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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE HISTÓRIA
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

História da Cultura Popular nas Américas

Profa. Martha Abreu

O conceito de “cultura popular” e a obra de Edison Carneiro

Gabriel de Abreu Machado Gaspar

Pedro Henrique Duarte Figueira Carvalho

Yasmin Vianna Bragança

Muitos autores utilizam o termo “popular” com diferentes significados e nos


mais variados contextos. Entrementes, a junção entre com “cultura” e “popular” gesta
um conceito que precisa ser analisado de forma profunda e cuidadosa (ABREU, 2003).
O objetivo deste texto é discutir a construção do conceito de “cultura popular” e de
“cultura popular negra” a partir de um balanço historiográfico dos principais autores da
História Cultural. Posteriormente, discutiremos a obra de Edison Carneiro e sua
utilização do conceito de cultura popular.

Perspectivas historiográficas sobre a Cultura Popular

Através de sua obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o


contexto de François Rabelais (1987), Mikhail Bakhtin marca os estudos da cultura
popular. Com o objetivo de compreender a influência da cultura cômica popular na obra
de François Rabelais, o crítico literário russo elabora uma teorização da cultura popular
e do cômica da Europa medieval e renascentista. Nesse sentido, Bakhtin identificou que
alguns aspectos das manifestações culturais da época produziram uma “dualidade do
mundo” que se contrapunha à cultura da Igreja Católica e do Estado.

A despeito desta dicotomia, a cultura cômica popular estava em constante


contato com a cultura erudita. Conforme sintetiza Carlo Ginzburg (2006, p. 15) ao

1
comentar a obra supracitada, “temos, por um lado, dicotomia cultural, mas, por outro,
circularidade, influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica,
particularmente intenso na primeira metade do século XVI”. Esse cruzamento entre os
domínios do “popular” e do “erudito” não deve ser entendido enquanto uma relação
isolada entre conjuntos, mas sim como um encontro que culmina com fusões culturais.
Assim, Bakhtin defende a indissociabilidade e fim da hierarquização dos dois campos,
acentuando, sobretudo, seu permanente processo de transformação, ajuste e movimento,
ao qual o autor russo denominou “circularidade cultural”.

No Prefácio à edição italiana da obra O queijo e os vermes: o cotidiano e as


ideias de um moleiro perseguido pela inquisição (2006), Carlo Ginzburg empreende
uma revisão crítica de algumas obras que trataram do tema da cultura popular, como as
escritas por Mandrou, Bollème e Foucault:

Às classes subalternas das sociedades pré-industriais é atribuída ora


uma passiva adequação aos subprodutos culturais distribuídos como
generosidade pelas classes dominantes (Mandrou), ora uma tácita
proposta de valores, ao menos em parte autônomos em relação à
cultura dessas classes (Bollème), ora um estranhamento absoluto que
se coloca até mesmo para além, ou melhor, para aquém da cultura
(Foucault) (GINZBURG, 2006, p. 18).
Feito isso, o autor italiano atesta seu alinhamento à hipótese de Bakhtin “de uma
influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante”
(2006, p. 18).

Contudo, diferentemente de Bakhtin, Ginzburg propõe inovações metodológicas


no sentido de desejar uma sondagem direta ao mundo popular. Para tanto, buscou
superar as dificuldades de fontes diretas que se impunham ao seu objeto de pesquisa, as
ideias de um moleiro italiano do século XVI, ao pensar discursos indiretos, deve-se
questionar se os elementos da cultura hegemônica presentes nos da cultura popular
seriam frutos de uma aculturação, resultados de uma convergência mais ou menos
espontânea ou se oriundos de uma deformação da própria fonte, cujo autor desejava
aproximar o desconhecido do conhecido. Assim, o historiador, ao trabalhar com fontes
indiretas, deverá ser cauteloso e considerar, sempre, os filtros e intermediários presentes
nas características da cultura popular analisada.

Portanto, Ginzburg defende que “o fato de uma fonte não ser ‘objetiva’ não
significa que seja inutilizável” (2006, p. 16). Não se deve, então, “jogar a criança fora

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junto com a água da bacia” (2006, p. 16) e, por isso, o autor italiano defende a utilização
da expressão “cultura popular” frente à “mentalidade coletiva”, uma vez que “uma
análise de classes é sempre melhor que uma interclassista” (2006, p. 25)1, o que o
aproxima das concepções de uma história social “vista de baixo” dos marxistas ingleses.

Robert Darnton, em sua obra O Grande Massacre de Gatos, e outros episódios


da história cultural francesa (1988), procurou examinar as maneiras de pensar na
França do século XVIII, em especial, como as pessoas comuns “interpretavam o mundo,
conferiam-lhe significado e lhe infundiam emoção” (1988, p. 13). Trata-se, segundo
afirma o próprio autor na apresentação do livro, de uma história de tendência
etnográfica e com claras influências de Clifford Geertz, que buscava descobrir a
cosmologia destas pessoas comuns e como esta se expressava em seu comportamento.
Daí decorre a diferenciação entre a história cultural e a história das ideias: a primeira, se
preocupa em como as pessoas comuns entendiam o mundo e guiava sua ação a partir
disso; a segunda, aborda as ideias de maneira sistematizada e formal. A influência já
citada de Geertz é sentida também a partir da consideração de práticas sociais como
textos, o que permitiria o acesso aos modos de pensar dos comuns do século XVIII.

Roger Chartier questionou o modelo de análise interpretativo geertziano


proposto por Darnton2, uma vez que ele desconsidera as apropriações, as relações entre
texto e práticas e leitura e, sobretudo, não se atenta para o fato de que o campo cultural
também se constitui enquanto campo de lutas e conflitos (SOIHET, 2003, p. 16). No
artigo Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico (1995), Chartier
apresenta suas considerações sobre o conceito. Segundo ele, é possível reduzir as
inúmeras definições de cultura popular a dois grandes modelos explicativos:

O primeiro, no intuito de abolir toda forma de etnocentrismo cultural,


concebe a cultura popular como um sistema simbólico coerente e
autônomo, que funciona segundo uma lógica absolutamente alheia e
irredutível à da cultura letrada. O segundo, preocupado em lembrar a
existência das relações de dominação que organizam o mundo social,
percebe a cultura popular em suas dependências e carências em
relação à cultura dos dominantes. Temos, então, de um lado, uma

1
Neste ponto, Ginzburg empreende uma crítica à história das mentalidades, sob o argumento de que esta
desconsidera a racionalidade nas diferentes visões de mundo, privilegiando seus elementos inertes e
obscuros. Além disso, o autor italiano critica a conotação interclassista da história das mentalidades. Em
contrapartida, Ginzburg defende cultura das camadas inferiores, com atitudes e códigos de
comportamento. Para ver mais: GINZBURG, 2006, p. 23-24; SOIHET, 2003, p. 12; ABREU, 2003, p.
89-90.
2
Para as polêmicas (e famosas) discussões entre Roger Chartier e Robert Darnton, ver: CHARTIER,
1985 e DARNTON, 1986.

3
cultura popular que constitui um mundo à parte, encerrado em si
mesmo, independente, e, de outro, uma cultura popular inteiramente
definida pela sua distância da legitimidade cultural da qual ela é
privada (CHARTIER, 1995, p.179).
Estes modelos estão longe de ser excludentes entre si e podem estar presentes em uma
mesma obra.

A despeito das tentativas de identificar a cultura popular a partir da organização


de um conjunto específico de objetos ou modelos culturais, o que importa, de fato, para
Chartier é a sua apropriação pelos grupos ou indivíduos, uma vez que “em toda
sociedade, as formas de apropriação dos textos, dos códigos, dos modelos
compartilhados são tão ou mais geradoras de distinção que as práticas próprias de cada
grupo social” (CHARTIER, 1995, p. 184). Assim, o “popular” não está em um conjunto
de elementos e sim em “um tipo de relação, um modo de utilizar objetos ou normas que
circulam na sociedade, mas que são recebidos, compreendidos e manipulados de
diversas maneiras (CHARTIER, 1995, p. 184). Nesse sentido, a ênfase de Chartier recai
sob os modos de usar e de entender, enquanto práticas sociais, e sua pluralidade.

O procedimento metodológico proposto por Chartier originaria uma “história


social dos usos e das interpretações”, na qual o historiador deve se atentar para as
condições e os processos produtores de sentido, sem esquecer que as práticas culturais
são objetivos de lutas sociais. Logo, “cultura popular” deve ser situada no espaço de
enfrentamentos, em que estão em disputa mecanismos de dominação simbólica e os
usos e formas de apropriação do que é imposto.

Na obra Cultura Popular na Idade Moderna (1989), o historiador inglês Peter


Burke afirma que a noção de “cultura popular” é problemática. Ao salientar os perigos
do uso do termo de forma homogênea no tempo e no espaço (ABREU, 2003, p. 90),
Burke defende que havia muitas “culturas populares ou muitas variedades de cultura
popular – é difícil optar entre as duas formulações porque uma cultura é um sistema de
limites indistintos, de modo que é impossível dizer onde termina uma e começa outra”
(BURKE, 1989, p.56). Esta dificuldade de conceituação decorre do fato de que Burke
identifica uma série de pontos de interseção entre a “cultura popular” e a “cultura
erudita” (DOMINGUES, 2011, p.408). Para tanto, o autor inglês cunha a expressão
“biculturalidade”, o que explica os pontos de interseção e se contrapõe a uma dicotomia
entre “cultura popular” e “cultura erudita”, levando em consideração as críticas de
Roger Chartier a sua obra. Em suma, para Burke, “cultura popular” seria

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um sistema de significados, atitudes e valores compartilhados, e as
formas simbólicas (apresentações – formas de comportamento, como
festas e violência – e artefatos – construções culturais, como
categorias de doença ou política) nas quais elas se expressam ou se
incorporam (1989, p. 26).
Na coletânea Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional
(1998), o marxista inglês E. P. Thompson reuniu artigos relacionados “ao tema do
costume” e “como ele se manifestou na cultura dos trabalhadores no século XVIII e
parte do XIX” (1998, p. 13). Neste período, o autor identifica a abertura de um “hiato
profundo” entre a “cultura patrícia” e a “cultura da plebe”, o que se deu em termos de
classe. Para Thompson, os costumes não devem ser considerados como “discretas
sobrevivências” e sim como “vocabulário completo de discurso, de legitimação e de
expectativa” (1998, p. 14) utilizado em quase “todo uso, prática ou direito reclamado”
(1998, p. 16). Nesse sentido, para o autor inglês, o costume era um campo de mudança e
de disputa, no qual se apresentavam reinvindicações conflitantes.

Uma das grandes contribuições de Thompson foi apontar para os cuidados


quanto aos usos do conceito de “cultura popular”. O autor refuta Burke ao criticar a
“perspectiva ultraconsensual” da “cultura popular” (1998, p. 17), decorrente das
influências da antropologia, que a entende como um sistema de atitudes, valores e
significados compartilhados. Thompson, ao contrário, afirma que a “cultura popular”
engloba um conjunto de diferentes recursos advindos de trocas entre “o escrito e o oral,
o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole” e se constitui enquanto uma
“arena de elementos conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa arrume a
forma de um sistema” (1998, p. 17). Portanto, a cultura plebeia não se autodefinia,
tampouco era independente de influências externas. Ela somente assumia sua forma
defensivamente, o que torna necessário situá-la em um contexto histórico específico ou
no lugar material que lhe corresponde.

Uma das grandes discussões e teorizações acerca da “cultura popular negra” está
presente no trabalho de Stuart Hall (1984, 1996 e 2003). Filiado à corrente marxista da
New Left inglesa formada por nomes como E. P. Thompson, Raymond Willians e
outros, Hall, na análise do cultural, não perde de vista as “condições materiais e de
classes específicas” e busca compreender como a cultura de um grupo pode servir de
contestação à ordem social ou como forma de adesão às relações de poder

5
(DOMINGUES, 2011, p. 413). Para este autor, era necessário desconstruir o conceito de
“cultura popular” e superar a visão desde como íntegra, autêntica e autônoma,
“localizada fora do campo de força das relações de poder e de dominações culturais”
(DOMINGUES, 2011, p. 414). Sendo assim,

nas reflexões propostas por Hall, a cultura deixa de ser considerada


como uma simples variável, secundária ou dependente em relação ao
que faz o mundo mover-se e passa a ser vista como algo fundamental
e constitutivo não apenas de nossas práticas, mas também dos
modelos que utilizamos para conferir sentido à realidade (ZUBARAN,
WORTMANN & KIRCHOF, 2016, p. 14).
A definição de “cultura popular” de Hall considera, principalmente, as formas e
atividades incorporadas nessa cultura e enraizadas nas condições sociais e materiais de
classes específicas. Além disso, o autor insiste que o essencial ao analisar a “cultura
popular” são as “relações que colocam a ‘cultura popular’ em uma tensão contínua (de
relação, influência e antagonismo) com a cultura dominante” (HALL, 2003, p. 255-258
apud DOMINGUES, 2011, p. 414).

O principal marcador de diferenciação destas formas de cultura popular recai na


palavra “negro”, da expressão “cultura popular negra”. Para o autor jamaicano, a
“cultura popular negra” não deve ser reduzida às dicotomias como alto e baixo,
autêntico e inautêntico, formal e experiencial, dentre outras. Ao contrário, ela é um
“espaço ambivalente, paradoxal, local de interseções, consentimentos, insurgências, e
contestações táticas” (DOMINGUES, 2011, p. 415). Outra questão levantada por Hall
ao tratar da “cultura popular negra” é uma crítica à visão essencialista da África,
oriunda de uma construção social e histórica de representações. Por isso, ele propõe
compreender a experiência negra da diáspora através da diversidade, da
heterogeneidade e hibridações que culturais, que definem estas identidades negras
diaspóricas.

Por fim, Hall destaca que tais identidades negras e as representações culturais
não podem ser compreendidos enquanto meros reflexos de uma realidade objetiva. Eles
são constantemente construídos a partir de práticas sociais, sempre permeadas por
relações de poder em determinadas situações históricas. Para tanto, Hall “nos desafia a
colocar em ação uma política cultural voltada à transformação e à subversão das
representações naturalizadas que estão na base não apenas do racismo, mas também de

6
todo e qualquer tipo de colonização” (ZUBARAN, WORTMANN & KIRCHOF, 2016,
p. 33).

O próprio título da obra de Paul Gilroy, O Atlântico Negro: modernidade e


dupla consciência (2001), já rende por si grandes reflexões. Ao buscar analisar as
relações entre “raça”, cultura, nacionalidade e etnia, o autor inglês, cunha o conceito de
“Atlântico Negro”, que se refere, de maneira metafórica, às estruturas “transnacionais”
que originam um sistema de trocas e fluxos culturais, sendo o navio um canal de
comunicação pan-africana. Isso implica na construção da imagem “de navios em
movimento pelos espaços entre a Europa, América, África e o Caribe como um símbolo
organizador central para este empreendimento” e como “um sistema vivo, microcultural
e micropolítico em movimento” (GILROY, 2001, p. 38).

A análise da cultura do Atlântico Negro permite, então, se afastar das


concepções de cultura nacional influenciadas pelo absolutismo étnico do movimento
negro e se aproximar da questão da relação dos negros com a modernidade ocidental.
Nesse sentido, Gilroy defende que os negros criaram um corpo único de reflexão sobre
a modernidade e seus aspectos presentes nas lutas culturais e políticas. Para ele, as
“ideias sobre nacionalidade, etnia, autenticidade e integridade cultural são fenômenos
tipicamente modernos com implicações profundas para a crítica cultural e a história
cultural” (GILROY, 2001, p. 34). Uma crítica importante do autor ao paradigma
moderno estabelecido na virada do século XVIII para o XIX e aos estudos culturais
ingleses, recai sobre a questão da associação entre nacionalidade e o conceito de cultura.

O negro inglês é formado por uma “dupla consciência”, um dos conceitos


básicos e estruturadores da análise de Gilroy e com claras influências de W. E. B.
Dubois. Trata-se de uma complexa mistura entre ideias e sistemas culturais africanos e
europeus. De um lado, tinha-se lugar uma consciência de herança iluminista que refletia
o paradigma ocidental e moderno; de outro, as experiências pós-escravidão africana
vivenciadas pelos negros ocidentais.

Assim, ao se utilizar da relação entre modernidade e dupla consciência exposta


no subtítulo de sua obra, Gilroy se propõe a analisar o pensamento e as expressões
artísticas negras como contracultura distintiva da modernidade e resistência ao
paradigma moderno. Para tanto, o autor inglês de debruçará sobre a música negra pois
esta “é, com muita frequência, o principal símbolo da autenticidade racial” (GILROY,

7
2001, p. 90). Esta análise musical deveria considerar o conteúdo, a forma, a produção, o
consumo e as relações sociais. Nesse sentido, a expressão artística para os negros atua
como formação de identidade e lutas de libertação.

Simon Frith (2003), outro intelectual inglês, também analisa a música como
construção de identidade. Esta análise é permeada pela ênfase na experiência,
compreendida através de uma identidade subjetiva e outra coletiva. Aliás, a própria
identidade é um tipo particular de experiência. Este processo experiencial é captado de
melhor forma pela música. A relação entre música e identidade é tanto de ética quanto
de estética. No âmbito da estética é possível encontrar dois paradigmas. O primeiro,
moderno, valoriza as belas artes, como a literatura e a pintura, cujos objetos são
materiais e remetem à racionalidade em detrimento das artes interpretativas como teatro,
dança e música, dotadas de uma análise momentânea e emocional. Neste ponto, Frith
(2003) critica tal paradigma e propõe entender a arte como uma experiência e como uma
experiência em si de uma identidade. Assim, a música constrói a identidade a partir das
experiências que oferece ao corpo, do tempo e da sociabilidade e se constitui como
forma cultural mais apta a cruzar as fronteiras nacionais.

A obra de Edison Carneiro

A fonte escolhida para a análise da utilização do conceito de cultura popular,


conforme foi descrito nas páginas anteriores, é: Os cultos de origem africana no Brasil
de autoria de Edison Carneiro, publicado em 1959. Edison Carneiro foi um dos maiores
folcloristas brasileiros, com destaque para seus trabalhos sobre a cultura afro-brasileira,
como a Antologia do negro brasileiro, publicado em 1950.

Inicialmente, Edison Carneiro comenta os trabalhos de Nina Rodrigues sobre a


centralidade da religião dos nagôs como modelo para os diversos grupos afro-
brasileiros. Apesar de reconhecer as lacunas das proposições de Rodrigues, Carneiro
aponta que os trabalhos posteriores, inspirados em Rodrigues, mostraram a unidade
africana das inúmeras manifestações culturais do negro no Brasil. Dessa maneira,
Carneiro visa identificar os cultos africanos naquilo que os distingue como de origem
africana e busca uma sistematização dos tipos em que pode dividi-los (CARNEIRO,
1959, p. 4)

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Nas páginas seguintes, onde desenvolve o objetivo anunciado anteriormente,
Carneiro faz uma análise mais detalhada dos cultos africanos e como eles se
desenvolveram em solo brasileiro, mas prende-se a uma descrição típica dos
folcloristas. De tal forma, não buscamos prender nossa análise na descrição que
Carneiro faz das manifestações religiosas africanas no Brasil, e sim perceber como sua
visão de folclorista influencia sua visão sobre a cultura popular a partir das proposições
de E. P. Thompson (2001).

Apesar de mostrar que os cultos africanos não são idolatrias, e sim politeístas.
Edison Carneiro, ao longo da descrição que faz dos rituais religiosas, deixa entrever
uma posição de folclorista diante da cultura popular. Primeiramente, ele considera que
os cultos organizados não podiam florescer sob a escravidão e nem no quadro rural, pois
o negro precisava de dinheiro e de liberdade (CARNEIRO, 1959, p. 7). Tal perspectiva
merece ser criticada, pois opõe campo e cidade a partir do binômio moderno x arcaico e
não confere aos escravos brasileiros a possibilidade de agência mesmo na escravidão,
ainda que tal perspectiva somente tenha ganhado força no Brasil nos anos 1980.
Entretanto, cabe ressaltar que algumas pesquisas enfatizam a capacidade do escravo de
uma formar uma identidade a partir dos encontros de várias culturas africanas, em
espaços como a família escrava (SLENES, 1997, p. 282).

Outro ponto que merece ser fruto de crítica é a passagem onde ele considera que
a tradição dos cultos africanos, como a do oráculo e a do mensageiro, foram
corrompidas, pois a prática passou a constituir uma boa fonte de renda como de
prestigio social para os chefes de culto, além da atuação de traços culturais europeus, do
espiritismo e do ocultismo que também contribuíram para desprover a prática de seus
significados originais. A crítica que deve ser feita está na concepção de Edison Carneiro
de que a cultura popular é um objeto puro, intocado e que deve ser preservado da
contaminação, em outras palavras, pode se entrever as críticas ao folclore já anunciadas
por Thompson, qual seja: a concepção da cultura como relíquia, uma classificação que
retira do costume seus atributos culturais e temporais, o que o autor inglês chama de
“descontextualização” (THOMPSON, 2001, p. 231-232). Além disso, Carneiro também
desconsidera os diferentes movimentos de apropriação aos quais as culturas estão
sujeitas, como proposto por Roger Chartier (CHARTIER, 1995).

Ao prosseguir sua análise sobre a nacionalização dos cultos africanos no Brasil,


Carneiro volta a cometer os equívocos anteriormente analisados. Entretanto, ao
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aproximar-se do final do texto, o folclorista reforça tal concepções de que as práticas
culturais africanas foram corrompidas e caminham naturalmente para a extinção.

Ao tratar da diversidade de formas que os cultos africanos tomaram no Brasil,


Carneiro os classifica como subtipos. Para ele, tal movimento deu-se pela aceitação do
modelo de culto por grupos cada vez mais distantes das tradições que o plasmaram e,
por outro, à falta de uma hierarquia eclesiástica, capaz de manter vivas tais tradições
(CARNEIRO, 1959, p. 17). Dessa maneira, o aprendizado da teogonia e da liturgia fez-
se de acordo com os interesses dos chefes de cultos, e não para todos, de forma que, por
exemplo, os negros não têm mais lembranças de suas antigas relações tribais com a
África e a aprenderam o que sabem de negros igualmente destribalizados. Portanto,
nesta análise Carneiro deixa clara sua crítica a parte de tradições por parte dos africanos
diante do movimento de nacionalização dos cultos africanos pelos brasileiros, ainda se
prendendo a uma concepção essencialista de cultura que não enxerga os diferentes
processos de trocas e apropriações.

Nas últimas páginas, Carneiro deixa ainda mais clara sua concepção de cultura
como folclorista. Inicialmente, afirma, categoricamente, que os cultos africanos
caminham em direção ao seu destino lógico, qual seja, o folclore. O autor justifica tal
posição a partir da própria difusão dos cultos africanos, pois tal movimento fazia com
que as crenças se desagregassem como unidades religiosas, tornando-se mais
compreensíveis ou aceitáveis, em outras palavras, perdiam os traços culturais que
carregavam sua singularidade, ainda que tal movimento auxiliasse na manutenção de
tais práticas culturais (CARNEIRO, 1959, p. 18-19). Carneiro amplia tal perspectiva ao
comentar as disparidades socioeconômicas entre as regiões brasileiras. A geografia do
Nordeste faria com que os cultos de tal região permanecessem filiados ás tradições
características dos cultos africanos, enquanto o dinamismo econômico do Sudeste era
responsável pelo distanciamento entre os cultos e as tradições culturais africanas. Ainda
que não fique clara a defesa de um certo grau de determinismo geográfico, Carneiro
volta a recorrer à binômios reducionistas, como: pureza x perda e arcaico x moderno.

Ao finalizar o texto, Carneiro discorre, em um tom infeliz, sobre a


descaracterização das práticas culturais africanas. Para ele, os costumes tornaram-se
mais brasileiros que africanos, pois a língua portuguesa se impôs sobre as línguas
africanas e a baiana se tornou mais brasileira que africana. Destribalizados pela
escravidão, somente restava aos negros aceitar os elementos da sociedade nacional. De
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tal forma, Carneiro encerra de forma melancólica sua análise sobre os cultos africanos
no Brasil. Segundo o próprio:

Estes cultos, seja qual for o modo em que se apresentem, são um mundo, todo
um estilo de comportamento, uma subcultura, que pode ser vencida somente através de
alterações profundas e substanciais das condições objetivas e subjetivas arcaicas de que
são certamente o reflexo (CARNEIRO, 1959, p. 20)

Ao trabalhar a partir dos conceitos oriundos do folclore, Edison Carneiro faz


com que sua concepção de cultura seja estática e pensada a partir de binômios, como:
pureza x perda e arcaico x moderno. Apesar disso, sua contribuição sobre a cultura afro-
brasileira merece ser valorizada e criticada, mas não relegada a segundo plano, como
ocorreu nos anos 1960 e 1970, principalmente, a partir das ponderações de Florestan
Fernandes.

***

Na primeira parte, abordamos autores – Bakhtin, Ginzburg, Darnton, Chartier,


Burke e Thompson – ligados à história social, principalmente àquela que se detêm na
perspectiva da “história vista de baixo”: “as culturas do povo e a multidão na história;
‘economia moral’ dos pobres; experiência e cultura dos trabalhadores; circularidades
culturais e apropriações de sujeitos históricos com uma dose variável, mas razoável, de
autonomia” (ABREU, 2003, p. 90). Na segunda, apresentamos o termo “cultura popular
negra” a partir das obras de Stuart Hall, Paul Gilroy e Simon Frith, acentuando suas
propostas de entendimento do conceito e suas sugestões metodológicas. Por fim,
apresentamos a obra “Os cultos de origem africana” de Edison Carneiro e suas
perspectivas acerca da “cultura popular”.

Em suma, talvez a importância fundamental do “enfrentamento” do conceito de


“cultura popular” seja, conforme salientou Martha Abreu (2003), o de manter aberto a
possibilidade de pensar como as lutas sociais se organizam em torno das questões
culturais e como “os de baixo”, enquanto agentes históricos, pensam, agem e
transformam o mundo e o que lhes é imposto.

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