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\ Copyright © 1985, Gilberto Vetho ‘Todos os direitos reservados, A teprodusto ndo-autorizads desta publica, no todo cower parte, constitu violago de direitos autorais. (Lei 9.610098) Copyright© 2003 desta edge: Jorge Zabar Editor Lid. rua Mesiso 31 sobreloia 2003-14 Rio de Faneiro, RI tel: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123 al je@aharcom be ‘ite: wwwzahar com br Edigdes brasileira ‘Capa: Ana Cristina Zahar (desenbo de Kandinsky) 1977, 1979, 1981, 1985, 1989, 1999 ‘CIP-Brasil, Catalogagéo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RI. | Diol Desvioe diveratncia: uma critica da patologia social. Sed. Gilberto Velho. oranizador — 8.ed.—RiodeJaneino Jorge Zahar Ea, 2003 (Antropologia social) | Inch bibliograia ISBN: 85-7110-4883 1, Comportamento de desvios, 2, Psicologia social 3.Antropologia social. I. Velho, Gilberto, I. Série. cpp—3025 03-2830 cpU— 316.624 Prefacio 4 Quinta Edicio © BSTUDO DO COMPORTAMENTO DESVIANTE tem se constituf- do em um dos campos mais férteis da Antropologia no Brasil. ‘AS sucessivas edices deste livro sio exemplos que comprovam essa tendéncia. Indmeras dissertagdes de mestrado, teses de doutoramento, trabalhos dos mais diferentes tipos tém sido produzidos a partir da proble- matica de Desvio e Divergéncia, Por outro lado, este livro tem sido usado em varios niveis de ensino como um instrumento ttil para a compreenséo de processos sociais. Creio que este € 0 ponto fundamental. A teoria do desvio, pelo menos como é usada aqui e em outros trabalhos, por definic&o. nig reifica 0 comportamento de ~“sendo uma Teoria'da’ Cultura e da Sociedade. Ficou demons: trado que, co jante mas. alizando-o, assim, é uma maneira privilegiada de pensar longe dé ser uma moda passageira, cada vez mais comprova sua utilidade e eficdcia na investigacéo antropologica e soctolégica, A originalidade da producdo brasileira pareceme que se_explica, basicamente, pela ju fe uma teoria inte. “Gica que vem de Simmel a Becker ¢ Gotfman, com uma feoria antropoldgica da cultura, onde aifores como Mauss, mais caracteristica vima tradigao“Sociolo- Bateson, Geertz, Sahlins, Dumont so alguns dos expoen- : Peeauises, mesmo quando a idas a objetos aparenteftierite muito particulares € es} Sitcos: mantemae volta paces tte pears © ee Os DoSOe SOS reais Siping Valves nem senipre isto 6-88 de Torme oxpl mas as Hip € rellexdes que articulam esses S vinculam-se a uma permanente discussao sobre continui- “ALunos EXCEPCIONAIS” 53 goria de criancas que sao estigmatizadas e caracterizadas ~ Gomi desviantes- Kuma tentativa de mostrar comv—o Svio é sobreposto a crianca, como @ éstrutura e ideolo; (0 sist ‘devem sempre confirmar 2 Perpeliat_esle_rotulo. eco eteeventuatmente, 56 te, se ‘prolonga durante a vida adulta. Do ponto fa antro- [ fico, este 6 um estudo dos sistemas de classificacao ro < ‘Gu tepresentagdo e uma andlise de sous principios taxo- 04, ‘+ némicos subjacentes. uv Il. 0 QUE # UM AE? us ‘Alunos Excepcionais”: ‘Antes de mais nada, gostaria de explicar o que se “9 im Estudo de Caso de Desvio entende pelo termo AE, j4 que é termo que apenas adqui- ~, é DAS we GAGs Andw re significado no contexto institucional da escola, e j& : Ne Sud. que © leitor pode nao estar com ele familiarizado. XS Donn Som © AE no apresenta anormalidade externa alguma.|.; @ ‘gem dificuldade no aprendizado da leitura e da escrita'< I. INTRODUCAO ((Genominada dislexia) se, no decorrer do processo, fre & |qlientemente confunde as letras (confusdo chamada dis “Py \{ilia). Sou aprendizado é lento. Na realidade, uma crianga 156 pode ser diagnosticada como AE com um minimo de Ss 8 anos de idade e depois de ter freqiientado dois anos de escola sem apresentar nenhum progresso significativo, (-@uando uma professora cré que um de seus alunos 6; ( ihcapaz de acompanhar o curriculo e suspelta que tal \ coisa se deve a falta de inteligéncia, preenche uma ficha | de encaminhamento, que é enviada’&s orientadoras dos | | {Biss do seu Distrito Educacional, A ficha é, em seguida, | ~ examinada por trés orientadoras, que decidem se a crian- ¢a deve fazer 0 teste de inteligéncia oficialmente aceito | (Teste de Nivel Mental — TNM — Gille), ou nfo. As orientadoras procuram selecionar apenas os deficientes mentais “reais”, para o teste de Gille; os restantes so Classifieados somente como portadores de distiirbios emo- ionais ou psicolégicos e, habitualmente, reenviados as furmas comuns. Uma ver selecionada para o teste, a crianga que fracassa é entio oficialmente classificada Este & UM ESTUDO DOS CHAMADOs “Alunos Excepcionais” © OU “Atrasados Especiais”, geralmente também denomina- dos “deficientes mentais ‘educdveis” *. Os AE constituem um contingente consideravel do total de criancas matri- culadas nas escolas do Estado da Guanabara, aproxima- = damente 15.000, de um total de cerea de 500.000 crian- as que freqiientam as escolas primérias publicas, ou Seja, quase 3%. Os AE formam um grupo marginalizado jentre a populacdo escolar. Durante as aulas, sao fisica- ‘mente separados das outras criangas, sendo educados por professoras proprias em salas de aulas & parte, Além > disso, acompanham um tipo diferente de programa de ( { _estudos, de maneira tal que seus niveis no correspon- ‘dem geralmente aos que seguem as demais criancas. Este trabalho ¢ pesquisa sobre a situapio social de uma cate * Este 6 um trabalho final de curso da disciplina de Teoria Antropolégiea If ministrada pelo professor Gilberto Velho ‘no Pro- ‘rama de Pos-Graduagio em Antropologia Sociel do Museu Nacio- Bal da Universidade Federal do Rio de JsneiroO material aqui frente ol ce no ey tabla do pease pare lab. ragio da disserta Iestrado a ser apresentads no Programa ‘mente pelas difieuldades de ‘aprendisagem na leitura. Bom dis- fob a crenagio da profesora, Neuma ‘Aguiar. Parte des dadoe TErbio conmpleso, com implicagdae neuroldyican e emocionais.” Cliagio Raul apresentados ¢ outros. dedos pertinentes a este assunto slo : ‘em um folheto oficial sobre o Teste ABC (Teste de Maturidade) do cide tees. Snstieweo de Edueagio. 4 s Z 3 34 ‘Deswio Divercéxcia | como AE ¢ seré, no ano escolar subseqiiente, colocada & ¥ em uma “Turma’ Especial”. = SL___ Este 6 0 procedimento oficial para a selecdo dos AEs. ~ _ Hm muitos casos, entretanto, & erianga nfo sdo concedi- dos os dois anos completos, estipulados oficialmente. < Podese verificar, yor exemplo, que, imediatamente apds | © ingressarem na escola, as criangas sao divididas nas cate- =< gorias “matura”e “imatura”*. A pessoa que assim as ’ define ¢ sua professora. Nenhum teste é aplicado a nio ser nos casos de chivida, quando entao a professora soli- © exame da classificagéo das criangas como “maturas e.“imaturas” adquire importancia na medida em que a grande maioria dos AEs 6 classificada como tal no de- correr de seu primeiro ano de vida escolar. As criancas “imaturas” tém probabilidade muito maior de se torna- \ fet futuros AEs do que as utras_criancas. Criancas \\ “ithatiiras” so _descrita 0 “fories candidatos” as | tiirmas-de“AEs, Uma vez fas turmas de imaturos, 0 pro- grama de ensino ¢ reduzido @ pintura e ao desenho, e as atividades gerais de jardim de infancia, com pouca ou nenhuma instrucio de leitura € escrita; portanto, as opor- tunidades de desempenharem to bem quanto os “matu- Tos” sio limitadas, desde 0 inicio. Dou, como exemplo, , @histéria de uma’turma. As crianeas haviam ingressado 22, na escola em marco de 1971 (grupo de idade de 6 anos), ~~ (ea maioria foi, imediatamente, encaminhada para a tur. >| ma de imaturos. Em marco de 1972 eram ainda anal- \ tabetas, pois que no se Ihes havia ensinado a ler ~ | @ a escrever. Finalmente, nos meses de marco de 1972 a | junho de 1972 (primeiro semestre de 1972) iniciou-se © aprendizado da leitura e da escrita. Por volta do prin- 'S © | eipio de agosto, a professora jé decidira quais as criancas | que desejava diagnosticar como futuros AEs. (Todas as ; | fichas de encaminhamento deviam ser remetidas até se- | tembro, uma vez que o teste de Gille é aplicado em outu- | bro.) Desta maneira, aos AEs ndo foram concedidos os | dois anos completos de escolarizacSo para provarem sua | habilidade na escola. Em virtude desta primeira classifi- \ caso (nido se pode saber se uma crianga & capa de ler 8 2 Msturo = apto para o ensino da leitura e da escrita, ‘A turma é chamada “Classe de Alfabetizagio — Imatura” — an- Higamente “Classe Pretiminar — C.P.” = J 0 a {Sila aplieagto do teste oficial de maturdade (Teste ABC). | 4 “ALUNOS EXCEPCIONAIS” 35 e de escrever a menos que se comece tal ensino), seu progresso foi abruptamente interrompido em seus primet- Tos meses de escola, artificialmente retardado durante um ano e, finalmente,’avaliado depois de somente quatro meses'de desempenho. # importante mencionar, a esta altura, que o grande miimero de criancas néo-diagnosticadas como AKs tam- bém_exibe todos os sintomas do aprendizado lento, isto 6, n&o apresenta qualquer progresso significative depois de dois anos na escola. O ntimero de repetentes é imenso. Na _verdade, de acordo com dados estatisticos do Instituto-de Pesquisas Educacionais, cerea de metade das ceriani rimeiro ano escolar (“O nivel I con- tinua apresentando os menores percentuais de promocéo, constituindo'se num eterno desafio ao planejamento edu: eacional do Estado.”) e muitos o repelem uma segunda z, @ mesmo uma tercel 5 Esta grave situacao do ensino no primeiro ano primario — considerada “catastro- fica” segundo os critérios da UNESCO, e que se aplica a todo 0 Pais — levou a uma pesquisa feita pelo Insti- tuto Nacional de Estudos Pedagégicos entre 1967 e 1971 para investigar as razdes dessa taxa tio baixa de alfabe- tizacéo (uma das mais baixas da América Latina). Alguns resultados dessa pesquisa — que s6 recebi depois de ter escrito este artigo — séo apresentados no Apéndice *. Dada essa grande quantidade de repetentes, por que so- mente alguns sao indicados ao ‘Teste Gille? Trata-se de uma pergunta importante, que serd examinada mais minu- ciosamente na secio 4. O AE ¢ um “deficiente mental educsvel”, isto 6, 0 seu Q. I. se situa entre 60 e 79 na escala de inteligéncia (segundo os critérios do TNM Gille). Criangas com Q. I. superior a 80 so consideradas normais e nao percorrt ‘turmas especiais*. Uma das caracteristicas do deficiente mental educdvel 6, supostamente, sua baixa idade mental quando adulto (“idade mental na fase adulta entre 7 e 12 Sistema de Bnsino da Guanabara as Vésperas da Reforma, 1971 tuyfelhoria de endimento do’ ensino no primeira ano” — Monografia do Institute Nacional de Estudos Psicolégicas, Ministé- rio da Edueagéo e Cultura (1971). 5° Criangas com um Quociente de Inteligéncia abaixo de 50 do “alunos freiniveis” (AT) — na maioria mongoléides — e néo foram consideradas neste estado. Qxr 56 Desvio z DivercéNcia do AE anos”). Em outras palavras, 0 AE no é considerado sim- | plesmente uma crianca “inteligente que se atrasou”, mas sim uma crianca “diferente” das demais; portanto, nia |g strata co uma diferenga quantitativa, mas qualtativa 1 je Também se afirma que ele exibe certas caracteristicas “; —_ tipicas tais como turbuléneia, agressividade, tendéncia & frustrago, teimosia ete. As professoras \geralmente 0 des- ) erevem’ como indisciplinado ou tot te apatico ou *$ estranho, isto é, como apresentando todos os sinais de 4. fdistiirbio de conduta”. O quadro inclui igualmente fato- J | res como “falta de concentracao” e “induietagao”. Espero que esta breve descriciopossa ter auxiliado © leitor a “familiarizarse” com esté grupo de criangas e ‘com 0 seu progress académico. | III. DESVIO E PATOLOGIA: CONSIDERACOES TEORICAS = 2 Procedo agora a um breve exame de duas afirmagées feitas acerca dos desviantes em geral, ¢ dos AEs em par- ticular, com respeito & sua conduta perturb: anormal: mal: g a) que é um desviante devido a uma con- \S— digdo patoldgica inerente. (patologia in- Po gy iticual ou pessoal), ou a que ¢ um desviante porque foi conta // minado por um meio ambiente patol6- ico (patologia social) . L obviamente, em uma analogia com a medicina. “Dizse do organismo humano, quando funciona eficientemente e ~\/7 nao experimenta desconforto algum, que é saudavel. Quando néo funciona eficientemente, existe alguma doen- ¢2._O Srgio ou funcao que se desregulou é consi patolégico, Naturalmente, hi pouco desacordo quanto ao [ue constitui um estado saudavel do organismo. Mas ha muito menos acordo quando se emprega a nocio de patologia analogicamente, para descrever tipos de com Portamento que so considerados desviantes. Com efeito, 5 nfo hd acordo quanto ao que constitui comportamento <3 \ . | saudavel. # dificil encontrar uma definicdo que satisfaga —¢ = § “mesmo um grupo seleto e reduzido como o dos psiquia- 4 tras; é impossivel encontrar uma que seja aceita por todos zy < como rexcepcional” permeara’ todas as interpretactes subseqtientes de ito real. Se uma crianca { ‘€-barulhenta, tratase de simples “bagunca”; se “ALUNos Excercionass” 7 em geral, como se aceitam critérios sobre a sauide para © organismo.” ¢ Afirma-se que 0 AE exibe os sinais e sintomas tipicos de sua condigéo patoldgica, mas ver sinais de uma “doen- a" niio é ver objetivamente. De fato, qualquer tipo de comportamento pode ser invocado como sinal e, portanto, como prova de anormalidade. Freqlientemente, é possivel, Observar que, uma vez colocada” uma delinicke- aa Crane um AE ¢ barulhento, tratase de um | “doenca”. Ce ‘Como assinalou Becker, os mesmos tipos de pro-%* a blemas ocorrem no campo da psiquiatria. O psiquiatra Ronald Laing, por exemplo, observa: “Desejando ser mais ‘cientifico” ou ‘objetivo’, 0 psidulatra clinico pode tentar limitarse ao comportamento ‘objelivamente’ obser- vavel do paciente & sua frente, A resposta mais simples quanto a este aspecto é que isto é impossivel... Nao podemos deixar de ver esta pessoa de uma maneira ou de outra, e de sobrepor nossas construgées mentais ou interpretagdes ao ‘seu’ comportamento assim que com ele estabelecemos uma relagao.”" Erving Goffman se expressa de maneira semelhante acerca do diagndstico das doengas mentais: “Habitualmente 0 aspecto. patolo- gico que primeiro chama a atengio para a condicéo do Paciente é a conduta que é ‘inapropriada na sittagio’. Mas a decisio quanto & propriedade ou impropriedade de um determinado ato deve, necessariamente, ser a de- cisGo de um leigo simplesmente porque nio dispomos de mapeemento téenico das varias subculturas comporta. montais em nossa sociedade, nem mesmo de padroes de conduta prevalecentes em cata uma delas...”# Se substi- tuirmos 0 termo “paciente” por “AE”, a rélevancia par- ticular deste trecho seré bastante clara, Em outras pa- lavras, 0 que constitui 0 patologico deve ser uma ava- © Howard Becker, Outsiders, Studies in the Sociology of De~ viance, ‘The Pree Press of Glencoe, 1963, , 5: T" Ronald D. Laing, The Divided Self.” Tavistock Publications 1969, p, 81. ‘6 "Erving Goffman, Asylums, Besays on the Social Situation of Mentat Patients and Other Inmates. Doubleday and Company. Anchor, 1961, pp. 303-364. 58 Desvio z DivErcéNca Hacéo subjetiva porque nfo lidamos com uma ciénaa | | exata — ndo dispomos de padrdes de “satide” no dominio do social. tante sincera e admitiu que as condigdes de sua escola- ° " rizagio nao haviam sido ideais, mas, j4 que eram “ele- - menios perturbadores” “na sus tuna; achive Tenor < |” Ge. fossemt “Temovidos: : m outra ;, seis outras criancas haviam sido i indicadas, das quais duas eram assiduas. Uma delas era ‘um menino quieto e timido, que se sentava sé no fundo da classe. Quase nunca sorria e me explicaram que ele ie Atado_para_se coticentrar “nas oltras- melhores, Ficaram . £ Biores ainda, de modo que voltou a-trabalhar ‘com eles, > cb. Drone, = 66 Desvio = DivercéNcta era rejeitado pela turma, (Durante a merenda, também se sentava 86.) Era totalmente ignorado durante a maior parte do tempo. Sua caligrafia era realmente atroz, mas com um pouco’ de esfor¢o se podia decifrar o que ele havia escrito. Tentava acompanhar os ditados que, en- tretanto, nunca foram corrigidos. Perguntei & professora se havia outras crianeas que também nio apresentavam grandes progressos. Apontou na direcéo de um menino e disse { — Vé aquele all, cle também nio aprende, no rende n: nio se lembra de nada, mas nfo é um AE. = comer — Bem, ele é “vivo”. Ele 6 brinealblo, gosta de fazer piadas- L_S6 @imaturo. “Mas 6 vivo. O AE nio é. Depois me mostrou um outro candidato. Era um menino que, assim que entrava na sala de aula, punha os bracos sobre a carteira e comecava a dormir. Tam- bém se sentava 6. Foime descrito como “zero abso- luto”, deficiéneia mental total. Decidi acordar 0 menino. e pedir que se sentasse junto a mim. Comecamos a con- versar um pouco; depois eu Ihe dei meu lépis e comecei a ensinarlhe. No comeco, estava envergonhado e no quis fazer nada, mas logo’ depois se animou. Aprendeu as letras “o”, “a” e “v”, embora com dificuldade. Tinha Gificuldade especial com a letra “b”, confundindo-a com “a”. Eu lhe expliquei que na letra “b” o trago vinha primeiro e 0 pequeno circulo depois. Tentou outra vez 25 e escreveu um “a”, pensou um instante — e entéo virou pagina! Na verdade, desta vez 0 trago veio primeiro e 0 circulo em seguida! Depois disso, s6 queria continuar a aprender a escrever. Disseram-me, algumas semanas de- pois, que nunca voltara a dormir durante as aulas e que estava copiando do quadronegro, embora nao pudesse ler 0 que escrevia. Em outra turma me afirmaram que todas as crian- cas deveriam ter de repetir a série escolar porque seu aproveitamento fora bastante insignificante. Algumas seriam AEs. Um exercicio para o aprendizado dos di- grafos “nh” e “ch” estava sendo apresentado. No quadro- negro, estava escrito “bi...0” e “mi...a”, para que as palavras “bicho” e “minha” fossem formadas. Tendo-o feito, as criancas eram chamadas a frente, para mostra- rem se haviam escrito corretamente as palavras. Ao invés de escrever “bicho” e “minha”, 0 menino formou suas “ALUNos EXCEPCIONAS” propria palavras, Eram “bigode” e “mirnica"=\ cial, terapia da palavra, — O que no quer dizer que a -Lerianga necessariamente receberd este atendimento. “Azunos ExcePcionas” nw © instrumento social de diferenciacéo, que divide as:cri- angas em suas categorias sociais Tespectivas.. Os testes psicoldgicos estéo fortemente implicados no processo' de “rotulagao” de criancas. Seria interessante discutir-a propria ideologia dos testes, e seus conceitos relativos ‘a “normalidade” e “deficiéncia”. Este trabalho nfo po- | derd compreender tal discussio e existe 0 problema adi- ional de que 0 contetido do Teste néo pode ser revelado. bastante dizer que so os testes que tém “a palavra final” e que as proprias professoras, orientadoras etc. 40, em ultima andlise, vitimas dessa ideologia. . (Os resultados dos julgamentos das fichas séo entéio comunicados & escola ¢ a data do teste marcada. A pro- fessora em seguida chama a crianga em questéo, ¢ manda ‘um recado por escrito a seus pais, declarando que é da maxima importancia que seu filho comparega em tal e qual dia, e a tal e qual hora. Advertese & crianca que | O Gille é, entdo, de importancia fundamental}:sendo | | ‘nndo se esqueca de entregar o bilhete aos pais e de com- { parecer no dia estipulado. Segue-se a cerimGnia de aplicacio do teste. Esta 6 feita em segredo absoluto, com apenas a presenca da orientadora e de uma auxiliar, Conseqtientemente, pouco se pode observar, a nfo ser que um grande —niimero. de criangas € testado ee Ore neo! Dh.’ Horus. -O”teste € aplicado apenas uma ver durante a car-' Yeira da crianca. is de cerca de um més, chegam os resultados do Gille. ™ As escolas séo informadas e as eriangas que fracassaram classificadas de acordo com os resultados para o préximo ano escolar — elas serio en- caminhadas para as “turmas especiais”. s Ae oe V. A TURMA DO AE A chegada da crianca a uma turma de AEs 6 0 resul- tado ldgico do proceso classificatério anteriormente des- erito. A segregacdo ideoldgica da crianca se traduz agora em termos concretos; a turma as isola tanto fisica quanto ‘geograficamente. Superficialmente, as turmas de AES ainda fazem parte da estrutura mais ampla da escola, 35 Das 8.006 eriancas que fizeram Teste em 1972, 1.898 YY ftoramr classificadas como AE: g ooin intervalos, 6 de apronimadamente duas 6. re A cst. re oh. n Desvio & DivErcinca Awe mas na prética jé pertencem a uma outra estrutura, com \e professoras, reunides, curriculo, exames, niveis de / classificagao, diplomas e departamento prdprios na Se- cretaria de Educagao, um sistema que desenvolveu sett proprio cddigo. Constitui “um Estado dentro_do_Es-~ cC tado”, uma instituigao em uma HISWtga0. Isto Ao Guer ‘dizer que a turma de AEs goze de status igual a0 das | Outras turmas da escola (no sentido de “iguais porém .) | entos”).. Ao contrério: do ponto de vista da escola como ‘) 4 um todo, constitui uma “turma desviante”, qualitativa- mente diferente das demais. Donde seu baixo prestigio | | e 0 fato de ser relegada a uma posicao inferior na hierar- | quia da escola, O estigma que a turma sofre pode ser » observado a partir do fato de que em muitas escolas nio {observade fal ti las na | ook € permitido que participe das festividades da escola, ¢. ¢., solenidades civicas, representagdes etc., um fato de que muitas professoras de AEs se ressentem. Qual a finalidade, a raison d’étre, da “turma espe- | cial”? Primeiro hd, € claro, a puramenite negativa de ex purgar ow aliviar as turmas normais de seus elementos | perturbadores. Uma, mais positiva, entretanto, € a de Vatender os problemas e necessidades especiais das crian gas. © que envolve pferecer um currieulo mais simples. adaptado ao seu ritmo mais Tento, © especiais considerados indispenséveis para ‘desenvolver a capaci- dade de aprendizagem de criangas mentalmente deficien- tes. Tais exercicios visam ao treinamento de sua coorde- nagio motora, percepeio visual ou auditiva, meméria, | capacidade de’ concentracao ete. (Nas reunides mensais, as professoras de AEs recebem cdpias mimeografadas dos exercfcios que deverao aplicar no més seguinte.) Além disso, as criancas deveriam receber aten¢ao indi- vidual, de maneira que as turmas de AEs séo geralmente | formadas com um mtimero menor de criancas que as tur- { mas normais, sendo a média de vinte ao invés de trinta. Geralmente, a finalidade da turma é permitir que a pro- fessora se dedique mais inteiramente as.criancas e chegue ‘a conhecer e compreender as dificuldades e idiossincra- sias de cada uma delas. A turma no tem por objetivo uma reintegragéo das criangas no sistema escolar mais amplo, isto é, nas tur- mas normais. Nio hé ideologia da recuperacio. O que néo é surpreendente, pois a nocdo da recuperacao é lo; ‘camente incompativel com o veredicto da patologia ine ! ‘ALUNOS’ EXCEPCIONAIS” B rente. Hd um reteste, mas poucos AEs’ sio:enviados:para © fazerem. O reteste habitualmente néo merece:mnaistque uma mencéo casual (se é que chega a ser mencionadio); Porque € antes considerado como uma extenséo:insigni= ficante do sistema do que como parte. integrante%*: ‘A crenea basica é que o AE nunca muda realmente..- Esta parte do trabalho é uma anélise dos. mecanis- mos da turma de AEs. § uma tentativa de mostrar como: a propria definigso da crianga como “excepcional” sem- pre leva a uma confirmagéo desta “excepcionalidade” © de como a prépria ideologia do desvio cria relagdes de distancia e de despersonalizagéo, em contraste com 0 alvo oficial de estabelecer um “relacionamento mais es- treito” com a crianca. ‘Uma vez definidas como desviantes, a tendéncia seré sempre procurar nas criangas os sinais e sintomas do seu desvio; quaisquer manifestagdes de sua parte serviréo de prova de sua “excepcionalidade”. ‘A professora est4 condicionada a consideré-la sob uma luz toda especial; se a define como turbulenta e pro- ‘Dlemética, qualquer coisa que faga seré sempre um sinal de sua “natureza turbulenta”. Como jé disse na seco 3, se uma crianca normal é barulhenta, tratase simples: mente de “bagunea”, se é um AE que é barulhento, trata- se de um sinal de Sua anormalidade; quando disttirbios menores ocorrem nas turmas de AEs’ (por exemplo, con- versa aos gritos, levantar da carteira, brigas com 0 vi zinho) sio imediatamente interpretados como sintomas de uma condicéo desviada inerente, conquanto os mes- mos distirbios possam ser observados nas turmas nor- mais. Neste sentido, entdo, o rotulo do desvio seré sem- pre confirmado. Se as criangas forem definidas como deficientes mentais, 0 ensino que se Ihes oferece sera retardado e modificado de tal maneira que se torne praticamente impossivel para elas a apresentagéo de progresso “nor- ial”. Os exercicios especiais, por exemplo, embora fre- qiientemente bem feitos desdé-o comeco, sao entretanto constantemente repetidos, de modo que um tempo va- lioso se perde para a lfabetizacio e as criancas estao destinadas a se tornar atrasadas. Assim, os prdprios 30 Em 1972 s6 43 eriangas, do total de quase 14.700 AFs, foram indicadas para o reteste. xy 4 Desvio & DiveRc£Ncta exercicios, planejados para acelerar a aprendizagem, tor- nam-se “mecanismos de atraso”". Além disso, essa de- finicdo tende a levar a uma interpretaco e avaliagio negativas do desempenho académico. No caso do AE que progride bem, isto pode acarretar repercussdes bastante sérias porque seu progresso aprecidvel (ou capacidade intelectual superior) pode nunca receber reconhecimento adequado. Do ponto de vista do sistema 0 “bom aluno” € uma anomalia, uma contradicéo: um deficiente mental que progride bem e rapidamente aproxima-se da posicéo liminar de “nem AE tipico, nem normal tipico”; 0 que leva & confustio desperta certa ambivaléncia emocional, “sentimentos desencontrados”. Assim, a menos que seja enviado para um reteste, 0 que é extremamente raro, a tendéncia seré simplesmente a de ignoré-lo totalmente. Se, por acaso, for uma crianga de temperamento mais vivaz ou dificil, estas caracteristicas poderdo ser consi- deradas como provas suficientes de que ele, afinal, com- provou a definic&o de “excepcional”. Deste modo, as professoras freqiientemente admitem que alguns dentre 0s AEs sio realmente muito bons alunos, mas que sio, contudo, AEs, porque sofrem de “distirbio de conduta” (“nunca permanecem sentados trangiiilamente”, “sio sempre barulhentos” etc.). De uma forma ou de outra, a erianca seré sempre moldada de maneira a se ajustar as caracteristicas basicas de sua categoria. Interessa, neste contexto, examinar a situagio dos AEs extremamente lentos. Sao, ou tomados como evi- déncia ideoldgica do desvio geral da turma (“viu como a turma é ruim?"), ou entao estigmatizados e marginali- zados do mesmo modo que os AEs foram antes margi- nalizados nas turmas normais; obtém-se uma réplica em miniatura da situagdo da “12 série analfabeta”, os lentos constituindo um micleo de “desviantes especiais” entre ‘08 desviantes. Algumas professoras preferem a definigSo “deficien- tes culturais” a “deficientes mentais”; soa algo mais compreensiva, Esta definicio, entretanto, apenas subs- 3 Uma professora deeidin abandoni-las totalmente © concen- trar-se apenas na alfabetizacao. Perto do fim do ano, ensinara 60% da turma a ler © a eserever, o que se compara muito favo- avelmente com as turmas normais, Uma outra, aplicando ‘um método diferente de alfabetizagao, consoguiu alfabetizar sua torma fem menos de 6 metes, qo een aN “ALUNos EXCEPCIONAS” 15 titui um “modelo negativo” por outro. Apenas transfere © desvio para 0 meio social da crianga, que deve ter re- flexos desfavordveis sobre ela; ela 6 (novamente) trans- formada num esteredtipo, desta vez exibindo todos os atributos negativos de seu grupo cultural particular. Mais uma vez, a professora nfo o v8.como-uma_persona-_ lidade individual, mas como uma categoria social AS relag6es tenderdo-w-ser-Impessoals € a Garem menos ‘ugar De modo semelhante, as professoras preferem muitas ‘8 compreensao vezes falar de “blogueios emocionais” e “distirbios_pst coldgicos” em. vez de deficiéncia mental, Mas,-se-tomada seriamente, esta definicho implicaria ‘uma ’abordag totalmente diferente das criancas, a qual a maioria das professoras, entretanto, nao esté preparada para assumir. Pois uma definicao de dificuldades emocionais é sempre efémera, especialmente quando aplicada a criancas que ainda se encontram em processo de desenvolvimento e mudanca emocional. Sé pode conduzir a uma classifi- cagio temporaria, nunca & permanente que o teste de Gille estabelece. Logicamente, esta definicao requereria retestes freqiientes, mas os AEs quase nunca séo enviados para um reteste, e certamente nao 0 sio freqiientemente. Apenas se pode concluir que, do ponto de vista prético (isto 6, de mudar a abordagem de alguém), a definicao anterior é de pouca valia. Quaisquer que sejam as vdrias definigdes do AE, ele LY € sempre um desviante; enquanto tal, estaré sempre su- jeito a um tipo de relacdo “diferente”, nunca a uma re- Jago normal; a propria ideologia do‘desvio deve criar uma relagéo “anormal”. O que ndo é afirmar que todas as relagdes sociais estabelecidas entre, professoras e cri- angas sejam sempre as mesmas; algumas professors, por exemplo, aplicam uma disciplina bastante rigida, e em , conseqiiéncia suas turmas sio quietas e ordelras; outras | so totalmente indiferentes, “casos perdidos”, que nao Ihes compete mudar — estas turmas so indisciplinadas e barulhentas. Neste sentido, munea se pode saber 0-que esperar quando se entra numa turma de AEs, Mas, qualquer que seja o clima da turma, quaisquer que sejam as relacdes entre professora e alu- nos, se conflituosas, trangiiilas ou indiferentes, sio apenas contiguragdes, versoes diversas do mesmo tipo de rela- cionamento social de despersonalizacio e de estigmati- cow eee ak des a x V considerando as criancas | aeetl, co as 16 Desvio = DivercéNca zagéo. 8 um padrio comum e recorrente de interagdo social, limitado pelas préprias fronteiras do sistema de representacao. © que se segue é uma descrigio de uma turma de AEs e um resumo de uma de suas aulas. Esta turma particular era dos niveis 1 e 2. O mimero total de crian- ‘gas era de 21, das quais 20 provinham de favelas. Grupo de idade: 9 ‘a 13 anos. Quatro haviam freqiientado a escola durante 8 anos; onze, por 4 anos; trés, por 5 anos; uma, por 6 e duas, por 7 anos. Dezesseis haviam sido classificadas como “imaturas” em seu primeiro ano de escola e dezessete haviam feito o teste de Gille no ano subsegitente, tendo sido classificadas como AEs no sew terceiro ano. A turma era geralmente quieta e ordeira, Disseram-me que observasse particularmente um menino que era um “caso dificil”, agitado, barulhento, e “todo esquisito” — um verdadeiro deficiente mental. (Por motivos de conve- niéncia passo a chamaé-lo Joao.) Para corrigir problemas de coordenacio visual e motora e para treinar ritmo, o seguinte exercicio foi apresentado: a professora exibia varios cartées com imagens, um mostrando um pé, outro um par de mdos, outro um pato ete. As criancas deviam aprender a associar cada cartéo com o seu respectivo som, por exemplo, quando se exibia o cartéo com 0 pé, deviam bater com’ seus pés no chio, se era 0 cartéo com © pato, deviam dizer “qua”, se era 0 cartéo das méos, deviam bater palmas etc. Os cartées eram entéo presos a0 quadronegro em linhas horizontais, e a professora os apontava, sucessivamente, devendo as criancas reproduzir © som adequado. Cada’ crianca era solicitada a repro- duzir 0 som de apenas um cartéo e no momento exato em que a professora 0 apontava, A professora apontou © primeiro cartéo — uma crianca bateu 0 pé; depois o segundo — seguiuse o bater de palmas, e assim por diante, até o ultimo cartdéo. Tudo foi feito com bastante rapidez, produzindo um ritmo agraddvel. Tudo correu perfeito, durante a maior parte do tempo, apenas uma menina ‘perdendo a pista por uma ou duas vezes. As crianeas gostaram deste exercicio porque era divertido e ritmico; a professora também o apreciou e foi por isso repetido varias vezes, sempre com o acréscimo de mais cartes. Deste modo, passatam-se mais de trinta minutos. Entdo, aconteceu que entraram algumas visitas e 0 exer- “ALUNos EXCEPCIONAIS” m7 eicio foi mais uma vez repetido em sua honra.:As erian- gas se desempenharam Drilhantemente e.a-professora tinha um sorriso de orgulho na face. Seguiuse outro exercicio: a cada crianca se distribuia um cartéo, no qual se podiam ver os contornos de uma casa, drvores, 0 mar etc., que deveria colorir. No interior de cada figura se percebia um pequeno mimero corres- ondente a uma cor particular, e a crianca deveria usar ‘apenas a cor requerida pelo mimero (as instrugdes se encontravam em um canto, isto é, 1 = vermelho; 2 = azul etc.). Deste modo, deveria compor uma figura colorida. O objetivo era treinar sua percepeao visual. Ordenouse &s criangas que se sentassem corretamente, que ndo se movessem e que se concentrassem em seu trabalho: “Se alguém nao se concentrar, vai fazer errado.” ‘Um menino virou-se e pediu, a uma menina sentada atrds, uma borracha; foithe imediatamente dito que olhassé para a frente e que se sentasse corretamente. “Pare de atrapalhar os outros.” Joio acabou logo. Tinha feito bem o seu trabalho, prestando atencdo aos menores detalhes, por exemplo, um mimero minimo escondido em um canto do desenho, mas agora estava se aborrecendo. Logo notei que era geralmente o primeiro a acabar e que, conseqtientemente, ficaria inquieto e procuraria uma desculpa para se levan- tar, fosse apontar o Iépis, ou procurar uma borracha. Neste meio-tempo, comecaria a conversar com um colega, Era o tipo de crianca que gostava de “representar uma ‘comédia”. Quando o repreendiam (0 que acontecia com freqiiéncia, sendo geralmente chamado “chato”), enterra- va 0 rosto nas mos, em desespero fingidd, mas logo © descobria fazendo enorme careta, como que impenetré- vel a qualquer repreensio. Era uma crianca que no Podia ser subordinada, o que, aliado ao fato de que Sempre bancava o paihaco, irritava constantemente a professora. Desta vez, comecava novamente a agitarse a balancarse na carteira. Com um grito a professora disselhe que parasse de balancar-se e ameacouo de ficar de pé. Ordens como “pare com isso”, “preste atenc&o” ete, eram dadas e repetidas durante toda a aula, porque, de acordo com a professora, as criancas sofriam de “dis- ttirbio de conduta” e precisavam ser disciplinadas. “Se a gente ndo as controlar, vai ser 0 caos.” B Desvio E Divercéncta A maioria das criangas fizera_o exercicio correta- mente. Apenas trés tinham errado. Seu trabalho foi sau- dado com um sarcdstico “que beleza”. Foram repreendi- das por nao se terem concentrado. “Sempre conversando. com 0 companheiro.” Percebeu-se que elas nao distin- guiam realmente as cores, isto é, que ndo sabiam que @ cor que haviam usado como azul se chamava “azul” — donde ler “2 = azul” no significava coisa alguma para elas. Haviam decidido usar as cores como pensa- vam ser melhor; 0 que, em geral, produzira o resultado correto (e. g., Sabiam que o mar era azul, assim usaram azul), mas que nao poderia funcionar nos menores de- talhes. Entéo, velo um ditado. Comegou em siléncio abso luto. Foram-lhes ditadas palavras como “menino”, “me- nina”, “bota”, “urso”, “pavao” etc. As criancas estavam. bastante atentas, embora se observasse uma tendéncia para se agitarem nos longos intervalos entre cada pala- ‘vra. Depois de alguns minutos, a professora sempre per- guntava se todas estavam prontas para a proxima palavra. € como duas sempre respondiam “no”, a turma inteira devia esperar por elas. Deste modo, 0 ditado prosseguiu. a passo de cdgado. Quando terminou, uma menina reco- theu e entregou-me as folhas de papel. Mais uma vez, Joao escrevera tudo corretamente. Em seguida, a profes: sora se levantou e deixou a turma por alguns minutos. As criancas continuaram em suas carteiras, conversando entre si. Quando a professora voltou, disse-Ihes que agora tinham de 15 a 20 minutos para brincarem — era 2 nora de seu recreio. As meninas continuaram a conversar, algumas comecaram a pintar, enquanto os meninos se levantaram e apanharam os brinquedos espalhados no fundo da sala; ocasionaimente comecaram uma briga. Depois do recreio Ihes foi dado o dever de casa. ‘Todos abriram seus cadernos de exercicio e comecaram a coplar o que estava escrito no quadro. A professora desenhou uma vaca, em seguida escreveu a palavra “da” junto a ela, e finalmente desenhou uma garrafa de leite. ‘A crianca deveria completar a frase com a palavra ade- quada, de modo que se pudesse ler “A vaca da leite”. Seguiam-se varias outras frases deste tipo. Finalmente, tocou a campainha. “Auunos EXCEPCIONAS” 9 Depois da aula, conversei com a professora, Disseme: — Vin como eles slo fogo? Especialmente Joio, & um AE tipieo, m — Mas ele parece ser bom aluno, ‘Surpreendente, mas ele é bom aluno. Sofre, porém, ae distiibio de conduta, como voeé viu. Ele nfo 6 muito bom da cabega — e apontow para a propria caboga. — E depois vem de um ambiente terrivel. Acho quo a mie dele é alcodlatra; a frmie_ todas 40 prostitutes — as piranhas do morro. Dai vooe ode imaginar que tipo de crianga ele dave ser. £ sempre a mesma isa com essa. gente. Com quatorze anos de idade, a crianga, ou melhor, © adolescente deixa a escola. O objetivo de sua educacdo foi preparéJo tanto quanto possivel para um “papel util” na comunidade. Assim, conquanto possa ndo haver uma ideologia de reintegracéo na escola, hé certamente uma ideologia de reintegragdo na sociedade mais ampla, No entanto isto pode se tornar dificil com um diploma esco- lar que declara que a crianga terminou seu curso primario tendo recebido um “ensino ndosistemético”. Estas pala- vras distinguem o diploma AE do diploma normal. Aquele se tornou agora um diploma “estigmatizado”, e as conse- qiiéncias poderao ser sérias quando se trata de procurar um emprego; 0 desvio foi agora transposto para a comu- nidade maior. Perguntei a um menino o que gostaria de fazer depois de sair da escola. Respondeu que gostaria de fazer “o gindsio” e que trabalharia de dia e estudaria & noite, se pudesse. Mais tarde perguntei a sua professora quais seriam as oportunidades de que seu aluno fosse para 0 “gindsio”. — Oh, praticamente nenhoma. Nao tem condicio, certamente { nfo com esse diploma. , VI. CONCLUSAO Este foi um estudo acerca de um grupo de criancas rotulado como desviante. O estudo do desvio é de inte- esse na medida em que trata de pessoas que sdo estigma- tizadas e relegadas & periferia da sociedade; 0 objetivo € mostrar como chegam a ocupar estas posigdes. Foi também um. estudo dos sistemas de classificacdo. Na realidade “nossos. métodos de classificacéo sao inteira- mente arbitrarios e subjetivos. Nada hé no mundo exter- no que exija que certas coisas se agrupem e outras | | { 80 Desvio & Divercéxca nao (...). Supde-se que cada populacéo tenha um siste- ma nico de perceber e organizar os fendmenos-coisas, acontecimentos, comportamento e emogdes (podemos acrescentar aqui — pessoas). O objeto de nosso estudo nao sao estes (...) fenémenos em si mesmos, mas as maneiras como séo organizados nas mentes dos homens (...), Culturas ndo so fendmenos materiais; ‘S80 organizagGes cognitivas de fendmenos materiais,” |] © estudo do desvio nao é 0 estudo de pessoas em si mesmas, mas o estudo da classificagéo de pessoas na ago Se Classificagao de pessoas na_ APENDICE A excelente pesquisa do INEP no pode ser resumida aqui, mas é importante relatar uma das conclusées alcan- gadas por esta pesquisa; tal conclusio se refere & classi- L! ficacdo de criancas em categorias; tratando do problema L da “etiqueta que influi sobre as expectativas do mestre” e do problema de que “a classificacao em CP ou como AE marca oficialmente e com a agravante de aparente base S ~ Cientifiea”, conclutse que: “Recomenda-se uma mudanca da politica que vem sendo adotada em relacdo as criancas com dificuldades de << aprendizagem, reunidas muitas delas nas chamadas Clas- =< _ ses Preliminares. Essa politica pode estar influindo, in- clusive, na classiticacdo das criancas como AMs e em sua , 3) Segregacdo em classes especiais, as quais representam X ‘uma ‘forma de marginalizacao escolar e, possivelmente, para a vida futura, considerando-se a reagio negativa dos empregadores diante do certificado obtido por essas criangas, quando no se evadem da escola, o que parece ocorrer em grat elevado. E esse assunto que parece me- recer sério estudo, tendo em vista que as criancas que vem sendo indicadas para repetir as Classes Preliminares na base de seus resultados quanto & melhoria da “matu- ridade” ndo sao, muitas vezes, sequer iniciadas na apren- dizagem da leitura e da escrita. Por outro lado, sao clas- sificadas como AEs com fundamento em testes coletivos de inteligéncia sem validade determinada, A classificagéo 38" Stephen T. Tyler, Introduction. In: Cognitive Anthropology, por 8. A. ‘Tyler, org,, Holt, Rinehart and Winston, Nova York, 1908, “AvuNos EXCEPCIONASS” at da crianga como imatura parece levar a efeitos graves, como @ diminuig&o da expectativa de pais e professores, a baixa significativa de freatiéncia, a descrenga da crianca no proprio valor. A influéncia da redugao de expectativas pode ser suficiente para determinar a reprovacdo de uma ‘erianga.” REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Bronte, Howard. Outsiders, Studiea in the Sosilory of Deviance “The Free Press of Glencoe, 1963. ST Pier Site. "the Free’ Pret of Glenn, 196, , Dovstas, Mary. Purity and Danger. An Analysis of Concepts of Pollution and Taboo. Penguin Books, 1970. —. Witcherajt, Confessions and Accusations, "Tavistock Publica tons, 1970. wEnixoox, Kal T, Wayward Puritans. John Wiley and Sons, Inc, 1966. Foucaurr, Michel. Madness and Civilisation, Tavistock Publications, 1967. rvuan, Erving. Stioms, Notes on the Management of Spoiled cr Tdatity, Englewood Cliffs, Prentice-Hall, They 1963, —. 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