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(2006)
TOMO I
PORQUE E
u QUE EXISTE E EM QUE E
u QUE CONSISTE
UM DIREITO COLONIAL BRASILEIRO
Desde há uns anos que o tema das relações entre a sociedade
metropolitana e a sociedade brasileira se tem vindo a libertar de al-
gumas imagens historiográficas translatı́cias, adoptando modelos de
análise e pontos de vista que se distanciam dos imaginários nacio-
nalistas e que incorporam perspectivas mais modernas da historio-
grafia geral.
Neste texto, abordo uma questão que interessa particularmente
aos historiadores do poder e das instituições e cuja compreensão
necessita de alguns esclarecimentos que a história do direito de An-
tigo Regime pode fornecer.
O meu ponto o seguinte. Para se falar de um direito colonial
brasileiro — com a importância polı́tica e institucional que e isto
tem —, é preciso entender que, no sistema jurı́dico de Antigo Re-
gime, a autonomia de um direito não decorria principalmente da
existência de leis próprias, mas, muito mais, da capacidade local de
(1) Lauren BENTON, em The Legal Regime of the South Atlantic World, 1400-
1750: Jurisdictional Complexity as Institutional Order, « Journal of World History »,
11.1, 2000, pp. 27-56, constrói sobre esta base a sua tese de que o direito comum ‘ibé-
rico’ (que, na verdade, pouco tinha de especı́fico em relação ao restante direito comum
seiscentista e setecentista, sobretudo no Sul da Europa) constituiu o principal factor de
unificação dos impérios atlânticos de Portugal e da Espanha.
(2) Vitor TAU ANZOATEGUI, Casuismo y sistema, Buenos Aires, Instituto de Inves-
tigaciones de Historia del derecho, 1992; v. também Eduardo MARTIRÉ, Un Derecho
Propio de un Derecho Particular, el Derecho Indiano, a presentado ao Congresso sobre
“La pervivencia del Derecho Común” organizado por la Univ. Católica Argentina, pu-
blicado en la « Revista de Historia del Derecho », 29, 2001, pp. 333-363.
(3) O projecto Ius Lusitaniae (www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt), dirigido por Pedro
Cardim e A | ngela Barreto Xavier, disponibiliza em suporte electrónico, uma boa parte
dessa legislação. Outra anda dispersa, até porque nem sempre revestia a forma mais so-
lene, a de carta de lei, consistindo frequentemente em cartas régias, provisões, porta-
rias, alvarás, regimentos, contendo instruções, por vezes dirigidas a uma pessoa em
concreto. De facto, para além de tudo, nunca podemos perder de vista que o actual
conceito de lei compreende, nas práticas formulares de Antigo Regime, uma vasta plu-
ralidade de tipologias documentais. O próprio Códice Costa Matoso (v. nota seguinte)
lista uma séria importante de providências normativas, em geral relativas aos distritos
aurı́feros de Minas (p. 352-370).
(4) Códice Costa Matoso. Colecção das notı́cias dos primeiros descobrimentos da
Minas na América que fez o Doutor [...] Ouvidor-Geral do Ouro Preto, que tomou posse
em Fevereiro de 1749, coord. geral de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria
Verónica Campos; estudo crı́tico de Luciano R. de Almeida Figueiredo, S. Paulo, Bi-
blioteca Mário de Andrade, s/d [?], 2 vols.. Citações ulteriores: CCM.
(8) Por mera falta ou por ocultamento doloso da verdade (obrepção e subrepção,
respectivamente). Arguição particularmente adaptada à situação colonial, que o rei não
conhecia senão indirectamente, por intermédio de ministros que podiam esconder in-
formações relevantes.
(9) Cf. embargo contra a lei de 3.12.1750, que fixou a oitava de ouro em 1200
reis, oposto por contratador (CCM, I, 558).
(10) Num papel acerca de como se estabeleceu a capitação nas Minas Gerais, da-
tado de 1749, classifica-se o regime legal como contrário « a todas as disposições das
leis e de direito » (CCM, I, p. 492); num outro parecer contra a capitação, de 1751,
pode ler-se « da mesma sorte, se consultarmos juristas sobre o ponto da promessa que
em 24 de Março de 1734 fizeram os procuradores das câmaras ao Conde das Galveias,
prometendo fazer certo o número do cem arrobas em que se funda a sempre veneranda
lei, estes hão-de de declarar que este fundamento é contrário às regras de direito [...] ».
(CCM, I, 543).
(11) A.M. HESPANHA, História de Portugal moderno. Polı́tico e institucional, Lis-
boa, Universidade Aberta, p. 286 ss.; ed. brasileira, Florianópolis, Fundação Boiteux.
(12) Porém, uma junta nomeada pelo Governador e Capitão Geral da Capitania
de Minas, decide o contrário, contra este e outros rendeiros, ridicularizando, en pas-
sant, a decisão do procurador da coroa local; 1751, cf. CCM, I, 604 e seguintes.
reito reconhecia como jurı́dicos os valores já admitidos pelos dados da vida social
(‘posse de estado’); ou ainda porque o direito incorporava os comandos de uma razão
natural acerca das relações humanas.
(17) Ao contrário do que Lauren BENTON, The Legal Regime of the South Atlan-
tic World, cit., parece insinuar, esta flexibilidade do direito da época moderna não se
relaciona com particularidades ibéricas, relacionadas com contactos inter-étnicos mais
estreitos (com mouros e judeus, nomeadamente), mas com a estrutura do ius commune,
de que os direitos português e castelhano participavam. Já Gilberto Freyre insistira
neste tópico.
(18) « Arbitrium iudex relinquitur quod in iure definitum non est ».
(19) Cf. António Manuel HESPANHA, Cultura, cit.
(20) Cf. António Manuel HESPANHA, Les autres raisons de la politique. L’économie
de la grâce (versão castelhana em La gracia del derecho, Madrid, Centro de Estudios
Constitucionales, 1993).
(22) Cf. António Manuel HESPANHA, Cultura, cit., cap. 6.3., e bibliografia aı́ ci-
tada.
IIa.IIae, qu. 80, art. 1). Ou seja, ao passo que a justiça geral era o
produto de uma forma menos refinada e profunda de conheci-
mento, a justiça particular (ou equidade) decorria dessa forma su-
perior de entendimento das coisas que alcançava nı́veis superiores
e mais escondidos da ordem do mundo — a gnome.
No Antigo Regime, esta ideia de percepções não racionais, não
discursivas e não generalizáveis, nos nı́veis supremos da ordem, es-
tavam na base de da teoria do direito concebida como uma teoria
argumentativa, da verdade jurı́dica como uma verdade ‘aberta’ e
‘provisória’, da teoria do poder de criação jurı́dica dos juı́zes (arbi-
trium iudicis), bem como da legitimidade das decisões de equidade,
baseadas num conhecimento mais perfeito, nomeadamente dos par-
ticulares das situações. Nada que melhor conviesse aos magistrados
coloniais que tinham na sua frente casos que, para além de serem
particulares, o eram ainda em virtude das próprias condições ex-
cepcionais da colónia.
O número seguinte aborda, justamente, o impacto que tem so-
bre o direito coumum a ideia de particularismo das situações locais.
(23) « Plures sunt casus quam leges » (os casos da vida são mais do que as leis);
« nem as leis nem os senatusconsultos podem ser redigidos de forma a compreender
todos os casos que alguma vez ocorram; basta que contenham aqueles que ocorrem o
mais das vezes », pode ler-se em D.,1,2,10.
(24) Que, em todo o caso, não anulava a ratio iuris communis, que permanecia
como critério superior (ius naturale).
dição) traduzia-se numa máxima que não podia valer nas relações
entre o ius commune e os iura propria — a de que « a lei inferior
não pode impor-se à lei superior » (« lex superior derrogat legi in-
feriori », a lei superior derroga a inferior; « inferior non potest to-
llere legem superioris », o inferior não pode derrogar a lei do supe-
rior), tal como o inferior não pode limitar o poder do superior. As-
sim, o direito do reino é, politicamente, supra-ordenado aos direi-
tos emanados de poderes inferiores do reino, o que não acontecia
com o ius commune em relação aos iura propria.
Porém, esta supra-ordenação em termos polı́ticos não exclui a
acima referida preferência do especial em relação ao geral. Sendo o
direito do rei o direito comum do reino, valem em relação a ele as
mesmas regras que valiam quanto ao ius commune nas suas relações
com os direitos próprios. E, assim, a afirmação da supremacia po-
lı́tica não excluı́a que, desde que esta não estivesse em causa, pu-
dessem valer dentro do reino, nos seus respectivos âmbitos, direi-
tos especiais de corpos polı́ticos de natureza territorial ou pessoal.
A salvaguarda da supremacia polı́tica do rei seria garantida, então,
por um princı́pio de especialidade, segundo o qual a capacidade
normativa dos corpos inferiores não podia ultrapassar o âmbito do
seu autogoverno (25).
Esta prevalência dos direitos particulares dos corpos tinha um
apoio no direito romano. De facto, a ‘lei’ Omnes populi, do Digesto
(D., I,1,9) reconhecia que « todos os povos usam de um direito que
em parte lhes é próprio, em parte comum a todo o género hu-
mano ». Apesar de a primeira geração de legistas ter sido muito
prudente em retirar daqui um argumento em favor da supremacia
dos direitos comunais, o célebre jurista Baldo degli Ubaldi encon-
trou justificação teórica robusta para que a validade autónoma do
direito local: « Populi sunt de iure gentium, ergo regimen populi
est de iure gentium: sed regimen non pot est esse sine legibus et
statutis, ergo eo ipso quod populus habet esse, habet per conse-
quens regimen in suo esse, sicut omne animal regitur a proprio spi-
(25) Para além de se reconhecer que todo o súbdito, mesmo integrado num
corpo jurı́dico inferior, tinha o direito de apelar para o rei, caso se sentisse injustiçado;
mas o rei teria que decidir de acordo com o direito corporativo desse súbdito.
ritu et anima » (26) (« os povos existem por direito das gentes [i.e.,
natural] e o seu governo tem origem no direito das gentes; como o
governo não pode existir sem leis e estatutos [i.e., leis particulares],
o próprio facto de um povo existir tem como consequência que
existe um governo nele mesmo, tal como o animal se rege pelo seu
próprio espı́rito e alma »).
A situação americana prestava-se a esta invocação do poder das
comunidades locais, ecológica e humanamente tão distanciadas da
metrópole, para gerarem um direito próprio, eventualmente contrá-
rio ao do reino. A lonjura dos espaços, com a capacidade de fuga
que ela conferia e com o esbater das próprias situações jurı́dicas e
consequente dificuldade da sua prova ou acertamento, é um tópico
corrente.
Citações judiciais não se faziam nem « nas vilas e menos a
irem-nas fazer fora [...], de mais que na América [os porteiros que
deviam fazer as citações, por nunca encontrarem as pessoas a citar]
somente são pregoeiros » (cf. CCM, I, 699). Não havendo citações,
não há processo; e não havendo processo, não há direito oficial. Os
oficiais de justiça, invocando o particularismo da terra e, nomeada-
mente, o trabalho que lhes dão a contumácia e rebeldia das partes,
recusam que se lhes taxem os emolumentos (cf. CCM, I, 704). No
eclesiástico, os habitantes, « ainda que façam danos ou roubos, não
fazem caso da excomunhão e outros não lhe chega a notı́cia pelas
distâncias do paı́s » (CCM, I, 727); « os que se deixam excomun-
gar fogem e mudam de terras sem buscar absolvição » (CCM, I,
727). O mesmo se passa com « os declarados que faltam ao preceito
da Quaresma [...] fogem e se retiram para outros paı́ses e não têm
domicı́lio certo, não cuidam em absolver-se nem tirar mandados
para isso » (CCM, I, 734). A prova do estado de solteiro ou de
outros elementos para se poder casar é tão difı́cil, que a maior parte
dos noivos pedem esperas para prova, que acabam por nunca fazer
(cf. CCM, I, 732).
Ou seja, tal como entre os rústicos europeus, o direito estrito
não pode valer aqui. E, não valendo o direito oficial, proliferam
práticas locais, a que os magistrados reais chamam de abusos, mas
(27) Sobre a estratégia casuı́sta, v., Com especial referência às colónias espanho-
las da América, a lı́mpida exposição de TAU ANZOATEGUI, Casuismo y sistema, cit.