “As instituições Políticas e Sociais da Colônia e do
Império” referência a república (ficando, assim, “As instituições Políticas e Sociais da Colônia, do Império
e da República”) sem alteração substantiva na interpretação que realiza. Esse fato leva a crer que o advento
republicano não alterou essa sua interpretação sobre a formação social brasileira, o que coaduna sua
mobilização neste momento da minha análise.
26
A célebre citação de Plínio reproduzida por Sílvio Romero, “Os latifúndios perderam a Itália”, parece ser
no contexto em que está inserida uma crítica severa a concentração fundiária. Como nos lembra Gibbon
(2005), a generalização do latifúndio em Roma durante o baixo Império e a política fiscal para os plebeus
se constituíram numa das razões para a decadência do Império Romano do Ocidente.
57
A chamada feita pelo autor para que o Estado assuma certas funções em prol do
desenvolvimento nacional, até em última instância na descoberta de uma “identidade” até
então oculta, parece contrariar os principais ditames da teoria spenceriana, principalmente
no que diz respeito, na voga dessa teoria, aos entraves causados pelo Estado ao
desenvolvimento social e a defesa das potencialidades individuais, bem como a ideia de
que a tutela já faria parte de um período ultrapassado nas modernas civilizações e, por
consequência, sua presença significaria atraso (Spencer, 1960). Nesse sentido, Romero
parece “torcer” as pressuposições básicas do filósofo inglês e fazer com que elas
dialoguem com o momento político-social em que estava inserido. Se por um lado,
Romero adota e declara a filosofia da história proposta por Spencer como superior àquela
defendida por Augusto Comte, principalmente na questão das teorizações metafísicas e
suprarreligiosas do segundo, por outro parece relativizar a máxima clássica de Herbert
Spencer da sobrevivência do mais apto, aos moldes depois incorporado pelo
27
Afonso Augusto Moreira Pena foi presidente da República de 1906 até 1908, tendo como característica
de seu governo um breve desalinhamento com os interesses oligárquicos e com a tentativa de promover a
modernização do interior do país e o seu respectivo povoamento. Sobre o tema, Cf Carone, 1969.
58
Convém salientar que estudos mais recentes discutem o papel do Estado na obra de
Herbert Spencer e relativizam um pouco a noção de que a obra do autor incorporaria um
liberalismo vitoriano selvagem. John Offer (1999) desvela certos aspectos pouco
explorados na obra de Spencer, principalmente nas obras Principles of Sociology (1898)
e Principles of Ethics (1897), que trazem à tona sua defesa do papel das redes de
beneficiência, que assumiriam o papel de fornecer uma política privada de Wellfare,
relativizando assim o absolutismo da ideia liberal expressa na máxima struggle for life
social presente nas formulações de Spencer. De certa forma, Romero se antecipa a essa
interpretação e relê o spencerianismo utilizando um critério criativo e realista das
condições sociais do Brasil naquele momento, principalmente ao realizar uma
interpretação heterodoxa em um contexto periférico de produção do conhecimento. Em
outras palavras, para ele a condição de “nação nova” que se apresentava para aqueles que
tentaram “pensar o Brasil” naquele momento mediante o quadro de emancipação política
e separação cultural em relação a metrópole traria a necessidade de descobrir como a
cultura popular e as tradições orais próprias do caldeamento racial no Brasil seriam a
chave para uma saída identitária formadora de novos nexos políticos (Romero, 1888).
Além disso, sua análise caminha no sentido de uma proposta analítica e normativa da vida
político-social brasileira onde as grandes questões herdadas da nossa herança colonial
aparecem como antípodas privilegiados da modernização da qual o crítico sergipano
almejava. Logo, o passado e as condições estruturais que ecoavam na conjuntura do Brasil
naquele momento formavam o substrato para a proposição romeriana de modernização
do país e a mudança do regime de governo, por si só, seria inútil, mesmo para um
republicano convicto como Romero:
Isto é que é preciso fazer e é o que não tem sido praticado em gráo algum.
Quem ahi já escreveu a historia analytica da administração regia no Brasil,
mostrando os esbulho?, as violências, as tyrannias de que eram victimas os
filhos do paiz ? Quem ahi já praticou outro tanto para com a administração
e a política imperial dez vezes mais desastradas do que a gestão colonial?
Quem, per cutro lado, já escreveu a historia, clara, precisa, dramática das
aspirações para a liberdade e para a republica em terras do Brasil? Ninguém
e tudo isto devia ter sido levado a effeito como doutrina e como
ensinamento para o povo. (Romero, 1894: XVII)
As preocupações com direções políticas mais afinadas com nosso caráter popular,
historicamente dado, em sua visão, não se apresenta na obra de Romero apenas no
momento republicano, como visto anteriormente. Em sua obra de maior repercussão,
História da Literatura Brasileira (1888), ele já apresenta sua proposta de crítica e de
interpretação da realidade brasileira baseada na busca de nexos históricos com nossa
formação e consequentemente com a associação dos nossos processos históricos com os
rumos da civilização ocidental. Em discussão inscrita no prólogo da primeira edição do
livro, Sílvio Romero apresenta uma interpretação bastante peculiar sobre a relação de
61
formas de governo e nosso suposto caráter étnico, apresentando suas ideias para a forma
republicana que achava a ideal:
Uma das questões políticas em que mais se deteve Sílvio Romero nos primórdios
do período republicano foi a referente à forma presidencialista apresentada pela
Constituição de 1891. Com clara inspiração no modelo da Constituição Americana,
principalmente na questão do modelo federativo de República, além de também ter sido
defendida principalmente pelos esforços de Rui Barbosa (Hollanda, 2009) maior defensor
desse modelo naquela conjuntura mas também dava conta dos interesses das classes
dirigentes do período, de forma majoritária. O que, numa primeira visada, pode parecer
um salto inovador na rotina institucional brasileira, esse novo modelo não encontrou
tábula rasa no ambiente político nacional. Como Renato Lessa (1999) demonstra, essa
62
novidade institucional possuía conexão com os anseios de parte das elites estaduais
durante o período imperial e que, na prática, o centralismo do Segundo Reinado, na
verdade, não coibiu o exercício do localismo nas diversas províncias. Logo, o
compromisso federalista assumido por grande parte daqueles que tomavam parte do
governo provisório expressava o que possuíamos de mais “moderno” e mais
“tradicional”, concomitantemente, pois práticas de governo exercidas com alto grau de
autonomia em relação ao Imperador, baseadas na lógica patrimonialista de domínio eram
regra em várias das províncias, escapando ao controle central do Império (Idem: 54). Por
outro lado, a “modernidade” política desse novo arranjo se representou mediante a
integração à rede de comércio internacional que São Paulo, principalmente, estruturou
logo após a inauguração do regime republicano (Love, 2006). Portanto, a mudança
institucional ocorrida a partir da Carta de 1891 significou a acomodação de interesses de
ordens e “tempos” diversos e a crítica de Romero à questão da relação entre “leis” e
“práticas”, que se torna explícita em sua série de correspondências para Rui Barbosa
(1893), deve ser entendida nesse jogo complexo entre diversas temporalidades e anseios,
ora em competição, ora em conjunção.
28
Lessa argumenta que, para as facções civis mais sistematicamente organizadas, em um primeiro
momento, a subida de Floriano Peixoto a presidência pudesse configurar uma solução temporária para o
conflito de Deodoro e o congresso. Entretanto, as deposições dos governos estaduais trouxeram ainda mais
incerteza ao jogo político. O que garantiu o apoio dos paulistas a Floriano foi a esperança que seu governo
propiciasse a viabilidade e continuidade do regime mediante um momento de grandes incertezas e muita
agitação social, exemplificado pela Revolução Federalista do Rio Grande do Sul e pela Revolta da Chibata,
ambas ocorridas em 1893 (1999: 102).
63
paulista, fortalecida pelo seu poderio econômico e político oriundo da lavoura de café,
tendo preponderância sobre os demais estados e suas respectivas oligarquias (Cardoso,
2006; Campelo de Souza, 1978; Love, 2006).
Importante frisar que nesse momento, a necessidade de um ente político capaz de dar
conta dos conflitos regionais que se sucediam no período possibilitou a aliança entre
Floriano e seus seguidores com as elites paulistas, portanto, neste momento da Primeira
República, interesses oligárquicos regionais e o ímpeto centralizador de determinados
setores ainda não eram concorrentes com o mesmo grau de rivalidade na cena política
brasileira, fato que vai se acirrar a partir dos anos 20 do século XX. Sílvio Romero,
baseado no argumento spenceriano que apresentava o progresso como fenômeno
essencialmente marcado pela passagem do homogêneo e do simples para o heterogêneo
e complexo em todas as esferas do mundo natural e social (Spencer, 2002) e da
consequente busca histórica por determinantes históricos que informassem a prática
política nacional, argumenta sobre a suposta disjunção entre presidencialismo e índole
nacional brasileira:
com o substrato social e a forma como a vida social brasileira se apresentava durante o
final do século XIX brasileiro. Mesmo argumentando que o presidencialismo seria um
erro tanto nos Estados Unidos quanto aqui, sua transplantação para nossa realidade social
seria ainda mais danosa devido ao caráter de “indisciplina” e “desorganização” que o
povo brasileiro apresentava (Idem: 24). Dado este cenário, o resultado prático no Brasil
e em outras repúblicas sul-americanas do presidencialismo seria o despotismo e a
ditadura. Avançando no argumento, incide sua lente crítica para a acomodação desse
modelo externo ao cenário encontrado nos primeiros anos da República, notadamente
marcado pelo militarismo. Cabe notar que os argumentos sobre o momento étnico do país,
de “mestiçagem cultural” generalizada como apresentava na célebre introdução de sua
História da Literatura (1888) reaparece aqui como alicerce para se pensar a necessidade
de integração da demos ao modelo de representação ainda bastante mirrado que a Primeira
República desenhou e que, para ele, sintetizava-se na adoção acrítica ao presidencialismo.
Para o autor, o presidencialismo só poderia existir em uma sociedade que tivesse seu povo
majoritariamente impingido dos alicerces cívicos para o exercício pleno da vida política
na democracia e consequentemente livre do aspecto despótico que por ventura a doutrina
poderia assumir. Na sociedade norte-americana, formada por “heróis de caráter” (Idem:
115), o presidencialismo poderia se realizar sem a faceta autoritária que encontrou em
realidades sociais outras. A adequação ou não de formas políticas e formas de
sociabilidade são mobilizadas aqui para provar o caráter nocivo que o presidencialismo
apresentava no início da república e o tempo que essa experiência institucional teve no
país era prova cabal de sua inadequação:
questão da evolução das formas de organização política, que marca forte presença na
narrativa do autor sobre a melhor forma de organização para o caso nacional e servem de
embasamento para defesa do parlamentarismo e a consequente crítica ao
presidencialismo:
E' bem verdade que duas concepções da republica estão deante uma
da outra. A republica de 1875 foi feita por homens práticos, que não
eram republicanos de véspera, que viam apenas neste regimen uma
fôrma de governo e a preferiam muito menos em virtude de
raciocínios especulativos do que por simples e sagazes vistas de
patriotismo, desejando dar instituições ao seu paiz e percebendo que
as circumstancías não lhes davam logar á escolha. O que elles
pretenderam fundar era uma republica policiada, não se afastando
systematicamente das instituições dos outros paizes mais do que o
67
29
Sílvio Romero se refere aqui a tentativa de criação do Partido Socialista Brasileiro ocorrida no I
Congresso Socialista Brasileiro, em 1892. A fundação desse partido não logrou êxito nesse momento, mas
é considerado por grande parte da literatura especializada como o embrião do que viria a ser a COB
(Confederação Operária Brasileira), de influência do socialismo reformista e do anarcossindicalismo,
fundada em 1906. Sobre o tema, cf. Badaró, 2002.
68
Interessante notar que nesse movimento analítico, o crítico sergipano baseia toda
essa crítica na questão de adequação de modelos exógenos, ou em outras palavras, em
como o cotejo a influências estrangeiras no campo intelectual deve ser feito com atenção
especial ao substrato social que se acomodará. Finalizando sua crítica comparativa, Sílvio
Romero destaca esse aspecto, ao criticar o formalismo com que as ideias políticas são
encaradas pelo governo republicano no Brasil:
30
Fundador do Partido Social Democrata alemão e pai de Karl Liebknecht. O filho, mais famoso
contemporaneamente, fundou junto a Rosa Luxemburgo a Liga espartaquista em 1916.
69
um momento de intensas disputas e ainda num regime sem a estabilidade política que
apresentará anos mais tarde. A opção pelo parlamentarismo aparece em sua crítica como
meio de organizar um modelo que garanta tanto a manutenção da ordem sem a
necessidade de expedientes centralizadores e repressivos do Estado (mesmo defendendo
Floriano nos episódios da Armada e do Sul, Romero centra suas crítica aos primeiros
governos militares por conta também desse aspecto autoritário) quanto a modernização
cultural, social e política do país. Como nas críticas ao positivismo, o argumento
evolucionista e o tratamento que Sílvio Romero adota frente a dinâmica intelectual do
país caminham para um entendimento sui generis sobre o momento de mudança vivido
pelo país e o “papel das ideias” nesse processo. Parece não bastar apenas a adoção das
inovações intelectuais centrais mais sim realizar um processo de adequação desses
repertórios ao ambiente social brasileiro e a um entendimento específico do modus
operandi que o Brasil faria sua integração a civilização ocidental, garantidor de um
processo de transição sem grandes rupturas.
Integração nacional frente ao mando local das oligarquias, controle do Estado para
com questões econômicas e sua relação com a federação são tópicos privilegiados na
discussão política que Romero travou durante os anos iniciais da Primeira República.
Agora, passo a uma análise de sua atuação parlamentar e tento estabelecer nexos entre
discussões sobre emendas a recém-promulgada constituição e a forma específica com que
o autor sergipano idealizou para a atuação estatal no país e suas relações com a sociedade
civil.
pela crise do encilhamento31 - por meio da política tributária controlada pelos Estados,
submetendo os municípios aos seus interesses e garantindo a não-intervenção da União
nessa matéria - acabou por privilegiar os Estados com maior inserção na dinâmica
exportadora oriunda da produção agrícola monocultora em detrimento dos Estados onde
essa lógica era menor ou inexistente (Osorio Silva, 1996). Com isso, houve desequilíbrio
entre o poder dos estados e podemos localizar as críticas de Romero desse período
parlamentar inseridas nesse debate. Entretanto, para uma melhor inteligibilidade das
críticas de Romero torna-se necessária uma análise mais detida do acúmulo político que,
a meu ver, possibilitou a sua eleição a candidatura de 1900 para a câmara dos deputados.
Antes, cabe mencionar que durante seu mandato, outra grande discussão se impôs na cena
política institucional brasileira: a discussão sobre a implementação do Código Civil. A
regulamentação da vida privada brasileira era uma demanda tida como urgente pela elite
política do país desde o primeiro Império e tentativas de organização jurídica desse
aspecto de nossa vida social lograram fracasso desde então. A partir de projeto elaborado
por Clóvis Bevilacqua e sob extrema pressão pela sua rápida aprovação pelo Executivo32,
durante os anos de 1900 e 1902 o projeto de código foi discutido em comissão parlamentar
que teve Sílvio Romero como relator (cf. Santos, 2011) e extensos debates na câmara
tentavam delinear o “projeto civilizatório” que a nova república assumiria. Em meados
de 1902, o projeto é finalmente votado e aceito pela câmara dos deputados e segue para
aprovação no Senado. O Código Civil, entretanto, permanece mais de quatorze anos
bloqueado, principalmente pelos esforços de Rui Barbosa, em processo que entrou para a
mitologia jurídica do país como tendo sido um embate bizantinista em torno da melhor
correção gramatical do projeto e, por isso, só entraria em vigor em 1916. Para os objetivos
do trabalho em curso, não torna-se útil (nem possível) uma imersão nessa questão, mas é
importante ter claro os debates que mobilizavam os parlamentares do período, posto que
nas intervenções no parlamento, Sílvio Romero tem as suas principais falas baseadas
31
A crise do “encilhamento” foi como ficou conhecida a política econômica adotada pelo primeiro governo
republicano e que teve sua gestação no último gabinete do Império, elaborada pelo Visconde de Ouro Preto
e Rui Barbosa e consistia numa política de concessão de créditos mais alargada, com a finalidade de
estimular a industrialização do país. Durante os primeiros anos da república essa política econômica causou
uma alta da inflação e a consequente desvalorização das ações, causando uma quebra em vários
investidores. Sobre o tema, ver Dean, 1997 e Neto, 2008.
32
Para uma análise sobre os interesses de Campos Sales na aprovação do Código e a relação do fato com a
necessidade de criar uma elite burocrática especializada que centralizasse as demandas do projeto do
executivo, ver Santos, 2011.
71
nessa grande questão posta pela elite da classe política do país: quais rumos deveria tomar
a formação do povo via sistematização e organização da legislação sobre a vida comum
nacional? Tentarei delinear nesses debates como, durante a exposição e discussão sobre
os mais variados temas na tribuna, pode-se perceber a tentativa de defesa de um modelo
legal que não recorresse a meios bruscos e não ignorasse os “fatores do meio social”
brasileiro.
Duas forças disputavam a cena política sergipana desde fins do Império até o
início republicano: de um lado a capitaneada pelo Padre Olímpio Campos, antigo membro
do Partido Conservador que aderiu a república quando instalada pelo golpe de 1889.
Representante do pensamento católico, ingressou na política com o intuito de defender os
interesses da Igreja frente a intensa campanha laicizante maximizada pelo novo regime;
de outro, existiam forças mais afinadas com o republicanismo, em suas mais variadas
matizes, incluindo Fausto Cardoso, Oliveira Valadão33 e Sílvio Romero (Prado, 2009).
Olímpio Campos e seu grupo dominavam a cena política de Sergipe desde os tempos do
Império e sua hegemonia se concretizou na eleição para o cargo de Presidente do Estado
em 1894 e para a liderança da Assembleia Legislativa. Entretanto, Sílvio Romero e seus
aliados não aceitaram o resultado das urnas, alegando fraude, e com o auxílio das forças
militares de Floriano presentes no Estado por conta do processo eleitoral e da proximidade
pessoal de Valadão e Floriano Peixoto, depuseram o, no momento, presidente do Estado,
José Calasans, aliado político de Campos, impedindo assim a continuação do poder nas
mãos do grupo. Alegando ser uma atitude estratégica visando unir os grupos republicanos
sergipanos em torno do “perigo dos monarquistas” (Romero, 1969: 252), Sílvio Romero
não escapou de críticas a sua aliança ao grupo florianista que tanto se opusera
publicamente e do uso do expediente militar para lograr êxito em sua jornada. Em resposta
a essas críticas, no prólogo à segunda edição de Doutrina contra Doutrina, escrito em
1895, Romero sintetiza suas motivações para sua adesão e liderança ao levante:
Foi só depois de uma reflexão madura sobre elas que decidimos entrar na
liga política que levamos a efeito acolá. Foi só depois de pesar todos os
motivos de ação que nos colocamos ao lado dos nossos amigos, a convite
33
Manuel Prisciliano de Oliveira Valadão, oficial militar do exército, foi presidente do Estado de Sergipe
entre 1894 e 1896 e 1914 a 1918. Também foi senador da República nos períodos de 1904-1914 e 1919-
1921.
72
Anos mais tarde, às vésperas das eleições de 1899, um rearranjo entre os grupos políticos
em Sergipe garantiu o retorno de Olímpio Campos a presidência do Estado. Martinho
Garcez, figura política proeminente do grupo de Valadão e ex-presidente de Sergipe
(1896-1898), rompe com este último e compõe uma chapa conciliatória com o grupo de
Campos, visando a estabilização política sergipana frente as incontáveis querelas que
ocorreram no estado desde a proclamação da República. Esse acordo possibilitou a
inclusão de dois nomes na chapa que concorreria e venceria as eleições para o mandato
1900-1902, a saber Fausto Cardoso e Sílvio Romero, dois antigos adversários políticos
de Campos. Depois de duas tentativas sem sucesso, finalmente o crítico consegue ser
eleito para seu primeiro e único mandato como deputado federal por Sergipe, apoiado
pelo antigo “inimigo comum”, o grupo ligado aos católicos e antigos adeptos da
monarquia.
No trecho acima citado fica claro que o autor sergipano toca em pontos basilares da forma
como o federalismo foi arregimentado no Brasil. Um consenso entre a literatura
especializada sobre o período é que a forma federativa atendeu aos interesses de certas
elites agrárias regionais na manutenção de seus interesses comerciais (Campelo de Souza,
1978; Cardoso, 2006; Lessa, 1999). A garantia da liberdade para gerir a vida jurídica dos
seus Estados e a possibilidade de negociarem diretamente com seus centros compradores
na Europa e nos Estados Unidos foi fator preponderante para o apoio e consolidação do
hiperfederalismo, via Constituição de 1891. Obviamente que a importância dentro da
federação que o estado de Sergipe gozava na dinâmica oligárquica pode ser um
determinante importante nessa motivação de crítica ao modelo federativo, entretanto ao
olharmos para sua mobilização argumentativa e intelectual, tanto desse momento quanto
de fases anteriores de sua trajetória, a questão aparece entrelaçada com o receio de que as
incertezas geradas pela mudança de regime no país pudessem dar lugar a radicalismos de
diversas ordens e a tentação ao autoritarismo presentes nas tentativas do executivo
nacional de solucionar os impasses de nossa formação cívica por medidas do alto para
baixo.
74
Antônio Valentim da Costa Magalhães (1859 – 1903) foi um jornalista e literato carioca, fundador da
34
A integração, via branqueamento, dos negros aparece, então, como forma de evitar
rebeliões dos negros, escravos ou libertos. Esse medo manifesto pelo crítico sergipano,
muito comum na elite intelectual do século XIX brasileiro, assombrada com a ainda
recente revolta de escravos de São Domingos e com as rebeliões ocorridas no próprio país
(cf. Reis, 2003; Azevedo, 2015)36, tem como antídoto a integração dos elementos étnicos
35
Em direito privado e de família, a ideia da liberdade de testar pressupõe que o indivíduo possa determinar
livremente os seus herdeiros sem precisar necessariamente contemplar seus cônjuges e/ou prole em
testamento.
36
Em Onda negra, medo branco (primeira edição publicada em 1987) Célia Maria Marinho de Azevedo
analisa como as revoltas de escravos no Brasil - aliada ao impacto que a insurreição negra do Haiti (1790
76
Todos os nossos principaes typos têm sangue branco: são brancos puros ou
desfigurados pelo sangue das outras raças; mas sempre têm sangue do
branco em qualquer gráo. E' força convir, porem, que o futuro d'este paiz
só pertencerá ao branco depois de haver elle assimilado os elementos das
raças tropicaes a que se alliou n'esta terra, mistura indispensável para o
habilitar a resistir plenamente ás agruras de nosso clima. Si houvera
necessidade de fazer applicação rigorosa ao Brazil da theoria das raças,
procurando uma que definitivamente nos represente, melhor que Portugal
o nosso paiz offereceria ampla possibilidade para a empresa; porque não
fora preciso levantar á altura de uma raça uma simples classe da
população, como alli praticou um extravagante com os mosarabes. Entre
nós o concurso de três raças inteiramente distinctas, em todo o rigor da
expressão, deu-nos uma sub-raça, propriamente brazileira, o mestiço. O
elemento mais progressivo tem sido o branco, que vae assimilando o que
de necessário à vida lhe podem fornecer os outros dois factores. (Idem:
869)
– 1804) ainda provocava nas elites brasileiras - conformou uma preocupação nesses setores para a questão
da incorporação dos negros a vida brasileira. Em análise pioneira a autora tenta romper com a visão
consolidada pela “Escola Paulista” que considerava que a condição da escravidão acabou por anular as
possibilidades de agência e de contestação dos cativos e como essas mesmas movimentações despertaram
nas classes dirigentes a necessidade urgente de manter a ordem legal, via aparelho repressivo, evitando a
sublevação desses setores. Sobre o tema da repressão como contenção das populações escravizadas também
ver Matoso, 1988.
77
ordenações reais, em favor das concepções cientificas sobre o direito. Para o autor, o
Direito, como todas as outras criações humanas, são entendidas de forma em que as
esferas sociais estão ligadas, agem umas sobre as outras (Idem: 262). Logo, apesar de não
terem confundidas suas funções, elas são entendidas como que integradas e a percepção
da importância do embasamento das formulações nas “raízes populares” faz com que
Romero não advogue a suplantação dos costumes via legislação. Esse esforço de adaptar
as inovações doutrinárias dos países centrais, via evolucionismo, marca o esforço
interpretativo do autor e no próximo capítulo perseguirei algumas consequências dessa
noção de adaptabilidade.
78
Não tenho como pretensão esgotar as possibilidades interpretativas dos dois textos
clássicos, mas para os fins perseguidos pela dissertação em tela, torna-se conveniente uma
mirada mais profunda em alguns aspectos das explanações dos dois cientistas políticos.
Mesmo que esses estudos tenham recuperado a validade de se encarar às obras dos
ensaístas pré-1930 como fontes preciosas para a imaginação sociológica contemporânea,
acredito que alguns resquícios sobre o processo de construção intelectual dos autores da
chamada “geração de 1870” precisam ser relidos de uma outra maneira. Agrupados pelos
intérpretes arbitrariamente sob o rótulo de “naturalistas”, “evolucionistas” ou congêneres,
compreenderam o uso de determinadas teorias com a finalidade de gerar inteligibilidade
sobre a sociedade como exercício puramente mimético (como trabalhei, em parte, no
primeiro capítulo dessa dissertação) ou pelo viés da instrumentalização política imediata,
dada pelos humores da conjuntura do período. Esse movimento gerou como resultado a
obliteração das inovações teóricas trazidas por esses polígrafos do final do século XIX,
não permitindo ver em seus constructos teóricos questões incorporadas posteriormente
pela geração de Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, entre outros.
37
Em Existe um pensamento político brasileiro ou As ideias e seu lugar Bernardo Ricupero define assim
sua crítica: “Assim, o `fetichismo institucional` dos liberais do Império, discutido por Santos, realmente
quer fazer crer que não existe maior problema em adotar instituições norte-americanas e europeias num
ambiente social bastante diferente do original. Já a atitude conservadora, analisada por Lamounier, sugere
que haveria apenas uma forma – a correta, a deles – de apreender a realidade. Isto é, junto com o
dedutivismo jurídico dos liberais convive o objetivismo pretensamente realista dos conservadores. No
mesmo sentido, o `autoritarismo instrumental` de Wanderley Guilherme dos Santos, incorpora a `auto-
imagem do pensamento conservador`, e a `ideologia de Estado`, de Bolívar Lamounier, não existe pelo
simples motivo de que não existe ideologia política sem referência ao Estado” (2011: 39). Essa postura
complementar entre as duas posições, segundo Ricupero, deriva do fato que tanto conservadores quanto
liberais adiavam ao máximo o enfrentamento com a questão da escravidão (Idem: 40)
80
Por um lado, se na tese de Wanderley Guilherme dos Santos meios e fins estariam
bem demarcados pela destreza dos intelectuais conservadores de enxergarem que
precisariam moldar o repertório político corrente para se atingir a modernidade política
ocidental, na interpretação de Lamounier a distinção de meios e fins não é preconizada
em sua análise, posto que a defesa da construção do Estado Nacional como um “Leviatã
benevolente” surge como pressuposto essencial da formulação dos intelectuais do
período, alinhado a uma série de pressupostos que negariam os ditames clássicos do
liberalismo, como o individualismo e a autossuficiência organizativa da sociedade civil,
além das prerrogativas contrárias às determinações do mercado (Ibidem). As diferenças
são bem nítidas nas interpretações dos dois cientistas políticos mas para os objetivos
81
perseguidos no trabalho em tela focarei no ponto da distinção presente nas duas teses
entre enunciados teóricos e práxis política.
38
O artigo de Renato Lessa foca principalmente na produção da Ciência Política brasileira a partir da década
de 1970, quando a geração que Lamounier e Santos fazem parte realizou seus doutoramentos nos Estados
Unidos, o que justificaria ainda mais a influência da virada behaviorista nas pesquisas desses autores.
Entretanto, acredito que sua crítica possa ser alargada para os trabalhos anteriores ao recorte feito nesse
artigo, como mobilizo no trabalho em tela.
84
buscarem no passado intelectual brasileiro uma construção que trouxesse o político como
categoria relativamente autônoma para as proposições normativas que ensejavam nos
momentos de suas respectivas criações. Tal fato deve-se ao que Renato Lessa, tomando
como parâmetro o conceito de Embedness de Karl Polanyi (2000)39, identifica na
necessidade de diferenciação e autonomização da Ciência Política no Brasil em relação
às demais disciplinas das humanidades. Para Lessa
39
Em A Grande Transformação (2000), Polanyi demonstra como, mediante o surgimento de uma economia
de mercado na Europa, o processo de autonomização da esfera econômica surge em prejuízo da percepção
do fenômeno econômico em relação às relações sociais. Nas palavras do autor: “Em vez de a economia
estar incrustada nas relações sociais, são as relações sociais que estão incrustadas no sistema económico.
A importância vital do fator económico para a existência da sociedade antecede qualquer outro resultado.
Desta vez, o sistema económico é organizado em instituições separadas, baseado em motivos específicos e
concedendo um status especial. A sociedade tem que ser modelada de maneira tal a permitir que o sistema
funcione de acordo com as suas próprias leis. Este é o significado da afirmação familiar de que uma
economia de mercado só pode funcionar numa sociedade de mercado. (2000: 77, grifos nossos)
85
O que ocorre é que a forma teleológica com que Oliveira Vianna apresenta
a passagem de uma situação de insolidariedade para a consolidação de um
Estado autoritário – isto é, a apresentação do prognóstico anti-democrático
como uma etapa necessária para a reorganização do país – torna pouco
visível a existência de outras possibilidades institucionais sugeridas pelo
próprio Autor. Neste sentido, uma melhor compreensão destes desníveis
de PMB-I talvez não seja oferecida pela terminologia "autoritarismo
instrumental"91 – na medida em que este conceito poderia terminar por
aparar as arestas e eliminar as ambigüidades do pensamento de Oliveira
Vianna – mas propor que a formação intelectual do Autor, caracterizada
tanto pelo elogio da experiência anglo-saxã quanto pela adesão ao
centralismo estatal de Alberto Torres, esteve marcada por referenciais
divergentes e tensionamentos internos incontornáveis (Brasil Jr., 2007:
122, 123)
40
Também sobre o suposto paradoxo entre os repertórios “ibérico” e “anglo-saxão na obra de Oliveira
Vianna, ver José Murilo de Carvalho, 1993;2004.
41
André Bittencourt em trabalho sobre o processo de construção de Populações Meridionais do Brasil
também salienta a tensão das perspectivas “ibéricas” e “anglo-saxônicas” desde as fases iniciais de sua
trajetória até o momento de lançamento de sua grande obra, indicando que a adesão do jurista fluminense
a uma perspectiva que negava os valores individualistas não foi fenômeno de juventude, mas marcou de
forma não ignorável o processo de constituição de sua obra magna. Cf Bittencourt, 2011.
86
ou seja, a forma defendida por cada autor para que seu projeto nacional tivesse êxito, não
podem ser entendidos como “neutros”, como se não tivessem embutidos em si toda uma
série de concepções acerca das contradições a se enfrentar para elevar o país ao estatuto
moderno. Em outras palavras, estratégias para a constituição do Estado não se
desvencilhavam de concepções primeiras sobre a própria sociedade e os dilemas a serem
enfrentados, tais como a escravidão e a necessidade de manutenção da unidade nacional,
portanto configurariam projetos civilizatórios distintos (Ferreira, 1999: 171).
Visto isso, não quero afirmar que a intepretação do naturalismo enquanto
fornecedor de repertórios para se pensar a política tenha sido nublada apenas por esse
movimento dos dois autores acima discutidos. Mas, suas interpretações geraram, de certa
forma, parâmetros informadores das pesquisas subsequentes que não se limitam a área de
Ciência Política, obviamente. Entretanto, a separação analítica de interpretações e
prescrições nas análises sobre os membros da geração de 1870 parece ter tido fôlego para
além do que foi demonstrado até aqui.
Sílvio Romero foi um dos mais célebres membros do que se convencionou chamar
de “geração de 1870”. Se por um lado estudos relacionam a mobilização feita por autores
dessa geração como resultado de transplantações miméticas e pouco originais, onde a
cópia revelaria a posição subalterna da intelectualidade brasileira mediante a voga
internacional de doutrinas alheias à nossa realidade (Sodré, 1984, 1969; Leite, 1969;
Skidmore, 1976), outros estudos posteriores procuraram enfatizar a relação das ideias
com o uso prático e político em que elas eram “instrumentalizadas”. Essas interpretações
avançaram, ao criticarem a questão da aclimatação de determinados referenciais como
cópia ou tomando a forma como essas teorias se desenvolveram na Europa como
parâmetro último de julgamento de produtos intelectuais produzidos na periferia da
modernidade ocidental. Com isso, a forma como os adeptos das vogas científicas ligadas
a Comte, Spencer e Darwin, entre outros, tiveram seu movimento de incorporação
intelectual ligados necessariamente à dinâmica de crise do Império. A ascensão das
camadas médias urbanas e os dilemas decorrentes da mudança do regime de trabalho, da
mão de obra cativa para a livre e assalariada, surgiam como os principais elementos
87
Tratando de forma geral, sem atenção às variações internas dentro dessa tradição,
fica clara a relação direta estabelecida entre experiência social e o uso, sempre utilitarista,
com que as ideias cientificistas teriam sido apropriadas no Brasil. Richard Graham, em
chave semelhante, mas destacando a especificidade das mobilizações de Spencer
mediante as de Augusto Comte, tenta encontrar demarcações mais finas e específicas para
42
A percepção da via bacharelesca como nova forma de mobilidade social no dezenove brasileiro que Cruz
Costa lança mão foi primeiro formalizada por Gilberto Freyre, no famoso capítulo sobre a ascenção do
bacharel e do mulato, presente em Sobrados e Mucambos (1981). Nele, afirma que a formação de uma nova
elite intelectual nas universidades europeias e nas nascentes universidades brasileiras significou uma
progressiva substituição dos antigos quadros administrativos do Império e também a constituição de uma
nova camada social ciosa de impor seus valores mediante ao antigo ordenamento social brasileiro. Esse
quadro também permitiu aos mulatos, filhos bastardos de grandes senhores brancos, uma possibilidade de
isonomia frente aos seus pares não-mestiços, desde que, convém mencionar, possuíssem “mão pequena, o
pé bonito, às vezes os lábios ou o nariz, dos pais fidalgos.” (FREYRE, 1981: 574)
88
O argumento utilizado para dar inteligibilidade, em O espetáculo das raças, a essa suposta
forma difusa com que os diversos cientificismos foram apropriado pela intelectualidade
brasileira avança em relação aos diagnósticos anteriores, pois considera que os diversos
naturalismos poderiam apresentar dimensões diversas tendo o cotejo com a realidade e
não um “desvio” de leitura dos intelectuais brasileiros como definidor da nova
funcionalidade desses repertórios. Nessa linha argumentativa, é possível considerar, ao
lado da questão racial, também outras questões, como as miradas neste trabalho. Sílvio
Romero, por exemplo, apesar de ter construído uma ideia de crítica literária e crítica da
sociedade tendo o “elemento étnico” (cf. Romero, 1888: Cap. 1) como fator fundamental
de sua interpretação do país, não deixa de ser ambíguo. Ao comentar sobre a questão da
forma estética no realismo que denominava “nativista”, por exemplo, Romero tenta fazer
uma combinação dos aspectos objetivos que o naturalismo fornecia propondo, porém,
uma mediação específica para as formalizações artísticas:
A poesia deve ter a intuição de seu tempo; não tem por fim fazer sciencia
nem photographar a realidade crua; ella não é hoje, não deve ser, pelo
menos, condemnada à affectação dos ciassicos, com seus deuses; dos
românticos,com seus anjos, ou dos realistas, com suas prostitutas; ella
deve também lutar pelas idéas, sem despir a sua fôrma amena e lyrica
(Romero, 1888: 134)
43
Antonio Candido (1978), em comentário a essa seção específica da História de Sílvio Romero levanta a
hipótese de Sílvio Romero ter absorvido a crítica de Machado de Assis ao romantismo. Entretanto, para os
fins do trabalho em tela, torna-se infrutífero a exploração desse aspecto e a tentativa de comprovação da
hipótese de Candido.
91
Essa proposta estética apresenta fortes nexos com as análises mais propriamente políticas
do autor, presente em Doutrina contra Doutrina e em Parlamentarismo e
Presidencialismo no Brasil. Nestes livros, o crítico sergipano realiza um movimento de
acomodação de certas concepções de Spencer com alguns conceitos chaves muito comuns
ao léxico político liberal do XIX, na função de reabilitar o papel do Estado, não na forma
autoritária dos positivistas, mas mantendo certas responsabilidades de guiar o processo
de modernização na Primeira República, como exposto no capítulo anterior deste
trabalho.
Angela Alonso, em seu trabalho de grande fôlego sobre a geração de 1870,
apresenta explicação que escapa da interpretação do naturalismo brasileiro como cópia e
que também tenta transcender a relação direta entre extração de classe e filiação a
determinada teoria (2002: 27 - 28). Para a autora, a ideia de que novos agentes sociais
surgiriam a partir da crise do Império é errônea, pois os “novos setores médios” seriam
oriundos do mesmo recorte social das antigas elites imperiais brasileiras (Ibidem),
portanto inabilitando uma identificação direta entre corte de classe e adesão a tal ou qual
teoria cientificista. Além disso, também critica o movimento de levar a autoclassificação
dos autores/atores como dada, considerando suas rotulações políticas e teóricas como
conceitos e não objetos de análise. Esse movimento deriva também, segundo a autora, da
aceitação acrítica das memórias dos próprios autores sobre seu passado intelectual,
memórias essas muitas vezes construídas já no período republicano. Neste momento,
onde muitos desses intelectuais ocuparam instituições e cargos de relevo, eles
consequentemente projetaram esses nexos de sua trajetória retrospectivamente para o
passado, com o intuito de criar uma imagem harmônica e monolítica sobre suas “tradições
inventadas” (Idem: 31 - 33).
Como saída para essas questões, Alonso propõe uma abordagem que leva em
conta o sentido prático e político em que todas essas teorias cientificistas e/ou políticas
foram mobilizadas pelos agentes, tentando superar a separação texto-contexto. A
recepção desses repertórios intelectuais sofreria um processo político de triagem que seria
guiado pelos horizontes de expectativas políticas que esses agentes imprimiam como
norte de suas disputas políticas na conjuntura de crise do Império. A escolha
metodológica (e teórica) da autora desemboca numa compreensão prática: a pesquisa
sobre a experiência compartilhada de exclusão desses intelectuais dos lugares de poder
92
nos últimos anos do Império é feita com base nos nexos políticos de suas trajetórias e suas
produções intelectuais não são objeto de análise, nem levadas em conta no movimento
interpretativo mais geral da autora. A questão é posta nos seguintes termos pela autora:
É assim que, no fundo, o paralelo com Tobias só foi feito como resposta
indireta a certos críticos; que tinham aqui, a propósito da minha Doutrina
contra Doutrina e bem fora de propósito, falar em péssima escola de
Tobias, ao passo que sempre tem andado a babar-se de gozo falando de
Machado de Assis! Além disso, há motivos especiais em nosso meio
literário, meio que tem sido hostil e contra o qual arremeto sempre que
posso. Bem ou mal, não estou de acordo com eles; pertenço ao partido da
reação, iniciado vai para trinta anos quase no Recife. Defendo o velho
Tobias: 1º pelo seu mérito intrínseco; 2º para justificar meu próprio
critério; 3º como meio de guerra. (1967: 203, grifos meus)
Visto isso, acredito que boa parte das questões relativas às interpretações sobre o
naturalismo brasileiro e a chamada “geração de 1870” – e consequentemente sobre Sílvio
Romero – alocaram o produto intelectual desses autores dentro dessa dupla camisa-de-
força: ou são entendidas como leituras errôneas ou apenas como sendo utilizados de forma
puramente instrumental na intervenção do debate público que estavam inscritas, ou até
mesmo tendo ambas as “funções”. Por isso a questão da raça, do meio e o fato de
possuírem certa visão substantiva e essencialista sobre o “caráter nacional” nem sempre
levaram em conta que aqueles autores aclimataram o pensamento europeu, mas não o
fizeram de forma necessariamente mecanicista. Consequentemente, o produto último de
todo movimento intelectual, as obras e construções textuais, podem fornecer subsídios
para o estudo tanto do “contexto”, como para a consideração das formulações políticas,
econômicas e simbólicas do movimento. Levar em conta esses dois aspectos permite
enxergar com mais clareza a tensão que estavam envolvidas teoria e realidade nacional
para Sílvio Romero e demais autores do período.
Da mesma forma que os ensaios de interpretação do país foram encarados como
“pré-científicos” ou apenas como uma pré-história ideológica das formulações
decorrentes da pesquisa sistemática (Brandão, 2005; Lamounier, 2006; Santos, 1978),
acredito que os naturalistas brasileiros tiveram suas contribuições obliteradas por uma
impressão, verdadeira por sinal, de que os intelectuais das fileiras do cientificismo
adaptaram teorias cientificistas com pesado enfoque racial para um país onde a questão
racial era (e ainda é) mal resolvida, mal enfrentada e que determinantes estruturais
provenientes do passado escravista fornecem a base de desigualdades enormes.
Entretanto, acredito que a produção de Sílvio Romero em específico – e do naturalismo
de forma geral – e a contribuição que deram aos estudos posteriores, seja para negarem
ou afirmarem esses pressupostos, ainda é pouco explorada e pode ter contribuições para
além da questão racial ou de formação de identidade nacional. Entretanto, não quero com
isso negar a determinação desses fatores e dos outros que, surgindo do momento histórico
95
O signo da adaptabilidade, que foi o nexo encontrado pelo crítico sergipano para
acomodar as negativas das teorias cientificistas em relação à figura do mestiço, não é
mero arbítrio interpretativo do autor. Prosseguindo, ele faz uma enorme explanação sobre
como a questão da mestiçagem é diversa da forma posta por algumas teorias
96
cientificistas44, posto que a ideia de hibrido traz consigo a percepção de diferentes origens
para as diferentes raças humanas. Nas palavras do autor o papel do mestiço em sua
proposta crítica tem o seguinte propósito:
44
Apoiando-se em Haeckel, Sílvio Romero nega a validade das teorias que viam na mestiçagem um fato
de enfraquecimento da linhagem evolutiva. Em suas palavras: “Quanto a chamar o mestiço de hybrido, é
um desses imensos lapsos em que ás vezes cahem até os grandes talentos. E' formar um conceito contra os
factos a respeito da idéia de espécie, dando-lhe um valor que não tem. é alçar á cathegoria de espécies
inteiramente distintas as variedades da família humana; é affirmar nesta a existência de hybridos contra a
observação quasi unanime de todos os tempos e contra o ensino de todas as sciencias anthropologicas;
é,finalmente,ainda dar importância ao velho argumento da hybridação contra o transformismo das espécies,
cançado redueto que já voou pelos ares. Todas as variedades humanas são entre si fecundáveis e os
descendentes desses cruzamentos o são igualmente. As raças cruzadas são fortes e hábeis. Si jamais existiu
povo intelligente e progressivo sobre a terra, esse povo foi a nação grega.” (Romero, 1888: 216, 217; grifos
nossos)
97
turbilhão ao país a partir da década de 1870: “Não basta repetir de oitiva que em Paris
Zola está na ordem o dia; é mister compreender as novas doutrinas e entrar nelas como
um consócio e não como um simples caixeiro, um simples moço de recado.” (Ibidem:
99). Essa compreensão sobre a mobilização dos referenciais externos permanece em sua
obra mais célebre, escrita alguns anos depois do ensaio sobre o naturalista francês, como
fica claro no trecho citado abaixo:
Tanto a crítica literária, quanto a análise sobre a política, sobre a cultura, etc.
seriam fruto de um mesmo movimento e, portanto, inteligíveis por um método objetivo.
Essa objetividade do método faz Sílvio Romero buscar no evolucionismo de Spencer,
conjugado com o transformismo de influência darwinista de Haeckel e das concepções
mesológicas de Taine e Renan o substrato para suas formulações. Entretanto, apesar desse
desenvolvimento de um método crítico-objetivo se realizar baseado nos mais altos
desenvolvimentos intelectuais dos centros europeus - portanto ligando seu próprio
exercício intelectual à modernidade europeia - o movimento analítico de Sílvio Romero
apresenta uma preocupação em ler de forma apropriada esses referenciais para pensar os
dilemas nacionais. Além disso, essa proposta metodológica mais geral apresentava uma
percepção totalizante da relação dos mais variados saberes:
N'estas palavras não está uma concessão de secundário valor e de somenos
99
brasileira torna-se uma tarefa que engloba tanto o estudo sobre os fatores culturais como
a análise sobre a “importação” de modelos políticos com origens em contextos dos mais
diversos em relação ao Brasil. Entretanto, o historicismo decorrente do evolucionismo
praticado por Romero também apresentava uma certa concepção de mudança social45 que
desconfiava da possibilidade de rupturas bruscas, de surtos revolucionários que pudessem
alterar o bom ritmo modernizante, lento e gradual, que o país estava atrelado. Em dois
momentos essa disposição sobre a velocidade e a forma que o crítico sergipano encarava
as mudanças se faz bastante clara: sua interpretação sobre os movimentos sociais
nascentes durante o início republicano e sua defesa do parlamentarismo frente ao
presidencialismo.
Em sua análise da presença das ideias socialistas no país, Sílvio Romero apresenta,
em um primeiro momento, uma inusitada simpatia pelas ideias do “velho e bom
socialismo”46 mas contesta sua viabilidade e, ao fim e ao cabo, sua necessidade como
fornecedora de meios de emancipação do “quarto estado” (Romero, 1894: XXXV). Sob
o aspecto da formação social brasileira, sua inadequação ao contexto brasileiro derivaria
da predominância do meio rural e consequentemente da presença insignificantes do meio
urbano. Nas palavras do crítico, o paradoxo se apresenta na seguinte forma:
Reconheceremos por toda a parte, uma pobreza geral, dando-se até uma
singular anomalia: a classe mais pobre que existe no paiz é justamente a
que corresponde á burguezia da Europa. Effectivamente, considerem-se os
habitantes das cidades e dos campos. Nas cidades é preciso fazer ainda uma
distincção entre as quatro ou cinco merecedoras deste nome, e as pequenas
cidades esparsas por todos os Estados, muitas das quaes não passam de
verdadeiras aldêas. As primeiras não são grandes centro fabris,
manufactureiros, industriaes, como as suas congêneres do velho mundo.
São apenas núcleos commerciaes. A pequena industria local é sempre
insignificante. Nellas a população divide-se, pouco mais ou menos, nas
seguintes classes: alguns capitalistas e banqueiros ricos; mas estes em
numero que se pode contar nos dedos, e isto mesmo em duas ou três praças
apenas; logo abaixo certo numero de negociantes bem collocados,
possuidores de fortunas, que nos parecem consideráveis, porém, em
verdade, ele pequeno vulto, comparadas ás da Europa e dos Estados
Unidos. (Idem: XXXVI)
45
Sobre os impasses das concepções de mudança social no país na obra de Sílvio Romero e o contexto de
efervescência social da Primeira República conferir Rezende, 1998.
46
Sobre o impasse das demandas oriundas da emergência da questão social na Europa e a tendência a
saídas harmoniosas e garantidoras da ordem social na obra de Sílvio Romero Cf Candido, 1978 e Sala,
2006.
101
O diagnóstico exposto linhas acima pode ser entendido também como defesa da
própria posição social que o autor ocupava, oriundo de uma família proprietária falida de
um Estado da federação que era um dos que mais sofria com a mudança do eixo
econômico do nordeste para o centro-sul do país. Sílvio Romero encontrou na formação
acadêmica seu sustento e migrou desde sua diplomação em Recife entre vários cargos
como juiz e como professor, indo até o final da vida em situação financeira preocupante
(cf. Rabello, 1967). Entretanto, para uma análise mais ampla de seu argumento, torna-se
conveniente continuar a perseguir essa linha argumentativa do autor, agora analisando a
condição dos “operários propriamente ditos” (Romero, 1894: XXXVIII). Em chave
contrária ao desenvolvimento que a questão social teria na Europa, no Brasil além de não
existirem proletários pela ausência de cidades e de indústria que pudessem caracterizar
um recorte social relevante, a situação da sexta classe analisada por Romero não é de
miséria, mas, ao contrário de uma situação bastante confortável:
Em um sentido geral são a gente mais prospera e satisfeita de todo o Brasil.
Não se queixam de falta de trabalho; pois ao contrario, elle superabunda.
Os próprios carroceiros, carregadores e talvez mesmo engraxadores,
ganham muito mais, especialmente nos dias actuaes, do que a mór parte
dos médicos, advogados e pequenos negociantes, os quaes empregaram um
capital, que se acha improductivo, ao passo que aquelles não empregaram
nenhum, ou quasi nenhum. Depois segue-se a turbamulta, indistincta,
viciosa, que possuímos em larga escala, de vadios, capoeiras, capangas,
jogadores de profissão, que vivem ao Deus dará, ou de suas agencias,
102
como elles mesmos dizem. Ora, sejamos francos : onde está ahi, em todas
estas classes, o proletário, o trabalhador famelico, que veja suas forças
exploradas criminosamente pelo capitalismo, o mammonismo devorador?
Não está em parte nenhuma; é a resposta irrefragavel. Não é tudo. Nas
pequenas povoações do interior reproduzem-se as mesmas séries de classes
da população, apenas em escala muito menor e com maior desafogo para
o trabalhador braçal. (Idem: XXXVIII, XXXIX; grifos do autor)
A outra força, o povo, não ficou, porém, inactiva, e não se deixou aniquilar
ou sufocar. E porque não deixou? Porque é que as nossas liberdades de
reunião, de pensamento, de imprensa, de ensino, de locomoção, de
segurança individual, de profissões, não morreram, não se atrofiaram?
Porque lá estava o parlamento, com os seus processos de ampla discussão,
de forte fiscalização dos actos dos governos (Idem: 100)
Sete anos após a edição que tornaria livro as cartas ao famoso jurista baiano, Sílvio
Romero ingressou em seu único mandato parlamentar e foi relator do projeto de reforma
do Código Civil, como esmiuçado no segundo capítulo da dissertação em tela. Em sua
atuação parlamentar, discute em plenário alguns dos temas polêmicos a serem
encampados na nova codificação. Uma visada mais atenta a forma como defende seus
argumentos nesse contexto se torna profícuo para entendermos melhor as tensões em
torno das adesões teóricas do autor e do significado de sua defesa do parlamentarismo.
Sobre a questão do divórcio e da liberdade de testar, Sílvio Romero defende o desquite
como garantidor da liberdade individual mas também não altera o estatuto de
inviolabilidade do matrimônio, posto que enraizado na tradição popular (1904: 130). Ao
reforçar seu argumento, o autor oferece com clareza o modus operandi de sua ideia de
mudança:
Podemos concluir com base neste trecho que a velocidade lenta que Sílvio Romero
preconizava para as mudanças sociais no país e para a desconfiança sobre a participação
na plebe na vida política republicana se encaixa com sua ideia sobre o papel da
mestiçagem na modernização do país. Funcionando como traço formador de nossa
identidade, a mestiçagem tanto biológica quanto no aspecto simbólico (Romero, 1888)
também funcionaria como freio e controle às aspirações “plebeias” de uma representação
política mais efetiva.
Com isso, democracia nesse quadro desenhado pelo crítico sergipano equivaleria
ao plano final defendido por ele, da mestiçagem se realizando plenamente, via
branqueamento das características fenotípicas e o encontro de uma forma especificamente
nacional que passaria pela incorporação dos elementos das três raças formadoras e uma
consequente estabilização das contradições de nossa formação social. Em trecho de
Machado de Assis, podemos perceber a forma como a questão da mestiçagem e seu
suposto caráter imitativo aparece coadunada a importação de modelos políticos exógenos:
107
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Era, demais disso, e nesse ponto não estava só, era demais disso um
mestiçado, o que eqüivale a afirmar que era o resultado de tendências
oppostas, que quasi sempre se atropellam e muitas vezes se aniquillam,
estado psychologico quasi sempre aggravado nas Índoles estheticas e
progressivas, como a delle, por essa moléstia da côr, esse mal não definido
ainda, que ainda não tem nome, e deve ser uma espécie de nostalgia da
alvura, envolta em certa dose de despeito contra os que gozam da
superioridade da branquidade.1 Todas estas condições juntas são capazes
de fazer nascer certa classe de humour, a espécie de humour compatível
com as nossas raças ibero-africoamericanas. Tobias as possuía todas, e
Machado de Assis apenas algumas; um era, quasi se pôde dizer, um
tumulto organisado ; o outro, por índole, é manso e tranquillo, como o mais
pacato burguez. (Romero, 1897: 164)
Como pode-se perceber, Tobias Barreto encarnaria a verdadeira face brasileira, marcada
pela sensibilidade em convivência com o lado racional, de crítica, de análise. Estariam
em conexão e em tensão, pois os aspectos ligados a seu lado “objetivo” estariam
permeados pelo “subjetivismo da poesia e do sonho” (Idem: 200). Concluindo sua
comparação, enfatiza que Tobias não fez uso do humor como recurso estilístico de forma
consciente, deliberada. Tal fato, contrário ao diagnóstico sobre Machado, comprova o
quanto o humorismo de seu conterrâneo, segundo juízo de Romero, era afinado com seu
lugar de mestiço, sempre em tensão com a seriedade com que encarou outras questões. E
em Machado tal característica nada mais significaria do que pastiche, mimetismo pobre
(Idem: 255).
a sua extensa análise sobre a gênese da cultura brasileira. Como esforço de gestar um
projeto nacional, baseado na literatura, que entendia a civilização brasileira como uma
versão da sociedade europeia - versão essa “modificada”, “desfigurada” (Romero, 1888:
161) - Sílvio Romero acabou por inverter a lógica da função histórica da mestiçagem.
Essa teoria de Gobineau, que chegou a Sílvio Romero via Buckle, julgava que a mistura
de uma raça branca original com outras inferiores foi o que viabilizou a civilização, posto
que esse grupo, hipotético, imaginado pelo cientificista francês, existia em número exíguo
(cf. Candido, 2011: 134-136). Na concepção original de Gobineau, a mestiçagem, além
de um mal contido na gênese da civilização humana, levaria inevitavelmente a
degradação, haja visto que a mistura entre raças diversas sempre era degenerativa. Logo,
civilização na concepção primeira de Gobineau era inevitavelmente um caminho fadado
a extinguir os tipos “puros” via cruzamento e seu consequente rebaixamento.
A superação de tal paradoxo, na retórica de Sílvio Romero, não se fez sem aderir
a outros. O crítico sergipano, ao aderir a mestiçagem como chave de leitura para a
identidade nacional, precisou tensionar a proposta original do autor de Essai sur
l'inégalité des races humaines como saída para evitar a própria derrocada de seu projeto.
A saída foi aderir a proposição de Taine, baseada na ideia de crítica fundada em três
fatores: raça, meio e história. Entretanto, repudiava parte da doutrina, principalmente a
que reputava o fatalismo das variantes do “tainismo exorbitante”. Em suas palavras:
Já no final da primeira década do século XX, já nos últimos anos de vida de Sílvio
Romero, suas concepções sofreram uma inflexão importante, que não trabalhei na
dissertação pelas limitações objetivas que a natureza do trabalho impôs. Essa inflexão
significou um abandono total das concepções mais ligadas ao liberalismo clássico, como
a questão do papel do Estado e da participação da “sociedade civil” mas também
significaram uma acentuação no enfoque pessimista. Em O Brasil na Primeira Década
do Século XX, livro de 1910, Sílvio Romero traça linhas de extremo desencanto sobre a
forma republicana assumida no país:
Como quer que seja, a república é agora e por enquanto a última ilusão do
povo brasileiro. Sua constituição espúria, copiada servilmente da
constituição dos Estados Unidos, erro que nos tem custado caro; sua
loucura financeira por ocasião do famoso encilhamento; suas revoltas da
armada, do Rio Grande, de Canudos, e outras e outras acarretando
tremendas despesas ao Tesouro, e dando lugar às mais repugnantes cenas
de cruel ferocidade; seus câmbios sempre baixos, revelando a
extraordinária depreciação da moeda; sua bancarrota, que trouxe a
moratória do funding loan; seus pesadíssimos impostos de todo o gênero a
vexarem o povo; o despotismo das oligarquias estaduais, oprimindo todas
as classes; a desorganização de todos os serviços administrativos; as
roubalheiras nas repartições fiscais, denunciadas quase diariamente pela
imprensa; todas estas chagas visíveis a olhos nus, que andam a afear o
corpo da república, têm levantado um tão formidável coro de imprecações,
como se não tinha ainda ouvido outro igual em toda a existência da nação.
(Romero, 2001: 114)
47
A Escola de Ciência Social, comumente associado a figura de Frédéric Le Play, foi uma tentativa de
conciliação do método objetivo informado pelo positivismo e uma concepção fortemente marcada pela
necessidade do estudo das manifestações socioculturais como chave de leitura de outros aspectos da
realidade. Essa vertente foi ligada ao pensamento da Doutrina Social da Igreja e apresentava forte viés
conservador. Sobre o tema, ver Lepenies, 1996.
116
A esperança que Sílvio Romero demonstra no final de sua fala aos novos bacharéis
se apresenta de forma totalmente diversa daquela encontrada nos seus intentos durante os
primeiros anos da república. A mestiçagem não aparece mais como elemento
democratizante por excelência do processo histórico brasileiro e os problemas da
conjuntura social permanecem no mesmo diapasão do diagnóstico feito pelo autor nas
primeiras décadas do regime republicano.
Alguns autores, como seu biografo Sylvio Rabelo (1967) e Evaristo de Moraes
Filho (1985), apontam que sua experiência intelectual e parlamentar, de certa forma
frustrada, provocou o descrédito para com os antigos modelos que defendeu e um dos
mais preponderantes entre eles foi o da mestiçagem, agindo como fator primordial de
adaptabilidade. O evolucionismo spenceriano também perde impacto no conjunto do seu
pensamento, na sua fase final da vida, em proveito das teses fatalistas, do ponto de vista
racial, que a Escola de Ciência Social e a Antropossociologia indicavam. Essas são
hipóteses a serem testadas em outras pesquisas mas as pistas aqui elencadas talvez
permitam perceber que as contradições de Sílvio Romero, vivas e em relação aos
problemas enfrentados por ele, integram um quadro do naturalismo brasileiro menos
estático do que indicado por grande parte da fortuna crítica. A breve análise que realizei
pondo em paralelo sua reflexão intelectual materializada nos seus textos conjuntamente
com suas “intervenções práticas” permite perceber como diversas concepções sobre
modernidade estavam em discussão e disputa pela geração que viveu a crise do Império
do Brasil e a transição para a República. Além disso, num plano mais geral, demonstra-
se útil esse movimento de análise, a meu ver, como forma de pensar as trajetórias e
produções intelectuais chamadas clássicas, dentro do campo de estudo do pensamento
social brasileiro, dentro de uma dinâmica menos “desencarnada” (Fevbre apud Chartier,
1988: 70) e mais atenta aos processos constituintes da produção intelectual e de formação
dos instrumentos de produção e interpretação do conhecimento As ideias não se localizam
nem se produzem num vazio social e o uso que os intelectuais fazem delas respondem
reflexivamente a conjunturas político-sociais específicas.
117
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