Vous êtes sur la page 1sur 128

RIODE

RIMAS
Rôssi Alves
RIODE
RIMAS
Rôssi Alves

Petrobras Cultural Realização


Copyright © 2013 Rôssi Alves
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS

curadoria
Heloisa Buarque de HollandA

consultoria
Ecio Salles

coordenação editorial
Camilla Savoia

projeto gráfico
Flavia Castro

RIO DE RIMAS

produção gráfica
Sidnei Balbino

revisão
Camilla Savoia
CECILIA COSTA

revisão tipográfica
Camilla Savoia
TATIANA LOUZADA

fotos da capa
Roda Cultural do Méier (Crédito: Fábio Teixeira)
Arte do CCRP (Crédito: Gustavo Chs)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

A482r
 
Alves, Rôssi
    Rio de Rimas/Rôssi Alves. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013.
   128 p.: il.; 19 cm. (Tramas urbanas)
 
   
    ISBN 978-85-7820-105-0
 
    1. Hip-hop (Cultura popular) - Brasil. 2. Rep - (Música) - Brasil. 3. Movimentos da
juventude. I. Título. II. Série.

13-06783                             CDD: 305.2350981


                                             CDU: 305.2350981

01/11/2013 05/11/2013

Todos os direitos reservados


Aeroplano Editora e Consultoria Ltda.

Praia de Botafogo, 210/sala 502


Botafogo — Rio de Janeiro — RJ
CEP: 22.250-040
Telefones: (21) 2529-6974/ (21) 2239-7399

aeroplano@aeroplanoeditora.com.br
www.aeroplanoeditora.com.br
A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre este-
ve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a
produção cultural dos artistas que se encontram na periferia
por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da per-
cepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não
tinha oportunidade de ter sua voz.

No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem


mostrar que não se trata apenas de artistas procurando in-
serção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente
conectados com experiências sociais específicas. Não raro,
boa parte dessas histórias assume contornos biográficos de
um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua pe-
riferia, das suas condições socioeconômicas e da afirmação
cultural de suas comunidades.

Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, cria-


tivas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Coo-
perifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos casos que
estão entre os títulos da primeira fase desta coleção.

Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuida-


de do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas
dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas
formas de responder a questões culturais, sociais e políticas
emergentes. Afinal, como diz a curadora do projeto, “mais do
que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”.

Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.


Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da perife-
ria se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no
país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa
e, claro, projeto de transformação social. Esses são apenas
alguns dos traços inovadores nas práticas que atualmente se
desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma
das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural.

Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje


a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais
importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história
ainda está para ser contada.

É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como


objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo
capítulo da memória cultural brasileira.

Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva


ao direito da periferia de contar sua própria história.

Heloisa Buarque de Hollanda


A esta gente que tem o “estranho” e fascinante
hábito de povoar as ruas com rimas.
Agradecimentos

Aos meus amigos-bolsistas, procultianos queridos, Renato Mas-


carenhas, Guilherme Cardoso e Thomaz ADL, pelo brilhante tra-
balho e pela paciência comigo.

Às minhas lindonas, Maíra Dias e Jeosanny Kym, que se hospeda-


ram na minha casa, em meio a tantas rimas, a fim de melhor me
ajudar, para que eu cumprisse esta missão.

À minha amiga-irmãzinha, Graziella, pela leitura cuidadosa.

Ao MC Marechal, pela atenção constante e pela poesia que tanto


me emociona.

Ao Nissin Oriente, meu poeta queridinho, obrigada por tantas e


tão belas poesias.

Ao DJ Bola (escritor, MC, informante, amigo), pelas aulas, atenção


e carinho.

Ao meu amigo Nuno DV, companheiro de rodas, batalhas e livro, a


quem eu recorro em todos os momentos de dúvida e desespero:
Valeu, pichador!

À Helô, por me enlouquecer a cada encontro, pelo insano convite


para fazer este livro, pela confiança, pelas reflexões, pelas bri-
gas... Te amo!!!

À Beatriz Resende, para sempre minha orientadora.

Ao meu amigo de sempre, Marildo, por tudo...


À minha família, por me aturar, sobretudo em um momento de
produção incessante e idêntico estresse (Rodrigo, meu amor,
obrigada pela apurada audição!).

Aos MCs que se dispuseram a conversar comigo, pessoalmente


ou via Facebook, muito obrigada. Não cito nomes, pois há o risco
de esquecer algum. Mas todos foram mencionados no texto.

Ao Dropê Comando Selva e ao Djoser Botelho, pelas aulas de arte


urbana e sugestões e, mais ainda, pela acolhida gentil e amiga.

A todos os organizadores de rodas culturais e batalhas de rima,


em especial, ao Don Allan Marola, Fabio Broa, Fabricio Mello, Ali-
ne Pereira, Gordo Soldados da Pista e Cesar Schwenck.

A todos que me cederam imagens para este livro: Fábio Teixeira,


Emanuel Bilson, Gustavo Chs, Don Allan Marolla, Cristiano Reis,
Daniel Juca, obrigada!

Aos amigos, pais do CCRP, Dropê Comando Selva, Djoser Botelho


e MV Hemp. Obrigada por me apresentarem a um objeto de estudo
que trouxe tanto ritmo para minha vida acadêmica. SELVA!!!

À Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de


Janeiro), que financia a pesquisa, da qual este livro é parte, com
bolsa de pós-doutorado.

À imensa magia desta arte de rua, OBRIGADA!

TAMUJUNTO!!!
cap.01 Os fazimentos que me fizeram

SUMÁRIO
15 PREfÁCIO - NUNO DV

18 Um lugar de batalha pelo rEp 01


21 Em busca da performance perfeita
– as batalhas de rima cariocas 02
24 A tradicional, a tradicional...
Batalha do Real! 03
35 Circuito Carioca de Ritmo e Poesia, o CCRP 04
47 As rimas do Rio
05
52 Métrica, ritmo e rimas 06
61 O público: um júri passional
07
68 “Tua rima é decorada!”: ofensa maior 08
72 Manifestação da literatura carioca
09
76 Quando parnasianos e modernistas se encontram 10
86 De onde vêm as rimas? 11
91 12
Onde está o palco e onde fica a plateia?

99 Gestão criativa do espaço público


13
108
14
Roda Cultural do Méier — máximo respeito

113 Uma outra instância de legitimação: as redes sociais 15


117 Vem pra rua, vem e traz sua arte também!
16
124 Referências bibliográficas
Prefácio

MCs criando rimas e poesias na velocidade da luz e do vento


Mas em 45 segundos muitas vão se perder no esquecimento
Anotando tudo na plateia vejo que tem alguém bastante atento
Navegando no RIO DE RIMAS a fim de eternizar esses momentos.

A cada rima criativa a torcida grita como se fosse um gol


Quem recebe mais barulho é consagrado o vencedor
MCs rezam pra saber se alguém filmou, ou pelo menos fotografou
Mas alguém fez melhor, anotou tudo, e num livro registrou.

Rio de Rimas é um passeio nas rodas culturais de rimas do Rio


de Janeiro. Um grato fenômeno da cultura espontânea jovial que
vem  se espalhando e se apropriando das praças, pistas de skate e
espaços públicos da cidade. Sem apoio, patrocínio ou qualquer tipo
de ajuda externa, as rodas de rima vem se fortalecendo e lançando
novos nomes dentro da cultura hip-hop.

Sejam bem-vindos a esse Rio de Rimas, um manual prático de


instruções e explicações, em que o leitor se sentirá na plateia das
batalhas entre MCs junto com a autora Rôssi Alves.

Nuno DV

15
Rima é assim
Um trabalho instável
Além de ser convincente
Também tem que ser impecável.

(Nissin Oriente)
01.
Um lugar
de batalha
pelo rEp
1
cap.01 Um lugar de batalha pelo rEp

Na década de 2000, quando o bairro carioca da Lapa já se


apresentava para o mundo como centro aglutinador de cul-
tura, lazer e boemia, um grupo de jovens e adolescentes
— rimadores, músicos, artistas de circo, B-boys — encon-
trava-se na Fundição Progresso, em um espaço chamado
CIC (Centro Interativo de Circo). Este espaço era gerido por
Gerard Miranda, produtor cultural atuante na Fundição.

O CIC promovia debates, oficinas, espetáculos de circo, ba-


talhas de rima, exposições de grafite, vídeo, entre tantas
outras atividades artísticas. Em uma descrição resumida: a
proposta era fomentar uma alternativa de produção cultu-
ral, geração de trabalho e renda, e valorização dessas cul-
turas — que são de rua e, portanto, independentes.

Segundo Dropê Comando Selva, participante ativo dos


projetos do CIC, os objetivos consistiam em: desenvolver
oficinas permanentes dedicadas aos quatro elementos da
cultura hip-hop — dança de rua, grafite, discotecagem e
rep. Estas oficinas foram agregadas às oficinas de circo e
de cinema, e tiveram como objetivo produzir documentários
e afins, na busca de uma identidade visual e exploradora
do senso crítico. As oficinas eram ainda aliadas a ações de
cultura complementar, como skate, capoeira e basquete
de rua. Todas essas ações eram trabalhadas de forma in-
tegrada a temas transversais que pudessem agregar, por
sua vez, a cada oficina, valores humanos necessários para
a formação da cidadania.

1 Adotarei a forma rep (ritmo e poesia) neste livro, em detrimento de rap (rhythm
and poetry), tendo em vista ela assim ser tratada por muitos integrantes do movi-
mento carioca e por considerá-la mais aderente ao formato que o movimento to-
mou no Brasil — ativista, irreverente, preocupado em criar uma estética brasileira.
Ou seja, é uma forma de respeitar uma atitude e me aproximar, também, do modo
19
como o rep é apresentado pelo CCRP (Circuito Carioca de Ritmo e Poesia).
RIO DE RIMAS

Gerard Miranda define o CIC assim:2

O CIC foi o berço e estabeleceu condições para a criação e a


afirmação das batalhas; como também foi uma afirmação,
na Lapa, de grafite, break, DJs e, por muito tempo, foi a
casa do hip-hop carioca, abrindo espaço para todos MCs de
todas as comunidades, incentivando, motivando e multipli-
cando o hip-hop em todas as suas formas.

Quando o espaço que acolhia o CIC sofreu um incêndio, os


participantes se ressentiram de uma casa para a cultura
de rua. Para minorar a falta, continuaram se encontrando
em frente à Fundição Progresso, e realizando reuniões com
rimadores. Ocorriam às quintas-feiras. Foi lá, sob os Arcos
da Lapa, numa quinta-feira à noite, que esses participantes
deram origem a uma roda de rima informal — o prenúncio
das rodas culturais.

A ideia dos encontros às quintas-feiras, debaixo dos Ar-


cos da Lapa, é atribuída ao Rico Neurótico. A proposta foi
bem recebida pelos MCs, e as rodas levaram para as ruas
o projeto bem-sucedido que acontecera dentro da Fundição
Progresso.

DJ Bola credita a força desses encontros ao fato de que, na


rua, em rodas, muitos rimadores podem participar. Ele diz:
“Nas batalhas, havia lugar para 16; na rua, dezenas de MCs,
que antes não tinham como mostrar sua rima, podiam se
apresentar.”3 Daí surgiram as primeiras rodas, aquelas que
originaram as rodas culturais — ainda não no formato do
CCRP (Circuito Carioca de Ritmo e Poesia).

2 Entrevista concedida à autora, por e-mail, em 6/8/2013.


20 3 Entrevista concedida à autora em 3/9/2012.
02.
Em busca da
performance
perfeita
– as batalhas
de rima cariocas

21
RIO DE RIMAS

A esta altura, é importante ressaltar que há rodas culturais


e batalhas de rima. A princípio, uma roda cultural contem-
pla várias atividades artísticas, inclusive a batalha de rima,
e defende a ocupação do espaço público. Uma batalha de
rima pode sustentar-se apenas com a disputa de MCs,
realizando-se, também, em espaços privados. Entretanto,
como esses eventos se assemelham bastante, por vezes,
farei menção aqui, a rodas culturais e batalhas de rima,
conjuntamente. A distinção será feita sempre quando se
tornar fundamental.

As batalhas de rima priorizam o concurso de MCs. Entre-


tanto, têm outros atrativos, como shows dos próprios MCs,
DJs, e dança. Ou seja, muitas vezes, a distinção entre um
evento e outro torna-se difícil. Quando criei, na rede social
Facebook, o grupo aberto denominado Rodas Culturais do
RJ, vários organizadores de batalhas postaram informa-
ções sobre seus eventos. E mesmo entre a maioria dos fre-
quentadores, organizadores, MCs, não há afeição por um
tipo em especial. As rodas e batalhas, inclusive, dividem os
mesmos apresentadores, artistas e público.

Custei a entender o porquê de o CIC ser mencionado em


praticamente todas as conversas que eu tinha com MCs e
organizadores de rodas. Na década de 2000, quando não
havia tanto espaço para o rep, nem este era um ritmo tão
cultuado pelos cariocas (apesar do sucesso de grupos
paulistas), havia um dia reservado à cultura rep no CIC —
a quinta-feira. E mesmo sendo um espaço de pluralidade
para as artes, a forma que tinha prioridade era a batalha de
rima. Muito antes das rodas de rima, as batalhas ditavam o
tom da cultura rep carioca, eram a forma mais comum de
um MC mostrar sua aptidão na cultura do rep.

A batalha era prioridade, mas não só a batalha de rap; nos-


so trabalho se estendia às aulas de DJs, break e grafite. [...]
O CIC foi a grande casa da Batalha do Real. A gente fazia
uma festa de hip-hop, aos sábados, e um tempo depois sur-
giu a Batalha do Real na sinuca, que veio para o CIC bem
22
cap.02 Em busca da performance perfeita – as batalhas de rima cariocas

depois; ali, onde teve grande sucesso, e deu origem ao filme


L.A.P.A. (Gerard Miranda) 4

Mas na busca por uma atividade que não resultasse só na


disputa “ofensiva” de MCs, Gerard Miranda abriu proposta
para outras formas de arte que privilegiassem a reflexão
e o debate crítico. “Eu convidei o MC Marechal pela ideia
que eu tinha de fazer uma qualificação das batalhas com
educação e outros temas menos sangrentos. E com o tem-
po ele chegou com a ideia da Batalha do Conhecimento.” 5
MC Marechal, então, apresentou seu projeto da Batalha do
Conhecimento:

Eu pensava na forma de manter uma batalha, que é um


evento de entretenimento, e ao mesmo tempo que contives-
se algo que despertasse as pessoas, que as fizesse evoluir.
Eu faço aquilo em que acredito. A Batalha do Conhecimen-
to exibe um filme, faz o debate e a batalha se desenvolve
com os temas relacionados ao filme. O projeto da Batalha
do Conhecimento deseja formar um núcleo, com workshop,
música, literatura, cultura. Ou seja, um Núcleo do Conhe-
cimento, uma escola, sendo a batalha um entretenimento.6
Mais tarde, a Batalha do Conhecimento passou a revezar o
espaço com o projeto Reciclando Pensamentos, do coletivo
Comando Selva. Alguns nomes do rep alternativo — como
Cartel MCs, Mesclados, Bidi, Numa Margem Distante — sa-
íram do Reciclando Pensamentos, segundo Dropê Coman-
do Selva, para quem o Reciclando Pensamentos funcionava
ainda como uma escola:

Era uma escola de rima que abria espaço para MCs desco-
nhecidos, promovia debate, com ativa participação do público,
que atualmente sustenta a cena rep independente. O Reci-
clando propunha batalhas em que houvesse investimento
no intelecto do MC. Por isso, considero-o a aula de rima, en-
quanto a Batalha do Conhecimento era a prova, para os MCs.7

4 Entrevista concedida à autora, por e-mail, em 6/8/2013.


5 Entrevista concedida à autora, por e-mail, em 6/8/2013.
6 Entrevista concedida à autora em 10/8/2012.
7 Entrevista concedida à autora em 20/12/2012. 23
RIO DE RIMAS

03.
A tradicional,
a tradicional...
Batalha
do Real!

24
cap.03 A tradicional, a tradicional... Batalha do Real!

As batalhas de rima, embora consistam na disputa de MCs,


apresentam alguns aspectos que as diferenciam. Há bata-
lhas de sangue, de ideias, de conhecimento, de imagens. As
batalhas de rima são mais antigas que as próprias rodas de
rima cariocas, e a modalidade de sangue é a preferida do
público. Ao iniciar a apresentação de uma batalha de san-
gue, o MC responsável pela apresentação grita — sempre:
“O que é que vocês querem ver?” E a plateia responde, ani-
madamente: “Sangue!”

A batalha de sangue propõe que a vitória seja da melhor


rima, mas permite que os adversários se agridam verbal-
mente. O mais comum é o participante construir sua rima
a partir dos aspectos físicos do seu oponente, de alguma
característica marcante e, até mesmo, com base em segre-
dos. É quase um Vale Tudo da rima. Quanto mais desafiado-
ra e ousada for a performance do MC, maior a probabilidade
de ele ganhar a disputa. Sobe-se ao palco com o explícito
desejo de esculachar o adversário. E para tal, nenhum de-
talhe físico e moral é poupado — embora nem sempre o
público aceite qualquer ofensa.8

A Batalha do Conhecimento, criada por MC Marechal, origi-


nou outras com nomes diversos, como Batalha de Ideias, de
Palavras, e a de Imagens (pensada por Careca Arts Sandu-
ba); todas elas surgiram na busca de alternativas à batalha
de sangue. O apelo maior da batalha de sangue — ridicula-
rizar o oponente — não acontece naquelas outras. Nelas, o
desempenho na elaboração do pensamento, a partir de uma
imagem projetada no telão, de um filme, de um debate, é
que define o vencedor.

Esta modalidade de batalha que incentiva um debate de


ideias é aclamada pelos que veem nas batalhas de sangue
apenas eventos que promovem uma disputa vazia de conteú-
do e incentivadora de violência verbal. Há organizadores de

8 Na Batalha do Real, edição de 6/7/2013, excepcionalmente realizada na praça


Tiradentes, duelavam, na primeira fase. Um dos MCs fez referência a um pro-
blema que o outro tem na mão. Percebendo a rima indevida, houve um pedido de
desculpas logo ao fim da apresentação. 25
RIO DE RIMAS

Batalha de MCs.
Crédito: acervo pessoal
26
cap.03 A tradicional, a tradicional... Batalha do Real!

rodas e batalhas que, preocupados com a grande frequên-


cia de crianças e adolescentes a esses eventos, propõem
batalhas temáticas. Caso da Roda de Engenho do Mato, que
acontece numa praça muito frequentada por crianças:

Pelo fato de ter muitas crianças, não faz sentido fazer uma
batalha de sangue. A gente faz uma batalha temática, nos
moldes da Batalha do Conhecimento do MC Marechal. Ele
sabe e dá a maior força pra gente. Aqui não é Lapa: há pou-
cas opções de cultura. Além disso, a nossa realidade é di-
ferente da realidade das gangues, nossas necessidades são
outras. Por isso, as batalhas de sangue aqui no nosso co-
tidiano acabam perdendo o sentido e servindo antes como
um exercício do ego do que como um meio pacificador. Po-
demos evoluir, dar um passo maior com a batalha temá-
tica. Nos sentimos influenciados pelo Marechal e também
procuramos atuar com independência, fibra ética, moral,
algo peculiar dentro do hip-hop, nos dias de hoje. O exemplo
que temos do Marechal, isso representa muito para o nos-
so trabalho. É o tipo de força e inspiração que buscamos.9
(Aline Pereira)

As batalhas são compostas por 16 participantes, formando


oito duplas que são decididas na hora. Ou seja, os primei-
ros participantes não sabem com quem vão duelar.10 Desta
primeira etapa, saem oito MCs. É possível criar uma tabela,
como as de campeonato de futebol — vencedor da primei-
ra batalha com o vencedor da segunda e sucessivamente.
Assim, cruzando informações, a partir dessa fase, cada
participante já sabe quem será seu oponente, o que facilita
bastante, já que podem articular a rima baseando-se nas
características de seu adversário. São, ao todo, quatro eta-
pas de batalhas, com dois ou três rounds.

9 Entrevista concedida à autora em 4/8/2013, na Roda Cultural de Engenho do


Mato.
10 Assim como não sabem sobre qual beat vão rimar. E a batida — mais lenta,
agressiva, rápida — é uma grande aliada do MC.
27
RIO DE RIMAS

Cada participante tem 45 segundos, em cada round, para


rimar, atacando o adversário. Por meio de sorteio, eles de-
cidem quem começa a batalhar. O segundo candidato tem
a vantagem de, durante a performance do primeiro, pensar
no que vai dizer. Entretanto, ele dá início ao segundo round,
enquanto o primeiro pensa na resposta. Rimar sobre o que
o adversário disse, utilizando-se das afirmações dele, é
uma estratégia muito valorizada pelo público — é a articu-
lação da resposta de um MC ao ataque do outro que ajuda
muito a definir o vitorioso.

Ao final do segundo round, o apresentador pede que o pú-


blico aplauda os candidatos. Ganha o que for mais aplaudi-
do. Como nem sempre a distinção é fácil, é comum o apre-
sentador substituir os aplausos por braços ao alto. Quando
nem assim fica clara a decisão do público, parte-se para o
terceiro round. É comum, já ao fim do segundo round, antes
mesmo de a plateia ser convocada a aplaudir, decidindo a
luta, que a mesma grite, implorando o terceiro round: “Ter-
-cei-ro! Ter-cei-ro!” O campeão da batalha tem direito a um
freestyle no fim do show.

Nas batalhas, vence que tem a performance mais ousada,


a maior torcida e, às vezes, a melhor rima. Nas rodas de
rima, a rima é o único valor. Nas batalhas, a rima nem sem-
pre é “convincente”, porque nem mesmo há tempo para
elaboração, e a pressão sobre os batalhadores é maior.

DJ Bola, rimador referência nesse cenário desde o CIC,


percebe uma queda na qualidade da rima carioca:

A gente que já batalhou vê que o Rio está num nível muito


fraco em relação ao Brasil. O nosso nível de rima está cain-
do, embora o rep esteja ganhando bastante espaço. Hoje,
não se tem o nível das batalhas que havia antigamente.
Apesar de entender que é bem difícil subir num palco para
dar a cara a tapa.11

11 Entrevista concedida à autora em 10/9/2012.


28
cap.03 A tradicional, a tradicional... Batalha do Real!

Logo, é bem comum que a vitória esteja menos atrelada à


elaboração da rima e mais à habilidade de reunir um grupo
numeroso que defenda o seu território e/ou ao desempenho
artístico do batalhador.

A questão da territorialização é muito forte nessa cultura


de rua. Vota-se no MC pelo talento, mas sobretudo por ele
“defender” a sua quebrada:

A cidade é Niterói, onde sou nascido e criado


Minha família, minha praia, minha gata e meus chegados.
E se eu sair daqui, uma parada anota:
Já vou pensando em quando será a data de volta!
(Oriente)

É interessante observar como o território ganhou contornos


de protagonista nas narrativas atuais. O geógrafo Milton
Santos, em Por uma outra globalização (Record, 2000, p. 79)
apresenta o território como um reflexo da sociedade:

Os atores mais poderosos se reservam os melhores peda-


ços do território e deixam o resto para os outros. Numa si-
tuação de extrema competitividade como esta em que vive-
mos, os lugares repercutem os embates entre os diversos
atores, e o território como um todo revela os movimentos de
fundo da sociedade.

É verdade que o espaço sempre teve marca cativa nas letras


que versam sobre o urbano, as favelas e morros, mas nada
que, acredito, possa ser comparado à importância adquiri-
da nas obras que começaram a surgir, mais propriamente,
nos anos 2000 — na literatura, na música, nas rimas.

O dia seguinte a uma grande batalha é especial para os


amantes do rep que vivem na localidade de onde saiu o
campeão. Posta-se no Facebook a satisfação por ter o
território tão bem representado por tal MC. Assim como
é comum que o MC faça referência a seu local de origem

29
RIO DE RIMAS

durante a rima, geralmente ressaltando a grandiosidade


do lugar. Trata-se de um prêmio maior para o MC e para a
comunidade.

A premiação varia: livro, camisas, bonés, dinheiro arreca-


dado com a plateia... pouco importa. Ainda que haja bata-
lhas que premiem com um valor monetário significativo, a
fama, os comentários em torno do campeão, a popularida-
de, a “moral”, parecem valer mais do que qualquer prêmio
material. Haja vista que a mais famosa batalha, a do Real,
cobra de cada batalhador o valor de R$1,00, arrecadando
R$16,00, que são oferecidos ao grande vencedor da noite.
Aliás, foi esta cobrança (R$1,00 por participante) que no-
meou a batalha — Batalha do Real.

Apesar de os critérios para participar das batalhas depen-


derem bastante do apresentador, que incentiva alguns e
rejeita outros, é possível resumi-los assim:

Critérios Batalha de Sangue Batalha do


Conhecimento/
Ideias/Imagens
Xingar a mãe do Não Não
adversário
Ofender moralmente o Sim Não
adversário
Palavrões Sim Não

Toque físico intimidador Não Não

Toque físico pra realçar Sim Sim


detalhe
Xenofobia Não Não

30
cap.03 A tradicional, a tradicional... Batalha do Real!

A Batalha do Real, a tradicional e mais famosa batalha ca-


rioca, é a mais procurada pelos MCs que desejam se apri-
morar e se notabilizar. Acontece no primeiro sábado do
mês, na Lapa, em local próximo ao Circo Voador, e inicia-se
em torno das 19h. Segundo Aori Sauthon, “a Batalha do
Real ativou a praça com hip-hop. Várias galeras aparece-
ram, como Cone Crew, Funkero, Tony Mariano. Hoje, temos
Ghetto, Buddy Poke, Allan Benevenutto...”.12 Para que um
MC ganhe fama na batalha de rima, tem que passar pela
Batalha do Real, a grande escola e vitrine. Fale-se bem ou
mal, não conheço outra plataforma tão representativa, para
os rimadores, quanto a Batalha do Real. Haja vista que cen-
tenas de pessoas lotam o espaço — uma praça ao lado di-
reito do Circo Voador, a praça da Batalha do Real. Em dia de
Batalha do Real, as redes sociais “bombam” com comparti-
lhamentos, curtidas e confirmação de presença no evento.
Para o cenário da rima, a meu ver, é a grande festa!

Este ano, por conta dos dez anos de Batalha do Real, a moda-
lidade de seleção dos participantes foi alterada. Até recente-
mente, os 16 primeiros inscritos no dia, no local da batalha, é
que participavam. Agora, há uma reserva de 11 vagas para os
vencedores de batalhas que realizam-se nas rodas/batalhas
semanais. Ficando assim a distribuição das vagas:
1. Batalha do Real 10 anos
2. Batalha da Caixinha — Marechal Hermes
3. Batalha do bairro de Fátima — Centro
4. Movimento Enraizados — Morro Agudo
5. Quarta Under — Jacarepaguá
6. Roda Cultural da Ilha — Ilha do Governador
7. Roda Cultural do CDC — Petrópolis
8. Roda De São Gonçalo — Batalha do Tanque
9. Roda de Rima de Vila Isabel — Vila Isabel
10. Roda de Rima de Volta Redonda — Volta Redonda
11. Roda Racional da Tim Maia — Recreio
12 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ANKtz1h3EXo. 31
RIO DE RIMAS

Arte da Batalha do Real.


Crédito: Daniel Juca
32
PONTUAÇÃO
Ranking da Batalha do Real 2013
1° lugar – 75 pontos
MC´S 04/05 01/06 06/07 03/08 08/09 02/11 TOTAL
2° lugar – 55 pontos
PK 20 35 55 75 75 20 280
Semifinal – 35 pontos BUUDY POKE X X 75 05 X 75 155
Quartas de final – 20 pontos PRIMO 55 X 05 35 20 35 145
NAAN 20 75 05 35 X X 135
Primeira fase – 5 pontos CARLOS 75 05 20 20 X X 120
RWAVE 35 55 20 05 05 X 120
ALMEIDA X 05 35 X 35 20 095
XANDY X 05 X 50 05 X 060
AREN 35 X X 20 X X 055
DAYVISON X X X X 55 X 055
BACTÉRIA (AM) 05 X 20 20 05 05 055
FREEJAH X X 05 05 20 20 050
SURI X X X X X 50 050
CASSIO 05 20 05 05 05 05 045
MELODIA X X 05 X X 35 040
PERREIRA 05 X 35 X X X 040
DMIC (GO) X 35 X X X X 035
OLDI X X X X 35 X 035
VIDAL X X 05 X 20 05 030
SNAIDER X 20 05 X X X 025
DECO 20 X X X X X 020
M.SOUZA X 20 X X X X 020
OIK X 20 X X X X 020
PINGUIM X X X 20 X X 020
BETINHO X X X X 20 X 020
NATAN X X X X X 20 020
BART 20 X X X X X 020
GPO 05 X X 05 X X 010
ARAMIS 05 X X X X X 005
XD 05 X X X X X 005
22 X 05 X X X X 005
ELIX X 05 X X X X 005
TAKASSU (VR-RJ) X 05 X X X X 005
DROP + SINISTRO X 05 X X X X 005
BIG EDDY X X 05 X X X 005
99 05 X X 05 X X 005
KAUN (SP) X X 05 X X X 005
GARCEZ X X X 05 X X 005
ZAG X X X 05 X X 005
TOD X X X 05 X X 005
EMISSÁRIO X X X X 05 X 005
JAMAL X X X X 05 X 005
TL X X X X 05 X 005
WILLY X X X X X 05 005
RAMON TABET X X X X X 05 005
GUGA X X X X X 05 005
ALAN KARTZ X X X X X 05 005
MC 2B X X X X X 05 005
MAGNATA 05 X X X X X 005
AND X 05 X X 05 X 005

FONTE: Liga dos MCs Brutal Crew 33


RIO DE RIMAS

Cesar Schwenk, organizador da Batalha do Real, explica o


novo processo de seleção de batalhadores e os critérios de
escolha das batalhas:

A gente acompanha a cena e escolhe as batalhas mais an-


tigas e representativas da cultura. Começou com a Quarta
Under e Enraizados, e este ano incluímos outras oito. Isso
descentraliza, fortalece as batalhas locais e aumenta o
trânsito na cidade, gerando interesse do MC e do público
em circular.13

As cinco vagas restantes são disputadas acirradamente. Os


candidatos chegam cada vez mais cedo. Diz-se que na sexta
à noite já tem candidato no local, aguardando o início das
inscrições, que só ocorre no sábado à tarde.

Na edição de agosto, perguntei ao MC M Souza, batalhador


famoso e dono de uma rima sofisticada, por que não tem
participado. Respondeu: “Eu trabalho. Não posso chegar
aqui na sexta, dormir aqui.” Mas Cesar Schwenk diz: “Os
batalhadores ainda não chegam na sexta-feira. Mas às 7h,
8h do sábado já tem candidato lá.”

Há quem afirme que a tendência é de que as 16 vagas sejam


ocupadas, gradativamente, por vencedores das batalhas
realizadas pelo estado, o que é visto como um incentivador
das rodas e batalhas, já que os interessados em participar
da maior vitrine de batalhas não teriam outro meio de che-
gar ali, a não ser participando de batalhas realizadas por
todo o estado do Rio de Janeiro. Por esse motivo, gosto da
ideia de que as vagas sejam para participantes de outras
batalhas. Todavia, Cesar Schwenk diz que não há a intenção
de alterar este formato.

As batalhas costumam reunir uma plateia maior do que a


das rodas. Creio que por serem menos numerosas e, obvia-
mente, por promoverem uma divertida e acirrada disputa.

13 Entrevista realizada em 9/8/2013.


34
04.
Circuito
Carioca de
Ritmo e Poesia,
o CCRP

35
RIO DE RIMAS

Arte do CCRP.
Crédito: Gustavo Chs
36
cap.04 Circuito Carioca de Ritmo e Poesia,o CCRP

O Circuito Carioca de Ritmo e Poesia,14 conhecido como


CCRP, é um projeto do coletivo Comando Selva, criado pelo
ambulante cultural Marcus Vinícius de Aquino Santana, o
MV Hemp, e pelo rapper Pedro Leib Rozemberg, conhecido
como Dropê Comando Selva. O objetivo maior do circuito é
a ocupação das ruas, por meio da promoção do encontro de
artistas sem reconhecimento pela mídia e outras instâncias
tradicionais de legitimação.

O coletivo Comando Selva foi criado em Bangu, zona oeste


carioca, reunindo profissionais de diversas áreas — como
advogados, músicos, ambulantes culturais, atores, líderes
comunitários, DJs... Há, por parte de seus mentores, um
forte investimento na cultura urbana e na propagação de
saberes.

De acordo com Dropê Comando Selva, o coletivo prioriza a


multiplicação: como a Roda de Rima da Lapa (mencionada
anteriormente) tinha frequentadores com potencial para
levar adiante o projeto de reunir interessados na rima, foi
proposto a alguns jovens — Djoser Botelho (atualmente o
responsável pelas ações do CCRP junto ao poder público),
Rodrigo Astronanuta, Sahel Klibre, Nissin Oriente, entre
outros — que desenvolvessem rodas de rima nos seus bair-
ros, a fim de desconstruir a ideia da Lapa como “o lugar do
rep”. Ou seja, qualquer lugar poderia ser lugar do rep; logo,
um bom lugar para a rima. Depois de meses, com algumas
rodas de rima acontecendo sistematicamente, nasceu o
CCRP.

As rodas multiplicaram-se, chegando a oito bairros, o que


sugeriu a Dropê Comando Selva a criação da designação
Circuito Carioca de Ritmo e Poesia — tendo em vista que já
se espalhavam pela cidade, organizadas em dias diferen-
tes (para contemplar um número maior de frequentado-

14 Em 6 de setembro de 2012, o prefeito Eduardo Paes assinou o Decreto nº


36201, que considera as rodas culturais do CCRP um programa cultural da cida-
de do Rio de Janeiro. Mas Djoser Botelho frisa que esta luta por reconhecimento
durou cerca de três anos. 37
RIO DE RIMAS

res), e formavam um conjunto expressivo da rima carioca.


Todavia, o projeto crescia em número de participantes e de
arte. Com o tempo, a rima deixou de ser a única expressão
do movimento e Djoser, organizador da oda de Botafogo, a
primeira a crescer e ganhar notoriedade, cunhou o termo
roda cultural, por considerá-lo mais adequado à pluralidade
artística que as rodas logo revelaram.

E qual é a singularidade do CCRP? “É uma rede indepen-


dente de produção, pesquisa e inovação cultural que estru-
turou um conjunto de encontros semanais — denominados,
antes, rodas de rima, e agora rodas culturais — em praças e
espaços públicos de diversos bairros do Rio de Janeiro.”15 O
CCRP determina os seguintes critérios para absorver uma
roda: ocupação semanal do espaço público; revitalização do
mesmo; ao menos um ano de existência; contato com re-
presentantes da prefeitura local, a fim de obter autorização
para o evento.

Trata-se de um grande encontro de jovens unidos pela ideia


de ocupar lugares públicos e levar diretamente arte e cul-
tura às pessoas, de forma horizontal e interativa. Com a
participação de poetas, músicos, grafiteiros, artistas plásti-
cos, forma uma grande rede cultural que une bairros como
Bangu, São Cristóvão, Lapa, Vila Isabel, Botafogo, Méier,
Jacarepaguá, Barra. E une pessoas de situação sociocul-
tural diferente, aproveitando-se de praças e ruas, propor-
cionando lazer e consumo cultural sem a necessidade de
gastos (a entrada e participação são gratuitas e os produtos
vendidos são comercializados quase pelo preço de custo).16

Candido (2006, p. 155) considera a criação da Faculdade de


Direito e das repúblicas de estudantes fatores “decisivos”

15 Trecho do documento enviado, pelo CCRP, à Prefeitura — intitulado “Propos-


ta inicial ao Programa de Desenvolvimento Cultural Carioca de Ritmo e Poesia”.
16 A Roda de Bangu, atualmente, encontra-se parada, por ter sofrido repressão
da milícia. A Roda de Vila Isabel também esteve impedida de se realizar por al-
guns meses, por imposição da polícia, segundo informação dos frequentadores
das praças e dos organizadores do circuito.
38
cap.04 Circuito Carioca de Ritmo e Poesia,o CCRP

para o surgimento de uma expressão literária em São Pau-


lo, no século XIX:

Interessa-nos aqui, justamente, apontar algumas manifes-


tações desse espírito de grupo na literatura; mostrar como
a convivência acadêmica propiciou, em São Paulo, a forma-
ção de agrupamentos, caracterizados por ideias estéticas,
manifestações literárias e atitudes, dando lugar a expres-
sões originais.

Ainda que congregue uma multiplicidade de membros que


nem sempre comungam dos mesmos propósitos, o CCRP
propõe, em sua base de formação, o debate estético, a divul-
gação de trabalhos de artistas fora do mercado, o estímulo
a novos artistas, uma participação mais próxima com os es-
paços onde estão inseridas as rodas culturais. As rodas, por
sua vez, exercem ainda o trabalho fundamental de integrar
jovens artistas em busca de aprendizado e reconhecimento.

Nuno DV — o mais famoso pichador carioca e artista que


investe na tendência do rep reflexivo — afirma sobre as ro-
das culturais:

Os grandes eventos não contratam novos MCs, por melho-


res que sejam. Eles levam MCs mais conhecidos, mesmo
que não sejam bons, mas que, pelo tempo de estrada, fi-
zeram um nome e ganharam público. Esse público, para
quem contrata, é o que vale, pois se reveste em bilheteria.
Vou às rodas por dois motivos: elas abrem espaço para os
novos, e eu sempre vou me considerar um novo MC; e por-
que o tipo de letra que eu faço não funciona em boate e
festinha; tem que ser ouvido por quem curte rep, pois é som
de reflexão. Nas festas, eu até vou, mas pelo cachê. Mas sei
que onde valorizam o que eu faço é nas rodas.17

17 Disponível em: https://www.facebook.com/nunodv?fref=ts. Acesso: 28/07/2013.


39
RIO DE RIMAS

Filipe Ret, rapper que leva multidões aos seus shows, que
tem, entre seguidores e amigos no Facebook, mais de 5000
pessoas, e que faz shows por todo o país, não pode ser tra-
tado, exatamente, como um artista underground ou um ini-
ciante. Entretanto, faz um trabalho incessante de divulga-
ção nas rodas. Quando se apresentou, em janeiro de 2013,
na Roda Cultural do Méier, reuniu cerca de 800 pessoas,
segundo os organizadores Don Allan Marola, Fabio Broa e
Fabricio Mello.18

Luã Medeiros (mais conhecido como Gordo Soldados da


Pista) organizador da concorrida Roda Cultural de São
Gonçalo, diz que os MCs desejam se apresentar nas rodas
culturais mesmo sem cachê, porque lá formam público e
vendem CDs. O espaço é usado também na busca por votos.
Luã diz que, em época de eleição, os políticos aparecem na
praça para angariar a simpatia dos eleitores da roda, que
reúne centenas de jovens.19

Assim, as rodas representam um lugar de apadrinhamento


e validação para o movimento rep — e não estão subordi-
nadas ao mercado, ao número de fãs ou ao tempo do MC na
vida artística. As rodas culturais, além de receberem enor-
me público — portanto um excelente meio de divulgação
e distribuição dos produtos artísticos —, formam, normal-
mente, uma assistência cuja participação não se restringe
ao consumo imediato da arte. Em sua maioria, formam um
grupo crítico, atento e fiel aos movimentos da arte urbana.

Não obstante ser nomeado de ritmo e poesia, o CCRP não


se prende a tais práticas, e estende suas interpretações da
arte para rodas de rima, de sons instrumentais, exposição
de grafite, de fotografia, batalhas de rima, xarpi, malabares
— todas as práticas ao mesmo tempo, coabitando o mesmo
espaço e interagindo. Não há eleição de um movimento: há
diálogo e harmonia entre as formas culturais.

18 Entrevista concedida à autora no dia 17/6/2013.


40 19 Entrevista concedida à autora em 7/8/2013, na Roda de São Gonçalo.
cap.04 Circuito Carioca de Ritmo e Poesia,o CCRP

Na maioria das praças onde as rodas culturais se realizam,


tem uma rampa de skate. Este é um dos esportes mais li-
gados a essa atividade cultural,20 embora outros esportes,
informalmente, possam ocupar o espaço, formando peque-
nas rodas.

O grafite está presente nas paredes ou exposto em pa-


péis presos em cordas, sobretudo quando há alguma co-
memoração nas rodas. A identificação entre grafiteiros,
pichadores, skatistas, rimadores, praticantes de slackline,
malabares e demais artistas que expõem nas rodas é de
uma intensidade talvez só explicada pela necessidade de
fortalecerem-se diante das inúmeras dificuldades da arte
urbana alternativa. São tribos que atuam juntas, nas reivin-
dicações, “no fortalecimento”.

Existe um investimento para que o movimento se configu-


re como uma teia que receba, cada vez mais, contribuições
de todas as expressões culturais, transformando a “poesia
da rua” em um movimento plural, que tem seus desdobra-
mentos no rep e em outras sonoridades e formas artísticas.
Ou seja, a rima foi o movimento iniciador. E por intermédio
dela formou-se um espaço cultural plural e fundamental
para a cidade. Fundamental porque, embora o espaço pú-
blico seja ocupado com arte sem que isso configure uma
exceção, o tipo de ocupação que as rodas culturais ofere-
cem é, sem dúvida, singular. E essencial para uma cidade
que invista na arte como elemento transformador e criador
de subjetividades, e que se deseja democrática.

Os encontros acontecem à noite e duram cerca de 4 horas.


Há, normalmente, algum artista convidado. Entretanto, o
recurso mic aberto possibilita que, mesmo numa noite de
apresentações “célebres”, qualquer artista, independente-
mente do gênero a que se ligue, ocupe o “palco”.

20 Na Roda de São Cristóvão, que acontece em uma enorme praça próxima à


Quinta da Boa Vista, há várias quadras de esporte. Talvez, por isso, a prática de
esportes durante a realização da roda seja mais forte nesta do que nas demais. 41
RIO DE RIMAS

Mapeamento das rodas culturais do Rio de Janeiro

Roda Cultural do Centro – CCRP • Bairro de Fátima • Sexta • 20h


Roda Cultural de Botafogo – CCRP • Praça Mourisco – Botafogo • Terça • 19h30
Roda Cultural de Bangu – CCRP • Praça da Guilherme – Bangu • Domingo • 20h
Roda Cultural da Freguesia – CCRP • Freguesia • Quarta • 20h
Roda Cultural de Manguinhos/São Cristóvão – CCRP
Biblioteca de Manguinhos • Segunda• 19h30
Roda Racional Tim Maia – Recreio – CCRP
Praça Tim Maia (Posto 12) – Praia do Recreio • Quinta • 20h
Roda Cultural de Vila Isabel – CCRP
Praça 7 – Praça Barão de Drummond – Vila Isabel • Quinta • 20h
Roda Cultural do Méier – CCRP • Mini Ramp do Méier • Quarta • 18h
Roda Cultural da Ilha do Governador
Pista de Skate do Aterro do Cocotá • Último sábado do mês • 18h
Roda Cultural do Pistão
Pista de Skate de Campo Grande • Domingo - Quinzenal • 15h
Roda Cultural de Olaria • Olaria • Quinta • 20h
Roda Batalha do Bairro de Fátima
Praça do Bairro de Fátima – Rio de Janeiro • Sexta • 20h30
Roda Cultural do Rocha • Quadra do Rocha • Domingo • 19h
Roda Cultural de São Gonçalo
Praça dos Ex-combatentes, Paraíso – São Gonçalo • Quarta •19h30
Roda Cultural de Macaé • Pista de Skate do Parque da Cidade • Quinta • 20h
Roda de Rima da Cantareira • Cantareira – Niterói • Segunda • 20h
Roda Cultural de Itaboraí • Praça do Outeiro – Itaboraí • Quinta • 19h30
Roda Cultural de Piratininga
Rótula do Cafubá – Piratininga - Niterói • Sábado • 19h
Roda Cultural de Alcântara • Praça Chico Mendes – Alcântara • Sábado • 19h
Roda Cultural do Alto • Praça do Alto – Teresópolis • Domingo • 18h
Roda de Saquá • Praça Bem Estar – Ao lado do Clube Saquarema • Quinta • 20h
Roda Cultural do Engenho do Mato
Praça Irênio de Mattos Pereira – Engenho do Mato • Domingo • 17h

42
cap.04 Circuito Carioca de Ritmo e Poesia,o CCRP

Roda Cultural de Queimados


Praça dos Eucaliptos – Queimados • Sexta • 19h30
Roda Cultural de Cabo Frio • Praça da Cidadania – Cabo Frio • Sábado • 20h
Roda de Rima de Volta Redonda
Praça do Rap (Debaixo da Biblioteca) – Vila - Volta Redonda • Sábado • 19h
Roda Cultural de Mesquita
Praça da Telemar – Ao lado da Estação Mesquita • Quinta • 20h
Roda Cultural de Maria Paula • Trevo de Maria Paula • Sexta • 19h30
Roda Cultural de Rio das Ostras
Praça José Pereira Câmara (Praça do Centro) • Sexta • 21h
Roda Cultural do CDC
Em frente à Câmara dos Vereadores – Petrópolis • Quinta • 19h
Roda de Rima da Praça do Galo
Praça do Galo – Parque Fluminense - Duque de Caxias • Quinta • 19h30
Roda de Rima do Horto
Parque dos Patins – Lagoa - Rio de Janeiro • Quarta • 20h
Roda de Rima Pró-Cultura
Parque de Skate Nova Cidade – Rio das Ostras • Sexta • 19h
Batalha do Real • Lapa • 1º Sábado do mês • 20h
Batalha Movimento Enraizado
Morro Agudo – Nova Iguaçu • 3º Sábado do mês • 18h
Quarta Under • Jacarepaguá • Quarta • 19h
Batalha da Caixinha • Praça Montese – Marechal Hermes • Sexta •19h
Roda Cultural da PSK
Praça Padre Ambrósio – Tanque - Jacarepaguá • Segunda • 20h30
Roda Cultural Soul Pixta
Aterro de Cocotá – Ilha do Governador • Quinta • 18h
Roda Cultural do Jabour • Rua Raul Azevedo – Jabour • Segunda • 18h
Roda Cultural de Duque de Caxias
Praça Humaitá, Duque de Caxias • Sexta • 20h
Roda Cultural da Lagoinha • Praça da Lagoinha, 98, São Gonçalo • Terça • 19h
Roda Cultural de Trindade • Praça da Trindade • Sexta • 18h

FONTE: Facebook Rodas Culturais do RJ


43
RIO DE RIMAS

As oito rodas do CCRP, já mencionadas, foram pioneiras na


cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, por causa do sucesso
delas, pelo crescimento do movimento rep, e com o incen-
tivo do público e dos artistas, muitas outras rodas foram
surgindo na cidade. Há, atualmente, em torno de 40 rodas
catalogadas no grupo Rodas Culturais do RJ, no Facebook
(também mencionado anteriormente).21

A cada semana surge uma roda cultural ou mais, no mes-


mo modelo. No mês de junho de 2013, um dos membros
desse grupo, morador de Manaus, publicou o seguinte post:
“Satisfação, sou de Manaus, tô querendo fazer uma roda de
rima, queria saber os recursos que terei que usar, porque
será a primeira roda de rima manauara.” Em 22 de julho,
pouco mais de um mês depois, ele voltou ao grupo: Primei-
ra Roda de Rima Manauara (batalha) http://www.youtube.
com/watch?v=2eWivQze9uk.

Um dos primeiros rimadores com quem tive contato foi


Ygor Cub, na Roda de Botafogo. Na época, além de seu ta-
lento, sua declaração sobre a sua presença naquele espaço
me impressionou muito: “Eu estava passando, ouvi o som e
colei aqui por causa da rima.” Ygor Cub morava até recen-
temente em São Gonçalo. E foi lá que o reencontrei e soube
que ele está voltando para Minas Gerais, e formando uma
roda cultural em Contagem. “Já estamos indo para quarta
edição. A Prefeitura apoiou o movimento e a cada roda tem
mais gente participando.”22 Provavelmente há outras rodas,
em outros estados, embora não haja registro na internet,
até o momento.23

Como já disse, no mês de maio, com meus bolsistas, criei


um grupo aberto na rede social Facebook — o Rodas Cul-
turais do RJ. Mesmo que acostumada ao enorme sucesso
das rodas culturais e batalhas de rima, fiquei surpresa com

21 Disponível em: https://www.facebook.com/groups/618921451452511/.


22 Depoimento dado na Roda de São Gonçalo, dia 7/8/2013.
44 23 Há notícia de uma outra roda em Juiz de Fora, a Azorra.
cap.04 Circuito Carioca de Ritmo e Poesia,o CCRP

a quantidade de pessoas adicionadas, em poucas horas, e


com a intensa participação. A proposta do grupo é reunir
informações sobre esses eventos, tais como dia, horário,
local, organizadores. A partir daí, mapear as rodas do Rio
de Janeiro.24 Além dessa função, o grupo serve também
como meio de divulgação das rodas e batalhas, discussão
dos problemas da arte urbana, troca de experiência: é um
grupo em que só o que diz respeito a este tipo de arte urba-
na é postado.25

Contudo, logo percebemos que a tarefa de mapear as rodas


seria infinda, já que a cada semana surge uma nova roda/
batalha na cidade, no estado. E a cada semana, também,
esses eventos sofrem com repressão por parte da polícia,
da guarda municipal, não só na capital, mas em tantas ou-
tras cidades. Por conta dessa situação frágil da arte no es-
paço público, o grupo abriu-se, também, para postagens de
documentos, decretos, editais relativos à arte pública — ou
seja: qualquer material que possa instrumentalizar os or-
ganizadores, na disputa pelo espaço da arte nas praças do
Rio de Janeiro.

Dentre esses documentos, o Decreto nº 36201, assinado


pelo prefeito Eduardo Paes em setembro de 2012, é um dos
mais divulgados. Mesmo com validade apenas no municí-
pio do Rio de Janeiro, acredita-se que seja um instrumento
com algum poder de legitimação das rodas junto a outras
prefeituras.

24 Em princípio, pensamos em mapear as rodas, apenas. Entretanto, têm surgido


muitos eventos semelhantes a rodas culturais, que priorizam a batalha de rima.
Assim, decidimos, reunir as duas modalidades.
25 Uma das reclamações mais comuns sobre os grupos das rodas culturais, logo
debatida no meu grupo de pesquisa, diz respeito ao uso do espaço apenas para
reflexões sobre as rodas, e não para divulgação de shows, artistas fora das rodas,
e o que acontece com os demais grupos. 45
RIO DE RIMAS

Batalha do Tanque, em São Gonçalo.

Crédito: acervo pessoal

46
05.
As rimas do Rio

47
RIO DE RIMAS

Tem fogo no céu da cidade, não são fogos de artifício


É bom me ouvir, melhor não me subestimar
Pelo meu tamanho, cara, raça ou vício

Sou Gustavo, codinome Black Alien, patente primeiro-tenente


Vim vingar os moradores daquele edifício
Interestelar setenta e dois, esquadra número sete
Na Terra em reconhecimento, aqui desde o início
Se tem disposição, junte-se a mim
Senão, sai da minha frente e não atrapalha o meu serviço
De qualquer maneira, vou passar por cima
Na pressão que tem a rima, não há nada de pessoal nisso
Nem comédia, nem brincadeira
É alto o saldo de soldados mortos
Feridos, confinados a uma cadeira
O mal domina esse planeta, é preciso combatê-lo
Eu tenho minha caneta.

(Black Alien)26

O mais interessante neste movimento cultural das rodas e


batalhas é o fazer poético, que se realiza como um enorme
sarau, em que o artista pode improvisar, declamar um texto
originalmente composto para ser cantado, cantar sozinho
ou em dupla, com acompanhamento de instrumentos ou de
beatbox.

No final da década de 1990 e início dos anos 2000, a literatu-


ra marginal (termo cunhado pelo escritor Ferréz) instaura-
va, em São Paulo, uma nova tendência literária que, embora

26 Disponível em: http://www.vagalume.com.br/black-alien/america-21.html#ixz


48 z2cXrKSb5V.
cap.05 As rimas do Rio

tenha se expandido para outros lugares, notabilizou-se por


uma dicção bastante paulista. Não obstante o sucesso des-
sa tendência literária e seu lugar assegurado na literatura
brasileira, não houve ecos significativos na cidade do Rio de
Janeiro. O silêncio carioca, neste segmento, era inquietan-
te. As rodas de rima vêm fazer barulho na cidade, criando
uma literatura das ruas — em que o poeta pode ser um MC
famoso na cena alternativa, um passante atraído pela so-
noridade, ou um jovem iniciante, aspirante ao gênero rep.

MC CT, 18 anos, rimador desde os 14, conta que seu início


na rima aconteceu em uma roda de rima perto de sua casa.
Ele, que já se interessava pela cultura hip-hop e recebia in-
fluência de rimadores, como Rico Neurótico, Dropê Coman-
do Selva e Nissin Oriente, começou a participar das rodas,
passou a batalhar, e veio para o Rio participar da Batalha
do Real.

Sérgio Vaz, escritor e idealizador da Cooperifa, o mais famoso


sarau de São Paulo, em entrevista a Marcos Sanchez, atribui
o início dos saraus, na capital paulista, ao movimento rep:

Foi o hip-hop que começou a falar da periferia. Os rappers


falavam da sua realidade, dos seus bairros, assim como a
bossa nova falava de Ipanema e de Copacabana. As pessoas
tinham vergonha de falar que moravam na periferia. [Mas]
quem deveria ter vergonha é o governo e não a gente. O mo-
vimento negro começou a se assumir e o pobre também.27

Enquanto os saraus de São Paulo obedecem a um ritual


que tem no silêncio um dos protagonistas, em que a po-
esia é declamada sem nenhum acompanhamento, sendo
a expressão única e majestosa do evento, no Rio, o sarau
das rodas culturais pede barulho e divide a cena com outras
formas de arte — principalmente, com o ritmo.

As rodas culturais cariocas são fomentadas pela cena rep


alternativa. Quando iniciei a pesquisa buscava apenas en-

27 Disponível em: http://www.dw.de/literatura-marginal-brasileira-ultrapassa-


fronteira-das-periferias/a-168352490. 49
RIO DE RIMAS

tender o porquê da eleição da rima pelos jovens. Não tinha


conhecimento de que aqueles rimadores, em sua maior
parte, estavam ali por terem escolhido o rep. Ou seja, che-
garam ali com o hábito-paixão-vício já assentado pela cul-
tura rep, porque ouviam Racionais MCs, Sabotage, assis-
tiam ao Marechal, Dropê Comando Selva, Rico Neurótico,
MV Hemp, Gil Metralha e tantos outros talentos rimarem. O
próprio surgimento das rodas de rima deve-se à cena rep.

Isso explica o embaralhamento de rimadores diante da mi-


nha infalível pergunta, quando iniciei a pesquisa: “Isso é um
poema? O que você declamou na festa tal é um poema? É
letra de alguma música?” E as respostas, invariavelmente,
eram semelhantes: “É rep. Rep é ritmo e poesia. Eu só tiro
o som e declamo.”

Comentando com o rapper Dropê Comando Selva sobre a


inibição de alguns rimadores diante do mic,28 o que, por ve-
zes, torna as rimas nas rodas mais raras e as músicas mais
numerosas, ele me perguntou: “Mas você não considera a
música (no caso, o rep), rima?”

No Facebook há uma página — Literatura do Rap29 — que se


apresenta assim:

Fortalecendo a cultura rap. Curta a página e fique por den-


tro do que está rolando no cenário rap/hip-hop; entrevistas,
frases, downloads, músicas, vídeos e informações! 

Visitando a página, pode-se comprovar uma narrativa do rep,


pois é possível acompanhar o que está ocorrendo na música,
o que se pensa sobre determinado assunto, ler citações de
rappers e outros personagens relevantes, além de buscar e
dar apoio a manifestações. É uma crônica da cena rep.

28 MC Bola acredita que grande parte do sucesso das rodas de rima formadas
sob os Arcos da Lapa, com o fim do CIC, se deve à ausência do microfone, o que
favorecia a performance dos mais tímidos.
50 29 Disponível em: https://www.facebook.com/LiteraturadoRap?fref=ts.
cap.05 As rimas do Rio

Logo que me apresentei como uma professora de literatura


que investigava as rodas culturais, MC Marechal foi rápido
na pergunta: “Você acha que falta literatura nas rodas cul-
turais?” Situações que revelam o quão amplo é o conceito
de literatura, para os poetas de rua do século XXI.

A primeira década do século XXI foi especialmente prolífica


para a literatura de periferia, em São Paulo — hoje, com
absoluto reconhecimento e lugar na história da literatura
brasileira. Da cena literária de periferia no Rio, na mesma
época, não se tem notícia; despertou ano passado, com a
FLUPP. No entanto, pode-se afirmar que este silêncio não
existia na literatura urbana carioca, que, no início da década
passada, já gritava seus versos pelas ruas. O registro dessa
história pode ser encontrado no YouTube, nas redes sociais,
na memória dos jovens que ocupam as praças com atitude,
sons, cores, rimas e sentimento. Este último, o mais nobre
elemento defendido na cena poética urbana carioca.

Com certeza e com cerveja


Eu não ligo pra igreja
Eles mostram a imagem de Deus
branquinho pra que você veja
Mas com “nós” é diferente
nosso freestyle é da mente
100% entorpecente.
Te mostrar conhecimento?!
Foda-se essa merda do dinheiro que eles roubam lá dentro
Eu não preciso disso, eu sou a rua
Eu sou a humildade, cultura pras crianças, literatura.

(Essiele)30

30 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=m_l2DP84Upk.


51
RIO DE RIMAS

06.
Métrica,
ritmo
e rimas

52
cap.06 Métrica, ritmo e rimas

MC que é MC rima em qualquer tema


qualquer esquema, qualquer esquina vira cena de cinema
se destaca pelo que pensa, reconhece a recompensa
alcança as grandes mídias sem assessoria de imprensa.

(Nissin Oriente)

A poética das ruas não obedece a um único esquema: fala-se


de todo tipo de tema — embora os de conotação sociopolíti-
ca sejam mais aplaudidos; a métrica é variável, o estilo é li-
vre, e os MCs criam novas medidas, palavras, combinações.

Uma medida muito usada e facilmente perceptível é o 4x4.


Consiste em o rimador apresentar uma estrofe de quatro
versos, seguido por outro MC, que mantém a medida até
completarem 16 versos. A última palavra do quarto verso,
entretanto, deve aparecer no primeiro verso do outro rima-
dor. E assim alternam-se, independentemente do número
de rimadores. O 4x4, de acordo com Dropê Comando Selva,
“é uma forma da rima girar, de ser compartilhada”. Mas
esta é uma métrica combinada entre os rimadores, porque
há liberdade para a prática da rima, principalmente em se
tratando de freestyle.

Neste exemplo de freestyle, com a temática de traição, Cleo


inicia, propondo o tema, que é seguido por todos. A retoma-
da da palavra que aparece no último verso, pelo MC seguin-
te, no entanto, nem sempre se realiza.31
Cleo:
Essa é a realidade
Eu posso ser solteira
mas ter um relacionamento de verdade
sem falsidade, sem pilantragem, sem trairagem.

31 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=buX8psATmLE.


53
RIO DE RIMAS

Henrique:
Sem trairagem, não pode traição
porque o encontro de duas almas não é à toa não
é amor pela flor
o amor de todo compositor.

Taz Mureb:
Os “homi” adora fala mal de “mulé”
mas tá solteiro às vezes porque nenhuma te quer
Tu tá ligado qual é, chega mina de boné
e freestyle verdadeiro, mano, é muita fé.

Squizo:
Mas na moral, melhor tu parar de ser bobo
traição e perdão é igual traição de novo
é um recado, homem que não presta
mas tem mulher também que acha que
é santa mas tá escrito “puta” na testa.

Entretanto, em relacão ao tempo da rima, não há liberdade:


o MC deve rimar dentro do compasso, respeitando seu flow,
sua velocidade. Dependendo do ritmo do MC — mais veloz,
mais lento —, ele inclui mais ou menos palavras dentro do
verso. O importante é que a rima dele feche dentro da mar-
cação. Nem sempre isso ocorre, o que é uma falha para o
rimador. E como as bases nunca são indicadas de antemão,
no caso das batalhas o MC toma consciência delas na hora
da apresentação e, de imediato, tem que adaptar seus ver-
sos a ela.

54
cap.06 Métrica, ritmo e rimas

Tudo que eu fiz, sempre fiz pela METADE


Abandonei os estudos, não entrei na FACULDADE.

(Nuno DV)

O primeiro verso possui 11 sílabas poéticas, e o segundo,


14. Independentemente do tamanho do verso, o MC deve
fazê-lo caber na marcação. Às vezes, o MC dá uma acelera-
da na emissão do verso — é quase impossível identificar as
palavras nesse momento, tamanha a rapidez de enunciação
—, o que se chama flipada. Mas ainda assim, apesar da velo-
cidade acelerada com que apresenta as palavras dentro do
verso, ele respeita a marcação e conclui a rima no tempo
imposto... Ou seja, a batida é o elemento que controla o MC.
No mais, ele tem liberdade.

Nissin Oriente, neste freestyle, desenvolve seus versos com


liberdade: a rima se faz entre os dois primeiros; o terceiro
com o quarto, e com os quatro versos finais.

Aqui não tem nenhuma pose


fazendo um freestyle pra professora Rôssi
Que daqui a pouco vai ser PhD em cultura
Por isso a gente valoriza a literatura, a escritura
que a gente põe no papel
indo do inferno diretamente pro céu
Todo mundo é juiz, todo mundo é réu
Todo mundo é abelha que tá produzindo mel
[...]

Em relação à produção da rima, não há mesmo uma única


origem. MCs têm métodos e recursos diferentes — por ve-
zes, até antagônicos. Leitura, informação atualizada, vida
cultural, trabalho incessante sobre versos, seleção vocabu-
lar não exatamente formam as rimas das ruas.

55
RIO DE RIMAS

PK é um iniciante que tem investido na elaboração da rima:32

Eu leio livros e fico com o dicionário do lado. Todas as pa-


lavras que não entendo eu procuro nele. Às vezes eu fico
lendo o dicionário também. A rima é quase que um vício: eu
vou andando na rua e rimando com tudo. Para ter ideias eu
vejo filmes, desenhos e os jornais da TV.

Já Buddy Poke, 16 anos, bastante conhecido e respeitado


nas batalhas, explica de outra maneira sua produção:33

Produzir as rimas é algo muito diferente, algo muito má-


gico, muito fácil pra quem sabe e muito complicado pra
quem está de fora. Dizem que pra saber rimar é preciso
ler muitos livros, ler o dicionário, ter estudos em excesso
etc. Eu digo que não é verdade: nunca gostei de ler livros e
nunca fui muito chegado a dicionário. Rimas são mágicas, é
necessário criatividade, principalmente em batalhas. A agi-
lidade de pensar, a forma de expressar as rimas e o jeito de
praticar não têm explicação; simplesmente fluem...

Ghetto, o primeiro rimador a respeito de quem ouvi inúme-


ros elogios, nas ruas, e cujo vocabulário é incomum e so-
fisticado, declarou que sentia dificuldade em explicar sua
rima:34

Black Alien, MC Marechal, são referências para mim, por-


que falam de atualidades, são versáteis. Minha rima vem de
tanto ouvir música diversa. Não leio tanto, mas vejo filmes,
presto atenção às palavras de uma conversa, tenho a mente
aberta, aflorada. Fico atento ao que vejo nas ruas. Eu me
utilizo muito do rep pra escrita, mas todo o resto como o
beat e o flow vêm de influencia do rock, devido ao fato de eu
ter crescido numa casa de roqueiros.

32 Conversa com a autora pelo Facebook, em 11/8/2013.


33 Conversa com a autora pelo Facebook, em 11/8/2013.
34 Entrevista concedida à autora, por telefone, em 11/8/2013.
56
cap.06 Métrica, ritmo e rimas

Gil Metralha, unanimidade na rima, um dos recordistas em


vitórias nas batalhas, diz:

Eu sempre tive boas referências: Sabotage, Quinto Andar,


Planet Hemp, Chico Science... Eu trocava o livro e a televi-
são pela música. O que me dava títulos era minha esponta-
neidade, meu humor: não tinha vergonha de falar nada do
que pensava. E a galera achava engraçado.35

Para Nissin Oriente, poeta de uma sensibilidade, delicade-


za e competência ímpares, talvez o maior poeta da geração
que se criou assistindo aos mestres do CIC, o contato com a
arte da rima e do improviso se deu com

[...] os ditados do colégio. Eu lia, rapidamente, as palavras


que eram colocadas no quadro, decorava. Depois, foi com o
contato com a música: lia tudo, sabia as letras. Mais tarde
passei a brincar de rima. Eu nem sabia que havia batalhas.
Fazia só para me divertir. Até conhecer a Batalha do Real.36

Zumthor (2010, p. 39), em seus estudos de poesia oral, per-


formance e recepção, reconhece como realização poética
o produto dos transmissores orais — que, mesmo sem o
recurso da escrita, devem ser inseridos na lista de poetas.
Reconhecendo as distinções entre as duas formas literá-
rias, a escrita e a oral — especificidades apontadas com
esmero em seus estudos —, o teórico é assertivo na legiti-
mação da poesia oral:

A noção de literariedade se aplica à poesia oral? O termo


é indiferente: eu defendo a ideia de que existe um discur-
so marcado, socialmente reconhecível como tal, de modo
imediato. A despeito de uma certa tendência atual, descarto
o critério de qualidade, devido à sua grande imprecisão. É
poesia, é literatura, o que o público — leitores ou ouvintes —
recebe como tal, percebendo uma intenção não exclusiva-
mente pragmática: o poema, com efeito (ou de forma geral,

35 Entrevista concedida à autora em 13/8/2013.


36 Entrevista realizada pela autora em 26/5/2013. 57
RIO DE RIMAS

o texto literário), é sentido como a maior manifestação par-


ticular, em um dado tempo e em dado lugar, de um amplo
discurso constituindo globalmente, um tropo dos discursos
usuais proferidos no meio do grupo social.

Embora a maioria dos rimadores — rappers ou não — tenha


seus posts do Facebook bastante comentados, curtidos e
compartilhados, seja qual for o tema exposto, há uma dis-
tinção nos comentários, na efusão de seus fãs. Quando pos-
tam suas rimas, em segundos, além das curtidas, surgem
expressões como: “Mestre”, “Mandou”, “Representou”.

A respeito da lacuna que a mídia intenta reduzir, no caso


da “reprodução” da performance, Zumthor (2010, p. 275)
observa que:

[...] enquanto oral, não é jamais reiterável: a função de


nossa mídia é de suprir essa incapacidade. Uma reprise é
sempre possível; de fato, é excepcional que uma obra não
seja objeto de várias performances: ela não é forçosamente
nunca a mesma.

Mas, dentro do que o teórico chama de “falsa reiterabilida-


de”, há uma página no Facebook que seleciona os versos
que causam mais comoção entre o público, nos eventos. E,
ainda que de modo bastante incompleto, seja possível re-
viver, experimentar, através dos comentários, a euforia da
plateia, nenhuma tentativa de reprodução desta poesia oral,
por mais aprimorada que seja, dará conta da emoção que a
rima, mesmo simples, provoca no ouvinte ao vivo: “Mare-
chal falou/você não entendeu na missão/Flow não é porra
nenhuma/se não tem nada de informação.” (Naan). Esse
post recebeu comentários como: “Pesado!” e “Só quem
tava sabe como foi foda. Rs.” E outro: “Ele dança, ele anda,
mas minha rima destrói/Fica parado: é batalha de rima,
não batalha de B-Boy.” (Ghetto), seguido dos comentários:
“Kkkkkkkkkk. Ele é foda!” e “O melhor na minha opinião!”.37

37 Destacados da página: https://www.facebook.com/pages/Mestres-de-Cerim%


58 C3%B4nia/541964472481309?ref=ts&fref=ts.
cap.06 Métrica, ritmo e rimas

Os comentários são diferentes quando o rimador produz


posts de outra ordem que não a artística. Isso confirma a
situação excepcional do discurso do rimador.

A recepção desse trabalho como poesia pode ser melhor


compreendida pelo público tomando-se a performance
como o meio agenciador de tal literariedade, já que o ato
envolve locutor e ouvinte, numa relacão de dependência
para a “realização” poética. Ou seja: há um poeta que só
ganha existência, bem como sua arte, na medida em que
o público o completa, porque assim deseja. O ouvinte atua
como um coautor.

A componente fundamental da “recepção” é, assim, a ação


do ouvinte, recriando, de acordo com seu próprio uso e suas
próprias configurações interiores, o universo significante
que lhe é transmitido [...] Poderíamos, sem paradoxo, dis-
tinguir assim, na pessoa do ouvinte, dois papéis: o de recep-
tor e o de autor. (Zumthor, 2010, p. 258)

Nas rodas culturais e batalhas de rima, a participação do


público nunca se limita à contemplação passiva. Com gritos
de “Wow!”, braços levantados como se louvassem o artista,
acompanhamento do canto, formando quase uma segunda
voz, fazendo sinais com os braços, indicando que acabou a
disputa, fazendo barulho, entre outras intervenções, o pú-
blico assina a sua participação na obra. Por outro lado, ain-
da que seja ocorrência rara, algumas apresentações se de-
senrolam praticamente sem sensibilizar o ouvinte; mesmo
incitado pelo locutor e/ou apresentador, ele pode silenciar.
Portanto, é preciso haver uma “predisposição”, por parte
da plateia, para a realização da poesia. E esta predisposição
deriva de uma certa simpatia pelo locutor, de um apreço
por determinada rima, do percurso artístico do rimador, da
origem e, até mesmo, da idade do poeta.

59
RIO DE RIMAS

Talvez, por isso, Allan Benevenutto, grande vencedor de ba-


talhas, preocupe-se tanto com o desejo do público:

O MC fica rimando para o adversário e o espetáculo é para


o público. Se é para o público, vamos falar mais em cultu-
ra. Os MCs que se destacam no Brasil têm um estilo pró-
prio. Quando os MCs passarem a rimar mais para o públi-
co, a batalha de sangue será mais aceita e os MCs, mais
profissionais.38

38 Entrevista realizada pela autora em 18/8/2013.


60
07.
O público: um
júri passional

61
RIO DE RIMAS

Minhas observações das rodas culturais e batalhas de rima


me levam a afirmar que alguns MCs já chegam à disputa
campeões, tamanha a energia que a plateia emite ao ouvir
seus nomes. De certo que há aqueles que conquistam o pú-
blico na hora, mesmo sendo pouco conhecidos no Rio. En-
tretanto, a alguns rimadores, é atribuída uma “aura” que,
provavelmente, não só lhes confere, de antemão, a vitória,
como inibe a participação dos menos conhecidos. É uma
reunião muito semelhante a das torcidas organizadas de
futebol.

Ao identificar o impacto que as repúblicas de estudantes


exerciam sobre a produção literária no século XIX, Candido
(2006, p. 161) permite que façamos, hoje, uma identificação
análoga — a do papel das plateias na legitimação das rodas
e batalhas:

[...] as repúblicas constituíam o público — elemento básico


do funcionamento e na continuidade da literatura. No sécu-
lo passado, os estudantes de São Paulo tiveram este privilé-
gio pouco vulgar no Brasil de então: saída certa para a sua
atividade intelectual. Imagine-se o estímulo que decorria,
devido à ressonância entre os colegas, espécie de auditório
ou conjunto permanente de leitores, cuja opinião formava
pedestal para a evidência das obras na comunidade e even-
tualmente no país.

Nas rodas de rima das rodas culturais e, principalmente,


nas batalhas de rima, nem sempre vence o que faz a melhor
rima. É comum ouvir, na plateia, reclamações sobre o ven-
cedor. Isso porque vence o artista que o público escolhe; e
o público escolhe, via de regra, aquele por quem tem mais
empatia — não necessariamente quem se apresentou com
maior talento. Dá-se a vitória ao amigo do bairro, já que o
território é um elemento de negociação fortíssimo nessa
arte urbana. O vencedor não recebe sozinho o prêmio; car-
rega consigo, simbolicamente, o local de origem, de per-
tencimento. E isso funciona com uma afirmação do rimador

62
cap.07 O público: um júri passional

na sua localidade e nos grupos culturais que formam a cena


rep. Assim é comum, no dia seguinte à vitória, nas redes
sociais, o elogio ao vencedor estar entrelaçado ao elogio ao
bairro de onde ele vem. É a vitória do território. O próprio
rimador exalta o nome da sua comunidade durante a per-
formance, reivindicando um protagonismo na construção
da cena da rima local.

Assim, São Gonçalo viveu momentos de euforia ao ter seu


MC Naan vencedor da batalha que decidiu o representante
do Rio de Janeiro no Duelo Nacional de MCs. Os comentá-
rios no perfil de Naan no Facebook exibiam o orgulho do
território: “Caralho, mano, notícia do ano pro rapsg! Na hu-
milde!” e “Pow pow pow respeita Sg terra de forasteiro —
CAVERNA TÁ NO PÁREO!! Parabéns Naan.”

É comun, nesta arte de rua, que o MC associe ao seu nome


siglas que identificam o seu lugar — zona norte, zona sul,
zona oeste —, como Ghetto ZN. Assim como é constante o
grito de “ZN”, “ZS”, “ZO”, durante as apresentações dos MCs.

Em uma edição da Batalha de Imagem, em 2012, na Ca-


rioca, Fercley Alta Consequência iniciava a sua apresenta-
ção quando alguém gritou “Viva ZN!” No mesmo instante,
ele parou e falou: “ZN, não. Zona Oeste!” Fercley mora em
Bangu, e organizou a Roda Cultural de Bangu até a milícia
impedi-la de funcionar.

Não quero dizer que as vitórias sejam injustas, mas salien-


tar que os critérios de classificação passam mais por emo-
ções do que por avaliações técnicas. O flow, a rima rara,
a métrica são preteridos, por vezes, em favor da simpatia,
pertencimento, imposição da voz, ofensas, outros critérios
não poéticos. Gordo Soldados da Pista, apresentador da Ba-
talha do Tanque, na Roda Cultural de São Gonçalo, diz que
quando está apresentando uma batalha e percebe que a
plateia tende a dar a vitória para um MC por qualquer outro
motivo que não seja a melhor rima, manda um recado para

63
RIO DE RIMAS

64
Batalha do Real.

Crédito: acervo pessoal

65
RIO DE RIMAS

o público, chamando sua atenção para a seriedade que se


deve ter na avaliação.39

Na Batalha do Real, edição de julho 2013, houve a apre-


sentação de um menino de 12 anos, o MC Melodia. Além
de talentoso, o menino é carismático, ousado e tem uma
performance envolvente. Ele disputava com um MC extre-
mamente bom, RWave. Percebia-se que o público estava
emocionado com a atuação do menor, inclusive o próprio
apresentador da batalha, MC Funkero. Isso levou a dispu-
ta ao terceiro round. RWave ganhou, então, mas com pe-
queníssima margem de diferença. Acredito que isso tenha
ocorrido mais pela empatia do público com o menino do que
pela qualidade que ele apresentou na rima.

Acompanhei os eventos de rima por muito tempo, apenas


como observadora. Não me manifestava, gritando, aplau-
dindo, nem mesmo quando considerava mágica a atuação
do MC. Nunca participei das pesquisas no Facebook —
“Quem você acha que vai ganhar a Batalha tal?” Não que-
ria, de repente, ter problemas com os rimadores, quase
todos devidamente contatados para entrevistas. Aos pou-
cos, conhecendo mais amiúde os rimadores, tantas vezes
me flagrei torcendo por certos MCs, silenciosamente; e
convidando amigos para verificarem as performances des-
ses artistas. Por fim, depois de mais de um ano envolvida
com batalhas e rodas de rima, às vezes, me flagro gritan-
do, aplaudindo — ou seja: votando em um MC. E mais: nem
sempre é o MC autor da melhor rima. Muitas vezes, meu
voto é levado por questões outras que não a rima perfeita
que tanto prezo.

Certa vez, um organizador de roda cultural inscreveu-se


numa batalha. Eu, que o admiro pela inteligência, militân-
cia e performance, fui assistir à batalha, torcendo por ele
— que, inclusive, havia me confidenciado desejar mostrar
para a garotada da plateia que havia outras formas de rimar
sem ser “sanguinárias”. O duelo de que ele participou foi

66 39 Entrevista concedida à autora em 7/8/2013, na Roda de São Gonçalo.


cap.07 O público: um júri passional

considerado o melhor da noite, mas ele foi eliminado. Eu


quis, naquele momento, abandonar o evento, por conside-
rar injustíssimo o resultado. Eventualmente, sou também
tomada pelas mesmas paixões que arrebatam a plateia que
pesquiso.

67
RIO DE RIMAS

08.
“Tua rima
é decorada!”:
ofensa maior

68
cap.08 “Tua rima é decorada!”: ofensa maior

Improviso que não é decoração


é de coração.
(Dropê Comando Selva)

Além da decisiva contribuição ao resultado, a plateia tam-


bém colabora significativamente com as rimas. A arte do
improviso é bastante devedora aos estímulos do público.
Durante o freestyle, de repente, uma roupa, um penteado,
uma careta, alteram o percurso da rima, tornando o es-
pectador um coadjuvante do rimador: “Eu era fissurado!
Rimava tomando banho, na escola, na rua. Via um ônibus,
cachorro, saco de lixo e rimava sobre aquilo.”40

Mas trata-se de uma arte geradora de polêmica. Dizer que a


rima do MC “é decorada” é um insulto grave neste meio. E o
limite entre o preparado, o organizado e o decorado é tênue.
Por isso, quanto mais referências ao cenário — público, ad-
versário, situações, fatos inusitados acontecidos durante a
apresentação do MC —, menos decorada será considerada
sua rima. E isso é mais comum nas rodas, onde o MC está
rimando de brincadeira. Ainda que as rodas de rima sejam
a escola de rimas, lá a descontração é total, não há regras
fixas, o rimador pode errar, parar de repente, o público
em torno ri, debocha, mas é uma ambiente familiar. Já em
eventos de disputa, não.

Improviso vem da alma. E quando eu rimo, parceiro, eu sou


um canal divino espiritual: literatura marginal a servir a e a
salvar... (Rico Neurótico)

Por outro lado, a rima é classificada como decorada, quan-


do é considerada muito boa. E isso deveria equivaler a um
elogio para o MC. Mas é motivo de desentendimentos, char-
ge, comentários nas redes sociais, ou seja, é o tipo de men-
ção que macula a imagem do rimador. Entretanto, mesmo
raramente, a ofensa pode receber uma outra leitura:

40 Entrevista com MC CT, do grupo Caixa Baixa, concedida à autora em 7/5/2013.


69
RIO DE RIMAS

PASSANDO PRA AGRADECER UNS 2 ou 3 carinha do


YOUTUBE, QUEM TEM CORAGEM DE DIZER QUE EU MAN-
DEI ALGUMA RIMA DECORADA. 

Ao contrário dos outros MCs, eu gosto quando o cara fala


que eu decorei.

ISSO PROVA QUE CHEGUEI AO NÍVEL DE FREESTYLE EM


QUE O OUVINTE NÃO ACREDITA QUE EU INVENTEI NA
HORA.

ISSO É MUITO BOM!!!!

(Autor desconhecido)

Todos os rimadores entrevistados — e minhas observações,


nas rodas de rima e batalhas, comprovam — carregam con-
sigo algumas estruturas que são usadas comumente: al-
gumas palavras e estrofes adaptáveis a qualquer situação,
que farão parte de qualquer espetáculo do MC. Novamente
é MC CT que afirma: “O dia em que o MC não está com ins-
piração, vai repetir o que já falou, o que o outro falou. Ele
não produz sempre coisas novas. Todo MC, uma hora, vai
repetir.” E há palavras/expressões infalíveis nos discursos
do MCs, como “se liga”, “proceder”, “tá ligado”, “na moral”,
“papo certo”, “na humildade”, “mando no improvisado” —
recordistas nos encontros de rima e, às vezes, comprome-
tedoras da rima de qualidade.

Além da polêmica sobre as expressões prontas, há estru-


turas na rima do MC que, com frequência, não convencem
como improviso. O excelente freestyleiro Nissin Oriente ten-
ta explicar a diferença entre a pesquisa vocabular e a rima
pronta:

70
cap.08 “Tua rima é decorada!”: ofensa maior

Sempre tinha sessões maneiras de improviso com a galera


do Comando Selva. Essa galera tem um entendimento alu-
cinante do movimento. Eu ficava com eles brincando e de-
senvolvendo a arte. Porque pra rimar, o MC normalmente
pesquisa. Todos os MCs de batalha têm um trecho prepara-
do. Mas não pode ser decorado; decorado é fake! 41

PK, MC iniciante e já campeão de batalhas, confidenciou, a


respeito das rimas prontas:

Quando eu improviso pela rua não uso, mas nas batalhas eu


já levo algumas ideias formadas. Todo MC tem suas rimas
de suporte, embora o que o faça ganhar a batalha seja a
resposta — e esta não tem como ser decorada, pois é feita
na hora.42

Assim, o discurso, em quase sua totalidade, é construído


no momento. E para isso, além do repertório do locutor, os
signos captados entre o público são de grande auxílio.

41 Entrevista realizada pela autora em 26/5/2013.


42 Conversa com a autora pelo Facebook, em 11/8/2013. 71
RIO DE RIMAS

09.
Manifestação
da literatura
carioca

72
cap.09 Manifestação da literatura carioca

Como os encontros ocorrem diariamente e possuem um


público diversificado e fiel, favorecem e incentivam uma
enorme poética, por meio do freestyle, das rodas e bata-
lhas de rima, aponto este movimento como uma recente e
criativa expressão literária carioca; ou seja, uma tendência
notável entre as inúmeras possibilidades de fazer literário
atuais:

A lua é minha companheira, não vivo na solidão


Meu perfume exala amor, sexo e sedução
Flui na imaginação do mais nobre cidadão
Libido na intenção: 12h de paixão!

(Rico Neurótico)43

Em “A literatura na evolução de uma comunidade”, Anto-


nio Candido (2006, p. 147) diz que “se não existe literatura
paulista, gaúcha ou pernambucana, há sem dúvida uma li-
teratura brasileira manifestando-se de modo diferente nos
Estados”. E as rodas culturais cariocas são, nos últimos
anos, o lugar especial de manifestação de uma literatura
carioca e urbana.

Segundo Candido (2006), para haver literatura, é necessária


uma congregação, grupo formal com afinidades, um estilo,
um sistema de valores que delineie a produção, ressonân-
cia e herança. As rodas cariocas, à exceção deste último
aspecto — obviamente não se pode falar em herança, no
sentido proposto por Candido, dado o recente surgimento
do circuito —, apresentam os demais elementos formado-
res de uma expressão literária.

Contudo, até mesmo a herança, de modo sutil, pode ser ve-


rificada, tendo em vista que os MCs mais novos apontam os
mais antigos como referências, como mestres. Nomes como
Papo Reto, Dropê Comando Selva, Fabio Beleza, Gil Metra-
lha, Marechal, MCs que, nos anos 2000, indicavam a direção
do rep carioca, são comumente citados pelos MCs iniciantes.
43 Disponível em: https://www.facebook.com/riconeurotico?fref=ts. 73
RIO DE RIMAS

Percebo três gerações/referências para os rimadores: os


nomes citados acima são parte da velha guarda; depois, há
Allan Benevenutto, Nissin Oriente, Aramis, Ghetto, M Sou-
za, intermediários; e Buddy Poke, PK, CT, TK, Naan, entre
outros mais jovens, que estão ajudando a fomentar a nova
cara da cultura rep carioca. Todos convivem com o máximo
respeito e admiração. Entretanto, ao comentar sobre es-
sas gerações, alguns MCs discordaram do lugar que lhes
é conferido, por se considerarem ainda aprendizes: “Eu me
considero da última geração, porque tô rolando agora. Há
quatro anos, ninguém me conhecia.” (Ghetto).44

Vejamos: as rodas constituintes do CCRP possuem, no mí-


nimo, um ano de existência. Cada roda tem, na organização,
dois ou três gestores e uma média de público em torno de
100 a 300 pessoas por noite. Estas rodas realizam-se se-
manalmente e têm, em cada edição, a produção da poesia
em tempo real, ou a promoção de uma rima elaborada an-
teriormente. Em depoimentos, vários MCs afirmam que co-
meçaram assistindo a outros MCs e, por se sensibilizarem
com o rep, passaram a treinar, assistir a vídeos, ler, buscar
um repertório para participar das apresentações. Nem to-
dos os que desejam rimar chegam às rodas e batalhas já
com disposição para tal.

MC M Souza, quando indagado a respeito do grupo a que se


sentia ligado, disse:45

Eu tive meus primeiros contatos com o rep em 2005, com


essa galera aí que você citou primeiro. Tudo que eu aprendi
e minhas influências vêm dessa geração mais antiga mes-
mo. Digamos que essa segunda geração que você cita foi
o momento em que eu decidi botar mais na prática todo
aprendizado passado anteriormente!

44 Entrevista concedida à autora, por telefone, em 11/8/2013.


74 45 Depoimento dado à autora, via Facebook, em 10/8/2013.
cap.09 Manifestação da literatura carioca

Ainda, o fazer social — a preocupação verificada na pro-


dução poética e na organização do evento, na ocupação do
espaço público de forma democrática, no acesso à arte por
todos, na participação indistinta dos artistas, entre tantas
outras questões sociais — é um aspecto singular, que não
pode ser desconsiderado na proposta deste movimento
como expressão literária, urbana, carioca. Ocorre, portan-
to, um antes impensável encontro de parnasianos e moder-
nistas, nas ruas do Rio de Janeiro:

[...]
Foi assim no começo
eu aprendi com os tropeços
Adquiri experiência,
sei bem o que eu mereço
Porque talento é do berço,
do esperma até os avessos
Não tô lançando CD,
tô preparando arremesso
Não tô quebrado com gesso
nem derrotado na lona
Tô preparando o ataque
e várias noites de insônia.
[...]

(M Souza)

75
RIO DE RIMAS

10.
Quando
parnasianos
e modernistas
se encontram

76
cap.10 Quando parnasianos e modernistas se encontram

Artista sem comprometimento sociocultural,


pra mim, é egoísta.

A arte vem da consciência coletiva,


da troca e vibração humana. 

É você dando sua participação para um TODO.

(Dropê Comando Selva)

No final do século XIX conviviam, no Brasil, dois movimen-


tos literários: Realismo/Naturalismo e Parnasianismo —
este último, na poesia. Enquanto o primeiro propunha en-
faticamente uma arte com olhar crítico sobre instituições
e sociedade, não se furtando a apresentar as mazelas da
vida urbana, o cinismo, a impotência dos homens comuns
diante do poder instituído, ente outras denúncias, o último
propunha o belo como elemento fundamental da arte. Os
parnasianos buscavam o rigor métrico, a forma perfeita, o
vocábulo incomum, a rima rara, o distanciamento da reali-
dade; uma “arte pela arte”.

Não à toa, Profissão de fé, de Olavo Bilac, é o poema que


melhor sintetiza a proposta do poeta parnasiano:

Invejo o ourives quando escrevo:


Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo 
Faz de uma flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara 


A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara, 
O ônix prefiro.

77
RIO DE RIMAS

Por isso, corre, por servir-me, 


Sobre o papel
A pena, como em prata firme 
Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem, 


A ideia veste:
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem 
Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima 


A frase; e, enfim, 
No verso de ouro engasta a rima, 
Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina, 


Dobrada ao jeito 
Do ourives, saia da oficina 
Sem um defeito:

E que o lavor do verso, acaso, 


Por tão sutil,
Possa o lavor lembrar de um vaso 
De Becerril.

E horas sem conto passo, mudo, 


O olhar atento,
A trabalhar, longe de tudo 
O pensamento.

78
cap.10 Quando parnasianos e modernistas se encontram

Porque o escrever — tanta perícia, 


Tanta requer,
Que oficio tal... nem há notícia 
De outro qualquer.

Assim procedo. Minha pena 


Segue esta norma,
Por te servir, Deusa serena, 
Serena Forma!

Nos anos 2000, nas ruas do Rio de Janeiro, surge um grupo


cuja comparação com os poetas parnasianos é inevitável:
os rimadores das rodas e batalhas. Entender a paixão pela
rima é complexo. A relação com o rep — ritmo e poesia —
não parece suficiente para justificar que um grupo numero-
so de jovens ocupe as ruas da cidade para fazer um frees-
tyle, participar de uma batalha de rima, rimar em pequenas
rodas, sem compromisso, mas com paixão e primor:

[...] que Deus me livre das maldições do sucesso,


das ilusões do progresso,
das exclusões do acesso,
das confusões do processo,
das citações em excesso...

(Nissin Oriente)

MC CT explica o preparo para a rima:

De tanto rimar em qualquer situação, eu fui ganhando voca-


bulário para a rima. Por exemplo, você começa a rimar e fala
uma palavra: dentista. Você não sabe o que vai rimar com
dentista. Depois de um tempo, de tanta rima que fez, para
toda palavra você vai saber pelo menos três que rimam. Já
está tudo na sua cabeça, de tanto que você treinou.46

46 Entrevista realizada pela autora em 7/5/2013. 79


RIO DE RIMAS

Muitos rimadores afirmam que o exercício da rima nas


rodas é essencial para o desenvolvimento do trabalho do
rep. Entretanto, é muito comum encontrar rimadores que
não têm a pretensão de cantar rep. Bruno Rafael, pichador
conhecido como ÃO, frequenta rodas culturais e arrisca-se
nas rimas, mas declara não sentir vontade de fazer rep.

O desejo da estrofe cristalina, do lapidar constante da rima,


é o único ponto de encontro de rimadores cariocas do sé-
culo XXI com parnasianos do século XIX. Muito diferente-
mente de buscar um movimento que se interesse apenas
pela rima perfeita e que fale somente para a elite letrada,
os parnasianos cariocas deste século preocupam-se com o
social, com os descaminhos da cidade, têm um posiciona-
mento político mais à esquerda e não se furtam de abordar
toda a temática sócio-político-cultural em suas composi-
ções. As rimas precisam ecoar!

O movimento modernista, datado do início do século XX,


propunha, ao lado da liberdade formal, maior conscientiza-
ção crítica, valorização da cultura brasileira, pesquisa esté-
tica e cultural, reposicionamento das tradições, destituição
dos valores acadêmicos e parnasianos, ironia, paródia, va-
lorização do falar brasileiro...

Os que não sabem ler me viram, distinguiram o coração


Mensagem clara de que a tropa precisa tá em formação
Precisa da informação, mas precisa pra que no fim
Possa provar que as bala vindo não estão tão
perdidas assim.
(“É a guerra Neguim”, MC Marechal)

E festa também: “Modernismo é o movimento mais alegre


e jovial da nossa literatura, — manifestado no próprio com-
portamento de seus protagonistas, na sua furiosa ânsia de
diversão.” (Candido, 2006, p. 172). Aqui, nas praças, entre as
rimas elaboradas exaustivamente e a preocupação social,
há um feliz encontro que a história da literatura brasileira
80
cap.10 Quando parnasianos e modernistas se encontram

não poderia prever: parnasianos e modernistas — no mes-


mo artista, na mesma roda, na mesma festa.

Nas rodas, não há “parnasiano aguado” nem “máquina de


fazer versos”. Há trabalho por uma rima bela e, de prefe-
rência, social. Afinal, nenhum gênero musical brasileiro en-
trecruza melhor a rima e o social do que o rep!

MC Papo Reto começou a rimar aos 12 anos, fazendo funk.


Em 2003, com 23 anos, foi campeão da Primeira Liga de
MCs. Admirado e respeitado pelos rimadores, o rapper,
que desenvolve seu trabalho no Brasil e na Europa, defi-
ne assim o seu percurso campeão nas batalhas: “Tive uma
educação muito rígida. E isso foi um diferencial nas minhas
rimas. Tinha polidez, não falava palavrões. Eu fazia rimas
com conteúdo, com vocabulário. Outros rimadores chega-
vam lá e soltavam só palavrões, não tinham vocabulário.”
Além de rimador-referência para os novatos, Papo Reto faz
parte do coletivo Comando Selva, por meio do qual, na épo-
ca, desenvolvia trabalhos sociais, principalmente voltados
para o público infantil: “É fundamental trabalhar com crian-
ças, mexer com o futuro.”47

Dentre as inúmeras propostas das rodas culturais, estão a


pesquisa do local onde se realizam, a aproximação com os
moradores, ofertas de oficinas para a capacitação de mora-
dores e amigos das rodas, entre outros trabalhos sociais.
MV Hemp diz que “a revitalização dos bairros é um dos ob-
jetivos das rodas. Capacitar os moradores para, por meio
da arte, relatar a história do seu bairro é um dos desafios
do CCRP”.48
Pra Meu Bairro ficar um pokinho mais TOP...
Falta um movimento Cultural forte...
São Cristóvão e seus Rebeldes... Zumbi Vive.
(Sahel Klibre)49

47 Entrevista concedida à autora em 22/7/2012, no Morro do Encontro.


48 Entrevista concedida à autora, em, 30/6/2013, por telefone.
49 Disponível em: https://www.facebook.com/sahelklibreoficial?fref=ts.
81
Acesso: 29/7/2013.
RIO DE RIMAS

Sahel Klibre organizava a Roda Cultural de São Cristóvão,


que migrou para Manguinhos, a fim de melhor contemplar
esta comunidade, e é um estudioso da cultura do bairro.

Alguns desses pilares são defendidos pela cultura hip-hop,


e amplamente difundidos por seus membros: transforma-
ção e inclusão de jovens, formação e desenvolvimento hu-
mano e social, elevando a autoestima, e valores de organi-
zação e coletividade.

Em dezembro de 2010, logo após a invasão da polícia ao


Complexo do Alemão, no subúrbio carioca, diversos coleti-
vos reuniram-se e organizaram uma invasão cultural, com
apresentação de roda de rima, música, grafite, exposição
de fotos, entre muitas outras atividades artísticas. O CCRP
esteve presente, por intermédio de alguns organizadores
das rodas. Segundo MV Hemp, “naquele momento, as ro-
das estavam em alta e o lado social dos participantes aflo-
rava. Sentiam necessidade de agir, principalmente naquela
comunidade onde havia vários amigos do rep que estavam
apreensivos com a situação”.50

A Roda Cultural de Engenho do Mato promove ações sociais


diversas. São constantes os chamados para os frequenta-
dores atuarem em diferentes frentes, tais como:

Galera, conseguimos autorização para fazer um mutirão


em prol da biblioteca do Ciep 448 — Ruy Frazão Soares.
Após a limpeza do local, iremos ajudar a organizar a biblio-
teca, que será reinaugurada. A partir de segunda-feira, às
9h, começa o mutirão inicial para que o espaço volte a fun-
cionar!! É o nosso sonho se transformando em realidade,
convidamos a todos!!!
(Aline Pereira, 12/07/2013) 51

Na visão de Nissin Oriente, primeiro organizador da Roda


de Rima da Cantareira, o trabalho social é inerente à cul-
tura do hip-hop:
50 Entrevista concedida à autora, por telefone, em 30/7/2013.
82 51 Disponível em: https://www.facebook.com/groups/412294925513117/.
cap.10 Quando parnasianos e modernistas se encontram

Eu sou grato ao hip-hop. Então, tenho vontade de retribuir.


Faço muitos projetos ligados à questão da educação. Quem
não faz nada não conheceu a essência do hip-hop. O cara
que tem amor vai falar de disciplina, natureza, educação
alimentar, consciência...52

Aori Sauthon, personagem fortíssimo da cena urbana cario-


ca, exerce uma militância constante em nome da cultura,
da política, dos direitos sociais. No Facebook, seus posts
recebem centenas de curtidas e comentários: “Galera,
calma, a policia só está tratando os manifestantes como
sempre tratou os negros!” Este post recebeu 153 curtidas
e 44 compartilhamentos, em 20 de julho de 2013.53 Em 23
de julho, ele escreveu: “Se vc divulgar seu som botando a
hashtag #ondestaoamarildo eu vou dar um like e compar-
tilhar.”54 Aori tem seu perfil no Facebook lotado, tem inú-
meros seguidores; é respeitadíssimo no meio cultural, seus
posts sofrem considerável reprodução, por parte da garota-
da que o admira. Aori está afinadíssimo com as demandas
da escola do hip-hop.

Há ainda a roda de livros, em algumas rodas culturais.


Algumas funcionam na base do empréstimo: o leitor pega
o livro, lê durante a roda e devolve ao final, podendo, obvia-
mente, retomar a leitura na roda seguinte. Mas há também
rodas que recebem doações significativas, e oferecem o
livro ao leitor que pode, caso queira, retribuir a gentileza,
doando um livro na roda seguinte. Quanto às característi-
cas dessas obras, há de tudo: poemas, romances, contos,
canônicos ou não — a diversidade é grande, assim como a
motivação de formar um público leitor.55

52 Entrevista realizada em 26/5/2013.


53 Disponível em: https://www.facebook.com/aorisauthon/posts/10151672876
059320.
54 Disponível em: https://www.facebook.com/aorisauthon?fref=ts.
55 Outra atividade que vale o registro é a distribuição de livros que MC Marechal
faz em suas apresentações. Ele mobiliza uma rede de cooperadores que recebem
doações e o ajudam na distribuição dos livros pelo Brasil. 83
RIO DE RIMAS

84
Roda Cultural de Engenho do Mato.

Crédito: acervo pessoal

85
RIO DE RIMAS

11.
De onde vêm
as rimas?

86
cap.11 De onde vêm as rimas?

Eu sou Gil Metralha


Das rimas das batalhas
Sem deixar falha
Nada me atrapalha
Sou general no rep
Fecho com os moleques
Os inimigos aqui nós quica
Igual bola de basquete
Conectado na internet?
Vai lá:
YouTube: Gil Metralha
É só pesquisar.

(Gil Metralha)

E de onde vem tanto ritmo e poesia? Quais são as referên-


cias para esses poetas da rua? Era o que me perguntava
o tempo todo, sabendo que a rima não vinha de nenhuma
instituição tradicional, já que escola, universidade, aula de
literatura representam o saber institucional, que é criticado
severamente pela grande maioria do movimento rep.

Entretanto, há uma escola do rep, nada institucional, infor-


mal e que inspira gerações. Como foi apresentado nos capí-
tulos iniciais, os grandes nomes da cena rep carioca atual-
mente formam essa escola, cujo início situo no CIC e, mais
à frente, nas rodas de rima — escola que atualmente absor-
ve outros nomes, como Ghetto, M Souza, Nissin Oriente.56

“Eu invento um flow e uma métrica.” (Allan Benevenutto)57

56 Nos anos 1990, a cultura do hip-hop carioca já se fazia reconhecer. Entretan-


to, este trabalho reflete acerca da cena a partir do CIC e das rodas de rima.
57 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=j7SPtwVJZKQ. 87
RIO DE RIMAS

Mas há poetas que fundam poéticas, tornam-se referência


para batalhadores e rimadores iniciantes e antigos. Um
desses nomes, o mais forte do momento, é Allan Beneve-
nutto. Rimador por excelência, campeão da Batalha do Real
10 anos, Allan é citado por quase todos os entrevistados.
Quando ele participa de uma batalha, ainda que não saia vi-
torioso, os vídeos, comentários, agradecimentos de pessoas
com que ele duelou, são postados muitas vezes nas redes
sociais. Afirmo que formou uma escola: na Batalha do Bair-
ro de Fátima, onde é apresentador, nos freestyles que faz
nas rodas e batalhas, seu trabalho é observado com avidez
e admiração. É o nome mais citado nas batalhas. E quan-
do os MCs batalhadores querem indicar que o adversário
quer imitar alguém, o nome do imitado é... Allan. Vive-se,
na rima carioca, um efusivo “Allanismo”.

Nomes da velha guarda, como MV Hemp, Papo Reto, Ma-


rechal, Dropê Comando Selva, Gil Metralha são sempre ci-
tados. Mas Allan vem conquistando uma notoriedade junto
aos mais novos que chama a atenção, porque há MCs de
sua geração que também deixaram suas rimas inscritas na
história da poesia oral, como os brilhantes Ghetto, M Souza,
Nissin Oriente, mas que não parecem exercer tanto fascínio
para a garotada mais jovem.

Eu acabei virando referência para esta geração por ser o


cara que mais ganhava. Criei uma identidade. Mas minha
visibilidade, também, tem muito a ver com os adversários
que enfrentei. Só MCs muito bons, como TH e Ghetto. Na
última edição da Batalha do Real, todo MC que descia do
palco me pedia conselho, perguntava minha opinião.58

Por reconhecer tantos outros talentos no rep, em atuação


ainda, fico pensando se essa celebração em torno do Allan
não está atrelada ao título maior recebido recentemen-
te (em abril de 2013): Campeão da Batalha do Real — 10
anos; sobretudo, sabendo-se que essa batalha é a maior,
mais respeitada e concorrida entre os rimadores cariocas.

88 58 Entrevista realizada pela autora em 18/8/2013.


cap.11 De onde vêm as rimas?

Porém, Allan faz uma análise cuidadosa e interessante a


respeito do culto ao seu trabalho:

Eu consigo uma identidade muito forte com a rima, porque


eu me interesso pela rua. Eu dou um conselho à galera: tem
que estar na rua, porque a história está na rua. Já morei
no Méier, Jacarepaguá, Lapa e circulo por aí, conhecendo a
cidade, os públicos. E, com isso, eu relato a cidade.59

Allan Benevenutto é dono de uma rima muito bem elabora-


da e de uma performance invejável. Sua poesia tornou-se
a meta dos mais novos rimadores. Além de muito citado e
reverenciado nos eventos de rima, alguns MCs percebem o
desejo de outros em imitá-lo. Repito: Allan é uma escola de
rima, atualmente.

E está rimando menos; reinventou-se depois do título de


campeão da Batalha do Real 10 anos. Agora, diz que está
mais seletivo com os eventos de que participa. E com isso
faz uma crítica à cena das batalhas:

Tem que haver mais profissionalismo. Eu tô tentando valo-


rizar meu trabalho. Eu sou um multiplicador, porque sou
apresentador, estou totalmente envolvido com batalhas,
frequentando-as, e sei que é possível fazer algo comercial e
com cultura. Eu não quero perder essa identidade com ba-
talhas. Se aparecer uma galera para organizar uma batalha
com patrocínio, marketing e respeito, eu participo.60

Allan atua, ainda, como convidado especial (está presente


em quase todos os eventos de rep no Rio). Vem se desta-
cando na busca de maior profissionalismo no trato com a
categoria dos MCs: “Não acho justo que apenas o vencedor
da batalha ganhe reconhecimento. Os outros também me-
recem respeito e divulgação.” E quando pega o mic para um
freestyle, deixa evidente o porquê de ser tão cultuado:

59 Idem.
60 Idem. 89
RIO DE RIMAS

Aí, na moral, você sabe que tem


a vantagem porque é você que termina

Mas se eu não tivesse, não estaria aqui


na batalha de rima

Tranquilo, eu tiro a sua paz

Deram um terceiro round para geral ver


eu te batendo mais.

(Allan Benevenutto)61

90 61 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=j7SPtwVJZKQ.


12.
Onde está o
palco e onde
fica a plateia?

91
RIO DE RIMAS

Outra singularidade da ocupação da rua com arte é a au-


sência do palco. As rodas culturais cariocas recebem, em
média, um público de 100 a 300 pessoas por noite, número
que aumenta consideravelmente quando há nomes famo-
sos da cena rep alternativa participando. Como não há pal-
co — as apresentações de todas as atividades acontecem
em meio ao público, sem nivelamento (no máximo, o uso do
microfone concede ao portador uma aura diferenciada, de
artista) —, os lugares do poeta e do público se confundem,
amalgamam-se, desconstruindo a noção de hierarquia
entre o criador e o seu ouvinte. Isso radicaliza a questão
discutida por Zumthor sobre a coautoria do público: o pú-
blico, por ora, pode utilizar-se do mic, e pode ter sua voz
e presença corporal tão ou mais demarcadas do que as do
próprio artista ali se apresentando.

Em algumas batalhas de rima, faz-se uso de um pequeno


tablado que sugere um palco; é mais comum nas batalhas
que recebem maior púbico, e onde é possível organizar essa
estrutura. Ainda assim, o palco, como lugar do artista, não é
“respeitado”: não é ocupado apenas pelos MCs batalhado-
res e pelo apresentador; há o DJ, os organizadores ao fundo
(totalmente visíveis para a plateia), e as muitas pessoas que
vão se ajeitando pelas laterais do tablado, buscando um lu-
gar melhor para acompanhar a apresentação.

Emicida, rapper que originou-se das batalhas de rima,


cunhou a expressão “a rua é nóis”. Nela identifica-se cla-
ramente a opção do artista por um lugar entre o público,
sem palco, sem distinção do artista. Comumente os MCs
colocam-se como público, constituindo um coletivo. MC
Marechal, um dos nomes mais celebrados nacionalmente,
me disse em entrevista: “Eu não sou artista. Eu faço arte.”
Em uma ocasião na Rocinha, na I Batalha de Rimas e Ideias,
Marechal apresentou-se sob forte chuva, sem lugar privile-
giado, embora pudesse se resguardar sob uma das tendas;
ao fim, pacientemente, posou para fotos, mesmo estando
encharcado. Esta postura flutuante e indistinta dos MCs
92
Roda Cultural de São Gonçalo.

Crédito: acervo pessoal

93
RIO DE RIMAS

94
Palco da Batalha do Real.

Crédito: acervo pessoal

95
RIO DE RIMAS

não elimina a tietagem. Os fãs querem fazer fotos — a nova


modalidade de lembrança — junto aos artistas, já que um
autógrafo é um pedido raro, atualmente. Ainda assim, é um
tanto perturbador, para os acostumados ao mainstream,
ver o artista famoso ao lado do público antes, durante e de-
pois da apresentação. Os artistas, sem exceção, circulam
com naturalidade e destituídos de pose pelas rodas e outros
espaços acolhedores desta arte urbana. Pode-se falar que
há uma suave tietagem. O público admira os artistas, curte
as fan pages, vai aos shows e sabe de cor todas as músicas,
mas não se comporta como os conhecidos “fãs de auditó-
rio”, nem deixa de reconhecer o valor distintivo do artista.
Esta cultura de admiração, e não de adoração, é um aspecto
intrínseco desta particular arte urbana, principalmente no
formato das rodas culturais e batalhas de rima.

Apesar de a roda ser cultivada para todas as expressões


— há pequenas rodas de malabares, de rima, de pratican-
tes de slackline —, nem sempre em torno do artista/cantor/
rimador forma-se uma roda. Os motivos são variados: a
grande quantidade de pessoas na plateia, o desejo do ar-
tista de estar bem próximo do público, o pequeno espaço
destinado à apresentação e, sobretudo, por conta de certo
abandono da aura do artista de rua.

A roda é uma organização do espaço muito comum na cultu-


ra popular. Mais presente no samba, é um recurso utilizado,
também, pelo jongo e a capoeira e, nos últimos anos, tem
ganhado fama no funk. Ela desarma, por sua própria física,
a estratificação. Na roda, tem-se um ao lado do outro, sem
destaque. O contato corporal também é bem mais comum,
as investidas para estar mais perto do artista ou assistir à
apresentação de um plano melhor são mais constantes. A
roda não pressupõe uma ordem — social ou espacial.

96
Roda Cultural do Méier.

Crédito: Fábio Teixeira

97
RIO DE RIMAS

A roda é única, com uma organização autônoma, que não


tem como ser reiterada. E no caso da roda cultural, ela é
democrática, horizontal e apresenta as especificidades do
lugar onde ocorre: é agregadora da arte e da cultura local.
Comporta adolescentes, famílias, namorados, crianças, por
vezes todos na mesma roda, ou guardando particularida-
des. Assim, no Méier, há uma roda frequentada por famílias,
apesar da elevada participação de jovens; a de Botafogo é
tipicamente formada por adolescentes e jovens; a de São
Cristóvão atrai amantes dos esportes. Contudo, as rodas
sempre carregam de significados o lugar, alterando sua
rotina, levando visibilidade, recriando a história do bairro.

98
13.
Gestão
criativa do
espaço público

99
RIO DE RIMAS

As rodas culturais acontecem nas praças públicas. Algu-


mas dessas praças, antes da ocupação pelo CCRP e por
outras rodas que não fazem parte deste circuito, encontra-
vam-se abandonadas ou frequentadas, tão somente, pela
população de rua. Com a realização constante das rodas
culturais, alguns organizadores declaram que passou a
haver uma nova movimentação nesses espaços: pessoas
que não tinham o hábito de fazer uso deles começaram a
verificar outras possibilidades oferecidas além do abrigo
às crianças que moram na rua. Dessa forma, há, evidente-
mente, uma ressignificação destes lugares que se tornam,
assim, espaços culturais, com registros nas paredes (de-
vidamente grafitadas e pichadas) e na memória afetiva de
seus frequentadores.

A respeito do conceito de espaço cultural, Teixeira Coelho


ressalta:

De fato, a construção de um edifício específico para a prá-


tica da cultura ali onde antes nada havia de análogo, ou o
aproveitamento para esse fim de um edifício cuja função
original era outra (caso de ressemantização do espaço), não
deixa de ser uma operação de abstração: condições para a
prática da cultura são criadas artificialmente num local que
anteriormente não a comportava ou lhe era, mesmo, hostil.

(Coelho, 1997, p. 167)

Frequentadores e organizadores comentam sempre sobre


a adesão, às rodas, de adolescentes com comportamento
mais desafiador ou que praticam pequenos delitos na área.
Djoser Botelho, o representante do CCRP junto à Prefeitu-
ra, conta:

Em Botafogo, tinha um grupo de meninos que ia para a


roda, pedir dinheiro e cometer pequenos furtos. E a gente
começou a incentivar: “Olha tá todo mundo aqui cantando,
rimando. Se quiser dinheiro vai ter que cantar também.”
Eram cinco moleques e um deles era genial na rima. Dos
100
cap.13 Gestão criativa do espaço público

cinco, só um ficou. Mas hoje em dia , ele está rimando na


Lapa, para ganhar dinheiro.62

E essa perspectiva de formação de poetas e artistas por


meio da ocupação das praças públicas é das mais divulga-
das pelos gestores.

Assim, o grupo foi cada vez aumentando pela união de ou-


tros coletivos e a partir daí foi criado o termo roda cultural,
cujos dois princípios básicos de criação são a apresenta-
ção semanal e a ocupação de praças ou espaços públicos
esquecidos ou abandonados, buscando sua revitalização.63

Para Djoser, a ideia da roda cultural foi importante, porque


havia reunião de pichadores, de rimadores, de esportistas,
de vários segmentos, separadamente. E a roda cultural jun-
tou diversos encontros que aconteciam pela cidade. Enri-
queceu, artisticamente, o bairro, a cidade.

Canclini (1997) reflete sobre a tendência, não apenas na pe-


riferia, de cidadãos realizarem sua vida cultural e lazer nos
próprios bairros em que moram. As rodas culturais assumem
um papel de provocar os moradores à participação, como
artistas ou público. Entretanto, ainda que as rodas tenham
lugares fixos de realização, há também um investimento na
circularidade. Ou seja, é possível encontrar, nos grupos do
Facebook, endereços e horários de todas as rodas ligadas ao
CCRP, e de outras mais recentes. Bastante comum, também,
é a divulgação de todo o circuito em cada roda.

Tem-se, assim, uma efetiva ocupação das praças e espaços


públicos afins pelos consumidores e produtores da cultura
urbana. Evidentemente que cada roda mantém sua especi-
ficidade; não é desejo dos idealizadores do CCRP, nem dos
organizadores das demais rodas, em geral, a padronização.
Desta forma, ao acompanhar o circuito, ao fim de uma se-

62 Entrevista realizada pela autora em 11/7/2012.


63 Trecho do documento enviado à Prefeitura, intitulado: “Proposta Inicial ao
Programa de Desenvolvimento Cultural Carioca de Ritmo e Poesia — CCRP”. 101
RIO DE RIMAS

102
Praça em Engenho do Mato.

Crédito: acervo pessoal

103
RIO DE RIMAS

mana, pode-se obter um catálogo das características par-


ticulares de cada roda — desde a organização, frequência,
até a produção da poesia e das outras expressões artísticas.

Infelizmente, esse aspecto inovador das rodas culturais — a


ocupação da rua com arte —, é também uma das grandes
dificuldades a serem vencidas, diariamente. Apesar de con-
tarem com a anuência da Prefeitura do Rio de Janeiro, há
cerca de um ano, as rodas realizam-se, apenas, com base
nos esforços pessoais de seus organizadores, e nas even-
tuais contribuições do comércio local. De modo geral, para
operacionalizar uma roda, os gestores precisam de mesa
de som, tenda, cooperação do público e muito empreende-
dorismo. Entre eles, há uma percepção de que é preciso
agir, conscientizar, produzir, criar comunidades.

O apoio do comércio, quando existe, embora simples, é fun-


damental: a Roda Cultural de São Gonçalo “puxa luz” de um
bar próximo à praça. E quando chove, para que a reunião
não seja cancelada, é realizada em um restaurante, tam-
bém vizinho à praça.

A Roda Cultural de Engenho do Mato conta, eventualmente,


com alguma doação do comércio em torno da praça. São
contribuições importantes para o movimento e baseadas na
força do território — uma perspectiva abordada por Santos
(2000), como “vontade local que vem de baixo para cima”
e busca formas inesperadas de luta, para expressar seus
sentidos, os desejos do lugar.

Não há banheiros, segurança, nenhum tipo de apoio rela-


cionado à infraestrutura, por parte do poder público. Ape-
nas, tem-se o espaço, nos oito pontos geridos pelo CCRP.
As demais rodas, normalmente, sofrem com ainda mais
problemas, já que muitas delas nem autorização da Prefei-
tura conseguem obter.

Foi mencionada, nos capítulos iniciais, a dificuldade de ma-


nutenção de algumas rodas, por conta de problemas com
104
cap.13 Gestão criativa do espaço público

a polícia — inclusive as rodas do CCRP, reconhecidas pela


Prefeitura do Rio. Outras rodas também disputam o espaço
com a polícia e os fiscais da Prefeitura. A Roda Cultural de
São Gonçalo teve o som proibido recentemente:

Esta semana não vamos ligar o som, porque o secretário


de Postura esteve aqui, passou nas barracas, bares — um
tipo de choque de ordem. E tinha uma galera bebendo e fu-
mando na roda. Como não tem segurança, tem droga e ál-
cool sendo vendido para menor. Mas nosso oficio é produzir
cultura, não dá pra controlar. Então, o secretário perguntou
se eu tinha autorização para a roda. Como eu não tinha, ele
mandou cancelar o som.64

E a arte urbana experimenta outras situações que, even-


tualmente, podem representar transtornos. MV Hemp, um
dos idealizadores do CCRP, chama atenção para os pro-
blemas que os organizadores das rodas podem enfrentar
devido à precária infraestrutura: “Se alguém se machucar,
se houver violência, qualquer problema, vão cobrar dos or-
ganizadores. E o CCRP não tem apoio do poder público. É
tudo feito pelos meninos, na base da vontade, da garra.”65

No Rio, depois de assinado o Decreto nº 36201, o prefeito


liberou um ponto de venda de bebidas em cada roda, o que é
aproveitado pelos organizadores para angariar fundos que
custeiem a ida de artistas (passagens), equipamentos de
som e outras despesas.

Como a entrada nestes eventos é gratuita (às vezes, passa-se


o chapéu ao fim do espetáculo, tão somente), a busca por
formas alternativas de financiamento é uma urgência. Os
artistas convidados, em sua maioria, aceitam participação
sem cachê, porque conhecem a dinâmica de realização
deste circuito e querem divulgar seus trabalhos em meio
a um público fiel e amante do rep. Mas, ainda assim, há

64 Entrevista concedida à autora em 7/8/2013, na Roda Cultural de São Gonçalo.


65 Depoimento dado à autora em 16/5/2013, no CICRIA — escritório de alguns
coletivos, dentre eles, o Comando Selva. 105
RIO DE RIMAS

custos que precisam ser cobertos. E só são resolvidos pelo


esforço e criatividade, de acordo com o que Santos (2000)
denomina “prontidão de sentidos”. Por serem espaços de
escassez, despreparados para receber arte, isso demanda
dos gestores: planejamento, solidariedade, inventividade
e disposição para negociação — esta última com vizinhos,
guardas municipais, milícia, público, polícia.

A fim de contribuir efetivamente para a reorganização res-


ponsável do espaço público, além de muito envolvidos com
os problemas das comunidades onde as rodas são reali-
zadas, seus gestores vêm estudando as possibilidades de
aplicação de uma economia criativa ao movimento. Assim,
como um dos objetivos do CCRP é a autonomia das rodas e
a capacitação dos gestores e demais integrantes, é impres-
cindível o debate constante pela ampliação, solidificação e
gestão criativa do circuito.

Na verdade, embora não se tenha movimentação monetá-


ria, a roda cultural já faz uma gestão de economia criativa.
Agora seria colocá-la na prática. A gente tem o movimen-
to semanal e planeja fazer eventos grandes em todas as
rodas, de forma que isso se reverta em dinheiro pra cada
roda, mas com responsabilidade [...]. A gente quer marcas
de empresas investindo no cenário independente e sem in-
terferir na criação do mesmo.66

Um ano após a assinatura do Decreto nº 36201, as rodas


do CCRP não tiveram nenhum dos seus pedidos atendidos.
A fim de provocar a participação da Secretaria de Cultura
do município do Rio de Janeiro, os organizadores do circui-
to enviaram, em maio deste ano (2013), um documento ao
secretário Sergio Leitão, cobrando apoio e propondo uma
ampla rede de ações que envolve, de modo sucinto:

Formação de uma rede de ambulantes culturais, jovens


multimídia, que vão receber bolsa auxílio e funcionar como
pilares de desenvolvimento local, expansão, através das

106
66 Entrevista realizada pela autora com Djoser em 11/7/2012.
cap.13 Gestão criativa do espaço público

diferentes artes e produções da cultura urbana, fazendo


com que surjam novas rotas de turismo na cidade e novas
oportunidades para a população carioca, o que cria novos
incentivos de desenvolvimento local; edição bimestral da
Revista CCRP, que será distribuída gratuitamente, desen-
volvida pelos jovens multimídia frequentadores das rodas,
que vão fazer cursos de redação e design; estruturação de
um acervo da cultura urbana carioca para proteger, compi-
lar e resgatar as produções históricas e contemporâneas da
música e das mais diversas expressões artística de rua do
Rio de Janeiro. [...] 67

Djoser explica que há cerca de dois anos. Vários outros do-


cumentos com proposições mais simples já foram enviados
ao poder público, com o objetivo de conseguir condições
mais dignas de realização das rodas culturais; inclusive,
pelo que se verifica no documento citado acima, objetiva-se
também a ampliação sistemática da atuação do circuito.
Djoser complementa: “O poder público está um pouco atra-
sado. Agora que foi se tocar da nossa potencialidade, que
a gente abrange o Rio inteiro, e articulado pela internet.
Agora que os poderes entenderam o que estamos fazendo.”

No momento, aguarda-se uma contraproposta da Secreta-


ria de Cultura do município do Rio de Janeiro.

67 Documento intitulado “Economia Criativa Circuito Carioca de Ritmo e Poesia 107


— CCRP”, datado de 2/5/2013.
RIO DE RIMAS

14.
Roda Cultural
do Méier — 
máximo respeito

108
cap.14 Roda Cultural do Méier — máximo respeito

Hoje é dia de culto!

(Don Allan Marola)68

Não há frequentador de roda cultural no município do Rio


de Janeiro, e até mesmo nos municípios vizinhos, que não
conheça a fama da Roda Cultural do Méier. É a roda mais
pulsante do CCRP e, talvez, dentre todas as outras do esta-
do do Rio de Janeiro. O apelo que a roda possui deve-se à
exemplar organização do espaço público feita por Don Allan
Marola, Fabio Broa e Fabricio Mello.

A roda acontece às quartas-feiras, na praça da minirram-


pa de skate, próxima ao viaduto do Méier, de 19h até meia-
-noite. De fácil acesso, cercada por bares, restaurantes e
residências, a roda recebe, em média, 300 a 350 pessoas,
em dias sem atividades especiais. É uma roda com a cara
do bairro.

Sempre fico muito atenta à frequência das rodas e verifico


a particularidade do Méier: há grande presença de famílias,
de idosos, de crianças, casais de todas as idades e, claro, de
jovens amantes da cultura urbana.

Sem exagero, aquele trecho do Méier, compreendido entre


as ruas Medina e Silva Rabelo, conhecido como Baixo Méier,
para. Segundo os organizadores da roda, os comerciantes
afirmam que estão obtendo mais lucro em dias de roda do
que na sexta-feira, tradicionalmente dedicada ao chopinho.

A gente mudou até o faturamento do local. Antes da roda,


na quarta-feira, o movimento nos bares era fraco. O Méier
tinha muita força cultural. É preciso reinventar isso. As
pessoas já estão percebendo que a roda não é para gente
ganhar dinheiro; é pra agitar o bairro e difundir a cultura.

Don Allan Marola, o coordenador do grupo, foi o mais falan-


te durante a entrevista com representantes do movimen-
to, que me foi concedida numa tarde de segunda-feira, no

68 Retirado do status de Don Allan Marola no Facebook, em 3/7/2013. 109


RIO DE RIMAS

Arte da Roda Cultural do Méier.

Crédito: Don Allan Marola

110
cap.14 Roda Cultural do Méier — máximo respeito

terraço do Imperator. Terminei a conversa considerando-a


uma aula de ocupação do espaço público.

Allan começou explicando o funcionamento dos bastidores,


em dia de roda:

Nosso dia começa na correria, comprando bebidas, gelo,


copos. O Fabricio traz dinheiro trocado, passa no depósito
e paga a bebida; enquanto isso, o Broa já está contatando
os convidados... No fim da tarde, levamos os equipamentos
para a praça e organizamos o espaço.

O grupo se reúne toda segunda-feira para pensar nas ativi-


dades da roda. Allan diz:

Eu faço estudos sobre o número de pessoas que passa por


lá. E temos um custo: aluguel, transporte de equipamen-
to. Hoje temos o nosso som, mas antes era emprestado.
Temos segurança particular na roda. A gente se preocupa
com a dispersão, com a segurança.

O prefeito permitiu o ponto de venda de bebidas, o que se


tornou uma fonte de renda pra financiar a vinda de MCs e
cobrir outros gastos — “Eu vi que este ponto precisaria ser
bem pensado, já que temos um gasto alto para a roda fun-
cionar, mesmo em dias comuns: transporte, funcionários,
reposição de algum material quebrado.” (Don Allan Marola).

Outro indicador da boa gestão da roda é o apoio das lojas


Brasil Pizza e Skate Brothers, que financiaram o som:

Chegamos a este acordo: temos um público de cerca de 300


pessoas. É bom para qualquer comércio expor sua marca
junto à cultura. Eu levei esta ideia para eles e foi muito bem
recebida. E hoje temos a Vanzer Clothing que nos veste nos
eventos.

Além da visibilidade conseguida durante o evento, os apoia-


dores contam com outra bastante eficiente: os organizado-

111
RIO DE RIMAS

res promovem as lojas em seus perfis particulares no Fa-


cebook e na divulgação dos eventos da roda cultural.

Mesmo com o respaldo do Decreto nº 36201, já citado e tão


propagado no circuito das rodas, os organizadores do even-
to no Méier procuraram a Região Administrativa do bairro
para realizar a roda dentro da legalidade:

Temos zelo com o espaço, pedimos que o público cuide do


lugar, não fume maconha na praça, terminamos cedo para
respeitar o silêncio... A gente quer assumir isso aqui, cuidar
do lugar. Tem que respeitar o direito do outro num even-
to aberto ao público e com fins culturais. Quero manter o
evento com certo nível; não só para o público underground.
Queremos que a tiazinha leve seu netinho de 5 anos para
andar de skate e ouvir som. (Don Allan Marola)

Ainda, segundo o entendimento de que os gestores das ro-


das devem ter uma atuação mais produtiva com o bairro,
criou-se uma parceria com a casa de shows Imperator: lá,
no terceiro domingo de cada mês, é realizada a Batalha do
Terraço, no evento Arte Urbana no Terraço. De acordo com
Allan: “Foi o Imperator que nos procurou na roda, tentando
firmar a parceria. A casa de shows percebeu na roda a pos-
sibilidade de revitalização da cultura no Méier.”

O aniversário da roda cultural, em agosto, foi realizado na


praça Agripino Grieco, a mais conhecida e a maior do bair-
ro, com todo o ritual que envolve uma grande festa. Com
um ano de rodas culturais, Don Allan Marola, Fabio Broa e
Fabricio Mello já se inscrevem entre os respeitados fomen-
tadores da arte urbana carioca. Por isso, para eles, o Méier
pede: “Faz barulho aê!”

112
15.
Uma outra
instância de
legitimação:
as redes sociais

113
RIO DE RIMAS

A arte urbana discutida aqui tem nas redes sociais o seu


principal meio de divulgação e repercussão. Sem apoio e
mesmo ignorada pela mídia tradicional, a sua abrangência
se deve à fervilhante vida na rede. Cada roda possui uma
página no Facebook, e algumas são tão ativas que tornam
difícil o acompanhamento dos posts. Lá, são divulgadas as
atrações, as batalhas de rima e seus participantes, vídeos,
fotos, rimas e demais produtos artísticos das rodas. Enque-
tes a fim de saber quais artistas o público gostaria de ver
nas rodas, quais os MCs que chegarão ao final das bata-
lhas, debates sobre o comportamento do público durante o
evento, sobre a ação da polícia e das Secretarias de Cultura,
mapeamento do circuito, aconselhamentos, decretos, tudo
circula na rede com ampla participação e reconhecimento.
É nessa fonte que estão as rimas, opiniões, posicionamento
político e social dos artistas e do público das rodas.

Blogs, perfis no Facebook, Twitter, fan pages intensificam


uma cena que contraria o que se imagina: que a juventude
está mais desligada da arte, plugada que vive nos computa-
dores. A rede de amizade e trocas artísticas fervilha na web,
e vai, em boa parte, para as ruas.

Marcam-se dia e hora para lançamentos virtuais de clipes,


de músicas. Convites para eventos diversos, relacionados
ao rep, são enviados por este canal. O número de curtidas,
comentários, compartilhamentos, confirmações em even-
tos indicam a importância do artista, da roda, do evento,
como se pode conferir neste trecho da reportagem sobre o
rapper Filipe Ret, no blog Amplificador:

Aos 27 anos, Filipe Ret é apontado como uma das grandes


revelações do rap carioca, para alguns, o sucessor de Mar-
celo D2. Nascido no Catete e morador de Laranjeiras, o MC
tem público fiel e ativo nas redes sociais que levam posts
curtos, certeiros e filosóficos à incrível média de 500 curti-
das e dezenas de comentários (essa profusão de participa-
ção dos fãs acontece até num simples bom dia com letras
de Zé Ketti, Barão e Chico).69
114 69 Disponível em: www.oglobo.globo.com. Acesso: 3/7/2013.
cap.15 Uma outra instância de legitimação: as redes sociais

Mas se a rede funciona como um excelente lugar de en-


contro e de interação, também promove debates virtuais e
extravirtuais sobre a real notoriedade dos envolvidos nesta
festa, discussões acaloradas sobre temas diversos, ironias,
mensagens subliminares, manifestos contra páginas e uso
indevido de rimas, questionamentos... Exatamente como
deve ser em um espaço democrático de lutas.

Castells (2003, p. 114), por meio de dados estatísticos, ve-


rifica o efeito positivo da internet sobre a interação social:
“O ciberespaço tornou-se uma ágora eletrônica global em
que a diversidade da divergência explode numa cacofonia
de sotaques.” E a rede social Facebook ilustra sobremanei-
ra essa questão.

Porém, como o movimento rep se realiza na rua, embora


as redes sociais sejam respeitadas e, evidentemente, todos
tenham consciência de seu poder, a participação na praça
física, na rua, ainda é o modelo de inserção mais legítimo
para os integrantes do movimento. Parece haver uma exi-
gência de que o artista, o produtor cultural, o agente cultu-
ral venham da rua para as redes virtuais. A correria ganha
maior reconhecimento vinda do espaço público. Ou seja,
à atuação virtual deve corresponder uma atuação na rua
— na geração de processos culturais no bairro e na rede.
Assim, tem-se uma legitimação, independentemente do
número de seguidores, views, likes...

Entretanto, mesmo colocando-se em dúvida a real popula-


ridade — medida pelas visualizações, curtidas e confirma-
ção de presença — de eventos e, sobretudo, de artistas, não
há outro meio de propagação deste movimento que seja tão
eficiente quanto o Facebook.

Os organizadores da Roda Cultural do Méier contrataram,


recentemente, o serviço de um carro de som, o Canela Som,
que anuncia o evento pelo bairro. Porém, é a rede social,
com seu grande número de adeptos, que movimenta a roda.

115
RIO DE RIMAS

Os frequentadores tomam conhecimento das rodas, dos


artistas, dos shows, pela rede, já que não há, a não ser o
conhecido boca-a-boca, outro meio tão eficaz de divulgação.

Para essa cena artística independente, a “recepção públi-


ca” — enredada ao reconhecimento público — de que fala
Habermas (1984) se dá pelo comparecimento aos eventos,
porém, fundamentalmente, pelo apoio vindo das redes so-
ciais. As poucas mídias tradicionais que percebem a dimen-
são desses eventos não fazem um trabalho sistemático.
Logo, não é este um meio a se recorrer para ter acesso às
informações sobre a cultura urbana carioca:

Eu abro o computador e vejo o rap nas redes sociais. Eu


abro o caderno de cultura de grandes jornais e lá o rap não
existe. Se a mídia tradicional não der espaço, nós vamos
continuar crescendo pela internet. O hip-hop já mobiliza
milhões de pessoas nas redes. E não vai parar de crescer.70

70 Entrevista concedida por Filipe Ret ao blog Amplificador, em www.oglobo.


116
globo.com. Acesso: 3/7/2013.
PRÁTICA ENGENHADA: PEDAGOGINGA

16.
Vem pra rua,
vem e traz sua
arte também!

117
RIO DE RIMAS

Foi a rima que me aproximou deste movimento de rodas e


batalhas, inicialmente. Causava-me fascínio e espanto que
tantos adolescentes e jovens cultivassem o hábito de rimar,
vício de parnasianos. Como professora de literatura, sem-
pre me envolvi com infinitas formas de levar a arte literária
aos alunos, por meio de saraus, performances, teatro... De
repente, vi nas ruas, em forma de festa, centenas de jovens
criando uma expressão literária carioca.

Com ritmo e sentimento, a expressão literária das ruas


aponta para novas reflexões acerca da produção de uma
rima que narra um ambiente; marginalizado ou não, um
ambiente produtor de identidade e memória, cuja potência
artística abre caminhos para novas formas de leitura da ci-
dade e dos cidadãos.

De certo que há os famosos repentistas e emboladores do


nordeste, cuja atividade é muito semelhante à descrita aqui.
Entretanto, a rima carioca não comparece sozinha: ela se
faz acompanhar de muitas outras modalidades artísticas,
ocupando sistematicamente as praças. Existe uma ligação
que extrapola a rima, entre as rodas, batalhas, malabares,
fotografias, grafite, xarpi, rep. Invariavelmente, os prota-
gonistas dessas cenas estão juntos, atuando em todas as
áreas, em performances diversas. Fazem parte das muitas
tribos de ruas da cidade, que unem-se, fortalecem-se e
criam associações, formando um corredor cultural que vem
se sustentando e desdobrando, desconhecendo fronteiras
territoriais e artísticas.

Uma boa explicação da necessidade de ocupar todos os es-


paços me foi dada por Kel Pastore, ex-pichadora, organiza-
dora da festa Xarpi: “Vejo a Xarpi como o xarpi: o objetivo é
dominar todas as áreas, todos os públicos.”71 O CCRP me
parece o melhor exemplo dessa atitute: por meio de suas
rodas culturais incentivou um movimento que tem ocupado
espaços pela zona norte, oeste e até a quilômetros de dis-
tância da cidade do Rio, como em Macaé e Cabo Frio.

118 71 Entrevista concedida à autora, por e-mail, em 16/7/2012.


cap.16 Vem pra rua, vem e traz sua arte também!

Embora este movimento tenha suas propostas bastante


afinadas com o movimento de periferia de São Paulo, não
se tem exatamente um discurso da periferia nesse circuito.
Não são excluídos falando: o lamento, a expressão de desi-
lusão não se fazem mais presentes. Ferréz avisa, em Lite-
ratura marginal: “Nós arrombamos a porta e entramos.” No
Rio, atualmente, no máximo, essa porta seria pichada e/ou
grafitada!

Obviamente que, por ser o rep um dos gêneros artísticos


mais voltados para as questões sociais (e nem é necessário
se buscar a referência em Racionais MCs, Sabotage, GOG
para afirmá-lo como movimento politizado), a produção da
rima não se descola muito desse olhar. Entretanto, perce-
bo que a verve denunciativa é mais explorada pela música
(desemprego, miséria, fome, opressão) do que pelas rimas
improvisadas.

Fala-se de temas cotidianos e faz-se muita ironia pelas


praças: nem sempre de boa qualidade, nem sempre com a
rima perfeita e, muitas vezes, de teor machista. Aliás, esta é
uma expressão cultural que tem a participação das mulhe-
res praticamente restrita à plateia. Raríssima é a presença
feminina no palco. Taz Mureb, Samantha Muleca, Negra Rê
são raridades que marcaram um lugar nesta cena diante
de centenas de homens. Em mais de um ano de observação
constante e atenta da cena poética nas ruas, só vi mulheres
rimando em dois ou três encontros. É um espaço a ser con-
quistado ainda, não é, meninas?!

Um articulado organizador de roda cultural comentava,


em uma batalha de rima, recentemente, que tinha muita
curiosidade de ver que comportamento a plateia teria, caso
um dia aparecesse um homossexual rimando com talen-
to. Infelizmente, acredito que este hipotético rimador seria
eliminado na primeira fase. Essa postura desacertada em
relação à minoria homossexual contradiz o que a arte de
rua prega.

119
RIO DE RIMAS

Evidencia-se, nas ruas do Rio de Janeiro, uma luta jovem,


em sintonia com novas frentes de atuação militante: pelas
minorias, pelos independentes, pelo direito à arte, à pra-
ça, à pluralidade... É uma luta travada diariamente com o
poder público: ao mapear as rodas e batalhas, verifiquei a
impossibilidade de catalogar todas, já que surgem quase
diariamente. E quase diariamente, também, uma ou outra
é embargada, ainda que esteja funcionando dentro dos es-
paços reconhecidos pelo Decreto nº 36201, assinado pelo
prefeito Eduardo Paes.

São impedidas de acontecer, sempre, sob as mesmas ale-


gações: a de que há menores de idade fazendo uso de bebi-
das alcoólicas (pois há vendedores ambulantes, no entorno,
que as vendem a menores de idade sem preocupação com
a lei), e a de que há pessoas consumindo drogas. Apesar de
os organizadores das rodas insistirem em esclarecer que
são produtores de cultura e não têm poder de polícia, e que
a situação poderia ser outra caso houvesse policiamento no
local, muitas rodas são suspensas repentinamente e levam
algum tempo para se reorganizarem.

E a dificuldade de reorganização acontece também porque


os produtores das rodas nem sempre sabem como proce-
der, a que instância recorrer: Região Administrativa, Se-
cretaria de Cultura, Subprefeituras? Como redigir o docu-
mento? Há modelo específico? Nem todos os organizadores
têm tempo disponível e conhecimento para resolver essas
questões burocráticas.

Por isso, vejo como uma necessidade urgente a interação


desses coletivos. Pois há formas de luta tão eficazes que
precisam ser compartilhadas, há trajetórias locais emocio-
nantes que, certamente, habilitariam outros organizadores
de rodas, pois a troca de informações sobre estratégias
de realização e manutenção das rodas e batalhas poderia
manter o circuito constantemente ativo.

120
cap.16 Vem pra rua, vem e traz sua arte também!

Compartilham-se, na rede, muitas histórias de repressão,


mas o passo-a-passo das conquistas não é compartilha-
do. Teme-se a perda da autonomia. Entretanto, não acre-
dito que um diálogo mais constante e fora da rede, como
em reuniões mensais, impeça que os grupos possam gerir
livremente, e de acordo com as vontades locais, as rodas
culturais.

No momento, algumas prefeituras buscam formas de inte-


ração com o movimento cultural das ruas, providenciando
um cenário mais favorável: oferecendo som, guardas mu-
nicipais, espaço adequado e encaminhando os organizado-
res aos setores responsáveis pelo ordenamento público. Ou
seja, cumprindo a função do poder público de criar políticas
que assegurem a produção do discurso popular. A observa-
ção dessa situação nos faz pensar, mais uma vez, que este
movimento cultural funciona antes como um movimento
pela cidadania do que pelo entretenimento. Trata-se de
mais do que um direito de levar arte às ruas; trata-se de ter
assegurado o direito à rua.

121
Roda Cultural Soul Pixta.

Crédito: Emanuel Bilson


RIO DE RIMAS

Referências bibliográficas

BOTELHO, Djoser; ROZEMBERG, Pedro; SANTANA, Marcos Vinícius. Proposta Ini-


cial ao Programa de Desenvolvimento Cultural Carioca de Ritmo e Poesia, 2012.

BOTELHO, Djoser; ROZEMBERG, Pedro; SANTANA, Marcos Vinícius. Economia


Criativa: Circuito Carioca de Ritmo e Poesia – CCRP, 2013.

CANCLINI, Néstor G. Culturas híbridas. Trad. Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza
Cintrão. São Paulo: Edusp, 1998.

___. Consumidores e cidadãos – conflitos multiculturais da globalização. Rio de Ja-


neiro: Editora UFRJ, 1997.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.

___. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Ouro


sobre azul, 2006.

CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet. Trad. Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro:
Zahar, 2003.

COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural, São Paulo: Iluminuras,


2012.

HABERMAS, Junger. Mudança estrutural de esfera pública. Trad. Flavio Kothe. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SEABRA, Odete; CARVALHO, Monica de; LEITE, Jose Correa. Entrevista com Milton
Santos. São Paulo: Editora Funadação Perseu Abramo, 2000.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.

___. Performance, recepção e leitura. São Paulo. Cosac & Naify, 2007.

___. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira; Maria Lucia Diniz Po-
chat; Maria Ines de Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

124
Referências bibliográficas

Sites e perfis na rede social Facebook:


Matéria com Filipe Ret
http://oglobo.globo.com/blogs/amplificador/posts/2013/07/03/fenomeno-na-re-
de-nos-palcos-filipe-ret-nova-aposta-do-rap-no-rio-502020.asp

Letra de América 21, de Black Alien


http://www.vagalume.com.br/black-alien/america-21.html#ixzz2cXrKSb5V

Letra de É a Guerra Neguinho, de MC Marechal


http://letras.mus.br/mc-marechal/1728920/

Página Literatura do Rap


https://www.facebook.com/LiteraturadoRap?fref=ts

Página Mestres de Cerimônia


https://www.facebook.com/pages/Mestres-de-Cerim%C3%B4nia/541964472481
309?ref=ts&fref=ts

Aori Sauthon
https://www.facebook.com/mclapa?fref=ts

Don Allan Marola


https://www.facebook.com/don.marola?fref=t

Dropê Comando Selva


https://www.facebook.com/drope.comandoselva?fref=ts

Filipe Ret
https://www.facebook.com/FilipeRet?fref=ts

MC Marechal
https://www.facebook.com/vamosvoltararealidade?fref=ts

Nissin Oriente III


https://www.facebook.com/nissinmc3?fref=tss

Nuno DV
https://www.facebook.com/nunodv?fref=ts

Rico Neurótico
https://www.facebook.com/riconeurotico?fref=ts

Sahel Klibre
https://www.facebook.com/sahelklibreoficial?fref=ts
125
RIO DE RIMAS

126
As narrativas da cidade e suas estratégias de legitimação
sempre exerceram sobre Rôssi enorme fascínio. E foi tra-
balhando com adolescentes, em sala de aula, que deu início
a pesquisas nessa área, mais propriamente com os bailes
de corredor, nos anos 1990. Verificar aquela cena, discuti-la
com os protagonistas daquele espetáculo foi categórico
para o seu percurso acadêmico. Funk, literatura marginal,
rep, rodas culturais e batalhas de rima, espaços culturais
alternativos e outros signos de uma cidade suburbana são
experimentados com prazer, desafio e reflexão em seus
trabalhos.

Rôssi Alves Gonçalves é professora do curso de Produção


Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Cultura e
Territorialidades, na UFF. No momento, faz Pós-Doutorado
em Estudos Culturais, no Programa Avançado de Cultura
Contemporânea/UFRJ, onde desenvolve a pesquisa “Poesia
e ocupação do espaço público: um estudo do Circuito Cario-
ca de Ritmo e Poesia”, projeto este contemplado com bol-
sa de Pós-Doutorado pela Faperj e que investiga as rodas
culturais cariocas, considerando sua produção como uma
expressão da literatura oral carioca.
Este livro foi composto em DIN.
O papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo Alta-Alvura 250g/m2.
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90 g/m2.
Impresso pela Grafitto para a Aeroplano Editora em novembro de 2013.

Vous aimerez peut-être aussi