Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
2
INTRODUÇÃO
1
A Mesorregião do Sudoeste Amazonense é uma das quatro partes que compõem o Estado do Amazonas.
Por sua vez, divide-se em duas microrregiões, a do Alto Solimões e a do Juruá. Na MR do Alto Solimões
há nove municípios que são: Amaturá, Atalaia do Norte, Benjamim Constant, Fonte Boa, Jutaí, Santo
Antônio do Içá, São Paulo de Olivença, Tabatinga e Tonantins. Juntos, estes municípios cobrem
214.217,80 km2 e somam uma população de 224.094 habitantes (IBGE, 2010).
3
2015). Neles, a fronteira é pensada como mais do que o limite ou a expansão territorial
estatal ou o avanço urbano rumo à selva e seus selvagens ainda por conquistar (SERJE.
2011). Seguindo este princípio, é precisamente na perspectiva de Albuquerque & Paiva
(2015, p. 140) de que as fronteiras não existem naturalmente dadas como nos tratados e
mapas, mas “são permanentemente construídas, redefinidas e reconfiguradas”, jamais
dissociadas das ações das pessoas que se articulam numa imbricada teia de transações
familiares, comerciais, estatais ou internacionais que, neste artigo, abordarei um tema
também transfronteiriço: a religião, no caso, direcionando o olhar para algumas
religiosidades específicas que se transfronterizam na região.
Assim, como exemplos, elenco aqui apenas três das religiosidades locais, que são:
(1) a Irmandade da Santa Cruz - uma religião originalmente brasileira, de matriz cristã,
estudada por Oro (1989); (2) os Israelitas (Asociación Evangélica de la Misión Israelita
del Nuevo Pacto Universal – AEMINPU) - uma religião peruana andina que reidentifica
seus fiéis como israelitas na sua terra prometida: a Amazônia (SAÉNZ, 2014); e (3) a
Igreja Ticuna em Benjamim Constant (BRA), um segmento cristão protestante marcado
por um discurso indígena de autonomia cultural e espiritual (LIMA, 2013). Três
religiosidades de origens distintas (brasileira, peruana e indígena) que cruzam
continuamente as fronteiras políticas e simbólicas no Alto Solimões.
Este artigo é, portanto, uma revisão do tema da religião no Alto Solimões
segundo os autores que já se detiveram em analisá-la, mas focando especialmente as
dinâmicas de adequação – ou não - à medida que avançam além de suas fronteiras, isto é,
uma leitura da religião “em movimento” na fronteira. Sua abordagem realça as relações,
as reelaborações contextuais, os discursos identitários e a transfronteirização na região do
Alto Solimões. Assim, para o desenvolvimento do tema, a revisão é também seguida de
perto pela experiência de ter vivido naquela região entre os anos de 1997 a 2012 e por
narrativas recentes de líderes destas religiosidades que forneceram esclarecimentos
pontuais para a construção deste artigo. De modo geral, este artigo é um estudo
antropológico de três religiões que se constroem na fronteira, mas não se limitam a ela.
5
religiosidades abordadas neste artigo buscam também fundamentação bíblica para sua
afirmação. A mesma fonte, mas com práticas e argumentos diversos e até opostos.
Além das disputas bíblicas, um tema de atração por excelência é o da cura. Tanto
por suprir a necessidade das populações locais como também por seu efeito de
autenticação do seu agente e agência, a cura – física ou espiritual – se sobressai no
pensamento religioso na fronteira. É muito comum ouvir testemunhos de que foi pela
enfermidade que tal devoto dirigiu-se de uma vida de farras, bebedeiras e orgias à
religião que lhe proporcionou algum tipo de cura ou reordenação. Assim, o
pentecostalismo, o xamanismo, e as figuras de profetas curadores como veremos na
Irmandade da Santa Cruz e na AEMINPU, por suas propostas de enfrentamento direto
das enfermidades, sobretudo, encontram na região um ambiente propício para o seu
desenvolvimento. Portanto, (3) outro traço característico das religiões da fronteira é
que estas giram em torno do alcance de alguma cura ou resolução de uma desordem
psicossomática, relacional ou mesmo econômica. O que prova – aos olhos dos fiéis -
sua eficácia, veracidade e superioridade.
Quanto à religião como identidade, como assim pensaram, por exemplo,
Chaumeil (2000), Lima (2013) e Saénz (2014), eis aí uma abordagem muito relevante,
sobretudo na fronteira. Pois, se como ponto de partida “Deus não faz acepção de
pessoas” - como assim declarou um pastor israelita ao dizer que sua religião se abre a
todos os possíveis, independentemente da nacionalidade, etnia, sexo, cor, condição
socioeconômica - é verdade também que, uma vez convertido, este mesmo “Deus”
distinguirá os seus fiéis dos infiéis, e não apenas pela imposição de um novo credo ou
prática - ou, nas palavras de dirigente da Irmandade da Cruz: um “regulamento” -, mas
também pela indumentária e aparência típicas (os israelitas e a irmandade da cruz
diferenciam-se no modo de vestir. Estes: véu para as mulheres e roupas brancas para
homens; Aqueles: túnicas e véu para mulheres e túnicas coloridas com mantos
transversais, barbas e cabelos compridos para os homens), além de proibições relacionais
(sexo antes de festas especiais), profissionais (guarda do sábado e festas) e alimentares
em dias santos. Esse identificar religioso reflete o jogo ambíguo da noção de fronteira de
Chaumeil (2000) que implica em separar (a fronteira limite) e em unir (por ser um local
de interação cultural) simultaneamente. Assim, (4) a religião na fronteira amazônica
recria identidades e laços relacionais tão intensos como a consanguinidade. Daí a
importância de se perceberem como “irmãos” e “família” na congregação
6
(VILAÇA, 2008). A religião, aproveitando aqui a fala de Oro (1989, p. 195), transfigura
os fiéis da “condição de „excluídos‟ em „escolhidos‟”. Os identifica e os engaja.
Por fim, a última peculiaridade que relaciono aqui é que, (5) dada à própria
condição de interpenetração cultural na fronteira, é perfeitamente compreensível
que uma religião “de fora” precise se flexibilizar, se adequar ou, dizendo como
Pompa (2003), “negociar” sentidos. Athus, pastor ticuna narrou-me o que considerou
um insucesso a evangelização dos adventistas entre alguns Ticuna por conta das
exigências alimentares que envolviam abstenção da carne de porco, anta, tartaruga e
peixes de couro (os alimentos mais comuns na região). Interessante exemplo para
entender as exigências da fronteira do Alto Solimões.
Portanto, a religião na tríplice fronteira transita por estas peculiaridades da
condição fronteiriça. À tendência ao sincretismo, sugere o exclusivismo; Aos vícios,
opressões e dores aponta a cura ainda na terra; oferece identidade e familiaridade a
imigrantes e a excluídos e se adéqua – se pretende prevalecer – às condições locais de
vida dos fieis, possibilitando-lhes a prática da fé. E por ser religião – apesar dos vários
sentidos que o termo possa ter na abordagem sociológica -, evidentemente oferece, por
sua natureza, uma proximidade maior do sagrado. Vejamos mais de perto estas religiões
da fronteira.
7
Ari Pedro Oro estudou este movimento, inclusive tendo encontrado ainda vivo o
seu fundador, e publicou em 1989 seu livro baseado na tese de doutorado. A leitura do
autor é de que, mais do um movimento messiânico - mais um dentre tantos outros
anteriormente vividos pelo povo Ticuna na região do Alto Solimões – trata-se de “acima
de tudo, um movimento religioso” que “atinge todo o social” e que não desmerece seu
sentido político porque a ISC não é “voltada unicamente para o além” (ORO, 1989, p.
192). A organização das comunidades refletem esse caráter, associando as figuras do
líder político e religioso no mesmo dirigente local. Assim, “toda política é impregnada
de religião e toda religião é projeto político” (ORO, 1989, p. 198).
Particularmente, o que vi enquanto vivi na região entre o final da década de 1990
e meados da década de 2000 foi a vida simples, mas organizada, de adeptos que se
caracterizavam por suas roupas diferentes, em suas capelas precedidas por alguma
enorme Cruz “plantada” como marco. Não estava pesquisando esta religiosidade
especificamente, no entanto, a presença de cruzados sempre foi notada, seja entre
indígenas ou ribeirinhos. Por vezes ouvia falar do Irmão José como um homem diferente,
um santo padre que fazia milagres, profetizava o fim do mundo, levitava apesar de sua
grande estatura, algumas vezes andando sobre o barro dos portos das comunidades sem
afundar os pés e que, por fim, seria até mesmo uma nova encarnação de Jesus. Fica nítido
que este líder, com seu carisma deixou sua marca na região. Quanto a isso, Oro (1989)
diz que, pelos desdobramentos que se seguiram, sua chegada e convivência por uma
década na região do Alto Solimões, marca a vida e a história de seus seguidores “em um
antes e um depois do Irmão José” (ORO, 1989, p. 55).
Meu contato mais direto com a ISC se deu em uma comunidade que buscava seu
reconhecimento étnico como Kokama no Vale do Javari. Refiro-me à população da
comunidade de São Pedro do Norte. Naquela ocasião, estava em viagem escolar em
companhia do antropólogo e professor José Trajano que já fazia sua pesquisa com este
grupo, pesquisa finalizada em 2016 (VIEIRA, 2016). Ali vimos um documento redigido
e apresentado pela Organização Indígena do Povo do Vale do Javari –
ORINPOKOVAJA sob o título de “Levantamento histórico do povo do vale do javari”
que atrelava sua história naquela região às origens da Irmandade da Santa Cruz, dizendo
(transcrevo aqui o texto como estava redigido, conservando a linguagem popular):
8
A motivação para a imigração do povo ao Brasil, foi o movimento missionário
que ficou conhecido como, A irmandade da santa cruz. Entre 1972 a 1980 na
cidade de Nauta iquitos perú numerosas famílias, comenzarom a espalhar- se e
formar novas comunidade. Em diferentes lugares, e rios. A onde se encontra
no rio Ucayali, Maranhão, e rio Amazonas. Mais conhecido como rio
Solimões, e no vale do javari. O líder do movimento era um profeta mestiço
Brasileiro, mais conhecido como José Francisco da Cruz. Ele visitou muitas
comunidades indígenas como não indígenas. A onde a maior das comunidades
s, foi conquistada pelo profeta. A onde foi pregando o cristianismo e até á
cidade santa no jui rio Iça (ORINPOKOVAJA, 2011)
Além dos Cocama, entre os Ticuna o Irmão José também obteve grande êxito. O
pastor Ticuna Athus Vasques insiste na perspectiva de que isso se deve a uma
predisposição dos mesmos ao messianismo. De fato, Oro (1986) relaciona sete
movimentos messiânicos identificados por pesquisadores como Curt Nimuendaju e
Maurício Vinhas de Queiroz nas décadas de 1940/50 respectivamente. Estes movimentos
teriam ocorrido entre os primeiros anos de 1900 e o ano de 1961 e, a partir desta
observação, caracterizou-se a cosmologia Ticuna como messiânica, recorrente, em
tempos difíceis, à tradição mediante aparição de imortais mitológicos - reincidentemente
aparecendo a jovens ticunas, mas também por curandeiro e até um funcionário do SPI,
não-índio; por meio de visões -, indicando cataclismas como meio de livramento dos
obedientes e sucessiva punição aos opressores (os “brancos”, no caso os senhores de
barracões) e desatentos à revelação. Tanto Oro (1986) quanto Oliveira Filho (1999)
abordam estas ocorrências históricas vendo similaridades e especificidades em cada, mas
sem perder de foco o elemento mitológico como um recurso e um modo ticuna de se
posicionar e se mobilizar em tempos de crise.
Nessa perspectiva, o Irmão José, uma figura messiânica por excelência, vindo
pelo Peru já acompanhado por mais ou menos 300 seguidores que lhe atribuíam poder de
cura, feitos extraordinários, santidade (divindade) e profecias quanto à reordenamento da
vida, teria, em todos os sentidos, encontrado ali um campo fértil para o desenvolvimento
de sua mensagem, dando sequência a lista, tornando-se o oitavo movimento messiânico.
A biografia do Irmão José justifica muito do pensamento em torno de sua figura.
Nascido como José Fernandes Nogueira em 03 de Setembro de 1913, no povoado de
Várzea Alegre, município de Cristina/MG, já é em si fruto de uma “promessa” feita por
sua mãe em decorrência de complicações na gravidez. Diz-nos Oro (1989, p. 56) que a
mesma implicava na dedicação do filho para ser um “missionário do Sagrado Coração de
Jesus”. Ao crescer, as tentativas de cumprir a promessa foram frustradas e José chegou a
9
casar e ter filhos. Somente no ano de 1944, após anos de envolvimento religioso leigo no
Catolicismo, é que ao participar de uma semana evangelística José teve visões em três
noites consecutivas e no mesmo local de contemplação. Em suas visões, o Sagrado
Coração de Jesus em forma humana (e depois, toda a Trindade), apresentava-se com uma
cruz na mão direita e uma Bíblia na esquerda, ordenando-o a ir pregar sua mensagem.
Fig. 1. O Irmão José Francisco da Cruz (1913-1982) em 1981 – Fonte: ORO (1989).
11
O que efetivamente importa – e que constitui o fator dinâmico – é que o
processo complexo de construção de sentido por um agente, que opera sempre
com um código cultural e uma lógica específica, mas que igualmente registra,
especula e traduz para seus próprios termos a existência de outros agentes e de
outras culturas (OLIVEIRA FILHO, 1999, p.. 23)
Com esse princípio de leitura, a ISC pode ser vista como uma religiosidade que
engloba as tradições e religiosidades anteriores, mas que estas a penetram por sua própria
porosidade, passando a fazer parte, para os fiéis, de uma mesma ordem, não como uma
nova e alienígena religião de branco. Lembro-me claramente da recusa imediata e
enfática dos auto-designados de São Pedro do Norte ao serem questionados quanto a,
para a efetiva revitalização tradicional indígena, ter que largar a fé da irmandade. Não
seria necessário, para eles. Haveria ali uma continuidade entre cultura tradicional e a
aparente nova religião (VILAÇA, 2008).
Fig. 2. Igreja da Irmandade da Santa Cruz em Tabatinga/AM, 2014 – Fonte: Álbum pessoal, 2017
Portanto, como religião na fronteira, a ISC traz um messias recente (mas igual a
outros anteriores), com poder de cura e com profecias do final do mundo. Tem
conservada sua “doutrina” ou “regulamento diferente” que implica no mudar de modo de
viver, como assim explicou o dirigente da igreja de Tabatinga ao falar acerca da proposta
da ISC. As palavras do Irmão José são sempre trazidas à memória social, basta uma
tempestade com vento forte que destelhe casas ou o desmoronamento de barrancos em
comunidades que teriam recebido mal o profeta nas suas passagens que logo retornam
com vigor.
12
OS INCA-ISRAELITAS E A AMAZÔNIA COMO “TERRA PROMETIDA”
Fig. 3. Associação Evangélica da Missão Israelita no Novo Pacto Universal – Fonte: AEMINPU
2
Site da AEMINPU: http://aeminpuperu.org/nosotros.html.
13
Os israelitas do novo pacto são predominantemente imigrantes peruanos, mas por
serem proselitistas (melhor: missionários) há, agora, adesões de brasileiros e de
colombianos que moram nas cidades fronteiriças. Segundo De La Torre López (1996),
em seus primeiros trinta anos a missão já contava mais de 30.000 adeptos avançando
também em vários países como a Bolívia, Chile, Equador, Colômbia, Paraguai, Brasil,
Argentina y Costa Rica. Na Colômbia, que segundo Lucumí (2015, p. 90) é “Uno de los
países en los que la nueva religión Israelita ha tenido mayor aceptación es Colombia”, a
AEMINPU iniciou sua jornada nos últimos anos da década de 1980 com a chegada de
seus primeiros imigrantes/ enviados. No Brasil, a imigração se dá na década de 1990.
Seu fundador foi um pregador peruano Ezequiel Ataucusi Gamonal (1918-2000),
a quem se atribui a própria encarnação de Deus, mais precisamente da terceira pessoa da
Trindade cristã: o Espírito Santo. À Ataucusi há várias referências como “Pai Israel”, “o
último Adão”, “o Cristo do Ocidente”, “o Inca”, “o Varão”, “o Homem”, sendo
habitualmente citado com reverência como “Mi Señor (Meu Senhor)” (DE LA TORRE
LÓPEZ, 1996, p. 26). Ezequiel Ataucusi é, portanto, o centro da AEMINPU, o seu
profeta, e por isso os pesquisadores que já se debruçaram sobre os Israelitas
invariavelmente se detiveram no estudo de sua biografia.
Nesse sentido, uma leitura interessante é feita por Ossio (2014) para quem seria
Ezequiel Ataucusi é um personagem que merece um lugar de importância na história do
Peru por ter sido um homem do campo simples, falante do quéchua (não clássico no
castelhano), nascido entre 14 filhos de um casal modesto, tendo estudado apenas até o
quarto ano primário, e no entanto, ter estruturado este movimento messiânico, migratório,
e nacionalista (sob o lema de “Peru privilegiado”). Para além da leitura do movimento
como religião, Ossio (2014) destaca o quanto Ataucusi, ao promover esperança,
espiritualidade, ética (os testemunhos falam de pessoas que largaram vícios e vida de
conflitos), organização agrícola para produção comunal de alimentos, freou a guerrilha
do Sendero Luminoso, oferecendo uma alternativa aos oprimidos e famintos da
população campesina vulnerável diante da crise política na década de 1980. Visto assim,
a análise ressalta o carisma de Ataucusi, que o legitimou como líder não apenas religioso,
utópico, mas também político (fundou um partido, a Frente Popular agrícola Fia del Perú
– FREPAP, pelo qual concorreu, sem sucesso, em duas eleições à Presidência da
República em 1990 e 1995). Lucumí (2015, p. 100) também entende assim e diz que “a
pesar de las críticas, el mensaje de Ezequiel se ha escuchado y puesto en práctica,
14
brindando consuelo y sentido de vida a hombres y mujeres, tal como lo han hecho otros
movimientos mesiánicos milenaristas”.
Há ainda o elemento nacionalista por ser um movimento de recolocação do Peru
no centro do mundo. O que Israel foi por Moisés, e depois por Jesus, para o mundo, o
mesmo seria o Peru por conta do seu passado incaico e por Ataucusi. Os Incas não seriam
os pagãos promovidos pelo deturpado Catolicismo histórico, mas na verdade seriam
“profetas de Dios” (DE LA TORRE LÓPEZ, 1996, p. 25), a civilização escolhida e
profetizada de onde sairia o próximo profeta para a última geração. O resgate desse
passado ressignificaria toda a hagiografia até então, recuperando o Inca como verdadeiro
Israel, e apontando a Amazônia como a “Terra Prometida” para a qual os fiéis devem
migrar a fim de superar os anos de fome e as catástrofes previstas para os últimos dias,
antes do grande julgamento do mundo. Isso explica a organização em cooperação
agrícola e a migração crescente dos moradores andinos rumo à região da tríplice
fronteira.
Atentando para a dica de De la Torre López (1996, p. 26) de que a conversão não
é um fenômeno de massa, e sim, individual, “circunscrito à intimidade da pessoa”, a seu
exemplo, trago aqui, brevemente, explicações de um israelita acerca da sua fé. Hoje
Pastor (e me referirei a ele apenas como “Pastor” daqui em diante), este informante se
dispôs a falar acerca do seu viver como israelita. Seu perfil se enquadra nas várias
referências aos adeptos nos trabalhos anteriores: peruano, imigrante, de família modesta e
de pouca escolaridade – tendo parado de estudar aos nove anos de idade, se autodefiniu
“praticamente analfabeto”, mas sendo alvo da graça de Deus exatamente por conta desta
condição de pobreza e humildade, é somente por ele capacitado para a função espiritual
que exerce. Atraído pela cura – no caso, a de sua esposa – e pela curiosidade com os 10
mandamentos, teve antes passado por outras igrejas como a Adventista, a exemplo do
próprio Ezequiel Ataucusi Gamonal de quem, aliás, em sua fala, deixa claro que mais do
que um homem, era mesmo “Deus encarnado”. Pastor descreve a Congregação Israelita
como um movimento em crescimento, com “mais de 800 mil israelitas” espalhados “por
toda a face da terra” – reforçando assim o caráter missionário da AEMINPU, incumbida,
como discípulos de Jesus, de doutrinar e fazer discípulos por todo mundo, anunciando os
mandamentos de Deus. Como os demais líderes israelitas, Pastor não vive de renda
eclesiástica. É um moto-taxista (emprego bem comum na tríplice fronteira) e
15
testemunhou que preferiu sair do seu bom emprego anterior porque não folgava no
Sábado, dia santificado para a adoração dos israelitas.
Acerca da barba, cabelos compridos e indumentária típica, se referiu à
“semelhança de Deus” – expressão que remete ao mito judaico-cristão da criação do
homem assim feito à imagem de Deus – e ao ato divino de ter vestido Adão e Eva após o
pecado com o que Pastor chamou de “túnicas de pele”. Para ele, estar tipicamente
diferenciado, ainda que inicialmente constrangedor, é certo tipo de prova, pois “não é
qualquer um que pode ser israelita”, apoiando-se na parábola de Jesus acerca de seus
discípulos quando comparados a quatro tipos de terras nas quais cai o mesmo tipo de
semente, mas em apenas uma – a boa terra - a semente pode se desenvolver e depois
produzir. Ser israelita é prova de fé, resistência e exige coragem de ser diferente, suportar
ambiente desencorajador e conviver sendo “aborrecido” - usado por ele como equivalente
a “não amado”, “rejeitado” - pela própria família e amigos. Contudo, se são
discriminados, segundo Pastor, os israelitas não são encorajados a revidar e discriminar
os outros. “Cristo não está dividido”, disse ele, “Em Deus não há acepção de pessoas.
Aqui podem vir o branco, o negro; o plebeu como o nobre; o rico e o pobre...”,
apontando assim que Deus não deseja a exclusão, mas a inclusão de todos “como uma só
família”.
Além do Pastor, outro israelita a quem me dirigi foi um brasileiro convertido que
fez questão de pontuar a perspectiva do outro lado da discriminação, quando antigos
amigos e parentes caçoaram inicialmente de sua conversão, inclusive tendo-o como
“porco” por conta da barba e cabeleira (preconceito que Saénz [2014] associou à
diferença na regularidade de banhos semanais entre moradores dos Andes e da
Amazônia). Destas conversas, o que fica muito evidente é a resolução com que os
adeptos encaram essa transição e a superam. A fronteira é um espaço de transição, mas
isso não significa que a mesma seja tolerante e facilmente trilhável sem implicações para
as partes.
É certo que os israelitas não querem ser iguais. Pastor exaltou como característica
marcante do grupo exatamente a “mudança (câmbio)” de vida. É na diferença que
pretendem se estabelecer. Segundo Chaumeil (2000), a própria migração dos israelitas
para a fronteira – além do aspecto apocalíptico pregado – é, politicamente, um projeto de
“colonização” e não a promoção de uma área de integração e intercâmbio. Para ele, foi a
ideia de fortalecer a fronteira peruana sob o programa da legislação agrária de 1995
16
promovendo “fronteiras vivas” que possibilitou politicamente a expansão dos imigrantes
andinos à Amazônia. Dito assim, não é correto ver a fronteira como um espaço neutro,
aberto a todos, mas um campo de choques de interesses e nesse espaço a religiosidade
tem toda uma história de sobrevivência em meio à adversidade, além de contribuir para a
construção de identidades, como abordaram Chaumeil (2000) e, mais recentemente,
Saénz (2014) sob a orientação de Ari Pedro Oro.
Por fim, é importante ressaltar aqui que a AEMINPU tem como base discursiva
um religioso milenarista/ messiânico de origem Inca, o que nos remete novamente a um
povo sulamericano pré-colombiano como os Ticuna e Cocama. Asseverar a semelhança
de Machu Picchu à Jerusalém; do Peru à Israel; do Inca ao Judeu; de Ezequiel Ataucusi
Gamonal a Jesus Cristo - enquanto encarnações da Trindade – reflete uma postura de
resgate identitário e tradicional muito necessário para as populações da fronteira. Talvez
seja mesmo a Amazônia, se não a “terra prometida”, pelo menos a terra fértil para o
desenvolvimento e consolidação de movimentos messiânicos que (re)afirmam a
indianidade apropriando-se, segundo suas matrizes, e reivindicando uma continuidade, da
religião exógena, se é que assim podemos ainda nos referir ao mito judaico-cristão diante
desta conjuntura.
3
“A teologia índia centra-se, de acordo com Teixeira (2009), López Hernández (2008) e Suess (2007), no
princípio de que as populações indígenas já tinham teologias desenvolvidas antes da chegada do
cristianismo e essas representam um patrimônio religioso particular que não se pode deixar desaparecer”
(ARAÚJO, 2011, p.130).
4
Etnoteologia é termo em elaboração no cenário missionário (ver: Leonardo, 2013, p.8-9, em
http://www.faifa.edu.br/revista/index.php/voxfaifae/article/view/87/98). Envolve a relação da mensagem
cristã e as culturas receptoras. Segundo Leonardo: “ela apresenta a cultura de Deus [...] com o
desenvolvimento da cultura local, surgindo assim a „contracultura cristã‟, cultura e crença religiosa
proposta por Deus e que está a cima de qualquer evolução e variação cultural”.
5
CONPLEI - Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas. Instituição evangélica
indígena, fundada em 1991, administrada por líderes indígenas. WWW.conplei.org.br e
https://www.vozigrejaindigena.com/sobre-1.
17
rumos de certo “protestantismo indígena”. “Novos”, mas não inéditos, porque já
dispomos de paradigmáticas leituras antropológicas dos sucessivos processos históricos
de ressignificação do cristianismo e de sua mensagem pelos indígenas, como apontaram
autores como Cristina Pompa, Paula Montero, Ronaldo de Almeida, Ronaldo Vainfas,
Juan Carlos Estenssoro, Eduardo Viveiros de Castro, Aparecida Vilaça e Robin Wright.
Entre os Ticuna que, como já visto, assim como os Cocama aderiram
intensamente ao discurso milenarista do Irmão José na década de 1970 (ORO, 1989;
CHAUMEIL, 2000), Lima (2013) apontou o surgimento de uma igreja evangélica nativa
que se distinguia por afirmar uma continuidade cosmológica entre a sua tradição indígena
e o cristianismo. Já na década de 1990, Athus Vasques (45 anos de idade; teólogo/
professor/ antropólogo; personagem central na análise de Lima [2013] e quem
prontamente me forneceu esclarecimentos para este artigo), bem como outros líderes
Ticuna (como Eli Leão, hoje vice-presidente do CONPLEI), a partir de suas experiências
negativas com discursos e atitudes de igrejas e missões fundamentalistas, identificaram a
necessidade de “uma igreja genuinamente indígena” - lema que, aliás, vai encarnar o
pensamento do CONPLEI (VOZ, 2017). Por mais que seja aparentemente contraditório
pensar que o cristianismo possa, de alguma forma, ser encarado como algo
“genuinamente indígena”, esta é a sua percepção e o seu argumento: a existência de uma
continuidade cosmológica entre a mitologia indígena e o cristianismo.
Conforme Lima (2013), o pastor Athus desenvolveu em Filadélfia, sua
comunidade Ticuna no município de Benjamin Constant-AM, uma igreja sob essa nova
perspectiva a que chama de “etnoteologia” por propor um diálogo simétrico entre o saber
teológico – que Athus teve oportunidade de estudar no Rio de Janeiro e, em outro
momento, na Bahia – e a tradição cultural indígena. Diálogo este que, segundo Athus,
não só é possível como também é o modo próprio de possibilitar ao indígena uma
compreensão da mensagem bíblica em seus termos mitológicos. É que para este pastor
ticuna o modo psicossocial de pensar do indígena diverge paradigmaticamente do modo
do “branco”. Assim, todo esforço de cristianização desde o do catolicismo aos vários
ramos evangélicos e para-evangélicos (a própria ISC, os Testemunhas de Jeová e os
Adventistas) teria fracassado em sua exposição bíblica aos Ticuna, apresentando-o como
6
“Terceira onda” é o termo missiológico para diferenciar os esforços missionários em progressão histórica
no Brasil: a primeira onda seria a fase de missionários estrangeiros vindos ao Brasil, a segunda, o
surgimento de missionários nacionais, e por fim, a terceira onda, os próprios indígenas missionando entre
outros povos.
18
uma mensagem exógena, não dialogável com a natureza indígena e, portanto, impositiva.
Para ele, faltava uma teologia que se relacionasse diretamente com a mitologia
tradicional Ticuna e que não apenas inserisse a lógica exógena como sendo melhor que a
nativa no que concerne a compreender Deus. Lima (2013) transcreve várias falas do
pastor Athus expondo que tal pensamento invariavelmente só poderia apontar para o
surgimento de uma igreja indígena que procurasse “desfazer, desconstruir os discursos
em torno da negatividade pregada acerca dos costumes Ticuna [...] conjugar no mesmo
espaço religioso os seres mitológicos da cosmologia Ticuna com a ideia de Deus/Jesus do
cristianismo” (LIMA, 2013, p. 77).
Muito esclarecido, Athus traz em si conhecimentos que o possibilitam transitar
entre os saberes tradicionais ticunas, o teológico protestante e a antropologia. O modo
como emprega corretamente os termos, autores e teorias esclarece com muita precisão
suas ideias e refletem um processo de autoconstrução histórico que explicam seu
desempenho. Sua igreja tem crescido, se fortalecido na etnia e, para além dela, tem
influenciado como modelo de autonomia nativa a outros grupos locais, como os Matses e
Matis, a quem tem oferecido um treinamento teológico-missionário sob sua particular
perspectiva.
Perguntado acerca da acusação de ser este movimento apenas mais uma forma de
sincretismo, Athus esclarece sua perspectiva que transcrevo aqui em suas palavras para
mais avanços na compreensão deste movimento:
Sincretismo é uma definição que Athus rejeita. Como bem colocou Araújo
(2011), apesar de novas propostas de leitura das adequações religiosas afro-brasileiras e
indígenas, seja como dado ou como conceito, o termo é carregado de negativismo,
19
sobretudo no cristianismo. Assim, se entende por que Athus o recusa, e mais que isso,
não apenas não aplica o termo à sua “teologia nova”, mas o transfere ou devolve ao
próprio catolicismo que, por inferência estaria aceitando “aquilo que é errado” e onde “a
gente percebe muito isso”. Do mesmo modo, não poupa as igrejas evangélicas e para-
evangélicas de suas múltiplas divisões em que todos se criticam mutuamente como um
hábito “comum entre o ser humano”. Vale lembrar aqui o sentimento recorrente apontado
por Vilaça (2008, p. 174) de que “os nativo começam a se dizer mais cristãos do que
nós”, ao comentar que do mesmo modo que Marilyn Strathern teria sido interpelada por
um pastor de Papua-Nova Guiné a levar a Inglaterra de volta a Deus, os Wari a exortaram
a “se tornar cristã”. Neste sentido, Scheurmann (2003) publica textos na íntegra das
mensagens de Tuiávii, líder samoano que após conhecer a Europa volta a seu povo e o
adverte a não seguir os mesmos passos dos “apóstatas” papalagui (os europeus, lit.
“aquele que furou o céu” em referência à primeira vista dos barcos com suas velas
brancas como nuvens ao surgirem entre o céu e o mar da perspectiva de quem está na
praia). Em suas palavras, Tuiávii resume essa perspectiva:
20
disse Viveiros de Castro acerca do “mistério” que caracterizava a postura dos Tupinambá
diante do encontro com a alteridade quanto a um “obscuro desejo de ser o outro, mas este
o mistério, segundo os próprios termos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, 195).
Diante dos fatos aqui colocados, fica evidente que a Igreja Evangélica Ticuna,
agora Primeira Igreja Autóctone Tikuna da Comunidade de Filadélfia (PRIMEIRA,
2017), em sua proposta de compreender o cristianismo como em continuidade com sua
tradição, é, em síntese, um movimento de autonomia nativa. Posso pensar rapidamente
em Andrade (1928) apontando o traço antropofágico como emblemático do modo
indígena de incorporar o novo, o exógeno, naturalizando-o. Assim, além de antropofagia
de Andrade (1928) e da noção de “indianização da modernidade” de Sahlins (1997, p.
53) é cabível também a noção de “tradução” de Pompa (2003, p. 417) que como uma
21
“leitura da alteridade”, vê cada parte do encontro, a partir de seus próprios códigos
(sobretudo o religioso, a linguagem privilegiada para isso), pensa o diferente em seus
termos, o que leva a repensar o indígena histórico como um sujeito atuante mesmo no
contexto colonizador.
A meu ver, é isso que Athus faz, e com muita tecnicidade (porque também é
antropólogo). Quanto à continuidade como elabora sua teologia nova em diálogo com a
tradição Ticuna, Athus diz:
22
indígena ao criar “uma terceira esfera simbólica, uma espécie de mitologia paralela”
(BOSI, 1992, p. 65), mas um nativo que – ainda que teologicamente treinado fora – assim
como o tradutor jesuíta que na sua “pedagogia jesuítica clássica” se utilizava de
“elementos da cultura nativa como linguagem para veicular conteúdos da fé católica”
(POMPA, 2011, p. 189), agora vê, ele próprio Jesus na narrativa passada de seu povo.
Desta forma é que Athus pode falar de um “começo” da ideia de Deus Ticuna. Sua
tradição é “comparando com a Bíblia, essas manifestações, crenças, são sombras, algo
que vai levar a gente a algo maior, algo concreto que se encontra na bíblia”. Athus,
portanto, vê como “sombras” a sua cosmologia, uma figura que o próprio apóstolo Paulo
usou na carta aos Colossences capítulo 2, versos 16 e 17 para, do mesmo modo, referir-se
aos novos desdobramentos da fé cristã como em um contínuo histórico com o judaísmo
tradicional do qual era adepto antes. Paulo, assim, teria visto em sua primeira tradição
pré-noções de sua fé última, e parece ser este o intento de Athus. Somente assim a igreja
Ticuna pode ser “genuinamente indígena” (PRIMEIRA, 2017).
Por fim, além da mobilidade missionária com que Athus descreve sua igreja
crescendo na região e sua “teologia nova” sendo nacional e internacionalmente
disseminada entre grupos indígenas, há ainda um ideal que pretende restaurar que sugere
uma grande solidariedade tanto étnica quanto interétnica, visando ruptura com dissensões
fragmentárias da própria humanidade.
23
desmistificar tudo aquilo que foi plantado, não é fácil, né? Hoje tem lideranças
que é contra a nossa posição, a nossa visão de como ser pregado o Evangelho
de forma integral respeitando a cultura (ATHUS, conversa, 2017)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As religiões que foram elencadas aqui são relativamente novas, surgidas a partir
da década 1950 (AEMINPU), 1960 (ISC) e 1990 (Igreja Ticuna). Os fundadores das duas
primeiras faleceram há pouco tempo envolvidos em promessas de ressurreição ou
reaparição. Muitos de seus discípulos pessoais ainda vivem e repassam suas falas,
mantendo-os simbolicamente vivos em seus discursos, relembrados à geração seguinte.
Suas previsões futurísticas ainda povoam o imaginário popular local – e não apenas entre
os seus seguidores, mas admiradores ou indecisos também ficam atentos aos
acontecimentos -, sendo sempre trazidos de volta em momentos de turbulência
ambiental/ climática como nas secas mais extremas, nas maiores enchentes, nas
tempestades aterradoras, nos casos de desbarrancamentos e em enfermidades
desconhecidas ou mortes abruptas. Em momentos assim, seus discursos vêm à tona
novamente na fronteira.
As fronteiras geopolíticas em que se movem estas religiões não representam a
elas obstáculos maiores. Sendo missionárias em si, todas pretendem uma afirmação
numérica na região, construções de templos e espaços para cultos e celebrações, e
avançam nas especificidades de seus credos para instrumentalizar os seus fiéis em
contato com outros códigos religiões. Além disso, a legitimidade dos seus credos, exceto
a igreja Ticuna, fia-se no carisma de seus fundadores falecidos, suas visões escatológicas,
catástrofes iminentes aos desobedientes/ incrédulos, e recorre a cura e sinais como
confirmações de seu poder e missão.
Levando em conta que as três têm uma origem no pensamento indígena ou a
partir de sua base tradicional, seja Inca, Ticuna ou Kokama, estas religiões são também
formas emancipatórias contra a pobreza, a ausência do Estado; contra as próprias igrejas
cristãs, dando voz aos menos privilegiados, aos índios diante de sua destruição física ou
simbólica, da opressão, do descaso e desrespeitos históricos, etnocêntricos e invasivos.
Mesmo que as exigências de novos hábitos e práticas, vestimentas e aparência
cobrem um preço social, estas religiosidades oferecem uma forma de liberdade. Quero,
com isso, referir-me à liberdade em termos de utopia ou de esperança. Uma senhora me
24
contou acerca da religiosidade de sua família, relatando-me que quando criança vivia no
“beiradão” do rio onde apenas esporadicamente passava um padre para rezar, benzer,
ensinar. Os crucifixos que sua mãe obtinha, punha-os nos punhos das redes de cada filho
para proteção de doenças, espíritos e más sortes/acidentes a que estão expostos quem
vive em regiões assim. Certa vez, esta mãe teve acesso a uma foto de um militar antigo –
provavelmente um dos heróis das lutas de independência na América do Sul, diz ela
agora -, mas que na época foi tida por foto de São Jorge e usado assim como objeto de
reverência e de esperança, de segurança, paz e proteção. Por exemplos assim, ressalto a
importância de pensar a religiosidade na fronteira não apenas no viés da identidade, da
emancipação, movimento político por direitos ou espaços, muito menos como formas
arcaicas de redução, mas como religião mesmo. Utopia. Esperança (PINEZI, 2015).
Sabe-se da dificuldade de definir religião, uma vez que são tantas e tão diversas, e
vividas em dimensões e intensidades tão diferentes, desde as que beiram ao secularismo
às que incorporam o fundamentalismo. Diante disso, como categoria analítica que é por
excelência, muitos pensadores sugeriram caminhos para melhor estudá-la. Assim, já foi
vista como uma ilusão, um delírio, originada de uma neurose ou de um êxtase coletivo;
ou como o ópio, associada a uma distração da realidade socioeconômica e política,
ideologia do Estado. Enfim, a religião ainda tem a nos surpreender como categoria
analítica. Mas a questão é que, para os adeptos, a religião é um modo de ver o mundo.
Como disse Alves (2009, p. 25) ela se caracteriza por “dar nomes às coisas” e entendo
que a pessoas também, o que torna possível um José Fernandes Nogueira tornar-se um
Irmão José, outra manifestação de Jesus na terra; ou um Ezequiel Ataucusi Gamonal ser
identificado como “Deus encarnado”; ou ainda, a Amazônia ser a terra prometida aos
descendentes dos Incas. Enfim, este é o poder da religião, poder de ressignificar, de
reordenar na mente dos seus seguidores o seu mundo, sua lógica e seus valores. Sugerir
seu modo de agir, falar, vestir e se identificar. É assim que a religião na fronteira vai
despertando tanta atenção, revelando expressões religiosas tão interessantes, mas mais do
que vitrine a fronteira é porta – aberta - para novas conquistas. Perpassam por ela estas
religiosidades, avançando territórios, tradições e etnias adentro. Por onde passam,
pensam-se ainda “puras”, mas assim como modificam são também modificadas de
alguma forma.
Se o céu não se rende às fronteiras terrestres dos homens, estando acima de tudo,
acima da cabeça e não debaixo dos pés, o céu (aqui o objeto da fé dos adeptos) não tem
25
limites. As fronteiras, ao contrário, sim. São espaços incertos, imaginadas e tantas vezes
redefinidas. Quem vive na fronteira tanto pode invadir quanto ser invadido, tanto pode
mudar quanto ser mudado. Exige um avançar sem perder os territórios já conquistados.
Ultrapassar fronteiras, mas não deixa de erguer as suas próprias. Um dia chegará o
estável, o eterno, o céu na terra (pensa o fiel), mas até lá, os fieis ainda precisarão pisar
em fronteiras arriscadas. Precisarão de afirmação, de posicionamento, de avanços e
defesas. Assim, tentando dominar a fronteira para fazer “assim na terra como é no céu”,
as religiões são, por sua vez, colocadas por ela em convivência com outras, com a
diferença, a transgressão, o desafio, a pergunta... e isso mantém a religião sempre
dinâmica, viva e se auto-elaborando.
26
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Rubem. O que é religião? 10.ed. São Paulo. Edições Loyola, 2009.
ARAÚJO, Melvina. O vai e vem dos conceitos:de categoria analítica a categoria nativa
ou vice-versa. O caso do sincretismo. Debates do NER, Porto Alegre, ano 12, n. 19 p.
121-140, jan./jun. 2011.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das letras, 1992.
FANTÁSTICO. Seita peruana vive como nos tempos de Cristo e é investigada por
tráfico internacional. Edição do dia 02/12/2012. G1. Disponível em:
http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2012/12/seita-peruana-vive-como-nos-tempos-de-
cristo-e-e-investigada-por-trafico-internacional.html Acesso em: 12 set. 2017.
27
IBGE Cidades.Tabatinga. Censo Demográfico 2010. Disponível em:
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=130406&idtema=16&search
=||s%EDntese-das-informa%E7%F5es. Acesso em: 30 out. 2017.
INEI. Ramon Castilla (Santa Rosa de Yavari). Censos nacionales 2007. Disponível
em: http://censos.inei.gob.pe/cpv2007/tabulados/# Acesso em: 01 set. 2017.
PINEZI, Ana Keila Mosca. A vida pela ótica da esperança: um estudo comparativo
entre a Igreja Presbiteriana do Brasil e a Igreja Internacional da Graça de Deus. São
Bernardo do Campo: EdUFABC, 2015.
______. Para uma antropologia histórica das missões. In: MONTERO, Paula (org.). Deus
na aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006, p. 111-142.
28
SAÉNZ, David Adan Teixeira. Os Israelitas: religião, cultura e migração em espaços
amazônicos. O caso da AEMINPU em Benjamin Constant, Amazonas. Dissertação
(Mestrado) – UFRGS, IFCH, PPGAS, Porto Alegre, 2014.
VIEIRA, José Maria Trajano. A luta pelo reconhecimento étnico dos na tríplice
fronteira Brasil/Colômbia/Peru. 2016. 297 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP.
29