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QUADERNI FIORENTINI

per la storia del pensiero giuridico moderno

35
(2006)

TOMO I

giuffrè editore milano

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ANTO
u NIO MANUEL HESPANHA

PORQUE E
u QUE EXISTE E EM QUE E
u QUE CONSISTE
UM DIREITO COLONIAL BRASILEIRO

1. A autonomia do direito colonial como reflexo do pluralismo do ordenamento jurı́-


dico europeu de Antigo Regime. — 2. A ambivalência das ordens jurı́dicas. Divergên-
cias doutrinais. — 3. A possibilidade de impugnação jurı́dica das leis régias. —
3.1. Contratos, privilégios e normas gerais. — 3.2. A criação de normas particulares:
costumes, graça e privilégio. — 3.3. Direito estrito e ordens normativas próximas. Fun-
damentos doutrinais. — 4. Flexibilidade do direito em função da graça. — 4.1. A ex-
tensão do arbı́trio (julgamento de equidade) dos magistrados. Magistrados interesses
locais. — 5. A lei geral cede a abusos que, pela repetição, se transformam em práticas
e costumes locais. — 5.1. Direitos dos corpos inferiores. — 6. Direito comum e ordem
jurı́dica colonial.

Desde há uns anos que o tema das relações entre a sociedade
metropolitana e a sociedade brasileira se tem vindo a libertar de al-
gumas imagens historiográficas translatı́cias, adoptando modelos de
análise e pontos de vista que se distanciam dos imaginários nacio-
nalistas e que incorporam perspectivas mais modernas da historio-
grafia geral.
Neste texto, abordo uma questão que interessa particularmente
aos historiadores do poder e das instituições e cuja compreensão
necessita de alguns esclarecimentos que a história do direito de An-
tigo Regime pode fornecer.
O meu ponto o seguinte. Para se falar de um direito colonial
brasileiro — com a importância polı́tica e institucional que e isto
tem —, é preciso entender que, no sistema jurı́dico de Antigo Re-
gime, a autonomia de um direito não decorria principalmente da
existência de leis próprias, mas, muito mais, da capacidade local de

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preencher os espaços jurı́dicos de abertura ou indeterminação exis-


tentes na própria estrutura do direito comum (1).
De algum modo, a tendência para andar à procura do leis es-
peciais para o Brasil quando se quer comprovar existência de um
direito próprio é induzida pelo modo como a historiografia espan-
hola tratou tradicionalmente o chamado ‘direito das uIndias’. Na
verdade, só muito recentemente — a partir de um livro do historia-
dor argentino Vı́tor Tau Antzoategui (2) — é que a concepção de
‘direito das uIndias’ como complexo de leis da coroa foi substituı́da
por uma concepção de direito construı́do pela prática — eventual-
mente, pela prática dos tribunais — nos espaços que o direito co-
mum clássico deixava à regulamentação local, consuetudinária ou
judicial.
Eu certo que a monarquia portuguesa emitiu algumas leis para o
Brasil, embora em menor quantidades do que as editadas pela mo-
narquia espanhola para a sua América (3). Em todo o caso, se se
procurara pelo direito do Brasil colonial, é minimamente aı́ que ele
se encontra. Diria mesmo que a maior parte destas providências

(1) Lauren BENTON, em The Legal Regime of the South Atlantic World, 1400-
1750: Jurisdictional Complexity as Institutional Order, « Journal of World History »,
11.1, 2000, pp. 27-56, constrói sobre esta base a sua tese de que o direito comum ‘ibé-
rico’ (que, na verdade, pouco tinha de especı́fico em relação ao restante direito comum
seiscentista e setecentista, sobretudo no Sul da Europa) constituiu o principal factor de
unificação dos impérios atlânticos de Portugal e da Espanha.
(2) Vitor TAU ANZOATEGUI, Casuismo y sistema, Buenos Aires, Instituto de Inves-
tigaciones de Historia del derecho, 1992; v. também Eduardo MARTIRÉ, Un Derecho
Propio de un Derecho Particular, el Derecho Indiano, a presentado ao Congresso sobre
“La pervivencia del Derecho Común” organizado por la Univ. Católica Argentina, pu-
blicado en la « Revista de Historia del Derecho », 29, 2001, pp. 333-363.
(3) O projecto Ius Lusitaniae (www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt), dirigido por Pedro
Cardim e A | ngela Barreto Xavier, disponibiliza em suporte electrónico, uma boa parte
dessa legislação. Outra anda dispersa, até porque nem sempre revestia a forma mais so-
lene, a de carta de lei, consistindo frequentemente em cartas régias, provisões, porta-
rias, alvarás, regimentos, contendo instruções, por vezes dirigidas a uma pessoa em
concreto. De facto, para além de tudo, nunca podemos perder de vista que o actual
conceito de lei compreende, nas práticas formulares de Antigo Regime, uma vasta plu-
ralidade de tipologias documentais. O próprio Códice Costa Matoso (v. nota seguinte)
lista uma séria importante de providências normativas, em geral relativas aos distritos
aurı́feros de Minas (p. 352-370).

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vindas da corte indiciam — quando não as referem expressamente


— zonas de incumprimento do direito real e, portanto, de existên-
cia de um direito próprio.
De seguida, lembraremos os conceitos de direito comum que
permitiam que as práticas locais se tornassem direito. Mostraremos,
depois, como esta abertura às particularidades locais era polı́tica e
doutrinalmente antipática ao poder da coroa, quer elas se referis-
sem à metrópole, quer se referissem às colónias. Salientaremos, em
todo o caso, como estas virtualidades de diferenciação periférica do
direito, embora existissem em todos os lugares das monarquias,
eram enormemente potenciadas nas situações ‘de fronteira’, como
as colónias. Ao longo do texto, daremos alguns exemplos — quase
todos referentes a Minas e provenientes do Códice Costa Mato-
so (4) — do vigor destas práticas particularistas periféricas que as
fontes continuamente referem como divergentes, ou mesmo contrá-
rias, ao direito do Reino.

1. A autonomia do direito colonial como reflexo do pluralismo do


ordenamento jurı́dico europeu de Antigo Regime.

Na sociedade europeia medieval e moderna, conviviam diversas


ordens jurı́dicas — o direito comum temporal(basicamente identi-
ficável com a doutrina da tradição romanı́stica, incorporada numa
a mole imensa de textos, invariavelmente escritos em latim, e exis-
tentes nas bibliotecas das universidades e dos tribunais europeus),
o direito canónico (direito comum em matérias espirituais, obede-
cendo basicamente à mesma natureza formal) e os direitos dos rei-
nos, constantes, antes do mais, de leis que representavam a vontade
do soberano, mas também do direito estabelecido pelos tribunais
do Reino (praxe ou estilo dos tribunais).

(4) Códice Costa Matoso. Colecção das notı́cias dos primeiros descobrimentos da
Minas na América que fez o Doutor [...] Ouvidor-Geral do Ouro Preto, que tomou posse
em Fevereiro de 1749, coord. geral de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria
Verónica Campos; estudo crı́tico de Luciano R. de Almeida Figueiredo, S. Paulo, Bi-
blioteca Mário de Andrade, s/d [?], 2 vols.. Citações ulteriores: CCM.

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A esta situação de coexistência de ordens jurı́dicas diversas no


seio do mesmo ordenamento jurı́dico tem-se chamado pluralismo ju-
rı́dico (5), que significa, portanto, a coexistência de distintos com-
plexos de normas, com legitimidades e conteúdos distintos, no
mesmo espaço social, sem que exista uma regra de conflitos fixa e
inequı́voca que delimite, de uma forma previsı́vel de antemão, o
âmbito de vigência de cada ordem jurı́dica. Tal situação difere da
actual — pelo menos tal como ela é encarada pelo direito oficial —,
em que uma ordem jurı́dica, a estadual, pretende o monopólio da
definição de todo o direito, tendo quaisquer outras fontes jurı́dicas
(v.g., o costume ou a jurisprudência) uma legitimidade (e, logo,
uma vigência) apenas derivada, ou seja, decorrente de uma deter-
minação da ordem jurı́dica estadual.
Referimo-nos, no parágrafo anterior, basicamente a três ordens
jurı́dicas: o direito secular comum (tradição romanı́stica), o direito
canónico (a tradição canonı́stica) e o direito secular próprio (direito
do Reino). Estamos, no entanto, a simplificar muito. Diremos bre-
vemente porquê.

2. A ambivalência das ordens jurı́dicas. Divergências doutrinais.

O direito comum, quer o secular, quer o eclesiástico, eram


quase exclusivamente de origem doutrinal; e, por isso, estavam
cheios de controvérsias, de argumentos de sentido diferente, des-
embocando em soluções contraditórias. Pode dizer-se que o tecido
do direito não era feito de regras, mas antes de problemas; para a
resolução dos quais os juristas dispunham de fontes contraditórias,
logo nos textos de direito romano, e de argumentos de sentidos
contrários. A abordagem do caso concreto era, por isso, feita de
uma forma tentativa, confrontando o caso com vários argumentos
(ou figuras de direito) possı́veis, cada um dos quais justificaria uma
solução diversa.

(5) Sobre o tema da arquitectura do ordenamento jurı́dico medieval, exemplar-


mente, António Manuel HESPANHA, Cultura jurı́dica europeia. Sı́ntese de um milénio, ed.
bras., Florianópolis, Fundação Boiteux, cap. 6.3. Também, com muito maior detalhe,
Paolo GROSSI, L’ordine giuridico medievale, Bari, Laterza, 1995.

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Dou um exemplo tirado de uma decisão real (embora aqui algo


simplificada), que não é brasileira, embora trate de um assunto com
relevância para o Brasil. Se um pai, em testamento, legou uma es-
crava a um filho e, à data da morte testador, desta tinham nascido
cinco filhos, estes fazem parte do legado ou devem ser considera-
dos como incluı́dos na massa da herança, a dividir pelos herdeiros?
A resposta a esta questão depende da qualificação doutrinal que fi-
zermos dos objectos ‘escrava’ e ‘filhos de escrava’. Se estes forem
tidos como frutos da coisa legada, não entrarão na herança, de
acordo com a regra de direito comum de que os frutos seguem o
destino da coisa principal. Se forem considerados como objectos
independentes da sua mãe, não se consideram legados e entrarão,
por isso, na partilha do remanescente da herança (6).
Eu certo que existia o princı́pio de que se devia decidir pela opi-
nião comum, incorrendo numa violação deontológica, e até em pe-
cado, o jurista que imprudentemente se afastasse da solução mais
frequentemente adoptada (7). Porém, apesar de se conceber, assim,
a prática (local) como uma ‘ciência digestiva’, a escolha entre solu-
ções diversas, quaisquer delas justificáveis em direito, criava uma
grande margem de liberdade na altura de decidir. E u isto que ali-
menta a burocracia judicial ou para-judicial: memoriais jurı́dicos,
litı́gios judiciais, alegações dos advogados das partes, sentenças con-
traditórias, recursos ou, puramente, a recusa de obedecer às ordens
mais terminantes do monarca ou dos seus oficiais, mesmo de alto
nı́vel, com base numa opinião jurı́dica distinta.
A incerteza do direito não é igualmente boa ou má para todos.
Normalmente, serve os mais poderosos, os que têm capacidade de
influenciar, de subordinar, de sustentar um litı́gio durante anos em
tribunal ou, pura e simplesmente, de se estribarem no parecer de
um letrado por sua conta para desobedecerem ao direito estabele-
cido. Como um sinal do seu poder de sustentar litı́gios em tribunal,

(6) Inspiro-me num caso semelhante (sentença da Casa da Suplicação, de 1673)


em Manuel A u lvares PEGAS (ed. Luı́s A
u lvares Pegas), Commentaria ad Ordiantiones
(Adittiones ad Lib. 1 & 2), Ulyssipone, Valentino da Costa Deslandes, 1703, p. 138,
n. 36.
(7) A.M. HESPANHA, Cultura, cit., cap. 6.6.2.3..

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o abade de um mosteiro do Norte de Portugal (Santa Maria do


Bouro) levava consigo, quando viajava, uma mula carregada com
todos os processos que tinha pendentes.
E
u , por isso, com este espı́rito que devemos ler as queixas, fre-
quentes no Brasil ou em Portugal, sobre a incerteza do direito e a
liberdade dos juristas (ou juı́zes) na sua interpretação. Disso se
queixam normalmente os mais fracos ou, por outro razões, os fun-
cionários mais zelosos do interesse da coroa.
Os problemas começavam com a própria interpretação das leis.
E
u que as próprias leis do Reino não estão da salvo deste entendi-
mento de que o direito tem muitas faces, abrindo mais questões do
que aquelas que fecha.
O que alguns (mas não outros) querem é, portanto, que haja
um norte, uma regra certa, nas interpretações: « Assim como o
leme é o governo da embarcação, assim são os despachos para os
contadores, e faltando nestes a clareza a respeito das condenações
já se põem os contadores a adivinhar, e disto nascem dúvidas cau-
sadas pelas interpretações que cada um dá aos despacho, conforme
lhe faz mais conta para se lhe diminuir o que se tem contado ou ao
menos dilatar a causa, com o pretexto de embargo de erros de con-
tas [...]. Só assim se poderão evitar muitas maldade e ladroeira que
fazem, e com muito grande excesso, os oficiais dos contratos e fa-
zenda real » (CCM, I, p. 699). Num papel do povo amotinado de
Minas, dirigido ao governador D. Pedro de Almeida Portugal,
conde de Assumar, em 1720, reclama-se um « Regimento para os
salários [...] de sorte que se forem lá [no Rio] 4 vinténs de prata
não duvidem [no Brasil] que sejam de ouro » (CCM, I, 372).
Pode dizer-se que a interpretação distorcida era a tanto legiti-
mação formal como o princı́pio do abuso aberto dos poderosos lo-
cais contra a lei: « querem que os senhores do senado — mais exi-
gem os povos de Minas no papel antes citado — moderem as con-
denações tão exorbitantes que costumam fazer sem Regimento nem
lei [ ... e ...] requerem mais que nenhum ministro faça vexações ao
povo com o seu os despachos violentos, procedendo à prisão e
fuga, sem as circunstâncias do direito, e que em tudo se observe
com ele a lei do Reino » (CCM, I, p. 373).

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3. A possibilidade de impugnação jurı́dica das leis régias.

Mas havia mais motivos de incerteza. E u que, até aos meados do


séc. XVIII, as próprias leis reais podiam ser embargadas — ou seja,
não apenas não obedecidas, mas ainda positivamente impugnadas
na sua validade. Os motivos podiam ser vários. Os mais comuns
eram, porém, ou a arguição de que o rei estava mal informado (8),
ou a invocação de que a providencia régia lesava direitos adquiri-
dos. Um exemplo do último tipo foi o que aconteceu, por exemplo,
em relação a várias leis que fixaram o regime da capitação do ouro
nas Minas Gerais, contestadas pelas câmaras e pelos contratadores,
e embargadas por alguns destes (9), quer com o fundamento em
que eram contra direito (10), quer ainda com base na irrevogabili-
dade dos contratos anteriormente firmados pela coroa e que as no-
vas leis viessem alterar. As leis, de facto, não apenas podiam ver re-
cusada a selagem do Chanceler Mor do Reino (Ord. Fil., I, 2) e,
portanto, de não poderem valer como leis, as determinações do
monarca podiam ser objecto de embargos opostos por particulares
que se considerassem prejudicados por elas (11). E u justamente por
esta época que a admissibilidade de embargos em relação às leis do
rei começa a ser considerada como ‘indecente’ na Europa, nomea-
damente porque se entende que um monarca iluminado não pode
emitir leis contrárias à razão do direito. Mas, os obstáculos da dis-

(8) Por mera falta ou por ocultamento doloso da verdade (obrepção e subrepção,
respectivamente). Arguição particularmente adaptada à situação colonial, que o rei não
conhecia senão indirectamente, por intermédio de ministros que podiam esconder in-
formações relevantes.
(9) Cf. embargo contra a lei de 3.12.1750, que fixou a oitava de ouro em 1200
reis, oposto por contratador (CCM, I, 558).
(10) Num papel acerca de como se estabeleceu a capitação nas Minas Gerais, da-
tado de 1749, classifica-se o regime legal como contrário « a todas as disposições das
leis e de direito » (CCM, I, p. 492); num outro parecer contra a capitação, de 1751,
pode ler-se « da mesma sorte, se consultarmos juristas sobre o ponto da promessa que
em 24 de Março de 1734 fizeram os procuradores das câmaras ao Conde das Galveias,
prometendo fazer certo o número do cem arrobas em que se funda a sempre veneranda
lei, estes hão-de de declarar que este fundamento é contrário às regras de direito [...] ».
(CCM, I, 543).
(11) A.M. HESPANHA, História de Portugal moderno. Polı́tico e institucional, Lis-
boa, Universidade Aberta, p. 286 ss.; ed. brasileira, Florianópolis, Fundação Boiteux.

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tância, a distorção da informação, ou o carácter exótico e diferente


das colónias, bem poderiam, neste caso, explicar ainda a falta de
informação.

3.1. Contratos, privilégios e normas gerais.

Esta primazia de contratos e privilégios — a que acabamos de


nos referir — sobre as normas gerais — de natureza doutrinal ou
da natureza legal — constituı́a um segundo factor de particulariza-
ção (localização) do direito. Muito frequentemente, eram concedi-
dos privilégios, por vezes ‘exuberantes’ (como então se dizia) por
motivos particulares, por pressão das circunstâncias, por favori-
tismo os ou em troca de favores — mesmo que fossem favores à
coroa, como o auxı́lio numa situação de apuro militar ou finan-
ceiro. Também muitos contratos eram celebrados pelas mesmas ra-
zões. Mais tarde, quando se queria proceder à emenda dos erros
polı́ticos, quando o governador era substituı́do por um outro mais
rigoroso, ou quando a coroa, como sucedeu por volta de 1750 em
Minas Gerais, queria dar uma nova ordem à administração, já as si-
tuações a sanear estavam consolidadas por privilégios ou contratos
passados. E, então, a doutrina era implacável. Como se escreve num
memorial, de 1751, contra a obrigação de os contratadores pagarem
as somas do contrato em ouro quintado: « são os contratos dos
principies leis, e suas condições tem tanta eficácia que os mesmos
prı́ncipes contraentes não podem encontrar nem modificar o que
neles prometeram e estipularam, e neles nada pode inovar-se. E
quando não é lı́cita qualquer alteração ao prı́ncipe no seu contrato,
menos é facultado a qualquer dos seus subalternos » (CCM, I, 570-
571). Qualquer que fosse o resultado final, a dúvida sobre a preva-
lência entre contrato e lei permitia decisões diversas. Neste caso
concreto, as primeiras decisões, do « doutor Procurador da coroa »
de Vila Rica dão razão ao contratador (12). Só a intervenção de uma
junta ad hoc, nomeada pelo governador, reverte a decisão. Embora

(12) Porém, uma junta nomeada pelo Governador e Capitão Geral da Capitania
de Minas, decide o contrário, contra este e outros rendeiros, ridicularizando, en pas-
sant, a decisão do procurador da coroa local; 1751, cf. CCM, I, 604 e seguintes.

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um recurso para a justiça ordinária dos tribunais superiores da co-


lónia ou do Reino pudesse inverter de novo o sentido do direito.

3.2. A criação de normas particulares: costumes, graça e privilé-


gio.

Um outro factor de autonomia do direito da colónia reside no


modelo de relação entre direito geral e direito particular que a mo-
delava a ordem jurı́dica de Antigo Regime.
Abaixo do plano do reino, proliferavam as ordens jurı́dicas
particulares, todas elas protegidas pela regra da preferência do par-
ticular sobre o geral. Por exemplo, as normas que protegiam os es-
tatutos (ou direitos das comunas, cidades, municı́pios), consideran-
do-os, nos termos da lei ‘mnes populi’ (13), como ius civile (« dici-
tur ius civile quod unaqueque civitas sibi constituit » [« diz-se di-
reito civil o que cada cidade institui para si »], Odofredo, século
XII), ou seja, com dignidade igual à do direito de Roma. Ou as que
protegiam o costume (nomeadamente, o costume local), cujo valor
é equiparado ao da lei (« também aquilo que é provado por longo
costume e que se observa por muitos anos, como se constituı́sse um
acordo tácito dos cidadãos, se deve observar tanto como aquilo que
está escrito », D.,1,3,34; v. também os frags. 33 a 36 do mesmo tı́-
tulo) (14). Ou, finalmente, o regime de protecção dos privilégios,
que impedia a sua revogação por lei geral sem expressa referência;
ou mesmo a sua irrevogabilidade pura e simples, sempre que se
tratasse de privilégios concedidos contratualmente ou em remune-
ração de serviços (« privilegia remuneratoria ») (15). Ou seja, em
todos estes casos, ainda que as normas particulares não pudessem
valer contra o direito comum do reino enquanto manifestação de
um poder polı́tico, podiam derrogá-lo enquanto manifestação de
um direito especial, válido no âmbito da jurisdição dos corpos de

(13) Cf. António Manuel HESPANHA, Cultura, cit., cap. 6.3.


(14) « Lex est sanctio sancta, sed consuetudo est sanctio sanctior, et ubi consue-
tudo loquitur, lex manet sopita » [a lei é uma sanção santa, mas o costume ainda é mais
santo, e onde fala o costume, cala-se a lei] (Consuetudines amalfitenses); Hespanha,
1989, 291 ss.
(15) Cf. António Manuel HESPANHA, Cultura, cit., ibid.

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que provinham. E, nessa medida, eram intocáveis. Pois decorrendo


estes corpos da natureza, a sua capacidade de autogoverno e de
edição de direito era natural e impunha-se, assim, ao próprio poder
polı́tico mais eminente.

3.3. Direito estrito e ordens normativas próximas. Fundamentos


doutrinais.

A razão da preferência outorgada às normas individuais sobre


as normas gerais relaciona-se também com a estrutura mais pro-
funda do sistema de direito comum. O fundamento do direito era,
para a visão medieval do mundo, a ordem, um dom gratuito de
Deus. Porém, a ordem mantinha-se, antes de mais, pela existência
de forças ı́ntimas que atraem as coisas umas para as outras, de
acordo com as suas simpatias naturais (amores, affectiones) transfor-
mando a criação numa rede gigantesca de simbioses ou empatias.
Numa quaestio sobre o amor (Sum. theol, IIa. IIae, q. 26, a. 3, resp),
S. Tomás define o amor como o (plural, diverso) afecto das coisas,
sublinhando que estes afectos se exprimem através de diferentes
nı́veis de sensibilidade (intelectual, racional, animal ou natural).
Isto explica, desde logo, a proximidade e estreita relação entre me-
canismos disciplinares que hoje são vistos como muito distantes
(direito, religião, amor e amizade). Para os nı́veis mais elevados —
e menos externos — da ordem, existem mecanismos mais subtis,
como a fé ou as virtudes, que disparam sentimentos também orde-
nadores (de amizade, de liberalidade, de gratidão, de sentido de
honra, de vergonha). Num certo sentido, estes mecanismos estão
ainda mais próximos da justiça, como virtude que « dá a cada um
o que é seu » (ius suum cuique tribuit), ou do direito natural, como
aquele que a natureza ou Deus ensinaram a cada animal (quod Na-
tura [gl. id est Deus] omnia animalia docuit). Eu por isto que os teó-
logos e os juristas definem este conjunto de deveres de amor, de
amizade, de gratidão como « como que legais » (quasi legali), come-
tendo também aos juristas a sua guarda destes.
Todos estes amores criavam, de facto, obrigações. E a estas
ainda se podiam acrescentar as que surgiam da religião (ou seja, do
amor para com Deus e, através dele, para com todas as suas criatu-

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ras, animais, plantas e entes inanimados incluı́dos). Bem como as


afeições que Deus imprimiu nas nossas mentes (afectos intelectuais)
ou nos nossos desejos (afectos sensitivos).
Em alguns casos, estas ordens normativas supra-jurı́dicas tem-
peravam o rigor da ordem civil (como no caso do adequação do di-
reito civil às posições mais maleáveis da aequitas canonica; ou no
caso dos juı́zes criminais, que tinham que compensar a ferocidade
da lei penal (rigor legis) com a misericórdia (misericordia). Noutros
casos, como no da ordem doméstica, as normas decorriam da pró-
pria ‘natureza’ (natura, honestas), sendo transcritas para o corpo do
direito os comandos contidos no ‘direito do corpo’ (na sexualidade,
na feminilidade, na masculinidade): a fraqueza, a indignidade e a
maldade das mulheres; a natureza da sexualidade humana (mono-
gâmica, hetero, vaginal: vir cum foemina, recto vaso, recta positio); a
natureza da comunidade doméstica (unitária, patriarcal). Como a
famı́lia não era a única instituição natural, outras relações humanas
tinham pretensões ‘naturais’ em relação ao direito; mesmo aquelas
instituições que a cultura actual considera como perfeitamente ar-
bitrárias e disponı́veis, como os contratos. O conceito cunhado
para exprimir estas normas implı́citas e forçosas contidas em certos
tipos de relações era o de ‘natureza dos contratos’ (natura contrac-
tus) ou de ‘vestes’ dos pactos (vestimenta pacti, como que dizendo
que, sem certos atributos formais, os acordos [nús] não podiam va-
ler).
Esta necessidade e possibilidade de transcrever normas de uma
ordem na outra tornava-se possı́vel pela existência de conceitos ge-
néricos que serviam como que de ‘canais de comunicação’ entre
elas. Entre a ordem polı́tica e o direito, as importações e exporta-
ções faziam-se através de canais como a utilidade pública (publica
utilitas), bem comum (bonum communem), poder absoluto ou ex-
traordinário (absoluta vel extraordinaria potestas), posse de estado
(possessio status); direitos adquiridos (iura quaesita), estabilidade
das decisões jurı́dicas (stare decisis), razão jurı́dica (ratio iuris) (16).

(16) Ou seja, valores polı́ticos eram transformados em valores jurı́dicos porque o


direito permitia que valores externos fossem recebidos em nome de conceitos genéri-
cos [vazios, indeterminados], como ‘utilidade pública’, ‘bem comum’; ou porque o di-

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Como as hierarquias entre as diferentes ordens normativas


eram sensı́veis ao contexto (case-sensitive) e os modelos de transfe-
rência (ou transcrição) não eram fixos, o resultado era uma ordem
entrecruzada e móvel, cujas particularizações não podiam ser ante-
cipadamente previstas. E u a isto que se pode chamar a ‘geometria
variável’ do direito comum (ius commune). Em vez de um sistema
fechado de nı́veis normativos, cujas relações estavam definidas uma
vez por todas (como os sistemas de fontes de direito do legalismo
contemporâneo), o direito comum constituı́a uma constelação
aberta e flexı́vel de ordens cuja arquitectura só podia ser fixada em
face de um caso concreto (17).
Nesta constelação, cada ordem normativa (com as suas soluções
ou seus princı́pios gerais: instituta, dogmata, rationes) era apenas
um tópico heurı́stico (ou perspectiva) cuja eficiência (na construção
do consenso comunitário) havia de ser posta à prova. Daı́ que
coubesse ao juiz fornecer um solução arbitrária (18) em torno da
qual a harmonia pudesse ser encontrada (interpretatio in dubio est
faciendam ad evitandam correctionem, contrarietatem, repugnan-
tiam) (19).

4. Flexibilidade do direito em função da graça.

A flexibilidade jurı́dica não decorria apenas da pluralidade de


ordens normativas e do carácter aberto e casuı́stico da sua hierar-
quização.
Resultava também da ideia de que o território do direito era

reito reconhecia como jurı́dicos os valores já admitidos pelos dados da vida social
(‘posse de estado’); ou ainda porque o direito incorporava os comandos de uma razão
natural acerca das relações humanas.
(17) Ao contrário do que Lauren BENTON, The Legal Regime of the South Atlan-
tic World, cit., parece insinuar, esta flexibilidade do direito da época moderna não se
relaciona com particularidades ibéricas, relacionadas com contactos inter-étnicos mais
estreitos (com mouros e judeus, nomeadamente), mas com a estrutura do ius commune,
de que os direitos português e castelhano participavam. Já Gilberto Freyre insistira
neste tópico.
(18) « Arbitrium iudex relinquitur quod in iure definitum non est ».
(19) Cf. António Manuel HESPANHA, Cultura, cit.

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ANTÓNIO MANUEL HESPANHA 71

uma espécie de ‘jardim suspenso’, entre os céus e a vida quotidiana.


Entre o domı́nio sobrenatural da religião e o domı́nio das normas
jurı́dicas terrenas.
Na verdade, as normas jurı́dicas, as máximas doutrinais e as
decisões judiciais constituı́am as regras da vida quotidiana. Normal-
mente, cumpriam bem o seu papel. No entanto, elas não consti-
tuı́am o critério último de normação.
Passava-se com o direito o que se passava com a natureza. Tal
como a lei que Deus imprimira na natureza (causae secundae [cau-
sas segundas], natura rerum [natureza das coisas]) para os seres não
humanos, também o direito positivado (nas instituições, nos costu-
mes, na lei, na doutrina comum) instituı́ra uma ordem razoavel-
mente boa e justa para as coisas humanas. No entanto, acima da lei
da natureza, tal como acima do direito positivo, existia a suprema,
embora frequentemente misteriosa e inexprimı́vel, ordem da Graça,
intimamente ligada à própria divindade (causa prima, causa incaus-
ata).
No nı́vel polı́tico-constitucional, os actos incausados (como as
leis ou os actos de graça do prı́ncipe), alterando a ordem estabele-
cida, são, por isso, prerrogativas extraordinárias e muito exclusivas
dos vigários de Deus na Terra — os prı́ncipes. Usando este poder
extraordinário (extraordinaria potestas), eles imitam a Graça de
Deus, fazendo como que milagres. Como fontes dessa graça ter-
rena, introduzem uma flexibilidade quase divina na ordem huma-
na (20).
Como senhores da graça, os prı́ncipes:
Criam novas normas (potestas legislativa) ou revogam as antigas
(potestas revocatoria);
Tornam pontualmente ineficazes normas existentes (dispensa
da lei, dispensatio legis);
Modificam a natureza das coisas humanas (v.g., emancipando
menores, legitimando bastardos, concedendo nobreza a plebeus,
perdoando penas);

(20) Cf. António Manuel HESPANHA, Les autres raisons de la politique. L’économie
de la grâce (versão castelhana em La gracia del derecho, Madrid, Centro de Estudios
Constitucionales, 1993).

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72 QUADERNI FIORENTINI XXXV (2006)

Modificam e redefinem o ‘seu’ de cada um (v.g., concedendo


prémios ou mercês).
De certo modo, esta prerrogativa constitui a face mais visı́vel do
poder taumatúrgico dos reis, a que a tradição europeia tanto recor-
re. Teorizando esta actividade ‘livre e absoluta’ dos reis, João Sal-
gado de Araújo, um jurista português dos meados do séc. XVII, usa
expressamente a palavra « milagre » (João Salgado de Araújo, Ley
regia de Portugal, Madrid, 1627), enquanto que outro declara que o
prı́ncipe, através da graça, « pode transformar quadrados em cı́rcu-
los » (mutare quadratos rotundis, cf. Manuel A u lvares Pegas, Com-
mentaria ad Ordinationes, t. IX, p. 308, n. 85.), na sequência de
fórmulas que vêm dos primeiros juristas medievais que discutiram
os poderes dos papas e dos reis.
No entanto, esta passagem do mundo da Justiça para o mundo
da Graça não nos introduz num mundo de absoluta flexibilidade.
Por um lado, a graça é um acto livre e absoluto (i.e., como se diz
do poder absoluto ou pleno do rei: plenitudo potestatis, seu arbitrio,
nulli necessitate subjecta, nullisque juris publicis limitata [um poder
ou vontade absolutos, livre de qualquer necessidade, não limitado
por quaisquer vı́nculos do direito público], Cod. Just., 3, 34, 2).
Mas, por outro lado, a graça não é uma decisão arbitrária, pois tem
que corresponder a uma causa justa e elevada (salus & utilitas pu-
blica, necessitas, aut justitiae ratio). Nem isenta da observância da
equidade, da boa fé e da recta razão (« aequitate, recta ratio [...],
pietate, honestitate, & fidei data »), nem do dever de indemnizar
por prejuı́zos colaterais causados a terceiros. Em contrapartida,
pode tornar-se como que ‘devida’, em face de actos também gratui-
tos (favores, serviços) que os vassalos tenham feito ao rei, e que, as-
sim, forçavam os reis à atribuição de recompensas ou mercês.
Como a graça não é o puro arbı́trio e antes configura um nı́vel
mais elevado da ordem, a potestas extraordinaria dos prı́ncipes apa-
rece, não como uma violação da justiça, mas antes como uma sua
versão ainda mais sublime. Para Salgado de Araújo (Ley regia de
Portugal, Madrid, 1627, 46), o governo por estes meios extraordi-
nários da graça — ou seja, tirado fora dos mecanismos jurı́dico-ad-
ministrativos ordinários — representa uma forma última e eminen-
temente real de realizar a justiça, sempre que esta não pudesse ser
obtida pelos meios ordinários.

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ANTÓNIO MANUEL HESPANHA 73

Este tipo de flexibilidade correspondia, portanto, à existência


de vários e sucessivos nı́veis de ordem. Quanto mais elevados eles
estivessem, tanto mais escondidos, inexplicitáveis e não generalizá-
veis seriam. A flexibilidade era, então, a marca da insuficiência hu-
mana para esgotar, pelo menos por meios racionais e explicáveis, o
todo da ordem da natureza e da humanidade.
Apesar da distância, a graça também chegava a Minas.
Por vezes a do rei, directamente ou por intermédio do vice-rei,
concedendo mercês ou perdoando. Logo desde o inı́cio, a história
de Minas é a história de um perdão, o de Manuel Borba Gato que,
a troco da indicação do lugar de novas minas, foi provisoriamente
perdoado (1699), em nome do rei, pelo Governador do Rio, Artur
de Sá e Menezes, quanto à acusação de morte de um anterior go-
vernador (« Com demonstrações de grande gosto, o levantou nos
braços Artur de Sá e prometeu, em nome de Sua Majestade, o per-
dão se, com efeito, desse ao manifesto tal descobrimento (das mi-
nas) e então [ ... iria ...] dar contra a Sua Majestade do perdão que
prometera em seu nome em recompensa do serviço que aquele vas-
salo fizera com aqueles descobrimentos, para que, ao mesmo tempo
que desse o perdão, achasse merecimentos para aquela e mais Mer-
cedes [...] deu conta Artur de Sá a Sua Majestade do perdão que,
em seu nome, prometera de Manuel de Borba Gato pela morte de
D. Rodrigo [...] confirmou Sua Majestade o perdão e fez-lhe mais
a mercê da patente de tenente-general de uma das praças marı́timas
que primeiro vagasse, segundo as lembranças. Já sossegado, livre e
premiado de generosa mão do rei D. Pedro II, o nosso tenente-ge-
neral Manuel de Borba Gato mandou vir a sua famı́lia para o Rio
das Velhas e dois genros que tinha, naturais da Ilha de São Miguel,
António Tavares e Francisco de Arruda. E estes tiraram tanto cabe-
dal que em poucos anos se passaram à Pátria e fundaram, cada um,
seu Morgado, e vivem regalados com os mimos e fertilidade da Pá-
tria » (CCM, I, 10-191). A v graça régia — sob a forma de alterações
na administração e, sobretudo, perdão de faltas — recorre também
o povo de Vila Rica, vindo amotinado à presença do governador de
S. Paulo e Minas, em 1720 (CCM, I, 370 ss.).
Mas também Minas se sabia que a liberalidade ou graça era
uma arma de dois gumes, desencadeando uma espiral de deveres a
que nem todos queriam estar sujeitos. A história do paulista Garcia

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74 QUADERNI FIORENTINI XXXV (2006)

Rodrigues, contada no Diário da jornada fez ouvidor Caetano da


Costa Matoso para minas gerais (CCM, I, 882) é significativo: « [o
rei D. Pedro II] também [lhe] mercê do ofı́cio de guarda mor das
minas, que ele não cria a aceitar dizendo arrogantemente que não
queria que el-rei lhe fizesse mercê porque ele é que as queria fazer
a el-rei, e levado desta mesma elevação de paulista deu a el-rei pas-
sagem destes dois rios que no princı́pio mandava fazer pelos seus
escravos, sem emolumento, e ofereceu a el-rei dizendo podia fazer
nela um bom rendimento » (ibid, p. 889). Neste caso, porventura,
Garcia Rodrigues era apenas um paulista arrogante e pouco interes-
sado em se prender a um cargo que o obrigaria a dividir fidelida-
des entre a comunidade quase independente dos seus patrı́cios e o
poder longı́nquo e tendencialmente invasivo do rei, um poder que,
no interior de São Paulo, era quase sinónimo de não poder (21).
Mas, noutros casos, o cálculo dos custos e benefı́cios que o aceitar
de uma mercê podia causar era uma medida de elementar prudên-
cia.
A graça era apanágio dos poderes supremos, imediatos a Deus
— o do Rei e o do Papa. Em alguns casos podiam ser por estes de-
legados. Era o que acontecia na dada ou na apresentação dos ofı́-
cios. Como em todos os casos da delegação de poderes privativos,
esta devia ser expressa e constar de carta régia ou de regimento.
Neste caso dos ofı́cios, a periferização do poder manifestava-se ou
pela usurpação por entidades locais (Câmaras, funcionários subal-
ternos ou mesmo particulares) da faculdade de os conceder ou pela
consolidação, nos titulares dos ofı́cios, do poder de os transmitir,
em serventia (por arrendamento), por deixa testamentária ou
mesmo por venda. Também no Reino encontramos sinais desta
usurpação do poder real relativa aos ofı́cios, com a criação de cos-
tumes contra legem que punham na mão de outras entidades esta
importante graça que era a sua concessão. O arrendamento e a

(21) « E pegando o secretário de Estado na lista delas [vilas e cidades do domı́-


nio real], foi nomeando as que se ofereceram; e chegando a de São Paulo, passou por
alto [...] porque, Senhor, aquelas vilas não são de Vossa Majestade, pois se fossem, obe-
deceriam aos decretos que Vossa Majestade mandou expedir para todas as partes para
que corressem as patacas castelhanas a peso [...] e sendo em todas obedecido, nesta foi
desprezado » (CCM, I, 188-189).

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ANTÓNIO MANUEL HESPANHA 75

deixa a filhos estavam instituı́dos por costume, contra o qual se re-


age energicamente no reinado de D. José (leis contra o direito con-
suetudinário dos ofı́cios). Na colónia, estes fenómenos parecem ser
muito frequentes, tanto no secular, como no espiritual. Segundo o
ouvidor da comarca de Vila Rica (c. 1753), o bispo de Mariana per-
mitia todos os abusos aos seus oficiais no que respeitava à admissão
de ordenandos, « por se admitirem todos sem escolha nem eleição,
e alguns com um escândalo do bispado, por ser público e sabido
terem impedimentos animis et corporis e só não se admitem mula-
tos » (CCM, I, 728). Mas, mais do que isso, provia os ofı́cios cuja
apresentação competiria ao rei como grão-mestre da Ordem de
Cristo, cobrando, e com demasia, as respectivas pensões (ibid, I,
740).

4.1. A extensão do arbı́trio (julgamento de equidade) dos ma-


gistrados. Magistrados interesses locais.

A equidade era um outro factor de flexibilidade do direito. A


discussão sobre a equidade foi longa na tradição jurı́dica euro-
peia (22), relacionando-se com várias questões.
No séc. XII, Graciano ligou esta questão à da legitimidade dos
privilégios, i.e., normas singulares que se opunham à norma geral:
« Por isso, concluı́mos do que antecede que a Santa Madre Igreja
pode manter a alguns os seus privilégios e, mesmo contra os decre-
tos gerais, conceder benefı́cios especiais, considerada a equidade da
razão, a qual é a mãe da justiça, em nada diferindo desta. Como,
por exemplo, os privilégios concedidos por causa da religião, da
necessidade, ou para manifestar a graça, já que eles não prejudicam
ninguém » (Decretum de Graciano, II, C. 25, q. 1, c. 16).
A equidade aparece aqui como uma ‘justiça especial’, não geral
e não igual, mas mais perfeita do que a justiça igual (da qual a
equidade seria a mãe).
Um passo suplementar e mais elaborado é dado por S. Tomás,
na sua discussão sobre equidade e justiça (Summa theologica,

(22) Cf. António Manuel HESPANHA, Cultura, cit., cap. 6.3., e bibliografia aı́ ci-
tada.

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76 QUADERNI FIORENTINI XXXV (2006)

IIa.IIae, qu. 80, art. 1). Ou seja, ao passo que a justiça geral era o
produto de uma forma menos refinada e profunda de conheci-
mento, a justiça particular (ou equidade) decorria dessa forma su-
perior de entendimento das coisas que alcançava nı́veis superiores
e mais escondidos da ordem do mundo — a gnome.
No Antigo Regime, esta ideia de percepções não racionais, não
discursivas e não generalizáveis, nos nı́veis supremos da ordem, es-
tavam na base de da teoria do direito concebida como uma teoria
argumentativa, da verdade jurı́dica como uma verdade ‘aberta’ e
‘provisória’, da teoria do poder de criação jurı́dica dos juı́zes (arbi-
trium iudicis), bem como da legitimidade das decisões de equidade,
baseadas num conhecimento mais perfeito, nomeadamente dos par-
ticulares das situações. Nada que melhor conviesse aos magistrados
coloniais que tinham na sua frente casos que, para além de serem
particulares, o eram ainda em virtude das próprias condições ex-
cepcionais da colónia.
O número seguinte aborda, justamente, o impacto que tem so-
bre o direito coumum a ideia de particularismo das situações locais.

5. A lei geral cede a abusos que, pela repetição, se transformam em


práticas e costumes locais.

O facto de provirem da razão não garantia às normas de direito


comum uma vigência superior, pois da mesma razão decorria a fa-
culdade de cada cidade ou de cada nação de corrigir ou adaptar,
em face da sua situação concreta, o princı́pio estabelecido em geral
pela razão. Pois, embora a razão natural tivesse em vista aquilo que
resulta justo na generalidade dos casos, a realidade seria tão multi-
forme (23) que bem se podia conceber que alguma utilidade parti-
cular exijisse a correcção da norma geral (D.,1,2,16: « o direito sin-
gular é aquele que foi introduzido pela autoridade do legislador,
tendo em vista alguma utilidade particular, contra o teor da ra-

(23) « Plures sunt casus quam leges » (os casos da vida são mais do que as leis);
« nem as leis nem os senatusconsultos podem ser redigidos de forma a compreender
todos os casos que alguma vez ocorram; basta que contenham aqueles que ocorrem o
mais das vezes », pode ler-se em D.,1,2,10.

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ANTÓNIO MANUEL HESPANHA 77

zão »). Assim, o direito comum vigoraria apenas para os casos em


que um direito particular não o tivesse afastado; ou seja, como di-
reito subsidiário; de acordo com um princı́pio segundo o qual « as
regras do direito [comum] não podem ser seguidas naqueles domı́-
nios em que foi estabelecida [por um direito particular] uma con-
tradição com a razão do direito », D.,1,2,15).
Assim, a teoria que o direito comum criou sobre as suas re-
lações com os direitos particulares não deixa de ser muito favorável
a estes últimos.

5.1. Direitos dos corpos inferiores.

Desde o século XI que os direitos dos reinos pretendem, no


domı́nio territorial da jurisdição real, uma validade absoluta, semel-
hante à do direito do Império (rex superiorem non recognoscens in
regno suo est imperator [o rei que não reconhece superior é impe-
rador no seu reino], Azo, Guilherme Durante), definindo-se como
« direito comum do reino ». O fundamento doutrinal desta ideia
pode encontrar-se num texto do Digesto que afirma que « o que
agrada ao prı́ncipe tem o valor de lei; na medida em que pela Lei
regia, que foi concedida ao prı́ncipe sobre o seu poder polı́tico [im-
perium], o povo lhe conferiu todo o seu poder e autoridade »,
D.,1,4,1).
Sendo, portanto, comum, o direito do reino continha, tal como
o ius commune, uma ratio iuris que vigorava no seu seio (24) e da
qual se podiam extrair consequências normativas, com o que adqui-
ria alguma da força expansiva do direito comum imperial. Note-se,
porém, que a estreita relacionação entre o direito dos reinos e o
poder real fazia com que nas relações entre o direito real e os di-
reitos locais inferiores vigorassem normas que não funcionavam nas
relações entre direitos próprios e ius commune, já que a supremacia
deste último não decorria da superioridade polı́tica, mas do seu en-
raizamento na natureza. Assim, a supremacia do poder real sobre
os súbditos (superioritas iurisdictionis, superioridade quanto à juris-

(24) Que, em todo o caso, não anulava a ratio iuris communis, que permanecia
como critério superior (ius naturale).

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78 QUADERNI FIORENTINI XXXV (2006)

dição) traduzia-se numa máxima que não podia valer nas relações
entre o ius commune e os iura propria — a de que « a lei inferior
não pode impor-se à lei superior » (« lex superior derrogat legi in-
feriori », a lei superior derroga a inferior; « inferior non potest to-
llere legem superioris », o inferior não pode derrogar a lei do supe-
rior), tal como o inferior não pode limitar o poder do superior. As-
sim, o direito do reino é, politicamente, supra-ordenado aos direi-
tos emanados de poderes inferiores do reino, o que não acontecia
com o ius commune em relação aos iura propria.
Porém, esta supra-ordenação em termos polı́ticos não exclui a
acima referida preferência do especial em relação ao geral. Sendo o
direito do rei o direito comum do reino, valem em relação a ele as
mesmas regras que valiam quanto ao ius commune nas suas relações
com os direitos próprios. E, assim, a afirmação da supremacia po-
lı́tica não excluı́a que, desde que esta não estivesse em causa, pu-
dessem valer dentro do reino, nos seus respectivos âmbitos, direi-
tos especiais de corpos polı́ticos de natureza territorial ou pessoal.
A salvaguarda da supremacia polı́tica do rei seria garantida, então,
por um princı́pio de especialidade, segundo o qual a capacidade
normativa dos corpos inferiores não podia ultrapassar o âmbito do
seu autogoverno (25).
Esta prevalência dos direitos particulares dos corpos tinha um
apoio no direito romano. De facto, a ‘lei’ Omnes populi, do Digesto
(D., I,1,9) reconhecia que « todos os povos usam de um direito que
em parte lhes é próprio, em parte comum a todo o género hu-
mano ». Apesar de a primeira geração de legistas ter sido muito
prudente em retirar daqui um argumento em favor da supremacia
dos direitos comunais, o célebre jurista Baldo degli Ubaldi encon-
trou justificação teórica robusta para que a validade autónoma do
direito local: « Populi sunt de iure gentium, ergo regimen populi
est de iure gentium: sed regimen non pot est esse sine legibus et
statutis, ergo eo ipso quod populus habet esse, habet per conse-
quens regimen in suo esse, sicut omne animal regitur a proprio spi-

(25) Para além de se reconhecer que todo o súbdito, mesmo integrado num
corpo jurı́dico inferior, tinha o direito de apelar para o rei, caso se sentisse injustiçado;
mas o rei teria que decidir de acordo com o direito corporativo desse súbdito.

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ANTÓNIO MANUEL HESPANHA 79

ritu et anima » (26) (« os povos existem por direito das gentes [i.e.,
natural] e o seu governo tem origem no direito das gentes; como o
governo não pode existir sem leis e estatutos [i.e., leis particulares],
o próprio facto de um povo existir tem como consequência que
existe um governo nele mesmo, tal como o animal se rege pelo seu
próprio espı́rito e alma »).
A situação americana prestava-se a esta invocação do poder das
comunidades locais, ecológica e humanamente tão distanciadas da
metrópole, para gerarem um direito próprio, eventualmente contrá-
rio ao do reino. A lonjura dos espaços, com a capacidade de fuga
que ela conferia e com o esbater das próprias situações jurı́dicas e
consequente dificuldade da sua prova ou acertamento, é um tópico
corrente.
Citações judiciais não se faziam nem « nas vilas e menos a
irem-nas fazer fora [...], de mais que na América [os porteiros que
deviam fazer as citações, por nunca encontrarem as pessoas a citar]
somente são pregoeiros » (cf. CCM, I, 699). Não havendo citações,
não há processo; e não havendo processo, não há direito oficial. Os
oficiais de justiça, invocando o particularismo da terra e, nomeada-
mente, o trabalho que lhes dão a contumácia e rebeldia das partes,
recusam que se lhes taxem os emolumentos (cf. CCM, I, 704). No
eclesiástico, os habitantes, « ainda que façam danos ou roubos, não
fazem caso da excomunhão e outros não lhe chega a notı́cia pelas
distâncias do paı́s » (CCM, I, 727); « os que se deixam excomun-
gar fogem e mudam de terras sem buscar absolvição » (CCM, I,
727). O mesmo se passa com « os declarados que faltam ao preceito
da Quaresma [...] fogem e se retiram para outros paı́ses e não têm
domicı́lio certo, não cuidam em absolver-se nem tirar mandados
para isso » (CCM, I, 734). A prova do estado de solteiro ou de
outros elementos para se poder casar é tão difı́cil, que a maior parte
dos noivos pedem esperas para prova, que acabam por nunca fazer
(cf. CCM, I, 732).
Ou seja, tal como entre os rústicos europeus, o direito estrito
não pode valer aqui. E, não valendo o direito oficial, proliferam
práticas locais, a que os magistrados reais chamam de abusos, mas

(26) In Dig. Vet., I, 1, de iust et iure, 9, n. 4.

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80 QUADERNI FIORENTINI XXXV (2006)

que, na realidade, constituem o direito da colónia, pelo menos nes-


tas mais remotas paragens.

6. Direito comum e ordem jurı́dica colonial.

A tese esboçada nos números anteriores não é a de que foi a


estrutura do direito comum que provocou o particularismo das or-
dens jurı́dicas periféricas, nomeadamente da ordem jurı́dica colo-
nial brasileira. Este é, sem dúvida, o produto da dinâmica de facto-
res locais, de ordem geográfica, ecológica, humana e polı́tica. No
entanto, o modelo de ordenamento jurı́dico proposto pelo direito
comum europeu não punha grandes obstáculos doutrinais às ten-
sões centrı́fugas da realidade colonial. Pelo contrário, fornecia uma
série de princı́pios doutrinais e de modelos de funcionamento nor-
mativo que se acomodavam bem a uma situação como a do sertão
brasileiro.
Na verdade, na arquitectura do ius commune, a primeira pre-
ocupação não é reduzir à unidade a pluralidade de pontos de vista
normativos. A primeira preocupação é torná-los harmónicos, sem
que isso implique que alguns deles devam ser absolutamente sacri-
ficados aos outros (« interpretatio in dubio facienda est ad evitan-
dam correctionem, contrarietatem, repugnantiam », a interpretação
deve ser feita, em caso de dúvida, no sentido de evitar a correcção
[de umas normas pelas outras], a contradição, a repugnância). Pelo
contrário, todas as normas devem valer integralmente, umas nuns
casos, outras nos outros. Assim, cada norma acaba por funcionar,
afinal, como uma perspectiva de resolução do caso, mais forte ou
mais fraca segundo essa norma tenha uma hierarquia mais ou me-
nos elevada, mas, sobretudo, segundo ela se adapte melhor ao caso
ou à situação em exame (27). Ou seja, as normas funcionam como
‘sedes de argumentos’ (topoi, loci), como apoios provisórios de so-
lução; que, no decurso da discussão em torno da solução, irão ser

(27) Sobre a estratégia casuı́sta, v., Com especial referência às colónias espanho-
las da América, a lı́mpida exposição de TAU ANZOATEGUI, Casuismo y sistema, cit.

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ANTÓNIO MANUEL HESPANHA 81

admitidos ou não, segundo a aceitabilidade da via de solução que


abrem.
A regra mais geral de conflitos no seio desta ordem jurı́dica
pluralista não é, assim, uma regra formal e sistemática que hierar-
quize as diversas fontes do direito, mas antes o arbı́trio do juiz na
apreciação dos casos concretos (« arbitrium iudex relinquitur quod in
iure definitum non est », fica ao arbı́trio do juiz aquilo que não está
definido pelo direito). E u ele que, caso a caso, ponderando as conse-
quências respectivas, decidirá do equilı́brio entre as várias normas
disponı́veis. Este arbı́trio é, no entanto, guiado. Pelos princı́pios ge-
rais a que já nos referimos. Mas, sobretudo, pelos usos do lugar ao
decidir questões semelhantes (no caso de decisões judiciais, stylus
curiae), usos que, assim, se vêm a transformar num elemento deci-
sivo de deste direito pluralista.
Como o governar estava, nesta época, muito próximo do julgar,
tudo o que se disse sobre a teoria do juı́zo (iudicium) vale também
para a teoria do governo (regimen), explicando este estilo do gover-
nar — sincopado, contraditório, experimental, tantas vezes pactı́cio
ou complacente com o abuso, que alterna as bravatas com a mais
miseranda rendição — da coroa portuguesa no Brasil.

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