Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Semestral.
ISSN 1517-5863
CDD 291.2
This periodical is indexed in the ATLA Religion Database, published by the American
Theological Library Association, 250 S. Wacker Dr., 16th Flr., Chicago, IL 60606, USA,
e-mail: atla@atla.com, www.atla.com.
Fides Reformata também está incluída nas seguintes bases indexadoras:
CLASE (www.dgbiblio.unam.mx/clase.html), Latindex (www. latindex.unam.mx),
Francis (www.inist.fr/bbd.php), Ulrich’s International Periodicals Directory
(www.ulrichsweb.com/ulrichsweb/) e Fuente Academica da EBSCO
(www.epnet.com/thisTopic.php?marketID=1&topicID=71).
Editores Gerais
Leandro Antonio de Lima
Daniel Santos Júnior
Editor de resenhas
Filipe Costa Fontes
Redator
Alderi Souza de Matos
Editoração
Libro Comunicação
Capa
Rubens Lima
Igreja Presbiteriana do Brasil
Junta de Educação Teológica
Instituto Presbiteriano Mackenzie
CONSELHO EDITORIAL
Augustus Nicodemus Lopes
Davi Charles Gomes
Heber Carlos de Campos
Heber Carlos de Campos Júnior
Jedeías de Almeida Duarte
João Alves dos Santos
João Paulo Thomaz de Aquino
Mauro Fernando Meister
Valdeci da Silva Santos
Pede-se permuta.
We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch.
Se solicita canje. Si chiede lo scambio.
Boa leitura!
Artigos
O princípio ético de Provérbios
Daniel Santos................................................................................................................................. 9
Resenhas
O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade
e a leitura de Gênesis (John Walton)
André Leonardo Venâncio.............................................................................................................. 119
RESUMO
O livro de Provérbios está repleto de instruções e admoestações que visam
estabelecer uma norma de conduta aceitável. A definição daquilo que é ou não
aceitável no livro acaba sugerindo a presença de um princípio ético fundamental
que orienta e regula essa decisão. O presente artigo faz um levantamento do que
pode ter sido parte desse princípio ético fundamental, tomando como exemplo
as instruções e admoestações referentes aos perigos da sociedade israelita.
Segundo o autor, os perigos são basicamente três: a) as más companhias, b) a
indiferença e c) a promiscuidade.
PALAVRAS-CHAVE
Livro de Provérbios; Ética em Provérbios; Más companhias; Indiferença;
Promiscuidade.
INTRODUÇÃO
A literatura sapiencial encontrada no livro de Provérbios é construída
sob um princípio ético fundamental que orienta e regula suas comparações,
admoestações e instruções. Essa tese vale tanto para os provérbios e instruções
que são atribuídos a Salomão, como aos demais sábios que cooperam no livro;
todos parecem estar indubitavelmente conscientes de um princípio ético que
atua como elemento controlador. Este artigo visa demonstrar como podemos
perceber esse princípio no texto de Provérbios.
* O autor é professor de Antigo Testamento no CPAJ desde 2007. É mestre em Teologia Exegética
(Th.M., 2001) pelo Covenant Theological Seminary e doutor em Estudos Teológicos no Antigo Testa-
mento (Ph.D., 2006) pela Trinity Evangelical Divinity School. Seus estudos pós-doutorais (Wycliffe
Hall, Oxford, Inglaterra) trataram da literatura sapiencial do Antigo Testamento. É autor de diversos
artigos e publicou recentemente seu comentário sobre o livro de Jó.
9
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS
Para nossa tristeza, o livro de Provérbios não revela nem comenta deta-
lhadamente esse princípio ético fundamental de forma explícita. A declaração
consagrada de que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria não explica
tudo o que comumente é atribuído a esse texto. Para usarmos esse conceito,
precisaríamos definir o que o temor do Senhor significava na literatura sapien-
cial e, mais especificamente, em Provérbios. Essa é uma tarefa dificultada pela
afirmação no próprio livro de que o temor do Senhor consiste em “aborrecer
o mal; a soberba, a arrogância, o mau caminho e a boca perversa” (8.13). A
dificuldade com isso é a seguinte: como esses elementos podem juntos produzir
o conhecimento sapiencial contido no livro? Isso não está claro e nem é fácil
de ser demonstrado. Além disso, será que podemos usar a palavra princípio
(1.7) como equivalente à noção de “elemento arquétipo, causa primeira” ou
“a proposição lógica fundamental sobre a qual se apoia um raciocínio”? O
livro de Provérbios não foi escrito para responder esse tipo de investigação;
ele não apresenta uma seção especial que trata da metodologia aplicada na
composição dos provérbios, nem do princípio epistemológico que governa e
valida o conhecimento apresentado no livro.
Entretanto, uma leitura do texto de Provérbios como hoje ele se encontra
nas Escrituras produz rapidamente a percepção de que é possível delinear alguns
pontos básicos presentes nesse princípio controlador. Por isso, a abordagem
adotada neste estudo será dedutiva, mas uma dedução informada pela teologia
bíblica de Provérbios e da literatura sapiencial do Antigo Testamento.
1 WEEKS, Stuart. Early Israelite Wisdom. Oxford; New York: Clarendon Press; Oxford University
Press, 1994, p. 17.
2 WEEKS, Stuart. An Introduction to the Study of Wisdom Literature. London; New York: T & T
Clark, 2010, p. 46; WEEKS, Stuart. Instruction and Imagery in Proverbs 1-9. Oxford; New York: Oxford
University Press, 2007, p. 13.
10
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23
3 FOX, Michael V. “Ethics and Wisdom in the Book of Proverbs”, Hebrew Studies 48, no. 1
(2007): 75.
4 GARRETT, Duane A. Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs, vol. 14 (Nashville: Broadman &
Holman Publishers, 1993), p. 21.
5 ALETTI, Jean Noel. “Seduction Et Parole En Proverbes I-Ix”, Vetus testamentum 27, no. 2
(1977).
6 EMERTON, J. A. Emerton, “The Teaching of Amenemope and Proverbs Xxii 17 – Xxiv 22:
Further Reflections on a Long-Standing Problem”, Vetus testamentum 51, no. 4 (2001).
7 WEEKS, Instruction and Imagery in Proverbs 1-9.
8 FOX, “Ethics and Wisdom in the Book of Proverbs”, p. 77.
11
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS
9 A esse respeito, ver também: WALTKE, Bruce. The Way of Wisdom: Essays in Honor of Bruce
K. Waltke. Grand Rapids, MI: Zondervan, 2000, p. 23; WALTKE, Bruce. The Book of Proverbs: Chapters
15-31. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2005, p. 198.
12
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23
10 Ver DELL, Katharine J. “Proverbs 1-9: Issues of Social and Theological Context”. Interpretation
63, no. 3 (2009): 230-31; WHYBRAY, Roger N. “The Structure and Ethos of the Wisdom Admonitions
in Proverbs”. Expository Times 94, no. 5 (1983): 148; FOX, Michael V. Proverbs 1-9: A New Translation
with Introduction and Commentary. Anchor Bible. New York: Doubleday, 2000.
13
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS
14
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23
não é tolo, mas “mau”, ou seja, os que não andam com os sábios se tornarão
mais do que tolos ou insensatos, mas homens “maus”. Por fim, o maior perigo
que Provérbios apresenta nesse assunto é o aliciamento do jovem que deseja
andar nos caminhos do Senhor (cf. Pv 16.29: “O homem violento alicia o seu
companheiro e guia-o por um caminho que não é bom”).
Como Provérbios pretende minimizar ou impedir esse aliciamento? Será
que os pais desse jovem de Provérbios acreditam na possibilidade de criar
um filho ou filha num contexto em que eles não serão aliciados pelo “homem
violento”? A linguagem de provérbios para tratar desse assunto é preventiva,
ou seja, ela parte do pressuposto de que o filho ou a filha ainda estão sob a
tutela dos pais e não foram corrompidos pela proposta do “homem violento”.
Provérbios não adota a postura de proibição em termos semelhantes aos dos
Dez Mandamentos. Em vez de determinar como mandamento inquestionável
que o filho não andará na companhia dos ímpios, a linguagem do autor de
Provérbios apresenta as admoestações dos pais na forma de um convite moti-
vacional, carregado com o profundo desejo de que o jovem ouça o que é dito.
11 SCHWÁB, Zóltan. “Is Fear of the Lord the Source of Wisdom or Vice Versa?”. Vetus Testa-
mentum 63, no. 4 (2013): 652-62.
12 WALTKE, Bruce K. “Righteousness in Proverbs”. The Westminster Theological Journal 70,
no. 2 (2008): 225-37; JOHNSON, John E. “An Analysis of Proverbs 1:1-7”. Bibliotheca Sacra 144, no. 576
(1987): 429-30.
13 Há muito que ainda precisamos descobrir sobre a estratégia de educação no mundo antigo. Ver
a discussão em CRENSHAW, James L. “Education in Ancient Israel”. Journal of Biblical Literature 104,
no. 4 (1985): 610.
15
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS
insulto” (Pv 9.7), ou “não repreenda o zombador, caso contrário ele o odiará”
(Pv 9.8). O zombador é alguém que não vê nenhum sentido em reparar o
pecado cometido, pois a sua atitude de zombaria é intencional e não acidental
(Pv 14.9). O zombador é alguém comumente alterado pelos efeitos do vinho
ou da bebida forte (Pv 20.1). O zombador tem um estilo de vida caracte-
rístico: “O vaidoso e arrogante chama-se zombador; ele age com extremo
orgulho” (Pv 21.24). O zombador é visto em Provérbios como a fonte das
brigas e contendas: “Quando se manda embora o zombador, a briga acaba;
cessam as contendas e os insultos” (Pv 22.10). O zombador interfere na vida
de uma cidade: “Os zombadores agitam a cidade, mas os sábios apaziguam”
(Pv 29.8). Os zombadores serão severamente punidos, especialmente quando
a sua zombaria é dirigida aos pais: “Os olhos de quem zomba do pai, e, zom-
bando, nega obediência à mãe, serão arrancados pelos corvos do vale, e serão
devorados pelos filhotes do abutre” (Pv 28.17).
Veja, então, que a atitude de desprezo em Provérbios é alimentada por um
espírito de zombaria e não apenas por um gesto passivo de indiferença. É contra
esse tipo de atitude que o princípio ético fundamental de Provérbios dedica uma
parte considerável de sua atenção, pois a zombaria se propaga e contamina as
pessoas rapidamente. Para os pais deste jovem em Provérbios, a zombaria não
deve ser encarada como uma brincadeira ou uma atitude descontraída com a vida,
mas sim como um estilo de vida que alimenta e promove a indiferença para
com as virtudes da sabedoria proveniente de Deus. É precisamente por causa
dessa indiferença que a zombaria é encarada com seriedade, como sendo um
dentre os fatores mais cotados que desviam os filhos dos caminhos do Senhor.
14 Há vários estudos sobre esse tema: MURPHY, Roland E. “Wisdom and Eros in Proverbs 1-9”.
The Catholic Biblical Quarterly 50, no. 4 (1988): 600-03; ESTES, Daniel J. “What Makes the Strange
Woman of Proverbs 1-9 Strange?”. In: Ethical and Unethical in the Old Testament: God and Humans
in Dialogue. New York: T & T Clark, 2010, p. 151-69; SHUPAK, Nili. “Female Imagery in Proverbs
1-9 in the Light of Egyptian Sources”. Vetus Testamentum 61, no. 2 (2011); WALTKE, Bruce K. “Lady
Wisdom as Mediatrix: An Exposition of Proverbs 1:20-33”. Presbyterion 14, no. 1 (1988): 1-15;
GARRETT, Duane A. “Votive Prostitution Again: A Comparison of Proverbs 7:13-14 and 21:28-29”.
Journal of Biblical Literature 109, no. 4 (1990): 681-82.
16
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23
17
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS
b) flertando com ela (6.25). Nesse caso específico, a admoestação dos pais
revela que o princípio ético fundamental era alimentado pela lei de Deus,
pois os castigos apresentados são fundamentados nela. A linguagem utilizada
em Provérbios de “se chegar à mulher do próximo” (6.29) é um reflexo das
regulamentações encontradas em Levítico 20.10.
A quarta seção que trata do tema da promiscuidade descreve a mulher
adúltera em ação (7:1-27). Ela é uma mulher casada, seu marido viajou e não
retornará em breve. Ela aproveita o período de ausência para iniciar suas aven-
turas de adultério com os que passam pela rua. É crucial entendermos que o
perigo apresentado no livro é o de uma pessoa mais velha que tenta explorar a
inocência de um jovem que ainda não experimentou um relacionamento con-
jugal em toda a sua plenitude. Isso significa que o jovem está em desvantagem
nessa comparação. Ele é aquele que é visto como a presa no experimento amo-
roso da mulher que tem planos adúlteros. A descrição das artimanhas da mulher
adúltera aqui resume muito do que já havia sido mencionado anteriormente,
especialmente o poder persuasivo de suas palavras. Mais do que em qualquer
outra parte do livro, nessa instrução do capítulo 7 temos uma amostra deta-
lhada do tipo de argumento que torna suas palavras persuasivas. A admoestação
dos pais para se distanciar dela está fundamentada, como nos outros casos,
num princípio ético fundamental, o qual pode ser deduzido da justificativa
apresentada: “porque a muitos feriu e derribou; e não são poucos os que por
ela foram mortos. A sua casa é caminho para a sepultura (lit. sheol ) e desce
para as câmaras da morte” (7.26-27). Essa justificativa já foi apresentada em
2.18, mostrando que o princípio ético em Provérbios não é alimentado apenas
pelo senso comum, mas por conceitos teológicos que consideram a existência
humana diante dos olhos de Deus.
A última seção que trata do tema da promiscuidade nos capítulos 1-9
de Provérbios consiste de um breve relato da mulher apaixonada (9.13-18).
Em primeiro lugar, é preciso entender corretamente o significado do termo
hebraico traduzido como “apaixonada”. A versão corrigida opta pela palavra
“alvoroçada”. O mesmo acontece com versões em outras línguas: “loud”
(ESV), “alborotadora” (Reina-Valera 1969), “unruly” (NIV). É provável que
a melhor tradução seja mesmo aquela que explora a questão da inquietação
e do barulho, e não o termo “apaixonada”. Tanto em Provérbios 9.13 como
em 7.11, o conceito está associado a um contexto que não permite optar pela
tradução “apaixonada”. No contexto dessa última seção, a ideia de ser baru-
lhenta e alvoroçada combina melhor com o alvo da narrativa, pois essa mulher
está assentada à porta da cidade para falar aos que passam. Mais uma vez,
o conteúdo da proclamação dessa mulher assentada no alto da cidade revela o
mesmo princípio ético fundamental, pois as justificativas envolvem a morte
e o inferno: “Eles [os que ouvem a mulher], porém, não sabem que ali estão
os mortos, que os seus convidados estão nas profundezas do inferno” (9.18).
18
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23
15 Ver uma discussão a esse respeito em: NEL, Philip J. “Authority in the Wisdom Admonitions”,
Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft 93, no. 3 (1981): 418-26; FOX, Michael V. “The
Pedagogy of Proverbs 2”. Journal of Biblical Literature 113, no. 2 (1994): 233-43.
19
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS
por causa de filhos jovens que não aprenderam a dar ouvidos à sabedoria ou
inclinar seus corações ao entendimento.
Ora, se as palavras e ensinamentos dos pais nesse capítulo têm a finalidade
de treinar o coração e o ouvido do jovem, não seria o caso de pensarmos que
as palavras da Sabedoria são as que realmente conduzem ao conhecimento
e temor do Senhor? Não seria o caso de pensarmos em nossos ensinamentos
(nós os pais) como apenas instrumentos facilitadores para o verdadeiro co-
nhecimento e aprendizado? Eu creio ser esse o caso. Muitos pais parecem
ter perdido um pouco de vista essa perspectiva no trato com seus filhos. Não
é fácil ver nossos filhos colocarem a perder suas vidas por darem ouvidos e
inclinarem seus corações a opiniões e valores que são subproduto da decadên-
cia humana. Mesmo assim, não podemos perder de vista essa luz no fim do
túnel avisando-nos que o objeto da obediência que estamos proclamando não
são as nossas palavras. Meu objetivo não é fazer meu filho me obedecer, mas
sobretudo obedecer ao Senhor.
20
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23
21
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS
CONCLUSÃO
Conforme anunciado na introdução, o princípio ético que regula as de-
cisões apresentadas no livro de Provérbios é deduzido a partir de uma leitura
do próprio texto bíblico, especialmente do modo como o autor bíblico apre-
senta os discursos. Entretanto, não há como argumentar que Agur ou a mãe
de Lemuel tinham consciência de tal princípio ético quando compuseram seus
provérbios e instruções. O princípio ético de Provérbios deve ser entendido
como um fator imputado ao livro em seu formato final por obra do Espírito
Santo, por meio daquele (não sabemos quem) que Deus usou para concluir
esse livro. Por causa da informação contida na abertura do capítulo 25, é im-
possível afirmar que Salomão foi o responsável pela forma final do livro, pois
os homens de Ezequias ainda estavam transcrevendo provérbios para montar a
terceira seção do livro séculos após a sua morte. Assim sendo, proponho que
o princípio ético ilustrado nesse estudo seja entendido como um fator oriundo
do cânon bíblico e não da cosmovisão israelita dos dias de Salomão. Quando
lemos Provérbios como uma amostragem de usos e costumes de uma socie-
dade primitiva, compilados em formato proverbial, perdemos o seu principal
elemento de autoridade: a revelação divina construindo das partes um todo
teologicamente coerente. Mesmo trabalhando com diversos autores (Salomão,
Agur, Lemuel, os sábios, os homens de Ezequias, etc.), o produto final forjado
pela ação do Espírito Santo consegue aquilo que Clemente de Alexandria disse
com propriedade: “Com todo seu poder, o instrutor da humanidade, a palavra
22
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23
ABSTRACT
The book of Proverbs is loaded with instructions and admonitions that
seek to establish an acceptable norm of conduct. The definition of what is
considered acceptable will inevitably suggest the existence of a core ethical
principle guiding and controlling the definition of what is acceptable. This
article presents a sample of the effect of such core ethical principle when it is
applied to three different settings dealing with issues in the Israelite society.
The issues are: a) the danger of bad companions, b) the danger of indifference,
and c) the danger of promiscuity.
KEYWORDS
Book of Proverbs; Ethics in Proverbs; Promiscuity; Indifference.
23
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44
RESUMO
A atuação cristã no âmbito público, especialmente no campo da política,
é objeto constante de discussão. Inúmeras questões surgem nessa seara, prin-
cipalmente direcionadas pelo propósito último do homem de glorificar a Deus
em todos os âmbitos de sua vida. Este artigo visa auxiliar os cristãos na tarefa
de, a partir de uma cosmovisão cristã, dialogar com algumas das principais
ideologias políticas da nossa época: liberalismo, marxismo, conservadorismo,
democracia e nacionalismo. Para cumprir tal propósito, primeiramente corre-
laciona os conceitos de ideologia e idolatria. Em seguida, analisa, a partir do
conceito de idolatria, as principais ideologias políticas, organizadas de acordo
com os ídolos que ocupam seus altares: indivíduo, comunidade, tradição, igual-
dade e Estado. Finalmente, observam-se dois aspectos que unem as ideologias
políticas, o fundamento autônomo e a busca por satisfação como fim, concluin-
do que o cristão deve se relacionar criticamente com as ideologias políticas.
PALAVRAS-CHAVE
Cosmovisão cristã; Idolatria; Política; Ideologias políticas.
INTRODUÇÃO
O cristão deve se envolver significativamente com a política a partir de
uma visão de mundo biblicamente orientada,1 buscando glorificar a Deus em
todo o processo (1Co 10.31 e Rm 11.36). Ao criar o homem, Deus deu a ele
25
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS
1. IDEOLOGIA E IDOLATRIA
No livro Visões e Ilusões Políticas, Koyzis analisa as principais ideolo-
gias políticas contemporâneas. Sua tese central gira em torno da percepção de
que as ideologias políticas possuem raízes idólatras – na realidade, ele chama
as ideologias de idolatrias. Koyzis afirma: “Como as idolatrias bíblicas, cada
ideologia se fundamenta no ato de isolar um elemento da totalidade criada,
elevando-o acima do resto da criação e fazendo com que esta orbite em torno
desse elemento e o sirva”.6
2 Tradução livre das expressões: “… restraint of the full effects of sin after the Fall, preservation
and maintenance of the created order, and distribution of talents to human beings”, de Vincent Bacote,
na introdução ao livro: KUYPER, Abraham. Wisdom & Wonder: Common Grace in Science & Art.
Ottawa: Christian Library Press, 2011, p. 25 e 26.
3 Para uma exposição mais abrangente sobre esse tema, ver: PAULA, Francisco. Apontamentos
introdutórios acerca da relação entre o cristão e a política. São Luís, MA: Seminário Cristão Evangélico
do Norte (SCEN), 2016. Artigo aceito para publicação em dezembro de 2016 pela revista eletrônica do
SCEN.
4 CALVINO, João. As Institutas. Vol. IV. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 150.
5 KOYZIS, David T. Visões e ilusões políticas: uma análise & crítica cristã das ideologias
contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2014.
6 Ibid., p. 18.
26
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44
7 DOOYEWEERD, Herman. Raízes da cultura ocidental: as opções pagã, secular e cristã. São
Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 29.
8 POWLISON, David. Ídolos do coração e feira das vaidades. São Paulo: Refúgio, 1996, p. 31.
9 Conforme Beale, em análise dos textos de Isaías 6 e 44.18-19, “a percepção do adorador não
pode ser maior do que a do ídolo a que ele serve”. BEALE, G. K. Você se torna aquilo que adora: uma
teologia bíblica da idolatria. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 41. O texto do Salmo 135.15-18 aponta
nessa mesma direção. A partir disso, como poderíamos esperar que as ideologias, por si, fornecessem
uma percepção adequada da realidade, formando, com isso, um correto plano de ação para corrigir as
falhas observadas?
27
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS
2. IDOLATRIAS POLÍTICAS
2.1 Idolatria do indivíduo
A idolatria do indivíduo, em regra, está associada ao liberalismo:
10 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 12, 50 e 51. Nesse quesito, o crítico do cristianismo, ou
mesmo o cristão que acaba adotando uma visão compartimentalizada da vida, talvez nos confronte com
uma objeção comum de que estamos espiritualizando o assunto da política, ao tratá-la em termos de
idolatria. Em complemento aos pontos iniciais do presente texto, precisamos reforçar a realidade de que,
por ser Deus o criador e sustentador do universo, a cosmovisão cristã parte do princípio de que toda a
realidade é teorreferente. Esse conceito foi sintetizado de forma bem clara nos seguintes dizeres: “Teo-
-referência é um conceito empregado por Davi C. Gomes para indicar que Deus é o ponto de referência
último de toda a existência tanto do homem regenerado, pelo poder do Espírito Santo e da Palavra de
Deus, quanto do homem não-regenerado. [...] A teo-referência negativa, como é qualificada a existência
do homem em constante apostasia, se dá sempre em forma de emancipação em relação a Deus e rebelião
contra sua Palavra. A teo-referência positiva indica a existência e a apreensão da realidade no interior de
um contexto de significado redentivo ou biblicamente orientado. A teo-referência (negativa ou positiva)
é a condição originária de todo horizonte de compreensão e interpretação humanas. Isso quer dizer que
a vida-no-mundo será sempre encarada no interior de um campo de significado de amor ou de rebelião
contra Deus”. OLIVEIRA, Fabiano de Almeida. Reflexões Críticas sobre Weltanschauung: uma análise
do processo de formação e compartilhamento de cosmovisões numa perspectiva teo-referente. Fides
Reformata, vol. XIII, nº 1, 2008, p. 31.
11 Nesse sentido, peço ao leitor que seja caridoso em considerar que a tratativa do presente texto
é limitada pelo espaço e escopo. Além disso, irei também, em várias ocasiões, fazer generalizações que
podem não ser aplicáveis a adeptos das ideologias apresentadas em sua totalidade. Digo isso, inclusive,
por mim, que aceito inúmeras alegações delas como verdadeiras e as adoto em meu dia a dia. Para uma
análise mais abrangente, recomendo a leitura dos materiais citados. Ao apresentar a realidade idolátrica
em cada uma das ideologias mencionadas, não se ignora a realidade de que elas possuem muitos pontos
positivos e momentos de verdade, afinal: “As ideologias são incapazes de distorcer completamente o
mundo real, o qual, apesar da presença inegável do pecado, continua sendo a excelente criação de Deus”
KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 155.
28
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44
12 Ibid., p. 57.
13 SMITH, Adam. A mão invisível. São Paulo: Penguin e Companhia das Letras, 2013, p. 120.
14 Duas considerações precisam ser feitas sobre tal desenvolvimento liberal: (1) Como o próprio
nome revela, essa ideologia idolatra também o ideal de liberdade, o que explica esse processo de evolução
pelo qual passou. (2) No presente texto, estamos seguindo a interpretação de que existe um vínculo direto
entre esses modelos de liberalismo, norteado pelas idolatrias apontadas. Entretanto, grandes expoentes
do liberalismo clássico discordariam de tal perspectiva. No prefácio da edição norte-americana do livro
Caminho da Servidão, F. A. Hayek afirma: “Há, porém, uma questão de terminologia sobre a qual devo
aqui dar uma explicação, a fim de prevenir mal-entendidos. Uso, a todo momento, a palavra ‘liberal’ em
seu sentido originário, do século XIX, que é ainda comumente empregado na Inglaterra. Na linguagem
corrente nos Estados Unidos, seu significado é, com freqüência, quase o oposto, pois, para camuflar-se,
movimentos esquerdistas deste país, auxiliados pela confusão mental de muitos que realmente acredi-
tam na liberdade, fizeram com que ‘liberal’ passasse a indicar a defesa de quase todo tipo de controle
governamental”. HAYEK, F. A. O caminho da servidão. Campinas: Vide Editorial, 2013, p. 17.
29
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS
Ayn Rand segue, pela voz do protagonista, com uma feroz ofensiva às
instituições que cerceiam a liberdade do indivíduo, ao atacar, especialmente,
sua inteligência (nesse ínterim, ela critica as religiões, o Estado e as próprias
comunidades). Ao agir assim, idolatrando o indivíduo, o liberalismo desconsidera
algumas verdades centrais: a realidade de que o homem é pecador17; o fato de
que somos dependentes, tanto do próximo quanto, fundamentalmente, de Deus; a
necessidade do Estado enquanto autoridade instituída por Deus para promover
a justiça; a existência de obrigações e restrições não decorrentes de acordos volun-
tários, mas da própria natureza conforme estruturada por Deus18 (demonstrando
15 Para nós, brasileiros, soa estranho associar o movimento liberal com essas perspectivas. Con-
sideramos o liberalismo, via de regra, como uma bandeira de direita, associada ao conservadorismo.
Consideramos essas perspectivas feministas, abortistas e da ideologia de gênero como características
da esquerda e seu “progressismo”. Entretanto, como Koyzis trabalha em seu mencionado livro, existe
uma correlação direta entre o liberalismo econômico e a perspectiva liberal em termos morais – sua raiz
religiosa é a mesma. É interessante, nesse sentido, que nos Estados Unidos, os liberals são aqueles que
possuem afinidade com o partido Democrata, que é o partido de esquerda.
16 RAND, Ayn. A Revolta de Atlas. Vol. III. São Paulo: Arqueiro, 2010, p. 335. Apesar das inúmeras
críticas possíveis ao livro e, especialmente ao discurso de John Galt cujo trecho cito, considero esse um
livro de leitura fundamental. Parece-me que os romances têm a característica de explicar o mundo de
uma forma que os demais livros não conseguem, razão pela qual faço várias referências a estes ao longo
do texto.
17 No livro, esse é um dos pontos que Ayn Rand critica de forma mais enfática, acusando o pecado
original de ser um dos grandes males da concepção cristã do indivíduo.
18 “Para viver essa vida, nenhum homem é auto-suficiente ou bastante provido pela natureza. Pois o
homem nasce privado de toda assistência, desnudo e inerme, como se tivesse perdido todos os bens num
naufrágio, fosse lançado nas desgraças dessa vida e não se sentisse capaz de, por seus próprios meios,
alcançar o seio da mãe, suportar a inclemência do tempo, nem mover-se do lugar aonde foi arremessado”.
ALTHUSIUS, Johannes. Política. Rio de Janeiro: Topbooks, 2013, p. 103.
30
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44
que a livre escolha do indivíduo soberano não é absoluta sobre tudo e todos); e
a verdade de que a única fonte de redenção real é o Senhor Jesus Cristo, ao nos
libertar das amarras do pecado e não do Estado19 (e/ou outras coletividades).
Nesse ponto, antes de partirmos para o próximo aspecto idolátrico, penso
ser possível abordarmos a idolatria do indivíduo, não sobre o aspecto do eu,
mas na visão do outro – mais especificamente, de “um outro”. A idolatria do
indivíduo ocorre também, penso, quando se considera que determinado líder
político é o detentor máximo de autoridade, personificando todas as virtudes
fundamentais, na visão do idólatra, para que o caminho rumo à prosperidade, à
paz, à segurança, à realização plena, etc., seja por ele pavimentado. Essa visão
está, via de regra, associada à idolatria do Estado. Entretanto, não há dúvida
de que determinadas figuras são vistas como (quase) deuses por seus segui-
dores, tornando-os inerrantes e justificando, assim, todas as suas ações como
corretas – na realidade, as ações desses indivíduos transcendem as perspectivas
tradicionais de bem e mal, não carecendo de justificativas.
Lembro-me, nesse quesito, da grande disputa interna de Raskólnikov na
obra Crime e Castigo, de Dostoiévski. Ao lidar com seu próprio crime, à luz
da visão que possuía sobre a possibilidade de pessoas diferenciadas, indivíduos
únicos e extraordinários, ignorarem as leis, sem que houvesse quaisquer pre-
juízos para eles, Raskólnikov se viu desolado pela percepção dolorosa de si
mesmo como uma pessoa ordinária (ao contrário da autoimagem que possuía,
destruída quando em choque com a realidade). O jovem estudante explica:
Além de muito do que foi dito aplicar-se a esse modelo de idolatria, tal-
vez menos comum,21 há que se acrescentar que as ideologias políticas, via de
19 Curioso que no “liberalismo moral”, mais tardio, existe uma dependência e idolatria do Estado
como aquele que deve assegurar ao indivíduo livre a possibilidade e, mais que isso, a garantia de que
poderá agir conforme sua vontade – desde que, é claro, essa vontade seja nos termos progressistas da
ideologia liberal.
20 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Martin Claret, 2013, p. 296-298.
21 Essa postura é muito bem exemplificada em certas estampas de camisas com rostos de figuras
“revolucionárias” muito difundidas nos movimentos políticos de esquerda.
31
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS
Nenhuma criatura viva é gananciosa por natureza, a não ser por medo de
carência – ou, no caso de seres humanos, por vaidade, a ideia de que alguém
é melhor que as outras pessoas se puder exibir mais propriedade supérflua do
que elas. Mas não há âmbito para esse tipo de coisa em Utopia.23
32
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44
26 “A ideologia da comunidade claramente conflita com o motivo bíblico da criação. Aqueles que
levam a sério o motivo bíblico da criação nunca serão guiados pela ideia de um espírito nacional autôno-
mo que, em sua individualidade absoluta, é sua própria lei e norma. Eles nunca verão uma comunidade
temporal como a totalidade das relações humanas, das quais as outras esferas da sociedade são apenas
partes dependentes”. DOOYEWEERD, Raízes da cultura ocidental, p. 202.
27 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 128.
28 Um exemplo é a comunidade mais básica da qual faz parte o indivíduo: a família. Caso a família
fosse dirigida pelo princípio democrático, da maioria como determinante das diretrizes, poderíamos ter
o absurdo caso de os filhos se unirem e decidirem desobedecer a seus pais, por mais novos que fossem.
Certamente, em uma votação com várias crianças, contra seus pais, sobre a possibilidade de comer doces
a qualquer momento ou assistir TV até tarde, os pais perderiam.
33
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS
vo e comete idolatria. Ela retira Deus de seu trono e o substitui por um falso
soberano, que não consegue, de fato, entregar o que promete – ver todos os
descalabros já cometidos em nome de vários regimes desse tipo, especialmente
no século 20.29
Além disso, ao enfatizar demasiadamente o coletivo em detrimento do
individual, tais ideologias esquecem o fato de que o ser humano, indivíduo, foi
criado à imagem e semelhança de Deus, tendo um valor próprio, intrínseco,
independente da comunidade em que se insere. Não existe, portanto, naciona-
lidade que, por si, torne alguém mais ou menos digno, posto que a dignidade
é algo inerente à pessoalidade. Ignoram, ainda, a realidade de que Deus é,
enquanto Trindade, um e três ao mesmo tempo – ou seja, é uma coletividade
composta por três individualidades. Essa crítica, válida também para a idolatria
individualista, nos indica o valor tanto do indivíduo quanto do grupo, posto o
próprio Criador ter em si, em sua essência, essa mesma natureza de unidade
e multiplicidade.
Numa primeira leitura, faz bastante sentido ter tal perspectiva, especial-
mente quando simplesmente nos lembramos da tradição ocidental “recente”,
moldada, em grande medida, a partir de uma cosmovisão judaico-cristã.
Entretanto, o que falar sobre as inúmeras tradições existentes que são abso-
lutamente incoerentes entre si? Como discernir entre uma e outra sem cair no
erro historicista? Sem relativizar toda a moral, ética, política, sociedade, etc.,
a partir do argumento de que cada comunidade possui seu próprio senso de
verdade, manifestado em sua realidade temporal e espacial – sendo que esse
não deve ser criticado a partir de padrões contemporâneos (ou, muito menos,
34
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44
A tradição, em si, contudo, não é uma norma ou modelo para determinar qual
deveria ser a atitude de alguém diante de um poder que chama a si mesmo de
“progressista”. A tradição contém o bom e o mau, e assim ela própria está sujeita
à norma histórica.33
31 Nesse sentido, é possível abordarmos que existe uma idolatria da tradição nas ideologias
políticas que adotam uma perspectiva historicista, ao defenderem que as tradições de determinado povo,
por mais que aparentem ser moralmente reprováveis, não podem ser, de fato, julgadas pelo nosso crivo
cultural – o próprio conceito de crivo cultural é posto em xeque, na realidade. Analisando a evolução
do historicismo, Dooyeweerd esclarece o entendimento historicista nesse quesito, revelando a idolatria
em destaque: “Todas as nações têm sua própria mente individual, seu Volksgeist. A nação revela sua
própria cultura em uma liberdade criativa autônoma, incluindo sua própria organização política, lingua-
gem, cultura, ordem jurídica, belas-artes e assim por diante. Padrões gerais de constituições políticas e
de leis, de padrões estéticos e morais, etc., adaptáveis a todas as pessoas em todos os tempos, segundo
imaginava a filosofia racionalista da Revolução Francesa, não existem”. DOOYEWEERD, Herman. No
crepúsculo do pensamento: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. São Paulo:
Hagnos, 2010, p. 130.
32 Os conservadores estão cientes dessa crítica. João Pereira Coutinho afirma: “Existe uma distin-
ção crucial entre a afirmação de que sociedades distintas se organizam distintamente (o que parece ser
uma evidência empírica que qualquer pessoa racional aceita e subscreve) e a afirmação radicalmente
diferente de que algumas sociedades, para não dizer todas, podem viver e sobreviver dispensando cer-
tos valores básicos e fundacionais”. COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras: explicadas a
revolucionários e reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 50 e 51.
33 DOOYEWEERD, Raízes da cultura ocidental, p. 91.
34 Como existe um grande número de cristãos conservadores, muitos captam essa crítica e lutam
para superá-la, propondo um conservadorismo cristão. Entretanto, o alerta deve permanecer para todos
nós cristãos: a tradição não é suficiente. Como alerta Gene Veith, ecoando Gênesis 2.15: “Tanto as
funções tradicionalistas quanto as progressistas são extremamente importantes e valiosas. Embora elas
pareçam ser opostas, na verdade são complementares. Elas existem em tensão, mas, ao mesmo tempo,
em harmonia”. VEITH JR., Gene Edward. De todo o teu entendimento: pensando como cristão num
mundo pós-moderno. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 59.
35
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS
36
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44
39 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Editora Escala,
2009, p. 72.
40 Ver a crítica coletivista já feita ao socialismo.
41 “A associação simbiótica privada e natural é aquela em que as pessoas casadas, os parentes
consanguíneos e os por afinidade, em resposta ao afeto e à necessidade naturais, concordam com uma
comunicação definida entre eles. [...] essa associação é considerada a sociedade, a amizade, os relaciona-
mentos e a unidade mais intensos, o canteiro para as sementes de todas as outras associações simbióticas;
daí a razão de os aliados simbióticos serem chamados de parentes, afins e amigos”. ALTHUSIUS,
Política, p. 121.
37
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS
seguidores de uma tal ideologia, serão tentados, assim, a compensar essa falta
de substância com o uso da força coercitiva.42
38
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44
ocorre pela inversão do pecado original – neste caso, destruindo a posse da propriedade privada. E o
‘redentor’ é o proletariado, os trabalhadores de fábrica urbanos, que se revoltarão em revolução contra
seus opressores capitalistas”. PEARCEY, Nancy. Verdade absoluta: libertando o cristianismo de seu
cativeiro cultural. Rio de Janeiro: Editora CPAD, 2012, p. 152.
47 O aspecto religioso dessa narrativa fica claro, também, no comentário que Ludwig Von Mises
faz acerca dos comunistas, socialistas e intervencionistas: “O dogma fundamental dessa crença proclama
que a pobreza é resultado de instituições sociais injustas. O pecado original, que privou a humanidade
de uma vida feliz nos jardins do paraíso, foi o estabelecimento da propriedade privada e da empresa. O
capitalismo atende apenas aos interesses egoístas dos ferozes exploradores, e condena as massas de homens
íntegros ao empobrecimento e degradação progressivos. O que é necessário para tornar prósperas todas as
pessoas é a submissão dos exploradores gananciosos ao grande deus chamado estado. O motivo ‘lucro’
deve ser substituído pelo motivo ‘serviço’. Felizmente, dizem eles, nem as intrigas, nem a brutalidade
provenientes dos infernais ‘monarquistas da economia’ conseguem dominar o movimento reformista.
A chegada da era do planejamento central é inevitável. Haverá então fartura e abundância para todos”.
MISES, Ludwig von. A mentalidade anticapitalista. Campinas, SP: Vide Editorial, 2013, p. 93-94.
48 Essa imanência é vista, também, em sua visão acerca dos problemas culturais, sociais, econômicos
e políticos a serem “combatidos”. Desconsidera-se a existência de qualquer problema que transcenda
a ordem daquilo que é visível ou, eminentemente, natural – uma perspectiva do homem como pecador,
decorrendo desse fato as misérias humanas, inconcebível, portanto, para muitas dessas visões. Thomas
Sowell, comentando as visões de mundo que adotam tal noção, afirma: “Tendo em vista as possibilidades
irrestritas do homem e da natureza, a pobreza ou outras fontes de insatisfação somente poderiam ser o
resultado de intenções maldosas ou de cegueira diante de soluções rapidamente alcançáveis por meio
da mudança das instituições existentes”. SOWELL, Conflito de visões, p. 37.
39
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS
49
FERREIRA, Franklin. Contra a idolatria do Estado: o papel do cristão na política. São Paulo:
Vida Nova, 2016, p. 142.
50 É interessante observar a similitude entre esses questionamentos atuais e uma linguagem própria
da religião, que, desde os Salmos, encara o sofrimento e os problemas questionando-se “Onde estava
Deus?”. Franklin Ferreira alerta exatamente sobre isso ao afirmar: “O Estado tem assumido papel re-
dentor – e a mistura dessas funções [do Estado e da Igreja] vem causando sérios problemas em ambas
as esferas. Portanto, devemos desconfiar do uso de linguagem religiosa misturada às bandeiras políticas,
partidárias ou ideológicas, pois a linguagem das duas esferas não pode se confundir”. Ibid., p. 82.
40
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44
O Estado foi contado como parte do dito “terreno natural”, e a visão pagã,
aristotélica, predominou. Tal visão se resumia a isto: o Estado é a forma mais
elevada de comunidade. Todas as demais relações sociais, tais como casamento,
família, relações de sangue, agremiações vocacionais e industriais, todos esses
são meramente componentes subordinados que servem ao mais elevado.52
41
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS
E por outro lado também que, em virtude de nosso impulso natural, devemos
sempre vigiar contra o perigo que está escondido no poder do Estado para nossa
liberdade pessoal.54
Nem uma única esfera diferenciada da vida – de acordo com sua verdadeira
natureza – pode abarcar o homem em todos os relacionamentos culturais. A
ciência é tão incapaz disso como o é a arte; o Estado não é mais adequado para
fazer isso do que a igreja institucional, o mundo dos negócios, a escola, ou uma
organização trabalhista. Por quê? Porque cada uma dessas esferas, de acordo
com sua natureza interna, é limitada em sua esfera cultural de poder. A esfera
de poder do Estado, por exemplo, é tipicamente caracterizada como o poder da
espada. Esse poder é, indubitavelmente, atemorizador. Mas ele não pode abarcar
o poder da igreja, ou das artes, ou das ciências.57
À luz de tudo o que fora dito, retomamos a pergunta inicial: Qual a me-
lhor visão política para o cristão adotar? Acredito que não existe uma resposta
exatamente direta a esse questionamento. Todas as ideologias políticas, por
serem criações de homens caídos, possuem aspectos idolátricos – umas de
forma mais acentuada, sem dúvida. Todas as ideologias políticas, por serem
criações de homens criados à imagem e semelhança de Deus, possuem aspectos
de verdade – umas bem menos que outras, isso é inquestionável. Nenhuma
delas deve ser aceita de forma irrefletida pelos cristãos. O cristão precisa ser
crítico a partir de uma cosmovisão biblicamente orientada, retendo aquilo
que há de bom nelas e rejeitando o que há de mau. Mais que isso, precisamos
42
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44
desenvolver uma visão política que seja distintamente cristã,58 para evitarmos
cair no risco de pensar a política a partir de uma colcha de retalhos retirados
das demais ideologias.
CONCLUSÃO
“O homem só será perfeitamente feliz quando for livre. O homem só
será perfeitamente feliz quando todos forem iguais. O homem só será perfei-
tamente feliz quando existir harmonia em sua nação. O homem nunca será
perfeitamente feliz, mas pode ser mais feliz ou permanecer feliz se preservar
as tradições. O homem será mais feliz quando deixar de ser tão individualista.
Somente em uma sociedade verdadeiramente democrática o homem pode ser
verdadeiramente feliz. Para o homem ser mais feliz, precisamos preservar sua
individualidade.”
O que existe em comum em todas essas respostas, dadas pelas diferentes
ideologias? O que isso nos diz sobre o fim principal do homem? A resposta é:
a busca pela felicidade, por satisfação, por sentido, por significado, por des-
canso, por paz como fim último da existência.59 No fim das contas, podemos
traçar esse objetivo comum em todas as ideologias por corresponderem a um
desejo profundo do coração do homem, conforme Agostinho de Hipona bela e
brilhantemente afirmou: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração,
enquanto não repousa em ti”.60 Somente em Deus alcançamos a felicidade que
as ideologias, e seus ídolos, prometem.
ABSTRACT
The Christian involvement in the public arena, especially in the area of
politics, is the subject of constant discussion. Numerous issues are raised in
this field, such as those related to man’s ultimate purpose of glorifying God
in every aspect of life. This article has in view to help Christians in the task
58 Muitos materiais citados ao longo deste artigo tentam desenvolver tal paradigma, sendo, portanto,
valiosos instrumentos para nós cristãos.
59 Em certo sentido, essa busca é pela eternidade. Por aquilo que é pleno, que é cheio de significado,
que é imperecível. Isso explica a razão de a percepção política, quando “tornada” em ideologia, ter um
caráter religioso, idolátrico. A fé é o que conecta o tempo – nossa vida diária, a existência imanente –
com a eternidade. E é pela fé que as ideologias se pautam, em última análise, ao elevarem ao status de
divindade aspectos criados. Nesse sentido, Dooyeweerd afirma: “Como resultado da queda, a revelação
de Deus na criação, especialmente sua revelação no coração da humanidade, assumiu o caráter de uma
opinião. Onde o coração se fechou e se afastou de Deus, também a função da fé se fechou para a luz
da Palavra de Deus. No entanto, a função de fé ainda permaneceu na posição limite entre o tempo e a
eternidade. De acordo com sua própria natureza, permaneceu orientada para a base sólida da verdade e
da vida, que se revelou na criação. Depois da queda, no entanto, a humanidade buscou essa base sólida
dentro da própria criação, idolatrando e absolutizando o que é, na verdade, relativo e não autossuficiente”.
DOOYEWEERD, Raízes da cultura ocidental, p. 118.
60 AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 1997, p. 19.
43
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS
of, from a Christian worldview, dialoguing with some of the main political
ideologies of our time: liberalism, Marxism, conservatism, democracy, and
nationalism. In order to achieve this purpose, the author initially relates the
concepts of ideology and idolatry. Then, departing from the concept of idolatry,
he analyzes the main political ideologies, which are organized in terms of the
idols that stand in their altars: the individual, community, tradition, equality,
and the State. Finally, two aspects are observed that bring together political
ideologies, namely, the autonomous foundation and the search for satisfaction
as an end, with the conclusion that the Christian must relate critically with the
political ideologies.
KEYWORDS
Christian worldview; Idolatry; Politics; Political ideologies.
44
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62
RESUMO
A fé reformada ou o calvinismo histórico abraça a convicção de que a
redenção é particular, ou seja, de que Jesus Cristo morreu para salvar apenas o
seu povo, as suas ovelhas, e não todos os homens indistintamente. Ao contrário
do que se imagina, essa doutrina não contradiz a oferta universal do evangelho a
todos, antes é um poderoso estímulo a ela. Na verdade, a “redenção particular”
é o fundamento do anúncio geral das boas novas. Somente ela é coerente com
o conteúdo do evangelho, ou seja, que todos os seres humanos são pecadores
e incapazes de se salvar, que Cristo foi escolhido “no seu sangue, como propi-
ciação, mediante a fé”, que a reconciliação é obra pessoal de Deus e que todo
homem tem o dever de se arrepender e crer.**
PALAVRAS-CHAVE
Teologia reformada; Calvinismo; Pacto; Redenção particular; Arminia-
nismo; Pregação do evangelho.
INTRODUÇÃO
Há mais ou menos vinte anos, a fé cristã era objeto de um blackout, por-
que Deus, julgado incongruente e ultrapassado, “estava morto”. Hoje, nossos
* O autor nasceu em Liverpool, na Inglaterra, e reside no Sul daquele país. É professor emérito da
Faculdade João Calvino, em Aix-en-Provence, na França, e editor-chefe da revista Unio cum Christo. Sua
tese de doutorado (Th.D.) na Universidade Livre de Amsterdã, James Barr and the Bible: Critique of a
New Liberalism (James Barr e a Bíblia: crítica de um novo liberalismo, 1980) foi novamente publicada
em 2016 pela editora Wipf and Stock. Em 2010, recebeu um grau honorário (D.D. Honoris Causa) do
Seminário Teológico Westminster, em Filadélfia.
** Este artigo foi publicado originalmente em La Revue Reformée 194 (1997-3): 63-85. O texto
reproduz uma conferência dada na “Pastorale” de Dijon em 1993. Tradutor: Paulo Sérgio Athayde Ribeiro.
45
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO
46
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62
Esta doutrina tem como único alvo especificar por quem o Pai entregou
seu Filho à morte e por quem Cristo se deu com o propósito de libertá-lo. Em
47
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO
48
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62
pela cruz, e o pacto “da graça”, que é o meio histórico de realização. Francisco
Turretino6 diz que são duas as condições da mediação de Cristo. Cristo foi dado
como redentor dos homens e homens foram dados a Cristo. Estes dois atos
alcançam as mesmas pessoas. Do contrário, Deus teria falhado. Para realizar o
pacto de redenção, Jesus se empenha na realização de dois atos:
• Sua morte, pela qual ele se deu como garantia e satisfação pelos pe-
cados humanos (uma transação legal);
• Sua ressurreição, pela qual ele é o cabeça da nova humanidade, da
igreja, daqueles que lhe foram dados “como recompensa”.
6 TURRETIN, F. The Atonement of Christ. Grand Rapids, MI: Baker, 1978 (1859), p. 114 ss.
François Turretin ou Francisco Turretino foi um teólogo de Genebra e sucessor de Calvino no século 17.
49
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO
“Eu prefiro crer em uma redenção que seja eficaz para todos aqueles a
quem foi destinada a crer em uma “redenção universal” que seja eficaz somente
quando a vontade humana permitir”.
“Alguém dirá com insistência que Cristo morreu por todos. Mas, então,
por que todos não são salvos? Porque todos não querem crer. Isso quer dizer
que a fé seria necessária para que o sangue de Cristo seja eficaz para a reden-
ção? Nós consideramos isso uma grande mentira.”
• Deus quer que todos os homens sejam salvos, mas seu desejo é im-
potente. Ele espera a resposta do homem:
“Se a intenção de Cristo era salvar todas as criaturas, oh!, como ele deve
ter ficado decepcionado!”
7 CUNNINGHAM, W. Historical Theology. Edimburgo: Banner of Truth, 1960 (1862), vol. II,
p. 323-369; CUNNINGHAM, W. The Reformers and the Theology of the Reformation. Edimburgo:
Banner of Truth, 1967 (1862), p. 413-470. William Cunningham (1805-1861), foi deão do New College,
em Edimburgo, na Escócia.
50
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62
51
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO
vontade de Deus em salvá-los em seu amor. John Murray afirma que o amor
é a fonte de todos os dons que Deus dá aos ímpios.8 Por trás da oferta geral de
salvação está o amor de Deus; não um sentimento vago para com o pecador,
mas uma disposição favorável e real que se concretiza no fato de que Deus lhe
indica o caminho da salvação. “Acaso, tenho eu prazer na morte do perverso? ...
não desejo eu, antes, que ele se converta dos seus caminhos e viva?” (Ez 18.23).
A oferta do evangelho não tem como alvo revelar o amor de Deus aos
homens. Ela é o instrumento dessa revelação. Seu objetivo é exibir os atributos
de Deus: a glória do próprio Deus que é amor. A glória de Deus e a realidade de
seu amor por suas criaturas, que se expressam na oferta geral, também devem
determinar em que espírito a pregação do evangelho deve ser feita. Não somos
frequentemente culpados de ter um amor frio para com Deus e por isso nosso
desejo de ver o pecador vir a Cristo fica enfraquecido?
8 MURRAY, J. The Forgotten Spurgeon. Edimburgo: Banner of Truth, 1978, p. 69-116. MUR-
RAY, J. “The Free Offer of the Gospel”. In: Collected Writings. Edimburgo: Banner of Truth, 1982,
vol. IV, p. 113-132. John Murray foi professor no Seminário Westminster, em Filadélfia, de 1937-1966.
52
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62
Cristo conduz sua ação com a firme intenção de atrair a si todos aqueles que
pertencem ao Pai. Ele é bastante poderoso para salvar; a mediação formal-
mente realizada na cruz se completa na aplicação da salvação e na intercessão
em favor dos seus filhos. Todos os seus virão a ele e, como diz John Bunyan,
“Cristo não encontrará neles nada que lhe desagrade”.9
Na oferta geral, existem duas aplicações dessa verdade. A expiação é
apresentada e ofertada a todos, porque o sacrifício de Cristo é impessoal. Na
pregação da cruz o amor de Deus é anunciado a todos, sem alusão à eleição
ou à não eleição de uns e de outros. É a obra da cruz que é apresentada na
pregação evangélica, porque é aí somente que o amor de Deus é conhecido.
O pregador não tem nenhum mandato para ir além e acrescentar “Deus vos
ama” e ainda menos para afirmar que “a graça de Deus é para todos, sem ne-
nhuma condição”. Deus não exprime seu amor diretamente ao pecador, mas
pela mediação da cruz. A relação entre Deus e o pecador é de julgamento e de
graça, que ganha sentido somente na perspectiva do Calvário.
O que sabemos, de fato, sobre o amor de Deus e de sua graça por X ou
por Y, pecadores como nós diante de Deus? Nada. Um e outro têm, talvez, um
câncer e podem morrer em seis meses e perder-se eternamente. O que lhes
devemos dizer com urgência?
Em segundo lugar, o pregador, como Deus mesmo faz, tem o dever, em
suas declarações, de esconder-se atrás da cruz. Ele não está qualificado para
administrar a graça de Deus. Por outro lado, está qualificado para proclamar
o nome do Deus “rico em misericórdia”. O anúncio do evangelho tem como
objetivo interpelar as pessoas, não oferecer-lhes uma graça pessoal. É Cristo
quem lhes aplica individualmente sua graça; é sua tarefa, e não nossa, levar
sua obra a bom termo. Sejamos, então, modestos, dependentes de Cristo, mais
preocupados ainda que os arminianos em focar a cruz e mais desejosos em ver
Cristo completar sua obra de reconciliação. Aí os pecadores dirão sim à causa
de Cristo... apesar de nós!
9 BUNYAN, John. Come and Welcome to Jesus Christ: A Discourse on John 6:37. Bunyan
(1628-1688), um puritano reformado, é autor do célebre O Peregrino.
53
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO
10 K. Schilder (1880-1952), teólogo e pregador holandês, foi autor de uma trilogia sobre os sofri-
mentos de Cristo.
54
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62
55
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO
a salvação daqueles que recebeu do Pai. Sua missão é comunicar sua graça aos
seus e tornar efetiva sua vinda. A oferta do evangelho, que conduz à “vocação
eficaz” do pecador, implementa, em seu caso, a razão de ser da cruz:
A pregação da boa nova deve conter esses aspectos. Por isso Paulo, após
ter declarado que Deus quer que “todos os homens sejam salvos e cheguem
ao pleno conhecimento da verdade”, ou seja, depois de evocar a compaixão
de Deus e como ela se manifesta, afirma que foi estabelecido como pregador
e apóstolo para proclamar o evangelho (1Tm 2.4-6).
56
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62
Quem, então, virá a Cristo? Aquele que foi tomado pelo que Cristo fez
e que leva a sério a sua palavra. É necessário insistir sobre este ponto desde
o início, porque toda posição teológica que o negligencia vai inevitavelmente
admitir a capacidade do homem como sujeito da salvação. O Messias é todo-
-poderoso, enquanto que o homem é incapaz.
57
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO
• O evangelho é verdadeiro;
• A salvação é somente pela fé em Cristo;
• Todo pecador precisa de um Salvador;
• Cristo salvará o pecador se este se entregar a ele, conforme as indi-
cações do Evangelho.
11 OWEN, John. Works. Edimburgo: Banner of Truth, 1960 (1850-1853), vol. X. John Owen,
grande teólogo puritano do século 17, foi autor prodigioso e capelão de Cromwell.
58
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62
12 Charles Hodge (1797-1878) foi professor no Seminário de Princeton e autor de uma excelente
teologia sistemática.
13 Abraham Kuyper (1837-1920), teólogo e primeiro ministro dos Países Baixos, escreveu, entre
outras, uma obra notável sobre o Espírito Santo.
14 Para os reformadores, a fé não é somente um conhecimento, mas antes de tudo confiança
(fiducia).
59
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO
60
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62
A fé consoladora não pode ser apresentada como uma razão para crer;
ela é apenas consequência do ato de fé. A inversão dessa ordem é o erro do
arminiano.15 Da mesma maneira que diz ao pecador “Deus o ama”, ele solicita
sua fé pessoal e lhe pede para crer que Cristo morreu por ele pessoalmente.
Ora, o evangelho não nos pede para crer que “Cristo morreu por você”, mas
para crer em Cristo. Spurgeon, como sempre, foi ao ponto. Ao crer que Cristo
morreu por você, diz ele, você pode crer naquilo que não é verdade. E assim
podemos ir para o inferno por não termos vindo a Cristo conforme o evange-
lho, tendo crido simplesmente que Cristo morreu por nós! A essência da fé que
salva não reside nessa segurança. A fé que salva é aquela que confia em Cristo
e descansa nele para sua libertação. Estar seguro de que Cristo me salva é fruto
da fé que salva, isto é, a confiança posta em Cristo para ser salvo.
CONCLUSÃO
A “redenção particular” é o fundamento do anúncio geral do evangelho.
Somente ela é coerente com o conteúdo do evangelho, ou seja, que todos os
seres humanos são pecadores e incapazes de se salvar, que Cristo foi escolhido
“no seu sangue, como propiciação, mediante a fé” (Rm 3.25), que a reconci-
liação é obra pessoal de Deus e que todo homem tem o dever de se arrepender
e crer. Essas verdades existem para satisfazer suas verdadeiras necessidades.
A pregação de hoje, em vez de excitar o orgulho de seus ouvintes, deveria
lembrá-los disso claramente.16
15 Erro infelizmente também cometido por Wesley. Ver: SCHLUCHTER, A. “Wesley e Whitefield,
uma controvérsia sobre a evangelização”. La Revue Réformée 37 (1986:4), p. 177ss.
16 Outras obras relevantes sobre o tema são: BLOCHER, H. “Le champ de la rédemption dans la
théologie moderne”, Hokhma, n° 43, p. 25-48. HELM, P. “The Logic of Limited Atonement”. Scottish
Bulletin of Evangelical Theology (1985:2), p. 47-54. JOHNER, M. “L’universalité et la particularité du
61
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO
ABSTRACT
The Reformed faith or historical Calvinism embraces the conviction that
redemption is particular, namely, that Jesus Christ died in order to save only
his people, his sheep, not every man indiscriminately. Contrary to general per-
ception, this doctrine does not contradict, rather it is a powerful incentive to,
the universal offer of the gospel to all. In fact, “particular redemption” is the
foundation for the general proclamation of the good news. Only this doctrine is
coherent with the content of the gospel: that all human beings are sinners and
unable to save themselves, that Christ was chosen “in his blood, as a sacrifice
of atonement, through faith”, that reconciliation is a personal work of God,
and that every man has the duty to repent and believe.
KEYWORDS
Reformed theology; Calvinism; Covenant; Particular redemption; Armi-
nianism; Preaching of the gospel.
salut chrétien”. La Revue réformée (1988:4), p. 17-40. DE JONG, A. C. The Well-Meant Gospel Offer.
The Views of H. Hoeksema and K. Schilder. Franeker: Wever, 1954. NICOLE, R. “John Calvin’s View
of the Extent of the Atonement”. Westminster Theological Journal (1985:2), p. 197-225. WARFIELD,
B. B. “God’s Immeasurable Love”. In: Biblical and Theological Studies. Filadélfia: P&R, 1952, p. 505-522.
WELLS, Paul. Entre ciel et terre. Lausanne: Ed. Contrastes, 1991, Apêndice II. WITSIUS, H. The Economy
of the Covenants Between God and Man. Escondido, CA: P&R (distr.), 1990 (1822), vol. I, p. 255-270.
62
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 63-70
RESUMO
A urbanização é uma realidade em cada continente. Está ocorrendo em
diferentes proporções e diferentes níveis, mas é inquestionável. Nesse processo,
as nações (panta ta ethne) estão se mudando para as cidades. Todavia, a igreja
ainda precisa fazer essa transição, intelectual, estratégica e teologicamente.
De muitas maneiras, a igreja está despreparada para o ministério na cidade.
Sua herança e treinamento teológico não a equiparam para as exigências da
urbanização. Visto que o desafio urbano não irá desaparecer, os cristãos não
podem continuar ficando fora da cidade. A igreja deve se tornar parte da ci-
dade, integrada na cidade, a fim de conquistar a cidade para o reino de Deus.
O que isso significa para a educação teológica? Existe algum tipo especial de
educação teológica necessária para o ministério urbano? Precisamos reavaliar e
repensar nossas próprias filosofias, estratégias e currículos à luz desse desafio
à igreja? Não é papel da educação teológica equipar os futuros líderes da igreja
para serem líderes em todos os sentidos? Essas são algumas das indagações
que este artigo procura responder.1
PALAVRAS-CHAVE
Urbanização; Ministério urbano; Educação teológica; Estratégia de missão
urbana; Estratégia de missões; Globalização; Currículo teológico.
63
VALDECI S. SANTOS, EDUCAÇÃO TEOLÓGICA PARA UM MINISTÉRIO URBANO MULTICULTURAL
INTRODUÇÃO
A diversidade cultural e étnica parece estar sempre apresentando desafios
teológicos e práticos aos cristãos. Entre esses desafios estão o reconhecimen-
to e o convívio necessários provenientes da diversidade cultural, o respeito
pelas diferenças e o estabelecimento de um fórum prático de comunicação e
cooperação.2 Uma sociedade multicultural ainda força a lembrança de que a
imagem do Reino de Deus oferecida nas Escrituras é a de um reino multiétnico
e multicultural, e não de uma realidade monofórmica. A igreja neotestamentária
também ministrou e proclamou o evangelho em um contexto multicultural e,
por sua vez, urbano (cf. At 2.5-12, 13.1-3). Tais fatores podem ser utilizados
como combustível em prol do esforço por encontrar uma metodologia e ela-
borar um currículo de educação teológica que seja contextual e relevante aos
desafios urbanos que cercam a igreja nas megacidades.
2 SCHREITER, Robert J. The New Catholicity. New York: Maryknoll, 1999, p. 95.
3 GREENWAY, Roger S. “Urbanization and Missions”. In: MCGAVRAN, Donald (Org.). Crucial
Issues in Missions Tomorrow. Chicago: Moody Press, 1972, p. 227.
4 Ibid., p. 230.
5 Accrediting Council for Theological Education in Africa.
6 CONN, Harvie M. “Theological education for the city”. Urban Mission, Dec. 1992, p. 3.
64
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 63-70
7 Ibid.
8 Ibid., p. 4.
9 Ibid.
10 ROOY, Sydney H. “Theological education for urban mission”. In: GREENWAY, Roger S.
(Org.). Discipling the City. Grand Rapids, MI: Baker, 1992, p. 228-235.
11 COMBLIN, José. Viver na cidade. São Paulo: Paulus, 1996.
12 NUNES, Élton O. Reconhecimento do MEC para cursos de teologia. Jornal Soma, fev. 2001,
p. 9.
13 AMARAL FILHO, Wilson do. Educação teológica nos seminários da IPB. Revista Teológica,
maio-agosto 1997, p. 67-73, e JUNTA DE EDUCAÇÃO TEOLÓGICA, Reforma da educação teológica
da IPB. Brasil Presbiteriano, nov. 2000, p. 16.
65
VALDECI S. SANTOS, EDUCAÇÃO TEOLÓGICA PARA UM MINISTÉRIO URBANO MULTICULTURAL
66
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 63-70
67
VALDECI S. SANTOS, EDUCAÇÃO TEOLÓGICA PARA UM MINISTÉRIO URBANO MULTICULTURAL
3. A ATENÇÃO A UM CURRÍCULO
Além de ser comprometida com a formação do caráter e com a contextua-
lização, a educação teológica para um ministério urbano multicultural precisa
estar enraizada em princípios relevantes para experiências interculturais. Ela
precisa equipar pessoas para decifrar seu contexto social e comunicar a mensa-
gem do evangelho tão eficientemente quanto possível nesse mesmo ambiente.
Os missionários em contextos multiculturais precisam ser capazes de reconhe-
cer como a cultura afeta a identidade, o comportamento, as crenças, o conheci-
mento e a comunicação das pessoas.27 Paige sugere quatro fatores necessários
para o desenvolvimento dessa sensibilidade: (1) conhecimento da cultura a
ser abordada, (2) acesso a variados encontros multiculturais, (3) competência
na comunicação e (4) elementos de conexão com a outra cultura.28 Cada um
desses fatores deve ser considerado na elaboração de um currículo dirigido à
educação teológica para um ministério em um contexto multicultural urbano.
Algumas características distintas dos contextos urbanos também pedem
maior atenção a aspectos específicos na elaboração de currículos teológicos
para os mesmos. Por exemplo, o caráter fragmentado das cidades requer ele-
mentos que promovam conexão e interações humanas. A dificuldade econômica
presente nas cidades requer uma atenção à injustiça e às desigualdades sociais.
Finalmente, o secularismo urbano convida a uma demonstração prática e sadia
do relacionamento cristão.
Sugerindo um currículo teológico para contextos urbanos, Greenway
apresenta alguns pontos básicos que podem ser adaptados a diferentes reali-
dades sociais. Segundo ele, tal currículo deveria conter:
68
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 63-70
CONCLUSÃO
Este artigo não explorou todos os desafios e oportunidades encontradas
em um contexto urbano multicultural. Ele apenas procurou analisar alguns
aspectos dos desafios educacionais de tal contexto. Os aspectos aqui analisados
apontam para as seguintes necessidades da educação teológica neste contexto:
(1) conteúdos integrados, (2) formação do conhecimento e (3) metodologias
flexíveis.
Precisam ser feitos estudos aprofundados sobre áreas específicas da
educação teológica em contextos urbanos multiculturais. Tem havido um certo
temor entre missionários urbanos de que, “por mais bem-intencionados que os
currículos tradicionais possam ser, eles são tão mal equipados para entender
o complexo mundo urbano ou para treinar ministros e missionários para esses
contextos que precisam ser urgentemente revistos.30 Nesse sentido, o desen-
volvimento de um currículo para educação teológica urbana é uma tarefa que
exige coragem, imaginação e sabedoria oriunda do estudo da Palavra do Senhor.
ABSTRACT
Urbanization is a reality in every continent. It is happening at different
rates and at different levels, but it is undeniable. Through this process, the na-
tions, panta ta ethne, are moving to the cities. But the church has yet to make
that move, intellectually, strategically, and theologically. In many ways, the
69
VALDECI S. SANTOS, EDUCAÇÃO TEOLÓGICA PARA UM MINISTÉRIO URBANO MULTICULTURAL
church is unprepared for ministry in the city. Its heritage and its theological
training have not equipped the church for the demands of urbanization. Since
the urban challenge will not go away, Christians cannot continue to stand
outside the city. The church must become part of the city, integrated into the
city in order to capture the city for the kingdom of God. What does this mean
for theological education? Is there some kind of special theological education
needed for urban ministry? Do we need to re-evaluate and re-think our own
philosophies, and strategies, and curriculums in light of this challenge to the
church? It is not the role of theological education to equip the future leaders
of the church to be leaders in every way? These are some of the questions this
article intends to answer.
KEYWORDS
Urbanization; Urban ministry; Theological education; Urban mission
strategy; Globalization; Theological curriculum.
70
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
RESUMO
Dentre outros reformistas, o grupo de Hartlib, atraído pelos princípios
da Reforma Protestante, figurou entre os que anelavam a reforma completa
na Inglaterra do século 17. Seus integrantes estavam convictos de que a reno-
vação espiritual e intelectual protestante ofereceria as bases para se implantar
a nova visão cultural e social. Acreditavam que a reformulação do modelo
educacional e filosófico vigente alavancaria a reforma geral inglesa, ou seja,
a completa reforma da religião, da cultura, da política, da economia e das
outras demandas sociais. Os hartlibianos se destacaram entre os que nutriam a
expectativa de que a Inglaterra deveria ocupar o centro mundial da divulgação
do conhecimento, bem como reunir a liderança protestante da Europa. Seus
membros e apoiadores tencionaram, durante a efervescência puritana, promo-
ver um ambiente e ocasião favoráveis às inovações intelectuais e técnicas que
pudessem desenvolver os avanços sociais desde a medicina até a mineração
e a agricultura inglesa. Tudo indica que os trabalhos que empreenderam entre
1640 e 1660 outorgaram parte do arranjo inicial de uma sistematização em
ciência que a Inglaterra e o mundo desconheciam antes da década de 1640 e
à qual, pela atividade que exerceram, a Royal Society de Londres pôde dar
seguimento a partir de 1662.
PALAVRAS-CHAVE
Inglaterra; Reforma; Protestantismo; Hartlibianos; Educação; Ciência.
* O autor é engenheiro civil, bacharel em Teologia pelo Seminário José Manoel da Conceição
(JMC), mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutor em História
da Ciência pela PUC-SP. É ministro presbiteriano e pastoreia a Igreja Presbiteriana de Peruíbe (SP).
71
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
INTRODUÇÃO
Como exemplo legítimo da cultura, da intelectualidade e da influência
social protestante do século 17, os hartlibianos testemunharam as aspirações
comuns a homens fascinados pelo conhecimento, insaciáveis pelo saber e
incansáveis na luta por reformas que atingissem, quiçá, o mundo da época, a
partir de uma Inglaterra renovada espiritualmente e intelectualmente.
De fato, o grupo de Hartlib representou uma parte importante da força so-
ciocultural que tencionava implantar, bem no auge do puritanismo (1640–1660),
a reforma inglesa a partir dos pressupostos protestantes destinados a coparti-
cipar da nova moldura intelectual e dos novos sustentáculos da formulação do
conhecimento que visavam o desenvolvimento do novo conceito de educação,
ciência e sociedade.
Como protestantes, os hartlibianos viam na harmonia entre religião e
educação, e entre fé e ciência, a real possibilidade de promover as desejadas
melhorias sociais e econômicas que renovariam a Inglaterra a partir de uma
visão cristã de mundo. Para isso elaboraram um programa que, não obstante ter
obtido sucesso apenas no interregno inglês, enfrentou, por exemplo, os ditames
aristotélicos e escolásticos presentes na educação e na ciência em meados do
século 17, tendo, deste modo, revolucionado e viabilizado o experimento e a
técnica no ambiente universitário.
Com efeito, uma breve observação dos esforços empreendidos pelos har-
tlibianos, como se julga minimamente oferecer a seguir, parece proporcionar a
rediscussão acerca da contribuição dada pelo protestantismo à prossecução do
desenvolvimento educacional e da aplicabilidade da nova ciência na Inglaterra
a partir de 1662, mais especificamente quando se tem em vista as atividades
da recém fundada Royal Society de Londres.
72
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
73
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
7 HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 30.
8 Hooykaas comenta que enquanto no período elisabetano existiam muitos calvinistas não-
puritanos, durante a Commonwealth algumas seitas de esquerda não defendiam uma teologia calvinista.
HOOYKAAS, A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, p. 176-177.
9 WEBSTER, Charles. Samuel Hartlib and the Advancement of Learning. Cambridge: Cambridge
University Press, 1970, p. 7.
74
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
10 Sobre a insatisfação gerada pelas doutrinas de William Laud, Morrill destaca a incerteza de se
poder descrever plenamente como e em que medida a doutrina da graça de Laud afastou-se da herança
calvinista cultivada por sucessivas gerações de bispos e teólogos desde 1559. Sabe-se que Laud assumiu
a crença de que o homem, moral e intelectualmente depravado, só poderia ser reconciliado com Deus a
partir da graça de uma fé salvadora, acrescida da graça sacramental mediada pela igreja. Deste modo,
o programa de Charles e Laud se tornou profundamente ofensivo para a maioria dos leigos e muito
clérigos. Tudo indica que Laud se baseou numa aplicação literal das observâncias e práticas do Livro
de Oração Comum. MORRILL, John. “The Religious Context of the English Civil War”. Transactions
of the Royal Historical Society 34 (1984), p. 163.
11 Por exemplo, a maioria dos puritanos radicais opunha-se à forma de governo episcopal da Igreja
da Inglaterra. Afirmava que os bispos, nos moldes do anglicanismo da época, eram uma invenção à
parte do que a Bíblia ensinava, uma vez que, no sistema episcopal, prevalecia a aliança entre os bispos
e a coroa, que garantia que tanto os clérigos como os reis exercessem suas funções por direito divino.
Dentre os puritanos moderados, dizia-se que a Bíblia indicava diversas formas de governo da igreja e,
portanto, o episcopado poderia ser mantido desde que voltasse à ortodoxia bíblico-reformada, como fora
nos dias de Crammer, Ridley, Hooper, Latimer e Jewell. GONZÁLEZ, Justo L. História do pensamento
cristão. 3 vol. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 277-278.
12 O rei Henrique VIII introduziu uma revolução político-eclesiástica em solo inglês quando
rompeu, em 1534, com a Igreja Católica e organizou a Igreja da Inglaterra, também conhecida como
Igreja Anglicana, da qual tornou-se chefe supremo e passou a governá-la por meio do episcopado, que
contava, ao menos inicialmente, com fortes tendências ao protestantismo reformado. Vale observar
que o rei não era essencialmente afeiçoado ao protestantismo, mas, aproveitando-se igualmente da esfera
em que muitos criam e desejavam reformar a Igreja, Henrique VIII fez de Tomás Cranmer um dos prin-
cipais propulsores da reforma da Igreja, o arcebispo de Cantuária, responsável, portanto, por encabeçar
o prelado. NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do cristianismo. São Paulo: Cultura Cristã,
2000, p. 182-204.
13 Alguns protestantes insistiam que a Igreja deveria ser governada por meio de presbitérios. Outros
afirmavam ainda a independência de cada congregação, passando a ser chamados de independentes.
Todavia, ainda que houvesse a divergência quanto à forma de governo da Igreja, os protestantes oriundos
das mais variadas denominações que compuseram a Assembleia de Westminster inspiravam-se teologi-
camente nas ideias de Calvino, Zuínglio e dos demais reformadores suíços. GONZÁLEZ, História do
pensamento cristão, vol. 3, p. 278.
75
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
14 GONZÁLEZ, História do pensamento cristão, vol. 3, p. 281. HULSE, Erroll. Quem foram os
puritanos? São Paulo: PES, 2004, p. 58.
15 A Igreja da Inglaterra contou, inicialmente, com reformadores como Cranmer, Ridley, Hooper,
Latimer e Jewell. Eram homens apegados à teologia calvinista e em plena harmonia e correspondência
com teólogos e pastores genebrinos e germânicos. Disso são prova os seus escritos registrados nos
Quarenta e Dois Artigos de Eduardo VI (1551), os artigos de doutrina da Igreja da Inglaterra (1562)
e ainda os Artigos de Lambeth, concebidos pelo arcebispo Whitgift (1595). HODGE, A. A. Confissão
de Fé Westminster comentada por A. A. Hodge. São Paulo: Os Puritanos, 1999, p. 39; HOOYKAAS,
A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, p. 175.
16 Charles I governou a Inglaterra sem o Parlamento de 1629 a 1640. A administração do país foi
mantida através da corte e dos condados, enquanto o poder político encontrava-se, principalmente, nas
mãos de 60 nobres, fidalgos e aristocratas ricos que eram donos de muitas terras. HULSE, Quem foram
os puritanos?, p. 59.
17 HODGE, Confissão de Fé Westminster, p. 40.
18 Com a intenção de obter recursos financeiros, Charles I fazia concessões aos poderosos. Outros-
sim, as parcas medidas de ordem social, política e econômica impetradas pelo rei causavam também
a crescente insatisfação da classe rural e burguesa. Assim, cada vez mais nas regiões com potencial
comercial e industrial, o rei e os bispos, que respaldavam sua causa dando-lhe aquiescência religiosa,
eram vistos como adversários e inimigos do povo. GONZÁLEZ, História do pensamento cristão, 3 vol.,
p. 282.
19 Comentando a intervenção direta do Parlamento na atuação de Charles I e do arcebispo Laud,
Morrill ressalta que a anulação dos cânones de convocação (cânones que davam plena força ao programa
de Laud) foi a primeira conquista positiva realizada pelos parlamentários. Nesse processo, Laud foi
acusado de promover heresias que davam arrimo às ações arbitrárias do rei, bem como de abusar da sua
própria jurisdição e de outros tribunais para impor ilegal observância ao silêncio dos professores da
verdadeira religião. MORRILL, “The Religious Context of the English Civil War”. Transactions of the
Royal Historical Society, p. 164.
76
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
77
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
78
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
79
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
80
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
Este canto do mundo em muito difere dos outros países e é digno de admira-
ção. O que mais me interessou foram as questões relativas à glória de Deus e o
florescimento do estado das igrejas e das escolas (...). O anseio com que uma
multidão de pessoas se dirige ao culto aos domingos é inacreditável. Londres
tem 120 igrejas e, em todas que eu visitei, posso afirmar como um fato inso-
fismável, há tanta gente que não há espaço suficiente para todos. Um grande
número de homens e jovens copiam os sermões com suas canetas. Há cerca de
30 anos, no reinado do rei James, eles descobriram uma arte que agora é moda
até entre os camponeses, ou seja, a arte da escrita rápida, a qual eles chamam
de estenografia (...). Quase todos aprendem a arte da escrita rápida assim que
aprendem a ler na escola as Escrituras no vernáculo (...). Eles têm um número
enorme de livros sobre todos os assuntos em seu próprio idioma (...). Realmente
não existem mais livrarias em Francfort na época da feira do que há aqui todos
os dias. A obra de Bacon De Scientiarum Augmentis apareceu recentemente
em inglês. Eles estão ansiosamente debatendo sobre a reforma das escolas em
todo o reino de uma forma semelhante à que, como vocês sabem, meus desejos
tendem, ou seja, que todos os jovens devem ser, sem negligência, instruídos.35
34 COMENIUS, John A. The Way of Light. Liverpool: The University Press London, 1938,
p. 172-173.
35 YOUNG, Robert F. Comenius in England. Oxford: Oxford University Press; London: H. Milford,
1932, p. 65.
81
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
2. OS HARTLIBIANOS
2.1 O Grupo de Hartlib
Hartlib, Dury e Comenius estavam convictos de que não poderia haver
a mínima contradição entre fé e ciência, entre religião e educação, entre suas
premissas teológicas e as ideias filosóficas sobre a natureza. Um exemplo disso
é que eles acreditavam que a astronomia e a filosofia natural corroborariam de
forma contundente as verdades básicas do cristianismo, como os dogmas da
Criação e da Queda, os atributos comunicáveis de Deus, a revelação divina na
natureza e as expectativas escatológicas. Além disso, viam na harmonia entre
religião e ciência a real e emergente possibilidade de melhorias socioculturais
e da formação de uma sociedade com fundamentos pautados na verdade e em
uma visão cristã de mundo.36
Em termos da cultura, da intelectualidade e da influência social protestante
do século 17, há de se notar que Samuel Hartlib tornou-se um dos mais distin-
tos estrangeiros a residirem na Inglaterra. Por meio de sua articulação, Hartlib
ocupou um lugar central na vida intelectual inglesa durante a efervescência
reformista, a ponto de o primeiro governador de Connecticut, John Winthrop,
referir-se a ele como “The Great Intelligencer of Europe”.37
Nascido em Elbing, na Prússia, Hartlib era de uma família com fortes
vínculos com a Inglaterra. Sua mãe era inglesa e seu pai e avô ocuparam um
importante papel comercial na Inglaterra (uma espécie de Comunidade de
Comerciantes), com base em Danzing e Elbing. Entre 1625 e 1626, visi-
tou a Inglaterra pela primeira vez, com vistas a completar seus estudos em
36
WESTFALL, Richard S. The Construction of Modern Science: Mechanisms and Mechanics.
London: Cambridge University Press, 1995, p. 32.
37 “O grande intelectual da Europa”. WEBSTER, Advancement of Learning, p. 2.
82
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
38 Ibid., p. 7.
39 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 187.
40 HILL, O mundo de ponta-cabeça, p. 278.
83
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
41 Sobre a peculiaridade espiritual do grupo, Webster ressalta que, através de Hartlib e de seus
amigos, a santificação na missão de propagar um programa social e religioso foi revigorada. Com esse
propósito, o círculo de Hartlib operou mais como uma irmandade espiritual internacional do que como
uma associação ou grupo político. WEBSTER, Advancement of Learning, p. 9.
42 WEBSTER, The Great Instauration, p. 42-43. Em que pese o grupo de Hartlib não se con-
figurar em um grupo político, aparenta certo exagero relacionar o interesse de seus membros apenas às
causas práticas e religiosas. Tal impropriedade parece ficar mais evidente ao se considerar a provável
motivação do ideário político-revolucionário encontrada entre alguns dos integrantes e apoiadores do
grupo ligados ao puritanismo. Baskerville, ao referir-se ao puritanismo, entende que o mesmo não se
constituiu simplesmente em uma afluência religiosa dissidente, cuja ebulição alastrou-se como um
‘subproduto acidental’ em conflito político, mas sim uma verdadeira ideologia política revolucionária.
Ver: BASKERVILLE, S. K. “Puritans, Revisionists and the English Revolution”. Huntington Library
Quarterly 61, nº 2 (1998), p. 154.
43 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 33.
44 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 190-191.
84
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
45 O termo Queda refere-se à transgressão de Adão e Eva quando pecaram contra Deus (Gênesis 3).
Por conta da desobediência, Deus sujeitou a terra aos efeitos deletérios do pecado. Logo, a partir da
narrativa bíblica da Queda, tanto Bacon como os protestantes entendiam que as artes liberais, a filosofia
natural e a ciência útil deveriam desempenhar o papel reparador de grande parte dos efeitos destrutivos
do pecado. Desse modo, o avanço do conhecimento universal era visto como mandato de Deus, que
outorgaria melhorias nas condições da vida humana. Ao usar o avanço do conhecimento para auxiliar
a restauração do seu domínio sobre a criação no estágio pós-Queda, o ser humano aliviaria, em certa
medida, o sofrimento originado pelo pecado. Ver: ROSSI, A ciência e a filosofia dos modernos, p. 79;
ver também: PEARCEY, Nancy R. & THAXTON, Charles B. A alma da ciência. São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 2005, p. 37-38.
46 BACON, Francis. O progresso do conhecimento. São Paulo: Editora Unesp, 2007, livro primeiro,
p. 89.
47 Ibid., p. 71.
48 Ibid., livro segundo, p. 117.
85
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
86
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
53 Hartlib difundiu na Inglaterra, durante vinte anos, um programa de reforma social, religiosa e
educacional que chegou a influenciar homens como Boyle e Petty. Esse programa, desenvolvido em meio
à euforia escatológica que marcou o começo da década de 1640 e que contava com a bênção de certos
líderes do Parlamento, contribuiu, segundo Hill, com o entusiasmo milenarista em criar a expectativa
de que a utopia era iminente na Inglaterra. HILL, O mundo de ponta-cabeça, p. 279.
54 Dury entendia que a chegada a Londres de Johann Stefan Rittangel era a forte evidência de que
a reforma geral lograria seus frutos e que o caminho para a volta do Messias, face à conversão prévia dos
judeus, seria definitivamente inaugurado. Rittangel, erudito professor de línguas orientais em Konigsberg,
vivera entre os judeus da Europa, Ásia e África durante vinte anos, tempo em que angariou sensível
experiência para ser, agora em Londres, um instrumento de conversão dos mesmos ao cristianismo.
TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 200.
55
WEBSTER, Advancement of Learning, p. 39; HODGE, Confissão de Fé Westminster, p. 42;
HULSE, Quem foram os puritanos?, p. 102-103.
87
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
mais que o Parlamento inglês seria como que uma parteira dessas mudanças e
que os olhos das igrejas, especialmente algumas da comunidade germânica,56
estavam fixos nos parlamentares ingleses da década de 1640.57
Com isso em vista, o círculo hartlibiano acreditava que o tempo adequado
para colocar em prática o projeto reformista havia chegado. Para seus mem-
bros, um sinal evidente da providência divina era a chegada à Inglaterra dos
agentes essenciais da reforma a partir do início da década de 1640. Dury, por
exemplo, havia mudado da Suécia para Londres a convite de Hartlib, enquanto
que Comenius, que seria o responsável pela reforma educacional, acabaria
chegando a Londres em 1641.
Com efeito, os dias que antecederam a chegada de Comenius foram marca-
dos por um momento especial de esperança e de busca de renovação espiritual,
educacional, filosófica e, consequentemente, de novas conquistas. Escrevendo
a Hartlib em 7 de fevereiro de 1641, ou seja, pouco antes de mudar-se para
Londres, Comenius deixa transparecer a euforia que contagiava seus planos
em face ao iminente descortinar de um novo e promissor tempo de avanços
na educação, no conhecimento e nas ciências, pois dizia:
56 A referência às igrejas germânicas se dá por conta das esperanças nutridas pelas igrejas da
região da Boêmia e da Morávia de que as pesarosas consequências advindas da Guerra dos Trinta Anos
pudessem cessar a partir da inauguração de um novo tempo de paz e prosperidade no qual a Inglaterra,
a partir do Parlamento, teria uma participação singular.
57 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 200.
58 HARTLIB PAPERS, document [7/84/2A].
88
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
Eis que agora vivemos, em vez de desolação, os reparos das violações antigas; em
vez de confusão, o lançamento das bases para muitas gerações construírem
em cima; em vez de temor, uma grande porta aberta, onde devemos nos manter
firmes e totalmente dedicados em toda a abundância de paz e de verdade.59
89
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
Que o trabalho deles tenda a aprofundar cada vez mais os fundamentos das
ciências para purificar e difundir entre o gênero humano, e com maior sucesso,
a luz do saber, e para que as coisas humanas progridam com novas e utilíssi-
mas invenções. De fato, quem não quiser trilhar sempre velhos caminhos, ou
mesmo retroceder, precisará pensar no progresso das coisas iniciadas. Para
isso, não é suficiente um homem ou uma época, mas é necessário que as obras
empreendidas sejam continuadas por muitos, simultânea e sucessivamente. Tal
Colégio Universal será para as outras escolas aquilo que o estômago é para os
membros do corpo, ou seja, uma oficina vital que fornece sempre aos outros
órgãos linfa, vida, força.66
90
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
67 HARTLIB PAPERS, ver documentos [7/84/2A], [7/84/2B], [7/84/3A], [7/84/3B]. Ademais, prati-
camente um ano antes de sua morte, em seu Continuatio admonitionis fraternae de temperando charitate
zelo ad S. Maresium (1669), Comenius revelou a esperança que nutria de que o Colégio Universal fosse
organizado no tempo em que esteve entre os hartlibianos, pois também escreveu: “Consequentemente,
teria sido fundado, neste momento, o Colégio como o ilustre Bacon havia desejado, dedicado a todos os
estudos sobre o mundo dos homens cujo zelo seria trazer acréscimos valorosos para a raça humana nas
ciências e nas artes. YOUNG, Comenius in England, p. 36.
68 Sobre a intenção dos hartlibianos em organizar o Colégio Universal, Narodowski ressalta que
Comenius não teve dúvidas em dirigir-se a Londres, em 1641, com a esperança de conseguir instalar o
colégio pansófico, uma vez que muitos homens de letras e de ciências estavam imbuídos do propósito de
fundar um colégio semelhante à “Casa de Salomão” (que Bacon havia planejado em sua Nova Atlântida),
e, ainda, porque esse projeto parecia poder contar com o apoio do Parlamento no provimento dos fundos
necessários. NARODOWSKI, Mariano. Comenius e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 22.
69 Tendo em vista que Comenius considerava a ciência como um organismo vivo de todos os
conhecimentos, Cauly chega a afirmar que Hartlib e os demais membros do Colégio Invisível encontra-
ram, no pensamento comeniano, os princípios éticos e científicos da sua própria atividade reformadora.
CAULY, Olivier. Comenius o pai da pedagogia moderna. Lisboa: Piaget, 1995, p. 211.
91
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
92
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
93
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
94
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
86 O Bureau d’Adresse destacava-se por operar como uma agência difusora da comunicação
erudita e intelectual, bem como na promoção de intercâmbio de informações sobre o comércio, sobre
produtos manufaturados e até mesmo sobre empregos. Ver: CLUCAS, S. “In Search of the True Logick:
Methodological Eclecticism among the Baconian Reformers”. In: GREENGRASS, M. Samuel Hartlib
and Universal Reformation: Studies in Intellectual Communication. Cambridge: Cambridge University
Press, 1994, p. 52-53. Ver também: WEBSTER, The Great Instauration, p. 68.
87 Registre-se ainda que o Office of Address teve duas repartições. A primeira, conhecida como
Office of Address for Accommodations, acabou seguindo mais detidamente o padrão do Bureau de Renaudot,
enquanto que a segunda, na qual o grupo de Hartlib se envolveu mais efetivamente, era denominada
Office of Address of Communications. WEBSTER, The Great Instauration, p. 68-69.
88 HILL, O mundo de ponta-cabeça, p. 279.
95
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
89 Hartlib fora influenciado pelas ideias de fraternidade e irmandade cristã de Johann Valentin
Andreae a ponto de encomendar e publicar, em 1641, a obra Macaria. Essa obra indicava as possibi-
lidades de reformar o estado inglês e as benesses que isto traria para toda a sociedade. Ver: TREVOR-
-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 186. Ver também: WEBSTER, Advancement of
Learning, p. 35.
90 WEBSTER, The Great Instauration, p. 68.
91 GREENGRASS, M.; LEISLIE, M.; TAYLOR, T. (Orgs.). Samuel Hartlib and Universal Refor-
mation: Studies in Intellectual Communication. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 11.
92 DUNN, K., “Milton among the monopolists: Areopagitica, intelectual property and the Hartlib
circle”. In: GREENGRASS, M. Samuel Hartlib and Universal Reformation: Studies in Intellectual
Communication. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 178-182.
93 Para mais informações sobre as divisões internas do Office of Address, ver: WEBSTER, The
Great Instauration, p. 69.
96
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
Em suma, porque Deus me tem mantido até este momento (um tempo tão de-
sejado e perto do grande ponto da virada das eras) e porque, em grande parte,
os documentos das minhas coletas de mais de vinte anos de exercício mental
me foram restaurados, estou disposto, durante os meses deste verão, outono e
94 Ibid.
95 Sobre as 65 obras publicadas pelos hartlibianos e seus respectivos títulos, ver: TURNBULL,
G. H. Hartlib, Dury and Comenius, p. 88ss.
96 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 38.
97
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
Por essas e outras razões, o Office passou a ser conhecido ainda como a
Agência do Avanço da Aprendizagem Universal, sendo comum ser chamado
também de Colégio, numa referência aos projetos de Bacon e Comenius.98
Essa espécie de agência em que se tornou o Office dividiu-se internamente
em escritórios ou repartições lideradas por professores designados. Por exem-
plo, Dury seria designado para ocupar a Repartição de Divindade; Robert Boyle
(1627-1691) para a Repartição de Mecânica; Benjamin Worsley (1618-1673)
e Culpeper para a Repartição de Agricultura e Transporte; Worsley, Thomas
Coxe (1615-1685) e Boyle para a Repartição de Filosofia Experimental; Gaspar
Godeman para a Câmara das Raridades, e ainda, Gerard Boate (1604-1650),
Worsley e Justin van Ascher para a Repartição de Medicina.99
Uma vez obtidas as condições mínimas de funcionamento, o Office of
Address tornou-se também uma espécie de centro informal para desenvolver e
aperfeiçoar a visão cristã de mundo e sociedade, ou seja, um núcleo em que boa
parte dos pressupostos protestantes voltados à sociedade e à cultura pudessem
ser direcionados à educação, à ciência e à técnica. Também atraiu e incenti-
vou o recrutamento de novos associados, aliados políticos e acadêmicos, os
quais, por meio do apoio de patronos, conseguiram empenhar-se em diversos
empreendimentos humanitários e educacionais, sempre visando uma reforma
em prol da melhoria das condições de vida do homem e da sociedade.100
Nesse sentido, mesmo sem contar com dotação pública, o grupo de Hartlib
apresentou ao Parlamento uma coleção de exposições sobre cada aspecto da
reforma educacional. Trata-se de obras e ensaios de Hartlib, Dury, Cyprian
Kinner (-1649), George Snell (-1701), John Hall (1627-1656), William Petty
(1623-1687), Cressy Dymock (1629-1660) e Benjamin Worsley, quase todas
elaboradas entre 1648 e 1650, que apresentavam o entusiasmo da reforma
educacional.101
98
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é difícil perceber que o legado dos hartlibianos não tem, ao longo
do tempo, despertado grande interesse de estudiosos, teólogos, educadores e
historiadores modernos e contemporâneos. Tal desinteresse parte, ao que parece,
de uma difusa tendência dos historiadores em selecionar suas leituras de acordo
99
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
105 ALFONSO-GOLDFARB, Ana M. A magia das máquinas: John Wilkins e a origem da mecânica
moderna. São Paulo: Experimento, 1994, p. 27-28.
100
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102
Royal Society, como John Wilkins, Theodore Haak, Robert Boyle, John Pell,
Jonathan Goddard e Christopher Wren, dentre outros.
De fato, longe de qualquer pretensão de esgotar o assunto, vale lembrar
que a ideia do mandato cultural divino parece ter dado uma motivação redentiva
para que a filosofia natural conhecesse e extraísse a essência das coisas, uma
vez que as ciências deveriam visar os fins proveitosos destinados a mitigar o
sofrimento. De igual modo, com base nesse mesmo mandato, os novos filósofos
tiveram a liberdade de associar a filosofia de Bacon com a visão bíblica da
Queda, o que, tudo indica, contribuiu para que o conhecimento experimental
abrisse as portas para uma ciência frutífera.106
Ademais, não perece ser coerente conceber como irrelevantes os esforços
do grupo de Hartlib sob a consideração pragmática de que seus intentos não
prosperaram a partir do período da Restauração. Nesse caso, talvez seja válido
considerar o quinhão outorgado pelo círculo de Hartlib no enfrentamento do
aristotelismo e do escolasticismo, ainda bastante presentes na educação e na
ciência em meados do século 17. Pois, neste aspecto, parece crível a contribui-
ção que deram para introduzir, na Inglaterra, a aplicabilidade da ciência, tendo
em vista que insistiram em viabilizar o experimento e a técnica no ambiente
acadêmico.
Igualmente, afigura-se pertinente considerar os esforços que a geração
de 1640 canalizou para alavancar a filosofia baconiana, para promover a re-
forma na educação e nas ciências, para impulsionar uma ciência frutífera, para
difundir o conhecimento, etc. Nesse sentido, parece oportuno conceber que
os hartlibianos outorgaram um legado articulado de seus trabalhos universais,
ou seja, delinearam uma amostra de propostas envolvendo a organização do
conhecimento, a distribuição de laborações e ações, a conexão e divulgação
das produções técnicas e da ciência, etc.
E ainda talvez seja justo avaliar que os trabalhos e diligências empreen-
didos ajudaram a proporcionar parte do condicionamento inicial de uma
organização em ciência que a Inglaterra não tinha antes de 1640 e a que, pela
atividade que desempenharam, a geração de 1660 pôde dar prossecução.
Por fim, não é difícil alguém perguntar se a eclosão da nova ciência
poderia ter acontecido sem o engajamento dos hartlibianos ou até mesmo do
protestantismo, tendo em vista a modernidade sustentar o divórcio entre fé
cristã e ciência. É provável que, sob o ponto de vista lógico, alguém se interesse
em responder. Todavia, para a História, não faz muito sentido empenhar-se em
reconstituir uma história diferente da que aconteceu.
106 Nesse sentido, vale lembrar também que a união da ideia baconiana acerca do poder material da
natureza com a visão protestante de regeneração espiritual, intelectual e social colaborou com a afinidade
entre o protestantismo e a ciência.
101
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...
ABSTRACT
Among other reformers, Hartlib’s group, attracted by the principles of the
Protestant Reformation, was among those who wished for a complete reform
in seventeenth-century England. Its members were convinced that Protestant
spiritual and intellectual renewal would provide the basis for a new cultural and
social vision. They believed that the reformulation of the prevailing educational
and philosophical model would leverage English general reform, that is, the
complete reform of religion, culture, politics, economics, and other social de-
mands. The hartlibians stood out among those who hoped that England should
occupy the world center of the dissemination of knowledge, as well as bring
together the Protestant leadership of Europe. During their Puritan effervescence,
its members and supporters intended to foster an environment and occasion
favorable to the intellectual and technical innovations that could advance social
achievements from medicine to mining to agriculture in England. It appears
that the work undertaken between 1640 and 1660 provided part of the initial
arrangement of a systematization in science which England and the world did
not know before the 1640s, and which, by their activity, the Royal Society of
London was able to undertake after 1662.
KEYWORDS
England; Reform; Protestantism; Hartlibians; Education; Science.
102
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118
ABSTRACT
Mystery (μυστήριον) is a quasi-technical, very important theme in the
New Testament. This article aims to shed some light on the meaning of this
concept in 1Co 14:2. The author defines mystery as “a part of the wise and
sovereign plan of God about the eschaton, which is partially present in the
Old Testament but still hidden, being revealed according to the will of God
only through special revelation.” After presenting four dissonant interpreta-
tions on the subject, the author contends for the concept above in 1 Co 14:2.
The novelty in the article is the concept of mystery as being revealed through
tongues, while at the same time its content remains veiled when the discourse
is not interpreted.
KEYWORDS
1 Corinthians 12-14; Mystery; Gift of tongues.
INTRODUCTION
Benjamin Gladd, in his doctoral dissertation on μυστήριον in 1 Corinthians,
says that “any scholar who has attempted a systematic treatment of the Pauline
μυστήριον stumbles at 1 Cor 13:2 and then really begins to falter around 14:2.”1
Raymond Brown called 1 Cor 14:2 “a very difficult passage”, but also says
that it is “not very important for the Pauline mysterion”.2 G. K. Barker, after
* Ph.D. candidate in Theological Studies, with concentration in New Testament, at Trinity Evan-
gelical Divinity School, Deerfield, Illinois. This article was initially submitted as an academic paper in
October 2015.
1 Benjamin L. Gladd, Revealing the Mysterion: The Use of Mystery in Daniel and Second Temple
Judaism with Its Bearing on First Corinthians (Berlin: Walter de Gruyter, 2009), 191.
2 Raymond E. Brown, The Semitic Background of the Term “Mystery” in the New Testament
(Philadelphia: Fortress Press, 1968), 47. Also quoted in Gladd, Revealing the Mysterion, 191.
103
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2
commenting other occurrences 1 Cor, says that “it is even more difficult to de-
termine the force of mystery in 14:2.”3 The meaning of μυστήρια in 1 Cor 14:2
is laconic, indeed. Mystery appears in the plural, it is not defined, and relates
to a phenomenon that is a colossal matter of dispute itself, the gift of tongues.
The fact that the sense of mystery is elusive did not prevent scholars
from proposing variegated meanings for mystery in 1 Cor 14:2. A. E. Harvey,
for example, defends that mysterion in the New Testament is used sometimes
with the Semitic background of raz/sôd and in other instances with influence
of the Greek concept linked to the religions of mystery. The Semitic mystery,
in Harvey’s conception has the idea of a mystery destined to be revealed, while
the Greek conception involves something never to be spoken about or showed,
but to initiates.4 Among the Semitic uses in the NT, Harvey lists Rom 16:25;
1 Cor 2:1-10; 15:51; Eph 1:9; 3:3, 4, 9; 6:19; Col 1:26; Thess 2:7, and the
instances in Revelation (1:20; 17:5, 7). Among the NT uses of mystery with
at least a little influence (“some echo”) of the Greek notion Harvey presents
the use in the gospels (Matt 13:2; Mark 4:11; Luke 8:10); 1 Cor 4:1; 14:2; Eph
5:32, and 1 Tim 3:9, 10.
About 1 Cor 14, after considering that the Corinthian “hearers and readers
may have been particularly well placed to pick up allusions to pagan institu-
tions,” Harvey affirms that there are Greek overtones in this instance because
the mysteries referred in the text are spoken in tongues, making impossible the
public understanding.5 G. W. Barker seems to agree with Harvey since he
affirms that 1 Corinthians 14:2, together with 4:1 and 13:2 presents a polemical
use, “against certain developments within the Christian assembly.”6
Another position is that Paul is using a non-technical aspect of mystery.
Thiselton, for example, says: “Elsewhere Paul often uses this Greek word to
denote what was once hidden but has now been disclosed in the era of escha-
tological fulfillment (cf. 2:1, 7; 4:1; 15:51). However, every writer uses termi-
104
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118
nology in context-dependent ways that may modify a more usual meaning, and
Paul’s usual meaning cannot make sense here without undermining his own
argument.”7 Thus, he agrees with Blomberg that mysteries in 1 Cor 14:2 simply
refer to something that “no one understands.”8 Fee also agrees and presents
the argument that mysteries in the common sense “would scarcely need to be
spoken back to God”.9 Ciampa aligns himself with this understanding making
clear that mysteries in 1 Cor 14 are the result of revelation, but the person who
speaks them does not understand:
In marked contrast, those who speak in tongues are not given any special
understanding of mysteries (at least not as part of that particular gift), but the
ability to speak them to God... In fact, not only are they expressing content,
but it is Spirit-inspired content of the type that a prophet could only dream of
comprehending!10
7 Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text
(Grand Rapids, Eerdmans, 2000), 1085.
8 Craig Blomberg, 1 Corinthians (Grand Rapids: Zondervan, 1994), 236. See also C. K. Barrett,
A Commentary on the First Epistle to the Corinthians (New York: Harper & Row, 1968), 100; Ben
Witherington III, Conflict and Community in Corinth: A Socio-Rhetorical Commentary on 1 and 2
Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 281. D. A. Carson, Showing the Spirit: A Theological
Exposition of 1 Corinthians 12-14 (Grand Rapids: Baker, 1987), 101-102.
9 Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), 656.
Calderón also agrees with this interpretation: “Sin embargo, en armonía com el uso mas general del
término por Pablo, quizá deba entenderse como verdades o realidades profundas que la persona solo
comparte com Diós y que otros, incluso cristianos, no entienden.” Carlos Calderón, “Comentário Exe-
gético a 1 Coríntios 14 (Primera de dos partes),” Kairós 43 (2008), 47.
10 Roy E. Ciampa and Brian S. Rosner, The First Letter to the Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans,
2010), 671.
11 Gladd, Revealing the Mysterion, 2009, 265.
12 “But if Paul in 1 Cor 14:2 refers to the charismatic worshipper conversant in ‘tongues of angels’
(13:2) as one who ‘speaks mysteries’ to God in his spirit, it seems a reasonable working hypothesis to
locate such notions – at least in Paul’s mind – in the realm of Jewish apocalyptic and early mysti-
cism (cf. on 2 Cor 12:1ff. bellow). The apostle is asking those who gaze upon the heavenly mysteries
to respect the edification of the church and to limit their use of this gift in corporate worship to those
instances when the meaning can be intelligibly communicated (and thus fully revealed) to all congrega-
tion.” Markus N. A. Bockmuehl, Revelation and Mystery in Ancient Judaism and Pauline Christianity
(Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 170.
105
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2
(3) mysteries as things hidden but now revealed just to the one who speaks;
and (4) mysteries as the content of the angelic worship.
Thus, in what follows, I aim to clarify the use of mystery in 1 Cor 14:2 in
the following steps: (1) I will investigate the Pauline use of the term mystery
in all its occurrences; (2) and analyze 1 Cor 14:1-5 with special reference to
the relation between mystery and the phenomenon of speaking in tongues. Be-
cause of restraints of space I will proceed with this analysis in an introductory
manner and keep my focus solely on Paul.
1. MYSTERY IN PAUL
The first occurrence of mystery in the Pauline letters in canonical order
is in Romans 11:25: “Lest you be wise in your own sight, I do not want you
to be unaware of this mystery, brothers: a partial hardening has come upon
Israel, until the fullness of the Gentiles has come in”.13 Beale and Gladd affirm
that the mystery here is the reversion of the expectation that Gentiles would
come to the Lord through the Jews.14 This position is exaggeratedly narrow.
There are more hidden things than the order of salvation in Romans 11. I agree
with Schreiner that “the partial hardening and future salvation of Israel are
part of the content of the mystery that has previously been hidden but is now
revealed” (italics mine).15
Rom 11:25 opens a concluding paragraph to the section that started in
chapter 9. Paul deals with the hardening of the Jews, God’s anger, rejection,
and sovereignty, the salvation of the Gentiles through Christ because of the
hardening of the Jews, and finally the salvation of the Jews through Christ
because of the jealousy of the Gentiles. Paul presents all as God’s intended
and hidden-for-long-time plan, i.e., the mystery of Rom 11:25.16
In Rom 16:25-26 Paul again uses the mystery in a concluding statement
and a very compact one. The revelation of the mystery is used as a measure
in which God will strengthen the Romans. Firstly, mystery is equalized in a
13 All biblical quotations are from the English Standard Version (ESV), unless informed otherwise.
14 G. K. Beale and Benjamin L. Gladd, Hidden but Now Revealed: A Biblical Theology of Mystery
(Downers Grove: IVP Academic, 2014), 88.
15 Thomas R. Schreiner, Romans (Grand Rapids: Baker, 1998), 821.
16 Santos sums it up by saying: “In this passage, the mystery is that: a) Israel has experienced a
hardening in part until the full number of Gentiles has come in, and b) all Israel (i.e. the remnant and
the Gentiles) will be saved.” Daniel Santos, “The Meaning of Mystery in Romans 11:25,” Fides
Reformata 17 (2012): 45-59. I think Santos is right in his reading of the text, but in the interpretation of
“all Israel” as referring to the church. With Murray I think it refers to ethnic Israel: “Both elements are
clearly expressed: the hardening of Israel is partial not total, temporary not final, ‘in part’ indicating the
former, ‘untill the fullness of the Gentiles be come in’ the latter. The restoration of Israel was implied
in verse 24 but not categorically stated. Now we have express assurance. The word ‘mystery’ is itself
certification of the assurance which divine revelation imparts”. John Murray, Romans (Grand Rapids:
Eerdmans, 1997), 92-93.
106
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118
parallelistic way with “my gospel and the preaching of Jesus Christ.” Secondly,
it is said that it was kept secret for long ages. Thirdly, it has been disclosed,
and fourthly is has been made known to all nations.17
In Romans, then, mystery is a summarized way to speak about God’s
sovereign plan in the history of salvation as it has its fulfillment in Jesus
Christ, its centripetal center. This plan is both revealed and concealed in the
Old Testament and is exposed by God through Paul. It can refer specifically
to God’s plan of hardening the Jews, followed by the salvation of Gentiles,
followed by the salvation of the Jews or more broadly to the gospel that Paul
preaches (the great subject of Romans).
There are five occurrences of mystery in 1 Corinthians (2:7; 4:1; 13:2;
14:2, and 15:51) and one which is text-critically disputed (2:1).18 My literal
translation for 1 Cor 2.1-2 is “And even I, when I went to you, brothers, I went
not according to superiority of word or of wisdom, proclaiming to you the
mystery of God. For I judged not to know anything among you, except Jesus
Christ and this one crucified”.19 Here, Paul qualifies the mystery as being “of
God,” opposes it to “superiority of word or of [human] wisdom” and, then,
explains it in verse two as Jesus crucified.
The next occurrence happens in 1 Cor 2:7. The main concept of 2 Cor
2:6-10 is not mystery, but wisdom.20 Paul opposes the concept of wisdom
of his age with “θεοῦ σοφίαν ἐν μυστηρίῳ τὴν ἀποκεκρυμμένην.” The ESV
translates it as “hidden wisdom of God in a secret” and the NIV as “God’s
wisdom, a mystery”.21 Gladd favors the interpretation “wisdom of God, hidden
in a mystery” (NET).22 Bockmuehl understands this occurrence in the light of
Qumran as referring to “God’s eschatological design for the salvation of His
people.”23 He also says that this mystery is related to salvation through the
17 See Grant R. Osborne, Romans (Downers Grove: InterVarsity Press, 2010), 417.
18 We will consider 1 Cor 2:1 as having a reference to mystery based in the defense present in
Gladd, Revealing the Mysterion, 123-126. See also Raymond F. Collins and Daniel J. Harrington, First
Corinthians (Collegeville: Liturgical Press, 1999), 118.
19 My literal translation of GNT, 4th ed.: Κἀγὼ ἐλθὼν πρὸς ὑμᾶς, ἀδελφοί, ἦλθον οὐ καθʼ ὑπεροχὴν
λόγου ἢ σοφίας καταγγέλλων ὑμῖν τὸ μυστήριον τοῦ θεοῦ. οὐ γὰρ ἔκρινά τι εἰδέναι ἐν ὑμῖν εἰ μὴ Ἰησοῦν
Χριστὸν καὶ τοῦτον ἐσταυρωμένον.
20 15 occurrences in 1:17—2:13.
21 See commentaries on the text and translations in Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the
Corinthians: A Commentary on the Greek Text (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), 241ss.
22 Gladd, Revealing the Mysterion, 123-133. “The mystery is the exalted, kingly Messiah affixed
to the cross” (156). Carson also defends that “ἐν μυστηρίῳ” is qualifying “σοφίαν” instead of “τὴν
ἀποκεκρυμμένην”. D. A. Carson, “Mystery and Fulfillment: Toward a More Comprehensive Paradigm
of Paul’s Understanding of the Old and the New”. In D. A. Carson, Peter Thomas O’Brien, and Mark
A. Seifrid. Justification and Variegated Nomism. Vol. 2 (Tübigen: Mohr Siebeck, 2001), 417.
23 Bockmuehl, Revelation and Mystery, 161.
107
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2
cross still to be completed.24 Mystery, I think, is the way in which the wisdom
of God is hidden. This wisdom in mystery was foreordained before the ages,
was related to Christ as Savior, and was revealed by the Spirit. What is mys-
tery, then, in Corinthians 2? I agree with Gladd that in this chapter mystery is
a specific reference to the crucifixion of the king Jesus.25
Many commentators see the meaning of mystery in the next occurrence,
1 Cor 4:1, in which Paul presents himself as οἰκονόμους μυστηρίων θεοῦ,
as referring to the gospel revealed in Jesus Christ.26 But these judgements
are based more on the content of mystery in 1 Corinthians 2 than on the text
itself. That is the problem with the occurrences of mystery in 1 Cor 4:1; 13:2
and 14:2. They are the only Pauline occurrences in the plural and they do not
have much in the context to explain their content. In the next section we will
deal with these instances.
First Corinthians 15:51-52 is another instance which has a clear definition
of a specific mystery. “Behold! I tell you a mystery. We shall not all sleep, but we
shall all be changed, in a moment, in the twinkling of an eye, at the last trumpet.
For the trumpet will sound, and the dead will be raised imperishable, and we
shall be changed.” Garland says correctly that in this text “the mystery is not
that the living and the dead will be on a pair with one another at the parousia,
but that both the living and the dead will undergo the prerequisite transforma-
tion so that they can attain incorruptibility and immortality.”27 Gladd presents
as an error the proposal that just the transformation of the living without the
dead is the mystery referred by Paul.28
Mystery appears six times in Ephesians. O’Brien defends the first (1:9)
as being the most important.29 In this text Paul defines the revelation of the
mystery as the way in which God lavished upon the Ephesians the riches of
his grace “in all wisdom and insight”. This mystery made known according
to the purpose set forth in Christ was a plan for the fullness of time. This plan
and will was the unification of all things in heaven and earth in Christ.30
24 Ibid., 165-166.
25 Gladd, Revealing the Mysterion, 123-153.
26 C. K. Barrett, A Commentary on the First Epistle to the Corinthians (New York: Harper & Row,
1968), 100; Richard L. Pratt and Max E. Anders, I & II Corinthians (Nashville: Broadman & Holman,
2000), 60; Roy E. Ciampa and Brian S. Rosner, The First Letter to the Corinthians (Grand Rapids:
Eerdmans, 2010), 170; Craig Blomberg, 1 Corinthians (Grand Rapids: Zondervan, 1994), 29.
27 Garland, 1 Corinthians, 743.
28 Gladd, Revealing the Mysterion, 249-254.
29 Peter Thomas O’Brien, The Letter to the Ephesians (Grand Rapids: Eerdmans, 1999), 110.
30 “The mystery which God has graciously made known refers to the summing up and bringing
together of the fragmented and alienated elements of the universe (‘all things’) in Christ as the focal
point.” O’Brien, Ephesians, 112. In this same tone, Hoehner comments: “In summary, believers have
experienced the abundance of God’s grace in the redemption of Chirst and in provision of all insight
108
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118
Ephesians 3 presents one of the clearest texts about the mystery in Paul.
The revelation of the mystery is equalized with the stewardship of God’s
grace. The way Paul gained knowledge of the mystery was through revelation
and because of that Paul has insight into the mystery of Christ (Christ as con-
tent). This mystery was kept hidden from the prior generations, “but now” was
revealed to the apostles and prophets through the Holy Spirit. Finally, in verse
6 Paul explicits what is the mystery: “the Gentiles are fellow heirs, members
of the same body, and partakers of the promise in Christ Jesus through the
gospel”. Note that considering what Paul said about the mystery in Eph 1:9,
this definition is only part of the whole mystery.
Hoehner, after presenting an encyclopedia-like explanation of the term,
says that “in Ephesians the mystery is that believing Jews and Gentiles now are
one in the body of Christ”. He contends the use in 5:32 is different from other
instances in the letter.31 Beale and Gladd affirm that the mystery in Eph 5:32
is that the union of the first couple in marriage typologically represents Christ
and the church.32 This is too narrow. Although this idea is part of the mystery,
mystery in Eph 5:32 points to the fact that all marital union is made to reflect
Christ and the church and only in doing that it finds real unity. In sum, in line
with Eph 1.9, Christ is the one who sums up man and woman in marriage.
The last instance of mystery in Ephesians is in 6:19-20: “and [pray]
also for me, that words may be given to me in opening my mouth boldly to
proclaim the mystery of the gospel, for which I am an ambassador in chains,
that I may declare it boldly, as I ought to speak.” After defining mystery in
3:6, Paul says: “Of this gospel I was made a minister”. Although he does not
use the term gospel in chapter one, he uses mystery in the context of defining
redemption (1:7). Therefore, mystery of the gospel here refers to the same
concept of chapter 3.
Mystery is a broad concept in Ephesians which speaks a about the uni-
fication of everything in and with Christ in the fullness of time: heavenly and
earthly things, Jews and Gentiles, husband and wife, and Christ and the church.
The mystery is well explained by Thielmann who affirms that in the due time
“Christ will emerge as the organizing principle of all creation”.33
and wisdom. This wisdom and insight have made known to them the secret plan of God, namely, that at
the fullness of time God will unite in his dear Son Christ all the things in heaven and on earth.” Harold
W. Hoehner, Ephesians: An Exegetical Commentary (Grand Rapids: Baker Academic, 2002), 225.
31 Hoehner, Ephesians, 432-433.
32 Beale and Gladd, Hidden but Now Revealed, 181.
33 Frank Thielman, Ephesians (Grand Rapids: Baker Academic, 2010), 67. Beale and Gladd put
it nicely also: “The main focus of the revelation of the mystery is that Christ is the point of reintegration
and restaurantion of the original cosmic unity and harmony that had been lost at the fall of humanity, a
fragmentation that had affected not only earthly but also the heavenly realm.” Beale and Gladd, Hidden
but Now Revealed, 150.
109
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2
34 Not just for the word of God. Contra Margaret Y. MacDonald and Daniel J. Harrington,
Colossians and Ephesians (Collegeville: Liturgical Press, 2000), 80, and Douglas J. Moo, The Letters
to the Colossians and to Philemon (Grand Rapids: Eerdmans, 2008), 155.
35 James D. G. Dunn, The Epistles to the Colossians and to Philemon: A Commentary on the Greek
Text (Grand Rapids: Eerdmans, 1996), 122.
36 Bockmuehl prefers the translation “Christ among you” instead of “Christ in you”. He sees two
levels of identification of mystery in Collosians 1–2: (a) the word of God, meaning the gospel and its
proclamation, and (b) the salvation of the Gentiles. Markus N. A. Bockmuehl, Revelation and Mystery
in Ancient Judaism and Pauline Christianity (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 185-186.
37 Ben Witherington III, The Letters to Philemon, the Colossians, and the Ephesians: A Socio-
Rhetorical Commentary on the Captivity Epistles (Grand Rapids: Eerdmans, 2007), 147.
38 “Full knowledge of ‘the mystery of God’ i.e., the sum of God’s salvific purposes, is equivalent
to full knowledge of Christ who resides in heaven and with whom the believer’s future life of glory is
already stored up.” Bockmuehl, Revelation and Mystery, 193.
110
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118
presents a negative aspect of it.39 Again, the explanation of Beale and Gladd
is more narrow than it should be: “the revealed mystery is that the prophecy of
Daniel is beginning unexpectedly because the latter day foe has not yet come
in bodily form, yet he is already inspiring his ‘lawless’ works of deception and
persecution.”40 Green, on another hand, completely misses the point when he
says that mystery is related with “secret and sacred rites of various religions
of that era, and it is likely that Paul had some such cult in mind”.41 Weima
interprets the text as “the mystery which is lawlessness” and adheres to the
interpretation of mystery as something that was secret but it is now revealed. He
stresses that even revealed, it is still hidden in his operation and not completely
possible of understanding, even for those who have access to the revelation.42
There are two instances of mystery in 1 Timothy, both in chapter 3. The
first (1 Tim 3.9) is a laconic one affirming that the deacons are supposed to
“hold the mystery of the faith with a clear conscience.” The second is in 1 Tim
3.16 and is called “μέγα… εὐσεβείας μυστήριον”, which should be confessed.
The creedal statement that follows is the definition of this mystery of godli-
ness: “He was manifested in the flesh, vindicated by the Spirit, seen by angels,
proclaimed among the nations, believed in the world, taken up in glory.” Beale
and Gladd point that exist two parts in the mystery as presented in 1 Timothy.
First, “that Christ functions as God and is now the object of personal faith and
trust.”43 The second part of the mystery is that “Christ’s resurrected existence
would not assume the body of old earthly existence, but would be fashioned
after a new body far more glorious.”44 This conception, although bringing im-
portant insights to aspects of the mystery in 1 Timothy, is not exactly how Paul
uses the term. Tower is nearer of the Pauline use when he defines: “Here the
term mystery describes the apostolic faith in Pauline terms as the revelation of
salvation in Christ as proclaimed in his gospel.”45 Broader still is the definition
of Knight III: “the revealed truth of the Christian faith”.46 About the second
reference to mystery he says that it means “the revelation of Jesus Christ in
which Christian existence has its origin.”47
111
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2
112
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118
and revealed in the New Testament, the mystery still carries the idea of con-
tinuous hiddenness.50 The mystery is part of the eschatological plan of God.51
The work of Christ is the center of the mystery.52 The Spirit is the main person
responsible for its revelation.53 The mystery is connected with the wisdom of
tion of the mystery: “εἰς πᾶν πλοῦτος τῆς πληροφορίας τῆς συνέσεως, εἰς ἐπίγνωσιν τοῦ μυστηρίου τοῦ
θεοῦ”. In Rom 16:25 the target of this revelation are “πάντα τὰ ἔθνη”. The recipients of this revelation
in Ephesians 3:5 are “τοῖς ἁγίοις ἀποστόλοις αὐτοῦ καὶ προφήταις ἐν πνεύματι” and in Eph 3:10-11 the
church is the medium through which the wisdom of God is publicized “ταῖς ἀρχαῖς καὶ ταῖς ἐξουσίαις
ἐν τοῖς ἐπουρανίοις”. In Col 1:26 the mystery is revealed “τοῖς ἁγίοις αὐτοῦ”. In other ocurrences,
the mystery is revealed to those brothers ans sisters. The expressions used to speak about hiddenness
and ignorance are: ἀγνοέω (Rom 11:25); “χρόνοις αἰωνίοις σεσιγημένου” (Rom 16:25); ἀποκρύπτω
(1 Cor 2:7; Eph 3:9; Col 1:26); “ἣν οὐδεὶς τῶν ἀρχόντων τοῦ αἰῶνος τούτου ἔγνωκεν” (1 Cor 2:8); “Ἃ
ὀφθαλμὸς οὐκ εἶδεν καὶ οὖς οὐκ ἤκουσεν καὶ ἐπὶ καρδίαν ἀνθρώπου οὐκ ἀνέβη, ἃ ἡτοίμασεν ὁ θεὸς τοῖς
ἀγαπῶσιν αὐτόν Ἃ ὀφθαλμὸς οὐκ εἶδεν καὶ οὖς οὐκ ἤκουσεν καὶ ἐπὶ καρδίαν ἀνθρώπου οὐκ ἀνέβη, ἃ
ἡτοίμασεν ὁ θεὸς τοῖς ἀγαπῶσιν αὐτόν” (1 Cor 2:9); and “ὃ ἑτέραις γενεαῖς οὐκ ἐγνωρίσθη τοῖς υἱοῖς
τῶν ἀνθρώπων” (Eph 3:5).
50 Revealed in the Old Testament: in Rom 11:25-27 Paul connects the mystery to Isa 59:20-21 and
Jer 31:33-34 using the formula “καθὼς γέγραπται”. In Rom 16.25-27 Paul says that now the mystery
has been revealed through the “γραφῶν προφητικῶν”. In the context of 1 Cor 15.51, Paul quotes Isa
25:8 and Hos 13:14 introducing it formally with “τότε γενήσεται ὁ λόγος ὁ γεγραμμένος” (cf. 1 Cor
15:54-55). For a deeper view on this matter and more occurrences, see Beale and Gladd, Hidden but
Now Revealed. On the aspect of the mystery as being still hidden even after revealed, Beale and Gladd
comment: “The term mystery appears to possess two levels of hiddenness: ‘temporary hiddenness’ and
‘permanent hiddenness.’ By ‘temporary hiddenness’ we mean the partially hidden nature of revelation
that is undisclosed over a period of time that eventually gives way to a final, more complete form of
revelation. ‘Permanent hiddenness,’ on the other hand, is more concerned with the ongoing hidden nature
of mystery. Even when the revelation has reached its completed state of disclosure, the fuller meaning
of the revelation remains elusive to some individuals.” Beale and Gladd, Hidden but Now Revealed, 60.
See also Carson, “Mystery and Fulfillment,” 432.
51 The aspects of the mystery related to eschatology and God’s sovereignty are commonly inter-
connected: Rom 11:25-27 shows this characteristic in the context, but also in the use of the expression
“πλήρωμα τῶν ἐθνῶν”. Rom 16:25 uses the expression “φανερωθέντος δὲ νῦν”. 1 Cor 2:7 focuses more
on the sovereignty: “ἣν προώρισεν ὁ θεὸς πρὸ τῶν αἰώνων εἰς δόξαν ἡμῶν”. Eph 1:9-10 presents both
aspects: “κατὰ τὴν εὐδοκίαν αὐτοῦ ἣν προέθετο ἐν αὐτῷ εἰς οἰκονομίαν τοῦ πληρώματος τῶν καιρῶν”,
3:5 uses the eschatological “ὡς νῦν ἀπεκαλύφθη” and 3:9-11 “μυστηρίου τοῦ ἀποκεκρυμμένου ἀπὸ τῶν
αἰώνων ἐν τῷ θεῷ τῷ τὰ πάντα κτίσαντι… κατὰ πρόθεσιν τῶν αἰώνων ἣν ἐποίησεν ἐν τῷ Χριστῷ Ἰησοῦ
τῷ κυρίῳ ἡμῶν”. In Col 3:25-26, “τὸ μυστήριον”is an appositive to “τὸν λόγον τοῦ θεοῦ” and God is
the one who reveals it “νῦν δὲ”. For this reason, the mystery is called mystery of God a few times.
52 It is evident that Christ is the center of the concept of mystery in the definitions and when
the mystery is defined as mystery of Christ. There are other evidences also: In Rom 11:25 Christ is “ὁ
ῥυόμενος”. In 2 Cor 2 the crucifixion has a special focus (1 Cor 2:2; 8). In 1 Cor 15 Christ is the one
in whom believers have victory (1 Cor 15:57). Ephesians affirms that the purpose of the ages was
made in Jesus Christ (Eph 3.11). In Col 2:3, after being defined as the content of the mystery, Christ is
presented as the one “ἐν ᾧ εἰσιν πάντες οἱ θησαυροὶ τῆς σοφίας καὶ γνώσεως ἀπόκρυφοι”. Christ is the
one who “ἀνελεῖ τῷ πνεύματι τοῦ στόματος αὐτοῦ καὶ καταργήσει τῇ ἐπιφανείᾳ τῆς παρουσίας αὐτοῦ”.
53 1 Cor 2.1-10; 13–14; and Eph 3:5 make this point clear.
113
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2
God which he wants to share with his servants.54 It is in this sense that Paul
connects himself to the mystery of God.55
Therefore, mystery in Paul is a part of the wise and sovereign plan of
God about the eschaton, which is present in part in the Old Testament but still
hidden, being revealed according to the will of God only through special re-
velation. In the next section we will analyze how this definition can help our
understanding of mysteries in 1 Cor 14:1-2 and how this text can illuminate
our comprehension of mystery.
54 In 1 Cor 2 there is a clear opposition between the “σοφίᾳ ἀνθρώπων” (1Cor 2:5) on one side and
“θεοῦ σοφίαν ἐν μυστηρίῳ τὴν ἀποκεκρυμμένην” (1 Cor 2:7) and “σοφίαν δὲ οὐ τοῦ αἰῶνος τούτου,”
on the other (1 Cor 2:6). In Eph 3:10 mystery appears related to “πολυποίκιλος σοφία τοῦ θεοῦ”. On
the other hand, Rom 11:25-27 presents the opposite side of the wisdom of God as “ἑαυτοῖς φρόνιμοι”.
55 In Rom 16:25, Paul equates mystery with “εὐαγγέλιόν μου”. In 1 Cor 4:1 he calls himself an
“οἰκονόμους μυστηρίων θεοῦ”. In Eph 3:2 Paul quotes “τὴν οἰκονομίαν τῆς χάριτος τοῦ θεοῦ τῆς δοθείσης
μοι εἰς ὑμᾶς, [ὅτι] κατὰ ἀποκάλυψιν ἐγνωρίσθη μοι τὸ μυστήριον”. In Eph 6:19-20 Paul presents himself
as an “πρεσβεύω ἐν ἁλύσει” of “τὸ μυστήριον τοῦ εὐαγγελίου”. In Col 1:25, Paul is the “διάκονος κατὰ
τὴν οἰκονομίαν τοῦ θεοῦ” and in 4:2 he asks the Colossians to pray that he can “λαλῆσαι τὸ μυστήριον
τοῦ Χριστοῦ”.
56 My literal translation of the text is: “1 Pursue the love, eagerly desire the spiritual [gifts], but
specially in order that you might prophesy 2 for the one who speaks in tongue does not speak to men,
but to God, for no one listens, but in spirit he speaks mysteries. 3 But the one who prophesies to men
speaks edification, exhortation and consolation. 4 The one who speaks in tongues edifies himself, but
the one who prophesies edifies the church. 5 But I want that all of you speak in tongues, but even more
that you prophesy. But greater is the one who prophesies than the one who speaks in tongues unless he
interprets in order that the church receives edification.”
57 José Enrique Aguilar Chiu, 1 Cor 12-14: Literary Structure and Theology (Roma: Pontificio
Istituto Biblico, 2007). It is also worth noting that 12.31 and 14.1 form an inclusio to chapter 13. See
Gordon D. Fee. The First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids, Mich: Eerdmans, 1987), 654. See also
Camille Focant, “1 Corinthiens 13: Analyse Rhétorique et Analyse de Structures,” in R. Bieringer, The
Corinthian Correspondence (Leuven: University Press, 1996), 199-245.
58 Speaking about the second imperative of the text, Fee comments: “What must be emphasized
is that this imperative is now to be understood singularly in light of the exhortation to love that has
preceded it. If the two imperatives are not kept together, the point of the entire succeeding argument is
missed.” He also defines “τὰ πνευματικά” as different from “τὰ χαρίσματα” in the sense that the last
is more generic and the first applies specifically to “utterances inspired by the Spirit”. Fee, The First
Epistle to the Corinthians, 654-655.
114
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118
wants to tackle, that the spiritual gift of prophecy should be preferred to the
gift of speaking in tongues.
This chapter clearly concerns the public worship and values the edification
of all members.59 In this context, the gift of prophecy should be preferred to
tongues. The problem is that both these gifts have a hotly debated meaning.
The Pentecostal view of prophecy is that it comprehends “spontaneous,
Spirit-inspired, intelligible messages, orally delivered in the gathered assembly,
intended for the edification or encouragement of the people.”60 The Reformed
position affirms that prophecy is “healthy preaching, proclamation, or teaching
pastorally applied for the appropriation of gospel truth and gospel promise, in
their own context of situation, to help others.”61 There are more views in the
middle positions.62 In general I agree with Grudem’s proposal, which affirms
that the New Testament prophecy was different from the Old Testament
prophecy in the level of authority, being a message from God interpreted and
announced by human and fallible efforts.63 It is worth noticing that Paul starts
1 Corinthians 13 speaking about tongues and prophecy and it is impossible that
he is using them there in a way completely disconnected with the realities of
these spiritual gifts. He is using them hyperbolically, but even in his hyperbole
it is possible to learn more about these gifts. Thus, we can understand 1 Cor
13 as teaching that the gift of prophecy in its full capacity (hyperbole) gives
to the receiver understanding of all mysteries and all knowledge. It is possible,
then, to imply that a partial gift of prophecy gives to the receiver some unders-
59 Maybe exaggerating a little, Conzelmann says: “Thus, the gifts are evaluated in Corinth
according to the intensity of the ecstatic outburst; in fact, even according to the degree of unintelligibility.
The latter is considered to be an indication of the working of supernatural power. Hans Conzelmann,
1 Corinthians: A commentary on the First Epistle to the Corinthians (Philadelphia: Fortress Press, 1975),
233-234.
60 Fee, The First Epistle to the Corinthians, 505. See also Ben Witherington, Conflict and Community
in Corinth: A Socio-Rhetorical Commentary on 1 and 2 Corinthians (Grand Rapids, Mich: Eerdmans,
1995), 280.
61 Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text
(Grand Rapids, Mich: Eerdmans, 2000), 1084. See also Simon Kistemaker, 1 Corinthians (Grand Rapids:
Baker, 1993), 479-480.
62 “New Testament prophecy therefore included both conventional preaching, when the preacher
had the sense of being gripped and convicted by the Spirit about his or her message, and more sponta-
neous, unpremeditated utterances.” Craig Blomberg, 1 Corinthians (Grand Rapids, Mich: Zondervan,
1994), 212.
63 “But the prophecy we find in 1 Corinthians is more like the phenomena we saw in extra-Biblical
Jewish literature: it is based on some type of supernatural ‘revelation,’ but that revelation only gives it
a kind of divine authority of general content. The prophet could err, could misinterpret, and could be
questioned or challenged at any point. He had a minor kind of ‘divine’ authority, but it certainly was
not absolute.” Wayne A. Grudem, The Gift of Prophecy in 1 Corinthians (Washington, D.C.: University
Press of America, 1982), 74.
115
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2
tanding of mysteries and/or knowledge. Paul also presents in 1 Cor 13:8-9 the
temporary character of both prophesying and speaking in tongues.
It essential to understand the phenomenon of speaking in tongues in order
to make sense of mysteries in 1 Cor 14. Spiritual gifts are a manifestation of
empowerment of the Spirit on the believer (12:4, 7, 11) that happens under the
supervision of the Lord Jesus (12:5). The source of the power is God (12:6).
Spiritual gifts are given for the edification of the whole body of Christ. The-
refore, nobody should feel shame or pride because of his or her gifts (12:14-26).
There is a gradation of gifts and the higher ones are those which edify the
church the most. Those should be eagerly desired (12:31; 14:1). Spiritual gifts
should be evaluated and used in a context of love (1 Cor 13).64
Variety of tongues (ἑτέρῳ γένη γλωσσῶν) is a spiritual gift along with
the interpretation of tongues (ἄλλῳ δὲ ἑρμηνεία γλωσσῶν) (12:10). What Paul
speaks about tongues? Tongues do not communicate to men because no one
can understand and their content are mysteries (14:2). The one who speaks in
tongues builds up himself (14:4) and it would be desirable that all speak in tongues
(14:5).65 The content of what is spoken in tongues, if translated, would build
up the church (14:5). On the other hand, without interpretation, tongues are not
intelligible, being like speaking in the air (14:9). Thus, the one who speaks in
tongues should pray to receive also the gift of interpretation (14:13). Tongues
is prayer in the Spirit without the use of the mind (14:14) and expressing gra-
titude (14:16-17). Paul speaks in tongues more than all Corinthians (14:18),
but in the church he does not use it (14:19). Tongues are related to foreign
languages (14:10, 21), but can also be related to the language of angels (13.1).66
Tongues are a sign for unbelievers (14:22). They can be used in worship with
64 “With love as their aim, it will prevent them from being zealous only for those gifts that will
enable them to steal the show and outshine others”. David E. Garland, 1 Corinthians (Grand Rapids:
Baker Academic, 2003), 631-632.
65 Speaking about the self-building up of the one who speaks in tongues, Grosheide affirms that
this edification is not related to understanding the contents, “but rather that the fact of speaking in tongues
is edifying in itself” and he assumes that the reason is the assurance that the person has the Spirit. F. W.
Grosheide, Commentary on the First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans, 1953), 319.
Kistemaker shows wisdom in his counsel about this subject: “Hence, no one is free to invade another’s
religious privacy; prayer, whether spoken or unspoken, is a two-way street. God receives praise and
thanks from the speaker and at the same time grants him or her comfort and encouragement”. Kiste-
maker, 1 Corinthians, 480-481. That is no solid basis to defend that Paul’s remark about self-edification
is derogatory. Contra Joseph A. Fitzmyer, First Corinthians: A New Translation with Introduction and
Commentary (New Haven: Yale University Press, 2008), 510.
66 “On balance, then, the evidence favors the view that Paul thought the gifts of tongues was a gift
of real languages, that is, languages that were cognitive, whether of men or of angels.” D. A. Carson,
Showing the Spirit: A Theological Exposition of 1 Corinthians 12-14 (Grand Rapids: Baker, 1987),
83. Fitzmyer’s opinion that “the phemomenon cannot mean speaking in foreign tongues” is ill-defended.
Fitzmyer, First Corinthians, 510. Conzelmann interprets tongues in relation to phenomena that happened
in a few Greek religions. See Conzelmann, 1 Corinthians, 234.
116
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118
orderliness (not everyone at the same time), by a few people (two or three)
and only with interpretation (14:27-28). It is speaking with God (14:28) and
should not be forbidden (14:30).
The teaching of our text, then, can be summarized in the following state-
ment: The one who prophesies speaks in a clear way mysteries or knowledge
to edify, exhort, and console the church. The one who speaks in tongues speaks
mysteries, prays, and expresses thanksgiving to the Lord in a manner that edifies
only himself, in spirit but not in mind, and without translation does not have
utility for the edification of the church. Thus, prophecy should be preferred to
speaking in tongues in the public worship.67
CONCLUSION
My definition of mystery in Paul is that it is a part of the wise and so-
vereign plan of God about the eschaton, which is present in part in the Old
Testament but still hidden, being revealed according to the will of God only
through special revelation. Mystery can be used to refer to the whole escha-
tological plan of God or just to parts of it.68 It is to refer to those parts of the
eschatological plan of God (hardening of the Jews, fullness of the Gentiles,
revelation of the lawless, marriage) and other parts of the plan not revealed in
the New Testament that the plural “mysteries” is used in 1Cor 4.1; 13.2 and
14.2. Instead of using a Greek concept, or simply meaning something secret,
Paul is consistently using mystery in 1 Cor 14:2 (and 13:2).
Another important conclusion that we reach is that the spiritual gifts of
prophecy and speaking in tongues at least sometimes can have the same con-
tent, i.e., mysteries, with the difference that in the first one those mysteries are
expressed in a way that the whole community understands.
Our analysis of the text also contributes to our understanding of mystery.
Specially considering the gift of tongues, we learn that God will not neces-
sarily reveal the content of his mysteries, even when these are verbalized.
67 I do not think that there is enough basis in the text to propose a participation of the community in
the worship of the angels, although I consider this an important subject for further studies. See footnotes
11 and 12.
68 This idea agrees with Bockmuehl concept of mystery: “(i)‘Mystery’ or ‘mysteries’ can refer
collectively to the saving purposes of God, specially as these are summed up in the message of the
gospel of Christ. This usage occurs in 1 Cor and more fully in Col; it is further developed in Eph and
later writings. (ii) A mystery can at the same time denote one particular (sometimes detailed) aspect of
God’s plan of salvation, especially as this relates to the eschaton.” Other uses would include particular
doctrines (carefully con Bockmuehl, sidered because of being later writings) and mystical revelation of
mysteries and angelic worship. Markus N. A. Bockmuehl, Revelation and Mystery in Ancient Judaism
and Pauline Christianity (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 226-227. The definition of Beale and Gladd
is good, but still puts too much emphasis on the revelation of the mystery: “The revelation of God’s
partially hidden wisdom, particularly as it concerns events occurring in the “ latter days”. Beale and
Gladd, Hidden but Now Revealed, 20.
117
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2
It is possible to infer, therefore, that there are other mysteries in the sovereign
plan of God he did not reveal to his church. Mystery in Paul, therefore, is not
necessarily something hidden that is revealed.
RESUMO
“Mistério” (μυστήριον) é um tema quase técnico e muito importante do
Novo Testamento. Este artigo visa a lançar alguma luz sobre o significado desse
conceito em 1 Coríntios 14.2. O autor define mistério como “uma parte do
plano sábio e soberano de Deus acerca do eschaton, o qual está parcialmente
presente no Antigo Testamento, mas ainda oculto, sendo revelado segundo a
vontade de Deus somente por meio de revelação especial”. Após apresentar
quatro interpretações dissonantes acerca do assunto, o autor defende o conceito
acima em 1 Co 4.2. A novidade do artigo é o conceito de mistério como sendo
revelado através de línguas, enquanto que ao mesmo tempo o seu conteúdo
permanece velado quando o discurso não é interpretado.
PALAVRAS-CHAVE
1 Coríntios 12-14; Mistério; Dom de línguas.
118
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128
Resenha
André Leonardo Venâncio*
1. RESUMO
John Walton, professor de Antigo Testamento no Wheaton College,
oferece neste livro uma leitura bastante acessível para o leigo sem deixar de
apresentar muitas informações interessantes para o teólogo. A edição brasilei-
ra é parte da série “Ciência e Fé Cristã”, elaborada pela Associação Brasileira
Cristãos na Ciência (ABC2), que é uma iniciativa da Associação Kuyper para
Estudos Transdisciplinares (AKET) apoiada pela Templeton World Charity
Foundation (TWCF). Dividido em 21 capítulos (um dos quais em colaboração
com N. T. Wright), o livro se distingue pela atenção dada à literatura extrabíblica
do Antigo Oriente Próximo, especialidade do autor, e por usar os resultados de
sua exegese para lidar com questões motivadas pela ciência moderna quanto
ao significado do texto bíblico. Porém, embora dialogue com a ciência na for-
mulação de perguntas ao texto, Walton não pretende permitir que ela determine
as respostas. Ele se compromete com a inspiração das Escrituras, e o escopo
do livro é teológico e exegético. Seu objetivo é o resgate da intenção do autor
bíblico, situado no Oriente Próximo do segundo milênio a.C.
Nada disso impede, entretanto, que as conclusões de Walton divirjam com
frequência da visão predominante na tradição teológica conservadora. Citan-
do apenas alguns dos exemplos mais importantes, ele sustenta: que o relato
de Gênesis não se refere a uma criação ex nihilo, e sim apenas à ordenação e
atribuição de funções ao que já existia1 (p. 23-42); que Adão não foi formado
* O autor é graduado em engenharia física pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
mestre em física aplicada pela USP e atua como engenheiro de petróleo. É membro da Igreja Presbiteriana
do Pirangi, em Natal, RN.
1 Mas Walton crê que a criação ex nihilo é ensinada em outras partes da Bíblia (p. 31, 154).
119
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA
do pó, nem Eva de sua costela (p. 65-75); que Adão e Eva não foram neces-
sariamente os primeiros seres humanos ou ancestrais de todos os que vieram
depois (p. 106-7, 173-80); que eles nunca foram imortais (p. 137, 142); que,
embora tenham sido figuras históricas, só é importante sua função enquanto
arquétipos da humanidade2 (p. 191-4); que a serpente em Gênesis 3 é uma
criatura amoral, e não positivamente má (p. 121-31); que o pecado original
decorre de uma “condição humana […] subdesenvolvida” (p. 137) antes que
de uma rebelião moral; que o texto bíblico não faz objeção alguma à ideia de
que a espécie humana passou centenas de milhares de anos mergulhada em
miséria, violência e morte antes que Deus colocasse aqueles dois indivíduos
no jardim (p. 150-1, 168-9).
Walton defende, em suma, que a recuperação do “ambiente cognitivo” do
Antigo Oriente Próximo, necessária a um entendimento apropriado do relato da
criação e da queda, leva à revisão de uma série de pressupostos que têm sido
majoritariamente adotados pela tradição hermenêutica ocidental pelo menos
desde Agostinho. No centro do problema estaria uma compreensão equivocada
da queda, que Walton não vê como a perda de alguma perfeição original, e
sim como agravamento, mediante a rebelião consciente contra Deus, de uma
desordem preexistente: onde havia apenas uma desordem amoral (que Walton
chama de “não ordem”), passou a haver também uma desordem imoral. O Éden
foi, na verdade, um projeto divino de eliminação da não ordem a ser iniciado
pela mediação sacerdotal de Adão.
Além disso, três das quatro aplicações pastorais finais (p. 197-200)
enfatizam a importância de não obrigar as pessoas a escolher entre a ciência
(conforme o entendimento acima) e a fé cristã. A despeito do enfoque exegé-
tico, portanto, a questão da relação entre fé e ciência é central na obra, o que
justifica que a discussão se inicie por esse ponto.
2 Walton se refere a isso como a “proposta central deste livro” (p. 69).
120
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128
O texto editorial da contracapa felicita o autor por criar “espaço para uma
leitura fiel das Escrituras aliada a um compromisso com a ciência”. À primeira
vista, a sugestão desse compromisso pode parecer estranha, pois Walton com
frequência enfatiza a importância de formular juízos exegéticos independentes
das descobertas da ciência (e.g., p. 13-14), e quase sempre se abstém de opinar
sobre temas alheios à sua especialidade.
Um exame mais atento, porém, revela um quadro diferente. Em primeiro
lugar, Walton não é sempre consistente nessa abstenção quanto ao mérito de
hipóteses científicas. Ele afirma, por exemplo, que a evidência das similari-
dades genômicas em favor da ancestralidade comum “é convincente, e seria
prontamente aceita, não fora pela crença de alguns de que, se tal história
realmente ocorrera, isso contradiria afirmações bíblicas” (p. 174). Além de
conter uma opinião do autor sobre um tema bem distante de sua especialidade
acadêmica,3 esse trecho levanta dois problemas: primeiro, se o posicionamento
teológico pode influenciar tão profundamente os juízos científicos de alguém,
nada permite descartar a priori o risco de serem os evolucionistas (cristãos ou
não) os maus intérpretes da evidência. E, segundo, nesse caso a ciência deixa
de ser um empreendimento independente e autônomo dentro do qual os fatos
da natureza falam por si.4
Walton não lida com essas questões em parte alguma do livro, nem
chega a perceber sua existência. Ele constantemente volta a se referir a um
“consenso” representativo da ciência moderna, o qual não só exclui qualquer
crítico da evolução biológica, mas também exclui qualquer possibilidade de
a ciência estar equivocada. É justo dizer que, na prática, o autor não se isenta
de tomar partido em tais questões. Embora afirme várias vezes que devemos
nos opor “à ciência” se a Bíblia assim o exigir, essa possibilidade jamais se
concretiza, e ele, de modo explícito e repetido, aponta esse fato como uma
grande vantagem de sua proposta exegética. A razão disso é dada na conclu-
são: “Tínhamos a expectativa de que Gênesis, lido de forma apropriada, fosse
compatível com as verdades sobre nosso mundo que os cientistas descobrem,
porque tanto nosso mundo quanto a Palavra emanam de Deus” (p. 189). Essa
formulação deixa pouco ou nenhum espaço para uma visão da ciência como
construção interpretativa humana e, em especial, para o risco de essa inter-
3 Walton demonstra seu despreparo científico quando atribui aos criacionistas a sugestão de que
“a história que a genômica comparada testifica nunca ocorreu de fato” (p. 174). Essa formulação con-
tém uma petição de princípio, pois pressupõe que há um processo histórico que pode ser objetivamente
inferido dos dados genômicos, restando definir apenas se essa história é real ou fictícia. Mas o que os
criacionistas afirmam é que essa inferência de uma história pregressa já é fruto de um olhar enviesado
por parte dos evolucionistas.
4 Usando um conceito da sociologia do conhecimento, poderíamos dizer que as convicções
teológicas influenciam profundamente a estrutura de plausibilidade com base na qual o cientista julga
a evidência disponível em sua área de especialidade.
121
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA
122
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128
Os antigos donos de nossa casa utilizavam um cômodo como sala de jantar. Po-
rém, minha família decidiu que não o queria como sala de jantar, então demos a
ele o nome de “recanto”, colocamos nele a mobília de um recanto e começamos
a utilizá-lo dessa maneira. Por seu nome e função ele foi diferenciado dos outros
cômodos da casa, e então um recanto foi criado.
Walton afirma que há nisso uma boa analogia com o conceito de criação
em Gênesis: ordenar, atribuir função e dar nome a algo que já existia material-
mente. No entanto, a comparação prova o oposto: embora paredes, chão e teto
já existissem, o cômodo só pôde receber a nova função em virtude da nova
mobília; e isso constitui, sem dúvida, uma modificação material. Toda mudança
na esfera das funções precisa acarretar uma adequação material. A tentativa de
fazer com que o relato bíblico mantenha intocada a esfera acessível à ciência
padece, pois, de um problema filosófico básico, com o qual o autor jamais lida
e que sequer chega a identificar. Sua disjunção soa como mero artifício verbal.
O segundo problema é mais sutil, e diz respeito ao uso equívoco dos ter-
mos “matéria” e “material”. Walton erroneamente pressupõe que a “matéria”
desconsiderada no Antigo Oriente Próximo é a mesma de que trata a ciência
moderna. No entanto, embora a mesma palavra seja usada, os dois conceitos
123
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA
6 Esse fato é bem estabelecido na literatura filosófica. Por exemplo, o filósofo inglês R. G.
Collingwood dedicou todo o livro The Idea of Nature (New York: Oxford University Press, 1960) à
discussão das concepções de matéria e natureza e suas mutações ao longo do tempo.
7 Roots of Western Culture: Pagan, Secular, and Christian Options. Toronto: Wedge, 1979, p. 15-21.
8 Dooyeweerd explica sucintamente a diferença em ibid., p. 150-151.
9 Aqui não é necessário endossar ou mesmo discutir a totalidade de seu vasto sistema filosófico.
124
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128
extrabíblicos do mesmo período, mas isso não chega a produzir uma discussão
metodológica. Com frequência o autor apenas pressupõe que o leitor hebreu
original entenderia o texto exatamente da mesma maneira que o pagão de
sua época, e nenhuma problematização ou defesa dessa hipótese é tentada.
Não há no livro nenhuma consciência da antítese e, em consequência disso,
não há nenhuma cautela contra o risco das sínteses (com ou sem o uso desses
termos). Walton utiliza conceitos pagãos na exegese de Gênesis com a mes-
ma ingenuidade e inconsciência com que cede sem perceber à autoridade da
ciência moderna.
4. PROBLEMAS EXEGÉTICOS
Nesta seção, mediante a breve discussão de quatro casos específicos, serão
apontadas as consequências dos problemas discutidos nas seções anteriores
sobre a exegese bíblica do livro.
A discussão sobre o sentido dos verbos bara e asa10 (p. 27-31) conclui
que eles não “refletem intrinsecamente uma produção material”, com base em
dois argumentos. Primeiro, “os objetos diretos não são materiais”. Porém, ao
inventariar o uso desses verbos no restante da Bíblia, Walton considera ima-
teriais objetos como as estações do ano e o vento. O argumento se baseia em
um critério de classificação que, além de ser criticável de um ponto de vista
filosófico, não foi inferido com base em exegese. A conceituação do que é ou
não “material” é obscura e ambígua, e esse é um problema recorrente no livro.
O argumento talvez prove que o campo semântico desses verbos é amplo e
pode se aplicar a objetos imateriais; mas nada no livro prova que esse é o caso
em Gênesis 1-2. O segundo argumento diz que “os verbos não apresentam
qualquer tipo de entendimento que adotamos como cientificamente viável”,
indicando que, apesar de suas frequentes afirmações em contrário, Walton
usa seu entendimento da viabilidade científica como critério exegético para
determinar o que o texto diz.
Walton defende que o relato da formação do homem a partir do pó da
terra é arquetípico, e não material (p. 66-67), mas sua argumentação baseada
nos usos do verbo ysr11 apresenta problemas semelhantes aos citados acima
quanto aos verbos bara e asa. Ele também sustenta que Adão foi criado mor-
tal, e que o texto alude a isso quando relaciona sua origem com o pó da terra.
O autor defende isso citando, por exemplo, o Salmo 103.1412 e comentando:
“É possível que um ser humano seja nascido de mulher e ainda assim seja
formado do pó; todos nós somos” (p. 70-71). Porém, todos somos pó apenas
125
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA
porque herdamos nossa natureza de Adão; se ele não foi formado do pó lite-
ralmente, não há sentido algum em que se possa dizer que todos o fomos. De
fato é possível associar a ideia de mortalidade ao pó sem falar em uma origem
material, já que viramos pó após a morte; mas jamais se seguiria daí o “tornar”
ao pó (Gn 3.19), pois não poderíamos voltar a algo de que não viemos. De fato,
“Adão é um arquétipo, não apenas um protótipo” (p. 70), mas é também um
protótipo; embora possamos distinguir abstratamente as duas coisas, a Bíblia
não legitima a ideia de uma independência entre elas. Buscando sustentar o
contrário, Walton compara o relato de Gênesis 2 ao da vocação de Jeremias13
e diz: “Essas afirmações têm relação com o destino e a identidade de alguém,
não com sua origem material” (p. 71). Segundo esse princípio, seria falacioso
concluir de Jeremias 1.5 que o profeta veio do ventre de sua mãe. Mas o texto
fala tanto da função de Jeremias quanto de sua origem material, assim como
Gênesis 2 fala tanto do que Adão faria no jardim quanto da formação de seu
corpo a partir de um material preexistente. Vem de Walton, mas não do texto
bíblico, a sugestão de que devemos escolher entre as duas coisas.
Igualmente lamentável é a discussão sobre as causas do pecado e da
morte (p. 145-151). Walton sugere que, embora antes de Adão já existissem
homens praticando violência entre si, Romanos 5.13 permite inferir que “onde
não havia lei ou revelação, não existia pecado” (p. 146-147). Tal aplicação não
apenas retira a passagem do contexto,14 mas também nega a primeira parte do
mesmo versículo: “Porque até ao regime da lei havia pecado no mundo”. Ele
também sugere à igreja que reconsidere “como o pecado original é formula-
do e entendido”, pois “Quanto mais aprendemos sobre biologia e genética,
menor se torna a probabilidade do modelo de Agostinho”15 (p. 148). Aqui o
autor não apenas propõe que a ciência tenha um papel determinante em nossas
formulações teológicas sobre o pecado, mas também admite implicitamente
a visão cientificista de que só a biologia pode nos dizer o que pode ou não
ser transmitido de modo hereditário. Ele também endossa um confinamento
dos efeitos da queda à esfera sociológica que é, em última análise, pelagiano
e romântico (p. 150).
Ao discutir a historicidade de Adão (p. 191-194), embora a admita, Walton
diz que é insuficiente o fato de os autores bíblicos crerem nisso e o declararem
13 “Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e, antes que saísses da madre, te
consagrei, e te constituí profeta às nações” (Jr 1.5).
14 Está em discussão desde Romanos 1 a situação dos gentios que não receberam a revelação
especial, em contraste com os judeus. Se o entendimento de Walton fosse correto, isso implicaria que
os pagãos não são pecadores. Mas o contrário é afirmado repetidamente (Rm 1.20,28-31; 2.9,12,14;
3.9,30).
15 Ele se refere à ideia de que “o pecado é passado de geração em geração na medida em que
nascemos”.
126
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128
5. VALOR DA OBRA
A argumentação exegética de Walton é extensa e bastante sofisticada, o
que torna impossível, neste espaço, fazer plena justiça às suas posições, tanto
às boas quanto às más. Embora ele pareça não pensar assim, suas melhores
percepções são perfeitamente compatíveis com a interpretação conservadora
tradicional. Dessa forma, o livro pode contribuir para nossa compreensão da real
mensagem de Gênesis, uma vez purificado de seus compromissos sintéticos.
A despeito de várias de suas conclusões e aplicações serem infelizes, o
caminho até elas está repleto de considerações proveitosas. A obra apresenta
grande quantidade de informações úteis ao exegeta, e os fundamentos em que
se pretende basear cada conclusão são expostos com clareza; é graças a essa
qualidade, aliás, que seus erros podem ser identificados com maior facilidade.
Os méritos de Walton se destacam sobretudo em sua profunda familiaridade
com os escritos extrabíblicos do Antigo Oriente Próximo e na sua refutação
implícita a várias abordagens críticas que remontam às velhas tradições
teológicas liberais.17 Também merecem menção suas discussões meticulosas
sobre o campo semântico dos termos hebraicos utilizados no relato bíblico e
sua atenção a detalhes e conexões pertinentes frequentemente ignorados. Em
16 Exemplos citados a esmo: o fariseu que visitou Jesus se chamava Nicodemos; João estava em
Patmos quando teve as visões do Apocalipse; Salomão teve setecentas esposas e trezentas concubinas.
17 O livro apresenta, por exemplo, dados que contradizem a velha teoria liberal de uma origem
tardia para o relato da criação.
127
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA
128
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 129-135
Resenha
Alan Rennê Alexandrino Lima*
* O autor é bacharel em teologia pelo Seminário Teológico do Nordeste (STNe), em Teresina – PI,
e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. É mestre (S.T.M.), com concentração em
Estudos Históricos e Teológicos e linha de pesquisa em Teologia Sistemática, pelo Centro Presbiteriano
de Pós-Graduação Andrew Jumper (São Paulo). É professor visitante de Teologia Sistemática no Se-
minário Presbiteriano do Norte (Recife) e no Seminário Teológico do Nordeste, além de orientador na
Faculdade Internacional de Teologia Reformada (FITRef). É pastor-efetivo na Igreja Presbiteriana do
Cruzeiro do Anil, em São Luís – MA.
1 PACKER, J. I. Entre os Gigantes de Deus: uma visão puritana da vida cristã. 2.ed. São José
dos Campos: Fiel, 2016. p. 22.
2 Ibid., p. 20.
129
TEOLOGIA PURITANA: DOUTRINA PARA A VIDA
130
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 129-135
131
TEOLOGIA PURITANA: DOUTRINA PARA A VIDA
2. Transientes em Cristo naquilo que fez por nós, em tudo que fez ou sofreu ao
nos representar e ao tomar o nosso lugar;
3. Aplicadas, isto é, operadas em nós e por nós, todas aquelas bênçãos que o
Espírito nos outorga, como chamado, justificação, santificação, glorificação
(p. 210).
Tais conceitos podem ser vistos como estando relacionados com di-
versas doutrinas, como, por exemplo, os atributos de Deus, especialmente
o seu amor (p. 130), a justificação (p. 210-229), a eleição (p. 235), a ordem
dos decretos (p. 240), o Pacto da Redenção (p. 361) e a união mística com
Cristo (p. 690). O gênio da teologia dos puritanos está justamente na ma-
neira coesa como todos os loci teológicos são unidos, possuindo a teologia
do pacto como a sua estrutura arquitetônica e a doutrina da Trindade como
seu elemento norteador.
Dentre os 60 capítulos da obra, alguns podem ser destacados, uma vez
que apresentam conceitos e detalhes bastante interessantes a respeito do
pensamento teológico dos puritanos ou de algum deles, especificamente. Em
primeiro lugar, o capítulo 9, que discute o supralapsarianismo cristológico de
Thomas Goodwin. Essa designação advém do fato de Goodwin fundamentar
o seu supralapsarianismo em sua cristologia, tendo em mente “a glória do
Deus-homem, Jesus Cristo, que une a igreja consigo” (p. 233). O diferencial da
posição de Goodwin está em como ele apresenta a glória de Cristo, e o desejo
do Pai de agradar o seu Filho, como o propósito supremo e principal da elei-
ção. Na discussão acerca do infralapsarianismo versus o supralapsarianismo é
comum entender a reconciliação com Deus como sendo o propósito principal
da eleição. A ideia por trás deste pensamento é que Jesus Cristo foi dado pela
igreja, ou ainda, que ele foi entregue para, acima de todas as coisas, operar a
reconciliação entre Deus e o homem. Ainda que a obra de Cristo tenha tido tal
propósito, Goodwin entendia que não se tratava do fim supremo nem da obra
vicária de Cristo nem da eleição.
Beeke e Jones sublinham que, para Goodwin, “Cristo é o objetivo da
eleição e de todas as outras coisas” (p. 238). Isto quer dizer que o principal
motivo da predestinação de Cristo para ser o Redentor, não foi que os pecadores
pudessem ser salvos pelos benefícios da sua obra. Antes, o motivo primário foi
que a suprema excelência da sua pessoa fosse contemplada pelos pecadores.
Todos os benefícios advindos da obra redentora de Cristo possuem um valor
bem inferior à dádiva da sua pessoa. No Conselho da Redenção, que teve lugar
na eternidade, ao decretar que o Filho assumisse a natureza humana, Deus, o
Pai, não levou em consideração apenas a necessidade do ser humano de um
redentor. Ele levou em consideração, acima de tudo, nas palavras do próprio
Goodwin, citadas pelos autores:
132
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 129-135
[...] aquela glória infinita da segunda pessoa a ser manifesta naquela natureza
mediante essa apropriação. Os dois objetivos o levaram a agir, e, dos dois, a
glória da pessoa de Cristo naquela união e por meio daquela união teve maior
peso na eleição, de modo que até mesmo a própria redenção esteve subordinada
à glória da sua pessoa (p. 239).
Cristo “depois de ter se livrado de sua fragilidade aqui na carne e depois de ter
vestido sua natureza humana com uma glória tão magnífica” se lembra de nós
no céu, “ele é incapaz de se compadecer de nós da mesma maneira que fazia
quando habitou conosco aqui embaixo; tampouco podem seus sentimentos ser
afetados e tocados pelas nossas fraquezas”. Com certeza, ele deixou para trás
todas as lembranças de fraqueza e dor (p. 564).
133
TEOLOGIA PURITANA: DOUTRINA PARA A VIDA
Vossos próprios pecados levam [Cristo] mais à compaixão do que à ira [...] da
mesma maneira como acontece com o coração de um pai para com o filho que
tem alguma doença repugnante. Ou, de semelhante maneira, a atitude de alguém
que tem uma parte do corpo com lepra não é odiar aquela parte, pois é sua carne,
mas a doença, e isso o leva a ter ainda mais compaixão da parte afetada (p. 565).
134
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 129-135
últimas duas décadas do século 17. De acordo com Beeke e Jones, isso aconteceu
em virtude do surgimento do deísmo, do embate com o socinianismo e com o
arminianismo, e dos ataques de Thomas Hobbes e John Locke à validade da
ideia de consciência.
Não há dúvida de que Teologia Puritana foi o grande lançamento editorial
do ano de 2016. Numa época de redescobrimento do pensamento dos teólogos
puritanos, uma teologia sistemática que apresenta o seu pensamento teológico é
bem-vinda. Certamente, todos os amantes dos puritanos devem ler essa obra.
Além disso, o livro é uma ferramenta indispensável para todos aqueles que
desejam compreender, de fato, o que era ensinado pelos puritanos. Pesquisa-
dores e estudantes de teologia sistemática muito se beneficiarão dessa obra.
Algo interessante é que os autores deixaram de fora temas considerados difíceis
em nossos dias, como o princípio regulador do culto e a salmódia exclusiva.
Por fim, destaca-se o caráter devocional com que as doutrinas e os tópicos são
apresentados pelos autores.
135
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 137-143
Resenha
Emilio Garofalo Neto*
* O autor tem Ph.D. em Estudos Interculturais pelo Reformed Theological Seminary, em Jackson,
Mississipi. Leciona teologia sistemática no Seminário Presbiteriano de Brasília. É professor visitante no
CPAJ, na área de teologia pastoral, devendo em 2018 assumir a posição de professor residente. Pastoreia
a Igreja Presbiteriana Semear, em Brasília.
1 As citações que Mark Dever apresenta de Aldous Huxley são excelentes em mostrar o descrente
e seu jogo de esconder a verdade (ver p. 155-157).
137
A VERDADE: COMO COMUNICAR O EVANGELHO A UM MUNDO PÓS-MODERNO
A obra reúne uma ampla coletânea de artigos buscando lidar com facetas
diversas da árdua tarefa de comunicar a verdade do evangelho num tempo em
que a própria ideia de verdade parece perdida. O teólogo D. A. Carson é o
organizador do livro e a gama de autores é bem variada, indo de acadêmicos
a pastores em tempo integral e passando por obreiros em sociedades para-
-eclesiásticas labutando no território estudantil. O livro é resultado de uma
conferência sobre o assunto realizada em 1998 na Trinity Evangelical Divinity
School, em Chicago. As palestras foram convertidas para o formato de livro e
publicadas na língua inglesa em 2000. São cerca de 30 colaboradores. Alguns
artigos são longos, com mais de 20 páginas, enquanto que outros não chegam
nem a 10.
A obra já é um tanto antiga, relativamente falando, é claro. Palestras
produzidas quando o mundo eclesiástico estava ainda acordando para o pós-
-modernismo, e, embora isso não a invalide ou inutilize, é curioso ver algumas
referências culturais que foram utilizadas e que hoje não são mais tão conheci-
das, como as diversas menções a filmes como “Titanic”. Boa parte do que era
novidade em termos de relativismo cultural hoje já é lugar comum. Algumas
estatísticas agora já têm quase vinte anos. Além disso, alguns autores falam
sobre estarmos numa encruzilhada urgente e decisiva.2 É claro, se a encruzilhada
era decisiva quase vinte anos atrás, será que já mudou a situação? Além disso,
algumas ideias que eram bem novas na época do evento agora já se tornaram
lugar comuns e bem reconhecidas de quase todo crente ocidental. Nada que
prejudique demasiadamente a leitura, mas a obra fica um pouco datada. O lei-
tor pode comprar o livro com a impressão de se tratar de um livro mais atual,
contendo as últimas ideias e investigações sobre o assunto, quando na verdade
é um retrato do termômetro teológico utilizado há quase vinte anos. Grandes
eventos como a intensificação global do terrorismo islâmico, a massificação
de internet de alta velocidade e outros fatos recentes por certo mudaram alguns
elementos importantes no nosso entendimento de como ministrar no mundo
contemporâneo. De qualquer maneira, há uma grande quantidade de informa-
ção útil e perspicaz.
O âmago do livro é ajudar o leitor a se tornar mais equipado e atento na
hora de comunicar a palavra de Deus num tempo em que até mesmo a existên-
cia da verdade não se dá mais como certa. A obra é organizada em oito partes,
com artigos que cobrem razoavelmente bem cada sub-tópico e apontam onde
encontrar mais recursos.
A Primeira Parte contém as palestras plenárias de Ravi Zacharias, que
lidam com o assunto de uma forma introdutória e bastante útil. Na primeira
palestra ele trata de algumas das grandes mudanças culturais advindas com a
2 Num artigo que discute o ministério entre asiáticos na América do Norte, o autor fala sobre
estarem num limiar cultural (p. 261). O quanto mudou nessas quase duas décadas?
138
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 137-143
139
A VERDADE: COMO COMUNICAR O EVANGELHO A UM MUNDO PÓS-MODERNO
Colin Smith lida então com 2 Coríntios 5.1-11 e a ideia do pregador como
embaixador. O artigo é bem útil e nos lembra que somos representantes de
outro país. Estejamos vivendo num país moderno ou pós-moderno, é normal que
estranhemos e que nos estranhem. Precisamos é representar bem os interesses
de nosso reino. Smith compara o pregador a um embaixador que recebe um
comunicado de seu governo (Escritura) e tem de encontrar a melhor forma de
transmitir a mensagem à cultura em que ele habita (contextualização): “Ele lê
o texto com duas questões em mente: primeira, o que o governo está dizendo?
E, segunda, como expresso isso de maneira que essas pessoas compreendam”
(p. 200).
A Quinta Parte lida com o tema “igreja, universidade, etnia”. Autores
diversos tratam de como o evangelho está conectado à unidade racial e à di-
versidade étnica, e como essas discussões são relevantes em nosso tempo. Essa
seção tem material relevante, mas algumas discussões são mais relevantes para
o contexto imediato norte-americano.
No primeiro artigo da seção, Philip Jensen e Tony Payne tentam apre-
sentar um modelo que conecte o alcance evangelístico da igreja com trabalhos
realizados na universidade. Há algumas boas ideias, e os autores entram na
espinhosa discussão sobre trabalho da igreja versus trabalho paraeclesiástico.
Eles advogam ousadamente que paremos de chamar tais ministérios de para-
eclesiásticos, sugerindo que eles são tão igreja quanto as denominações em
si.3 Sugerem que essa separação é danosa, insistindo que movimentos como
Navegadores4 e Cruzada Estudantil têm natureza tão eclesiástica como as di-
ferentes denominações, com membros fieis e ativos na vida cristã. Os autores
do artigo sugerem que esses grupos deveriam começar a se reunir também aos
domingos e assumir de vez sua identidade eclesiástica.
Penso que eles detectaram aqui uma situação real; mas não entenderam
corretamente qual é o problema. De fato, há pessoas que se envolvem mais com
sua missão ou grupo paraeclesiástico do que com suas igrejas locais. E isso é
ruim. Conheço gente que passou mais de uma década num desses grupos, onde
foi convertido. Mas não ia além dessas reuniões semanais. Não se juntava à
igreja visível, nem mesmo recebera o batismo. Passava o dia do Senhor longe
do povo de Deus. Não estava debaixo de autoridade nem sujeito à disciplina.
Se os grupos paraeclesiásticos querem funcionar na prática como igreja, que
3 “Encontramo-nos na infeliz posição de negar o que somos em essência devido à política ecle-
siástica. É hora de confessar tudo—a organização paraeclesiástica tem em si bem pouco de ‘para-’. Ela
é um movimento eclesiástico. Participa da assembleia celestial de Jesus Cristo e se reúne localmente
como sua expressão para ouvir e responder à Palavra de Deus. Ela é uma igreja” (p. 220).
4 Aliás, parece que os tradutores não estão cientes de que o grupo Navigators já existe no Brasil,
pois consistentemente utilizam a terminologia em inglês, enquanto geralmente traduzem os nomes de
outros grupos.
140
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 137-143
se organizem como tal e obedeçam às ordens bíblicas que Cristo deu à igreja,
por exemplo, no que diz respeito a liderança organizada nos moldes bíblicos
e ministração dos sacramentos. Os autores desse artigo têm má eclesiologia,
bem longe do entendimento reformado. Eles pretendem ainda, por exemplo,
dissociar adoração da assembleia solene. Confundem o fato de que devemos
adorar em todo lugar e situação, com o desfazer-se das formas históricas de
adoração como se fossem mera invencionice humana.
A Sexta Parte lida principalmente com o aspecto relacional da apresenta-
ção do evangelho. Defendendo a ideia de que os pós-modernos serão ganhos
pelo aspecto relacional mais do que pelo apelo proposicional e intelectual,
diversos autores apontam caminhos possíveis para que isso ocorra. São três
artigos e eles acabam sendo um pouco repetitivos, há grande sobreposição da
temática. De qualquer forma, são ideias em geral sadias e bíblicas. Por vezes
a teologia dos autores se mostra um pouco problemática. Por exemplo, Ron
Bennett, em seu artigo “Evangelização autêntica na igreja local em uma era
relacional”, acaba aceitando categorias impostas pelo movimento seeker-
-sensitive e vendo-o como uma alternativa viável (p. 296).5 Novamente, vale
dizer que o autor tem boas ideias também. A comparação que ele faz entre
viver no vale e viver na montanha, por exemplo, é boa e interessante. Há boas
discussões, mas algumas delas não passam de conselhos práticos baseados na
experiência do autor, o que pode ser útil ou não.
A Sétima Parte tem sete artigos que tratam de estratégias e experiências
diversas de implementação de trabalhos que buscam atingir a geração atual.
Há forte ênfase em lidar com o tema de evangelismo e discipulado no contexto
universitário. Embora haja boas ideias, penso que um modelo melhor é um
que não está no livro, aquele desenvolvido nos Estados Unidos pela Reformed
University Fellowship (RUF), um braço da Igreja Presbiteriana da América
(PCA) que não compete ou concorre com a igreja, mas é um braço da igreja
que atua nos campi universitários do país.
Mais uma vez surge o problema do relacionamento entre igreja e minis-
térios diversos. Um exemplo é Mike Tilley em seu artigo que diz que cabe a
eles da Cruzada Estudantil, ainda que não exclusivamente, cumprir o mandato
da Grande Comissão e de Atos 1.8 (p. 367). Ora, mais uma vez aparece o pro-
blema do paraeclesiástico querendo ser igreja. Querem uma suposta leveza de
seguir sem muita estrutura formal e sem uma confissão de fé, mas acabam
de certa forma tomando para si prerrogativas eclesiásticas. Se desejam seguir
o conselho do artigo de Jensen e Payne, então precisam levar a sério ordens
bíblicas como batismo e disciplina eclesiástica. Mais uma vez há confusão
5 Sobre o assunto, ofereço humildemente meu artigo “Antes só do que mal acompanhada: o
risco de casar-se com o espírito de seu tempo—uma análise das propostas de revitalização de igreja dos
movimentos seeker-sensitive e emergente”. Fides Reformata, vol. XX, nº 2, 2015, p. 41-69.
141
A VERDADE: COMO COMUNICAR O EVANGELHO A UM MUNDO PÓS-MODERNO
142
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 137-143
143
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 145-147
Resenha
Alderi Souza de Matos*
145
PRESBITERIANOS X PENTECOSTAIS
146
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 145-147
147
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 149-150
Resenha
Robson Rosa Santana*
* O autor é bacharel em teologia pelo Seminário Presbiteriano Brasil Central e mestre em teologia
(M.Div.), com habilitação em Missões Urbanas, pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.
149
PROCUREI ALÁ, ENCONTREI JESUS: UM MUÇULMANO PIEDOSO ABRAÇA O EVANGELHO
1 No final de agosto de 2016, aos 33 anos, Nabeel Qureshi anunciou que estava com um câncer
no estômago. Desde então, ele vem lutando contra essa grave enfermidade.
150
Excelência e Piedade a Serviço do Reino de Deus