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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

O olhar envenenado:
da metafísica vegetal Jamamadi (médio Purus, AM)

Karen Shiratori

(versão preliminar)

Rio de Janeiro
2018

i
Karen Shiratori

O olhar envenenado
da metafísica vegetal Jamamadi (médio Purus, AM)

Tese de Doutorado apresentada ao


PPGAS, Museu Nacional, UFRJ, como
requisito parcial para obtenção do título
de Doutor em Antropologia Social

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Viveiros de Castro


PPGAS / MN / UFRJ

Co-orientadora: Profa. Dra. Oiara Bonilla


UFF

Rio de Janeiro
2018

ii
Shiratori, Karen
O olhar envenenado: da metafísica vegetal Jamamadi (médio Purus, AM)./ Karen
Shiratori. – Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGAS-MN, 2018.
407 f.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Viveiros de Castro
Co-orientadora: Profa. Dra. Oiara Bonilla

Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu


Nacional/ Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. 2018.

1. Antropologia. 2. Etnologia Indígena. 3. Xamanismo vegetal. 4. Plantas.


5.Vegetalidade I. Viveiros de Castro, Eduardo. II. Universidade Federal do Rio
de Janeiro/ Museu Nacional/ Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social. III. O olhar envenenado: xamanismo vegetal, escatologia e noção de
pessoa Jamamadi (médio Purus/AM)

iii
Karen Shiratori

O olhar envenenado
da metafísica vegetal Jamamadi (médio Purus, AM)

BANCA EXAMINADORA:

______________________________
Prof. Dr. Eduardo Viveiros de Castro
PPGAS/MN/UFRJ (Orientador)

______________________________
Profa. Dra. Lydie Oiara Bonilla Jacobs
UFF (Co-orientadora)

______________________________
Profa. Dra. Aparecida Vilaça
PPGAS/MN/UFRJ

______________________________
Prof. Dr. Renato Sztutman
PPGAS/USP

iv
______________________________
Prof. Dr. Luiz Antonio Lino Costa
PPGAS/IFCS/UFRJ

______________________________
Profa. Dra. Joana Miller
UFF

______________________________
Prof. Dr. Márcio Goldman
PPGAS/MN/UFRJ (suplente)

______________________________
Prof. Dr. Orlando Fernandes Calheiros Costa
PUC (suplente)

Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2018.

v
Esse trabalho é para Fátima, Crista e Kali in memoriam

Corpo em movimento. Sedento e suado. Transportado e transportando. Na canoa, rio acima,


exposto. Rio abaixo, exposto. Sol, chuva, temporal, ventania. Olhares. Predadores. No mato.
Na cidade. Na aldeia. Corpo suado e cansado de subir, subir e descer, descer e subir o
barranco. Carregando água, enchendo pote, esvaziando pote. Tomando banho. Lavando
roupa. Carregando criança, enchendo criança. Dando banho. Balançando criança.
Estendendo roupa. Deitando criança, desmamando criança. Rio enchendo. Do rio para casa,
da casa para o rio. Lavando roupa, carregando roupa, estendendo roupa, batendo roupa. Rio
vazando. Pé afundando na lama. Corpo suado, ensaboado e cansado. Ensanguentado e
carregado. Corpo que vive, que ri, que resiste.
(Desgosto, Oiara Bonilla)

vi
Agradecimentos

vii
viii
(...) une plante est un chant dont le rythme déploie une forme certaine, et dans
l'espace expose un mystère du temps"
( Paul Valéry, Dialogue de l'arbre, 1943).

"Tudo tem alma, senão as coisas não poderiam morrer"


(Yiwalinehe Jamamadi)

ix
RESUMO

Esta tese é uma etnografia dos Jamamadi, povo falante de uma língua arawá que
habita a região do médio curso do rio Purus (Amazonas). Trata-se do exercício de
pensar a humanidade a partir dos aspectos materiais, morfo-fisiológicos e das
elaborações metafísicas jamamadi sobre as plantas. Na primeira parte, a tese detém-se
no xamanismo vegetal no qual a relação com as plantas, cultivadas e não cultivadas,
são cruciais. Após a descrição da visita das almas e a apresentação de alguns de seus
cantos-fala, faço uma exposição sobre a iniciação xamânica, cujo objetivo final é
adquirir o noko koma, "o olhar envenenado". Busco nuançar a caracterização do
xamanismo amazônico nos termos de uma ideologia venatória, na medida em que a
pregnância das plantas entre os Jamamadi propõem questionamentos acerca do lugar
prático-conceitual atribuído aos animais. No segundo momento da tese exploro em
quais termos o aspecto vegetal da humanidade é formulado pelos Jamamadi a partir
das elaborações acerca do desenvolvimento do corpo humano e do vocabulário
aplicado à sua morfologia. Porém, é sob o ângulo do processo escatológico que a tese
encontra o seu maior rendimento: a transformação corporal e a fragmentação dos
componentes da pessoa com a morte permitem entrever em toda sua radicalidade a
aproximação metafísica entre humanos e plantas. A terceira parte, dividida em dois
capítulos, aborda a reflexão mítica sobre a origem da humanidade a partir de uma
origem vegetal comum. Em seguida, abordo a discussão sobre a recorrência da
organização social em subgrupos nomeados entre os povos que habitam a região do
interflúvio do Juruá-Purus.

Palvras-chave: Antropologia; Etnologia indígena; Xamanismo vegetal; Plantas

x
ABSTRACT

Keywords:

xi
Nota sobre a convenção ortográfica Jamamadi

Neste trabalho, adoto a convenção ortográfica estabelecida por Robert Campbell e


Barbara Campbell, casal de missionários do antigo Summer Institute of Linguistics
(SIL), em seus artigos datados das décadas de 1960 e 1970 centrados na língua
Jamamadi. No entanto, friso que esse não é um tópico livre de discórdias, uma vez que
as variações gráficas podem ser um importante diacrítico dos diferentes grupos locais
que compõem os Jamamadi. Assim, quando oportuno no texto, faço as necessárias
ressalvas e explicito as formas variantes usadas nas seguintes situações:

i. as semi vogais [i] e [u] podem ser grafadas "i" ou "y" e "u" ou "w";
ii. a oscilação no uso entre [j] e [y];
iii. a flutuação ocasional na escrita e na pronúncia de algumas palavras em jamamadi e
português em virtude da alofonia entre os pares de fonemas [l] e [r]; e, [x] e [s]. No
primeiro caso, o critério é a pronúncia [l] quando antecedido por [a] ou [i]; para o outro
exemplo, pronuncia-se [x] se sucedido por [i].
iv. por fim, a marcação da glotalização ([di'disaha], "arco", é escrito didisaha) e das
vogais duplas ([ooni], "nome", é escrito oni).

Em Jamamadi não há encontros vocálicos, de modo que caso haja duas vogais, elas
serão pronunciadas separadamente. Na tese, as palavras estrangeiras estão em itálico
(jamamadi e latim). Não grafo a acentuação em jamamadi que, via de regra, recai sobre
a sílaba final. Apresento abaixo um quadro com os fones presentes em Jamamadi
(retirado de Campbell &Campbell 1964) e o seu alfabeto, bem como alguns exemplos
de palavras em jamamadi e em português com o som do fonema correspondente. Caso o
som não ocorra em português, faço uma breve explicação.

12
I. Quadro de fones em Jamamadi

II. Alfabeto em Jamamadi

Letra na língua Jamamadi Som em português Palavra em Jamamadi

Vogais

a abacaxi aba (peixe)

e terra yehe (dedo)

i graviola bibi (abano)

o urubu bako (peito)


ou coração boni (vento)

Consoantes

b banana 'bita (carapanã)

d dedo doba (tipóia)

f faca afe (folha)

13
h rato hiyama (queixada)

k casa kobaya (caititu)

m mato madehe (criança)

n nuvem noko (olho)

r caro narabo (orelha)

s xícara sina (tabaco)


ou massa sami (abacaxi)

t tatu tone (osso)

w we (em inglês) widi (nariz)

y you (em inglês) yobe (casa)

14
Mapa feito por Christian Crevels

15
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 18

I. OBJETO DA TESE E SUA CONSTRUÇÃO 18


II. TRABALHO DE CAMPO E METODOLOGIA 33
III. A TERRA FIRME VISTA DAS MARGENS: O NOME "JAMAMADI" 43
IV. A LITERATURA HISTÓRICA E OS RELATOS DOS VIAJANTES 49
V. OS JAMAMADI MADI E OS JAMAMADI MADIHA 63
VI. A ESTRUTURA DA TESE 67

PARTE 1: XAMANISMO VEGETAL 69

CAPÍTULO 1: A VISITA DAS ALMAS E A DESPEDIDA DO CAMPO 70


CAPÍTULO 2: PRODUZINDO UM CORPO ENVENENADO 85
2.1 NOKO KOMA: O OLHAR ENVENENADO 109
2.2 NOKI KOMA: A FORÇA DO SANGUE E O VENENO DO OLHAR FEMININO 114
CAPÍTULO 3: OS ESPÍRITOS AUXILIARES E O RESGATE DA ALMA-CORAÇÃO 121
3.1 YAMATA ABONO: AS ALMAS DAS PLANTAS CULTIVADAS 130
3.2 AI KORIMARI: AS ALMAS DOS MORTOS 155
3.3 INAMADI TOWE: OS ESPÍRITOS PREDADORES 157
CAPÍTULO 4: A GUERRA MUNDIAL DAS GENTES-PLANTA 163
4.1 BETERINA E OS MÉDICOS KAKAO ABONO 173
4.2 O SONHO DO PAJÉ B. NO HOSPITAL CELESTE DA ALMA DA EMBAÚBA 176
CAPÍTULO 5: O PAJÉ COMO MODELO DO HORTICULTOR 178
CAPÍTULO 6: UM XAMANISMO SEM XAMÃS? 191

PARTE 2: PLANTAR OS MORTOS: A MORTE É A INFÂNCIA DAS PLANTAS 199

CAPÍTULO 7: DA VEGETALIDADE HUMANA 200


7.1 MORFOLOGIA E ONOMÁSTICA 219
7.2 PLANTAR OS MORTOS, ENTERRAR AS PLANTAS: VARIAÇÕES PERSPECTIVAS FADARA-TEMENE
231
7.3 A MORTE COMO FRAGMENTAÇÃO DA PESSOA 248
7.4 O RESGATE DAS ALMAS E A VIDA PÓSTUMA 256
CAPÍTULO 8: KAKATOMA: O OLHAR GERATIVO E AS RELAÇÕES DE CRIAÇÃO 273
8.1 OS FILHOS-PLANTA E A INVERSÃO PÓSTUMA 283

16
8.2 ADOÇÃO DE CRIANÇAS 307
8.3 OS ANIMAIS DE CRIAÇÃO 311

PARTE 3: MITOLOGIA E A QUESTÃO DOS SUBGRUPOS 319

CAPÍTULO 9: AS SEMENTES DA PRIMEIRA HUMANIDADE 320


CAPÍTULO 10: LOST IN TRANSLATION 333
10.1 AI YOROTOKANA: "NÓS, MISTURADOS" 340
10.2 "JAMAMADI É SÓ UM NOME" 353
10.3 TIKA EDE ONI?: "QUAL O NOME DA SUA ÁRVORE?" 358

CONSIDERAÇÕES FINAIS 364

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 381

ANEXOS 395

17
Introdução

The tree which moves some to tears of joy is in


the eyes of others only a green thing that
stands in the way. Some see nature all ridicule
and deformity... and some scarce see nature at
all. But to the eyes of the man of imagination,
nature is imagination itself.

William Blake

i. Objeto da tese e sua construção

Em setembro de 2013, após longas negociações com as lideranças Jamamadi e a

Coordenação Regional da Funai de Lábrea, viajei pela primeira vez para as aldeias

desse povo, localizadas na margem esquerda do médio curso do rio Purus, na Terra

Indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamati. Passada a longa temporada na cidade,

finalmente, eu viajaria com a família de Badá, o antigo cacique geral da aldeia São

Francisco, que aceitara receber-me em sua casa. No dia marcado, o cacique apareceu

para me avisar que eu não iria mais com ele devido ao desmoronamento de um barranco

que havia sido arrancado pela correnteza do igarapé Mamoriazinho tornando a

navegação muito perigosa. As águas deste igarapé alternam o sentido de seu curso no

período de seca e de chuva modificando drasticamente as rotas de navegação e

instabilizando suas margens. Sem habilidade, precaução e conhecimento de seu regime

18
hídrico é quase certo que um acidente ocorra. Como a canoa de um dos filho de Badá

alagara pouco tempo antes, ele preferiu combinar com Berinawa, o cacique da aldeia

Buritirana, para me levar por outro caminho, segundo ele, mais perto e seguro.

No dia seguinte, carregada a pequena canoa com as compras e mochilas, viajamos

ininterruptamente até o anoitecer quando alcançamos a comunidade ribeirinha Bom

Futuro, na beira do Purus, onde pernoitamos. Ao amanhecer, seguimos por um

varadouro até a margem de um grande lago, onde havia uma canoa, ainda menor, na

qual embarcamos com as nossas bagagens. Em virtude da lotação e do estado lastimável

da embarcação, conforme avançávamos tínhamos que retirar a água que entrava pelas

frestas e acabamos por desfazer as embalagens das compras para calafetar a canoa

enquanto navegávamos. Desviando das muitas árvores caídas, algumas submersas, e

cuidando para manter uma distância razoável dos jacarés, alcançamos depois de

algumas horas a outra margem.

Chegando na margem, arrastamos a canoa para descarregar as mochilas e tentamos

acomodar nos espaços que sobravam o rancho que acabara ficando espalhado na canoa

depois que rasgamos as sacolas. Caminhamos por quase uma hora e já nas imediações

da aldeia escutamos o hidroavião do missionário que tentava, sem sucesso, pousar num

lago próximo, coincidindo curiosamente com a nossa chegada. As poucas casas estavam

vazias, todos tinham corrido para observar, numa mistura de temor e admiração, o avião

se aproximar e arremeter até o piloto desistir e retornar à Lábrea. O longo percurso se

explica, em alguma medida, pela “má fama” do Purus. Isso remonta as primeiras

viagens dos exploradores que praguejaram, sobretudo contra as nuvens de piuns que

infestam suas praias no inverno. Os Jamamadi não poderiam discordar mais do hábito

19
daqueles que vivem nas margens, como os seus vizinhos Paumari, por isso preferem os

pequenos afluentes e a terra firme, menos frequentados por aqueles insetos, embora não

livre deles (como se verá adiante); reiteram que por precaução é preciso manter uma boa

distância do rio.

Tema de discórdia com seus vizinhos Jarawara, a região do lago Buritirana havia sido

ocupada recentemente pelos Jamamadi, de modo que havia poucas casas e roças. No dia

seguinte, eu continuaria minha viagem para a aldeia São Francisco, onde Badá e sua

família me aguardavam. Então, o cacique Berinawa fez questão de me apresentar

naquele mesmo dia sua aldeia. Caminhando em torno das casas, ele me mostrou

algumas de suas plantas, ensinando-me seus nomes em sua língua; ele apontava

orgulhoso uma por uma cuidando inclusive para distinguir as suas variedades.

Acariciando as folhas de uma bananeira, descrita por Berinawa como demo, “moça”, o

cacique falava com rancor de seus parentes do São Francisco. Ele e sua família haviam

se mudado recentemente de lá depois de vários desentendimentos. Segundo Berinawa,

aquela aldeia ficava muito longe e ele, retoricamente, dizia já não ter forças para

caminhar tanto; ademais, lá ninguém respeitava suas plantas, as pessoas maltratavam

seus cultivares e as crianças tiravam as frutas ainda verdes do pé. De fato,

posteriormente, eu veria muitas brigas motivadas por frutas colhidas sem autorização,

comentários maledicentes referentes aos roçados alheios, sem contar os sermões que as

crianças ouviam de seus pais quando eram imprudentes ou ofensivas com as plantas. O

cuidado e o afeto demonstrados pelo cacique, porém, contrastavam com a minha

impressão daquela “paisagem” confusa, à primeira vista desleixada, uma “massa”

indistinta de árvores frutíferas num emaranhado de cultivares agrícolas dispostos sem

qualquer organização aparente.

20
No outro dia, despedi-me da família de Berinawa em meio à avalanche de pedidos e

encomendas que eu não deveria esquecer em minha próxima visita. Além de miçangas,

roupas usadas e filhotes de cachorro, eles insistiam para que eu levasse pesticidas para

matar as saúvas que “roubam” seus roçados e sementes de plantas consumidas na minha

cidade. O trajeto entre a aldeia do lago Buritirana e a aldeia São Francisco, principal

agrupamento permanente jamamadi, tem aproximadamente 15 quilômetros. Muito

embora este varadouro seja bem cuidado, as ladeiras aumentam consideravelmente o

tempo do percurso. Durante as várias horas de caminhada, paramos algumas vezes para

descansar, pois estávamos muito carregados, e outras tantas vezes para marcar os locais

com bons cipós para cestaria, as árvores com frutas maduras, os rastros e pegadas

recentes deixados por algum animal, também para comentar sobre o tamanho de um

tronco, a beleza de um cacho de açaí, a juventude de um buriti, o aroma da casca de

uma árvore, as propriedades terapêuticas de um arbusto, os espinhos de uma taboca etc.

Minha ignorância botânica, amplificada pelo conhecimento minucioso deles, não me

permitia acompanhar plenamente a apreciação de tamanha diversidade, que permanecia

inconspícua; restava-me a contemplação estética e a tentativa tímida de reconhecer

algumas espécies.

Naquele momento, o que me saltava aos olhos não era tanto o interesse geral que eles

demonstravam pelas plantas, investimento evidente para os povos que vivem na

floresta, mas a etiqueta necessária no trato com elas e as metáforas usadas para

descrevê-las. Enquanto caminhavam, eles tomavam cuidado para não bater com o

terçado nas plantas, preferiam fazer grandes desvios para não passar perto de uma

determinada árvore, referiam-se a certas espécies com circunspecção e se limitavam a

21
pegar os frutos já caídos, jamais arrancando-os ou forçando sua queda. E ao falar das

plantas usavam com frequência termos que descrevem partes do corpo e do

desenvolvimento humano: “essa é uma bananeira moça” (como havia dito Berinawa),

“o buriti rapaz”, “aquela pupunha ainda não tem peitos”, “essa palmeira é uma criança

de colo, ainda mama”, “o filho da castanha” (para se referir ao ouriço), “os ossos da

folha” (para se referir à nervura), “a pele da árvore” (para se referir à casca) etc.

Perto da aldeia, passamos por capoeiras e áreas de roças até que meus companheiros

anunciaram que havíamos chegado ao nosso destino. Sorri desconcertada para meus

anfitriões, evidentemente, havíamos chegado: as casas se avizinhavam não deixando

dúvidas. Porém minha impressão era de que ainda estávamos “no meio do mato”, quer

dizer, eu não havia notado uma transição clara entre as roças que cercam a aldeia e que

eles foram me indicando conforme nos aproximávamos e a aldeia em si. Mandiocas

tinham sido plantadas atrás das casas, abacaxis se amontoavam junto com bananeiras ao

lado das cordas do varal presas nos galhos de um abacateiro, árvores cresciam por todos

os lados ameaçando derrubar os telhados, laranjas e cajus eram facilmente colhidos das

janelas, até mesmo sob as casas eles cultivavam pequenas mudas protegidas por

cerquinhas de madeira, em suma, visualmente a aldeia parecia ser uma "extensão" da

roça. Exceto a pista de pouso cuja grama estava metodicamente cortada e os terreiros

em frente às casas, capinados com alguma regularidade, a aldeia me parecia

“descuidada” como se tivesse sido invadida pelo mato.

22
Fig.1 Roçado de mandioca na aldeia São Francisco

A profusão vegetal aparentemente caótica que se alastra no espaço doméstico era

impactante na aldeia São Francisco tanto por sua proximidade quanto dimensão, a tal

ponto das árvores acabarem sendo incorporadas como elementos da arquitetura. Os

galhos próximos de onde a comida é preparada são utilizados para pendurar os

utensílios domésticos; botas, enxadas, terçados e paneiros ficam dispostos nas espátulas

mais baixas das palmeiras; algumas televisões estão do lado de fora das casas,

instaladas sob a copa de uma árvore frondosa cuja sombra parece delimitar um espaço

homólogo ao do interior da casa; bancos são talhados diretamente nas raízes; arcos e

flechas ficam pendurados nos telhados e nos galhos das árvores.

A impressão visual inicial é de certa “desordem”, como se as coisas estivessem

espalhadas ou tivessem sido esquecidas fora de seu lugar. Porém, aos poucos, a

perplexidade da invasão vegetal da aldeia foi cedendo lugar para a compreensão da

atenção extrema que devotam às plantas e o que me parecia descuido tornou-se cuidado.

Passei a notar que eles sempre limpavam em volta das plantas jovens que ainda estavam

brotando, por vezes, construindo cerquinhas ao seu redor ou plantando-as em latinhas

23
para que as formigas não as atacassem. Cotidianamente, visitavam seus roçados para

limpá-los, para se certificar que nenhum animal atacava os cultivares e, principalmente,

para “espiar” (tradução do verbo kakatoma), ação que abarca o cuidar, um modo de

promover o desenvolvimento semelhante ao olhar cuidadoso que dirigem aos seus filhos

e animais de criação.

Fig. 2 Casa na aldeia São Francisco

Da mesma forma que o cacique do Buritirana havia me apresentado sua aldeia através

das plantas que ele cultivava, Badá me convidou para conhecer o São Francisco me

apresentando a seus moradores e suas respectivas plantas porque ele fazia questão que

eu soubesse quem as havia plantado para que eu não as desrespeitasse, tirasse frutos

sem autorização de seus donos ou antes de seu amadurecimento. Em ambas as aldeias,

tão importante quanto saber os nomes das pessoas era conhecer os nomes das plantas,

eles foram explícitos para que eu anotasse corretamente seus nomes e aprendesse a

distingui-las. O problema é que eu não era capaz de fazer a contento deles nem uma

coisa nem outra, pois logo me esquecia dos nomes e confundia as espécies deixando-os

pasmos, dada a relevância do saber botânico para eles.

24
Lévi-Strauss cita em "O pensamento Selvagem" um trecho da etnografia de Smith

Bowen sobre os Tiv que descreve bem essa situação (Smith Bowen apud Lévi-Strauss

2009 [1962]:21): “[e]sse povo é culivador: para ele, as plantas são tão importantes, tão

familiares quanto os seres humanos", e a autora prossegue:

de minha parte, eu nunca vivi em uma fazenda e não estou mesmo muito segura de
distinguir as begônias das dálias ou das petúnias. As plantas, como as equações, têm o
hábito traiçoeiro de parecerem semelhantes e serem diferentes ou de parecerem
diferentes e serem semelhantes. Consequentemente, atrapalho-me em botânica tanto
quanto em matemática. Pela primeira vez em minha vida, encontro-me em uma
comunidade onde as crianças de dez anos não me são superiores em matemáticas, mas
estou também num lugar em que cada planta, selvagem ou cultivada, tem uma
utilidade e um nome bem definidos, em que cada homem, cada mulher e cada criança
conhece centenas de espécies. Nenhum deles poderá jamais acreditar que eu sou
incapaz, mesmo que o queira, de saber tanto quanto eles.

Essas cenas impressionistas tentam dar conta do espanto de quando cheguei pela

primeira vez a uma aldeia jamamadi, assombrei-me com a profusão visual das plantas

que crescem em toda parte e, dentro das limitações de quem viveu toda a vida na cidade,

teve que lidar com a insistência de seus moradores para conhecê-las com minucia e

dedicação.

***

Diante da limitação de fontes históricas e antropológicas específicas sobre os Jamamadi,

minhas principais referências bibliográficas foram os trabalhos desenvolvidos por

Maizza (2012, 2014) com os Jarawara, povo vizinho com o qual os Jamamadi mantêm

25
importantes vínculos sociocosmológicos. A semelhança linguística e cultural, bem

como a proximidade geográfica, torna os Jarawara seus aliados políticos em demandas

territoriais, apesar das articulações serem incipientes no contexto do movimento

indígena local. Tal fato não significa a ausência de relações por vezes ambíguas

marcadas por intensa prática xamânica e feitiçaria. Em seu livro “Cosmografia de um

mundo perigoso” (2012) e no recente artigo “Sobre as crianças-planta: o cuidar e o

seduzir no parentesco Jarawara” (2014), Maizza aponta temas que orientaram meu

campo e inspiram a formulação do objeto que ora esboço. Além de iluminar aspectos

importantes do ritual da menarca, do parentesco e da organização social, a autora

apresenta uma constituição relacional do espaço de modo indissociável à miríade de

seres, potencialmente capazes de assumir a posição de sujeito, e põe em relevo a

centralidade cosmológica das plantas cultivadas. Um dos meus objetivos consiste em

levar adiante sua intuição acerca da originalidade da metafísica dos roçados jarawara,

com destaque às suas expressões escatológica e xamânica. No cerne de sua análise está

a percepção - que se revelará igualmente essencial para caso Jamamadi - de que os

vínculos entre o céu e a terra, entre a vida e a morte dependem e são mediados pelas

almas das plantas:

todo indíviduo Jarawara está relacionado por laços de ‘consanguinidade’ (na verdade,
de familiarização) a espíritos chamados inamati, que são as ‘almas’ das plantas que
cultivaram na Terra e que subiram ao céu. Eles chamam estes espíritos de ‘filhos’(...).
No dia em que um indivíduo Jarawara morrer, estes espíritos virão buscá-lo para levá-lo
a sua moradia póstuma no céu. Além disso, os inamati dos xamãs são seus espíritos
auxiliares que, nas sessões de cura, recuperam as almas dos humanos capturadas por
outros seres. (Maizza 2012:76)

26
Na presente tese, por “planta” entenda-se não a dimensão circunscrita, fixa a um reino

biológico, subsumida à noção de Natureza, mas a região ou parcela do cosmos

altamente significativa na composição da pessoa, da socialidade e humanidade arawá.

Como se escreveu largamente, para os povos ameríndios a humanidade não se define

como um domínio da cultura que se opõe à animalidade e à vegetalidade naturais

(Viveiros de Castro 1996, 2002, Descola 1986, 1992, 2005). Acredito que para os

Jamamadi não exista uma noção de planta não-humana desprovida de subjetividade,

semanticamente neutra e coextensiva à divisão do reino plantae. Para essa fitologia

perspectivista não é possível determinar de antemão o que é uma planta somente ao

recorrer à classificação taxonômica da biologia. E em contraste com o desprezo patente

do ocidente pela vida vegetal, no presente estudo as plantas são investidas de dignidade

metafísica e existência política.

Na elaboração desta tese, aproximei-me pontualmente dos trabalhos de ecologia

histórica (Balée 1993, 1994; Clement et al. 2015, 2016; Levis et al. 2018) e

etnobotânica (Berlin 1992, Balée 1999, Conklin 1954, Ellen 1986 etc.) centrados em

temas como as classificações nativas, o processo de domesticação da floresta, o uso de

plantas medicinais e alucinógenas, os sistemas agrícolas e sua diversidade biológica, de

forma que compõem uma bibliografia secundária cuja relevância se mostra nas

considerações que faço sobre o manejo das plantas pelos isolados Hi-Merimã e no

esboço de uma crítica à noção de domesticação, do ponto de vista da relação dos

Jamamadi com o mundo vegetal.

Ainda a respeito das pesquisas com os povos arawá, há dados relevantes sobre as

plantas cultivadas e sua importância ritual entre os Deni (Florido 2013), o uso da

27
ayahuasca pelos Kulina (Cerqueira 2005), os rituais alimentares ihinika realizados pelos

Paumari (Bonilla 2007), a centralidade cosmológica do timbó, kona, na análise sobre o

suícidio suruwaha (Aparicio 2013, 2017 e Huber 2012), sem contar a importância do

tabaco no uso disseminado feito do rapé pelos povos que vivem em toda a calha do

Purus. Retornarei oportunamente a estas pesquisas, por ora, as menciono com a intenção

de expandir o escopo de minha própria análise, dado que por vegetal não trato somente

das plantas cultivadas, alucinógenas, venenosas ou de uso terapêutico, quer dizer, das

espécies úteis à vida humana, mas incluo além destas, as árvores de grande porte, as

palmeiras, os cipós, as plantas trepadeiras, as tabocas, as espécies que crescem nas

várzeas e nos chavacais, a grama da pista de pouso, os tubérculos venenosos dos quais

se extraia a goma e a massa no passado, e também as particularidades e a lógica dessas

formas enraízadas de existência que escapam às tendências zoo/antropocêntricas das

análises etnológicas. Isso porque a familiaridade que os Jamamadi demonstram

cotidianamente e a atenção que dispendem às plantas não se deve exclusivamente ao seu

valor prático e econômico. A importância simbólica delas, para lembrar a ciência do

concreto (Lévi-Strauss 2009[1962]), não se justifica por elas serem “boas para comer”,

mas por serem “boas para pensar”. Pode-se ir além, as plantas não se limitam a objeto

da abstração humana, do impulso classificatório de ordenação do mundo, elas são boas

para pensar e igualmente “boas para se relacionar” (Ingold 1991 e 1992, torcendo um

pouco a formulação do autor que se referia aos animais), quer dizer, as plantas não são

meras metáforas para os processos sociais e para a construção da pessoa: tentarei

mostrar que para o caso Jamamadi a existência humana é produzida e conceitualizada

com as plantas.

28
Um dos meus intuitos consiste em contribuir para o desenvolvimento dos estudos sobre

os grupos arawá e a região do médio rio Purus. Além dos trabalho de Maizza sobre os

Jarawara, devo lembrar as sobreditas pesquisas de Bonilla (2005a, 2005b, 2007, 2009,

2013, 2016) sobre os Paumari e as de Huber (2012, 2016) sobre os Suruwaha que foram

essenciais para a análise comparativa e como fonte de inspiração para a presente tese.

Ademais, é preciso reconhecer a dívida desta pesquisa com a atual renovação dos

estudos dedicados ao Purus e seus povos: as coletâneas organizadas por Gilton Mendes

dos Santos (2011); o volume organizado por Marta Amaroso e Gilton Mendes dos

Santos (2013) no qual constam diversos artigos sobre a região do Purus; a continuação

da coletânea sobre o médio Purus e seus povos por Miguel Aparicio e Gilton Mendes

dos Santos (2016); os artigos e a tese de Marcelo Florido sobre os Deni (2008, 2011,

2013); e os vários textos dedicados aos Suruwaha escritos de Miguel Aparicio (2011a,

2011b, 2013, 2014, 2017).

Se a bibliografia antropológica sobre o Purus e seus povos é relativamente exígua

comparada a outras áreas etnográficas, o mesmo não pode ser dito sobre as línguas

arawá e a língua apurinã, objetos de diversos estudos missionários de organizações

evangélicas presentes, há muitas décadas, nesta região. O casal Robert e Barbara

Campbell, membros da Sociedade Internacional de Linguística (SIL, antigo Summer

Institute of Linguistics) e vinculados à Greene Baptist Church, produziram alguns

artigos nas décadas de 1970 e 1980 sobre aspectos do idioma Jamamadi. Contudo as

melhores referências para o estudo das línguas madi são o dicionário de Alan Vogel

(2006) e a gramática de Robert Dixon (2004) sobre a língua Jarawara. Ainda sobre os

Jamamadi, há trabalhos de caráter mais técnico produzidos por organizações

indigenistas como o relatório realizado por Schröder (2008) no âmbito do Projeto

29
Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL) e,

mais recentemente, o Plano de Gestão Territorial e Ambiental Jamamadi (PGTA) feito

pela ONG Organização Amazônia Nativa (OPAN), concluído em 2015.

Fora do médio curso do rio Purus, há diversos trabalhos centrados na relação das

populações indígenas que contribuiram para fundamentar as reflexões desta etnografia.

Cito os trabalho de Cabral de Oliveira sobre as formas de classificação Wajãpi (2006,

2012); de Morim sobre o cultivo da batata-doce entre os Krahô (2016); de Rival acerca

da relação dos Huaorani com as plantas (2001, 2005, 2009); de Descola (1986) e Taylor

(2000) a respeito da dinâmica social com as roças e a floresta para os Achuar; por fim,

as pesquisas arqueológicas de Eduardo Neves sobre a domesticação da Amazônia

(2017). Na construção da tese, a leitura da bibliografia recente engajada em reconhecer

a relevância política e metafísica das plantas foi de grande interesse: os textos de

divulgação geral (Tassin 2016; Pollan 2001); os estudos botânicos (Hallé 2002); as

propostas de filosofia ecológica (Coccia 2013 e 2016; Marder 2013; Houle 2011; Hall

2011); além de estudos filosóficos variados sobre o tema (Nealon 2016; Delaporte

2011[1979]; Drouin 2008; Fechner 1921).

Conforme anunciei antes, a etnografia de Maizza já havia apontado a relevância

metafísica das plantas cultivadas para os Jarawara a partir do enfoque nas relações de

parentesco. No caso de minha pesquisa, foi o xamanismo e a escatologia, bem como a

exuberância da presença vegetal nas aldeias, sua pregnância no discurso e as

especificidades no trato com as plantas que foram as portas de entrada para a

delimitação do foco do trabalho. Portanto, as plantas cultivadas e não cultivadas

30
rapidamente se impuseram enquanto tema corrente da vida e das relações com os

Jamamadi.

As informações obtidas nas expedições de monitoramento realizadas pela Frente de

Proteção Etnoambiental Madeira-Purus (doravante FPEMP)1 e dos relatos dos

Jamamadi sobre as relações de manejo da floresta, os padrões de deslocamento, a

cultura material e o amplo conhecimento técnico do processamento dos tubérculos

"selvagens" pelos isolados foram imprescindíveis na reflexão. Os vizinhos isolados Hi-

Merimã ocupam uma posição analítica importante nesta tese: funcionam como

contraponto ou contrapeso intelectual para os Jamamadi, um fundo contra o qual meus

interlocutores se projetam em seus discursos sobre as transformações cosmológicas

tendo em vista refletir acerca da sociabilidade característica de seus diferentes modos de

vida e os tipo de relação implicadas com o mundo vegetal.

Tendo reconhecido minha dívida em relação às obras elencadas acima para a confecção

das hipóteses deste trabalho, convém dizer que, em consonância ao movimento de

valorização da vida vegetal, um de meus objetivos é contribuir para reconceitualizar o

lugar atribuído às plantas e aos processos vegetais nas elaborações correntes da

etnologia indígena. Apesar de não ser o foco da tese, não é desprovido de interesse que

a relação dos Jamamadi com as plantas oferece um contraponto aos devaneios do

discurso filosófico que não raro contribuiu para perpetuar a posição subalterna e

instrumental das plantas no ocidente. Minha aposta é que no encontro com as plantas,

em particular as que figuram nesta tese, o pensamento possa afetar-se por sua vitalidade

1
As Frentes de Proteção estão vinculadas à Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato
(CGIIRC) da Fundação Nacional do Índio (Funai).

31
e, quem sabe, sem mais projetar suas razões sobre uma imagem idealizada das planas,

permita-se dar atenção à ontofitologia que anima o mundo Jamamadi.

32
ii. Trabalho de campo e metodologia

Os primeiros meses do trabalho de campo foi, para usar um eufemismo, conturbado. Os

entraves burocráticos, os obstáculos diplomáticos e as dificuldades logísticas eram

tantas que, muitas vezes, considerei inviável prosseguir a pesquisa ainda que os

Jamamadi tenham sido receptivos e aceitado receber-me em suas aldeias.

A desconfiança é um elemento forte da relação com os Brancos, talvez uma estratégia

de sobrevivência nesta região marcada pelo extermínio e violência perpetrados pelos

patrões de antes e de hoje, pela perseguição e preconceito da população local, e pelas

investidas missionárias incansáveis de demonização de sua cultura e modo de vida. Na

tentativa de se invisibilizarem, eles costumavam ser evasivos e suas respostas, esquivas.

Ao longo de muitos meses, eles desviaram de minhas perguntas ou insistiram para que

eu me conformasse com suas negações, mesmo quando o contrário era manifesto.

Os Jamamadi valiam-se de malabarismos retóricos para se esquivar. A "cultura"

demorou a se fazer visível dado o seu empenho em ocultar-se e em despistar mesmo nas

situações em que o contrário se fazia evidente. As conversas, a princípio, tendiam a

empalidecer as diferenças e versavam ora sobre a época em que trabalhavam para os

patrões ora sobre o mau atendimento dos serviços oferecidos aos povos indígenas.

Sobre a patronagem, as narrativas oscilavam entre as agruras do cativeiro por dívida e

as lembranças saudosas da prodigalidade dos patrões que os apadrinhavam. Na região,

algumas histórias da violência promovida pelos patrões dos quais eram fregueses são

notórias, contudo, eles recuaram por muito tempo em falar sobre elas, preferindo tratar

33
dos patrões que os "amansaram", referidos como os responsáveis pela introdução de

novos alimentos e tecnologias, dentre outras inovações. Em suma, eles julgavam que os

assuntos que interessam os Jara2 também me interessariam.

Em 2013, quando iniciei a etapa de pesquisa de campo, as aldeias Jamamadi eram

pouco frequentadas pelos brancos, excetuando-se os missionários e alguns patrões

dispostos à longas caminhadas, de modo que, a princípio, os motivos da minha

permanência não eram claros para a maioria, gerando toda sorte de desencontros de

expectativas acerca da natureza de meu trabalho e seus resultados possíveis. Embora

pouco tempo antes de minha chegada, tenham ocorrido duas outras tentativas de

pesquisa etnográfica, mas que não puderam ser levadas a cabo, os contornos e tentativas

de categoriazação do que consiste um antropólogo na ordem das coisas ainda eram

vagas.

Assim, no caso da aldeia Pauzinho, por hospedar-me no postinho de saúde, seus

moradores por um tempo associavam-me aos funcionários de Secretaria Especial de

Saúde Indígena (Sesai) e, algumas vezes, foram me procurar com a expectativa de

serem atendidos por um profissional da saúde. Também fui tomada como um tipo de

missionária, pois são eles que passam temporadas longas nas aldeias da região, se

interessam pela língua e por aspectos da vida indígena desprezados pela maioria dos

brancos.

No mais das vezes, a relação com os Jamamadi pautou-se na necessidade flagrante de

2
Amplamente utilizado pelos indígenas da região para designar os brancos, "jara" é emprestado
do nheengatu, língua geral de origem Tupi, e significa "dono", "mestre". Outro termo que os Jamamadi
empregam, com menor frequência, é "cariú", derivado da palavra tupi-guarani "kariwa", utilizado para
denominar os brancos.

34
auxiliá-los na interlocução com a burocracia estatal, em particular, no trato com as

instâncias responsáveis pela emissão de documentos, uma demanda recente associada

aos benefícios sociais que intensificaram os deslocamentos das aldeias para a cidade,

quase mensalmente. Nesse cenário, ora as conversas eram motivadas pelo interesse

pragmático deles em "fazer documentos" e, por conseguinte, o "antropólogo" tornava-se

um tipo de "agente do governo" que estava ali para "fazer papéis", ora chamavam-me

para dar aulas de português e, por isso, imaginavam que cabia ao antropólogo cumprir o

calendário letivo determinado pela Secretaria Municipal de Educação (Semed). O que

incluía oferecer merenda e seguir o currículo do programa político pedagógico das

escolas dos brancos, uma vez que não há política de educação específica para os povos

indígenas na região.

Com o apaziguamento da desconfiança de que eu seria mais uma a ir embora, haja visto

o malogro das tentativas recentes, e com o meu progresso no aprendizado da língua,

graças ao esforço e paciência incomensuráveis deles para me ensinar, tornou-se um

pouco mais plausível os motivos que me levavam a ir "tão longe e sozinha dos meus

parentes". O que não os fez deixar de dizer com sarcasmo que ficar longe de casa era

ruim e, por isso, não se imaginvam fazendo esse trabalho. No caso das mulheres, sua

indiferença e desconfiança não durou muito tempo em virtude da minha inépcia em

realizar de maneira autônoma as tarefas do cotidiano: por impaciência, elas logo se

aproximaram e, em decorrência dos meus erros constantes, se solidarizaram para me

ensinar sua língua e o mais básico da vida na floresta.

Devo dizer que somente com o aprendizado da língua é que pude pensar junto a eles

aulas que fossem mais estimulantes. Aprendê-la foi essencial na condução da pesquisa,

pois somente os homens mais velhos, com idade superior a cinquenta anos (Badá,

35
Berinawa, Deki, Chagas Arnica, dentre outros), que serviram de mão-de-obra para os

patrões na extração da seringa e no fornecimento de outros produtos da floresta têm um

bom domínio do português. Portanto, nas aldeias a comunicação ocorre exclusivamente

na língua nativa.

No final de minha estadia, muitos vincularam minha pesquisa ao que passaram a

chamar de "cultura", termo incorporado no contexto da elaboração do PGTA Jamamadi,

e na participação do curso de formação de professores indígenas "Pirayawara",

desenvolvido pelo governo do estado do Amazonas. Se a princípio minha presença

justificava-se por um certo "assistencialismo" nas demandas diárias no trato com o

mundo dos brancos, restringindo as interações a temas circunscritos, paulatinamente,

retornando à área indígena, eles se deram conta, do meu interesse continuado em sua

"cultura", transformando positivamente as relações e, por conseguinte, a própria

pesquisa.

Conhecer outros antropólogos nos encontros promovidos pelas instituições indigenistas,

em particular no contexto das ações desenvolvidas pelo Centro de Trabalho Indigenista

(CTI) no bojo do projeto "Proteção Etno-Ambiental dos Povos Indígenas 'Isolados' e de

Recente Contato na Amazônia Brasileira", foi outro fator que ajudou a amenizar o

estranhamento deles relativo à pesquisa antropológica. Em tais contextos era comum

que comentassem: "Ah, quer dizer que existem outros como você. Tem muita gente,

antropólogo, de onde vocês vem?". Desta feita, de esquivos e monossilábicos meus

anfitriões passaram ao entusiasmo verborrágico: eles começaram a fazer questão que eu

aprendesse corretamente a língua prestando atenção nas distinções entre os dialetos,

gravasse suas histórias preferidas, fotografasse seus roçados e animais de criação,

36
dançasse e cantasse nos rituais, em suma, depois de tentar me categorizar como

enfermeira da Sesai, professora da Semed, agente da Funai ou missionária, finalmente,

adotaram "antropólogo" como nova categoria de gente.

***

Viajei pela primeira vez à Lábrea em maio de 2012, em companhia da antropóloga

Oiara Bonilla que desenvolve pesquisa com os Paumari, e se dispusera a me apresentar

as instituições que atuam na região e a alguns interlocutores indígenas. Retornei à

Lábrea para meu primeiro campo do doutorado em julho de 2013 e permaneci até

dezembro, alternando períodos entre as aldeias Jamamadi e o município de Lábrea. O

período seguinte de campo foi de setembro de 2014 a fevereiro de 2015, ao longo do

qual retornei à Lábrea somente em duas ocasiões pontuais. Ainda em 2015, fiz outra

incursão em campo entre os meses de julho e novembro. Por fim, em 2016 permaneci

na região de agosto a novembro, totalizando cerca de 20 meses de trabalho de campo.

Na primeira viagem a Lábrea, rondava um clima de tensão na cidade, pois fugitivos da

cadeia local estavam foragidos da polícia. A boataria e as histórias fantásticas se

proliferavam: objetos desaparecidos, sons estranhos no meio da noite, cães latindo sem

motivo aparente passaram a ser responsabilidade das ações dos fugitivos. Para piorar,

naquela época, Lábrea sofria com apagões diários de várias horas e, não raro,

caminhávamos na escuridão completa.

37
É na praça de Lábrea onde se reúnem os indígenas em trânsito principalmente no início

do mês quando vêm para receber seus pagamentos. Juntos no eixo central os indígenas

se encontram para observar o movimento dos brancos e comprar as mercadorias dos

prestanistas, espécie de caixeiro viajante, que se aglomeram ávidos em torno desses

grupos para vender-lhes aviado.

Foi em uma dessas ocasiões que ocorreu meu primeiro encontro com os Jamamadi, em

uma caminhada em direção à praça. Duas mulheres carregadas desse povo com cestos

acenavam para que eu fosse vê-las. Um pouco depois, conheci Badá, a principal

liderança Jamamadi. Assim como muitos indígenas, ele procurava ajuda para sacar sua

aposentadoria já que o banco não disponibiliza nenhuma assintência. Os Jamamadi

baixam em grupos para Lábrea na mesma época do mês, permanecendo por poucos

dias, o suficiente para sacar o dinheiro e gastá-lo.

Em 2012, a maioria dos Jamamadi quando estava na cidade se hospedava na casa dos

Jarawara ou na casa onde vive o missionário, poucos tinham sua casa própria. Já em

2016, muitos tinham empenhado seus cartões para a compra de casas na cidade, com

preferência ao bairro da fonte. Os Paumari, por outro lado, além deste bairro, fazem

suas casas numa região da cidade chamada beira mar onde casas de palafitas se

aglomeram próximas das margens do Purus.

Esperei alguns meses em 2013 até obter a autorização de ingresso na área indígena dos

Jamamadi. A palavra final estava condicionada ao aceite do cacique geral, Badá

Jamamadi; porém, a liderança já idosa viaja poucas vezes à cidade. A negociação

transcorreu com os Jamamadi sem sobressaltos, e Badá decidiu que eu poderia realizar a

38
pesquisa e se ofereceu para hospedar-me em sua casa. No decorrer da pesquisa, a

proximidade criou laços que os fizeram me adotar como um tipo de filha.

Na temporada que passei na cidade enquanto aguardava a resposta dos Jamamadi,

frequentei algumas aulas de língua paumari e apurinã do curso “Sou Bilíngue”,

ministradas por professores indígenas aos jovens que vivem na cidade e não são fluentes

em seus idiomas nativos.

***

Segundo o censo que realizei em 2015, a população Jamamadi é de aproximadamente

387 pessoas que vivem em 6 aldeias permanentes (Pauzinho, Embaúba, São Francisco,

Seringal, Vitória e Kosi) e uma dezena de aldeias menores de ocupação intermitente

para onde vão as famílias extensas durante a época das chuvas no inverno e nos

períodos das expedições de extração do óleo de copaíba. Essas aldeias estão localizadas

em capoeiras de antigas colocações há muito desocupadas: as mais frequentadas

recentemente são a aldeia Jatobá (Kamowabaki) das famílias de Luis e Robi, a aldeia

Poço Grande (Famawa) da família de Saba, ambas no Curiá; a aldeia Wenowadi da

família de Nonobi, no igarapé Preto; a aldeia Marina da família de Moasi, no Sabuhã; e

as aldeias Kaborao e Niteroi das famílias de Erinawa e Deki, no Sikifaha.

Parte considerável da pesquisa foi realizada na aldeia São Francisco, no centro da terra

indígena, alternando com temporadas na aldeia Pauzinho e viagens breves às demais

39
aldeias: Vitória, Embaúba e Buritirana. Na aldeia São Francisco, vivi na casa da família

do cacique Badá. Já na aldeia Pauzinho, hospedei-me no postinho de saúde que também

abrigava a radiofonia - instalada em 2015. A aldeia Carapanazal, por sua vez, foi

desfeita em 2015 e seus moradores se mudaram para o outro lado da terra indígena, num

afluente do rio Piranha, de modo que em virtude da distância, esta foi a única aldeia que

não pude conhecer. O trânsito constante dos Jamamadi entre as diferentes áreas de seu

território - que logo ganhará sentidos mais precisos -, não obstante, possibilitou o

contato frequente mesmo com aqueles que viviam mais afastados. Outra referência

importante no trabalho foi a Base de Proteção Etnoambiental do Canuaru, localizada a

algumas horas à montante da aldeia Vitória, num afluente do igarapé Mamoriazinho, na

qual funciona um eficiente sistema de comunição por radiofonia e internet.

Na aldeia São Francisco, as condições materiais de existência são afetadas pelo

esgotamento dos recursos das áreas do entorno. Há nos últimos anos, um aumento

preocupante da escassez alimentar nesta aldeia populosa, o que se nota na dimunição

das caças e na seca dos igarapés durante os meses de verão. Por conseguinte, as idas à

Lábrea tornaram-se mensais para a compra de alimentos industrializados: uma mudança

dos hábitos alimentares que é tanto um problema de saúde pública quanto uma grave

questão cosmológica. Nos idos de 2013, tampouco havia em área atendimento de saúde

com a presença regular de agentes da Sesai, nem radiofonia instalada ou escolas em boa

parte das aldeias Jamamadi. A construção do pólo de saúde, em 2014, no entanto, não

resultou na melhora do atendimento dos Jamamadi que seguem morrendo por descaso, e

não são poucas as suas vítimas.

40
As crianças desde de muito pequenas acompanham seus pais nas longas caminhadas

carregando seus paneiros diminutos, mesmo aqueles com mobilidade reduzida não

abandonam o hábito dos constantes deslocamentos. A vida transcorre na terra firme, não

é incomum encontrar quem se negue a viajar de barco pelo Purus por temor de suas

águas. Ademais, a errância pelo território aos poucos revelará sua importância nesta tese

como método de apreciação e relação com as plantas. Não à toa, frequentei durante todo

o campo os roçados cotidianamente e caminhei junto a eles para observar as plantas.

Estar em movimento era o meio propício e a condição de pesquisa entre os jamamadi:

viajar para tomar mingau em outra aldeia, buscar uma muda de banana de um parente, ir

ver as pupunha de um tio numa capoeira distante, pescar e nadar com as mulheres no

igarapé e roçar.

Além de acompanhar meus anfitriões em suas tarefas diárias nos roçados e auxiliar as

mulheres nos trabalhos domésticos, visitava com a mesma frequência as outras famílias

da aldeia para conversar, todavia, sem a preocupação de estruturar uma entrevista ou

limitar os assuntos em debate. Pude contar com o entusiasmo de muitos deles,

entretanto, alguns tornaram-se interlocutores centrais para este trabalho: Badá e seu

esposa Sabira, os meus pais adotivos; Mowe, sobrinha paralela deste casal, que me

acompanhou ao longo de todo campo e me auxiliou na transcrição de muitos mitos e

cantos; a família de Deki e aquela de Totinha, na aldeia Pauzinho; Berinawa, Chagas,

Moacir e Bernaldo, senhores mais velhos com boa fluência em português; além de

Salgado e Abadias que foram essenciais no trabalho de tradução. E com pesar, lembro

de Crista, quem me ensinou sua língua durante os primeiros meses de campo, e que

faleceu em 2017 de forma trágica. Opto por abreviar os nomes dos pajés a fim de

preservar-lhes a identidade, uma vez que sua prática é alvo de perseguição por parte dos

41
missionários e dos Jamamadi convertidos. Por escapar do escopo deste trabalho, não me

adentro na questão da conversão religiosa, embora reconheça sua importância para a

dinâmica social e as amplas transformações que promove. Rapidamente, poucos

Jamamadi se dizem crentes, embora muitos frequentem os cultos realizados nas aldeias,

segundo eles, para cantar. No período em que estive em campo, somente alguns jovens

e a família do pastor indígena se diziam, de fato, evangélicos.

A conformação atual das aldeias congrega diferentes subgrupos madi, falantes de

variantes dialetais da mesma língua. Essa mistura se manifesta na ambiguidade que

permeia suas relações e não deixa de se expressar na linguagem em versões

concorrentes de relatos. Esse jogo de diferença e semelhança é a marca da socialidade

da aldeia São Francisco: um grupo frequentemente deslegitima as informações dadas

por um outro: "quem te disse isso?", costumavam me perguntar a fim de checar a fonte.

“Ah, mas fulano ainda é uma criança pequena"; “Eu já era formado [adulto] quando

fulano ainda era criança, então, ele não sabe bem”; “Eu criei muito ele. Ele não sabe

falar certo3” eram enunciados ditos com a intenção de deslegitimar as falas dos vizinhos

de outros grupos e "alertar-me" de seus equívocos. Sem dar o braço a torcer,

arrematavam lembrando: Owa bara, "eu sou outro/diferente [dele]". As outras aldeias,

por outro lado, são formadas por famílias nucleares e sua dinâmica é menos pautada na

disputa que marca as relações na aldeia São Francisco.

3
De forma alternativa podem dizer que alimentaram tal pessoa com os produtos do seu roçado:
"essa pessoa foi minha criação, comeu muito do meu fadara, roçado". Também os Suruwaha quando
querem ofender alguém ou repreender uma criança maleducada dizem algo semelhante: Abiji ahyra aru
hwawaxu!, "[me respeite pois] eu não me alimento dos cultivares do teu pai". Em um contexto distinto,
mas seguindo a mesma lógica, os Suruwaha dizem: Aruwa nakamunysama! Wahyra/ ubahiria hawa
niasangani/ niasanawanki, "Não fique com saudade de mim, pois você não se alimentou dos meus
cultivares/ as caças que abati". As informações e traduções da língua suruwaha são de Adriana Huber
(com. pess.).

42
iii. A terra firme vista das margens: o nome "jamamadi"

Não resta dúvida de que a questão "qual o nome da sua etnia?", mormente quando

formulada por um interlocutor não-indígena, é respondida com o etnônimo Jamamadi;

por outro lado, bem menos evidentes são as respostas à versão nativa da questão, tika

ede oni?, "qual o nome da sua árvore?". Antes de enfrentar as variações etnonímicas e a

complexidade metafísica que a versão indígena da pergunta encerra, abordo a fortuna

relativa ao termo "jamamadi" com a intenção de explicitar os fundamentos da resposta à

primeira questão. Para tal, me deterei nas controvérsias inerentes à extensão e aplicação

deste nome; no tópico seguinte, recupero os registros históricos e relatos dos viajantes

que estiveram no Purus desde o início do século XIX; por fim, volto-me para a

estabilização atual do nome "jamamadi" como etnônimo adotado por esta população do

médio Purus.

A segunda pergunta tika ede oni?, por sua vez, trata da versão indígena da pergunta,

alargando a discussão para as socialidades do "conjunto arawá" e o debate acerca dos

"subgrupos nomeados". A patente insuficiência para pensar a questão a partir do

arcabouço conceitual sociológico estimulou propostas analíticas que fogem da

reificação dos grupos, priorizando o dinamismo do fazer social indígena. Contudo,

muito embora as hipóteses aventadas produzam resultados interessantes, elas parecem

pouco profícuas para os Jamamadi, e talvez os demais coletivos madi, por motivos

semelhantes aqueles apontados por Bonilla (2007:299-305) para o caso Paumari. Resta

perguntar como os Jamamadi pensam sua socialidade e quais os termos mais produtivos

43
para abordá-la. Este será tema do capítulo final dessa tese, por ora, detenho-me no

etnônimo "Jamamadi".

***

De forma geral, as referências ao nome "jamamadi" são esparsas e pouco precisas,

principalmente quanto à localização de suas habitações, de forma que só resta supor se

tais registros correspondem àqueles que hoje são conhecidos como Jamamadi, na região

do médio Purus. A tarefa de buscar uma correspondência exata entre as informações

deixadas pelos viajantes com um povo específico implica em boa dose de especulação,

dado os grandes deslocamentos migratórios a que foram submetidos os povos indígenas

com a pressão exercida pelas sucessivas frentes extrativistas que invadiram seus

territórios, as grandes baixas demográficas decorrentes das correrias, epidemias e

guerras, e, associados a esses fatos, os processos de reagrupamento, fissão e ruptura,

parte da constituição atual dos povos indígenas no Purus e alhures. O contato e os

impactos decorrentes desmembraram os grupos, e seus sobreviventes, forçados pela

história, reconstituíram-se em novas configurações sociais cujos etnônimos restam

enquanto indícios esmaecidos da magnitude e multiplicidade passadas.

Como se verá adiante, o termo "jamamadi" era aplicado de forma genérica a todos os

povos que habitavam, preferencialmente, as terras firmes não alagáveis, evitando as

margens e os cursos d'água mais caudalosos. Fato que, segundo algumas análises,

estaria subjacente à etimologia do termo. Seu caráter englobante revela não ser possível

44
determinar com precisão se todas as referências aplicam-se aos Jamamadi atuais do

médio Purus, dado que o termo era usado para identificar uma miríade de grupos,

muitos dos quais foram exterminados, enquanto outros hoje são conhecidos segundo

etnônimos diferentes. Todavia, tal aspecto permite retraçar informações sobre o contato

e as relações entre os povos do Purus. Da relação que o nome encerra depreende-se o

contraste entre as margens e a terra firme, o rio e a floresta; de maneira ainda mais

ampla, remete à distinção entre os indígenas "civilizados" e "mansos", das margens,

ilustrados pelos Paumari (cf. Bonilla 2007: 45-46; 95; 137), em oposição aqueles

"selvagens", "inconstantes" e "medrosos" das matas. Conforme este gradiente, quanto

mais embrenhado no interior, mais inculto e avesso ao contato com os brancos era o

povo. Menos que um etnônimo, "jamamadi" era uma qualificação inclusiva aplicada à

multidão de pequenos agrupamentos que habitavam as florestas; assim, os Jamamadi,

mas também os Banawá - outrora chamados de Jamamadi do Apituã -, os Jarawara, os

Hi-Merimã4, e, no alto Purus, os Sivakoedeni e os Jamamadi madiha, eram todos

identificados sob o termo "Jamamadi".

Sobre a profusão e dinâmica etnonímica desnorteante própria desses povos, notável na

dissonância dos registros dos viajantes e etnólogos, basta lembrar a inquietude do padre

Tastevin em suas viagens realizadas na região do interflúvio Juruá-Purus na primeira

metade do século XX "com o caráter fluido dos etnônimos e das categorias, o que o

impedia de situar as localidades nos seus mapas ou de ligar inequivocamente um nome

a um grupo social" (Campello & Sáez 2016:14). A polissemia dos nomes e o dissenso

de sua aplicação tornam improdutivas as tentativas de equacionar de forma unívoca um

4
Vale a pena frisar que os povos considerados isolados são melhor descritos como "em situação"
de isolamento voluntário, pois, como sobreviventes de conflitos e correrias, cativos de patrões, foragidos
de missões catequizadoras preferiram abster-se de contato com os brancos e, muitas vezes, até mesmo
com os povos indígenas vizinhos.

45
povo a um nome, ou, de saber quais relações os grupos poderiam manter entre si; talvez

compusessem grupos falantes de uma mesma língua, talvez refletissem uma

organização social de tipo subgrupo nomeado, impossível saber.

Outro aspecto importante a ser ressaltado é a correlação entre o extermínio dos povos

que abundavam ao longo de toda calha do Purus "desde a sua foz e continuando rio

acima", nas palavras do jesuíta Cristóbal de Acuña5, cronista que acompanhara a

viagem de Pedro Teixeira, e o desaparecimento da diversidade de nomes que ela revela.

Como sugeriu Andrello (2016:19): "o processo colonial não apenas dizimou uma

população, mas também seus nomes, que passaram de centenas para dezenas. Olhar

para os etnônimos nos revela, por contraste, essa aversão do regime colonial a qualquer

multiplicação da diferença intensiva". Esse modelo relacional expresso pelos nomes e

sua circulação está na contramão da estratégia colonial e estatal em que nomear é

singularizar as misturas e diferenças sociais para melhor controlá-las; como bem

lembrou Sáez (2016:14): "os etnônimos mantêm não poucas vezes uma guerrilha

cognitiva contra missionários e funcionários".

Das referências históricas aos "Jamamadi", duas podem ser bem localizadas hoje: a

primeira corresponde aos povos que viviam na região entre os rios Cuniuá, Mamoriá,

Pauini, Teuini e Inauini, Capana e Xeruã, e a segunda, àquelas da região entre os rios

Sabuhã e Curiá, ambos afluentes do rio Piranha, e os igarapés Mamoriazinho, Preto,

Caihã, Bawaná e Uricuri. Essas são regiões de cabeceira e de igarapés de terra firme,

pouco afetadas pela variação hidrográfica das mudanças sazonais amazônicas. A

primeira é atribuída aos Jamamadi, falantes de língua madiha, que vivem nos limites

5
Em seu relato cita os seguintes grupos: os Cuchiguará, que possuem o mesmo nome atribuído ao
rio Purus; Cumayaru; Guaquiari; Cuyariyayane; Curucuru (possível corruptela dos Purupurus?); Quantafi;
Mutuani e, por fim, os Curiguerê. Também menciona os Caripuna e os Zurina (apud Kroemer 1985:19).

46
dos municípios de Boca do Acre e Pauini, entre eles há os do igarapé Capana na Terra

Indígena Capana e os Sivakoedeni, na Terra Indígena Inauini/Teuini no afluente do rio

Inauini. A segunda trata dos também chamados Jamamadi, falantes de língua madi, que

moram na terra indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamati, município de Lábrea, dos

Jarawara que habitam nesta mesma T.I., dos Banawá, da terra indígena homônima e,

provavelmente, dos isolados Hi-Merimã, que vivem na terra indígena Hi-Merimã,

adjacente às duas terras indígenas anteriores.

Stefan Dienst (2016)6 propõe a subdivisão da família linguística Arawá nas línguas

Madi-Madiha, Suruwaha, Paumari e Arawá (extinta), sendo que a primeira comportaria

a divisão interna em dois ramos: Madiha, falada pelos Kulina, Jamamadi Ocidentais e

Deni, e Madi, falada pelos Jamamadi Orientais, Banawá e Jarawara. Não adoto a

nomenclatura sugerida pelo linguísta com a função de etnônimo por precaução que a

distinção ocidental/oriental possa aumentar a já grande confusão entre as referências

que são feitas aos Jamamadi do alto e do médio Purus. Prefiro manter o etnônimo

"Jamamadi" para ambos os povos, de acordo com o uso feito pelos mesmos, remetendo-

me às diferenças linguísticas ou territoriais para distingui-los, temos assim: os

Jamamadi (orientais) falantes de língua madi que habitam o médio Purus e os Jamamadi

(ocidentais) falantes de língua madiha que vivem no alto Purus.

6
"O Kulina, o Deni e o Jamamadi Ocidental constituem o ramo Madiha da família linguística
Arawá. Os Kulina são o mais numeroso de todos os grupos Madiha. Eles vivem no Alto rio Purus no
Acre e no Peru, no rio Envira no Acre e nos rios Tarauacá, Juruá e Jutaí no Amazonas. Os Deni vivem no
Amazonas entre os rios Purus e Juruá. Um dos dois grupos Deni vive no Cuniuá, um afluente do Tapauá,
que é um afluente esquerdo do Purus. O outro grupo vive no Xeruã, um afluente direito do Juruá. Os
Jamamadi Ocidentais também vivem no Amazonas, nas municipalidades de Boca do Acre e Pauini no
Purus. Entre os grupos Jamamadi Ocidentais há os Jamamadi de Capana na terra indígena Capana e os
Sivakoedeni na terra indígena Inauini/Teuini. Também existe uma etnia conhecida como Jamamadi na
terra indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamanti na municipalidade de Lábrea no Amazonas. Eles falam
Jamamadi Oriental, uma variedade de Madi (...)" (Dienst 2016:259).

47
Outra alternativa, em vista de evitar a multiplicação de enganos, seria adotar

"Yamamadi" para os Jamamadi (orientais) seguindo uma variação gráfica comum entre

eles, dado que muitos escrevem com as letras "j" ou "y" indiscriminadamente, apenas

seguindo um padrão preferencial nos documentos. Lúcia Rangel, antropóloga que

pesquisa junto aos Jamamadi da Terra Indígena Capana (1994), em uma etimologia

hipotética sugere que a grafia mais acertada é Zamamadi, para os Jamamadi do alto

Purus, por não haver o fonema [j] nesta língua madiha e "zama" ser um termo que em

diferentes línguas arawá tem o sentido de "mata", mantendo a corruptela antiga da

expressão jiwã-mãgi, erroneamente dita ser de origem paumari, cujo sentido seria

"homem do mato". Linguístas como Dixon (2004), seguem essa etimologia sugerida no

início do século XX por Steere, segundo a qual o termo seria composto por duas

palavras: yama, "mato", e madi, "pessoa".

Discordo da análise feita por Rangel, devido a zama, nas línguas madiha e suruwaha,

yama, na variante das línguas madi, ser um pronome indeterminado - como o "it" em

inglês - e madi7, na língua madi - a homonimia pode indicar a origem do nome da

língua -, ser um coletivizador ou pronome pessoal. Isso posto, uma tradução possível

para Jamamadi seria tão somente "pessoa" ou "pessoal". Feitas essas considerações

preliminares, passo aos relatos históricos dos viajantes e etnológos que estiveram no

Purus.

7
Notar que o pronome na terceira pessoa do plural em Jarawara é mai alternando com a forma
mee em Jamamadi. Na avaliação de Dixon, tal pronome é uma gramaticalização a partir do substantivo
madi, "pessoa", através das transformações madi>mai>mee. Dada a alofonia entre [t] e [d] em Jarawara,
há a forma mati para o substantivo; Dixon lembra que a forma mai do pronome na terceira pessoa do
plural ocorre em músicas jarawara, o meio por excelência que preserva arcaísmos da linguagem (Dixon
2004:77).

48
iv. A literatura histórica e os relatos dos viajantes

Ao que tudo indica, é nos relatos da expedição científica dos naturalistas Johann Baptist

von Spix e Carl Friedrich von Martius, levada a cabo entre os anos de 1817 e 1820, que

se menciona pela primeira vez ao descreverem suas impressões sobre o Purus e seus

povos, a existência dos Amamatis, uma das diversas variações gráficas do nome

"jamamadi". Muito embora não registrem a localização do grupo, pode-se supor com

relativa segurança tratar-se dos Jamamadi, em virtude da menção à enfermidade de pele

característica de seus vizinhos Paumari e Puru-Puru e que os acometia em menor

medida. De acordo com os autores (Spix 1981[1817-1820]:161, grifo meu):

(...) as demais tribos, atualmente considerados senhores da bacia do Purus, são os


purupurus, os amamatis e os ita-tapuias, todos ainda na sua primitiva liberdade e mal
afamados pela sua perfídia. Coletam os produtos naturais abundantes aqui, cacau e
salsaparrilha, permutando-os com as expedições que visitam o rio, costumando ambas
as partes aparecer armadas. (...) Os índios malhados - os índios da tribo dos purupurus,
catauixis e amamatis, não são os únicos na América do Sul em que aparece essa
anomalia da pele. A menos forte alteração em manchas brancas [é] na pele dos
Catauixis (...).

Quanto à grafia "jamamadi", uma das primeiras menções provêm dos relatos de Manoel

Urbano da Encarnação, informante de João Henrique de Matos, militar encarregado pela

Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros de inspecionar "os pontos contestados

pelo governo de sua majestade britânica no Rio Branco" (Kroemer 1985:46). Manoel

Urbano viajava pelo Purus, muito antes de 1845, em busca das chamadas drogas do

sertão - a região era conhecida por sua abundância em salsaparrilha, óleo de copaíba,

49
tartarugas, peixes de diversas espécies, castanha e breu -, para tal atraía as "quatorze

nações indígenas para a margem do rio, fazendo-as povoar e trabalhar em roças de

mandioca e outras plantações" (idem), dentre as quais cita a "nação Jamamadi, que tem

muitas malocas" - novamente, suas localizações não são mencionadas. Por gozar da

confiança dos indígenas, Manoel Urbano foi nomeado "principal das nações por ele

catequizadas", exercendo um papel decisivo nos descimentos dos grupos indígenas e no

estabelecimento de diversas missões no Purus.

Na mesma época, Joaquim Bruno de Souza, informante do naturalista Francis

Castelnau, que esteve no Purus em 1847 e noticiou a existência dos "Jamaris", era o

responsável pela direção dos índios em Abufari e Paraná-Pixuna - local onde se

instalara uma missão para evangelizar os índios Mura -; por seu conhecimento da

região, Bruno de Souza forneceu informações a respeito dos povos indígenas do médio

rio Purus até o rio Pauini e cita que "no interior [do rio Pauini], moravam tribos menos

conhecidas e hostis, como os Jamamadi, Apurinã e Taboca" (Souza apud Kroemer

1985: 48). Conforme mencionado, os relatos insistem fortemente na oposição8 entre os

povos que habitam o "interior", ou seja, as matas da terra firme, e aqueles das margens e

lagos, epitomizados pelos Purupuru, Juberi e Paumari, descritos sob as alcunha de

"anfíbios" e "aquáticos", por seu modo de vida em franca familiaridade com a água9.

Wallace, naturalista inglês que esteve na região na primeira metade do século XIX,

menciona a distância entre o rio Purus e o Negro, salientando a longa extensão do

8
Para uma análise das fontes históricas e relatos de viagens dos naturalistas sob a perspectiva
desta dicotomia, conferir o estudo de Souza (2015).
9
Sobre esta caracterização histórica dos Paumari, a análise de sua proximidade como universo
aquático e a pregnância simbólica de sua ontologia associada, conferir os estudos de Bonilla (2007). Na
esteira das análises propostas por esta autora, conferir a etnografia de Vieira (2013) sobre a pesca do
peixe-boi e a importância desta entidade na cosmologia Paumari.

50
primeiro, cujas cabeceiras não se alcançam senão com três meses de viagem. Quanto

aos povos que habitam o Purus, o naturalista enumera cinco, já conhecidas dos

negociantes:

Dos índios que se encontram nas margens daquele rio [Purus], consegui também obter
algumas informações. Cinco são as tribos ali conhecidas dos negociantes: 1) Os muras,
que ficam a sessenta dias de viagem rio acima, desde a sua barra; 2) Os purupurus,
trinta dias de viagem também, rio acima; 3) Os catauxis, na mesma zona dos purupurus,
porém que estão localizados nos igarapés e lagos do interior; 4) Os jamamaris, no
interior da margem ocidental; 5) Os jubiris, nas margens dos rios acima dos purupurus
(Wallace 2014 [1849]: 608, grifos meus).

A respeito dos "jamamaris", apenas nota que habitam a terra firme e limita-se, sem

muita segurança de suas informações, a compará-los aos purupurus em virtude de seus

hábitos e modo de vida, além de igualmente terem seus "corpos manchados e

mosqueados, embora isso não seja em tão grande extensão (idem)". O viajante nota que

esse grupo se autodenomina pamouris, mas que são chamados pelos habitantes não

indígenas da região de purupurus em referência à enfermidade dermatológica que lhes

acometia. A cerca de tal enfermidade assevera que:

(...) tal doença consiste no aparecimento de umas manchas e pústulas, que se espalham
por todas as partes do corpo, e que são de uma cor esbranquiçada ou amarela ou, então,
mais ou menos negra, de tamanhos e formas irregulares, e tendo um aspecto muito
desagradável. Quando ainda jovens, a sua pele é clara; porém, quando se tornam mais
crescidos, a pele fica-lhes mais ou menos manchada. Outros índios, de outras tribos, são
também atacados por essa doença; e, quando afligidos por dita moléstia, diz-se que eles
têm o purupuru. Não se sabe se a doença é assim denominada pelos índios que mais são

51
atacados por ela, ou se os índios é que são assim apelidados, por causa da moléstia.
Dizem alguns que a palavra é portuguesa (Wallace 2004 [1849]: 611)10.

Serafim da Silva Salgado, em seu "Relatório sobre a exploração do rio Purus" (1852),

nota que na foz do igarapé Macuiany habitavam "uma horda da tribo Jamamadi,

antropófagos11, em número de 400"; também na foz do igarapé Euacá, dizia-se

igualmente que habitavam muitos índios Jamamadi (Salgado apud Kroemer 1985: 49).

Em 1854, João Wilkens de Mattos, diretor geral dos índios na época, nos relatórios

sobre a extinção da missão de São Luís Gonzaga (fundada no lago Uamurá, 98 milhas

distante da foz do Purus) e nos relatos da viagem que participou no vapor Monarca (da

Companhia de Comércio de Navegação do Alto Amazonas, criada em 1852, pelo

Visconde de Mauá) informa a presença dos Jamamadi na localidade da extinta missão e

em outros afluentes do Purus.

Novamente, Manoel Urbano da Encarnação informou, em 1861, após viagem solicitada

pelo governo da província para explorar o Purus em vista de descobrir uma passagem ao

rio Madeira, que entre as tribos do Purus havia os Jamamadi, vizinha dos Ipuriná, e que

era "numerosa e muito inclinada à lavoura, empregando-se também na caça"

(Encarnação apud Kroemer 1985:59).

Silva Coutinho (1862), em seu relatório acerca do Purus, localiza os Hymamadys acima

das três malocas Hypurinás que estavam perto da foz do rio Tapauá. Também nas

10
Para mais informações sobre a doença cf. Bonilla (2007).
11
Sem a pretenção de ter realizado um levantamento bibliográfico exaustivo dos relatos históricos
que mencionam os Jamamadi, arrisco afirmar que esta é a única referência feita a práticas antropofágicas
por este povo, levantado a suspeita de tratar-se mais de comentário fruto de preconceito que de uma
observação acurada.

52
proximidades das barreiras de Hyaerhery de onde partiam dois caminhos para o centro:

o primeiro conduzia a duas aldeias dos Hymamadys e o segundo ao lugar de Terrhuãm

[Teruã], onde havia uma maloca dos Hypurinás (Silva Coutinho 1862:52). No rio

Hynauiny [Inauini], havia em direção do interior muitas malocas dos Hyamamadys.

Todas as localidades estão na margem esquerda do rio Purus. Ainda sobre os

Hyamamadys, ressalta sua falta de intimidade com o rio e a preferência de residir na

terra firme:

(...) do paraná-mirim Dacuyarariuy em diante estendem-se os Hyamamadys pela


margem esquerda do Purús, porém muito distante do rio. Empregão-se exclusivamente
na caça e na lavoura; não viajão senão por terra; e quando são obrigados pelos regatões
a embarcar tremem de medo, como um sertanejo do Ceará. Os práticos dão as melhores
informações desta tribu, e todos a suppõe muito numerosa, pelo que dizem as outras
(Silva Coutinho 1862:76).

O geógrafo inglês William Chandless em expedição subvencionada pela Royal

Geographical Society, entre 1864 e 1865, situa os Jamamadys nas seguintes localidades:

nas proximidades do igarapé Mamoriá Mirim12, entre o rio Pauini e o Mamoriá Grande,

e acima do rio Sepatini até o rio Hyacu. O geógrafo comenta que os índios da região

seriam propensos à guerra, numerosos e intratáveis, cita os Hypurinás perto do Purus, os

Culinos próximos do Juruá, e os Jamamadys no centro (Chandless 1869:304). Ademais,

levanta a hipótese dos Culinos e dos Jamamadys serem possivelmente a mesma tribo,

12
Em todos os relatórios da Funai quando se faz referência ao Mamoriá Grande, trata-se do rio
localizado na margem esquerda do rio Purus e sua foz está acima da boca do igarapé São Benedito.
Atualmente, a margem esquerda do igarapé grande é composta pela Resex Médio Purus e pouco acima,
por terra devoluta. Na margem direita está a terra indígena Camadeni. O Mamoriazinho ou Mamoriá
Mirim é chamado em jamamadi de Fakoma - lit. "rio da dor" nome que alude aos intensos conflitos
ocorridos nesta região. Importante lembrar que há diversos nomes de igarapés no médio Purus chamados
Mamoriá.

53
conhecidas com nomes distintos, e que ambas não fazem uso de canoas. Outra vez, o

relato marca a preferência dos Jamamadi pela terra firme, na margem esquerda do

Purus, e a evitação dos rios, perceptível pela ausência de canoas, nas palavras de

Chandless:

Acima do rio Sepatynin e deste rio até o rio Hyuacú, cerca de trezentas milhas (omitindo
as curvas), ao longo deste rio extende-se a tribo Hypurinás (...). Ao lado esquerdo, a um
ou dois dias de viagem do rio, acham-se os Hyamamadys, que se extendem pelo interior
dos Hypurinás, em toda a sua extensão, mas no lado direito nem sequer conhece-se o
nome de outra tribo do interior. A despeito de todas as outras distinções, os índios nessas
regiões podem ser divididos em índios da terra e índios da água. Os Hyamamadys são
exclusivamente uma tribo da terra, vivendo em pequenos igarapés somente, e não usam
canoas. Os Hypurinás também são uma tribo da terra, mas não de modo exclusivo, e
seguindo os tributários do Purus, cruza-se com os Hyamamadys (Chandless 1866: 96).

O coronel Antônio R. P. Labre, por sua vez, no relato que fornece de suas viagens,

movidas pelo interesse de encontrar um caminho praticável para a Bolivia, dada as

dificuldades oferecidas pelo rio Madeira, descreveu os Jamamadi como agricultores que

moram exclusivamente nas terras altas, em condições semelhantes aos índios

Cathauiunys (possivelmente Catauixi); não faziam comércio e, sendo medrosos por

índole, fugiam do contato com os brancos (Labre 1872:28).

O primeiro relato de cunho etnográfico fornecido sobre os Jamamadi provém do

etnólogo americano Joseph B. Steere, que esteve no Purus entre 1873 e 1901. Segundo a

descrição de Steere, os Jamamadi são uma pequena tribo da floresta, situada

aparentemente nas vizinhanças do Mamoreá-Mirí, um pequeno afluente do sudoeste do

Purus (1949[1873-1901]:214). Steere relata aldeias permanentes tanto dos Jamamadi

54
como dos Ipuriná na região da cabeceira do Mamoreá-Mirí, um igarapé que deságua no

Purus. Menciona que um caminho largo tinha sido aberto da cidade até o Mamoreá na

busca de borracha e castanha do Pará.

Em 1901, Steere encontrou duas malocas pequenas, uma no Mamoriazinho superior e

outra perto de sua foz, não tendo encontrado outros grupos Jamamadi no interior. A

aldeia visitada havia sido recentemente destruída, quase por completo, por uma

epidemia de sarampo, de modo que ele apenas pode ter uma vaga ideia de sua condição

anterior. Menciona ter visto dois chefes, contudo, estes pareciam exercer pouca

autoridade sobre o grupo. Nota que os índios vestiam tangas. Homens e mulheres

perfuravam os lóbulos das orelhas e o septo nasal. Ainda segundo Steere, a residência

permanente dos Jamamadi era uma grande casa comunal de forma cônica de celas ou

quartos para todas as familias da aldeia. Estas eram colocadas em círculos dentro da

parede interna da construção, deixando o centro limpo para danças e assembleias. Ao

contrário de Chandless, o etnólogo afirma que os Jamamadi usavam canoas de casca,

feitas de uma única peça tirada de uma árvore, aparentemente o Jutaí.

Steere narra uma de suas incursões às aldeias Jamamadi, localizadas nas cabeceiras do

Mamoriazinho. No caminho, o etnólogo deparou-se com áreas de capoeira

abandonadas, mas ainda produtivas, e roçados vastos com cultivares variados,

aparentemente recentes, dos quais retirou cana-de-açúcar e abacaxi. A distância

percorrida mata adentro e as dificuldades do trajeto, em particular a correnteza e os

obstáculos característicos deste igarapé não deixaram de ser lembrados:

Planejava uma viagem pela juzante do Purús até a fóz do Mamoreá, quando na tarde do
segundo dia dois homens, um cearense e um Ipuriná, chegaram à aldeia pelo mesmo

55
caminho que tínhamos seguido. (...) Contaram que os Jamamadi estavam em sua aldeia
na parte superior do rio, mas que os Ipuriná já o tinham descido. (...) aproximando-nos
do Mamoreá, passámos por extensa área de antigas derrubadas, atualmente cobertas por
pequenas árvores, mas com touceiras de bananeiras ainda produzindo. Eram as antigas e
desertas plantações dos Jamamadi. (...) O dia seguinte foi gasto remando rio acima da
canôa sobrecarregada. (...) Ao meio dia paramos numa das margens e os homens
dirigiram-se a uma antiga derrubada dos Jamamadi e trouxeram um carregamento de
cana-de açúcar e abacaxis meio maduros para ajudar nossa refeição de farinha e peixe.
(...) Pouco antes de anoitecer chegamos a São João, o reduto do senhor João Nogueira, o
único acampamento de seringueiros em funcionamento no Mamoreá. (...) Vários
macacos de espécies diversas corriam por ali ou estavam acorrentados às paredes. Estes,
êle me disse, foram comprados dos Jamamadi. Sabendo que desejava visitar a maloca
dêsses índios, êle concordou em acompanhar-me no dia seguinte e nessa mesma noite
terminamos os nossos simples arranjos para a viagem. Devíamos levar dois dias na
viagem por barco, rio acima, mas êle calculou que seguindo um velho trilho através da
floresta nós poderíamos fazê-la em um dia. (...) O rio agora se estreitava formando um
canal de vinte ou trinta pés de largo, mas rápido e profundo e cheio de troncos que se
curvavam sobre a água. (...) encontramos tantos troncos que era impossível prosseguir,
assim abicamos em terra e continuamos a pé. Bem nêsse lugar estavam as canôas da
aldeia Jamamadi (1903:901).

Steere visitara uma grande maloca há pouco abandonada porque dos seus 130

moradores pouco mais de 30 sobreviveram a uma epidemia de sarampo:

Em junho de 1900, apenas há nove mêses, esta era a residência de cento e trinta pessoas.
(...) Então, um membro da tribo, que tinha ido até o Purús, trouxe o sarampo, contraído
dos viajantes de um navio (...) Depois que a moléstia cessou, ainda estavam vivos
apenas uns trinta. Estes temiam voltar para a aldeia, mas estabeleceram-se perto dela.

É digno de nota que Steere descreve os jamamadi em termos de "lavradores e

caçadores", reservando parte de seu trabalho para abordar as técnicas agrícolas

56
empregadas por eles, cuidando para citar os principais cultivares plantados em seus

vastos roçados; menciona as ferramentas que utilizam no plantio, como os machados de

aço, e descreve aquelas que usam na caça, a saber, a zarabatana, o arco e as flechas

envenenadas; por fim, Steere cita a confecção de canoas feitas de casta de Jutaí e de

redes de entrecasca, substituídas por aquelas manufaturadas, adquiridas dos

comerciantes:

Os Jamamadi são lavradores e caçadores. Seu método de cultivo é pelo fogo. Cortam as
árvores, queimam as folhas e a vegetação rasteira durante a estação sêca, limpando
assim a superfície do solo que é então plantado entre os troncos e tocos. Obtêm cêrca de
duas colheitas e depois deixam que a floresta recubra novamente a terra. (...). Possuem
atualmente alguns machados de aço que obtiveram dos seringueiros. Cultivam milho,
mandioca, abacaxi, bananas, a palmeira pupuya, fumo, cana de açúcar e algumas outras
plantas. (...) São grandes caçadores e suas armas constam da sarabatana, flechas
envenenadas, arcos e flechas. É sob todos os aspectos, semelhante às das tribos do
Amazonas Peruano. (...) Os Jamamadi usam canôas de casca feitas de uma única peça
tirada de uma árvore que dizem ser o jutaí (...). Outrora eram conhecidos por fazerem
boas redes de entrecasca, mas agora preferem trocar com os seringueiros macacos
domesticados por redes baratas de algodão do Pará (...) (STEERE, [1873-1901] 1949:
217-219).

O etnólogo Paul Ehrenreich (1948[1891])13 menciona em um relatório sobre o Purus

que os Jamamadi estão entre aqueles povos menos conhecidos, lembrados apenas en

passant pelos viajantes e negociantes, já que evitam aproximar-se da beira do rio,

vivendo exclusivamente na terra firme, afastados várias horas de caminhada mata

adentro. A localização do território que registra, na margem esquerda do Purus, entre o

13
O viajante fornece descrições detalhadas da cultura material, das técnicas de tecelagem, de
plantio, de pesca e caça. Aborda o uso difundido do rapé e as técnicas de sua produção. Também fornece
as primeiras descrições dos rituais de iniciação feminina e xamânica, além das técnicas terapêuticas
empregadas pelo pajé.

57
Mamoriá Mirim e o rio Pauini, espalhando-se até o rio Juruá, abrange ambos os grupos

atualmente identificados como Jamamadi, os de língua madi e os madiha. Segundo

Ehrenreich, os Yamamadi habitam as matas altas e densas da terra firme "de medo da

praga dos insetos"14 e já que não possuiriam canoas, praticavam a pesca somente de

maneira incidental (1948[1891]:100). Vale lembrar as veementes considerações feitas

sobre a praga dos insetos, responsável pela diminuição expressiva da ocupação das

margens na estação das cheias, e que fazem a má fama deste rio:

O Purús tem pessima fama devido incrível flagello dos insectos. Por meio de
mosquiteiros extendidos sobre a rêde de dormir gosa-se de algum descanço durante a
noite; não assim de dia, quando o pobre viajante torna-se victima inerme dos assaltos de
myriades de piuns e borrachudos, especie de trombidium communissimo na estação
chuvosa, nas margens de todos os rios do Brasil. Abanar-se e por outros modos,
procurar afugentar estes insectos, é de muito pouco effeito; estes pequenos vampiros em
pouco tempo não deixarão intacto de sua ferretoada o minimo logar na vossa epiderme,
a não ser que prefiraes, como os indigenas, trazer uma mascara no rosto e enleiar
pescoço e braços em pannos, o que, porém, provoca calôr nestas partes para quem não
esteja habituado. (...) O unico preservativo seria fazer como fazem os indios, evitando
as margens do rio, ir morar na sombria matta da terra firme, onde o pium só apparece
isolado. Verdadeiros mosquitos são alli raros e não permanentes, limitando-se a certos
logares (Ehrenreich 1929:300).

Ehrenreich salienta que os Jamamadi "procuram ter o menor contacto possível com os

brancos, porque receiam pegar doenças. 'Catarro não tem?' é igualmente entre êles a

primeira pergunta estereotípica dirigida ao visitante estranho" (1929:102). Em menor

escala, afirma que sofrem da mesma doença de pele que acomete os Paumari, também

14
O flagelo dos mosquitos que povoam a região foi sucessivas vezes lembradas pelos viajantes que
estiveram no Purus: "it would be well if there were no worse plagues; but in parts, between pium-flies all
day and mosquitoes all night, rest is almost impossible, and one is driven to and fro as if between the gate
of Hell and Acheron" (Chandless 1866:91).

58
conhecidos como Purú-Purú: a espiroquetose discrônica ou purú-purú, pinta, mal del

pinto, caraté (cf. Bonilla 2007:45 e 66)15. Menciona ter observado outro tipo de

construção feita pelos Jamamadi, distinta das registradas anteriormente por Steere, cuja

base seria elíptica, quase oval, medindo 12m de diâmetro maior e 6m no menor. Trata,

como fizeram os demais viajantes e etnólogos, das lavouras Jamamadi, afirmando serem

"modestas, mas eficientes, habilita-os a fornecerem às feitorias de seringueiros mais

próximas, diferentes produtos agrícolas, sobretudo bananas, ananazes e frutos de

pupunha em troca de fumo e utensílios de ferro". Somando-se aos fracassos anteriores

em estabelecer uma missão no Mamoriá para catequizar os Jamamadi, o autor lembra

que: "as tentativas, feitas há uns dez anos, de estabelecer uma missão no Pôrto da

Providência junto à foz do Mamoria Mirim não tiveram êxito, não tardando os índios a

fugir ao mau tratamento a que eram submetidos" (1903).

Em um dos primeiros relatórios (1943) dos inspetores do Serviço de Proteção aos

Índios, o extinto SPI, foi registrada a violência a que eram submetidos os Jamamadi ao

serem aprisionados em expedições armadas a fim de servir como mão de obra escrava

nos cauchais e seringais do Purus. Conhecidas como "correrias", essas incursões eram

organizadas com a intenção de desalojar os indígenas de seu território valendo-se de

toda sorte de violência. Não raro, as populações que estivessem em território cobiçado

eram dizimadas em quase sua totalidade pela ânsia exploratória que avançava sobre as

terras de ocupação tradicional para transformá-las em pasto, áreas de cultivo de

monoculturas, garimpo etc:16

15
De acordo com Bonilla, trata-se de uma doença provocada pela bactéria Treponema carateum,
espécie de sífilis não venéria que marca a pele com manchas escuras, vermelhas ou violáceas. .
16
A respeito do impacto das correrias e da invasão do território jamamadi pelos seringueiros, no
início do século passado, Kroemer escreve: "A grande tribo dos índios Jamamadi, cujo habitat se estendia
do interior da margem esquerda do rio Cainã até o rio Pauini, foi 'pacificada' até o seu desaparecimento,

59
No rio Inauhiny, o inspetor encontrou um acampamento de caucheiros peruanos que
tinham a seu serviço sessenta índios Yamamadi. Estavam presos num círculo formado
por numeroso pessoal armado de rifles para evitar qualquer tentativa de fuga. Haviam
sido aprisionados em sua maloca, muitas léguas distante, e de lá conduzidos ao cauchal
sob toda sorte de violências, inclusive fome, porque nenhum alimento lhes foi dado
durante todo o percurso. Alguns morreram durante a viagem, outros, ao chegarem ao
acampamento (Ribeiro 2009[1970]:59-60).

No relatório da Primeira Inspetoria Regional do SPI, datado de 1943, acerca das regiões

hoje correspondentes aos territórios dos Jamamadi do médio Purus, menciona-se que no

rio Cunhuá (Cuniuá) viviam os Catuinas, Mamaoris, Pauquiris, Tucumandubas e

Beidamans; no rio Piranha, os Jamamadis, Canamadis e Jarauaras; no Curiá viviam os

Jamamadis e Araçadanis (Sant'anna de Barros apud Kroemer 1985). Em outro relatório

do SPI, os inspetores localizam os Jamamadys na região do Inauini, dividindo-os nos

seguintes grupos: Macuhienin, Ivadenin, Sivacudenin, Demadenin, Tamacuhidenin,

Zuvazuvadenin e Eréquédenin (idem); estes nomes permitem inferir tratar-se dos

Jamamadi falantes de língua madiha que apresentam uma organização social em

subgrupos nomeados como indicam os sufixos -deni acrescidos a cada um dos nomes

que os associam a espécies animais, vegetais ou elementos da topografia.

Outro estabelecimento do SPI no rio Purus era o posto indígena do rio Tuini, chamado

Manauacá17, onde viviam cerca de 85 Jamamadi, ocupados com a produção de borracha

embora pequenos grupos sobrevivessem entre os rios Cainã e Mamoriá, como seringueiros e fornecedores
de produtos agrícolas" (1985:89).
17
O posto Manauacá tornou-se o centro de uma grande população Jamamadi: "fornecendo o
agradável aspecto de um vilarejo próspero e feliz, onde esses novos desafortunados patrícios possam
gozar a velhice com regular conforto" (SPI apud Kroemer 1985). Contudo, não durou muito e em 1943

60
e castanha. Esse posto fornecia produtos agrícolas e servia para controlar a área entre os

rios Tuini e Inauini; os empregados do posto, segundo relatório da inspetoria, tinham

como intenção a "nobre e patriótica cruzada da completa pacificação dos selvagens em

constantes viagens pelas malocas dispersas, para convencer os mais arredios das

vantagens de virem todos para o posto, onde melhor poderão ser atendidos em suas

necessidades ou socorridos em suas doenças" (SPI apud Kroemer 1985). Nos

recenseamentos realizados pelos inspetores do SPI em 1930 no posto indígena Pedro

Dantas, também conhecido como Mariené, localizado no rio Seruini, se verificou ali

viverem 65 pessoas, sendo 22 homens, 21 mulheres, 22 crianças, dentre eles havia uma

Jamamadi e uma Marimã. Em 1942, no igarapé Duque, afluente do rio Mamoriá,

relatam os inspetores que viviam nesta localidade 22 indígenas, estranhamente as

mulheres eram todas Jamamadi e os homens, Apurinã. Há também menções nos rios

Tapauá e Cuniuá onde viviam os Katukina, Mamori, Pauquiri, Tucumanduba e

Beidamam; e no rio Piranha, os Jamamadi, Canamati e Jarawara; no rio Curiá, os

Jamamadi e Araçadeni; e no Riozinho, os índios Marimam18.

Rivet e Tastevin (1921)19 registram as grafias Jamamadi, Yamamadi, Anamari,

Amamati e Jamamari, situando este povo nas florestas do interflúvio Juruá-Purus,

foi transferido a cinco milhas de distância de seu local original; na época, 28 Jamamadi eram assistidos,
os demais retornaram às suas malocas. Em 1945, o posto acabou sendo completamente desativado.
18
"Todos perfaziam um total de mil indivíduos", cita o inspetor. Os relatórios dão conta das
sucessivas investidas e chacinas sistemáticas que levaram ao extermínio dos Mamori, Katukina e
Ximarimã, no rio Cuniuá; dos Jamamadi, no rio Pauini, e dos Juma, do rio Mucuim e seus afluentes
(Kroemer 1985: 96-97). Possivelmente, os Marimã, Beidamam, Marimam e Ximarimã de que tratam os
relatos sejam os Hi-Merimã, grupo falante de um dialeto madi atualmente em isolamento voluntário,
vizinho dos Jamamadi e Banawá
19
Seguindo a análise de Rivet e Tastevin, araua seria um sub-grupo da familia linguística arawak,
conforme sugerido por Daniel Brinton (1891: 292-293) a partir do povo homônimo que fora exterminado;
nele estariam compreendidos os Araua, os Kapinamari, os Kulina, os Pama, os Pammana, os Pammari, os
Puru, os Purupurú, os Yamamadi, os Yuberi, e também os Amamati, os Kulina ou Kurunawa, os Kuria,
os Kuriana, os Sewaku e os Sipó que estão no entorno dos sub-grupos pré-andinos a norte e noroeste.
(Rivet e Tastevin 1921: 478). Os autores recolheram listas de vocabulários inéditos, em 1912, em Belo

61
região dos atuais Jamamadi madiha, e também no médio Purus e afluentes, onde vivem

os Jamamadi falantes de língua madi. Corroborando as considerações de Chandless,

acreditavam que os Jamamadi, possivelmente madiha, formassem junto com os Kulina a

mesma etnia, variando apenas o nome, dadas as várias semelhanças linguísticas (Rivet e

Tastevin 1921:463): "com razão Chandless acreditou que os Yamamadi e os Kulina

formam uma mesma tribo com nomes diferentes. Linguísticamente, eles são

estreitamente aparentados. A este grupo também estão associados os nomes Amamati,

Jamamari ou Anamari (cf. Amamati)".

Schultz e Chiara (1955), ao informarem sobre os índios do alto Purus, descrevem duas

aldeias Jamamadi no seringal São Miguel, situada na margem esquerda do rio Purus.

Segundo informes de seringueiros vizinhos, os Jamamadi dedicavam-se à extração da

borracha nativa e à quebra de castanhas, vendendo-as aos donos dos seringais e

castanhais em que viviam. Contam que uma epidemia havia reduzido ainda mais o

grupo (já descrito como pequeno), e, embora tratem mais especificamente dos

Jamamadi do alto Purus, mencionam a existência de vários grupos de índios Jamamadi

no médio Purus e em alguns de seus afluentes (idem:183).

Mais recentemente, o indigenista e missionário do Conselho Indigenista Missionário

(CIMI), Gunter Kroemer (1985:121), seguia identificando os Kanamadi, Jarauara e

Massaranduba ou Banauá-Yafi como três grupos Jamamadi da região do rio Piranha.

Além deles, cita os Jamamadi que vivem próximos do município de Boca do Acre, nos

igarapés Capana, Sant'Ana e Teruini, afluentes do Purus.

Monte, a montante do Marary, no Purus, de um informante Yamamadi que vivia entre o Chiruan [Xeruã]
e Pauini. Outro vocabulário foi recolhido em 1922 no rio Chiruan, de um informante branco que
empregava os Yamamadi. Essas informações estão no artigo de 1938 no qual há análises linguísticas
mais detidas e esboços acerca da proximidade entre as línguas da região.

62
v. Os Jamamadi madi e os Jamamadi madiha

A partir das imagens produzidas na literatura de viagens e nos relatos dos etnólogos,

depreende-se a insistência em salientar a preferência dos Jamamadi em habitar as matas

das altas terras firmes, evitando aproximar-se dos cursos mais fartos dos rios e dos

grandes igarapés, demonstrando evidente desconforto quando juntavam-se aos brancos

em suas embarcações. Atribuído por terceiros, como soe ser a sorte dos etnônimos, o

sentido do termo "jamamadi" revela-se em contexto, na medida que se opõe e contrasta

com aqueles que habitavam as margens dos rios e lagos, caso dos Paumari ilustres por

sua proximidade com o "mundo aquático".

Conforme os relatos, as expedições às malocas jamamadi eram marcadas pelos

percalços das longas distâncias dos trajetos acidentados. Pelo seu modo de vida, a pesca

parecia de menor relevância que a caça, e as práticas agrícolas mereceram grande

destaque em quase todas as descrições, muitas delas enumerando as variedades

cultivadas encontradas. Em contraste com os seus vizinhos Apurinã, são caracterizados

como medrosos e pacíficos, temendo tratar com os brancos, possivelmente, por reflexo

da violência e das recorrentes epidemias associadas ao contato, responsável pela

diminuição drástica da população - como dão conta muitos relatos lembrados pelos

Jamamadi mais velhos. Diferentemente dos Hi-Merimã, os Jamamadi não optaram pelo

isolamento e, paulatinamente, estabeleceram relações pontuais com os brancos,

sobretudo de ordem comercial, em vista de adquirir ferramentas e mercadorias. Outro

aspecto relevante é o fracasso tonitruante das missões que tentaram estabelecer-se na

região para catequizá-los. Os missionários protestantes noticiavam que os Jamamadi

63
eram inconstantes, não se convenciam a permanecer na missão findados os presentes e a

comida, além de parecerem pouco motivados para o trabalho (cf. Link 2016)20.

O arawá enquanto grupo linguístico autônomo é relativamente recente21. Os

levantamentos das informações linguísticas realizadas na região seguiram a convenção

de considerar os povos arawá e arawak como partes do mesmo tronco linguístico, sendo

a primeira uma subdvisão da segunda (Ehrenreich, 1891; Rivet & Tastevin, 1921;

Nimuendajú, 1944; Métraux, 1970). Em pesquisas posteriores de Ayron Rodrigues e de

Alan Fabre, a hipótese da independência da subdivisão arawá foi levantada, de modo a

20
"Frei Matteo andava em companhia de um índio Paumari, que lhe servia de intérprete.
Conseguiu atrair 50 índios Jamamadi, mas estes, por medo dos Apurinã e por falta de farinha na missão,
não quiseram ficar. Eles só iriam ficar perto da missão se recebessem comida, presentes, roupas e
ferramentas. O frei, impaciente com a inconstância dos Jamamadi, voltou-lhes as costas e dirigiu-se aos
Apurinã do rio Sepatini, que já estavam em contato com os brancos e ele considerava fiéis, constantes e
industriosos. Mas não sabia para onde levá-los, pois eram inimigos dos Jamamadi, no Mamoriá-mirim.
Novamente voltaram ao projeto de aldear os Jamamadi do Mamoriá-mirim. Desta vez, fizeram uma
viagem ao interior do rio, e, depois, de oito horas, chegaram à primeira maloca, onde permaneceram três
dias. Lá, convenceram 23 pessoas para descerem à missão, e os índios mostravam-se aparentemente
contentes com as roupas e as ferramentas. Vendo que desta vez havia farinha, ficaram, mas não se
deixaram animar para os trabalhos na missão. (...) Os Jamamadi, depois de comerem a farinha, voltaram à
sua vida tribal. Os religiosos abandonaram a missão no rio mamoriá-mirim (...)" (Willeke apud Kroemer
1985:72, grifo meu).
21
Além da localização, dos aspectos materiais e da organização social que distinguem os
Jamamadi em dois grupos, as informações linguísticas reforçam essas diferenças. Ehrenreich (1897:67-
71) registrou uma lista com 247 palavras em sua viagem ao Purus, entre as quais consta "yamamadi", este
grupo é localizado pelo etnólogo na margem esquerda do rio Purus, nas imediações do igarapé Mamoriá
Mirim, e no alto curso deste mesmo rio, nas proximidades de Pauini. Steere (1903:373-87) também
ocupou-se em listar 57 palavras em jamamadi; o viajante atentou para as diferenças linguísticas, dos
ornamentos e de moradia em relação aos povos vizinhos. William C. Farabee (manuscrito s/d), que esteve
no Brasil entre 1913 e 1916 coletando objetos para o Museu da Universidade da Pennsylvania, recolheu
duas listas de palavras - no caderno II, há 75 palavras, e no caderno XV, 120 - identificadas como sendo
da língua jamamadi. Também Rivet e Tastevin, como dito acima, compilaram palavras a fim de
estabelecer uma primeira comparação entre as línguas da família arawá; nessa lista, além dos registros
feitos por Ehrenreich e Steere, há materiais originais registrados por Tastevin em 1912 e em 1922 (1938-
76). Novamente, a descrição da localização, aponta para o grupo Jamamadi falante de língua madiha
(Dienst 2016). Seguindo o relato, esse grupo também era chamado de Kapinamari, os Apurinã os
chamavam de Kapaná e os Kanamari de Koló. O mesmo ocorre com os registros feitos por Montserrat e
da Silva (1991) de um grupo autodenominado Sivakoedeni cuja localização entre os rios Capana, Pauini e
Santo Antônio, todos tributários do Purus, não deixam dúvidas de se tratar dos Jamamadi madiha, do alto
Purus. A análise lexical realizada por Dixon confirma essas diferenças, concluindo que as palavras
registradas por Ehrenreich, Steere e parte dos registros de Farabee foram feitos com os Jamamadi do
médio Purus, falantes de um dialeto madi, ao passo que os registros de Rivet e Tastevin, Montserrat e da
Silva e do caderno II de Farabee provêm do grupo Jamamadi falante de outra língua da família arawá, o
madiha.

64
constituir um conjunto linguístico distinto do arawak. As organizações missionárias,

notadamente o SIL, produziram alguns materiais linguísticos, entre dicionários, textos

com traduções interlineares e artigos sobre aspectos variados das línguas arawá.

Explicitadas as diferenças entre os dois grupos Jamamadi, advirto que esse nome será

doravante aplicado especificamente à população falante de língua madi que habita a

Terra Indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamati, exceto quando feita referência direta aos

de língua madiha. Precipitado da relação com os brancos, "Jamamadi" trata-se mais bem

de um heterônimo, um nome atribuído por outros, que de uma autodesignação, nas

palavras de Viveiros de Castro: "(...) a objetivação etnonímica incide primordialmente

sobre os outros, não sobre quem está em posição de sujeito. Os etnônimos são nomes de

terceiros, pertencem à categoria do 'eles', não à categoria do 'nós'" (1996:125-126).

Resíduo renitente do contato, o etnônimo "Jamamadi" expressa o ponto de vista a partir

do rio e das margens, dos comerciantes que invadiram o Purus e dos outros povos

indígenas com maior trânsito entre eles. De categoria genérica tal nome cristalizou-se

em etnônimo adotado por diversos remanescentes de grupos madi que deambulavam

nas matas de terra firme, diminutos porque sobreviventes de sucessivos ataques. Em

consonância com os relatos dos indígenas, foi somente da década de 1960 em diante que

"jamamadi" tornou-se a única resposta à questão "qual o nome do seu povo/etnia?".

Uma ressalva é fundamental neste ponto, o nome "jamamadi" não tem sentido

conhecido para as pessoas que respondem por este nome, muito embora aceitem serem

chamadas assim. Como abordarei, os Jamamadi são o resultado da fusão de grupos que

foram exterminados quase inteiramente, incorporando vários coletivos sob o mesmo

epíteto. Não obstante, essa não é uma categoria estável o suficiente para fixar com

65
precisão fronteiras e definir unidades sociais inequivocamente, um repertório latente de

nomes sempre pode tomar de assalto os incautos, embaralhando as classificações e sua

organização.

66
vi. A estrutura da tese

Essa tese está estruturada em três partes. A primeira aborda o xamanismo vegetal: após

a descrição da visita das almas e a apresentação de alguns de seus cantos-fala, faço uma

exposição sobre a iniciação xamânica, cujo objetivo final é adquirir o noko koma, "o

olhar envenenado". O processo de construção do corpo do pajé é comparado àquele da

menina em reclusão da menarca, situação limiar caracterizada pela alteração

descontrolada do seu olhar. No terceiro capítulo, abordo a relação do pajé com os seus

espíritos auxiliares. Os vínculos entre os xamã e as almas das plantas seguem como

tema do quarto capítulo centrado na chamada guerra mundial, conflito entre as aldeias

terrenas dos vivos e aquelas das plantas e dos mortos no céu. Nos dois capítulos finais

desta primeira parte, busco nuançar a caracterização do xamanismo amazônico nos

termos de uma ideologia venatória, na medida em que a pregnância das plantas entre os

Jamamadi propõem questionamentos acerca do lugar prático-conceitual atribuído aos

animais.

Meu intuito no segundo momento da tese é explorar em quais termos o aspecto vegetal

da humanidade é formulado pelos Jamamadi a partir das elaborações acerca do

desenvolvimento do corpo humano e do vocabulário aplicado à sua morfologia. A

onomástica e a teoria da concepção corroboram a ideia delineada de um "fundo virtual

de vegetalidade". Mas é quando tomado pelo ângulo do processo escatológico que o

problema encontra o seu maior rendimento: a transformação corporal e a fragmentação

dos componentes da pessoa com a morte permitem entrever em toda sua radicalidade a

aproximação metafísica entre humanos e plantas. No capítulo seguinte, a importância do

67
olhar é recuperada, todavia, numa potência inversa: trata-se do olhar gerativo,

kakatoma, um aspecto crucial no esforço de fabricar a consanguinidade nas relações de

criação com as plantas, crianças e animais.

A terceira parte, dividida em dois capítulos, aborda a reflexão mítica sobre as plantas e

o processo de hominização com suas diferenças internas a partir de uma origem vegetal

comum. Em seguida, tomando a discussão sobre a recorrência da organização social em

subgrupos nomeados entre os povos que habitam a região do interflúvio do Juruá-Purus,

elaboro alguns aspectos da socialidade Jamamadi buscando explicitar a centralidade das

plantas.

68
Parte 1: Xamanismo vegetal

A Poison Tree

I was angry with my friend:


I told my wrath, my wrath did end.
I was angry with my foe:
I told it not, my wrath did grow.

And I watered it in fears,


Night and morning with my tears;
And I sunned it with smiles,
And with soft deceitful wiles.

And it grew both day and night,


Till it bore an apple bright.
And my foe beheld it shine.
And he knew that it was mine,

And into my garden stole


When the night had veiled the pole;
In the morning glad I see
My foe outstretched beneath the tree.

William Blake

69
Capítulo 1: A visita das almas e a despedida do campo

Este trabalho começa pelo final, na noite anterior à viagem de volta que encerrou o

período de meu trabalho de campo. Quando o pajé D., da aldeia Pauzinho, concordou

com meu pedido de ir chamar as almas celestes de plantas e parentes falecidos para

virem à terra cantar. A estratégia de iniciar a tese com um episódio sobre o qual não tive

a oportunidade de aprofundar-me implica na impossibilidade de desenvolver alguns de

seus aspectos centrais, uma vez que requer o trabalho acurado de tradução; contudo, por

permitir vislumbrar de forma concentrada desdobramentos importantes sobre a

pregnância metafísica das plantas, sua descrição sumária e análise limitada são, por ora,

suficientes.

Durante minha estadia entre os Jamamadi, presenciei alguns rituais terapêuticos e, em

diversas ocasiões, conversei longamente sobre a atividade xamânica. Porém

desencontros e tentativas mal sucedidas haviam me impedido, até aquele momento, de

escutar os cantos noturnos das almas22 celestes - espíritos vegetais auxiliares do pajé,

almas de parentes falecidos e almas de plantas predadoras. Por sorte, naquela noite, a

situação era propícia, pois meu pedido coincidia com uma reunião marcada em alguma

aldeia do céu e a presença do pajé D. havia sido requisitada.

Conforme combinamos, fui à noite para sua casa, localizada na parte mais afastada da

aldeia. Diferentemente do habitual, não havia ninguém conversando no terreiro em

frente: todos haviam se recolhido antes do horário por saber que receberiam a visita das

22
Apesar da longa história do termo e os problemas encerrados em sua carga semântica, mantenho
esta tradução do princípio anímico/agentivo das plantas (e dos humanos) para concordar com a escolha
tradutiva dos Jamamadi.

70
almas. Após a saída do pajé, ninguém ousaria sair até o seu retorno porque algumas das

almas visitantes são agressivas e têm o noko koma, o olhar envenenado, capaz de lançar

doenças e outras formas de feitiço. Todos aguardam, portanto, dentro de casa, atentos

aos cantos das almas que virão para visitar a aldeia dos vivos.

Ao entrar na casa, notei que todos estavam deitados em suas redes, exceto o pajé D., que

terminava de se arrumar como se estivesse indo para uma reunião na cidade. Não era

fortuita a escolha do pajé de vestir a calça jeans e a camisa branca que usa

exclusivamente em suas viagens a Lábrea. Enquanto terminava de calçar os tênis e

pentear os cabelos com creme, ele justificava o esmero de sua vestimenta dizendo que

haveria uma reunião no céu e, por isso, deveria se vestir de acordo. Antes de sair, avisou

sua esposa que poderia demorar para voltar por não saber se a reunião se estenderia

muito e me sugeriu atar uma das redes para que eu não me cansasse. Depois de sua

saída, tentei acompanhar a conversa de N., esposa do pajé D., com sua neta que

perguntava para onde teria ido o avô e quem estávamos aguardando; era a primeira vez

que ela e eu presenciaríamos a visita das almas.

Quase adormecendo de tanto esperar, despertamos com os latidos desconfiados dos cães

que anunciavam a aproximação das visitas. Um baque surdo e ritmado, cada vez mais

forte, vinha do caminho que levava aos roçados mais distantes. Eram as almas que

finalmente chegavam à terra, depois de terem percorrido um longo caminho. Elas

arfavam de cansaço e comentavam em alvoroço a distância da caminhada. Conforme

chegavam mais perto, os estrondos se multiplicavam à semelhança de objetos pesados

despencando de uma grande altura, de fato, a chegada das almas é descrita como a

queda de corpos em saltos precipitados do céu para a terra. Deste lado da aldeia, as

71
almas desciam do céu para visitar os vivos, enquanto que do outro lado, ecoavam da

igreja os hinos evangélicos entoados com fervor pelas crianças sobre a ascensão de

Jesus: neme-ya Deoso tokomisame.

Do caminho que sai do fundo da casa, uma voz aproximava-se cantando, de um modo

distinto dos costumeiros cantos yowiri e wayoma. Contudo, antes de suas palavras

tornarem-se plenamente audíveis, ela se esvaneceu. As almas também obedecem à

recomendação de que se deve evitar andar e viajar só; é temerário visitar aldeias de

parentes sem estar acompanhado, como indicavam a sincronia dos estrondos que

marcam a chegada das almas na aldeia terrena - ouvidos por todos. Algumas cantam

brevemente e partem tão pronto chegaram, sem ao menos apresentarem-se, assim, não é

possível determinar com clareza quem são todos os visitantes. Suas falas seguem em

sucessão, em cantos individuais, sem sobrepor-se, com uma alternância vertiginosa que,

somada às especificidades rituais deste canto - notável nas repetições, inversões e

arcaísmos, bem como na linguagem altamente figurada e elusiva - dificultam sua

compreensão. A altura das vozes e seus variados timbres eram os únicos elementos que

me serviram para diferenciá-las, uma vez que poucas diziam o nome e de onde vinham.

Uma alma de mandioca, fowa abono, foi a primeira a chegar, seguida de uma agressiva

alma de seringa, weke abono; deve-se evitar seu olhar, uma das razões pelas quais as

pessoas permanecem durante todo o ritual dentro de suas casas com as lanternas e

lamparinas apagadas, sem ousar espiar através das brechas. As almas de Weke não usam

roupas, alerta a esposa de D. A nudez de suas tangas é sinal de comportamento

potencialmente predatório, traduzida em um trecho de seu canto sobre os conflitos

celestes:

72
Canto-fala da alma Tradução

ahihia hihia ahihia hihia (risos)

alia neme-ya mai yawa no céu as pessoas são agressivas/raivosas

mai ibi mono mai ati yawineni elas brigam e suas falas são alteradas

Um canto familiar, distinto dos demais, chama a atenção; trata-se de um yowiri, canto

feminino entoado nos rituais pubertários ayaka. Sem dúvida, a alma de uma mulher

Jamamadi. O canto é iniciado com a fórmula tradicional desse gênero musical: e yowiri

ri yowiri ri, e yowiri ri yowiri ri. N. pergunta para a alma que está chegando: ebenika

yowiri towiti?, "de quem é este yowiri que estou escutando?". Ela também quer saber o

nome da visitante: oni wada mani tina awini! "diga o teu nome!". Owa oni

Banimonisiwanai, "meu nome é Banimonisiwanai", a alma responde. Ela explica seu

nome de alma que traduzido de forma literal seria "o barulho que as caças fazem quando

brincam”. De acordo com a justificativa da visitante, sua irmã mais velha brincava

quando um homem atirou nas caças próximas da aldeia onde moravam. Assustadas, as

caças se dispersaram ruidosamente.

No caso das almas dos Jamamadi, fala-se de korimari, ao passo que as almas de plantas

são referidas como abono. Aprofundarei essa diferença adiante. Banimonisiwanai era

conhecida em vida como Sonake, mãe de Asawiri, atualmente um senhor idoso. Ela fora

esposa de Ai Nake, morto pelos Wayafi, e depois viúva juntou-se com Maka, seu

segundo marido. A alma continua seu canto, um relato da festa ayaka que está

73
acontecendo no céu no momento em que ela canta na terra. As almas estão reunidas em

sua aldeia para cantar, elas entoam os cantos yowiri e wayoma. Nas palavras de

Banimonisiwanai ou Sonake: inamadi mai tabori-ya toha, "os espíritos estão na aldeia";

mai yorotokana, "eles estão reunidos/misturados"; mai wayoma mai yowiri namoneni

neme-ya mai korimari, "as almas dos mortos cantam wayoma e yowiri no céu". Os

cantos femininos no ayaka anunciam à exaustão os nomes dos animais de caça, bani,

convidando-os a se aproximar; a aparência, o comportamento e a "fala" particular de

cada um é mimetizado conforme seu nome é cantado:

Canto-fala da alma Tradução

Ehihi-ya ehihi-ya ehihi-ya ehihi-ya (risadas)

a bani mai oona a bani mai oona são a caça jacaretinga, são a caça jacaretinga

a bani mai-ka yama anini o jeito [comportamento] das caças

oni oona amani o nome delas é jacaretinga

haha nima yama anini é assim o seu jeito

ai haanini chamamos

aaa bani maika yama anini aaa, o jeito das caças

Silêncio. As almas partem abruptamente. Outro canto se inicia, agora uma voz mais

jovem, bastante aguda. A voz chama por sua mãe, ami-i ami-i, ao escutar N. sussurra

dizendo que é o korimari de Koeto, seu filho falecido durante a infância. Bem próximo

da casa, Koeto pergunta pela saúde da mãe porque ele sabe que ela esteve doente nos

74
últimos meses, menciona em seu canto o período de sua internação na Casai de Lábrea e

de convalescência na aldeia. N. responde lamentando não estar plenamente curada,

conta que sente muitas dores nas costas e na lombar que a impedem de trabalhar. O

korimari do filho diz sua opinião, atibodi, sobre o estado de saúde da mãe: Ami,

sisibarini; "Mãe, tu-tudo bem"; Hibati-ya yama owateni, "eu vi como era antes"; ai ka

yama anini amosabone, "o trabalho melhorará"; oteni ami ai atibodi amosa hanima;

"essa é minha boa opinião, mãe"; ai atiterani ani hanima tiriyahi, "não se comenta

[fofoca], você não pode trabalhar assim"; Aami hanimatina tiwa-ya mai dadaba; "Mã-

mãe, eles [os parentes] te acompanharão [nos teus afazeres]". O korimari do filho

prossegue comentando o trabalho solitário do pai nos seus roçados, notando a beleza

das mandiocas que estão crescendo bem, resultado de sua dedicação, apesar dos

parentes terem expulsado seu genro, que, pelo padrão de residência, deveria permanecer

nos primeiros anos da união vivendo em sua aldeia, e junto dele a filha do pajé que

ajudava a mãe nos trabalhos domésticos23. Koeto conta que, do céu, está zelando,

kakatoma, por seus parentes vivos, leia-se, agora que ele é pajé e auxiliar de seu pai, ele

está atento ao assédio das almas sempre prontas a lançar seus feitiços, bem como na

desatenção dos parentes que contribuem para a suscetibilidade a tais ataques. Koeto

também dá noticias de sua aldeia, que a mãe desconhece, contando que trabalha em seus

roçados com ajuda da esposa bimeta abono, uma pimenta. Fala das outras aldeias

enfatizando seus distintos modos de trabalhar nos roçados. Koeto foi iniciado ao

xamanismo postumamente no céu por uma alma de Weke, seringa, e ao terminar

recebeu um novo nome. Após a morte, os nomes recebidos substituem os nomes antigos

que as pessoas carregaram, weye na, em vida. Wehinare é seu novo nome, ele conta

para a mãe. Por mais que N. siga se referindo ao filho por seu antigo nome, no céu

23
Trata-se de um longo conflito intermediado pela Funai envolvendo as famílias da aldeia
Pauzinho e que resultou na retirada do único genro do pajé que vivia próximo.

75
ninguém o chama de Koeto. Semelhante à imagem que se faz do passado anterior ao

contato, a vida das almas no céu é marcada pelos incessantes conflitos entre suas

aldeias; em um desses ataques, a alma de Koeto fora perseguida pelos inimigos, yawa, e

atingida gravemente, por isso, temendo pela segurança e vida de seu pai, Koeto sempre

o acompanha em suas viagens ao céu.

A voz desaparece abruptamente. Outra vez silêncio. Pergunto ansiosa se as almas não

continuarão seus cantos. N. pede que eu aguarde porque o varadouro que vem do céu é

muito longo, e as almas vêm caminhando de suas aldeias, "não têm voadeira". As almas

comentam a distância assim que atingem a terra. Arfando de cansaço, em longos

assobios, aguardam recuperar o fôlego para iniciar seus cantos. Enquanto esperávamos,

N. tentava me explicar o que diziam as almas e me contava sobre a vida póstuma de

outros parentes falecidos. Seu sobrinho Funaya, morto há mais de uma década, hoje

pilota aviões em seu trabalho de transporte de mercadorias para os patrões do céu.

Baiweyena, outra parente falecida, está casada com uma alma de yawida, pupunha, que

tem pelos longos no corpo à semelhança dos Jara24. A esposa do pajé lembra os relatos

que as almas fazem de suas cidades celestes, com missionários americanos, brancos

agressivos, ruas com carros, festas com cachaça etc. Da mesma forma que na cidade de

Lábrea, há muitas brigas no céu, principalmente quando as almas se embriagam nas

festas. Nessas ocasiões, é possível ouvir, mesmo os que não são pajés, a cantoria ébria e

as danças trôpegas aqui da terra, ela conta. Em outra conversa, Dossobi, uma das filhas

do pajé B., reafirmou essa informação contando-me que há alguns meses escutara uma

festa que acontecia no céu na qual as almas tocavam sanfona e tambor para acompanhar

24
O termo Jara designa "brancos" em oposição a "indígena", ai. Ele, porém, não assume aqui o
sentido de "dono" ou "mestre"; acepção comum aos povos tupi.

76
as músicas de Pepe Moreno que eram cantadas; ela foi precisa sobre esse detalhe diante

do meu estranhamento.

Após a morte, o pai de N. casou-se novamente no céu. Ele vive na aldeia Vitória,

mesmo nome da aldeia terrena localizada num afluente do igarapé Mamoriá Mirim, com

uma alma do veneno iha (Strychnos solimoesana) com quem já tem alguns filhos. As

viagens xamânicas ao céu restringem-se ao patamar acima da terra, onde estão as

aldeias Jamamadi. Há outros céus acima deste, porém somente as almas das pessoas

falecidas e dos espíritos inamadi que o conhecem podem acessá-lo. Tratam-se de

lugares hostis habitados por espíritos agressivos, que não têm roçados, os Jamamadi

alertam. Um desses céus é um gramado muito vasto - "como os pastos onde vivem os

bois", na comparação que costumam fazer - , onde nada cresce devido ao calor extremo

- mahi, o sol, vive numa aldeia que está nas cercanias deste patamar. Acima de todos os

céus, muitos deles desconhecidos, está um neme yokana, "céu verdadeiro", moradia de

Deus e sua família; no entanto poucos o conhecem, já que "está muito longe, e o acesso

é difícil".

N. interrompe as explicações genealógicas que fazia para a neta ao perceber o início de

um novo canto. Desta vez, ela impede seu prosseguimento e pede que a alma vá

embora. Sem me dizer quem era a alma visitante, N. apenas esclareceu que suas

palavras eram towe, "feias/ruins". Voltamos a aguardar, um tanto apreensivas desta vez.

Quando outro canto começou, N. não esperou para perguntar tika ede oni?, "qual o

nome de seu povo/etnia?". A resposta a deixou aliviada, era uma awa abono, alma de

árvore. Sasako abono (planta não identificada) chega pulando e rindo. Ela canta quase

engasgando por causa das risadas: ahihi, ahihi, badira we weyenawa yana-ya!, "(risos)

77
o pai [de alguém?] carrega as coisas que ele cria!". Fico sem entender sobre o quê a

alma de Sasako cantava, N. somente me descreve as pernas compridas desta alma que

além de tudo costuma ser trapaceira, "ela gosta de enganar e dar coceira". Outro canto

começa e N. pede que a visitante se apresente. Mayo ama oni, "eu sou pequiá", diz a

alma quase sem ar reclamando do varadouro. A alma do pequiá conta que sua aldeia

entrara em conflito depois de terem flechado um rapaz de uma aldeia vizinha. Não

consegui acompanhar o longo relato que a alma fez a N., que escutava a visita com

muito interesse.

"Avó, estou ouvindo outra música agora", a neta chamava a atenção da esposa do pajé

para a estranheza do canto. "Sim, são as almas do céu cantando que nós escutamos

aqui", respondeu a avó. Uma alma chega atabalhoadamente, um aviso de sua

embriaguez. "O kawi, cachaça, me deixou assim", a alma cantava com raiva, bufando

ameaçadoramente. N. se impacientou e logo desembaraçou-se da visita inconveniente:

owati timitahi, "escute-me!"; himata tiwa ati yawaneni?, "por que você está fazendo

esse barulho raivoso?", perguntou a esposa do pajé. A alma foi embora sem responder.

Outra voz jovem aproximou-se cantando e batendo nas tábuas das paredes da casa.

"Quem está ai?", pergunta N. É seu cunhado, a alma de Felipe, irmão mais velho de D..

A neta não conheceu o irmão do avô, então, ficou interessada em saber mais dele e das

circunstâncias de sua morte. Como as demais almas, esse korimari fala de sua aldeia,

das caças e dos cultivares de seu roçado celeste. Outros sons de quedas, novas almas

vêm conversando e logo desaparecem. Outra voz, mais grave, canta continuando a fala

anterior. "Avó, é um homem diferente que está ai!", a neta de N. demonstrava

entusiasmo de conhecer os parentes falecidos. A alma pergunta: "Vocês estão me

escutando? Vocês me escutam?". Duas almas cantam uma em sequência da outra. Uma

78
delas pede comida, quer saber se há carne de caça cozida; a outra me parece apenas que

ri. Algumas almas não se aproximam e seus cantos mal podem ser distinguidos à

distância; outras cantam na porta da casa, por vezes batendo em suas tábuas, de um

modo ou de outro, a confusão de vozes que abruptamente chegam, partem e retornam

me deixava desnorteada sem conseguir acompanhar o que era dito.

As almas param de cantar, quase adormecemos. Elas precisam andar por varadouros

acidentados, o que atrasa suas viagens. Ademais, elas vêm de aldeias diferentes no céu e

as distâncias não são as mesmas. Uma alma mais velha chega depois do longo silêncio.

N. me avisa que é uma alma de Sami abono, alma de abacaxi. É um homem muito

grande. Qual o nome dele?, pergunto. N. chama a alma, que responde com um assobio.

Tiwa madi ka oni?, "qual seu nome de espírito?", ela quer saber. A alma responde: owa

oni?, "o meu nome?". Owa noko komateni, "eu tenho veneno no meu olhar". Ne-

nemerisa ama oni, "meu nome é Nemerisa". Além desse nome, a alma de abacaxi

também conta o nome que recebeu após sua iniciação xamânica,

Banimonitonaketimawi. Ele mora na mesma aldeia do pai de N. e diz que é como seu

irmão mais novo. Dessa alma de abacaxi, a esposa do pajé tece comentários afáveis,

frisa que sua fala é boa, hika atisomateni.

N. ri ao escutar o canto seguinte: trata-se de uma alma assanhada à procura de uma

mulher para transar. A avó e a neta fazem piadas e brincam com a alma, que não

demora em sua visita. Novamente a alma de Felipe, seu cunhado, em seu canto-fala, ele

quer saber quem é a jarafana, branca, que está na casa. N. me apresenta à alma de seu

cunhado que responde sibarini, "tudo bem". Novo silêncio, sem sobreaviso, a voz do

pajé reaparece. D. entra em sua casa com o rosto suado e a aparência cansada. A reunião

79
tinha sido relativamente breve aquele dia; em outra data eles terminariam de abordar os

assuntos que ficaram pendentes.

Embora praticamente todos os homens Jamamadi tenham passado por um período de

reclusão a fim de serem iniciados como pajés, poucos completaram sua formação a

contento. A maioria exerce suas habilidades xamânicas de forma restrita, sem ser capaz

de extrair os projéteis de feitiço ou viajar para as aldeias celestes. Os pajés "de

verdade", inawa yokana, reconhecidos por seu conhecimento, cujo índice

inquestionável é a fecundidade e exuberância de seus cultivos, por terem a idade muito

avançada, estão atualmente "aposentados", sendo consultados ocasionalmente; destes,

somente D. segue exercendo plenamente os rituais terapêuticos e comunicando-se com

suas almas.

O pajé D. não se constrangia de falar abertamente sobre suas viagens às aldeias e

cidades celestes nas quais eram frequentes os encontros com as almas de seu filho e

irmão falecidos, Koeto e Felipe, respectivamente, atualmente pajés formados

empregados de importantes almas de patrões no céu. "Meu filho tem máquina

fotográfica na casa dele [no céu]. Eu vou te trazer uma foto de lá; você vai ver como é

bonito", ele dizia. Sua boa vontade em atender os parentes doentes e cantar os wayoma25

em suas festas não foi suficiente para lidar com todos os contratempos e dissabores que

tornaram sua vida na aldeia conturbada, talvez insustentável. Ele e sua família foram

25
Os cantos Jamamadi podem ser distinguidos em duas grandes categorias, baseadas no gênero:
wayoma, cantos masculinos, e yowiri, cantos femininos. Além da distinção pelo gênero, o estatuto
ontológico do enunciador e o contexto em que os cantos são performados são relevantes na sua
categorização. Os cantos xamânicos são chamados genericamente de inawa ka wayoma (ou inamadi ka
wayoma, expressão que encerra a ambiguidade da condição do pajé em proximidade com os espíritos); os
cantos de um pajé específico, por sua vez, serão apenas chamados de X (nome do pajé) ka wayoma. Os
cantos do ritual da menarca, ayaka, são referidos em conjunto (sem distinguir se masculinos ou
femininos) remetendo-se ao nome da menina moça, assim, Damaris ka ayaka é tanto o ritual feito para
Damaris como o conjunto de cantos entoados em seu ritual. Os hinos religiosos são conhecidos por Deoso
ka wayoma, "hinos de Deus".

80
paulatinamente marginalizados nos últimos anos, em virtude, mas não só, dos

casamentos controversos de duas filhas suas, uma com um homem Apurinã e outra com

um ribeirinho. O comportamento agressivo de um de seus genros, expresso em palavras

bruscas e ações por vezes violentas causara sucessivos conflitos. Tampouco foi

irrelevante para sua expulsão definitiva o fato dele ser branco e filho de um dos patrões

que há anos os explora. Nos dias que se seguiram à reunião que decidira sobre a saída

de sua filha e seu genro, o pajé D. adoecera "por causa das palavras ruins dos parentes".

O aumento da pressão exercida pelos missionários, abertamente contrários à prática

xamânica e à possibilidade de conciliá-la com a vida crente também foi decisivo para

desprestigiar os pajés jamamadi. Ademais, somou-se às insatisfações contra os parentes

a responsabilização pela longa temporada na cidade durante a qual D. acompanhava o

tratamento de sua esposa, internada na Casa de Saúde Indígena (Casai) por causa de um

quadro crônico de reumatismo, segundo avaliação dos médicos, ou feitiço lançado pela

alma da taboca teke (a mando de alguma parente), segundo o pajé. Em outras versões, o

feitiço teria sido lançado por um pajé de um povo vizinho e agravado com o olhar do

dafi (ver adiante). Após ser liberada sob justificativa de sua condição "não ter mais

jeito", a saúde da mulher se deteriorou bruscamente na volta para a aldeia. O casal

tornou-se recluso e D. cada vez mais cabisbaixo. Pesava sobre os parentes a acusação de

feitiçaria e de negligência com a expulsão do único genro que vivia em sua casa. Com a

mulher doente, sem as filhas e os genros, todo trabalho restava a ser feito solitariamente

por ele.

Esses esclarecimentos biográficos são importantes para situar a importância do ritual

descrito nas atuais circunstâncias de repressão da prática xamânica. Os

81
constrangimentos não foram suficientes, contudo, para impedir D. de seguir com suas

atividade como pajé. Diga-se de passagem que menosprezar as almas lhe acarretaria

problemas não menos embaraçosos. Por mais razoável que seja o pessimismo de pensar

que o xamanismo jamamadi esteja fadado ao esquecimento, vide o abandono crescente

dos rituais e das relações com as almas das plantas - seja por sua associação com o

"Mal", seja por serem manifestações da "Cultura", desprezada pela juventude como

sinal de obsolescência -, as mudanças antes de impor o desaparecimento dos pajés

transformaram suas práticas e transpuseram as iniciações para a vida póstuma, quando

todos os rituais não realizados em vida podem sem censura ocorrer.

***

O episódio relatado é o ponto de partida da reflexão proposta neste trabalho. Conduz ao

xamanismo jamamadi, por meio do qual torna-se possível a inteligibilidade entre os

vivos, as almas dos mortos, korimari, e uma miríade de almas, em especial, aquelas das

plantas, garantindo a manutenção do trânsito vertical entre os diferentes patamares do

cosmo. A visita não se prolongou durante toda aquela noite. Em geral, os pajés retornam

com a aurora, que acontece como o anoitecer nas aldeias celestes, pois dia e noite são

invertidos nessas referências. Diversas almas visitaram a aldeia, algumas conversando

longamente, ao passo que outras não tardaram em suas visitas. A apreensão da

complexidade do ritual depende necessariamente do esforço tradutivo de seus cantos e

da conversa entretida com os anfitriões, no entanto, da breve descrição apresentada,

pretendo destacar apenas alguns aspectos, que serão desenvolvidos ao longo dos

82
próximos capítulos.

No capítulo seguinte abordarei a iniciação xamânica, que pode ser terrena ou póstuma,

muito embora a maioria dos pajés jamamadi seja iniciada exclusivamente após a morte;

a participação de uma alma de Weke, seringa, não é fortuita no processo; como se verá,

o objetivo final da iniciação é adquirir o noko koma, o olhar envenenado. A importância

do olhar segue como tema deste trabalho, a ser recuperado, todavia, numa potência

inversa: trata-se das ações de proteção e zelo que se expressam, em outros contextos, no

olhar gerativo, kakatoma (seu correlato agentivo é atisoma, "a boa palavra") um aspecto

crucial das relações de criação tanto dos cultivares como dos animais domésticos. A

inseparabilidade entre céu e terra é notável no trânsito entre as aldeias, com a

participação mútua na vida ritual e nas relações consanguíneas de parentesco, cuja

duração ultrapassa a vida terrena ao transformar-se em algo parecido com as relações de

criação com as plantas cultivadas.

No terceiro capítulo, abordo a relação do pajé com os seus espíritos auxiliares. As

almas, korimari, dos irmãos e filhos mortos podem se tornar auxiliares prestativos na

prática terapêutica ou, em outra perspectiva, na defesa contra a ação predatória

irrefreável do conflito em curso no céu que transborda à terra, na captura das almas dos

vivos. Os vínculos entre os xamã e as almas das plantas seguem como tema do quarto

capítulo centrado na chamada guerra mundial, conflito perene que envolve numa

dinâmica intrincada de vingança as aldeias terrenas dos vivos e aquelas das plantas e

dos mortos no céu. A organização cosmográfica, em diferentes patamares sobrepostos,

espelha a hidrografia e geografia terrenas. Se poucas foram as vezes que escutei

descrições dos céus ou subterrâneos mais distantes, estes têm todavia relevância

83
inegável para o xamanismo e, como abordarei adiante, no processo de decomposição da

pessoa na morte. Nos dois capítulos finais desta primeira parte, busco nuançar a

caracterização do xamanismo amazônico nos termos de uma ideologia venatória, na

medida em que a pregnância das plantas entre os Jamamadi propõem questionamentos

acerca do lugar prático-conceitual atribuído à alteridade dos animais. Por fim, no

capítulo 6, teço algumas considerações a respeito da resiliência e vitalidade próprias do

xamanismo jamamadi que, ao contrário do que o "pessismismo sentimental" poderia

supor, não sofre um declínio, nem abandona a relação com essa virtualidade vegetal por

conta do contato com os brancos e do esforço evangelizador dos missionários.

84
Capítulo 2: Produzindo um corpo envenenado

O objetivo da iniciação xamânica26 é compor um corpo masculino que esteja apto a se

deslocar entre os estratos do cosmo, celestes e subterrâneos, e comunicar-se com os

diferentes seres que neles habitam. Durante o longo período em que permanece recluso,

são introduzidas as pedras xamânicas, aona ou yama, conhecidas regionalmente como

arabani, em todo o corpo do noviço. De consistência menos rígida e coloração

amarelada resinosa, a pedra xamânica aona assemelha-se mais aos metais, por seu

brilho, nem tanto a uma pedra comum. O pajé mais velho, inawa bote, responsável pela

iniciação, succiona seu próprio corpo, em regiões distintas, e cospe suas pedras

xamânicas que serão, em seguida, introduzidas em toda extensão do corpo do rapaz em

formação ou sopradas em suas narinas misturadas com rapé27, substância essencial na

iniciação na medida em que é o tabaco que propicia a comunicação interespecífica, ou

comutação perspectiva, com os outros seres, com destaque aos diferentes espíritos de

planta, cultivadas e não cultivadas.

Em geral, o pai do rapaz solicita a um pajé mais velho para iniciar seu filho.

Preferencialmente, são os avôs maternos ou paternos que se encarregam da tarefa de

introduzir as pedras xamânicas, além de acompanhar diligentemente o noviço. Cabe ao

26
A exposição que se segue não resulta de observações diretas das iniciações, interrompidas com a
morte do pajé Siko em 2012. Além disso, não seria possível acompanhar o processo, dado que a presença
das mulheres atrapalha seu andamento. O capítulo baseia-se em diversos relatos, sobretudo aqueles dos
pajés B e D acerca de suas próprias iniciações.
27
O sina, rapé, é composto pelas folhas do tabaco (Nicotiana tabacum) secas e piladas ao qual é
acrescido as cinzas das cascas de várias espécies de cacau (Theobroma subincanum), responsável pela
força e potência da mistura. Os Deni possuem ainda um rapé chamado baduhu-tsina composto pela planta
Pyrenocarpous lichen. E os Paumari fazem um rapé de uso ritual chamado koribo, composto de tabaco
(Nicotiana tabacum) e de koribo (Tanaecium nocturnum), e o kawabo feito de Virola elongata. Para uma
breve descrição do preparo específico de cada rapé, cf. Prance 1975. Para uma análise dos mitos de
origem do tabaco nos povos arawá do médio Purus, ver Aparacio 2017.

85
preceptor alimentar o noviço que, uma vez que recluso, estará impedido de se

comunicar com os demais. É ele quem deverá cuidar de sua saúde, paulatinamente

debilitada pelo uso constante de doses elevadas de rapé, pela potência venenosa das

pedras xamânicas, ainda não acostumadas ao novo corpo, e pela parca alimentação.

Ao preceptor cabe ainda orientar o rapaz conduzindo-o adequadamente em todas as

etapas do processo a fim de que passe pelas provações e desafios sem esmorecer, já que

os primeiros encontros com os espíritos, via de regra, são com seres assustadores que

irão persegui-lo na tentativa de matá-lo; sem ter ainda seus espíritos auxiliares nesta

etapa, é necessário que o pajé mais velho permaneça atento para o caso de precisar

intervir e resgatar o incauto noviço.

Embora haja um pajé responsável pela condução da iniciação, é desejável que outros

pajés soprem rapé e introduzam pedras xamânicas no rapaz em formação para que ele

adquira suas capacidades e força. A atenção em enumerar os nomes dos que

participaram na formação de um pajé revela a importância da relação deste com "quem

o soprou"; em outras palavras, destaca a relevância em identificar a proveniência das

pedras que compõem aquele corpo. Assim, dizem "Bahawi soprou muito em B."; "Siko

colocou um bocado de pedra no neto, R."; "Foi meu pai, Madokihi, quem soprou em

mim"; "Samo, Modo, Bahawi, Maka, muito inawa soprou em D.", etc. Voltarei a esse

ponto adiante ao tratar dos espíritos auxiliares.

Pelas duras restrições características da iniciação, recomenda-se que o rapaz seja jovem

para que possa obedecê-las e não desista antes de seu término. Desde muito cedo, os

meninos são acostumados ao uso de rapé, em pequenas quantidades, para que possam se

86
tornar pajés quando crescerem. O seu uso não se restringe a eles: os homens não

iniciados e as mulheres consomem rapé largamente tendo em vista outros fins, como

propiciar bons sonhos ou aplacar o cansaço, fortalecer-se para realizar uma atividade

física. Os meninos têm seus próprios frascos de rapé com seus inaladores individuais,

firi, com os quais acompanham os mais velhos nos momentos de tomar rapé,

principalmente quando vão se banhar e antes de dormir. Ao atingir os dez anos, os pais

plantam quantidades maiores de tabaco a fim de produzir o rapé necessário para a

iniciação do filho, agora com idade suficiente para ser posto em reclusão. O tabaco

provém do roçado do pai, mas são sempre a mãe e as irmãs mais velhas quem preparam

o rapé que será consumido pelo pai e os irmãos. Uma quantidade considerável de folhas

de tabaco serão secas e guardadas na palha do telhado para serem usadas ao longo dos

meses que durar a iniciação.

O menino será mantido em reclusão nos arredores da aldeia, afastado do convívio com

os parentes, em particular distante das mulheres, pois o cheiro e o olhar femininos,

potencialmente afetados pela instabilidade cíclica promovida pelo sangue menstrual, é

agressivo para o corpo debilitado do noviço. O afastamento da aldeia e dos vínculos de

parentesco é um prenúncio da futura condição ambígua do pajé. Enquanto as pedras não

estiverem fixadas e estáveis, processo longo, que requer sua retirada e reintrodução para

melhor encaixar e acostumar as pedras ao novo corpo, o noviço não poderá sentir

cheiros fortes, "catinga" na fala regional, como perfume, sabonete, urucum, pêlo de caça

queimada, comidas em geral, sangue, especialmente o sangue menstrual. Assim, antes

de comer qualquer alimento, o noviço deve cheirar rapé para neutralizar o cheiro da

comida e evitar que este afete suas pedras. A instabilidade das pedras tornam seu corpo

vulnerável, o que implica no controle estrito de suas ações para impedir que elas se

87
desprendam e caiam retornando para o corpo de seu preceptor, que sentirá dor com o

retorno da pedra.

Durante esse período, o noviço não pode se coçar com as unhas, para isso se vale de

uma flechinha feita de patauá com a qual delicadamente tocará o corpo; ele não pode

beber muita água e as pequenas doses devem ser mornas; nos primeiros meses, o noviço

não pode se banhar porque a água levaria suas pedras (ademais, alterar o cheiro do

corpo compromete igualmente a fixação); o calor também lhe é ruim porque as pedras

saem pelo suor, então, ele não deverá permenecer sob o sol; seu caminhar precisa ser

lento para não mover as pedras do lugar; e, sobretudo, o noviço deverá se abster de toda

atividade sexual, pois, sendo o contato com as pedras interdito para os não iniciados,

desprendendo-se pelo sêmen, a pedra seria inseminada como um veneno letal. Por esses

motivos, o local no qual o noviço é mantido recluso tende a ser pouco frequentado pelo

medo das pessoas de pisar em alguma pedra que tenha se desprendido de seu corpo ou

tenha sido levada pela água.

O pajé mais velho utiliza-se de seu firi, inalador, feito com o fêmur do gavião real

(Harpia harpyja), para soprar sina, rapé, o tanto que o rapaz for capaz de suportar. Até

acostumar-se com o efeito do rapé misturado com as pedras, o rapaz irá vomitá-las. Esse

efeito emético, ainda que colateral, não é de todo indesejado pois atua na purificação do

corpo do noviço, ação necessária para a boa fixação posterior das pedras. Os pajés

salientam que as pedras de seus corpos não são em nada semelhantes às pedras comuns,

aquelas têm coloração amarelada e a consistência menos rígida, "é bonito e brilhante

como o ouro". As pedras podem ser referidas pelo efeito que provocam, por isso, são

chamadas yama kome, "veneno", "doença" ou "dor", de modo que a iniciação é

88
entendida como adoecimento ou envenenamento. O tabaco, sina, utilizado reforça essa

ideia de que a intoxicação é o meio através do qual o corpo do noviço adquirirá os

aspectos apropriados para a atividade xamânica, quais sejam, a leveza imprescindível

para que sua alma possa voar sem despencar do céu - alguns comparam as pedras "com

os pilotos sem o quais o avião não voa para o céu"-, a dureza de sua carne própria dos

corpos das almas de veneno e o amargor associado às doenças.

É pelo rapé que as pedras são estabilizadas no corpo e são por meio destas que se torna

possível a comunicação com as almas dos mortos, ai korimari, os espíritios inamadi, as

almas dos cultivares, yamata abono, dentre diversos outros seres. São também as pedras

xamânicas que permitem ao pajé visualizar os projéteis de feitiço no corpo de seus

pacientes e extrai-los succionando-os, v.t toma na, até cuspi-los materializados como

flechinha, sereini, ou retirando-os com as mãos, v.t. tamo na, esfregando e pinçando o

corpo para, em seguida, assoprá-lo para longe ou de volta para o corpo do agressor. A

substância xamânica, portanto, é um modo de objetificar ou materializar as capacidades

do pajé, seus poderes e conhecimentos.

Entre os povos arawá, a iniciação xamânica parece ocorrer, em linhas gerais, de maneira

similar com a introdução de uma substância descrita à semelhança de uma "pedra" que,

extraída do corpo do pajé preceptor, será, por sua vez, introduzida no corpo do noviço

transformando-lhe substancialmente de modo a conferir suas capacidades xamânicas.

Essa mesma substância, uma vez fora de seu corpo, age como feitiço ao ser lançado em

outros corpos. Os corpos dos inawa, pajé, Jarawara, por exemplo são compostos pelas

pedras, inseridas em seu corpo durante os meses de sua iniciação, às quais concedem

diferentes acepções: i. feitiço; ii. pedra xamânica, conhecida por yama nakora; iii.

89
espíritos auxiliares do pajé (Maizza 2009:79-81)

Segundo descrição de Bonilla (2007:345), os Paumari, também da família linguística

arawá, em vista de adquirir os conhecimentos necessários para a prática xamânica,

iniciam os noviços ao longo de um período que pode durar de cinco a seis meses,

objetivo que consiste em introduzir em sua alma-corpo as pedras xamânicas, ijori, na

verdade uma resina de árvore, extraídas de seu preceptor. Contendo o poder xamânico,

as pedras ijori são o que permitem ao pajé cantar e emprestar sua voz aos espíritos,

ademais, é o elemento que torna visível os objetos patogênicos a serem succionados do

corpo do doente. As restrições alimentares e sexuais devem ser obedecidas a fim de

estabilizar as pedras recém introduzidas em sua alma-corpo. Caso ele as desobedeça, as

pedras podem cair, fato que ocasionará sobretudo o adoecimento de seu preceptor.

Também o calor e os cheiros fortes afetam a estabilidade das pedras ainda não bem

fixadas na alma-corpo do aprendiz. A iniciação deve preencher a alma-corpo de pedras

xamânicas e conforme elas são retidas menos sua perda o afetará. A capacidade

xamânica é, portanto, diretamente proporcional à quantidade de pedras acumuladas no

corpo.

Entre os Kulina, a substância xamânica é chamada de dori, que pode ser uma pedra ou

resina vitrificada, bem como um fragmento de unha de tamanduá, gavião ou tatu

(Altmann 1994:76); ela permite ao zupinehe, pajé, ver as almas tokorime28. O campo

semântico da noção de dori abarca, assim como entre os Jamamadi, o sentido de

"feitiço" e doença" (Viveiros de Castro 1978:82; Pollock 1985:67; Cerqueira 2015). A

iniciação consiste num primeiro momento na introdução do dori no corpo do aprendiz,

28
Para uma descrição detalhada da iniciação xamânica entre os Kulina, conferir a etnografia de
Cerqueira (2015).

90
sendo uma objetificação dos espíritos tokorime é o que confere a capacidade de

aprender o caminho dos mortos no namibudi, o subterrâneo onde serão aprendidos os

cantos de cura (Altmann 1994:76; Cerqueira 2015:266). Esse aprendizado o habilita a

retirar o dori, i.e., feitiço, do corpo do doente seja por gestos rápidos ou por sucção do

local.

Já os Deni chamam katuhe a pedra xamânica que é inserida no corpo do pajé aprendiz e

a descrevem como “uma substância consistente, amarelada, semelhante à cera que se

extrai das colmeias de abelhas na floresta” (Koop & Lingenfelter 1983:44). Em termos

gerais, o processo de formação do zuphinehe, pajé, é um período que dura vários meses

que implica abstinência sexual e alimentar, além da ingestão da substância xamânica. A

aproximação gradativa dos espíritos auxiliares ocorre quando o aprendiz acompanha seu

preceptor na floresta e dele receberá os seus próprios espírítos, em maior número à

medida que avança a introdução das pedras katuhe (Idem:45). Entre os Suruwahá, a

substância xamânica como ser uma pedra ou um coquinho ou pedaço de pau (Kroemer

1994:149); Huber (2012:386), contudo, matiza essa informação ao descrever o processo

de iniciação resumido ao ato de soprar elevadas doses de rapé por alguém cujo tabaco é

reconhecido por sua força.

Os noviços Apurinã devem passar vários meses no mato praticando jejum ou

alimentando-se pouco e mascando folhas de katsowaru. É por meio dessas folhas que

suas primeiras pedras xamânicas são obtidas. Diferentemente da substância xamânica

dos povos arawá, a cada pedra do corpo do pajé apurinã, meetu, Apurinã atribui-se uma

potência patogênica específica relacionada ao ser vegetal ou animal ao qual está

associada. Talvez a pedra mais importante seja aquela recebida da onça que encontrará

91
em sua iniciação (Schiel 2004:86). Dada a proximidade geográfica e semelhança

cosmológica dos povos de língua katukina, convêm recuperar as informações

etnográficas (Costa 2007) a respeito dos Kanamari que habitam atualmente a bacia do

rio Juruá. A substância xamânica dyohko impregnada no corpo dos pajés, baoh, está

presente nos corpos dos chefes queixadas e nas árvores dyohko-omam. De aparência

resinosa quando materilizada no exterior do corpo do pajé, o dyohko admite uma

consistência viscosa em seu interior. Dyohko é igualmente a matéria principal da qual se

utilizam os feiticeiros para fabricar seus dardos envenenados, partes de animais ou

outros elementos podem também ser misturados. Dyohko pode designar os espíritos,

potencialmente canibais e plurimorfes, cuja origem remete aos tempos primordiais.

Ocasionalmente, são familiarizados e tornam-se espíritos auxiliares do pajé kanamari,

neste caso, tornam-se pedras (resina) em seu corpo (Idem: 361-362).

Voltando aos Jamamadi, a dieta do noviço se reduz por meses a quantidades ínfimas de

certos cultivares, escolhidos por seu preceptor de acordo com sua evolução em aceitar

as pedras. Há uma sequência para a reintrodução dos alimentos que considera seu

potencial agressivo, manifesta de forma sensível em acidez, doçura, quantidade de sal e

gordura. No início, todas as carnes e peixes estão vetados ao noviço. Nos dois ou três

primeiros meses, ele mal consegue se alimentar, dados os efeitos do rapé. Aplacado o

vômito, o pajé volta a colocar as pedras e oferece um pouco de banana comprida, sibati

bili, verde assada. Milho assado também é permitido em pequenas quantidades; os pajés

chegam a contar os caroços antes de oferecê-las. Nenhum alimento pode ser ingerido

cru. Segundo me relatou o pajé B.:

Não pode comer banana, abacaxi, cará, nada doce. No começo, só um pedacinho de
macaxeira assada sem sal. Depois, ele fica mais dois meses até voltar a comer outra

92
coisa. Então, o pajé mais velho dá a pontinha do rabo do macaco prego, biyu, e depois
de mais um tempo um pedaço do nariz do queixada, hiyama ka widi, com um pouco
de massa de mandioca, iyawa. Tudo assado. Quando ele puder comer banana madura,
o pajé novo, inawa yati, poderá voltar a ver as pessoas. Isso demora muito tempo,
quase um ano. O seu professor vai dar um pedacinho de abacaxi e um pouco de carne
de caititu, kobaya. Tudo bem pouco para ele acostumar a comer.

A dieta do pajé em formação deve ser cumprida à risca para não adoecê-lo. A

reintrodução dos alimentos é paulatina e vagarosa; primeiro, ele vai comer um

pedacinho de banana comprida; depois, um pedacinho do rabo de macaco; no outro

mês, ele vai fazer uma flecha de patauá e com ela moquear um peixe pequeno. A

quantidade da comida também aumenta aos poucos, conforme o rapaz recupere seu

corpo debilitado e volte a ter condições de ingerir alimentos mais fortes, kitini, ou

agressivos, hamini.

Passados alguns meses, o preceptor irá mandar o noviço seguir por um caminho mais

afastado e passar a noite no mato sozinho. Essa será a primeira ocasião em que ele verá

os espíritos inamadi. Esses encontros serão assustadores, bichos virão ameaçá-lo e

almas agressivas irão correr atrás dele tentando matá-lo. O noviço se esconde ou foge

sem ter como se defender, nessa época ele "ainda não tem seus companheiros", as almas

de parentes falecidos e almas de plantas que o acompanharão. Cansado, ele gritará por

socorro e seu preceptor irá em seu encalço ou enviará um de seus espíritos auxiliares

para resgatar o aprendiz. Pode ser que esse espírito acabe se tornando um auxiliar do

noviço, caso o preceptor assim deseje: "Agora não vai mais soltar, vai ficar como

segurança dele".

93
Ocasiões semelhantes voltarão a se repetir ao longo da iniciação. O pajé mais velho irá

mandar o seu aprendiz se banhar no porto, ele suspeita que as almas irão ao seu

encontro. Uma alma aparecerá repentinamente para perguntar da sua iniciação: "ka!29

você já está formado?". Ao final da conversa, a alma lhe dirá que "ainda não terminou,

falta um pouco para poder voar". Esse encontro anima o noviço que se alegrará em

prosseguir inserindo as pedras. Faltam ainda mais alguns meses, o tempo varia porque é

preciso esperar que mais tabaco cresça na roça para retomar a iniciação. Reiniciado o

processo, o pajé dirá para seu aprendiz ir para o mato, seguir pelo varadouro e esperar.

Dessa vez, virão muitas almas:

O pajé jovem escuta a zuada de gente vindo, muita gente mesmo. São pessoas
estranhas, por isso, ele tem medo/vergonha delas. Elas falam com ele, mas ele tem
medo e não responde. Ele se encolhe e fica calado. O pajé vai perguntar o que o rapaz
viu quando estava no mato. Ele vai contar sobre seu encontro e diz que não teve
coragem para falar com as pessoas. O pajé vai querer saber o que disseram para o
rapaz. Ainda falta um pouco para que seu treinamento termine. O pajé apenas vai
dizer: 'Tá bom, tem que pôr mais pedra então'.

Aproximando-se do fim de sua reclusão, o noviço será testado novamente. Certa noite,

o pajé mandará o rapaz seguir por um varadouro e esperar sentado sobre uma árvore

caída no caminho. O rapaz obedece e aguarda calado até escutar a aproximação do

yomahi nemekaro, a onça celeste, que chega cumprimentando-o em jamamadi:

kobonebonane, sotatiliahi!: “Olá, não se assuste!". A onça pedirá ao rapaz que tire a sua

camisa para poder lamber o seu corpo e com a língua introduzir suas pedras xamânicas.

Trata-se da forma visível e objetificada da onça, yomahi, um espírito auxiliar, que vive

29
"Ka!" é uma interjeição para susto, surpresa, incredulidade, espanto etc. Imagino tratar-se de
uma corruptela de "Guá!" interjeição usada em Lábrea como variação da expressão amazonenese
"Égua!".

94
no interior do corpo do pajé e que, projetada, se revela ao noviço como uma enorme

onça branca. Inawa yomai towawaha, ai towa wama, "o pajé se transforma em onça, é

gente transformada", eles explicam (voltarei a este tema adiante). A fala da onça é

cantada à semelhança das almas quando visitam a terra. Enquanto rodeia e lambe o

rapaz, a onça dará conselhos ao futuro pajé: "Venho conversar com você, tome cuidado

com os inamadi! Eles gostam de roubar a alma/coração, korimari, para comer assado".

Outros animais também podem aparecer, o mais comum é que uma enorme surucucu se

aproxime do noviço; ela subirá por sua perna direita, enredando-se no corpo para descer

pela perna esquerda e neste movimento inserirá suas pedras em seu corpo. No dia

seguinte, o pajé irá buscar o rapaz: "O que você encontrou desta vez?", ele pergunta

para testá-lo. O rapaz irá contar dos animais que viu, alegrando o pajé: "Está bem, logo

você irá para o céu, saberá curar e eu não vou te ensinar mais".

O fim da iniciação xamânica é marcado pelo encontro do noviço com as almas das

plantas. O procedimento é o mesmo: ele irá sozinho por um varadouro, por ordem de

seu preceptor, até encontrar um tronco caído sobre o qual irá esperar até escutar vozes

se aproximando. Em seguida, ele conhecerá muitas almas de plantas, espíritos auxiliares

do pajé, com as quais irá conversar e de quem receberá uma fruta ou cultivar trazido do

céu e que, por não crescer na terra durante o período do ano de sua iniciação, servirá de

prova da veracidade de suas palavras e comprovará o término de sua formação. A partir

de então, o xamã novo, inawa yati, estará apto a viajar para os patamares subterrâneos e

celestes em busca das almas dos enfermos capturadas pelos inamadi. Quando o pajé for

encontrá-lo no caminho, o rapaz lhe entregará o cultivar: "Este cará foi a alma que me

deu".

95
A introdução de diferentes venenos vegetais no corpo do pajé novo é o momento

decisivo que marca o término de sua iniciação. Por seus riscos evidentes, é nessa etapa

que muitos desistem e acabam não completando sua formação. Se é verdade que o

objetivo da iniciação é fabricar um corpo envenenado, aspecto definidor da condição do

pajé entre os Jamamadi, então, o uso dos venenos e a intoxicação controlada por meio

do tabaco são os meios para tanto. Com efeito, o pajé é aquele que possui o noko koma,

o rosto com veneno, saliento que a ênfase é dada no sentido metonímico da expressão,

de modo que a melhor tradução seria o olhar envenenado, posto que é através dos olhos

que a peçonha do pajé extravasa seu corpo projetando-se como "raio", "faísca", "luz de

lanterna", etc. Não ceder ao venenos, mas incorporá-los em vista de conferir ao pajé as

características substantivas das espécies vegetais, notadamente os venenos usados na

caça e aqueles das plantas cujos duplos humanos são reconhecidamente xamãs

poderosos, é o objetivo deste procedimento. Tendo em vista a força de cada veneno, o

preceptor determina o modo como cada um será utilizado: a casca do cedro aguano,

wifi, cujo amargor é a expressão sensível da agressividade e potência do duplo desta

árvore, será mascado; o timbó, kona, e o iha serão bebidos em pequenas quantidades30;

com o bicafa, o barafa, o yakiyokari e o boa, que compõe o veneno usado na caça, o

noviço lavará o seu rosto "igual fazemos com sabonete" para impregná-lo com eles;

outras substâncias podem ser usadas, segundo a escolha do pajé mais velho, como a

água do tofi, um tipo de cipó que provoca coceira cuja fruta é semelhante à pupunha e

provoca mal-estar se ingerida; também podem ser usados o "leite" do cupuaçu jovem e

de outras frutas para aumentar a potência dos venenos.

30
Seria uma forma atenuada de suicídio?

96
O enrijecimento do corpo do pajé decorre da ação dos venenos, um sinal da

transformação em curso e um alerta para ser cauteloso no trato com ele; mais ainda,

recomenda-se evitar o contato físico, como os apertos de mão, para não correr o risco de

ser enfeitiçado/envenenado. Certa vez, uma caba de igreja (Polistes canadensis) pousou

no braço do pajé D., alertei-o assustada por saber quão doloridas são as suas picadas,

mas sua reação foi de indiferença e de certa empáfia. Ele, então, me explicou que o

veneno de seu corpo é pior que aquele da caba e que ela acabaria se dando mal, caso

tentasse picá-lo. Ele mesmo não sente dor com as picadas dos insetos.

Ao final da iniciação, o pajé neófito receberá um novo nome dado por seu preceptor.

Safiel passou a se chamar Kanalimahi; B. recebeu o nome Manokamawawi; Siko ficou

conhecido como Manoatimawi etc. Esses nomes provêm de trocas com as almas de

plantas em suas visitas noturnas à terra, quando elas vêm cantar e conversar com seus

parentes. Não se trata do nome de uma espécie vegetal, mas do nome próprio de uma

alma particular de uma espécie de planta. Ou ainda, pode ser a descrição de um evento

envolvendo as almas de plantas presenciado no céu pelo pajé, como é o caso do nome

recebido por B., Manokamawawi, que descreve o movimento feito pelo braço de uma

alma para chamar os demais, visto pelo pajé Bahawi. Os nomes remetem a relações

entre o céu e a terra, entre os vivos e os mortos, entretidas pelos pajés Jamamadi e as

almas de plantas. Raramente os Jamamadi revelam seus nomes de alma, madi ka oni, ou

nome de verdade, oni yokana, que podem ser muitos e são mobilizados em contextos

relacionais específicos. A questão da onomástica entre os Jamamadi é bastante

complexa; abordarei o assunto adiante.

97
Os pajés demonstram sua legitimidade ao succionarem uma parte de seu corpo e

cuspirem a pedra dele extraída para, em seguida, fechando-a na própria mão fazê-la

sumir - devolvendo-a ao próprio corpo. Dizem que os inawa yokana, pajés de verdade,

continham uma quantidade tão grande de pedras em seus corpos que o seu caminhar

emitia um som parecido com o do chocalho de conchas arakasi. Apesar de estarem

espalhadas em todo o corpo, como visto, o rosto é o local de maior concentração das

pedras; o seu excesso transborda através dos olhos, por isso, não se deve encarar

diretamente um pajé. O coração, atibonokori, como sede do conhecimento/pensamento,

também é outro ponto de concentração de pedras xamânicas. Quando o pajé fala de seu

saber, não raro, aponta simultaneamente para o próprio peito. O costume dos brancos de

cumprimentar com apertos de mão e abraços é encarada com certo mal-estar pelos

Jamamadi mais velhos, sempre desconfiados de que o contato físico com desconhecidos

possa introduzir feitiço em seus corpos. Entre os Suruwaha, Huber nota atenção

semelhante em evitar o contato físico, em particular com o cotovelo:

Quanto ao efeito do toque, os Suruwaha vêem os cotovelos (wakuri) como lugar por
onde escapa o feitiço (mazaru) contido nos corpos. Apesar de afirmarem que só os
xamãs possuem mazaru em sua carne ymy, qualquer pessoa que encosta
acidentalmente numa outra com seu cotovelo é obrigada a sugar imediatamente o local
afetado (husuru kamyza-) para evitar danos maiores. Apontar propositalmente o
cotovelo para uma pessoa (kuky-) constitui um gesto extremamente ofensivo, cujo
destinatário poderá optar por assoprar rapé no agressor para se reconciliar com ele, ou
por ir tomar veneno para demonstrar sua raiva (Huber 2012:268).

Maizza aponta igualmente para o perigo inerente ao toque entre os Jarawara e chama

atenção para os jogos de futebol, contextos nos quais as disputas corpo a corpo

98
assumem ares de brincadeira, ainda que seu caráter agonístico permaneça como

lembrete da tensão latente entre os afins:

O perigo do toque é onipresente entre os Jarawara; mesmo no dia a dia, as pessoas


praticamente não se tocam. Nos rituais ou em campeonatos de futebol, homens afins
entre si, ao contrário, se tocam o tempo todo, fazendo brincadeiras e rindo. Parece-me
que este tipo de comportamento, contrário ao que é exercido no dia a dia entre
‘parentes’, é justamente uma demonstração de que eles são afins, inimigos potenciais,
e que aquele toque pode ser uma agressão fatal (2009:87).

O contato direto é a forma mais evidente de contágio, contudo, o feitiço pode ser

lançado a distância pelo pajé quando este sopra sua pedra xamânica através de seu

inalador, comparado à zarabatana, karaboha, com a qual os caçadores flecham suas

presas. Ao lançar sua pedra, ela se projeta fazendo-se visível como um dardo de feitiço,

uma pequena flecha chamada sereini. Mas há ainda, outras formas de agressão

xamânica: a introdução das pedras na comida ou em objetos que serão utilizados pela

vítima, pela extrojeção dos animais contidos no corpo do pajé, em particular a onça e a

cobra, por intermédio dos espíritos auxiliares a quem pode ser delegada a tarefa de

soprar feitiço nos desafetos do pajé; sem contar a diversidade do arsenal bélico que pode

ser mobilizado no caso de conflitos que envolvam aldeias afastadas, como abordarei

acerca da guerra mundial. Entre outros povos arawá, o enfeitiçamento é descrito de

forma parecida como resultado da introdução no corpo da vítima da pedra contida no

corpo do pajé: por meio de gestos rápidos; projeção, sopro de flechas ou de outros

objetos; de forma mais direta, através do toque no corpo da vítima ou da introdução da

substância na comida/cultivar que será ingerido (Maizza 2009:82; Pollock 1985:67;

Rangel 1994:150; Kroemer 1994:149; Reesink 1993:84; Bonilla 2007:127).

99
O comportamento desviante dos animais, sobretudo nas caçadas, são um dos eventos

mais recorrentes de predação xamânica, pois trata-se da materialização da ação de

outrem por meio do corpo ou aparência do animal caçado. Ao ser enganado e tentar

caçar o que na verdade é um predador, as posições se invertem imprevisivelmente e o

caçador torna-se alvo da agressão de outro pajé, disfarçado de presa. Animais que não

morrem mesmo depois de serem atingidos, corpos monstruosos e cheiros nauseabundos

impregnantes indicam não se tratar propriamente de uma caça comum. Nonobi conta

que certa vez saiu para caçar macacos guariba, yiko, que estavam fazendo zuada perto

do roçado, e, ao atirar, atingindo alguns deles, nenhum morria. Ao se dar conta de que

não eram de fato guaribas, mas yiko towe/keye, "guaribas ruins/falsos", Nonobi voltou

para aldeia e, mesmo antes de chegar, já estava sentindo cansaço, febre e dor de cabeça.

A "catinga" do bicho estava impregnada nele, não deixando dúvidas que Nonobi havia

caído numa armadilha. Foi necessário que seu sogro chupasse a "catinga" e o feitiço que

invadira seu corpo para que ele se recuperasse.

As cobras também podem ser uma forma de materializar as pedras xamânicas ao serem

extraídas do corpo do pajé, em geral, os acidentes ofídicos são atribuídos à agência de

um pajé mal intencionado. A cobra é deixada no caminho e suas presas introduzem o

feitiço. Contra os feitiços inoculados pelas cobras, alertam, não há remédio que seja

eficaz, exceto a rápida intervenção de um pajé por conseguinte. As remoções de

pacientes picados por cobras para serem tratados na cidade sempre geram muita

discórdia com os agentes de saúde da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) ,

pois os tratamentos dos brancos são considerados inadequados pelos Jamamadi. As

mortes nesses casos são rápidas e os sintomas mais comuns são febre, tremores, falta de

100
apetite e uma piora brusca. Os médicos cuidam das doenças de brancos; os pajés tratam

de doenças causadas por plantas, sumarizam.

A prova final, segundo contam, a que é submetido o pajé recém-formado é curar um

doente extraindo-lhe as flechas de feitiço por meio da sucção de seu corpo para, em

seguida, cuspi-las e mostrá-las ao paciente. Antes de iniciar o tratamento, o pajé inala

uma dose de rapé a fim de chamar seus espíritos auxiliares que o acompanharão nos

seus procedimentos. Comparado ao celular, o rapé "ativa" a comunicação com as almas

auxiliares do pajé que vivem no céu e permite, através das pedras de seu corpo,

visualizar o feitiço no corpo do paciente. Inspecionando o local dolorido, o pajé

apalpará o corpo até localizar o objeto a ser chupado, o qual, ao ser retirado,

materializar-se-á como flecha, espinho, dente, prego etc. Em companhia das almas que

chamou para ajudá-lo, o pajé recém-formado ele lhes entrega o feitiço e pede para que

procurem o responsável pela agressão, o dono do feitiço, sereini ka hidi. As almas falam

cantando através do corpo do pajé enquanto sua alma está ausente, em viagem ao céu,

em companhia de seus espíritos auxiliares, para procurar e devolver o feitiço ao corpo

do agressor. "Eu mandei matar a alma do Teke porque ele enviou as flechas por

maldade, só para matar", é o que disse o pajé D. ao retornar na manhã seguinte do céu.

Os deslocamentos exigem muito do corpo dos pajé que, por isso, não podem ser muito

velhos. Contam que o "ouvido dói quando viaja, tem que ser forte para os ossos não

quebrarem quando pula para a terra. Às vezes, sai sangue do nariz [por causa da

pressão]", explicou o pajé B. Ter dentes é igualmente importante para puxar mais

facilmente o feitiço do corpo do doente, o que dificulta ainda mais a atuação dos pajés

idosos.

101
O adoecimento provocado por feitiçaria e as medidas terapêuticas mobilizadas são

parecidas entre os povos arawá e katukina. Os Jarawara atribuem a causa das doenças à

inserção de pedras ou partes de animais por um pajé inimigo no corpo de sua vítima; os

sintomas mais frequentes são dor e febre. A cura, por sua vez, consiste na remoção do

objeto patogênico por sucção ou puxões com as mãos no local dolorido (Maizza

2009:82). Já os pajés paumari curam os enfermos aspirando os pontos afetados até

retirar os objetos pontiagudos que foram lançados por um desafeto e os engolem para

depois cuspirem-no. Se for um feitiço forte, um primeiro pajé succiona o corpo do

doente e, não raro, acabará perdendo sua consciência, de modo que precisará ser

chupado por um outro pajé, formando uma cadeia de pajés que tiram o objeto um do

corpo do outro sucessivamente até o último conseguir retirá-lo, cuspindo-o sem

desmaiar (Bonilla 2007:184, 357-359, passim). Antigamente, os Suruwaha, outro povo

de língua arawá, removiam os objetos do corpo do doente chupando-o até retirá-lo. As

curas hoje se fazem apalpando o local dolorido com as mãos para, em seguida, puxar a

doença e afastá-la para longe (Kroemer 1994: 149). No caso dos Kulina, o pajé primeiro

cheira o rapé e succiona o lugar afetado com força para tirar o dori, a substância

patogênica, que será engolido e depois vomitado. O procedimento pode acontecer

durante os rituais nos quais são chamados os espíritos tokorime que vêm do subterrâneo

para visitar suas aldeias e cantar (Pollock 1985). Quando se sentem indispostos, os

Kanamari procuram um pajé que, após inalar rapé, verificará se há algum djohko

alojado em seu corpo; ele o examinará com suas mãos para localizar essa substância.

Sucessivas vezes o pajé irá chupar o corpo do enfermo, já que o djohko pode estar

alojado em local de difícil acesso ou ser mais de um. Diferentemente dos casos arawá

mencionados, o pajé kanamari não eliminará o projétil do feitiço; descrito em termos de

102
um processo de familiarização, o djohko retirado do corpo do paciente é inserido no

corpo do pajé tornando-se seu xerimbabo (Costa 2008:378-379; Reesink 1993:84).

***

Atualmente entre os Jamamadi, a iniciação xamânica é descrita valendo-se de termos,

em português, como "capacitação", "formação", "treinamento", comparando-a aos

cursos ministrados pelos brancos ou à escola. O seu aprendizado, kanawato (ka- é o

causativo comitativo e nawato é "saber/fazer/conhecer"), não se restringe todavia ao

período de inserção das pedras ou aos conhecimentos obtidos através de seu preceptor.

A atividade agrícola é de suma importância por criar as relações que propiciam que uma

alma das plantas ocasionalmente se torne um espírito auxiliar, uma parceiria até o final

de sua vida - dizem que "não soltam mais".

Os Jamamadi se recusam a viajar sozinhos, enfatizando que é necessário sempre ter um

companheiro, dadaba, para realizar qualquer tarefa, como ir à cidade. Tanto é assim que

Mowe, sobrinha paralela do pajé B, logo foi escolhida para me acompanhar quando

cheguei à aldeia na primeira vez. A proximidade entre os companheiros chega ao ponto

de os nomes serem trocados na ausência de um deles - de modo que, quando não estou

na aldeia, Mowe é chamada também de Karen. Para ir ao roçado, viajar a Lábrea ou a

Brasília eles insistem na necessidade de ter um parceiro como acompanhante; as viagens

à cidade e os deslocamentos xamânicos ao céu com frequência comparados em virtude

dos riscos associados a ambos.

103
O mito do inawa yati devorado por uma alma cobra, maka abono, i.e., um pajé em

corpo ou transfigurado de cobra, contado pelo pajé B., reforça os perigos de viajar

desacompanhado. Por ser jovem, esse pajé age de modo imprudente e acaba morto,

devorado pelas almas das cobras, descritas como "levianas" por rirem de qualquer coisa.

Mais uma vez, são as almas das plantas cultivadas que amparam as pessoas:

Foi uma alma de planta que trouxe o que sobrou do pajé. Os parentes reconheceram as
pernas, que foi o que sobrou dele. O pajé novo vai tomar rapé em cima de um pau
caído em frente à porta da maloca. Ele toma rapé, enquanto isso, uma alma o observa
e acha graça: 'Eu vou ficar olhando'. O pajé novo, então, vai para o céu
desacompanhado, sem seus espíritos auxiliares. Não é alma, não é cobra. Alma de
cobra, maka abono, parece cobra mas não é. Acha graça, ri de tudo, come as pessoas
mas não as mata. A alma da cobra faz um tisão com brasa na ponta e o usa para
queimar o pajé. Ela come o pedaço queimado e assim vai comendo aos poucos, sem
matar. Primeiro queima, então, come. Maka abano não presta, ela comeu o corpo todo
do pajé, exceto suas pernas. Uma alma boa de yamata, cultivar, trouxe as pernas de
volta para a terra e as entregou aos seus parentes (Badá, 2015).

O envelhecimento dos pajés, somada à falta de interesse dos mais jovens em passar

pelas duras provações da iniciação xamânica, relegaram a formação dos pajés à vida

póstuma, como visto no relato de N. sobre a alma de seu filho falecido, Koeto. Esse

também foi o caso de Yanoaka, iniciado por uma alma de veneno iha após a sua morte.

Em geral, a pedido de um pajé vivo, a alma do parente morto será entregue a uma alma

de planta de veneno no céu para que ela a inicie.

Esse foi o caso de Koeto, filho do pajé D., que, na ocasião de sua morte, pediu que uma

alma de mandioca, fowa abono, o entregasse aos missionários do céu e depois para uma

104
alma do veneno iha e para a alma de Felipe, seu irmão mais velho, a fim de que o

iniciassem até ele ter o noko koma. Hoje, Koeto está formado e é um importante espírito

auxiliar de seu pai, acompanhando-o em suas viagens; de acordo com D.: "Meu filho

tem televisão, rádio e muitas mercadorias que consegue com os patrões. Ele se parece

com um soldado, tem revólver, além de terçado". Muitos dizem que "no céu não é

brincadeira, tem muita briga feia na guerra mundial".

A iniciação xamânica assemelha-se em muitos aspectos à reclusão feminina, porém a

análise conjunta de tais rituais escapa aos limites deste trabalho. Entre os Jamamadi, a

atividade xamânica é atualmente exercida exclusivamente pelos homens, tanto na terra

como no céu, e eles negam que existam mulheres iniciadas, ainda que algumas possam

ter pedras xamânicas em seus corpos, introduzidas em pequena quantidade por ocasião

do ritual da menarca. As pedras tinham um efeito terapêutico contribuindo na

recuperação das feridas abertas no açoitamento que marcava o final do período de

reclusão. Alguns ainda se recordam da existência de mulheres pajés, num passado não

muito distante, no entanto, as informações sempre foram vagas e, no mais das vezes,

eles chamavam a atenção para os empecilhos inerentes à condição das mulheres,

associados ao sangue menstrual, de exercerem plenamente a atividade xamânica31.

Apresento a seguir um mito e um relato histórico ( que fundamentam o argumento

desenvolvido. As versões que apresento resultam da complição dos relatos de diferentes

pessoas.

31
Pode-se especular se não seria como no caso dos Paumari em que as mulheres mais velhas
poderiam se revelar pajés poderosas: "En ce qui concerne les femmes, l’exercice du chamanisme est plus
contraignant, car les prescriptions liées à celui-ci sont plus dures à respecter lorsque l’on est une femme.
Cela s’atténuerait avec l’âge, car les femmes chamanes dont nous avons entendu parler étaient toutes
âgées" (Bonilla 2008: 344).

105
A origem da iniciação xamânica

Os rapazes jovens partem numa caça coletiva, dowada. Eles vão passar alguns dias
dormindo no mato. Eles se espalham seguindo os rastros da caça. Um pajé novo,
inawa yati, ainda está bem magro. Ele saiu há pouco tempo da reclusão. Ele carrega a
cabeça da anta que eles mataram. De repente, o rapaz encontra uma enorme onça
branca. Com medo, ele sobe numa árvore. A onça pede que ele desça, prometendo que
não irá lhe fazer mal algum.
- Desça, não vou te matar.
- Não, você vai me comer! diz o pajé novo, mal conseguindo manter-se nos galhos.
A onça o persuade a descer, ele já estava cansado de ficar pendurado. Ela pede ajuda
ao rapaz, pois seus pelos estavam cheios de parasitas.
- Rapaz, olha meu pelo e tira os mucuins e carrapatos.
O pajé tem medo, mas não tem como recusar. A onça deita. Ele primeiro tira os bichos
de uma perna, tinha muito mucuim. Depois dos braços, orelhas e da cabeça. A onça
acaba dormindo. Na barriga, no pescoço e no rabo tinham muitos carrapatos. Ele vira
a onça e tira os bichos do outro lado. Do dente, ele tira os pelos do hiyama, queixada.
Ele tira os bichos até não ter mais nenhum carrapato ou mucuim.
- Eu vou te colocar mais arabani, pedra xamânica, para te agradecer. Tome sina, rapé,
primeiro, você tem?
Com os dentes, a onça coloca o arabani no pajé, ele fica com medo. Ela lambe todo
seu corpo. (Vou mandar buscar toda a caça que peguei, mas só vou levar a cabeça de
anta comigo.)
- Eu andei por todos esses lugares, vou contá-lo os seus nomes e você deve contar
para os seus parentes, disse a onça.
Ela então ensinou os nomes dos rios e igarapés, bem como os locais de caça e as águas
mais piscosas do Purus

106
A história do pajé Wiyonama

Impregnar-se de veneno é a marca da condição ambivalente do pajé Jamamadi, cuja

composição corporal aproxima-o dos duplos das plantas, permitindo que se comunique

com elas "sem ter medo nem vergonha". O relato a seguir, narrado a Berinawa por sua

mãe, trata de um pajé chamado Wiyonama; seu outro nome era Bonininarahi e ele vivia

numa maloca no alto Mamoriazinho. Esta narrativa apresenta de forma concisa a

condição do pajé Jamamadi como "um tipo de veneno, que mata tudo", conforme me

explicaram.

Wiyonama era um pajé forte, ele tinha muita aona [pedra xamânica] no corpo. Ele
estava doente, tinha um tumor [furúnculo] no saco escrotal. Sawabokorofe, também
chamado Baonare, seu cunhado, acusou Wiyonama de ter colocado feitiço em seu
filho, que estava muito doente. Ele comentou que o cunhado, Wiyonama, havia
queimado suas pedras e que a fumaça venenosa adoecera o filho. A irmã de
Wiyonama, Yaosakariwaha, ouviu a maledicência e foi contar para ele. Wiyonama
enfureceu-se.
- Ah, é assim? Eu vou acabar com todos vocês. Eu sou como o kona, timbó! Todos os
peixes não morrem quando se coloca kona na água? O kona abono, alma do timbó,
quando lava suas mãos, põe seu veneno na água e mata tudo. Eu sou o veneno, yama
kome!
Os parentes fugiram com medo, mudando-se para outra maloca mais distante.
Somente o neto de Wiyonama ficou com ele na antiga maloca.
- Idi, vovô, tá tudo bem? perguntou o neto Atoni.
- Pega lenha para eu fazer fogo, pediu o pajé.
Wiyonama pediu que o neto juntasse o resto do fogo deixado pelos parentes que
haviam se mudando, deixando-o para trás. Com o algodão usado nas flechas de sua
zarabatana, as pedras de seu corpo e o seu cabelo, ele fez uma enorme fogueira. Foi
como fogos de artifício, o fogo subiu bem rápido. O pessoal que estava arrumando as
coisas na outra maloca viu o fogo chegar. A fumaça venenosa foi em direção à maloca
onde estavam os parentes.

107
- Atoni, quem fez o fogo para o seu avô?", perguntaram para o menino quando ele se
juntou aos demais.
- Vocês não apagaram o fogo dele? Agora ele vai nos matar. Nós vamos morrer! Ele
vai nos matar!, a maloca toda gritava.
Todos caíram, e muitos morreram. Não sobrou quase ninguém, até os animais
morreram.
Mekene Wayafi, Melquides na língua dos brancos, estava trabalhando com os
ribeirinhos e não morreu. Ele foi procurar o corpo do Wiyonama e não o encontrou,
uma de suas almas deve tê-lo levado para o céu. Wiyonama não morreu, ele concluiu.
Ele voltou para a aldeia e os urubus estavam comendo os seus parentes. Ele subiu
numa árvore alta e viu os seus espíritos gritando. Na manhã seguinte, ele desceu da
árvore e foi olhar na beira do igarapé e achou Afiamatei e sua mãe. Afiamatei, que
estava no wawasa [casinha da reclusão pubertária, que fica mais afastada da maloca
principal] e sua mãe, que a estava ajudando, conseguiram escapar. Ele cuidou delas até
melhorarem.

108
2.1 Noko koma: o olhar envenenado

Além de ser rude encarar alguém com insistência, nokotoni, tal gesto é imprudente por

desafiar a recomendação profilática básica de desviar os olhos, local que concentra a

potência xamânica. Se é verdade que o olhar é o veículo de transmissão de males entre

os Jamamadi, à semelhança da saliva ou da respiração, então, saber o que deixar visível,

o que manter oculto e estar atento para onde direcionar o olhar são atitudes

imprescindíveis para não adoecer ou ser alvo de feitiços. Noko koma tiwara awalayaho,

"você não pode encarar um olhar envenenado", recomendam os mais velhos às crianças

desajuizadas.

Como descrito antes, na medida em que as pedras xamânicas são inseridas ao longo da

iniciação, o corpo do pajé torna-se venenoso; seus olhos em particular são o índice de

sua agência xamânica. Tanto é assim que pajés míticos, lembrados por suas capacidades

excepcionais, mantinham os olhos fechados a fim de evitar a destruição descontrolada

do mundo. Algumas almas de plantas, como aquelas da taboca teke, uma das mais

agressivas, ficam com os olhos apenas entreabertos, pois seu olhar, mesmo que de

relance, é suficiente para fulminar quem cruzar seu caminho."Não sobraria ninguém em

Lábrea", especulava Arnica sobre os estragos que teke causaria se fosse à cidade.

O dafi, animal que vive preferencialmente no subterrâneo, em ladeiras e na proximidade

de buritiranas, buritis e arumãs, ou seja, em regiões de chavascais e banhados,

assemelha-se em seu tamanho a um boi pequeno, com chifres, mas com uma pelagem

ligeiramente distinta. Seus braços são curtos, ele anda por dentro da terra, vivendo

escondido no subterrâneo, dafi wami-ya winateni. Extremamente patogênico, seu olhar

109
é uma fonte de doenças gravíssimas, dificilmente tratáveis mesmo por pajés experientes.

A "catinga" que deixa impregnada no corpo da vítima, transmitida por seu olhar, é o

vestígio inconteste do encontro. "Você pode não ter visto o dafi, mas ele a viu" ou "eles

[os dafi] ficam procurando o pessoal de longe", alertam. O cheiro forte incha

imediatamente o corpo da vítima, que precisa ser socorrida pelo pajé e seus espíritos

auxiliares. À menor aproximação, o dafi sai por algum oco de pau ou buraco no chão

para atacar com o seu olhar, e isso será suficiente. Do mesmo jeito que os Jara criam

gado, os dafi criam seus empregados, dafi ka yoyose, que trabalham para ele, causando

males aos humanos também através dos olhos.

A criação em rebanho é uma prática que os Jamamadi relacionam aos brancos e aos dafi

(não à toa a repulsa à carne de gado). Foi o que aconteceu a Felipe, irmão mais velho do

pajé D., que morreu depois de caçar por engano um veado capoeiro, badehe, criado por

um dafi. "Esse veado é do mesmo jeito, mas é outro", me explicou D.. Felipe viu o

veado e atirou, contudo, ao invés de cair morto, uma vez que havia sido atingido, o

veado saltou em cima dele, que caiu desmaiado. Ao voltar para a aldeia, ele contou a

seu pai o que havia acontecido: "Abi, pai, matei veado só que ele não morreu".

Madokihi, seu pai, não teve tempo de ajudar o filho, que morreu no mesmo dia.

Nenhum espírito auxiliar tampouco pôde ajudar o rapaz. Eles sentenciam: "Quando é

dafi, não dá tempo".

Madokihi, pai do pajé D., foi para o céu encontrar a alma de seu filho para se certificar

de que ele estava bem. Ele havia mandado mane abono, uma alma de banana, levá-lo

em segurança para o céu - Madokihi era o pai da bananeira que resgatou a alma do filho

a seu pedido e a replantou no céu. Lá ele entregou o korimari de Felipe para a alma de

110
veneno iha. Madokihi disse a iha: "você fica com meu filho, coloca pedra nele". O

irmão mais novo de Felipe, o pajé D., conta que hoje seu irmão está casado com uma

alma de matrinxã, aba abono, e tem cinco filhos no céu (ver adiante os casamentos

póstumos no cap.7).

Uma vez a caminho do porto para se banhar, o pajé B. ouviu um animal relinchar. Com

medo, se escondeu no buraco de uma árvore. Eram vários dafi que pareciam uma

mistura de boi e bode, de várias cores. Eles estavam em busca do pajé para matá-lo,

talvez a mando de um pajé de outra aldeia. Em outra ocasião, B. foi acordado no meio

da noite com o estrondo de um dafi, que, saindo debaixo da terra, batia sob o assoalho

da casa onde dormia. B. chamou seus espíritos auxiliares para ajudá-lo porque ele

sozinho nada podia fazer contra o ataque de um dafi, muito comum na aldeia Pauzinho

por causa das ladeiras e da proximidade com os igarapés.

Passivas ao potencial agressivo dos olhares alheios, as pessoas enfermas ou em

recuperação são mantidas fora da visão de seus parentes a fim de evitar que piorem.

Feridas, cortes e sobretudo picadas de cobra requerem atenção ao olhar potencialmente

alterado que possa contribuir no adoecimento. Isso porque não são somente os pajés e

os dafi que podem transmitir males através dos olhos, como discutirei no tópico

seguinte.

No início deste capítulo, relatei que a esposa do pajé D. havia permanecido um longo

período na cidade em tratamento e que, ao retornar à aldeia, o casal estava recluso,

evitando o contato com os demais. A esposa de D. permanecia escondida sob o

mosquiteiro nessa época, não permitindo que ninguém a visse; não que os parentes

111
ousassem se aproximar, temendo a ira do pajé. Ao que tudo indica, segundo diferentes

explicações que escutei, a esposa de D. também poderia ter sido enfeitiçada por um pajé

de um povo vizinho em uma viagem a Lábrea e, ao retornar a sua aldeia , acabou vista

por um dafi enquanto limpava o terreiro de sua casa.

A mesma evitação ocorreu quando Sabira machucou-se no cercado das mandiocas que

estavam de molho no igarapé. Ela permaneceu reclusa dentro da casa do filho por mais

de um mês não sendo permitido a quem quer que fosse olhar sua ferida; nem mesmo as

equipes de saúde da Sesai foram autorizadas pelos parentes a atendê-la. Nenhum

estranho pôde olhar para a ferida dado o risco de afetar negativamente a recuperação,

ainda mais considerando a idade avançada e a fragilidade da saúde de Sabira. Apenas

seus filhos ajudavam a mãe no tratamento, levando água para que se banhasse dentro de

casa, a fim de não deixá-la exposta a olhares alheios.

Entre os Suruwaha, Huber nota que se atribui ao olhar um efeito destrutivo, em virtude

da zubi gagini, "contagiosidade dos olhos" (2012:268). Pessoas em situações liminares,

como os adolescentes que passam pelo ritual de iniciação, são obrigados a cobrir os

olhos com envira, no caso das mulheres, ou a olhar para cima, no caso dos homens.

Fitar plantas recém brotadas ou filhotes de animais de criação são atitudes censuradas,

em especial no que se refere às mulheres grávidas. Ao contrário dos Jamamadi, entre os

quais olhar kakatoma os cultivares, os animais de criação e as crianças pequenas produz

seu crescimento, entre os Suruwaha, esse olhar demorado gakia-, gakyza- ou gai kijaha-

faz secar os cultivares no roçado e pode matar os animais de criação (idem):

Quando as pessoas terminam de plantar a pupunha, plantam o tabaco. No primeiro mês


após plantarem o tabaco, não olham para ele. Só têm costume de olhar para ele depois

112
de alguns meses. Enquanto as plantas do tabaco estão recém-brotadas e as pessoas vão
ao roçado, não se aproximam delas e olham para o outro lado (gatukwa-). Se olharem, a
planta seca feita vítima da contaminação dos olhos (zubi gagini bahini). As pessoas não
olham suas plantações após terminar o plantio. Só olham quando o tempo da colheita se
aproxima. (Xabi, maloca de Wahidiani, 13/06/09) (Huber 2012:269)

113
2.2 Noki koma: a força do sangue e o veneno do olhar feminino

Temporariamente, durante o período em que permanece em reclusão, as meninas

também têm o olhar envenenado, noki koma, comparado ao do pajé e ao das almas de

plantas agressivas, como a taboca teke ou como o dafi. Muito embora o período de

reclusão varie segundo a decisão dos pais da menina e do estágio de desenvolvimento

de seu corpo - meninas magras precisam ficar mais tempo para poder engordar -, é

comum que permaneçam por quase um ano dentro do wawasa, uma casinha feita de

palha, construída próximo à casa de seus pais e de onde ela só sai com o rosto coberto

para fazer suas necessidades e banhar-se, sem jamais entrar completamente na água.

Dentro do wawasa, a menina permanece com um "chapéu", doba, para tapar-lhe os

olhos; em alguns casos, nos primeiros dias de sua primeira menstruação, ela poderá

ficar vendada. Somente as mulheres podem vê-la; os homens, por sua vez, temem

circular perto de seu wawasa e os meninos são alertados para evitar brincar por ali, isso

porque o olhar da menina é extremamente patogênico para os homens: aquele que a vir

ou trocar olhares com ela estará fadado a uma morte dolorosa, vomitando todo seu

sangue. Eles traduzem o nome dessa doença, ama komini, como tuberculose.

O excesso de sangue desestabiliza sobremaneira o corpo feminino na primeira

menstruação, tornando a menina particularmente perigosa, venenosa, patogênica, uma

condição que comparam àquela do pajé, não pela fragilidade do seu corpo durante a

iniciação, mas pela potência do seu olhar depois de formado. Assim que a menina

menstrua pela primeira vez, ela vai para o mato, para longe da casa dos parentes, e

aguarda que alguém vá buscá-la. Ao encontrar sua mãe, ela avisa amakoboneni, "meu

114
sangue chegou". Em seguida, ela é colocada em reclusão dentro do wawasa, wawasa-ya

foyaboneni, chiqueirinho, quando falam em português. Ela se banha no mato, distante

para que não corra o risco de olhar para nenhum homem, fana foya awaterani. Nos

primeiros meses, ela não poderia nem mesmo olhar sua mãe nos olhos; somente quando

seu sangue diminui, ela volta a olhar para as outras mulheres. Como o pajé em

formação, seu corpo é instável e a menina não pode coçar-se com as unhas. Sua dieta é

bastante restrita: nenhuma caça ou peixe pego com veneno pode ser consumido, dado o

risco de tornar o veneno ineficaz. Reclusa, a menina dorme pouco para evitar ser uma

mulher preguiçosa e saber vencer o cansaço; para tanto, sua mãe entrega-lhe dois

pauzinhos, os quais ela deve bater um no outro para mostrar que permanece desperta

durante a noite. Se sua mãe deixasse de ouvir o som dos pauzinhos, ela puxava a corda

atada ao pé da menina para acordá-la. Também como o pajé novo, a menina recebe um

novo nome após o término de sua reclusão, concluída com o ritual ayaka e o

açoitamento. Entre os Suruwaha, a alteração do olhar feminino também caracteriza a

condição da menina na menarca:

O nome dado ao ritual feminino é zubuni taharu “aquela que cobre os seus olhos”
porque as iniciandas, ao perceber que começaram a sangrar (ama-), devem
imediatamente cobrir seus olhos com um pedaço de envira de amapá (kaza ymy) e
então são orientadas por suas mães a deitar-se na sua rede. O olhar das moças que
menstruam a primeira vez é dito ser contaminante gagy- (como o olhar dos rapazes
durante a iniciação). Mas enquanto que o olhar dos rapazes que estão prestes a receber
o suspensório peniano é “perigoso” para todas as pessoas (homens e mulheres) porque
ele é “excessivamente destrutivo”/ “predador” e pode transformar os olhados em
presas de animais peçonhentos, o olhar das moças menstruadas é “perigoso” apenas
para os homens porque ele evoca a fertilidade e a geração de novas vidas: Homens
olhados por moças menstruadas perderiam suas habilidades na caça (seu “poder
mortífero”) além de ser acometidos por vários tipos de eczemas. As moças
permanecerão deitadas com os olhos vendados na rede e não poderão comer carne

115
enquanto estiverem sangrando. Quando a menstruação termina passam a “ver
novamente as pessoas”, são levadas para o igarapé mais próximo por algumas amigas,
mergulhadas (kubudy-) na água, pintadas de urucu e então têm seu cabelo raspado. A
“cobertura dos olhos” será usada por elas durante mais ou menos meio ano durante
suas menstruações, e depois “descartada por decisão própria” (tusa ha-)" (Huber 2012:
351)

Se o objetivo da iniciação xamânica é endurecer e transformar o corpo do noviço em um

corpo-veneno de pajé, inversamente, na reclusão pubertária feminina o corpo amadurece

à semelhança das bananas postas num paneiro que passam do estado borehe,

imaturo/verde/não desenvolvido plenamente, para o estado hasa,

maduro/mole/desenvolvido. Em conformidade com esta concepção do desenvolvimento

do corpo feminino à semelhança das frutas, a gravidez é o ápice do processo, indicado

pelo escurecimento dos mamilos, hahasa na, dupl. -hasa na, ser preto/pretejar, no

sentido de estar completamente desenvolvido/maduro.

A casinha ou o mosquiteiro, outra opção para a reclusão, são pequenos justamente por

terem a intenção de limitar a movimentação em seu interior. Espantei-me com o calor e

a escuridão do ambiente abafado no qual estava reclusa Leorisa, que permaneceu por

quase um ano sob três mosquiteiros sobrepostos, de tecido grosso escuro, dentro da casa

da irmã. Sua pele alva e o rosto não mais infantil sugeriam que logo seria organizada a

caçada coletiva para o ritual ayaka32. Durante esse período, a menina permanece

fazendo colares de miçanga, costurando roupas, fazendo adornos plumários sentada em

sua rede. O aparecimento dos seios é o sinal mais contundente do término da formação

do corpo da menina e as mães costumam manifestar preocupação de que os seios de

suas filhas não tardem a despontar. Ouvi o mesmo comentário a respeito do estágio de
32
Para uma análise do ritual jarawara da menarca, conferir Maizza 2017a e 2017b.

116
amadurecimento das bananeiras de um roçado: "aquela bananeira ainda não tem peitos,

não está pronta", me disse Daiane observando as bananas recém plantadas no roçado de

seu pai. A comparação entre homem:veneno (timbó+venenos de caça) :: mulher:banana

remete ao aspecto vegetal constituinte da humanidade jamamadi, por ora formulada

insuficientemente em termos metafóricos. O que significa dizer que o calor e a

escuridão de seu abrigo de reclusão pubertária são como os paneiros nos quais as

bananas terminam o seu desenvolvimento? Bastaria considerar essa comparação, aliás,

deveras recorrente, como uma metáfora para ilustrar o processo de transformação do

corpo feminino?

Os homens jamamadi têm verdadeiro pavor do sangue menstrual; jamais têm relações

sexuais com mulheres menstruadas e a possibilidade de se depararem com o sangue os

faz evitar os igarapés enquanto as mulheres se banham. As mulheres evitam cozinhar,

ralar ou enxugar massa de mandioca sob o risco de estragá-la durante os dias de sua

menstruação. O medo dos homens foi visível quando Dowisi menstruou pela primeira

vez e não houve consenso sobre mantê-la em reclusão, já que seu pai, sendo viúvo, não

poderia cuidar dela. Por dias, ninguém ousava aproximar-se da casa temendo se deparar

com a menina, que, envergonhada, se escondia dentro de seu mosquiteiro. A situação

apenas foi resolvida quando seu pai começou a sentir a "doença do sangue" de sua filha,

manifesta na febre elevada, dor de cabeça e dor no corpo; então, acabaram-se as

discussões, decidiram que a menina não poderia "ficar solta". Sua tia materna

encarregou-se de cuidar de Dowisi no período em que ela permanecesse reclusa.

117
Fig.3 Casinha de reclusão, wawasa, construída em 2013

Fig. 4 Damaris em reclusão, 2013

Quando Érica menstruou seus pais estavam viajando para Lábrea. Foi sua tia, aso,

(FBW) que a colocou dentro do mosquiteiro em sua casa. A tia materna cortou bem

curtinho os seus cabelos para que ela pudesse ser posta em reclusão. O cabelo foi

cortado rente ao couro cabeludo para marcar a passagem do tempo; a reclusão de Érica

só terminaria quando seus cabelos crescessem. Nos preparativos do início deste período,

a mãe busca água no porto com um balde e reúne as mulheres para cortar o cabelo da

118
filha. O procedimento é feito num caminho afastado das casas, numa distância segura,

longe dos homens. Cada mecha de cabelo é guardada cuidadosamente dentro de uma

sacolinha, descartada somente ao término do ritual da menarca. Fora de seu

mosquiteiro, os olhos de Érica eram mantidos vendados com um tecido branco, do

mesmo tipo que hoje é usado nos dias do ritual ayaka que finaliza a reclusão. Os pais de

Érica queriam que ela permaneça "muitas luas" dentro do mosquiteiro, bem como sua

avó paterna, Laide, para que tenha força para carregar os pesados paneiros de mandioca

e trabalhar no roçado sem preguiça.

Não se fala em outra coisa quando uma menina menstrua; há um misto de alegria que

prenuncia o ritual e a comilança que serão organizados com um receio inevitável

próprio da situação. Na noite em que o cabelo de Érica foi cortado, as mulheres se

reuniram no terreiro da casa de seus pais para cantar o yowiri, gênero de canto feminino.

Os pais ofereceram comida, em geral, bolachas e café, para as mulheres cantarem. Os

rapazes e homens mais velhos acompanham a uma distância segura sem engajar-se

diretamente. A menina tampouco está presente neste momento, somente no ayaka ela

terá que dançar todos os dias, à exaustão, até o final, enquanto os homens cantam seus

cantos wayoma e as mulheres, os yowiri. Há alguns anos, a menina somente voltava a

olhar para seus parentes quando era açoitada no final deste ritual. Hoje, a prática foi

abolida entre os Jamamadi por influência da ação missionária. O açoite como técnica de

transformação corporal não se limita a este ritual, ainda que no caso dos meninos o

açoitamento seja menos intenso e feito à guisa de "brincadeira", sisiwa. Voltarei adiante

ao tema do ritual ayaka e à produção do corpo feminino.

119
Fig. 5 Fia (MZ) corta o cabelo de Érica, 2015

A gravidez também altera o olhar feminino, tornando-o perigoso principalmente para as

pessoas enfermas. Quando falam em português, os Jamamadi dizem que as mulheres

ficam remosas33 quando engravidam. Foi o que aconteceu com K. que mantinha sua

gravidez escondida por ser solteira. Ela foi visitar o tio, que havia sofrido uma picada de

cobra, e seu olhar o fez piorar repentinamente: a ferida que estava quase cicatrizando

voltou a inflamar a ponto do tio ter a perna amputada. Não à toa, quando andam nos

seus varadouros, as mulheres grávidas sempre vão na frente para que os demais não

corram o risco de cruzar com seu olhar envenenado/alterado, noki koma.

33
Literalmente, remoso tem o sentido de gorduroso também para a população regional. Alimentos
ou pessoas remosas são potencialmente prejudiciais para aqueles com a saúde fragilizada. Alguns peixes,
carnes de caça e frutas considerados remosos são interditos por essa razão durante a couvade, a iniciação
xamânica, a reclusão pubertária e os períodos de convalescência.

120
Capítulo 3: Os espíritos auxiliares e o resgate da alma-coração

Regionalmente, o termo arabani recobre sentidos distintos associados à prática

xamânica, a saber: refere-se ao próprio pajé - como entre os Paumari (Bonilla 2007) -;

às pedras xamânicas que compõem e impregnam o corpo do pajé; ao feitiço

materializado; ou ainda, aos espíritos auxiliares. Entre os Jamamadi, o termo arabani é

empregado para se referir somente às pedras xamânicas que conformam o corpo do

inawa, pajé. Por vezes ele pode ser referenciado metonimicamente por suas pedras aona

- equivalente a arabani na língua jamamadi - que compõem seu corpo e operam a

comutação perspectiva que lhe confere sua condição. É menos evidente, contudo, que os

termos inawa ou aona assumam o sentido de espírito auxiliar - inamadi, yamata abono,

dadaba, ai ka yoyose etc -, na medida em que tal categoria abarca entidades cujas

relações com o pajé não são coincidentes. No caso da onça, localizada no intestino, e da

cobra que também vive no interior de seu corpo, ambos espíritos auxiliares, verifica-se

uma correlação com as suas pedras, ou seja, são a forma como se fazem visíveis ao

serem extrojetadas de seu interior. Outros espíritos auxiliares, como as almas de plantas

e os espíritos dos Jamamadi falecidos, são com frequência referidos genericamente pelo

termo inamadi, ou ainda por seus nomes próprios, no caso dos mortos, ou pelo nome da

espécie vegetal; mas não são inequivocamente materializações das pedras ou de

elementos internos ao corpo do pajé, embora sejam entendidos enquanto partes que o

compõem. Tanto os mortos Jamamadi como as almas de plantas habitam as aldeias

celestes, localizadas no primeiro patamar logo acima da terra, e vêm à terra ao

escutarem o assovio do pajé chamando-as ou tão somente ao serem evocadas através do

seu "pensamento", atibodi.

121
Os espíritos auxiliares podem viver no interior do corpo do pajé, como as onças e as

cobras, ou nas aldeias celestes, como os mortos e as almas de plantas. Em ambos os

casos tratam-se de partes que o compõem sem serem por ele englobados. Quer dizer,

enquanto pessoas, os espíritos auxiliares são partes de mesma ordem escalar que o todo

de que são partes, descrevendo uma relação merográfica distinta da ocidental, de acordo

com a qual partes não equivalem nem podem ser tomadas pelo todo (cf. Strathern

1992). Assumindo que as relações são internas às pessoas e constituintes de seus corpos,

aqui como na Melanésia, as pessoas e suas relações revelam uma equivalência que não

permite a hierarquização assimétrica entre partes e todo, uma vez que "uma pessoa é

igual a todas as relações que a constituem: as relações são integrais à sua composição

como um corpo que vive. Este corpo é feito visível pelos seus atos, e pelos atos de

outros, que evidenciam a capacidade das relações, não menos ressaltada na

decomposição ou morte deste corpo - isto é, na desconexão das relações" (Strathern

1991 apud Pinto 2015:77). De qualquer modo, a constituição corporal de um pajé

depende da decomposição parcial do corpo de um pajé mais velho que lhe transmite

suas pedras xamânicas e, eventualmente, seus espíritos auxiliares, elementos que

evocam a relação entre o pajé e seu preceptor. Assim, "persons create others by

shedding parts of themselves and emerge as the completed acts of others by

incorporating their parts" (Strathern 2001: 228).

Conforme dito, o pajé responsável pela iniciação, bem como aqueles que também lhe

sopraram rapé, são lembrados por conta dos vínculos que estabelecem com o neófito na

transferência de partes de seu corpo por meio das pedras xamânicas e, notadamente, dos

espíritos auxiliares. Trata-se de uma relação semelhante àquela descrita por Pinto entre

122
os pajés djeoromitxi, que transmitem armas uns aos outros: "[c]ada pajé [é] composto

internamente de partes de outros pajés: trata-se de uma inscrição corporal cuja origem

não é apagada" (2015:90)34.

Entre os Jamamadi, a onça e a cobra, porém, são partes que somente se destacam

integralmente com a decomposição ocasionada pela morte; aquela, yomahi nemeke, é o

cão de caça que acompanhará as almas dos mortos em sua vida póstuma e não é

transferível. As almas de plantas, por sua vez, podem ser recebidas de um pajé mais

velho, não exclusivamente durante a iniciação. Parece-me que o mais comum é que os

inamadi que trabalham para o pai passem ao filho, nestes casos, sendo este espírito de

planta também um filho do pajé mais velho; a relação entre seus filhos Jamamadi e

planta será consequentemente expressa em termos de germanidade: o pajé chamará seu

espírito auxiliar de ayo, irmão mais velho, e este, de forma correspondente, utilizará o

termo soho, irmão mais novo.

Tika yama anini oka yahateboneni, "eu vou pegar o seu trabalho", é o que dizem no

caso de adotarem um espírito auxiliar, neste sentido, eles serão como seus filhos de

criação, adotados, também considerados como fregueses dos pajés. Dos espíritos

auxiliares, os Jamamadi afirmam serem manifestações do saber vinculado a um pajé, de

modo que quando estes "passam a trabalhar", "acompanhar", "ser a parceira" ou "fazer a

vigilância" de um pajé mais jovem, o preceptor é descrito à semelhança de um professor

que transmite seus conhecimentos. Assim, em comum com outros povos ameríndios das

Terras Baixas, não se trata de uma transmissão oral do saber xamânico do preceptor ao

34
Para uma discussão sobre a composição corporal do pajé djeoromitxi inspirada no contraste e
nos desdobramentos teóricos das etnografias melanésias, remeto o leitor ao texto de Pinto (2015) "Como
possuir uma 'taboquinha': sobre a composição corporal dos pajés djeoromitxi", uma das referências
centrais para a análise deste capítulo.

123
noviço: antes, é a comunicação trans-verbal através da conexão direta com as plantas,

por meio das visões, cantos, transes, etc35.

Gostaria de me deter um momento sobre o uso particular, de importância regional, do

vocabulário relativo às relações de patronagem que não se explica exclusivamente em

suas repercussões e transformações cosmológicas, em especial no caso Paumari, pela

história dos ciclos de exploração da borracha e a economia do aviamento. A ocorrência

entre os Jamamadi dos pares recíprocos patrão/freguês e chefe/empregado limita-se às

conversas com os interlocutores não nativos, uma estrategia tradutiva a que se recorre

para tratar, principalmente, dos vínculos entre os pajés e seus espíritos auxiliares ou dos

espíritos inamadi e aqueles seres, no mais da vezes animais, que agem a seu mando. O

tema, porém, apresenta expressivo rendimento entre outros povos do médio Purus,

destacadamente na análise de Bonilla sobre as relações de adoção e parasitismo entre os

Paumari (2005, 2007, 2016). Embora expressa em termos comerciais, a relação com a

alteridade não se reduz à sujeição, como se poderia pensar diante das descrições que

fazem de si mesmos enquanto "vítimas", "presas" ou "fregueses", pois, mesmo a dívida

ocupando um lugar central nas relações sociocosmológicas ela é o elemento que garante

35
Sobre o aprendizado através da comunicação com as plantas conferir os trabalhos de Tupper
(2002); Jauregui (2011) e Luna (1984, 1992). Os autores chamam a atenção para a noção de "plantas
professoras", "plantas con madres" ou "doctores", parte central do xamanismo ayahuasqueiro, em
particular no aprendizado dos cantos terapêuticos. Jauregui mostra como a capacidade para ouvir,
aprender e cantar os Ícaros, ou melodias xamânicas sagradas, dependem da melhora das faculdades,
sensibilidade e intuição, o que é feito por meio da adminstração de plantas específicas, sendo a ayahuasca
frequentemente tomada como a principal professora (idem:747). No ensaio bibliográfico de Christina
Callicott (2017), a autora menciona diversas etnografias que focam a música como forma de comunicação
entre plantas e pessoas, citando Highpine (2012), dentre outros, para abordar o papel da ayahuasca: "entre
os Runa Napo um dos papéis vitais da Ayahusca é ensinar os humanos acerca das outras plantas... Ela
ensinou às pessoas a prática de sasina [dieta] para que a pudessem usar para aprender a comunicar com
outras plantas além dela" (Highpine 2012:11 apud Callicott 2017:9). Seguindo uma abordagem
fitosemiótica, a autora analisa a aprendizagem xamânica "como um modo de imersão no processo
fitosemiótico através da experiência direta e da interpretação de estímulos fitoquímicos não linguísticos.
(...) Dito de outro modo, uma certa planta pode produzir um único efeito auditivo no aprendiz. Em
seguida, a aprendiz interpreta esse som como o Ícaro da planta e tenta reproduzi-lo numa canção. Deste
modo, o xamã é capaz de inverter o estímulo fitoquímico através da reprodução do seu som característico,
o seu Ícaro. Cantá-lo consiste, por sua vez, em reproduzir o espírito da planta" (Callicott 2017:13-14).

124
o acesso a bens e alimentos, além de uma alternativa à devoração através de proteção,

entendida como processo de domesticação. Voltarei oportunamente a este ponto, o que

interessa, por ora, é mostrar que há uma inversão dessa dinâmica da sujeição e que

"preferindo a submissão à devoração, eles [os Paumari] talvez controlem o perigo da

predação" (Bonilla 2005:59).

Ao abordarem o tema, os Jamamadi são categóricos em afirmar que os animais jamais

acompanham os pajés, e, quando levantam a suspeita de não se tratar somente de uma

presa, bani, atribuem a ação desviante a uma vontade heterônoma, em geral, trata-se do

freguês de um dafi ou do feitiço de um pajé transfigurado ou sob a falsa

aparência/invólucro animal. Se bem que todas as respostas recusam a intencionalidade

perspectiva dos animais, ouvi duas exceções curiosas: i. as almas dos peixes, com

destaque às almas das matrinxãs, aba abono, e ii. as almas dos cupins, mototo abono,

podem, mais raramente, ser espíritos auxiliares dos pajés. Com efeito, a pregnância da

relação com as almas das plantas36, não elimina as possibilidades cosmológicas

ilimitadas das explorações xamânicas, importante frisar que os contornos sociais do

mundo não existem per se, mas dependem inteiramente das relações que o pajé

estabelece, como bem notou Anne-Marie Colpron:

(...) worlds are not permanent entities; they do not stand per se autonomously, but rather
depend on the shamans’ engagement and relationship to them. The shamans reveal these
worlds by experiencing them, actualizing them throughout their lived interaction. In
doing so, they appropriate a positioning among the many existing ones, literally
incarnating these worlds (Colpron 2013:376).

36
Entre os Suruwaha, as almas das plantas silvestres, agabuji karuji, podem agir em benefício dos
humanos: "[a]liados dos kurimia e, em alguns momentos, aliados também dos humanos, os agabuji karuji
transitam no dossel da floresta e caçam os zamakusa. Alguns recebem atribuições especiais: o espírito da
ucuuba, bahihywy karuji, tem o poder de afastar "as dores da raiva" no coração das pessoas". (Aparício
2015:76)

125
A despeito da complexa topologia do jogo de fazer-se visível enquanto uma parte

externa e ser simultaneamente um componente interno do corpo, as almas de plantas

não se confundem com o pajé. Em suas visitas à terra aquelas manifestam-se como

pessoas distintas dele, com uma vida autônoma no céu, mas que mantém vínculos com

este traduzidos em termos de relações consanguíneas de filiação ou de germanidade.

Tanto é assim que na relação do pajé com suas plantas, a forma visível/vegetal terrena,

espécie de avatar, é produzido e reforçado os vínculos de parentesco entre eles.

Também entre os Paumari a relação entre o pajé e seus espíritos auxiliares, itavari, é

concebida em termos de filiação: "Le chamane est le père de l’itavari. C’est comme un

gouverneur. Ce que le chamane lui dira, il doit le faire et lui obéir. Comme un employé.

Les itavari ont très envie de travailler et d’être sous les ordres du chamane (...) (K.,

06/08/02, Santa Rita)" (Bonilla 2007:355). Abordarei com mais vagar as relações de

parentesco com as almas das plantas, aproximando-as das relações com dos animais de

criação e das crianças adotivas.

À noite, o pajé toma rapé no terreiro de sua casa ou se afasta para um caminho mais

distante e assovia longamente algumas vezes chamando suas almas37. Quando as almas

chegam, logo perguntam: "O que aconteceu?". Gostaria de chamar a atenção para as

duas perguntas recorrentes que abrem tais diálogos: tiwa oni?, "qual o seu nome?", e

tika ede oni?, "qual o teu povo/etnia?". A primeira questão pode ser formulada de outras

maneiras como tiwa madi ka oni?, "qual o seu nome de alma?", ou tiwa oni yokana?,

37
Maizza descreve de maneira semelhante as visitas das almas entre os Jarawara: "As almas
descem à terra quando chamadas pelo xamã; ao chegarem, dizem seus nomes e suas “origens”: falam algo
como “eu sou a alma da pupunha que a Hinabori plantou, me chamo Nanafina”. Ou então, “você me
conhece, você plantou pupunha, eu sou filho da pupunha, eu sou seu filho”. As pessoas descobrem novos
nomes nessas visitas e podem trocar com as almas das plantas" (2014:506).

126
"qual o teu nome de verdade?". As respostas para a questão a respeito do nome do

povo/etnia geralmente são respondidas pelas almas com o nome de uma espécie vegetal,

funcionando à guisa dos subgrupos nomeados - discussão desenvolvida no capítulo final

deste trabalho -; já as perguntas acerca dos nomes pessoais, "de alma" ou "de verdade"

são nomes próprios, que particularizam aquela alma de planta, como demonstra o

diálogo abaixo, de N, esposa do pajé D., com uma alma masculina de buriti:

Canto-fala da alma do buriti Tradução

Baya! (assovio)

Tika ede oni? Qual o teu nome?

Owa ede ka oni Yifo abono Eu sou gente-Buriti

Tiwa madi ka oni? Qual teu nome de alma?

Owa oni Atisaikima Meu nome é Atisaikima

Ebeni-ya tiwawinateni? Onde você mora?

Yawinaha-ya neme-ya No céu, no igarapé Yawinaha

Em seguida, o pajé irá relatar o ocorrido. No caso de se tratar de algum parente

enfermo, ele vai entregar a flechinha de feitiço retirada do corpo do paciente ou ele

mesmo irá carregá-la consigo em sua viagem para o céu, onde irá brigar, acompanhado

de seus auxiliares, com aqueles que roubaram a alma. Tais eventos são descritos como a

introdução de uma substância patogênica visível segundo formas distintas, sendo a mais

comum a flechinha sereini, que implica ou tem sua correspondência perspectiva no

127
roubo da alma da vítima, de modo que os pajés vivem estes eventos duplamente: após a

extração do objeto do corpo do doente, ele parte com seus espíritos auxiliares para

manakonebonane38, "vingar-se", "dar o troco" ou "brigar na guerra mundial". Como

abordarei no tópico seguinte, esse conflito é descrito nos termos de uma guerra mundial

entre gentes-planta, na qual se briga com faca, arpão e um arsenal bélico que parece

inspirado nos filmes de ação hollywoodianos.

Jamais escutei acusações de feitiçaria que pesassem sobre os parentes co-residentes. Ao

que tudo indica, os feiticeiros são pajés vivos de outros povos, principalmente os

vizinhos Jarawara e Paumari, ou de almas de plantas selvagens. É razoável afirmar que

os pajés são aqueles que tratam as doenças de awabono, das frutas, um jeito de por em

relevo o meio pelo qual as almas de plantas mais frequentemente atacam os Jamamadi.

Se bem que os feitiços podem ser enviados à distância; a introdução das flechinhas de

feitiço na comida é seu modo mais eficaz. Não custa lembrar que os desdobramentos de

tais eventos implicam que sejam analisados considerando perspectivas não totalizantes

nem coincidentes, pois, na medida em que soprar o feitiço tem o efeito correlato do

roubo da alma-coração, a agressão xamânica decorre igualmente de uma decalagem

imprevisível de pontos de vista.

38
O termo manakone e suas formas variantes nas demais línguas arawá, a saber, manakone -
jarawara; manako - kulina; manakuni - deni; pavakari - paumari, aplica-se a um campo semântico amplo
que se remete à noção de troca, conforme os exemplos a seguir: oka yama manakone datinahi, "qual é o
preço disso?"; oka yama anini manakone datinahi, "pague o meu salário (o preço pelo meu trabalho)";
oka yama hani manakone datinaharihi, " responda minha carta"; tiwanabohani oka soho manakone
nanahabani. Tiwa onahahaboni, "você matou o meu irmão mais novo, eu vou te matar como vingança
(sua morte pagará a dele)"; Deoso ai ka manakone-ya nanahabane, "Deus pagou os nossos pecados". Para
uma análise da categoria de troca e reciprocidade entre os Deni ver "O manakuni dos Deni: prestações e
contraprestações no rio Cuniuá (AM)" (Florido 2013), entre os Jarawara conferir "Propriedade e espaço"
(Maizza 2009:223-227) e entre os Kulina, o capítulo "O manaco na sociedade kulina: dar, receber e
retribuir" (Altmann 1998:43-81).

128
O pajé pode ir visitar as almas sem a intenção de buscar uma alma roubada. No céu, as

almas têm grandes roçados, plantam todo tipo de cultivar e quando estes amadurecem,

em particular a banana comprida, sibati bili, e a pupunha, yawida, eles preparam

mingau de banana e a bebida fermentada de pupunha e convidam seus parentes para

beber e cantar, inclusive os pajés vivos que então aproveitam para aprender novos

cantos - uma vez que cantar não faz parte de sua formação no período da iniciação. As

bebidas são consumidas no terreiro da família que a oferta, esse é um modo de integrar

parentes que vem de aldeias distantes para beber. Segundo a descrição de Salgado no

ritual pubertário de Damaris ocorrido em 2013, pajés e inamadis transitam entre o céu e

a terra para aprender os cantos e participar dos rituas:

O pajé toma sina, rapé, e vai para o céu aprender o wayoma. O que ele canta, ele
aprendeu com os inamadi. É como se ele estivesse no telefone, ele conta o que ele está
ouvindo, o [ritual] ayaka que está acontecendo lá. O chefe dos inamadi autoriza e o
inawa vai aprender o ayaka lá. Quando tem ayaka aqui é igual. O pajé vai para o céu
antes e convida os inamadi. Ele vai pegar “ficha”, pois precisa de autorização para
trazer os inamadi. Eles "filmam" os Jamamadi para mostrar no céu para outros.
Vieram 4 pessoas para filmar a festa de Armando, eles usam uma máquina semelhante
a uma televisão. O cacique geral aqui também dá autorização para eles virem antes da
festa. [Na festa de Damaris], um inamadi tinha o cabelo comprido, loiro, ele era bem
bonito, não usava cocar mas um pano na cabeça. Outro era parecido com os
Jamamadi. Também veio o finado Funaya e o filho do pajé B., o João.

129
3.1 Yamata abono: as almas das plantas cultivadas

Os Jamamadi se referem ao corpo vivo com o termo abono m./aboni f.; de maneira

semelhante, os Paumari chamam o corpo de abonoi (forma neutra do substantivo;

abononi é sua forma feminina e abono, a masculina. Cf. Chapman & Derbyshire 1991).

Entendido enquanto forma exterior ou fisicalidade39; quando falam do corpo, o termo

pode designar mais especificamente o tronco, ou seja, o corpo sem os seus membros

(Bonilla 2007:145). O mesmo termo designa igualmente o que chamamos de "alma",

"duplo", "espírito", "princípio vital" ou "interioridade"40. Os princípios ligados à

animação de um corpo são para os Paumari o sopro e a palavra, va’ikhami e athi, e a

sombra, amokhini, relativa ao corpo em movimento.

Entre os Jamamadi, abono também se refere à forma humana ou duplo dos seres não

humanos, a tradução mais frequente é "alma", ao passo que as almas dos seres humanos

são chamadas de korimari. Assim, um duplo ou forma humana de banana é sibati abono

enquanto a alma de Sonake Jamamadi é referida como Sonake korimari. Quando usados

para os duplos de plantas, o termo assume um sentido derivado ou secundário de

"gente", "povo", "etnia", "grupo local", de modo que sibati abono parece delimitar um

39
A autora faz referência à noção tal como desenvolvida por Descola: "(…) la physicalité concerne
la forme extérieure, la substance, les processus physiologiques, perceptifs et sensori-moteurs, voire le
tempérament ou la façon d’agir dans le monde en tant qu’ils manifesteraient l’influence exercée sur les
conduites ou les habitus par des humeurs corporelles, des régimes alimentaires, des traits anatomiques ou
un mode de reproduction particuliers." (Descola apud Bonilla 2005:169).
40
A autora faz referência novamente à definição de Descola para "interioridade" como uma
"gamme de propriétés reconnues par tous les humains et recouvrant en partie ce que nous appelons
d’ordinaire l’esprit, l’âme ou la conscience – intentionnalité, subjectivité, réflexivité, affects, aptitude à
signifier ou à rêver » à laquelle on peut également ajouter 'les principes immatériels supposés causer
l’animation, tels le souffle ou l’énergie vitale'" (Descola 2005:168-169 apud Bonilla 2007:149).

130
intervalo ou limite semelhante aos "subgrupos"41 Jamamadi. Voltarei ao tema no último

capítulo desta tese. Korimari remete à alma de uma pessoa específica, no exemplo, a

alma de Sonake; por outro lado, abono não tem a mesma precisão, trata-se de um duplo

de banana qualquer – para especificar de que duplo de banana se está falando, é preciso

descobrir-lhe o nome próprio. Por isso, sibati abono é um duplo de banana genérico e

Atiweyelinaha é o nome próprio (feminino) de um duplo de banana particular.

Apesar do incontornável comprometimento com a coerência textual, prefiro não adotar

uma tradução única para me referir ao abono dos seres não humanos, como os cultivares

agrícolas42 yamata abono, a fim de não apaziguar uma dificuldade tradutiva mal

resolvida. Por mais razoável que seja escolher uma alternativa única para traduzir o

termo abono neste caso específico, não me parece desprovido de valor multiplicar as

possibilidades tradutivas - direi, portanto, alma, duplo, princípio vital, espírito - em vista

de recordar a complexidade, ou melhor dificuldade, do seu campo semântico. Quanto ao

korimari dos humanos, assumo a tradução dos Jamamadi que, sem variações

pertinentes, dizem em português "alma" neste caso. O termo também designa a sombra,

o reflexo, as imagens fotográficas e televisivas, de modo que quando se tratar de algum

destes casos e não da alma, pertinentemente, farei a necessária ressalva.

Bonilla (2007) chama a atenção para a polissemia e complexidade que envolve a

tradução e definição do termo abono. Seguindo as pistas apresentadas pela autora,

detenho-me sobre o modo e os contextos de aplicação pelos Jamamadi deste termo em

41
Com o sentido próximo ao de grupo local, consiste no aglomerado de casas de germanos com
seus respectivos cônjuges reunidas em torno da casa do pai, onde também está localizado o fogo no qual
as refeições são preparadas e consumidas.
42
Os Jarawara também chamam de yama korona abono, alma de coisa plantada, os duplos de seus
cultivares (Maizza 2014:503).

131
vista a dar relevo às diferenças sutis de seu campo semântico e ontológico. De acordo

com sua análise, o termo abonoi é utilizado tanto para falar do corpo como da alma, a

parte que depois da morte caminha em direção ao lago dos mortos, Aja’di ka’dako, ou

lago da renovação, cujas águas permitem que a juventude seja recuperada e a alma vá

viver uma nova vida de abundância, imortalidade e ausência de afinidade. Um destino

póstumo diametralmente oposto daqueles das almas Jamamadi: um conflito constante

entre gentes-planta de diferentes aldeias ou "subgrupos", em muito semelhante aos

conflitos intertribais que caracterizavam a vida anterior ao contato, de mortes sucessivas

com deslocamentos para patamares superiores e de abundância apenas relativa - ou

mediante a submissão a um patrão como sua mão de obra. Um traço distintivo são os

tamanhos e produtividade dos roçados das gentes-planta, como tratarei no capítulo

seguinte.

Bonilla afirma que o termo exprime igualmente o todo, a integridade e materialidade de

um objeto ou matéria, assim como o eu, o que lhe é próprio: "[a]insi le terme abonoi

désigne le corps, la physicalité d’un être ou d’un objet. Un objet comme le glaçon est un

abonoi d’eau froide (paha pahisiriki abonoki), de l’eau froide matérialisée" (Idem).

Da mesma maneira entre os Jamamadi, abono designa a "parte principal”, cerne, eixo,

como em sitati aboni ya, “centro da cidade”; kakaro abono, “disco de fuso” e kimi

abono, “espiga de milho”. Também quer dizer “coisa de verdade”, completa, como

yawida abono, fruta de pupunha de verdade, isto é, com semente (ou coração). O termo

boni f./bono m., de forma correlata, é o núcleo de alguma coisa, algo concentrado,

comprimido ou inteiriço como em awabono, "fruta" (lit. "semente de árvores"); fabono,

"gelo" (lit. "semente de água"); hemedibono, "comprimido de remédio" (lit. "semente de

132
remédio"); banibidi bono, "bico de pássaro"; rapi bono, "ponta do lápis"; yiwaha boni,

"panela de barro"; saia boni, "tecido para saia"; neme aboni, "céu inteiro claro" ou

"firmamento" (em oposição a neme sabi, "céu nublado" e neme soki, "céu noturno");

katoso aboni, "cartucho"; ai abono, "nós todos" ou "o conjunto integral dos parentes",

etc. Adiantando um pouco o argumento, o termo bono está presente na palavra que

traduzem como "coração", atibonokori, que é a sede do "pensamento", atibodi, da

"fala", ati, do "sopro vital", hasi, que anima o corpo e, o que interessa salientar neste

ponto, o local no qual está o korimari humano, tanto é assim que o roubo da alma

implica correlativamente na captura do coração. Por esse motivo, a causa do

adoecimento desdobra-se ou é vivida paralelamente: a introdução das flechas de feitiço

e a captura da alma/coração. Daí a ação xamânica ser experimentada em eventos

paralelos: a cura se faz pela sucção do objeto patogênico do corpo enfermo e pelo

resgate da alma/coração na guerra mundial celeste.

Por certo, como notou Bonilla para os Paumari, determinar se abono remete-se ao duplo

imaterial/invisível ou ao corpo material/visível, dependerá se a ênfase é dada a um

aspecto ou outro do ser em questão. Pude notar uma menor ocorrência em utilizar o

termo abono para tratar do corpo em sua integridade, e, do mesmo modo que seus

vizinhos Paumari e Jarawara, os Jamamadi referem-se, no mais das vezes, a partes

específicas do corpo e não ao seu todo. Dada a extensão do campo semântico e

intercambialidade do termo, corroborada na noção de pessoa paumari e sua ontogênese,

Bonilla sugere a tradução "alma-corpo" para abonoi em vista de salientar tal aspecto. O

mesmo poderia ser dito a respeito da noção de pessoa Jamamadi, como ficará claro no

processo de decomposição da pessoa e no destacamento das relações/partes que a

133
compõem43, contudo, a diferença entre abono e korimari insinua a hipótese de se

tratarem de duas almas ou duplos distintos, uma vegetal e outra humana; seguirei

desenvolvendo este ponto no capítulo seguinte.

Quanto ao termo inamadi, ou sua variante madi, escolho traduzi-lo por "espírito". Trata-

se de uma categoria genérica que abarca contextualmente tanto os duplos abono como

os espíritos patogênicos "do mato", kabanika, de aparência humanoide e os dafi. O mais

frequente é que o termo seja aplicado aos espíritos que assediam os humanos flechando-

os com seus dardos envenenados, cuja a presença se faz notar pelo vento, assovio e, no

mais das vezes, pela perda de objetos. Somente de forma secundária, o termo é usado

para se referir aos duplos das plantas, como os duplos dos cultivares agrícolas, yamata

abono, que são os principais auxiliares do xamã. Inamadi não é usado para as almas dos

humanos, mais uma vez, neste caso, utiliza-se exclusivamente o termo korimari.

Cada forma de vida vegetal, não somente as plantas cultivadas pelos Jamamadi em suas

roças e aldeias, é dita possuir um duplo humano, visível aos xamãs e aos mortos,

chamado abono – portanto, o duplo da castanha é o mowi abono; da temida taboca teke,

é o teke abono; do tamino (árvore não identificada), é o tamino abono, etc. Costuma-se

comentar a aparência física desses duplos, seus hábitos alimentares, seu

comportamento, sua força física e seus poderes xamânicos. O mesmo não se diz dos

animais aos quais não se atribui agência semelhante à das plantas; a importância

simbólica deles é limitada a certas espécies e a contextos relacionais específicos. É

importante salientar que a capacidade de assumir um ponto de vista humano não se

43
Escolha análitica que se justifica pela brevidade, ou seria desinteresse, com que tratam a
concepção humana.

134
restringe às espécies cultivadas pelos Jamamadi; pode-se afirmar que, no limite, a todas

as formas de vida vegetais se atribui uma alma, um abono44. Nas palavras de Salgado:

Cada planta tem seu abono como um grande rei. Esse rei é como um capitalista45, ele
ganha muito porque manda nos outros inamadi para que venham pegar os Jamamadi.
As frutas são do chefe, ele olha suas plantas do céu. Nós não temos a funai? Então,
nós temos polícia também. Os inamadi são de muitos tipos, como as etnias, alguns são
maiores e mais altos que os Jamamadi, eles também falam diferente.

Os yamata abono são os duplos das plantas cultivadas tais como sibati abono, alma da

banana, fowa abono, alma da mandioca, koyo abono, alma da macaxeira, sami abono,

alma do abacaxi, irimao abono, alma do limão, etc. O termo yamata refere-se aos

cultivares, sobretudo aqueles plantados nos roçados. De maneira geral, significa

"comestível" ou "comida". Opto pela tradução "duplo/alma de cultivar" para yamata

abono ao longo deste trabalho. E é a relação de criação, nawada (enfatizando a causa

eficiente deste ato) ou nayana (no caso de salientar a causa final), que estabelecem com

estas espécies, que conforma os vínculos centrais de filiação entre as almas das plantas e

o pajé para o xamanismo jamamadi.

44
Cf. Bonilla (2007:296) sobre o duplo jaguar de algumas árvores: "Certains arbres et tout
particulièrement des arbustes et des palmiers épineux non cultivés sont également sujets à la
métamorphose. Tout comme les proies des Paumari, les arbres et plus particulièrement les palmiers
épineux possèdent, eux aussi, une autre forme, qui leur permet d’adopter un point de vue: celui du jaguar,
le jomahihi. Si l’humanité est la forme selon laquelle tous les existants peuvent voir le monde, la «
jaguarité » ou « jaguaritude » est la relation selon laquelle les arbres (ava) peuvent comprendre le monde.
Les Paumari font une différence entre divers types de jaguars: ceux qui sont des transformations d’arbres
(formes jaguars de végétaux sauvages) et les jaguars femelles qui ont un pamoarihi".
45
Apesar da carga semântica de autoridade e controle atribuído ao abono por Salgado, essa não é
uma caracterização recorrente. A tradução me pareceu de valor circunstancial.

135
Fig. 6 Castanheira (mowi) e seu duplo humano (mowi abono)

A distinção entre plantas cultivadas e não cultivadas precisa ser matizada, uma vez que

a diferença entre roça, floresta, capoeira é sempre definida segundo um ponto de vista, a

partir de um sujeito, afinal, as espécies que os Jamamadi não cultivam ao invés de

serem consideradas “selvagens” são igualmente entendidas como cultivadas, apenas o

são por outros seres, em especial uma classe de espíritos chamados inamadi, os espíritos

das cobras, maka, e os dafi. Cultivado e não-cultivado, portanto, não são classificações

absolutas, pois se a agricultura não é um atributo exclusivo dos humanos nas

cosmologias multinaturalistas, a delimitação entre roça e floresta/mato46 depende do

sujeito que classifica, o que sugere a importância de não confundi-los a ponto de criar

uma continuidade perigosa entre espaços habitados por diferentes seres, como bem

lembrou Cabral de Oliveira em sua análise sobre a questão para os Wajãpi: "em um

46
Não se trata de reforçar com essa oposição uma imagem da floresta como ambiente prístino e
intocado. Trabalhos recentes de ecologia histórica (Levis et al. 2018, Clement et al. 2015) tem mostrado
uma imagem antropizada de grande parte das florestas amazônicas. Baseados numa profusão de dados
etnográficos, botânicos, linguísticos e arqueológicos tais estudos mostram que a biodiversidade e sua
distribuição são produtos da ação e ocupação dos povos indígenas que por milênios tem manejado os
recursos florestais, modificando seu meio significantemente.

136
lugar onde a humanidade não é um atributo exclusivo dos homens e todas as gentes

cultivam suas roças, é fundamental cindir o que é roça e floresta para cada sujeito"

(2016:130).

O Winika, cajurana ou cajuí (Anacardium nanum), por exemplo, é associado aos

espíritos das cobras e o Wifi, cedro aguano (Cedrela sp.), é o local onde moram uma

classe de espíritos agressivos e canibais. Não à toa, o Winika abono, as almas da

cajurana, são consideradas perigosas, elas caçam tanto os animais como os Jamamadi,

ambos vistos como presas. Seus hábitos culinários indicam um comportamento hostil;

os pajés dizem que as almas de winika não moqueiam bem sua caça, somente “põem

rapidinho a carne no moquém e logo tiram para comer”. Segundo se conta, um pajé viu

uma alma feminina desta árvore, que havia sido abandonada pelo marido, e enquanto

comiam seu filho melava a cara com o sangue da carne mal assada. Wifi abono, por sua

vez, é uma das almas de planta mais temidas; elas são caçadoras, descritas como altas,

fortes e carecas, não usam roupas, não moqueiam sua carne e matam qualquer um que

cruzar seu caminho usando uma pesada borduna.

Minha análise corrobora o que Maizza nota (2014:504) para algumas espécies não

cultivadas das regiões de várzea, como o boriti, boritirana e o joari, que são cultivos dos

yama - acredito que seja um ser semelhante ao dafi - e dos yama maka que moram nos

fundos de rios e lagos. As árvores da floresta são genericamente chamadas de 'pau

velho', awa bote, segundo os Jarawara, e são associadas às "almas velhas predadoras',

inamadi bote, predadoras dos humanos que vivem em buracos no chão.

A respeito da distinção entre espécies domesticadas e não domesticadas, bem como da

137
pertinência do vocabulário empregado para lidar com o processo de domesticação na

Amazônia, Neves (2017) apresenta reflexões instigantes que levam a repensar a relação

humano-plantas. Inspirado na consideração feita por Lévi-Strauss: "[i]t is not always

easy to distinguish between wild and cultivated plants in South America, and there are

many intermediate stages between the utilization of plants in their wild state and their

true cultivation" (Lévi-Strauss 1952:252 apud Neves 2017:229), Neves desenvolve

algumas ideias sobre a interação entre as populações indígenas e as plantas na floresta

tropical das Terras Baixas da América do Sul. De acordo com o autor, não é possível

desconsiderar os padrões geográficos e ecológicos atuais da distribuição das espécies de

árvores úteis, de maneira a sugerir que noções como "agricultura" e "domesticação" não

sejam exatamente adequadas para compreender como tais práticas se dão nas florestas

tropicais (Neves 2017:229). O autor sugere que a "agricultura não domesticada" foi um

processo importante nestas áreas. Vestígios arqueológicos apontam para hipóteses

segundo as quais antigas sociedades indígenas teriam sido responsáveis pela dispersão

de muitas espécies, notadamente certos tipos de palmeira que, ademais, por sua

abundância revelam uma hiperdominância comparativa (Neves 2017: 232). A partir de

vários exemplos, da castanha do pará, da araucária e do pequi, dentre outros, o autor

mostra que a linha que separa as plantas domesticadas daquelas selvagens não é nítida

na Amazônia. Isso porque, embora haja evidências de que a distribuição de tais espécies

decorra da ação humana, não há novas espécies resultantes deste longo manejo, ou seja,

essas práticas não conduzem necessariamente à domesticação. Em suma: "nor wild,

neither domesticated, these species compose an important part of the symbolic and

economic worlds of past and contemporary indigenous societies in the Amazon. (...) It

is thus impossible to separate the life histories of these trees from the life histories of the

peoples that initially planted and then cultivated or managed them" (Idem:241).

138
A pertinência em recuperar os argumentos apresentados pelo autor se torna relevante ao

considerar a diversidade do manejo das espécies vegetais importantes para os isolados

Hi-Merimã, aqui tomados como um contraponto ou pano de fundo para as práticas

agrícolas Jamamadi ou, de forma mais ampla, para a relação entre os Jamamadi e o

mundo vegetal. De forma sumária, os vestígios materiais encontrados em expedições de

monitoramento organizados periodicamente pela FPEMP47 em território Hi-Merimã

apontam para a itinerância, não exclusivamente sazonal, que resulta na conformação de

algo semelhante a "micronichos de domesticação" - conhecidos regionalmente como

taperas - ou pequenos blocos com concentração de alguma espécies, destacadamente o

patauá, a abiorana, jaci, agaú, várias espécies de cacau do mato, sorva, pequiá, açaí e

bacaba. Não se encontram áreas expressivas de derrubadas, nem mesmo para a

construção de abrigos - no caso dos "rabos de jacu", valem-se de técnicas de encaixe e

amarração sem a necessidade de derrubar as árvores -, portanto, no limite, não se acham

capoeiras "verdadeiras" e as espécies pioneiras que geralmente ocupam tais locais. A

partir do tamanho das árvores mencionadas e sua concentração, vestígio inquestionável

da presença dos isolados, pode-se concluir com qual regularidade a área é frequentada.

O manejo de algumas espécies como é o caso do patauá48, do qual processam diferentes

47
Agradeço ao coordenador da FPEMP, Daniel Cangussu, pelas informações a respeito dos
vestígios coletados nas expedições em território Hi-Merimã e pela disponibilidade em sempre
compartilhar seus conhecimentos sobre os isolados e a botânica da região. Para maiores informações
conferir os relatórios das expedições de monitoramento desta FPEMP para a referência n.13.
48
Talvez o patauá seja a planta mais significativa para os Hi-Merimã tanto pela centralidade na
fabricação dos objetos da cultura material como por fornecer os alimentos base de sua dieta, uma vez que
à diferença de outras palmeiras o patauá libera cachos todo o ano. Do tronco é fabricado o arco; as cepas
das palmeiras jovens são usadas como dardos para zarabatanas; o palmito é consumido; as folhas são
utilizadas para confeccionar os abrigos temporários, os "rabo de jacu", além da cobertura dos
acampamentos maiores. Ainda das folhas fazem panacos e cestos. Os frutos, por sua vez, são consumidos
in natura ou escaldados para extrair o vinho ou o óleo (por vezes comparado ao leite humano por seu
valor nutricional e por ser completamente absorvido pelo corpo humano). A dispersão das sementes pelos
acampamentos e a derrubada dos patauás pela floresta fazem com que essas plantas se concentrem nos
varadouros e acampamentos dos Hi-Merimã. Portanto, monitorar a presença dos patauás é uma técnica
através da qual pode ser compreendido o padrão dos deslocamentos e a territorialidade do grupo.

139
produtos, ou dos vários tubérculos do gênero Cassimirella, regionalmente conhecidos

como "batatões", usados na composição dos chamados "pães de índios"49, mostram que

a noção de agricultura - e nesta mesma toada, etiquetas como "nômade" e "caçador-

coletor" - é insuficiente para lidar com essas outras formas de se relacionar com o

mundo vegetal.

Ademais, nota-se que mesmo a cultura material que não é produzida a partir do patauá possui algum
vínculo com a planta: é o caso das grandes panelas de barro, que podem chegar a 5 ou 6 litros, utilizadas
para armazenar o óleo e o vinho; também os pilões de casca de jutaí, um dos itens mais abundantes
encontrados nos acampamentos, são utilizados para despolpar as sementes do patauá. (Os dados acerca do
manejo do patauá e de outras espécies pelos isolados Hi-Merimã é o tema de pesquisa em ecologia
histórica de Daniel Cangussu a quem, novamente, agradeço pela gentileza em compartilhar estas
informações).
49
O “pão-de-índio” é uma massa vegetal composta tanto da matéria de uma única planta como da
combinação de diferentes espécies. Pode ser produzido a partir do processamento da batata mairá
(Casimirella sp), de amêndoas, a exemplo da castanha-do-brasil (Bertholletia excelsa) e da castanha-de-
cutia (Acioa edulis), de polpas de frutos como o umari (Poraqueiba sericea), o pajurá (Couepia
bracteosa) e o uchi (Endopleura uchi). Das palmeiras também se extrai a massa ou a fécula, com
destaque do babaçu (Attalea speciosa), da pupunha (Bactris gasipaes), do açaí (Euterpe precatoria), do
buriti (Mauritia flexuosa), do tucumã (Astrocaryum aculeatum), do patauá (Oenocarpus bataua) e da
bacaba (Oenocarpus bacaba). Os tubérculos e raízes usados na fabricação eram geralmente ralados em
estruturas espinhosas de plantas como a paxiúba (Socratea exorrhiza), as castanhas e sementes de
palmeiras eram maceradas em pilões, e sementes e batatas tóxicas, além de raladas e maceradas, recebiam
preparos específicos, semelhante ao que se observa hoje no preparo da farinha de mandioca amarga. Na
região do médio Purus, há indícios de que o processamento da raíz da batata mairá, das sementes do
louro-abacate e da faveira da várzea, por exemplo, era realizado por equipamentos apropriados (como o
tipiti), sendo sua fécula submetida a múltiplas lavagens de modo a ser utilizada, dentre outros fins, na
fabricação do pão-de-índio (defumados e enterrados) ou acondicionada em panacos (cestos de palha) e
armazenada nas águas dos igarapés. Depois de pronto, o bolo vegetal era defumado a fim de criar uma
película espessa, uma embalagem eficiente que garante sua conservação por muito tempo. O "pão" era
armazenado na superfície ou enterrado no solo sombreado da floresta. Segundo relato de indígenas e
ribeirinhos do sul do Amazonas, os pães-de-índio eram utilizados como reserva alimentar em tempos de
escassez ou para consumo em viagens, caçadas, pescarias e grandes varações, estando sempre associados
aos varadouros ou trilhas antigas. (Essas informações foram retiradas da nota "Pão-de-índio: manejo e
manufatura na Amzônia", escrita por Daniel Cangussu e Gilton Mendes dos Santos, s/d).

140
Fig. 7 Travamento do rabo de jacu Hi-Merimã
(relatório Igarapé Grande, 2016. Imagem cedida pela FPEMP)

Fig. 8 Moquém Hi-Merimã, interessante detalhe de sua estrutura


sustentada numa árvore não cortada.
(relatório Igarapé Grande, 2016. Imagem cedida pela FPEMP)

Por causa disso, o modo de vida e a atitude Hi-Merimã frente as plantas são alvo

constante de questionamentos por parte dos Jamamadi, na medida em que aqueles

priorizam a relação com as árvores frutíferas, awa, que são entendidas como parte da

categoria yamata, das comidas ou comestível, mas somente enquanto uma variação, de

"outra qualidade", bara50 (bara/bare adj. diferente), quer dizer, os isolados priorizam sua

50
Não poderei me deter na questão da "regressão agrícola" e seus pressupostos, no entanto,
gostaria de apontar que a interrupção das práticas agrícolas concomitante à tranformação dos padrões de
mobilidade entre os Hi-Merimã parece pouco se desviar da trajetoria histórica predominante dos povos

141
relação com os yamata bara com os quais se relacionam em termos distintos daqueles

da criação nos roçados dos yamata yokana, a "comida verdadeira", mais valorizada.

Esta recusa ativa dos vínculos de familiarização com os yamata - de forma alternativa à

domesticação - é um dos meios recorrentes de expressar o cerne das discórdias acerca

do isolamento, pois, inevitavelmente, seus parentes não somente passam fome como

estão privados de um tipo de relação central na socialidade jamamadi plena de

consequências cosmológicas51. Um dos perigos que apontam em suas especulações, é

que sem poder contar com a ação das almas dos yamata abono, os Hi-Merimã ficariam

expostos a agressões xamânicas e, mais grave, não garantiriam sua boa morte com a

passagem à vida póstuma nas aldeias celestes, transformação da condição ontológica do

morto por intermédio das almas de plantas, de modo que permaneceriam na terra

"jogados", vagando sem rumo como espíritos agressivos ai fami prontos a predá-los.

A itinerância Hi-merimã oferece outra perspectiva sobre a agricultura ao por em xeque a

noção da passagem necessária do selvagem ao domesticado, pois, o isolamento não os

por ocasião do contato com os brancos. Não se trata de reforçar um papel unilateral de forças exógenas
para a determinação da condição de isolamento, apenas de salientar que o caso Hi-Merimã parece ser
mais um exemplo da ruptura com o exterior no período do boom da boracha. O abandono das práticas
agricolas foi de par com o fortalecimento do manejo de espécies não domesticadas, saber também
manifesto entre os Jamamadi. Para uma abordagem que oferece um ponto de vista distinto, conferir Costa
(2009),
51
Em novembro de 2016, nos dias subsequentes ao término de uma expedição de monitoramento
da Frente de Proteção Etnoambiental na região do igarapé Mucuim que faz fronteira com a terra indígena
Hi-Merimã surgiu o boato no rádio de que os isolados haviam feito contato tão logo os funcionários da
Funai deixaram a área. Assim que ficaram sabendo do retorno de seus parentes, os Jamamadi se reuniram
em torno do rádio esperando ansiosos por mais noticias. Segundo o relato de um morador da região do
Mucuim, distante vários dias da Terra Jamamadi, toda sua aldeia, apavorada, estava refugiada na escola
temendo o ataque dos isolados. Seriam duzentas pessoas, dentre homens, mulheres e crianças, todos
paramentados como "índios de verdade"; os homens portavam suas armas e tinham uma aparência
particularmente feroz. Naquele momento, os moradores diziam que não iriam atirar nos Hi-Merimã, que
estavam acampados na outra margem do lago, mas que não hesitariam no caso de uma aproximação. Até
a chegada da Funai no igarapé Mucuim, viagem que dura cerca de uma semana partindo do município de
Lábrea, o pânico se instalara e não se falava de outra coisa nas conversas de rádio em praticamente todas
as aldeias da região. Durante esses dias, as lideranças Jamamadi reunidas decidiram organizar uma
comitiva para entregar aos seus parentes Hi-Merimã manivas de mandioca e sementes de cultivares.
"Finalmente, eles poderão voltar a fazer seus roçados", eles diziam com certo alívio. Porém, para
frustração dos Jamamadi, a Funai desmentiu o boato poucos dias depois.

142
privou dos vínculos com as plantas ainda que sua condição pareça configurar algo como

práticas de "antidomesticação". A recusa ativa do contato é correlata à rejeição da

relação com os ditos "cultivares verdadeiros", uma vez que o modo de vida errante é

visto como inconciliável com a prática agrícola e à sociabilidade atuais. Contudo, o

apreço dos Jamamadi pela mobilidade requer que conciliem as práticas agrícolas com o

seu abandono temporário durante o qual os yamata bara, sobretudo as frutas das árvores

não domesticadas, passam a compor a base da alimentação. Não me refiro às expedições

de caça ou às pescarias coletivas, mas às longas viagens empreendidas durante os meses

de inverno para extrair o óleo de copaíba ou as temporadas nas aldeias mais afastadas.

Poderia-se objetar que o abandono sazonal da agricultura com o "resgate" concomitante

das relações com as plantas não cultivadas mostraria uma reversibilidade intermitente

entre sua sociabilidade atual e aquela dos isolados. Não me parece, porém, que os

Jamamadi concordem com essa objeção, na medida em que é através dos deslocamentos

que se aumenta a diversidade agrícola de seus roçados, sugerindo, nada menos, uma

continuidade entre o silvestre e o domesticado.

Voltando aos cultivares agrícolas, a classificação utilizada pelos Jarawara (Maizza

2012) para ordenar suas plantas baseia-se na cadeia hierárquica que as ordena da mais

forte à mais fraca, de acordo com a força associada a sua fisicalidade52 (relativa a seu

porte, o tamanho de seus troncos, a presença de espinhos, etc.) e a sua fisiologia

(propriedades medicinais e terapêuticas). Deste modo, o tingui seria a planta mais forte,

seguida da pupunha, do algodão e, por fim, do cará. As árvores também se

organizariam, da mais forte à mais fraca: siro (uxi), wakaro (não identificada), ora

52
A autora faz referência ao conceito criado por Descola (2005). Os trabalhos de A. Gell, como Art
and Agency (1998), poderiam inspirar uma abordagem conceitual alternativa dos aspectos morfológicos
das plantas não em termos de uma ordenação taxonômica, porém, como índices de suas agências.

143
(jenipapo), mato (pequiá), por fim, o tokowisa (não identificada). A autora nota que a

força de cada espécie influencia no modo como ela será consumida, crua ou cozida.

No caso dos Jamamadi, a experiência pessoal e a relação que se cultiva com a espécie

vegetal individualmente são mais relevantes para definir suas virtudes xamânicas e

características comportamentais. Não há uma ordenação estável que contemple todas as

espécies numa sequência fixa, muito embora elas sejam comparadas e avaliadas de

maneira circunstancial de acordo com sua "força" ou "dureza", kita,53 e aspectos

corporais a fim de escolher a mais adequada para acompanhar o pajé ou para servir de

alimento, cautela essencial para evitar feitiços ou o agravamento de uma enfermidade.

Para resgatar a alma do pai de Ronaldo, que havia morrido em Manaus, foram chamadas

almas de plantas adquiridas na cidade porque elas sabem se deslocar no meio urbano e

se relacionar com os brancos; os duplos do timbó, por sua vez, foram chamados para

buscar a alma de Julião que morrera afogado no igarapé Mamoriá Mirim, pois, eles são

bons nadadores e conhecem os seres que vivem nas aldeias aquáticas. É preciso saber

quais as plantas adequadas para lidar com o modo de vida do agente patogênico.

53
As forma classificatórias mobilizadas pelos Jamamadi valem-se de dados como dureza,
velocidade de crescimento (lento/rápido), a produção de frutos comestíveis, etc. Há ainda um modo de
categorizar as plantas segundo sua morfologia e que se remete ao extenso debate sobre life forms e
classificações etnobiológicas tal como desenvolvido por Brent Berlin (1974,1992), dentre outros, mas
sobre o qual não poderei deter-me. Entre os Wajãpi, Cabral (2016) aborda a multiplicidade das
taxonomias ordenadas segundo diferentes princípios, o que vai no sentido oposto ao de conformar um
sistema de classificação único, seguindo o argumento proposto pela autora, penso que também os
Jamamadi se valem de sistemas concorrentes de classificação, como aquele orientado pela oposição entre
plantado (por eles) e não plantado (plantado pelos inamadi), aquele segundo a posição do duplo humano
da planta num gradiente de afinidade, ou seja, plantas consanguinizáveis e plantas inimigas/canibais, ou
ainda de acordo com seu modo de reprodução, por semente (bono) ou clone (matei)

144
Fig. 9 Badá demonstra o caminhar dos duplos do patauá

As classificações vegetais mobilizadas pelos Jamamadi enfatizam sua força xamânica e

suas características morfológicas e morais, expressas em termos de

bondade/beleza/limpeza, amosa, força/dureza/agilidade, kita ou kitama,

maldade/feiura/sujidade, towe ou amosara, e fraqueza/lentidão, kitare ou

hahamoranaro, de seu duplo humano. As almas boas, bonitas e perfumadas andam

vestidas e paramentadas com ornamentos tradicionais, consomem os produtos do roçado

e alimentos industrializados, compram mercadorias e possuem documentos; as almas

ruins, feias e malcheirosas agem na ilegalidade, andam nuas, comem comida sem

cozinhar ou estragadas e incitam as brigas da “guerra mundial” que está em curso no

céu. As almas ruins, agressivas, em geral, usam armas rudimentares comparadas às

espingardas, revólveres e bombas utilizadas pelas almas benevolentes.

As plantas cultivadas são centrais na socialidade jamamadi, não obstante, a análise deve

145
contemplar as plantas não-cultivadas por eles. Cito a caracterização de alguns duplos de

espécies vegetais não cultivadas em vista de ilustrar este ponto. A alma da taboca de

fogo, afia abono, considerada forte, é temida por emboscar os caçadores no mato e

cortar suas mão, seus pés e seu pênis. Esse caçador precisará do tratamento da alma da

embaúba, boka abono, reputada pajé, que irá costurar seus membros, procedimento

semelhante ao enxerto. Saiha abono, a alma da envira branca, não é um yamata,

contudo, pode ser uma ajudante prestativa. Caso alguém cruze com uma sucuri no

varadouro, ela é a alma mais indicada para matá-la. Saiha abono tem um apetite

insaciável, ela corta a cobra em pedaços com seus dentes e os devora bem rápido.

Entretanto, como saiha não é uma planta domesticada, sua voracidade não está sob

controle do pajé, então, não se pode confiar totalmente nela e sua agressividade pode

voltar-se contra ele. Um episódio vivido numa caçada por Madokihi, contada por seu

filho D., enfatiza tal ambiguidade:

- Eu não posso passar e não tem nenhuma ponte, terei que voltar, disse Madokihi
quando viu uma sucuri atravessa no caminho.
Ele tomou sina, rapé, e pôs sua espingarda de lado. Logo chegou saiha abono e seu
irmão.
-Ah, esse bicho é uma comida boa! disseram os duplos de saiha abono.
Madokihi quis alertá-los:
- Não, cuidado, esse bicho vai matar vocês.
-Vai nada! E os dois caíram na água.
Saiha abono pegou o pescoço e cortou com os dentes. Jogou a cabeça no mato. A cobra
se enrolou nele, o irmão caiu na água para ajudá-lo e cortou a cobra em pedaços. Eles
comeram tudo rapidamente, de uma vez. Quando quase terminaram, Madokihi se deu
conta do perigo que estava correndo e fugiu:
- Eles vão me comer também!

146
Justamente pela centralidade da experiência xamânica individual, as plantas não

apresentam um traço essencial que permita a organização hierárquica fixa independente

da relação estabelecida entre um xamã e a alma de planta. Muitos comentam a beleza da

alma da mandioca, fowa abono, que tem sempre o rosto pintado, usa tanga e braçadeiras

kanamo feitas com penas de arara vermelha. Apesar de não ser considerada forte, a

mandioca é um dos yamata a quem mais se confia a tarefa de levar as almas dos mortos

para o céu. Para alguns, a alma do tucumã, haso abono, cujo espinho é como uma flecha

que provoca doenças graves, pode ser um espírito auxiliar confiável, outros o chamam

de forma incisiva de safado e mulherengo; o mesmo se diz a respeito do duplo do caju54,

ayawa abono, uma alma considerada "boa" mas que pode agir circunstancialmente de

maneira vingativa.

Os duplos das plantas podem passar da benevolência à vingança dependendo da atenção

aos cuidados necessários daquele que a plantou, chamado de abi, "pai". Se o pai cuida

de seus cultivos juntamente com a ajuda de sua esposa e filhos, as almas das plantas

retribuem mandando sua forma vegetal visível produzir frutos em abundância, além de

protegê-los das almas que à espreita para roubar-lhes seus korimari. Conforme me

explicou Sabira:

Adoecemos quando não cuidamos bem das nossas plantas. Não pode maltratar nem
cortar. Tem que cuidar bem. Minha mãe e meu pai cuidam de mim, a pupunha vai

54
Há vários casos de grave adoecimento causado pela ingestão de caju, a ponto de muitos
desaconselharem comer esta fruta no período de convalescência. Certa vez, tive uma experiência
desagradável com o duplo desta planta na aldeia Pauzinho. De madrugada, escutei gritos estranhos e
uivos chorosos do lado de fora da casa onde dormia. No dia seguinte, conversando com meus vizinhos,
contei constrangida o que havia se passado na noite anterior. Constrangida pelo medo que sentira, sugeri
que poderia se tratar de uma onça ou outro animal. Eles descartaram a possibilidade de forma categórica,
pois, para eles era muito claro que se tratava do comportamento típico do duplo do caju, que "gosta de
mangar dos outros". Em virtude do meu interesse insistente pelo tema das plantas, o caju que está
plantado ao lado da casa onde eu vivia quis fazer uma brincadeira comigo. Eles aconselharam fortemente
a plantar minhas próprias árvores e cultivares para que eu tivesse filhos que me protegessem.

147
pensar. Aí, outra alma vem e ela manda embora, diz que não pode mexer com o papai
dela. Também dá muita fruta para não deixar o pai e a mãe com fome.

Moaci plantou uma mangueira há alguns anos, no fundo de sua casa, na aldeia São

Francisco. Contudo, as crianças não a tratavam bem, tiravam seus frutos antes que

amadurecessem, batiam em seu tronco e arrancavam suas folhas. Maka abono, o duplo

da mangueira, ficou com raiva da falta de cuidado do pai e derrubou um dos filhos de

Moaci quando o menino subiu em seus galhos. Ele despencou da mangueira e quase

morreu. A equipe de enfermeiros da Sesai o removeu da aldeia de avião e junto deles,

servindo de acompanhante, foi Iha abono, a pedido do pajé B. Todos os pacientes

removidos da aldeia para serem tratados na cidade vão acompanhados de algum duplo

de planta que ajudará no tratamento; boka abono, o duplo da embaúba, e o kakao

abono, o duplo do cacau, são os que com frequência vão nestas viagens. Desde então,

Moaci passou a ser mais atento com sua mangueira. Além de sua mangueira, Moaci

passou a ser mais atencioso com os pés de cupuaçu, pois, foi uma alma desta planta,

himafo abono, que em outra ocasião ajudou o pajé B. a trazer o korimari de seu neto:

"ele foi à noite num caminho, onde encontrou o parceiro dele, himafo. Então, deu o

nome da criança e pediu para que ele fosse atrás do korimari roubado lá no céu. E assim

foi. Ele encontrou e devolveu".

Mesmo distante, o pajé pode mandar um duplo de yamata para ver como estão seus

filhos, como aconteceu certa vez com André quando estava em uma aldeia dos seus

vizinhos Jarawara e um pajé lhe avisou que seu pai havia mandado um duplo de banana,

chamado de filho da banana porque ela é filho do pajé tanto quanto da bananeira da qual

provém, para ver como ele estava. Batisawa Jarawara foi avisar André que "o irmão

148
dele está aqui, o pai dele mandou ver". Por ora, basta considerar que se trata de uma

relação de co-paternidade entre a planta e sua forma ou duplo humano, abono, e entre o

Jamamadi que a plantou e o duplo da planta.

Em suas viagens à Lábrea, os Jamamadi costumam pedir aos seus conhecidos brancos

filhotes de cachorros, animal muito estimado como criação, além de mudas e sementes

de plantas dos seus quintais55. Esse procedimento, experimento não isento de riscos, é

entendido em termos de adoção, uma estrategia Jamamadi de pacificar os brancos por

meio da criação das plantas que estes cultivam, pois, ao se tornarem seus filhos

adotivos, permitem a expansão da rede de relações e o acesso a conhecimentos

específicos detidos pelos brancos. Quando Badá ganhou uma muda de coco proveniente

do quintal da casa do coordenador da FPEMP, ele se alegrou enormemente e devotava

grande atenção à plantinha para a qual construiu uma cobertura de palha para melhor

abrigá-la do sol quente. Como o cacau trazido pelo missionário há alguns anos, cujo

duplo humano sabe falar português fluentemente porque foi trazido de Porto Velho, a

expectativa é que o duplo humano do coco se torne um espírito auxiliar que ajude com

os procedimentos e meandros da política da Funai, já que fora criado pelo próprio

"chefe dos isolados". Como retribuição, o antigo cacique geral deu uma muda de

pupunha que foi plantada no quintal do coordenador da Frente, de modo que em suas

idas à cidade ele sempre busca ter noticias do crescimento de sua planta. Esse

procedimento se parece com aquele dos Paumari56 que capturam os espíritos vaso em

55
O interesse dos melanésios pelas plantas dos estrangeiros foi notado por Haudricourt: "L'intérêt
des Mélanésiens pour l'étranger 'à cultiver' se manifeste aujourd'hui d'une façon frappante: leus villages
sont réellement envahis par les plantes ornementales américaines, asiatiques ou même africaines. Chaque
fois qu'ils peuvent se procurer la bouture d'une plante nouvelle, ils la rapportent chez eux; ils échangent
celles qu'ils possèdent" (Haudricourt 1964:102).
56
É particularmente interessante o relato do pajé Nonato Paumari sobre as circunstância do
encontro com um de seus vaso, chamado de "coronel da Bahia", na praia de Coroa Vermelha (BA), em
uma viagem realizada à convite do CIMI (Bonilla 2007: 352).

149
suas viagens à cidade para torná-los seus auxiliares através dos quais conseguem obter

informações trazidas de longe, além de outros conhecimentos associados aos brancos

(Bonilla 2007:351-353):

Les vaso sont des esprits auxiliaires pouvant prendre et apparaître sous plusieurs
formes. Leur forme première, comme celle de tous les existants humains et non-
humains, est la forme/essence humaine. Ils sont comme des Jara et vivent dans des
villes, sous les fleuves, dans des immeubles ou des maisons. On peut les croiser à tout
moment, à Lábrea, à Porto Velho ou à Brasília. (...) Les vaso sont tous, pour le moins,
bilingues. Ils parlent portugais, car ils ont l’habitude de la ville, mais ils ont aussi
appris le paumari avec leurs parents adoptifs. Lorsqu’un chamane adopte un vaso,
celui-ci est intégré à la parentèle. Il appellera la femme du chamane « mère » (mia) et
leurs enfants « mes frères » (oigamina).

Fig. 10 Ricardo Jamamadi com pimentão

Outro aspecto a ser considerado, na contramão do olhar desavisado que só encontra

monotonia e repetição, é o apreço pela variedade prodigiosa das plantas ou o prazer da

150
diferença que se dá a ver de forma particular e privilegiada por intermédio delas. As

justificativas que escutei dos Jamamadi para o interesse em conseguir sementes e mudas

na cidade concorda com a explicação dada a Cabral de Oliveira pelos seus

interlocutores Wajãpi que buscavam novas variedades de mandioca em suas idas para

fora da área indígena justamente porque eram diferentes (2006:225):

Nas duas viagens realizadas para as aldeias Arimyry/Yvyrareta e Kura'y, observei


mulheres levando ramas de mandiocas das plantações de colonos da Perimetral Norte,
os quais moram próximos à entrada do rio que dá acesso a Terra Indígena Wajãpi.
Quando perguntava porque elas estavam levando aquelas ramas diziam apenas:
'porque é diferentes'.

Apresento abaixo uma tabela para organizar e sistematizar as plantas mencionadas com

seus respectivos nomes em jamamadi e em português (salvo poucas exceções que meus

interlocutores não souberam informar), bem como algumas das características pelas

quais são conhecidas:

Nome português/jamamadi Características Atributos


laranja benévolo/trabalhador resgate de almas na cidade
limão é muito duro/resistente, tem o resgate de almas na cidade
noko koma
cidra benévolo/prestativo resgate de almas na cidade
sina/tabaco é muito duro/resistente, tem o espírito auxiliar de todos os
noko koma pajés
koko/coco benévolo e hábil com os resgate de almas na cidade
conhecimentos dos brancos.
conhece a burocracia e fala
português

151
fare/açaí trabalha para os patrões no às vezes acompanha o pajé
céu. Manso, não é forte
sibati bonisawaha/ espécie de Manso, não é forte. Adota as acompanha o pajé em tarefas
banana almas dos mortos no céu. simple
motoki/gengibre força descomunal, tem noko acompanha o pajé na guerra
koma mundial
bimeta/pimenta tem noko koma, mata com o acompanha o pajé na guerra
olhar. mundial
himafo/cupuaçu bom parceiro do pajé, não é auxilia nos rituais de cura.
muito forte
ayawa/caju ambíguo, muitos desconfiam não acompanha dos pajé. Seu
do caju consumo é restrito.
kona/timbó forte, pescador. mata com resgate de almas capturadas
choque. por peixes ou perdidas na
água.
konabi/tingui forte/duro, todos os pajés acompanha o pajé. Sempre é
devem plantá-los em seus mobilizado nos resgates na
roçados. água.
bocawa/bacaba fraco não acompanha o pajé
hawa/patauá tem cabelo comprido, raramente acompanha o pajé
agressivo
yawida/pupunha alto e cabeludo como os vem visitar os parentes na
brancos. trabalha com terra e cantar
copaíba.
edehe/urucum É bonito, usa pinturas não acompanha o pajé
corporais. É fraco
imi/inguá fraco não acompanha o pajé
kimi/milho fraco não acompanha o pajé
fowa/mandioca brava benévolo, cria as almas dos bom companheiro do pajé
mortos no céu
sokobono/cupuí fraco ajuda o pajé
wefe/algodão benévolo e responsável pela cuida das almas quando
criação das crianças falecidas chegam no céu
no céu
kakao/ cacao médico, não fala Jamamadi, auxilia na cura das almas
somente português

152
mamao/mamão tem revolver, mas não é pajé raramente acompanha o pajé
samira/abacaxi do mato come comidas cruas, é Em geral não faz mal para os
agressivo. Jamamadi. Caça outros
inamadi para comer.
saiha/envira branca come de tudo, até cobra. Não apetite imoderado,
cozinha seus alimentos. ocasionalmente pode ajudar
os pajés, mas não são seus
companheiros
haso/tucumã agressivo, não se pode Caça com seu arpão
confiar. (espinhos), mata outros
inamadi
homa/bananeira selvagem fraco não ataca os jamamadi
koba/copaíba não é agressivo, são não acompanha os pajés
perfumados. Respeita as
regras de casamento em suas
aldeias. Não se casam com
Jamamadi, só com gente-koba
wakana/andiroba não é agressivo. Também não não acompanha os pajé
se casa com os Jamamadi.
mowi/castanha do pará benévolo não acompanha os pajé
ora/açacu Forte, comparado a um não acompanha do pajé
delegado
wifi/cedro aguano extremamente agressivo e mata com sua borduna e come
forte
afia/sorva agressiva, provoca doenças ataca os jamamadi
barafa/balala (Fagara sp.) agressiva não ataca os jamamadi, mas
não acompanha os pajés
bicafa (Curarea toxicofera) agressiva não ataca os jamamadi, mas
não acompanha os pajés
yakiyokari (não identificado) usa macacão, espécie de não ataca os jamamadi, mas
roupa de polícia com cinturão, não acompanha os pajés
bota e chapéu.
iha (Strychnos solimoesana) raivoso, mas bom pajé principal alma a iniciar os
mortos no céu
weke/seringa agressivo ocasionalmente ataca os
jamamadi

153
fasiroma (não identificado) muito agressivo ataca com sua onça
teke/taboca muito agressivo, tem o noko ataca os jamamadi
koma frequentemente com seu olhar
tofi/cipó ambé agressivo. trata a carne antes caçador, raramente ataca
de comer, come cozido.

154
3.2 Ai korimari: as almas dos mortos

Como dito, os espíritos auxiliares do pajé podem ser os duplos das plantas, bem como

as almas dos parentes falecidos, de irmãos e filhos, principalmente. Na descrição da

visita das almas que abre esta tese, a esposa do pajé D. conversou com o korimari de

seu filho Koeto, que apesar de ter falecido jovem, foi iniciado no céu e hoje acompanha

seu pai. É comum que as almas dos filhos dos pajés sejam entregues aos duplos dos

venenos para serem por eles iniciados postumamente a fim de se tornarem espíritos

auxiliares de seus pais. Foi o que aconteceu com Edmilson, filho do pajé B., criado no

céu pela alma da taioba, makafi abono, a quem também chama de abi, "pai", e depois

entregue ao veneno iha. Assim como Koeto tornou-se um dos auxiliares de D.,

Edmilson acompanha B. para protegê-lo contra a agressão e o assédio dos inamadi.

Abordarei com mais vagar a relação de filiação com as plantas e seus duplos no capítulo

seguinte, por ora, gostaria de destacar a importância e duração da relação de filiação dos

pajés com seus filhos falecidos. As almas dos filhos permanecem zelando por seus pais

vindo visitá-los para ter noticias e protegê-los. Recentemente, após a expulsão do genro

e da filha de D. da aldeia Pauzinho, o pajé caiu enfermo por vários dias. De acordo com

ele, Koeto veio visitá-lo acompanhado de outros duplos ajudantes, todos yamata abono.

Eles estavam vestidos de branco, sugerindo se tratar de duplos de plantas fornecidas

pelos Jara, brancos, pois as plantas dos Jamamadi não praticam a medicina ocidental e

não usam roupas brancas. No dia seguinte, o pajé estava melhor, a alma de seu filho,

com ajuda dos médicos-plantas, retirou várias flechas de feitiço do seu peito e das

costas. Não são poucos os episódios que os pajés contam em que foram salvos graças à

intervenção da alma de um filho falecido. Quando o pajé D. me contou sobre a visita da

155
alma de Koeto, ele se lembrou de como, há alguns anos, a alma de seu irmão, Felipe,

também havia salvado o pai deles, Madokihi, do temido duplo do cedro aguano, wifi

abono:

Papai, Madokihi, foi sozinho para o castanhal. Ele cortou castanha durante o dia todo.
Como estava anoitecendo, ele resolveu dormir no seu acampamento e retornar a aldeia
no dia seguinte. Ele tomou banho, atou sua rede e quando se deitou ouviu barulhos
vindos do mato. O barulho ficava cada vez mais próximo. Aquele era o barulho feito
pela borduna do duplo do Wifi, quando ele golpeia as árvores enquanto caminha. Papai
tomou rapé na tentativa de escapar e ir para o céu, mas, por estar assustado demais,
não conseguiu. Ele sabia que o Wifi estava caçando e que iria matá-lo caso o
encontrasse. Papai tentou chamar algum de seus espíritos auxiliares, só que ninguém
apareceu. Wifi já estava bem próximo procurando por ele quando a alma do Felipe
[oka ayo, "meu irmão mais velho"] chegou para ajudá-lo. Felipe foi criado no céu por
iha abono, por isso, tem o noko koma, muito veneno no rosto. Felipe encarou Wifi e
seu olhar acabou com ele. A alma do rapaz levou seu pai para o céu para que ele
pudesse dormir seguro. No dia seguinte, Felipe o trouxe de volta. Ele morreu há muito
tempo e sua alma foi levada ao céu por fowa abono, alma da mandioca. Agora ele está
sendo criado por um missionário para quem trabalha. Iha, sami (abacaxi) e muitas
outras plantas colocaram pedras xamânicas e sopraram sina, rapé, em Felipe, durante
sua iniciação no céu. Quando morreu, a alma de Felipe chegou muito doente e fraca;
foi um missionário (que vive no céu) quem o recebeu e cuidou dele, alimentando-o
com leite. Eu encontrei Felipe no céu, ele está bonito, parecido com um soldado
porque ele usa revólver.

156
3.3 Inamadi towe: os espíritos predadores

Os espíritos agressivos, predadores, são chamados de inamadi/madi towe. Esta é uma

categoria ampla que abarca os duplos das plantas não cultivadas pelos Jamamadi, as

almas das cobras, maka, os dafi, entidades de olhar patogênico que habitam as ladeiras,

áreas alagadas e o topo de algumas árvores, além de uma grande variedade de espíritos

humanóides disformes, aparentemente almas de antepassados antigos, que perambulam

pela mata procurando vítimas potenciais, em suma, o inventário é extenso, mas talvez o

traço distintivo que as caracterize seja a relação de predação na qual os Jamamadi

ocupam o polo da presa. A delimitação do espaço da aldeia, tabora, e do roçado,

fadara, em oposição ao mato, yama kabani, no qual vivem os inamadi towe e as plantas

não cultivadas - lembrando que a distinção entre cultivado e não cultivado é tênue e que

nem todas estas tem um duplo agressivo - é incessantemente refeito no trabalho diário

de capinar, yowi na, os terreiros e limpar, namosa, os roçados e caminhos da aldeia.

Contudo, os limites entre a aldeia e o mato, ou entre o doméstico e o selvagem, não são

definitivos, pois, pode acontecer de uma espécie considerada agressiva, não

cultivada/plantada, ser encontrada dentro dos limites da aldeia, às vezes, nas imediações

de uma casa e, ainda assim, ser mantida. Aceitando a presença ambígua de uma espécie

que não se sabe quem plantou - quem é o dono -, eles preferem plantar um de seus

cultivares próximo a ela para vigiá-la e proteger os moradores da aldeia a cortá-la.

De modo geral, os inamadi towe são descritos mobilizando as imagens de selvageria

características da vida anterior ao contato com os brancos. Esses espíritos, em geral, não

tem roçados, leia-se, não costumam plantar os mesmos yamata que os Jamamadi, o que

não exclui relações de cultivo com certas espécies, como entre as cobras e a árvore

157
winika, cajurana - da qual se come os frutos com grande parcimônia para evitar irritar as

cobras -, ou entre o wifi, cedro aguano, e um inamadi que vive acampado sob sua copa.

Os riscos de se adentrar um roçado de inamadi é ilustrado no relato contado por

Berinawa sobre o desaparecimento de Bihamarina57 e no relato sobre o pajé Tememaka

ocorrido no mesmo local anos depois:

Bihamari entrou no roçado [descrito como um campo de natureza, localizado na


região da cabecerias do rio Piranha] e desapareceu. Ela carregava seu filho, Labikahi,
antes de entrar no roçado, Bihamarina deu a criança para seu marido que ficou
esperando no caminho que beirava o enorme roçado. Ela foi tirar abacaxis, mas
decidiu ir para o meio do roçado e não conseguiu mais retornar. Eram muitas as
plantas maduras. Ela não voltou, então, o marido foi atrás dela, mas não achou a
mulher e acabou sumindo também. Não sobrou ninguém e até hoje não se sabe o que
aconteceu. O dono do roçado é o wirebodone abono, a alma de um tipo de árvore
cheirosa (não identificada). Ele ficou olhando os estranhos mexendo nas suas plantas
e, quando os viu entrar em seu roçado, os pegou para criar. Ele não é agressivo, não
queria matar Bihamarina. A situação quase se repetiu com Tememaka e suas
mulheres, Koyiri e Tatiawa. Eles estavam com suas filhas, Nakamisaha, Kanamaraha
e seus filhos, Manowe e Atikomo. Yabori também estava junto com eles. Eles
dormiram na beira desse roçado durante uma caminhada. Tememaka e Yabori foram
caçar. Quando chegaram até o meio do roçado, viram cerca de dez pessoas brincando
na copa das árvores como se fossem macacos. Eles batiam palmas. Na verdade, não
eram pessoas, eram espíritos inamadi. Tememaka achando serem macacos tentou
matá-los, porém, Yabori reconheceu serem pessoas e o alertou. Alguns estavam
sentados nos galhos das árvores. Yabori pegou no braço do cunhado para que ele visse
que eles estava sentados nos galhos e que seus rostos estavam pintados de urucum.
Eram pessoas, não macacos. Com medo de serem mortos, ele puxou seu cunhado para
eles irem embora do Wirebodone. Eles arrumam rapidamente suas maqueiras e
partiram.

57
Para uma discussão sobre classificações a partir da oposição plantado/não-plantado e
roça/floresta centrada no sujeito e arranjos circunstanciais, ou seja, não em categorias absolutas, conferir
Cabral de Oliveira (2016).

158
Desprovidos de ferramentas, os inamadi costumam roubar os terçados dos Jamamadi

nem tanto para plantar, mas para fazer arcos, bordunas e flechas para caçá-los. Por isso,

cada vez que um objeto é perdido, responsabiliza-se um inamadi que o teria roubado.

Ao contrário dos espíritos que acompanham os pajés, os inamadi towe andam nus, usam

armas rudimentares e não tem documentos. Os espíritos auxiliares do pajé são como a

polícia que anda sempre armada, protegendo a aldeia e fazendo sua segurança. Elas

agem na "legalidade", pois tem carteira - "além de documento de índio", ou seja, os

adornos plumários, o cocar yaki, em especial -, ao passo que os espíritos predadores

estão sempre a caça dos Jamamadi para lhes roubar a alma/coração para comer.

Novamente, o roubo da alma é duplamente descrito como resultando na captura do

coração da vítima pelo inamadi towe que está caçando e que ao se deparar com um

Jamamadi o verá enquanto animal de caça, bani. O inamadi flecha sua vítima para

comê-la, as vísceras serão postas na beira do fogo para assar, aqui a atenção é dada ao

coração, órgão que precisa ser preservado para garantir a vida póstuma. É preciso que o

pajé recupere a alma/coração antes que este asse ou seja completamente devorado,

ocasionando a morte definitiva da vítima ou a impossibilidade de que possa ser plantado

para germinar nos roçados celestes.

Alguns pajés contam que os espíritos das sucuris, makehe, fazem roçados com esmero,

cuidando para manter os terreiros limpos onde vivem. É preciso ter cuidado quando elas

saem para caçar porque seu olhar é parecido com um imã que atrai suas presas. Manoel

e Makari contam que saíram para tirar macaxeira e banana no roçado que tinham feito

no igarapé preto quando no caminho depararam-se com uma cobra de olhos bem

arregalados. Manoel atirou cinco vezes, porém, os tiros foram insuficientes para matá-la

porque "makehe é como gente mesmo". Passados alguns dias, eles voltaram e

159
encontraram a cobra muito irritada, "fazendo barulho parecido com motor". Dizem que

ainda atiraram algumas vezes e erraram todas elas. Foi somente quando chamaram os

pajés B. e T. que a cobra finalmente foi morta. Manoel adoeceu depois das tentativas de

matá-la, indício de que se tratava de um inamadi e não de uma cobra qualquer. Durante

mais de um mês o pajé Raimundo Soares procurou com seus auxiliares a alma de

Manoel até encontrá-la vivendo nos subterrâneos, wamibodi, capturado pelas almas das

cobras makehe.

Alguns dos duplos das plantas que os agridem com mais frequência são a taboca (tipo

de bambu) de fogo, afia, as tabocas teke, hado (também as variedades hado bili e hado

kosi) e yodo, abundantes nos caminhos próximos aos igarapés; as árvores fasiroma (não

identificada), weke (seringa), wifi (cedro aguano), yowa (bacuri) etc. Com a taboca hado

eram feitas as facas, também chamadas de hado, antes da chegada das ferramentas de

metal, a respeito do duplo desta planta conta-se o mito de hado abono58 - esta versão foi

contada por Daniel - que enfatiza seu apetite imoderado e canibalismo:

Hado abono (alma da taboca com a qual faziam a faca) vivia sozinho em sua casa no

mato. Numa caminhada, ele escutou rapazes, yetene, e moças, atona, brincando de

kakata [brinquedo semelhante a uma peteca] em outra aldeia. Ele resolveu ir até lá e

pedir uma das moças em casamento já que ele vivia só. Ele sabia enganar bem, então,

o pai entregou uma filha sua e deu um paneiro com massa de mandioca. Hado usava

braçadeiras de penas de arara nos braços. Chegando em sua aldeia [ele havia feito uma

canoa de casca de jutaí], ele mandou a moça ir tirar lenha. Quando ela voltou, ele

puxou o cabelo dela, mas a moça achou que ele estava brincando. Então, ele voltou a

puxar seu cabelo só que dessa vez com força. Puxando a cabeça dela para trás, ele

58
Cf. a versão Jarawara do mito na tradução interlinear de Vogel (2012:398-452).

160
cortou seu pescoço com sua faca hado bem afiada. O sangue que escorria, ele aparava

com uma vasilha. No fogo, ele esquentou a massa de mandioca misturada com o

sangue e fez uma farofa. Mas mesmo depois de comer, ele continuava com fome. Ele

colocou o intestino dela no fogo e foi virando até ficar no ponto. Ele comia com as

duas mãos porque tinha muita fome. Em seguida, ele foi desmembrando o corpo da

moça, que era muito gorda. Ele assou suas pernas e braços. Ele comeu tudo. O resto

durou pouco. Ao final de três dias, ele não tinha mais nada para comer e a fome era

grande. Hado abono voltou na aldeia da moça e disse que sua mulher estava

chamando a irmã. Lá, eles assavam muita carne de caça, caititu, queixada, anta, etc.

Quando voltaram para sua aldeia, ele mandou a cunhada ir tirar lenha. Ela foi sem

suspeitar de nada, embora tenha desconfiado ao ver somente uma única rede na casa.

Ela vai acender o fogo e ele aproveita para matar a moça com uma paulada na cabeça.

Hado abono repete a comilança que novamente dura somente três dias. Novamente,

ele vai até a casa de seu sogro dizendo levar um recado da filha. Há muito peixe em

sua aldeia, por isso, a esposa pede para que a outra irmã o acompanhe. Ela vai com

ele, mas assim que chega desconfia que algo está errado, pois vê apenas a rede de uma

das irmãs e ela está fria. Hado abono manda a moça tirar lenha e diz que sua irmã já

está chegando. Ela então descobre os crânios das duas irmãs bem escondidos na palha

do telhado. As lágrimas vem e ela se apavora. Hado chama de novo a cunhada, mas,

ela foge. A moça fura uma de suas canoas e vai embora com a outra. Hado abono

corre para a beira, diz que sua irmã chegou e está chamando. Ela foge e chora em sua

viagem de volta. Hado segue faminto, ele não aguenta e corta um pedaço de si, com

uma vasilha apara o sangue e com ele faz uma farofa. Ele não caça nada, só come

gente mesmo. Não doeu, ele não sente nada. E sua fome continua. Então, ele corta

uma perna e moqueia. Conforme a fome apertava, Hado abono ia cortando partes de si

mesmo para comer. Quando só sobrava um pouco de sua carne, seu cunhado apareceu

e terminou de matá-lo a flechadas. Por fim, o cunhado colocou fogo na maloca de

Hado.

161
Das almas do yowa (não identificada), conta-se que criam onças, mantidas presas com

fortes correntes. Apesar de agressivos, esses duplos não soltam suas onças sobre as

pessoas, mas as levam amarradas em suas caçadas, diferentemente de fasiroma abono

que carrega suas onças nas costas com uma tipóia e as joga em cima de suas vítimas.

Fig. 11 Desenho das almas de Fasiroma com suas onças de criação

162
Capítulo 4: A guerra mundial das gentes-planta

A insistência no discurso pacifista avesso aos enfrentamentos diretos e ao

comportamento guerreiro se expressa na caracterização que fazem de si em termos de

"vítimas"; no passado, dos ataques brutais perpetrados, principalmente, pelos Apurinã e

Juma, contra os quais não lhes restavam alternativa exceto a fuga constante; e, no

presente, dos assédios dos espíritos agressivos inamadi e feitiços lançados pelos povos

vizinhos contra os quais protegem-se com a intervenção de seus pajés, Jamamadi e

Plantas. Neste sentido, o intuito da ação xamânica não é jamais iniciar um conflito, o

que corrobora com a defesa de atitudes mansas e pacíficas, mas, somente responder ou

vingar um ataque externo.

"Aqui ninguém não briga", "antigamente, a gente vivia fugindo", "nós não gostamos de

falar com força/raiva"59, são frases comuns que escutei ao longo do campo, ditas com o

propósito de marcar as diferenças em relação aos vizinhos cuja postura mais combativa

lhes parece repreensível. Porém, destoando das imagens de calmaria e concórdia, há as

descrições contrastantes do conflito sanguinolento em curso no céu que garante, sem

que pese contradição moral, num esforço contínuo, as condições de possibilidade da

59
A "fala com força/dura", ati kita, em oposição a ter uma "fala boa", ati amosa, se remete ao
contraste cada vez mais marcado entre modelos distintos de chefia. O cacique ou liderança deve escutar e
ponderar sobre o posicionamento dos seus parentes nas reuniões, ele se manifesta no início e no final sem
se sobrepor aos demais, sem querer "tomar uma decisão" ou "tomar a iniciativa". Sua opinião importa
menos nesses momentos do que sua capacidade de sintetizar o pensamento dos demais. Tanto é assim que
nas reuniões tem-se a impressão de que ninguém decidiu nada. Os pedidos geralmente são mascarados,
pois seria demasiado ofensivo ser direto. Se alguém convoca uma reunião, ela não acontece ou tarda para
acontecer. É indecoroso querer submeter quem quer que seja a ordens. Da fala do chefe jamais emana
autoridade, caso ele sucumba a tal vaidade, essa é sua ruína. Aqueles que, por outro lado, são impositivos
e irritadiços, falam alto na tentativa de mimetizar o jeito dos brancos, transformam-se em motivo de
chacota e fofoca. Uma das lideranças, certa vez, tentando mimetizar o modo dos brancos de se reunir,
convocou seus parentes a comparecer em sua casa num determinado horário. Evidentemente, ninguém
apareceu. Ele resolveu usar o seu berrante para chamá-los. Seu gesto não poderia ter sido mais
inadequado segundo a etiqueta política jamamadi. Ele soprou muitas vezes, mas, quanto mais ele soprava,
mais as pessoas faziam questão de demonstrar indiferença.

163
vida. As plantas estão em guerra no céu, uma "guerra mundial"60, mas vale dizer que os

conflitos transbordam para os demais patamares e seres envolvendo-os num sistema de

agressão xamânica e vingança infindável. Maizza descreve em termos semelhantes as

relações entre as almas de plantas:

(...) o mundo da gente-planta é, antes de mais nada, um mundo de guerra, de inimigos,


de disputas constantes entre os abono das plantas cultivadas contra os abono das
plantas não cultivadas ou cultivadas por Outros: brigas das yama korona abono [alma
de coisa plantada] contra os awa abono [alma de árvore]. (Maizza 2014:504)

Mais uma vez, os Jamamadi são veementes em dizer que as ações de seus pajés somente

respondem a uma agressão, supondo que não a inicie, muito embora paire incerteza e

ambiguidade nesta consideração como mostram o respeito e a reserva no trato com tais

figuras. De qualquer modo, uma tendência que se verifica, provavelmente, com a

pressão crescente do discurso missionário, é minimizar a ação do pajé ou atribuir a

violência do xamanismo aos seus espíritos auxiliares, ou seja, é como se não houvesse

problema o pajé mandar matar alguém desde que não seja ele próprio a realizar a

execução.

Nota-se a ocorrência dos enfrentamentos desta guerra através dos fenômenos

meteorológicos e celestes: estrelas cadentes são bombas lançadas entre aldeias no céu -

nos dias subsequentes a este evento é comum que muitos caiam enfermos, como

presenciei certa vez, resultado de um desses ataques, ainda que distante ou não dirigido

60
Em outro contexto etnográfico, Marques (2016) menciona que os Hupda, rio Negro (AM),
descrevem alguns de seus conflitos também recorrendo às imagens da "guerra mundial", semelhante
àquela dos brancos.

164
à terra -; ventanias são efeito do pouso e decolagem dos aviões; tempestades, trovões e

raios são explosões.

A expressão "guerra mundial", utilizada em português, embora usada para se referir ao

conflito entre as plantas, não exclui outros seres, apenas enfatiza seus principais

envolvidos ou a fonte de onde emana a violência. É difícil retraçar a origem da

expressão, uma hipótese seriam as imagens de guerra provenientes dos filmes de ação,

até recentemente escassas pela ausência de eletricidade e aparelhos eletrônicos na

aldeia. A fala dos missionários, de origem norte-americana, tampouco é um influência a

ser desconsiderada nesta tradução. As descrições e as imagens se assemelham a uma

guerra mundial por sua brutalidade e dimensão, na medida em que implica diferentes

"mundos", "nações", "povos", "gentes", em suma, plantas, pois, aqui a diversidade

humana é expressa em termos de variações vegetais.

Os recursos bélicos mobilizados não ficam atrás daqueles dos filmes: bombas, armas de

calibres variados, aviões, facas, além das armas tradicionais como terçados, lanças,

zarabatanas, arcos, flechas e, claro, venenos, em particular, aquele que se projeta do

olhar dos pajés que tem o noko koma, o olhar envenenado. A potência do olhar de

alguns duplos de plantas as obrigam a manter os olhos entreabertos e, sem recorrer a

outra arma, sua mirada é o suficiente para exterminar seu inimigo. Nesta guerra de

plantas, teme-se menos ser visto por um jaguar que não conseguir se esquivar e ocultar

da perspectiva predadora de um olhar envenenado de planta, como é o caso da taboca

teke. A seguir, os três cantos xamânicos do pajé Siko, cantados por seu filho Salgado,

descrevem cenas de guerra nas quais o duplo da planta kiya, um tubérculo do gênero

Cassimirela que era consumido antigamente, rasteja com o corpo rente ao chão para

165
ocultar-se no combate; no canto seguinte, o duplo do teke persegue seus inimigos,

abatendo-os com seu olhar; por fim, atacado por sua própria onça de criação, que

carrega consigo na tipóia, a forma humana da planta fasiroma busca por novas vítimas

contra as quais jogará essa onça incontrolável:

Canto-fala de kiya abono Tradução

Oka idi kiya abono Meu avô o duplo do kiya

kanani momowi nawahe passa [rente ao chão] na guerra

oka idi kiya abono meu avô o duplo do kiya

Canto-fala de teke abono Tradução

Ehe teke abono yawamo Ehe, o duplo do teke é inimigo [agressivo]

Wane toki momo winawa Foi atrás [perseguiu] onde eles estavam

Owa dai mowana owawi Eu vou lutar com vocês quando encontrá-los

Dai fori manahi teke abano deitem-se [cair como efeito de seu olhar], disse
o duplo do teke

Ati nawa ati nawahi essas são suas palavras

Teke abono yawamo mowa o duplo do teke luta/ataca, ele é inimigo

Eee-ya dainahi teke abono Façam assim, disse o duplo de teke

Ati wahe "sia sia" teke abono a ati "sia sia" [onomatopéia para a queda], são as
palavras do duplo do teke

166
Canto-fala de fasiroma abono Tradução

Eeeehe fasiroma abono Eeeehe, o duplo do fasiroma

Yome ya hohoro a onça arrasta

Fasiroma abono oohi o duplo do fasiroma chora

Faha neya fasiroma aba na água, o duplo do fasiroma desmaia

Yome ya kakakariwaha a onça atravessa

Fasiroma abano o duplo do fasiroma

Ohini eeya eeya chora assim assim

Fasiroma abano ohini o duplo do fasiroma chora

Kaki timiti-ya kobo você escuta [seu som] chegar

Tirebonane koboti te alcançará

Neya tiwaya yome-ya a onça em você

Kinaribonane atingirá [cairá por cima]

Fasiroma abano hamateni o duplo do fasiroma é raivoso/agressivo

Nos diálogos noturnos do pajé com seus espíritos auxiliares, ele pedirá notícias dos

parentes falecidos e solicitará ajuda caso algum parente esteja enfermo, então, entregará

a flechinha de feitiço retirada do corpo do paciente ou ele mesmo irá carregá-la consigo

em sua viagem para o céu onde irá brigar acompanhado de seus auxiliares com aqueles

167
espíritos inamadi que roubaram a alma. Tais eventos são descritos duplamente como a

introdução de uma substância patogênica visível segundo formas distintas, sendo a mais

comum a flechinha sereini, que implica ou tem sua correspondência perspectiva no

roubo da alma-coração da vítima, de modo que os pajés vivem estes eventos em

referências que não coincidem, embora estejam vinculadas: após a extração do objeto

do corpo do doente, ele parte com seus espíritos auxiliares para manakonebonane,

"vingar-se", "dar o troco" ou "brigar na guerra mundial" e resgatar a alma-coração.

Novamente, toda agressão é uma vingança que se justifica como resposta a uma ação

não iniciada pelos Jamamadi. Jamais escutei acusações de feitiçaria que pesassem sobre

os parentes co-residentes, ao que tudo indica, os feiticeiros são pajés vivos de outros

povos, principalmente os vizinhos Jarawara e Paumari, ou de almas de plantas

selvagens, não cultivadas. Não custa lembrar que os desdobramentos dos eventos

implicam que sejam analisados considerando perspectivas não totalizantes, pois, na

medida em que soprar o feitiço tem o efeito correlato do roubo da alma, a agressão

xamânica implica igualmente uma decalagem de pontos de vista, como dá conta o relato

sobre do pajé Maoyetekanawi:

Quando a fruta cai e fica no chão, nós sentimos o cheiro e vamos devagar procurando,
por isso o pajé recebeu esse nome, Maoyetekanawi [ou seja, trata-se de uma alma de
planta]. O pai dele de verdade morava no céu, mas ele vinha sempre visitar o filho. O
pai dele gostava muito dele. Ele falava para sua mulher:
- Eu gosto muito do meu filho, eu tenho que visitar ele. Eu quero conhecer a mulher
do meu filho [o pai dele é pajé mesmo].
O pai de Maoyetekanawi sempre vinha para a terra soprar nele até que o filho se
tornou um pajé forte e foi para o céu.
- Eu sou pajé de verdade, agora não brinco mais, disse Maoyetekanawi.

168
O pai chamou vários inamadi para ele conhecer. Agora ele não precisa mais de seu
pai. Ele falou para o inamadi [na sugestão de Salgado, que me ajudou na tradução, o
termo "inamadi", neste contexto, poderia ser traduzido por "freguês"]:
- Você pode me acompanhar e acompanhar meu pai também, disse Maoyetekanawi ao
inamadi.
- Papai, você tem que dormir, falou o inamadi para o seu chefe. Eu estou indo embora,
disse a alma. A alma foi embora e o pai de Maoyetekanawi voltou para sua casa.
O pai de Maoyetekanawi escutou uma buzina avisando que teria o ritual ayaka no céu.
Ele resolveu ir e seguiu por um grande varadouro; no meio do caminho ele se sentou
para descansar numa sacopemba. De repente, o pai de Maoyetekanawi caiu na lagoa
ao ser perseguido pelo cão de Kawehe abono, cunhado de Maoyetekanawi, que estava
caçando. Ele tenta se esconder, mas Kawehe abono acha que é uma anta e acaba
flechando-o. Ele vira anta mas não é anta. Kawehe abono leva o corpo do pai de
Maoyetekanawi para comer no ritual do céu.
- Cadê a panela? pergunta Kawehe abono quando chega na aldeia
Eles tratam a carne e comem anta. Só que era o pai de Maoyetekanawi. Na festa
ayaka, Maoyetekanawi pega um pedaço da carne de anta, que era seu pai. Da carne,
sai a voz do pai. Então, o filho cospe. Do corpo do pai só sobrou o coração.
Maoyetekanawi recupera o coração e o leva para o hospital, onde boka abono, o duplo
da Embaúba, vai consertar para ele nascer de novo, como uma bananeira. Ele renasce,
brota de novo. O filho tira dinheiro para pagar o hospital. Depois que o pai saiu do
hospital, Maoyetekanawi vai falar com outras almas para se vingar na guerra mundial.
Ele chama kawehe abono para olhar uma casa [ele engana bem] e prende o cunhado
com ajuda de seus companheiros. Kawehe abono não conhecia cadeia, por isso, não
desconfiou de Maoyetekanawi. Polícia é alma de árvore. Kona abono, a alma do timbó
também ajudou o pajé, ele ficava na porta da cadeia para dar choque, caso Kawehe
tentasse sair. O cunhado ficou cinco anos preso. Quando ele saiu estava muito magro.
Ele não tomava água boa, só água quente e tinham outros castigos [caso contrário, ele
não pagava a morte do pajé]. Ele quase não tinha mais sangue. A alma da embaúba,
boka abono, refez, costurou como roupa, o pai de Maoyetekanawi no céu (Badá e
Chagas, 2015).

Os acompanhantes do pajé devem ser escolhidos em conformidade com a tarefa que

terão que desempenhar, leia-se, eles são chamados tendo em vista suas habilidades

169
específicas para lidar com os inimigos ou as condições em que o enfrentamento

ocorrerá. Se uma alma for capturada na água é preciso chamar almas que saibam nadar;

no caso da alma estar na cidade, uma alma que saiba falar português é a mais indicada.

Os poderes xamânicos estão parcialmente associados às características

morfofisiológicas das plantas, porém, sua ação depende igualmente da relação do pajé

com aquela alma. Não é um dado objetivo, ainda que não inteiramente aleatório.

No relato, boka abono faz novos membros, comparados aos enxertos, no hospital do

céu, para aquelas almas que tiveram seus membros amputados em guerra. Contudo,

boka não é médico justamente porque não é Jara, branco. Por isso, o interesse que

demonstram em cultivar novas plantas, expressa nos termos da adoção, um experimento

de controle e amansamento dos Brancos por meio de suas plantas. Essa é uma prática

importante para o xamanismo, pois através da adoção dessas espécies a rede do

parentesco se estende e outras capacidades xamânicas são acessadas. As almas do

cupuaçu são xamãs prestigiados, porém, não sabem curar as enfermidades dos brancos,

de modo que é preciso adotar espécies provenientes da cidade para que o xamã possa ter

espíritos auxiliares que tenham conhecimentos em especialidades médicas que a suas

espécies desconhecem. As almas do cacau (de uma árvore cuja semente foi obtida em

Porto Velho) costumam ser chamadas para tratar os pacientes internados na Casai de

Lábrea, elas também dirigem um hospital no céu para onde muitos Jamamadi vão em

seus sonhos em busca de tratamento; segundo B., elas são ortopedistas competentes.

Outro caso foi o roubo da alma do pajé Siko por uma alma de seringa, weke abono. O

pajé trabalhava em seu roçado e saiu de casa sozinho, sem os seus espíritos auxiliares.

Repentinamente, Weke abono apareceu e o convidou para ele visitar sua aldeia: "bora na

170
minha casa para comer, naki, "amigo/companheiro"? Depois você volta". Siko deixou o

seu terçado para trás e o acompanhou. Havi araras brincando numa árvore. Weke abono

as matou com sua zarabatana. "Nós vamos comer quando chegar na minha aldeia", ele

falou para Siko. O pajé não desconfiou que weke não estava se referindo às araras, ele é

que seria a refeição. Ao chegarem na aldeia, muitas pessoas apareceram para comer a

arara e nada foi oferecida a Siko. "Ah, naki, a arara é muito pequena", disse Weke

abono. A alma de Weke oferece água para Siko, mas era leite de seringa, não água: "Ah,

esqueci de te dar água". Ele deu um copo com o leite para o pajé beber. Siko se lembra

dos seus vigias, espíritos auxiliares, e logo quatro vieram correndo até a casa de Weke

abono. Siko estava quase terminando de beber o que achava ser água, quando seus

seguranças apareceram e tomaram o copo de suas mãos. O leite da seringa fez mal para

os inamadi que vomitavam muito. "Pajé, essa não é sua casa para você passear", disse-

lhe uma de suas almas. "Eu nunca mais venho para cá", concordou Siko. Weke abono

estava com muita raiva, ele dizia: "quase nós o comemos, devíamos ter matado ele

logo". Todos os que moram naquela aldeia eram Weke, seringa.

Siko foi morto em 2011 pelas almas enviadas pelos pajés de uma povo vizinho.

Segundo seu filho, ele estava no porto trabalhando em sua canoa, sem seus espíritos

auxiliares, quando encontrou um sobrinho carregando um amarrado de refrigerante

[embalagem com algumas garrafas]. O sobrinho ofereceu a bebida a Siko que aceitou

desavisadamente. Em seguida, o pajé se deu conta que tratava-se de um inamadi

disfarçado. Não era seu sobrinho, mas um inamadi enviado para se fazer passar por ele.

Porém, sua alma já tinha sido levada. Siko só teve forças para voltar e avisar seus filhos,

pois, sua "casca" ou corpo já estava vazio. Ele sabia que daquela vez não tinha jeito.

Hika atibodi kitara, "o coração dele não tinha força". A alma de Siko foi comida pelos

171
inamadi e parte do seu coração foi resgatado por suas plantas auxiliares. Algo

semelhante aconteceu com a esposa do cacique da aldeia Embaúba. Ela estava voltando

por um caminho quando encontrou seu filho A., que na época estava vivendo na aldeia

de um povo vizinho. O filho deu um pouco da coca-cola que levava para a mãe beber.

Por sentir saudade, ela estava exposta aos ataques dos inamadi. Na verdade, tratava-se

de um inamadi disfarçado que queria levá-la para sua aldeia. O inamadi com a

aparência de seu filho disse que queria agradecer pelo brinquedo kakaro que ela havia

feito para ele. Logo que bebeu o refrigerante, seu peito começou a doer. Ela chegou em

casa e perguntou pelo filho. Ninguém sabia dele, pois fazia tempo que o rapaz não

aparecia para visitá-los. Os pajés não tiveram tempo de ajudá-la. Até hoje, o filho de

dela é responsabilizado por sua morte, consequentemente, seu trabalho como agente de

saúde indígena, AIS, não é aceito por muitos, que recusam seu atendimento.

172
4.1 Beterina e os médicos Kakao abono

A narrativa abaixo foi contada por Beterina, cunhada (WZ) do pajé B. Há alguns anos,

ela foi removida de avião da aldeia São Francisco por uma equipe da Sesai em virtude

do seu adoecimento repentino. Segundo ela conta, os médicos desacreditavam que seria

possível sua recuperação. Apesar disso, ou justamente por causa do veredito dos

brancos, o pajé B. mandou suas almas de cacau acompanhá-la durante sua internação na

Casai (Casa de Saúde Indígena). "Eles são muito melhores do que os médicos de

Lábrea", o pajé B frisava enquanto sua cunhada me contava sua história. A versão

original em Jamamadi pode ser lida no anexo.

Eu estava doente, desmaiada, por isso, não vi quando embarquei no avião. Quando o
avião chegou em Lábrea, eu também não vi. Não vi pousar. Eu não me dei conta
quando me deitaram na cama do hospital. Eu não vi as pessoas que me levaram para o
hospital. Eu acordei dentro da Casai. Um Jara me levou para a Casai. Me colocaram
deitada numa cama e eu não notei. Eu acordei um pouco e foi ai que eu vi as almas
chegarem, não eram médicos. Eles me chamavam para eu acordar.
- O doutor te deu remédio? as almas me perguntaram.
- Não, ele ainda não me deu remédio.
- Eu vou passar "pomada" na sua perna, na sua mão e no seu nariz. Quando eu passar
o remédio, você não pode dizer nada [para os médicos], falaram as almas.
Uma das almas passou o remédio em todo o meu corpo, no pé, nos braços, no rosto,
no nariz. Depois que ele terminou de passar o remédio, ele ficou no pé da cama me
olhando. Então, de repente, eu comecei a me sentir melhor, a mexer as mãos. A alma
riu.
- Ah, agora estou bem! eu disse para a alma.
- O meu trabalho não é doutor, saúde, eu não sou médico. Essa doença que você tem
não adianta tomar remédio. Você já morreu, o kakao abono me disse. Enfermeira,
doutor, operação, não é meu trabalho. Você sabe quem eu sou? Eu fico perto de você,
eu sempre te acompanho. Eu não sou doutor. Eu venho enviado por outra pessoa, teu

173
cunhado me plantou. B é meu abi, pai.
Essa alma não usava chapéu, ele tinha a franja bem cortadinha.
- Agora eu estou vendo [reconhecendo as pessoas], disse Beterina quando acordou.
Quando ele voltou de novo, o kakao abono, perguntei se ele era doutor e ele disse que
não.
- Agora, eu vou embora para casa do meu pai, você aguarda aqui que nós voltaremos.
Quando eu for embora, eu vou pegar minha dormida.
Mas, ele não voltou de novo.
- Uma mulher parecida com Jara virá te visitar, ela é bem bonita, de cabelo comprido
[a alma do kakao não podia ficar muito tempo]. Eu vou mandar ela vir, falou o kakao
abono e foi embora.
A mulher chegou, pegou a minha mão e perguntou:
- Como está sua doença, melhorou? me perguntou a mulher
- Sim, eu estou melhor, disse Beterina.
-Você não vai adoecer mais, meu irmão que veio cuidar de você?
- Sim, eu vi.
Ela andava muito, saia e voltava [não era como enfermeira, era a irmã do kakao
abono]. Ela foi embora e não voltou. Agora a enfermeira branca mesmo, Jara yokana,
chegou para cuidar de mim.
-Você tomou remédio? falou a enfermeira Jara
- Não, ainda não. Eu não tomei remédio porque você não me deu.
- Nós entregamos o remédio para o teu marido.
- Tua mulher não tem doença não, o médico Jara falou para o Luís, meu marido. Se
tua mulher estivesse com doença grave, nós daríamos remédio para ela. Se tua mulher
se sentir mal, você me chama na minha casa.
- Não, eu não posso ir até a sua casa.
Eu não tomei nenhum remédio, foram as almas do kakao que me ajudaram. O doutor
não cuidou de mim, foram as almas que me deram remédio antes. Eles não voltaram
na Casai. Quando eu melhorei, saí e dormi três dias na casa do missionário.
- Amanhã, vamos voltar para a aldeia, falou o Luís [marido de Beterina].
Essa fruta, awabono, é muito boa para mim, vocês não devem mais comer seus frutos
verdes, nem jogar paus, maltratar, eu falava para as pessoas. Ele estava me
acompanhando na cidade. Eu "sonhei"61 com ele e melhorei. Talvez eles voltaram
antes para a aldeia porque eu não voltei a ver eles. Eu vim depois. Era como um
sonho. Talvez eles estavam comigo e eu não vi. Quando cheguei, B., meu cunhado,

61
Desenvolvi o tema em outro lugar, ver Shiratori (2013).

174
falou que eles estavam comigo. Agora eu conheço as almas do kakao e sei que elas
são boas.

175
4.2 O sonho do pajé B. no hospital celeste da alma da Embaúba

A saúde do pajé B. vinha se deteriorando nos últimos anos, todavia, apesar das

constantes investidas contrárias à sua prática xamânica, ele se esquivava das

recomendações dos missionários e dos parentes crentes que condenavam seus vínculos

com os inamadi e o uso do rapé para seguir discretamente comunicando-se com as

almas dos mortos e das plantas. Sob pretexto de cumprir com suas obrigações - não

somente profissionais, pois alguns também o faziam por motivações religiosas -, muitos

funcionários da saúde indígena endossavam o coro contrário ao uso, que eles chamam

de "abusivo", do rapé e, quando viam a oportunidade, proferiam sermões sobre os danos

que ele pode causar à saúde. Contraditoriamente para muitos deles não causa igual

inquietação os danos rotineiros que a falta de recursos e a estrutura sucateada da Sesai,

de fato, promovem. B. raramente recorre ao atendimento das equipes de saúde tanto

para evitar ser repreendido como por saber que, via de regra, os sintomas são tratados

sempre com o mesmo analgésico. Apesar das minhas insistentes recomendações para

ele procurar os enfermeiros, B. teimava em não fazê-lo. Ele sentia dores constantes e

um cansaço que o impedia que trabalhar em seu roçado, de modo que B. acabava

passando grande parte do dia deitado em sua rede. Contudo, qual não foi a minha

surpresa quando inesperadamente, recebi uma visita sua na época em que estava

passando uma temporada na aldeia Pauzinho, distante cerca de cinco horas de

caminhada desde a aldeia São Francisco, onde B. mora. Fazia menos de uma semana

que não o via, então, me espantei com seu vigor, não parecia que há pouco tempo sua

saúde estivera tão fragilizada. Quis saber se B. finalmente aceitara o atendimento

176
oferecido pelos enfermeiros. Ele negou e passou a me contar que foi graças à viagem

que fizera em sonho ao hospital das almas do kakao que ele estava melhor:

Eu estou melhor, curado, porque sonhei com o kakao abono. No meu sonho, eu fui
para o hospital do kakao abono no céu. Encontrei com a alma do kakao e perguntei
se não haveria hospitais por lá, onde ele mora. Kakao me levou para um lugar onde
me tratou, como nos hospitais dos Jara. Me mandaram para uma sala onde tiraram
as flechas de feitiço, tinham muitas flechas. Quando entrei na sala, tinham duas
enfermeiras, uma delas era irmão do médico kakao que fazia o trabalho, como um
pajé. Ele passava a mão assim na minha canela, perna e pés. Ele tirou flechas bem
pontiagudas. Do peito, das costas e do rosto kakao tirou o feitiço e me mostrou. Eu
estava deitado como no hospital. Quando acordei, estava me sentindo bem melhor
e não demorou para eu ficar forte de novo. Não foi a primeira vez que me tratei
com o kakao, ele é muito bom, melhor que médico! Foi por isso que vim passear
hoje.

177
Capítulo 5: O pajé como modelo do horticultor

A partir da discussão apresentada, faz todo sentido que no entorno da casa de B.,

reputado como um dos pajés mais sábios, cresçam laranjeiras, limoeiros, abacateiros,

bananeiras de diferentes espécies, coqueiros, mangueiras, jambeiros, cajueiros,

açaizeiros, bacabeiras, tucumanzeiros, pupunheiras e palmeiras de patauá; além das

castanheiras, árvores de andiroba, de ingá, de sorva, de cupuaçu, de cupu, de cidra, de

cacau, de cacau “do mato”, de jamelão, de algodão e de castanha de cotia. Há também

buritis, embaúbas, abacaxis, maracujás, melancias, taiobas, batatas e carás, para citar

algumas das plantas que consegui identificar mais facilmente. É chamativa a

proximidade das plantas com as casas, elas crescem formando divisões, circunscrevendo

os espaços dos diferentes núcleos familiares, não como muros alheios e externos – as

chamadas cercas vivas –, mas como parte integrante do parentesco. O que explica

perfeitamente bem o cuidado de Berinawa e do pajé B em mostrar toda variedade do

mundo vegetal quando de minha primeira temporada na área indígena (ver introdução).

Deixar de ver as plantas sob o epíteto “paisagem”, um ruído de fundo das etnografias, é

crucial para o argumento que construo nesta tese. Não almejo voltar ao tema da seleção

antrópica como fator fundamental para construção do espaço, o ponto que interessa por

em relevo é a ausência da objetivação de elementos não-humanos da flora62 que

produziriam um espaço desumanizado, um ambiente composto de singularidades

vegetais, externas às relações sociais. Não há tal paisagem natural tomada como espaço

a-social, inabitado e isolado. Reitero que minha intenção não é ponderar sobre a

62
Os elementos do relevo - tais como as ladeiras, os morros e os vales -, as pedras, os rios, os lagos
e os igarapés tem importância secundária para o argumento.

178
pertinência da noção de paisagem para os povos ameríndios das Terras Baixas da

América do Sul, mas refletir sobre os efeitos teórico-conceituais provocados pelo

reposicionamento das plantas no primeiro plano da análise, sem que estas formas de

vida se subsumam à categoria animal. O experimento proposto vai em outra direção,

consiste em pensar a humanidade a partir dos aspectos materiais, morfo-fisiológicos e

das elaborações metafísicas jamamadi sobre as plantas. A despeito da produtividade

limitada da ideia de paisagem na construção do objeto desta pesquisa, não desconsidero

a importância do prazer estético que os Jamamadi demonstram em contemplar o

desenvolvimento do roçado, em observar que os brotos e botões escondem o vigor das

grandes árvores, em admirar a beleza dos frutos maduros63.

Fig. 12 “Tire uma foto deste caju, ele é muito bonito”

63
Como sugeriu Coccia (2013:212), as questões biológicas são igualmente estéticas quando se
trata de pensar a vida das plantas: "[o] que chamamos crescimento e destruição são as maneiras e as
formas infinitas de dar-se forma. A vida vegetal é o dar-se forma. A vida que se abrevia no dar-se forma
para si mesma. É o lugar onde cada problema biológico é problema estético, e cada problema estético é
problema de vida ou de morte". Em livro recente, Coccia segue o raciocínio: “La plante n’est pas qu’un
transducteur qui transforme le fait biologique de l’être vivant en problème esthétique et fait de ces
problèmes une question de vie et de mort” (Coccia 2016:27)

179
Ao longo dos meses de campo, pude observar o pajé B64 tratar com devoção cada uma

das árvores plantadas no entorno de sua casa65. Ele dizia que elas são seus filhos e filhas

e suas almas deveriam protegê-lo contra o assédio dos espíritos que rondam a aldeia

tentando flechá-lo e roubar-lhe a alma-coração. O duplo da planta, em suas palavras, é

seu segurança, sua vigilância; e sua forma física visível é também um habitante da

aldeia, por este motivo eles faziam tanta questão em apresentar-me suas árvores e

cultivares, bem como seus respectivos donos, desde o início do campo. Cuidando bem

das plantas, elas montarão guarda para evitar a aproximação de espíritos indesejados e

retribuirão com partes de si, a saber, os frutos, as raízes, as folhas – “meu papai cuidou

bem de mim, não vou deixá-lo passar fome”, elas dizem nos cantos (de queima do

roçado)66. Assim sendo, vale para os Jamamadi a caracterização já feita por Maizza

sobre o pajé Jarawara segundo a qual “um bom xamã seria antes de mais nada um bom

cultivador” (2014:506).

Assim, a diferença essencial entre um xamã e os outros Jarawara se baseia tanto na


capacidade do xamã de se comunicar e controlar os espíritos como na quantidade de
plantas cultivadas (isto é, de espíritos-de-plantas com quem pode se relacionar, em
vida ou post-mortem), pois os xamãs devem possuir mais plantas e árvores do que os
não-xamãs, especialmente plantas de tingui. Um homem jarawara "comum" apenas se
relacionará de forma efetiva com os espíritos-de-planta uma vez que estiver morto; já

64
A quem passei a chamar abi, pai, quando uma de suas filhas pediu explicitamente para eu fazê-
lo, nesta altura, todos já se referiam a mim como filha de B., contudo, eu até aquele momento me sentia
encabulada de usar os termos de parentesco
65
A lenha que utilizam geralmente são os restos da queimada do roçado que paulatinamente são
transportados para a aldeia. Recém cortada, a lenha verde além não ser tão adequada para o uso,
sobretudo culinário, é inapropriada do ponto de vista moral. Somente a madeira morta, preparada pelo
fogo pré-culinário da coivara, é que pode ser queimada. O uso de madeira viva/verde é um ato de
agressão contra as almas dessas árvores. Contrariar essa recomendação talvez seria, como apontou Lévi-
Strauss para os Yurok e outros povos da Califórnia, um ato de canibalismo cometido contra o mundo
vegetal (2004[1964]:180-181).
66
O que faz lembrar a lógica da adoção pelos patrões entre os Paumari na qual os filhos atotivos
mantêm, ao mesmo tempo, a posição ambígua de empregados alimentando seu pai/patrão em troca de ser
protegido por ele (cf. Bonilla 2005, 2007, 2013, 2016).

180
o xamã não somente se relaciona com eles enquanto vivo, mas também exerce um
certo controle sobre eles (Maizza 2012:76).

O pajé Jamamadi é o horticultor par excellence: a abundância da vegetação de sua

aldeia é um indício de suas capacidades xamânicas, bem como a dimensão e a

produtividade do seus roçados. É essencial que ele tenha muitos espíritos auxiliares, de

diferentes espécies, visto que cada um é dotado de habilidades e forças específicas, isso

implica dedicar-se sobremaneira às plantas. Os pajés visitam seus roçados diariamente

para limpá-los, para conversar com as almas dos cultivares e para olhá-los, kakatoma,

ação fundamental para o crescimento (ver capítulo 8). A escolha da área para o novo

roçado, a derrubada da vegetação e a queima são tarefas que cabem exlusivamente aos

homens; até o plantio, a participação feminina limita-se aos cantos que são entoam na

beira do roçado, sem adentrá-lo. Chegada a hora do plantio, a área é dividida entre os

membros da família que ali farão, de forma interdependente, o seu roçado. A despeito

de trabalharem juntos, o conjunto total das plantas ou partes que compõe o fadara,

roçado, é referido como propriedade do pai que, no limite, é o seu dono, hiyi.

Preferencialmente, as áreas de roça estão localizadas nos caminhos particulares de cada

núcleo familiar, já que não é recomendado expor ao olhar dos outros os próprios

cultivares. O que explica a desconfiança causada por meus pedidos para conhecer os

roçados, fotografá-los e mapeá-los; contornei a dificuldade parcialmente, oferecendo-

me como mão de obra para ajudar nos trabalhos agrícolas porque, uma vez tendo

plantando meus cultivares naquele local, minha presença se justificaria. No entanto,

digo que a solução foi parcial, na medida em que acabai criando um novo problema,

pois agora com filhos-planta espalhados por tantas roças, minhas obrigações

181
ultrapassaram a capacidade que eu tinha em cumpri-las.

Isso devido ao fato das almas das plantas cultivadas na terra pelos Jamamadi estarem a

eles vinculados por laços de filiação, em outros termos, como seus filhos-planta, é

preciso mantê-los seguros; tanto é assim que é desejável a presença de árvores de

grande porte nas proximidades de um roçado para que protejam os cultivares em

crescimento. As almas das plantas zelam por seus pais e irmãos permanecendo sempre

por perto para impedir que os espectros dos mortos se aproximem para assediá-los, para

afastar os espíritos patogênicos e para matar as almas de plantas mal intencionadas. A

vegetação dos roçados e aquela que cresce em abundância perto das casas são

fundamentais na garantia da segurança de seus moradores, de modo que sua presença

não é nada fortuita. Como me explicou Berinawa: “vocês não tem polícia? Então, essa é

a nossa vigilância”. Em vista disso, o “caos” visual resultado da exuberância da

vegetação que prospera em toda a aldeia não é fruto de negligência, pelo contrário, é

meticulosamente produzido: a presença numerosa das plantas é sinal de prodigalidade,

de potência xamânica e de sucesso na produção do parentesco. À semelhança das

estrategias paumari de adoção/parasitismo, aqui, o cultivo das plantas poderia ser

também uma forma de reverter sua potência predadora a favor dos horticultores

Jamamadi.

Há uma dificuldade conceitual patente na formulação do objeto desta pesquisa. Não há

uma palavra em jamamadi para a categoria “planta”, equivalente ao reino biológico

plantae, ou um termo englobante o suficiente para abarcar a diversidade vegetal67. Seria

67
A ausência de um termo genérico para "planta", categorias com alto grau de inclusão, assim
como para outras categorias taxonômicas abstratas, de ampla aplicação, é mencionado por diversos
autores: conferir para os Krahô (Morim 2017, nota 7), os Huaorani (Rival 2012:133), os Wajãpi (Cabral
de Oliveira 2006), dentre outros.

182
necessário um estudo detalhado com foco nas classificações botânicas nativas e seus

múltiplos critérios taxonômicos a fim de mostrar a inadequação de nossas categorias

biológicas em sua abrangência. Seja como for, os Jamamadi se referem às espécies

vegetais baseando-se em sua morfologia, na associação com espíritos, bem como em

suas propriedades terapêuticas e toxicidade. A distinção mais geral é entre as plantas

que foram plantadas pelos Jamamadi, os yamata, e aquelas que ninguém sabe quem

plantou, quer dizer, que crescem no mato, kabanika-ya, sem requerer os cuidados dos

Jamamadi, como é o caso da maioria das árvores e palmeiras, awa. O mais comum é

que as plantas sejam referidas pelo nome da espécie ou de sua variedade, mesmo em se

tratando dos venenos, cuja categoria mais ampla pode ser referida como tehe, "veneno",

"aditivo", "coisa adicionada" à semelhança do tempero que é acrescentado à comida;

tanto é assim que dizem em português "temperar o veneno". O termo que utilizam para

se referir aos animais tampouco é semanticamente análogo ao reino animalia. Os

animais, em geral os mamíferos, são chamados de bani que também significa "presa",

"caça"; os pássaros seriam bani bidi ou “presas pequenas”; por fim, os peixes são

chamados todos de aba, que também é usado para a matrinxã, espécie paradigmática da

categoria (Viveiros de Castro 2006:327-329).

Neste ponto convém observar as especificidades do xamanismo jamamadi em relação à

"ideologia cinegética" (Viveiros de Castro 1996, 2002, 2015) basal da metafísica da

predação, manifesta na valorização da figura do "animal" - não de quaisquer animais

mas daqueles cujo valor prático e simbólico são notórios - e na conexão ou continuidade

entre xamanismo, guerra e caça. No que se refere à articulação entre xamanismo e caça,

bem como os desdobramentos da atividade cinegética humana em guerra enquanto

inversão perspectiva do ponto de vista das presas (Lima 1996, 2002), evidencia-se a

pregnância simbólica da caça enquanto aspecto essencial na formulação do

183
perspectivismo ameríndio. Não se trata, porém, de problematizar a atribuição de

intencionalidade humana aos animais à exemplo de outras cosmologias que negam tal

capacidade aos não-humanos fora do registro mitológico (Overing 1985:249 e ss

1986:245-246 apud Viveiros de Castro 1996), embora esse também seja o caso dos

Jamamadi. Mas de reconsiderar o animal enquanto "protótipo extra-humano do Outro"

(Viveiros de Castro 1996:120) ou que o modo anímico seja característico das

sociedades onde o animal é 'foco estratégico de objetivação da natureza e de sua

socialização" (Descola 1992:115), pois o que se segue é a desvalorização do papel das

plantas68 restritas aos domínios da convivialidade e da produção do parentesco, em

suma, à esfera do idioma da consanguinidade. E na mesma levada, o silêncio reiterado

sobre a floresta e as áreas de capoeira, como se as espécies "selvagens" estivessem

desprovidas de importância simbólica, prática e ecológica. Portanto, no esquema

relacional agonístico de predadores e presas no qual a afinidade é a língua franca, qual

poderia ser o papel das plantas?

Sabe-se que o perspectivismo não se aplica a todos os animais, mas incide mais

frequentemente sobre as espécies de grandes predadores, como onças, serpentes

constritoras e aves de rapina, e animais carniceiros, como urubus, bem como sobre as

presas dos humanos, como queixadas, caititus, peixes etc. Por não se aplicar igualmente

a todos os animais, focando-se na dimensão relacional entre presas e predadores, a

predação constitui o contexto pragmático e teórico propício ao perspectivismo (Viveiros

de Castro 2002:353). Não obstante a presença das plantas indelével nas cosmologias

ameríndias, seu lugar é coadjuvante nas análises, quando não ocupada por uma versão

animalizada. Considerar as espécies vegetais implica em relativizar valorização

68
Excetuando-se as chamadas "plantas de poder" de efeito alucinógeno, cujo interesse pode-se
dizer, deriva de seu uso xamânico e cinegético.

184
simbólica da caça em detrimento da horticultura, pois o peso cosmológico conferido aos

animais obscurece, torna secundária ou derivada a espiritualização das plantas - o que

não se aplica a todas as plantas como registra Viveiros de Castro na seguinte nota: “nas

culturas da Amazônia ocidental, em especial naquelas que fazem uso de alucinógenos, a

personificação das plantas parece ser ao menos tão saliente quanto a dos animais” (idem

:357, nota 14).

Dentro do quadro analítico perspectivista, a apreensão das plantas reproduz as

qualidades lógico-simbólicas animais a despeito de suas diferenças práticas-sensíveis.

Ocorre que no xamanismo vegetal jamamadi, o animal tem uma relevância reduzida se

comparada às plantas, cultivadas e não cultivadas, e o pajé não é o caçador, mas a

imagem máxima do horticultor; o que requer reconsiderar a lógica venatória que

permeia a descrição da prática xamânica em geral. Mostrei que as plantas podem ser

caçadoras e guerreiras: predam os animais e os humanos, lançam seus projéteis de

feitiço para roubar-lhes a alma-coração que será devorada, brigam na guerra mundial

valendo-se de poderoso arsenal bélico, em suma, os Jamamadi são claros em afirmar

que a potência predatória de algumas plantas, como a árvore wifi e a taboca teke, é mais

temida que aquela do jaguar.

Rapidamente, também no trabalho agrícola o pajé tem papel crucial nas diferentes

etapas: da escolha da área a ser derrubada ao trabalho diário de cuidar do cultivos. Sua

intervenção é fundamental no período de abertura do futuro roçado (a escolha da área, a

derrubada da cobertura vegetal e a queima) no qual a participação feminina é limitada.

A presença das mulheres da parentela do pajé, dono do roçado, será crucial na queima,

pois são os cantos femininos que chamam as almas das plantas alimentares yamata

185
abono para viver no roçado, garantindo sua fertilidade. Os homens preparam a futura

aldeia das plantas, perfumando-a com as cinzas e limpando-a das plantas indesejadas. O

papel masculino no plantio e na colheita são restritos se comparados ao trabalho diário

de cuidar das plantas do roçado e acompanhar seu crescimento, ação imprescindível

para assegurar sua boa produtividade. Chaumeil (1985) descreve situação semelhante

para o pajé yagua: "la contribution active du chamane yagua à la fertilité du sol, au bon

rendement des essarts, à la protection des espèces cultivées confirme son rôle-clé dans

le dispositif symbolique de production et de reproduction des ressources du groupe"

(idem:233).

Voltando à formulação jamamadi das relações humano - plantas no contexto

perspectivista, se o "protótipo extra-humano do Outro" não é o animal, mas a planta, a

relação venatória-xamanística deve ser repensada em vista de outra conceitualização ou

reposicionamento das categorias em questão (lembrando que “animal”, “vegetal” e

“humano” não subsumem exatamente os mesmo conteúdos que nós supomos)

equacionando-as no contexto de um xamanismo vegetal. Porém, se as plantas são o

ponto de partida da reflexão, não me parece suficiente substituir “animal” por “vegetal”,

recalibrando e fazendo os devidos ajustes das ferramentas conceituais, uma vez que as

consequências espraiam-se para as narrativas míticas, entendidas como processo de

especiação, e os desdobramentos escatológicos, um retorno ou reecontro do tempo

anterior às diferenças instituidas pela mitologia, notável na atração dos mortos pelos

corpos vegetais.

Vejamos o que a mitologia pode acrescentar ao argumento (ver adiante capítulo 9). As

narrativas míticas descrevem um estado originário de indiferenciação entre os seres

186
humanos e os animais (outros seres e fenômenos podem ser incluídos). Cada espécie de

ser aparece para si como humana e assim é vista pelos outros seres, apesar de já

manifestar alguns de seus traços distintivos e definitivos enquanto espécie animal,

vegetal, fenômeno meteorológico etc. Tal diferenciação entre natureza e cultura não é

um processo evolutivo que parte do animal para o humano, ou seja, que atribui

precedência lógico-temporal à vida animal. A mitologia ameríndia trata, em geral, como

os animais perderam os atributos que foram mantidos pelos humanos. Nestas

transformações a animalidade não é tomada como a condição original partilhada por

humanos e animais, ao contrário, a humanidade é que constitui a condição basilar da

existência. Seguindo essa formulação, parte do perspectivismo multinaturalista

(Viveiros de Castro 1996, 2002), os humanos seriam aqueles que continuaram iguais a

si mesmos, por conseguinte, os animais seriam ex-humanos, e não os humanos ex-

animais. Introduzindo a categoria “vegetal” na formulação desta premissa, chegaríamos

à versão jamamadi segundo a qual os animais são ex-humanos e os humanos seriam ex-

plantas.

O desenvolvimento do raciocínio permanece o mesmo para a categoria animal

equacionada à categoria humana, porém, ao incluir as plantas a premissa é

substancialmente alterada. A humanidade não é a matéria da qual teriam se originado os

demais seres, de acordo com a mitologia jamamadi: os animais são aqueles que

perderam sua humanidade e os humanos são aqueles que perderam a perenidade

característica e definidora da existência vegetal. Contudo, segue valendo a distinção

proposta por Descola segundo a qual “o referencial comum a todos os seres da natureza

não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição” (Descola

apud Viveiros de Castro 2002:356). Esse esclarecimento é central, não está em operação

187
uma lógica histórica-evolucionista, não basta atribuir precedência às plantas sem

questionar o que se entende por humanidade. A condição humana enquanto ideal moral

persiste como a constituição basilar em operação, não a humanidade enquanto espécie.

A particularidade da formulação do perspectivismo em termos jamamadi é que a

condição humana adviria das plantas, leia-se, a vegetalidade é a condição original

comum a humanos, animais e vegetais. Se a humanidade (dos humanos) não é a

substância primeva, na época do fluxo contínuo que permitia a comunicação irrestrita e

a metamorfose, a partir da qual teriam se originado todos os seres do universo, qual

seria a natureza dessa vegetalidade humanizada? Em que termos os Jamamadi formulam

essa continuidade e qual as consequências ontológicas que se impõe ao seu modo de

vida atual? Quais as implicações conceituais resultantes de se pensar uma ontologia que

não considera a humanidade como seu alicerce? Adiantando um pouco o argumento que

apresentarei adiante, tendo sido outrora planta, os Jamamadi ainda manifestam

resquícios dessas características em sua onomástica, no processo de construção de seus

corpos com substâncias vegetais durante os períodos de reclusão, no parentesco

cultivado através das atividades agrícolas, na prática xamânica, nos rituais funerários

etc.

O exemplo do pajé jamamadi é eloquente porque sua ambivalência ou a capacidade de

perspectivar-se a si mesmo (Lima 1996, 2002) é a atualidade da diferença vegetal

original, oculta ou somente pressuposta como destino póstumo aos não iniciados,

através da consubstancialidade parcial com as plantas venenosas. O olhar envenenado

do pajé Jamamadi é a manifestação da face vegetal da humanidade; que em sua

atualização controlada é a condição de possibilidade da política cósmica. A vegetalidade

188
ou dimensão vegetal do humano, mantida como um fundo virtual, espitiritual e celeste,

também se revela no fato escatológico de que o fim que aguarda os Jamamadi é ser

plantado nas roças das almas de plantas, ser por elas criado e com elas se casar, em

concordância com o argumento, morrer é devir-planta. Tomando a liberdade de

substituir onde havia "animal" por "planta", adapto as linhas abaixo de acordo com a

versão jamamadi. Há uma modificação extra a ser feita, pois trocar "animal" por

"planta" é apenas a metade da história. Para ser precisa, a especiação deve considerar o

fato da hominização ser dependente da vegetalidade que a antecede para o caso

Jamamadi, ou seja, a humanidade pertence às plantas e dizer-se "homem" é um atributo

embaraçosamente derivado delas. Sendo assim, modificando o trecho com as palavras

em itálico - sem a pretensão de sugerir tratar-se de um fenômeno de alcance maior que

sua pertinência para os Jamamadi e talvez outros povos arawá -, temos:

Como todos os humanos eram plantas no começo de tudo, todos os homens serão
plantas no fim de cada um: a escatologia da (des)individuação reencontra a mitologia
da (pré-)especiação. Os espectros dos mortos estão, na ordem da ontogênese, como as
plantas na ordem da filogênese: “no começo, tudo era gente…”. Não é de surpreender
portanto que, enquanto imagens definidas por sua disjunção relativamente a um corpo
humano, os mortos sejam atraídos pelos corpos vegetais; é por isso que, na Amazônia,
morrer é transformar-se em uma planta: se as almas das plantas são concebidas como
tendo uma forma corporal humana prístina, é lógico que as almas dos humanos sejam
concebidas como tendo um corpo vegetal póstumo, ou como entrando em um corpo
vegetal que será eventualmente morto e comido pelos viventes. (Viveiros de Castro
2015:288)69

69
Trecho original: “como todos os animais eram humanos no começo de tudo, todos os homens
serão animais no fim de cada um: a escatologia da (des)individuação reencontra a mitologia da (pré-
)especiação. Os espectros dos mortos estão, na ordem da ontogênese, como os animais na ordem da
filogênese: “no começo, todos os animais eram gente…”. Não é de surpreender portanto que, enquanto
imagens definidas por sua disjunção relativamente a um corpo humano, os mortos sejam atraídos pelos
corpos animais; é por isso que, na Amazônia, morrer é transformar-se em um animal: se as almas dos
animais são concebidas como tendo uma forma corporal humana prístina, é lógico que as almas dos
humanos sejam concebidas como tendo um corpo animal póstumo, ou como entrando em um corpo
animal que será eventualmente morto e comido pelos viventes.” (Viveiros de Castro 2015:288)

189
Assim, um dos objetivos desta pesquisa não é pensar o que as plantas possuem em

comum com os humanos, uma vez que a categoria vegetal não está subsumida à

humanidade, mas justo o oposto, o problema está em contra intuitivamente refletir sobre

o que os humanos possuem em comum com as plantas. A existência vegetal precede a

humanidade, que lhe é tributária. A antropologia jamamadi é concebida como fitologia,

as plantas não se reduzem a uma fonte de inspiração, a forma de vida preferida dos

poetas, porque a imagem do pensamento é vegetal, dito de outro modo, pensa-se como

planta na medida em que se pensa na forma-planta70. Tomando como um aspecto

constituinte da sociocosmologia jamamadi a afirmação que as plantas são gente, é mais

interessante pensar as implicações dessa premissa. No entanto, essa é uma premissa

parcial do problema, pois, o que se entende por humanidade também está em jogo. Que

as plantas sejam humanas implica em situações já bastante desenvolvidas pelo

perspectivismo, mas, o argumento avança para uma direção insuspeita. Não basta

mobilizar o argumento segundo o qual a planta é humana porque tal condição estaria

inscrita no passado mítico, sua precedência lógica modifica a ordem das cartas

conceituais. Não se trata apenas de um problema perspectivista: se as plantas são

humanas então como relacionar-se com elas? Pois, sendo os Jamamadi, em alguma

medida, plantas também, o que isso modifica na relação?

70
Se, de acordo com a hipótese que proponho, as plantas são a forma primária da existência, a figura
prototípica de sua alteridade poderia ser o tempo?

190
Capítulo 6: Um xamanismo sem xamãs?

Sem entender exatamente a natureza de meu trabalho, B., a princípio, conversava

comigo supondo que eu me interessava sobre os assuntos recorrentes das conversas que

ele tinha com os Jara: o trabalho para os patrões, a vida antes da chegada dos

missionários; o passado de guerras contra outros grupos indígenas; as perseguições e os

ataques que sofriam de povos canibais, sobretudo, os temidos Juma; e as epidemias que

dizimaram praticamente todos os grupos que viviam nesta região. Ao passarmos a

conversar sobre o roçado, as plantas da aldeia e as almas das plantas, o tom mudava

completamente, as respostas eram breves, no mais das vezes, B. desviava do assunto.

No início, as tentativas de conversar com outras pessoas sobre as plantas e seus abono,

raramente eram bem sucedidas, os mais jovens se constrangiam dizendo ignorar tais

assuntos; outros me sugeriam conversar com B., afinal, “ele é o nosso inawa, xamã, e é

bote, velho”; poucos homens falavam abertamente sobre as plantas, contando-me como

a alma de determinada planta é amosini, “boa”, porque estava criando o filho falecido

de um parente, ou como a alma de outra planta é uma boa ajudante do xamã,

acompanhando-o em busca dos korimari capturados pelos espíritos inamadi. A

resistência de B., porém, não durou muito, ainda mais porque eu residia com sua família

e por mais que ele não quisesse me contar, no começo, sobre suas atividades xamânicas

e espíritos auxiliares vegetais, tudo era realizado na minha frente, sem grande

preocupação em manter segredo. Eu o via conversando à noite, no terreiro,

aparentemente sozinho; as famílias dos doentes o chamavam para que ele os curasse e

B. consumia enormes quantidades de rapé. Foi por ocasião do ritual de saída da menina

191
que estava em reclusão pubertária que a disposição dos meus anfitriões para falar sobre

plantas e xamanismo mudou.

“Nós gostamos do rapé que você nos traz da cidade, não deixe de trazê-lo quando voltar

para a aldeia, mas não conte para ninguém do outro lado da pista (de pouso)”. Essa foi

uma das muitas recomendações que recebi nos primeiros meses de trabalho de campo a

fim de manter o bom convívio com os missionários que atuam entre os Jamamadi. As

latinhas de rapé com imburana, menta, canela e cravo eram uma novidade inesperada

para eles, que não imaginavam que alguns Jara de longe também produzem e

consomem o tabaco em pó. Sabendo do uso disseminado do rapé pelos povos indígenas

que habitam a região, levei de presente algumas latinhas do rapé produzido no estado de

Minas Gerais, sem saber se eles iriam apreciá-lo; minha intenção era somente

apresentar-lhes essa variação como uma curiosidade. O rapé saborizado foi usado

principalmente para “temperar” aquele produzido na aldeia e apenas foi consumido puro

na falta deste, sem dúvida preferido em relação à versão enfraquecida dos Jara. A

presença assídua da missão, porém, passou a afetar o cultivo do tabaco e, por

conseguinte, a produção de rapé havia se reduzido a ponto da demanda pelas latinhas de

Minas passarem a ser diárias e meu presente, insuficiente para atender a tantos pedidos.

Ademais, inadvertidamente, a escolha do presente revelara-se oportuna, pois, com a

aproximação de um grande ritual pubertário, no início do verão de 2013, e sem o tempo

necessário para produzir o rapé para o consumo dos pajés convidados para cantar, as

latinhas garantiriam a condução adequada do ritual.

Na época em que este conselho me foi dado, a disposição e a organização geral da

aldeia orientavam-se a partir da pista de pouso que separava a maioria das famílias

192
Jamamadi das casas da Missão. Os do outro lado da pista que não poderiam saber do

rapé incluiam também aqueles Jamamadi cujas casas avizinhadas das dos missionários

evidenciavam uma maior proximidade com eles.

O pastor e o empregado responsável pela manutenção da infraestrutura da Missão - pista

de pouso, gerador de energia, poço, casas, igreja e escola - eram alguns dos que

empenhavam-se em difundir o evangelho entre seus parentes tanto nos cultos como na

vigilância de seus comportamentos. Ambos eram remunerados para exercer tais

atividades e referiam-se a elas, em português, valendo-se dos termos “trabalho” e

“emprego”. O discurso missionário ao insistir nos malefícios do consumo do rapé

atingia diretamente as práticas xamânicas para as quais o tabaco tem um papel

fundamental entre os Jamamadi, e alhures. Meu presente pôs às claras a situação

delicada de um xamanismo que resiste através do esforço constante de ocultamento e de

negação de sua existência. Pode-se dizer que a estrategia de esquivar-se ao olhar

externo, de passar despercebido dissimulando e empalidecendo a própria indianidade

aplica-se amplamente a um “modo de ser” jamamadi.

Sob pretexto dos supostos efeitos nocivos causados à saúde pelo consumo do tabaco, o

discurso missionário repreende e ataca o uso desta substância, afetando

consideravelmente o trabalho dos pajés e a realização do calendário ritual. Eles contam

ainda, repito mais uma vez, com o respaldo de muitos funcionários da saúde indígena

que, movidos por razões não menos religiosas, pregam incessantemente em favor do

"bem estar" e da "adotação de hábitos mais saudáveis", não traduzidos, por exemplo,

num estímulo em prol da diminuição do consumo dos alimentos industrializados, em

particular do açúcar e do sal, mas visando unicamente ao abandono das “drogas”,

193
entendidas como quaisquer substâncias com potencial de alteração da consciência (cf. a

ideia de vida saudável para os Paumari crentes em Bonilla 2007: 126-130).

Muitos dos homens mais velhos, alvos preferenciais dos que combatem o rapé, após

terem deixado de consumi-lo, alegando que o fizeram por recomendações médicas,

deixaram igualmente de cultivar o tabaco em seus roçados. Notável era a escassez de

rapé ao longo do período em que estive em campo, os frascos eram mantidos nas casas e

o pouco disponível era fortemente disputado a ponto de me recomendarem consumi-lo

às escondidas para evitar ter de soviná-lo. Uma alternativa que tornou-se popular entre

eles foi comprar o fumo pronto ou as folhas do tabaco na cidade ou nas comunidades

riberinhas próximas para torrá-lo e pilá-lo segundo os mesmos procedimentos da

preparação do rapé com as folhas que eles cultivam. Recentemente, com o aumento da

demanda por rapé pelos brancos, em particular aqueles que trabalham para as

organizações indigenistas, muitos dos que haviam deixado de cultivar a planta voltaram

a fazê-lo com o propósito de vender rapé em suas viagens à Lábrea71.

Muito embora os missionários insistam na incompatibilidade entre a atividade xamânica

e os cultos evangélicos, entre os cantos dos espíritos inamadi e aqueles de Deoso, entre

o uso do rapé e o seu abandono, entre uma moralidade crente e aquela dos antepassados,

o mais comum tende a ser conciliar o que passou a ser chamado, muito recentemente

entre eles, de “cultura" com as mudanças implicadas em “ser crente”72. Nas palavras de

71
Atualmente, uma dose de rapé, correspondente a uma colher generosa de sopa, é vendida a dez
reais em Lábrea. Essa tornou-se uma fonte de renda importante para os indígenas que vivem na cidade,
dada a demanda constante tanto dos brancos como de outros indígenas residentes de Lábrea, que por este
motivo não fazem roçado. Na aldeia, o preço, para os Brancos, é ajustado segundo as variações da cidade,
entre eles o rapé jamais é vendido.
72
Esse é um tema que escapa ao escopo deste trabalho mas que requer ser melhor desenvolvido.
Apesar de muitos frequentarem os cultos e lerem as partes traduzidas da Bíblia disponível em traduções
para o jamamadi, uma pequena parte afirma ser crente. O que é ser crente, do ponto de vista Jamamadi e

194
Totinha,“nós gostamos de tudo: Deus, rezas, pajés, bolacha, café, peixe, etc”. Se a

juventude tende a aderir mais ao discurso evangelizador, até porque nos últimos anos a

Missão passou a concentrar seus trabalhos em vista da formação de futuros pastores e

catequistas, as gerações mais velhas não abdicam do contato com os espíritos inamadi e

dos vínculos mantidos pelos seus pajés com os outros patamares do cosmo.

O envelhecimento dos pajés somada à falta de interesse dos mais jovens em passar pelas

duras provações da iniciação, relegou a formação dos pajés à vida póstuma, tanto é

assim que a maioria dos pajés Jamamadi são as almas de parentes falecidos. Como

visto, esse foi o caso de Koeto, filho do pajé D., bem como de Edmilson, filho do pajé

B. Chamo a atenção para este ponto a fim de dizer que durante meu período nas aldeias

não presenciei nenhuma iniciação xamânica, apesar de serem abundantes as

informações sobre esse processo. A deslegitimação da ação dos pajés não se restringe

aos Jamamadi, situação semelhante, por motivos que não se restringem à conversão

religiosa, já foi amplamente notada, como dá conta Maizza acerca dos Jarawara:

Temos poucas informações sobre o processo de 'se tornar' xamã, pois a última formação
deste tipo aconteceu faz mais de cinquenta anos. Existem hoje apenas três xamãs vivos,
eles estão na faixa dos setenta anos de idade. Nenhum jovem se interessou ou aprendeu
a exercer as funções do xamã, pois eles dizem que 'é muito difícil ficar na floresta sem
comer', mas acreditamos que a falta de interesse se deve também à presença de
missionários e cultos evangélicos na aldeia (Maizza 2012: 77).

Após a morte em 2012 do pajé Siko, considerado o último grande pajé jamamadi, não

houve a iniciação xamânica de nenhum outro jovem e aqueles cuja iniciação estava em

como ocorre a conversão são dois aspectos importantes que devem ser melhor discutidos, o que não
poderei fazer nesta tese.

195
curso não puderam terminá-la, conquanto houvesse outros pajés habilitados para a

tarefa. A iniciação de H., neto de Siko, fora interrompida abruptamente com a morte do

avô, e as pedras xamânicas introduzidas no corpo do menino, por não estarem bem

fixadas, acabaram desprendendo-se com a descontinuidade da observância das

restrições imprescindíveis ao processo. A persistência dos pais em enfatizar a

importância dos pajés e dos indigenistas em “fortalecer a cultura" não são suficientes

para persuadir os jovens que se recusam aferradamente se submeter às agruras e

restrições necessárias à iniciação73.⁠ C., em uma de suas idas à Lábrea, chegou a negociar

com um conhecido pajé Apurinã o pagamento e as condições para que ele iniciasse seu

filho mais velho, contudo, a perseverança do pai não foi suficiente para vencer a

resistência do menino. Ademais, o declínio do cultivo do tabaco não é um fator

irrelevante para compreender a recente interrupção das iniciações, uma vez que para tal

requer-se grandes quantidades de rapé.

Ao serem questionados pelos brancos a respeito de seus pajés, a resposta

invariavelmente será a negação de sua existência e a tentativa concomitante de desviar o

foco para algum povo vizinho, este sim com muitos pajés de verdade. A pergunta é

tomada como uma acusação indireta e, nestes casos, o mais prudente, assim como em

outras matérias, é contornar a questão direcionando-a, como fazem com frequência, aos

Jarawara e aos Paumari, seus vizinhos mais próximos. Além disso, a formulação da

pergunta implica a adoção de um tom demasiado acertivo, característico da fala dos Jara

considerada pouco polida. Neste sentido, afirmar-se peremptoriamente como pajé

73
Os jovens tem um grande desprezo por tudo o que compreendem como “cultura”. Muitos deles
não participam dos rituais, não querem aprender as músicas e não se engajam nas atividades cotidianas.
Muitos deles mal ajudam seus pais nos trabalhos do roçado. As mulheres, neste sentido, estão mais
próximas da “cultura”, são elas quem trabalham nas roças, colocam suas filhas em reclusão e cantam nos
rituais. Os rapazes jovens são os que mais estão suscetíveis à vida urbana e suas mercadorias.

196
equivale a uma forma de auto acusação, uma confissão da ambiguidade contida em seus

propósitos e, no limite, abre uma fresta para futuras queixas, pois, melindrável, o pajé

agiria de acordo com a variação dos seus afetos.

Um pajé não se reconhece publicamente enquanto tal, mas é assim reconhecido por seus

parentes. É o caso de B. e D. ditos como sendo os principais pajés em atividade

atualmente entre os Jamamadi. No caso de B, sua idade avançada é um empecilho para

realizar sessões de cura; como me explicaram, sem possuir todos os dentes, ele não

consegue, somente succionando o local dolorido, extrair as flechas de feitiço do corpo

do doente, e sem ter boas condições físicas, ele não aguenta a pressão em seu nariz e

ouvido provocadas pelos deslocamentos entre os patamares do cosmo - ir para o céu ou

para o subterrâneo é como mergulhar, o corpo sofre grandes variações de temperatura e

pressão. E no caso de D, o pajé mais ativo atualmente, os conflitos envolvendo seu

genro gerou uma indisposição ainda não superada com seus parentes, isolando-o ainda

mais.

Cabe ressaltar que a iniciação parcial permite a visualização dos espíritos inamadi e, em

alguns casos, até uma comunicação restrita, no entanto, os inamadi não se tornam seus

espíritos auxiliares e esses homens não serão capazes de transitar entre os diferentes

patamares e extrair feitiços. Eles são reconhecidos como “um pouco" pajé, por terem

passado pela inciação sem, no entanto, tê-la concluído, de modo que, no limite,

praticamente todos os homens mais velhos são, em maior ou menor medida, de acordo

com o tempo em que permaneceram reclusos e da quantidade de rapé que lhes foi

soprada, “um pouco" pajé. A interrupção é geralmente atribuída às dificuldades a que

são submetidos os noviços, privados de companhia, exceto aquela de seu preceptor, de

197
alimentação que lhes sacei, de contato com as mulheres, de sono.

Contrariando o pessimismo das minhas expectativas, a redução do uso do tabaco,

substância central nas práticas xamânicas indígenas, e o desinteresse dos mais jovens

não fizeram miguar a comunicação com as almas das plantas, curiosamente, até o

abandono completo do rapé, como foi o caso do pajé D., não pareceu afetar o trânsito

entre o céu e a terra, entre os vivos e os mortos, entre Jamamadi e gentes-planta; e a

falta de jovens iniciados na terra parece ser suprida pelas iniciações póstumas. Mas,

pode-se prescindir totalmente do tabaco e das iniciações em vida e ainda assim resistir

às investidas contrárias ao xamanismo?

198
Parte 2: Plantar os mortos: a morte é a infância das plantas

Je t'ai dit que je sens naître et croître en


moi-même une vertu de Plante, et je sais me
confondre à la soif d'exister du germe qui
s'efforce et qui procède vers un nombre
infini d'autres germes à travers toute une
vie de plante...

(Le dialogue de l'arbre, Paul Valéry)

199
Capítulo 7: Da vegetalidade humana

Se bem que a discussão precedente ensejou uma formulação parcial do problema desta

tese, seus desdobramentos porquanto negativos requerem que se prossiga a análise em

direções menos usuais ou irredutíveis à moldura teórica do animismo perspectivista

(Descola, Viveiros de Castro, dentre outros). Longe de descartar sua centralidade

prática-conceitual, o esforço do texto que segue consiste, ainda que secundariamente,

em nuançar algumas premissas do perspectivismo ameríndio, em particular, o do

antropomorfismo, tomado como princípio basal ou substrato originário do mundo. São

inúmeras as referências etnográficas que fundamentam a ideia de que o que chamamos

de "real" resulta de ou se conforma na sua apreensão segundo diferentes pontos de vista,

de modo que, excluída a transcendência, não há um mundo objetivamente dado ou

desvinculado de uma perspectiva. Assim, a multiplicidade de mundos e subjetividades

potenciais opõem-se a uma realidade unitária e estável. De acordo com a premissa já

bastante conhecida do perspectivismo, a forma como o humano percebe os animais e a

miríade de outras entidades que povoam o mundo é distinta do modo como estes seres

vêem os humanos e a si mesmos. É sabido que tais ideias não se reduzem ao

relativismo, pois percebendo-se como seres antropomórficos, estas entidades assumem

condicionalmente a aparência e os atributos humanos, ou seja, revelam uma forma

interna ou 'essência' humana quando estão em suas aldeias, experimentando seus hábitos

e comportamentos nos termos da cultura (Viveiros de Castro 2002:350). Isso posto, não

se trata da multiplicação de representações de um mesmo mundo mas da mudança do

mundo percebido, i.e., multinaturalismo. Se o antropomorfismo é um predicado

200
imanente ao ponto de vista, sempre inscrito no corpo, a perspectiva não é uma

representação ou projeção metafórica.

Concordo com a consideração feita por Lima (1996:26), de acordo com a qual a

atribuição de características humanas e sociais aos seres naturais pode ser uma

estratégia demasiadamente cômoda para descrever os fenômenos nestas paragens

etnográficas e que os interlocutores indígenas, por vezes, o acatam perspicazmente e de

bom grado seja para encurtar a conversa seja para corresponder às expectativas do

antropólogo, quando não ambas as coisas. As proposições "plantas são gente" e "gente e

planta é a mesma coisa", ditas sem qualquer gravidade por vários interlocutores

Jamamadi, vão na direção apontada pela autora, uma vez que, se tomadas na forma de

um universal, além de serem falsas, acabam por assumir a forma de uma aporia. Sob

este ângulo, as racionalizações de cunho animista requerem sua necessária

contextualização, haja visto que nem todas as plantas são gente sempre, e que a

aproximação entre humanos e plantas não se reduz à consubstancialidade ou partilha

unilateral de uma condição ou fundamento a priori dos humanos sem que a noção do

que se entende por humanidade escape incólume de modificações. A humanidade, não

mais ocupando o topo da cadeia dos seres terrenos (Lovejoy 2005)74 - grosso modo,

74
Segundo Lovejoy, mesmo tendo sido formulada anteriormente, “foi no século XVIII que a
concepção do universo como uma Cadeia do Ser e os princípios que constituem a base dessa concepção –
plenitude, continuidade, gradação – alcançaram sua mais ampla aceitação.” (Lovejoy 2005:182).
Diferentes autores recuperaram essa noção ao longo da história da filosofia; são conhecidas as
proposições de Leibniz em "Nouveaux essais de l’entendement humain" (1990[1765]:43) de acordo com
as quais “nada se faz de repente” e “a natureza não dá saltos”, que reiteram a imagem da escala dos seres
obedecendo a um ordenamento sem vazios ou saltos no qual o homem está em destaque dentre os seres
sensíveis ou materiais. Nesse sentido, é particularmente ilustrativa a seguinte passagem de Locke em
seu "Ensaio concernente ao entendimento humano" (2012[1690]:484-485): "provavelmente há
mais espécies de criaturas inteligentes acima de nós que espécies de criaturas sensíveis e materiais abaixo
de nós. [...] Não encontramos no mundo corpóreo visível nenhuma falha ou hiato. E mesmo lá embaixo
caminhamos sem dificuldade numa série contínua de coisas que, a cada mudança, mal diferem umas das
outras. Há peixes com asas que não estranham as regiões aéreas. Pássaros de sangue frio vivem nas águas
como peixes [...]. Alguns animais estão a meio caminho entre os pássaros e os quadrúpedes. Anfíbios

201
uma atribuição antropocêntrica corrente no pensamento ocidental que pensa o lugar do

homem e o seu estatuto em relação às demais espécies vivas de acordo com a imagem

de uma escala na qual ele ocuparia um posto elevado ou hierarquicamente superior a

outras formas de vida -, passa a se inscrever no mundo na forma de um pressuposto ou

pano de fundo antropomórfico (Viveiros de Castro 2012:345-400). Sem que com isso se

repita que o homem seja a medida de todas as coisas, a julgar que a expansão dos

limites da humanidade, equiparada à dimensão do cosmo, é sucedida pela pergunta

sobre o que se inscreve formalmente nela. O que se encontra, no entanto, com a

imanência do humano no mundo não é a transparência absoluta ou a conformidade de

uma pacem perpetuam visto que “ali onde toda coisa é humana, o humano é ‘toda uma

outra coisa’” (Viveiros de Castro 2015:54), e os perigos dessa humanidade difusa são

irrevogáveis. Na bela formulação de Lima (1996:27): "o ponto é que os animais estão

longe de serem humanos, mas o fato de se pensarem assim torna a vida humana muito

perigosa".

Se num primeiro momento, o cuidado dedicado às plantas e as "metáforas" usadas para

descrevê-las pareciam apontar para sua personificação – como certa vez num roçado

uma senhora me perguntou se eu escutava o choro dos carás que nós plantávamos –,

logo fui alertada a distinguir o aspecto vegetal terrestre do duplo celeste, este sim

humano. Ao perceber a persistência do meu interesse pelo tema, o pajé B. fazia questão

ligam os animais terrestres aos aquáticos. [...] Fala-se de sereias e homens marinhos. Alguns animais
irracionais parecer ter tanto conhecimento e razão quanto outros, que se chama de homens. O reino
animal e o vegetal estão tão juntos que, se tomares o animal mais inferior e o vegetal mais superior,
dificilmente perceberás muita diferença entre eles. Mesmo nas partes mais inferiores e inorgânicas da
matéria encontramos muitas espécies ligadas entre si, diferindo por graus insensíveis. Se considerarmos o
infinito poder e sabedoria do Criador, teremos razão para pensar que é consoante a magnífica harmonia
do universo, ao grande designo, à infinita bondade do arquiteto, que espécies de criaturas também
ascendam, gradualmente, sem dificuldade, desde o homem até a infinita perfeição – a exemplo da descida
gradual que vemos partindo de nós".

202
de esclarecer em suas explicações que as plantas, a parte perceptível terrestre, não é

provida de humanidade; com efeito, a capacidade de assumir a posição de sujeito

reserva-se, idealmente, à sua parcela celeste, seu duplo visível ao xamã em

determinados contextos. Aliás, engano similar era pensar que o zelo das almas das

plantas com o morto, as práticas de adoção e os casamentos póstumos com essas almas

indicariam que os mortos humanos assumiriam uma condição ontológica equivalente à

vegetal em sua morada celeste. Não se avista a dimensão básica da relação humano-

planta somente ao equacioná-la nos termos de inversões e transformações perspectivas,

a saber:

planta/yamata (terra) : morto/ai korimari (céu)

::

humano/ai (terra) : alma de planta/yamata abono (céu)

É evidente que não basta deslocar o problema ou substituir uma das variáveis porque o

que muda é a própria correlação entre os termos que compõem a equação entre

humanidade e vegetalidade. Essa elaboração foi refutada pelo pajé B. ao sumarizar, sem

circunlóquios e para meu espanto, que “planta e gente é a mesma coisa”. O fundamento

dessa semelhança heteróclita, ele insistia, não é a humanidade dos Jamamadi, porém, de

maneira inesperada, é a vegetalidade das plantas, uma lógica vegetal comum a ambos –

em termos um tanto simplistas, não é a planta que é gente, mas o contrário. Ele tentava

me explicar que as plantas provêm o modelo da vida e da existência aos humanos tanto

quanto o antropomorfismo organiza as relações sociais dos viventes, sem com isso

haver o menor sinal de contradição. O princípio vegetal - que também chamo de

203
vegetalidade - no entanto, não torna o cosmo Jamamadi um anime japonês, com

humanos plantiformes ou plantas humanóides. Adiantando o argumento desta parte da

tese, foram as notáveis palavras de Yiwalinehe que, disposto a me explicar, mas

fatigado pela minha perserverança em não compreender, me deu uma resposta

desconcertante sobre a vegetalidade75 ativa no cosmo: "Kali, tudo [ele apontava para as

plantas] tem alma senão as coisas não poderiam morrer". Ao contrário das expectativas,

a morte ocupa o lugar que se atribui à vida por não ser um processo qualitativamente

antagônico (cf. Taylor 2012:216), mas por fazer parte do mesmo contínuo.

Em concordância com o trabalho de Maizza (2012) sobre os Jarawara, caberia levar

adiante a hipótese da existência humana pensada em termos de devir-planta? (cf.

Viveiros de Castro 2014). Com isso, frente ao quadro analítico que se configura deve-se

considerar que os mortos Jamamadi se metamorfoseariam em planta ou manifestariam

afetos e capacidades vegetais na vida póstuma? A análise permanece plausível diante do

que, por ora, apresentei a respeito da importância das práticas agrícolas no xamanismo

em oposição à usual ideologia venatória, das relações de familiarização entre o pajé e as

alma dos cultivares e a centralidade das plantas para a fabricação do corpo masculino e

o feminino.

Delineada na parte anterior com a descrição da fabricação do corpo do pajé como um

corpo de veneno - sendo venenoso, parcialmente consubtancial às plantas que ingere e

incorpora em sua iniciação, ele não é "como" veneno - que se projeta por meio de seu

olhar, o argumento apontava para os limites da aproximação meramente analógica entre

75
Não me parece ser o caso de adotar o arcabouço conceitual proposto por Chaumeil (1989:15-24)
para o contexto Yagua, pois, lá, o "fluxo constante de energia vital vegetal" circulante se expressa em
termos fisiológicos ou em uma linguagem de substâncias inadequadas ao caso jamamadi em foco. Por
ultrapassar o escopo do trabalho, não poderei elaborar as diferenças entre um caso e outro.

204
humanos e plantas. Quando o pajé Wiyonama (p.107) anuncia que ele é o veneno põem-

se às claras de forma sumária que a referência literal aos afetos e afecções vegetais não

é um atributo constitutivo, tampouco excludente, de uma espécie natural infletido

metaforicamente sobre os humanos. A potência vegetal é controlada e engendrada na

iniciação xamânica tanto quanto conjurada nas práticas rituais femininas. Novamente,

os predicados vegetais "encorporados" pelos pajés Jamamadi apontam para uma

interessante torção da problemática perspectivista, em particular o seu antropomorfismo

basal, pois, perguntar o que significa dizer que os animais (ou plantas) são pessoas?76

não equivale à questão desta tese, a saber, o que significa dizer que as pessoas são

plantas?

Levando adiante a intuição esboçada, anuncio que o objetivo deste segundo momento

da tese consiste em explorar em quais termos o aspecto vegetal da humanidade é

formulado pelos Jamamadi. A estratégia analítica escolhida aborda a questão

primeiramente a partir das elaborações acerca do desenvolvimento do corpo humano e

do vocabulário aplicado à sua morfologia a fim de explicitar a insuficiência de uma

abordagem metafórica da questão. A coincidência vocabular na aplicação mútua para

humanos e plantas mostra os limites das figuras de linguagem na medida em que o

crescimento e a maturação vegetais, expressos numa estética do desenvolvimento, são

entendidos como processos similares nas plantas e nos humanos, que se distinguem em

relação à vitalidade ou longevidade - neste ponto, evoco os trabalhos de Rival (1993,

76
"Entre as questões que restam a resolver, portanto, está a de saber se o animismo pode ser
descrito como um uso figurado de categorias do domínio humano-social para conceitualizar o domínio
dos não-humanos e suas relações com o primeiro. Isto redunda em indagar até que ponto o
“perspectivismo”, que é um como corolário etno-epistemológico do “animismo”, exprime realmente um
antropomorfismo analógico, isto é, um antropocentrismo. O que significa dizer que os animais são
pessoas?" (Viveiros de castro 1996:122).

205
1998, 2012) sobre os Huaorani77. A onomástica e a teoria da concepção são mobilizadas

para dar continuidade na construção da ideia base deste segundo momento da tese. Mas,

é quando tomada pelo ângulo do processo escatológico que a questão encontra o seu

maior rendimento: sendo a morte uma catástrofe que incide sobre o corpo (cf. Taylor

2012), fragmentando as relações que o compõem, a transformação corporal decorrente

permite entrever em toda sua radicalidade a aproximação metafísica entre humanos e

plantas. Para entender a mortalidade humana requer-se articular vida e morte não em

estados extremos e opostos mas em fluxos ou processos inacabados.

Discorrerei sobre algumas proposições insistentemente formuladas em diálogos sobre

morrer e a vida póstuma por evocarem de maneira contundente o tema. "Vivemos e

morremos como as plantas"; "a alma-coração é plantada para a vida rebrotar no céu";

"gente e banana é a mesma coisa"; são alguns dos enunciados a serem encadeados no

texto que se segue em dois momentos:

i. A humanidade jamamadi é derivada daquela das plantas - ou dizem que se tornam

humanos a partir delas -, refraseando a proposição pode-se dizer que a vida expressa em

grau menor, circunscrito, o que a morte desvelda exarcebadamente. A latência vegetal e

seu correlato potencial transformativo é suscitado, reativado, na vida póstuma, leia-se

77
Os Huaorani conceitualizam o crescimento, o desenvolvimento e a maturação humanos a partir
das percepções sensíveis que associam o corpo à energia vital contida nas folhas ou brotos e, por sua vez,
o processo de envelhecimento à decadência vegetal. A samaúma, a balsa e a pupunha são as três espécies
enfocadas que, em virtude de suas características distintivas de crescimento, amadurecimento e
reprodução, são relacionadas ou aplicadas às conceitualizações do crescimento humano. Assim, as
categorias naturais não são somente vistas como metáforas para as categorias sociais (Rival 1993). O
crescimento, por exemplo, é identificado de forma similiar nas árvores e nos humanos, diferenciados
somente em relação à longevidade. O desenvolvimento fisiológico das pessoas resulta da mesma energia
vital encontrada nas folhas, brotos e plantas de crescimento rápido, com muita energia, por isso usadas
para estimular o crescimento dos bebês - associados às folhas novas não somente por sua beleza mas
porque ambas são vigorosas e cheios de vitalidade. A pele das pessoas idosas são descritas como as folhas
velhas que perderam a suavidade e o brilho. Da mesma forma, os seios das mulheres caem à semelhança
das folhas. Diferentemente do argumento de Rival centrado nas diferenças entre crescimento rápido/lento,
ciclo longo/curto, madeira macia/dura, o que importa para a presente reflexão é a resistência, resiliência
vegetal.

206
desencadeado pela morte, de modo que a escatologia oferece uma perspectiva

privilegiada em vista de abordar a questão;

ii. As relações naya na de criação que modelizam o parentesco com as plantas

cultivadas, os animais capturados e, em menor medida, as crianças adotadas não se

expressam em completa conformidade com a estrutura analítica da predação

familiarizante (Fausto 2001, 2007, 2008, 2012) e da noção de domesticação associada.

Na ampliação recente de tal modelo com a intenção de abarcar o caso das plantas e

oferecer uma alternativa às análises da arqueologia histórica e da etnobotânica centradas

na domesticação da amazônia (Fausto & Neves 2018), contudo, os seus autores não

contornam um efeito, a meu ver, indesejado: equalizar ou tornar isomórficos os vínculos

com a biodiversidade não agrícola e aqueles com os cultivares (ver capítulo 8 adiante).

A crítica ao caráter teleológico da aquisição da agricultura, pressuposto subjacente a

muitas análises que implica na necessidade de apartar ou distinguir o selvagem do

domesticado, não se desdobra na relativização, não menos imprescindível, da

preponderância da ação humana em sua relação com as plantas. Acredito que a crítica à

intervenção domesticadora humana deve ser estendida à noção correlata de controle:

tentarei mostrar que a partir da concepção jamamadi do problema nas interações entre

humanos e plantas ninguém está incontestavelmente no comando.

Poder-se-ia pensar a humanidade como "espécie companheira" das plantas tanto quanto

o inverso - torcendo um pouco a formulação de Haraway (2003) 78 -, uma vez que o

78
Em diálogo com o conceito de "espécies companheiras", proposto por Haraway (2003), Anna
Tsing escreve, valendo-se do exemplo dos fungos, contra o "excepcionalismo humano" e a domesticação
- modelo que se aplica também ao controle de mulheres e plantas. A história da agricultura e, de maneira
geral, do controle da natureza salienta a autonomia humana em detrimento da interdependência entre as
espécies. A autora vai mais longe e propõe: "what if we imagined a human nature that shifted historically
together with varied webs of interspecies dependence? Human nature is an interspecies relationship. Far

207
controle não é unidirecional e a domesticação só precariamente se conforma à maneira

de sujeição. Novamente, o modo de vida dos isolados Hi-Merimã e a relação com as

plantas não domesticadas, fundamento do seu modo de vida e movimento, volta a ser

um contraponto à preeminência analítica da agricultura. Além de ocultar a relevância

sazonal de outras formas de cultivo - leia-se, as relações ditas "incipientes" com as

palmeiras, árvores frutíferas e tubérculos mantidas pelos jamamadi - mostra que a

diversidade de vínculos estabelecidos com as plantas não são sempre formas de

consanguinização 79.

Por fim, tentarei mostrar que a decomposição das relações que compõem a pessoa

evidencia sua vegetalidade e acaba por revelar uma imagem divergente do humano que

não se conjuga à parte da vida vegetal. Levando a sério a antropologia jamamadi, nos

resta redimensionar a determinação antropomórfica perspectivista, e, no limite, aceitar o

convite que eles nos fazem de vegetalizar o que entendemos por ser humano.

***

from challenging genetics, an interspecies frame for our species opens possibilities for biological as well
as cultural research trajectories. We might understand more, for example, about the various webs of
domestication in which we humans have entangled ourselves" (2012). A domesticação é concebida em
termos de um processo unilateral do controle humano sobre outras espécies, ignorando o que tais relações
podem ter nos afetado. Na contramão de tal ideia, Tsing sugere que os cereais poderiam ter domesticado a
humanidade, pelo menos no caso do Ocidente, e relaciona-os à emergência das hierarquias sociais e à
origem do Estado: "intensive cereal agriculture can do one thing better than other forms of subsistence:
support elites. States institutionalize the confiscation of a share of the harvest. Across Eurasia, the rise of
states and their specialized civilizations is associated with the spread of intensive cereal agriculture. In
some places, states followed agriculture; in other places, agriculture followed states" (Idem). O
argumento da autora repisa a narrativa de Engels em "A origem da familia, da propriedade privada e do
Estado" a fim incluir as mulheres no escopo de sua análise contra a domesticação visto que o controle
masculino da reprodução em famílias humanas inspira-se nas noções de propriedade que regulavam a
reprodução dos rebanhos.
79
As biodiversidade não agrícola é fundamental para a vitalidade genética dos sistemas biológicos
(cf. Politis 2007). Lévi-Strauss já escrevera sobre esta questão: "farming always accompanies, and is
never a substitute for, the exploitation of wild resources" (apud Rival 1998:237).

208
Raramente os Jamamadi realizam suas tarefas cotidianas sem uma longa caminhada,

isso nem tanto por serem necessariamente grandes as distâncias, mas devido ao apreço

que eles cultivam por andar e observar as plantas encontradas no percurso. Tanto é

assim que, muitas vezes, saem para caminhar "apenas" para kakatoma, "olhar", as

plantas. O olhar pode ser dirigido em vista de buscar frutas maduras, palhas para a

cobertura das casas, cipós para a cestaria, copaíba para extrair o óleo, remédios, etc. No

entanto, a caminhada não tem sempre em vista uma utilidade prática, e mesmo sendo o

caso, não se restringe a ela, dado que, esse olhar, em nada prosaico, se interessa

igualmente em observar a variedade do crescimento das plantas, em identificar quem as

plantou - se um parente ou espírito inamadi -, ou tão somente apreciar as relações e a

companhia das "amizades vegetais", contemplando-lhes a beleza do seu

desenvolvimento. A floresta guarda as marcas das atividades das pessoas que ali

viveram nas gerações passadas e, quando essas são reconhecidas durante as caminhadas,

invariavelmente com enorme prazer, as plantas funcionam como registros dessa

proximidade silenciosa. Não se trata, por certo, de transferir aos Jamamadi a imagem do

filósofo ou poeta que, encantado pela botânica imputa uma inocência apaziguadora ao

mundo vegetal, espécie de sucedâneo terapêutico ou artifício que permite a uma só vez

distrair-se e retomar a introspecção ensimesmada. Aqui, a profusão e exuberância

vegetais são entendidas enquanto imagens potentes da diferença que não conduzem à

contemplação plácida de um olhar neutro ou à plena transparência de um saber não

mediado80; ao contrário, são índices de agências humanas e não-humanas que, se

80
Refiro-me aos "Fragments de botanique" de J.-J. Rousseau. Em um ensaio de Alexandra Cook
(2004:75-87), a autora cita um trecho que condensa o desejo do filósofo de superar a "diferença" para
alcançar a transparência, o acesso sem intermediários à natureza, contornando as limitações da linguagem

209
ignoradas, são potencialmente fatais81. A guerra mundial que envolve as plantas em

incessantes conflitos canibais traz uma imagem diametralmente oposta àquela da vida

não violenta, domínio da consanguinidade. Herbanizar não é ação do flaneur ocioso

porque este olhar não é passivo: ele é causa tanto do crescimento como da destruição

das plantas, vide a ação devastadora do olhar envenenado, noko koma (ver capítulo 8).

Tal atitude sugere que, para os Jamamadi, as questões biológicas são igualmente

estéticas (Rival 1998) quando se pensa na vida vegetal; em outros termos, se esse olhar,

de evidente importância ecológica, causa o desenvolvimento ou o perecimento dessas

formas de vida, ele acaba por interferir na criação do mundo e inscrever as diferenças no

"dar-se a forma" inerente às plantas.

As manhãs costumam ser preguiçosas na aldeia: assim que acordam, as pessoas vão se

esquentar na beira do fogo e ficam conversando enquanto tomam café acompanhado de

bolacha ou farinha. Assim que o dia esquenta um pouco, as pessoas iniciam suas tarefas

diárias que incluem, dentre outras coisas, roçar o terreiro de suas casas e cuidar da roça.

Manter o terreiro limpo em torno da casa é importante para afastar as cobras e as plantas

indesejadas. Os Jamamadi inspecionam as plantas rotineiramente, checam o

amadurecimento dos seus frutos, verificam a presença de parasitas, constróem

cerquinhas ao seu redor para afastar predadores ou as transplantam para garantir que

cresçam melhor. Sob as casas, cercas e telas protegem as pequenas mudas que ainda

estão germinando e não estão prontas para serem transferidas de lugar. Latas, panelas

velhas e vasilhas de plásticos estão espalhadas em todos os cantos com plantas de

humana: "Le botaniste ne souffre point d'intermédiaire entre la nature et lui. Il n'admet pour vrai que ce
qu'elle lui montre, il rejette tout ce que les hommes y veulent ajouter de leur chef" (idem:75).
81
"O que chamamos de 'ambiente' é para eles [os ameríndios] uma sociedade de sociedades uma
arena internacional, uma cosmopoliteia. Não há portanto diferença absoluta de estatuto entre sociedade e
ambiente, como se a primeira fosse o 'sujeito', o segundo o 'objeto'. Todo objeto é sempre um outro
sujeito, e é sempre mais de um" (Danowski & Viveiros de Castro 2014:94, grifos dos autores).

210
variedades e espécies trazidas da cidade ou de alguma aldeia vizinha. Por apreciarem a

terra cheirosa, as folhas varridas dos terreiros são queimadas com os restos das

fogueiras para serem postas ao redor das plantas que se alegrarão com o cuidado de seus

parentes. Ao depositar as cinzas nas raízes dos açaís que crescem em seu pátio, Sabira

me dizia contente que os seus cachos, fare daby, crescerão grandes e que a planta, leia-

se sua alma, abono, vai pensar: "Minha mãe gosta de mim. Ela vem todo dia me ver.

Minha mãe cuida da minha casa e a deixa cheirosa".

Também é pela manhã que as pessoas partem para trabalhar no fadara, roçado. Não há

divisão de gênero que demarque uma exclusividade do trabalho agrícola, se bem que as

mulheres frequentem mais as roças meramente porque são elas que se encarregam,

ainda que seus maridos e filhos possam ocasionalmente ajudá-las, das etapas da

produção da farinha, alimento central na dieta jamamadi, desde a colheita da mandioca

à torra da massa.

O espaço aberto para o plantio da roça é dividido entre os pais e seus filhos, de modo

que sempre se identifica a quem pertence um cultivar de acordo com o local em que ele

foi plantado82. Apesar destas divisões internas, o dono do roçado é o pai, responsável

82
Recuperar o trânsito dos cultivares entre as roças permite retraçar caminhos do parentesco
jamamadi e da relação com a alteridade, uma vez que as variedades encontradas em capoeiras durante
expedições na mata, aquelas recebidas dos brancos na cidade ou das almas das aldeias celestes também
são itens valiosos nessa rede de trocas. Em geral, as pessoas se lembram de quem receberam cada um de
seus cultivares e em qual circunstância. O timbó plantado pelo pajé B., por exemplo, é um dos mais
cobiçados por causa de sua potência. Esse timbó havia sido plantado por seu irmão Siko que, por sua vez,
o trouxera dos roçados da alma da taboca teke. Nós estavámos "espiando" o roçado quando B. me contou
a origem de seu timbó: "Siko trouxe pupunha e timbó do céu. Naquela época, Siko estava sem pupunha,
aí resolveu ir buscar um pouco nas aldeias das almas. O sogro de Siko tinha morrido e ele estava com
muita raiva. No céu, as almas estavam fazendo festa, tinha muita comida e cachaça. O pessoal já estava
alumbrado [bêbado], aí esqueceram os seus yamata. Os companheiros do Siko, as almas de iha e tamino,
falaram para ele: "Naki [termo genérico para afinidade, comumente traduzido por 'companheiro'. Nessa
situação é usado porque as duas espécies, tamino e iha, não são cultivadas pelos Jamamadi, ou seja, não
estabelecem uma relação de consanguinização], tu vai levar as sementes de pupunha e um pouco de rapé".
Os companheiros, que eram seus yoyose [espírito auxiliar], colocaram tudo numa sacolinha e deram para

211
pela negociação imprescindível com as almas das plantas que serão derrubadas para

servir de lugar ao futuro fadara. Deste modo, no roçado de Badá, antigo cacique geral,

estavam plantados os seus cultivares e aqueles de seus filhos solteiros Bafita, Damião,

Dossobi e Marikiya. Os seus filhos casados, Fasokore, Bonoaiya e Maneoke, por sua

vez, fazem roçados separados, mas, muitas vezes, próximos ao do pai. Não se pode

demarcar categoricamente, portanto, que a roça seja um espaço estritamente masculino

ou feminino, pois, embora seja dito que pertença ao pai, o plantio, o cuidado diário de

limpar e roçar, e a colheita são trabalhos de ambos os gêneros83.

Irmãs acompanhadas de seus filhos pequenos, os casais e os pajés84 são aqueles que

dedicam mais tempo aos roçados ; os rapazes solteiros quando muito ajudam a carregar

os pesados paneiros com mandiocas. Os únicos a frequentar sozinhos seus roçados são

os pajés que quase todos os dias visitam seus filhos-planta para se certificar de seu bom

crescimento, além de conversar com eles para exortá-los a produzir em abundância. É

preciso fazer uma ressalva, pois, nestas situações, os pajés não estão completamente só,

conforme dito no capítulo anterior: eles andam sempre na companhia de seus espíritos

auxiliares. Boa parte do dia é preenchido pelas atividades agrícolas e pela atenção às

plantas da aldeia, também a comentar o tamanho dos cultivares dos roçados dos

parentes; a reclamar das saúvas que devoram as plantas; a arrancar as plantas intrusas e

a podar a fim de manter os cultivares afastados uns dos outros - algumas plantas gostam

ele. Eles também colocaram um pedacinho do timbó que teke abono, alma da taboca, tinha plantado em
seu roçado".
83
Diferentemente da visão da agricultura como atividade predominantemente feminina entre os
Achuar (Descola 1986) e Taylor (2000); entre os Wajãpi (Cabral de Oliveira 2006, 2012); entre os Krahô
(Morim de Lima 2017), etc.
84
Os pajés também caçam, todavia, a atividade tende a mobilizar mais os homens jovens, pois aos
filhos e genros cabem a responsabilidade de caçar e pescar.

212
de "estrangular" os seus vizinhos ou atrapalhar-lhes85 o crescimento -; a amarrar as

folhas dos abacaxis; a colocar suportes para segurar os cachos pesados das bananeiras;

em suma, pode-se dizer que quando não estão trabalhando na roça, provavelmente,

devem estar falando dela.

O crescimento das plantas é abordado com verdadeira predileção. Comenta-se que um

buriti ainda é rapaz, yifo yetene; que a bananeira do roçado não está madura porque não

tem peitos, logo, ela ainda é demo, categoria das meninas que não passaram pela

reclusão pubertária e ainda não se tornaram atona; que os filhos de Lobi, Lobi ka bidi,

estão começando a cair, neste caso, os ouriços da castanheira plantados por ela; que os

filhos da pupunha, yawida ka ewe, estão começando a se fazer visíveis no solo, esta

etapa do desenvolvimento vegetal, broto, é descrita como semelhante àquela do recém-

nascido, ewe; que os cultivares-criança, yamata madehe, estão chorando de sede no

roçado; que as macaxeiras não estão maduras e ainda são crianças de colo, ewe borehe;

que as espigas de milho, kimi, estão felizes porque tornaram-se adultas e terminaram sua

formação, kimi hawa tohini. Os exemplos são incontáveis.

Fig. 13 Bananeiras demo, “moças”, em sua tabora, “aldeia”

85
Para um exemplo de comportamento anti-social das plantas, ver Hall (2013: 1001-1002).

213
As categorias mobilizadas para tratar o crescimento vegetal são as mesmas utilizadas

para o desenvolvimento do corpo humano86, de forma que uma criança de colo é

chamada de ewe borehe, pessoa imatura como um fruto verde ou um broto que acabou

de se fazer visível no solo; os filhos são os pequenos de alguém, bidi, como os brotos

que germinaram das sementes que caem de uma planta; as crianças quando começam a

andar passam a ser chamadas de madehe, assim como as plantas um pouco maiores mas

ainda não maduras; os rapazes solteiros são referidos com o termo yetene, tal como o

buriti do exemplo acima; as meninas que não passaram pela reclusão pubertária são

chamadas de demo e, após passar pelo ritual da menarca, quando seus seios aparecem,

são chamadas de atona, como o exemplo da bananeira; quando os rapazes e moças

tornam-se pessoas formadas/completas, seu crescimento está terminado, hawa toha, à

semelhança de uma planta que atingiu a maturidade e pode frutificar; por fim, os

mamilos da mulher ao engravidar escurecem indicando que ela está madura, hada/hasa,

da mesma forma que um fruto escurece ao amadurecer, verbo ha hasa na. Assim sendo,

uma bananeira madura com frutos que podem ser colhidos, sibati hadani/wahini, é uma

planta já formada, adulta do mesmo jeito que uma pessoa que não é mais adolescente, ai

hadani/wahi ka waha.

86
Para exemplos de imagens do crescimento humano pensado em termos vegetais para povos Jê, conferir
Morim (2017:460).

214
Etapa do desenvolvimento Humano Planta

ewe borehe recém-nascido broto assim que aparece no


solo

bidi (m.) / bide (f.) criança de colo broto um pouco maior

madehe criança quando começa a estágio em que a planta pode


andar ser transferida de lugar

yetene rapaz após a iniciação juventude que antecede seu


xamânica período fértil, final do
crescimento

demo menina impúbere ainda não se reproduz, não


terminou o desenvolvimento

atona moça após a reclusão limiar entre a etapa que


pubertária, aparecimento dos antecede sua fase fértil
seios

hawa toha adulto etapa fértil

hada na/hasa na maturidade, período de planta madura em fase de


procriação frutificar/reproduzir

O que se conclui da coincidência entre as categorias etárias e as etapas do

desenvolvimento vegetal? Tratar-se-iam de imagens vegetais, de valor metafórico,

mobilizadas para refletir sobre o crescimento e a morfologia humanas combinado a um

antropomorfismo analógico para expressar o desenvolvimento vegetal? São abundantes

os exemplos em diferentes línguas que vão nesta direção: "cabeça de alho", "pé de

alface" e "olho de batata" são algumas expressões metafóricas mas de uso bastante

circunscrito e sem repercussões ontológicas significativas, de maneira semelhante dizer

"oreilles en feuilles de chou" (orelha de abano), mão de alface, "poil de carotte" (ruivo)

215
ou "ginger hair" (cabelo ruivo) tampouco implica outra coisa além de imagens vegetais

em comparações de valor figurado.

Por outro lado, a intercambialidade das categorias para expressar tanto o crescimento

humano quanto aquele das plantas tem consequências distintas aqui, não limitadas ao

uso metafórico, uma vez que é indecidível de partida determinar se tais categorias são

propriamente humanas ou vegetais, ou seja, a bananeira sem peitos é moça impúbere ou

a moça impúbere é uma bananeira sem peitos? Se ambas são verdadeiras onde estaria o

limite da metáfora? A categoria demo é usada, portanto, indistintamente tanto para a

menina que não passou pela reclusão pubertária quanto para a bananeira não madura.

Resta perguntar se esse uso redunda no antropomorfismo, bem como na sua contraparte,

o fitomorfismo. O alargamento semântico de demo indica uma certa continuidade entre

o vegetal e o humano que conduz à afirmação de um fitomorfismo completar ao

antropomorfismo corrente. Em outros termos, conceitualizar o domínio do não-humano

com categorias do universo humano-social teria aqui a contrapartida do movimento

inverso do mundo vegetal aplicado ao humano? Essa indiscernibilidade dada de

antemão não permite concluir se são elementos vegetais que estão sendo mobilizados

para tratar a ordem social - o caso do totemismo com suas semelhanças de interioridade

e fisicalidade (Descola 2005) - ou se inversamente são as categorias que organizam a

vida social que estão sendo usadas para falar das espécies naturais, leia-se, o animismo.

O risco a ser evitado é o de repor os limites dos domínios da Natureza e da Cultura, com

seus conteúdos subjacentes e estatutos ontológicos correlatos se se pressupõe o caráter

representativo das relações entre plantas e humanos. Como largamente discutido

(Viveiros de Castro 1996, 2002; Lima 1996, 2002; Vilaça 2002; Descola 2005; dentre

216
outros autores), as cosmologias perspectivistas não projetam simplesmente a socialidade

humana sobre os não-humanos à guisa de modelização social da natureza, por

conseguinte, e de forma complementar, pode-se dizer que não há uma projeção

analogista de metáforas vegetais sobre a humanidade. Em suma, o argumento do uso

figurado não dá conta de nenhum dos movimentos conceituais em operação. Ademais,

no caso em foco, a humanização das plantas é um corolário possível do perspectivismo

multinaturalista que, se relacionalmente comporta distintas configurações, deve prever

variações menos pautadas na premissa da pregnância simbólica da animalidade. Haja

visto que:

Todos os animais e demais componentes do cosmos são intensivamente pessoas,


virtualmente pessoas, porque qualquer um deles pode se revelar (se transformar em)
uma pessoa. Não se trata de uma mera possibilidade lógica, mas de potencialidade
ontológica. A “personitude” e a “perspectividade” – a capacidade de ocupar um ponto
de vista – são uma questão de grau, de contexto e de posição, antes que uma
propriedade distintiva de tal ou qual espécie. (Viveiros de Castro 2015:66)

O argumento não para neste ponto, visto que, o alargamento ou continuidade

"sociomórfica entre natureza e cultura, fundada na atribuição de disposições humanas e

características sociais ao seres naturais" (Descola 1996:99) não deve obliterar a outra

via da relação em pauta: a de uma continuidade fitomórfica entre humanos e plantas, de

acordo com a qual aspectos humanos são expressos segundo elementos e processos

vegetais. Arrisco dizer que o complemento da face anismista desta afirmação não

conduz ao totemismo; a aproximação entre natureza e cultura aqui não é da ordem da

classificação ou do ordenamento lógico do social tributário de diferenças entre espécies

naturais.

217
O debate político-filosófico acerca da redistribuição ou reposicionamento das cartas

conceituais decorrentes das reflexões acerca do perspectivismo ameríndio mostra que

seus pressupostos e consequências são irredutíveis e se opõem aos termos dos nossos

debates e quadros teóricos, vide o clássico dualismo entre Natureza e Cultura (Viveiros

de Castro 1996, 2002). Ao que interessa no presente argumento, tendo em vista a

referida discussão, as aproximações entre humanos e plantas reforça o

reembaralhamento das categorias e seus conteúdos subsumidos em ambas as esferas e,

talvez, problematize uma das premissas gerais da formulação perspectivista, a saber, a

de que a humanidade - ou intencionalidade, subjetividade, essência antropomorfa,

esquema reflexivo ou aperceptivo etc - segue como o nome da forma geral do sujeito

(Idem) e o que se entende por humano não pode mais ser um pressuposto. A questão

produtiva, portanto, se formula num primeiro momento através da reconsideração dos

predicados atribuídos à humanidade a fim de, em seguida, perguntar como os Jamamadi

manejam a mistura entre humanidade e vegetalidade.

218
7.1 Morfologia e onomástica

A despeito das tentativas de abordar as noções jamamadi a respeito da concepção

humana, as respostas sobre o assunto eram sumárias e pouco variavam, demonstrando o

parco rendimento e um certo desinteresse. A agentividade é atribuída exclusivamente ao

homem, responsável pela inseminação da mulher ao longo dos meses de gestação. A

retenção do sangue feminino, por sua vez, é considerada um fator de desestabilização

corporal, notável na alteração do olhar da grávida, por isso, interdita de ver os enfermos

ou as vítimas de acidente ofídico. O sêmem, maki ka fene, comparado à semente das

plantas quanto à sua capacidade germinativa, é a substância da agência masculina que

constitui o feto. Dizem que "quem tem semente é o homem", logo, é o seu "trabalho",

yama anini, no corpo feminino que faz a mulher amadurecer e engravidar, v.t.

kanahiwa. A mulher é um receptáculo da ação masculina, responsável único na

produção do corpo do bebê em gestação. Apesar do sangue paterno ser a substância que

expressa a preponderância dos vínculos paternos, efetivamente é o sêmen que contém a

agência masculina.

Para cada etapa da gestação e o período da couvade são interditos o consumo de

diferentes cultivares e carnes mas, principalmente, de frutos silvestres tais como o

boroma (um tipo de embaúba), o sami yawa (uma variedade de abacaxi selvagem),

winika (cajurana) e o yosi (planta não identificada), dentre outros, por causa de seu

efeito abortivo ou agressivo para o recém-nascido. Também se espera da gestante que se

219
abstenha de trabalhar em demasia com a massa da mandioca não enxugada que aumenta

o vérnix que envolve o bebê; ela tampouco deve ingerir peixes capturados em

armadilhas porque dificultam o parto ou fazem o bebê nascer empelicado. A relação de

paternidade se faz visível no trabalho de prover alimentos à mulher na gestação e à

mulher e ao filho após o parto. Tanto é assim que as mães solteiras raramente recebem

carne/peixe, uma vez que provê-la equivale a construir o corpo da criança, ou seja,

assumir sua paternidade. Não me alongarei, contudo, na descrição das dietas específicas

indicadas para a gestação, o resguardo pós-parto e os primeiros meses de amamentação

por escapar o escopo do capítulo, passo, assim, aos aspectos mais cruciais que

expressam a noção de corpo que estão em consonância com a questão da vegetalidade.

Seguindo o raciocínio, presumo que a reincidência no sudoeste do Amazonas da

coincidência do vocabulário aplicado à morfologia e à fisiologia dos corpos humanos

(Bonilla 2007:148; Costa 2007 - etnografia na qual o termo "tronco de árvore", -warah,

possui importantes desdobramentos para o argumento do autor, uma vez que sua

polissemia abarca os sentidos de "chefe" e "corpo"), animais e vegetais tenha uma

significação particular entre os Jamamadi. A indiscernibilidade terminológica mostra

que não cabe decidir taxativamente se são os humanos que tem partes de plantas ou se

são as plantas que tem estruturas humanas. Dada a continuidade ou coincidência das

etapas do crescimento, conforme a discussão precedente, parece-me razoável que a

morfologia e a fisiologia reiterem a indistinção ou assemelhamento, pondo em xeque,

mais uma vez, a fixidez da linha divisória entre humanos e plantas.

220
O tronco de uma árvore ou do corpo humano são chamados pelo mesmo termo, ade

(f.)/ede (m.); a pele humana, a cortiça das árvores e as cascas das frutas são todas

chamadas de atori (f.)/ataro (m.), e que combinado com a palavra yehe, "dedo", quer

dizer "unha", ye ataro; a carne humana ou animal e a polpa das frutas são chamadas de

ime; o cérebro tanto dos humanos quanto dos animais, bem como o palmito das

palmeiras são conhecidos por afone; os ossos e a nervura das folhas são ambos referidos

pelo termo tone; os espinhos vegetais e os pelos corporais são kone; as mãos, as patas

dianteiras e os galhos são todos chamados de yehe ou mani (f.)/mano (m.); tame

(f.)/teme (m.) designam o pé, a pata traseira e a extremidade inferior ou base de uma

planta; teme habo, por sua vez, é o tornozelo ou a raíz; a cabeça humana ou animal e a

parte superior de uma planta são referidas pelo termo tati; os tendões, as artérias e as

raízes são chamadas de habi (f.)/habo (m.); a orelha e os fungos (que crescem na

superfície das plantas) são ditos narabi (f.)/narabo (m.); o termo noki (f.)/noko (m.)

compõe diferentes palavras como em noko kori, olhos, noko bako, rosto, ou awabono

noko, semente; por fim, boni (f.)/bono (m.) pode ser tanto uma fruta quanto os lábios ou

o bico de uma ave.

221
Nome Jamamadi Morfologia Morfologia Vegetal
Humano/Animal
ade (f.) / ede (m.) tronco tronco

atori (f.) / ataro (m.) pele, couro casca, cortiça

ime (f.) / ime (m.) carne polpa

afone (f.) / afone (m.) cérebro palmito

tone (f.) / tone (m.) ossos nervura da folha

kone (f.) / kone (m.) pelo/cabelo espinho

mani (f.)/mano (m.) mãos, patas dianteiras galho

tame (f.) / teme (m.) pés, patas traseiras extremidade inferior/base

tati (f.) / tati (m.) cabeça extremidade superior (ex.


"coroa do abacaxi", sami tati)

habi (f.) / habo (m.) tendões, artérias raíz

narabi (f.) / narabo (m.) orelha fungos

noki (f.) / noko (m.) olhos, rosto semente

boni (f.) / bono (m.) lábios, bico fruta

Substâncias fisiológicas vegetais, humanas e animais também são expressas pelos

mesmo termos como adone usado para o sangue humano e a seiva avermelhada de

certas plantas; a gordura e o óleo vegetal são yaha; diversas outras substâncias são

referidas por expressões formadas com o termo fene, a saber, yoha fene, leite materno;

awa fene, látex; maki ka fene, sêmen; noko fene, lágrima; inohoti fene, saliva; yawida

fene, caiçuma de pupunha; sibati fene, mingau de banana; etc

(the) interest in plant growth and maturation is more than mere pragmatic resource
management: they have a genuine aesthetic delight in observing plant life, particularly
the growth of new leaves, and explicitly relate this to certain aspects of human
physical growth (Rival 1993:637).

222
O sistema onomástico jamamadi pode ser caracterizado, em linhas gerais, como

centrífugo (Viveiros de Castro 1992), os nomes vem da exterioridade, sobretudo das

almas de plantas, dos mortos e dos brancos. Cada pessoa possui vários nomes, alguns

são esquecidos ou deixam de ser usados, outros não "pegam" e acabam substituídos,

outros ainda são usados contextualmente por algumas pessoas ou em âmbito familiar.

Os nomes recebidos das almas das plantas, considerados "de verdade", jamais figuram

nos registros oficiais ou documentos por não serem adequados ao contexto das relações

com os brancos com os quais lidam valendo-se de seus nomes "de branco".

Recentemente, os benefícios sociais e a implantação de escolas municipais nas aldeias

despertaram o interesse dos Jamamadi em fazer os seus documentos, suas idas quase

mensais à Lábrea são ocupadas em tentativas vãs de lidar com a burocracia. Para os

documentos nos quais são solicitados nomes indígenas ao invés de usar os seus nomes

de verdade, das almas de plantas, eles preferem adotar nomes de plantas cultivadas

pelos brancos, como Morango e Batata, criar outros nomes, como Pedro Selvagem, ou

recuperar o nome de um parente falecido, única situação em que os nomes são repostos.

Acredito que os documentos, para os Jamamadi, operam de forma análoga às carteiras

de identidade entre os Mamaindê, na medida em que possibilitam um processo de

transformação semelhante ao do xamã. Segundo descrição apresentada por Miller

(2015), as carteiras de identidade funcionam como os enfeites corporais que se remetem

às noções de alteridade e capacidade transformativa, não de identidade e representação.

Caso o nome "de alma" seja o mais utilizado, ele acaba sofrendo modificações, no mais

das vezes reduções, para não ser explicitada a relação do qual provém, já que em sua

forma "original" o nome refere-se sempre à experiência xamânica de um pajé com uma

alma de planta cujo nome pode ter sido emprestado, pode também fazer menção a um

223
evento envolvendo o pajé ou presenciado por ele em seus deslocamentos para os

patamares celestes e subterrâneos (cf. ritual paumari do ihinika em Bonilla 2007).

Assim, Ninifaha é chamada apenas de Nini, Awawaiya transforma-se em Bonowaiya,

Bonoidiha é conhecida somente por Bono.

Até a criança começar a andar e expressar certa autonomia em relação a seus pais, ela

não receberá um nome pessoal. Durante essa fase da infância, todos os meninos são

chamados de sowi bidi, "pênis pequeno", e as meninas de bete (desconheço a tradução

do termo), ou, genericamente, de ewe, "criança pequena". Os "nomes de verdade", oni

yokana, ou "nomes de alma", madi ka oni, são recebidos de um pajé que, em troca de

sementes ou brotos de cultivares, rapé e adornos corporais, pede a uma alma de planta

para que ela ceda seu nome à criança. Ao contrário do que se poderia supor, os nomes

de almas de plantas, em geral, não são aqueles que denominam as espécies, de função

semelhante a dos gentílicos conforme abordarei na terceira parte da tese, de modo que

não há ninguém chamado sibati, banana, mas sim atiweyelinaha, que é o nome de uma

alma feminina particular de banana.

Os nomes de planta não redundam em vínculos privilegiados que confeririam aos

portadores humanos os atributos da espécie vegetal epônima, não há uma necessária

continuidade interespecífica substancial que justificaria a nominação. Deve-se dizer que

não há um ritual específico de nominação, ocorre que por ocasião da visita noturna das

almas alguém possa apreciar o nome do/a visitante e pergunte se seu filho/a ou neto/a

possa ser chamado - o verbo utilizado é weye na, carregar - pelo mesmo nome, sem que

isso implique consubstanciação, transmissão de características ou capacidades

particulares daquela planta.

224
Além dos nomes recebidos durante as visitas das almas às aldeias terrenas, há aqueles

que descrevem ou se remetem de forma cifrada a um evento presenciado pelo pajé em

seus deslocamentos pelo cosmo. Os nomes sempre vem de fora, das viagens e encontros

dos pajés com as almas de plantas cultivadas e não cultivadas, por conseguinte, evocam

uma relação externa ou expressam uma perspectiva acerca desse fundo de alteridade

vegetal. O uso desses nomes é geralmente restrito ao âmbito da família extensa, em

alguns casos, a uns poucos membros, ademais, as pessoas evitam pronunciar os seus

próprios nomes, alegando desconhecê-los ou pedindo para que se pergunte ao seus pais

ou a um parente mais velho. Badá, o antigo cacique geral, recebeu seu nome do pajé

Bahawi que em viagem às aldeias celestes das plantas viu uma mulher inamadi chamar

por seu filho, ela dizia: "vem, Badá, vem aqui!". Tratava-se da alma de uma árvore

frondosa de madeira dura, por isso, o pajé deu para o seu sobrinho o nome da criança

Badá abono. Esse é o nome principal usado por Badá tanto na aldeia como na cidade.

Seu "nome de papel", bebeo ka oni, próprio para os registros e documentos, por seu

turno, é aquele recebido dos patrões que fizeram o contato quando ele ainda era

pequeno; na ocasião, todos de sua maloca foram batizados com nomes de branco: seu

pai passou a se chamar Miguel e sua mãe, Madalena, ele recebeu o nome Edgar Moreira

da Silva. Badá também recebeu um nome após o término de sua iniciação, foi

Raimundo Soares, seu sogro, quem lhe deu o nome Manokamawawi; segundo a

explicação do pajé, esse nome descreve o movimento centrípeto que o braço de uma

alma fazia durante uma caçada. Moaci, uma importante liderança Jamamadi (Nakanike

do igarapé Sabuhã) ofereceu outros exemplos:

225
Na época de meus avós, quando todo mundo era pajé, cada um tinha muitos nomes de

almas, de inamadi. O pajé ia para o céu e do que ele via ou do nome de alguma

criança, filha de alma de planta, ele encontrava o nome para alguém na terra, um filho,

sobrinho ou neto. Minha avó Sonake recebeu esse nome quando um pajé viu uma

alma caindo de seu corpo. O pajé viu o inamadi jogar um korimari de volta para o

corpo de onde tinha saído, como quem despeja água num pote. O korimari assustado

correu do corpo e caiu. Por isso, ela foi chamada de Sonake ["aquela que caiu"]. Já a

mãe do meu pai, Natafi, recebeu o nome de uma alma de mulher de Tamino abano

[árvore não identificada].

Conforme dito na parte anterior, no final da reclusão pubertária, após o ritual de

açoitamento, a menina recebia um novo nome, igualmente resultado da experiência

xamânica com as almas de planta. A esposa de Badá, Sabira, chamada de Dalina em

português, recebeu o nome Bahifaititiwaini; sua irmã Bidama, conhecida como Luzia

em português, ganhou um nome de alma feminina do veneno Iha, Bonobidaha (essa

alma teria visitado a casa do pajé Raimundo Soares e assim se apresentado Bida iha

ama owa oni, "eu me chamo o amargo iha"); sua irmã Beterina recebeu este nome por

causa de uma alma de jarafana, mulher branca, do céu; por fim, sua irmã mais nova,

Bowina, passou a ser chamada de Awanaira (árvore não identificada) após a reclusão.

Recentemente, além dos nomes de almas de plantas, alguns jovens começaram a utilizar

nomes de animais como Pato, Wafa (macaco barrigudo), Sinama (cotia), Abakasai

(cigarra), Awida (piau), Dowisi (calango), Titiri (grilo), etc. não para substituir os

nomes recebidos dos pajés, mas como uma alternativa para mantê-los ocultos. O mais

comum é que estes nomes de animais se refiram à espécie, a única exceção que registrei

226
foi o nome de uma menina, neta do pajé G., que recebeu de seu avô o nome de uma

alma de peixe matrinxã, de acordo com seu relato:

A filha da Maria Rita chama Winaha. Esse é o nome de uma matrinxã que morava no
igarapé Canuaru, onde tem muita matrinxã. Eu matei o peixe e coloquei assim no
galho, pendurado. Aí a matrinxã, que já estava morta, falou para mim: "quando nascer
uma criança, dá meu nome para ela. Eu me chamo Winaha". No meu coração eu
pensei/escutei a alma da matrinxã falar.

Chiquito, Valdo, Saturnino, Mundico são alguns nomes de antigos patrões adotados

pelas gerações mais velhas da época do contato na região do rio Piranha. Tiwi

(corruptela de Steve), Debi, Yefo (corruptela de Jennifer), Robina (variação de Robin),

Abrio (corruptela de April), Mainke são nomes da geração que nasceu na épca da

chegada dos missionários americanos. Simão Pedro, Barriga, Ba, Mariquinha são alguns

comerciantes de Lábrea ou regatões cujos nomes foram adotados pela geração nascida

entre as décadas de 1980 e 1990, quando os Jamamadi passaram a frequentam mais

assiduamente esse município e a beira do rio Purus. Por fim, Izac, Luís, Cangussu,

Micaele, Doutor Marde, Doutora Noemia, Dentista, Falcão, Bala, Kali, Neymar e Rock

(do boxeador Rock Balboa) são exemplos de nomes de funcionários da Funai,

enfermeiros e médicos da Sesai, professores, antropólogos e, evidentemente, jogadores

de futebol e personagens de filmes cujos nomes são usados pelas gerações mais novas.

A onomástica permite a expressão da criatividade em direções bastante inesperadas,

ainda mais atualmente com a influência dos filmes estrangeiros e a aquisição dos

primeiros aparelhos de televisão das aldeias87.

87
A proliferação dos nomes de Jara entre os Jamamadi parece obedecer lógica semelhante àquela
da adoção de nomes e sobrenomes em português pelos Paumari (Bonilla 2007: 207-208).

227
Ademais, há diversos apelidos de duração variável que os jovens solteiros recebem de

cônjuges potenciais cuja relação oscila entre a evitação e as atitudes jocosas ou

provocativas (sujar de sopetão o rosto com urucum, jogar sementes ou flechinhas,

oferecer pedaços da caça abatida ou peixes, fingir à guisa de desafio um temperamento

colérico): Damião passou a ser chamado durante alguns meses de Masi (morcego)

depois que foi picado por este animal, Kei foi chamada de Dilma na época do

impeachment da antiga presidenta, Ieda por acumular muitos objetos recebeu o apelido

de Peruana, apelido que fazia menção ao principal comerciante da praça de Lábrea.

Alguns nomes podem ser completamente abandonados, o atual cacique geral, Abadias,

deixou de utilizar seu antigo nome, Torawa, quando se converteu, contudo, esta não é

uma regra, Yiwarinehe não trocou seu nome de alma, recebido de seu avô, mesmo após

converter-se.

228
Nome em português Madi ka oni/yokana, Nome Apelidos/Outros nomes
de alma/verdadeiro

Maria Júlia Dabi (variação Babi, cacho de Ai towe


banana)

Aparício Minawa (imi abono, alma de Salgado


ingá)

Lindalva Baiwayiiwaine Dossobi, Do, Dora, Nokoko

Raimundo Fahamoniyanawi Bafita, Baode

Consuelo Fasokore Ai bara

Terezinha Amedibinaha (filha de uma -


alma de Iha)

Zezinho Mowakanawi Zé Olino (alma de branco)

Edenise Ninifaha Nini

João Yanoaka (fowa abono, alma Yoaho, Wamibalikani


de mandioca)

Elza Tatiwake (ayawa abono, alma -


de caju)

Simão Pedro Atisaikima (yifo abono, alma Galo, Kalo


de buriti)

Deki Yawamonidaiwawi (o som -


feito pelas almas inimigas)

Malaquias Marafawi (variação de Kimi Maragai, Maka (cobra),


marafakane, "milharal") Marakasa (gato maracajá)

André Boka arabone (botão de Mioka


Embaúba, nome recebido da
alma que o curou quando
criança)

229
Raimunda Mowe (forma curta de Sibati akara (banana quase
Mowelinaha, parte da planta madura)
onde estão as flores)

Dawani Yawida (alma de pupunha) Makayani, Awani (vespa)

Neide Awakina (almas observando Nedi


um grande roçado)

230
7.2 Plantar os mortos, enterrar as plantas: variações perspectivas fadara-temene

Os cultivares apreciam o perfume da terra queimada, renovada pela ação do fogo da

coivara. "Venham morar em sua nova aldeia!", cantam as mulheres chamando as almas

das plantas cultivadas, que se alegram com os cuidados recebidos e o esmero no preparo

de sua morada terrestre88. Dizem que as canas-de-açúcar engrossam, as bananeiras dão

cachos grandes e as mandiocas não tardam a crescer. Atualmente, o esgotamento das

áreas cultiváveis mais próximas, em decorrência da sedentarização em aldeias maiores

que os agrupamentos do passado, reduziu consideravelmente a produtividade das roças.

Soma-se o desinteresse crescente das gerações mais jovens pelo xamanismo que acaba

por afetar severamente a atividade agrícola (cf. parte I), notável na diminuição da

diversidade dos cultivares. Com efeito, em decorrência dos discursos contrários às

práticas xamânicas, redundando em conversões esporádicas, põe-se em risco a soberania

alimentar nativa com a substituição dos cultivos agrícolas por alimentos

industrializados.

Agora menos ritualizada, a queima do roçado reune poucas mulheres para entoar o

yowiri, canto tradicional feminino, enquanto os homens, após negociar com as almas

das plantas derrubadas, adentram a área do futuro roçado com suas tochas de folhas

secas de pupunha. É preciso que o sol esteja a pino para iniciar a queima. Em meio às

violentas labaredas e à fumaça sufocante, os homens gritam em algazarra desviando do

fogo que se aproxima cercando-os. O céu e os homens logo são engolidos pela fumaça

e, no escuro, restam suas vozes, a zoada das buzinas e dos berrantes. As colunas de

88
No plantio da batata-doce entre os Krahô seu crescimento e reprodução seguem a forma circular
das aldeias Timbira (cf. Morim de Lima 2017:459).

231
fumaça, avistadas a grande distância, são admiradas pelos parentes das outras aldeias

que não deixam de comentar sobre os trabalhos e perigos envolvidos na preparação dos

roçados, também especulam sobre a dimensão da derrubada e as almas dos cultivares

aceitarão o convite de viver em sua nova aldeia. Nas margens da área derrubada em

chamas, as mulheres cantam em uníssono exortando os cultivares para que eles vejam o

dedicado trabalho e venham morar ali:

Canto de queima do roçado Tradução

Yamata dai yayainahi! cultivares, alegrem-se!

yamata tabori boneya mai sarineni eles queimam a aldeia para os cultivares

sibati tabori boneya mai sarineni89 eles queimam a aldeia para a banana

yamata wadibone-ka fadara amani quando for o roçado dos cultivares

yamata wadi-ya yayaiteni os cultivares se alegram

yamata wadibone-ka awa-ya oda aniteni quando os cultivares nos vir trabalhar

Passados alguns dias, homens e mulheres, da mesma família extensa, reúnem-se para

plantar, os primeiros abrem as covas e as segundas o preenchem com uma parte de cada

cultivar, figurativamente "mortas": da mandioca e da macaxeira plantam um pedaço da

"perna" (fowa iso); do milho (kimi ino), o "dente"; da banana, a "orelha" (sibati narabi)

etc. O roçado é comparado ao cemitério no qual partes do corpo da planta são

enterrados em covas de onde germinam as almas dos cultivares retiradas do frio e da

89
Esta é uma versão reduzida de um cantos de queima do roçado, via de regra, enumera-se
repetidas vezes os nomes de todos os cultivares que serão plantados.

232
latência pela ação do fogo e dos cantos. "O canto é para as plantas não morrerem",

dizem as cantoras a acerca do efeito esperado. Tão pronto começam a brotar, as almas

choram chamando seus pais, aqueles que os plantaram, reclamando de sede e do calor

do solo, pedindo atenção e água. Ao se fazerem visíveis, as plantas recém nascidas

conversam choramingando com os pajés em suas visitas: "papai, a terra tá quente";

“nossa aldeia é boa, ela é cheirosa!”; “minha mãe não para de trabalhar mesmo sob o sol

quente”; "pai, estou com sede, me dá água!"; "meu pai fez uma casa para mim!. Os

primeiros dias após brotar são cruciais, o pajé deve se certificar do bom crescimento de

seus cultivares que demandam cuidados por serem ainda crianças pequenas. Um canto

feminino, entoado numa tarde por Laide, trata do nascimento da mandioca:

Canto de Laide Tradução

Eeee yowiri i yo wi ri i Fórmula de abertura dos cantos


femininos

fowa abono wami-ya wi wina wi wina a alma da mandioca na terra vive

wami hiwa waine fowa abono o calor da terra faz amadurecer

ati nawa nawa hai nawa nawa hai diz a alma da mandioca

fowa abono wami ya wi wina wi wina a alma da mandioca vive na terra

wami-ya ohina wai bonehe fowa abono na terra, chora a alma da mandioca que
amadurecerá

ati nawa nawa hai nawa nawa hai diz a alma da mandioca

wami-ya ohina wai waini wa waini na terra, chora

wami-ya wiwina wiwina na terra, vive

233
fowa abono ati na nawa hai é a fala da alma da mandioca

wami hiwaha-ya ohina na terra esquentada, chora

wai bonehe fowa abono a alma da mandioca amadurecerá

ati nawa nawa hai nawa nawa hai essa é a sua fala

De maneira semelhante, no ritual de queima do roçado Suruwaha, as mulheres cantam

para atrair os espíritos das plantas cultivadas, aha karuji (Aparicio 2015:131):

Los dueños de la roza conducían el incendio. Tocaban de manera ritual, solemne, las
trompetas huriatini, llamando a los espíritus de las plantas cultivadas, aha karuji.
Todos gritaban con mucha animación, desafiando al fuego para que este consumiese
troncos y ramas. Las mujeres intentaban atraer con su canto al espíritu de la mandioca,
mama karuji.

Os cantos hawahawi, que compõem uma série de 20 músicas, são performados pelos

Suruwaha na noite que segue a queima dos roçados. Seguindo a análise de Huber

(2012), eles teriam sido ensinados pelo homem-cobra, da espécie hasanawa, aos

humanos no passado mítico, sob a ameaça de serem picados caso não realizassem

corretamente os rituais de queima e colheita. Sendo imitações da fala da cobra, os textos

destes cantos são parcialmente incompreensíveis atualmente para os Suruwaha: “suas

palavras são tão antigas que ninguém mais as entende” (idem:341). A parte dos cantos

cujo conteúdo é acessível trata da oposição entre homens e mulheres numa comparação

entre sexo e plantio. Segue uma versão resumida do mito sobre a origem dos cantos

hawahawi suruwaha (idem:340):

234
Os primeiros humanos foram coletar frutas de seringueira, quando uma cobra gigante
desceu da árvore frutífera. A cobra (sem adotar forma humana) mandou as pessoas
terminarem de ajuntar as frutas, e as ajudou a colocá-las num panaco. Depois mandou
as pessoas carregá-la pelo caminho num panaco, e durante a caminhada, lhes ensinou
os cantos hawahawi. Ordenou às pessoas que cantassem [“imitassem”] seus cantos
depois de queimar seus roçados e lhes disse que caso não o fizessem, cobras as
picariam quando fossem plantar mandioca. Além disto, as mandou andar apenas nos
caminhos e não na mata fechada, porque os não-caminhos pertencem às cobras
venenosas (Xagani, Lábrea, 02.04.12).

Ainda segundo Huber (com. pess.), os Deni realizam um ritual de queima do roçado e

associam seus cantos ao mito do Mapiri siusiu (que em deni não tem um sentido claro,

mas que em kulina significa “sucuriju”). A presença da cobra nos rituais agrícolas

parece ser um tema comum aos povos arawá; apesar de não colocarem em relevo esta

figura, os Jamamadi açoitavam até recentemente as crianças na ocasião em que estas

fossem consumir os produtos de um roçado novo com a intenção de evitar que fossem

picadas por cobras e para alegrar as almas das plantas do roçado.

Fig. 14 Graça canta durante a queima do roçado

235
Há diferentes verbos usados para descrever o plantio: o v.t. kama tem o sentido de

aterrar, plantar enterrando, de modo que fowa iso kamahi pode ser traduzido como

"plantar maniva de mandioca encobrindo-a na terra"; o v.t. koro na não especifica o

cultivo plantado, apenas a ação de plantar enfatizando o seu movimento, em

conformidade com a segunda acepção do verbo que é jogar ou jogar algo em (fa koro,

"jogar na água", i.e., pescar), assim, fowa mai koronani mai oda wasima, "nós os

encontramos plantando mandioca"; o v.t. na- tafa descreve a ação de plantar à

semelhança de alimentar alguém, awa mai natafaboneni, "eles farão roça"; o v.t. taba

na é a ação de plantar fazendo covas com um objeto pontiagudo, fowa iso ai tabanani,

"plantamos maniva de mandioca cavando a terra"; o v.t. tiha ka- na é plantar fincando

ou batendo na terra como em biha tiha okanaboneni, "eu vou plantar cará"; o v.t. wasa

kanisa é usado para os cultivos que são enfiados na terra, o sentido é de friccionar ou

esfregar, dessa maneira, koyo iso ai wasa kaniserihi, "plantamos as estacas de

macaxeira"; o v.t. yiha na é plantar com o sentido de "transmitir", como alguém que

transmite uma doença, desse modo fala-se yiha onabonehe fadara-ya, "vou plantar no

roçado"; por fim, o v.t. yoko na é o plantio empurrando ou apertando, yawida noko yoko

onani, "eu aperto/planto as sementes da pupunha".

O mesmo v.i. yana é empregado para o brotar das plantas e o crescimento dos humanos

com o sentido de nascer90, donde, diz-se indistintamente bidi mai yanateni, "os filhos

(os pequenos de alguém) nascem", e ao ser acompanhado do auxiliar na tem o sentido

90
As plantas inspiram imagens do crescimento geracional entre diferentes povos de língua Jê.
Morim de Lima (2017:460) cita algumas passagens de trabalhos que formulam a sucessão geracional em
termos vegetais: "entre os Mebengôkre, o termo genérico para os jovens é 'broto novo', uma das
consequências lógicas de representar as genealogias com os ancestrais na base e as gerações
'descendentes' brotando para cima e para os lados" (Lea 2012:102). (...) Entre os Apinayé, a imagem do
pé de milho evoca a sucessão das gerações, seus diferentes graus de 'maturação', com as espigas que
crescem na parte de cima, geradas pelos velhos que ficam na raiz (Roberto DaMatta 1976). Entre os
Panara, a palmeira de buriti 'cresce no mesmo lugar de modo análogo à identidade clânica, definida pela
fixidez espacial' (Schwartzman 1988)".

236
de levantar, sair, aparecer, ou seja, yamata yanineni, "os cultivares brotam", e ai

yanineni, "nós crescemos". Se ao verbo yana for acrescido o morfema -ma há o sentido

de um crescimento renovado ou rebrotar, tikadao yanamaibonanai, "teu filho

crescerá/brotará de novo".

Tão logo os brotos dos cultivares irrompem do solo, suas alma vão para o céu, de onde

vigiarão sua forma terrestre e protegerão os seus pais Jamamadi. O enterro, a

fragmentação e a liberação da alma é um processo que se repete de maneira bastante

similar no plantio e na morte. Nesta fase, os donos dos roçados, fadara ka hidi,

desdobram-se em cuidados a fim de assegurar seu pleno desenvolvimento, portanto,

retirar as plantas invasoras, identificar a presença de formigas (os ninhos são localizados

e destruídos com água quente ou fogo), afastar os animais predadores e conversar com

as plantinhas são ações imprescindíveis. Ir olhar as plantas diariamente é igualmente

crucial nesta etapa do desenvolvimento do roçado. No outro extremo da agência

destruidora do noko koma, "o olhar envenenado", há o olhar dirigido aos cultivares para

fazer-lhes crescer que é dito katoma, sinônimo de cuidar, de promover o crescimento, de

zelar, de responsabilizar-se, ou de forma enfática e contínua, notável na reduplicação

dos morfemas, falam em kakatoma ou kakatomama, o olhar insistente, repetido e

obstinado. Apesar de menos frequente, também é usado o v.t. kii na, olhar

demoradamente, ai ka fadara ai kiiteni, "vigiamos/olhamos com atenção nossa roça".

As plantas cultivadas são os filhos dos Jamamadi que as plantaram, donde: a alma de

uma bananeira plantada por Bahawi, por exemplo, é o duplo humano da bananeira e

filha/o deste xamã, além de um de seus espíritos auxiliares. São as almas do roçado que

vêm buscar a alma daquele que a plantou para levá-la à sua moradia póstuma; além de

serem, aparentemente, seus cônjuges preferenciais celestes. Parece-me que a filiação

237
envolvendo Jamamadi e plantas se inverte no pós-morte, ou seja, as posições de “pai” e

“filho” são reversíveis (não saberia dizer se essa reversão se aplica integralmente a

todas as posições de G+1 e G0): as almas de planta antes filha/o torna um potencial pai

adotivo. O mesmo não se aplica à filiação "real", que não se desfaz com a morte do pai

ou dos filhos. O processo é semelhante àquele descrito para os Jarawara (Maizza

2014:504):

O processo que separa as almas das plantas de seus corpos se assemelharia a um


nascimento (ou à morte): uma pessoa semeia em seu jardim; algum tempo depois a
planta sai do solo e começa a crescer. Quando ela atinge certa altura, estando ainda
pequena, baixa, sua alma sai de seu corpo e fica ao lado deste, chorando. Os xamãs
dizem que a alma da planta tem a aparência de um bebê humano e é filha da planta da
qual saiu. A alma da pupunha (yawita abono) é filha da pupunha, por exemplo. (...)
Essas crianças que choram ao sair do corpo-planta seriam, além de filhos das plantas,
filhos da pessoa que semeia: 'okatao yokana' é meu filho de verdade, me chama de
okobi (meu pai)', me disse um amigo. (...) Ao sair de seu corpo-planta, a criança-planta
chora e é então levada 'lá para cima' por almas de plantas que já moram no neme [céu]
e descem apenas para buscá-la. Ela é então criada por um casal de gente-planta (não
necessariamente da mesma espécie que ela), que nomeia. Ao crescer, chamará de pais
os componentes do casal.

Ecoando o argumento proposto por Lima (1996:35) acerca da duplicidade dos seres e

dos acontecimentos91 ou a impossibilidade da existência de uma realidade objetiva nas

cosmologias perspectivistas, o que os Jamamadi vivem e apreendem como plantio pode

ser visto como o enterro para as plantas, pois não sendo um evento único, irredutível a

91
Recuperando brevemente o argumento da autora: considerando-se parte da humanidade, os
porcos tratam a caçada dos humanos como um confronto no qual tentam capturar estrangeiros, intenção
efetivada caso o caçador humano não respeite a circunspecção exigida no trato com os porcos; por outro
lado, do ponto de vista humano, o evento parece um ataque dos porcos ao serem caçados. Do
questionamento da proposição acerca da existência de uma realidade independente - "o que existe, existe
para alguém"-, a autora dissolve a distinção entre substância e acontecimento na cosmologia Juruna, de
modo que não é suficiente dizer que o que os humanos vêem como caça, os porcos vêem como guerra,
afinal, esses são dois acontecimentos paralelos, não dois modos de apreensão de um único evento (Lima
1996).

238
um ponto de vista totalizante, o ritual de queima e o subsequente plantio se desdobram

paralelamente para as plantas de um modo parecido a um rito funerário: os Jamamadi

plantam cultivares em seus roçados // os Jamamadi enterram os corpos dos cultivares

em seus túmulos. Plantio e enterro são ações correlatas, vividas em concorrência pelos

humanos e pelas plantas, segundo temporalidades distintas, alheias à simultaneidade,

por isso, parafraseando Lima (1996:31), não se recobrem inteiramente, com efeito, o

que existe para os humanos é apenas parte do que sucede para outrem, neste exemplo as

plantas.

O roçado é, então, a forma terrena dos cemitérios das plantas cultivadas onde partes de

seus corpos – perna, dente, orelha, etc – são plantados/enterrados e ao crescerem seus

duplos humanos são levados para viver no céu. De maneira semelhante - resultado das

transformações perspectivas e deslizamentos semânticos dos termos fadara, roça, e

temene, cemitério -, o enterro dos mortos humanos ocorre, do ponto de vista das plantas,

como ação agrícola: as almas dos cultivares plantam a alma-coração dos mortos em seus

roçados // as almas dos cultivares refazem os corpos humanos e os adotam. As palavras

eloquentes do pajé B. a respeito da escatologia revela que este processo exarceba a

parcela vegetal que constitui a humanidade:

Vivemos e morremos de um jeito parecido [das plantas]. Quando uma pessoa morre,
seu korimari [alma] é levado para o céu por um espírito inamadi. Lá, ele será criado
(como uma galinha) depois que nascer e passará por todos os rituais. O corpo do
morto a gente planta do mesmo jeito que maniva ou banana. Ela, a maniva, está morta
e fria. Tudo [cultivares] é pedaço de coisa morta. E, se a alma não vem, as coisas não
crescem. Quando corta a maniva, não dói? Dói sim, o yamata chora. No roçado, a
gente planta um pedaço do corpo, do mesmo jeito somos nós. Ai wami-ya kamaho,
'somos plantados/enterrados na terra'. E kamahi wami-ya sibati, 'na terra é
enterrada/plantada a banana'.

239
Alguns dias após o enterro, a alma do morto brota de seu túmulo e, assim que for

localizada, é levada para sua morada póstuma nas aldeias celestes. Por intermédio de

um pajé, as almas dos cultivares são avisadas para procurarem e resgatarem o korimari

do morto, abordarei esse ponto adiante com mais vagar. Não raro acontece de um

espírito inamadi capturar a alma recém nascida, de modo que o yamata abono

encarregado terá mais trabalho para localizá-la e convencê-la a ir com ele. Quando o

morto aceita acompanhá-lo, a alma o leva para o céu, onde será cuidado até recuperar-

se. Novamente, o processo é semelhante àquele jarawara:

Assim como as plantas, após o enterro, a alma do morto sai da cova e fica esperando
para ser levada. A grande diferença é que, apesar de ter a aparência humana, ela não
seria uma criança. Quem desceria para buscá-la seriam seus próprios filhos-planta:
almas de plantas que a pessoa cultivou em vida e que foram levadas para o neme [céu]
quando pequenas (Maizza 2014:505).

Fig. 15 Cemitério coberto com telha de alumínio na margem do antigo roçado de Badá

240
Apresento uma versão do mito de origem da vida breve no qual alguns pontos centrais

deste argumento são elaborados. Nas ocasiões em que me contaram esse mito, um dos

mais populares, eles chamaram minha atenção para a inexistência de cemitérios no

passado mítico, época na qual as pessoas eram plantadas e rebrotavam, uma reiteração

do modelo de existência animado por uma energia vegetal92.

Uma mulher idosa criava cobras de diferentes espécies, em recipientes de barro,

tampados com abanos. O neto, sem saber das cobras, foi beber água e ao destampar os

recipientes acabou picado seguidas vezes no rosto, duas vezes nas bochechas e outras

vezes na testa. A criança “morreu” logo. Seu pai, que era xamã, não se aborreceu

porque ele sabia que o filho só estava "dormindo"e não tinha morrido. Assim, ele

enterrou o corpo para que ele voltasse a viver. O pajé fez um buraco do tamanho exato

para caber o corpo do filho sentado. Naquela época todos eram enterrados assim para

facilitar a saída do “túmulo” que não era totalmente tampado, apenas coberto com uma

leve camada de terra. Por vezes, era erguida sobre o túmulo uma cobertura de paxiúba

e amarrava-se um fio de algodão com uma pena de tucano na ponta para que o morto

puxasse assim que começasse a nascer para sair do buraco. Contudo, o pai não havia

feito essa casinha para o filho por ele ter pressa para caçar. Ele queria trazer carne de

caça para alimentar o filho porque as pessoas ao renascerem sentem muita fome. A

criança cresceu igualzinha ao filho da banana (muda da banana): ele “rasgou” a terra,

empurrando-a com a pontinha da cabeça que saiu como um broto. Porém, o pai havia

esquecido de avisar para que sua mulher tivesse cuidado quando fosse limpar o

terreiro. Ela desavisadamente arrancou a cabeça do filho que estava brotando. A terra

ficou molhada com seu sangue. O pai voltou com a caça e viu o sangue do filho,

então, enfureceu-se com a mulher. Ele se deu conta que o filho não voltaria mais a

92
O tema da vida breve indica um outro conjunto etiológico, ainda que vagamente esboçado no
mito Jamamadi, a saber, o da origem da agricultura e a aquisição das plantas cultivadas, que abordarei no
capítulo seguinte. Lévi-Strauss (2004[1964]) sugerira em sua análise de um conjunto de mitos Jê que a
morte se impõe aos humanos como preço a ser pago pelas plantas cultivadas, em virtude da vingança da
mulher-estrela ou porque os adolescentes descumpriram a proibição do consumo da carne de sariguê.

241
nascer. Ele a matou arrancando de seu ventre a criança que ela esperava, a carregou na

boca e pulou num galho transformando-se no macaco da noite/jupará (Potos flavus),

kokosi. Ele se casou com sua filha e com ela teve muitos filhos. As vasilhas de barro

foram quebradas e as cobras se espalharam, por isso, há cobras em todo o lugar. As

pessoas tampouco renascem na terra, por isso, hoje são enterradas deitadas.

Na narrativa acima, um estado de indiferenciação entre humanidade e plantas é descrito

nos termos da capacidade regenerativa ou vitalidade vegetal/vegetalidade perdida com a

origem da morte. No mito está dada a impossibilidade de determinar com precisão os

limites do vegetal e do humano. Antes, “nós voltávamos para trás”, eles costumam dizer

para explicar o retrocesso no fluxo temporal e a ausência da morte do tempo mítico.

Prosseguindo a explicação, mencionam a banana, às vezes a mandioca, enfatizando seu

modo de desenvolvimento para ilustrar o nascimento humano93. Essa é a imagem

recorrente mobilizada para descrever a alma/coração brotando: a bananeira rompendo o

solo, empurrando a terra para despontar na superfície; chegam a afirmar que “gente e

banana cresce igual”. Em lugar de afirmar que a animalidade é outra face do humano, a

mera sugestão de que possa existir vínculos "evolutivos" que relacionem humanos e

animais, com a precedência temporal e lógica atribuída a estes, soava-lhes ofensiva –

como presenciei numa aula de ciências ministrada na escola da aldeia. Em uma

formulação um tanto rápida, mas adequada com o que diriam os Jamamadi: é intrigante

que eles reconheçam ter mais em comum com as bananeiras que com os macacos.

93
A oposição vida/morte não se expressa aqui através do par duro/mole, perecível/imperecível, tal
como elaborado por Lévi-Strauss no conjunto de mitos sobre o tema da vida breve nas Mitológicas
(2004[1964]). A morte teria sido o resultado da resposta da humanidade ao chamado da madeira
(mole/perecível) ao invés da rocha (dura/imperecível). Interssante observar que apesar da alma-coração
ser comparada às sementes, o processo regenerativo no discurso expressa um modelo de desenvolvimento
vegetativo, por clonagem (ver considerações finais).

242
Em virtude da perda da resiliência vegetal, a humanidade tornou-se dependente das

almas de planta e suas relações de cultivo para completar plenamente sua morte94. A

perenidade da existência vegetal é o desconhecimento da finitude humana: “a bananeira

pode morrer, mas o filho dela nasce; você queima o roçado e a mandioca cresce de

novo”. Ou nas palavras do pajé D: "Antes, morria, enterrava e voltava para a aldeia. O

inamadi é planta mesmo como yawida, a pupunha. Eram plantados e voltam a brotar de

novo". Os jamamadi eram como os yamata cuja periodicidade tem valor de vida, ao

passo que, para a humanidade, tornou-se valor de morte (Lévi-Straus 2004[1964]:188).

A capacidade regenerativa das plantas é enaltecida por outros povos que, ademais,

valem-se de suas características sensíveis a fim de conceitualizar seus ciclos biológicos

e sociais:

(...) the Huaorani celebrate in their myths and poetry the inherent power that biological
organisms have to grow themselves and be alive, which is especially visible in new
leaves that shine. Today, they say that brightly coloured brand-new clothes shine as
young leaves. The power of self-regeneration does not derive from human
intentionality, and the vitality and will to live such a power signals is not necessarily
attributed to a spiritual force; in any case, the cosmic force that causes plants and
animal and human bodies to grow and live is neither singularised nor
anthropomorphised (Rival 2012:135).

94
Haudricourt descreve a Nova Caledônia como um exemplo do que ele chama de "civilização do
inhame". Comparando as práticas agrícolas baseadas nos grãos com aquelas de turbérculos, ele constata
diferenças produtivas acerca da relação entre o homem e as plantas cultivadas. Os tubérculos conformam
uma cultura do clone: "à chaque saison de culture les mêmes individus sont replantés pour être récoltés à
la suivante. Le mot clone désigne l'ensemble des tubercules provenant, par repiquages successifs, du
même individu. Il s'agit donc d'une agriculture dont la base biologique est absolument stable, et
l'agriculteur sait qu'en cas de mauvaise récolte, le sol, son travail et la pluie sont seuls responsables, et
qu'il ne peut incriminer une 'dégénérescence'" (1964:95). Volta-se aos Jamamadi a questão posta pelo
autor: "[n]e vaudrait-il pas mieux considérer l'homme vivant comme apparenté à son champ, domaine de
la vie journalière, du prévu, de l'attendu, du rationnel, puisque les clones des plantes cultivées y sont
toujours identiques à eux-mêmes?"(idem:100).

243
O fogo da coivara restitui a vida às plantas despertando-as de sua pseudo-morte porque

"as plantas não morrem. Até nossos filhos jovens morrem, mas as plantas, não. De

repente, elas voltam a viver", disse-me Berinawa assitindo uma área derrubada em

chamas. Agora, os filhos-planta precisam buscar a alma/coração dos Jamamadi para que

eles alcancem sua morada póstuma, onde serão por elas plantados para que renasçam,

rejuvenesçam e voltem à vida, recuperando a vitalidade, os batimentos cardíacos e a

respiração. Em seu destino póstumo, os Jamamadi serão criados por elas, submetidos

aos rituais de iniciação pubertária e xamânica, viverão em suas aldeias, trabalharão para

seus patrões e se casarão com as almas de plantas que cultivaram em vida. Quando

falecerem no céu, o processo se repetirá da mesma forma e a alma da alma será levada

para outro céu mais acima, a capacidade da alma se desdobrar ou brotar é praticamente

ilimitada, muito embora esse retorno cíclico, atávico, não seja entendido como infinito.

O pajé B. não se cansava de frisar que as mortes sucessivas são acompanhadas de

deslocamentos para os céus superiores, onde são vividas existências de durações

distintas:

Todos fazem esse caminho quando morrem: primeiro são tratados como num hospital
e, depois, vão viver na aldeia grande. Os jovens são adotados, os adultos sem demora
se juntarão [casarão] com algum yamata abono. A pupunha é a preferida porque sua
comida é gostosa. Neste céu, há morte também e, depois dele, tem outra vida longa,
mais longa que a da terra.

Antes de prosseguir, recapitulo meu argumento: os roçados são cemitérios onde as

gente-plantas são cultivadas pelos Jamamadi e os cemitérios nos quais os Jamamadi são

enterrados são os roçados onde essas gente-plantas buscam sementes para cultivar no

céu. A atividade agrícola jamamadi fornece o subsídio material para a manutenção da

244
vida na terra e, simultaneamente, a reprodução da vida vegetal celeste; as práticas

agrícolas das almas de plantas produzem os alimentos necessários à subsistência das

aldeias do céu e o renascimento adequado dos Jamamadi em sua existência póstuma.

Sem a capacidade regenerativa imanente às plantas, a morte impõe uma condição

liminar aos humanos, instável e perigosa, somente restaurada pela intervenção das

gentes-planta, a prática agrícola sendo igualmente funerária95 é o que efetiva a

transformação, ou passagem, de um estado ontológico a outro. Em certa medida, esse

retorno atávico ecoa o argumento proposto por Haudricourt ao aproximar os mortos aos

espaços da capoeira - um intervalo que antecede o domesticado -, dado o caráter

"inculto" de ambos: "c'est que l'homme vivant qui mange des ignames est le 'cultivé',

alors que, mort, il est devenu un 'inculte', comme le champ abandonné devient jachère"

(Haudricourt 1964:100). O autor não sugere o retorno irrevogável à natureza, mas a

apropriação de elementos/potências da exterioridade para a produção do social, afinal,

"de même que la jachère peut redevenir un champ, 'l'inculte' peut redevenir 'cultivé', il

apparaît donc comme le 'dieu' (...)" (idem). O retorno, contudo, como já sugere o texto

do autor96, não restaura a condição prévia, a transformação atualiza o que antes

permanecia apenas entrevisto, a vegetalidade humana.

95
A correlação entre ação funerária e atividade agrícola parece-me ecoar aquela estabelecida por
Lévi-Strauss na "cantata do sariguê" (2004[1964]:197:222) na qual o tema da origem da vida breve é uma
função da origem das plantas cultivadas.
96
"Dans les récits traditionnels, les 'résurrections', les retours à la vie s'opèrent par l'ingestion d'un
aliment 'cultivé', soit la pomme-canaque (Syzygium malaccensis) qui tombe dans la bouche du cadavre
flottant, soit l 'igname grillée, que 'l'inculte' vomit d'abord et n'arrive le plus souvent à ingurgiter qu'après
trois essais. Dans les récits de retour à la vie recueillis dans le centre (Houailou), l'igname est
accompagnée de la canne à sucre, et son absorption est précédée d'un crachotement d'herbe (procédé
usuel des guérisseurs). Dans les récits du nord (Koumac), l'absorption d'igname est précédée d'un
frottement de noix de bancoul" (1964:100). O autor fundamenta-se em um trecho Maurice Leenhardt: "un
homme fut assassiné en revenant d'un pilou; seul son esprit revint chez lui faire ses adieux à sa femme et
à son fils, puis alla dans la forêt disparaître dans un arbre. Son fils voulut le rappeler à la vie. Il monta à
Kondu, déterra une igname, coupa une canne à sucre, et s'en alla au lieu où son père, autrefois, avait été
perdu de vue. Il fit un sacrifice et pria: 'Père, grand-père, qu'il pleuve à verse, que le tonnerre éclate, que
descende une inondation'. le tonnerre donc éclata, déchira l'arbre où le père était enfermé. Le tronc

245
Diz-se que os mitos se definem pela transformação de um estado de indiferenciação

original, intensiva, um mundo de continuidade ontológica aos seres que partilhavam a

mesma condição humana, antropomórfica (cf. Viveiros de Castro 2014); no caso em

foco, a perda da inteligibilidade através da especiação, entendida como formas de vida

que transcorrem em escalas temporais distintas, ocasionou a modificação dos fluxos

relacionais entre a humanidade vegetal e a humanidade atual. Outrossim, não creio me

afastar do argumento ao afirmar que o referido mito de origem da vida breve não é

somente narrado como um postulado sobre a passagem abrupta de um tempo em que a

morte era desconhecida para um tempo de mortalidade inescapável, resultado de um

engano, uma dessas falhas na comunicação bastante comuns nas narrativas míticas, na

medida em que os Jamamadi não contam esse mito com a intenção de justificar um

comportamento ou pensamento atual, ainda que ocasionalmente possa ser o caso, trata-

se mais bem de por às claras "o mundo tal como ele é de um modo altamente

problemático, tornando, assim, paradoxal o óbvio" (Taylor 2012:215).

Em uma abordagem mais delimitada, uma precaução para contornar as soluções

apressadas, parece-me que os Jamamadi salientam que perderam a perenidade das

plantas, um prolongamento da vida que não é a duração perpétua, eternidade, mas uma

“má infinitude” (cf. Marder 2013: 107-112), dado que as plantas não morrem à maneira

dos humanos e animais, mas sua permanência e integridade ultrapassam a

longevidade/capacidade de crescimento da maioria dos seres97 que não coexistem com a

s'entrouvrit, le jeune homme bondit, saisit son père, lui donna un morceau d'igname; mais le père le
vomit; le jeune homme lui en donna un autre qu'il avala, puis lui offrit une canne à sucre qu'il vomit; au
second essai, le père l'avala"(1964:100-101).
97
Conferir o capítulo "Vivre sans jamais cesser de grandir" no livro "À quoi pensent les plantes" de
Jacques Tassin (2016). Da lista de coisas que as plantas estão supostamente privadas, a saber, movimento,
sentimentos, reflexividade e consciência, emerge o crescimento como sua qualidade primária positiva,
tomado como essência definidora da alma vegetativa, de acordo com a caracterização aristotélica

246
própria morte. Quando os animais atingem a maturidade sexual, seu crescimento cessa

quase por completo, ao passo que para as plantas essa etapa do desenvolvimento não é o

prenúncio de seu fim.

O desenvolvimento das plantas não é constrangido por limites temporais, pois “[o]

corpo vegetal é uma indústria morfogenética que não conhece a interrupção” (Coccia

2016: 26). O botânico Francis Hallé é preciso "l'arbre vit et meurt simultanément"

(1999:148). A morte indefinida, realizada em mortes sucessivas, é a expressão da

resistência vegetal, da importância de “seguir morrendo”, Yiwalinehe já o dissera em

outro momento: ser plantado para brotar em outra vida, em outro céu98.

tripartite da psyche: "It's this wild, potentially even cancerous, growth that is both the promise and danger
of vegetable life in Greek thought. (...) It is this 'wild' essence of uncontrolled growth that earns plants
their position as the 'lowest' or most basic form of life (precisely insofar as growth and the ability to
reproduce and die are the rudimentary markers for life in Western thinking" (Nealon 2016:31).
98
Não poderei demorar na questão da conversão religiosa e as complexas transformações
implicadas, temas largamente desenvolvidos entre diferentes povos amazônicos (Vilaça 2015, 2016a e
2016b). Sobre o assunto, arrisco somente um breve comentário. A boa infinitude de Deus, a saber, a
eternidade, é a solução evangélica que se contrapõe ao modelo de vida das plantas. Resumidamente, a
figura das almas da plantas cultivadas é substituída pelos deoso ka yoyose, os anjos (tradução literal seria
"ajudante de Deus"), na tarefa de resgatar e levar as almas para a cidade de Deus, no último céu, onde não
há mais doenças e guerras, tampouco qualquer comunicação com a terra, quer dizer, toda atividade
xamânicas é interrompida. O tempo divino é estável e homogêneo, um contínuo linear e uniforme não
suscetível à incontinência cronológica da alteridade vegetal. Dizem que no último céu é tudo parado, as
coisas não se desgastam, não ficam sujas e ninguém envelhece. Neste patamar, não há plantas, portanto,
não há guerra mundial ou conflito de qualquer tipo.

247
7.3 A morte como fragmentação da pessoa

Se no passado mítico o túmulo consistia num buraco com as dimensões exatas para

caber o corpo posicionado sentado, hoje, os mortos são enterrados deitados, numa

espécie de casa coletiva coberta com telha de alumínio. Na cova onde o corpo é

depositado, é posto um assoalho feito de ripas de paxiúba para impedir o contato direto

com o chão e, sobre ele, coloca-se uma esteira de paxiúba e um pouco de terra, que não

pode ser em grande quantidade para não atrapalhar a saída dos componentes da pessoa.

A umidade irrita o morto, torna irrascível a alma ao brotar, de modo que é preciso tomar

muito cuidado para que o corpo não se molhe. Ademais, da mesma forma que as

plantas, manter o calor é fundamental na germinação/fragmentação da pessoa.

À alma-coração, korimari, e à onça, ai ka yomahi, que se desprendem do corpo do

morto reserva-se o céu como destino póstumo, onde chegam por intermédio dos yamata

abono com quem irão se casar, trabalhar e viver. Os animais e o espectro ai fami,

liberados em seguida, têm outro rumo: aqueles vão para o subterrâneo e este está fadado

a vagar na terra.

Coração e alma são termos intercambiáveis no discurso centrado na morte, uma das

razões para se evitar definições excessivamente anatômicas do coração como órgão tout

court, pois, se é a sede do saber, da fala (owa atibodi ati, "minha fala/palavras"), dos

sentimentos (owa atibodi koma, "estou triste"; owa atibodi oina, "choro de tristeza";

owa ati bodi arira, "estou assutado"; owa ati bodi yayaineni, "estou feliz"), da

vitalidade, do pensamento (owa ati bodi kadika, "meu pensamento/imaginação"), e da

248
própria alma, ele condensa e embaralha aspectos biológicos, estéticos, anatômicos e

ecológicos.

Na concepção suruwaha, gianzubuni – “o núcleo do peito”, o coração – é o centro do


pensamento e da memória, ao estilo do que se encontra em outros cenários indígenas
da Amazônia (Belaunde 2005:43; Santos Granero 2006:104). O coração é o
depositário dos saberes (gianzubuni takuniri, “o coração sabe”), é sujeito de
lembranças e esquecimentos (gianzubuni imiahkari, “o coração esqueceu”), é agente
da comunicação e da fala (na gianzubini atini, “meu coração fala”...). É também o
centro das emoções: kakuma, a vergonha; zawa, a raiva; zamakamunini, a saudade;
asini, a mágoa; hakari, a alegria; gurakari, o medo; azanaru, a tristeza. (...) Eixo do
conhecimento e da própria perspectiva, o coração corre perigo de ser predado por
espíritos ou por inimigos, o que implica uma captura perspectiva que pode tornar-se
irreversível. (...) “Quando a pessoa morre o coração sobe para o céu igual ao trovão”,
dizem os Suruwaha. O coração sobrevive à morte da pessoa: quando a pessoa morre, o
corpo apodrece (haty) e o coração gianzubuni se transforma em “alma”, asuma. Esta
transformação (jahuruwa) se desenvolve como troca de perspectivas, anteriormente
incompatíveis (Huber 2012:132-133).

O coração, atibonokori, é a lembrança de um passado em que a face vegetal da

humanidade não era oculta, talvez por esse motivo, guarda a potência do crescimento e

da possibilidade de vida futura. Tal concepção de vida e morte é reiterada na ideia do

coração como semente, conforme dizem explicitamente: “o coração é semente de

gente”. Seria por esta razão que dos cultivares plantam-se outras partes do corpo além

do coração/semente?99 Na morfologia do termo atibonokori identifica-se a partícula ati,

99
Muito embora, de forma correspondente, as sementes também sejam o coração das plantas. Certa
vez, levei uma bronca porque joguei os tomates que eu comprara na cidade, mas que tinham estragado no
caminho de volta para a aldeia. Ainda que os frutos não servissem para o consumo, as sementes podiam
ser plantadas, eles alegaram. Além disso, desaconselha-se descartar as sementes das frutas sem cuidado
ou em qualquer lugar. Presenciei alguns vezes esse cuidado, quando após comer um fruto, as pessoas
diziam em direção à árvore: "Obrigado, meu parceiro!", e enterravam a semente perto dela. Além disso,
quando vão à cidade de Lábrea, os Jamamadi sempre voltam com saquinhos cheios de sementes das frutas
que comeram para plantar na aldeia. Se algum parente comeu melancia, laranja ou maçã e não levar as

249
voz, palavra, som; bono, núcleo, coisa concentrada, comprimida, condensada ou

compactada - como em awabono, fruta; fabono, gelo; hemedibono, comprimido; e bono,

bico de pássaro -; ko- e ri- são dois morfemas com sentido pouco preciso. A análise

morfológica (já apresentada na análise do conceito de abono) que proponho do termo

jamamadi baseia-se na hipótese que seu sentido base vem de boni/bono como coisa

concentrada, consistente, condensada, comprimida, substancial.

Em suruwaha e em deni100 (também em paumari), ati é o fígado, local dos pensamentos

e emoções. Em deni, bunukhu faz parte da expressão vabunukhuri (coração) e

bunukhude (reto como uma vara ou árvore. Também uma pessoa "comprida", alta, seria

bunukhude). Em suruwaha, o termo corresponde à bunubunu kuri (fino, comprido). Em

deni, nukhu isoladamente é "olho" ou "semente" e a expressão nukhu abanuri seria

"espírito auxiliar" sendo abanu/abanuni "imagem" ou "foto". Em suruwaha, bununu é

"concentrado" como em himiaju bununuwaru, "comprido" (remédio), em contraposição

à hiiaju haharu, "remédio em gotas".

Não é se estranhar, portanto, que a alteração dos batimentos cardíacos, o pensamento

confuso, a dificuldade de articular a fala, a fraqueza e a febre sejam sintomas comuns

das doenças. A raiva é descrita como o coração batendo com muita força; a tristeza e a

saudade são dores agudas no coração; o carisma é ter um coração forte; “meu coração

sabe” é dito apontando para o peito ao afirmar que se detém um certo conhecimento; a

expressão usada para declarar um ponto de vista é owa ati bodi... cuja tradução seria “de

sementes para os que ficaram, se estes ficarem sabendo, com certeza, haverá briga. Quando chego na
aldeia com frutas da cidade, eles não fazem tanta questão de comê-las como de pedir as sementes,
insistindo para que eu as guarde.
100
As análises dos termos em deni e suruwaha são de Adriana Huber, com. pess., antropóloga que
trabalhou durante vários anos com estes dois povos e tem profundo conhecimento linguístico das línguas
arawá. Agradeço a ela por estas sugestões.

250
acordo com minha mente/coração...”. Conquanto não atribuam a possibilidade aos

animais de manifestar uma consciência ou subjetividade, por precaução, o consumo do

coração das caças abatidas é evitado por medo de que estas possam tomar conhecimento

de sua morte e se vinguem.

O vínculo entre o coração e a alma é perceptível na ausência temporária desta no sonho,

na variação irregular do ritmo cardíaco na doença e na sua partida definitiva com a

interrupção completa e irreversível do pulso. Quando um espírito inamadi captura a

alma de alguém, leva junto consigo o seu coração, que será posto na borda de uma

fogueira para assar. Diz-se que o enfermo fica virando inquieto na sua rede por causa da

dor que sente por ter seu coração moqueado no fogo dos espíritos canibais. Sempre há

muitos corações assando nestas fogueiras, o que explicaria a elevada mortalidade dos

homens. Em geral, os espíritos inamadi preferem moquear a carne devagar, mas pode

acontecer do coração ser jogado diretamente no fogo, ação que se realiza para pessoa

como uma morte abrupta. Essa é a explicação para as variações térmicas do enfermo e o

parâmetro usado pelo xamã na avaliação da gravidade de seu quadro, posto que se o

coração for completamente moqueado e comido, não há recuperação possível.

O xamã deve estar de prontidão e agir com diligência na recuperação das

almas/corações dos doentes. Se os espíritos consumirem o coração capturado, a morte é

definitiva, leia-se, não haverá vida póstuma. Recuperar a alma e o coração garante que

se possa seguir morrendo, de acordo com sua concepção de vida em mortes sucessivas

com deslocamentos para diferentes patamares do cosmo. Segue-se vivendo e morrendo

como uma canoa que viaja até a gasolina do motor acabar, segundo a explicação que me

foi dada por Badá. Lembrando que dos seres vivos asseveram que todos possuem alma

251
não porque ela seja necessária à vida, mas inversamente “porque senão não poderiam

morrer”. A morte salientada na proposição não é um estado definido qualitativamente,

uma condição estável e definitiva, tampouco configura um modo de existir efêmero e

frágil. Partindo de um modelo de vida vegetal, o declínio e o rebrotar sucessivos sem a

realização de um fim não é a expressão da fragilidade que atribuímos às plantas, ao

contrário, é a marca de sua força silenciosa.

O pajé é o responsável pela negociação com as almas dos cultivares que vêm à terra

com seus cães de caça para resgatar a alma do parente recém falecido101. Ele chama,

"com o seu pensamento que funciona parecido com o celular", as almas das plantas

fortes/duras porque o korimari do morto pode estar bravo e se recusar a ir para o céu.

Ao chegar na terra, a alma manda seu cão em busca de vestígios do morto, que pode

afastar-se bastante de seu túmulo ou ser raptado por um inamadi por estar indefeso. Por

isso, de preferência, o morto é enterrado perto102 de seus antigos cultivares para que

suas almas o protejam103. Se a alma do morto já estiver morando com espíritos inimigos

101
As traduções missionárias buscam dissociar os diferentes sentidos condensados na noção de
"coração". Na construção de uma versão evangélica para o termo que torne obsoleta, ou melhor, nefasta a
relação com os espíritos inamadi, valoriza-se o coração enquanto sede do afeto, do conhecimento e da
linguagem, ao mesmo tempo em que apaga-se seu aspecto vegetal de semente tornando-o perecível e
descartável após a morte. Para tanto é necessário dissociar o coração da alma, pois, somente esta poderá
ter uma duração póstuma. Nesse sentido, o coração passou a ser referido mais pelo termo atibodi, cujos
sentidos focais são "pensamento" e "sentimento", que por atibonokori, cuja ideia central é "vitalidade
vegetal" ou "princípio concentrado do ser". Então, quando Deus deu o coração para Adão, este começou a
falar, pois o coração é a sede da fala. Contudo, quando dizem que Jesus levou o morto para o céu é
somente de sua alma que estão falando porque não é necessário reconstituir a pessoa através de seu
coração, ou seja, plantá-la no céu. As almas dos cultivares são transformadas em figuras angelicais,
Deoso ka yoyose ("ajudantes de Deus"), que auxiliam Yeso (Jesus) e intervêm em benefício dos homens,
porém, de forma limita se comparada à importância cosmológica "original".
102
No dia da morte do pajé Siko, seu neto H. o encontrou olhando sua plantação de abacaxis. H.
correu para avisar a mãe, achando que seu avô havia voltado (na ocasião, Siko havia sido removido por
uma equipe de saúde por causa de uma grave doença, porém, o pajé morrera antes de chegar na cidade).
Os parentes foram procurá-lo, mas não era o avô que havia retornado. H. vira apenas sua "casca vazia",
i.e., a alma havia se soltado do corpo e voltara para junto de seus cultivares, possivelmente para esperar
que uma delas o levasse para o céu. No céu, Siko foi criado justamente por essas almas de abacaxi.

103
Diz-se que a embaúba, boka, cresce nos roçados por gostar dos Jamamadi. Essa é uma planta
respeitada por seu poder de regeneração ("Em uma semana, ela já nasceu de novo!", observam). Também

252
da terra ou subterrâneo, acontecem brigas para resgatá-lo - a alma do cultivar manda

soltarem seu parente. Quando a encontra, alma de planta a levará sobre seus ombros ou

o cão a carregará em sua boca como se fosse um filhote. O pajé pede para que o morto

seja bem tratado: okadao dai nofahi!, "gostem/cuidem do meu filho" - caso o morto seja

seu filho. No céu, a alma será alimentada com leite (à semelhança dos animais de

criação, frisam), crescerá, receberá outro nome, mas não esquecerá seu nome antigo.

Pode ser que o avião de algum yamata abono venha buscar o korimari. Quando ele
chegar no céu, é mandado para um hospital onde o médico vai tratar porque está
doente. O médico dá outra carne para o morto, diferente da velha [daquela terrena].
Ele recoloca o fígado, o cérebro, tudo [os órgãos] cresce de novo. Ele pode usar uma
máquina grande, parecida com lava-roupas, e a pessoa sai nova. O pajé remenda com
cola, costura igual roupa, então, as pessoas não morrem fácil nas brigas da guerra
mundial.

Voltando à fragmentação da pessoa, após a saída da alma-coração, sai um "gatinho",

entenda-se, uma onça (ai ka yomahi), que é o “cão de caça” que vive no interior de cada

pessoa, em seu intestino104. À semelhança do korimari, essa oncinha quando se

desprende do corpo está fraca e doente. Ela fica miando, vagando pelos arredores do

cemitério até ser encontrada pelo yamata abono que irá levá-la para o céu e entregá-la

o homa, bananeira do mato (Phenakospermum guianensis), tem capacidade de crescimento semelhante.


Ambos são considerados pajés poderosos pela eficácia de seu tratamento, boka abono e homa abono
cuidam das almas do mortos quando são levadas para o céu.
104
Segundo os Mamaindê (Miller 2007:176), hé dentro do corpo versões reduzidas de alguns
animais, somente visíveis ao xamã. De maneira semelhante ao que dizem os Jamamadi, a oncinha que
vive no corpo é a responsável pela vontade de comer carne: "[d]e acordo com o xamã, todas as pessoas
possuem uma oncinha (yanãweikdu, onça filhote), localizada dentro do dente. Assim, ao olhar para o
dente, o xamã enxerga essa oncinha que é, segundo ele, responsável pela vontade de comer carne
(widagu). Algumas pessoas também descreveram essa oncinha como um tipo de cachorro bem pequeno.
O dente que o xamã enxerga como uma oncinha é chamado pelos Mamaindê de “dente de onça”
(yanãwidu). Quando sentimos vontade de comer carne, na verdade, é a oncinha que está pedindo comida,
portanto, nós comemos carne para alimentá-la. Um jovem Mamaindê que havia acabado de voltar de um
curso para a formação de agentes de saúde indígenas explicou- me que essa oncinha é como os vermes:
fica dentro do nosso corpo, comendo tudo o que a gente come" (idem). No caso da oncinha Jamamadi, ela
vive no intestino e o barulho produzido pela barriga vazia é o esturro do animal reclamando para ser
alimentado.

253
ao seu dono, o korimari do falecido. Pode acontecer de outra alma afeiçoar-se da

oncinha e roubá-la; nestes casos, o yamata abono encarregado terá trabalho para achá-

la, de todo modo, é imprescindível recuperá-la porque este é o “cão de caça” do morto

em sua vida póstuma.

Em seguida, é a vez de outros animais se desprenderem do corpo105, os principais são: a

anta (awi), o caititu (kobaya), o veado roxo (bado), o macaco barrigudo (wafa), o

queixada (hiyama) e, na época das chuvas, peixes (aba) – eles não excluem a

possibilidade de outras espécies se desprenderem do corpo do morto. Eu não saberia

dizer se como a onça, esses outros animais estão associados a algum órgão do corpo

humano ("tudo [os bichos] fica miudinho dentro do nosso corpo"), o que eles afirmam a

respeito deste processo é que todo tipo de bicho sai de dentro da pessoa e que os “bichos

são pedaços de nós”106. Como as demais partes da pessoa, esses animais saem fracos da

sepultura, mas ao contrário delas, eles não serão levados ao céu e nenhuma alma de

planta cuidará deles. O destino desses animais é o subterrâneo, wami bodi, para onde vai

o xamã quando seus parentes lhe solicitam uma caçada coletiva, dowada, feita de forma

indireta como uma reclamação de que a aldeia está passando fome. O xamã vai, então,

ao subterrâneo acompanhado de seus espíritos auxiliares para liberar os animais para os

caçadores. Ele os açoita com uma vara, procedimento usual de transformação corporal,

105
Todo corpo humano possui internamente esses animais, assim sendo, com as almas dos
cultivares não seria diferente. A morte dos duplos das plantas obedece a mesma sequência da
decomposição corporal.
106
Abadias, atual cacique geral - liderança que está acima dos caciques e lideranças locais de cada
aldeia jamamadi - e filho de pais Wayafi (antigo subgrupo madi), apresentou-me uma variação
interessante a respeito dos animais que vivem no interior do corpo das pessoas: "Os bichos que saem do
corpo são os que a gente comeu. Eles "pagam a conta" (i.e. vingam-se) de quem [os] comeu. A "sombra"
dos animais sai e come o corpo do morto. É um tipo de manakone (vingança)". De acordo com a
explicação que ele recebeu de seu pai, espectros dos animais vão se acumulando conforme nos
alimentamos e, quando morremos, eles percebem e dão o troco (manakone), vingam-se por terem sido
comidos e passam a comer o nosso corpo. Por fim, saem do solo com a aparência de animais. Para
Abadias, nós temos duas onças no intestino, elas são os únicos animais que vão para o céu, ao passo que
os demais, permenecem na terra.

254
e, em pouco tempo, os animais dispersados pelo xamã aparecem nas imediações da

aldeia. Para se referirem ao aparecimento dos animais de caça dizem que “o corpo do

morto foi açoitado”.

É preciso estar atento também à aproximação excessiva de animais incomumente

mansos, quase sempre, estes são partes do morto que retornam à aldeia para serem

adotados como animais de estimação. Recentemente, uma cunhada de Badá faleceu e,

poucos dias depois, um macaco barrigudo, wafa (“grande como minha ex-cunhada

Tameribi”) apareceu no terreiro de sua casa, assobiando para ele. Badá quis criá-lo

porque era bonito e manso, contudo, logo chegaram seus vizinhos querendo matá-lo.

Ele tentou alertá-los dizendo que não se tratava de um macaco, mas de sua cunhada

falecida Tameribi, infelizmente, na confusão o animal acabou se assustando e fugiu.

Nos dias que se seguem ao enterro recomenda-se evitar os cemitérios, especialmente à

noite ou quando se está sozinho, para não ser atacado pelo espectro, ai fami, que é o

último a se desprender do corpo, um tipo de resíduo agressivo da fragmentação

corporal. Seu aspecto é de um humanoide doentio, quase inumano, completamente

desprovido de pelos no corpo e incapaz de articular qualquer som. Ele vive solitário, em

estado de desejo desmedido e age movido pelo rancor daqueles que permanecem vivos.

Na tentativa de vingar-se dos parentes, ele ronda suas casas para agredi-los ou matá-los.

Foi o que aconteceu com Zezinho, filho de Deki:

Meu filho foi caçar faz tempo. Ele mirou no nambu e viu que tinha alguém olhando
ele. Parecia uma pessoa, mas era careca. Zezinho olhou, olhou e percebeu que era ai
fami. Ele é muito bravo, tem catinga forte. Quando vê alguém, seu olho dá doença. Ele
tem raiva da gente, mata e come. Eles gostam de ficar perto do cemitério. O Zezinho
voltou doente para a casa e quase morreu.

255
7.4 O resgate das almas e a vida póstuma

Ao término de um ritual pubertário feminino, que assisti na aldeia São Francisco em

2013, Salgado, filho do pajé Siko, me chamou dizendo que queria me fazer uma

pergunta. Ele estava com a câmera fotográfica de seu primo Eliseu, que o acompanhava.

Salgado foi passando as fotos que fizera do ritual até chegar na foto que queria me

mostrar e que aparentemente não tinha nada de especial. Ele apontou para uma luz,

parecida com um flash, e quis saber se era do meu gravador. Neguei e, em seguida, ele

emendou a justificativa: “João korimari, a alma de um filho morto do cacique Badá, foi

convidado por seu pai para ver e registrar o ritual. Ele tinha um equipamento de

filmagem, parecido com uma televisão, que ele usou para gravar nossas músicas para

mostrar no céu”. Salgado fez um esquema dos diferentes planos do cosmo para me

explicar o deslocamento feito por essas almas:

256
Fig. 16 Esquema simplificado da cosmografia: "Cidade de Deus" (Deoso tabaro),
"Céu" (não identificado), "Céu das almas dos mortos" (ai korimari),
"Aldeia dos Jamamadi" (Yamamadi me tabori) e "Japão"107 (Yapao, onde se come cru).

Salgado não se prolongou nos comentários sobre a chefia da alma do limão, apenas

acrescentou que ela é transitória e que o chefe é responsável por “autorizar” a

participação das almas dos Jamamadi mortos nos rituais dos vivos. A alma do limão

viera somente como acompanhante de João, falecido há mais de duas décadas vítima de

um feitiço soprado pelas almas de Arada e Agostinho, ambos do povo Wayafi,

107
Há diferentes estratos subterrâneos: o mais superficial é o local no qual estão os animais e o mais
profundo é o Yapao, terra de inamadi guerreiros, apreciadores de carne crua (índice de uma alimentação
canibal), especializados em tecnologias de ponta, como ressaltam ao dizer que “todo motor bom é feito
pelos inamadi do Yapao”. Os Jamamadi tecem interessantes reflexões sobre o Yapao, mas que, por
ultrapassarem o escopo do presente trabalho, não serão devidamente elaboradas. Cada patamar do cosmo
e seus respectivos habitantes são caracterizados de acordo com a experiência pessoal de cada pajé e de
sua relação com os seres. Em comum, porém, afirmam que as plantas de lá são morfologicamente
"confusas", a saber, as folhas e frutos das diferentes espécies são misturadas (“não tem árvores lá como
aqui. O Buriti tem folha igual da pupunha, banana tem folha como do limão e o tucumã tem as folha
iguais as da banana".); além disso, sempre ressaltam a agressividade dos espíritos japoneses. Talvez por
ser filha de pai japonês, mas não só, o Japão foi um tema recorrente ao longo de meu período de campo.
Em uma dessas conversas, quando contei que muitos pratos típicos são feitos com peixe cru, eles
confirmaram algumas de suas expectativas. Com a aquisição dos primeiros aparelhos de televisão e
celulares, a imagem que passaram a construir desse patamar tornou-se derivada dos filmes de ação com
suas lutas de movimentos exorbitantes, armas tecnológicas e japoneses ferozes (japoneses, chineses,
coreanos são considerados indistintamente).

257
incorporados aos Jamamadi em meados dos anos 1950. Na época, João havia ido ao

roçado buscar banana para alimentar seu fisi, macaco zogue-zogue, e acabou flechado

na garganta pelas almas. Não demorou para que ele falecesse, apesar dos esforços de

seu pai em recuperar sua alma. Foi o irmão do cacique Badá, o pajé Siko, que mandou

alguns de seus espíritos auxiliares vingarem o sobrinho (FBS) matando as almas dos

Wayafi – cujas almas das almas falecidas foram, por sua vez, para outro céu mais

acima. Os yawida abono, almas da pupunha, a mando de seu pai Siko, que cultivava na

terra as pupunheiras das quais os abono são o aspecto ou duplo humano, procuraram os

responsáveis pela morte do sobrinho do pajé. Foi ele também quem pediu para que um

de seus yamata abono, alma dos cultivares agrícolas, levasse o korimari, alma, e o

atibonokori, coração, do sobrinho e os entregasse a alguma alma de planta que, no céu,

replantaria e criaria o menino. Segundo Badá, na última conversa que tivera com o João,

o filho falecido contou que ainda vai esperar para se casar, possivelmente com alguma

alma de pupunha (“a comida delas é boa”, ele explica), por enquanto, prefere somente

dedicar-se ao trabalho.

Poucos dias após a morte de João, filho de Badá, a sua alma, korimari, saíra da

sepultura e permanecera chorando ao lado de seu túmulo. Era um choro baixo, quase

inaudível, porque a alma estava muito fraca. Incapaz de caminhar e defender-se, ela

aguardava por alguém que viesse buscá-la. Seu pai o enterrara na beira de um de seus

roçados e sobre o túmulo construíra uma cobertura de alumínio, com uma parte do

telhado da própria casa, para que seu corpo não se molhasse e apodrecesse, o que

enfureceria a alma e atrapalharia a produção de sua morte. A onça celeste de yawida

abono, alma da pupunha, encarregada de buscar sua alma, escutou seu choro e a

localizou. Ao encontrá-la, a onça celeste lhe deu carne de caça, pois as almas costumam

ter fome quando se destacam do corpo – antigamente, os parentes depositavam comida

258
no túmulo nos dias subsequentes ao enterro para alimentar a alma recém falecida. Com

cuidado, a onça carregou a alma de João em sua boca e a entregou à alma da pupunha

que era a responsável por levá-la ao céu. Foi seu tio, Siko, quem solicitara às almas de

suas pupunhas para que procurassem pela alma do sobrinho e a entregassem aos

cuidados da caridosa sibati abono, alma da banana, que dela cuidaria em sua aldeia.

A morte das crianças pequenas é menos complicada, uma vez que o seu korimari ainda

não está afeiçoado aos parentes e não é agressiva como as almas das pessoas mais

velhas. Antes de João, a esposa de Badá perdera um filho logo após o parto. Na época,

ele pediu para que makafi abono, alma da taioba, (uma das que mais se ocupa da tarefa

de cuidar das almas dos mortos quando chegam no céu) o levasse e cuidasse dele.

Makafi abono ajudou na recuperação do recém-nascido, alimentou-o e lhe deu o nome

Edmilson. Ao completar certa idade, ele foi entregue a iha abono para que terminasse

sua criação iniciando-o no xamanismo. Ao longo dos vários meses em que permaneceu

recluso, iha abono, sendo uma poderosa alma de veneno, soprou muito rapé no filho

adotivo e introduziu pedras xamânicas em todo seu corpo. Edmilson tornou-se um xamã

respeitado e um dos principais espíritos auxiliares de seu pai, a quem acompanha e

protege contra os espíritos inamadi agressivos (cf. parte I).

Ao caminhar sozinho no varadouro, Badá pensa em seu filho e o chama para que ele o

acompanhe, se um espírito mal intencionado estiver à espreita, Edmilson protegerá o pai

com o próprio corpo guardando-o atrás de si enquanto ele resolve o problema. Forte,

kitini (tradução literal seria “duro”, a dureza é um dos atributos do xamã) como iha

abono, o rapaz também tem o olhar envenenado, noko koma: ele mata seus inimigos

somente ao encará-los. Quando João morreu, Edmilson ajudou a cuidar da alma do

irmão durante sua iniciação xamânica. Hoje, Edmilson trabalha para seus patrões, no

259
céu, onde vende copaíba para as almas dos Jara e deles compra, à vista ou a prazo, em

suas grandes lojas, guaraná gelado, açúcar, café, rede, terçado, enfim, todas as

mercadorias que desejar. Ele também possui um avião e um rádio, que usa para se

comunicar “da mesma forma que nós fazemos aqui”.

De acordo com seu pai, Edmilson também é conhecido por um apelido que recebeu no

céu, Jara, branco. Ele está morando com Korara, sua tia materna (MZ), e Inohiyawawi,

seu tio materno (MB). Edmilson trabalhava fazendo transportes no céu, ele comprou

dois aviões, que não são como os daqui porque a pista deles é enorme ("muito maior

que da aldeia", Badá garantiu). Um dos aviões dele entra na água e não tem portas. O

outro é de um modelo bastante particular, segundo sua caracterização: "Em cada uma

das asas fica um cachorro. Eles fazem um barulho alto. Não é cachorro de verdade, é

'coisa feita' do mesmo jeito que as bonecas". Com o tempo, Edmilson enriqueceu, tem

todos os dentes feitos de ouro brilhante, e contratou um piloto haso abono, alma de

tucumã para pilotar seus aviões. Badá costuma fazer exposições detalhadas da vida

póstuma nas aldeias das plantas108, no relato que reproduzo abaixo, ele também chama a

atenção para a dinâmica que integra os diferentes céus e a mortalidade "indefinida".

Tem escola no céu. As almas aprendem a escrever e, quando terminam seus estudos,
vão trabalhar. “Eu vou trabalhar com patrão”, dizem. Uns virão patrão e vendem
coisas dos Jara do céu para os fregueses deles: o sibati abono, alma da banana, o

108
A descrição das aldeia de Tiwiju onde vivem os mortos Suruwaha com as almas das plantas
apresenta elementos consonantes à concepção Jamamadi da vida celeste: “Na cosmografia dos Suruwaha,
no confim oriental do mundo, se encontra a casa de Tiwiju, onde habitam as ‘almas’ asuma dos falecidos.
Junto com elas, estão os espíritos das plantas cultivadas: do milho (kimi karuji), da pupunha (masa
karuji), das bananas (xaru karuji, xari karuji, katihana karuji), do cará (baxa karuji), da mandioca (mama
karuji), do algodão (waby karuji), da macaxeira (kuju karuji)... Pintados de urucum, os espíritos das
plantas na casa de Tiwiju destacam pela sua beleza. (...) Os espíritos das frutas silvestres, agabuji karuji,
sobressaem também pela sua excelência. Eles moram num lugar muito bonito, numa casa com fartura de
frutas das quais eles se alimentam, pois são os donos das mesmas. Seus corpos são esbeltos, são altos e
bonitos, com a pele vermelha, e portam as lanças agadaru nas suas caçadas; as frutas são suas flechas
quando atacam os seus adversários” (Aparício 2015:75-76).

260
yawida abono, alma da pupunha, todos compram dele109. Compram guaraná, açúcar,
café, rede, terçado, de tudo eles compram. Todas as frutas compram coisas nas suas
grandes lojas. Eles [almas de plantas] são bons patrões, não deixam ninguém com
fome, dão peixe e frutas. Depois de muitos anos, as almas envelhecem e morrem no
céu também. Em seguida, são enterradas e vão para outro céu. As almas vão casar de
novo, vão ter filhos e vão morrer. Depois, vão de novo para outro céu. Lá ficam por
muitos anos até envelhecer e morrer. Vão para outro céu, ficam jovem outra vez,
envelhecem e morrem. Isso [acontece] muitas vezes. Agora acabou. Não morre mais.
Nos céus de cima, não tem mais doença e é bom de morar. Em baixo também tem céu.
Os parentes de cima é que mandam chuva para nós. Os patrões mandam seus
fregueses soltarem vento e chuva. "Cuidado com meu filho, mande chuva e vento para
ele porque está muito quente", falam os patrões yamata. A gente está na metade [do
cosmo] vivendo. Os rios vão enchendo e a água vai descendo para baixo [os patamares
seguintes] e assim chove nos outros céus. De cima chove até arriar em baixo formando
tempo [chuva]. Quem morre casa com yamata abono. Bani korimari, sombra de
animal de caça, não vai para o céu, fica no mato mesmo. Se alguém casa com bani
korimari? Claro que não.

Foi João quem resgatou com seu avião a alma de Makari, falecida em 2015. Sua morte é

atribuída à vingança da alma do peixe jundiá, raramente comido por ser incomum nos

igarapezinhos da terra firme. Comer aquele peixe a deixara doente, no entanto, sua alma

só partiu definitivamente para a aldeia aquática deles quando Makari se assustou com o

grito de seu queixada de criação. Dizem que seu coração foi embora, ou seja, seu

espírito foi roubado pela alma do jundiá110. Ele a amarrou com suas cordas, que são seus

longos "bigodes", e a levou para morar consigo. Dois filhos do piloto haso abono
109
Ver as imagens do céu Paumari e os patrões celestes - é o caso de Bahi Kapamoarihi, forma
humana ou patrão da chuva - que regulam o clima (Bonilla 2007: 36 ss
)
110
Uma hipótese para a diferença dos destinos escatológicos dos peixes e animais poderia estar
relacionada à origem vegetal dos primeiros. De acordo com o mito que narra a origem dos peixes, um
pajé ao açoitar a copa da árvore Doba, Amapá, transformou cada uma das folhas que iam caindo na
superficie da água nos diferentes peixes que existem hoje. Contudo, essa é uma especulação frágil porque
os animais ainda que não tenham se originado diretamente das plantas, transformaram seus corpos outrora
humanos mediante a inserção de partes de distintas plantas e o açoitamento com a vara do awa yora, a
mesma usada no ritual da menarca, num processo de especiação.

261
acompanharam a alma de João, mas acabaram doentes. Também participaram uma alma

do timbó, uma alma do veneno iha, uma alma de limão e duas almas de boniwa,

"ventania"111, que salvaram os demais de morrer afogados, pois, os peixes eram

agressivos. No resgate, as casas dos jundiás acabaram desmoronando e suas almas

morreram. Makari agora vive com o korimari de um filho falecido, casado com uma

alma de pupunha com a qual tem filhos.

Quando Julião, que já era adulto, morreu afogado no igarapé Mamoriazinho, kona

abono, alma do timbó, foi chamado para buscar sua alma que havia se perdido na água.

As almas das piranhas pretas, oma abono, não queriam deixá-lo partir e Julião já estava

acostumado a viver na aldeia delas, de modo que ele reagiu com agressividade às

tentativas da alma do timbó de persuadi-lo. Foi necessário pedir reforços para conseguir

levar Julião e salvar a alma do timbó que quase acabou morta pelas piranhas – o filho

dessa alma de timbó a libertou quebrando o pescoço das almas das piranhas. Ao todo

foram cinco almas de timbó resgatar a alma de Julião, esses yamata abono foram

especialmente chamados porque são pescadoras valentes e possuem braços

particularmente longos, usados para agarrar os peixes em seus mergulhos, isto é, nas

pescarias dos Jamamadi feitas com essa planta. Além disso, para realizar essa tarefa era

necessário que as almas soubessem nadar e tivessem bom fôlego dentro da água.

Outro caso difícil para os espíritos auxiliares convocados, foi a morte do pai de Ronaldo

em Manaus. O pajé Siko mandou almas de laranjas, cidras e limões, que conhecem a

cidade (dada a procedência dessas espécies) e são consideradas fortes, para procurar a

111
Sobre boniwa abono dizem que ele não mora nem no céu nem na terra, mas que vem de longe.
Quando ele fica com raiva, estica seu braço e produz vento e tempestade. Ele gosta de matar as árvores do
mato com sua ventania. Para capturar os Jamamadi, ele derruba uma árvore sobre a pessoa e assim se casa
com sua alma, foi o que aconteceu com Yaka Jamamadi.

262
alma do pai de Ronaldo. Elas demoraram muito tempo até conseguir encontrá-la,

recuperá-la e levá-la ao céu.

Em ainda outro caso, Tamara, esposa do pajé Siko, e França, seu filho, morreram no

mesmo acidente afogados no rio Curiá, afluente do Piranha, há muitos anos. Na época,

Siko quis mandar um raio, bahi, para acabar com esta terra. Seu irmão o dissuadiu: ele

tinha que deixá-los [a esposa e o filho] morrer. Ele não deveria se enraivecer porque

nascemos para isso mesmo. O pajé B. mandou seus espíritos auxiliares timbó buscar os

korimari da cunhada e do sobrinho. Muitos bichos foram mortos no caminho até que as

almas fossem encontradas e liberadas das aldeias dos peixes (não especificados).

Antes de passar aos casamentos póstumos, é necessário fazer algumas considerações a

respeito da terminologia de parentesco jamamadi e suas particularidades.

Geração Consanguíneos/Paralelos Afins/Cruzados


homem mulher homem mulher
G+2 FF: idi - avô MM: aki - avó FM: idi - avô MF: aki - avó
G+1 F: abi - pai M: ami - mãe MB, HF, WF: FZ, WM, HM:
FB/MZH: MZ/FBW: koko, koma - aso, koma -
abise - tio amise - tia sogro sogra
G0 eB: ayo eZ: adi MBS, FZS: MBD, FZD:
yB: soho yZ: asima naki/anihi - naki/anihi -
irmão/primo irmã/prima primo/cunhado prima/cunhada
WB, ZH (♂): HZ, BW (♀):
wabo - cunhado kadi - cunhada
ZH (♀): yibote BW (♂): yibote
owa one
H: yibote W: yibote
G-1 S: okadao - filho D: okoto - filha ZS (♂), BS (♀): ZD (♂), BD
BS (♂), ZS (♀): ZD (♀), BD bidimi - (♀): bidimi -

263
okadaowa - (♂): okotone - sobrinho sobrinha
filho filha
G-2 nodi - neto nodi - neta nodi - neto nodi - neta

Na tabela acima, o símbolo feminino (♀) significa que as relações são consideradas a

partir do ponto de vista de um Ego feminino e o símbolo masculino (♂) determina o

ponto de vista de um Ego masculino. A posições genealógicas são referidas de acordo

com o padrão da notação inglesa: F para pai (father), M para mãe (mother), D para filha

(daughter), S para filho (son), Z para irmã (sister), B para irmão (brother), W para

esposa (wife), H para esposo (husband), 'e' para "mais velho" (elder) e 'y' para mais

novo (young). Seguindo a estrutura em inglês, as posições devem ser lidas da direta para

esquerda, por exemplo, FBW é "esposa (W) do irmão (B) do pai (F)". A forma vocativa

para a maioria dos termos (especialmente para os parentes afins) está obsoleta, de

qualquer modo, ainda que ocasionalmente usados, os Jamamadi parecem preferir o uso

de nomes pessoais.

Na geração acima de Ego, os irmãos do pai são classificados na mesma posição do pai

e o mesmo se passa com as irmãs da mãe na posição da mãe, conforme o padrão dos

sistemas dravidianos; contudo, há termos específicos que os distinguem na grade

terminológica: abi (pai), abise (irmão do pai), ami (mãe) e amise (irmã da mãe), o

sufixo -se significa "outro". Os parentes cruzados nessa geração são referidos com

termos distintos caso tornem-se afins efetivos, a saber, HF, WF, HM, WM passam de

koko (tio/sogro potencial) e aso (tia/sogra potencial) para koma (sogro/sogra), o termo é

de auto-recíproco, portanto, os sogros, o genro e a nora referem-se uns aos outros de

okakoma, "meu sogr@/genro/nora".

264
Na geração de Ego, os germanos são diferenciados de acordo com a idade e,

contextualmente, por serem "reais" ou classificatórios. Os afins da mesma geração de

Ego, por sua vez, são diferenciados entre primos cruzados/esposos potenciais,

naki/anihi (de uso recíproco), com os quais não se casaram, do espos@ real, yibote

(igualmente de uso recíproco). Após a realização de um casamento, há termos

específicos para os cunhados reais de mesmo sexo que Ego, ou seja, no caso de ser

homem, WB e ZH, chamam-se de wabo, e se são mulheres, HZ e BW, tratam-se de

kadi. Quando o cunhado real não for do mesmo sexo que Ego, será chamado por um

Ego feminino de yibote owa, "meu outro marido" (ZH e HB), e para um Ego masculino,

de yibote one, "minha outra esposa" (WZ e BW), em consonância com a afinidade serial

de repetição de um "mesmo casamento".

Seguindo essa lógica, na geração abaixo de Ego, os filh@s dos irmãos de um Ego

masculino ou os filho@s das irmãs de um Ego feminino são chamados de okotone,

"minha outra filha", e okadawa, "meu outro filho". Os termos one, "outra", e owa,

"outro", são usados para distinguir os parentes consanguíneos classificatórios dos

"reais" que, por sua vez, são referidos por okoto, filha, e okadao, filho. Ademais, esses

podem ser categorizados segundo a ordem do nascimento: o primogênit@ é chamado

daidi, "o primeiro (em relação a algo)", e @ caçula, nowati(ka/ke), "o que vem atrás". Já

os parentes cruzados nessa geração não são distinguidos entre masculinos e femininos,

ou seja, os filh@s da irmã de um Ego masculino e os filh@s do irmão de um Ego

feminino são chamados indistintamente de bidimi112.

112
Os casamentos oblíquos, relativamente comuns entre os Jamamadi, são alvo de crítica quando a
idade dos cônjuges for considerada distante, no entanto, caso estejam na mesma faixa etária, a posição
genealógica deixa de ser um obstáculo. Entre os Paumari, as uniões oblíquas impedem que os cônjuges
alcancem o lago da renovação como destino escatológico (Bonilla 2007:318), também os Jarawara

265
Quando os pais suspeitam que seus filhos estejam se encontrando furtivamente com um

namorado ou namorada, eles aumentam o controle na tentativa de impedi-los,

especialmente se a relação contrariar o ideal do casamento entre primos cruzados

(bilaterais). Toda a vez que eles se afastam de casa, um irmão mais novo ou sobrinho

pode ser designado para acompanhá-los. Os pais podem ser bastante possessivos e

relutar em permitir que seus filhos se casem, sobretudo fora do grupo local. Se é

verdade que os rituais da menarca costumam ser as ocasiões propícias para negociar

com a família do pretendente à futura união, deixa a cargo dos pais ou irmão mais

velho, ocorre que no mais das vezes os jovens casais fogem juntos para o mato,

permanecendo escondidos durante alguns dias, para forçar os pais a conceder a união.

Nos momentos em que os pais se ausentam da aldeia, os jovens aproveitam a

oportunidade e fogem.

Foi o que ocorreu em 2012 com N. e F., contudo, os pais de N. não permitiram que ela

se casasse alegando que a filha era muito jovem. Os dois seguiram se correspondendo

por cartas até que em 2016 fizeram nova tentativa e desapareceram por muitos dias.

Apesar da raiva dos pais, eles acabaram a contragosto cedendo à vontade dos filhos. N.

e F., porém, não tinham onde ficar porque seus pais não os aceitavam em suas casas.

Impedidos de levar suas redes e roupas, os dois ficaram hospedados por meses na casa

do tio materno de F. que mora na mesma aldeia que os pais de N, ou seja, a escolha do

local de refúgio não foi aleatória. A princípio, permaneceram reclusos, evitando circular

na aldeia e negando que estavam juntos. Passados alguns dias, os irmãos foram visitá-

los na tentativa de intermediar a reconciliação e aplacar a raiva dos pais.

afirmam ter aversão a esse tipo de união matrimonial, de acordo com Maizza (2209:169), os casamentos
oblíquos são considerados "errados".

266
O início da união costuma ser um período tenso durante o qual muitos casais se

desfazem em razão da pressão contrária exercida pelas famílias; alguns tentam seguir

fugindo, afastando-se temporariamente para outras aldeias, porém, essa instabilidade

acaba por separar os casais. Voltando ao caso em questão, a reaproximação dos jovens

foi paulatina, F. destinava parte do que caçava aos sogros e estava sempre à disposição

para ajudar o pai de N. nas tarefas do roçado. A aceitação é lenta e gradual, em geral,

condicionada ao nascimento dos primeiros filhos através dos quais o afeto passa a criar

novos vínculos, estes sim legítimos. Passado mais de um ano, F. ainda ocupa de forma

marcada a posição ambígua de um afim, lembrada por sua sogra quando ela enfatiza o

parentesco com o subgrupo Wayafi que se juntou por último aos demais grupos madi:

"ele não é daqui; ele é neto de Wayafi".

O padrão residencial nos primeiros anos da união é uxorilocal, os sogros não poupam

seus genros de críticas se ele não cumprir suas obrigações em ajudar a fazer roça, a

caçar e pescar, a refazer a cobertura de palha da casa e a comprar mercadorias na

cidade. Alguns meses depois, o casal começará a alternar períodos entre as aldeias dos

pais e sogros. A bilocalidade alternada perdura até que o pai do marido faleça, sem sua

força agregadora o grupo local constituído em seu entorno se desfaz. É somente com o

nascimentos dos primeiros filhos que o casal constrói uma casa separada, em geral, no

espaço compartilhado pelas casas do mesmo núcleo de germanos que se reunem

próximos da casa de seu pai, que exerce um papel de liderança na aldeia. Essa tendência

virilocal expressa um padrão de organização bastante comum entre os povos arawá da

região de residir junto ao pai e aos irmãos, compartilhando um mesmo espaço

267
doméstico onde as refeições são compartilhadas. Na falta do pai, o irmão mais velho

passa a ocupar o lugar de liderança política local.

As aldeias Jamamadi obedecem a este padrão, exceto a aldeia São Francisco cuja

densidade demográfica criou uma dinâmica específica, distinta das demais. Chamada de

"cidade grande"113, São Francisco reune cerca de duzentas pessoas de, pelo menos, seis

113
A aldeia São Francisco não é comparada à "cidade grande" ou "capital" somente por ser mais
populosa que as demais, a intensa monetarização das relações é outro fator que justifica a aproximação.
Neste sentido, os moradores das outras aldeias dizem para se contrapor aos do São Francisco que "aqui
ninguém vende comida, aqui tem comunidade". Uma análise mais detida será feita oportunamente, por
enquanto, arrisco dizer que a maior proximidade com a missão, a presença de grupos locais de diferentes
subgrupos e um número crescente de beneficiários dos programas sociais e aposentados são elementos
importantes para entender o fenômeno. A determinação do preço de um produto depende de um cálculo
circunstancial e pessoal, pois, o que menos importa são critérios de ordem objetiva. Trazer mercadorias
da cidade para vender na aldeia é uma prática cada vez mais comum. Assim, que voltam da cidade com os
paneiros cheios de pacotes de açúcar, café, sal, latas de sardinha, macarrão instantâneo e suco em pó
todos comentam a prodigalidade daquela pessoa e combinam de visitá-la depois. O preço dos produtos
pouco varia em relação ao cobrado na cidade, as vezes, há um pequeno aumento justificado pela
caminhada. Se trata menos de uma prática visando acumular dinheiro que o prestígio de poder vender (e
escolher para quem vender) as mercadorias. Na época em que Raimundo trabalhava como piloto fluvial
da Sesai, ele sempre comprava muitas mercadorias para vender na aldeia. Os pacotes de bala eram os
itens mais comuns, cada uma vendida a dez centavos. Vender é um sinal de distinção, porém, eles não se
transformam em patrões através desse comércio porque não interessa alterar significativamente o valor
dos produtos tampouco endividar o freguês. Os aposentados são aqueles que pagam mais caro juntamente
com os assalariados, que são os agentes de saúde indígena e o piloto fluvial, em seguida, leva-se em
consideração a posição genealógica do comprador, os parentes afins geralmente pagam mais caro que os
paralelos. Jamais vi alguém pagar por cultivares ou mesmo trocá-los por mercadorias. A farinha
tampouco é vendida. Apesar do aumento considerável do influxo de dinheiro nas aldeias Jamamadi com o
número cada vez maior de atendidos pelos programas sociais, a base da alimentação são os produtos
provenientes de seus roçados. É na falta da carne de caça, de peixe ou entre as principais refeições do dia,
uma feita pela manhã antes das pessoas saírem para realizar suas atividades fora da aldeia e outra ao final
do dia quando os caçadores/pescadores retornam, que os alimentos industrializados são consumidos.

Produto Preço Comprador Motivo


1kg carne de caça 5,00 parentes afins não recebem nenhum benefício
1 pedaço de bolo 1,50 qualquer um igual preço de Lábrea
1 cesto 50,00 enfermeiro recebe salário
1 pacote de açúcar 4,00 (3,00 na parentes paralelos o preço aumenta pelo
cidade) deslocamento no verão.
Transportar mercadoria 20,00 aposentados as mercadorias eram de um
no caminho do porto parente afim aposentado
para aldeia São
Francisco
1 matrinxã 10,00 qualquer um não tem nenhum aposentado na
família
1 vidrinho de rapé 5,00 brancos valor igual ao cobrado pelos
apurinã da cidade

268
núcleos familiares distintos ou grupos locais. As outras aldeias, com não mais de 40

moradores, são compostas pelas famílias dos filhos daquele que "fundou", assim, na

aldeia Seringal moram a família de Bokakari e aquelas de seus filh@s; a aldeia Vitória,

a familia de Berinawa; a aldeia Embaúba, a familia de Pide; a aldeia Jatobá, a família do

Luís; a aldeia Pauzinho, com um pouco mais de residentes, reune as famílias de

Erinawa, Arigo e Deki.

Há muitos jovens solteiros que desistiram de se casar após fracassos seguidos. Lidar

com a raiva dos pais, as recusas sucessivas, a vergonha e a evitação do período que

sucede a união faz com que muitos jovens prefiram permanecer solteiros (dizem com

certa ironia que o solteiro "não tem que fazer roça grande", "não se aborrece com choro

de criança", "não tem que caçar e pescar para os sogros", "que os homens tem muita

preguiça e só jogam bola", etc) ou procurar cônjuges potenciais nas aldeias Jarawara e

Banawá (dificilmente em outros grupos), contrariando o ideal de endogamia de aldeia.

A mudança das expectativas a respeito do que é um casamento adequado tornaram

ainda mais difícil concretizá-lo, pois, além do cálculo genealógico, bem como a

distância geográfica terem que ser propícios, é desejável que o genro tenha meios de

suprir a necessidade de mercadorias de seus sogros.

Os pais afirmam que a condição para aceitar o casamento de suas filhas é que o rapaz

peça a autorização primeiro, no entanto, o pedido não impede que os pais relutem em

aceitar, de modo que os jovens, por medo, preferem não correr o risco de lidar com a

vergonha de ter seu pedido recusado e desistem ou escolhem "roubar" a moça. São raras

as negociações matrimoniais que conseguem evitar os conflitos e agradar as duas

269
famílias. Se os pais estão de acordo, o casal passa da vergonha para o comportamento

oposto. Esse é o único momento em que a demonstração pública de afeto entre homens

e mulheres parece aceitável, em nenhuma outra situação há contato físico que não entre

homens companheiros ou mulheres que são amigas. Todos comentam com alegria a

união recente frisando que os pais "não estão com raiva".

Os casamentos interétnicos são fortemente desaprovados, especialmente com os

brancos, Jara. Das uniões que pude contabilizar, apenas quatro ocorreram com pessoas

de fora do grupo, sendo que uma delas foi desfeita. Os casamentos com os brancos e os

Apurinã talvez sejam os mais mal vistos, na medida em que muitos residem na cidade e

se recusam a morar na aldeia, por conseguinte, esses maridos descumprem a obrigações

do "serviço da noiva" e acabam por afastar a esposa dos parentes. E. foi morar na aldeia

de seu marido na Terra Indígena Caititu, perto da cidade de Lábrea, e há anos não

reencontra sua familia, que mantém a suspeita de que ela seja maltratada por seus afins.

M. também é casada com um indígena Apurinã, por outro lado, ela alterna temporadas

na aldeia de seu pai e na de seus sogros, no rio Sepatini. Sua irmã mais velha, J.,

recentemente casou com um ribeirinho, filho de um patrão que há muitas décadas

explora o trabalho dos Jamamadi na extração do óleo de copaíba. Os conflitos aflorados

pela mudança do marido de J. para a aldeia do sogro tornou insustentável a permanecia

do casal e resultou na sua expulsão pelos demais moradores.

A despeito do empenho demonstrado pelo marido apurinã de M. em seu trabalho, esse

casamento é tão criticado quanto os outros dois, sempre mencionados como lembrentes

dos riscos de casar fora dos limites da aldeia. A única união que existia entre um

Jamamadi e uma Jarawara foi desfeita em 2012, depois de mais de uma década de

270
casamento. No passado, houve ainda um casamento entre Samo Jamamadi e Joana

Banawá, ambos falecidos, hoje todos os seus filhos vivem em aldeias Jamamadi.

Feito o parênteses, passo aos casamentos póstumos. Em comparação com os casamentos

que acontecem nas aldeias dos vivos, as uniões póstumas são consideradas melhores,

sempre bem sucedidas porque respeitam as prescrições da boa distância genealógica e

geográfica na escolha do cônjuge. Dizem que as almas sempre se casam com a "filha do

seu koko (sogro potencial)", que as almas acham tosawari, feio/errado, os casamentos

com parentes paralelos e, principalmente, ninguém "rouba" nem foge para forçar os

sogros a aceitar a união. Entretanto, a ênfase na correção dos cálculos genealógicos e

das atitudes necessárias para que a união seja bem sucedida não me parecem explicar

sozinhas a falta dos conflitos matrimoniais que são, sem exageros, a regra vigente na

terra, ainda mais porque o céu é o lugar da incessante guerra mundial. A despeito das

possíveis manipulações e reclassificações, os casamentos póstumos são, com raras

exceções, com as almas das plantas que foram cultivadas em vida, pela própria pessoa

ou seu pai. Por isso, a posição das almas das plantas cultivadas é ambígua, uma vez que

em vida eram os "filhos de criação" submetidos a um processo de consanguinização por

meio do cuidado e proteção que embora não se efetive integralmente, afinal, os

Jamamadi alimentam-se de partes desses cultivos, em alguma medida, atenua sua

afinidade futura.

Por esse motivo, os Jamamadi preferem os casamentos com almas de plantas de seus

cultivos: a filha de Atimero casou-se com uma alma de limão que havia sido plantado

por seu pai; a alma do pajé Bakorao casou-se com uma alma de veneno iha que era um

de seus espíritos auxiliares e seu filho casou-se com uma alma de castanha do pará,

271
mowi abono (uma exceção por não ser uma planta cultivada, apesar de ser considerada

parte da categoria yamata). Na tentativa de seguir a mesma lógica, quando perguntei se

havia alguém casado com alma de copaíba, eles negaram, pois, esta planta não é um

yamata, coisa comestível). Na contramão do padrão matrimonial póstumo e o ideal de

endogamia, as almas de Siko e seu filho França foram morar nas aldeias das almas da

matrinxã, aba abono, localizadas no rio Curiá celeste. De acordo com a explicação dada

pelo pajé B., irmão de Siko, França e sua mãe, Tamara, morreram afogados no rio Curiá

e suas almas foram temporariamente capturadas pelas matrinxãs. Tamara escolheu

casar-se com uma alma de pupunha e foi morar em sua aldeia, mas França decidiu

voltar a viver com as matrinxãs e, após a morte de seu pai, não quis que o pai fosse

morar com as pupunhas, então, pediu para que o pai fosse morar em sua casa. Siko

casou-se com duas almas de matrinxã ("brancas como missionárias americanas") e tem

três filhos.

Jamamadi korimari/morto jamamadi Cônjuge póstumo


Bahawi ♂ yawida abono, alma de pupunha
Batata ♀ manehe abono, alma de banana comprida
Bakorao ♂ iha abono, alma de veneno iha
Modo ♂ maçã abono, alma de maçã
Siko ♂ duas mulheres aba abono, almas de matrinxã
Eraodo♂ irimao abono, alma de limão
Tameribi ♀ iha abono, alma de veneno iha
Terezinha ♀ yawida abono, alma de pupunha
Nega ♀ yawida abono, alma de pupunha
João ♂ ainda não se casou
Baiyewenaha ♀ yawida abono, alma de pupunha
Sowira ♀ sanaro abono, alma de maracujá do mato
Yimawinana ♀ yawida abono, alma de pupunha
Julião ♂ duas mulheres yawida abono, alma de
pupunha

272
Capítulo 8: Kakatoma: o olhar gerativo e as relações de criação

“É de se admirar...
Como pode uma bruta dessa morando sozinha
numa mata tão longe, tão distante, sem parente nem aderente?”
(mateiro apurinã ao observar uma castanheira 'bêba'
nas proximidades da cabeceira do igarapé Grande)

No início do trabalho de campo, uma das ocasiões em que me dei conta da centralidade

das plantas para os Jamamadi foi quando mostrei as fotografias que havia levado de

minha família, em particular, uma de minha irmã no Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Tratava-se de um retrato no qual ela está diante de uma paisagem de vegetação de mata

atlântica. Ao verem a imagem, eles primeiro me perguntavam quem era a moça na foto

para, em seguida, passar a fazer incontáveis perguntas sobre as plantas que estavam

atrás dela. O que chamava a atenção deles não era o que para mim estava no primeiro

plano, minha irmã, mas tudo o que estava atrás servindo de fundo, de cenário, uma

paisagem que me parecia desvinculada e arbitrária em relação ao sujeito da foto. Eles

queriam saber se aquelas plantas eram nossas, quer dizer, se nós as havíamos plantado.

Diante da minha negação, eles perguntaram quem as havia plantado, de quem eram

aquelas plantas, porque não fazia sentido, ou até pior, seria uma enorme falta de respeito

tirar foto posando com plantas de outra pessoa. Eles também queriam saber os nomes de

cada uma das espécies que apareciam no retrato. Como eu não sabia nenhum, o

estranhamento deles só aumentava, afinal, qual a razão de tirar foto com plantas de

algum desconhecido sem ao menos saber identificá-las? Tentei explicar que se tratava

de um jardim público plantado há muitos anos, um local de visita onde as pessoas vão

273
passear, entretanto, somada às dificuldades linguísticas, a ideia de que um local

cultivado por alguém seja público e aberto ao olhar de qualquer pessoa não fazia o

menor sentido.

O desencontro do meu olhar com o deles tornou patente o equívoco entre os modos

como eu e os Jamamadi compreendíamos as relações entre humanos e plantas. Uma

rotação de perspectiva era imprescindível para que o fundo ganhasse forma e as plantas

fossem para o primeiro plano da análise, abandonando o posto de paisagem. Porém, não

basta pensar numa simples inversão dicotomia apresentada. O que era um fundo verde

disforme inesperadamente tinha tanto interesse, ou mais, que as pessoas presentes.

Identificar as espécies e saber seus nomes não eram, portanto, detalhes etnográficos,

longe disso, pessoas e plantas partilham de certa igualdade e reconhecer a importância

desse fato era o ponto de partida para me relacionar com eles.

A anedota narrada revela não somente o abismo entre o meu conhecimento botânico e o

dos Jamamadi como ilustra uma distinção epistemológica, expressa na ideia de

paisagem. Gostaria de salientar que a insistência em questionar os vínculos de minha

irmã com as plantas do Jardim Botânico aponta para a importância da relação com os

chamados “elementos naturais”, na medida em que não supõe uma forma de

exterioridade resultante da objetivação dos elementos não-humanos, mas os entende

como uma multiplicidade vegetal imanente à socialidade. Para mim, a paisagem da

fotografia era uma totalidade objetiva suscetível de ser representada a partir de um

ponto de vista descontextualizado e a importância que eu atribuía àquela imagem estava

completamente concentrada nos meus laços de parentesco com a pessoa retratada,

independentemente dos demais elementos da composição que, no limite, eram

274
irrelevantes. Para os Jamamadi, por outro lado, minha irmã não estava sozinha no

retrato, a presença das plantas pressupunha uma relação com ela, uma familiaridade

insuspeita que justificaria a própria imagem.

Outro aspecto importante na anedota é o equívoco quanto ao papel atribuído ao olhar.

Talvez mais que minha incapacidade de identificar as espécies vegetais ou a ausência de

vínculos de parentesco com elas, o que os intrigou foi a ideia de que o propósito daquele

jardim era estar exposto a qualquer olhar: o "jardim público" é a antítese da concepção

das relações de cultivo para os Jamamadi.

Isso devido à comprensão de que o cuidado diário com o roçado implica em seu dono

"espiar" suas plantas, procedimento que pode ser feito de modo breve ao interromper

uma caminhada para checar com o olhar a situação da roça ou, de maneira demorada,

roçando as plantas indesejadas, inspecionando as folhas a procura de parasitas, podando

as folhas, ramas e raízes que se intrometem no espaço dos cultivos vizinhos

importunando-lhes, em suma, esse é um olhar ativo que engendra o crescimento.

Entretanto, se há um olhar benfazejo e protetor, há um olhar predador, cuja agência

aniquila a vida das plantas em desenvolvimento. Como dito antes, grávidas, mulheres

menstruadas e pessoas em reclusão pubertária ou couvade mantêm seus olhos baixos e

evitam encarar diretamente os demais, incluindo as plantas, uma medida para evitar

provocar-lhes algum mal. A posição das mulheres grávidas no início da fila nas

caminhadas é um modo das pessoas escaparem do seu campo de visão e de se

precaverem de cruzar com o seu olhar. Por isso, na relação com as plantas, tão

importante quanto olhá-las é conseguir mantê-las ocultas do olhar alheio,

potencialmente predatório.

275
O olhar com capacidade gerativa é dito kakatoma - o verbo sinônimo kiina é de uso

menos frequente -, conforme anunciado antes, sua ação é oposta ao do noko koma,

traduzido em português por "olhar mau", "olho com veneno", "olho com dor/doença" e

"olhar envenenado"114. O kakatoma não se restringe à relação com as plantas, pois é

parte das atitudes necessárias na constituição do parentesco e de criação, nayana ou

nawada, das crianças e dos animais (pets). Nesse sentido, dizem: oka nanayana, "minha

criação"; wafa owa nanayana , "eu crio macaco barrigudo"; yamata abono ai-ka

korimari nayana neme-ya, "as almas dos cultivares criam a alma do morto no céu"; oka

fadara kakatomabani/kiomatia, "vou olhar meu roçado [para ele crescer bem]". Maizza

também equaciona o kakatoma aos afetos e ao cuidar imprescindível nas relações de

criação115 (2014:507):

As pessoas visitam regularmente as plantações para roçar, verificar o crescimento das


sementes, colher, observar, cuidar de suas plantas e conversar com elas. É preciso
falar às plantas, explicando-lhes que devem dar frutos grandes. Os abono das plantas
escutam e respondem, fornecendo os frutos. Paralelamente, e talvez até mais
importante do que falar com as plantas, é olhá-las. Sobretudo quando elas ainda estão
pequenas, acabaram de sair do solo, as pessoas vão frequentemente ao roçado para
“espiar” (kakatomá). Como vimos, o olhar vai par a par com o cuidar, com o criar,
com o embelezar. Quando vão ao roçado “olhar”, as pessoas tiram plantas daninhas de
114
Assim como em Jamamadi, em Deni e em Suruwaha "doer" e "ser venenoso" são sinônimos. Os
Suruwaha se referem à toxicidade do timbó com a expressão kunaha kuwiri, "a dor do timbó". O olhar do
xamã, porém, é dito zubi wasy (... kuru/kasini), "olhos duros/resistentes". E zubi gagini, "contaminação
dos olhos", é a expressão para o olhar das mulheres menstruadas. Novamente, as informações e traduções
das línguas Deni e Suruwaha são de Adriana Huber (com. pess.) a quem agradeço pela disposição e
generosidade em compartilhar seu conhecimento.
115
Maizza grafa as palavras Jarawara de modo levemente distinto das minhas escolhas de grafia. A
autora as escreve de acordo com a pronúncia e para tanto utiliza acentos que não são usados na escrita
pelos Jarawara. Sem uma grafia padronizada e única entre os Jamamadi, opto por escrever suas palavras
sem acentuação, escolhendo as formas mais frequentes em que são escritas por eles e indicando as
exceções quando houver. O desacordo na ortografização da língua Jamamadi é uma questão importante
que remete às disputas entre os diferentes grupos locais, subgrupos, e torna a transcrição dos relatos e
mitos uma tarefa infindável que acende antigas querelas. A plasticidade da língua é outro fator que
contribui para a proliferação de múltiplas variações linguísticas concorrentes. A despeito de dedicarem-se
há muitas décadas na tradução da bíblia, a missão finalizou apenas uma pequena parte, ainda assim,
considerada imprecisa pelos Jamamadi.

276
perto daquelas que estão crescendo e limpam o terreiro. As plantas não gostam de
mato fechado; se o terreiro não estiver devidamente limpo, elas não crescerão. Por
isso, o “cuidar” (narifá) das plantas é também traduzido como “ajudar a crescer”,
“cuidar para não morrer”. E o cuidar do roçado se expressa pelo namosá: fatará
onamosá: “eu limpo, cuido, arrumo, deixo bonito, tiro plantas daninhas do meu
roçado”, ou seja, “eu o deixo bom/bonito/adequado para as plantas crescerem”
(Maizza 2014:507).

Os verbos nayana e nawada circunscrevem uma esfera semântica na qual a ação de

criar é um processo de estabilização e controle que implicam proximidade e

retenção/contenção do movimento. As crianças pequenas enquanto criação de seus pais

são mantidas sempre à vista, no colo ou amarradas pelo pé com uma cordinha presa na

outra extermidade à sua mãe ou à tábua da casa. Da mesma forma, os animais de

criação, cães e filhos capturados de animais predados, são mantidos escondidos em suas

casinhas fechadas ou presos com uma cordinha para não se afastarem do olhar de seus

donos. Os animais a que são mais apegados raramente ficam soltos, circulando pela

aldeia sozinhos; alguns jamais saem de suas casinhas, a ponto de serem apenas vistos

por seus donos116, sobretudo os cães de grande porte - chamados de "cachorro

americano" -, sem dúvida, os animais preferidos dos Jamamadi. Por paradoxal que

possa parecer a uma forma de vida séssil, a retenção das plantas no roçado também é

uma das preocupações de quem as cultiva. Negligenciar os cuidados com os cultivos

rompe a reciprocidade da relação e faz as almas das plantas abandonarem sua aldeia mal

cuidada em busca de outra melhor, o efeito de sua partida é visível através do seu

desenvolvimento imperfeito e baixa produtividade.


116
Durante os meses de campo, só escutei os latidos de Branquinha, Dog e de um cão criado por
Mundico. Por serem especiais para os seus donos, viviam em casas próprias de onde jamais saiam. No
outro extremo, mas sem configurar uma regra, algumas antas e macacos eram criados mais soltos,
passeavam durante o dia e voltavam ao entardecer para suas casinhas, em geral, na hora de serem
alimentados. Diferentemente daqueles que são mantidos presos, esses animais não recebiam nomes
pessoais.

277
Neste capítulo, abordarei as relações nayana/nawada como um modelo de criação de

plantas, crianças e animais através da proximidade, do afeto e da convivialidade, que se

expressa num idioma de filiação, em especial, a relação entre pais e filhos. Tomo como

referência os trabalhos de Bonilla sobre a adoção e o parasitismo (2016), de Fausto

(2001, 2008) acerca da predação familiarizante, de Costa (2013) e Erikson (1987, 2012)

sobre as práticas de criação de animais e uma análise recente de Fausto & Neves a

respeito da domesticação das plantas na Amazônia (2018). Na análise que se segue, no

entanto, a noção de controle, premissa de uma assimetria subjacente ao modelo da

familiarização, a despeito de sua ambivalência117, requer ser relativizada especialmente

ao ser aplicada às plantas, por três motivos que envolvem problematizações de ordens

distintas:

i. Em primeiro lugar, o modelo não comporta a relação com as plantas "selvagens". Os

Hi-Merimã118 e, em menor medida, os Jamamadi estabelecem relações fecundas com as

plantas que não são por eles cultivadas, porém, estes não são vínculos de

consanguinização. Arrisco afirmar que ampliar a ideia de familiarização em vista de

configurar um modelo alternativo à domesticação tem o custo de solapar a diversidade

117
"A potência do mestre é a capacidade de extrair uma ação do xerimbabo. Esta é a coerção, como
diria Strathern (1988:271). Mas há uma ambivalência aqui, pois não se sabe exatamente quem causa a
ação e quem está agindo. Quem é o agente do canto moropihã do guerreiro araweté, o matador ou sua
vítima? Quem é o curador parakanã, o sonhador ou os inimigos oníricos? (...) Porém, na Amazônia, tal
eficácia está eivada de uma instabilidade constitutiva, pois não se sabe jamais quem adotou quem, quem
controla quem: para serem potentes, xamãs e guerreiros devem assegurar a condição subjetiva e a
capacidade de ação de seus xerimbabos, o que significa que eles não devem jamais se tornar inteiramente
mansos e domésticos (Fausto 1999:949)" (Fausto 2001:343).
118
A despeito da avaliação dos Jamamadi que consideram os vizinhos isolados somente sob o signo
da perda das relações agrícolas, os Hi-Merimã ao rejeitarem-nas manifestam sua escolha política e
experiência histórica particular, um modo de organização social que não se traduz em perda cultural ou
retorno à natureza: "they have developed marked patterns of social relationships and cultural values, and a
unique system of resource management that drastically diminishes their dependence on cultivated crops.
(...) such developments represent the constitution of a different body of knowledge and an alternative way
of life" (Rival 1998:244).

278
dos vínculos com as plantas e suas diferenças. Refiro-me aqui à proposta delineada por

Fausto & Neves (2018, no prelo): "[i]n this paper, we want to suggest that the notion of

familiarization, which was previously applied to kinship, shamanism, warfare, and pet-

keeping, provides us with an alternative model of domestication, one in which the

relation to plants is, to use Haudricourt's words, indirect negative or, to avoid a negative

definition, is part of a more general concern for 'making kin out of others' (Vilaça

2002)";

ii. Em segundo lugar, a inversão póstuma dos vínculos de filiação entre humanos e

plantas sugere que a ambivalência não é suficiente para qualificar a assimetria do

controle porque nestas relações, citando a reflexão de Van Dooren (2012:25) acerca das

elaborações de Haraway e Tsing das interações co-evolutivas a partir das quais a

biologia e culturas humanas emergiram, ninguém está no controle:

In making this point Haraway is thinking along the same lines as Anna Tsing when
she prompts us to imagine a “human nature” that shifts “historically together with
varied webs of interspecies dependence”, and consequently insists that “Human nature
is an interspecies relationship”. Both theorists see the co-evolutionary interactions
between humans and various non-humans as ones in which all of us “emerge” through
ongoing and co-constitutive interactions in which some actors have more control than
others, but none is in control.

Pode-se pensar os humanos controlando as plantas tanto quanto o inverso, leia-se, em

humanos sendo domesticados pelas plantas. O impulso de escolher entre o ponto de

vista humano ou aquele das plantas, em raros momentos, está livre do gesto

279
excessivamente familiar da apropriação interessada que pauta o modo de existir e de se

relacionar dos humanos119;

iii. Por fim, o procedimento heurístico de alargar um modelo calcado na animalidade em

vista de abarcar a vida vegetal revela limitações incontornáveis para compreender as

relações entre plantas e humanos. Pois, ao considerar "animal" e "vegetal" como formas

lógicas equivalentes, os reduz a uma única posição analítica a favor do primeiro.

Novamente, ajustar os modelos centrados na figura dos animais para as plantas, questão

discutida na parte I a respeito do lugar de destaque dos animais predadores nas

premissas do perspectivismo ameríndio e a redução das "plantas" a este lugar lógico (cf.

cap 5), reforça o nosso desprezo em reconhecer as particularidades dessas formas de

vida e em incutir-lhes à revelia os nossos desejos. Embora a proposta exija verificação,

não creio afastar-me do escopo do capítulo ao relacionar essa postura analítica a um

119
Citando o artigo de H. M. Leach "Human Domestication Reconsidered" (2003), Van Dooren
escreve: "[a]s already noted, however, despite the conventional rhetoric of domestication, these plants
were not the only ones changed in these relationships. Amongst humans, new forms of life and ways of
living emerged in these agricultural environments. It is simply impossible to predict how different
humans and our lives might have been if these relationships had never taken hold. Different, however, not
just in terms of religion, science, education (in short, those things usually termed “culture”), but also in
terms of nutrition, immune systems, and more general health and fitness. Helen M. Leach has, for
example, argued on the basis of skeletal and other anatomical characteristics that humans might be
understood as having been “domesticated” themselves in a significant sense" (2012:27). O argumento
central do livro "The Botany of desire" (2000), de Michael Pollan, baseia-se em intuição semelhante
ainda que formulado em termos biológicos de relações co-evolutivas: “All these plants, which I’d always
regarded as the objects of my desire, were also, I realized, subjects, acting on me, getting me to do things
for them they couldn’t do for themselves. And that’s when I had the idea: What would happen if we
looked at the world beyond the garden this way, regarded our place in nature from the same upside-down
perspective? This book attempts to do just that, by telling the story of four familiar plants—the apple, the
tulip, cannabis, and the potato—and the human desires that link their destinies to our own. Its broader
subject is the complex reciprocal relationship between the human and natural world, which I approach
from a somewhat unconventional angle: I take seriously the plant’s point of view.” (Pollan 2000:18-19).
O processo evolutivo também testemunha a proximidade com as plantas, conforme nota Tassin: "notre
corps s'est façonné au contact des arbres où vivaient nos lointains aïeux les primates, et en est même
devenu l'un des prolongements. (…) C'est que, chez nos ancêtres primates, le déplacement dans les arbres
a précédé de plusiers dizaines de millions d'années la marche au sol. Nos mains dotées de doigts flexibles
et d'un pouce opposable, nos bras servis par cette merveille anatomique qu'est l'épaule, la composition de
notre visage, notre vision stéréoscopique indispensable pour évoluer dans les arbres, notre denture et
notre régime alimentaire, pour ne citer que ces traits les plus saillants, témoignent de ce lointain séjour"
(2016:15).

280
modelo de episteme que confere às plantas um lugar marginal, tributário da vida animal

e humana (cf. Nealon 2016)120.

Nesse sentido, minha intenção é, tomando como inspiração diferentes estudos sobre

práticas e concepções ameríndias a respeito das relações agrícolas, buscar uma imagem

diferente daquela da domesticação das plantas pelos humanos como narrativa triunfante

de um processo unidirecional da evolução humana através da conquista e exploração de

outras formas de vida, i.e., as grandes revoluções da história da humanidade121. Tsing

faz uma exposição da questão condensando vários de seus aspectos:

A domesticação é geralmente compreendida como o controle humano sobre outras


espécies. Que tais relações podem também transformar os humanos é algo
frequentemente ignorado. Além disso, tende-se a imaginar a domesticação como uma

120
"[O]n Foucault’s account, it’s with the rise of the transcendentals, in the era of the human
sciences, that animals begin to take priority over plants as the privileged form or figure of life itself. In an
era of natural history where knowledge was characterized by “the apparent simplicity of a description of
the visible . . . the area common to words and things constituted a much more accommodating, a much
less ‘black’ grid for plants than for animals” (The Order of Things: 137 ). Most animals, simply put, have
more hidden, interior space than plants and thereby present a greater volume of “black” or blank space to
the gaze of the classifying naturalist. Foucault writes about this era of representation: “Because it was
possible to know and to say only within a taxonomic area of visibility, the knowledge of plants was
bound to prove more extensive than that of animals” (OT 137 ), precisely because plants can be pulled up
out of the ground and thereby rendered fully visible, from the tip of the roots to the outermost edges of the
flower or leaf. At the dawn of the nineteenth century, however, Foucault traces a mutation of the
dominant epistemic procedures—from a representational discourse that maps external similitude and
resemblance, to the emergence of a speculative discourse that takes as its object hidden internal processes.
In short, we see emerge a discourse that “opposed historical knowledge of the visible to philosophical
knowledge of the invisible” (OT 138 ): knowledge’s privileged practices abandon the surface of objects in
order to plumb their hidden depths instead" (Nealon 2016:6-7). Ver também o capítulo "Extériorisme" no
livro "À quoi pensent les plantes" de Jacques Tassin (2016). O paradigma da "vida oculta" parece ter se
voltado para as plantas e se tornado o leitmotif de boa parte dos livros de divulgação sobre o tema, enfim,
o argumento é que a vida vegetal encerrada "mistérios" a serem desvelados: "A vida secreta das árvores: o
que elas sentem e como se comunicam", de Peter Wohlleben (2017); "A vida oculta das plantas", de Peter
Tompkins e Christopher Bird (2000); "À quoi pensent les plantes", de Jacques Tassin (2016) etc.
121
Muitas pesquisas mostram que a humanidade vive literalmente do trabalho de outras criaturas e
apenas uma pequena parte das plantas resultam da ação humana: "In one way, a retrospect on this
evolution must humble us. Few of the edible, nutritional characteristics of the seed plants that now sustain
us evolved for our benefit, under selective pressure from our forebears or through conscious breeding by
scientists. We are literally living off the fruits of other creatures’ labors - those of the birds, bugs, and
beasts that loosely coevolved with seed plants over the last hundred million years" (Nabhan 1989:6 apud
Van dooren 2012:26).

281
linha divisória: ou você está do lado humano, ou do lado selvagem. Pelo fato de essa
dicotomia se basear num comprometimento ideológico com a supremacia humana, ela
apoia as mais incríveis fantasias, por um lado, de controle doméstico e, por outro lado,
de autoprodução das espécies selvagens. Por meio dessas fantasias, as espécies
domésticas são condenadas à prisão perpétua e à homogeneização genética, enquanto
as espécies selvagens são “preservadas” em bancos de germoplasma enquanto suas
paisagens multiespécies são destruídas. Apesar desses esforços extremos, a maioria
das espécies dos dois lados da linha, incluindo os humanos, vive em complexas
relações de dependência e interdependência (2015:184).

Em consonância com tais propostas, acredito que da etnografia Jamamadi e seu

contrapeso analítico, os Hi-Merimã, também irrompe uma imagem distinta na qual as

interações entre humanos e plantas sugerem uma domesticação mútua em que ambos

são afetados/constituídos ao mesmo tempo em que transformam e agem no mundo.

Outrossim, não bastassem as informações etnográficas, a catástrofe ambiental presente

mostra a emergência do debate ético em vista de reconhecer os direitos das plantas122,

além de outros seres não-humanos.

122
Em abril de 2008, o governo suíço produziu o documento "The dignity of living beings with
regard to plants" em vista de fomentar o debate sobre os direitos das plantas. Um de seus pontos cruciais
é que os seres humanos não podem reclamar "a absoluta propriedade" deste seres. O foco de maior
preocupação são as condutas das pesquisas genéticas que desrespeitam a dignidade vegetal. O Comitê
Federal de Ética sobre a Biotecnologia Não-Humana da Suíça preparou um relatório intitulado "The
moral consideration of plants for their own sake" no qual afirmam que interferir na vida das plantas sem
uma razão válida é moralmente inadmissível. Para mais informações conferir:
http://www.ekah.admin.ch/fileadmin/ekah-dateien/dokumentation/publikationen/e-Broschure-Wurde-
Pflanze-2008.pdf

282
8.1 Os filhos-planta e a inversão póstuma

O sucesso das relações de cultivo é medido através de seus efeitos, a saber, se as plantas

retribuem os cuidados de seus pais produzindo cultivares em abundância. A relação com

as plantas alimentares é modelizada pela filiação, de maneira que sendo os filhos de

criação do dono do roçado, além de espíritos auxiliares do pajé e cônjuges potenciais

em sua vida póstuma, as plantas devem ser cuidadas como parentes, do contrário,

vingam-se atacando seus filhos ou a ele próprio. Chagas, que vive na aldeia São

Francisco, sentiu-se adoentado123 depois de cortar a castanheira que ficava ao lado de

sua casa, ele relutou em cortá-la, pois sabia que não poderia contornar a raiva que

causaria ao seu duplo humano, mowi abono, porém, ele não tinha escolha, seus ouriços

já haviam matado um de seus animais de criação e ele temia que pudessem atingir seus

filhos, de acordo com ele:

Todas as plantas são vivas. É ruim ficar derrubando. Toda noite, elas vêm olhar [a
aldeia]. Se o pai estiver cuidando, a planta fica feliz e manda frutas. Não pode cortar
ou maltratar porque eles ficam com raiva e dão diarreia. A pessoa fica doente se
maltratar o yamata. A gente fica doente quando não cuidamos bem deles. Só o pajé é
que sabe como cuidar bem dessas doenças, doença de awabono, 'fruta'.

A proteção e os cuidados rotineiros com o roçado são necessário para que as plantas

apreciem sua aldeia e desejem permanecer habitando-a; ademais, seu dono precisa

alegrar seus cultivares a fim de estimular-lhes o crescimento. Certa vez, pude ver a

123
Bonilla relata (com. pess.) ter presenciado um abonoi foi (recuperação de alma) de uma crianças
cuja alma-corpo foi capturada pela forma humana de uma samaúma derrubada pelo pai na proximidade de
sua casa (ele cortou a árvore sem avisar o xamã, que não pode tomar as precauções necessárias). Seu filho
adoeceu e teve diarréia.

283
preocupação do pajé B. por ausentar-se vários dias de seu trabalho no roçado porque

uma ferida dificultava sua locomoção, obrigando-o a repousar por mais tempo que

desejava. O mato já crescia encobrindo parcialmente os caminhos na sua roça, havia

contado sua filha que fora “espiar” os yamata a pedido do pai. B., constrangido com a

noticia, avisou sua esposa que assim que pudesse iria limpar a roça para que os yamata

voltassem a se alegrar. Sabe-se que "comer junto", ai nafi tafahi, é um modo básico ou

operação fundamental na fabricação do parentesco na Amazônia, bem como de um ideal

de humanidade, pois a comensalidade engendra e fortalece as relações entre aqueles que

compartilham do mesmo alimento (Gow 1991, Vilaça 2002). Por isso, poucas situações,

com efeito, se equiparam à alegria que demonstram em apreciar conjuntamente uma

panela cheia de cultivares cozidos, achá-los bonitos fumegando e comê-los lembrando

que são os frutos de seus filhos - partes deles -, a retribuição pelos cuidados

dispensados. Ou, por outro lado, de lidar com a frustração e as maledicências de não

poder ofertar no verão o mingau de banana comprida, manehe fene, pela baixa

produtividade do roçado, uma retaliação cabal do cultivar pela falta de atenção de seu

pai.

O inverso também ocorre. Uma única vez presenciei a derrubada e a queima de uma

planta sem que o propósito fosse preparar o terreno para o roçado. Fazia tempo que o

pajé B. reclamava de um buriti plantado nas imediações de sua casa. Desconheço todos

os motivo do desgosto que o fez derrubar a palmeira e queimá-la (seus restos não foram

utilizados), visivelmente aborrecido com a planta, ele apenas comentou a ingratidão do

buriti que nunca havia lhe dado frutos.

284
Fig. 17 Buriti em chamas

Para alegrar as suas plantas, na lua nova, os pais açoitam suas crianças pequenas, tanto

os meninos quanto as meninas, para fazer o milho produzir espigas com muitas

sementes, as pupunhas darem cachos grandes, as raízes das mandiocas e as canas-de-

açúcar engrossarem. O procedimento é realizado como uma “brincadeira”, sisiwa, o pai

bate com certa força, porém não o suficiente para causar ferimentos, nas costas e pernas

de seus filhos que pulam e correm na tentativa de desviar do açoite. Se o açoitamento da

menina no ritual pubertário foi abandonado há mais de uma década, o uso do açoite

como técnica que propicia o crescimento das plantas e protege as crianças da

contrapredação dos cultivos permanece usado sob a justificativa de ser feito de

“brincadeira”. Açoitando-as, os pais pedem a autorização dos yamata abono para que

seus filhos possam comer os seus cultivos sem que estes provoquem doenças e, além

disso, as protegem das picadas de cobra, outro meio comum de vingança das plantas.

No roçado, as plantas choram quando nascem, pedem atenção e proteção de seus pais.

Abi, owa bako hokoni, “pai, estou com sede”, diz o broto do cultivar ao pajé que o

plantou. Tal como as crianças e os animais se incomodam quando faz calor, os yamata

285
choram pedindo água. “As crianças sem tomar banho ficam manhosas quando está

quente, igual é a planta. Quando volta a chover, ela cresce rapidinho”, dizia a filha do

pajé B. quando molhava as pupunhas que cresciam no terreiro de sua casa. Owati wahi!,

“terminei de crescer”; Abi, tifimeraboneni!, “ pai, você não passará fome!”; Abi, hawa

oini, “ pai, já virei homem/mulher”, são as falas dos yamata para seu dono quando

alcançam o término de seu crescimento e anunciam que podem ser colhidos. O

comentário das mulheres Krahô para Morim de Lima, a saber, "batata já brotou para

mim!" põe em evidência que os cultivos não nascem indiferentemente, mas brotam e

dão para alguém que é considerada boa mãe, cuidadosa e generosa (2017:455). Isso

porque as intrincadas relações entre humanos e plantas não se restringem ao âmbito da

alimentação, posto que, a batata é "cultivada enquanto 'parente', pensa e sente, vê e

canta o mundo" (idem:456). Os Jamamadi dizem algo parecido: "Tudo tem pai e mãe,

pois se a fruta cresceu é porque tinha quem cuidasse dela. Do mesmo jeito que nós. A

mãe ou o pai manda a fruta cair e se aborrece se alguém tirar a fruta antes".

O momento da colheita requer respeito e comedimento no uso da linguagem para não

ofender as plantas, é preciso ter cuidado e proceder corretamente para não enraivecê-las.

Yamata tiwa bore okomatia ai kaba bonineni yaha!, "yamata, eu vou te arrancar, vou te

comer com banha!". Essa é uma fórmula padrão dita à guisa de autorização antes de

cortar um cultivar no roçado. Dizem que as plantas se alegram quando alimentam seus

parentes, então, para animá-las falam perto delas yaha! yaha!, "banha! banha!", para

avisá-las que serão comidas com carne gorda e caldo. De acordo com Salgado:

A pessoa corta o pé, a mão, a cabeça do seu irmão ou filho [yamata]. Tem que pedir
autorização. Se não pedir, ele fica com raiva. 'Pode pegar?' tem que perguntar. Sem

286
pedir, a pessoa rapidinho sente frio e pega doença. Se o pajé autorizou, o yamata sente
dor quando corta, mas tudo bem porque já pediu.

À semelhança do que se atesta sobre as caças alhures124, é preciso neutralizar a agência

das plantas para contornar os riscos de que seu consumo seja um ato de canibalismo e

engendre a vingança dos cultivares. Os enunciados ditos na colheita são uma forma de

negociação cuja função é tanto autorizar quanto apaziguar as almas das plantas. Pode-se

dizer que as técnicas culinárias contribuem para retirar-lhes o potencial agressivo e

transformar as partes dos corpos dos filhos-planta em mero alimento. A desubjetivação

das plantas alimentares obedece aos procedimentos que são mobiliados para o consumo

de carne, afinal, “[...] em refeições cotidianas, o animal-enquanto-sujeito deve estar

ausente para que a identificação ocorra entre humanos” (Fausto 2007:504 apud Costa

2015:80).

Se no rio Negro (Hugh-Jones 1996) para dessubjetivar a caça, ela é transubstanciada em

vegetal, neutralizando seu espírito e inibindo a retaliação, entre os Jamamadi, a ingestão

de carne é menos perigosa que o vegetarianismo. É preciso ter muito cuidado e atenção

para não misturar alimentos de origem "vegetal" que podem provocar doenças e até

matar; por outro lado, nunca ouvi nenhum caso de adoecimento ou falecimento causado

pela ingestão de carne de caça. Há regras estritas no consumo de alimentos de origem

vegetal e eles alertam para tomar precauções sobre quais alimentos podem ser

consumidos por cada pessoa (no caso de estar tomando um medicamento, se estiver em

124
Por ser uma atividade restrita aos homens, não participei de nenhuma caçada e minha
informações baseiam-se em relatos. Como a carne já chega na aldeia tratada e talhada pelos caçadores, ela
só é entregue para que as mulheres terminem de limpá-la e para prepará-la. A falta de elaboração sobre o
tema mesmo em conversas posteriores à caçada reafirma o ponto da baixa qualidade de sujeito dos
animais predados, não outorgam intencionalidade humana aos animais.

287
reclusão, se tiver um parente doente, se já tiver se alimentado com outra coisa, se se

tratar de um xamã, se for uma pessoa idosa, se for uma criança, etc).125 Os animais

terem sido humanos, portanto, os preocupa menos que a humanidade atual das plantas.

Do ponto de vista dos cultivos, alimentar os humanos com partes de si tem a função de

penhor visando a uma apropriação futura das almas dos mortos Jamamadi com os quais,

por sua vez, produzirão o seu parentesco. Trata-se de um processo mútuo no qual os

homens alimentam-se das plantas para suprir suas necessidades vitais e fazer seu

parentesco e, em paralelo, as plantas ao concederem serem comidas apropriam-se das

almas dos mortos Jamamadi para fabricar o seu próprio parentesco. Aqui, há uma

distinção pertinente a ser ressaltada. A predação das plantas não equivale a um ato

semelhante à caça e ao consumo de carne, haja visto que a alimentação vegetariana não

implica aniquilar a vida da planta e desfazer os laços com seus, mais ainda, essa espécie

de "morte parcial", uma destruição incompleta de seus corpos, é prevista, talvez

necessária, na sua constituição, além de ser o que faz as relações de criação entre

humanos e plantas. A vida séssil não é um obstáculo à preservação das plantas porque

elas não precisam fugir de sua "morte", este fato se conjuga ao corolário evolutivo do

exteriorismo vegetal que é seu crescimento indefinido, desmesurado. Quem sabe não

125
Refiro-me ao trecho de Hugh-Jones (1996:5): "En changeant de peau, les poissons peuvent se
transformer en gibier. Les chamanes, au moyen d'invocations, sont toutefois capables de retransformer
ces animaux en poissons, et les paroles qu'ils utilisent à cette fin les désignent bel et bien de termes
appropriés pour les poissons qu'ils doivent redevenir. De manière plus radicale encore, lorsque les
chamanes demandent aux maîtres des grands animaux la permission de chasser, ils ne demandent pas des
dons de viande, mais plutôt des dons de végétaux. Les invocations qu'ils soufflent alors sur le produit de
la chasse réitèrent cette transformation, changeant la chair animale en cassave, bananes plantains, ananas
ou autres végétaux cultivés, selon un procédé qu'utilisent également les Piaroa (Overing Kaplan 1975 : 3).
De telles pratiques permettent aux Tucano de se considérer comme des végétariens qui mangent aussi du
poisson, ce qui n'est pas sans évoquer les différentes pratiques et les procédés linguistiques qui permettent
de désanimaliser les carcasses dans les abattoirs du Sud-Ouest, suivant une logique que Vialles baptise du
terme de « végétalisation » (1987:50-53 et 69-70).

288
será essa a sagacidade das estrategias evolutivas de sobrevivência da vida vegetal? Na

bela elaboração do filósofo Emanuele Coccia:

Não precisam de órgãos de sentidos porque - à diferença da maioria dos animais


superiores -, não têm uma relação seletiva com o mundo ao seu redor. São a vida em
exposição global, em continuidade absoluta, em comunhão absoluta com aquilo que as
circunda. Por isso não precisam mover-se. Não mover-se significa aderir
completamente àquilo que acontece e ao que as rodeia. Uma planta não é separável do
mundo que a recebe. É a forma mais intensa e paradigmática do ser-no-mundo.
(2016:211)

A atividade agrícola é um meio de fazer parentes através do engajamento mútuo de

pessoas e plantas em vista de criar laços que ultrapassam a duração da vida terrena126.

Sendo uma das faces do parentesco, as práticas de cultivo criam redes genealógicas que

se estendem da terra ao céu e incorporam tanto filhos humanos quanto filhos de criação

vegetais como efeito das relações de familiarização entre a pessoa que plantou um

determinado cultivar e o espírito deste. Vale para o parentesco vegetal o argumento

mobilizado na discussão sobre a coincidência do vocabulário aplicado ao

desenvolvimento e morfologia de corpos humanos e vegetais: não se trata simplesmente

126
Maizza (2009) distingue em sua análise a relação baseada na domesticação mantida pelos
Jarawara com o aspecto físico e visível das plantas que permanece na terra, da relação que esta mantém
com seu espírito celeste, entendida como sendo da ordem da consanguinidade plena ou não-relação. A
partir da menção ao estudo de Taylor (2000), a autora afirma que o espírito seria a progenitura da planta,
o resultado de sua autorreprodução ou uma forma de clonagem, não associada exclusivamente às plantas
de reprodução assexuada. Nas palavras de Maizza: “Taylor explica que quando uma mulher jivaro canta o
anent para suas plantas, ela dirige o canto tanto às plantas como a ela mesma, para estimular sua própria
autorreprodução. Nestes cantos horticultores, a mulher fala enquanto ‘mulher nunkui’. Nunkui é a mãe de
todas as plantas do roçado e, ao mesmo tempo, sua própria progenitura; ela é um clone autorreprodutor,
unissexuado (exclusivamente feminino). Para Taylor, esta propriedade faz dela uma figura privilegiada da
consanguinidade e uma antítese da relação de predação. Mais do que isto, ela representa uma relação de
não diferença, ou seja, uma não-relação – neste sentido, a consanguinidade plena seria uma não-relação”
(2012:234). Não tenho elementos para seguir na direção apontada por Maizza. As elaborações Jamamadi
acerca dos vínculos entre as plantas e seu aspecto humano me levaram a considerar este último como o
seu princípio agentivo, um duplo obliterado em condições ordinárias, não como um caso de clonagem ou
autorreprodução.

289
da metáfora de um modelo ou imagética vegetal porque o parentesco jamamadi não se

restringe aos limites da humanidade.

A economia de subsistência Jamamadi é composta pela agricultura de coivara, coleta de

frutos de plantas selvagens e semidomesticadas, caça e pesca. A caça tende a ser mais

valorizada que a pesca pelo fato da maioria das aldeias estarem localizadas no interior

da terra firme, distante dos curso mais caudalosos dos rios e igarapés. Enquanto a caça é

uma atividade estritamente masculina (apesar de algumas mulheres saberem atirar e

caçar animais de pequeno porte, sobretudo os arborícolas, como macacos e aves), a

pesca pode ser uma atividade de lazer realizada coletivamente pelas mulheres nos

pequenos igarapés, porém, seu intuito central não é o de prover alimento ao grupo. Os

alimentos industrializados tem uma importância restrita na alimentação, com exceção da

aldeia São Francisco onde a oferta de caça tem diminuído nos últimos anos,

aumentando a dependência de comidas compradas na cidade. Uma refeição completa é

aquela composta por carne de caça cozida com bastante caldo e farinha ou a fécula de

mandioca escaldada, iyawa (chamado também de grolado), ambos os alimentos são

essenciais, mas a farinha e a massa de mandioca jamais podem faltar. A caça preferida,

prototípica, dos Jamamadi é, sem dúvida, o queixada por seu valor nutritivo e

simbólico. Poucas espécies são interditas para o consumo, recomenda-se evitar a carne

do macaco parauacu e a preguiça, pois, estes animais causam envelhecimento precoce,

cansaço e sono. As restrições parecem ser maiores para os animais aquáticos, os

Jamamadi não apreciam o peixe- boi, o pirarucu, o jacaré ou tartaruga.

O idioma da consanguinidade é mobilizado para descrever a relação com as plantas em

outras paisagens etnográficas, não restritas aos povos arawá, como dão conta as

290
expressões "enfants végétaux" dos Paumari (Bonilla 2007: 294-295), "enfants feuillus"

entre os Achuar (Descola 1986: 237-265; Taylor 2000); "filhos-plantas" dos Krahô

(Morim de Lima 2017); "filho de verdade" usado pelos Jarawara (Maizza 2014);

"criações", com as quais os Wajãpi estabelecem verdadeira relação sentimental, quase

maternal (Cabral de Oliveira 2006), etc. A formulação de Emperaire a respeito do

sistema agrícola da região do médio Rio Negro precisa a questão:

A atitude com relação à mandioca reflete-se num discurso sobre o modo de tratar o
vegetal: uma variedade é criada e não somente cultivada ou plantada. Estabelece-se
uma relação de filiação entre a agricultora e as variedades cultivadas. As variedades
têm uma dimensão humanizada que é a tela de fundo do manejo da diversidade
varietal (Emperaire apud Cabral de Oliveira 2006: 188).

Entre os Paumari, a forma humana das plantas cultivadas, o seu pamoarihi, é chamado

de filho pela pessoa que a plantou. Esses filhos de criação vegetais oferecem a seus pais

o que, de seu ponto de vista, é sua produção, o látex por exemplo, uma demonstração da

pregnância do idioma da patronagem que permeia a cosmologia deste povo. O

parentesco com as plantas se revela na importância de saber que cada árvore ou cultivar

está relacionado a alguém, porque são plantados justamente com esse propósito, ou seja,

a atividade agrícola é um modo de fazer parentes, vegetais e humanos, e respeitar esse

fato é essencial na evitação de conflitos. De maneira que os frutos são símbolos de seu

dono, um emblema de um vínculo inalienável entre humanos e plantas. Tanto é assim

que a memória genealógica paumari pode alcançar até três gerações ascendentes em seu

esforço de retraçar os laços de parentesco/propriedade entre cultivadores e seus cultivos,

de acordo com a autora, é possível fazer uma "cartografia genealógica da ocupação

territorial" (idem) por intermédio da relação com as plantas.

291
Toutes mes plantations (kodirakhajahi) sont mes enfants (kodisai), et je suis la mère
des bananes de mon mari (Onório kasipatihi kaamia). Lorsqu’elles produisent des
fruits, ce sont en fait mes enfants qui me ramènent quelque chose. Mes plantations qui
donnent des fruits ou qui produisent des légumes, ce sont en fait mes enfants qui me
ramènent des fruits de la forêt. Mes pastèques, quand elles fleurissent, ce sont mes
enfants qui sont en train d’extraire du latex, quand elles (les pastèques) sont bonnes à
manger, c’est du latex qu’elles me rapportent pour que je le vende (Nina, Santa Rita,
03/08/02)".

Ainda entre os Paumari, as árvores frutíferas e as palmeiras têm sempre um dono

conhecido, mesmo no caso dele não habitar mais o local ou já ter falecido, fatores que

não afetam a posse da planta e estão na origem de recorrentes disputas sobre o direito de

colher e consumir seus frutos (ibdem). A situação não é muito distinta entre os

Jamamadi, sempre ciosos de seus cultivos. Em meu relato da chegada no campo (cf.

introdução), fiz questão de frisar a importância que meus anfitriões atribuíam em

apresentar as plantas das aldeias e seus respectivos donos, cautela que ao longo da

estadia foi reiteradas vezes justificada.

É comum que entremeadas às plantas de alguém haja algumas que foram plantadas por

outras pessoas, dado os deslocamentos e rearranjos das famílias na aldeia; no entanto,

seus frutos ficam intactos até seu dono ou algum parente venha colhê-lo. Antigamente, a

família de Trajano vivia onde hoje está a família de Badá, então, no pupunhal deste há

algumas palmeiras da parentela daquele, aliás, bastante afastada genealogicamente do

grupo de Badá, por isso, era comum encontrar Trajano e seus filhos na casa de Badá

somente no inverno, época em que amadurecem as pupunhas.

292
Em outro contexto, o motivo bíblico do fruto proibido, quando narrado pelos Jamamadi,

é uma transformação do tema do conflito decorrente do roubo de cultivos alheios,

frequente nos mitos e na socialidade cotidiana - lembrando que as frutas são um veículo

de agressão xamânica127. Uma das passagens bíblicas favoritas do pajé B., que não é

crente nem frequenta os cultos mas gosta de ler a bíblia, é o trecho do gênesis que trata

da expulsão de Adão e Eva do paraíso por terem desobedecido uma regra tácita,

segundo ele, "conhecida por todos": eles comeram o fruto proibido, pegaram sem

autorização o yamata do roçado de Deus, enraivecendo-o. Ele me contava essa parábola

com o intuito de lembrar-me que desde os tempos bíblicos roubar os yamata ou

desrespeitá- los, seja com o olhar intruso e indiscreto em direção a plantas de outra

pessoa, seja colhendo frutos sem autorização, é um modo de agredir o seu dono. Este

assunto, recorrente na sociabilidade Jamamadi, é elaborado no mito de Yawina,

personagem que cultivava grandes roçados, o equivalente a ser alguém querido e

127
Ana Rosa havia pegado malária e estava se recuperando quando piorou bruscamente. Apesar de
não ter feito o tratamento conforme a recomendação dos enfermeiros, a piora de sua saúde fora atribuída a
um caju que ela tinha comido. Ninguém mencionava outra coisa exceto o caju, comida perigosa quando
se está convalescendo por seu abono ser forte. Em seu vômito, todos procuravam pedaços da fruta,
mesmo que ela já tivesse comido outras coisas. O pajé B. retirou as flechas de feitiço de Ana Rosa.
Segundo me explicaram, ela comeu o caju e ele "colou" nela porque Ana pedira permissão para comê-lo,
o que irritou a alma da fruta que soprou feitiço nela. Por ter uma castanha oleosa, afirmam que a fruta tem
muito sangue/óleo (em contraposição ao cará, por exemplo, que tem pouco sangue), outro fator que
explicaria a restrição em comer essa fruta quando se está doente. Na ocasião, eles se lembraram da morte
do pai de Chagas, também provocada por um feitiço do caju, ayawa abono ou ayabata abono (cognato
nakanike). Ele voltou a adoecer quando estava quase se recuperando porque comeu essa fruta. Chagas diz
que o caju somado ao quadro frágil do pai causou sua morte. Um mito nakanike reforça a imagem
perigosa dessa fruta: "Um pajé resolve vingar a morte de seu pai e pede para que as almas deixem cajus
envenenados no caminho para os inimigos comerem. Todos comem as frutas e não conseguem mais
andar. Eles têm força apenas para alcançar suas maqueiras onde se deitam e cantam até morrer. O único
sobrevivente é flechado pelo pajé. Mesmo flechado, o inimigo nada sente e continua cantando. 'Você vai
pagar o meu pai (vou vingar a morte de meu pai), agora você e seus parentes nunca mais vão andar nos
caminhos da floresta. Vocês não tem mais alma e não vão para o céu. Vocês acabaram. Madi towe, os
espíritos canibais, vão comer a alma de vocês". Entre os Suruwaha, o sabor adstringente do caju é um
código sensível mobilizado para falar da mágoa e do ressentimento: "os Suruwaha acreditam que os
fenômenos meteorológicos (a chuva, o vento e o trovão) constituem até certo ponto (às vezes, mas não
sempre) uma materialização ou expressão sonora das emoções de revolta sentidas pelas almas dos recém-
falecidos. A mesma coisa vale para os cajueiros que segundo eles nascem em grande quantidade pelas
beiradas do caminho das almas (Masani agiri, “o caminho do leste”). O caráter travoso das frutas de caju
(o seu efeito adstringente sobre as mucosas da boca - asy) é equiparado por eles com o efeito da saudade
sobre o coração de uma pessoa abandonada, e o recurso ao motivo do “cajueiro celeste” como metáfora
da superação de um sentimento de perda é recorrente na sua produção musical" (Huber 2012:447).

293
carismático, pois, é o que permite promover rituais nos quais é fundamental poder

oferecer grandes quantidades de comida. E, não menos importante, ter grandes roçados

é sinônimo de ter muitos filhos humanos, que auxiliam no trabalho agrícola, e plantas,

que são os espíritos auxiliares.

O mito trata do encontro sazonal que reunia diferentes malocas por ocasião do ritual da

menarca. Meninas de diferentes grupos saiam da reclusão juntas no verão, quando

muitos cultivos amadurecem, com destaque à banana com a qual fazem uma importante

bebida preferencialmente consumida com parentes afins128. Após um conflito entre

Yawina e seu cunhado, as mulheres partem para a maloca daqueles que promoveriam o

ritual. No caminho, a mulher de Yawina e sua mãe encontram os cultivos dele

destruídos, espalhados no caminho. O irmão mais velho de sua esposa se vingara

agredindo o cunhado através de suas plantas. Ao descobrir, Yawina faz uma borduna

com a madeira tara, pau ferro (Calycophyllum spruceanum), e sai em busca de seus

parentes para exterminá-los. Apresento uma versão resumida do mito, o original pode

ser consultado no anexo:

Os parentes de Yawina queriam levar uma menina "não formada" [em reclusão] para
fazer festa na outra maloca. A mulher de Yawina estava grávida, mas a mãe e o irmão
mais velho dela insistem que ela deve ir, mesmo sabendo que ela, com certeza, vai
parir a criança no caminho. Yawina ficou deitado em sua rede escutando a conversa e
esperando a raiva passar.
- Minha irmã mais nova não pode ficar, eu vou levar ela. Dizia o cunhado de Yawina,

128
Os Jamamadi também produzem uma bebida levemente fermentada de pupunha que é
consumida coletivamente entre diferentes parentelas no inverno, época dos deslocamento sazonais em que
as famílias passam longas temporadas longe da aldeia principal e, no passado, os grupos se juntavam na
maloca comunal para beber essa caiçuma de pupunha, yawida fene. O consumo ritual da bebida difere da
comensalidade diária das parentelas e produz vínculos de outros tipos. Rival faz uma interessante análise
das qualidades práticas e simbólicas da pupunha que permitem a formação de diferentes alianças com
encontros sazonais de grupos endogâmicos regionais Huaorani (1998:241).

294
irmão mais velho de sua esposa, para a mãe.
- Mãe, eu não posso deixar o meu marido, Yawina não pode ficar.
A sogra tenta convencer a filha a acompanhá-los.
- Yawina tem que ficar, eu estou te chamando, não meu cunhado. Continua insistindo
o cunhado de Yawina até que convence a irmã.
- Yawina, você tem que ficar, eu vou com a minha mãe.
- Sim, vai com a sua mãe. Mas, se sua mãe tivesse avisado logo, eu teria cuidado do
meu yamata, teria colocado forquilha na banana e amarrado meu abacaxi.
- Então, ajeita seu yamata e vem depois.
A mulher de Yawina desatou a rede e colocou dentro do paneirinho para carregar na
viagem. No caminho, havia uma clareira de roçado com muitos cultivares. As plantas
estavam caídas no chão, muitas estavam maduras. Tinha muito yamata jogado na beira
do caminho. Alguém tinha cortado bananas, manivas e pupunhas e deixado espalhado
para todos verem.
- Ka! Quando Yawina ver os yamata dele cortado, ele vai ficar com raiva. O Yawina
disse que vinha, por quê vocês [os irmãos dela] cortaram os yamata dele? Quando ele
chegar, vai ficar com raiva de nós.
A irmã mais nova de Yawina escuta a conversa e vai contar para o seu irmão o que
fizeram com suas plantas:
- Yawina! Yawina! chamava a irmã mais nova.
- O que foi asima [irmã mais nova]? O que você quer?
-Yawina! Ayo [irmão mais velho], destruíram seus yamata. Vai lá dar uma olhada.
Parece que aquele pessoal que foi embora antes cortou a pupunha que você plantou.
Irritado, Yawina chama um primo para acompanhá-lo e ver se era verdade.
- Anihi [primo], vamos comigo, disseram que mataram os meus yamata. Eu vou dar
uma olhada nas plantas do meu roçado, eu quero saber.
Chegando no roçado, suas plantas estavam mortas. Yawina fica com raiva e decide se
vingar.
- Ka! O pessoal que cortou meu fadara [roçado] é que tem raiva de mim, eu não tinha
raiva de ninguém. Mas, agora, eu estou com raiva de todos.
Yawina saiu e seguiu as pegadas novas deixadas pelos parentes. No caminho, cortou
um pedaço de madeira tara, que é muito dura, para matar todos eles.

295
Quando questionados a respeito da origem das plantas cultivadas, os Jamamadi frisam

sua procedência celeste e narram mitos de uma época na qual havia um intenso trânsito

entre o céu e a terra através de matrimônios e viagens xamânicas, o meio principal de

adquirir os cultivares inexistentes e desconhecidos na terra, que eram de posse exclusiva

das almas129. Contam que nessa época as pessoas comiam somente "frutas do mato",

kabanike awabono, porque desconheciam os cultivares, até que um pajé resolve ir ao

céu pedir as plantas alimentares para as almas. Os espíritos inamadi recebem o pajé

chamando-o de naki, "companheiro", e viajam com ele para o céu e o subsolo para

mostrar as plantas, cada uma trocada por um item da cultura material. O pajé trocou um

cacho de pupunha por um cocar e uma braçadeira; um cacho de bananas, por uma

tornozeleira; uma muda de abacaxi, por uma zarabatana, etc. As almas ensinaram os

nomes das plantas, a maneira de cultivá-las e como deveriam ser preparadas: “a

pupunha não pode ser comida crua. Se você não cozinhar, vai ficar com a boca ferida.

Você cozinha primeiro, quando amolecer, pode comer. A banana, a macaxeira e a cana

não precisa cozinhar”, falaram as almas sobre a pupunha e os demais cultivares que hoje

eles plantam em seus roçados. As variedades de mandioca chamadas fowa bili e fowa

sawa foram as primeiras manivas trazidas do céu por esse pajé. O mito, ademais, marca

a cisão entre um modo de vida baseado nos deslocamentos constantes e na coleta de

frutas, hoje figurado pelos isolados Hi-Merimã, para a vida sedentarizada, cuja dieta

baseia-se nos cultivares agrícolas.

Outro mito que trata da origem das plantas cultivadas é conhecido pelo nome de sua

personagem principal, a mulher bacurau (Caprimulgus sp.), Tobeyo. No mito, é Tobeyo

129
Atualmente, os brancos parecem ter assumido uma posição similar no fornecimento de sementes
e mudas de novas espécies e variedades agrícolas. Eles solicitam sempre sementes dos seus visitantes.
Também quando vão à cidade sempre trazem mudas, sacolinhas com as sementes de frutas que comeram,
manivas de outros povos.

296
quem faz o primeiro roçado, novamente porque naquele tempo as pessoas só comiam

frutas, awabono, uma alimentação equivalente à carne crua ou madeira em

decomposição e cogumelos (Lévi-Strauss 2004[1964]) porque não transformado pelas

técnicas culinárias, conhecimento adquirido junto com as plantas cultivadas. A seguir,

apresento uma versão resumida do mito contada pelo pajé B. e sua esposa:

Tobeyo era gente, depois virou pássaro. A mulher-tobeyo foi com seu filho pequeno,
chamado Isaha, e seu marido caçar. O marido de tobeyo matou muito jacu com sua
zarabatana. Quando ela abaixou para juntar os jacus, percebeu que a terra onde
estavam era boa e decidiu ficar.
- Essa terra é boa! Eu não vou voltar, vou ficar aqui. Você leva meu menino para sua
irmã cuidar.
- Mas como ele vai mamar? pergunta o marido de Tobeyo.
Ela tira os peitos, coloca cada um em uma cabaça e os entrega para o marido.
- Não, vamos embora! ele chama de novo.
- Não temos roça, só fruta. Quando ele chorar, você põe o peito na boca dele. O leite
não vai acabar. Eu vou trabalhar muito e você cuida dele.
O marido fica com raiva e vai embora. Ele leva as cabaças com os peitos da mulher e
tampa com algodão. Toda vez que o menino chorava, ele colocava os peitos na boca
dele. Conforme o marido ia voltando pelo caminho, ele escutava as árvores caindo e
pensa que a mulher está trabalhando num roçado grande. Chegando na aldeia,
perguntam por sua mulher.
- Ela ficou, não quis vir, dizia o marido.
- Como assim?
Seus parentes não acreditavam nele, mas ele não sabia responder. Tobeyo tinha dito
para o marido esperar a lua cheia para ir encontrá-la. Quando chegou a lua cheia, ele
foi até o lugar que ela tinha indicado e encontrou um enorme roçado.
- Ka! é muito grande mesmo.
A mulher tinha dito para ele subir na árvore mais comprida porque olhando de lá ele
veria uma maloca. Ele procura a árvore, tira envira e sobe para olhar de cima. No meio
do roçado, de fato, tinha uma maloca grande.
-Ka! minha mulher fez mesmo o que ela disse.

297
Ele mede a distância e desce, certifica-se do rumo para o qual tem que seguir e vai em
direção à maloca. Esse é o primeiro roçado, antes não tinha roça. Quase todas as
plantas estavam maduras. Ele se aproxima da maloca, tira um pedaço de pau e bate em
cima da palha. A porta se abre do outro lado.
-Vem aqui, a mulher dele chama. Meu marido chegou!
Ela prepara a massa de mandioca, trazida do céu pelos Hi-Merimã, com quem ela
estava morando, e serve com carne de caça para o marido, que come até ficar com a
barriga cheia. Depois, a mulher dá um abacaxi para ele comer.
- Como se chama isso que eu comi?
- Isso é sami, abacaxi!
Ela chama o marido para mostrar as plantas e ensinar-lhe seus nomes.
- Isso é koyo, macaxeira; isso, sami, abacaxi; isso, fowa, mandioca; isso, kana, cana-
de-açúcar, ela vai dizendo. O marido aponta para a planta e ela diz o nome. Eles
andam por todo roçado para ele conhecer os cultivares. A mulher-tobeyo tira duas
espigas de milho, assa e dá para o marido comer. O marido pede para levar as espigas,
mas ela não deixa. Ele só poderia comer ali.
- Eu vou embora, diz o marido.
- Sim, vai e traz meu filho.
Quando ele está saindo, ela pede para ele não contar sobre o roçado. Ele deveria
esperar quatro dias para voltar e trazer o restante do pessoal da maloca. Quando o
marido de Tobeyo chega em sua aldeia, ele diz para sua irmã que ela deveria fazer
tangas novas, cocares, colares de dentes de macaco e braçadeiras para eles irem visitar
sua mulher. Porém, ela não acredita no irmão e pensa que ele está mentindo. Passados
quatro dias, todos saem paramentados e com as franjas bem cortadas para encontrar
Tobeyo. Quando chegam no meio do roçado, o marido de Tobeyo tira uma vara e bate
na palha da maloca para chamar a mulher [esse é o jeito ritual dos convidados
anunciarem sua chegada]. As pessoas saem da maloca fazendo barulhos de bichos
para receber os convidados [como nos rituais ayaka, da menarca]. A mulher-tobeyo
[tobeyo fana é outro modo do narrador se referir à personagem] coloca de volta os
seus peitos e volta a ser mulher. O pessoal come os cultivares e canta até amanhecer.
Tobeyo estava descansando em sua rede e sua mãe se irrita com ela porque ela deveria
ajudar o marido na roça e carregar os paneiros.
- Você tem que acompanhar seu marido, vai carregar o paneiro pesado e trabalhar na
roça.

298
Tobeyo fica com raiva e não vai, não se levanta. A mãe, então, bate nela com o abano
e insiste. Tobeyo sai, dizendo que vai comer caju, mas não volta mais. Ela virou o
bacurau, pássaro tobeyo, e deixou os seus parentes com suas plantas130 .

Em M110, um mito karajá de origem das plantas cultivadas, a heroína rejeita o homem-

estrela por sua velhice e feiura, e é sua irmã quem se casa com ele. Após transforma-se

de velho em jovem, a irmã arrepende-se, mas acaba rejeitada pelo homem-estrela e se

transforma no pássaro noturno bacurau, "de canto triste" (Lévi-Strauss 2004[1964]:216-

217). O bacurau desempenha no mito Jamamadi o papel do sariguê nos mitos Jê assim

como o pássaro bunia (Ostinops sp.) na versão karib M116, pois "representa, portanto,

uma 'função sariguê' codificada em termos de animais alados" (idem:220). A

equivalência parece confirmar-se no traço semântico do mau cheiro do sariguê que é

comum ao bunia, chamado de "pássaro-fedorento devido ao cheiro nauseabundo de

seuas penas" (idem), e ao bacurau em razão de sua incontinência anal em peidos e

defecação, segundo demonstração de Lévi-Strauss em "A Oleira Ciumenta" (1985:94-

95, 141).

Em que pese a falta de comparações mais exaustivas do conjunto de mitos sobre a

origem das plantas cultivadas entre os povos arawá ou detalhes sequenciais da produção

agrícola, o mito da mulher bacurau ressalta a inflexão agnática, epitomizada na figura

do pajé horticultor, no vínculo com os cultivares como produto da relação de sexo

130
Oportunamente, analisarei esses mitos conjuntamente com suas transformações jarawara (cf.
mito do Bakayona in Vogel 2012), suruwaha (cf. mito de Kawawari in Huber 2012:495-496 e Aparício
2014:80-81), deni (cf. mito de Mahaniru in Sass 2004: 36-37) e kulina (Adams 1962:140-147). Em uma
das versões do mito de totobeyo da origem das plantas cultivadas, a mulher bacurau recebe as sementes e
mudas dos cultivares agrícolas dos Hi-Merimã. Eles a ajudam na derrubada e na queima do roçado. E
juntos constroém uma maloca no centro do enorme roçado mítico onde residem juntos, contudo, ela se
nega a se casar com eles. A despeito dos Hi-Merimã figurarem no mito como detentores dos cultivares e
das técnicas agrícolas, o discurso corrente dos Jamamadi é que este povo não faz roçados em virtude de
sua vida errante na floresta e da ausência de ferramentas adequadas para realizar tal atividade.

299
oposto, em particular da conjugalidade. Tobeyo em chave de "mulher-sariguê" é a boa

nutriz, produtora do primeiro roçado, que deixa os cultivares para os seus parentes, mas

isso por função de ser má esposa: no início, abandona o marido e recusa-se a amamentar

o filho entregando os peitos para que ele e a cunhada (HZ) se ocupem da tarefa; ao final

do mito, Tobeyo reitera o motivo da discórdia conjugal ao se recusar ajudar o marido no

trabalho agrícola. Mas é o desentendimento com sua mãe que faz Tobeyo abandonar os

seus parentes, transferindo a "função nutriz", nesse caso a horticultura, ao marido, i.e.,

os homens. A insistência da mãe para que ela ajude o marido no trabalho no roçado, e a

carregar os pesados paneiros, faz Tobeyo deixar a aldeia, onde se transforma no pássaro

bacurau. A androginia da mulher-bacurau, figurada no mito na extração de seus seios

enquanto ainda amamentava um filho pequeno, também é marcada em sua recusa de

manter contato sexual com os Hi-Merimã - outro aspecto da função saringuê de bacurau

que apesar de casada se mantém "casta" - que ocupam a função de "espíritos doadores

dos cultivares".

Não poderei me deter nos outros mitos de origem das plantas alimentares narrados pelos

Jamamadi, todavia gostaria de mencionar os mitos de Dowisi, homem-calango, e uma

forma variante, o mito do "pajé-bomba"131, transformação de um motivo frequente no

conjunto de mitos sobre a aquisição das plantas cultivadas. Apresento uma versão

abreviada deste útlimo mito:

O pajé fora desafiado pelos seus parentes que não acreditavam em seus poderes
xamânicos. Ele sobe numa árvore, o Wifi, cedro aguano, e pede para que seus parentes
coloquem fogo ao seu redor. Em meio ao grande incêndio, o coração do pajé explode
com estrondo e ele vai para o céu. Todos acreditaram que o pajé havia morrido. A mãe

131
Para a transformação deni ver o mito de Mahaniru, a mulher-bomba, em Sass 2004:36. Para a
versão Suruwaha, ver o mito de Kawawari em Huber (2012:495-496). Para a versão Kulina ver Cerqueira
2015:145 e Adams 1962: 140-147.

300
do pajé chorava muito com pena do filho. Só seu irmão mais novo fora avisado que
ele não morreria de fato e, por isso, deveria voltar em dois meses ao mesmo local do
incêndio. Passado o tempo combinado, ele volta e encontra um enorme roçado com
todas as variedades de cultivares. O irmão mais velho estava morando no meio do
roçado com suas duas esposas-espírito, mas não queria que elas conhecessem o irmão
mais novo por ele ser mais bonito. O mais jovem levou uma banana comprida para a
mãe como prova de que o irmão estava vivo, só que esqueceu de esconder a casca da
banana e foi descoberto pelos parentes. Cada um dos parentes quando foi visitá-lo
ganhou um cultivar (Berinawa, 2016).

Na transformação Jarawara, intitulada o "primeiro-milho" (Vogel 2012:368-369),

aparece o personagem do avô calango, Towisi, que abandona seu fogo deixando-o para

os homens. Ainda neste mito, há a origem do ritual de açoitamento necessário para

comer os cultivares. Por seu turno, no mito jamamadi do homem-calango, Dowisi, a

primeira humanidade alimentava-se apenas de castanhas-do-pará e desconhecia o fogo.

No mito, Dowisi faz o primeiro roçado com a ajuda de seus irmãos mais novos. Todos

os dias, Dowisi voltava para o céu, onde viviam suas duas esposas que insistiam em

conhecer os cunhados, mas os pedidos eram reiteradamente negados por Dowisi. Porque

os irmãos mais novos ficavam na terra não sabiam de onde o mais velho trazia comida

todos os dias. Os irmãos comiam escondidos os cultivares trazidos do céu pelo mais

velho para que parentes não os descobrissem. Então, depois de derrubar a floresta,

Dowisi pediu para que seus irmãos o açoitassem para queimar as plantas derrubadas. O

mais novo dos três chorava de medo e era repreendido pelos outros dois irmãos. O

corpo de Dowisi pegou fogo e queimou o futuro roçado. Passado um mês, os irmãos

mais novos voltaram ao local com carne de macaco guariba moqueada e castanha para

descobrirem no meio do roçado a maloca onde Dowisi morava com suas duas mulheres-

espíritos e seus cunhados.

301
Em função "homem-estrela", Dowisi, um homem-calango, reforça a associação que

situa a agricultura do lado dos homens, nesse caso, por meio de relações de mesmo sexo

entre germanos. Dowisi faz o primeiro roçado com a ajuda de seus dois irmãos mais

novos. Diariamente, Dowisi vai para o céu onde vivem suas duas esposas-espíritos e

traz comida para os dois irmãos que permanecem na terra, o que marca novamente a

origem celeste dos cultivares. A mãe do personagem desempenha função oposta àquela

da mãe de Tobeyo: se lá, a mãe foi responsável pela partida definitiva da mulher-

bacurau, equivalente à disjunção entre espíritos (figurados pelos Hi-Merimã) e humanos

além de suplantação do vínculo feminino com os cultivos pela preponderância dos

homens; aqui, a mãe de Dowisi e seus irmãos chora a falsa morte do filho até que as

obrigações filiais restituem a convivialidade terrena, antes substituída pela vida celeste

com as esposas-espírito. A aquisição dos cultivares juntamente com as técnicas

culinárias - e a aquisição do fogo no mito do calango - afetaram as relações antes

intensas entre o céu e a terra (cf, Lévi-Strauss2004[1964])132. É digno de nota a

transformação entre a oposição entre os sexos e a do céu e da terra nos dois mitos: se no

mito da mulher-bacurau os Hi-Merimã são as figuras celestes masculinas doadores das

plantas alimentares, no mito do homem-calango as esposas-espírito são o equivalente

celestes feminino que provêm os cultivos, na equação de Lévi-Strauss (idem:331):

céu: terra :: sexo x : sexo y

***

132
O mito paumari do "menino capturado pelos urubus" é uma transformação do mesmo motivo
mítico (cf. Bonilla 2007:437-439).

302
Conforme discutido na parte I, a vegetação profusa que cerca as casas na aldeia é uma

evidência de extensos laços de parentesco e poder xamânico. Planta-se em praticamente

todos os lugares: nos terreiros, em vasos, sobre os jiraus, nas estacas que sustentam as

casas, onde costumam fazer cercadinhos para que as plantas (em geral, árvores

frutíferas) possam brotar em segurança. Quando alcançam a estatura de uma criança

pequena, as plantinhas são transferidas para o terreiro de onde vigiarão a casa de seus

pais e afugentarão as almas agressivas, dada suas qualidades apotropaícas. As almas das

plantas cultivadas são os principais espíritos auxiliares dos pajés e são tratados com os

termos de parentesco para filho, okodao, e filha, okoto, embora sejam majoritariamente

homens (ver capítulo 3). As almas dos filhos ou irmãos falecidos também podem

acompanhar o pajé, dadaba, uma vez que os vínculos de filiação e germanidade não se

alteram com a morte, logo, ele segue usando os mesmos termos de parentesco para

chamar essas almas. Os únicos espíritos auxiliares com os quais ele não estabelece uma

relação de consanguinidade são as almas das plantas não cultivadas, por isso, chamadas

de naki, termo genérico para afim, traduzido por "amigo", "companheiro" ou

"compadre".

No entanto, a filiação entre o agricultor e suas plantas é "incompleta", na medida em

que não produz uma identificação plena, senão uma relação eivada de ambivalência em

que a afinidade é obviada num esforço mútuo de estabilização que, todavia, não está

livre de resvalar na contrapredação. A ambiguidade não é neutralizada porque talvez

seja um dispositivo necessário que permite a transformação da relação com a morte,

quero dizer com isto que as ações características da adoção - o cuidado, a proteção e a

303
retenção, etc. - exigem sua contrapartida, uma repetição que ocorre na vida póstuma em

outra direção, i.e., a figura do "pai cultivador" torna-se "filho de criação" da alma da

planta que cultivara na terra. A agricultura é, com efeito, a garantia material da vida

terrena e a promessa simbólica da continuidade da vida após a morte.

A banana, o milho, a mandioca doce, dentre outros cultivos considerados "mansos", i.e.,

que não precisam necessariamente ser transformados pelo fogo culinário para serem

consumidos, não são bons somente porque fornecem alimentos e matéria-prima

indispensáveis à manutenção da vida, mas também porque suas almas adotam os mortos

Jamamadi, os criam em suas aldeias, os alimentam e curam suas doenças133. Se há

alguma expressão de assimetria ou controle unilateral na relação entre humanos e

plantas, parece-me que este existe com a condição de não durar, por ser uma imagem do

destino que aguarda o horticultor. Aqui o tempo134 cumpre seu papel para reverter as

posições agricultor-cultivo / pai-filho e mostrar que as plantas são a origem e o destino

incontornável da humanidade. Dessa forma, a assimetria é um efeito do enquadramento

temporal da relação que, a longo prazo, inverte suas valências, realizando-se em seu

oposto. O estado das coisas futuras exige uma contrapartida presente, realizada em

forma negativa, que é a garantia para a sua retribuição.

A dicotomia agente domesticador - paciente domesticado em que o humano ocuparia o

polo ativo da relação e as plantas, o passivo, diante do esquema cosmológico jamamadi,

revela que o controle, leia-se, a ação domesticadora humana, não é um operador útil
133
Cf. "The fractal yam: botanical imagery and human agency in the Trobriands" de Mark Mosko
(2009:679): "[P]lants are good for people to act with in respect of themselves, their relations, and theirs
cosmos. (...) I therefore take 'to act' to involve enactments in and with the botanical world which become
or affect transformations in the human world".
134
As relações de parasitismo paumari parecem ter função semelhante em anular o tempo e
neutralizar o potencial predatório do patrão.

304
para as transformações em jogo, proposta que se verifica nas três dificuldades descritas

acima que não podem ser dissimuladas numa aplicação adequada do modelo para o caso

vegetal. A filiação adotiva135 entre humanos e plantas não é um regime de desequilíbrio

unilateral tal qual descrito na conceitualização das relações com as crianças e animais

capturados, práticas que ficaram conhecidas pela expressão "predação familiarizante",

tal como elaborada por Fausto (1999, 2001, 2008) e Fausto e Costa (2013). Em linhas

gerais, trata-se do “processo pelo qual sujeitos capturados no exterior são consumidos e

controlados com o objetivo de se produzirem novos sujeitos no interior do grupo”

(Fausto 1999:949). Arriscaria dizer que se há uma potência volitiva maior ou excedente

de capacidade agentiva (Fausto 2011), ela estaria do lado das plantas, dado que a perda

da capacidade metafísica vegetal da humanidade pós-mítica tornou as práticas de

cultivo/filiação adotiva incontornáveis para os Jamamadi. Novamente, a

interdependência atual entre a vida terrena e a vida celeste se manifesta nas práticas

agrícolas e funerárias: os Jamamadi garantem a continuidade da vida vegetal e as almas

de plantas, a existência póstuma dos Jamamadi. A intervenção das almas das plantas

cultivadas tornou-se imprescindível com o advento da morte e a perda da vitalidade

vegetal da humanidade.

135
A inversão do sentido das ações não ocorre nas relações de filiação e germanidade "reais" que
perduram com a morte, o que não ocorre no caso da aliança. Edmilson, filho falecido do pajé B., chama
tanto B de abi, pai, quanto a makafi abono, "alma da taioba", que o criou no céu. Quando João morreu,
Edmilson seguiu chamando a alma de seu irmão de ayo, irmão mais velho. Os laços de filiação não se
apagam com a morte, como visto, no início do capítulo 1, quando a alma de Koeto vem visitar seus pais,
ele chama a esposa do pajé D. de ami, "mãe", e D., de abi, "pai".

305
Fig. 18 Cerquinha presa na base de uma casa protegendo planta

Fig. 19 Pé de limão crescendo sob casa

Fig. 20 Eline mostra sua planta

306
8.2 Adoção de crianças

As práticas de criação de pessoas, animais e plantas seguem uma lógica congruente.

Yama nafi ai nanawada: yamata, bani, madehe, "de tudo nós criamos: cultivares,

animais e crianças", é um enunciado que corrobora a ideia de um modelo de relação,

nawada, que engloba as três categorias. O escopo deste breve subcapítulo é abordar

aspectos pontuais da adoção de crianças entre os Jamamadi e, em paralelo, salientar

algumas correlações relativas à criação das plantas, intuito que se estende ao tópico

seguinte focado nos animais de criação.

Mulheres mais velhas solteiras, que vivem na casa dos pais, e os casais sem filhos

costumam adotar ao menos um sobrinho paralelo (ZD ou ZS), em conformidade com a

terminologia dravidiana na qual irmãos do mesmo sexo ocupam posições genealógicas

equivalentes. Os "filhos de criação", oka nayana, são diferenciados dos "filhos de

verdade", okadao/okoto yokana, mais no discurso que no afeto, cuidado e proteção;

embora a adoção não seja ocultada, não é por meio das atitudes que se pode distinguir

os laços "reais", de tal modo que os pais adotivos preocupam-se em ressaltar que

embora a criança seja "de criação", ela é como/quase, nima na, um filho de verdade. As

crianças adotadas, por sua vez, também sabem quem são seus pais "de verdade" e se

referem a eles valendo-se dos termos de parentesco correspondentes. Vale para os

Jamamadi o que Maizza afirma sobre a adoção nos Jarawara :

Nunca conheci um casal que não criasse, ou tivesse criado, pelo menos um filho junto.
(...) Essa 'criação de criança de outra pessoa' corresponderia ao nayana na língua
jarawara, na qual se diz, por exemplo, Manira owa nanayana, 'Manira me criou',

307
normalmente em contraste com o termo 'de verdade', yokana: Narabi okomi yokana,
'Narabi é minha mãe de verdade' (2014:498).

Este é o caso de Malena, adotada aos dois anos por José e Abadai, sua tia materna;

quando Malena está na aldeia de seus pais adotivos, os chama de abi, pai, e ami, mãe,

mas em visita à aldeia de seus pais "reais", Malena passa a chamá-los de amise (MZ) e

abise (MZH). Messias, outro irmão de Malena, vive com seus avôs, idi (FF) e aki (FM),

e sua tia paterna, aso (FZ), de quem é reconhecido como criação. Messias, primeiro

filho de Telmo e Kaviana, nasceu logo após a união do casal, período de instabilidade

no qual parte considerável das uniões matrimoniais são desfeitas. Na época em que

Telmo e Kaviana se separaram, o filho do casal foi viver na casa dos avôs e acabou

permanecendo com eles mesmo após os pais reatarem a relação e se mudarem para a

mesma aldeia. Os nascimentos de seus outros filhos, com efeito, estabilizou a união. A

despeito das adoções serem mais frequentes por parentes paralelos, como se sabe, a

distância geográfica exerce influência tanto quanto a distância genealógica na

determinação da proximidade das relações, o que justifica os casos de adoção por tias

cruzadas, aso.

Crianças mais velhas também podem passar temporadas, que variam de meses a anos,

vivendo com suas tias solteiras, amise (MZ) ou aso (ZF), que se responsabilizam por

parte de sua criação. Assim, Fabono e Helena foram viver na casa de seus avôs para

serem cuidados por sua tia Dossobi, irmã solteira mais nova de sua mãe. As meninas

passaram a morar na casa dos avôs e ajudavam a tia nas tarefas domésticas;

ocasionalmente, visitavam os pais, mas sempre retornavam para fazer as refeições e

dormir com a tia que as estavam criando naquele momento. A intenção era que as

308
meninas ao acompanharem a tia, dona de grandes roçados - compreendidos nos limites

dos roçados de seu pai -, além de boa cantora - ela tem a garganta fina/pequena, namidi

iisi, atributo essencial para as mulheres que devem cantar sempre agudo - aprendessem

a realizar com igual destreza estas tarefas. Depois que as meninas retornaram à casa dos

pais, Dossobi começou a criar outro sobrinho, filho de seu irmão, à contragosto do

menino, que sentia falta da companhia dos irmãos.

As mães solteiras vivem com seus filhos na casa dos pais, que as ajudam na criação dos

netos. É comum que o avô ou um tio materno mais velho assuma parcialmente as

responsabilidades na criação, no caso de ser um menino, ele irá acompanhar os homens

de sua casa nas caçadas, pescarias e trabalhos no roçado. Uma dificuldade se impõe para

tal configuração familiar, pois, por não terem a paternidade do filho reconhecida, a mãe

não faz os documentos da criança e considera que benefícios como salário maternidade

e bolsa família não se aplicam a elas que não tem pai, abi wadara (Maizza nota uma

questão semelhante entre os Jarawara, cf. 2009:142-143).

Quando adultos, os filhos de criação passam a prover seus pais adotivos, destinando-

lhes parte do que pescaram e caçaram, além de auxiliar-lhes em seus roçados, enfim,

destinam atenção semelhante àquela que dedicam aos "pais de verdade". Durante um

período em que os roçados de Pide não produziram o suficiente, alguns de seus filhos

foram entregues a Elza e Arnica para que os criassem "um pouco". Alimentar a criança

é um dos atos que engendra e fortalece a relação de criação, além originar um afeto

recíproco e duradouro entre pais e filhos. Ainda que hoje eles vivam em aldeias

diferentes, é o dever deles trabalhar para Elza e Arnica, sobretudo agora que o casal está

idoso. Quando chega a época de derrubar o roçado, por exemplo, os filhos de criação

309
são chamados pela radiofonia. Também são eles quem acompanham seus pais adotivos

na cidade, quando a viagem se faz necessária136.

136
"O missionário nos cria dando comida e remédios do mesmo modo que as galinhas criam seus
pintinhos" foi uma comparação feita por Chagas para explicar a atuação do missionário Seria importante
considerar a relação criação entre os Jamamadi e sas transformações partir da subversão lógica
engendrada pelo parasitismo ou ponto de vista da presa, tal como elaborado por Bonilla entre os Paumari
(2005, 2007, 2016)

310
8.3 Os animais de criação

Em todas as aldeias Jamamadi, há sempre casinhas bem feitas e bem cuidadas de

animais de criação perto da casa de seus donos, hiyi: casinhas para macacos construídas

segundo o modelo do “polo base” da Sesai; abrigos para galinhas; casas para cachorros

feitas segundo o estilo regional com cobertura de alumínio e assoalho de paxiúba;

cercados cobertos com palha para abrigar tamanduás, queixadas, quatis ou antas;

casinhas para caititus, cotias e pacas - construídas sob as casas de seus donos -; gaiolas

para pássaros de todo tipo. Nenhum animal de criação dorme ao relento, ao contrário, a

maioria vive em suas próprias casas e são tratados com carinho e atenção. Os cães

podem dormir ao lado de seus donos em suas redes atadas com mosquiteiros, cestinhas

forradas com cobertas e roupas velhas ou, ainda, um espaço da casa pode ser reservado

para abrigar os cães. Quando Braia engravidou, o filho de Badá fez um cercado dentro

da casa para ela não ser incomodada pelos outros cães, lá ataram seu mosquiteiro e sua

rede.

Nos dias de frio, as filhas de Badá mantinham os pintinhos dentro de casa protegidos

em suas mãos e, à noite, aqueciam chumaços de algodão para manter a cesta onde

dormiam quente. Nos dias de calor intenso, assim como as crianças pequenas são

banhadas muitas vezes, os animais são lavados por seus donos nos igarapés; os cães

tomam banho, com shampoo de cetoconazol distribuído pelas equipes da Sesai, com

mais frequência para matar seus parasitas. No verão de 2016, fui surpreendida pelos

chamados de Laide que pedia ajuda aos seus vizinhos porque uma de suas galinhas

havia desamiado por causa do calor e ela não conseguia reanimá-la apesar de banhá-la

311
insistentemente. Também quando nascem os seus filhotes, sejam cães ou galinhas, os

animais são banhados com sabão e escova.

As criações são também os filhotes capturados dos animais predados nas caçadas.

Aquele que matou a mãe levará o filhote para a aldeia, mas não o criará. O caçador

deverá oferecê-lo para que outra pessoa o crie. Exceto os cães, que podem receber

muitos nomes, os outros animais são chamados pelo nome de sua espécie, seguindo o

padrão do pet vocative (Dienst e Fleck 2009) ou por uma onomatopeia do som que

emitem. Assim, por exemplo, o queixada é chamado de hiyama, "queixada", e a cotia

pela onomatopéia, toru toru. A distância mantida de alguns animais domésticos é

igualmente notada por Maizza na relação dos Jarawara com seus animais de criação:

As pessoas não dão nome a seus animais e os chamam pelo nome da espécie, por
exemplo, wafa (macaco barrigudo), o que parece demonstrar uma vontade de
explicitar a distância da relação. Elas o alimentam, lavam e, na maior parte do tempo,
os deixam presos, amarrados ou em uma casinha feita para eles (2014:500).

Os animais de estimação são chamados de bani, no caso dos mamíferos, e bani bidi,

usado para os pássaros; no contexto das interações de criação, os termos podem ser

traduzidos por "animal" e "animal pequeno", respectivamente, mas também por "presa"

e "presa pequena", na situação das caçadas, portanto, a ambiguidade da categoria exclui

os cães, chamados pelo nome de sua espécie, yomahi. A diferença dos termos

empregados tem efeitos diretos na produção dos vínculos com os cães, de maior

proximidade e afeto que aqueles com os outros animais que, no limite, não perdem sua

condição de presa potencial.

312
Nome do dono/dona Nome do cachorro
Arnaldo Bori
Doriana Bonosoki, Toro, Inácio (nomes do mesmo
animal)
Mônica Sabo
Dowisi Neto, Raião (nomes do mesmo animal)
Narabo
Elenita Bado
Ana Rosa Leão
Maika Yodo, Delegado, Madi towe, Bandido,
Ladrão (nomes do mesmo animal)
Dossobi Eri, Dafi, Kopenawa
Bili
Braia
Bafita Carrera
Badá Dog
Arnica Branquinha

Com efeito, os cães, yomahi, mesmo termo usados para as onças, tem um estatuto

distinto daquele conferido aos outros animais - no frio são vestidos com roupas, quando

adoecem são atendidos pelos enfermeiros e são medicados, são lavados com shampoo e

sabonete, seus donos compartilham com eles sua comida. Tal adoção assemelha-se à

relação das almas com seu cão de caça/onça, animal em miniatura que vive no interior

do corpo humano (também nos corpos das almas de plantas) e tem a mesma trajetória e

destino póstumo. Dotados de princípio anímico, os cães são enterrados em túmulos

semelhantes aos dos mortos humanos, sempre cobertos e, se possível, com telhado de

alumínio para não molhá-lo e protegê-lo da umidade empecilho à fragmentação

corporal. Estes túmulos, porém, são localizados perto da casa de seu dono, não em seu

roçado. A morte dos cães é acompanha de grande tristeza e, por vezes, um breve luto.

313
Reitero que os Jamamadi apenas circunstancialmente conferem aos demais animais

subjetividade ou intencionalidade semelhante à humana; as situações nas quais estes

assumem um comportamento incomum - não morrem ao serem atingidos na caçada,

aproximam-se sem temor, emitem sons estranhos, etc. -, são entendidas como tentativas

dos espíritos inamadi predarem os humanos enganando-os ao assumir uma aparência

animal.

Todos os filhotes pequenos são alimentados com leite comprado por seus dono/dona na

cidade e, caso cheguem na aldeia machucados, são tratados com diligência até se

recuperarem. Quando os cães crescem, os donos repartem seus alimentos,

independentemente da refeição: se tomarem açaí com farinha, os cães também

receberão uma parte; se cozinharem macarrão com molho de tomate, uma parte será

para eles; se houver carne de anta com caldo, todos da casa incluindo os cães comerão

carne e beberão o caldo. A adequação da dieta do cão àquela de seu dono altera seu

paladar e "aprofunda a identificação com seu dono (...)" (Costa 2013:479).

Porém, se não houver comida suficiente, outra refeição será preparada para os cães.

Dossobi costumava esquentar uma parte do caldo no qual a carne de caça fora cozida e a

servia com farinha para os cães quando não havia carne para todos. Ela servia a comida

em potinhos ou sobre abanos, jamais colocando-a diretamente sobre o chão. No

momento das refeições, os cães se juntam ao restante das pessoas para comer, a

comensalidade é um aspecto da relação de criação dos cães que reforça a ideia destes

animais serem parte constituinte da corporalidade jamamadi. As mães que não

conseguem amamentar os filhos oferecem o mesmo leite em pó, um composto lácteo

vendido na cidade, usado para alimentar os cães filhotes e retrucam as críticas dos

314
enfermeiros mencionando tal prática, afinal, se os cães bebem deste leite, por quê seus

bebês não poderiam fazê-lo?

Por outro lado, os outros animais que eles criam consomem comidas específicas,

guardadas separadamente: a cotiara de Maika tem suas bananas e macaxeira; as galinhas

de Dossobi comiam arroz e milho; o queixada de Badá comia macaxeira; o macaco e o

periquito de Sabira comiam frutas. Em suas idas ao roçado, os donos preocupam-se em

trazer cultivares para suas criações, caso não tenham cultivos suficientes, preferem

soltá-los a vê-los passar fome.

Em tom de brincadeira, os Jamamadi podem se referir aos seus animais usando termos

de parentesco: “sua filha [tamanduá] está com fome, você deveria comprar leite para

ela”, disse Laide para sua nora, dona do tamanduá; “sua filha [caititu] é muito brava",

Dowisi era criticada por causa do temperamento do seu filhote de porquinho; "seu

marido vai brigar com você", dizia Sabira para uma galinha; “Eri, vai com a sua avó”,

Dossobi falava para o seu cão ir com sua mãe; “seu irmão vai demorar para chegar,

Braia”, explicava Maika para a cadela que aguardava o retorno de Bafita, seu irmão

mais velho; “Vovó, não chora, Bafita já vai voltar”, Maika, "mãe do cachorro", fingia

que ele conversava com sua mãe, na brincadeira referida como "avó" do cão.

Os Jamamadi apreciam o temperamento de seus animais de criação, respeitam sua

personalidade e aceitam tanto sua mansidão quanto sua agressividade. Eles não se

valem de técnicas para extrair os dentes e garras dos animais; no caso das aves, suas

asas não são podadas. Yodo, um dos cachorros da família de Badá, já atacou seus donos

diversas vezes, chegando a mordê-los, no entanto, eles acham engraçado seu

315
comportamento colérico e dão apelidos ao cão - como delegado, bandido, Jara, madi

towe, etc - para rir dele. O pajé B. tinha um galo muito arisco, que corria atrás dele e

ameaçava os visitantes, porém, isso não o impediu de tratar o animal com ibuprofeno

quando ele adoeceu. Bonoaiya cria um tamanduá que já atacou vários de seus vizinhos,

porém, ela jamais reprimiu o animal. Noka cria uma anta adulta que durante o dia

passeia pela aldeia e de noite retorna ao seu cercado para dormir e comer; em algumas

ocasiões, a anta atacou as mulheres enquanto elas se banhavam no igarapé e quase feriu

uma criança. Após esses episódios, eles só alertaram para que as pessoas tivessem

cuidado durante o banho, porém, não cogitaram manter a anta em seu cercado fechada.

Sauro (corruptela de dinossauro) era um macaco de cheiro de Sabira, apesar de ser

muito agressivo e invadir as casas próximas, sua dona jamais o mantivera preso, até que

o animal fugiu para o mato.

Minha impressão é que os Jamamadi são menos apegados aos animais criados soltos,

pois, no outro extremo, há a contenção dos cães de caça que são mantidos fechados

dentro de suas casinhas, ocultos aos olhos que não sejam os de seu dono; cuidado

semelhante ao que se tem com as plantas, cujo crescimento é prejudicado pelos olhares

impertinentes dos estranhos. Os animais de criação preferidos, as crianças e as plantas

são mantidos perto de seus donos/pais de criação, presos em casinhas ou retidos com

cordinhas para que não se afastem de seu olhar, no caso das plantas pequenas, que ainda

estão brotando, o cercadinho feito sob a casa desempenha a mesma função.

Por tal razão, apesar de ter somente escutado relatos, acredito que os Jamamadi, de fato,

possam comer alguns dos animais de criação, justamente os são criados soltos. Lobi

conta que quando seu queixada morreu, ela chorou sua morte, mas comeu de sua carne.

316
O pajé D. diz que sua anta de criação será morta para alimentar os convidados do ritual

que ele planeja há algum tempo. Ao questioná-lo se não haveria algum problema em

matar sua criação, ele me contou a história de uma outra anta, chamada Wakenama,

criada por sua avó. Ela não permitiu que a matassem a flechadas para que sua carne

fosse consumida no ritual da menarca da neta, então, ela deu o suco da mandioca

amarga para sua anta beber. O problema não incide no consumo da carne, mas no

método empregado no abate do animal.

Fig. 21 Bili deitado em sua rede

Fig.22 Dog em sua casa

317
Fig. 23 Galinha toma banho depois que seus ovos eclodiram

Fig. Casinha de Bori (cachorro)

Fig. 24 Kaviana passeia com seu tamanduá

318
Parte 3: Mitologia e a questão dos subgrupos

"Depois das queimadas as chuvas


fazem as plantas vir à tona
labaredas vegetais e vulcânicas
verdes como o fogo
rapidamente descem em crateras concisas
e seiva
e derramam o perfume como lava
E se quiséssemos queimar animais de grande porte
eles não regressariam. Mas a morte
das plantas é a sua infância
nova. os caules levantam-se
cheios de crias recentes"
(Explicação das árvores e de outros animais, Daniel Faria)

319
Capítulo 9: As sementes da primeira humanidade

Hiyarabote, lit. "a fala/história dos antigos", é o termo com o qual os Jamamadi se

referem aos mitos, os relatos transmitidos pelos avós. A referência à geração ascendente

G+2 é um modo de dizer que essas narrativas pertencem ao mundo dos genitores mortos

dos mais velhos vivos no presente, a figura dos antepassados. São histórias que não

foram vividas de fato ou escutadas diretamente de parentes conhecidos que as teriam

testemunhado. A impressão inicial de quem escuta uma narração mítica pela primeira

vez é de que esse conhecimento parece estar à beira do esquecimento, não só porque os

jovens demonstram clara impaciência em escutar os mais velhos, como por ser comum

os narradores iniciarem seus relatos desculpando-se - falam em registro epidítico como

percebi com o tempo - por seu pouco conhecimento da narrativa ou esquecimento

parcial, assim: "Ka! que susto, quase virei branco. Achei que tinha esquecido essa

história!"; "Ah, eu não sei bem, isso faz muito tempo"; "Ninguém conversa comigo

mais, eu já não sei isso"; "Eu sei só um pouco" etc.

A divisão da história em "tempos" ou "eras"137, comum nesta região da Amazônia

conforme apontam Bonilla (2007) para os Paumari, Costa (2007) para os Kanamari,

Gow (1991) para os Piro, encontra dificuldades entre os Jamamadi por eles não

atribuirem às suas narrativas míticas um valor inaugural inequívoco com personagens

que inscrevem as formas de interação e socialidade particulares de cada tempo/era. Não

há uma figura mitológica paradigmática com notável papel de demiurgo na inauguração

ou prefiguração das condições atuais do mundo. O que se poderia dizer é que algumas

137
Uma exposição da questão foi tema da dissertação de Aline Balestra "Tempos mansos: história,
socialidade e transformação no Juruá-Purus indígena" (2013).

320
figuras tem a função de balizas ou referências para situar um acontecimento no tempo:

Yawida abono, guerreiro mítico de uma das narrativas preferidas dos Jamamadi, é a

imagem da vida anterior ao contato com os brancos. O contato não é considerado

pontualmente, as narrativas enfatizam seu caráter processual em encontros sucessivos

com vários patrões, cada um responsável pela introdução de uma tecnologia, de modo

que não há um único patrão que serve de ícone para este momento. Talvez as figuras

que mais se aproximam dessa posição sejam o casal Robert e Barbara Campbell, cuja

ação foi decisiva na reunião dos remanescentes dos grupos madi e no tratamento das

doenças que os dizimavam quando de sua chegada em 1963; porém, a socialidade

inaugurada pela missão não lhes é exclusivamente atribuída.

A fim de situar suas narrativas, os Jamamadi utilizam o termo "época", mesmo quando

falam em Jamamadi: "a época das guerras de Yawida abono (alma da pupunha)"; "a

época em que Chico Cudero (corruptela de Cordeiro?) chegou no igarapé Aripuanã"; "a

época em que os Juma nos perseguiam/vivíamos fugindo"; a época da chegada dos

americanos, etc. A organização do discurso numa aparente cronologia oculta outra

acepção do termo "época", deslocada da organização linear no tempo cronológico. Se

dizem que a época em que o céu e a terra eram invertidos antecedeu a época das guerras

de Yawida abono que, por sua vez, cessaram com a chegada dos patrões e, por fim, com

o estabelecimento dos missionários, isso não implica que tais "épocas" não possam se

sobrepor sem se excluir ou situarem-se segundo um ordenamento "anômalo" em que os

tempos estão "fora de seus gonzos". Cada figura - personagens míticos como Yawida

abono, patrões e missionários, dentre outros - promoveu transformações decisivas

pensadas como parte de um contínuo de mudanças não abruptas que não cessaram de

ocorrer. Isso se explica pela perenidade de tais figuras: Yawida abono faz parte de um

321
coletivo vegetal com o qual os Jamamadi costumam se casar na vida póstuma; os

descendentes dos patrões da época do contato vivem na região, alguns deles seguem

como comerciantes ou políticos; por fim, a mesma família de missionários ainda

permanece entre eles, há três gerações, com presença intermitente desde sua chegada na

década de 60. Em consonância com as palavras de Costa:

Cada personagem interage com os Kanamari e com o mundo de diferentes maneiras e


é a natureza destas interações que prefigura a maneira como os Kanamari vão interagir
entre si e com o mundo ao seu redor. Os Kanamari podem, portanto, narrar a sua
história como uma série de rupturas entre formas sociais que se sucedem, expressas na
chegada de cada personagem, mas eles sabem que isso é um artifício do discurso.
Cada forma social permanece como um modelo ou um plano para os caminhos que
eles podem seguir, e cada uma aponta para uma direção pela qual os Kanamari podem
relacionar-se entre si (Costa 2007:32).

Foi discorrendo sobre o contato e as transformações engendradas pela chegada dos

brancos no modo de vida e sociabilidade que alguns mitos começaram a aparecer nas

conversas. Pelo que me lembro, o mito de Yawida abono foi o primeiro que me

contaram, de qualquer modo, este é um dos mitos que os Jamamadi mais apreciam

narrar e, por isso, foi um dos que mais escutei. Em geral, todos conhecem a história de

Yawida abono. Há narradores melhores que outros, mas todos sabem as passagens

principais e mesmo os mais jovens conseguem contá-la esquematicamente. Escutei

diversas versões com variações interessantes: ora os inimigos são os Juma, ora são os

Apurinã. Em algumas versões, é evidente tratar-se de um mito dada a estrutura e os

sufixos usados que indicam o tempo "passado" e comentários como: "isso aconteceu no

tempo do meu vovô". Em outras ocasiões, o que eu escutava parecia o relato de um

acontecimento menos longínquo, vivido por alguém conhecido, mas que obedecia à

mesma sequência do mito do guerreiro Yawida. Isso também se deve ao fato do conflito

322
do mito não estar restrito ao passado mítico, pois, ele é presente na vida celeste das

almas. A guerra mundial do passado e da futura vida póstuma estão em continuidade,

donde o vigor do motivo do mito de Yawida. E é contra esse pano de fundo de agressão

e violência que a vida misturada ai yorotokana ( ver capítulo 11) transcorre. As

qualidades xamânicas de Yawida abono tornam-o um pajé insuperável, aspecto que

justifica o grande número de espíritos auxiliares que os pajés têm desta espécie; além

disso, as almas das pupunhas são uma preferência conjugal póstuma frequente dos

mortos Jamamadi. Não me deterei no mito de Yawida, limito-me em apresentar uma

versão, composta a partir de vários relatos, na qual procurei condensar os detalhes e

passagens mais importantes.

Essas são as palavras dos avós, de antigamente. As mulheres foram arrancar mandioca
no roçado. Havia muitos tucanos comendo frutas nas árvores. As mulheres contaram
que viram muitos tucanos comendo fruta quando voltaram para aldeia. Yawida abono
estava esquentando suas flechas e ouviu as mulheres conversando. Seu irmão mais
novo se anima com a noticia e diz que vai matar os tucanos. 'Calma, espera, eu é que
vou flechá-los', diz o irmão mais velho, Yawida. 'Tudo bem', concordou o irmão mais
novo. Os tucanos estavam na beira no roçado, Yawida matou-os com a zarabatana e os
juntou num canto. Conforme os tucanos iam caindo no chão, ele torcia seus pescoços e
os colocava de lado. De repente, Yawida abono escutou o barulho de vozes se
aproximando; era muita gente. Logo, essas pessoas começaram a atirar muitas flechas
nele. Eles estavam armados com flechas, lanças afiadas e bordunas. O pessoal que
ficou para trás na aldeia de Yawida escutou o barulho da briga e tentou ir ver o que
estava acontecendo, mas Yawida abono avisou para eles se esconderem para que os
inimigos não os vissem. O tio materno, badise (BM) de Yawida, seu irmão mais novo
e as mulheres ficaram na aldeia, os homens jovens e os rapazes haviam saído para uma
caçada coletiva. Yawida abono era um pajé que sabia muito. Então, ele abriu um
buraco na terra para esconder seus parentes. Depois que todos entraram com pressa,
ele tapou o buraco. 'Badise, me escute! Não saia do buraco até eu avisar'. Mas, o irmão
mais novo não escutou o que dizia Yawida abono. Enquanto isso, os inimigos

323
atiravam, mas nenhuma flecha atingia Yawida, que desviava de todas. As flechas, os
arpões e as bordunas caiam no chão e Yawida ia recolhendo todas elas. Ele atirava as
flechas de volta e, sozinho, ia matando um por um os inimigos. O irmão mais novo de
Yawida abono saiu do buraco e acabou flechado porque não tinha escutado o irmão
mais velho. Em seguida, o tio materno escutou o sobrinho gritar e saiu para socorrê-lo:
'Ah, flecharam meu sobrinho, estou escutando a voz dele!'. Quando o tio saiu do
buraco, ele também foi atingido por uma flecha e, em seguida, seu peito foi perfurado
com um arpão, matando-o. 'Aia, aia, daha (irmão mais velho), me flecharam, bateram
em mim', gemia o irmão mais novo. Yawida ouve os lamentos do irmão e fica com
raiva. 'Eles acertaram meu tio e meu irmão mais novo'. Ele pegou a borduna e
terminou de matar os inimigos quebrando o pescoço e as costas deles com suas
próprias armas. Era muita gente, só que dois conseguiram fugir porque Yawida abono
não os viu. Eles fugiram correndo e gritaram quando já estavam longe. Eles desistiram
de brigar. Yawida abono estava muito cansado, ele suava, mas não estava ferido. Ele
foi curar seu irmão e seu tio porque ele era um pajé que sabia muito. Logo os dois
voltaram a viver. Os parentes chamavam de dentro do buraco. Gritavam pensando que
Yawida abono estivesse morto. Os parentes pulavam de dentro da terra querendo sair.
'Eeeeeeee!', Yawida respondeu de volta e tirou seus parentes do buraco. Yawida
juntou a carne dos inimigos para dar para os urubus comerem, depois limpou a aldeia
toda para ela ficar bonita de novo. Os parentes pensaram: 'Esse pessoal veio para
brigar com Yawida, acharam que iam matar todo mundo. Eles não vão mais voltar'.

***

No capítulo seguinte, mostrarei que as sugestões tradutivas propostas para a questão

"qual o nome do teu povo/etnia?", tika ede oni?, a saber, "qual planta da tua origem" ou

"de que planta você provém?" sugeririam que o sistema etnonímico jamamadi poderia

funcionar como um modo de identificação, pressupondo uma afinidade de tipo física ou

psíquica, entre os grupos humanos e as plantas epônimas. O deboche diante da sugestão

da consubstancialidade com as plantas que dão nome aos grupos às pessoas que a ele

324
pertencem deve-se mais ao excesso de realismo da asserção que à falsidade ou

inexistência de uma relação profunda entre os Jamamadi e o mundo vegetal, questão já

largamente exposta neste trabalho. A profusão da flora indica igual diversidade humana,

pois, dizem que "assim como tem todo tipo de planta, tem todo tipo de gente". Esta

aproximação não se faz ao acaso. Seria inimaginável, por exemplo, a um Jamamadi

valer-se de uma metáfora baseada na comparação entre humanos e animais com um

propósito que não o de reprovar um comportamento ou atitude. A comparação ou

atribuição de qualidades animais a alguém é um modo de crítica ríspida que questiona a

humanidade do interlocutor. Crianças que se portam mal, parentes que sovinam comida,

pessoas não comedidas que falam "com força" ou brigam são chamadas de bani, termo

que designa genericamente "presa", em especial os mamíferos que eles caçam, mas

admite neste contexto o sentido mais amplo de "animal".

Em outra situação, as palavras de uma liderança da aldeia São Francisco sobre a

importância da vigilância da Terra Indígena sustentavam-se na proximidade entre

pessoas e plantas expressa nos etnônimos. Em seu discurso, proferido em reunião, ele

tentava explicar para a audiência que sem a terra, não há roça e não há índios. Suas

palavras não versavam sobre o valor econômico da terra, a intenção era explicar-lhes

que os Jamamadi, ou os povos indígenas de maneira geral, nasceram na terra como as

plantas, cada um dos sub-grupos e dos povos vizinhos brotaram de diferentes sementes:

os hawa, da semente de patauá; os kosiba, da semente de babaçu; os Jarawara,

amaraha, nasceram das sementes da palmeira inajá; os Banawá, batoyafi, vieram da

massaranduba; os Apurinã, yati madi, brotaram das sementes do milho (outros dizem

que da planta com a qual produzem suas flechas). Trata-se de uma reflexão sobre o

começo da vida na terra que na origem estava desabitada até que os diferentes povos e

325
sub-grupos começaram a brotar. "Quando se come uma fruta e se descarta a semente,

ela não nasce?", ele perguntava. “Foi desse jeito que nós nascemos, também nossos

cultivares são todos nascidos. Tudo veio da terra, todos nascemos de sementes. Por isso,

precisamos da terra”, ele concluiu.

Quando os Jamamadi asseveram que: "a gente é como fruta do mato, awabono", "assim

como nossos cultivares, nós também nascemos da terra" e "tudo é nascido, gente e

planta nasceram de sementes" eles estão se remetendo à origem mítica da humanidade

atual a partir das sementes das árvores. Do fato de Salgado, José ou Badá

reconhecerem-se descendentes do coletivo hawa, não se segue que admitam ter

qualquer característica associável à espécie, contudo, sem titubear prontamente

assentem à gênese mítica do seu grupo a partir das sementes do patauá: "foi da semente

do hawa, 'patauá', que nasceram os korimari, 'alma', dos hawa madi, 'pessoal do

patauá'", de acordo com o Badá. Ainda segundo sua explicação:

Nós nascemos da terra, wami-ya hawa mai yanana metemoneni. Nascemos como
yamata; é a mesma coisa. No começo não havia ninguém. A gente não joga semente
de fruta depois que come? É assim, nós nascemos assim. Também nossos yamata,
tudo é nascido. Tudo veio da terra. Todos nasceram de sementes. Cada tipo de
Jamamadi é um tipo de pau, de madeira. Mai ede oni? "Qual o nome da etnia?, as
pessoas perguntam. Tem kosiba, wadi, amara ... Cada árvore é uma etnia. Tem índio
tucumã, kore etc. Todas as etnias nasceram das árvores. Quando a semente cai na terra
ela nasce. Nós somos do mesmo jeito.

O mito Suruwaha do avô onça Ajimarihi trata a origem da humanidade atual a partir das

sementes de diferentes espécies, em consonância com a concepção Jamamadi do

processo de hominização mítica:

326
Mas as pessoas criadas primeiro por Ajimarihi não conseguiam falar direito. Falavam
línguas feias, incompreensíveis, e Ajimarihi as mandou embora. Estas pessoas
desprezadas por Ajimarihi tornaram-se os ancestrais dos povos estrangeiros: as criadas
de sementes de ucuqui deram origem ao povo dos Juma, as criadas de sementes de
patauá, aos Zamadi, as criadas de sementes de habaru, aos Jakimiadi e aos policiais e
soldados do exército, as criadas de sementes de sorva, aos sorveiros, as criadas de
sementes de abiurana, aos jara de pele branca como você – sim, você é uma ex-
semente de abiurana!. (Huber 2012:224)

Foram Berinawa e Badá quem me contaram que no passado remoto, antes da "época dos

avós", o céu e a terra eram invertidos. Nesse tempo não havia nada porque as plantas

não conseguiam fixar-se na terra e as sementes não brotavam, apenas despencavam da

terra para o céu. Depois que o céu ficou em cima e a terra embaixo dele, começaram a

nascer as árvores, awa bote, os seres mais antigos das narrativas míticas. Há um detalhe

interessante, os protagonistas dos mitos são almas de espécies vegetais não

domesticadas, alimentos consumidos antes do contato, os exemplos mais significativos

(excetuando-se as árvores) são os tubérculos (não identificados) yamo, keneru, kiya,

taiya, soba e mafiyu, símbolos da vida anterior aos cultivares, leia-se, antes do cultivo

da mandioca. Nos mitos são referidos com os termos aki, avó, ou idi, avô (conferir o

canto xamânico do avô kiya abono, p.166). Foi preciso que o céu estivesse cima da terra

para que os seres começassem a habitá-la. Os cultivares ainda demoraram para aparecer

porque são coisas do roçado, já "as árvores são árvores mesmo, são outro tipo de gente",

advertem. Não a toda, os mortos Jamamadi raramente se casam com almas de árvores.

Ou seja, elas não são como os animais que antigamente compartilhavam da humanidade

e diferenciaram-se segundo o processo de especiação. As plantas não se transformaram,

elas nasceram no mato, yama kabani, do céu, num processo autopoiético. A vida vegetal

antecede as demais e das suas sementes caídas do céu, trazidas pelo vento, jogadas pelas

327
pessoas que comeram frutas nasceram as pessoas na terra. Não custa enfatizar que as

plantas primordiais continham em seu interior diferenças infinitas que não permitem

que no estado mítico sejam contidas nos limites de um reino biológico, pois a vida

vegetal sempre foi também humana, sendo “[h]umano” o nome de uma relação e não de

uma substância” (Viveiros de Castro 2015:82).

Também falam da ação demiúrgica de um xamã que conforme comia frutas de

diferentes espécies e cuspia suas sementes, fez brotar delas os diferentes tipos de

pessoas, homens e mulheres: "quando alguém come uma fruta e joga a semente, ela não

nasce? Então, nós somos do mesmo jeito. Nós saímos da terra", prosseguiram Badá e

Berinawa em sua explicação. De repente, as pessoas apareceram como as plantas que

ninguém vê quando brotam da escuridão da terra. Badá terminou a narrativa de forma

incisiva - lembrando que a escatologia recupera as diferenças instauradas no mito -,

enfim: "as pessoas nascem do mesmo jeito que as plantas e morrem como elas".

Do tempo em que céu e terra eram invertidos, não há muito mais a ser dito, os

Jamamadi limitam-se a comentar que não havia nada porque as coisas "caiam" por não

conseguirem fixar-se ou por ser muito quente, em suma, as condições eram adversas.

Não custa frisar que é de pouca valia esperar que os mitos obedeçam a uma sucessão

temporal; o início parece estar "fora do tempo" e a sua anterioridade deve ser entendida

como lógica, não cronológica. Ademais, a linearidade das narrativas míticas nunca foi

preocupação para meus interlocutores que, de bom grado, aceitam versões distintas e

concorrentes acerca de um mesmo evento mítico. Por não terem sido testemunhados por

nenhum de seus parentes, não é possível - esta questão passa ao largo das expectativas

dos Jamamadi - escolher ou falsear as narrativas.

328
Essa humanidade primordial é domínio da vegetalidade contrariando o motivo mítico-

filosófico comum às cosmologias ameríndias, segundo o qual "o humano é anterior

empiricamente ao mundo" (Danowski & Viveiros de Castro 2014:87): "[a] ação do mito

transcorre em um tempo no qual ainda não havia nada, mas já existiam as pessoas"

(idem). A parte da humanidade que permaneceu igual a si, que passou incólume às

transformações míticas, seriam os humanos atuais: "[e]is assim que, no pensamento

ameríndio, a humanidade ou personitude é tanto a semente como o fundo ou o solo

primordial do mundo" (idem:89). Não poucos mitos trazem a imagem de um mundo

pré-cosmológico de diferenças intensivas anterior à especiação ou fixação das

discontinuidades naturais, mundo esse de "metamorfoses erráticas, plasticidade

anatômica e corporalidade desorganizada (idem: 91), enfim:

Um número considerável de mitos ameríndios, e, talvez um pouco menos comumente,


de diversas outras regiões etnográficas, imaginam a existência de uma humanidade
primordial (seja simplesmente pressuposta, seja fabricada por um demiurgo) como a
única substância ou matéria a partir da qual o mundo viria a ser formado. Trata-se
assim de narrativas sobre o tempo de antes do começo dos tempos, uma era ou um éon
que poderíamos chamar 'pré-cosmológico' (Viveiros de Castro 2007). Após uma série
de peripécias, parcelas da humanidade originária - não completamente humana, pois,
embora antropomorfa e dotada de faculdades mentais idênticas às nossas, essa raça
primeva possuía grande plasticidade anatômica e uma certa propensão para condutas
imorais (incesto, canibalismo) - parcelas desta 'primigente' vão-se transformando, de
modo espontâneo ou, mais uma vez, em resultado da ação de um demiurgo, nas
espécies biológicas, acidentes geográficos, fenômenos meteorológicos e corpos
celestes que compõem o cosmo atual. (idem:87-88)

No magma do tempo mítico Jamamadi, o potencial transformativo é vegetal e essa

lembrança permanece sendo um índice insistente do fitomorfismo que mostra ser

329
incontornável imaginar a humanidade em conjugação interespecífica. Essa trama

variegada retira qualquer excepcionalidade ontológica do humano, o resultado é a

configuração de um mundo de outras possibilidades além do antropomorfismo. Mais

uma vez, a atribuição de intencionalidade ou distinção espiritual às plantas não pode ser

secundária ou derivada dos animais (cf. Viveiros de Castro 1996), pois, tal atitude

esmoece as especificidades da vida vegetal, além de não se aplicar ao caso Jamamadi.

Reconhecer a humanidade das plantas e matizar a equação perspectivista de modo a

contemplar um fator dito de menor monta conduz à reavaliação de um de seus

pressupostos ideológicos que confere menor peso simbólico-cosmológico às plantas. A

precedência das plantas ou sua humanidade não é a volta do narcisismo humanista no

reino vegetal. Novamente: são as plantas que compõem o solo pré-cosmológico que

antecede o humano e o pressupõe porque o mundo é um fato vegetal antes de ser um

fato humano ou animal.

Aqui me permito fazer uma breve digressão a partir do trabalho recente do filósofo

Emanuele Coccia em "La vie des plantes: une métaphysique du mélange" (2016). Sabe-

se que foram as plantas que transformaram a terra, tornando-a habitável aos outros seres

com a composição da atmosfera, "o espaço metafísico do sopro" na expressão de

Coccia. A vida em imersão no espaço atmosférico é também ação de compenetração

recíproca entre sujeito e meio, corpo e espaço, vida e ambiente. Se uma crítica à noção

de paisagem pode ser feita a partir desta reflexão, eu diria que ela irrompe da imersão

criada pelas plantas, no ponto em que noções como "limite", "meio" (milieu) e

"ambiente" (environnement) requerem ser revisitadas considerando que a relação entre o

mundo e os seres vivos não é de justaposição ou contiguidade, mas interpenetração

recíproca e simultânea. O mundo não é ontológico ou formalmente autônomo em

330
relação aos seres que o habitam: “si tout vivant est un être dans le monde, tout

environnement est un être-dans-les-vivant” (Coccia 2016:55). Todavia, a vida das

plantas tem implicações ainda mais drásticas:

[l]'existence des plantes est par elle-même une modification globale du milieu
cosmique, c'est-à-dire du monde qu'elles pénètrent et par lequel elles sont pénétrées.
C'est déjà en existant que les plantes modifient globalement le monde, sans même
bouger, sans commencer à agir. Être signifie por elles faire monde, et, à l'inverse,
construire (notre) monde, faire monde, n'est qu'un synonyme de l'être (idem:55)

Mas o que essa discussão poderia interessar à mitologia Jamamadi? A vida vegetal é um

ato cosmogônico, de criação do mundo para os outros seres, pois é o autotrofismo das

plantas que permite transformar a energia solar em matéria viva, organizada. A

autopoieses pré-cosmológica da mitologia Jamamadi repercute a imagem da existência

das plantas como cosmogonia, ela é a condição de possibilidade e o produto da vida que

abriga, com efeito, essa potência criativa que engendra o cosmo também o permeia

desse sopro metafísico vegetal. Do mito se diz que viver, portanto, é essencialmente

viver a vida de outrem. Não é possível separar a planta do mundo, dada sua adesão

integral ao meio. Pelo menos a título heurístico, as formas de vida podem ser uma

tautologia cósmica: elas se pressupõem e não produzem outra coisa que elas mesmas.

As plantas são a única brecha da autorreferencialidade do vivente, pois infringem a

regra topológica da auto-inclusão, quer dizer, não precisam da mediação de outros seres

para viver. Talvez se possa dizer que os Jamamadi levaram essa ideia ao limite ao dizer

que as plantas produzem o mundo e as formas de vida humana e animal são formas

derivadas, transformações terrenas pós-míticas. Pensar as plantas implica pensar uma

existência radicalmente diferente da animalidade por ser imediatamente cosmogônica:

331
“Être-au-monde signifie nécessairement faire monde: toute activité des vivants est un

acte de design dans la chair vive du monde” (idem: 56).

Findado o parênteses, devo ressaltar que as intuições aqui esboçadas requerem uma

análise comparativa com os mitos de outros grupos indígenas da região do Juruá-Purus.

O propósito deste capítulo foi fundamentar o argumento que perpassa as partes

anteriores da tese e anunciar aspectos que serão melhores discutidos adiante, no

próximo capítulo.

332
Capítulo 10: Lost in translation

No final de novembro de 2016, a Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus

(FPEMP)138 e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI)139 organizaram um encontro com

o objetivo de abordar as relações dos Jamamadi e dos Banawá com seus vizinhos Hi-

Merimã, povo indígena atualmente em isolamento voluntário. Em uma das sessões da

reunião, Abadias Jamamadi interrompeu a sequência das narrativas míticas que estavam

sendo contadas pelos velhos para formular um problema interessante a respeito do

etnônimo adotado pelos Banawá. No tom elegante e provocativo que lhe é de costume,

o cacique geral dos Jamamadi (que havia substituído Badá) queria saber qual o nome

dos Banawá, pois ele não estava convencido de que o nome "Banawá" poderia referir-se

tanto à etnia quanto ao igarapé onde eles vivem. De acordo com seu argumento, pode-se

dizer "aqueles do banawá" para se referir às pessoas que vivem nesta localidade, a

saber, o igarapé banawá; no entanto, a lógica para determinar o nome de uma etnia -

palavra usada por ele - não se fundamentaria na correspondência toponímica. "Nasci no

rio Curiá, mas nem por isso me chamo "Curiá". Qual o nome da etnia de vocês?",

provocou Abadias. Avessos à querela mas satisfeitos com a provocação, as lideranças

138
Há uma mútua desconfiança, por muito tempo, a FPEMP nutriu desconfiança explícita em
relação aos Jamamadi, de modo que o diálogo escasso, o não compartilhamento das informações obtidas
nas expedições de vigilância e monitoramento os mantiveram afastados da atuação do órgão e de seus
propósitos, levantando dúvidas sobre um possível desaparecimento dos Hi-Merimã. Do ponto de vista da
Frente, os Jamamadi seriam a principal ameaça ao isolamento e integridade do território dos isolados,
pois, em busca do cobiçado óleo de copaíba, os Jamamadi adentrariam regiões com fortes indícios de
ocupação. Muitos Jamamadi, por sua vez, questionam a atuação da FPEMP cujo propósito não condiz
com as justificativas dadas no momento da implantação das Bases de Proteção Etnoambiental, origem de
rusgas e mágoas não superadas.
139
O encontro "Diálogos sobre isolamento e contato: os Hi-Merimã e os povos do seu entorno"
realizado entre os dias 23 e 26 de novembro de 2016 pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI) em
colaboração com a Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus (FPEMP) e a Coordenação Geral
dos Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), da Funai, no âmbito do projeto "Proteção
Etnoambiental de Povos Indígenas Isolados e Recém-contatados", ocorreu na Base Piranha, localizada na
Terra Indígena Hi-Merimã. Participaram representantes Jamamadi das comunidades Pauzinho, São
Francisco, Kosi e Vitória, Banawá das comunidades Paraíba e Maloca, Jarawara da comunidade Água
Branca e Paumari das comunidades do rio Tapauá, além dos representantes das organizações indigenistas
que promoveram o encontro e os antropólogos convidados.

333
Jamamadi mais velhas debatiam a meia voz concordando com a formulação do

problema. Uns diziam que o nome correto seria Banawá-yafi, outros falavam em

Batoyafi ou Batowaso, alguns insistiam que seria Kiriya (nome da árvore

massaranduba). A essa altura, as atenções tinham sido desviadas do tema anterior e a

reunião tomou outro rumo, todos falando simultaneamente em alvoroço.

Alguns Banawá se incomodaram com o que lhes parecia ser uma pergunta

despropositada que soava como um questionamento às suas identidades étnicas. Pedro

Banawá, agente de saúde indígena, aceitou sem qualquer embaraço a provocação e quis

"esclarecer a confusão" de Abadias: "Eu vou te explicar, Jamamadi. Você está dizendo

que nós não temos etnia? Nossa residência é no igarapé Banawá, nossa aldeia se chama

Banawá, nosso sobrenome é Banawá, nossa etnia é Banawá. Filho de jacaré é jacaré,

filho de preguiça é preguiça. Por isso, nossa identidade é Banawá, não importa quem

veio primeiro".

Quando os ânimos pareciam ter se acalmado e a dúvida ter sido posta de lado, Inácio,

uma importante liderança Banawá, entrou na conversa para lembrar que, na verdade, o

nome "Banawá" foi atribuído pelos brancos e que na língua indígena o igarapé é

chamado de Kitiya. Sem se dar por vencido, Abadias voltou a perguntar, satisfeito com

a desordem que causara: "então, Banawá, por que vocês não se chamam Kitiya?".

Cansados do tumulto provocado pelo que pareceu uma incompreensão básica de

Abadias, a questão foi descartada para dar prosseguimento à reunião. O cacique,

contudo, resmungava contrariado ao meu lado. Visivelmente aborrecido, ele me

perguntou: "como fala tika ede oni em português? Tá errado perguntar qual o nome da

334
tua etnia?". Os desencontros não paravam de se multiplicar, pois as respostas para a

questão quando formuladas em jamamadi e em português não coincidem na maioria das

vezes. Os Jamamadi sentados próximos a Abadias passaram a lembrar dos seus nomes

numa enumeração etnonímica tão variada e heterogênea quanto enigmática,

proliferando-os com rapidez e diversidade inusitadas para mim, sendo interrompida

somente pelo chamado do almoço: Wayafi, Kosiba, Hawa, Boti, Nakanike, Kanamati,

Jamamadi, Yamamadi, Wadi, Awabodi, Awabodi-yafi, Banawá, Banawá-yafi,

Batowaso, Kiriya, Hi-Merimã, Fowafene, Abami, Anaba, Awatanafari, Abatonei, Adao

Owa, etc. Se alguns desses nomes eu sabia que se referiam a certas parentelas, outros,

eu escutava pela primeira vez. De saída, era evidente que essa onomástica vertiginosa

aplicava-se a diferentes escalas sociais, cujos limites bastante plásticos não conformam

inequivocamente unidades de tipo "povo", "etnia", "subgrupo", "clã", "linhagem", etc.

Neste ponto, importava menos tentar descobrir o nome dos Banawá que pensar nas

diferentes lógicas mobilizadas na produção dos equívocos descritos - no sentido

proposto por Viveiros de Castro: "The equivocation is not that which impedes the

relation, but that which founds and impels it: a difference in perspective" (2004:10).

O desentendimento generalizado não resultou de inabilidade linguística para traduzir ou

de desconhecimento da região, menos ainda - não custa dizer-, de má vontade ou

ingenuidade. Os Jamamadi estavam menos interessados em desfazer ou esclarecer os

equívocos - até porque os mal entendidos tampouco coincidiam -, que em levá-los

adiante, num exercício antropológico de comparar diferentes imaginações sociais. A

preocupação de chegar a um termo comum ou a um entendimento unívoco do problema

cabia à parcela não-indígena da plateia. A questão, quando formulada em português,

implicava em equacionar, como fizera Pedro Banawá, o nome de uma etnia a uma

335
unidade social específica e delimitada, i.e., uma aldeia a um povo, segundo uma relação

temporalmente estável entre o nome e um referente. Desta feita, o nome "banawá",

pensado em termos de "etnia", fazia coincidir a aldeia, o povo e a localidade, uma vez

que a lógica que encapsula pressupõe a estabilidade de unidades sociais bem definidas.

Em termos indígenas, a pergunta aponta para desdobramentos distintos, posto que não

supõe um etnônimo englobante e engessado, em conformidade com as exigências

estatais, como única resposta. A tradução literal da pergunta tika ede oni?140 é "qual o

nome do teu tronco?", de forma livre sugiro traduzi-la como "qual sua planta de

origem?" ou "de qual árvore você provém?", o termo ede tem um sentido metonímico

na expressão remetendo mais às ideias de "planta" ou "árvore" menos que de "tronco".

De pronto, adianto que a minha sugestão tradutiva não implica uma relação objetiva ou

genética entre os jamamadi e as plantas, como poderiam sugerir os verbos, tampouco se

trata exatamente de uma relação do tipo totêmica entre unidades sociais discretas, da

ordem dos subgrupos humanos, e espécies vegetais das quais manifestariam certas

qualidades associadas, tal como elaborada por Lévi-Strauss (1962[2002]) e outros

autores.

Não poucas etnografias dedicadas às Terras Baixas da América do Sul atestam a

existência desses conjuntos chamados de "subgrupos", "subgrupos nomeados" ou

"grupos de denominação", por tempo demasiado pensados como partes de um conjunto

mais amplo, ainda que o rendimento dessa abordagem seja bastante limitado, a despeito

da atenção e reincidência do fenômeno. Os -nawa dos Pano, os -madiha dos Kulina, os -

djapa dos Kanamari, os -deni dos Deni e dos Jamamadi (madiha), os -dawa dos

Suruwaha, em suma, a lista é numerosa, não identificam um povo, não garantem a

140
Tika - 2psg poss.; ede - subst.m., "tronco", "haste", "caule"; oni - subst.m., "nome".

336
filiação histórica de um etnônimo atual com um do passado e não permitem serem

hierarquizados sem acarretar em necessários equívocos. A inconsistência das

abordagens focadas na morfologia social, em sua insistência de buscar hierarquias

mereológicas, não justifica desconsiderar os dados por uma suposta incapacidade de

revelar unidades efetivas. Talvez seja preciso projetar sobre outros planos, distante da

inconsistência das percepções realistas, as reflexões acerca do que podem ser os

princípios gerativos da socialidade nativa. No caso Jamamadi, como se verá, algo

semelhante aos conjuntos endogâmicos podem ser encontrados na vida póstuma, num

plano atópico, distante dos desarranjos e misturas cotidianos. Os modelos calcados

exclusivamente na organização social terrena são de pouca valia para tratar os dados,

pois tentam salvar os fenômenos com o risco de produzirem novas taxonomias etéreas.

A natureza dos vínculos entre os grupos, os nomes e as plantas é a materia mesma deste

trabalho, no qual este capítulo é somente um desdobramento parcial, uma expressão da

metafísica vegetal Jamamadi através do idioma da sua organização social.

Os deslizamentos linguístico-conceituais das variações tradutivas em jogo evidenciam

lógicas divergentes de acordo com as quais, se expressa em termos de etnicidade,

estabiliza um repertório etnonímico cuja pertença está livre de improvisação, ao passo

que, se pensada em termos nativos, dá margem à proliferação potencialmente ilimitada

dos nomes que, na medida em que possa revelar unidades, o faz somente para mostrar

sua impermanência e inexatidão. A linguagem sociológica da tradução, preocupada em

delimitar grupos, fronteiras e pertencimento, diverge daquela vegetal-metafísica do

idioma nativo de partida, ademais, o essencialismo daquela em contraste com o

dinamismo dos nomes deste davam ares de dubiedade à fala de Abadias, prontamente

desqualificada como expressão de uma petulante "incompreensão pueril".

337
Insisto na imagem da ingenuidade, porquanto, grosso modo, os Jamamadi figuram no

imaginário local, em comparação com os povos vizinhos, como aqueles não maculados

pela "degenerescência civilizatória". Desde os primeiros relatos dos viajantes que

estiveram no Purus, os Jamamadi são descritos sob as alcunhas de "mansos"141,

"medrosos" e "pacíficos", qualificações persistentes na construção de um estereótipo

deveras oportuno para mantê-los apartados da vida política e das decisões que lhes

concernem. É comum escutar sobre os Jamamadi que "eles são pacíficos e não gostam

de brigar", "são inocentes e ainda não aprenderam a enganar como os outros povos",

"são como crianças e devem ser orientados pelos brancos que trabalham com eles", para

citar apenas alguns comentários. É notável, em incontáveis situações quando estão na

cidade que o comportamento - andam todos juntos, muitas vezes, em fila como nos

varadouros; frequentam a praça central permanecendo sentados sempre nos mesmos

bancos observando os passantes; pedem auxílio aos transeuntes para retirar seus

benefícios nos bancos -, as roupas "conservadoras" - quando comparadas àquelas usadas

pelos brancos e indígenas da região - e o jeito de falar português142 são diacríticos que

141
Os Jamamadi se apropriam das categorias classificatórias dos brancos conferindo-lhes outros
sentidos ora confluindo ora divergindo das noções ocidentais de selvageria e civilização. O pacifismo e a
mansidão são características que os Jamamadi tendem a se atribuir, em contraste com povos considerados
guerreiros e bravos tais como os Apurinã e, antigamente, os Juma. Contudo, a respeito do tempo dos seus
antepassados, a vida era marcada pela guerra e violência constantes, de modo que os atributos dos antigos
eram outros, mais próximos daqueles que hoje são usados para qualificar povos de índole guerreira. Os
sentidos de "manso", "medroso" e "pacífico" são contextuais e apontam para modos de vida em tempos e
lugares distintos. Para uma análise etno-histórica das variações e contrastes Kulina e Paumari das imagens
de "bravo" e "manso" conferir "O que significa ser 'manso'? A selvageria e a civilização sob diferentes
perspectivas", de Aline Balestra (2016).
142
O português falado pelos Jamamadi é bastante característico, na medida em que ecoa a ordem
OSV das constituintes, objeto precede o sujeito e o verbo, e há ampla alternação da transitividade de
muitos verbos (conferir o estudo sobre a morfologia das classes verbais feito por Vogel, 1991). Ademais,
no inventário fonético da língua jamamadi, identificam-se os alofones para os fonemas a seguir: a
oclusiva bilabial [b] é geralmente vozeada, mas pode não o ser, de modo que "pato" pode ser realizado,
sem mudança de sentido, como "bato"; a oclusiva velar [k] é vozeada [g] principalmente no início de
palavra, assim,"gato" pode ser pronunciado como "kato"; a fricativa lábio-dental [f] pode ser vozeada ou
não, logo, vaca é dito tanto "vaca" como "faca"; o tap pós-alveolar [r] pode se realizar como aproximante
lateral [l], no mesmo ponto de articulação, logo, "laranja" é pronunciado tanto como "laranja" como
"lalanja"; por fim, a aproximante palatal [j] pode ser realizada como a semi vogal [y], por exemplo, em

338
reforçam o lugar marginal em que são vistos143. No lançamento do Plano de Gestão

Territorial e Ambiental (PGTA) Jamamadi, em 2015, realizado com a colaboração da

Ong Operação Amazônia Nativa (OPAN), Bernardo Jamamadi irritou-se com as

chacotas da plateia, que via no jeito jamamadi motivos para rir, e revidou: "Sim, nós

podemos ser pequenos e baixinhos. Podemos andar todos juntos na cidade. Não

gostamos que vocês manguem de nós. Não esqueçam, podemos ser pequenos, mas

somos como as formigas de fogo e as cabas que espantam até uma cobra grande. Se nós

quisermos, podemos esculhambar também". Situação semelhante ocorreu na etapa

regional da Conferência Indigenista, no mesmo ano, promovida pela Funai e

organizações indígenas da região. Estavam presentes comitivas de povos do rio Purus e

do rio Madeira, dentre eles alguns povos de língua Kagwahiva, altivos no trato e

reconhecidos por sua articulação política madura. Ao som dos risos abafados e pedidos

para se apressarem, as lideranças Jamamadi tentaram apresentar timidamente suas

demandas no breve momento que lhes foi dado.

"jamamadi" ou "yamamadi". Embora seja menos claro, pode-se dizer que a aproximante lábio-velar [w] e
a vogal [o] são alofones (conferir discussão em Dixon 2004:20-23); porém, este último contraste tem
pouca relevância quando se expressam em português. Estas referências à fonética e aos processos
fonológicos exemplificam as peculiaridades da fala jamamadi e da estranheza que provocam ao falante
nativo de português.
143
Presenciei conversas acaloradas na aldeia sobre as diferenças de comportamento dos indígenas e
dos brancos. Os Jamamadi que viajam assiduamente a Lábrea orientavam os demais dizendo que, na
cidade, é preciso usar garfo e faca em vez de colher; que as pessoas devem caminhar umas ao lado das
outras e não em fila - "na cidade cada um faz o seu caminho", eles dizem com frequência -; que o jeito
"certo" de cumprimentar é apertando a mão; que é necessário apresentar-se no início das reuniões dizendo
o nome e a aldeia onde vive; que, após cada fala em uma reunião, é preciso bater palmas etc.

339
10.1 Ai yorotokana: "nós, misturados"

Os Jamamadi se autodenominam ai ou ai yokana termo que pode ser traduzido por

"gente", "pessoa", "nós" (pronome inclusivo de 1 pess. pl.), "humano verdadeiro" ou

quando em oposição aos brancos, Jara144, assume o sentido de indígena. Para designar

os demais povos indígenas é acrescido ao termo "ai" o adjetivo bara (f) / bare (m),

"diferente", "distinto", "de outra qualidade", deste modo, ai bara é usado para todos os

indígenas não Jamamadi. Não custa lembrar que a autodesignação não é uma forma de

repor o essencialismo negado aos subgrupos, como se sua "veracidade" delimitasse uma

região do ser realmente legítima porque afirmada pelos indígenas; antes, trata-se mais

bem de algo próximo ao pronome:

(...) e os pronomes, por muito que a palavra aluda a uma substituição - estão lá em
nome do nome - não representam necessariamente um nome; o nome pode
simplesmente não existir, e os pronomes existem porque agem de um modo diferente
ao do nome. Sobretudo, porque não são essenciais. Pronomes exercem como sujeitos
ao igual que os nomes, sem ser, como os nomes, facilmente objetiváveis (Calávia Sáez
2013:9).

Sobre o termo "kanamati", presente no nome da Terra Indígena, meus interlocutores são

categóricos ao afirmar tratar-se de um equívoco ou um nome inventado pelos brancos

para se referir aos Nakanike, isto é, a todos os coletivos de língua madi que viviam a

montante, em especial, aqueles da região do alto Sabuhã. Atualmente, o etnônimo

144
Amplamente utilizado pelos indígenas da região para designar os brancos, "jara" é emprestado
do nheengatu, língua geral de origem Tupi, e significa "dono", "mestre". Outro termo que os Jamamadi
empregam, com menor frequência, é "cariú", derivado da palavra tupi-guarani "kariwa", utilizado para
denominar os brancos.

340
Jamamadi abarca os remanescentes de alguns grupos falantes de dialetos da mesma

língua madi que viviam na região compreendida no interflúvio entre o rio Piranha, o

igarapé Mamoriazinho (referido como Mamoriá Mirim em alguns relatos) e o rio Purus,

os mais mencionados são: os Hawa, do igarapé Aripuanã; os Nakanike, do igarapé

Sabuhã; os Boti, do igarapé Mamoriazinho; os Wayafi, do Apaha; os Kosiba, do rio

Curiá; os Hi-Merimã, do alto Riozinho e do Mamoriazinho; os Banawá, da bacia do rio

Piranha; por fim, alguns mencionam ainda os Wadi, que teriam vivido na região do

igarapé Mamoriazinho, no entanto, são vagas as informações acerca desse grupo.

As localizações são imprecisas porque o modo de vida no passado era marcado pelos

deslocamentos e a memória relativa aos nomes, relegados quase todos ao esquecimento,

revela certa irrelevância para a sociabilidade atual. A concentração de cada coletivo em

determinados territórios cedeu lugar à dispersão e à posterior reconfiguração em novas

fusões. Atualmente, alteridade e identidade são construídas segundo termos que não

obedecem às antigas distâncias entre coletivos, dada a diminuição da endogamia

preferencial e da belicosidade. Não se tratando de um problema de morfologia social,

resta perguntar se haveria alguma relevância destes antigos nomes ainda hoje.

Se o pertencimento aos diferentes coletivos é mobilizado pelas gerações mais velhas, as

jovens tendem a neutralizá-lo, enfatizando a mistura característica dos Jamamadi de

hoje, ou a atribuir pouca relevância a eles, chegando a equivocar-se sobre a qual grupo

cada pessoa estaria vinculado. Essas diferenças são pouco pertinentes para a maioria -

exprime mais os anseios da etnógrafa que as conceitualizações da sociabilidade nativa -,

principalmente para os jovens que não se identificam segundo esse critério, preferindo

afirmar-se como "Jamamadi" ainda que seus pais possam reconhecer

341
circunstancialmente o pertencimento a um dos grupos citados. Para Marikiya, que tem

cerca de 25 anos, o reconhecimento de que seus avós paternos eram Hawa e que os

maternos eram Kosiba não altera nem interfere na sua identificação exclusiva como

"Jamamadi".

De modo geral, assentir a esse parentesco parece não ter qualquer consequência para os

mais jovens. Ao repetir a questão sobre o pertencimento aos subgrupos na casa ao lado,

na qual vive Bidama, uma das tias maternas de Marikiya, o tema não teve grande

rendimento, as respostas oscilavam entre negar a existência dos Kosiba e titubear em

suposições variadas sobre o pertencimento a algum dos antigos coletivos. Quando

sugeri a Bidama que ela poderia ser Kosiba em concordância com o que dissera Sabira,

sua irmã mais velha, ela respondeu, sem dar muita atenção ao assunto, com um simples

"pode ser".

As distinções estabelecidas por esse repertório de nomes soa como um arcaísmo, em

franco desuso. Quando questionados acerca do pertencimento a um dos grupos, as

respostas variavam de modo a não manter uma coerência ou limitavam-se a um "não

sei" categórico. Os nomes que ainda operam pontualmente contrastes são "wayafi",

"banawá " e "hi-merimã" - em menor medida, o nome Nakanike cria distinções

significativas, mas com consequências diversas; abordarei as particularidades desse

nome adiante. Isso porque dos Wayafi se conhece de forma razoável a história recente

de dispersão e fusão dos dois grupos sobreviventes do conflito com os Apurinã do

igarapé Apaha, afluente do Mamoriazinho, na década de 1950145. Contextualmente, os

filhos de Joana Banawá e Samo Jamamadi - o único casamento que registrei entre os

145
Para uma análise das uniões matrimoniais "erradas" entre os Jarawara e os Wayafi e os
rearranjos na rede genealógica pela inserção deste grupo, conferir Maizza (2012:182-183, 238).

342
dois grupos - podem ser identificados como Banawá, ressaltando suas peculiaridades

prosódicas e lexicais como justificativa. Quanto aos filhos de Ermina Hi-Merimã,

nenhum traço distintivo vinculado a este grupo é apontado. Ermina e sua esposa

morreram em uma das epidemias que assolou o Sabuhã e seus filhos acabaram criados

por outra família que vivia em aldeia distinta, identificada como Nakanike.

Por fim, ainda mencionam os brancos na composição dessa mistura, em virtude dos

muitos casos de violência contra as mulheres perpetrada pelos patrões: "Tem muito

sangue de branco entre nós", escutei não poucas vezes. O antigo cacique B. me

explicava sua ambivalente proximidade com os brancos porque ele próprio teria o

"sangue misturado", leia-se, sua mãe fora coagida a manter relações com um branco

durante sua gestação. A pluralidade de genitores não implica, porém, no

reconhecimento de paternidade múltipla. O cacique jamais titubeou em reconhecer

Namidi como seu pai e não o patrão que violentara sua mãe.

Muitos afirmam que foram os brancos e os missionários que passaram a referir-se a eles

com um único nome. Parafraseando um discurso corrente, os Jamamadi repetem que

"todo mundo é um só", diferente de antes em que eram muitos. Agora, são todos

misturados, ai yorotokana146, "não tem mais índio puro, só misturado". Os Jara,

brancos, e os americanos os juntaram e passaram a chamá-los de Jamamadi. Dado que

todos aprenderam a falar a mesma língua e a casar entre si, dizem, a mistura que os

define prepondera sobre as diferenças dos pequeno grupos que caracterizavam a vida

anterior ao contato. Contudo os ecos das antigas diferenças resistem como um ruído de

146
Ai - pronome 1 pess. pl. Yoro na - verbo. Yorotokana - morf. do verbo intransitivo, "estar todos
juntos", "estar misturado": yoro (raiz verbal) + to- (incoativo, indica mudança de estado) + ka-
(comitativo) +
na (auxiliar).

343
fundo, notável na abundância de uniões matrimoniais mal sucedidas, em virtude da

diminuição da endogamia intragrupal que os forçou a buscar parceiros fora do horizonte

das preferências, bem como na incessante dispersão territorial com abertura de novas

aldeias de relativa autonomia política.

Na direção oposta àquela apontada pelo discurso que enfatiza a mistura, o padrão

residencial e a disposição espacial das casas permitem visualizar as diferenças internas

que persistem, talvez a mais marcada seja em relação aos Wayafi que vivem em aldeias

separadas, Vitória e Kosi; em vista disso, raramente há equívocos quanto ao

pertencimento a esse grupo. Tal diferença também se expressa no léxico: a embalagem

feita de folhas usada para moquear peixe é chamada de karafa pelos Wayafi e de katafa

pelos demais, mucuim é kimaro em wayafi e yimiti em jamamadi, cupuaçu é marifo em

wayafi e himafo em jamamadi, o advérbio "mais" é dito basira em wayafi e basina em

jamamadi.

Em relação aos demais grupos também há diferenças linguísticas, sobretudo lexicais,

que se evidenciam na comparação entre famílias extensas, notadamente as Nakanike da

região do Sabuhã que dizem ayabata para "caju" e os Jamamadi dizem ayawa; "caldo" é

dito sahari pelos Nakanike e saari pelos demais. Se bem que o contato com os Hi-

Merimã tenha sido interrompido há muitos anos, alguns velhos Wayafi se recordam do

que contavam seus pais e avós sobre o modo como os Awabodi ou Awabodi yafi, nome

Wayafi usado para os Hi-Merimã, diziam "queixada", yama kaili; "onça", marihi; a

"faca feita de taboca", tobe, dentro outros nomes.

Recentemente, alguns Jamamadi foram convidados a integrar uma expedição de

344
monitoramento organizada pela FPEMP em território Hi-Merimã. A orientação que o

cacique Abadias Jamamadi recebeu de lideranças mais velhas o alertava para que ele se

identificasse como Wayafi, não como Nakanike, no caso de um encontro imprevisto

com os isolados. Ao que tudo indica, as relações entre os Hi-Merimã e os Wayafi eram,

em geral, de uma proximidade amistosa, ao passo que entre aqueles e os Nakanike, os

conflitos prevaleciam, como mostram os relatos das hostilidades e mortes que estes

propalaram no alto Sabuhã há várias décadas. Os dois relatos a seguir, narrados por

Chagas Jamamadi, são ilustrativos dos conflitos:

Os Hi-Merimã estavam passeando na maloca dos Nakanike. "Eu tenho muitas irmãs,
vou dá-las para você como esposas", disse o visitante Hi-Merimã a Tonahi, que era
Nakanike. Mas Tonahi já estava pensando em matar o Hi-Merimã para ficar com as
suas esposas. Seu plano não funcionou e ele acabou morto pelo visitante Hi-Merimã.
Watanoafe, uma velha Nakanike que entendia bem a língua deles, foi avisar as esposas
do Hi-Merimã para que elas fugissem: "O marido de vocês matou Tonahi, vão embora!"
As mulheres rapidamente desataram suas maqueiras, amarraram-nas em torno da cintura
e não voltaram àquela maloca.

Um pessoal chamado Anaba [possivelmente Hi-Merimã segundo especulava Chagas]


matou Tatisiaraba, que era Nakanike do Sabuhã. No dia seguinte à morte dele, nasceu
Sowaki, seu filho. O irmão mais novo de Tatisiaraba era um pajé forte, então, ele foi
para o céu encontrar a alma do irmão falecido. Chegando lá, gritou pelo irmão: "Ayo
[irmão mais velho], Tatisiaraba! O que aconteceu? Como foi que te mataram?". A alma
de Tatisiaraba contou para o irmão mais novo como o mataram. O mais novo voltou
enfurecido para a aldeia, na terra, decidido vingar Tatisiaraba. O irmão mais novo
deixou frutas tafa com feitiço no caminho para que os Anaba as comessem. De fato, os
Anaba encontraram as frutas e as comeram. Não demorou para que eles se sentissem
embriagados. Letárgicos, os Anaba abandonaram suas flechas e ficaram no caminho,
sem conseguir caminhar. O irmão mais novo de Tatisiaraba e seus companheiros os
encontraram cantando. Ele havia advertido para que seus companheiros não comessem
das frutas tafa que estavam no caminho. Outros Anaba tomavam rapé tranquilamente
sem conseguir prosseguir sua viagem, todos embriagados. O pajé e seus companheiros
mataram todos os Anaba a pauladas, não deixaram sobrar ninguém, em seguida,

345
partiram para a aldeia deles, mas só havia mulheres e velhos. O pajé capturou duas
meninas para levá-las para sua irmã criar [uma dessas crianças era a avó de Ida
Jamamadi, esposa de Chagas].

Conforme dito acima, os Hi-Merimã são um dos grupos remanescentes que constituem

os Jamamadi atualmente, de acordo com Yima, Anieo, Saba e Regina, filhos de Ermina

Hi-Merimã, eles seriam os únicos sobreviventes de um grupo vindo do Sabuhã e que,

como seus vizinhos Nakanike, foram quase exterminados em sua totalidade por uma das

muitas epidemias. É possível formular a hipótese, partindo de relatos tanto de

interlocutores Jamamadi quanto de Apurinã e ribeirinhos, que os Hi-Merimã

correspondam a mais de um grupo isolado, a saber: aqueles que teriam habitado o

igarapé Sabuhã e o rio Piranha, e aqueles das cabeceiras do igarapé Mamoriazinho. Os

primeiros seriam aqueles que foram atacados por Madokihi Nakanike a mando do

patrão Sérgio Lopes - a data é imprecisa, segundo as estimativas, esse enfrentamento

ocorreu na década de 1940 -, e os segundos seriam aqueles que conviveram mais

próximos dos Wayafi, do igarapé Mamoriazinho. As diferentes descrições físicas dos

Hi-Merimã com os quais já se encontraram, uns de baixa estatura e pele morena, outros,

altos de pele alva, corroboram esta suposição.

Reavivado nos últimos anos em virtude do interesse indigenista, a proximidade147 entre

147
A reorganização da ocupação do território com a mudança em 2015 dos moradores da antiga
aldeia Carapanazal, majoritariamente wayafi, e a abertura da aldeia Kosi na área do igarapé Aripuanã,
associada ao coletivo hawa, da parentela de Badá, era uma questão da política interna jamamadi que
gerou desentendimentos e conflitos. A escolha do local da aldeia Kosi era alvo de questionamentos
diversos, no mais das vezes, punha em relevo as diferenças internas entre os diferentes grupos locais que
compõem os Jamamadi: os novos moradores Wayafi do Aripuana não poderiam justificar a mudança de
território baseando-se no parentesco com os Hawa, moradores tradicionais da região, porém, se tais
vínculos não poderiam ser reclamados, a antiga proximidade com os Hi-Merimã foi uma alternativa
conveniente e bem vinda, respaldada no encontro organizado pela FPEMP mencionado acima, para
aplacar as desavenças. Se o parentesco com os Hawa não era visto como próximo o suficiente para
legitimar a mudança, os vínculos com os Hi-Merimã, de quem eram vizinhos no Mamoriazinho,

346
os Wayafi e os Hi-Merimã que habitavam a região do Mamoriazinho148 passou a ser um

dos temas diletos sobre os quais Berinawa e seu irmão Tati, ambos Wayafi, tomaram

gosto. Entre os anos de 2012 e 2016, período em que realizei meu trabalho de campo, a

relação com os Hi-Merimã transformou-se drasticamente: do desinteresse que os

relegava ao ostracismo para um parentesco insuspeito. Nas primeiras temporadas que

estive entre os Jamamadi, eram raros aqueles que "sabiam" alguma coisa sobre os

vizinhos isolados, por mais que eu perseverasse no tema; muitos chegavam a negar sua

existência, sugerindo tratar-se de um embuste da Funai.

Por estranho que possa parecer à nossa sensibilidade excessivamente realista, pronta em

ver oportunismo e confusão na impermanência das associações indígenas, as relações

entre esses coletivos estavam somente obviadas ou latentes por sua irrelevância

situacional. Não é demais repetir que reativar esses vínculos manifesta vitalidade social

em vez de má-fé e volubilidade.

Assim, Berinawa "de repente" lembrou-se do trecho de uma música hi-merimã que sua

mãe cantava "bem baixinho, quase chorando": neme-ya kerowi wanai, "a preguiça mora

no alto, nas cabeceiras". Essa memória o deixava nostálgico e o fazia especular se não

revelaram-se um caminho imprevisto, habilmente mobilizados nos embates políticos pelos Wayafi.

148
A fuga deste grupo Hi-Merimã teria sido resultado de um conflito com os Apurinã no
Mamoriazinho. Na época em que os avós de Berinawa eram vivos, os Hi-Merimã iam com grande
frequência visitar as aldeias Wayafi e Jamamadi, mas não as Jarawara. Berinawa também se lembrou de
um conflito entre Sokainawa [que ele chamou de Jamamadi, porém, essa história é anterior à reunião dos
Wayafi com os demais grupos madi]. Sokainawa matou um porquinho de criação de um Hi-Merimã, que
estava visitando sua maloca, porque ele havia derrubado as cinzas do cacau que ele estava preparando
para fazer rapé. O visitando, com raiva, comeu uma cobra venenosa - uma jararaca pico de jaca - e
guardou suas presas. Ao ver que Sokainawa estava saindo para pescar, o Hi-Merimã se adiantou e deixou
as presas no caminho para que ele pisasse. Assim que Sokainawa pisou na armadilha, caiu sem forças.
Com dificuldade, voltou cambaleando para casa. Por ser pajé, ele chamou uma onça para retirar os
feitiços de seu corpo. O espírito auxiliar curou Sokainawa. Logo que ele se recuperou, decidiu vingar-se
do Hi-Merimã, que ainda estava em sua aldeia. Ele avisou para que os visitantes Hi-Merimã fossem todos
embora e quando eles estavam no caminho, Sokainawa flechou todos eles e terminou de matá-los com
golpes de borduna. Todos morreram.

347
seria sua mãe também Hi-Merimã. Em outra ocasião, Tati, seu irmão mais velho, cantou

um trecho de uma música que seu avô Mekene Wayafi teria escutado num ritual ayaka

promovido pelos Hi-Merimã: Kona, tiwa komene ene aba. Kobatone aba tobotonee;

"Timbó, seu veneno faz os peixes morrerem", numa tradução parcial feita por Tati. A

passagem do silêncio para a profusão de relatos era na aparência brusca. No entanto, é

preciso reconhecer que a rotina etnográfica está aquém da sutileza dos meandros da

memória, impassível a uma obrigação de coerência. A anedota narrada abaixo por

Berinawa torna patente tanto a proximidade quanto a diferença entre os Hi-Merimã e os

Wayafi:

Papai, Kao, encontrou com um conhecido Hi-Merimã, isso aconteceu quando eles
moravam lá no Apaha [afluente do Mamoriazinho]. Naquela época, eles faziam grandes
roçados e plantavam os mesmos yamata [cultivares agrícolas]. Papai não compreendia
muito bem a língua do companheiro dele, que era um bocado diferente. Eles foram
juntos para o roçado para tirar pupunha madura, então, o Hi-Merimã olhou para o papai
e falou assim para ele: "tosi, tosi!". Ele não entendeu o que o Hi-Merimã queria porque
"tosi" para os Wayafi é o movimento que as pessoas fazem na dança [balançando o
corpo de um lado para o outro]. Como o companheiro dele insistia, papai começou a
dançar, mexendo o quadril do jeito que as pessoas fazem no ritual ayaka. Ele não
entendeu; achou que o companheiro queria fazer festa. O Hi-Merimã começou a rir
muito! Ele só estava pedindo uma vara, que nós chamamos awa, e que na língua deles é
tosi, para poder tirar a pupunha madura.

Certa feita, como parte da agenda proposta num evento, o coordenador da FPEMP fez

uma apresentação na qual mostrou algumas imagens, feitas durante as expedições, de

acampamentos, quebradas e cortes nas árvores dos varadouros, além de itens da cultura

material Hi-Merimã.

348
Havia a expectativa de que a audiência branca e indígena se admirasse com as fotos,

principalmente os Jamamadi já que seus cestos e abanos são idênticos aos dos Hi-

Merimã. No entanto a indiferença os Jamamadi foi mais surpreendente. Eles se

limitaram a dizer que já conheciam os artefatos e sabiam da semelhança. Não somente

os cestos e abanos são os mesmos, como quase todo o resto, alertaram. "É igual porque

foram eles que ensinaram a gente a fazer desse modo", contou Tati.

As peneiras, as redes, o ralador de paxiúba, em suma, quase toda cultura material teria

sido ensinada pelos Hi-Merimã. Primeiro, eles ensinaram os Wayafi, que eram seus

vizinhos, depois estes ensinaram os demais quando se juntaram aos outros grupos madi.

"Antes de ter o nano, "tipiti", a gente usava o kaimaro para espremer a mandioca.

Foram os Wayafi que ensinaram o resto a usar o nano porque os Hi-Merimã ensinaram

eles primeiro", explicou Tati.

A respeito dos Boti, coletivo madi da região do igarapé Mamoriazinho, há poucas

informações, sabe-se apenas que o sogro do cacique da aldeia Pauzinho pertencia a este

grupo e que da matança, promovida possivelmente pelos Apurinã e pelos brancos,

sobreviveram somente dois irmãos, Hama e Tatiwarafo. Além dos coletivos madi

mencionados, eles fazem referência a outros que foram completamente exterminados:

os Fowafene e os Abami, ambos do Sabuhã, os Awatanafari cuja localização é

imprecisa e os Abatonei que, segundo a descrição de Mekene Wayafi, que os teria visto,

conta Berinawa, viviam nas árvores e tinham uma espécie de apêndice semelhante a um

"rabo": não cabe decidir aqui se seriam estes humanos com características animais ou o

inverso.

349
Em comum com outros povos indígenas do Purus, os deslocamentos contínuos que

caracterizavam o passado eram causados pelos conflitos incessantes, principalmente nas

regiões do Piranha, Sabuhã e Mamoriazinho, pela pressão exercida pela chegada voraz

da frente extrativista. Não à toa, o contato coincide com o início da patronagem e a

inserção dos grupos madi na economia de aviamento e com as epidemias que assolaram

o Purus em toda a sua extensão provocando o desaparecimento quase integral dos povos

da região. É preciso fazer uma ressalva, porém. Conquanto a deambulação fosse um

elemento importante no modo de vida dos antigos, a dispersão territorial própria da

sociabilidade desses grupos não se confunde com as migrações a que se viram forçados

com a chegada dos comerciantes que inundaram seu território em busca de sorva,

seringa, copaíba, carnes e pele de caça.

Antes do contato, o padrão residencial oscilava entre a concentração em malocas

comunais e a dispersão em acampamentos temporários de caça e coleta, movimento

relacionado à variação sazonal e ao calendário dos rituais ayaka. As aldeias eram

compostas por uma grande casa comunal, cada qual abrigava uma família extensa,

atualmente, em decorrências das baixas populacionais e migrações, há a concentração

dos sobreviventes em aldeias principais, mais densamente povoadas, de modo que a

mistura prepondera sobre as distinções dos grupos locais. O abandono das malocas deu-

se com a adoção das casas construídas segundo o estilo regional sobre palafitas;

recentemente, com os benefícios sociais, os Jamamadi substituíram o assoalho de

paxiúba pelo de tábua e passaram a fechar suas casas construindo paredes. Conforme

explicação corrente, o importante é ter portas para evitar que os parentes cobicem suas

mercadorias.

A presença dos brancos acirraram conflitos preexistentes entre os grupos madi, os

350
Juma149 e os Apurinã constituindo um fator adicional para o abandono dos territórios

tradicionais e a fuga para regiões mais protegidas nas imediações do rio Curiá,

localizado numa parte mais afastada dos grandes rios e que, por isso, tornou-se a região

de concentração e encontro dos remanescentes dos grupos. A respeito desse tema, os

relatos pouco variam. Contam que seus pais e avós desceram os rios e igarapés

abandonando as antigas malocas onde viviam seus antepassados: dos Nakanike

sobraram poucas pessoas da epidemia de sarampo que assolara uma grande maloca que

existia na cabeceira do Sabuhã; dos Hawa, Boti, Kosiba e Hi-Merimã restaram apenas

poucas pessoas cujos trajetos feitos em fuga mal podem ser reconstituídos. Com o

esgotamento das seringueiras mais próximas das várzeas e o aumento da demanda por

borracha, as matas de terra firme foram invadidas, empurrando os grupos madi em

dispersão abrupta para o interior. A confusão marca as lembranças do êxodo. Muitos

ficaram órfãos durante as fugas, e as memórias dessa época trágica são entrecortadas; na

tentativa de evitar os brancos, a vida adquirira um aspecto errático. O Mamoriá Mirim,

seu afluente Canuaru e o Piranha passaram a ser intensamente povoados por colocações

e barracões que deram origem a diversas comunidades ribeirinhas, algumas existentes

ainda hoje.

O grupo derradeiro a se juntar aos demais foi o Wayafi, vindo do Apaha, em razão de

um conflito com os Apurinã que os dispersaram em duas direções: um grupo partiu

rumo ao Curiá juntando-se aos Jamamadi e o outro alcançou os Jarawara no Cainã. O

conflito teria sido motivado pelo assassinato de uma moça Apurinã pelo pai de

Berinawa. Segundo seu relato, a moça não aceitara unir-se com seu pai que movido pela

raiva matou-a a tiros. A irmã da moça conseguiu escapar e voltou para a aldeia dos pais.

149
Considerados como o mais temível dos povos da região, os Jamamadi contam que eram atacados
em suas malocas e capturados para serem devorados pelos Juma que apreciavam sua carne.

351
Por vingança, os Apurinã atearam fogo nas malocas dos Wayafi que fugiram

abandonando o Apaha. Os que não conseguiram fugir foram mortos e comidos pelos

inimigos. Os mortos Wayafi foram desenterrados e suas carnes salgadas, para serem

transportadas para as aldeias dos inimigos, segundo Berinawa. É interessante a

semelhança desse relato com outro registrado por Silva Coutinho (1862:22):

Presentemente só a tribu Hyamamady domina as margens do Mamoriá-mirim. Os


Hypurinás tiverão aqui uma aldeia, porém desapparecerão em consequencia de um
acontecimento celebre. Durante muitos annos viverão em paz as duas tribus, posto que
não se relacionassem. Um dia, porém, achando-se um Hypuriná distante da sua maloca,
encontrou uma moça Hyamamady, que andava perdida. Este sucesso fez despertar a
desconfiança do moço, visto como era extraordinario, e por isso longe de tratar a moça
como era natural, levando-a á sua aldeia ou ao caminho dónde se havia transviado, sem
perguntar-lhe a que vinha, nem qual o seu destino, pega immediatamente do arco, e faz
voar a setta foi cravar-se nas costas da infeliz. Tratada asssim tão covardemente, a moça
correu chorosa, e depois de caminhar um dia pela floresta, chegou entre os seus. Este
attentado causou geral indignação na aldeia dos Hymamadys que levantou-se como se
fôra um só homem para vingar a donzella offendida. Em breve os Hypurinás estavão
cercados, e mui poucos escaparão ao rancor dos Hymamadys. A maloca desappareceu e
aquelles indios nunca mais procurárão as águas do Mamoriá-mirim.

Outro fator decisivo para a reunião dos remanescentes desses grupos e sua

sedentarização foi a chegada na década de 1960 do casal de missionários Bárbara e

Robert Campbell. A presença da Missão com seus medicamentos e infraestrutura dão

pistas para entender a formação de grandes agrupamentos, como é o caso da aldeia São

Francisco; sua dimensão e densidade demográfica contrariam o padrão de residência

dos assentamentos dos grupos madi.

352
10.2 "Jamamadi é só um nome"

Internamente, dizer-se Jamamadi somente funciona como uma identidade coletiva

porque supõe uma multiplicidade tácita, sua condição prévia de existência. A

homogeneização dos coletivos madi sob um único nome, iniciada com a chegada dos

patrões e intensificada pela ação missionária, encontra no Estado mais um fator para

reduzi-los a uma unidade genérica. 1963 é o ano da chegada do casal de missionários

americanos cuja ação fundadora marca a emergência dos Jamamadi, conforme a

convenção histórica adotada pelos professores das escolas municipais indígenas deste

povo. Aceitam a singularidade do nome porque sabem que este é o pressuposto para

acessar seus direitos básicos, sem esquecer, porém, que a função política do nome

restringe-se às relações fora da aldeia. Se dizem que são Jamamadi, o fazem somente a

fim de, em seguida, como ouvi algumas vezes, lembrar que "Jamamadi é só um nome",

insuficiente para abarcar a mistura que o transborda.

A despeito de assentirem contextualmente à solidez dos grupos sociais, por seu valor

funcional na macropolítica, "Jamamadi" apresenta localmente um valor nominal, na

medida em que permite distinguir e contrastar povos na escala regional. "Jamamadi é só

um nome" é uma frase dita como um lembrete em vista de refrear a tendência

explicativa que nos ronda, tentando repor o lastro dos nomes para transformá-los em

coisas nomeadas – um perigo sempre à espreita de reificar, por precariedade

metodológica ou conformismo heurístico a análise etnográfica. É só um nome e não

uma definição real, é o que parecem querer dizer ao negar conhecer o conteúdo do nome

"Jamamadi". Como notara Wagner: "[os termos] são significativos não por causa da

forma como descrevem algo, mas por causa da forma como contrastam com os outros"

353
(Wagner 2010:246).

Face aos brancos, as diferenças são amenizadas em benefício dos seus direitos enquanto

povo, mas se equivocam os que acreditam ser possível reduzir as divergências internas

por tais motivos. O horror que parecem nutrir pela unanimidade é o estorvo que

desponta no caminho de todas as ações e projetos pensados para atender aos Jamamadi

enquanto grupo, sem considerar suas dissonâncias constitutivas.

Na construção do polo-base de atendimento da Sesai, em 2014, na aldeia São Francisco,

uma parcela considerável opôs-se tanto em virtude do local escolhido para abrigá-lo –

ao lado dos bolsões de casas da parentela do antigo cacique geral, de um grupo Hawa do

rio Piranha –, como por ser uma afirmação imprescindível da autonomia política das

parentelas dissidentes. Passados mais de três anos, muitos preferem comprar seus

medicamentos na cidade a aceitar o atendimento das equipes do polo que, de resto, é

precário e negligente.

Outro fracasso foi a tentativa da Secretaria Municipal de Educação (Semed) de elaborar,

a toque de caixa, o Plano Político Pedagógico Indígena (PPPI) para a terra jamamadi.

Na ocasião, os coordenadores reuniram representantes das aldeias para lhes apresentar

os pontos que compõem o documento, na expectativa de que seriam prontamente

respondidos. A reunião prevista para ocorrer ao longo de dias não durou mais que

poucas horas porque os presentes se negaram a responder, exasperando os visitantes

vindos de tão longe. O documento pensado para nortear a "educação escolar Jamamadi"

não comportava a multiplicidade das versões concorrentes dos grupos locais, logo, a

história das diferenças subjacentes deveria ser apagada. Por mais que saibam extrair

354
algo dessa designação heterônoma, entre si o conteúdo do nome "Jamamadi" é

polissêmico, usado com extensão variável e convivendo com denominações

destotalizantes.

Em meio à algazarra das histórias dos antigos, a voz de Chagas se levantou para

reclamar que o nome dele não cabia no documento: "Eu vou ter que mudar meu

documento? Chagas Jamamadi é meu nome de documento, os outros não servem para

isso". Em seguida, veio dizer que ele é de outro "pessoal" chamado Adao Owa, algo

como "outro Adão", portanto, seu nome seria Chagas Adao Owa Jamamadi... Porém

isso era um problema segundo sua avaliação, porque o nome da Terra Indígena não

contém Adao Owa. Depois desse episódio, não voltei a escutar o nome Adao Owa, nem

mesmo de Chagas que parecia ter descartado essa relação. Assim, os nomes podem ser

esquecidos, relembrados, descartados ou inventados com igual facilidade já que não são

pensados para durar, mas para criar contrastes contextuais. A advertência de Wagner é

oportuna: "os problemas de recrutamento, participação e corporativismo (economia) são

nossos problemas, mas nós os levamos conosco quando visitamos outras culturas, junto

com nossa escova de dentes e nossos romances favoritos" (2010[1974]:243).

Talvez, antes da chegada dos brancos, fosse possível associar um coletivo a uma

localização e a um padrão de residência específicos, contudo, posteriormente, a

concentração dos remanescentes dos coletivos em aldeias centrais alterou sua dinâmica

endogâmica e autárquica. Isso descreve um processo comum já tratado por muitos

autores que trabalham com povos arawá, Pollock (1985), Lorrain (1994) e Gordon

(2006) para o caso Kulina; Koop e Lingenfelter (1983) sobre os Deni; Rangel (1994)

para os Jamamadi madiha; Huber (2012) e Aparicio (2013) para os Suruwaha. Porém a

355
tendência de formar aldeias compostas por membros de um mesmo grupo nomeado,

associado a uma espécie e a uma localidade específica, não se verifica para os

Jamamadi. Não há expectativa de manter uma relação imediata entre subgrupos e

organização social. Sem a preocupação de perpetuar unidades, os limites são flexíveis e

constantemente refeitos, sugerindo a inadequação das unidades sociais básicas de tipo -

madiha, -deni e -dawa entre os Jamamadi, à semelhança do que já afirmara Maizza

(2009:272-273) para os Jarawara: "Infelizmente, nunca teremos uma resposta exata da

parte dos Jarawara com relação a este tema, pois, como mencionado, eles jamais falam e

subgrupos nomeados do passado além do que o nome da etnia não é mencionado

nenhum documento histórico do século XIX e início do século XX". Bem como Bonilla

(2007) para os Paumari:

"Actuellement, les principaux groupes locaux paumari peuvent être considérés comme
des villages (Crispim, Santa Rita, São Clemente dans le Marahã, Ilha Verde) agglutinant
plusieurs groupes locaux. Ils se caractérisent également par un idéal d’endogamie clair
et exprimé comme tel (même s’il n’est pas forcément respecté) leurs membres se
reconnaissent en tant qu’appartenant au même groupe local. Mais ceux-ci ne sont
aucunement nommés à partir de noms d’animaux ou d’espèces végétales. Ces
caractéristiques ne nous permettaient donc pas d’en déduire qu’on avait affaire à des
sousgroupes de type madiha surtout parce que, une fois sur le terrain, les Paumari ne
semblaient attacher aucune importance à cette question. Interrogés sur une possible
existence passée de ces sous-groupes ils répondaient systématiquement, un peu
décontenancés par notre insistance, qu’ils avaient toujours habité tout le long du Purus
et qu’il n’existait pas de groupes nommé par des noms d’espèces naturelles, hormis les
Mamori kapamoarihi" (Bonilla 2007:304).

No passado, é possível que os coletivos fossem mais claramente localizados

territorialmente, o que é sugerido pelo padrão de deslocamento socioespacial e escolha

356
dos locais para abertura das aldeias familiares; destino tanto dos breves passeios das

famílias extensas, períodos de caça e coleta de frutos, como das longas estadias da

estação das chuvas. A escassez dos topônimos no repertório dos nomes dos grupos

madi, salvo o único caso dos Nakanike, poderia sugerir que diferentemente da inscrição

territorial que se supõe comum às unidades sociais arawa, a topografia não seja o cerne

da configuração social dos grupos madi.

As espécies plantadas, domesticadas ou não, são pistas deixadas pelos antepassados que

permitem esquadrinhar os vínculos pessoais com o território. As capoeiras de um avô,

os açaís e patauás plantados por um tio, as pupunhas plantadas por um irmão ou mesmo

uma castanheira que ficava próxima da casa de um parente - com a qual ele

possivelmente deveria ter relação, leia-se, com sua forma humana, abono, mesmo que

não tenha sido plantada por ele -, materializam as relações sociais no território. As

plantas são marcos mnemônicos da passagem dos parentes e, como seus filhos de

criação, perpetuam os laços de parentesco para além da vida de quem as plantou150. Os

Jamamadi gostam de passear para ir espiar, kakatoma, as plantas dos seus mais velhos,

assim, certificam-se do seu bom crescimento e reforçam o parentesco através do zelo

pelas plantas dos seus mortos.

150
As incrições feitas nas árvores pelos Suruwaha permitem uma comparação produtiva (cf. Huber
2012:79, nota 68): "Uma vez, participei de uma pescaria coletiva com timbó, e no momento do retorno
para a maloca, ao ajeitar minhas coisas fui exortada pelos meus vizinhos a fazer uma incisão circular na
casca das árvores onde tinha amarrado minha rede. Quando eu (sem ainda entender o por quê de tal
ordem) repliquei que não ia fazer isto porque a árvore ia morrer e eu não via motivos para isto, eles
insistiram e afirmaram que se eu não fizesse isto, eu morreria logo. Que se tratava de uma questão de
escolha entre a morte da árvore e a minha própria morte. Que eles achavam que eu deveria optar pela
primeira, porque de toda forma, uma vida humana se acaba logo. E que as árvores, depois da minha
morte, ainda teriam todo o tempo do mundo para crescer e multiplicar-se. Com seus conselhos, meus
interlocutores obviamente estavam tentando convencer-me da importância de “ deixar rastros (mesmo que
provisórios) de minha presença enquanto eu existisse”, e de possibilitar aos meus netos saberem “por
onde eu tinha andado” (nas palavras de minha interlocutora: “Você não quer que futuramente, teus ex-
descendentes conheçam teu ex-lugar (idukuni-kiaba)? Você se considera uma pessoa sem importância
(jadawa ini dumurini)?”.

357
10.3 Tika ede oni?: "qual o nome da sua árvore?"

A sugestão das traduções "qual a planta da tua origem?" ou "de qual árvore você

provém?" para a questão tiwa ede oni?, não remete a formas empíricas preexistentes

tampouco representam grupos que, no limite, podem nem existir - seria o caso do nome

Adao owa que escutei somente uma única vez?. Os nomes são mobilizados a fim de

criar figuras de alteridade transitórias e contextuais, nas palavras de Gow (Gow apud

Gordon 2006:42) "a invenção dos subgrupos é, no fim das contas, mais importante que

os subgrupos em si mesmos".

Nakanike e Wayafi são parcelas de ordem de grandeza sociológica distinta, não

parecem ter o mesmo estatuto que os demais. O primeiro designa todos aqueles grupos

que moravam à montante - nakani, "rio acima", + ke, suf. decl. -, nas cabeceiras do

Sabuhã; sua aplicação, portanto, não corresponde aos limites dos grupos locais. Wayafi,

por outro lado, refere-se ao grupo territorialmente localizado no igarapé Apaha e, em

consonância com os demais nomes de coletivos madi, alude a uma espécie vegetal, a

árvore waya (não identificada). Descarto, então, uma sugestão de Maizza (2012:27) de

acordo com a qual "yafi" pode funcionar como um sufixo que designaria unidades de

tipo subgrupo. Os Kosiba, por sua vez, são associados ao babaçu, kosi; os Hawa, ao

patauá, hawa; os Boti, ao ouricuri, boti. O mesmo sistema onomástico vegetal também é

empregado para denominar outros grupos: os Jarawara são chamados de Amara, a

palmeira inajá; os Apurinã151 são conhecidos como Wati, a flecheira; os Paumari são os

151
Os nomes jamamadi usados para se referir aos Apurinã são kimi (madi), "gente milho", de uso
menos frequente, e wati (madi), "gente flecha": o primeiro, por um motivo que desconheço, associa esse
povo aruak e ao milho, ao passo que, o segundo enfatiza seu comportamento beligerante (a forma
verbalizada desse nome é wati na. Sua forma transitiva é wati kana: "ir atrás", "atacar", "planejar
contra").

358
Wakari, alguns supõem tratar-se da árvore Awa Wakari (não identificada); e os Banawá

são associados à massaranduba, Kiriya.

Ao nome "hi-merimã", também pronunciado "hi-marimã", os Jamamadi parecem não

atribuir um sentido específico, no entanto, o nome que os Wayafi utilizavam para esse

grupo, Awabodi, possivelmente uma espécie de árvore (awa - subst. fem. árvore,

madeira, pau), corrobora com a hipótese da onomástica vegetal. A recuperação recente

da memória das relações com os vizinhos isolados, mantida nas entrelinhas,

reaproximou-os desse parentesco, que ressurge revelando a plasticidade dos nomes e do

fazer social nativo. Nomes/posições são reativados em identificações parciais numa

dinâmica que impede que o sistema se feche, o que aponta para o que Erikson chamou

de "incompletude intrínseca da vida social" (Erikson 2004).

A expressão ai yorotokana, "nós misturados", é evocada na imagem do roçado, modelo

da organização e da sociabilidade jamamadi atuais, e a sua diversidade agrícola é

comparada à mistura dos diferentes tipos de gente vivendo juntos nas aldeias. À

semelhança do roçado, no qual há diferentes cultivares, uma aldeia aglutina gentes de

grupos locais distintos. Reiterando a inadequação da noção de sociedade, a

inventividade do modo relacional Jamamadi está na flexibilidade dos arranjos desses

tipo de gente ao modo das plantas - a intercambialidade entre "roça" e "aldeia" não é

fortuita.

Outro desdobramento importante dessa aproximação é o abismo que ela cria em relação

aos isolados Hi-Merimã, aparentemente, avessos à agricultura. Recusar o cultivo

agrícola equivale a negar as relações de criação com os cultivares e suas almas, em

359
outros termos, negar a sociabilidade atual, pautada na rede genealógica que abarca os

Jamamadi e as almas das plantas, um parentesco atual terreno e aquele virtual celeste.

O roçado está permanentemente aberto a experimentações, a integrar novas variedades

agrícolas e, portanto, a novos tipos de gentes nessa rede de relações ilimitada, por

princípio. Evidentemente, a convivência na aldeia e no roçado não é pacífica, como

lembram: "O cará está sempre sufocando a garganta da banana que mora ao lado"; "A

bananeira está fazendo sombra no tabaco e não deixa ele crescer"; "Aquela castanheira

machuca com seus filhos, os ouriços, os yamata [cultivar agrícola] que estão vivendo

embaixo" etc. A base da comparação entre tabora, "aldeia", e fadara, "roça", não é uma

metáfora eventual pelo mesmo motivo que os grupos são nomeados segundo espécies

vegetais. Delimitar o que é tabora e fadara é uma questão de perspectiva: tabora, a

aldeia Jamamadi ou espaço doméstico, é uma cópia "falha", um arremedo possível, das

aldeias celestes das almas das plantas; fadara, roçado, é a aldeia dos cultivares, seus

filhos de criação. Neste sentido, o fadara é a extensão do espaço doméstico de cada uma

das família nucleares e, de fato, é uma aldeia, o yamata ka tabora, a "aldeia dos

cultivares". E o que se poderia dizer acerca das aldeias jamamadi, compostas pela

mistura de grupos nomeados segundo espécies vegetais, e as aldeias celestes das almas

de planta, yamata abono mai tabori?

Hipoteticamente, pode-se pensar que o processo de sedentarização concomitante à

concentração em aldeias coincidiu com a adoção da agricultura - a ausência de indícios

de atividade agrícola dos isolados Hi-Merimã vai nessa direção - e a modificação

profunda do modelo de sociabilidade que, se hoje é manifesta na imagem das roças,

constrasta com os nomes dos antigos grupos que carregariam resquícios da vida anterior

360
ao plantio, quais sejam, hawa, "patauá", kosiba, "babaçu", boti, "ouricuri", waya e

kiriya, os três primeiros são nomes de palmeiras e os dois últimos são árvores de grande

porte (não identificadas), todos aparentemente com baixo grau de domesticação. Não há

base substantiva a fim de atribuir qualidades de uma espécie epônima ao grupo

nomeado, pois esse sistema diz respeito às diferenças, e não a uma realidade objetiva -

toda sorte de zombaria aflora quando se questiona sobre a atribuição das características

das plantas aos membros de um grupo nomeado. Esse repertório etnonímico, embora de

relevância limitada, revela uma linguagem vegetal que opera com vigor em diferentes

âmbitos e com tal recorrência que sugere uma problemática mais interessante que

aquela da organização social dos subgrupos nomeados.

Em concordância com a análise proposta por Maizza, as aldeias póstumas das almas de

plantas fornecem pistas para compreender a lógica da organização social jamamadi. As

aldeias celestes expressariam os ideias de organização social, pois as almas das plantas,

de espécies vegetais distintas, têm aldeias próprias nas quais concentram um grupo,

geograficamente localizado. Na vida póstuma, o padrão residencial e as preferências

matrimoniais das almas dos mortos Jamamadi mostram que estes vivem e se casam com

as almas das plantas que cultivaram, raramente desobedecendo tais prescrições. A

divisão dos grupos em termos vegetais não se limita à vida terrena; antes, decorre de um

modelo celeste do qual emanam os ideais de endogamia, padrão residencial,

territorialidade, em suma, as aldeias póstumas das almas de plantas são onde as

prescrições tendem a ser respeitadas. As almas de pupunha se casam entre si e vivem

em suas aldeias, separadas das almas de banana, que por sua vez, também estão

separadas das almas de mandioca. Na descrição de Maizza sobre o céu Jarawara

(2012:273):

361
Quando nos voltamos para o céu Jarawara, conseguimos ver com mais clareza os ideais
da organização social do grupo. O céu é formado por diferentes tipos de gente, que
moram em lugares específicos (“pessoal do leste”, “pessoal do oeste”, “Lábrea”), que
possuem funções específicas (“pessoal do ferro”, trabalham com artefatos de ferro,
“pessoal do céu”, seguram o céu), ou que são todos filhos de plantas (“pessoal do
tingui”)332. Os entes celestes, que são canibais, brigam permanentemente entre si: os
inimigos sendo todos aqueles que não pertencem a uma mesma aldeia. Mas existem
também aldeias de aliados no céu, onde ocorrem as festas, como o chicoteamento dos
espíritos dos mortos. No céu, as aldeias possuem xamãs (que cuidam dos espíritos-de-
onças) e um chefe, que normalmente é o pai ‘biológico’ ou adotivo de grande parte dos
habitantes da aldeia. Os indivíduos pertencem ao grupo de seu pai, e aqueles que não
são filhos ‘biológicos’ do chefe pertencem ao grupo em que foram familiarizados, sem
deixar de ser o ‘tipo de gente/espírito’ que eram antes.Assim, no céu jarawara
encontramos uma forma de organização praticamente idêntica à que foi descrita para os
subgrupos nomeados do tipo madihá: grupos localizados espacialmente, com nomes de
plantas e artefatos; nomes que correspondem a diferentes ‘tipos de gente’.

A dinâmica social celeste com a produção da alteridade, a fabricação do corpo, as redes

rituais, a obediência às preferênciais matrimoniais e a belicosidade entre os grupos, com

intensos conflitos intergrupais e acusações de feitiçaria, compõem uma imagem

atualizada do "passado", digo atual porque não superado e por ter transformado-se com

a chegada dos brancos, a economia extrativista, a patronagem e a ação missionária.

Procurei mostrar que no céu as prescrições tendem a ser respeitadas: "no céu, todos se

casam certo, com o filho/a do seu koko"; "as aldeias não são misturadas como as daqui";

"os rituais ayaka são bem feito e as meninas são açoitadas", "meu tio se casou com duas

mulheres pupunha"152 etc.

152
Também em conformidade com a etnografia sobre os Jarawara, não há nomes de grupos que
façam referência a animais (2012:274). No caso Jamamadi, não há aldeias de almas de animais no céu
porque aos animais não se atribui "forma humana", abono, exceto curiosamente aos peixes, muito embora
as uniões matrimoniais com suas almas sejam raras.

362
Muito embora este capítulo tenha se focado nos aspectos históricos dos nomes dos

grupos jamamadi, reconheço que essa onomástica não pode ser abordada somente pelos

processos históricos, vide a extensão e reincidência do problema dos subgrupos em

outras áreas etnográficas. A ideia de 'grupo' ilumina apenas parcialmente um aspecto

menor da onomástica arawá. Responde apenas à versão em português da pergunta de

Abadias e não é suficiente para as várias respostas da versão indígena da questão, ou

seja, o modelo sociológico impõe limites para compreender as formas nativas da

organização social.

Um dos mateiros mais experientes da região disse certa vez, admirando a floresta

enquanto caminhávamos por um dos varadouros Jamamadi, que "cada planta é como

uma nação de gente". Torcendo sua formulação, chegamos à versão jamamadi: "cada

gente é como uma nação de planta". Há brasileiros, americanos, japoneses, jamamadi,

etc. da mesma forma que há sibati madi, "gente banana", yawida madi, "gente

pupunha", kona madi, "gente timbó", mowi madi, "gente castanha" etc. Quanto aos

brancos, não há dúvidas: "Jara não nasceu da terra, eles vieram do rio. Índio é que

nasce da terra e, por isso, é que precisa dela".

363
Considerações finais

"Hoje foi um dia ensolarado e pude tomar banho de sol...


me diverti um pouco hoje"153

O exercício proposto nesta tese consistiu em pensar a humanidade a partir dos aspectos

materiais, morfo-fisiológicos e das elaborações metafísicas jamamadi sobre as plantas.

Acredito que esta etnografia ao reposicioná-las no primeiro plano da análise produz

efeitos teórico-conceituais pertinentes para a reflexão sobre as socialidades indígenas

das Terras Baixas. Elenco abaixo as principais consequências decorrentes desta tese:

I) Dentro do quadro analítico perspectivista, a apreensão das plantas reproduz as

qualidades lógico-simbólicas animais a despeito de suas diferenças práticas-sensíveis.

Ocorre que no xamanismo vegetal jamamadi, o animal tem uma relevância reduzida se

153
Postagem da planta Midori-san em seu blog (atualmente inativo). Seu interesse não se deve ao
teor poético dos escritos da autora, mas ao esforço humano subjancente em antropomorfizar as plantas na
tentativa de aproximá-las.

364
comparada às plantas, cultivadas e não cultivadas. E o pajé não é o caçador, mas a

imagem máxima do horticultor; o que requer reconsiderar a lógica venatória que

permeia a descrição da prática xamânica em geral. A crítica à inflexão antropomorfista

sugere matizar a equação perspectivista e conduz à reavaliação de um de seus

pressupostos ideológicos que confere menor peso simbólico-cosmológico às plantas e as

subsume aos animais.

II) A inadequação da ideia de paisagem como um ruído de fundo das etnografias, um

espaço desumanizado e externo às relações sociais. Para os Jamamadi, não há tal

paisagem natural tomada como espaço a-social, inabitado e isolado. Mas, uma

multiplicidade vegetal imanente à socialidade.

III) São as plantas que compõem o solo pré-cosmológico que antecede o humano e o

pressupõe porque o mundo é um fato vegetal antes de ser um fato humano ou animal. A

humanidade jamamadi sendo derivada daquela das plantas leva ao reconhecimento de

sua precedência lógica-temporal.

IV) A crítica ao caráter teleológico da aquisição da agricultura, pressuposto subjacente a

muitas análises que implica na necessidade de apartar ou distinguir o selvagem do

cultivado, se desdobra na relativização da preponderância da ação humana em sua

relação com as plantas. Deste modo, busca-se uma imagem diferente daquela da

domesticação como narrativa triunfante de um processo unidirecional da evolução

humana através da conquista e exploração de outras formas de vida. Acredito que a

crítica à intervenção domesticadora humana também deve aplicar-se à noção correlata

de controle: tentei mostrar que a partir da concepção jamamadi do problema nas

365
interações entre humanos e plantas ninguém está incontestavelmente no comando.

Irrompe aqui uma imagem distinta na qual as interações entre humanos e plantas sugere

uma domesticação mútua em que ambos são afetados/constituídos ao mesmo tempo em

que transformam e agem no mundo.

V) As relações de criação que modelizam o parentesco com as plantas cultivadas, os

animais capturados e, em menor medida, as crianças adotadas não se expressam em

completa conformidade com a estrutura analítica da "predação familiarizante" e da

noção de domesticação associada. Novamente, a noção de controle, premissa de uma

assimetria subjacente ao modelo da familiarização, a despeito de sua ambivalência,

requer ser relativizada especialmente ao ser aplicada às plantas dada a inversão póstuma

dos vínculos de filiação entre humanos e plantas. Pois, pode-se pensar os humanos

controlando as plantas tanto quanto o inverso, leia-se, em humanos sendo domesticados

pelas plantas.

VI) A itinerância Hi-Merimã oferece uma perspectiva que põe em xeque a ideia da

passagem necessária do selvagem ao domesticado e seu isolamento parece configurar

práticas melhor descritas em termos de "antidomesticação". A recusa ativa do contato é

correlata à rejeição da relação com os cultivos. Em suma, o modo de vida dos isolados

Hi-Merimã e a relação com as plantas não domesticadas, fundamento do seu modo de

vida, volta a ser um contraponto à preeminência analítica da agricultura.

VII) Reconsideração política-filosófica da dignidade metafísica e direitos das plantas.

Sua valorização prática e preeminência simbólica contrastam com o desprezo à vida

vegetal no ocidente. Sobre isso, não é de todo fora de propósito repassar em linhas

366
gerais alguns momentos que elucidam a história da construção de tal menosprezo. As

considerações que se seguem organizam algumas referências que retraçam isso e, frente

a este cenário, esboçam formulações/questões em continuidade com as ideias da tese.

***

A chegada de Robinson em sua ilha, após o naufrágio, é assim narrada por Michel

Tournier em “Vendredi ou les limbes du Pacifique” (1967: 23-24):

Peu à peu la forêt s’épaissit. Aux épineux succédèrent des lauriers odoriférants, des
cèdres rouges, des pins. Les troncs des arbres morts et pourrissants formaient un tel
amoncellement que Robinson tantôt rampait dans des tunnels végétaux, tantôt marchait
à plusieurs mètres du sol, comme sur des passerelles naturelles. L’enchevêtrement des
lianes et des rameaux l’entourait comme d’un filet gigantesque.

Ele prossegue a descrição da caminha nesta vegetação densa na qual estão ausentes os

menores traços humanos e a presença de animais. Essa floresta se assoma ao céu como

uma “catedral verdejante”, contudo, toda a exuberância das plantas permanece na

indigência metafísica diante da falta da vivacidade animal. De acordo com o narrador, é

somente quando Robinson avista a silhueta de uma cabra que ele encontra a vida

propriamente. Esse animal é descrito como o primeiro ser vivo que o personagem teria

encontrado na ilha (idem 25). Dizendo isso, Michel Tournier só reafirma algo

sistematicamente formulado pelo pensamento ocidental.

367
O desencontro do olhar ocidental com o dos Jamamadi se torna patente nos modos

como cada um compreende as relações entre humanos e plantas. O olhar destes opera

uma rotação de perspectiva, de modo que esse fundo homogêneo e desinteressante passa

a assumir o primeiro plano da análise, abandonando o posto de paisagem. O que era

visto como um fundo verde disforme passa para o primeiro plano. Identificar as

espécies e saber seus nomes não eram, portanto, detalhes etnográficos, longe disso,

pessoas e plantas partilham de certa igualdade e reconhecer a importância desse fato era

o ponto de partida para me relacionar com eles. Essa valorização e a preeminência

simbólica das relações com as plantas contrastam com o desprezo à vida vegetal no

ocidente. Sobre isso, não é de todo fora de propósito repassar em linhas gerais alguns

momentos que elucidam a história da construção de tal menosprezo. Não vem ao caso

fazer aqui o processo da filosofia, colocando-a no banco dos réus. Mas convém repassar

alguns momentos da questão.

Georges Canguilhem, escreve no prefácio do livro de François Delaporte, Le seconde

règne de la nature (1979:7), que “vegetar” rapidamente veio a significar “inércia e

apatia” - não sendo esse seu significado primevo -, sugerindo ou conferindo com isso

uma imagem não muito amigável das plantas.

Aristóteles encarava o vegetal como “um ser dotado de uma ‘alma’ nutritiva, mas não

sensitiva, levando uma vida somente metabólica, colocando-o, segundo uma hierarquia

dos seres, apenas acima do mineral.”154

154
Por alma, é preciso entender aqui princípio de vida, e não princípio espiritual .Ver "À quoi
pensent les plantes?", de Jacques Tassin (2016:12).

368
Francis Hallé afirma, sem medo de ser desmentido, que “o ser humano, não importa a

época e não importa o lugar, sempre preferiu os animais às plantas”155. Para São Tomás

de Aquino, até mesmo os animais mais brutos são mais nobres que as plantas (apud

Nealon xii). Ainda que distantes, pode-se encontrar a mesma atitude em menosprezar os

vegetais em Heidegger, que contribui com seu quinhão para esse recalcamento,

silenciamento ou mesmo exclusão, quando afirma que ("Conceitos fundamentais da

metafísica: mundo-finitude-solidão" 2011[1929]) as plantas são ainda mais “pobres em

mundo” (weltarm) que os animais.

Buffon, no segundo volume de sua História natural (2007:138), opõe-se ao sistema de

classificação lineano que confere um valor ontológico às categorias classificatórias

(espécie, gênero, ordem etc.), de sorte a refletir a própria ordem da natureza. O autor diz

que

il n’y a aucune différence absolument essentielle et générale entre les animaux et les
végétaux, mais que la Nature descend par degrés et par nuances imperceptibles d’un
animal qui nous paraît le plus parfait à celui qui l’est le moins, et de celui-ci au
végétal. Le polype d’eau douce sera, si l’on veut, le dernier des animaux et la première
des plantes. […] On peut donc assurer avec plus de fondement encore que les animaux
et les végétaux sont des êtres du même ordre, et que la nature semble avoir passe des
uns aux autres par des nuances insensibles, puisqu’ils ont entre eux des ressemblances
essentielles et générales, et qu’ils n’ont aucune différence qu’on puisse regarder
comme telle.

155
Ver "Éloge de la plante: pour une nouvelle biologie", de Francis Hallé (1999:17).

369
A descoberta do pólipo de água doce fez com que essa criatura rapidamente fosse

tomada “como o há muito tempo buscado elo perdido entre as plantas e os animais”156,

o que de certa maneira conferiu maior força a ideia de cadeia ininterrupta dos seres e,

por conseguinte, tornou mais difícil sua separação e a classificação. Onde termina o

reino vegetal e onde começa o reino animal? Contudo, mesmo reconhecendo que não há

nenhuma diferença absolutamente essencial e geral entre os animais e os vegetais,

Buffon, em sua concepção confessamente antropocêntrica (contra Lineu), insiste em

considerar que os animais ocupam uma posição superior aos vegetais, arbitrando uma

separação entre os dois reinos. O animal vem a ser “a obra mais completa da natureza”,

ficando apenas atrás do homem, que continua sendo “a obra prima”157.

Subtraídas as potencialidades reconhecidas às formas de vida humana e animal, as

plantas mal parecem estar vivas. Aspectos que as plantas compartilham com os seres

inanimados, quais sejam, a privação de sentidos, a incapacidade de locomoção e a

ausência de consciência obscurecem a inteligibilidade de seus processos vitais,

camuflando sua vitalidade sob aparência de inatividade158. As plantas nos oferecem uma

imagem plástica da morte, alguém que está em “estado vegetativo”159 perdeu a

capacidade de expressão de sua consciência, permanece alheio, incapaz de sentir dor ou

156
Ver "A grande cadeia do ser", de Arthur Lovejoy (2005:232). E de Georges Gusdorf, conferir
"Dieu, la nature et l’homme au siècle des lumière" (1972:284-285).
157
Ver "Comparaison des animaux et des végétaux" na Histoire naturelle, de Buffon, tomo II.
(2007:134).
158
Sobre a precariedade da vida vegetal, conferir Nealon 2016:14-27.
159
Jennett B, Plum F. Persistent vegetative state after brain damage. A syndrome in search of a
name. Lancet1972; i:734–7. O autor propõe a expressão “vegetative state” como a mais adequada para
caracterizar os pacientes que sofreram dano cerebral e permenecem em coma, ele faz referência ao
Oxford English Dictionary que define vegetate como “to live a merely physical life, devoid of intellectual
activity or social intercourse” e vegetative é usado para descrever “an organic body capable of growth and
development but devoid of sensation and thought”. Essa condição pode ser igualmente descrita como
vegetative mindless state.

370
reagir aos estímulos externos, assim, comparado às plantas um paciente nessa condição

passiva é um morto-vivo. Seriam as plantas semivivos ou quase-vivos? Desde a

antiguidade, a capacidade autônoma de movimento é uma das distinções cruciais, e mais

imediata, entre os seres animados e os inanimados. Aristóteles (Cf. De anima)

reconheceu que as plantas manifestam três dos quatro tipos de movimentos: elas mudam

seu estado, crescem e estão sujeitas à corrupção, mas não alteram sua posição no

espaço. Essa imobilidade lhes conferiria uma existência precária, uma expressão

imperfeita e incompleta da vida.

Planta e fixidez são termos que se confundem no pensamento ocidental160, todavia,

desde a Antiguidade são reconhecidos certos movimentos às plantas. A questão é saber

se isso testemunha uma ação controlada pela planta ou se expressa o resultado de um

processo puramente mecânico e imediato (ação-reação). Uma das definições de sentir de

Buffon – que pretende, como Descartes, explicar mecanicamente todas as ações dos

animais – é a seguinte: “se nós entendermos por sentir somente se movimentar por

ocasião de um choque ou resistência, concordaremos que a planta chamada sensitiva é

capaz desse tipo de sentimento, como os animais.”161 A dormideira ou sensitiva

(Mimosa pudica), cujos folíolos das folhas se juntam quando estimulados pelo toque ou

calor, era já bastante conhecida na época de Buffon e suscitou bastante interesse na

medida em que parece demolir a fronteira entre os animais e os vegetais, pois capaz de

movimento e de sensação, de sensibilidade162. Muitas plantas testemunham movimentos

160
O que parece contrastar com a metáfora da "alma selvagem" como murta inconstante/ informe
versus a "alma ocidental" pétrea figurada no mármore, segundo o texto de Viveiros de Castro (cf. 2002:
183-264).

161
Buffon. Histoire naturelle. « Histoire générale des animaux ». Tome II. Paris : Éditions
Champion, 2008, p. 104.

162
Ver "Le herbier des philosophes", de Jean-Marc Drouin (2008:197).

371
semelhantes: elas fecham suas folhas à noite, reabrindo-as de manhã. Assim como os

partidários da teoria do animal-máquina, muitos viram – dentre eles Buffon – nesse

movimento da sensitiva o mero efeito mecânico de um choque, fundando a hipótese do

que se poderia chamar de "plantas-máquina".

A desvalorização metafísica das formas de vida vegetal163 vai de par com sua

objetivação extrema, entretanto, sua violabilidade não é matéria de debates éticos, como

é o caso dos que defendem os direitos dos animais e sua liberação164. Mais do que isso,

é possível dizer que a violação e a exploração (de animais ou plantas) acontecem apenas

com a condição prévia de se esquecer ou negar a dignidade de vivente a esses seres.

Como não lembrar aqui dos cartesianos do século XVII ou de entusiastas de algumas de

suas ideias sobre a questão da animalidade e os autômatos, a hipótese dos animais-

máquinas desprovidos dos atributos da humanidade? Um desses autores (Fontaine apud

Pariente 1985:53) afirma que os “senhores de Port-Royal” conheciam e até mesmo

discutiam frequentemente entre si o tema sobre os animais presente na obra de

Descartes: “quase não havia mais solitário [como eram chamados os autores de Port-

Royal] que não falasse de autômato. Não se fazia mais um caso ao bater em um

cachorro. Dava-se nele indiferentemente golpes de bastão e ría-se daqueles que se

apiedavam dessas bestas como se elas tivessem sentido dor.”

163
Para uma abordagem filosófica distinta do lugar das plantas no pensamento cf. “A filosofia das
plantas (ou pensamento vegetal)” de Andrzej Marzec (2016), disponível em http://chaodafeira.com/wp-
content/uploads/2016/06/cad_46-1.pdf
164
O tema conta com vasta bibliorafia: com Plutarco em seu tratado "S’il est loysible de manger
chair"; passa por Montaigne em sua famosa "Apologie de Raimond Sebond", dentre outros autores. Ver
também Peter Singer, A liberação animal (2010).

372
A proclamação da lei Grammont da França – que criminaliza os maus-tratos a animais

domésticos em via pública – aconteceu apenas em 1850. É, todavia, difícil reconhecer

nos dias de hoje esforços semelhantes que tentam repensar a relação humano-planta. Do

mesmo modo que o ocidente rompe simbolicamente com a ideia de homem-máquina

com a proclamação da referida lei, é preciso romper com a ideia de planta-máquina.

Cito como exemplo os esforços do governo suíço que vão nesta direção ao propor o

debate acerca dos direitos das plantas – que não fez senão despertar os preconceitos já

conhecidos e proliferar mal entendidos (ver “The dignity of living beings with regard to

plant: moral consideration of plants for their own sake” 2008).

Demasiado mundanas e insignificantes, é na alteridade absoluta das plantas que está

enraizada sua instrumentalização. Disponíveis ao uso e exploração ilimitadas, elas

acabam reduzidas às monoculturas transgênicas de soja, às plantações de cana e cereais

para produção de etanol e biodiesel, a objetos de experimentação teratológica da

biologia molecular, à matéria bruta que será consumida por humanos e animais, em

suma, estão destituídas de si, subsumidas ao consumo através do qual encontrariam seu

fim. Hegel, por seu turno, diz: “The silent inner being of selfless nature attains in its

fruits the stage where nature, duly self-prepared and digested, offers itself as material

for the life which has a self. In its being useful for food and drink it reaches its highest

perfection” (Hegel 1979:436-37). Desprovida de interioridade165, de alma ou de

165
Rousseau (na sétima caminhada de seus Devaneios) também nos fala sobre a exterioridade
fundamental das plantas - porém, sem instrumentalizá-la (1959:1063-1064; 1964:198) -, em oposição aos
reinos mineral e animal. Segundo o filósofo, as riquezas do reino mineral estão enterradas no seio da
terra, como que escondidas para não tentar a cupidez humana. Para alcançá-la, o homem deve mergulhar
nas entranhas da terra. Já o reino animal é acessado com mais facilidade, no entanto, a condução de seu
estudo é difícil de ser praticado, pois, sem a agilidade para seguir os animais em liberdade e sem o gosto
de mantê-los em cativeiros, é incontornável “estudá-los mortos, rasgá-los, desossá-los, remexer suas
entranhas palpitantes”. Por isso, “o estudo dos animais não é nada sem a anatomia; é por ela que se
aprende a classificá-los, a distinguir os gêneros e as espécies” (1959:1068). O horizonte que se avista a
partir dessa metodologia é a da ação invasiva marcada pela crueldade: "quel appareil affreux qu’un
amphitheatre anatomique, des cadavres puans, de baveuses et livides chairs, du sang, des intestins

373
identidade, resta a planta uma pura corporalidade a ser apropriada e consumida por

animais e humanos.

Sendo assim, seu valor estaria, então, apenas na utilidade para o homem? O valor da

madeira da árvore estaria, afinal, em tornar-se casa, a página de um livro ou meramente

a lenha de uma fogueira? A completude da vida das plantas, segundo este raciocínio,

depende do uso que se lhes atribuem os humanos em sua destruição. Rousseau já havia

percebido o caráter absurdo desse pensamento: "ne disons point dans nôtre imbécile

vanité que l’h[omme] est le Roi du monde, que le soleil, les astres, le firmament, l’air, la

terre, la mer sont faits pour lui, que les végétaux germent pour sa subsistance, que les

animaux vivent afin qu’il les dévore" (Rousseau 1969:1100). Defrontar-se com o

desprezo da filosofia pelas plantas requer uma crítica mais ampla de seus pressupostos

humanísticos/antropocêntricos ou excepcionalidade ontológica que a humanidade se

arroga.

A crise ambiental com suas taxas crescentes de desmatamento é um efeito correlato do

pensamento e da limitação dos humanos em perceber ou ver (na maioria das vezes

fingem ou preferem não ver) qualquer semelhança entre sua vida e aquela das plantas.

Ou ainda, por uma falta em relativizar o privilégio que a humanidade se autoatribui em

sua relação com o mundo, donde o julgamento negativo do valor das plantas e o lugar

subalterno que ocupam na versão moderna da “cadeira dos seres”. Insisto no fato de que

dégoutans, des squeletes affreux, des vapeurs pestilentielles! Ce n’est pas là, sur ma parole, que J. J. ira
chercher ses amusemens" (idem:1069). Afastando-se do quadro medonha de uma sala de anatomia,
Rousseau lembra e prefere a sutileza do estudo botânico, que não tem nada do horror do estudo animal
nem da insalubridade das empresas mineradoras. Rousseau se dedica aos objetos que são apreendidos em
sua exterioridade, sem precisar escavar o interior de um bicho qualquer ou da terra, valendo-se tão
somente de uma pinça e uma lupa: "Les plantes y sont naturellement. Elles naissent sous nous pieds, et
dans nos mains pour ainsi dire" (ibdem).

374
o movimento de reconhecimento da dignidade da vida animal já vem sendo traçado.

Mas o que dizer das plantas?

Como se viu, o olhar sobre as plantas se definiu a longo da filosofia por uma lógica

de seu rebaixamento metafísico. Recalcadas e excluídas, as plantas foram relegadas a

um segundo plano, a uma segunda natureza. O ocidente obstinadamente afirmou esta

exclusão por meio da qual se constitui e se reconhece. Poderia multiplicar aqui os

exemplos. Não é, todavia, o caso de repetir uma história já conhecida. Cabe ressaltar

que os nomes dos autores e doutrinas não constam aqui com um valor substancial.

Esses nomes-próprios indicam apenas o nome de um problema, a saber, a

incapacidade do ocidente perceber no reino vegetal outra coisa que não um fundo

inesgotável esperando para ser explorado. Há uma homologia estrutural entre todos

eles: apesar de historicamente tão distintos, cada um à sua maneira, menospreza as

plantas e seus textos são sintomas de uma maneira de pensar.

Seguindo esse mote, considera-se que o verde é “uma simples tintura de pano de fundo

que não retém nossa atenção” (Tassin 2016:14), como a cena de abertura na qual figura

Robinson Crusoé. Uma mera paisagem. Jean-Marc Drouin (2008:9) observa que a

vegetação é uma realidade tão familiar em seu viés decorativo e, ao mesmo tempo, tão

distante em seu caráter agentivo. Se sua única função é paisagística ou decorativa, não é

de todo absurdo pensarmos nossa relação com as plantas resvalando nos limites de uma

distopia vegetal. A obra do artista mexicano Alberto Baraya (versão vegetal de um

bestiário fantástico), "Herbario de plantas artificiales", coloca questões interessantes

para além daquelas relativas aos sistemas de classificação e metodologia científica

aplicados à botânica. O artista parte em expedições para coletar espécimes de uma

375
botânica fictícia desvelando uma visão distópica de flores e folhas de plástico. A vida

das plantas, leia-se, "ornamentais", com seu perecimento incontornável, é um empecilho

para a finalidade decorativa que lhes foi relegada, substituídas, por isso, pelas tristes

cópias impassíveis ao tempo. Emblema da mesquinhez humana que não bastando

considerar a vida vegetal imperfeita, encontra na sua "parca" existência motivos para

preferir seu arremedo de plástico.

Delaporte, por sua vez, inicia seu texto (2011[1979]:11) dizendo que, “em geral, é a

história da fisiologia animal que fornece um modelo de inteligibilidade” para a “história

da fisiologia vegetal”. Não restringindo-se ao domínio da fisiologia, empresta-se

sobremaneira o léxico animal para descrever o vegetal. Essa metodologia fundada na

analogia com o animal é outro lugar comum do pensamento ocidental. Mas é preciso

seguir indagando: é o animal uma boa referência para pensar a planta ou a

“vegetalidade”?

Esse método analógico tem suas limitações. Para citar apenas um, o “zoocentrismo” que

apaga as peculiaridades e as idiossincrasias da vegetalidade. Se for verdade que a

inteligibilidade do reino vegetal desenvolveu-se enormemente na comparação e na

analogia com o mundo animal e, ainda, se os animais até bem pouco tempo também

foram excluídos e silenciados (compartilhando uma história ditada por um

antropocentrismo), não é, todavia, menos verdadeiro que esse método obstruiu ou

atrasou maiores desenvolvimentos do conhecimento botânico. É preciso romper com a

linguagem fundada na animalidade quando se quer apreender alguma verdade sobre o

vegetal. Já passou o tempo de reconhecer a importância e a potência das plantas para o

pensamento, motivo que perpassa esta etnografia. Como escapar do antropocentrismo

376
(ou em sua forma variante, o antropomorfismo) e mesmo do zoocentrismo? Como

reconhecer as plantas pelo que elas são, sem encará-las através da imagem do animal ou

de nós mesmos?

Reconhecer a precedência lógica-temporal das plantas é um dos resultados mais

significativos dessa etnografia, de modo que se a humanidade pertence às plantas, é

incontornável reorganizar as cartas conceituais e a ordem da cadeia dos seres e, ainda,

mais fundamental e provocativo, considerar que humanidade emerge da vegetalidade.

Da etnografia depreendem-se alternativas extraídas da relação dos Jamamadi com as

plantas, haja vista que o autotrofismo não é avesso à predação; que a suposta fragilidade

de sua constituição esconde sua resiliência; que o humano pode derivar sua existência e

fazer uma imagem da vida a partir das plantas. Ao torcer a questão, não se trata mais de

pensar o que haveria de humano nas plantas (sentimento, dor, prazer, crescimento,

mobilidade, comunicação, agência, pensamento etc.), pois ao conferir dignidade

ontológica a elas faríamos algo semelhante aos Jamamadi e, de maneira menos óbvia,

passaríamos à pergunta: o que há de vegetal nos humanos166?

***

166
Sem que essa pergunta reconduza às imagens da morte (o estado vegetativo), privação,
catividade, subserviência ou fragilidade (vide o verbo deflorar no sentido de desvirginar, abusar ou
estuprar), como no seguinte trecho de O mistério da estrada de Sintra, de Eça de Queirós (1881): “Oh
doce vida das árvores e das plantas! passividade da relva, irresponsabilidade da água, pacífico sono dos
musgos, suave pousar da sombra! Quantas vezes me consolaste, e me ensinaste a sofrer calada!”. Talvez
fosse o caso de num experimento como no livro de Han Kang, escritora sul coreana ganhadora do Man
Booker prize deste ano, que inspirada pelo verso de Yi Sang “I believe that humans should be plants”, se
imaginou virando árvore em The vegetarian: “do you know how I found out? Well, I was in a dream, and
I was standing on my head…leaves were growing from my body, and roots were sprouting from my
hands…so I dug down into the earth. On and on…I wanted flowers to bloom from my crotch, so I spread
my legs; I spread them wide…” (20016:82).

377
Fecho essas notas com um breve exercício inspirado na contribuição recente de

Strathern (2017) focada na figura do rizoma, tal como formulada por Deleuze e Guattari

na introdução de "Mil Platôs" (1980), acreditando ser posível alargar a questão proposta

pela autora em vista de abarcar também a Amazônia: "what would the (tropical) cultivar

look like – how would one describe it – if one’s model were the rhizome?" (idem:30). A

favor da tentativa, sabe-se que à semelhança das práticas de cultivo das plantas

alimentares na Papua Nova Guiné (Strathern 2017:31) também na Amazônia a

propagação vegetativa, por clonagem, é preferida àquela por sementes - sem com isso

excluir ou reduzir a importância da propagação por seleção lá e aqui -: "even though

people know that many vegetatively propagated plants can be reproduced from seed,

cultivators in New Guinea propagate them vegetatively, a preference that has been

documented elsewhere in the world" (Denham 2017: 41 apud Sthathern 2017:34).

Aqui, as plantas são imagens e exemplos de ideias, não casos botânicos particulares,

de modo que a oposição central que permeia o argumento não é binária ou axiológica.

A ontologia da transcendência figurada da árvore e seu cultivo por sementes - sucessão

genealógica, linha, hierarquia etc - contrapõe-se à uma ontologia da imanência

condensada nos rizomas e sua dispersão por fragmentação do indivíduo. Essa ideia se

deve à oposição traçada por Haudricourt em "L'origine des clones et des clans", de

1964, apropriada por Deleuze e Guattari em vista de distinguir as filosofias da

imanência daquelas da transcendência e as implicações da clonagem como um modo

de vida e pensamento distintos do ocidente:

Occident, agriculture d'une lignée choisie avec beaucoup d'individus variables; Orient,
horticulture d'un petit nombre d'individus renvoyant à une grande gamme de « clones

378
». N'y a-t-il pas en Orient, notamment en Océanie, comme un modèle rhizomatique
qui s'oppose à tous égards au modèle occidental de l'arbre? Haudricourt y voit même
une raison de l'opposition entre les morales ou les philosophies de la transcendance,
chères à l'Occident, celles de l'immanence en Orient: le Dieu qui sème et qui fauche,
par opposition au Dieu qui pique et déterre (la piqûre contre la semaille). (Deleuze
&Guattari 1980:28)

Sem buscar estabelecer contornos botânicos para o conceito, a autora delimita uma

primeira definição do rizoma melanésio resultante da ação distintinva das pessoas em

"cortar", aspecto que as aproxima das plantas, em uma linguagem vegetativa: "What is

distinctive about people, as opposed to other kinds of being, including nonhuman

metapersons (“spirits”), is what they have in common with plants: they are planted

from cuttings. In Hagen it is not just that they are sometimes called “cuttings people”,

it is their recognized name for themselves (Strauss 1990)".

A partir desta breve recapitulação, qual poderia ser a imagem do rizoma no caso

amazônico? O fato escatológico e os discursos sobre os processos vitais jamamadi dão

os contornos de uma ideia de vida que se expressa no crescimento desordenado,

desmesurado, a despeito de qualquer finalidade, características consideradas

problemáticas do ponto de vista filosófico desde a antiguidade e que serviu para

rebaixar todo o reino vegetal à categoria dos seres de puro crescimento, ou de alma

vegetativa, porque alheias à temporalidade histórica dos humanos e animais. "As

pessoas crescem como as bananas ou mandiocas"; "Vivemos e morremos como as

plantas"; "A alma-coração é plantada para a vida rebrotar no céu" [aqui apesar da

aproximação com a semente o poder imagístico é o clone]; "Gente e banana é a mesma

coisa", foram alguns dos enunciados que escutei repetidas vezes. Acredito que essas

379
comparações rizomáticas também permitem pensar que das roças jamamadi emergem

figuras alternativas da vida e outras imagens de pensamento.

380
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394
Anexos

Vocativo 'Meu x' 'Seu x' 'X 'Nosso x' Tradução


dele/dela'
abi okobi / abi badi / oda ka abi pai
oka abi hika abi
ami okomi / ami madi / oda ka ami mãe
oka ami hika ami
ayo okoyo / ayo anidi ayo irmão mais
oka ayo velho
soho oka soho soho sori soho irmão mais
novo
adi okadi adi hika adi adi irmã mais
velha
asima okasima asima hika asima asima irmã mais
nova
ewe okadao tikadao bidi oda ka ewe filho
ewe okoto tikoto bide oda da ewe filha
abise oko bese / abise badise abise tio
oka abise
amise oko mese / amise madise oda ka tia
oka amise amise
- oka wabo wabo wabori wabo cunhado
(homem
falando)
kadi oka kadi kadi hika kadi kadi cunhada
(mulher
falando)
naki oka naki naki hika naki / naki amigo/
nakiri primo/cunhado
- oka bidimi tika bidimi hika bidimi bidimi sobrinho (a)
filho da irmã

395
- oka koma koma hika koma koma sogro (a) /
genro/ nora
koko** oka koko koko hika koko koko sogro antes de
casa/ tio/
irmão da mãe
aso** oka aso aso hika aso aso sogra antes de
casar/ tia
- oka nodi nodi hika nodi nodi neto (a)
idi oka idi idi hika idi idi avô
aki okaki / aki hika aki aki avó
oka aki
- oka yibote tika yibote hika yibote yibote esposa
/ fadi
- oka yibote tika yibote hika yibote yibote esposo
/ maki
- oka yibote tika yibote hika yibote yibote one cunhada
one one one (homem
falando)
- oka yibote tika yibote hika yibote yibote owa cunhado
owa owa owa (mulher
falando)
anihi oka anihi tika anihi hika anihi anihi prima (o)
dã/maki* oka dawa tika dawa hika dawa dawa sobrinho (filho
do irmão)
- okotone tikotone hikotone oda ka tone sobrinha (filha
do irmão)
* vocativos em desuso
** o par aso/koko pode ser substituído por aki/idi sugerindo um processo de
consanguinização dos afins de G+1 ao longo do casamento.

396
Canto da alma do timbó, kona abono

Wayoma do pajé D. cantado à noite. Os trechos em itálico são a fala da matrinxã, aba

abono, e os sublinhados são da alma do timbó, kona abono, plantado pelo pajé D.

eu mergulhei e revirei a água, falou o kona abono

a matrinxã está correndo (disse o kona abano)

eu vou correr atrás dela

se eu pegar a matrinxã, vou dar para você comer, disse o kona abono ao pajé

a matrinxã quase escapava

a matrinxã quase escapava, mas eu peguei ela para você comer

você veio atrás de mim e me pegou porque eu estou cansada, disse a matrinxã

Kona abono estava segurando o braço da matrinxã e disse: eu já matei o seu pai

você deve fazer um panaco para carregar a sua matrinxã, disse o kona abano ao pajé

Aba abono, a matrinxã, disse: o kona abono matou outra irmã minha

agora eu não tenho mais irmãs.

vocês guerreiam muito com a gente, eu perdi muitos parentes

eu estou sozinha agora, disse o aba abono para o kona abono

quando minha irmã estava aqui, nós brincávamos à tarde na água, disse o aba abono
lembrando da irmã

agora eu não brinco mais [as pessoas imitam os peixes na água]

talvez minha irmã possa estar na água ainda, eu vou procurá-la

se eu encontrar, nós vamos brincar outra vez

minha irmã mais nova, desapareceu.

minha irmã morreu, depois kona abono voltou e matou outra irmã minha.

eu estava correndo sem parar, disse aba abano

397
não, eu não sei correr, disse a mãe.

eu vou tentar correr na água, disse a mãe.

ela correu para onde a filha estava

a filha perguntou: como você está, mãe?

tudo bem, eu cheguei

se Kona abono tivesse chegado na minha casa, ele teria me matado [kona abano está
caçando].

as matrinxãs estão vivas [disse o kona abono]

eu estou correndo atrás delas e não as alcanço

agora, elas estão na casa delas brincando com a mãe.

você me planta mais na sua roça

quando eu ficar grande, eu vou pegar a matrinxã para você [falou o kona abono para o
pajé]

eu vou atrás delas

eu vou enganar a matrinxã

eu vou dar fruta para ela, ela vai comer e vai morrer

eu acho que ela não tem comida, quando ela estiver com fome, será fácil matá-la

eu vou matar muito peixe quando eu crescer

vocês me conhecem.

Faha boyo omatiya faha boyo omatiya fahaya boboyo ama oni fahaya boboyo ama oni

fahaya boyo omatiya fahaya boyo omatiya kona abono atinawa wahe kona abono

atinawa wahe faha boyo omatiya faha boyo omatiya kona abono atinawawahe kona

abano atinawawahe aba kananini aba kananini oka ababanani oka ababanani kiyoba

tinaho kiyoba tinaho kona abano atinawawahe atinawawahe oka aba kananane kananane

398
kiyoba tinaho kiyoba tinaho oka aba kabibanaha kabibanaha kiyoba tinaho kiyoba

tinaho kona abano atinane atinane aba kananini kananini aba kanana ati amanini aba

kanana ati amanini a,abi a, abi hibatiya onabanini hibatiya onabanini abi aba onabanini

aba onabanini abi aba onabini aba onabini yabasiya aba kawahi aba kawahi yabasiya

yabasiya oka sima fawanama kini oka sima fawanama kini aba atinairihi aba atinairihi

yawa mai momowa yawa mai momowa oka sima fawa namakini oka sima fawa

namakini yawa ihi yawa ihi aba atinawawahe atinawa wahe yawa mai momowa yawa

mai momowa oka sima to-towama omatiya to-towama omatiya oka sima fawa namakini

fawa namakini oka si-sima oka si-sima oka sima to-towama omatiya to-towama omatiya

oka sima fawa namakini fawa namakini oka sima fawa nini fawa nini oka sima

fawanamakini fawa namakini oka sima to-towama onahi to-towama onahi oka sima

fawa nama kini oka sima fawa nama kini oka sima to-towama omatiya to-towama

omatiya oka sima aba waini oka sima aba waini kana onahi kana onahi kana oni kana

oni wami maraya ka-kana ama oni ka-kana ama oni wami maraya wami maraya ka-

kana ama oni ka-kana ama oni wami maraya wami maraya kana onahi kana onahi faha

kanani owatoterani kanani owatoterani faha kanani to-tomi obe-ya kanani to-tomi obe-

ya faha kanani ti-tomi onahi to-tomi onahi aba hasina ati nawa waini atinawa waini faha

kanani to-tomi obeya to-tomi obeya kana onahi kana onahi aba hasina atinawa waini

atinawa waini faha kanani to-tomi onahi to-tomi onahi aba hasina atinaro atinaro aba

hasina kanani eya nini eya nini aba hasina ye nini ye nini

399
Mito de Yawina

Mako bote mai kake mai amonake mete moneni fai-ya mai kake mai kobo nake mete
moneni hini Yawina-ya, Yawina-ya mai kobona,mai-ka atona mai kake, mai kobona
mai-ya mai winake mete moneni. Mai-ya mai winake mai-ya mai hiyara, mai wayoma,
mai tafa, bani mai-ya mai kaba, na mete moneni mai amoni 10 tohi-ya mai tokoma mete
moneni. Ai ye kafama nima niya oda tabaro-ya oda tokoma boneni mai ana, hini mai ati
nima mai tokoma mete moneni Ami tikoto hima tinama bone, tina hima tinami bana?
Ane mata monane. Okoto oda tofamama boneni okoto nabadi nafe, hini owa-ya okoto
dori wada boneni ana mete moneni oka sima tosawima boneni ane, mata monane. Idi
yawina kawine mata monane hika ami hima hina, ati yanana mete moneni Ami osawima
bone dai ana, idi Yawina itebama kare, ana mete moneni Yawina ite bonane, tiwa hare
tisawima boneni Anidi ane mata monane.Anidi ati-ya mita, ati bodi a arira, maki-ya
hana mete moneni Yawina tiwi-ta mata bawini okomi oda tofamama bone, anani ana
mete moneni hehe ami dai tofa mamahi ane mata monane. Ami ati yana kabote na mani,
hibati-ya oka yamata ora bata neni ane mata monane oka sibati raba tarihi, oka sami
soki rihi, nani ane mata monane.Yamata hawa tini-ya tiyo toyahi fadi ana mete moneni
oyo tabani owa amoni ai ye kare nima niya oko make bani ane mata monane. Hehe ana,
hika yifo-ya kadaba, hika hisiri bide-ya hika yifo-ya weye kana, na mete moneni mai
yama tonama mai-ya tosawima mete moneni. Mai toka temika, fara hawi-ya awa ita
mete moneni hawi-ya hika awa ita-ya hika yamata kawita mete moneni fowa toha, sibati
toha, yawida toha, sami toha na, hawi-ya yamata kawiyi tokoma mete moneni. Sibati
tina kawi-ya, fowa iso tine kawi-ya, yawida mone tine kawi-ya ne mata monane hai fadi
eye yoto, yamata mai hina haba, kawiya-ya awe, ati yanane mata monane Ka! hai idi
Yawina-ka yamata-ya mai nanaba mai nani mai ihi tohawa, ane mata monane. Yawina
ati amose, fadi tosawima hika yamata rabati-ya hawa towe-ya ai ye kare nima amoni ne-
ya kamaki bona ane-ka yamata-ya mai nana habinihi ane mata monane. Hima mai ai
towasi maki-ya mai ai fiya kibanani ane mata monane fadi bidi-ya weye nimisa, mai
towa kamaki kita mete moneni mai kamaki hare mete moneni yamata-ya mai naka maki
harero. Mai tokomake, yamata abi toko farama mete moneni hini hawi-ka yamata aba-
ya mai awa, mai kama mete moneni mai kobonama, Yawina-ya hana mete moneni
Yawina, Yawina ana mete moneni Yawina-ka sima mete moneni fai-ya hanamaro. Hika
sima hahine, sima eme tiniti ane mata monane Yawina ha tika yibote naba maidi hiwa

400
kama mone tika yamata-ya yokanini tika yamata abi tiwamahi tika yawida kame, ti-
tinakosene mai tokoma mai inihi mai ana mete moneni. Mai fanawi-ya a anai mata
mona, ani ani ane mata mona, nakiri-ya haneri naiki ai fame, yamata mai hina haba
mone owama mati-ya ane mata monane hehe ai fama bani ane mata monane. Mai towa
kama mete moneni fadara-ka yamata aba-ya mai awa bonehe hika yamata aba-ya
towame, ati yawe mata monane Ka! mai okakora oka yamata-ya mai nana habinihi hiba
mai okako wai bonehe, Yawina ati yawe ane mata monane. Makobote mai towa
kamake, mai tokoma mai tame-ya mai kasawe mete moneni mai towa kamake, tara wai-
ya awe, tara-ya tinakose,

401
Relato do adoecimento de Beterina

Kiya ona, owaba kosa, makobote afiyao-ya ofo-yani yama owara meteni. Makobote
yama owarani, afiyao owa-ya kobo kaneno-ya odafe maroni. Makobote yara owa-ya
mai towa kiyoma, Kasai dori-ya ofore maroni. Kama-ya owa-ya mai nafore, ofore
maroni. Makobote kamaki marine kamaki owa-ya hane, tiwa-ya yara mai keteni ? ane
marine. Haha mai kama keni mai amanikani ona maroni ati omite, yara owa-ya mai
keterani ona maroni. Tiwa-ya hemedi da ona boneni ane, hemedi-ya owa-ya wikone
marine owa teme-ya hemedi-ya wiko, owa mano-ya wiko, owa noko-ya wiko, owa
widi-ya hidi tokana nemarine. Fa-fai-ya yama nafi owato wama maroni fai-ya ka-
katome itari, ati yanane marine dai-ka inawa mediko tohe wadare mane ? ane marine.
Hehe oda-ka inawa toha tene ane marine fare-ka dai-ya naka makine ane marine fai-ya
hiyare sabewa-ya watarire marine. Hini-ya noko kone tai kase marine yara toware
marine tati kone seokani-ka tisora ihi tokoma maroni. Mai-ya owa awi oware mai-ya
owa mara maroni makobote ina madi kamaki kamarene ona maroni. Tiwa owama tasa
bani ane kamare marine makobote fana hini tiwa nimana-ta kama bisa maroni noki
seokasi bara maroni fara-ya awe, ha yara makarini ? ane marine. Kamatasa, owa ye-ya
wara tona, ati yanana maroni tika yama kome fawana boneni ana maroni okoyo tiwa-ya
nakame tiwini ? ana maroni. Hehe oda awene ane marine makobote kama oda ka-
katoma fawa namaki tasa maroni fa-fai-ya mai oda awamara maroni. Yama nafi
honamara,yara-ta mai tono kosa bisa maroni makobote, femeira kama hemedi yome
tiraniha ana maroni. Hemedi yome orani ona, owati-ya kamine, fana hemedi-ya
yomerani ane marine hemedi-ya tika yibote-ya oda danaba, tika yibote-ka yama kome
wadarani mai ana maroni. Yama kome tika yibote-ya nafi-ya hemedi oda dana bani oda
hatini-ya mai ana maroni sibarni ane marine hemedi yome ora maroni. Madi mai toko
makeni owa-ya mai-ka hemedi-ya mai dani bisa maroni owa mano-ya mai hidi tokana,
owa iso-ya mai hidi tokana, nibisa mai owama bisara maroni. Kasai dori-ya mai fawana
maroni mako bote okitama oda ka-kama hini oda-ka yobe-ya oda amokani 3 toha
maroni makobote ai towa kama mina boneni ane, fa-fai-ya oda ka-kama maroni. Haha
mai dai nima mete wineni idi Bada-ta mai hiwa bisa mete wineni mai owamara maroni
mai eye oda kama mete wineni. Fa-fai-ya eya yama na maroni oki tama maroni Feye
mani.

402
O contato e a chegada dos patrões

As narrativas do contato coincidem com aquelas que tratam da chegada dos brancos e

da frente extrativista ao território jamamadi (ver capítulo 9). Apesar de salientarem um

episódio pontual que inaugura o início das relações com os brancos, em tais relatos, o

contato é menos um momento circunscrito que um processo que perdura abarcando

sucessivos contatos com diferentes patrões. O início da relação com os brancos é

descrito nos termos de um "amansamento" através do aprendizado do uso adequado das

ferramentas, da adoção do vestuário e das mudanças alimentares. Para uma audiência

composta por brancos, em geral, enfatizam o contato como a passagem de uma vida de

"abandono" para a "assistência", da errância na mata para a vida sedentarizada nas

aldeias em proximidade com os brancos. Detentores exclusivos das mercadorias, os

brancos, patrões ou não, são pensando como moralmente investidos da obrigação de

compartilhá-las.

Jacó foi o primeiro patrão a chegar às malocas do Curiá. Nessa época, eles não

conheciam os brancos, suas mercadorias e suas doenças. Logo que chegou, contam,

vestiu roupas por cima das tangas de envira que usavam e mostrou como quebrar

castanhas para que fornecessem a ele. Em troca das castanhas, ele lhes oferecia roupas:

calças e blusas de manga comprida, para os homens, e vestidos, para as mulheres.

Depois da morte de Jacó, os Jamamadi do Curiá seguiram trabalhando com seu filho,

Chita, para quem forneciam copaíba, além da castanha. Sabira, esposa de Badá, que era

criança nessa época, diz que: "nós estávamos aprendendo com Chita e passamos a usar

o sal que ele levava".

403
O terceiro patrão do Curiá foi Alcides, casado com Nega; esse casal apadrinhou muitos

Jamamadi, batizando-os e mudando seus nomes. Ele vinha num navio a vapor, Sabira se

recorda do pavor provocado por seu apito quando se aproximava. Os Jamamadi do

Curiá trabalharam para outros patrões que paulatinamente os foram "amansando", neste

processo ressaltam o aprendizado do uso adequado das ferramentas de metal e as

mudanças dietéticas com o consumo de novos produtos, notadamente o sal, o açúcar, o

café e a cachaça.

Nas imediações do Mamoriazinho, morava um patrão conhecido como Biá. Depois

dele, contam ter chegado um patrão chamado Zé Lino para quem os Jarawara também

trabalharam. Os Jamamadi contam que foi esse o patrão que teria reunido os Jarawara e

os "amansado". Zé Lino era casado com Akoda, uma mulher Jarawara, e com ela teve

vários filhos: Margarida, Luisa, André, Chico Antônio, José, Marco, Valdemar,

Raimundo Soares e Nene. Quando moravam na boca do igarapé Missão - hoje território

Jarawara -, os Jamamadi escutaram Zé Lino quando voltavam de uma pescaria, então,

correram para contar para os demais. Eles não conheciam aquela língua e sabiam não

ser a dos Jarawara. "Se eles não forem bons, voltaremos para a aldeia", disse o pai de

Marco, um pajé Jamamadi já falecido.

Zé Lino conhecia um pouco da língua Jarawara por causa de sua esposa, Akoda. Ela o

acompanhava e foi conversar com os Jamamadi, alguns já a conheciam e se

impressionaram ao descobrir que ela havia se casado com Zé Lino. Akoda contou que

os brancos faziam muita guerra com eles - o grupo que hoje mora na aldeia Casa Nova.

Todos corriam e se perdiam no mato, portanto, ela teria se casado com ele numa

tentativa dos Jarawara de parar as brigas, explicam os Jamamadi. Nesse primeiro

404
encontro, o patrão Zé Lino mostrou o sal e os ensinou a comer comida temperada,

lembram os Jamamadi.

No Aripuanã, afluente do Piranha167, o primeiro branco a chegar foi Chico Cudeiro

(Cordeiro?). O cacique Badá conta que era criança quando Chico chegou à maloca em

que morava trazendo muitas mercadorias, roupas e ferramentas de metal; as armas de

fogo demoraram um pouco para aparecer. Todos correram assustados e dormiram no

mato no dia de sua chegada. A mãe de Badá dizia tratar-se um espírito inamadi. Em

pouco tempo, Badá foi trabalhar para outros patrões em diversas colocações, por isso,

raramente pode retornar para seu lugar de nascimento. Um dos patrões para quem

muitos Jamamadi trabalharam nessa região foi Firmino Cunha. Foi a mando desse

patrão que Badá, Manduca e Manoelzinho fizeram contato com os Banawá na década de

1950.

Segundo Erinawa, um patrão chamado Antonico foi o branco que primeiro contatou a

maloca do Sabuhã na qual viviam seus avós, porém a liderança, de aproximadamente 65

anos, diz que foram os irmãos Titino e Marcelino os patrões que efetivamente os teriam

"amansado". Ele conta que ao voltarem de uma caçada, os homens encontraram a rede

de Titino atada próxima ao porto. Eles voltaram para a maloca para avisar o restante do

pessoal, a maioria só ouvira falar dos brancos, pois eles ainda não circulavam no

Sabuhã naquele tempo. Erinawa conta que os irmãos levaram de tudo: sal, terçados,

linha de amolar etc.

167
Pela proximidade com o rio Purus, a porção sul do território jamamadi, notadamente a área do
igarapé Mamoriazinho e seus afluentes, foi onde ocorreram os primeiros encontros com os patrões e
seringueiros. Os registros históricos corroboram essa tese. A chegada dos brancos na porção
correspondente à bacia do rio Piranha ocorreu numa segunda frente, alguns anos depois, pelos sorveiros,
castanheiros, pescadores e, por fim, madeireiros. A extração de seringa da terra firme e das várzeas do
Piranha era inexpressiva, haja vista sua qualidade inferior, dita "fraca", para a produção da borracha
quando comparada às espécies predominantes da H. brasiliensis das várzeas de água branca do Purus.

405
Titino e Marcelino tinham muito interesse nas peles dos animais e pagavam muito por

elas. Com a pele de uma onça pintada, conta, era possível conseguir uma arma de fogo.

Os brancos chegavam gritando, conta Erinawa: "Não, não, voltem! Ei, ei, vem cá!". O

pessoal corria com medo dos brancos e da sua gritaria. Eles esperavam escondidos, no

caso dos forasteiros não irem embora, eles voltavam no dia seguinte para espiá-los.

Passados o medo e o estranhamento, aproximavam-se para conhecer os visitantes. "Eles

eram bons, davam muitos presentes, ensinavam a atirar e a beber café. Naquela época,

tínhamos medo de café porque parecia com o veneno que usamos para caçar. Titino

tirava muito sarro do meu avô por ele não conseguir atirar com a arma de fogo, também

porque não aguentava beber a cachaça que ele dava", prossegue Erinawa. Titino e

Marcelino os ensinaram a usar as ferramentas de metal, forneceram novos cultivares

para seus roçados e os ensinaram a cozinhar a carne, pois, naquele tempo, só se comia

carne moqueada.

Depois apareceu no Sabuhã um patrão chamado Clóvis. Ele veio acompanhado de seu

filho Isaias e de seu neto, Jorge, que matou a tiro uma menina Jamamadi chamada

Marina, fato que causou o conflito que acabou por expulsá-los dessa maloca. Com a

saída de Clóvis e sua familia, vieram Chicó, sua esposa Otilia e seu filho, Manuel, que

os ensinaram o que são os dias da semana e que não se deve trabalhar no sábado e no

domingo, contou Fono Jamamadi. Por menos tempo, também estiveram nesse afluente

do Piranha os patrões Raul, Raimundo Machado, Raimundo Cachero e Henrique

Nazaro, que levou um padre, pela primeira vez, para batizar os Jamamadi.

406
A geração com idade superior a 70 anos ainda tem memórias do tempo em que vivia-se

nas malocas, usavam-se tangas de envira e algodão trançado - yayafa, a tanga feminina,

e kanadafa, a tanga masculina -, e perfurava-se as orelhas e o septo nasal. Tatiwake,

esposa de Arnica, é saudosa da beleza dos adornos e pinturas corporais, das tangas

sempre tingidas de urucum com esmero e dos cabelos impecavelmente cortados. Todos

usavam a diadema de penas yaki, as braçadeiras de pena de arara kanamo, e, nas

ocasiões festivas, as mulheres dançavam com os chocalhos de conchas arakasi presos

em seus tornozelos.

A beleza, a fartura e a generosidade desse tempo são contrastadas com uma imagem

simultânea de penúria e abandono porque marcada pela ausência de remédios, de

ferramentas e da presença dos brancos. Em grande medida, seus vizinhos isolados são a

imagem duradoura desse tempo e o discurso jamamadi sobre eles enfatiza as ameaças a

que estão sujeitos por esse modo de vida errante, à mercê das intempéries, das doenças e

de acidentes168.

168
De forma mais ou menos assertiva, os Jamamadi são contrários à política da Funai de não fazer o
contato com os Hi-Merimã. A respeito desse tópico bastante delicado, voltarei adiante com mais vagar,
por ora, adianto alguns fatores que subjazem e embasam tal posicionamento, a saber: I. Muito embora não
seja suficiente nem razoável atribuir à presença da Missão na área jamamadi a única fonte para justificar a
crítica ao isolamento, o proselitismo missionário exorta o contato e contribui de maneira evidente para
tanto. A estratégia discursiva que recorre a temas como "solidariedade", "sofrimento", "culpa", dentre
outros, dá pistas para fundamentar essa hipótese; II. A FPEMP nutriu por muito tempo uma desconfiança
explícita sobre os Jamamadi, de modo que o diálogo escasso, o não compartilhamento das informações
obtidas nas expedições de vigilância e monitoramento os mantiveram afastados da atuação do órgão e de
seus propósitos, levantando dúvidas sobre um possível desaparecimento dos Hi-Merimã. Soma-se ainda o
fato de que nos últimos cinco anos não houve nenhum encontro entre os dois povos, tampouco foram
achados vestígios recentes dos vizinhos isolados; III. A interrupção abrupta da outrora intensa circulação
de pessoas entre os grupos, expressa nos laços de parentesco, no xamanismo e em práticas rituais comuns,
é considerada com pesar pelos Jamamadi; IV. Finda a época dos conflitos intensos e das epidemias,
causas decisivas das migrações do passado, os Jamamadi argumentam que não haveria motivos
atualmente para prosseguir os incessantes deslocamentos; V. A participação de alguns Jamamadi em
expedições organizadas por missionários e patrões com o intuito de contatar povos isolados, como de fato
ocorreu com os Banawá há várias décadas a mando do patrão Firmino Cunha, é mencionada em vista de
justificar um conhecimento prévio, fundamentado na experiência, que os habilitaria a lidar com os Hi-
Merimã no caso do contato; VI. Por fim, a evitação do contato é também tomada como a reafirmação da
moralidade característica dos brancos cujo traço maior seria a avareza, expressa na recusa em
compartilhar as tecnologias que somente eles detém.

407

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