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41º Encontro Anual da Anpocs

SPG29 – Religiões e fronteiras:


da (re)composição das crenças a (des)regulação dos marcos territoriais

O céu não tem fronteiras: religiosidade na fronteira do Alto Solimões

Ricardo Lopes Dias


Teólogo (FTSA), antropólogo (UFAM),
mestre em Ciências Sociais (UNIFESP);
doutorando do PPGCHS Universidade Federal do ABC
e-mail: ricardo.lopes@ufabc.edu.br.
RESUMO

A tríplice fronteira amazônica é um campo fértil para a investigação social. Brasileiros,


peruanos e colombianos - entre indígenas, ribeirinhos e citadinos - encontram-se em uma
teia de relações fronteiriças que expõe diferenças linguísticas, culturais, morais e éticas.
Por mais que os Estados pretendam reagrupar os seus sob signos, leis e identidades
distintivas, a fronteira flexibiliza as relações e reorganiza os comportamentos. Diferenças
co-existem ali inevitavelmente, intensificadas porque também são desejadas. As
pesquisas na tríplice fronteira têm abordado a economia, as relações que conformam as
identidades, a historicidade das populações e questões de gênero. Acrescento aqui o
pensamento religioso como também diferenciado e diferenciador na fronteira. Temos ali,
mesmo diante de outras religiosidades mais antigas e dominantes: uma igreja indígena
que etniciza o cristianismo protestante euro-americano, indígenas e ribeirinhos que
absorveram os ensinos de um pregador mineiro, e peruanos que se tornaram israelitas e
consideram a Amazônia a sua terra prometida. Para estes fiéis sua religião tem origem no
céu, e assim como o céu, sua fé não tem fronteiras na terra.

Palavras-chave: Batalha. Diferença. Fronteira. Identidade. Religião.

2
INTRODUÇÃO

Conhecemos como Alto Solimões1 a região amazônica fronteiriça do encontro


dos três países: Brasil, Colômbia e Peru. Naturalmente, o nome é tomado do grande rio
Solimões em cujas margens estão situadas as cidades de Tabatinga (BRA) e Letícia
(COL), e o povoado de Santa Rosa (PER), cidades estas que compõem a chamada
Tríplice fronteira Amazônica ou “Trapézio Amazônico” (CHAUMEIL, 2000). Como
observaram Albuquerque & Paiva (2015), sendo esta uma região que surge na mídia
apenas em matérias acerca do tráfico de drogas ou da exuberância da natureza, as
dinâmicas culturais e as particularidades da população local - constituída por indígenas,
ribeirinhos e nacionais – acabam por ficar invisibilizadas, ocultando o mútuo
enriquecimento étnico e simbólico que a convivência na fronteira propicia ao expor
diferenças e a necessidade de cada um lidar com estas no seu dia a dia.
Além das fronteiras políticas que, como resultado de avanços bélicos, invasões,
migrações e tratados perpassaram áreas tradicionais de alguns povos pré-colombianos
como os Ticuna, agora “situados” geopoliticamente nos Estados do Brasil, da Colômbia e
do Peru, há também fronteiras simbólicas (linguísticas, étnicas e religiosas) que se
constroem pela constatação da alteridade (BARTH, 2000; CARDOSO DE OLIVEIRA,
2000) e regem as relações na região. Mesmo assim estabelecidas, estas fronteiras são
porosas e o entrelaçamento, como por exemplo, em casamentos interétnicos/
internacionais, acaba complexificando a questão do pertencimento étnico-identitário na
região, redefinindo relações de parentescos e diluindo ou acentuando diferenças. Como
diz Bauman (2013) em referência ao que definiu como “diásporas étnicas” – o encontro
de grupos distintos num mesmo ambiente - fica até mesmo difícil, com o tempo, saber
quem é de dentro e quem é de fora.
Alguns trabalhos científicos disponíveis sobre a região da tríplice fronteira
analisam o processo histórico da conformação dos limites da região e da população
(ZÁRATE BOTÍA, 2008); as relações transfronteiriças (ALBUQUERQUE & PAIVA,
2015); e a violência de gênero, a exploração sexual e o tráfico de pessoas (OLIVAR,

1
A Mesorregião do Sudoeste Amazonense é uma das quatro partes que compõem o Estado do Amazonas.
Por sua vez, divide-se em duas microrregiões, a do Alto Solimões e a do Juruá. Na MR do Alto Solimões
há nove municípios que são: Amaturá, Atalaia do Norte, Benjamim Constant, Fonte Boa, Jutaí, Santo
Antônio do Içá, São Paulo de Olivença, Tabatinga e Tonantins. Juntos, estes municípios cobrem
214.217,80 km2 e somam uma população de 224.094 habitantes (IBGE, 2010).

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2015). Neles, a fronteira é pensada como mais do que o limite ou a expansão territorial
estatal ou o avanço urbano rumo à selva e seus selvagens ainda por conquistar (SERJE.
2011). Seguindo este princípio, é precisamente na perspectiva de Albuquerque & Paiva
(2015, p. 140) de que as fronteiras não existem naturalmente dadas como nos tratados e
mapas, mas “são permanentemente construídas, redefinidas e reconfiguradas”, jamais
dissociadas das ações das pessoas que se articulam numa imbricada teia de transações
familiares, comerciais, estatais ou internacionais que, neste artigo, abordarei um tema
também transfronteiriço: a religião, no caso, direcionando o olhar para algumas
religiosidades específicas que se transfronterizam na região.
Assim, como exemplos, elenco aqui apenas três das religiosidades locais, que são:
(1) a Irmandade da Santa Cruz - uma religião originalmente brasileira, de matriz cristã,
estudada por Oro (1989); (2) os Israelitas (Asociación Evangélica de la Misión Israelita
del Nuevo Pacto Universal – AEMINPU) - uma religião peruana andina que reidentifica
seus fiéis como israelitas na sua terra prometida: a Amazônia (SAÉNZ, 2014); e (3) a
Igreja Ticuna em Benjamim Constant (BRA), um segmento cristão protestante marcado
por um discurso indígena de autonomia cultural e espiritual (LIMA, 2013). Três
religiosidades de origens distintas (brasileira, peruana e indígena) que cruzam
continuamente as fronteiras políticas e simbólicas no Alto Solimões.
Este artigo é, portanto, uma revisão do tema da religião no Alto Solimões
segundo os autores que já se detiveram em analisá-la, mas focando especialmente as
dinâmicas de adequação – ou não - à medida que avançam além de suas fronteiras, isto é,
uma leitura da religião “em movimento” na fronteira. Sua abordagem realça as relações,
as reelaborações contextuais, os discursos identitários e a transfronteirização na região do
Alto Solimões. Assim, para o desenvolvimento do tema, a revisão é também seguida de
perto pela experiência de ter vivido naquela região entre os anos de 1997 a 2012 e por
narrativas recentes de líderes destas religiosidades que forneceram esclarecimentos
pontuais para a construção deste artigo. De modo geral, este artigo é um estudo
antropológico de três religiões que se constroem na fronteira, mas não se limitam a ela.

A RELIGIÃO NA FRONTEIRA: PERCEPÇÕES INICIAIS

De imediato, destaco cinco percepções acerca da religião na fronteira. Faço isso


com base nas leituras que referencio neste artigo, mas também na experiência de ter
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vivido naquela região, inclusive como religioso engajado na época com um projeto
missionário. Estas percepções iniciais falam das exigências da fronteira para as formas
religiosas dali.
Predominantemente católica, ao lado das várias vertentes evangélicas que
compõem a segunda maior religião local, a tríplice fronteira e as demais cidades do Alto
Solimões são massacrantemente cristãs - pelo menos assim se mostram em censos
demográficos (IBGE, 2010; INEI, 2007; OFICINA, 2017), com percentuais acima de
80% das populações locais se auto-designando cristãs. Porém, outras religiosidades como
o xamanismo indígena, as afro-religiosidades, espiritismo, práticas mágicas e esotéricas e
algumas variações de cristianismos populares como rezadeiras/benzedeiras, são bem
mais presentes do que o que apontam os números censitários. Embora fundamentalistas
não aceitem essa realidade, o fato é que, em síntese, as fronteiras cristãs não são tão
claramente dadas assim no Alto Solimões, havendo co-existência de práticas mesmo que
o fiel se confesse católico ou evangélico. Muitos recorrem aos rezadores ou possuem
uma postura bem ambígua frente às visões e temas escatológicos pregados pelos
movimentos proféticos da região. Nesse sentido, (1) na fronteira, sendo esta um espaço
de intercruzamentos de ideias religiosas, o pertencimento a uma religião nem
sempre implica em exclusividade (para o convertido).
Também não é raro ouvir os novos-fiéis descreverem suas migrações entre
religiões até chegar à religião presente. Evidentemente, o “pular” de uma religião a outra
não elimina as influências anteriores, e assim, as ideias vão se acumulando secreta e
sincreticamente, deixando as religiões normativas em “ameaça”. A reação das religiões é
a exortação à entrega, à devoção de modo marcado, evidente e intenso. Assim, novas e
dinâmicas fronteiras (agora doutrinárias) vão sendo soerguidas, muralhas que pretendem
- contrariando a tendência local à mistura ou contato com o diferente - afirmar a
veracidade e a superioridade de uma fé em detrimento das demais. (2) Isso torna a
fronteira um campo de batalhas simbólicas permanentes pelo “monopólio da
santidade” (VAINFAS, 1995) onde, inclusive a imitação do outro, ressignificada para
ser mais eficiente a seus fins, é um recurso de autoelaboração (POMPA, 2003). Engana-
se quem pensa que a fronteira é um espaço passivo às novas religiosidades. Esse espaço é
disputado com lutas simbólicas e avanços missionários, verdadeiras conquistas
territoriais, numéricas, argumentativas. Assim como as igrejas cristãs tradicionais, as três

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religiosidades abordadas neste artigo buscam também fundamentação bíblica para sua
afirmação. A mesma fonte, mas com práticas e argumentos diversos e até opostos.
Além das disputas bíblicas, um tema de atração por excelência é o da cura. Tanto
por suprir a necessidade das populações locais como também por seu efeito de
autenticação do seu agente e agência, a cura – física ou espiritual – se sobressai no
pensamento religioso na fronteira. É muito comum ouvir testemunhos de que foi pela
enfermidade que tal devoto dirigiu-se de uma vida de farras, bebedeiras e orgias à
religião que lhe proporcionou algum tipo de cura ou reordenação. Assim, o
pentecostalismo, o xamanismo, e as figuras de profetas curadores como veremos na
Irmandade da Santa Cruz e na AEMINPU, por suas propostas de enfrentamento direto
das enfermidades, sobretudo, encontram na região um ambiente propício para o seu
desenvolvimento. Portanto, (3) outro traço característico das religiões da fronteira é
que estas giram em torno do alcance de alguma cura ou resolução de uma desordem
psicossomática, relacional ou mesmo econômica. O que prova – aos olhos dos fiéis -
sua eficácia, veracidade e superioridade.
Quanto à religião como identidade, como assim pensaram, por exemplo,
Chaumeil (2000), Lima (2013) e Saénz (2014), eis aí uma abordagem muito relevante,
sobretudo na fronteira. Pois, se como ponto de partida “Deus não faz acepção de
pessoas” - como assim declarou um pastor israelita ao dizer que sua religião se abre a
todos os possíveis, independentemente da nacionalidade, etnia, sexo, cor, condição
socioeconômica - é verdade também que, uma vez convertido, este mesmo “Deus”
distinguirá os seus fiéis dos infiéis, e não apenas pela imposição de um novo credo ou
prática - ou, nas palavras de dirigente da Irmandade da Cruz: um “regulamento” -, mas
também pela indumentária e aparência típicas (os israelitas e a irmandade da cruz
diferenciam-se no modo de vestir. Estes: véu para as mulheres e roupas brancas para
homens; Aqueles: túnicas e véu para mulheres e túnicas coloridas com mantos
transversais, barbas e cabelos compridos para os homens), além de proibições relacionais
(sexo antes de festas especiais), profissionais (guarda do sábado e festas) e alimentares
em dias santos. Esse identificar religioso reflete o jogo ambíguo da noção de fronteira de
Chaumeil (2000) que implica em separar (a fronteira limite) e em unir (por ser um local
de interação cultural) simultaneamente. Assim, (4) a religião na fronteira amazônica
recria identidades e laços relacionais tão intensos como a consanguinidade. Daí a
importância de se perceberem como “irmãos” e “família” na congregação
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(VILAÇA, 2008). A religião, aproveitando aqui a fala de Oro (1989, p. 195), transfigura
os fiéis da “condição de „excluídos‟ em „escolhidos‟”. Os identifica e os engaja.
Por fim, a última peculiaridade que relaciono aqui é que, (5) dada à própria
condição de interpenetração cultural na fronteira, é perfeitamente compreensível
que uma religião “de fora” precise se flexibilizar, se adequar ou, dizendo como
Pompa (2003), “negociar” sentidos. Athus, pastor ticuna narrou-me o que considerou
um insucesso a evangelização dos adventistas entre alguns Ticuna por conta das
exigências alimentares que envolviam abstenção da carne de porco, anta, tartaruga e
peixes de couro (os alimentos mais comuns na região). Interessante exemplo para
entender as exigências da fronteira do Alto Solimões.
Portanto, a religião na tríplice fronteira transita por estas peculiaridades da
condição fronteiriça. À tendência ao sincretismo, sugere o exclusivismo; Aos vícios,
opressões e dores aponta a cura ainda na terra; oferece identidade e familiaridade a
imigrantes e a excluídos e se adéqua – se pretende prevalecer – às condições locais de
vida dos fieis, possibilitando-lhes a prática da fé. E por ser religião – apesar dos vários
sentidos que o termo possa ter na abordagem sociológica -, evidentemente oferece, por
sua natureza, uma proximidade maior do sagrado. Vejamos mais de perto estas religiões
da fronteira.

A IRMANDADE DA SANTA CRUZ E O MESSIAS RIBEIRINHO

A Associação Missão Ordem Cruzada Católica Apostólica Evangélica,


melhor conhecida na região da fronteira como Irmandade da Santa Cruz (ISC), é um
movimento messiânico iniciado na década de 1960 por José Fernandes Nogueira,
pregador mineiro que se autonomeou José Francisco da Cruz e foi popularmente
conhecido como Irmão José. Em 1962, aos 49 anos de idade, o Irmão José inicia sua
peregrinação por 10 Estados brasileiros e em 4 países latino-americanos, instalando-se no
Alto Solimões no ano de 1972. A maior recepção do movimento ocorreu entre as
comunidades indígenas dos povos Ticuna (Tikuna; Tukuna; Magüta) e Cocama
(Kokama, Kocama), etnias que habitam os três países da fronteira e que somam cerca de
30.000 pessoas cada (Chaumeil, 2000)

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Ari Pedro Oro estudou este movimento, inclusive tendo encontrado ainda vivo o
seu fundador, e publicou em 1989 seu livro baseado na tese de doutorado. A leitura do
autor é de que, mais do um movimento messiânico - mais um dentre tantos outros
anteriormente vividos pelo povo Ticuna na região do Alto Solimões – trata-se de “acima
de tudo, um movimento religioso” que “atinge todo o social” e que não desmerece seu
sentido político porque a ISC não é “voltada unicamente para o além” (ORO, 1989, p.
192). A organização das comunidades refletem esse caráter, associando as figuras do
líder político e religioso no mesmo dirigente local. Assim, “toda política é impregnada
de religião e toda religião é projeto político” (ORO, 1989, p. 198).
Particularmente, o que vi enquanto vivi na região entre o final da década de 1990
e meados da década de 2000 foi a vida simples, mas organizada, de adeptos que se
caracterizavam por suas roupas diferentes, em suas capelas precedidas por alguma
enorme Cruz “plantada” como marco. Não estava pesquisando esta religiosidade
especificamente, no entanto, a presença de cruzados sempre foi notada, seja entre
indígenas ou ribeirinhos. Por vezes ouvia falar do Irmão José como um homem diferente,
um santo padre que fazia milagres, profetizava o fim do mundo, levitava apesar de sua
grande estatura, algumas vezes andando sobre o barro dos portos das comunidades sem
afundar os pés e que, por fim, seria até mesmo uma nova encarnação de Jesus. Fica nítido
que este líder, com seu carisma deixou sua marca na região. Quanto a isso, Oro (1989)
diz que, pelos desdobramentos que se seguiram, sua chegada e convivência por uma
década na região do Alto Solimões, marca a vida e a história de seus seguidores “em um
antes e um depois do Irmão José” (ORO, 1989, p. 55).
Meu contato mais direto com a ISC se deu em uma comunidade que buscava seu
reconhecimento étnico como Kokama no Vale do Javari. Refiro-me à população da
comunidade de São Pedro do Norte. Naquela ocasião, estava em viagem escolar em
companhia do antropólogo e professor José Trajano que já fazia sua pesquisa com este
grupo, pesquisa finalizada em 2016 (VIEIRA, 2016). Ali vimos um documento redigido
e apresentado pela Organização Indígena do Povo do Vale do Javari –
ORINPOKOVAJA sob o título de “Levantamento histórico do povo do vale do javari”
que atrelava sua história naquela região às origens da Irmandade da Santa Cruz, dizendo
(transcrevo aqui o texto como estava redigido, conservando a linguagem popular):

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A motivação para a imigração do povo ao Brasil, foi o movimento missionário
que ficou conhecido como, A irmandade da santa cruz. Entre 1972 a 1980 na
cidade de Nauta iquitos perú numerosas famílias, comenzarom a espalhar- se e
formar novas comunidade. Em diferentes lugares, e rios. A onde se encontra
no rio Ucayali, Maranhão, e rio Amazonas. Mais conhecido como rio
Solimões, e no vale do javari. O líder do movimento era um profeta mestiço
Brasileiro, mais conhecido como José Francisco da Cruz. Ele visitou muitas
comunidades indígenas como não indígenas. A onde a maior das comunidades
s, foi conquistada pelo profeta. A onde foi pregando o cristianismo e até á
cidade santa no jui rio Iça (ORINPOKOVAJA, 2011)

Além dos Cocama, entre os Ticuna o Irmão José também obteve grande êxito. O
pastor Ticuna Athus Vasques insiste na perspectiva de que isso se deve a uma
predisposição dos mesmos ao messianismo. De fato, Oro (1986) relaciona sete
movimentos messiânicos identificados por pesquisadores como Curt Nimuendaju e
Maurício Vinhas de Queiroz nas décadas de 1940/50 respectivamente. Estes movimentos
teriam ocorrido entre os primeiros anos de 1900 e o ano de 1961 e, a partir desta
observação, caracterizou-se a cosmologia Ticuna como messiânica, recorrente, em
tempos difíceis, à tradição mediante aparição de imortais mitológicos - reincidentemente
aparecendo a jovens ticunas, mas também por curandeiro e até um funcionário do SPI,
não-índio; por meio de visões -, indicando cataclismas como meio de livramento dos
obedientes e sucessiva punição aos opressores (os “brancos”, no caso os senhores de
barracões) e desatentos à revelação. Tanto Oro (1986) quanto Oliveira Filho (1999)
abordam estas ocorrências históricas vendo similaridades e especificidades em cada, mas
sem perder de foco o elemento mitológico como um recurso e um modo ticuna de se
posicionar e se mobilizar em tempos de crise.
Nessa perspectiva, o Irmão José, uma figura messiânica por excelência, vindo
pelo Peru já acompanhado por mais ou menos 300 seguidores que lhe atribuíam poder de
cura, feitos extraordinários, santidade (divindade) e profecias quanto à reordenamento da
vida, teria, em todos os sentidos, encontrado ali um campo fértil para o desenvolvimento
de sua mensagem, dando sequência a lista, tornando-se o oitavo movimento messiânico.
A biografia do Irmão José justifica muito do pensamento em torno de sua figura.
Nascido como José Fernandes Nogueira em 03 de Setembro de 1913, no povoado de
Várzea Alegre, município de Cristina/MG, já é em si fruto de uma “promessa” feita por
sua mãe em decorrência de complicações na gravidez. Diz-nos Oro (1989, p. 56) que a
mesma implicava na dedicação do filho para ser um “missionário do Sagrado Coração de
Jesus”. Ao crescer, as tentativas de cumprir a promessa foram frustradas e José chegou a

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casar e ter filhos. Somente no ano de 1944, após anos de envolvimento religioso leigo no
Catolicismo, é que ao participar de uma semana evangelística José teve visões em três
noites consecutivas e no mesmo local de contemplação. Em suas visões, o Sagrado
Coração de Jesus em forma humana (e depois, toda a Trindade), apresentava-se com uma
cruz na mão direita e uma Bíblia na esquerda, ordenando-o a ir pregar sua mensagem.

Fig. 1. O Irmão José Francisco da Cruz (1913-1982) em 1981 – Fonte: ORO (1989).

Em obediência às visões, José começa suas “pequenas viagens apostólicas”


(ORO, 1989, p. 59) em 1960, levando consigo apenas uma Bíblia e uma cruz sobre os
ombros. No cumprimento de sua vocação, percorreu os Estados de Minas Gerais, São
Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, visitando também o Uruguai, a
Argentina e o Paraguai, de onde retornou pelo Mato Grosso do Sul para sua terra natal.
Em 1964 seguiu, finalmente, para o norte do Brasil, chegando à região do Alto Solimões
em 1972. Até o ano de sua morte, 1982, o irmão José viveu de batina, celebrando
cultos/missas, batismos, casamentos. “Agia também como médico, ou curandeiro, pois
além de orar sobre os doentes aconselhava-os a usar determinados remédios e plantas
medicinais” (ORO, 1989, p. 63, grifos do autor). Desta forma, promoveu migrações
indígenas e ribeirinhas, iniciou comunidades, estabeleceu seu credo e sua missão como
instituição, elegendo liderança para sucedê-lo após sua morte, mantendo seus ensinos. No
censo nacional não se pontua esse segmento, mas a sua influência, sobretudo entre os
Ticuna, Cocama e comunidades ribeirinhas sugere uma relevante população de
seguidores entre praticantes e simpatizantes. Ari Oro, naquele ponto da pesquisa – 1989 -
10
, apontou o número de seus seguidores nas comunidades ticunas como algo em torno de
20 mil pessoas (ORO, 1989, p. 7). Agüero (1994, p. 85) afirma que os Cocama se
converteram à mensagem do Irmão José em “casi en su totalidad” - o que acrescentaria aí
mais cerca de 30.000 pessoas segundo a conta de Chaumeil (2000).
Sua morte foi cercada de incertezas e expectativas, pois apesar de debilitada todos
pensaram que curaria de sua enfermidade. Morreu no dia 23 de Junho de 1982, sendo
sepultado apenas 35 horas depois porque os fiéis acreditavam que ressuscitaria.
Surgiram, então, muitos testemunhos espetaculares como o de que o irmão José falara
suas últimas palavras em 10 idiomas distintos, que seu corpo não se decompunha, e que,
enfim sepultado, teria sido visto em vários lugares por vários seguidores, reaquecendo
assim a fé do grupo que havia se abalado com sua morte.
Além das leituras de Oro (1989) e de Athus Vasques, destaco aqui a perspectiva
de Agüero (1994, p. 85) que sugere a conversão dos Ticuna e dos Cocama à ISC como
tendo origem em próprias “razones culturales”, ou seja, o messianismo, o uso de cânticos
e danças, a figura do xamã como alguém miraculoso, e narrativas míticas de seres
andantes com poder de criação, provocação de cataclismas e transformações serviram de
precedente estrutural para receber o irmão José, igualmente um viajante misterioso, sem
família e de hábitos curiosos.
Seja como for, as leituras da ISC pelos vieses da religião imbricada pela política,
do messianismo ou de padrões estruturais pré-estabelecidos descartam a convencional
abordagem segundo o paradigma aculturacionista. Nesse sentido, Oliveira Filho (1999)
evita pensar a ISC na perspectiva da aculturação ou de seus desdobramentos, como o
hibridismo, descartando pensar, portanto, em perda da cultura tradicional dos indígenas
ou de uma nova religiosidade composta de elementos desta com os elementos exógenos
da nova fé. Para ele, mais do que uma mera camada sincrética ou uma terceira religião, o
“campo intersocietário” que se instaura no encontro destas cosmologias é caracterizado
“pela presença fundadora de perspectivas diferenciadas para cada ator étnico”
(OLIVEIRA, 1999, p. 22), e assim, há um processo unificador que se forja nos
antagonismos e ambigüidades, perpassados por um jogo de manipulações e de interesses,
violento, político, mas que entrecruza significados e acha um lugar e um sentido para o
outro.

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O que efetivamente importa – e que constitui o fator dinâmico – é que o
processo complexo de construção de sentido por um agente, que opera sempre
com um código cultural e uma lógica específica, mas que igualmente registra,
especula e traduz para seus próprios termos a existência de outros agentes e de
outras culturas (OLIVEIRA FILHO, 1999, p.. 23)

Com esse princípio de leitura, a ISC pode ser vista como uma religiosidade que
engloba as tradições e religiosidades anteriores, mas que estas a penetram por sua própria
porosidade, passando a fazer parte, para os fiéis, de uma mesma ordem, não como uma
nova e alienígena religião de branco. Lembro-me claramente da recusa imediata e
enfática dos auto-designados de São Pedro do Norte ao serem questionados quanto a,
para a efetiva revitalização tradicional indígena, ter que largar a fé da irmandade. Não
seria necessário, para eles. Haveria ali uma continuidade entre cultura tradicional e a
aparente nova religião (VILAÇA, 2008).

Fig. 2. Igreja da Irmandade da Santa Cruz em Tabatinga/AM, 2014 – Fonte: Álbum pessoal, 2017

Portanto, como religião na fronteira, a ISC traz um messias recente (mas igual a
outros anteriores), com poder de cura e com profecias do final do mundo. Tem
conservada sua “doutrina” ou “regulamento diferente” que implica no mudar de modo de
viver, como assim explicou o dirigente da igreja de Tabatinga ao falar acerca da proposta
da ISC. As palavras do Irmão José são sempre trazidas à memória social, basta uma
tempestade com vento forte que destelhe casas ou o desmoronamento de barrancos em
comunidades que teriam recebido mal o profeta nas suas passagens que logo retornam
com vigor.

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OS INCA-ISRAELITAS E A AMAZÔNIA COMO “TERRA PROMETIDA”

Fig. 3. Associação Evangélica da Missão Israelita no Novo Pacto Universal – Fonte: AEMINPU

Subindo o rio Javari, ouvi de um dos guias da embarcação que estávamos


passando pelas comunidades dos “cabeludos”. Naturalmente, a mente se despertou diante
de tal informação. Tratava-se de comunidades agrícolas na margem peruana do rio,
inteiramente habitadas por adeptos de outra religiosidade que se expande na região: Os
“Israelitas”, como assim são mais conhecidos os fiéis da Associação Evangélica da
Missão Israelita no Novo Pacto Universal – AEMINPU2. Cabelos e barbas compridos
são distintivos, um símbolo do pacto com Deus a exemplo do voto do nazireado previsto
na Torá Judaica. As vestes dos homens (túnicas coloridas com mantos transversais) e das
mulheres (túnicas e véus) também os distingue, lembrando personagens dos tempos
bíblicos, ou como já se disse, vivem “como nos tempos de Cristo” (FANTÁSTICO,
2012) – o que só se aplica ao modelo das vestes, pois não se excluem das tecnologias
disponíveis como sites, instrumentos musicais, carros e tudo mais.
Sua ênfase está na observância do decálogo (os 10 mandamentos), sendo estes
reorganizados e interpretados por Ezequiel Ataucusi Gamonal, seu profeta, e
consequentemente, implica também na prática das festas judaicas, os sacrifícios e
holocaustos, e o Sábado (a exemplo do calendário judaico lunar, iniciado às 18:00h da
Sexta-feira do nosso calendário), dia em que se reúnem com cânticos, danças, leituras,
incensos e prédicas.

2
Site da AEMINPU: http://aeminpuperu.org/nosotros.html.

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Os israelitas do novo pacto são predominantemente imigrantes peruanos, mas por
serem proselitistas (melhor: missionários) há, agora, adesões de brasileiros e de
colombianos que moram nas cidades fronteiriças. Segundo De La Torre López (1996),
em seus primeiros trinta anos a missão já contava mais de 30.000 adeptos avançando
também em vários países como a Bolívia, Chile, Equador, Colômbia, Paraguai, Brasil,
Argentina y Costa Rica. Na Colômbia, que segundo Lucumí (2015, p. 90) é “Uno de los
países en los que la nueva religión Israelita ha tenido mayor aceptación es Colombia”, a
AEMINPU iniciou sua jornada nos últimos anos da década de 1980 com a chegada de
seus primeiros imigrantes/ enviados. No Brasil, a imigração se dá na década de 1990.
Seu fundador foi um pregador peruano Ezequiel Ataucusi Gamonal (1918-2000),
a quem se atribui a própria encarnação de Deus, mais precisamente da terceira pessoa da
Trindade cristã: o Espírito Santo. À Ataucusi há várias referências como “Pai Israel”, “o
último Adão”, “o Cristo do Ocidente”, “o Inca”, “o Varão”, “o Homem”, sendo
habitualmente citado com reverência como “Mi Señor (Meu Senhor)” (DE LA TORRE
LÓPEZ, 1996, p. 26). Ezequiel Ataucusi é, portanto, o centro da AEMINPU, o seu
profeta, e por isso os pesquisadores que já se debruçaram sobre os Israelitas
invariavelmente se detiveram no estudo de sua biografia.
Nesse sentido, uma leitura interessante é feita por Ossio (2014) para quem seria
Ezequiel Ataucusi é um personagem que merece um lugar de importância na história do
Peru por ter sido um homem do campo simples, falante do quéchua (não clássico no
castelhano), nascido entre 14 filhos de um casal modesto, tendo estudado apenas até o
quarto ano primário, e no entanto, ter estruturado este movimento messiânico, migratório,
e nacionalista (sob o lema de “Peru privilegiado”). Para além da leitura do movimento
como religião, Ossio (2014) destaca o quanto Ataucusi, ao promover esperança,
espiritualidade, ética (os testemunhos falam de pessoas que largaram vícios e vida de
conflitos), organização agrícola para produção comunal de alimentos, freou a guerrilha
do Sendero Luminoso, oferecendo uma alternativa aos oprimidos e famintos da
população campesina vulnerável diante da crise política na década de 1980. Visto assim,
a análise ressalta o carisma de Ataucusi, que o legitimou como líder não apenas religioso,
utópico, mas também político (fundou um partido, a Frente Popular agrícola Fia del Perú
– FREPAP, pelo qual concorreu, sem sucesso, em duas eleições à Presidência da
República em 1990 e 1995). Lucumí (2015, p. 100) também entende assim e diz que “a
pesar de las críticas, el mensaje de Ezequiel se ha escuchado y puesto en práctica,
14
brindando consuelo y sentido de vida a hombres y mujeres, tal como lo han hecho otros
movimientos mesiánicos milenaristas”.
Há ainda o elemento nacionalista por ser um movimento de recolocação do Peru
no centro do mundo. O que Israel foi por Moisés, e depois por Jesus, para o mundo, o
mesmo seria o Peru por conta do seu passado incaico e por Ataucusi. Os Incas não seriam
os pagãos promovidos pelo deturpado Catolicismo histórico, mas na verdade seriam
“profetas de Dios” (DE LA TORRE LÓPEZ, 1996, p. 25), a civilização escolhida e
profetizada de onde sairia o próximo profeta para a última geração. O resgate desse
passado ressignificaria toda a hagiografia até então, recuperando o Inca como verdadeiro
Israel, e apontando a Amazônia como a “Terra Prometida” para a qual os fiéis devem
migrar a fim de superar os anos de fome e as catástrofes previstas para os últimos dias,
antes do grande julgamento do mundo. Isso explica a organização em cooperação
agrícola e a migração crescente dos moradores andinos rumo à região da tríplice
fronteira.
Atentando para a dica de De la Torre López (1996, p. 26) de que a conversão não
é um fenômeno de massa, e sim, individual, “circunscrito à intimidade da pessoa”, a seu
exemplo, trago aqui, brevemente, explicações de um israelita acerca da sua fé. Hoje
Pastor (e me referirei a ele apenas como “Pastor” daqui em diante), este informante se
dispôs a falar acerca do seu viver como israelita. Seu perfil se enquadra nas várias
referências aos adeptos nos trabalhos anteriores: peruano, imigrante, de família modesta e
de pouca escolaridade – tendo parado de estudar aos nove anos de idade, se autodefiniu
“praticamente analfabeto”, mas sendo alvo da graça de Deus exatamente por conta desta
condição de pobreza e humildade, é somente por ele capacitado para a função espiritual
que exerce. Atraído pela cura – no caso, a de sua esposa – e pela curiosidade com os 10
mandamentos, teve antes passado por outras igrejas como a Adventista, a exemplo do
próprio Ezequiel Ataucusi Gamonal de quem, aliás, em sua fala, deixa claro que mais do
que um homem, era mesmo “Deus encarnado”. Pastor descreve a Congregação Israelita
como um movimento em crescimento, com “mais de 800 mil israelitas” espalhados “por
toda a face da terra” – reforçando assim o caráter missionário da AEMINPU, incumbida,
como discípulos de Jesus, de doutrinar e fazer discípulos por todo mundo, anunciando os
mandamentos de Deus. Como os demais líderes israelitas, Pastor não vive de renda
eclesiástica. É um moto-taxista (emprego bem comum na tríplice fronteira) e

15
testemunhou que preferiu sair do seu bom emprego anterior porque não folgava no
Sábado, dia santificado para a adoração dos israelitas.
Acerca da barba, cabelos compridos e indumentária típica, se referiu à
“semelhança de Deus” – expressão que remete ao mito judaico-cristão da criação do
homem assim feito à imagem de Deus – e ao ato divino de ter vestido Adão e Eva após o
pecado com o que Pastor chamou de “túnicas de pele”. Para ele, estar tipicamente
diferenciado, ainda que inicialmente constrangedor, é certo tipo de prova, pois “não é
qualquer um que pode ser israelita”, apoiando-se na parábola de Jesus acerca de seus
discípulos quando comparados a quatro tipos de terras nas quais cai o mesmo tipo de
semente, mas em apenas uma – a boa terra - a semente pode se desenvolver e depois
produzir. Ser israelita é prova de fé, resistência e exige coragem de ser diferente, suportar
ambiente desencorajador e conviver sendo “aborrecido” - usado por ele como equivalente
a “não amado”, “rejeitado” - pela própria família e amigos. Contudo, se são
discriminados, segundo Pastor, os israelitas não são encorajados a revidar e discriminar
os outros. “Cristo não está dividido”, disse ele, “Em Deus não há acepção de pessoas.
Aqui podem vir o branco, o negro; o plebeu como o nobre; o rico e o pobre...”,
apontando assim que Deus não deseja a exclusão, mas a inclusão de todos “como uma só
família”.
Além do Pastor, outro israelita a quem me dirigi foi um brasileiro convertido que
fez questão de pontuar a perspectiva do outro lado da discriminação, quando antigos
amigos e parentes caçoaram inicialmente de sua conversão, inclusive tendo-o como
“porco” por conta da barba e cabeleira (preconceito que Saénz [2014] associou à
diferença na regularidade de banhos semanais entre moradores dos Andes e da
Amazônia). Destas conversas, o que fica muito evidente é a resolução com que os
adeptos encaram essa transição e a superam. A fronteira é um espaço de transição, mas
isso não significa que a mesma seja tolerante e facilmente trilhável sem implicações para
as partes.
É certo que os israelitas não querem ser iguais. Pastor exaltou como característica
marcante do grupo exatamente a “mudança (câmbio)” de vida. É na diferença que
pretendem se estabelecer. Segundo Chaumeil (2000), a própria migração dos israelitas
para a fronteira – além do aspecto apocalíptico pregado – é, politicamente, um projeto de
“colonização” e não a promoção de uma área de integração e intercâmbio. Para ele, foi a
ideia de fortalecer a fronteira peruana sob o programa da legislação agrária de 1995
16
promovendo “fronteiras vivas” que possibilitou politicamente a expansão dos imigrantes
andinos à Amazônia. Dito assim, não é correto ver a fronteira como um espaço neutro,
aberto a todos, mas um campo de choques de interesses e nesse espaço a religiosidade
tem toda uma história de sobrevivência em meio à adversidade, além de contribuir para a
construção de identidades, como abordaram Chaumeil (2000) e, mais recentemente,
Saénz (2014) sob a orientação de Ari Pedro Oro.
Por fim, é importante ressaltar aqui que a AEMINPU tem como base discursiva
um religioso milenarista/ messiânico de origem Inca, o que nos remete novamente a um
povo sulamericano pré-colombiano como os Ticuna e Cocama. Asseverar a semelhança
de Machu Picchu à Jerusalém; do Peru à Israel; do Inca ao Judeu; de Ezequiel Ataucusi
Gamonal a Jesus Cristo - enquanto encarnações da Trindade – reflete uma postura de
resgate identitário e tradicional muito necessário para as populações da fronteira. Talvez
seja mesmo a Amazônia, se não a “terra prometida”, pelo menos a terra fértil para o
desenvolvimento e consolidação de movimentos messiânicos que (re)afirmam a
indianidade apropriando-se, segundo suas matrizes, e reivindicando uma continuidade, da
religião exógena, se é que assim podemos ainda nos referir ao mito judaico-cristão diante
desta conjuntura.

A IGREJA TICUNA: UMA INDIANIZAÇÃO DO CRISTIANISMO

Em Dias (2015) foram abordados alguns temas como a Teologia índia3, a


Etnoteologia4, o CONPLEI5 e a Terceira Onda6, movimentos do que vem sendo os novos

3
“A teologia índia centra-se, de acordo com Teixeira (2009), López Hernández (2008) e Suess (2007), no
princípio de que as populações indígenas já tinham teologias desenvolvidas antes da chegada do
cristianismo e essas representam um patrimônio religioso particular que não se pode deixar desaparecer”
(ARAÚJO, 2011, p.130).
4
Etnoteologia é termo em elaboração no cenário missionário (ver: Leonardo, 2013, p.8-9, em
http://www.faifa.edu.br/revista/index.php/voxfaifae/article/view/87/98). Envolve a relação da mensagem
cristã e as culturas receptoras. Segundo Leonardo: “ela apresenta a cultura de Deus [...] com o
desenvolvimento da cultura local, surgindo assim a „contracultura cristã‟, cultura e crença religiosa
proposta por Deus e que está a cima de qualquer evolução e variação cultural”.
5
CONPLEI - Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas. Instituição evangélica
indígena, fundada em 1991, administrada por líderes indígenas. WWW.conplei.org.br e
https://www.vozigrejaindigena.com/sobre-1.

17
rumos de certo “protestantismo indígena”. “Novos”, mas não inéditos, porque já
dispomos de paradigmáticas leituras antropológicas dos sucessivos processos históricos
de ressignificação do cristianismo e de sua mensagem pelos indígenas, como apontaram
autores como Cristina Pompa, Paula Montero, Ronaldo de Almeida, Ronaldo Vainfas,
Juan Carlos Estenssoro, Eduardo Viveiros de Castro, Aparecida Vilaça e Robin Wright.
Entre os Ticuna que, como já visto, assim como os Cocama aderiram
intensamente ao discurso milenarista do Irmão José na década de 1970 (ORO, 1989;
CHAUMEIL, 2000), Lima (2013) apontou o surgimento de uma igreja evangélica nativa
que se distinguia por afirmar uma continuidade cosmológica entre a sua tradição indígena
e o cristianismo. Já na década de 1990, Athus Vasques (45 anos de idade; teólogo/
professor/ antropólogo; personagem central na análise de Lima [2013] e quem
prontamente me forneceu esclarecimentos para este artigo), bem como outros líderes
Ticuna (como Eli Leão, hoje vice-presidente do CONPLEI), a partir de suas experiências
negativas com discursos e atitudes de igrejas e missões fundamentalistas, identificaram a
necessidade de “uma igreja genuinamente indígena” - lema que, aliás, vai encarnar o
pensamento do CONPLEI (VOZ, 2017). Por mais que seja aparentemente contraditório
pensar que o cristianismo possa, de alguma forma, ser encarado como algo
“genuinamente indígena”, esta é a sua percepção e o seu argumento: a existência de uma
continuidade cosmológica entre a mitologia indígena e o cristianismo.
Conforme Lima (2013), o pastor Athus desenvolveu em Filadélfia, sua
comunidade Ticuna no município de Benjamin Constant-AM, uma igreja sob essa nova
perspectiva a que chama de “etnoteologia” por propor um diálogo simétrico entre o saber
teológico – que Athus teve oportunidade de estudar no Rio de Janeiro e, em outro
momento, na Bahia – e a tradição cultural indígena. Diálogo este que, segundo Athus,
não só é possível como também é o modo próprio de possibilitar ao indígena uma
compreensão da mensagem bíblica em seus termos mitológicos. É que para este pastor
ticuna o modo psicossocial de pensar do indígena diverge paradigmaticamente do modo
do “branco”. Assim, todo esforço de cristianização desde o do catolicismo aos vários
ramos evangélicos e para-evangélicos (a própria ISC, os Testemunhas de Jeová e os
Adventistas) teria fracassado em sua exposição bíblica aos Ticuna, apresentando-o como

6
“Terceira onda” é o termo missiológico para diferenciar os esforços missionários em progressão histórica
no Brasil: a primeira onda seria a fase de missionários estrangeiros vindos ao Brasil, a segunda, o
surgimento de missionários nacionais, e por fim, a terceira onda, os próprios indígenas missionando entre
outros povos.

18
uma mensagem exógena, não dialogável com a natureza indígena e, portanto, impositiva.
Para ele, faltava uma teologia que se relacionasse diretamente com a mitologia
tradicional Ticuna e que não apenas inserisse a lógica exógena como sendo melhor que a
nativa no que concerne a compreender Deus. Lima (2013) transcreve várias falas do
pastor Athus expondo que tal pensamento invariavelmente só poderia apontar para o
surgimento de uma igreja indígena que procurasse “desfazer, desconstruir os discursos
em torno da negatividade pregada acerca dos costumes Ticuna [...] conjugar no mesmo
espaço religioso os seres mitológicos da cosmologia Ticuna com a ideia de Deus/Jesus do
cristianismo” (LIMA, 2013, p. 77).
Muito esclarecido, Athus traz em si conhecimentos que o possibilitam transitar
entre os saberes tradicionais ticunas, o teológico protestante e a antropologia. O modo
como emprega corretamente os termos, autores e teorias esclarece com muita precisão
suas ideias e refletem um processo de autoconstrução histórico que explicam seu
desempenho. Sua igreja tem crescido, se fortalecido na etnia e, para além dela, tem
influenciado como modelo de autonomia nativa a outros grupos locais, como os Matses e
Matis, a quem tem oferecido um treinamento teológico-missionário sob sua particular
perspectiva.
Perguntado acerca da acusação de ser este movimento apenas mais uma forma de
sincretismo, Athus esclarece sua perspectiva que transcrevo aqui em suas palavras para
mais avanços na compreensão deste movimento:

Ô como criticam, bastante! Somos criticado porque a nossa teologia é uma


teologia nova, aí eles criticam bastante. Claro que ninguém vai aceitar uma
teologia que parece... a gente até é condenado, julgado, como sincrético, né?
mas não vejo como sincretismo, não. Sincretismo se eu aceitasse aquilo que é
errado lá, que não ta na Bíblia. Isso é sincretismo, né? Isso é sincretismo, eu
vejo. Eu não estou fazendo... índio não está fazendo, realizando a teologia
sincrética. A gente percebe muito isso no catolicismo, né? É uma crítica,
assim, a gente compreende, mas as pessoas não sabem, vêm de outra realidade.
Assim como criticam entre eles - entre não indígenas existem muitas críticas
entre si, cada um vai dizendo que é mais santo, é a única igreja que Deus faz
milagre, a mesma coisa em relação a nós... Então, eu não vejo que... Isso é
muito comum entre o ser humano. Que a teologia, em relação, não indígena
sempre vai existir uma crítica ou favor ou contra (Pastor ATHUS, conversa,
2017).

Sincretismo é uma definição que Athus rejeita. Como bem colocou Araújo
(2011), apesar de novas propostas de leitura das adequações religiosas afro-brasileiras e
indígenas, seja como dado ou como conceito, o termo é carregado de negativismo,

19
sobretudo no cristianismo. Assim, se entende por que Athus o recusa, e mais que isso,
não apenas não aplica o termo à sua “teologia nova”, mas o transfere ou devolve ao
próprio catolicismo que, por inferência estaria aceitando “aquilo que é errado” e onde “a
gente percebe muito isso”. Do mesmo modo, não poupa as igrejas evangélicas e para-
evangélicas de suas múltiplas divisões em que todos se criticam mutuamente como um
hábito “comum entre o ser humano”. Vale lembrar aqui o sentimento recorrente apontado
por Vilaça (2008, p. 174) de que “os nativo começam a se dizer mais cristãos do que
nós”, ao comentar que do mesmo modo que Marilyn Strathern teria sido interpelada por
um pastor de Papua-Nova Guiné a levar a Inglaterra de volta a Deus, os Wari a exortaram
a “se tornar cristã”. Neste sentido, Scheurmann (2003) publica textos na íntegra das
mensagens de Tuiávii, líder samoano que após conhecer a Europa volta a seu povo e o
adverte a não seguir os mesmos passos dos “apóstatas” papalagui (os europeus, lit.
“aquele que furou o céu” em referência à primeira vista dos barcos com suas velas
brancas como nuvens ao surgirem entre o céu e o mar da perspectiva de quem está na
praia). Em suas palavras, Tuiávii resume essa perspectiva:

Tempo ouve em que vivíamos na escuridão, e nenhum de nós conhecia a luz


radiante do evangelho; vagávamos como crianças que não conseguem
encontrar a sua cabana [...] o papalagui trouxe-nos a luz; veio a nós para nos
libertar da escuridão em que vivíamos [...] o homem branco não se esquivou de
nenhum esforço para nos trazer o evangelho; sequer quando, crianças
teimosas, resistíamos ao que nos ensinava [...] o missionário do papalagui foi o
primeiro que nos ensinou o que é Deus e nos desviou dos nossos antigos
deuses [...] o papalagui recebeu a luz antes de nós; já a recebia quando os mais
velhos dentre nós ainda não eram nascidos. Mas ele só tem a luz na mão que
estende para iluminar os outros; ele próprio vive na treva; tem o coração longe
de Deus, embora o chame com a boca (...) nem ele percebe mais, realmente,
que as suas palavras e os seus atos se contradizem (...) Deus lhes é estranho,
ainda que todos hajam recebido o ensino certo (SCHEURMANN, 2003, p. 95-
99).

Em Dias (2015) é o discurso de pastores indígenas do CONPLEI que são


abordados nesta perspectiva. Estes, assim como Athus, criticam o denominacionalismo
que fragmenta a igreja evangélica brasileira e que não serve para a igreja indígena. Por
isso é que como provocação sugiro no subtítulo deste ponto a Igreja Ticuna como uma
indianização do cristianismo, a exemplo de movimentos históricos ressignificadores que
refletiram a batalha pelo monopólio da santidade (VAINFAS, 1995, p. 62) e apropriando-
me da noção de “indianização da modernidade” de Sahlins (1997) que frisa exatamente a
autonomia indígena de ressignificar o exógeno, o outro e seus símbolos, como também

20
disse Viveiros de Castro acerca do “mistério” que caracterizava a postura dos Tupinambá
diante do encontro com a alteridade quanto a um “obscuro desejo de ser o outro, mas este
o mistério, segundo os próprios termos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, 195).

Fig. 4. Igreja Ticuna – Benjamin Constant/AM – Fonte: Athus Vasques

Fig. 5. Pr. Athus Fermin Vasques, 2017 – Fonte: Athus Vasques

Diante dos fatos aqui colocados, fica evidente que a Igreja Evangélica Ticuna,
agora Primeira Igreja Autóctone Tikuna da Comunidade de Filadélfia (PRIMEIRA,
2017), em sua proposta de compreender o cristianismo como em continuidade com sua
tradição, é, em síntese, um movimento de autonomia nativa. Posso pensar rapidamente
em Andrade (1928) apontando o traço antropofágico como emblemático do modo
indígena de incorporar o novo, o exógeno, naturalizando-o. Assim, além de antropofagia
de Andrade (1928) e da noção de “indianização da modernidade” de Sahlins (1997, p.
53) é cabível também a noção de “tradução” de Pompa (2003, p. 417) que como uma

21
“leitura da alteridade”, vê cada parte do encontro, a partir de seus próprios códigos
(sobretudo o religioso, a linguagem privilegiada para isso), pensa o diferente em seus
termos, o que leva a repensar o indígena histórico como um sujeito atuante mesmo no
contexto colonizador.

Nunca houve, do lado indígena, a aceitação passiva e a absorção


indiscriminada da fé imposta pelos missionários, e tampouco houve um
fenômeno de „resistência‟ entendida como negação total da catequese e
afirmação de seus costumes tradicionais. O que houve foi um processo de
negociação ou, para dizer melhor, de “tradução”; o que houve foi a escolha de
estratégias para solucionar o problema, lingüístico e cultural, de reconhecer no
„outro‟ elementos redutíveis ao mundo cultural do “eu” (POMPA, 2003, p.
95).

A meu ver, é isso que Athus faz, e com muita tecnicidade (porque também é
antropólogo). Quanto à continuidade como elabora sua teologia nova em diálogo com a
tradição Ticuna, Athus diz:

Assim, tradicionalmente, os Ticuna eles já acreditavam em um deus chamado


Ngutapa. Ngutapa era um deus que tinha uma mulher, só que esta mulher não
gerava filho, e por isso ele, certo tempo, ele maltratou essa mulher, que
morresse, não existisse. Por causa disso ele foi amaldiçoado. E lendo a
mitologia a gente percebe que o Ngutapa ele foi ferrado pela Vespa, pelo
Marimbondo nos seus joelhos. E com esse inchaço nasceram em cada joelho
dois gêmeos. Direita e esquerda. Da direita nasceu o Dyoi e no joelho esquerdo
nasceu o Ipi com sua própria irmã. Esses nasceram tão rápido, cresceram tão
rápido que logo ao nascer eles já nasceram com os instrumentos que os Ticuna
hoje fazem, como cesto, zarabatana, é... já nasceram grande, já nasceram, de
um minuto para outro eles já se transformara já em gente completo, né? Assim
começou a ideia de deus Ticuna. Então, já o Dyoi já tem uma ideia de
Jesus. Foi a pessoa que organizou o povo. Foi o Dyoi que pescou o povo no
igarapé Eware, na terra sagrada Eware, porque até então não existia povo, não
é? Não existia ninguém. Foram eles que criaram, né? Pescaram com
macaxeira, com pescado e nasceram o povo, né?, nasceram o povo Ticuna. E
já o Ipi, né? O esquerdo, o que nasceu no joelho esquerdo, ele também pescou.
Só que ele pescou outro povo, branco, negro que não é, que não tem igualdade
com os Ticuna. Essa é a ideia de Jesus, né? Já a Bíblia pra nós é uma
novidade porque você sabe que os índios não tem escrita, não tem oralidade,
tudo se passa de geração em geração através de oralidade, né? Então a Bíblia,
pra nós, é algo sagrado que... de muitos tempos, foge alguém de muitos tempo
para a humanidade, então seria hoje o que? a voz viva, né? Com o
entendimento de hoje a voz de Deus viva ainda, assim, que tem poder no
coração humano. Então a Bíblia não tem como fazer referência nenhum
devido que os povos indígenas só tem oralidade, não tem escrita nenhum
(ATHUS, conversa, 2017)

Não é aqui o quinhentista jesuíta de Bosi (1992) - ou seu equivalente


contemporâneo - que está denominando e redefinindo personagens da cosmologia

22
indígena ao criar “uma terceira esfera simbólica, uma espécie de mitologia paralela”
(BOSI, 1992, p. 65), mas um nativo que – ainda que teologicamente treinado fora – assim
como o tradutor jesuíta que na sua “pedagogia jesuítica clássica” se utilizava de
“elementos da cultura nativa como linguagem para veicular conteúdos da fé católica”
(POMPA, 2011, p. 189), agora vê, ele próprio Jesus na narrativa passada de seu povo.
Desta forma é que Athus pode falar de um “começo” da ideia de Deus Ticuna. Sua
tradição é “comparando com a Bíblia, essas manifestações, crenças, são sombras, algo
que vai levar a gente a algo maior, algo concreto que se encontra na bíblia”. Athus,
portanto, vê como “sombras” a sua cosmologia, uma figura que o próprio apóstolo Paulo
usou na carta aos Colossences capítulo 2, versos 16 e 17 para, do mesmo modo, referir-se
aos novos desdobramentos da fé cristã como em um contínuo histórico com o judaísmo
tradicional do qual era adepto antes. Paulo, assim, teria visto em sua primeira tradição
pré-noções de sua fé última, e parece ser este o intento de Athus. Somente assim a igreja
Ticuna pode ser “genuinamente indígena” (PRIMEIRA, 2017).
Por fim, além da mobilidade missionária com que Athus descreve sua igreja
crescendo na região e sua “teologia nova” sendo nacional e internacionalmente
disseminada entre grupos indígenas, há ainda um ideal que pretende restaurar que sugere
uma grande solidariedade tanto étnica quanto interétnica, visando ruptura com dissensões
fragmentárias da própria humanidade.

Assim, antigamente a gente vivia, antes do evangelho, ou seja, quando ainda


era só catolicismo, quando as nossas comunidades faziam festas todo mundo
era convidado a participar das festas tradicionais, aí todo mundo vinha, assim
se identificando, com clãs e cada família convidada ela se pintava com
jenipapo para se identificar que elas pertenciam a tal família. E a nossa crença
nos manda, nos fundamenta de que... porque essa festa é uma festa sagrada,
né? voltada para a formação de uma moça, né? para a vida adulta e o
pensamento dos indígenas é que nessa festa iriam ser transportados para uma
outra região não pecadora. Então por isso que cada um se identificava com o
clã presente naquela festa e era proibido o incesto, o namoro, e.. assim, era
tinha muito cuidado com todas as pessoas aí quando o evangelho chega em
1952 aí começou a pessoa a se discriminar, os pastores missionários chegaram
aqui dizer que aquilo era coisa do mundo, era coisa ruim e começou a não
praticar aquela festa que todo mundo eram bem-vindo e quando faziam festa já
da igreja só eram convidados aquelas pessoas que pertenciam aquela igreja.
Este é um dos problemas, um fator que enfraqueceu a nossa tribo, nossa etnia.
Em seguida chegaram os pentecostais assim como a Assembléia de Deus, com
presbiterianas, os batistas, aí houve muitas confusões, houve cada um assim se
fez surgir seu próprio território. Esse é um dos problemas que houve no Alto
Solimões. Esse relacionamento entre o religioso trouxe grande problema para
nosso fortalecimento para a própria etnia. Então hoje é isso que a gente ta
querendo fortalecer, com essa nossa visão dos próprios indígenas, desmentir,

23
desmistificar tudo aquilo que foi plantado, não é fácil, né? Hoje tem lideranças
que é contra a nossa posição, a nossa visão de como ser pregado o Evangelho
de forma integral respeitando a cultura (ATHUS, conversa, 2017)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As religiões que foram elencadas aqui são relativamente novas, surgidas a partir
da década 1950 (AEMINPU), 1960 (ISC) e 1990 (Igreja Ticuna). Os fundadores das duas
primeiras faleceram há pouco tempo envolvidos em promessas de ressurreição ou
reaparição. Muitos de seus discípulos pessoais ainda vivem e repassam suas falas,
mantendo-os simbolicamente vivos em seus discursos, relembrados à geração seguinte.
Suas previsões futurísticas ainda povoam o imaginário popular local – e não apenas entre
os seus seguidores, mas admiradores ou indecisos também ficam atentos aos
acontecimentos -, sendo sempre trazidos de volta em momentos de turbulência
ambiental/ climática como nas secas mais extremas, nas maiores enchentes, nas
tempestades aterradoras, nos casos de desbarrancamentos e em enfermidades
desconhecidas ou mortes abruptas. Em momentos assim, seus discursos vêm à tona
novamente na fronteira.
As fronteiras geopolíticas em que se movem estas religiões não representam a
elas obstáculos maiores. Sendo missionárias em si, todas pretendem uma afirmação
numérica na região, construções de templos e espaços para cultos e celebrações, e
avançam nas especificidades de seus credos para instrumentalizar os seus fiéis em
contato com outros códigos religiões. Além disso, a legitimidade dos seus credos, exceto
a igreja Ticuna, fia-se no carisma de seus fundadores falecidos, suas visões escatológicas,
catástrofes iminentes aos desobedientes/ incrédulos, e recorre a cura e sinais como
confirmações de seu poder e missão.
Levando em conta que as três têm uma origem no pensamento indígena ou a
partir de sua base tradicional, seja Inca, Ticuna ou Kokama, estas religiões são também
formas emancipatórias contra a pobreza, a ausência do Estado; contra as próprias igrejas
cristãs, dando voz aos menos privilegiados, aos índios diante de sua destruição física ou
simbólica, da opressão, do descaso e desrespeitos históricos, etnocêntricos e invasivos.
Mesmo que as exigências de novos hábitos e práticas, vestimentas e aparência
cobrem um preço social, estas religiosidades oferecem uma forma de liberdade. Quero,
com isso, referir-me à liberdade em termos de utopia ou de esperança. Uma senhora me
24
contou acerca da religiosidade de sua família, relatando-me que quando criança vivia no
“beiradão” do rio onde apenas esporadicamente passava um padre para rezar, benzer,
ensinar. Os crucifixos que sua mãe obtinha, punha-os nos punhos das redes de cada filho
para proteção de doenças, espíritos e más sortes/acidentes a que estão expostos quem
vive em regiões assim. Certa vez, esta mãe teve acesso a uma foto de um militar antigo –
provavelmente um dos heróis das lutas de independência na América do Sul, diz ela
agora -, mas que na época foi tida por foto de São Jorge e usado assim como objeto de
reverência e de esperança, de segurança, paz e proteção. Por exemplos assim, ressalto a
importância de pensar a religiosidade na fronteira não apenas no viés da identidade, da
emancipação, movimento político por direitos ou espaços, muito menos como formas
arcaicas de redução, mas como religião mesmo. Utopia. Esperança (PINEZI, 2015).
Sabe-se da dificuldade de definir religião, uma vez que são tantas e tão diversas, e
vividas em dimensões e intensidades tão diferentes, desde as que beiram ao secularismo
às que incorporam o fundamentalismo. Diante disso, como categoria analítica que é por
excelência, muitos pensadores sugeriram caminhos para melhor estudá-la. Assim, já foi
vista como uma ilusão, um delírio, originada de uma neurose ou de um êxtase coletivo;
ou como o ópio, associada a uma distração da realidade socioeconômica e política,
ideologia do Estado. Enfim, a religião ainda tem a nos surpreender como categoria
analítica. Mas a questão é que, para os adeptos, a religião é um modo de ver o mundo.
Como disse Alves (2009, p. 25) ela se caracteriza por “dar nomes às coisas” e entendo
que a pessoas também, o que torna possível um José Fernandes Nogueira tornar-se um
Irmão José, outra manifestação de Jesus na terra; ou um Ezequiel Ataucusi Gamonal ser
identificado como “Deus encarnado”; ou ainda, a Amazônia ser a terra prometida aos
descendentes dos Incas. Enfim, este é o poder da religião, poder de ressignificar, de
reordenar na mente dos seus seguidores o seu mundo, sua lógica e seus valores. Sugerir
seu modo de agir, falar, vestir e se identificar. É assim que a religião na fronteira vai
despertando tanta atenção, revelando expressões religiosas tão interessantes, mas mais do
que vitrine a fronteira é porta – aberta - para novas conquistas. Perpassam por ela estas
religiosidades, avançando territórios, tradições e etnias adentro. Por onde passam,
pensam-se ainda “puras”, mas assim como modificam são também modificadas de
alguma forma.
Se o céu não se rende às fronteiras terrestres dos homens, estando acima de tudo,
acima da cabeça e não debaixo dos pés, o céu (aqui o objeto da fé dos adeptos) não tem
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limites. As fronteiras, ao contrário, sim. São espaços incertos, imaginadas e tantas vezes
redefinidas. Quem vive na fronteira tanto pode invadir quanto ser invadido, tanto pode
mudar quanto ser mudado. Exige um avançar sem perder os territórios já conquistados.
Ultrapassar fronteiras, mas não deixa de erguer as suas próprias. Um dia chegará o
estável, o eterno, o céu na terra (pensa o fiel), mas até lá, os fieis ainda precisarão pisar
em fronteiras arriscadas. Precisarão de afirmação, de posicionamento, de avanços e
defesas. Assim, tentando dominar a fronteira para fazer “assim na terra como é no céu”,
as religiões são, por sua vez, colocadas por ela em convivência com outras, com a
diferença, a transgressão, o desafio, a pergunta... e isso mantém a religião sempre
dinâmica, viva e se auto-elaborando.

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