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INSTITUTO DE HISTÓRIA
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
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comentar a obra supracitada, “temos, por um lado, dicotomia cultural, mas, por outro,
circularidade, influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica,
particularmente intenso na primeira metade do século XVI”. Esse cruzamento entre os
domínios do “popular” e do “erudito” não deve ser entendido enquanto uma relação
isolada entre conjuntos, mas sim como um encontro que culmina com fusões culturais.
Assim, Bakhtin defende a indissociabilidade e fim da hierarquização dos dois campos,
acentuando, sobretudo, seu permanente processo de transformação, ajuste e movimento,
ao qual o autor russo denominou “circularidade cultural”.
Portanto, Ginzburg defende que “o fato de uma fonte não ser ‘objetiva’ não
significa que seja inutilizável” (2006, p. 16). Não se deve, então, “jogar a criança fora
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junto com a água da bacia” (2006, p. 16) e, por isso, o autor italiano defende a utilização
da expressão “cultura popular” frente à “mentalidade coletiva”, uma vez que “uma
análise de classes é sempre melhor que uma interclassista” (2006, p. 25)1, o que o
aproxima das concepções de uma história social “vista de baixo” dos marxistas ingleses.
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Neste ponto, Ginzburg empreende uma crítica à história das mentalidades, sob o argumento de que esta
desconsidera a racionalidade nas diferentes visões de mundo, privilegiando seus elementos inertes e
obscuros. Além disso, o autor italiano critica a conotação interclassista da história das mentalidades. Em
contrapartida, Ginzburg defende cultura das camadas inferiores, com atitudes e códigos de
comportamento. Para ver mais: GINZBURG, 2006, p. 23-24; SOIHET, 2003, p. 12; ABREU, 2003, p.
89-90.
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Para as polêmicas (e famosas) discussões entre Roger Chartier e Robert Darnton, ver: CHARTIER,
1985 e DARNTON, 1986.
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cultura popular que constitui um mundo à parte, encerrado em si
mesmo, independente, e, de outro, uma cultura popular inteiramente
definida pela sua distância da legitimidade cultural da qual ela é
privada (CHARTIER, 1995, p.179).
Estes modelos estão longe de ser excludentes entre si e podem estar presentes em uma
mesma obra.
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um sistema de significados, atitudes e valores compartilhados, e as
formas simbólicas (apresentações – formas de comportamento, como
festas e violência – e artefatos – construções culturais, como
categorias de doença ou política) nas quais elas se expressam ou se
incorporam (1989, p. 26).
Na coletânea Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional
(1998), o marxista inglês E. P. Thompson reuniu artigos relacionados “ao tema do
costume” e “como ele se manifestou na cultura dos trabalhadores no século XVIII e
parte do XIX” (1998, p. 13). Neste período, o autor identifica a abertura de um “hiato
profundo” entre a “cultura patrícia” e a “cultura da plebe”, o que se deu em termos de
classe. Para Thompson, os costumes não devem ser considerados como “discretas
sobrevivências” e sim como “vocabulário completo de discurso, de legitimação e de
expectativa” (1998, p. 14) utilizado em quase “todo uso, prática ou direito reclamado”
(1998, p. 16). Nesse sentido, para o autor inglês, o costume era um campo de mudança e
de disputa, no qual se apresentavam reinvindicações conflitantes.
Uma das grandes discussões e teorizações acerca da “cultura popular negra” está
presente no trabalho de Stuart Hall (1984, 1996 e 2003). Filiado à corrente marxista da
New Left inglesa formada por nomes como E. P. Thompson, Raymond Willians e
outros, Hall, na análise do cultural, não perde de vista as “condições materiais e de
classes específicas” e busca compreender como a cultura de um grupo pode servir de
contestação à ordem social ou como forma de adesão às relações de poder
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(DOMINGUES, 2011, p. 413). Para este autor, era necessário desconstruir o conceito de
“cultura popular” e superar a visão desde como íntegra, autêntica e autônoma,
“localizada fora do campo de força das relações de poder e de dominações culturais”
(DOMINGUES, 2011, p. 414). Sendo assim,
Por fim, Hall destaca que tais identidades negras e as representações culturais
não podem ser compreendidos enquanto meros reflexos de uma realidade objetiva. Eles
são constantemente construídos a partir de práticas sociais, sempre permeadas por
relações de poder em determinadas situações históricas. Para tanto, Hall “nos desafia a
colocar em ação uma política cultural voltada à transformação e à subversão das
representações naturalizadas que estão na base não apenas do racismo, mas também de
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todo e qualquer tipo de colonização” (ZUBARAN, WORTMANN & KIRCHOF, 2016,
p. 33).
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2001, p. 90). Esta análise musical deveria considerar o conteúdo, a forma, a produção, o
consumo e as relações sociais. Nesse sentido, a expressão artística para os negros atua
como formação de identidade e lutas de libertação.
Simon Frith (2003), outro intelectual inglês, também analisa a música como
construção de identidade. Esta análise é permeada pela ênfase na experiência,
compreendida através de uma identidade subjetiva e outra coletiva. Aliás, a própria
identidade é um tipo particular de experiência. Este processo experiencial é captado de
melhor forma pela música. A relação entre música e identidade é tanto de ética quanto
de estética. No âmbito da estética é possível encontrar dois paradigmas. O primeiro,
moderno, valoriza as belas artes, como a literatura e a pintura, cujos objetos são
materiais e remetem à racionalidade em detrimento das artes interpretativas como teatro,
dança e música, dotadas de uma análise momentânea e emocional. Neste ponto, Frith
(2003) critica tal paradigma e propõe entender a arte como uma experiência e como uma
experiência em si de uma identidade. Assim, a música constrói a identidade a partir das
experiências que oferece ao corpo, do tempo e da sociabilidade e se constitui como
forma cultural mais apta a cruzar as fronteiras nacionais.
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Nas páginas seguintes, onde desenvolve o objetivo anunciado anteriormente,
Carneiro faz uma análise mais detalhada dos cultos africanos e como eles se
desenvolveram em solo brasileiro, mas prende-se a uma descrição típica dos
folcloristas. De tal forma, não buscamos prender nossa análise na descrição que
Carneiro faz das manifestações religiosas africanas no Brasil, e sim perceber como sua
visão de folclorista influencia sua visão sobre a cultura popular a partir das proposições
de E. P. Thompson (2001).
Apesar de mostrar que os cultos africanos não são idolatrias, e sim politeístas.
Edison Carneiro, ao longo da descrição que faz dos rituais religiosas, deixa entrever
uma posição de folclorista diante da cultura popular. Primeiramente, ele considera que
os cultos organizados não podiam florescer sob a escravidão e nem no quadro rural, pois
o negro precisava de dinheiro e de liberdade (CARNEIRO, 1959, p. 7). Tal perspectiva
merece ser criticada, pois opõe campo e cidade a partir do binômio moderno x arcaico e
não confere aos escravos brasileiros a possibilidade de agência mesmo na escravidão,
ainda que tal perspectiva somente tenha ganhado força no Brasil nos anos 1980.
Entretanto, cabe ressaltar que algumas pesquisas enfatizam a capacidade do escravo de
uma formar uma identidade a partir dos encontros de várias culturas africanas, em
espaços como a família escrava (SLENES, 1997, p. 282).
Outro ponto que merece ser fruto de crítica é a passagem onde ele considera que
a tradição dos cultos africanos, como a do oráculo e a do mensageiro, foram
corrompidas, pois a prática passou a constituir uma boa fonte de renda como de
prestigio social para os chefes de culto, além da atuação de traços culturais europeus, do
espiritismo e do ocultismo que também contribuíram para desprover a prática de seus
significados originais. A crítica que deve ser feita está na concepção de Edison Carneiro
de que a cultura popular é um objeto puro, intocado e que deve ser preservado da
contaminação, em outras palavras, pode se entrever as críticas ao folclore já anunciadas
por Thompson, qual seja: a concepção da cultura como relíquia, uma classificação que
retira do costume seus atributos culturais e temporais, o que o autor inglês chama de
“descontextualização” (THOMPSON, 2001, p. 231-232). Além disso, Carneiro também
desconsidera os diferentes movimentos de apropriação aos quais as culturas estão
sujeitas, como proposto por Roger Chartier (CHARTIER, 1995).
Nas últimas páginas, Carneiro deixa ainda mais clara sua concepção de cultura
como folclorista. Inicialmente, afirma, categoricamente, que os cultos africanos
caminham em direção ao seu destino lógico, qual seja, o folclore. O autor justifica tal
posição a partir da própria difusão dos cultos africanos, pois tal movimento fazia com
que as crenças se desagregassem como unidades religiosas, tornando-se mais
compreensíveis ou aceitáveis, em outras palavras, perdiam os traços culturais que
carregavam sua singularidade, ainda que tal movimento auxiliasse na manutenção de
tais práticas culturais (CARNEIRO, 1959, p. 18-19). Carneiro amplia tal perspectiva ao
comentar as disparidades socioeconômicas entre as regiões brasileiras. A geografia do
Nordeste faria com que os cultos de tal região permanecessem filiados ás tradições
características dos cultos africanos, enquanto o dinamismo econômico do Sudeste era
responsável pelo distanciamento entre os cultos e as tradições culturais africanas. Ainda
que não fique clara a defesa de um certo grau de determinismo geográfico, Carneiro
volta a recorrer à binômios reducionistas, como: pureza x perda e arcaico x moderno.
Estes cultos, seja qual for o modo em que se apresentem, são um mundo, todo
um estilo de comportamento, uma subcultura, que pode ser vencida somente através de
alterações profundas e substanciais das condições objetivas e subjetivas arcaicas de que
são certamente o reflexo (CARNEIRO, 1959, p. 20)
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Referências bibliográficas
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SOIHET, R. (Orgs.). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia.
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ZUBARAN, Maria A.; WORTMANN, Maria L. & KIRCHOF, Edgar R. Stuart Hall e
as questões étnico-raciais no brasil: cultura, representações e identidades.
Projeto História, São Paulo, n. 56, 2016.
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