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CAPÍTULO

1
Risco cirúrgico e estado físico
José Américo Bacchi Hora / Marcelo Simas de Lima / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais ASA Definição Exemplo


Mortalidade
pela anestesia
- Fatores preditivos para intercorrências cirúrgicas; Hipertensão
- Orientação perioperatória nas comorbidades clínicas. Paciente com doença controlada com
II sistêmica branda, medicação de 0,27%
controlada uso diário e
1. Introdução atividade física

Com o aumento da expectativa de vida da população em DM


Paciente com
razão dos avanços nas ciências médicas e do conhecimento doença sistêmica
descompensado
de comportamentos mais saudáveis, aumenta também a III com lesão 1,8%
limitante, mas não
secundária em
presença de comorbidades clínicas em pacientes que pode- incapacitante
órgão alvo
rão ser submetidos a procedimentos cirúrgicos. O cirurgião
precisa estar atento à possibilidade de complicações peri e Paciente com doença
pós-operatórias relacionadas a essas comorbidades, reali- sistêmica incapacitante DPOC oxigênio-
IV 7,8%
que lhe constitui -dependente
zando o correto manejo durante o pré-operatório.
ameaça à vida
Paciente moribundo,
2. Fatores preditivos com sobrevida
Insuficiência
de 3 ou mais
V estimada menor que 9,4%
A idade avançada, isoladamente, é um significativo sistemas
24 horas, com ou
fator preditivo para a mortalidade. A capacidade funcio- orgânicos
sem cirurgia
nal dos órgãos é diminuída com a idade, o que resulta em Doador de órgãos e
VI - -
baixa reserva fisiológica dos sistemas. Outros fatores de tecidos
risco incluem cirurgias de grande porte ou de emergência,
Diversas outras escalas de risco são empregadas na ava-
doenças preexistentes (hipertensão, doenças cardíacas,
liação pré-operatória. Destas, uma das mais difundidas é
diabetes mellitus, insuficiência renal, doenças hepáticas a escala de Goldman e cols., 1977, para avaliação do risco
e respiratórias), neoplasias, nutrição inadequada (princi- cardíaco, que associa dados clínicos e laboratoriais a uma
palmente hipoalbuminemia e anemia) e déficits de mobi- pontuação. Essa pontuação permite estratificar o risco de
lidade. complicação cardiovascular no pós-operatório.
A Sociedade Americana de Anestesiologia (American So-
Tabela 2 - Escala de Goldman: pontuação
ciety of Anesthesiologists – ASA) criou uma classificação do
Idade acima de 70 anos 5 pontos
risco de mortalidade cirúrgica de acordo com a presença de História
comorbidades (Tabela 1). IAM nos últimos 6 meses 10 pontos
Galope (B3) ou estase jugular 11 pontos
Tabela 1 - Classificação ASA: deve ser acrescentado o fator E em Exame físico Estenose aórtica importante 3 pontos
cirurgias de emergência; nessas situações, considera-se o dobro
Estado clínico geral precário 3 pontos
do risco cirúrgico
Eletrocardio- Ritmo não sinusal ou ESV 7 pontos
Mortalidade
ASA Definição Exemplo grama Mais de 5ESV/min 7 pontos
pela anestesia
Paciente com saúde Tipo de Intraperitoneal, torácica ou aórtica 3 pontos
I - 0,08% cirurgia
normal Emergência 4 pontos

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CI RUR G I A G ERAL

Tabela 3 - Classificação de Goldman para risco cardiológico - Idade >40 anos;


Nenhuma ou Complicações - Cirurgias ortopédicas de grande amplitude ou dos
Risco Morte
pequenas com ameaça à membros inferiores;
(pontos) cardíaca (%)
complicações (%) vida (%) Alto risco
- Cirurgia ginecológica ou pélvica por malignidade;
I (0 a 5) 99 0,7 0,2 - História recente de TVP ou embolia pulmonar;
II (6 a 12) 93 5 2 - Pacientes internados em UTI.
III (13 a 25) 86 11 2
IV (>26) 22 22 56 O risco de embolia pulmonar fatal no grupo de alto risco
varia de 1 a 5%.
A escala de Torrington & Henderson avalia o risco de
complicações pulmonares pós-operatórias a partir de da- 3. Infarto agudo do miocárdio
dos clínicos e espirométricos.
O Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) é uma das maiores
Tabela 4 - Escala de Torrington & Henderson: pontuação causas de morte pós-operatória, e o risco aumenta entre os
CVF <50% 1 ponto pacientes com doença cardiovascular preexistente. O IAM
65 a 75% 1 ponto costuma acontecer dentro de 3 dias após a cirurgia, sen-
Espirometria do o 1º dia de maior risco para o evento. Tende a ser mais
CVF 1/CVF 50 a 60% 2 pontos
“silencioso” no idoso e no portador de diabetes, pelo uso
<50% 3 pontos
de analgésicos no pós-operatório, por efeitos residuais do
Idade >65 anos 1 ponto anestésico e pelo baixo nível de consciência após o início do
Obesidade 1 ponto despertar anestésico, além da circulação colateral que, por
Dados clínicos Tabagismo nos últimos 2 meses 1 ponto vezes, se desenvolve concomitantemente à aterosclerose,
Sintomas respiratórios 1 ponto determinando os chamados infartos não Q.
Doença pulmonar 1 ponto As alterações do ECG incluem elevação do segmento ST
Torácica 2 pontos
e surgimento de onda Q. Os níveis de enzimas cardíacas po-
dem não ser relevantes na fase inicial. Há também aumento
Local da cirurgia Abdominal alta 2 pontos
das enzimas musculares, principalmente da creatina-fosfo-
Outras 1 ponto quinase (CPK), em virtude da manipulação operatória. As
Tabela 5 - Escala de Torrington & Henderson para risco de compli- medidas da isoenzima da creatinaquinase ou da troponina
cações pulmonares T e I são mais utilizadas. O pico dos níveis ocorre entre 12 e
Sem Com
24 horas após o IAM, e estes retornam à normalidade após
Mortalidade 14 dias. O diagnóstico de lesão miocárdica depois da cirur-
Risco Pontos complica complicações
(%) gia somente deve ser feito em conjunto com as alterações
ções (%) (%)
Baixo 0a3 94 5 2
eletrocardiográficas.
A cirurgia eletiva deve ser adiada pelo menos em 6 me-
Moderado 4a6 77 23 6
ses após o evento isquêmico (Tabela 7). A dúvida é se o pa-
Acima ciente será capaz de aumentar o débito cardíaco quando for
Alto 65 35 12
de 7
necessário. Novas avaliações devem ser empregadas, como
O risco de desenvolver tromboembolismo pulmonar o ecocardiograma seriado ou ecocardiograma de estresse
(TEP) segue a escala de Hull (1985), que categoriza os pa- com dobutamina, para avaliação da função ventricular es-
cientes em 3 grupos: baixo, moderado e alto risco. querda, e o teste ergométrico. Cirurgia de revascularização
do miocárdio ou angioplastia percutânea coronária devem
Tabela 6 - Escala de Hull para risco de desenvolver TEP ser empregadas entre os pacientes de alto risco, com limi-
- Idade <40 anos; tação cardíaca ou angina instável. Considera-se o uso de
- Cirurgias não complicadas; beta-bloqueadores no período perioperatório por ser a úni-
Baixo risco - Tempo cirúrgico <30 minutos e sem risco adicional ca classe de drogas que demonstra redução do risco perio-
(anticoncepcional oral, puerpério, episódio peratório de isquemia miocárdica.
recente de TVP). Tabela 7 - Risco estimado de IAM perioperatório
- Idade >40 anos; Cirurgia não cardíaca e idade >60 anos 0,1%
- Cirurgia sob anestesia geral; História de doença coronariana 4%
Risco - Tempo cirúrgico >30 minutos; IAM prévio 4 a 5%
moderado - O risco eleva-se à medida que aumenta a idade IAM prévio e idade >65 5 a 6%
e se associam outros fatores de risco para TVP
(tumores malignos, imobilidade prolongada, IAM no intervalo de 3 a 6 meses 30 a 40%
varizes, ICC). IAM no intervalo superior a 6 meses 30 a 40%

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R I S C O C I R Ú R G I C O E E S TA D O F Í S I C O

4. Insuficiência cardíaca congestiva entre diabéticos é de 22%, enquanto entre os não diabéti-
cos é de 1%.
A presença de Insuficiência Cardíaca Congestiva (ICC) Os primeiros apresentam maior número de complica-
é outro fator adverso após a cirurgia. Recomenda-se tra- ções cardiológicas, principalmente com isquemia silenciosa,
tamento da ICC com diuréticos e vasodilatadores no pré- e de complicações infecciosas. Entre eles, ocorre também

CIRURGIA GERAL
-operatório. A monitorização intensiva durante a cirurgia é diminuição do processo cicatricial decorrente da pouca res-
essencial, e a avaliação do débito urinário pela sonda vesi- posta leucocitária, diminuição da fagocitose e alteração da
cal é mandatória. Existem os riscos de desidratação e hipo- permeabilidade capilar, que retardam a fase inflamatória
volemia com as medicações diuréticas e de edema agudo da cicatrização. Portanto, as feridas operatórias apresen-
de pulmão nas hidratações excessivas. tam maiores riscos de infecções nos diabéticos, principal-
Nas cirurgias de grande porte, um cateter na artéria pul- mente estafilocócicas e Gram negativas mistas, que não se
monar (Swan-Ganz) capaz de determinar a pressão do capi- comportam da mesma forma que entre os não diabéticos.
lar pulmonar ou um ecocardiograma transesofágico podem Antibióticos devem ser usados sempre que há possibilidade
ser empregados para a medida do enchimento ventricular de contaminação da área operada.
esquerdo e do débito cardíaco. Os pacientes portadores de O tempo de evolução do Diabetes Mellitus (DM) também
ICC e alto risco de isquemia miocárdica devem ser monito- é importante e se relaciona a outras complicações. É funda-
rados por um período mínimo de 3 dias no pós-operatório mental questionar sobre tempo de duração, medicação em
para sinais de depressão do segmento ST – esse é o mar- uso e presença de sintomas de neuropatia somática (ex.: pa-
cador específico de isquemia. Dosagens de níveis de tro- restesia “em bota e luva”) ou autonômica (ex.: hipotensão
ponina são marcadores mais sensíveis do que os níveis de postural, impotência, gastroparesia, dificuldades com esva-
CPK ou as alterações do segmento ST. O controle da dor é ziamento vesical, alteração da motilidade intestinal).
fundamental, e devem ser utilizadas medicações efetivas e As complicações pós-operatórias são diminuídas com os
esquemas agressivos de analgesia para reduzir o estresse cuidados da glicemia no pré-operatório e o uso de insulina
fisiológico da cirurgia nos pacientes. regular intravenosa com doses ajustadas de acordo com as
medições periódicas da glicemia capilar, em conjunto com
5. Hipertensão a ingestão calórica adequada. O jejum pré-operatório deve
ser maior para os pacientes cujo histórico seja compatível
A prevalência da Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) com gastroparesia diabética.
aumenta com a idade e está associada a risco aumentado A agressão cirúrgica e o estresse da anestesia acentuam
de isquemia miocárdica e disfunções ventricular e renal. Há, a intolerância à glicose. As modificações frequentemente
também, o risco de variações na pressão arterial durante necessárias da alimentação e da hidratação, durante esse
o ato operatório porque a sensibilidade dos baroceptores período, complicam ainda mais o tratamento. O controle
está diminuída para as oscilações dos volumes dos fluidos completo do açúcar sanguíneo dentro dos limites normais
corporais durante a cirurgia. não é exequível. Os pacientes que recebem glicose intrave-
Geralmente, a terapia anti-hipertensiva é empregada no nosa podem apresentar glicosúria acentuada com hipergli-
dia da cirurgia e mantida para o melhor controle da pres- cemia apenas moderada. Por essa razão, as concentrações
são arterial. Uma pressão arterial diastólica >110mmHg da glicose sanguínea e da cetona sérica serão avaliadas pelo
contraindica uma cirurgia eletiva. Situação de hipertensão menos 2 vezes ao dia, durante 1 a 3 dias após a cirurgia,
arterial, sem tratamento prévio, necessita de controle e para correlacionar com as concentrações de açúcar urinário
medicações por, pelo menos, 2 semanas antes do ato ope- e avaliar melhor o controle do paciente diabético.
ratório. Inibidores da enzima de conversão de angiotensina O paciente em cetoacidose grave apresenta risco ele-
podem exacerbar a queda de pressão arterial ocasionada vado para qualquer cirurgia, exceto incisão, drenagem ou
pela anestesia. Anti-hipertensivos de ação central são pou- pequena cirurgia de urgência. O adiamento de 4 a 6 horas
co empregados atualmente (reserpina ou clonidina), e a sua (se possível, um tempo ainda maior) é o ideal antes do ato
suspensão abrupta determina o efeito rebote (pico hiper- cirúrgico para, nesse período, corrigir a cetoacidose (DM
tensivo agudo). Os beta-bloqueadores são empregados am- tipo 1) ou o estado hiperosmolar (DM tipo 2) antes da cirur-
plamente por seus efeitos cardioprotetores, embora, entre gia. Deve-se atentar para desidratação, hiponatremia hipe-
idosos, os efeitos colaterais sejam maiores, como bradicar- rosmolar, hipocalemia e acidose, que acompanham essas
dia, hipotensão, depressão e fadiga. condições.

6. Diabetes mellitus 7. Doença pulmonar


Com o aumento da idade, aumenta também a preva- O envelhecimento afeta a ventilação pulmonar, a troca
lência de diabetes. Diabéticos submetem-se à porcentagem gasosa alveolar, a complacência, a força muscular e os me-
maior de cirurgias de urgência e têm maior mortalidade as- canismos de defesa da árvore respiratória. Na população
sociada. Por exemplo, a mortalidade por colecistite aguda idosa, há maior prevalência de Doença Pulmonar Obstruti-

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CI RUR G I A G ERAL

va Crônica (DPOC), e o maior fator de risco é o tabagismo. 9. Sistema endócrino


Nos tabagistas e nos ex-tabagistas com enfisema, a dispneia
piora com a idade. As doenças pulmonares estão associadas As condições endócrinas devem ser corrigidas ou pelo
ao aumento da morbidade pós-operatória (pneumonia, hi- menos estabilizadas enquanto o paciente espera a admissão
póxia, atelectasias) e da mortalidade. para o programa cirúrgico. A doença de Graves, por exem-
Fatores de risco para complicações pulmonares incluem plo, necessita de cuidados intensivos no pré-operatório,
intubação endotraqueal, cirurgia prolongada, anestesia incluindo a administração de bloqueadores do hormônio
geral, DPOC, asma, tabagismo e deformidades torácicas. tireoidiano, iodo e beta-bloqueadores. O hipotireoidismo é
Reserva pulmonar diminuída pode ser relatada pelo pa- tratado com hormônio da tireoide. O feocromocitoma não
ciente quando este revela fadiga extrema após subir 1 ou 2 será submetido ao procedimento cirúrgico até o paciente
pavimentos de escada. O volume expiratório forçado deve alcançar níveis de bloqueadores adrenérgicos adequados.
ser diretamente medido com o espirômetro em todos os O DM necessita de todos os cuidados aqui enumerados
casos de história de restrição respiratória. Detectada essa para evitar as descompensações metabólicas. Pacientes em
condição, os pacientes são beneficiados com um programa uso crônico de corticosteroides devem receber nova dose
pré-operatório de cessação do tabagismo, uso de broncodi- antes de qualquer procedimento.
latadores, fisioterapia (para treino de tosse e expansão pul-
monar) e, se indicada, administração de antibióticos. 10. Insuficiência renal e balanço hídrico
A anestesia geral exerce efeitos diretos na função res-
piratória. A anestesia regional tem suas vantagens sobre a A função renal diminui com a idade. Há redução do flu-
geral, e os resultados são uma baixa incidência de complica- xo glomerular sanguíneo e da taxa de filtração glomerular,
ções pós-operatórias de hipoxemia e depressão respirató- diminuição da função tubular renal e decréscimo de renina
ria. Fatores que contribuem para a anestesia regional são os e aldosterona séricas. Acrescenta-se a isso a deficiência do
menores efeitos das drogas anestésicas sobre a musculatu- mecanismo da sede. Esses fatores, associados às alterações
ra respiratória e o bloqueio neuromuscular. Para os idosos, de renina-angiotensina, levam a uma maior tendência de
preferem-se as drogas de ação curta e intermediária neu- desenvolver desidratação e distúrbios hidroeletrolíticos.
romuscular às de efeito prolongado. Quando se empregam Em pacientes gravemente desnutridos, um nível sérico de
estas, é necessário aplicar novas drogas (antagonistas) para creatinina normal provavelmente decorre da diminuição
reverter seus efeitos no final da cirurgia. Emprega-se suple- da massa muscular e não de função renal normal. Aumen-
mento de oxigênio através de cateter nasal ou máscara para to moderado de creatinina está associado ao aumento da
prevenir hipóxia por vários dias de pós-operatório. morbidade pós-operatória. Determinar o Ritmo de Filtra-
ção Glomerular (RFG) e a fração de excreção de sódio é a
melhor forma de avaliar a função renal no pré-operatório.
8. Estado nutricional O paciente de maior risco é o que tem RFG entre 5 e 25%
Em 1936, Studley demonstrou que a perda de peso era do predito e pode se tornar dialítico na presença do menor
um indicador básico de risco operatório. A perda de mais descuido.
de 15% do peso corporal durante o período de 6 meses A monitorização da diurese é um cuidado essencial no
antes da cirurgia está associada ao aumento da incidência pós-operatório de idosos e mais bem avaliada com o uso de
de complicações pós-operatórias, incluindo dificuldade de cateter vesical. É necessário cuidado nos volumes intrave-
cicatrização de feridas, decréscimo da função imunológica nosos aplicados diariamente, devido ao risco de hipervole-
e inabilidade de manutenção ventilatória adequada. Ede- mia e de má distribuição dos fluidos corporais nos idosos,
ma periférico e sinais de avitaminose são sugestivos de má consequências da baixa filtração glomerular e do débito
nutrição severa. cardíaco mais deficiente. Se ocorrer hipotensão arterial
Pacientes obesos, por sua vez, necessitam frequente- no pós-operatório, o paciente deverá receber drogas vaso-
mente de cirurgias para doenças das vias biliares, osteoar- constritoras e drogas inotrópicas, e deverá haver cautela na
trites, hérnias e outras doenças relacionadas ao sobrepeso. infusão de hidratação intravenosa. Insuficiência cardíaca e
Perda de peso pré-operatória deve ser encorajada, mas os edema pulmonar são mais prevalentes nos idosos. Os pa-
resultados são desanimadores. Entre os portadores de obe- cientes mais velhos levam 2 vezes mais tempo do que os
sidade mórbida, cuidados devem ser empregados para evi- mais jovens para excretarem o excesso de água (10 contra
tar complicações respiratórias e cardiovasculares, infecções 5 dias).
de ferida e tromboembolismo. Avaliação do estado nutri- Entre portadores de Insuficiência Renal Crônica (IRC),
cional no pré-operatório pode ser mandatória se o pacien- é importante afastar a presença de anemia, secundária à
te apresenta perda ponderal acentuada em poucos meses. deficiência de eritropoetina; checar a função plaquetária,
O planejamento nutricional é realizado de forma gradual que pode estar alterada pela presença de uremia; corrigir
e com acompanhamento profissional. Todas essas medi- os distúrbios hidroeletrolíticos (acidose, cálcio e fósforo); e
das diminuem as complicações que poderiam surgir com a agendar diálise no pré e no pós-operatório com 24h de in-
agressão cirúrgica. tervalo, para pacientes com RFG <5%.

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R I S C O C I R Ú R G I C O E E S TA D O F Í S I C O

11. Hepatopatias A medula óssea é o sistema mais afetado pelos agen-


tes citotóxicos porque são as células que necessitam ser
Pacientes hepatopatas têm a avaliação da reserva fun- rapidamente repostas, constituindo-se em um sítio de alta
cional hepática pela classificação de Child-Pugh (Tabela 8). atividade replicativa dentro do organismo. A toxicidade
hematológica implica a redução do número absoluto das

CIRURGIA GERAL
Tabela 8 - Escala de Child-Pugh
diferentes linhagens celulares (anemia, leucopenia, trom-
Pontos 1 2 3
bocitopenia). É comum que pacientes por volta do 10º ao
Albumina (g/dL) >3,5 2,5 a 3,5 <2,5
15º dia após a quimioterapia entrem no chamado Nadir,
Bilirrubina total em que a contagem de células atinge o menor valor antes
<2 2a3 >3
(mg/dL) de retomar a proliferação. Procedimentos invasivos nesse
Mínima Avançada período devem ser evitados pelos riscos de sangramento
Encefalopatia Ausente
(graus 1 e 2) (graus 3 e 4) e infecção.
Ascite Ausente Fácil controle Difícil controle As células que compõem a mucosa oral têm rápido
Atividade de 50 a 70%/1,7 turnover (são trocadas a cada 5 a 14 dias), por isso sofrem
>70%/<1,7 <50%/>2,3
protrombina/INR a 2,3 ação semelhante à dos agentes citotóxicos como descritos
Pontos Child-Pugh Função hepática na medula óssea. A estomatite surge paralelamente com a
≤6 A 35 a 100% toxicidade hematológica. São lesões mais ou menos difusas
7a9 B 20 a 35% na mucosa oral (e também, às vezes, nos lábios, que co-
≥10 C <20%
meçam com sensação de secura, ardor e odinofagia). Se o
processo for intenso, poderá ocasionar baixa ingesta oral e
Observação: colangite esclerosante primária e cirrose biliar
determinar desidratação e desnutrição associada. Às vezes,
primária têm valores diferentes de bilirrubinemia (mg/dL): <4 (=
1 ponto); 4 a 10 (= 2); 10 (= 3) é necessária terapia nutricional intensiva. Infecções locais
(monilíase, bacteriana e herpética) e hemorragias podem
Pacientes Child-Pugh C ou com hepatopatia aguda só ocorrer, e processos dentários podem estar associados.
devem ser operados para realização de procedimentos de O tecido cardíaco pode ser afetado pela quimioterapia,
urgência. Deve-se atentar para a presença de hipertensão da mesma forma que os sistemas hematopoético e gastrin-
portal associada e administrar vitamina K para pacientes testinal, porém com uma diferença importante. Enquanto
com icterícia obstrutiva. Pacientes com ascite devem ser nos outros sistemas o tecido se recicla de maneira rápida e,
pesados diariamente e receber antibioticoprofilaxia antes por isso mesmo, é frequentemente afetado e também rapi-
de qualquer procedimento invasivo. Função hepatocelular damente restituído, o tecido cardíaco é afetado mais rara-
abaixo de 15% é incompatível com a vida. mente; mas, quando isso acontece, sua recuperação é mais
lenta, justamente porque possui uma taxa de replicação
lenta. As drogas cardiotóxicas podem afetar o coração de
12. Pacientes em vigência de quimioterapia diferentes maneiras, sobretudo na forma de arritmias car-
A quimioterapia antineoplásica representa o tratamento díacas ou depressão da contratilidade miocárdica. O efeito
sistêmico dos tumores malignos e pode ser utilizada isola- miocárdico pode ser agudo ou tardio.
damente, porém é usada com mais frequência como parte A toxicidade pulmonar aumenta nas condições de infil-
da abordagem terapêutica multidisciplinar associada à ci- trados pulmonares decorrentes de infecção no imunodepri-
rurgia e/ou à radioterapia. Alguns medicamentos atuam em mido, metástase linfangítica pulmonar, insuficiência cardía-
todas as fases do ciclo celular, como os agentes alquilantes, ca esquerda e toxicidade pulmonar por quimioterapia. Em
e outros agem em fases específicas do mesmo ciclo, como geral, a toxicidade pulmonar é suspeita por exclusão dessas
os antimetabólitos, interferindo na síntese do DNA. Certos condições. As manifestações são tosse seca e dispneia pro-
alcaloides promovem bloqueio da divisão celular na mitose. gressiva; febre pode estar associada. Estudos laboratoriais
Como regra geral, os agentes citotóxicos agem sobre as demonstram distúrbios de difusão com gasometria arterial
células neoplásicas e as células normais; seus efeitos ocor- demonstrando hipoxemia e alcalose respiratória. Os agen-
rem principalmente nas células com maior capacidade pro- tes que causam a lesão pulmonar são a bleomicina, a gen-
liferativa e de percorrer o ciclo de divisão celular, como as citabina, a mitomicina, a cisplatina e o tamoxifeno, a citara-
células mais jovens e mais indiferenciadas. Portanto, dentre bina e o metotrexato.
as células normais, as células da medula óssea, da mucosa É necessário que o cirurgião e o anestesista estejam fa-
do tubo digestivo, dos folículos pilosos, da mucosa vesical miliarizados com os efeitos sistêmicos do tratamento qui-
e das gônadas são mais sensíveis aos efeitos dos quimio- mioterápico. Pacientes em pós-operatório, recentemente
terápicos. Esse fato explica os efeitos tóxicos mais comuns submetidos a grandes cirurgias, não devem ser submetidos
atribuídos a esses agentes como leucopenia, estomatite, à quimioterapia até que se tenham recuperado completa-
mucosite, náuseas, vômitos, diarreia, alopecia, oligoesper- mente, sem complicações, já estejam se alimentando e se
mia, entre outros. encontrem em balanço nitrogenado positivo. A época mais

5
CI RUR G I A G ERAL

precoce para iniciar o tratamento é a partir da 3ª semana


de pós-operatório.

13. Resumo
Quadro-resumo
- O cirurgião deve conhecer as comorbidades clínicas de seu pa-
ciente e compensá-las antes do procedimento;
- As classificações de ASA, bem como as escalas clínicas de risco,
fornecem dados importantes preditores de risco cirúrgico;
- IAM é a principal causa de mortalidade pós-operatória;
- Doentes diabéticos estão mais sujeitos a complicações cardio-
vasculares e infecciosas;
- Condições como insuficiência renal e hepática devem ser bem
avaliadas e compensadas antes de procedimentos cirúrgicos;
- Pacientes em vigência de quimioterapia podem apresentar al-
terações sistêmicas importantes que devem ser avaliadas antes
de uma cirurgia.

6
CAPÍTULO

2
Anestesia local
Eduardo Bertolli

O conceito de bloqueio local consiste em uma infiltra-


Pontos essenciais ção, no subcutâneo, de uma porção pequena de área com
- Definições; o agente anestésico. O efeito é mais longo que na forma
- Farmacocinética; tópica. Nesse tipo de anestesia, a interrupção dos impulsos
- Intoxicação por anestésicos locais. nervosos acontece por meio de um bloqueio à condução,
feito pela interferência no processo de origem do potencial
de ação. A infiltração do anestésico nos tecidos é o método
1. Definição mais usado, e os tecidos a serem manipulados ou operados
Um Anestésico Local (AL) pode ser definido como uma estarão bloqueados para o procedimento (Tabela 1).
droga que bloqueia reversivelmente a transmissão do im-
pulso nervoso na região em que foi aplicada, sem afetar o Tabela 1 - Características ideais para um anestésico local
nível de consciência. De maneira geral, os ALs ligam-se aos - Irritação mínima;
canais de sódio no estado inativado, impedindo a subse- - Bloqueio reversível;
quente ativação do canal e o grande influxo transitório de - Boa difusibilidade;
sódio associado à despolarização da membrana. Podem ser - Baixa toxicidade sistêmica;
administrados para dessensibilizar uma pequena área cutâ-
- Eficácia;
nea por um curto período.
Na sua estrutura molecular, os anestésicos geralmente - Início rápido de ação;
possuem uma estrutura hidrofóbica lipídio-solúvel do gru- - Duração de ação adequada.
po aromático e uma porção hidrofílica no seu grupo “ami-
da”. A ponte que une esses 2 grupos determina a classe da - Estrutura dos nervos
droga e pode ser aminoamida ou aminoésteres (Figura 1). A classificação dos nervos pode ser feita pelo diâmetro
A lidocaína, a bupivacaína e a prilocaína são exemplos de de suas fibras, revestimento de mielina, velocidade de con-
aminoamidas. Os grupos aminoésteres incluem a cocaína e dução e função (Tabela 2). A importância desses dados na
a ametocaína. ação do AL será descrita posteriormente.

Tabela 2 - Principais fibras nervosas e suas características


Diâme- Vel. de
Tipo de Mieli- Sensibili-
tro condução Função
fibra na dade a AL
(micra) (m/s)
Motor,
A-alfa 13 a 22 70 a 120 + Pouca proprio
cepção
Motor,
A-beta 8 a 13 40 a 70 + Moderada proprio
cepção
Tônus
A-gama 4a8 15 a 40 + Moderada muscular,
tato
Dor, tempe
A-delta 1a4 3 a 15 + Alta ratura,
Figura 1 - Estrutura química básica dos anestésicos locais tato

7
CI RUR G I A G ERAL

Diâme- Vel. de Coeficiente de


Tipo de Mieli- Sensibili- Ligação
tro condução Função pKa Ionização partição
fibra na dade a AL proteica
(micra) (m/s) (lipossolubilidade)
Autônoma Prilocaína 7,9 76 129 55
B 1a3 3 a 14 + Extrema pré-
Ropivacaína 8,1 83 775 94
ganglionar
Dor, Cloroprocaína 8,7 95 810 Nd
autônoma Procaína 8,9 97 100 6
C 0,1 a 2,5 0,2 a 1,5 - Alta
pós- Tetracaína 8,5 93 5.822 94
ganglionar
Quanto menor o diâmetro da fibra nervosa, maior a
2. Tipos de anestesia ação local do anestésico e vice-versa. Além disso, existe um
comprimento mínimo da fibra que deve ser exposto ao AL
nas fibras mielinizadas. Do ponto de vista prático, as fibras
Tabela 3 - Tipos de anestesia B pré-ganglionares são bloqueadas mais prontamente que
- Bloqueio de troncos nervosos – troncular/regional; fibras C, mesmo tendo um diâmetro maior. Acredita-se que
- Bloqueio de raízes nervosas do espaço extradural – peridural o diâmetro pequeno e a presença de mielina nessas fibras
e caudal; as tornem mais suscetíveis aos efeitos dos ALs do que as
- Bloqueio das raízes nervosas do espaço subdural – raquianes- outras fibras.
tesia; A adição de um vasoconstritor tipo adrenalina não tem o
- Bloqueio dos terminais sensitivos – local. objetivo de minimizar os efeitos colaterais do AL, mas de otimi-
zar sua ação em uma determinada região do corpo pela vaso-
Em um bloqueio de campo, a injeção do anestésico é constrição. Dessa maneira, o uso de lidocaína com adrenalina
feita ao redor do tecido a ser operado. É utilizada para pe- é contraindicado em extremidades, pelo risco de isquemia.
quenas intervenções (retirada de tumores de pele ou do Alguns ALs podem ter outros efeitos no organismo. A
subcutâneo, drenagem de líquidos corporais superficiais e lidocaína, em baixas doses, é classificada como uma droga
remoção de corpos estranhos), além do tratamento de feri- antiarrítmica (classe I), sendo indicada no tratamento de ar-
ritmias ventriculares (extrassístole ventricular, taquicardia
das traumáticas e do desbridamento de tecidos desvitaliza-
ventricular e fibrilação ventricular). Além disso, ela deprime
dos, e como complemento da analgesia pós-operatória das
a resposta ventilatória à hipóxia e deve ser utilizada com
feridas cirúrgicas, nos casos em que não foi possível realizar
cuidado em pacientes com DPOC.
o bloqueio espinhal. Já a bupivacaína deprime mais acentuadamente o cora-
Na anestesia regional, a injeção do agente químico se ção, diminuindo a condução e podendo levar a batimentos
dá juntamente a troncos nervosos, distante do local a ser ventriculares ectópicos e fibrilação ventricular.
operado, acometendo ou não a capacidade motora.
4. Intoxicação por anestésico local
3. Ação
A dose recomendada do AL depende da adição ou não
A ação do AL dependerá de fatores como a capacidade do vasoconstritor. Com adrenalina, recomenda-se uma
de ligação às proteínas plasmáticas e aos tecidos (recepto- dose entre 7 e 10mg/kg. No anestésico sem adrenalina, a
res) onde a droga vai atuar, a capacidade de atravessar a dose segura é de 5 a 7mg/kg.
membrana celular dos neurônios e o pH do tecido em que O diagnóstico de intoxicação por ALs é clínico. Inicialmen-
se espera a ação da droga (relação pH e pKa do AL – Tabela te, o paciente apresentará sensação de dormência na língua
4). Feridas contaminadas, como abscessos, têm pH ácido, o ou gosto metálico. Formigamento de extremidades e alte-
que dificulta a ação do AL nesses sítios. rações visuais também podem ocorrer em fases iniciais. Se
não revertida, a intoxicação por ALs evolui com convulsões
Tabela 4 - Propriedades físico-químicas das amidas e dos ésteres tipo tônico-clônicas. O evento final é a parada respiratória e
Coeficiente de
normalmente é dose-dependente (Tabela 5). O tratamento
Ligação envolve, primeiramente, oxigênio e suporte ventilatório, se-
pKa Ionização partição
proteica guidos da administração de benzodiazepínicos.
(lipossolubilidade)
Bupivacaína 8,1 83 3.420 95
Tabela 5 - Efeitos tóxicos da lidocaína em relação à dose-depen-
Levobupi 8,1 83 3.420 95 dente
Etidocaína 7,7 66 7.317 94 Concentração plasmática
Efeitos
Lidocaína 7,9 76 366 64 (μg/dL)
Mepivacaína 7,6 61 130 77 1a5 - Analgesia.

8
A N E S T E S I A LO C A L

Concentração plasmática
Efeitos
6. Resumo
(μg/dL)
Quadro-resumo
- Delírio;
- Anestésicos locais são drogas que bloqueiam reversivelmente
5 a 10 - Zumbido;
a transmissão do impulso nervoso ligando-se aos canais de só-

CIRURGIA GERAL
- Parestesia da língua. dio no estado inativado, impedindo a subsequente ativação do
- Convulsão tônico-clônica; canal e o grande influxo transitório de sódio associado à despo-
10 a 15
- Perda de consciência. larização da membrana;
- Coma; - Sua ação dependerá de fatores como a capacidade de ligação
15 a 25 às proteínas plasmáticas e aos tecidos, a capacidade de atra-
- Parada respiratória.
vessar a membrana celular dos neurônios e o pH do tecido em
>25 - Depressão cardiovascular. que se espera a ação da droga;

O único efeito colateral sistêmico associado a um AL - O quadro de intoxicação inicia-se com sensação de formiga-
mento e gosto metálico, passa por convulsões e pode chegar
específico é o desenvolvimento de meta-hemoglobinemia
até a parada cardiorrespiratória. O tratamento inicial é garantir
seguido da administração de grande quantidade de priloca- via aérea pérvia para suporte respiratório e, se necessário, he-
ína. Existe uma correlação entre dose de prilocaína adminis- modinâmico.
trada por via epidural e grau de meta-hemoglobinemia. Em
geral, doses acima de 600mg de prilocaína são necessárias
para o desenvolvimento de meta-hemoglobinemia, clinica-
mente significativa, em pacientes adultos sem patologias
prévias. O metabolismo hepático da prilocaína resulta na
formação de ortotoluidina, que é a responsável pela oxida-
ção da hemoglobina para meta-hemoglobina.
A meta-hemoglobinemia associada ao uso de prilocaína
é espontaneamente reversível na maioria dos casos. Entre-
tanto, nos mais graves, ocorre cianose, que não responde
bem ao oxigênio. Nessas situações, a terapia de escolha é a
administração intravenosa de azul de metileno, na tentativa
de deslocar a ortotoluidina da molécula de hemoglobina.

5. Exemplo de bloqueio
Se a lesão não é extensa e passível de sutura no pronto
atendimento, planeja-se o bloqueio por meio de infiltra-
ções dentro da ferida (intralesional) ou por bloqueio local
extralesional (Figura 2). É muito dolorosa, mas permite a
limpeza da ferida de corpos estranhos e o preparo dos reta-
lhos para a sutura. A agulha deve ser grossa e ser infiltrada,
paralelamente, sob o tecido celular subcutâneo. Infiltra-se
enquanto se retrocede a agulha e aplica-se nas extremida-
des da lesão, formando um losango de bloqueio. Ferimen-
tos mais extensos podem exigir aplicações do anestésico
nas porções intermediárias da lesão.

Figura 2 - Infiltração extralesional do couro cabeludo

9
SUPORTE VENTILATÓRIO NÃO CIRÚRGICO

CAPÍTULO

3
Anestesia
José Américo Bacchi Hora / José Eduardo de Assis Silva / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais B - Anamnese e história clínica


- Avaliação pré-anestésica; Todo paciente deve ser entrevistado antes da realização
da cirurgia. As informações podem ser obtidas por preen-
- Manejo das vias aéreas; chimento de questionários com perguntas específicas ou
- Farmacologia e toxicidade dos anestésicos locais; entrevista conduzida pelo anestesiologista. À anamnese,
- Raquianestesia e anestesia peridural; é importante obter o máximo de informações orientadas
- Farmacologia dos anestésicos venosos; objetivamente pela patologia cirúrgica, considerando, tam-
- Recuperação pós-anestésica e complicações em anes- bém, doenças concomitantes e suas implicações na aneste-
tesia; sia planejada, a saber:
- Hipertermia maligna. - Estado geral atual;
- Atitude mental diante da doença;
1. Avaliação pré-anestésica - Atividade física e tolerância ao exercício;
A avaliação pré-anestésica, por definição, consiste na
- Antecedentes relativos às comorbidades, tentando
alcançar o maior número de doenças preexistentes
obtenção de múltiplas informações do paciente durante um
(neurológicas, cardiovasculares, pulmonares, renais,
processo que inclui a anamnese em visita (ao leito) ou em
endócrinas, gastroenterais, hematológicas, imunoló-
consulta (em consultório), a revisão do prontuário médico, o
gicas);
exame físico e a complementação com exames laboratoriais.
A consulta pré-anestésica traz vantagens ao setor públi- - Antecedentes de alergias (medicamentosas e, particu-
co, às operadoras de saúde, aos médicos e aos pacientes: larmente, ao látex);
- Menor número de diária hospitalar; - Uso de medicamentos (anti-hipertensivos, antiarrít-
- Menos exames pré-operatórios; micos, anticonvulsivantes, digitálicos, AAS, hipogli-
- Menos suspensões de anestesias/cirurgias; cemiantes, anticoagulantes e outros) e fitoterápicos
(ginkgo biloba, alho, ginseng etc.), devido às suas pos-
- Menor custo hospitalar; síveis interações;
- Remuneração médica pela consulta; - Uso de drogas lícitas e ilícitas (tabagismo, álcool, ma-
- Menor taxa de ocupação em UTI; conha, cocaína etc.);
- Melhor documentação sobre o histórico médico do - Antecedentes de febre não infecciosa ou desconhe-
paciente.
cida, relacionadas a miopatias como hipertermia ma-
ligna;
A - Objetivos
- Antecedentes cirúrgicos e/ou obstétricos: dificuldade
- Reduzir a morbimortalidade do paciente cirúrgico para intubação, parada cardíaca, dificuldade ou com-
(principal objetivo); plicações durante a execução de bloqueio regional (pa-
- Obter informações sobre as condições física e psíquica restesias, cefaleia pós-punção);
do paciente; - Antecedente de quimioterapia ou radioterapia (po-
- Planejar o ato anestésico (monitorização, abordagem dem causar ICC, hipotireoidismo);
de via aérea, acesso venoso); - Uso de sangue e derivados, e consentimento para
- Fazer ajuste ou manutenção de medicamentos; eventual hemotransfusão;
- Orientar e diminuir a ansiedade dos pacientes e familiares; - Para mulheres em idade fértil, data da última mens-
- Orientar jejum adequado. truação;
10
ANESTESIA

- Antecedentes anestésicos relevantes, como náuseas, ser alertadas, e o paciente deve usar material latex-free du-
vômitos e tolerância à dor, além de experiências trau- rante toda a internação, uma vez que a reação pode ocorrer
máticas, como despertar no intraoperatório. a qualquer momento em que haja contato com o derivado
do produto.
Mesmo em emergências, o anestesiologista tem a obri-

CIRURGIA GERAL
gação de conhecer o paciente e de registrar suas informa- b) Miopatias
ções no prontuário médico. Caso ele não esteja consciente, Devem ser investigadas, mesmo em pacientes suposta-
um familiar mais próximo deve ser questionado para a ob- mente hígidos e seus familiares. História de miopatias ou
tenção de um mínimo de informações. O exame físico deve quadros de febre grave inexplicada (não infecciosa), duran-
ser sempre realizado. Portanto, apenas em caso de risco de te ou fora do ato anestésico, levam à suspeita de hiperter-
morte iminente ou de o paciente achar-se inconsciente e mia maligna, e o paciente e/ou seus familiares devem ser
sem um acompanhante é que, eventualmente, se realiza encaminhados a centros apropriados de investigação.
anestesia sem avaliação pré-anestésica. Em casos como es-
ses, a revisão de prontuário pode ajudar com informações C - Aspectos relevantes ao exame físico
relevantes.
A revisão de prontuário é um recurso de valor tanto - Exame físico geral
em casos eletivos como de urgência. Dele constam dados É importante realizar a inspeção do paciente sobre seu
como peso, altura, sinais vitais, motivo da internação, resu- aspecto clínico geral com atenção à presença de febre, ic-
mo da doença atual e histórico cirúrgico e anestésico, com terícia, cianose de extremidades ou mucosa, hidratação
informações sobre dificuldades para intubação, realização cutâneo-mucosa, descoramento mucoso e avaliação de si-
de bloqueios regionais, intercorrências anestésicas etc. É nais vitais.
especialmente válido quando o paciente tem dificuldade A pressão arterial deve ser aferida em ambos os braços
para se comunicar (grave estado geral, déficit auditivo ou ou, no mínimo, 2 vezes no mesmo braço, com alteração de
de fonação, senilidade, retardo mental etc.) ou em casos de posição (sentado ou deitado e de pé). A hipertensão arterial
urgência/emergência. sistêmica é a doença associada mais frequente entre pacien-
Entre os dados a serem obtidos na história clínica, são tes cirúrgicos e a principal causa de cancelamento ou adia-
importantes: a investigação de antecedentes de alergias e a mento de cirurgias. É importante sua detecção em tempo
suspeita de hipertermia maligna. hábil para tratamento ou compensação, além da definição
sobre quais são os realmente hipertensos e quais são os hi-
a) Alergias pertensos no momento da consulta, pela ansiedade ou por
Em geral, o paciente sabe informar se já apresentou um outros fatores (manguito inadequado, sem calibração ideal).
quadro grave ou importante de alergia. A incidência de re- É importante realizar a ausculta cardíaca, atentando
ação ao látex tem aumentado em todo o mundo e deve ser para possíveis alterações de ritmo e fonese das bulhas car-
investigada durante a avaliação pré-anestésica. Vários casos díacas e presença de sopros, assim como a ausculta pulmo-
de parada cardíaca súbita ou de causa ignorada foram con- nar, especialmente em bases, verificando a presença de ru-
cluídos, em investigação posterior, como alergia aos deriva- ídos adventícios (estertores, roncos e sibilos). Também são
dos do látex. São fatores de risco para o desenvolvimento importantes a observação de estase jugular, ausculta caro-
de reação anafilática ao látex: tídea, avaliação da perfusão de extremidades e presença de
- História de exposições múltiplas a seus derivados; edema.
- Atopia e/ou alergias a determinados alimentos (kiwi, A avaliação das vias aéreas superiores deve ser minucio-
banana, abacate, maracujá e frutas secas); sa, observando a presença de alterações de dentição, pró-
- Pacientes submetidos a múltiplas cirurgias e/ou son- teses, anormalidades bucais, cavidade oral, mento e pesco-
dagens vesicais; ço. A via aérea nasal também deve ser avaliada, bem como
- Crianças com defeitos de fechamento do tubo neural a mobilidade cervical (possibilidade de assumir a posição
(em especial, meningomielocele); olfatória – ótima para intubação) e temporomandibular. Vá-
- Profissionais de saúde e usuários de látex (cabeleirei- rios testes foram propostos para a predição de dificuldade
ros, profissionais de limpeza). na intubação orotraqueal, mas nenhum deles é eficaz em
100% das vezes.
Dos grupos de risco, as crianças com meningomielocele O teste de Mallampati é realizado com o paciente senta-
têm a maior incidência de reação aos derivados do látex, do, o pescoço em posição neutra (perpendicular ao chão),
variando entre 13 e 73% quando são atópicas e quando fo- a boca em abertura total, e a língua em protrusão máxima
ram submetidas a múltiplas cirurgias. e sem fonação. O observador deve estar sentado, com os
Pacientes com histórico de alergia ao látex (qualquer olhos à mesma altura da linha dos olhos do paciente. A ca-
tipo de borracha) devem ser avaliados pelo alergista ou vidade oral é classificada em 4 classes (Figura 1), e há cor-
imunologista para a confirmação ou não da sensibilidade. relação entre a maior classe e a dificuldade de exposição da
Se positiva, as equipes médicas e de enfermagem devem fenda glótica durante a laringoscopia.

11
CI RUR G I A G ERAL

devem ser conhecidos pelo anestesiologista. Deve-se ter


atenção especial às possíveis interações medicamentosas e
a cuidados especiais com anticoagulantes, hipoglicemian-
tes, fitoterápicos e anti-hipertensivos.
a) Anti-hipertensivos
A hipertensão arterial é comumente associada a com-
plicações perioperatórias. Hipertensos podem apresen-
Figura 1 - Variações anatômicas da cavidade oral distribuídas em tar hipertrofia ventricular esquerda, doença coronariana,
classes (I a IV) insuficiência renal e doença cerebrovascular. Pacientes
com hipertensão arterial grave (PAS >180mmHg e PAD
- Classe I: palato mole, pilares, úvula e tonsilas palatinas >110mmHg) devem ter níveis tensionais corrigidos antes
anterior e posterior visíveis; do procedimento cirúrgico.
- Classe II: palato mole, pilares e úvula visíveis; De maneira geral, todos os anti-hipertensivos podem
- Classe III: palato mole e base da úvula visíveis; ser mantidos. Os beta-bloqueadores têm comprovada pro-
- Classe IV: palato mole parcialmente visível. teção cardiovascular, e sua retirada está associada à taqui-
cardia e crise hipertensiva. Os diuréticos merecem atenção
As classes III e IV são sugestivas de intubação difícil. Em pelo risco de depleção volêmica e eletrolítica. Os Inibidores
gestantes, foi observado um aumento do número de casos da Enzima Conversora de Angiotensina (IECA) estão asso-
de Mallampatti IV, sem correlação com aumento da dificul- ciados à hipotensão arterial significativa, hipovolemia e
dade de intubação. maior perda sanguínea no intraoperatório, por isso alguns
Na distância esterno-mento, com o paciente sentado, autores recomendam sua retirada no dia da cirurgia.
pescoço em extensão máxima, boca fechada, mede-se a
distância entre o bordo superior do esterno (manúbrio) e b) Hipoglicemiantes e insulinas
o mento. Distância ≤12,5cm é considerada sugestiva de in- É consensual a suspensão dos hipoglicemiantes de lon-
tubação difícil. ga duração no período pré-operatório. Dependendo do
porte cirúrgico, durante o jejum, o paciente pode receber
D - Exames laboratoriais hidratação venosa com glicose e eletrólitos (sódio e potás-
A tendência atual é solicitar e realizar exames segun- sio) e realizar controle glicêmico a partir da glicemia capilar,
do dados positivos da história clínica e do exame físico, de usando insulina regular subcutânea. A metformina piora a
acordo com a necessidade de cirurgiões ou clínicos. Deter- acidose láctica e deve ser suspensa 48h antes dos procedi-
minados exames podem sofrer alterações, ainda que sem mentos cirúrgicos. Quanto aos pacientes submetidos a con-
modificações clínicas perceptíveis. Conforme a inclusão traste iodado, deve ser reintroduzida após 48h, e deve ser
do paciente em uma população de alto risco para alguma realizada avaliação renal.
condição específica (câncer, por exemplo), mesmo que sem Para cirurgias de pequeno porte, usuários de insulina de
dados clínicos presentes, é necessária a investigação de al- lenta ou intermediária duração, compensados e atendidos
guma alteração laboratorial associada. em regime ambulatorial, devem passar a usar insulina regu-
Em pacientes de estado físico ASA I e II, os exames po- lar 24h antes do procedimento e ser monitorizados quanto
dem valer até 1 ano, desde que não sofram alterações fre- à glicemia em domicílio e à chegada ao hospital. Já indiví-
quentes pela patologia a ser tratada (como mulher jovem duos internados podem fazer uso de insulina lenta ou inter-
com miomatose uterina e importante sangramento ou gli- mediária, uma vez que podem receber infusão de glicose
cemia em paciente diabético). durante o jejum pré-operatório e ser monitorizados quan-
to à glicemia a cada 2h durante a cirurgia e pós-operatório
E - Consultas especializadas imediato.
Pacientes com doenças associadas, compensadas ou c) Antidepressivos
não, mas que apresentem disfunção importante do órgão Usados no tratamento de várias patologias (depressão,
acometido, devem ser encaminhados a um especialista síndrome do pânico, dor crônica), os antidepressivos estão
com os objetivos de avaliação do estado da doença e grau entre as drogas mais prescritas do mundo e disponíveis em
de comprometimento funcional, além de tratamento da do- grande número de fármacos com diferentes mecanismos de
ença, visando à cura ou terapêutica até o melhor resultado ação (estimulantes da liberação de dopamina, inibidores da
possível. captação da serotonina). Com isso, mudam condutas clássi-
cas anteriores, como a suspensão de inibidores de monoa-
F - Medicamentos em uso mino-oxidase (IMAO) 3 semanas antes do procedimento ou
A orientação é para a manutenção de drogas de uso cuidados especiais com interações medicamentosas com os
contínuo no período pré-operatório. Suas doses e horários antidepressivos tricíclicos. A orientação é pela manutenção,

12
ANESTESIA

com o cuidado de conhecer a medicação e as suas possíveis das, a complexidade da operação e, até mesmo, a habilida-
interações, evitando, se possível, drogas simpatomiméticas, de e o nível de conhecimento do anestesiologista.
halotano, meperidina e tramadol.
d) Fitoterápicos 2. Manejo das vias aéreas

CIRURGIA GERAL
Apesar de o efeito combinatório dos fitoterápicos com Segundo a Sociedade Americana de Anestesiologia
outras drogas não ser inteiramente esclarecido, acredita-se (ASA), o manejo inadequado da via aérea é a causa mais
que éfedra, ginseng, ginkgo biloba, ginger, avelós e vitami- frequente de complicações em anestesia e responsável por
na E aumentem o sangramento intraoperatório, especial- 30% dos óbitos de causa exclusivamente anestésica.
mente em pacientes em uso de anticoagulantes. A erva-de- Ventilação difícil, falha em reconhecer intubação esofá-
-são-joão pode prolongar os efeitos da anestesia geral. É gica e dificuldade, ou mesmo impossibilidade de intubação,
possível que o alho possa interagir com antidepressivos e são responsáveis pela maioria das complicações. Sabe-se
vasopressores, aumentando a frequência cardíaca e a pres- que a maioria dos óbitos ou danos cerebrais por problemas
são arterial. Muitos pacientes fazem uso de fitoterápicos e de ventilação é perfeitamente evitável. Sabendo-se que a
suplementos vitamínicos, e não o informam aos seus médi- anestesia geral e alguns procedimentos cirúrgicos reque-
cos. A orientação é para que sejam suspensos, pelo menos, rem intubação orotraqueal (IOT), deve-se realizar uma ade-
15 dias antes da cirurgia. quada avaliação das vias aéreas.
e) Anticoagulantes
A - Dificuldades no processo de intubação traqueal
Receptores de medicações que alteram a coagulação san-
guínea devem ter coagulograma recente, mesmo que elas A via aérea difícil é uma situação em que um anestesis-
não alterem a coagulação isoladamente. É importante avaliar ta em treinamento tem dificuldade na ventilação manual
o risco-benefício do uso de anticoagulantes em relação ao com máscara, na intubação traqueal ou em ambas. O diag-
procedimento cirúrgico e à técnica anestésica a ser adotada. nóstico de uma potencial dificuldade de intubação deve
Medicações que interferem em outros componentes da ser feita antes de um anestésico ser administrado. Quando
hemostasia podem potencializar riscos sem alterar o INR esse problema não é antecipado, vários fatores contribuem
(AAS, AINEs, ticlopidina, clopidogrel, heparina não fraciona- para piorar a situação: estresse do operador, falta de equi-
da e heparina de baixo peso molecular), mas estudos com pamento necessário, respostas improvisadas para situações
grande número de pacientes sugerem que o AAS (ácido difíceis, pedir ajuda muito tarde e fazer múltiplas tentativas
acetilsalicílico) e os AINEs (Anti-Inflamatórios Não Esteroi- de intubação, o que, geralmente, torna a ventilação e/ou a
dais) não são fatores maiores de risco para a formação de intubação ainda mais difíceis.
hematoma após bloqueio espinhal. Uma anamnese cuidadosa e um exame físico completo
Usuários de varfarina (por exemplo, prótese cardíaca identificam possíveis situações de dificuldade de intubação,
metálica, trombose venosa profunda) devem ter o anticoa- permitindo um melhor preparo, que pode impedir o fracas-
gulante suspenso 5 dias antes do procedimento e substituí- so da ventilação e consequentes parada cardíaca e morte.
do por heparina de baixo peso molecular, em caso de profi- Tal avaliação varia conforme a situação: programada (cirur-
laxia imprescindível. Devem-se aguardar 12h após a última gia eletiva) ou não programada (intubação de urgência em
dose de heparina de baixo peso molecular para a realização pronto-socorro ou UTI).
de bloqueio regional, e essa heparina pode ser reintroduzi- A ventilação sob máscara difícil é definida como a inca-
da 4h após a realização do bloqueio. pacidade em manter a saturação arterial de oxigênio acima
O controle clínico deve ser feito com o INR, aceitável para de 90% em um paciente que apresentava tal condição antes
cirurgia quando abaixo de 1,5 (considerado seguro para blo- da tentativa de intubação, mesmo usando oxigênio a 100%
queio regional). Em casos de urgência, os pacientes podem e ventilação com bolsa/válvula/máscara.
receber plasma fresco, infusão de complexo protrombínico A laringoscopia difícil caracteriza-se pela impossibilidade
ou fator VII ativado, e a anestesia geral deve ser a 1ª opção. de observar uma parte das cordas vocais. A intubação endo-
traqueal difícil é definida quando são necessárias mais de 3
f) Outras drogas
tentativas ou mais do que 10 minutos para a introdução do
Drogas utilizadas no controle de arritmias, asma, doen- tubo traqueal, usando-se laringoscopia convencional.
ças da tireoide, gastrite e refluxo gastroesofágico devem ser A tolerância à ventilação inadequada e à hipóxia resultan-
continuadas no período pré-operatório. te depende da idade, do peso e do estado físico do paciente.
O tempo é restrito e representa um aspecto fundamental
G - Avaliação do risco cirúrgico para a sobrevida. A seguir, é possível observar como o pa-
Na maioria dos casos, o risco anestésico é difícil de ser ciente dessatura em apneia após uso de bloqueador neuro-
avaliado de forma isolada. As complicações perioperatórias muscular de curta duração (succinilcolina) antes mesmo de
e as mortes são habitualmente causadas por uma combina- seu efeito ser revertido (7 a 10 minutos). A hipoxemia é acen-
ção de fatores, incluindo o estado físico, as doenças associa- tuada em obesos, crianças e adultos com patologias prévias.

13
CI RUR G I A G ERAL

Figura 2 - Curvas de dessaturação durante a apneia

As principais consequências associadas ao manejo ina- - Incisivos centrais superiores longos;


dequado das vias aéreas são óbito, lesão cerebral, parada - Retrognatismo passivo;
cardíaca, traqueostomia desnecessária e trauma na via aé- - Pescoço curto;
rea ou nos dentes. - Pescoço largo;
a) Condições associadas ao comprometimento das vias - Limitação da protrusão mandibular;
aéreas - Palato ogival.
- Doenças congênitas: Pierre Robin, Marfan, higroma c) Sinais sugestivos de ventilação difícil
cístico, fissura palatina; - IMC ≥30kg/m2;
- Trauma: fratura ou instabilidade da coluna cervical, - Presença de barba;
queimaduras; - Classificação de Mallampati ≥III;
- Afecções endócrinas: obesidade, diabetes, acromegalia; - Idade >57 anos;
- Processos inflamatórios: espondilite anquilosante, ar- - Protrusão mandibular reduzida;
trite reumatoide; - Distância tireomentual <6cm;
- Câncer: tumores em via aérea alta e/ou baixa, radio- - História de ronco.
terapia prévia;
- Infecção: epiglotite, bronquite, abscessos, pneumonia; Tabela 1 - Escore de intubação (Airway Difficulty Score – ADS)
- Corpo estranho; Parâmetro x
1 2 3
pontuação
- Testes como Mallampati, determinação da distância ti-
Distância
reomentual, abertura da boca (espaço interincisivo) e >6cm 5 a 6cm <5cm
tireomentual
mobilidade do pescoço podem ser usados para deter-
Índice de
minar dificuldade de intubação. No entanto, não existe Classe I Classe II Classe III ou IV
Mallampati
teste com 100% de sensibilidade e 100% de especifici-
Abertura bucal 4cm 2 a 3cm 1cm
dade, e parece improvável que algum teste como esse
seja desenvolvido futuramente. Mobilidade do
Normal Reduzida Sem flexão
pescoço
b) Sinais sugestivos de intubação difícil Incisivos superiores Ausentes Normais Proeminentes
- Distância tireomentual <6cm; Se escore ≥8, provável ventilação ou intubação difíceis.
- Abertura bucal ≤3cm;
- Mobilidade atlanto-occipital reduzida; B - Avaliação clínica para facilitar a intubação traqueal
- Classificação de Mallampati ≥II; A avaliação clínica permite conhecer as reservas respira-
- Complacência reduzida do espaço submandibular; tórias e circulatórias do paciente, pois a laringoscopia e a in-

14
ANESTESIA

tubação são acompanhadas de alterações nesses sistemas. Indicações


No sistema nervoso, as manobras de intubação podem - Indicações específicas, como procedimentos cirúrgicos sob
elevar a hipertensão intracraniana preexistente ou agravar anestesia geral, também podem requerer intubação traqueal;
uma lesão raquimedular.
- Posição diferente da supina;
É importante saber se já houve dificuldade de intuba-

CIRURGIA GERAL
ção. Presença de dispneia, disfagia, trauma ou cirurgia an- - Procedimentos cirúrgicos prolongados;
terior na região do pescoço, tumores ou abscessos nas vias - Neurocirurgia, cirurgias oftálmicas ou de cabeça e pescoço.
aéreas superiores, comprometimento da mobilidade do
Pode-se utilizar a intubação nasotraqueal quando a
pescoço, desvios da laringe, disfonia, trauma de laringe ou
edema, instabilidade de coluna cervical (ou suspeita de le- rota oral está indisponível ou é impossível (Tabela 3). Ela
são cervical) são sinais sugestivos de dificuldade. Hipoplasia pode ser realizada com o paciente acordado, com sedação
de mandíbula, retrognatismo e micrognatismo estão asso- e consciente (às cegas, sob visão direta com laringoscópio
ciados à dificuldade de laringoscopia e intubação. ou com fibrobroncoscópio) ou já anestesiado (sob laringos-
A avaliação do jejum é muito importante, pois a lesão copia direta). A introdução do tubo via narina direita está
pulmonar por aspiração de suco gástrico (síndrome de relacionada a menor ocorrência de trauma de corneto.
Mendelson) é uma das complicações mais graves associa-
Tabela 3 - Intubação nasotraqueal
das à intubação. As gestantes têm maior risco de aspiração
de conteúdo gástrico. Ao final da gravidez, o esvaziamento Vantagens
gástrico e o tônus do esfíncter inferior do esôfago estão di- - Mais bem tolerada por pacientes em intubações prolongadas;
minuídos, e aumenta a pressão intragástrica. Se necessária - Cuidados de enfermagem mais facilitados;
ventilação com máscara, deve ser feita pressão na cartila- - Ausência de riscos de o paciente morder o tubo;
gem cricoide (manobra de Sellick) até que o tubo traqueal
- Menor necessidade de manipulação cervical.
esteja corretamente posicionado e o cuff (balão), insuflado.
No exame físico, alguns dados também podem auxiliar. Indicações
A anatomia da face, as dimensões das narinas, a permeabi- - Cirurgia endoral ou oromandibular;
lidade das fossas nasais, a abertura da boca, a mobilidade - Incapacidade de abrir a boca (trauma, tumores, espondilite
da mandíbula, as dimensões da cavidade oral e da língua, a anquilosante);
dentição e as próteses dentárias e a mobilidade cervical são - Intubação prolongada.
aspectos igualmente relevantes nessas circunstâncias. Contraindicações
C - Manejo: posicionamento, ventilação sob - Fratura da base do crânio (em especial, de etmoide);
máscara facial e intubação traqueal - Fratura de nariz;
- Epistaxe e coagulopatia;
A intubação oral é a técnica mais frequentemente usa-
da para a manipulação da via aérea (Tabela 2). Em procedi- - Desvio acentuado do septo nasal;
mentos eletivos clássicos, é realizada após a indução anes- - Polipose nasal (contraindicação relativa).
tésica com opioide, hipnótico e bloqueador neuromuscular.
Em Pediatria, é possível a execução da IOT usando apenas D - Manejo: intubação com o paciente conscien-
indução inalatória, mas opioides, hipnóticos e bloqueado- te/acordado
res neuromusculares também podem ser utilizados. Em ur- É indicada nas situações a seguir, tanto para intubação
gências/emergências, em situações com risco de aspiração oral como nasotraqueal:
pulmonar ou via aérea difícil prevista, pode ser indicada a - Intubação difícil já prevista/avaliada;
intubação traqueal com o paciente acordado. - Dificuldade na ventilação sob máscara facial no perío-
Tabela 2 - Intubação orotraqueal do pré-intubação, por doenças ou características ana-
Vantagens tômicas;
- Controle da via aérea pelo tempo necessário; - Necessidade de manutenção da consciência para ava-
- Diminuição do espaço morto anatômico; liação neurológica;
- Facilidade à aspiração de secreções brônquicas;
- Risco de aspiração de conteúdo gástrico (síndrome de
Mendelson).
- Impedimento da passagem de ar para o estômago e intestino.
Indicações Sempre que possível, havendo habilidade do anestesio-
- Oxigenação ou ventilação inadequada; logista e equipamento disponível, deve-se utilizar o bronco-
fibroscópio. Além disso, é muito importante que o paciente
- Perda dos mecanismos protetores da laringe;
seja esclarecido quanto à indicação da técnica e sua exe-
- Traumatismos sobre as vias aéreas;
cução, para que ele se mantenha calmo e possa colaborar.
- Métodos diagnósticos (tomografia, ressonância magnética, Quando há risco de regurgitação de conteúdo gástri-
endoscopias etc.); co, deve-se usar apenas anestesia tópica nasal, evitando

15
CI RUR G I A G ERAL

anestesia da laringe ou traqueia, devido à perda de seus Contraindicações


reflexos protetores. Na ausência desse risco, é possível usar, - Paciente sem jejum;
também, o bloqueio do nervo laríngeo superior e a injeção
- Hérnia hiatal;
transtraqueal de anestésico local, obtendo-se, assim, uma
- Obesidade extrema;
intubação traqueal indolor e sem tosse.
- Gravidez;
E - Dispositivos supraglóticos - Politrauma (estômago cheio, instabilidade cervical);
- Baixa complacência pulmonar;
a) Máscara laríngea - Patologias faríngeas (tumores, obstrução, abscessos);
A Máscara Laríngea (ML) é um dispositivo supraglótico - Limitação para extensão ou abertura bucal (espondilite anquilosante,
desenvolvido para o manejo das vias aéreas, podendo ser artrite);
considerado funcionalmente intermediário entre a máscara - Neuropatias com retardo de esvaziamento gástrico;
facial e o tubo endotraqueal (Figura 3). Dispensa o uso de
- Profissional sem treinamento.
laringoscópio ou instrumentos especiais para sua inserção,
além de ser considerada uma boa opção para o manejo da
As restrições para o uso da ML relacionadas ao maior
via aérea difícil nos algoritmos publicados pela Associação
risco de regurgitação e baixa complacência pulmonar são
Americana de Anestesiologia e o Conselho Europeu de Res-
clássicas para os casos de rotina. Porém, nas situações de
suscitação (Figura 4).
emergência, as vantagens da ML como dispositivo superam
as contraindicações.
As MLs são confeccionadas em silicone especial e isen-
tas de látex (Figura 3) e possuem diversos formatos funcio-
nais, possibilitando a inserção de tubo traqueal ou de bron-
cofibroscópio pelo seu lúmen.

Figura 3 - Máscaras laríngeas e tubo endotraqueal acoplados

Inicialmente concebida apenas para o manejo da via


aérea em anestesias convencionais, foi rapidamente con-
sagrada como equipamento indispensável nos casos de via
aérea difícil. Tem a desvantagem de não proteger a traqueia
contra regurgitação de conteúdo gástrico.
A ML está disponível em vários tamanhos, possibilitan-
do o uso desde em lactentes até em adultos. Corretamente
posicionada, sua face convexa posterior estará em contato
com a parede da faringe e a face anterior sobreposta à la-
ringe, de forma a permitir a ventilação. Sua ponta aloja-se Figura 4 - Via aérea difícil com uso da ML
sobre o esfíncter esofágico superior.
b) Tubo esofagotraqueal de dupla via
Tabela 4 - Máscara laríngea
O tubo esofagotraqueal de dupla via (Combitube®) é
Indicações
uma sonda descartável dotada de 2 balonetes (um orofa-
- Para intubação traqueal em casos: ventilável, mas não intubável; ríngeo e outro esofágico) e de dupla luz, uma convencional
- Situação de emergência: não intubo, não ventilo; (tubo nº 2 – a via mais clara e mais curta) e outra multi-
- Via aérea definitiva para prosseguir um caso não emergencial: fenestrada (tubo nº 1 – via azul mais longa) no segmento
paciente anestesiado, que não pode ser intubado, mas é facilmente correspondente à orofaringe, sendo ocluída distalmente
ventilável com máscara facial; (Figura 5).
- Como conduta para intubação traqueal com fibra óptica no Trata-se de uma opção, em alguns casos, em que não se
paciente acordado. consegue fazer a intubação da traqueia por métodos con-

16
ANESTESIA

vencionais, reanimação cardiopulmonar ou acesso às vias


aéreas em ambiente extra-hospitalar (Figura 6). É introdu-
zido às cegas e permite ventilação adequada independen-
temente de seu posicionamento final – esofágico (94 a 99%
dos casos) ou traqueal. É disponível em 2 tamanhos; 37F

CIRURGIA GERAL
para paciente de 1,40 a 1,80m de altura, e 41F para pacien-
tes com mais de 1,80m de altura.

Tabela 5 - Tubo esofagotraqueal de dupla via


Vantagens
- Técnica de fácil aprendizagem;
- Ventilação satisfatória em posição esofágica ou traqueal;
- Efetivo em via aérea difícil, casos de sangramento ou vômitos que
impeçam a visualização das pregas vocais;
- Não requer laringoscopia (mas o laringoscópio pode ser usado
para facilitar a inserção) e exige mínima movimentação cervical;
- Balão esofágico previne aspiração e permite drenagem de
conteúdo gástrico e vômitos.
Desvantagens
- Não disponível em tamanho pediátrico;
- Possibilidade de complicações graves (laceração esofágica,
mediastinite);
- Necessita de altas pressões nos balonetes;
- Não permite acesso à via aérea (aspiração, fibroscopia), exceto em
modelos especiais.
Contraindicações
- Paciente com altura inferior a 1,40m;
- Paciente consciente com reflexo nauseoso presente;
- Paciente com doença esofágica ou ingestão de soda cáustica.

Figura 6 - Via aérea difícil, incluindo técnicas invasivas e Combitube®

3. Farmacologia dos anestésicos locais


Os anestésicos locais são substâncias capazes de blo-
quear, de forma totalmente reversível, a geração e a pro-
pagação do potencial de ação em tecidos eletricamente
Figura 5 - (A) Tubo esofagotraqueal de dupla via (Combitube®) e excitáveis. Agem em qualquer parte do sistema nervoso e
(B) tubo esofagotraqueal colocado em todo tipo de fibra, além de serem capazes de produzir
bloqueio tanto sensitivo quanto motor.
F - Vias cirúrgicas para acesso às vias aéreas
A cricotireoidostomia e a traqueostomia são acessos 4. Anestesia subaracnóidea
cirúrgicos para via aérea. Enquanto esta compreende um A 1ª anestesia subaracnóidea foi realizada por Auguste
procedimento eletivo para uma via aérea de longa per- Bier e seu assistente em 1898, com injeção de cocaína e
manência, aquela é, em geral, utilizada como acesso de subsequente cefaleia no período pós-anestésico. Embora
urgência e por curto período de tempo. O acesso cirúr- não haja indicação absoluta para a técnica, o fato de produ-
gico de emergência é visto como a última abordagem do zir profunda analgesia sensorial com relaxamento muscular
paciente que não pode ser intubado. Atualmente, ambos requer pequena dose e volume de fármaco, e simplicidade
os acessos podem ser realizados por meio da técnica per- de realização mantém a raquianestesia presente no arsenal
cutânea. técnico da Anestesiologia há mais de 1 século.

17
CI RUR G I A G ERAL

A - Anatomia Podem-se também utilizar outros agentes adjuvantes,


como opioides, clonidina etc. Os opioides mais utilizados
A coluna é formada por 33 vértebras unidas por 5 liga-
são o fentanila, o sufentanila e a morfina, que possuem
mentos superpostos:
ação analgésica, melhorando a qualidade do bloqueio. A
1 - Ligamento supraespinhoso. analgesia resulta da ativação dos receptores opioides es-
2 - Ligamento interespinhoso. pecíficos (MI, delta ou kappa) situados, principalmente, na
3 - Ligamento amarelo. substância cinzenta do corno posterior da medula. Causam,
4 - Ligamento longitudinal anterior. entretanto, efeitos colaterais, que variam desde prurido até
5 - Ligamento longitudinal posterior. depressão respiratória tardia.
Os opioides hidrofílicos, como a morfina, ocasionam óti-
Recobrindo a medula, há 3 meninges: dura-máter (mais
ma analgesia, mas sua penetração na medula é lenta (início
externa e resistente), aracnoide-máter (delicada e avascu-
lar) e pia-máter (fina e vascularizada, que recobre a superfí- de ação de 60 a 90 minutos) e sua permanência no LCE é
cie da medula, aderindo a ela). Tais ligamentos e meninges prolongada (até 24h), com risco de depressão respiratória
delimitam os espaços raquidianos: espaço peridural (en- tardia.
tre os componentes ligamentares e a dura-máter), espaço Os opioides lipofílicos mais usados na via subaracnóidea
subdural (existe virtualmente, entre a superfície interna da são o sufentanila e o fentanila. Apresentam rápido início de
dura-máter e a aracnoide) e espaço subaracnóideo (entre a ação (3 a 5 minutos), duração variável (3 a 9h), pouco risco
pia-máter e a aracnoide, contém o líquido cerebrospinal). de depressão respiratória imediata e quase nenhum risco
A partir do 3º mês de gestação, a coluna vertebral au- de depressão respiratória tardia.
menta em extensão mais do que a medula, e, ao nascimen- Os efeitos colaterais dos opioides empregados por via
to, esta se posiciona no nível de L3. Quando o indivíduo é subaracnóidea ou epidural são os mesmos em qualidade;
adulto, apresenta-se, na maioria das vezes, em L1. Abaixo porém, pela via subaracnóidea, a intensidade dos efeitos
de L2, o espaço subaracnóideo contém as raízes nervosas é maior. Os principais efeitos observados dos opioides são
em forma de cauda equina e o filamento terminal, per- prurido (pode ser tratado com a difenidramina), depressão
mitindo a punção lombar sem risco para a medula. Desta respiratória (pode ser tratada com a naloxona), sonolência,
última, saem 31 pares de raízes espinhais. A área cutânea náuseas e vômitos; e retenção urinária.
inervada por um nervo, e seu correspondente segmento
medular chama-se dermátomo. C - Técnica
O líquido cerebrospinal tem volume entre 90 e 150mL, As 2 agulhas mais utilizadas, atualmente, são as de
secretado continuamente (20mL/h) em sua maior parte Quincke e Whitacre (ponta de lápis), objetivando, sempre,
pelo plexo coroide dos ventrículos encefálicos (3º, 4º e late- minimizar a incidência de complicações, como a cefaleia
rais). É incolor, claro, cristalino e não coagulável, ligeiramen- pós-raquianestesia.
te alcalino e proveniente do plasma.
O anestésico tende a bloquear, inicialmente, as fibras
autonômicas, posteriormente as fibras condutoras de calor,
dor, propriocepção, pressão, tato e, por último, bloqueio
motor.

Tabela 6 - Classificação das fibras nervosas


Velocidade
Diâmetro
Fibra Mielina de Função
(μm)
condução
Motor e
A alfa 6 a 22 + 30 a 120
propriocepção
A gama 3a6 + 15 a 35 Tônus muscular
Dor, toque, Figura 7 - Técnica de punção da coluna
A delta 1a4 + 5 a 25
temperatura
B <3 + 3 a 15 Função autonômica
C 0,3 a 1,3 - 0,7 a 1,3 Dor, temperatura

B - Farmacologia
Os anestésicos locais disponíveis no Brasil são, principal-
mente, a lidocaína, com duração intermediária, e a bupiva-
caína, com longa duração, e podem ser isobáricas, hipobári-
cas ou, adicionando-se glicose, hiperbáricas. Figura 8 - Delimitação anatômica do local de punção

18
ANESTESIA

O bloqueio pode ser realizado com o paciente sentado, venosa central ocasionada pelo bloqueio simpático. Há va-
em decúbito lateral ou ventral, em condições de antissepsia sodilatação abaixo do bloqueio e redistribuição do volume
rigorosa. É praticado, usualmente, nos espaços L2-L3, L3-L4 sanguíneo central para extremidades inferiores e leito es-
ou L4-L5, principalmente por via mediana, a fim de evitar plênico. A bradicardia pode ocorrer por alteração no ba-
o plexo venoso peridural. Assim, há progressão pela pele, lanço autonômico cardíaco, com predomínio do sistema

CIRURGIA GERAL
tecido celular subcutâneo, ligamento supra e interespinho- parassimpático, principalmente pelo bloqueio das fibras
so, ligamento amarelo, penetração no espaço peridural e na cardioaceleradoras. E o tratamento baseia-se em hidrata-
dura-máter. O correto posicionamento é confirmado pelo ção e administração de agentes vasoativos.
refluxo de LCE. Há, também, a via de acesso paramediana,
Provocadas por causa conhecida:
que atravessa a musculatura paravertebral e atinge o liga-
mento amarelo na linha mediana.
- Acidente mecânico por trauma direto (lesões osteoli-
Nas gestantes, o aumento da lordose lombar reduz o gamentares nervosas);
espaço intervertebral, podendo dificultar a execução da - Acidente pelo extravasamento de líquido cerebrospi-
anestesia espinhal. O aumento do quadril eleva a porção nal (cefaleia, fístula liquórica cutânea, herniações etc.);
lombossacra da coluna quando a parturiente é colocada em - Acidente pelo uso do cateter;
decúbito lateral, facilitando a dispersão cefálica do anesté- - Complicações infecciosas (meningite asséptica, abs-
sico local e elevando o nível do bloqueio. cesso peridural e espinhal).
Tabela 7 - Anestesia subaracnóidea - Cefaleia pós-punção
Vantagens A cefaleia pós-raquianestesia resulta da perda de líqui-
- Facilidade de execução; do cerebrospinal por meio do orifício da dura-máter criado
- Bloqueio motor; após sua punção. Como consequência, há tração dos folhe-
tos meníngeos e das estruturas vasculares, ocasionando
- Relaxamento abdominal mais intenso que o do bloqueio
peridural;
fenômenos dolorosos. É mais frequente em mulheres e jo-
vens, com maior incidência em pacientes obstétricas. A fre-
- Latência curta;
quência é variável e depende de 2 fatores fisiopatológicos:
- Bloqueio da resposta ao estresse cirúrgico; idade do paciente e características da agulha.
- Diminuição da perda sanguínea intraoperatória; A cefaleia tem intensidade alta, de caráter postural, bi-
- Diminuição da incidência de eventos tromboembólicos no pós- frontal e occipital, podendo irradiar para pescoço e ombros,
operatório; iniciando-se nos primeiros dias de punção. Pode estar asso-
- Redução na morbimortalidade de pacientes cirúrgicos de alto ciada a náuseas, vertigens, distúrbios auditivos, fotofobia,
risco; visão borrada e depressão do humor. É autolimitada, po-
- Analgesia pós-operatória; rém, às vezes, incapacitante, requerendo tratamento com
- Terapia da dor aguda cirúrgica ou não. tampão sanguíneo peridural (blood patch) quando o trata-
Contraindicações mento clínico (repouso, hidratação e sintomáticos) não se
- Absoluta: recusa do paciente; mostra eficaz.
- Hipovolemia; Outras neurológicas:
- Hipertensão intracraniana; - Síndrome da cauda equina;
- Coagulopatias ou trombocitopenia; - Sintomas neurológicos transitórios (parestesias, cefa-
- Sepse e infecção no local da punção. leia pós-punção);
- Hematomas compressivos espinais.
A anestesia subaracnóidea pode ser, então, utilizada
amplamente em cirurgias pediátricas, ambulatoriais, obsté-
tricas, cardíacas etc.
5. Anestesia peridural
O espaço peridural situa-se entre a dura-máter e o canal
D - Complicações vertebral e é preenchido por tecido adiposo e plexo veno-
Secundárias à própria técnica: so. Nesse espaço, há pressão subatmosférica variável com
- Hipotensão, bradicardia, bloqueios atrioventriculares, a respiração e influenciada pela pressão intra-abdominal e
parada cardíaca; torácica, e pela pressão liquórica, o que facilita sua identi-
- Prurido, náuseas, vômitos; ficação.
- Retenção urinária; Vários anestésicos locais podem ser usados, a depender
da duração de ação, eficácia e latência, adequando-se à ci-
- Depressão respiratória. rurgia. Substâncias adjuvantes, como epinefrina e opioides,
A hipotensão é de rápida instalação e acontece pela também são úteis para prolongar a duração do bloqueio e
diminuição da resistência vascular sistêmica e da pressão melhorar sua qualidade. Com a lidocaína, o bloqueio se es-

19
CI RUR G I A G ERAL

tabelece rapidamente, durando 90 a 120 minutos. Com a - Aspirina e AINEs: parece não haver riscos para sangra-
bupivacaína, a latência é maior, porém a duração também é mentos ou hematoma espinhal, quando usados isola-
mais longa (de 3 a 5 horas). damente. O risco parece aumentar quando associados
O bloqueio peridural, ao contrário do subaracnóideo, à heparina, cumarínicos ou trombolíticos;
é segmentar, espraiando-se tanto caudal quanto cefalica- - Fibrinolíticos: têm alto risco de hematoma e sangra-
mente. O 1º sinal de bloqueio é a sensação de calor na área mento, especialmente se associados à heparina. Re-
bloqueada com perda da discriminação térmica. A seguir, comendam-se 10 dias entre o uso de fibrinolíticos e a
perda da sensação de picada (dolorosa), posteriormente, punção peridural. Paciente com cateter peridural que
perda do tato com progressiva perda da força, até a anes- necessite de trombolítico deve ser avaliado neurologi-
tesia completa com bloqueio motor e insensibilidade gene- camente, a cada 2h;
ralizada. O bloqueio espalha-se de forma centrífuga, o blo- - Heparina de baixo peso molecular: se possível, o blo-
queio simpático alcança níveis mais altos que o sensitivo, e queio subaracnóideo é a melhor alternativa. O blo-
este, mais alto que o bloqueio motor. queio peridural deve ser realizado 12h após a última
É necessário um preparo clínico adequado para a reali- dose (quando profilática) e após 24h (quando dose
zação do bloqueio. A presença de coagulopatias ou o uso de plena). O cateter peridural deve ser retirado 12h após
medicação anticoagulante podem, por exemplo, represen- a última dose.
tar uma contraindicação absoluta ou relativa para o proce-
dimento, além de deformidades da coluna, que dificultam B - Peridural torácica
sua realização. Como na anestesia subaracnóidea, a recusa
do paciente apresenta-se como contraindicação absoluta A Anestesia Peridural Torácica (APT) apresenta várias
para o procedimento anestésico, bem como infecção no lo- aplicações clínicas em diversas especialidades médicas,
cal da punção, hipovolemia e choque circulatório. como cirurgias na parede torácica e no tratamento das
A anestesia peridural pode ser realizada em, pratica- dores aguda e crônica. Passou a ter uso extensivo por um
mente, toda a coluna vertebral, embora o local mais co- grande número de anestesiologistas, principalmente nas
mum seja a coluna lombar pela facilidade de punção. Além cirurgias plásticas.
disso, utiliza-se, também, cateter para infusão contínua do Quanto aos aspectos anatômicos favoráveis à sua uti-
anestésico, que possibilita injeção durante a cirurgia, pro- lização com segurança, pode ser relacionada ao conheci-
longando o bloqueio, além da realização de analgesia pós- mento prévio dos processos espinhosos de T1 a T12 com
-operatória. uma inclinação extrema e acentuada entre T5 e T8, obri-
gando o correto posicionamento da agulha e obedecendo
A - Critérios de execução a esses conceitos.
O espaço peridural torácico apresenta uma profundi-
a) Indicações da anestesia peridural dade entre 2,5 e 5mm de profundidade, sendo maior no
- Anestesia para procedimentos cirúrgicos dos membros segmento torácico inferior. A membrana da dura-máter é
inferiores, pelve e abdome; constituída de fibras colágenas e elásticas, atingindo uma
espessura na região torácica de 1mm, o que propicia maior
- Analgesia pós-operatória com ou sem opioide em téc- resistência, dificultando uma perfuração acidental.
nica contínua;
Muitos estudos têm contribuído para o conhecimento
- Tratamento da dor radicular aguda ou crônica; das alterações fisiológicas e farmacológicas dessa técnica,
- Analgesia prolongada para tratamento de dor pós- principalmente as alterações cardiopulmonares, com seus
-operatória ou crônica, por meio do PCA (Patient-Con- múltiplos mecanismos de ações. Os efeitos cardiovascula-
trolled Analgesia). res observados com a APT são complexos e variáveis, de-
b) Contraindicações pendendo de muitos fatores, como a extensão do bloqueio
simpático, o equilíbrio do sistema nervoso autônomo, a
- Absoluta: recusa do paciente. ação local e sistêmica dos anestésicos locais, a adição de
- Relativas: adrenalina no anestésico, dentre outros.
• Coagulopatias ou uso de anticoagulantes; Os principais efeitos benéficos no sistema cardiovascu-
• Hipotensão, hipovolemia ou sepse; lar são, principalmente, a queda da excitabilidade cardio-
• Infecção no local da punção; vascular, diminuindo a frequência cardíaca, reduzindo o
• Deformidade da coluna vertebral. consumo de oxigênio pelo miocárdio, melhores resultados
na isquemia miocárdica refratária ao tratamento conven-
c) Critérios para execução de anestesia peridural em cional e, principalmente, em se tratando de cirurgias plás-
pacientes em uso de anticoagulantes ticas, menor sangramento, mantendo níveis hipotensivos
- Anticoagulantes orais (varfarina): suspender a me- seguros para a sua realização.
dicação, medir o INR e realizar bloqueio quando INR Em cirurgias abdominais altas e torácicas, a disfunção
abaixo de 1,4; diafragmática é um fator determinante das complicações

20
ANESTESIA

respiratórias no pós-operatório e pode ser atenuada pelo vaso sanguíneo, ocasione aumento médio da frequência
bloqueio peridural. cardíaca em 30bpm entre 20 e 40 segundos após a injeção.
As vantagens da APT para cirurgias plásticas são função Em pacientes que utilizam beta-bloqueador, não se observa
pulmonar preservada, manutenção dos reflexos de vias aé- aumento nos batimentos cardíacos, podendo, inclusive, ha-
reas, anestesia segmentar e menor incidência de trombo- ver diminuição. Entre esses indivíduos, o aumento da pres-

CIRURGIA GERAL
embolismos, sangramento, náuseas e vômitos, anafilaxias são arterial sistólica ≥20mmHg indica injeção intravascular.
e retenções urinárias. Pode ser realizada com segurança O paciente deve estar sempre monitorizado.
no bloco operatório adequado para todas as situações de
a) Fatores que influenciam a extensão do bloqueio pe-
emergência, com uma avaliação pré-anestésica bem deta-
ridural
lhada, utilização de fármacos em concentrações reduzidas
e menos cardiotóxicas, monitorização mandatória (ECG, - Volume e concentração da solução anestésica;
PANI, FC, oxímetro e capnografia nasal). - Idade e altura: a dose reduz com a idade. A altura é
A utilização da técnica com cateter apresenta uma série indiferente, salvo extremos de idade;
de vantagens, principalmente a redução da dose do anesté- - Velocidade de injeção: aumenta a difusão e o descon-
sico e a segurança quanto ao tempo cirúrgico e à qualidade forto;
do procedimento. Atualmente, utilizam-se, após a dose-tes- - Nível da punção: em nível cervicotorácico, devido ao
te, a passagem do cateter e a injeção do anestésico local, menor volume do espaço, pequenos volumes (8 a
lento e correlacionado com a clínica. 10mL) produzem bloqueio semelhante ao obtido com
15mL em nível lombar.
C - Anestesia peridural contínua
b) Complicações
Antes de iniciar a técnica contínua, deve-se verificar se
o cateter passa facilmente pela agulha. O bisel desta deve - Relacionadas ao anestésico
ser direcionado na posição cefálica, embora isso não garan- São consequência de injeção inadvertida ou absorção
ta que o cateter tomará tal direção. O instrumento pode de doses elevadas do anestésico e alergia. Os primeiros si-
encontrar resistência para ultrapassar a curvatura da ponta nais de intoxicação são gosto metálico, zumbido, tontura,
da agulha, mas a pressão constante consegue vencer o obs- seguindo para dislalia, tremores, convulsão clônica gene-
táculo. Se o cateter não progride além da ponta da agulha, ralizada, insuficiência respiratória, colapso circulatório e
é possível que esta não esteja completamente introduzida parada cardiorrespiratória. Iniciam-se rapidamente assis-
no espaço peridural e alguma estrutura esteja impedindo tência respiratória, anticonvulsivante venoso e intubação
a sua progressão. Nesse caso, a introdução cuidadosa da traqueal. A alergia, muito rara com os anestésicos do grupo
agulha 1 a 2mm, movendo-a a 180°, pode ser útil. Essa é amida, caracteriza-se por prurido, eritema, broncoespas-
uma manobra que aumenta o risco de punção acidental da mo, edema de Quincke e hipotensão arterial, tratando-se
dura-máter. com anti-histamínicos, corticoides e epinefrina.
Se o cateter avança uma pequena distância além da pon-
ta da agulha, não progredindo, é necessário que esta seja re-
- Relacionadas à técnica
posicionada. Deve-se, então, retirá-la com o cateter em seu • Raquianestesia total: perfuração da dura-máter não
interior, pois somente a retirada do cateter que já ultrapas- detectada e injeção subaracnóidea de dose elevada
sou a ponta da agulha pode quebrá-lo. O instrumento deve do anestésico local;
ser introduzido 3 a 5cm, para evitar a punção das veias pe- • Cefaleia pós-punção da dura-máter: perfuração da
ridurais e das meninges e a saída pelos forames interverte- dura-máter com agulha de grande calibre, ocasio-
brais, enrolando-se ao redor das raízes dos nervos. nando cefaleia intensa;
Após a fixação do cateter, é obrigatória a dose-teste an- • Bloqueio simpático e hipotensão arterial: vasople-
tes da administração de drogas. gia venosa, queda do retorno venoso, do enchimen-
to cardíaco e, consequentemente, do débito cardía-
D - Dose-teste peridural co e da pressão arterial. Tratamento com cristaloide
e vasopressor;
Seu objetivo é identificar se a agulha ou o cateter foram
introduzidos no espaço subaracnóideo ou em veias do espa- • Náusea e vômito: consequência de hipotensão ar-
ço peridural. A aspiração da agulha ou do cateter para identi- terial ou hipoxemia;
ficar a presença de sangue ou de líquido cerebrospinal pode • Depressão respiratória;
ser útil para prevenir injeções inadvertidas de anestésico lo- • Infecção: muito rara, porém grave, podendo apre-
cal, mas a incidência de teste falso negativo é alta. sentar sinais de compressão medular;
A dose-teste mais utilizada é a de 3mL de anestésico lo- • Sangramento e hematoma peridural: geralmen-
cal (lidocaína) contendo 5μg/mL de adrenalina (1:200.000). te, o sangramento peridural não causa problema,
Ela deve ser suficiente para que, introduzida no espaço su- desde que não se injete anestésico local. Em hepa-
baracnóideo, determine anestesia e, introduzida em um rinizados ou com distúrbio de coagulação, há risco

21
CI RUR G I A G ERAL

elevado de hematoma com compressão medular Tabela 9 - Principais agentes anestésicos venosos
aguda, que deve ser tratado cirurgicamente. Classe
Medicações mais utilizadas
medicamentosa
Propofol, benzodiazepínicos, etomidato,
Hipnóticos
tiopental.
Morfina, meperidina, fentanila e derivados,
Opioides
cetamina.
Bloqueadores Despolarizantes: succinilcolina.
neuromuscu- Adespolarizantes: atracúrio, pancurônio,
lares cisatracúrio.

A - Hipnóticos
a) Propofol
Trata-se de um hipnótico com rápido início de ação com
paraefeitos mínimos, além de potencial atividade antie-
mética, sem ação analgésica. Além disso, diminui a pré e
a pós-carga cardíacas por ação direta na musculatura lisa
vascular e por diminuição do tônus simpático. Seu uso deve
Figura 9 - Anatomia do canal medular ser cuidadoso em se tratando de pacientes hipovolêmicos.
A hipotensão é mais intensa em idosos. É o mais potente
Tabela 8 - Raquianestesia x anestesia peridural depressor do miocárdio dentre os hipnóticos.
Variável analisada Raquianestesia Anestesia peridural Durante a indução com esse hipnótico, objetivando di-
Início de ação Rápido Mais lento minuir dor à injeção, podem ser utilizadas veias de grosso
calibre ou, ainda, pode ser associada lidocaína à solução.
Altura do bloqueio Imprevisível Previsível
No entanto, podem-se ter, como para-efeito, apneia, hi-
Limite inferior Satisfatório (S5) Variável
potensão arterial e, muito raramente, tromboflebites nas
Densidade do veias puncionadas para a sua injeção.
Profunda Variável
bloqueio
Clinicamente, pode ser utilizado tanto para indução e
Duração do Agente e técnica manutenção da anestesia como para sedação em cirur-
Agente dependente
bloqueio dependente gia e em UTI. Em adultos, a dose de indução anestésica
Absorção compreende 1 a 2,5mg/kg. Já em crianças a partir de 8
Desprezível Importante
sistêmica anos, utilizam-se cerca de 2,5mg/kg. Abaixo dessa idade,
Hipotensão Rápida/comum Lenta/gradual normalmente se utilizam doses maiores. Entretanto, não
Cefaleia
Variável/ Não, ou em punção é recomendado o uso em crianças com idade menor que
imprevisível acidental 3 anos.
Analgesia pós- Alto risco e sem Ideal por infusão via
operatória viabilidade cateter
b) Midazolam
Compreende um benzodiazepínico de ação curta, com
propriedades ansiolíticas, sedativas, amnésicas, anticonvul-
6. Farmacologia dos anestésicos venosos sivante e miorrelaxante, e ao qual o anel imidazólico con-
Os objetivos básicos da anestesia são obtenção de in- fere alta hidrossolubilidade, facilitando as misturas intrave-
consciência, analgesia, bloqueio de reflexos e relaxamento nosas (com Ringer lactato ou soro fisiológico) e diminuindo
muscular, o que é obtido com o uso de medicamentos com a incidência de tromboflebites, ao contrário do diazepam.
finalidades bem específicas, cuja ação conjunta resulta em Ainda em comparação com o diazepam, tem início de
sinergismos e interações (Tabela 9). Os hipnóticos promo- ação mais lento, duração de ação mais curta, maior efei-
vem a inconsciência e a manutenção do sono (propofol, mi- to amnésico e 3 a 4 vezes a potência sedativa. Sem ação
dazolam, diazepam, etomidato, tiopental etc.). Os opioides analgésica, suas vias de administração são intravenosa, in-
são analgésicos e, em altas doses, sedativos (meperidina, tramuscular, nasal e oral.
morfina, fentanila, sufentanila, alfentanila, remifentanila). É muito usado para sedação de pacientes sob ventila-
Os relaxantes musculares conferem imobilidade e parali- ção mecânica em ambiente de terapia intensiva. Por seus
sam a musculatura, facilitando a intubação traqueal, a ven- efeitos amnésicos e ansiolíticos, é o fármaco mais prescrito
tilação mecânica e o ato cirúrgico; os mais utilizados são o como medicação pré-anestésica. Proporciona tranquilida-
atracúrio, cisatracúrio, pancurônio, rocurônio, succinilcoli- de, diminuição das manifestações sistêmicas ao estresse
na etc. (taquicardia, hipertensão, consumo de oxigênio pelo mio-

22
ANESTESIA

cárdio), redução da incidência de náuseas e vômitos pós- Em doses terapêuticas, apresenta efeitos mínimos so-
-operatórios e maior satisfação global com o procedimento. bre o metabolismo miocárdico, débito cardíaco e circulação
Seus efeitos são antagonizados pelo flumazenil, usado pulmonar ou periférica. A resistência vascular coronariana
em doses intermitentes de 0,2mg até uma dose total de diminui sem alterar a pressão de perfusão coronariana e
1mg. Pacientes em uso crônico de benzodiazepínicos po- não sensibiliza o miocárdio às catecolaminas. É o hipnótico

CIRURGIA GERAL
dem apresentar quadro de agitação psicomotora em res- de escolha nas induções em que se deseja a estabilidade
posta à administração desse medicamento. cardiovascular (ex.: pacientes com doença coronariana).
Os efeitos depressores do midazolam no sistema cardio- Não causa liberação de histamina nem aumento da re-
vascular e SNC são potencializados por álcool, narcóticos e sistência das vias aéreas e pode ser usado em asmáticos.
anestésicos voláteis. A hipotensão e a depressão respira- Causa, em infusões prolongadas, supressão da adrenocorti-
tória podem ocorrer rapidamente quando o midazolam é cal, fato já relacionado à morte em alguns estudos, além de
administrado em conjunto com opiáceos. No sistema car- náuseas e vômitos no pós-operatório.
diovascular, promove redução da pressão arterial média
e) Tiopental
sistêmica e da frequência cardíaca de forma discreta, e não
apresenta atividade arritmogênica. A depressão respirató- Este é um tiobarbitúrico de ação ultracurta. Deprime o
ria é maior entre pacientes geriátricos, com DPOC ou enfer- SNC e leva à hipnose, mas não à analgesia. É usado para
midades graves (estado físico ASA III a V). proteção cerebral, pois diminui o fluxo sanguíneo cerebral,
o ritmo metabólico cerebral e a pressão intracraniana.
c) Diazepam Trata-se de um indutor ainda usado na prática clínica,
Um dos benzodiazepínicos mais usados no mundo, embora, na sua recuperação, sejam relatados tontura, se-
com efeitos relacionados à sua ação quase exclusiva no dação, cefaleia, náuseas e vômitos. Também pode causar li-
SNC. Os mais marcantes são a sedação, a hipnose, o rela- beração de histamina e broncoespasmo e é contraindicado
xamento muscular, a amnésia e a comprovada atividade a pacientes asmáticos e portadores de porfiria.
anticonvulsivante. A ansiólise e o relaxamento muscular
acontecem via aumento da disponibilidade do neurotrans- B - Opioides
missor inibitório glicina.
O termo opioide refere-se a toda substância exógena,
De todos os benzodiazepínicos, possui uma das mais al-
natural ou sintética, que se liga, especificamente, a quais-
tas solubilidades lipídicas, o que lhe permite atravessar ra-
quer das subpopulações de receptores opioides, produzin-
pidamente a barreira hematoencefálica e distribuir-se aos
tecidos gordurosos periféricos, apresentando uma meia- do, assim, algum tipo de efeito agonista. De maneira simpli-
-vida superior a 24 horas. ficada, os opioides podem ser classificados em:
Os produtos do metabolismo do diazepam são excreta- - Opioides naturais: alcaloides derivados do ópio;
dos, na maior parte, por meio dos rins. A meia-vida de eli- - Opioides fenantrênicos: morfina e codeína;
minação diminui com a elevação da idade e a presença de - Opioides semissintéticos: metilmorfina e heroína;
obesidade. Também tem sua ação revertida pelo flumazenil. - Opioides sintéticos: possuem núcleo fenantrênico
Suas vias de administração são intravenosa, bucal (oral da morfina, porém manufaturados por processos de
e sublingual), intramuscular e, em preparações especiais, síntese química. Incluem os derivados da metadona,
retal. A via sublingual evita o metabolismo hepático de 1ª derivados da fenilpiridina (meperidina, fentanila e con-
passagem, e a intramuscular caracteriza-se por absorção ir- gêneres). Os mais usados em anestesia são morfina,
regular, lenta e dolorosa. A intravenosa também é dolorosa, fentanila, alfentanila, sufentanila e remifentanila.
em virtude da baixa hidrossolubilidade da droga.
A morfina, muito usada em bloqueios regionais, intensi-
d) Etomidato ficando a analgesia pós-operatória, libera histamina e pode
Trata-se de um hipnótico não barbitúrico que não pos- provocar prurido após administração oral, sistêmica, peri-
sui atividade analgésica e age potencializando o efeito ini- dural e intratecal. Também provoca náuseas, vômitos, cons-
bitório do ácido gama-aminobutírico. Apresenta início e du- tipação intestinal e retenção urinária.
ração de ação muito rápidos, com metabolização hepática. Quanto ao fentanila, devido às suas características far-
Reduz o metabolismo cerebral, o fluxo sanguíneo cere- macocinéticas, grandes doses (10 a 15ng/mL de concentra-
bral e a pressão intracraniana. Em razão dos seus efeitos ção plasmática) são acompanhadas de recuperação pro-
mínimos sobre a pressão sanguínea sistêmica, é mais bem- longada, estando somente indicadas a procedimentos com
-sucedido que o propofol e o tiopental na manutenção da previsibilidade de recuperação também prolongada. De
pressão de perfusão cerebral. Podem ocorrer movimentos modo semelhante aos demais opioides, o fentanila pode
mioclônicos em cerca de 1/3 dos pacientes na indução e são causar bradicardia (antagonizada pela atropina), rigidez
devidos à desinibição da supressão subcortical da atividade muscular (revertida pelos bloqueadores neuromusculares),
extrapiramidal, podendo ser reduzidos com a pré-medica- depressão respiratória (antagonizada pela naloxona), náu-
ção com benzodiazepínicos ou opioides. seas e vômitos atribuídos à estimulação da zona de gatilho

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CI RUR G I A G ERAL

quimiorreceptora, localizada na área postrema no assoalho díaca, débito cardíaco e da pressão pulmonar. Também há
do 4º ventrículo, próximo ao centro respiratório, diminui- aumento da pressão intraocular e intragástrica. Alucinações
ção da motilidade gastrintestinal e retardo do esvaziamento são comuns após administração rápida ou de altas doses.
gástrico.
Já o sufentanila é muito potente (5 a 10 vezes a potên- C - Bloqueadores neuromusculares
cia do fentanila). As principais vantagens sobre os demais São compostos de amônio quaternário com estrutura
opioides são o maior efeito sedativo e a maior capacida- similar à da acetilcolina, o que lhes permite ocupar os re-
de em reduzir os estímulos neuro-humorais causados pelo ceptores de acetilcolina da junção neuromuscular. Os des-
estresse. Essa ação sedativa é bastante desejável, pela polarizantes ativam os receptores de maneira semelhante à
possibilidade de o paciente ficar consciente durante o ato acetilcolina, enquanto os adespolarizantes evitam a ativa-
anestésico-cirúrgico. ção do receptor pela acetilcolina.
O alfentanila é um opioide 5 a 10 vezes menos potente Os bloqueadores neuromusculares podem ter suas
que o fentanila, porém com rápido início de ação e curta ações potencializadas por anestésicos inalatórios, antibió-
duração de efeito. Por causa dessas características, é muito ticos, hipotermia, opioides e insuficiência renal. Pacientes
utilizado na técnica de anestesia balanceada. Está associa- com doenças neuromusculares (como miastenia gravis)
do a maior grau de hipotensão e bradicardia que o produzi- respondem de maneira anormal aos bloqueadores neuro-
do por fentanila e alfentanila. musculares. Nesses casos, o uso deve ser cuidadoso e, em
O remifentanila é o mais recente opioide a ser emprega- algumas situações, evitado. Tais bloqueadores são divididos
do em clínica deriva da fenilpiperidina. A principal caracte- em 2 grupos:
rística desse fármaco é ser um éster rapidamente metaboli- a) Despolarizantes
zado por esterases, não específicas, sanguíneas e teciduais. Promovem bloqueio não competitivo, pois mimetizam
O efeito das esterases sobre o remifentanila causa menor a ação da acetilcolina. Atuando no receptor da acetilcolina,
variabilidade nos parâmetros farmacocinéticos entre pa- abrem os canais iônicos, gerando um potencial de ação do
cientes, e tais parâmetros são pouco alterados pela idade, músculo e, com isso, uma contração muscular. São repre-
obesidade ou insuficiências hepática e renal. Do mesmo sentados pela succinilcolina e pelo decametônio. São carac-
modo que os outros opioides, seus efeitos são revertidos terísticas da succinilcolina:
pela naloxona. A principal característica que o diferencia - Apresenta rápido início de ação IV (de 30 a 60s) e IM
dos demais opioides é a duração de efeito extremamente (de 2 a 3 minutos);
curta como resultante da sua rápida metabolização (de 7 a
- Tem curta duração (de 4 a 6 minutos);
10 minutos). Na circulação, é rapidamente hidrolisado pe-
las colinesterases, não específicas, do plasma e dos tecidos,
- Pode desencadear crise de hipertermia maligna;
produzindo vários metabólitos inativos. - Provoca fasciculações e dores musculares;
Devido aos efeitos extremamente curtos do remifenta- - Aumenta as pressões arterial, intracraniana, intraocu-
nila, as doses são mais bem administradas por infusão con- lar e intragástrica;
tínua. A desvantagem potencial desse opioide está também - É usada na prática clínica para intubações em sequên-
relacionada à sua curta duração de ação. Com a recupera- cia rápida.
ção rápida, o paciente pode ter dor no pós-anestésico, e o b) Adespolarizantes
anestesiologista deve ter um esquema de analgesia plane- Promovem bloqueio competitivo por fármacos que se
jado. Outro inconveniente é a possibilidade da interrupção ligam, por ação principal, aos receptores de acetilcolina,
acidental da infusão de remifentanila, durante a anestesia. impedindo a abertura do canal iônico e o surgimento do
Em suma, o remifentanila tem propriedades farmacoci- potencial de placa terminal. São divididos em:
néticas únicas, como rápido tempo de ação (pequena latên- - Curta duração: mivacúrio;
cia, similar ao alfentanila = 1 a 2 minutos) e rápida recu-
peração, independente da duração da sua administração.
- Duração intermediária: atracúrio; cisatracúrio; ro-
curônio;
Com essa última propriedade, torna-se um fármaco de fácil
manejo, tanto em anestesias de curta duração, mas que re-
- Duração longa: pancurônio; alcurônio; pipecurônio;
doxacúrio.
queiram intensa analgesia, quanto para períodos prolonga-
dos sem que o anestesiologista se preocupe com uma recu- O mivacúrio e o cisatracúrio são importantes liberado-
peração prolongada. res de histamina e podem causar broncoespasmo, princi-
Por fim, a cetamina (Ketalar®), derivada da fenilciclidi- palmente se injetados rapidamente. O cisatracúrio, um dos
na, leva à analgesia dissociativa agindo nos receptores N- isômeros que compõem o atracúrio, é 3 vezes mais potente
-metil-aspartato, subgrupo dos receptores opioides, e pro- e libera muito menos histamina. O atracúrio e o cisatracú-
duz inconsciência e analgesia dose-dependente. Os efeitos rio são degradados por eliminação de Hoffman (degradação
hemodinâmicos (dependentes da integridade da resposta química espontânea que ocorre em pH e temperatura fisio-
simpática) são aumento da pressão arterial, frequência car- lógica) e não possuem metabólitos ativos.

24
ANESTESIA

Dentre os bloqueadores adespolarizantes, o rocurônio Os critérios de alta da sala de RPA para os pacientes sub-
é o que tem início de ação mais rápido (1 minuto, na dose metidos à anestesia espinhal têm sido muito empíricos e
de 1,2mg/kg), sendo uma boa opção para intubação em baseiam-se na regressão do nível sensitivo até T10 e no re-
sequência rápida. Apresenta as excreções hepática e renal. torno da função motora às extremidades inferiores. Alguns
autores acreditam que tais critérios aumentam o tempo de

CIRURGIA GERAL
permanência na sala de recuperação e que a alta deveria
7. Recuperação pós-anestésica
fundamentar-se na estabilidade hemodinâmica, podendo o
Todos os pacientes submetidos à anestesia geral ou paciente receber alta antes mesmo do retorno da função
regional devem ser encaminhados à sala de Recuperação motora ou sensitiva.
Pós-Anestésica (RPA) por um período mínimo de 1h. Após Os critérios de alta da sala de RPA podem ser avaliados
anestesia geral ou locorregional, o paciente pode evoluir por escalas numéricas; a de Aldrete e Kroulik é a mais usada
com rebaixamento do nível de consciência, instabilidade em nosso meio.
hemodinâmica (bradicardia/assistolia), insuficiência respi-
Tabela 10 - Escala de Aldrete e Kroulik
ratória (hipoxemia/hipercarbia), náuseas, vômitos e outras
Item Nota
ocorrências relacionadas a alterações fisiológicas do pró-
prio ato cirúrgico, ao nível do bloqueio regional realizado e Move 4 membros 2
ao efeito residual dos fármacos utilizados. Atividade Move 2 membros 1
O paciente deve ser transportado para a sala de RPA Move 0 membros 0
sob a supervisão do anestesiologista. Durante o transpor- Profunda 2
te, devem-se ter os mesmos cuidados tomados durante a Respiração Tosse limitada 1
cirurgia, avaliando os sinais vitais, evitando perda de calor e Dispneia/apneia 0
administrando oxigênio, se necessário. Completamente acordado 2
Consciência Desperta ao ser chamado 1
A - Rotina do paciente ao ser admitido na sala Não responde ao chamado 0
de RPA ±20%, nível pré-anestésico 2
- Administração de oxigênio, se necessário, ou Ventila- Circulação (PA) ±20 a 49%, nível pré-anestésico 1
ção Mecânica Assistida (VMA) (previamente comuni- ±50%, nível pré-anestésico 0
cada pelo anestesiologista); Mantém SpO2 >92% em ar ambiente 2
- Monitorização: nível de consciência, ECG, oximetria de SpO2 Mantém SpO2 >90% com O2 1
pulso, pressão arterial, temperatura, analgesia, diure- Mantém SpO2 <90% com O2 0
se (espontânea ou por sonda vesical); capnografia (se
ventilação assistida, intubação traqueal ou traqueosto- Os pacientes devem somar mais de 8 pontos antes de
mia); pressão arterial invasiva ou pressão venosa cen- receberem alta da sala de RPA, e é importante que não
tral, em caso de indicação; apresentem 0 (zero) em parâmetros como atividade, respi-
- Preenchimento dos dados com identificação, cirurgia e ração e circulação. A depender do quadro clínico, o nível de
anestesia realizadas, acessos venosos, pontuação da 1ª consciência e a saturação de oxigênio podem ser mínimos
antes do procedimento cirúrgico (demência senil, paralisia
avaliação e anotação de recomendações especiais, se
cerebral, DPOC grave), e pode haver alta considerando cui-
houver (antibióticos, alergias, coleta de exames etc.).
dados especiais ou encaminhamento para unidade de cui-
dados intensivos ou semi-intensivos.
B - Critérios de alta do paciente sob o ponto de
vista anestésico C - Complicações
O paciente pode receber alta da sala de RPA caso obte- a) Hipotermia
nha os seguintes critérios:
A hipotermia determina alterações fisiopatológicas
- Capacidade de manter adequada ventilação alveolar e importantes, e sua presença durante os procedimentos
desobstruir as vias aéreas; anestésico-cirúrgicos deve ser evitada e reconhecida pron-
- Manter-se acordado, alerta e bem orientado; tamente pelo médico anestesista. A monitorização deve ser
realizada rotineiramente, com uso de termômetro eletrôni-
- Capacidade de manter perfusão tecidual adequada co que permita avaliação contínua. A nasofaringe, o esôfago
sem suporte farmacológico e não requerer monitori- distal e o reto são os locais de preferência para colocação
zação contínua cardiovascular; do sensor. A temperatura da membrana timpânica é a que
- Presença de diurese. reflete mais precisamente a temperatura cerebral.

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CI RUR G I A G ERAL

Tabela 11 - Mecanismos de perda de calor • Sistemas de aquecimento de ar forçado (preferen-


Mecanismo de cialmente, no tórax);
Característica
perda de calor • Sistemas de aquecimento com circulação de água;
Irradiação Perda por emissão de raios infravermelhos.
• Sistemas de aquecimento de líquidos intravenosos
Perda transepitelial, da árvore respiratória e (hemocomponentes e cristaloides >2L).
Evaporação
das cavidades abertas.
Perda proporcional à diferença de Tabela 12 - Benefícios e riscos da hipotermia
Condução
temperatura de superfícies. Benefícios
Convecção Passagem de calor da pele para o ar. - Diminuição do metabolismo (5 a 8%/1°C);
Os extremos etários são mais suscetíveis à hipotermia - Proteção contra hipóxia cerebral e da medula espinal;
no transoperatório: os pediátricos, devido à grande super- - Proteção contra hipóxia cerebral;
fície corporal em relação ao peso; e os idosos, pelo baixo - Retardo no desencadeamento e diminuição das consequências
índice de atividade metabólica. Entre recém-nascidos, ocor- da hipertermia maligna.
re termogênese sem calafrios, por meio da degradação de Riscos
gordura marrom, com intensa atividade metabólica e gran- - ↑ na incidência de eventos cardiovasculares;
de consumo de energia, e devem ter temperatura monitori- - ↑ no consumo de oxigênio pelos tremores;
zada em cirurgias com mais de 30 minutos.
- ↑ de catecolaminas circulantes;
Apesar de alguns benefícios, a gravidade das alterações
é proporcional ao grau de hipotermia existente (Figura 10). - ↑ da pressão arterial e frequência cardíaca;
No sistema cardiovascular, podem ocorrer diminuição do - ↑ de transfusões de hemocomponentes;
débito cardíaco, aumento do consumo de O2 em até 400%, - ↑ na incidência de infecção do sítio cirúrgico;
aumento da resistência vascular, bradicardias, arritmias e - ↑ no tempo de hospitalização;
isquemia miocárdica. - ↑ de custos hospitalares;
No sistema respiratório observam-se hipóxia, aumen-
- ↑ de tempo de despertar;
to do espaço morto, diminuição da ventilação (apneia do
- ↑ da ação de agentes inalatórios e venosos;
recém-nascido) e desvio da curva de dissociação da oxi-he-
moglobina desviada para a esquerda. Nas alterações neuro- - ↑ no tempo de duração dos bloqueadores neuromusculares
lógicas, têm-se alteração do nível de consciência, diminui- – obrigatório monitorizar a função neuromuscular em
hipotermia;
ção do fluxo sanguíneo cerebral e potencialização da ação
de drogas (bloqueadores neuromusculares, anestésicos - ↑ de desconforto térmico do paciente;
locais). Em relação às alterações metabólicas, ocorre hiper- - Alteração na coagulação;
glicemia causada pela diminuição da liberação de insulina, - Alteração da glicemia.
provocada por diminuição do fluxo sanguíneo pancreático e
b) Complicações cardiovasculares
aumento das catecolaminas circulantes.
Diversas medidas podem ser empregadas para evitar a - Hipotensão arterial: as causas mais comuns são hipo-
hipotermia durante e após a cirurgia: volemia, vasodilatação, diminuição do débito cardíaco,
embolia pulmonar, pneumotórax e tamponamento
- Prevenção passiva: cardíaco. No caso da hipovolemia, as causas mais fre-
• Sala operatória aquecida (>22°C para adultos e quentes são hemorragia, redução do volume plasmá-
>26°C para crianças); tico (queimaduras, fístulas) ou redução da água livre;
• Diminuir a exposição; devem ser tomadas medidas mecânicas para melhorar
• Cobrir a área exposta. o retorno venoso, seguidas de infusão rápida de cris-
taloides;
- Prevenção ativa: - Disritmias cardíacas: podem representar uma doença
• Cobertor térmico antes da indução de 30 a 60min. preexistente ou surgir em consequência de isquemia
- Tratamento passivo: miocárdica pós-operatória; as taquiarritmias, que al-
teram circulação coronariana, e as bradiarritmias com
• Evitar perda por condução/convecção/evaporação/
batimentos ectópicos são as mais comuns; o tratamen-
irradiação;
to inclui a remoção da causa e terapia medicamentosa
• Controlar a temperatura da sala operatória; (beta-bloqueadores, verapamil, digoxina etc.);
• Evitar líquidos frios; - Hipertensão arterial: tem, como causas mais comuns,
• Usar filtros e umidificadores para pacientes intubados. dor e ansiedade, além de hipercapnia, hipoxemia e dis-
tensão da bexiga. As causas de alteração da pressão ar-
- Tratamento ativo: terial (hipo/hipertensão) correspondem a 70% do total
• Manter conduta de aquecimento passivo e utilizar: das complicações cardiovasculares;

26
ANESTESIA

- Isquemia miocárdica: pode ser causada por hipotensão - Cetoacidose diabética: situação oposta, em que há de-
intraoperatória, hiper-hidratação e dor durante a fase ficiência relativa ou absoluta de insulina. Clinicamente,
perioperatória, com aumento da atividade simpática. O há diurese osmótica, que provoca hipovolemia com
segmento ST e a morfologia da onda T revelam isque- hemoconcentração. Há, também, hipotensão e baixa
mia antes que a hipotensão ocorra, apesar de a onda perfusão periférica. Por causa da elevação da osmola-

CIRURGIA GERAL
T não ser, por si só, fator indicativo de isquemia, visto ridade, há desidratação intracerebral com sua disfun-
que frequentemente aparece no pós-operatório. O tra- ção. O tratamento consiste na reposição da volemia,
tamento consiste em administração de O2, tratamento lentamente (para não provocar edema cerebral), e da
da dor e correção dos fatores desencadeadores como insulina para deter a cetogênese. Deve-se também
hipóxia, taquicardia, hipertensão ou hipotensão, sendo monitorizar o potássio, já que, com a entrada de glico-
os agentes beta-bloqueadores muitos utilizados. se para o intracelular, há tendência à hipopotassemia;
c) Complicações renais - Disfunção hepática: responsável pela recuperação
tardia da consciência, pode estar com função alterada
- Oligúria: quando o débito urinário é menor que 0,5mL/ pelos anestésicos inalatórios ou pela hipotensão;
kg/h; na sala de recuperação, geralmente é pré-renal,
ou seja, devido à hipovolemia, hipotensão ou diminui-
- Alterações eletrolíticas: relacionam-se com a demo-
ra da volta da consciência no pós-operatório. Podem
ção do débito cardíaco. No caso de oligúria pós-renal,
ocorrer hiponatremia, hipocalcemia e hipermagnese-
as causas podem ser obstrução do cateter, transecção
mia. A hiponatremia pode acontecer por alteração do
do ureter, perfuração da bexiga e compressão da veia
hormônio antidiurético ou absorção de água durante
renal por pressão abdominal alta;
ressecção transuretral de próstata, tratando-se com
- Poliúria: ocorre, muitas vezes, quando a hidratação é reposição lenta com soro fisiológico e furosemida. A
um pouco maior do que o normal. Entretanto, quan-
hipocalcemia pode ser causada por hipoparatireoi-
do permanece com débito de 4 a 5mL/kg/h por muito
dismo após uma tireoidectomia, por hiperventilação,
tempo, suspeita-se de desregulação da filtração glo-
administração excessiva de bicarbonato de sódio e
merular, cujas causas mais comuns são hiperglicemia,
administração rápida de sangue citratado. Essas con-
diuréticos utilizados e diabetes insipidus.
dições são tratadas com cloreto de cálcio ou gluconato
d) Alterações neurológicas de cálcio. A hipermagnesemia é comum em pacientes
Podem ocorrer demora na recuperação da consciência com pré-eclâmpsia tratadas com sulfato de magnésio.
após cirurgias prolongadas, principalmente em obesos, e Acima de certos níveis de magnésio, há depressão da
bloqueio neuromuscular intenso, muitas vezes confundido resposta neuromuscular; trata-se com suspensão do
com depressão do SNC. Monitores do relaxamento muscu- sulfato de magnésio, mantendo ventilação e cálcio in-
lar são úteis nessa diferenciação. Pacientes com quantidade travenoso.
menor de colinesterase plasmática podem apresentar dura-
ção prolongada do bloqueio com succinilcolina, obrigando 8. Hipertermia maligna
a manutenção da ventilação até que haja retorno à respi-
ração normal. Já com os bloqueadores neuromusculares A Hipertermia Maligna (HM) é uma doença hiperme-
adespolarizantes, pode-se fazer uso de substâncias antico- tabólica e farmacogenética do músculo esquelético, mar-
linesterásicas e anticolinérgicas ou permitir que o bloqueio cada pela alteração do metabolismo intracelular do cálcio
ceda espontaneamente. em resposta aos anestésicos voláteis (halotano, enflurano,
O uso de opioides pode provocar demora na recupera- isoflurano, sevoflurano e desflurano) e succinilcolina, asso-
ção da consciência, diagnosticado por sonolência, miose e ciados ou não. Ocorre na 2ª ou na 3ª indução anestésica
padrão respiratório (frequência baixa e volume corrente em 1/3 dos casos, mas todos são sensíveis ao teste de con-
alto), optando-se por manter o suporte ventilatório. tratura muscular induzido. Na genética, foram identificadas
4 locações cromossomais de risco (receptor de ryanodine
e) Outras complicações 19q13 e outros sítios – 17,7 e 3). O gene receptor ryanodine
- Hipoglicemia: pode levar a um retardo na recuperação produz uma proteína que determina o fluxo de cálcio nos
da consciência; canais do retículo sarcoplasmático do músculo esquelético.
- Náuseas e vômitos: manifestações muito frequentes e A incidência é variável, a depender da forma clínica
com diversos fatores envolvidos, como predisposição (1:3.000 a 1:250.000), e a população pediátrica é a mais
individual, fatores psicossomáticos, dor pós-operató- acometida, haja vista o frequente uso de agentes inalató-
ria, fármacos utilizados, distensão gástrica e depen- rios nessa população. Aumento do ETCO2 e da FC, os primei-
dendo, também, do tipo e do local da cirurgia. Diver- ros sinais clínicos e arritmias, decorrentes de acidose respi-
sas drogas têm sido utilizadas, como o ondansetrona, ratória e metabólica, ocorrem em cerca de 73% dos casos.
o droperidol, a dexametasona e a metoclopramida, A febre é resultado, e não causa do estado hipermetabólico
inclusive no tratamento preventivo; da musculatura esquelética, podendo não aparecer ou ma-

27
CI RUR G I A G ERAL

nifestar-se tardiamente. O aumento da concentração livre - Entre as orientações pré-operatórias estão o manejo de
de cálcio mioplasmático leva à rigidez do músculo masseter medicações habituais, preparos especiais e reservas para a
e de outros músculos, ativando a glicogenólise e o metabo- cirurgia;
lismo celular. O resultado é a produção exacerbada de calor - A via aérea é essencial para qualquer procedimento anestésico.
e ácido láctico e, ainda, o desenvolvimento de rabdomióli- A técnica mais usada de via aérea definitiva é a intubação
se. A CPK (creatino-fosfoquinase) é uma enzima presente orotraqueal;
no sarcoplasma do músculo esquelético, e o tempo de seu - A máscara laríngea e o tubo esofagotraqueal são opções nos
aumento é bem descrito (de 8 a 10h a 12 a 24h). casos de via aérea difícil;
O teste de contração muscular ao halotano e à cafeína é - Cricotireoidostomia e traqueostomia são vias aéreas definitivas
o padrão adotado internacionalmente para diagnóstico de cirúrgicas, com indicações precisas;
HM. A partir dessa análise, é possível discriminar indivíduos
- Os bloqueios regionais, raquianestesia e anestesia peridural,
suscetíveis e normais. são boas opções em determinados procedimentos; mas
Na fase aguda, a base do tratamento consiste na inter- exigem domínio da técnica e conhecimento das complicações;
rupção da inalação de anestésicos, hiperventilação com oxi-
- As principais classes de anestésicos venosos são os hipnóticos,
gênio 100% e dantroleno sódico 2,5mg/kg repetido até o opioides e bloqueadores neuromusculares;
controle das manifestações. O dantroleno inibe a liberação
- Deve-se investigar o histórico pessoal e familiar de HM em todo
de cálcio do retículo sarcoplasmático durante o acoplamen-
paciente.
to excitação-contração.

Tabela 13 - Abordagem da hipertermia maligna


Medidas iniciais
1 - Suspensão de todos os agentes precipitadores (anestésicos
voláteis).
2 - Hiperventilação com O2 puro. Não há necessidade de troca de
circuito ou sistema de absorção de CO2.
3 - Suspensão da cirurgia, se possível.
4 - Administração de dantroleno sódico IV 2,5mg/kg e medidas
laboratoriais de CPK.
5 - Medição da temperatura corporal.
6 - Cobertura e aquecimento do paciente, evitando a vasocons-
trição.
Medidas intermediárias
1 - Controle das arritmias persistentes com beta-bloqueadores.
2 - Controle da hipercalemia e acidose metabólica (bicarbonato
de sódio e/ou solução com insulina).
3 - Resfriamento ativo: lavagem gástrica, vesical, retal e cavidades
eventualmente abertas.
4 - Manutenção de diurese acima de 2mL/kg/h com hidratação
ou diuréticos (manitol/furosemida).
Cuidados tardios
1 - Exames laboratoriais para detecção de coagulação
intravascular disseminada.
2 - Amostras de urina para detectar a mioglobina e sua estimativa.
3 - Avaliação de débito urinário para suspeita de insuficiência
renal.
4 - Promoção da diurese forçada com fluidos intravenosos/manitol.
5 - Repetição dos valores de CPK em 24 horas.

9. Resumo
Quadro-resumo
- Todo paciente deve ser avaliado no pré-operatório para
estratificação do risco cirúrgico e eventuais compensações
clínicas;

28
CAPÍTULO

4
Infecção em cirurgia
José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais 2. Patogenia


- Fatores implicados nas infecções cirúrgicas; As infecções cirúrgicas caracterizam-se por 3 elementos
- Tipos mais comuns de infecção cirúrgica; comuns: agente infeccioso, hospedeiro suscetível e espaço
fechado ou não perfundido.
- Antibióticos. São fatores de risco do hospedeiro os extremos de
idade (neonatos e idosos têm menor resistência imunoló-
1. Definições gica), obesidade, desnutrição, choque (causando prejuízo
dos mecanismos de defesa de combate à infecção), câncer,
Infecção é todo processo inflamatório no qual existe um
quimioterapia, uso de corticoides e imunossupressores em
agente infeccioso. Dessa definição, conclui-se que todas as
geral, diabetes não compensado, presença de infecções a
infecções determinam uma inflamação. A inflamação é de-
distância, levando a episódios de bacteremia. Como fato-
finida como a presença de edema, hiperemia, dor, aumento
res locais, têm-se, além dos espaços fechados, necrose e
da temperatura no local e, algumas vezes, perda de função.
desvitalização tecidual importantes, presença de corpos
A infecção cirúrgica pode ser definida como a infecção que
estranhos, baixa perfusão sanguínea tecidual com hipóxia,
requer tratamento cirúrgico para sua resolução completa
hipercapnia e acidose.
ou infecções que decorrem de complicações da cirurgia. Al-
gumas podem abranger ambas as categorias.
O termo bacteremia significa a presença de bactérias 3. Tipos específicos de infecções cirúrgicas
no sangue. Pode ser causada por uma ampla variedade de
processos infecciosos, desde manipulações dentárias até A - Infecção da ferida pós-operatória
neoplasias obstrutivas do cólon. Em geral, a bacteremia
transitória de pequeno grau é clinicamente insignificante, Resulta da contaminação bacteriana durante ou após
exceto em pacientes com próteses cardíacas ou ortopédicas a intervenção cirúrgica. A infecção da ferida é classificada
ou cardiopatia reumática. Esses indivíduos devem receber como infecção superficial, que compromete a pele e o te-
profilaxia antibiótica antes de qualquer procedimento inva- cido celular subcutâneo, ou profunda, atingindo as fáscias,
sivo (por exemplo, extração dentária). aponeuroses ou planos musculares.
As infecções superficiais são as mais frequentes e se ma-
Tabela 1 - Tipos de infecções e seus respectivos quadros clínicos nifestam até o 21º dia após a cirurgia, a maioria delas com
Definição Quadro clínico o paciente já em acompanhamento ambulatorial. O trata-
mento básico consiste em abrir a ferida e drenar a secreção.
- FC >90bpm;
Habitualmente, não há necessidade de antibióticos.
Síndrome da Resposta - FR >20irpm;
Inflamatória Sistêmica - T >38° ou <36°C; B - Furúnculo, carbúnculo e hidradenite supurativa
(SIRS) - Leuc. >12.000, <4.000 ou >10%
O furúnculo e o carbúnculo são abscessos cutâneos, e o
bastões (pelo menos 2 itens).
agente causal é o estafilococo. O furúnculo surge em folícu-
- SIRS + foco infeccioso comprovado
Sepse los pilosos infectados, podendo ser múltiplo e recorrente,
com cultura.
observado em adultos jovens e relacionado a alterações
Sepse grave - Sepse + choque circulatório. hormonais. O carbúnculo começa sob a forma de furún-
- Sepse grave + refratariedade a culo, porém a infecção disseca a derme e o tecido subcu-
Choque séptico volume e necessidade de droga tâneo, formando uma miríade de túneis que estabelecem
vasoativa. conexões entre si; à medida que o carbúnculo aumenta o

29
CI RUR G I A G ERAL

suprimento sanguíneo para a pele é destruído e o tecido F - Gangrena gasosa


central torna-se necrótico. O tratamento do furúnculo con-
Comumente causada pelo Clostridium perfringens. As
siste em drenagem, enquanto o carbúnculo requer excisão
feridas propensas ao desenvolvimento deste tipo de in-
e antibióticos.
fecção são aquelas nas quais houve extensa destruição
A hidradenite supurativa é a infecção das glândulas su-
tecidual, com importante prejuízo do suprimento vascular,
doríparas apócrinas da região das axilas, virilha e períneo,
contaminação grosseira e tratamento retardado associado
resultando em abscesso crônico e retrações cicatriciais, re-
ao desbridamento cirúrgico inadequado. Os sintomas geral-
querendo extensa excisão das glândulas da região, seguida
mente iniciam-se 48 horas após a injúria inicial, e a queixa
de enxertia de pele ou rotação de retalho, para a prevenção
mais comum é a dor intensa no local. Durante a evolução, o
de recorrência. O agente causal mais frequente também é
paciente desenvolve taquicardia, sudorese, palidez, delírios
o estafilococo.
e hipertermia; secreção de coloração amarronzada e fétida
pode drenar pela ferida associada ao surgimento de crepi-
C - Erisipela
tação. O tratamento consiste em desbridamento adequado
São infecções da pele caracteristicamente mais super- e antibioticoterapia. Câmara hiperbárica também pode ser
ficiais, determinando descolamento da epiderme com for- usada.
mação de bolhas (Figura 1A). Os limites são mais nítidos Uma variante da gangrena gasosa, a chamada gangrena
que os encontrados nas celulites, e a pele adquire uma ver- de Fournier, ocorre quando a infecção acomete a região pe-
melhidão mais intensa. A chance de o agente causal ser um rineal e pode comprometer o escroto nos homens (Figura
estreptococo do grupo A é maior na erisipela do que nas 2). Esse tipo de apresentação é especialmente comum em
celulites. diabéticos ou com algum grau de imunossupressão. O trata-
mento consiste em debridamento amplo, curativos diários
e antibióticos. Como se trata de uma região extremamente
contaminada, por vezes torna-se necessária a realização de
cistostomia e de colostomia para auxiliar no processo de ci-
catrização.

Figura 1 - (A) Erisipela na coxa e (B) celulite no membro inferior

D - Celulite
Trata-se de uma infecção não supurativa comum do teci- Figura 2 - (A) Gangrena de Fournier e (B) aspecto pós-operatório
do debridamento cirúrgico
do conjuntivo, produzindo hiperemia, edema e hipersensi-
bilidade local. É mais frequente nos membros inferiores de
pessoas obesas com micoses e frieiras ou em outros locais G - Tétano
em que haja porta de entrada (Figura 1B). O agente causa-
dor pode também infectar os linfáticos regionais e usual- É uma infecção anaeróbica mediada pela toxina do Clos-
tridium tetani, produzindo irritabilidade nervosa e contra-
mente são os estreptococos do grupo A ou os estafilococos.
ções musculares tetânicas. Este micro-organismo penetra
E - Fasceíte necrosante em feridas hipóxicas contaminadas e nelas se desenvolve.
O período de incubação gira em torno de 8 dias. Os primei-
Trata-se de uma infecção bacteriana rapidamente pro- ros sintomas consistem em dor ou formigamento na área
gressiva, na qual vários micro-organismos invadem os pla- da lesão, limitação dos movimentos da mandíbula (trismo)
nos faciais, causando trombose vascular e necrose tecidual. e espasmos dos músculos faciais (riso sardônico), seguidos
A pele sobrejacente pode aparecer normal, dificultando a por rigidez de nuca, dificuldade de deglutição e laringoes-
avaliação da severidade da infecção. Pode resultar de pun- pasmo.
ções puntiformes, feridas operatórias ou trauma aberto, e Geralmente, um curso básico de, no mínimo, 3 doses da
geralmente envolve o períneo. Os agentes causais incluem vacina contra o tétano com reforço a cada 10 anos é o padrão
a associação de estreptococos, estafilococos e aeróbios, e internacional de vacinação. Entretanto, os pacientes podem
anaeróbios Gram negativos que agem em sinergismo. O estar deficientes em 1 ou mais doses e requerem a profilaxia
tratamento é cirúrgico, associado ao uso de antibióticos. do tétano na sala de emergência. É o caso daqueles com uma
Geralmente, os pacientes acometidos são diabéticos ou ferida limpa, com a última dose de reforço >5 anos, e reque-
portadores de alguma deficiência imunológica. rem a aplicação de DT ou Toxoide Tetânico (TT).

30
INFECÇÃO EM CIRURGIA

Pacientes que não receberam o esquema de vacina- lina e DT e TT. O tratamento requer também excisão e
ção de 3 doses devem iniciar as aplicações programadas, desbridamento da ferida, antibioticoterapia apropriada
porém devem receber, imediatamente, a imunoglobuli- (penicilina) e controle do distúrbio do sistema nervoso. O
na do tétano e DT ou TT. Aqueles que apresentem uma peróxido de hidrogênio é amplamente utilizado para os
ferida grosseiramente contaminada e cuja última dose desbridamentos, visto que o Clostridium sp é anaeróbio

CIRURGIA GERAL
de reforço é superior a 5 anos requerem a imunoglobu- exclusivo.

4. Antibióticos
Tabela 2 - Antibióticos, penetração tecidual e espectro
Droga/grau de penetração nos sítios Espectro
Ampicilina: boa penetração em quase todos os Enterococcus sp, Streptococcus pneumoniae e sp, Listeria. Atividade irregular para
tecidos, exceto ossos e próstata. enterobactérias e fraca ação antianaeróbica.
Ampicilina/sulbactam: boa penetração em todos Infecções graves causadas por germes primariamente sensíveis à ampicilina,
os tecidos. anaeróbios e, principalmente, Acinetobacter.
Amoxicilina: penetração semelhante à da
As mesmas da ampicilina.
ampicilina.
Amoxicilina/clavulanato: o ácido clavulânico tem As mesmas da ampicilina, Staphylococcus sp, anaeróbios, Haemophilus influenzae,
penetração terapêutica no osso. Moraxella catarrhalis. Sem atividade contra Serratia e Enterobacter.
Enterobactérias, Staphylococcus (infecções graves em associação a amoxicilina ou
Amicacina: não atinge níveis adequados no liquor.
cefalotina) e Pseudomonas aeruginosa (em associação ao beta-lactâmico).
Gram negativos em geral, incluindo Pseudomonas aeruginosa. Sem ação contra
Aztreonam: boa penetração em todos os tecidos.
germes Gram positivos e anaeróbios. Sinergismo com aminoglicosídeos.
Azitromicina: boa penetração na maioria dos Chlamydia, Legionella, Moraxella catarrhalis, Mycoplasma, Neisseria sp, moderada para
tecidos. Staphylococcus, Streptococcus e anaeróbios.
Anfotericina B: não atravessa bem a barreira
hematoencefálica e não se concentra bem em
Infecções fúngicas.
coágulos sanguíneos, fibrina, humor vítreo,
secreção brônquica e parótida.
Streptococcus sp, Staphylococcus sp, Gram negativos sensíveis no antibiograma e
Cefalexina: boa penetração na maioria dos
anaeróbios de boca. Embora apresente atividade in vitro para Neisseria, na prática
tecidos.
não tem eficácia.
Cefalotina: não atinge boa concentração no O mesmo da cefalexina, sendo atualmente utilizado como alternativa à oxacilina e
liquor. profilaxia cirúrgica.
Cefazolina: não atinge boa concentração no
O mesmo da cefalotina.
liquor.
Ação sobre Gram positivos (menor ação), Gram negativos (maior ação) e anaeróbios.
Cefoxitina: não atinge boa concentração no
Devido ao grande poder indutor de resistência, só é recomendado o uso para
liquor.
profilaxia cirúrgica.
Gram negativos em geral, pouca ação contra Gram positivos (Staphylococcus e
Ceftazidima: boa penetração na maioria dos
Streptococcus). Principal indicação atualmente é para Pseudomonas aeruginosa, cujo
tecidos.
efeito sinérgico é obtido com aminoglicosídeo ou quinolona (de ação sistêmica).
Ceftriaxona: boa penetração na maioria dos Gram positivos (menor para Staphylococcus e sem ação para Enterococcus) e Gram
tecidos. negativos (menor para Pseudomonas).
Gram positivos (não age contra Enterococcus sp nem Listeria), excelente atividade contra
Cefepima: boa penetração na maioria dos tecidos. Gram negativos, inclusive Pseudomonas aeruginosa. Sem ação contra Acinetobacter ou
anaeróbios.
Gram positivos (menor contra Streptococcus) e Gram negativos (enterobactérias
Ciprofloxacino: boa penetração na maioria dos
e Pseudomonas). Em infecções estafilocócicas graves, é recomendada associação à
tecidos.
rifampicina (300mg, de 12/12h). Sem ação contra anaeróbios.
Claritromicina: boa penetração na maioria dos Staphylococcus, Streptococcus e pneumococo. Chlamydia, Mycoplasma, Moraxella,
tecidos. anaeróbios. Atividade moderada para Haemophilus.

31
CI RUR G I A G ERAL

Droga/grau de penetração nos sítios Espectro


Clindamicina: concentração baixa no liquor,
Gram positivos, exceto enterococo e anaeróbios.
mesmo na presença de meningite.
Fluconazol: boa concentração na maioria dos
Infecções fúngicas.
tecidos.
Gram positivos, Gram negativos de forma geral e anaeróbios. Efeito sinérgico com
Imipeném/cilastatina: boa penetração na
aminoglicosídeos contra Pseudomonas aeruginosa. Pelo seu poder eliptogênico, deve
maioria dos tecidos.
ser evitada em infecções do SNC.
Gram positivos, incluindo Staphylococcus, pneumococo, Mycoplasma e Gram
Levofloxacino: não atinge concentração
negativos: enterobactérias, Haemophilus, Moraxella, Pseudomonas, Legionella. Efeito
terapêutica no liquor.
menor para enterococo e anaeróbios.
Metronidazol: boa penetração na maioria dos
Anaeróbios.
tecidos.
Meropeném: boa penetração na maioria dos
O mesmo do imipeném, porém o risco de convulsão é menor.
tecidos.
Enterobactérias, Haemophilus, Moraxella, Eikenella, Aeromonas, Pasteurella,
Norfloxacino: boa concentração somente no
Staphylococcus, menor ação contra Streptococcus e Enterococcus. Não tem ação contra
parênquima renal, vias urinárias, bile e fezes.
anaeróbios.
Staphylococcus, menor para Streptococcus, não tem ação para Enterococcus. Nas
Oxacilina: boa penetração na maioria dos
estafilococcias, pode haver vantagem em associar aminoglicosídeos (nos primeiros 5
tecidos.
dias) ou rifampicina.
Gram positivos, menor para Staphylococcus, Gram negativos de orofaringe e anaeróbios,
Penicilina G cristalina: boa penetração na espiroquetas e actinomicetos. Nas infecções por Enterococcus, deve ser associada ao
maioria dos tecidos, exceto próstata e olho. aminoglicosídeo. Não deve ser infundida concomitantemente ao aminoglicosídeo por
inativá-lo.
Penicilina G procaína: não proporciona dose
Streptococcus, Neisseria gonorrhoeae, Treponema pallidum.
adequada no liquor.
Piperacilina/tazobactam: boa penetração na Gram positivos, inclusive Enterococcus, Gram negativos, mesmo Pseudomonas e
maioria dos tecidos. anaeróbios.
Klebsiella, Escherichia, Enterobacter, Haemophilus, Salmonella, Shigella, Pasteurella,
Polimixina B: não proporciona dose adequada no
Vibrio, Pseudomonas. Não apresenta ação contra Proteus, Serratia, Neisseria e Brucella.
liquor nem humor aquoso.
Tem efeito sinérgico com beta-lactâmicos.
Gram positivo, incluindo Staphylococcus e Streptococcus, porém sem ação contra
Sulfametoxazol/trimetoprima: difusão adequada
Enterococcus. Gram negativos, enterobactérias, Haemophilus, Neisseria. Sem ação
por todo o organismo.
contra anaeróbios e Pseudomonas aeruginosa.
Gram positivos: Staphylococcus, Streptococcus, Enterococcus.
Teicoplanina: não penetra bem no liquor nem Não tem ação contra Gram negativos e anaeróbios.
no tecido gorduroso. Nas endocardites por enterococo, recomenda-se associação de aminoglicosídeo visando
à ação sinérgica.
O mesmo da teicoplanina. O uso combinado com aminoglicosídeo ou rifampicina
Vancomicina: não atinge boa concentração no apresenta efeito sinérgico. Deve-se reservar a utilização para infecções por Gram
liquor de indivíduos sem meningite. positivos só sensíveis a essa droga ou pacientes alérgicos, pela possibilidade de
emergência de multirresistentes.

5. Resumo
Quadro-resumo
- As infecções cirúrgicas caracterizam-se por 3 elementos comuns: agente infeccioso, hospedeiro suscetível a espaço fechado ou não
perfundido;
- As infecções superficiais de ferida operatória são as mais frequentes e se manifestam até o 21º dia após a cirurgia. O tratamento básico
consiste em abrir a ferida e drenar a secreção;
- O uso de antibióticos deve ser baseado na flora do sítio contaminado e, sempre que possível, guiada por culturas.

32
CAPÍTULO

5
Pré-operatório
José Américo Bacchi Hora / Marcelo Simas de Lima / Eduardo Bertolli

tório médico para o serviço de internação do hospital com


Pontos essenciais todos os dados necessários e prescrição pré-operatória,
- Avaliação pré-operatória; bem como solicitações de reserva de hemocomponentes e
- Preparos especiais; vaga de UTI conforme necessários, além da avaliação pré-
- Suporte nutricional. -anestésica já realizada em nível ambulatorial, ou que deve
ser solicitada durante a internação.
1. Introdução B - Exames pré-operatórios
O propósito de qualquer cirurgia é oferecer uma qua-
Devem ser solicitados criteriosamente, de acordo com
lidade de vida melhor do que a da situação atual. É ne-
cessário preparar o doente para o ato operatório. Deve-se as condições clínicas do paciente e com o porte cirúrgico,
lembrar que a cirurgia determina situações que não são e não devem ser solicitados com o intuito de realizar diag-
isentas de riscos ou agravos à saúde do paciente e que to- nósticos (Tabela 1). Pacientes com menos de 40 anos, sem
das as medidas preventivas devem ser empregadas. Riscos comorbidades, em teoria não necessitam de nenhum exa-
de complicações existem para todos os atos cirúrgicos, que me pré-operatório.
se iniciam na indução anestésica, permanecem durante a Entre os pacientes sem comorbidades, exceto a que mo-
cirurgia e se prolongam no pós-operatório. Não se devem tivou a cirurgia, com menos de 50 anos, o hematócrito e a
esquecer, também, os riscos de infecção que dependem do hemoglobina (Hb/Ht) são suficientes. Entre 51 e 60 anos,
tipo de cirurgia a ser realizada (limpa, potencialmente con- solicitar também um eletrocardiograma (ECG), e adicionar
taminada, contaminada ou suja), da imunidade do paciente creatinina e glicemia àqueles com mais de 60 anos e raio x
e da microbiologia presente no hospital. Todos os cuidados de tórax quando a idade ultrapassa 75 anos.
no pré-operatório devem ser empregados para evitar o sur- Pacientes com doença sistêmica bem controlada devem
gimento de novas condições clínicas, inesperadas, aumen- ter os exames de acordo com a patologia de base: ECG e
tando os riscos cirúrgicos no intraoperatório e no período bioquímica em doenças cardiovasculares e glicemia em dia-
posterior à intervenção. Uma história minuciosa dos ante- béticos. Somente entre os pacientes com quadros descom-
cedentes do paciente e seus problemas crônicos facilitarão pensados está indicada a chamada “bateria de exames”. Em
as normas de rotina a serem empregadas. Todos esses ele- resumo, deve-se utilizar principalmente o bom senso na so-
mentos, em conjunto, determinam o risco operatório para licitação desses exames.
a cirurgia programada.
Tabela 1 - Exames pré-operatórios básicos
2. Pré-operatório Paciente
Exames pré-operatórios
necessários
A - Internação <40 anos, sem
Não necessitam desses exames
comorbidades
Cada paciente cirúrgico apresenta aspectos individuais <50 anos, sem
a serem abordados. Apesar de a proposta cirúrgica poder Hb/Ht
comorbidades
ser a mesma para vários pacientes, os cuidados pré e pós-
51 a 60 anos, sem
-operatórios devem ser individualizados conforme a pato- Hb/Ht, ECG
comorbidades
logia de base, o procedimento proposto e o indivíduo em
questão. No momento em que o paciente é admitido para 60 a 75 anos, sem
Hb/Ht, ECG, creatinina e glicemia
comorbidades
uma cirurgia, é prudente que o cirurgião forneça um rela-

33
CI RUR G I A G ERAL

Paciente
Exames pré-operatórios 3. Preparos especiais
necessários
Diversas cirurgias necessitarão de preparos especiais.
>75 anos, sem Hb/Ht, ECG, creatinina e glicemia,
comorbidades raio x de tórax Outras medidas serão comuns aos diversos tipos de proce-
dimentos eletivos.
Doença sistêmica bem Exames de acordo com a doença
controlada, independente (ex.: ECG em doentes hipertensos
da idade <50 anos) A - Dieta e medicações
Quadros O jejum deve ser de pelo menos 8 horas para diminuir o
descompensados, Exames gerais para avaliação global risco de broncoaspiração. Apesar de algumas evidências fa-
independente da idade voráveis ao consumo de líquidos claros até 2 horas antes do
procedimento, essa prática ainda não é considerada padrão
C - Avaliação anestésica pré-operatória na maioria dos serviços.
São avaliadas as comorbidades do paciente e como elas O cirurgião deve estar atento às medicações de uso ha-
podem influenciar o resultado do processo de anestesia e/ bitual do paciente no pré-operatório para orientar sua utili-
ou a cirurgia. Patologias descompensadas clinicamente de- zação correta nos momentos que antecedem a cirurgia.
vem ser corrigidas antes de qualquer procedimento cirúrgi- Os beta-bloqueadores, anti-hipertensivos, cardiotô-
co eletivo. A Sociedade Americana de Anestesiologia (ASA) nicos, broncodilatadores, anticonvulsivantes, corticoides,
criou a estratificação dos doentes conforme o seu status inibidores de bomba protônica, antialérgicos, potássio e
clínico pré-operatório e o risco anestésico. medicações psiquiátricas são medicações que devem ser
mantidas, quando em uso, até o dia da cirurgia. Os antico-
Tabela 2 - Classificação ASA: deve ser acrescentado o fator E em agulantes orais devem ser suspensos 2 dias antes da cirur-
cirurgias de emergência; nessas situações, considera-se o dobro gia e substituídos por heparina. Esta, por sua vez, deve ser
do risco cirúrgico suspensa no mínimo 6 horas antes da cirurgia e reiniciada
Mortalidade de 12 a 24 horas após o procedimento. Entre os antiagre-
ASA Definição
pela anestesia gantes plaquetários, o AAS deve ser suspenso de 7 a 10 dias
I Paciente com saúde normal 0,08% antes da cirurgia, e a ticlopidina deve ser descontinuada 2
Paciente com doença sistêmica branda, semanas antes.
II 0,27%
controlada Hipoglicemiantes orais devem ser substituídos por insu-
Paciente com doença sistêmica lina regular ou NPH na véspera do ato cirúrgico. Pacientes
III 1,8%
limitante, mas não incapacitante em uso de NPH podem receber metade da dose habitual
Paciente com doença sistêmica na manhã da cirurgia, seguida da infusão de soro glicosado
IV incapacitante que lhe constitui ameaça 7,8% a 5%, ou pode haver a substituição por insulina regular na
à vida véspera. Em ambos os casos, é necessário o controle com
Paciente moribundo, com sobrevida glicemia capilar. No 1º dia de pós-operatório, pode ser reto-
V estimada menor que 24 horas, com ou 9,4% mado o esquema habitual.
sem cirurgia
A prescrição de ansiolítico na véspera da cirurgia é reco-
VI Doador de órgãos e tecidos -- mendada para diminuir a ansiedade e evitar oscilações de
Diversas outras escalas de risco são empregadas na ava- PA e aumento da acidez gástrica.
liação pré-operatória. É importante investigar, nos antece-
dentes do paciente, casos de hipertermia maligna. A hiper-
B - Antibióticos, tricotomia e antissepsia
termia é uma condição fisiopatológica associada diretamen- A prática de banhos de clorexidina ou PVPI vem caindo
te à anestesia, que é rapidamente fatal se não tratada pron- em desuso, sendo que, atualmente, a maioria dos serviços
tamente. Os agentes precipitadores da hipertermia maligna realiza apenas o banho normal antes da cirurgia. Quanto à
são todos os agentes inalatórios e todos os relaxantes mus- tricotomia, a preferência atual é realizá-la no centro cirúrgi-
culares despolarizantes (succinilcolina e decamethonium). co, durante a indução anestésica e na menor área possível
Clinicamente, ocorrem hipermetabolismo, rigidez muscular, de acordo com a cirurgia.
lesões musculares teciduais e um aumento da resposta do O uso de antibióticos dependerá da classificação da ci-
sistema nervoso simpático. O hipermetabolismo é refletido rurgia em limpa, potencialmente contaminada, contamina-
pela elevada produção de dióxido de carbono que prece- da e infectada. Cirurgias limpas são procedimentos eletivos
de o aumento da temperatura corporal. As medidas iniciais em que não há penetração dos tratos aéreo, digestivo ou
consistem em suspender os anestésicos inalatórios, aplicar geniturinário, seguindo normas adequadas de assepsia e
ventilação rápida para eliminar essas drogas e administrar antissepsia. O risco de infecção cirúrgica gira em torno de 1
dantroleno IV, 1mg/kg. a 2%, e não é necessário o uso de antibióticos.

34
P R É - O P E R AT Ó R I O

Tabela 3 - Orientação para as medicações no pré-operatório estabelecida, portanto a administração do antibiótico pode
Medicação Orientação ser interrompida mais precocemente.
Beta-bloqueadores, anti- Cirurgias infectadas ou sujas são aquelas em que já exis-
hipertensivos, cardiotônicos, tem abscessos intracavitários, ou para tratamento de feri-
broncodilatadores, das traumáticas com contaminação. O índice de infecção é

CIRURGIA GERAL
Devem ser mantidas, quando
anticonvulsivantes, corticoides, maior que 50%, e o uso de antibióticos deve ser feito em
em uso, até o dia da cirurgia.
inibidores de bomba protônica, caráter terapêutico, com cobertura para largo espectro. São
antialérgicos, potássio e prudentes a coleta de material contaminado durante a ci-
medicações psiquiátricas. rurgia e o encaminhamento para cultura e antibiograma.
Devem ser suspensos 2 dias Mesmo com seleção do antimicrobiano de acordo com
Anticoagulantes orais antes da cirurgia e substituídos o resultado da cultura, é possível que a resposta clínica do
por heparina. paciente seja inadequada. Isso pode acontecer quando o
Deve ser suspensa no mínimo micro-organismo isolado na cultura não é o único respon-
6 horas antes da cirurgia e sável pelo processo infeccioso, em remoções mecânicas do
Heparina
reiniciada de 12 a 24 horas foco infeccioso malsucedidas, em superinfecção, ou quan-
após o procedimento. do a droga escolhida não atinge concentração tecidual ade-
Deve ser suspenso de 7 a 10 quada no local da infecção.
AAS
dias antes da cirurgia.

Ticlopidina
Deve ser descontinuada 2 C - Preparos especiais
semanas antes.
- Preparo de cólon: é desnecessário em cirurgias do
Cirurgias potencialmente contaminadas são aquelas intestino delgado. Nas cirurgias colônicas, objetiva a
em que houve penetração em vísceras colonizadas, porém remoção das fezes de sua luz e a redução da popula-
em condições controladas. As cirurgias limpas com uso de ção bacteriana. Pode ser feito por meio do preparo
próteses sintéticas, como telas, também são consideradas mecânico anterógrado com manitol associado ou não
potencialmente contaminadas. a agentes antimicrobianos de acordo com o protocolo
do serviço. Algumas escolas preferem o método re-
Tabela 4 - Flora endógena esperada por topografia corporal trógrado com enteroclismas, que deve ser usado nos
Topografia Microbiota esperada.
casos de obstrução intestinal. O ideal é internar o pa-
ciente na véspera da cirurgia, pela manhã, para iniciar
Boca e Staphylococcus, Streptococcus, espiroquetas,
o preparo em tempo hábil; avaliar periodicamente
dentes actinomiceto, Bacteroides, Fusobacterium, fungos.
quanto à hidratação, vômitos, distensão abdominal e
Streptococcus, Haemophilus influenzae, eficácia do preparo; alterar a prescrição de acordo com
Seios
actinomiceto, Bacteroides, Fusobacterium,
paranasais a observação clínica; ao término do preparo, solicitar
Propionibacterium.
Na+, K+ e Hb/Ht para controle; repor eletrólitos, se ne-
Staphylococcus, Streptococcus, Haemophilus, cessário; e hidratar bem após o procedimento;
Garganta Corynebacterium, Neisseria, Fusobacterium,
Bacteroides, Candida.
- Doente ictérico: além da hidratação, deve-se realizar
a descompressão das vias biliares, correção de distúr-
Flora Staphylococcus, Streptococcus, Corynebacterium,
bios hepáticos e antibioticoprofilaxia adequada;
cutânea Propionibacterium, Micrococci, fungos.
Intestino
- Estenose pilórica: deve-se realizar aspiração gástrica
Enterobactérias, Enterococcus, fungos. com Fouchet ou sonda nasogástrica calibrosa antes da
delgado
cirurgia. Os pacientes frequentemente apresentarão
Intestino Enterobactérias, Enterococcus, fungos,
algum grau de desnutrição e distúrbios eletrolíticos
grosso actinomiceto, Bacteroides, Clostridium.
que deverão ser corrigidos no pré-operatório;
Flora Lactobacilos, Streptococcus, Corynebacterium,
vaginal Mycoplasma, peptococo, actinomiceto, fungos.
- Feocromocitoma: além da hidratação vigorosa na
véspera, devem ser realizadas medidas para prevenir
Staphylococcus, Streptococcus, Corynebacterium,
Períneo e a descarga adrenérgica, como bloqueadores alfa-adre-
Propionibacterium, fungos, Mycoplasma,
uretra nérgicos durante 2 ou 3 semanas antes da cirurgia;
actinomiceto, Bacteroides, Clostridium.
- Síndrome de Cushing: deve-se bloquear a produção
Cirurgias contaminadas são aquelas nas quais se en- de cortisol semanas antes do procedimento. O ceto-
contra inflamação não purulenta já instalada ou nas quais conazol, além de antimicótico, bloqueia o citocromo
houve extravasamento evidente do conteúdo luminar dos p450, impedindo a fase inicial da síntese dos corticos-
tratos explorados, ou ainda, falha da técnica asséptica. O teroides;
risco de infecção varia de 10 a 20%, e preconiza-se a aplica- - Síndrome de Addison: preconiza-se administrar uma
ção preemptiva de antibióticos. O diferencial para a aplica- dose alta de corticoide na véspera (ex.: 50mg de corti-
ção terapêutica reside no fato de ainda não haver infecção sona) e realizar o descalonamento no pós-operatório;

35
CI RUR G I A G ERAL

- Hipertireoidismo: o paciente deve ser operado em eu- O tratamento consiste em interrupção da transfusão, cor-
tireoidismo. Até a véspera da cirurgia, administram-se reção da hipotensão e estímulo à diurese com manitol ou
propiltiouracil (PTU), de 200 a 800mg/dia, ou metima- furosemida.
zol, de 5 a 50mg/dia. Em pacientes taquicárdicos ou in- Apesar de um rígido controle do sangue doado, existe
tolerantes, é possível administrar beta-bloqueadores. o risco de doenças infecciosas por contaminação bacteria-
O lugol vem caindo em desuso. na do sangue ou pela transmissão de doenças virais (vírus
Epstein-Barr, CMV, vírus hepatotróficos, HTLV I e II, parvo-
4. Reserva de sangue e hemoderivados vírus B19, herpes-vírus 8 e HIV), bacterianas e protozoárias
(sífilis, malária e doença de Chagas).
Deve ser solicitado conforme o porte cirúrgico e as co- Outra complicação clínica importante é a lesão pulmo-
morbidades do paciente (Tabela 5). nar pós-transfusional, que se manifesta por dispneia, hipo-
tensão, hipoxemia, febre e edema pulmonar não cardiogê-
Tabela 5 - Unidades transfusionais e indicações nico bilateral 4 horas após a transfusão. O tratamento é o
- Indicado às anemias crônicas ou aos casos suporte hemodinâmico e respiratório.
agudos com repercussões clínicas; A complicação mais grave do uso de hemoderivados é
- Hb <8g/dL em paciente saudável ou com a reação enxerto contra hospedeiro, que ocorre quando
Concentrado de perda aguda;
hemácias linfócitos imunologicamente competentes são introduzidos
- Hb <10g/dL em coronariopatas ou em pacientes imunocompetentes, atacando os tecidos do
insuficiência pulmonar; receptor, principalmente a medula óssea. A mortalidade é
- Anemia sintomática. descrita em 90% dos casos.
- Indicado a hemorragias decorrentes da
Plasma fresco
deficiência de fatores de coagulação
(hepatopatias, CIVD);
5. Dieta e suporte nutricional
congelado Todos os pacientes que não vêm se alimentando ade-
- Reversão urgente de terapia com
anticoagulante oral. quadamente devem receber apoio nutricional direcionado
- Indicado a casos de hemofilia A (fator VIII), para as suas necessidades e carências. A má nutrição au-
Crioprecipitado deficiência congênita de fibrinogênio e menta o risco de mortalidade operatória, e pode ser empre-
doença de von Willebrand (fator XIII). gada nutrição enteral ou parenteral.
- Indicado a hemorragias por plaquetopenia Discussões sobre a necessidade de suporte nutricional
(<20.000plt/m3 ou <50.000plt/m3 em no pré-operatório para idosos ou debilitados também não
doentes que sofrerão procedimentos são claras, e a avaliação subjetiva global é a maior triagem
Concentrado de invasivos); desses indivíduos. São para esses pacientes “limítrofes” no
plaquetas - Disfunção plaquetária (trombocitopatias); seu estado nutricional que se pode aplicar a regra geral: se
- Transfusões profiláticas em doentes com o grau de perda de peso, nível de albumina sérica ou con-
<10.000plt/m3 em quimioterapia, hipoplasia tagem geral de linfócitos sugerirem má nutrição, o apoio
medular ou infiltração tumoral. nutricional deverá ser estabelecido por um período de 5 a
- Indicado a pacientes com hipoplasia 10 dias no pré-operatório.
medular, neutropenia, febre ou infecção Assim, pode-se definir que elementos como o peso cor-
Concentrado de refratária a 48 horas de antibióticos;
poral prévio e atual, os níveis de albumina sérica, contagem
granulócitos
- O uso deve ser mantido por, pelo menos, 1 de linfócitos, creatinina urinária, testes cutâneos de hiper-
semana. sensibilidade e a transferrina são marcadores laboratoriais
da nutrição.
Uma unidade de sangue total eleva a hemoglobina em O apoio nutricional está indicado para pacientes que te-
cerca de 1g/dL e o hematócrito em 3%, e cada unidade deve nham confirmada uma perda de peso involuntária de 10%
ser infundida num tempo inferior a 4 horas. Cada unidade num período de 6 meses, 7% em 3 meses ou 5% em 1 mês.
de concentrado de plaquetas eleva a contagem em cerca de Como a massa muscular é consumida juntamente com os
5.000 a 10.000 células/mm3, sendo a dose usual 1 concen- depósitos de gordura durante a desnutrição, o grau de per-
trado para cada 10kg de peso corporal. da de peso é significativo em obesos e magros.
- Efeitos adversos do uso de sangue e hemoderivados
As reações transfusionais hemolíticas normalmente A - Marcadores de desnutrição
são causadas por incompatibilidade do sistema ABO e A albumina, a transferrina sérica e a contagem de linfó-
manifestam-se por dor e vermelhidão ao longo da veia in- citos totais são os parâmetros laboratoriais mais utilizados
fundida, dor e opressão torácica, febre, calafrios, oligúria, para a avaliação do estado nutricional (Tabelas 6 e 7).
hemoglobinemia e hemoglobinúria. Choque e hipotensão
podem levar a óbito se não forem rapidamente tratados. Tabela 6 - Testes laboratoriais de avaliação do estado nutricional

36
P R É - O P E R AT Ó R I O

Exame Causa/significado de valores anormais A perda urinária de creatinina é proporcional à massa


- Possui vida média de 19 a 20 dias, portanto
muscular. Níveis anormalmente baixos de creatinina uri-
é insensível a mudanças agudas no estado nária também indicam má nutrição. A excreção urinária
nutricional; normal de creatinina em 24 horas pode ser determinada
utilizando tabelas específicas em que se calculam o peso, a

CIRURGIA GERAL
- Reflete o estado nutricional por meio das reservas
proteicas viscerais, refletindo melhor a depleção altura e o valor correspondente de normalidade. Se as taxas
proteica crônica do que a aguda; são 90% do normal, significa má nutrição leve; 80% do nor-
- Responsável pela manutenção da pressão mal, má nutrição moderada; e 70% do normal, má nutrição
oncótica; severa.
- Transportadora de Ca, Zn, Mg, ácidos graxos e Há o interesse em uma nova ferramenta capaz de acom-
outros; panhar a evolução de pacientes críticos, com características
- Ocorre aumento na desidratação, no uso de adequadas de sensibilidade e especificidade, de utilização
Albumina esteroides anabólicos, no uso de insulina e na rápida, à beira do leito, bem como de baixo custo operacio-
infusão exógena de albumina; nal. A bioimpedância (BIA) tem sido utilizada para avaliar
- Ocorre diminuição em edema, doença hepática, modificações dos conteúdos de água e dos compartimentos
má absorção, diarreia, queimadura, eclâmpsia, IRC, intra e extracelulares.
desnutrição, estresse, hiper-hidratação, câncer,
gestação, envelhecimento, perdas sanguíneas, B - Apoio nutricional
perdas através de drenos, feridas (queimaduras),
síndrome nefrótica, insuficiência cardíaca A escolha da maneira ideal de fornecer apoio nutricio-
congestiva, remoção das glândulas tireoide/ nal depende de alguns fatores. A forma preferencial deve
suprarrenal/pituitária; compreender a orientação dietética adequada e o suporte
- Quando abaixo de 3g/dL, ocorre redução da via oral. Entretanto, em muitas situações, isso não é pos-
ligação de drogas ácidas, determinando aumento sível.
do nível de droga livre. A via enteral deve ser sempre preferencial. Pode ser re-
- Proteína carreadora do ferro; alizada em domicílio, o que evita internações prolongadas e
- Vida média de 8 a 10 dias, portanto mais sensível do
diminui o risco de infecções hospitalares. A Nutrição Paren-
que a albumina na avaliação nutricional; teral Total (NPT) deve ser utilizada em situações precisas e
iniciar-se pelo menos 10 dias antes da cirurgia. Também se
- Elevada em reservas inadequadas de ferro,
desidratação, anemia por deficiência de ferro, preconiza que os pacientes continuem o uso da NPT no pós-
hepatite aguda, policitemia, gestação, hipóxia, -operatório, para evitar efeitos colaterais metabólicos. Não
Transferrina perda sanguínea crônica, uso de estrogênios; se deve associar a dieta enteral à parenteral.
- Diminuída em anemia perniciosa e falciforme,
infecção, retenção hídrica, câncer, doença 6. Resumo
hepática, desnutrição, síndrome nefrótica,
talassemia, sobrecarga de ferro, enteropatias, Quadro-resumo
queimaduras, uso de cortisona e uso de - Os cuidados pré-operatórios devem ser individualizados. A
testosterona. visita pré-anestésica serve para avaliar, entre outras coisas, a
- Linfocitose em hepatite viral, infecção por possibilidade de complicações e formas de evitá-las;
citomegalovírus, toxoplasmose, rubéola, infecção - Exames pré-operatórios não devem ser solicitados “em bateria”
aguda por HIV, leucemia linfocítica crônica e com intuito de diagnosticar condições desconhecidas;
aguda;
- O manejo de medicações de uso habitual, principalmente
Linfócitos - Linfocitopenia em infecções e enfermidades agudas, anticoagulantes e hipoglicemiantes, deve fazer parte das
deficiência no sistema imunológico, depleção de orientações pré-operatórias;
proteínas viscerais (não muito preciso), doença
de Hodgkin, lúpus, anemia aplástica, insuficiência - Preparos especiais e reserva de hemocomponentes, de
renal, AIDS, carcinoma terminal. acordo com as condições do paciente e o porte cirúrgico,
devem ser programados com antecedência;
Tabela 7 - Classificação laboratorial do estado nutricional - Cirurgias limpas não necessitam de antibiótico. Cirurgias limpas
com prótese ou potencialmente contaminadas requerem
Dado Valores de Grau de desnutrição
antibiótico profilático, e cirurgias contaminadas, antibiótico
laboratorial referência Leve Moderada Severa terapêutico;
Albumina (g/dL) >3,5 3 a 3,5 2,1 a 3 <2,1 - Sempre que possível, devem-se colher culturas para orientar o
Transferrina uso do antibiótico;
180 a 400 150 a 180 100 a 150 <100
(mg/dL) - Pacientes com algum grau de desnutrição necessitam de
Linfócitos 1.200 a 800 a avaliação e suporte nutricional pré-operatório;
1.500 a 5.000 <800
(mm3) 1.500 1.200 - O ideal é iniciá-lo ao menos 15 dias antes da cirurgia.

37
SUPORTE VENTILATÓRIO NÃO CIRÚRGICO

CAPÍTULO

6
Choque em cirurgia
José Américo Bacchi Hora / Marcelo Simas de Lima / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais - VDF = Volume Diastólico Final;


- FE = Fração de Ejeção;
- Conceito de choque; - RVS = Resistência Vascular Sistêmica;
- Tipos de choque; - SaO2 = Saturação arterial do Oxigênio;
- Monitorização dos dados hemodinâmicos;
- PAM = Pressão Arterial Média;
- Otimização da oferta de oxigênio aos tecidos;
- Hb = Hemoglobina;
- Alterações fisiológicas no choque;
- FC = Frequência Cardíaca.
- Tratamento do choque hemorrágico.
Se o desequilíbrio orgânico for grave, a pressão san-
1. Introdução guínea e o DC serão insuficientes para manter a perfusão
periférica, e o choque pode comprometer outros órgãos
O equilíbrio fisiológico do organismo é denominado
(choque descompensado – Figura 1). Se o estado de de-
homeostase, para a qual é necessário existir liberação de
sequilíbrio não for grave, haverá manutenção da perfusão
energia, ou seja, combustíveis e oxigênio para as células.
tecidual periférica à custa de alto DC para manter a ho-
O choque é uma circunstância na qual a homeostase é
meostase abalada (choque compensado). O choque com-
rompida. O denominador comum universal no estado de
pensado acontece com hemorragias de menos de 20% da
choque é a liberação deficiente de oxigênio para a mitocôn-
volemia. Enquanto a perfusão é subótima, os mecanismos
dria das células, com aumento do metabolismo anaeróbio
e de ácido lático. Como consequência, o metabolismo aeró- fisiológicos agem para ajustar a RVS e manter a pressão ar-
bico não pode ser mantido na taxa necessária para manter terial sistêmica média em torno de 70mmHg. No choque
a função celular. A célula não pode se recuperar da inter- compensado, as perfusões do cérebro e do coração perma-
rupção do metabolismo aeróbico. Conforme as células mor- necem próximas do normal, enquanto outros sistemas de
rem, advém a insuficiência do órgão. Quando há a falência órgãos menos críticos são, em proporção ao déficit de volu-
do sistema cardiovascular, num momento de desequilíbrio me, hipoperfundidos.
orgânico grave e mantido, tem-se o choque.
Uma ampla variedade de mecanismos pode provocar
o choque como depleção do volume vascular, compressão
do coração e dos grandes vasos, falha primária da bomba
miocárdica, perda do controle autonômico do sistema vas-
cular, inflamação sistêmica sem controle e controle parcial
de uma resposta inflamatória sistêmica grave. O objetivo da
reanimação no choque é restaurar a oferta de oxigênio à
mitocôndria.

Tabela 1 - Siglas mais frequentes


- DO2 = Oferta do oxigênio aos tecidos (Delivery de Oxigênio);
- VO2 = Consumo de oxigênio;
- DC = Débito Cardíaco; Figura 1 - Choque: fisiopatologia, diagnóstico e tratamento. (A)
- VS = Volume Sistólico; Representa um estado de choque em que o VO2 é dependente do
DO2. É um estado de dependência de suplemento de O2; (B) é um
- CaO2 = Conteúdo arterial de O2; ponto de saturação, a partir do qual o aumento de DO2 não au-
38
CHOQUE EM CIRURGIA

menta o consumo (VO2). O aumento de DO2, além desse ponto, de degradação moleculares incompletos, determinando
não trará benefício e pode mesmo ser danoso (C), pois o doente só uma resposta inflamatória bioquímica com elementos de-
poderá usar O2 extra com medidas terapêuticas que podem causar letérios para todo o sistema (efeitos potencializadores do
arritmias e aumento do consumo miocárdico de O2. O objetivo do desequilíbrio circulatório tecidual).
tratamento do choque é reverter o estado de dependência de O2

CIRURGIA GERAL
(A); (C) representa o aumento do VO2 que ocorre na sepse ou nas
queimaduras e reflete a extração máxima de O2. Alguns pacientes 2. Manipulação racional da oferta de oxi-
perdem a capacidade de extrair O2 por microtromboses ou shunts
microvasculares
gênio aos tecidos
A otimização da oferta de oxigênio representa o principal
Os pacientes que desenvolvem choque não compensa- tratamento das condições de choque e outras condições as-
do tornam-se hipotensos porque o déficit de volume intra- sociadas, como SIRS (síndrome da resposta inflamatória sis-
vascular excede a capacidade dos mecanismos vasocons- têmica), DMOS (Disfunção de Múltiplos Órgãos e Sistemas) e
tritores compensatórios. Esses indivíduos estão em risco SDRA (Síndrome do Desconforto Respiratório Adulto).
de morte em razão do aporte deficiente de oxigênio para
órgãos vitais e da produção reduzida de energia aeróbica Tabela 3 - Monitorização dos dados hemodinâmicos
mitocondrial. Além disso, precisam ter a perfusão celular - DO2 = DC x CaO2;
restaurada antes que ocorra lesão irreversível das vias bio-
- VS = VDF x FE;
químicas celulares.
O choque hipovolêmico (causado por circulação inade- - DC = VS x FC ou DC = FC x VDF x FE;
quada de volume de sangue) é decorrente, na maior par- - CaO = (Hb x SaO x 1,34*) + (PaO x 0,0031)** x 10;
2 2 2

te, dos estados hemorrágicos, mas pode ser também con- - DO2 = FC x VS x [(Hb x SaO2 x 1,34) + (PaO2 x 0,0031)] x 10.
sequência de vômitos incoercíveis, diarreias, sequestros * 1,34: é a quantidade de O2 carreado por grama de Hb.
de fluidos intestinais (por exemplo, obstrução intestinal) ** PaO2 x 0,0031: o soro é representado, basicamente, por H2O,
ou perda de plasma em tecidos lesados por queimaduras. que é um solvente pobre em O2, logo contribui pouco para o
Para ter uma ideia da grande perda de proteínas nas le- CaO2.
sões por queimaduras, os capilares normais não permitem
a passagem de albumina (PM = 60.000). A vasodilatação
decorrente da lesão tecidual pela queimadura forma ver-
dadeiros buracos capilares, que possibilitam a passagem
de moléculas com PM acima de 250.000. A fuga de proteí-
nas, água e eletrólitos tanto para o interstício quanto para
o meio externo traz, como consequências, desidratação,
choque hipovolêmico e insuficiência renal.
Nos estados de hipovolemia, ocorre redução do volume
intravascular e do enchimento ventricular no final de cada
diástole (VDF). O volume ejetado (Volume Sistólico = VS)
determina um DC inadequado. Figura 2 - Oferta de oxigênio aos tecidos: o IC (Índice Cardíaco) é
calculado com a divisão do débito cardíaco pela SAC (Superfície de
Tabela 2 - Fatores determinantes do débito cardíaco Área Corpórea); para avaliação de valores hemodinâmicos, deve-
-se considerar a SAC do indivíduo para obter valores mais precisos
DC = VS x FC
Em que DC = Débito Cardíaco; VS = Volume Sistólico; e FC = O CaO2 depende, basicamente, do que é carregado pe-
Frequência Cardíaca las hemácias, ou seja, da Hb e da SaO2. Considerando todos
Quando mediadores inflamatórios passam a atuar cau- esses elementos, a depender do tipo de choque, tenta-se
sando prejuízo para a função do sistema cardiovascular, otimizar a oferta de O2 aos tecidos.
tem-se uma condição denominada de choque inflamatório.
Em situações de trauma, por exemplo, além das repercus- A - Reposição de sangue (hemoglobina)
sões da hipovolemia podem ser observados distúrbios da O aumento da Hb eleva, até um limite fisiológico, a
circulação pela ação dos mediadores inflamatórios (por capacidade do sangue de carrear O2. Por sua capacidade
exemplo, citocinas, bradicininas, ácido araquidônico etc.). coloidosmótica, aumenta a pré-carga sem causar perda
A ação dos mediadores inflamatórios causa danos à mi- de líquido para o 3º espaço e aumenta a oferta do O2 ao
crocirculação por lesão endotelial, vasodilatação da micro- miocárdio, potencializando a contratilidade cardíaca. Em
vasculatura e depressão do miocárdio. O déficit de oxigênio contrapartida, leva a maior risco de doenças transfusionais,
celular determina um metabolismo anaeróbico, com menor maior custo, limitação do estoque de sangue, reações trans-
rendimento na produção de energia e maior produção de fusionais e risco de distúrbios da membrana alveolocapilar
resíduos, representados por elementos ácidos e produtos pulmonar (SDRA).

39
CI RUR G I A G ERAL

Surge a necessidade de indicar Hb ótima, que normal- A avaliação adequada da pré-carga pode ser uma tarefa
mente é de 10g/dL. Abaixo desse valor, a extração máxima difícil (Figura 2). Uma pré-carga adequada para o coração,
de oxigênio no miocárdio atinge um nível próximo do máxi- o encéfalo ou os pulmões pode não ser adequada para a
mo, deixando o paciente com pouca reserva nas situações perfusão dos rins ou do trato gastrintestinal, sobretudo
em que há aumento do consumo de O2 (VO2). Como respos- quando há liberação de hormônios e substâncias vasocons-
ta, há aumento de FC para otimizar o DO2. tritoras, como vasopressina e norepinefrina, na circulação
A transfusão pode beneficiar o paciente quando Hb chega sistêmica. As medidas clínicas não são sensíveis e tornam-
a 13g/dL (HT 40%). O aumento do HT acima desse valor leva -se evidentes apenas em situações de sobrecarga (estase
ao aumento da viscosidade, com elevação da pós-carga e dimi- jugular e estertoração por congestão pulmonar).
nuição do DC. Sugere-se que o HT ótimo esteja entre 30 e 40%. A pressão venosa central é igual à pressão no átrio di-
reito e pode ser equivalente à pressão do ventrículo direito
B - Saturação arterial de O2 ao final da diástole, em valor normal de 1 a 6mmHg (para
converter em cmH2O, basta multiplicar por 1,36). De acordo
A saturação representa como a Hb é preenchida pelo
com a lei dos vasos comunicantes, a medida por meio de
O2. A SaO2 pode ser aumentada pela FiO2 (Fração inspirada
um cateter locado na veia cava superior ou átrio direito é
de O2) ou pelo PEEP (pressão expiratória positiva ao final
equivalente à pressão no ventrículo direito ao final da di-
da expiração). FiO2 100% é tóxica para os alvéolos. Com 24
ástole. O ponto zero da pressão venosa em um indivíduo
horas de FiO2 >50%, já se observa lesão alveolar, e mesmo
deitado é obtido ao localizar a régua no tórax, onde o 4º
com FiO2 de 40%, em 72 horas, as lesões também são obser-
espaço intercostal cruza a linha axilar média, é o ponto fle-
vadas. A lesão alveolar difusa causada pela toxicidade do O2
bostático e corresponde à posição dos átrios no paciente
origina, a posteriori, déficit da oxigenação por prejuízo das
em posição supina.
trocas alveolares.
Pressões extravasculares, como a pressão intratorácica
Outro problema relacionado com a toxicidade do O2 é
ou mesmo a pressão intra-abdominal, afetam a pressão in-
que o nitrogênio se torna mais difusível quando os alvéo-
travascular. Por isso, pacientes em assistência ventilatória
los se enchem. Quando o O2 entra na circulação pela baixa
mecânica com uso do PEEP terão valores discrepantes do
concentração de nitrogênio, ocorre atelectasia (colapso al-
valor real.
veolar), causando um desrecrutamento, a despeito da PEEP,
A Pressão de Oclusão da Artéria Pulmonar (POAP) pode
o que aumenta o shunt intrapulmonar, piorando a relação
também ser imprecisa em pacientes críticos. Conhecida
ventilação-perfusão. A melhor forma de recrutar alvéolos é
como Pressão Capilar Pulmonar (PCP), é indicador da pré-
usar PEEP, pois há aumento da capacidade residual funcio-
-carga, pois, quando um cateter oclui um ramo da artéria
nal. Apesar disso, a PEEP acima de 12mmHg pode causar
pulmonar, uma coluna estática de sangue é criada entre o
diminuição do DC.
transdutor de força do cateter e o átrio esquerdo (normal
de 6 a 12mmHg). Mais uma vez, o uso do PEEP e alterações
C - Débito cardíaco e frequência cardíaca
da complacência pulmonar ou da complacência das câmaras
Não se deve aumentar a FC para aumentar o DC. Além cardíacas podem alterar a relação entre a PCP e a pré-carga.
de elevar o consumo miocárdico de O2, o aumento da FC Atualmente, cateteres de artéria pulmonar vêm com
também compromete o enchimento ventricular, sendo uma recursos capazes de medir o VDF do ventrículo direito.
medida ineficiente do ponto de vista metabólico. O aumen- Quando houver situações de insuficiência ventricular direi-
to do consumo miocárdico de O2 pode causar isquemia e ta ou doenças valvares, o ecocardiograma poderá avaliar
arritmias, o que também reduz o DC. Além disso, a taqui- a pré-carga de maneira mais adequada. Valores de Índice
cardia é um indicador de descompensação hemodinâmica de Volume Diastólico Final do Ventrículo Direito (IVDFVD),
e pode estar associada à hipóxia, à arritmia, à ansiedade e em torno de 120 a 130mL/m2, costumam se relacionar com
à dor, logo não deve ser usada como recurso terapêutico. pré-carga adequada para a maioria dos pacientes. Em jo-
vens, vítimas de trauma, valores tão altos quanto 200mL/
D - Volume diastólico final ou pré-carga m2 podem ser obtidos pela reposição volêmica com o au-
Seu aumento causa elevação do DC quando há FC e FE mento do IC.
constante, uma vez que causa estiramento das fibras cardí-
acas, resultando numa contração muscular com maior força
E - Pressão arterial média
(lei de Frank-Starling). O aumento da contratilidade miocár- Trata-se de uma medida importante, pois é o gradiente
dica em virtude da pré-carga pode ser explicado pela lei de criado por esta que leva o sangue pelos vasos, não a pres-
Laplace quando P = 2xT/R, sendo P = pressão ventricular; R são arterial sistólica ou diastólica isoladamente. Valores
= o raio do ventrículo, que é proporcional ao VDF; T = ten- normais da PAM estão entre 70 e 80mmHg. Sua medida é
são do miocárdio. Para que a pressão seja constante com o clinicamente útil, pois valores de PAS e PAD variam abrup-
aumento do raio, o miocárdio deve gerar maior tensão na tamente, a depender do local do corpo em que é medida, o
sua parede. que não acontece com a PAM.

40
CHOQUE EM CIRURGIA

PAM = PAS + 2 x PAD E - Alterações mentais


3 Pessoas com choque descompensado grave habitual-
mente apresentam alterações mentais, variando de an-
Valores adequados de PA não garantem perfusão ade- siedade a agitação e podendo evoluir para o torpor. Esses
quada. Sua queda é uma manifestação tardia do choque.

CIRURGIA GERAL
achados não são sensíveis, entretanto são específicos. O
Um dos erros mais importantes durante o tratamento do corpo protege o cérebro a todo custo; se o suprimento
choque é acreditar que a restauração da PA a determina- sanguíneo do SNC está inadequado, distúrbios do sensório
do valor, em vez de garantir oferta adequada de oxigênio acontecem, induzindo à instalação de delirium. Em trauma-
aos tecidos, avaliada por outros meios, é uma conduta su- tizados, os distúrbios do sensório devem ser interpretados
ficiente. Toda vez que a PAM for <70mmHg, estará indicada como hipoperfusão tecidual, e outras causas, como into-
a monitorização por meios invasivos, com punção arterial. xicação por álcool ou drogas ilícitas, devem ser lembradas
após afastar choque/hipóxia.
3. Marcadores clínicos do estado de choque F - Oligúria
Em muitos casos de choque compensado e em todos os
A - Hipotensão casos de choque não compensado, cai o débito urinário. A
A pressão baixa é um sinal específico, mas pouco sen- oligúria é o mais sensível e específico dos sinais de choque,
sível, de choque. PAS <90mmHg quase sempre indica uma e a diurese é o parâmetro mais adequado para avaliação da
forma de choque. A hipotensão postural também pode ser reposição volêmica.
avaliada e é definida como a queda de mais de 10mmHg
na PAS por um período maior que 30 segundos em um pa- G - Isquemia miocárdica
ciente que se levanta da posição supina. Em hipertensos, Um eletrocardiograma (ECG) em qualquer paciente com
pressão sistólica de 120mmHg pode representar estado de suspeita de choque pode mostrar sinais de isquemia, que
choque. Dessa forma, em algumas situações, a hipotensão pode ser causada por um problema cardíaco primário ou
postural pode ter utilidade clínica. secundário (por exemplo, hipotensão por hemorragia).
Deve ser prontamente tratada a causa de base.
B - Pressão diferencial (pressão de pulso)
H - Acidose metabólica
Acontece um aumento de reflexo da PAD pela vasocons-
trição periférica associada aos choques hipovolêmico e car- Acidose metabólica como sinal de choque pode mani-
diogênico, com estreitamento da pressão diferencial (PAS- festar-se com aumento da frequência respiratória e redu-
-PAD). Essa manifestação clínica ocorre mais precocemente ção do BE e do bicarbonato, tanto nos estágios precoces do
do que a hipotensão arterial propriamente dita, podendo choque quanto nos avançados. Entretanto, alguns pacien-
tes podem estar em choque sem mostrar manifestações de
ser utilizada. Valores <20mmHg indicam choque. Pacientes
acidose metabólica. Se o fluxo sanguíneo for suficientemen-
em choque hiperdinâmico têm vasodilatação, portanto,
te reduzido, os produtos do metabolismo anaeróbico fica-
nesses casos, este marcador não é válido.
rão na periferia e não cairão na circulação sistêmica até que
se inicie algum grau de reanimação.
C - Taquicardia/bradicardia e taquipneia
A taquicardia talvez seja a manifestação clínica mais 4. Classificação do choque
evidente de choque. Entretanto, pode não estar presente
em algumas situações, como entre indivíduos que utilizam Tabela 4 - Graus do choque hemorrágico
beta-bloqueadores, indivíduos com excelente reserva fisio- Classe I Classe II Classe III Classe IV
lógica (por exemplo, atletas) ou outros com resposta adre- Perda
15% 15 a 30% 30 a 40% >40%
nérgica insuficiente (pacientes idosos). Entre as grávidas, volêmica (%)
observa-se aumento fisiológico da FC, o que pode causar Frequência
<100 >100 >120 >140
confusão na interpretação dos dados. cardíaca (bpm)
A taquipneia é uma forma de compensar a acidose me- PA (mmHg) Normal Normal Diminuída Diminuída
tabólica tipicamente observada no estado de choque. Pressão de Normal
Diminuída Diminuída Diminuída
pulso ou ↑
D - Hipoperfusão cutânea Frequência
A hipoperfusão cutânea, um dos primeiros sinais de respiratória 14 a 20 20 a 30 30 a 40 >35
(irpm)
choque, acontece em razão de uma descarga adrenérgi-
ca, pela liberação de vasopressina (potente vasoconstritor Débito urinário
>30 20 a 30 <5 Anúria
cutâneo) e angiotensina II. A pele é o maior órgão do corpo, (mL/h)
e essa é uma forma de tentar compensar a redução do DC. Ansiedade
Sensório Ansiedade Confusão Letargia
leve
A pele fica pálida, fria e pegajosa.

41
CI RUR G I A G ERAL

É uma classificação útil para informação didática sobre Hipovo- Cardio- Neuro-
a gravidade, porém os pacientes podem responder clini- Séptico
lêmico gênico gênico
camente de forma diferente e de acordo com seu status Cor da
fisiológico prévio. Tem por base as manifestações clínicas Pálida Rosada Pálida Rosada
pele
habituais de um homem hígido de 70kg e poderá ajudar Tempera-
na orientação terapêutica. Entretanto, o melhor parâmetro tura Fria Quente Fria Quente
para guiar as decisões do tratamento será a resposta indivi- da pele
dual do paciente à reposição de volume. FC Aumentada Aumentada Aumentada Aumentada
Pacientes em choque classe I que perderam o equiva- Sensório Ansiedade Ansiedade Ansiedade Ansiedade
lente a uma bolsa de sangue normalmente não apresentam Diurese Diminuída Diminuída Diminuída Diminuída
sinais de descompensação hemodinâmica e costumam res-
ponder adequadamente à reposição de cristaloides. Pacien-
tes em choque classe II demonstram sinais clássicos de cho- 5. Identificação e tratamento de condi-
que sem hipotensão e habitualmente respondem à infusão ções de risco de morte
de cristaloides. Pacientes da classe III já se apresentam hi-
Se o paciente mostra sinais de possível choque, o próximo
potensos, usualmente necessitam de hemoderivados, e o
passo é procurar e tratar possíveis causas que lhe poderiam
tratamento operatório deve ter prioridade. Pacientes em
trazer risco de morte. Entre elas, estão arritmias, ventilação
choque classe IV morrem em minutos caso não se obte-
inadequada, tamponamento cardíaco, sangramento etc.
nha controle adequado do sangramento precocemente, e a
evolução para transtornos graves, como acidose metabólica A - Arritmias
grave, hipotermia e coagulopatia é comum em caso de so-
brevivência. A reposição maciça de volume e hemoderiva- Uma vez em choque, qualquer paciente pode apresen-
dos será necessária. tar arritmias. Hipovolemia induz a atividade elétrica sem
Pacientes em choque classe I pararam de sangrar ou pulso antes de evoluir para assistolia. Em agônicos com
apresentam sangramento persistente de baixo débito capaz fibrilação ventricular ou taquicardia ventricular, a cardio-
de comprometer a perfusão tecidual sem causar manifesta- versão pode ser utilizada com sucesso; em doentes com
ções clínicas evidentes; é o estado de choque compensado. assistolia, entretanto, a possibilidade de reanimação é re-
mota. Os não agônicos devem ser tratados de acordo com
Pacientes nas classes II e III estão em estado de choque não
as normas do ACLS.
compensado, e o seu diagnóstico costuma ser o mais claro.
Em trauma, a principal arritmia é a taquicardia sinusal, e
Pacientes em choque classe IV estão em choque profundo
a sua presença deve sempre indicar choque hipovolêmico.
(em inglês, extremis) ou exsanguinação – essa é a forma
Raramente, o trauma cardíaco contuso será outra causa de
mais extrema de choque, com graves repercussões fisioló-
taquicardia sinusal, e o seu diagnóstico deve ser lembrado
gicas, como já citado.
quando se afasta por completo a hemorragia no traumatiza-
As manifestações hemodinâmicas e as manifestações do. Em pacientes com trauma cardíaco contuso, outras ar-
clínicas podem ajudar não apenas na identificação da gra- ritmias também podem levar a baixo DC, causando choque.
vidade, mas também na causa, orientando para o possível Nas situações de tamponamento pericárdico, observa-se a
mecanismo fisiopatológico. Desta forma, podem-se estrati- diminuição da amplitude do complexo QRS. A descompres-
ficar tipos de choque (Tabelas 5 e 6). são do saco pericárdico deverá ser efetuada prontamente.
Em estágio mais avançado, o tamponamento pericárdico le-
Tabela 5 - Diagnóstico: resposta hemodinâmica
vará à atividade elétrica sem pulso, indicando toracotomia
Hipo- Cardio- de reanimação. Estados de baixo débito podem ocorrer em
Séptico Neurogênico
volêmico gênico doentes com embolia gasosa maciça, quando ferimentos
Inicial alto, pulmonares ou lesões vasculares venosas levam à circula-
DC Diminuído tardio Diminuído Aumentado ção coronariana de êmbolos gasosos com impactação, cau-
baixo sando isquemia do miocárdio.
RVS Aumentada Diminuída Aumentada Diminuída
Volemia Diminuída Aumentada Aumentada Normal B - Ventilação inadequada ou obstrução da via aérea
Pré-carga Diminuída Diminuída Elevada Diminuída Quando o paciente consegue falar sem esforço ou não
há ruído, pode-se assumir que a via aérea está pérvia. O
Tabela 6 - Diagnóstico: sinais clínicos
comprometimento da via aérea tem inúmeras causas possí-
Hipovo- Cardio- Neuro- veis, desde perda dos reflexos de proteção até mecanismos
Séptico
lêmico gênico gênico obstrutivos. Em casos de choque profundo, uma via aérea
Estase definitiva deve ser obtida com a introdução de uma cânula
Sem estase Sem estase Distendida Sem estase
jugular endotraqueal. Após reanimação inicial com resolução do

42
CHOQUE EM CIRURGIA

choque, o paciente poderá recuperar a consciência, tornan- sangramento externo local, clampeamento do coto vascu-
do a ter condição de assumir a ventilação espontânea com lar visível e torniquete nas amputações traumáticas podem
segurança. ser utilizados. Nos sangramentos provenientes da bacia, a
A ventilação mecânica não garante que o paciente será fixação ortopédica externa é uma opção inicial eficiente em
ventilado adequadamente. Problemas com o ventilador ou muitos casos, pois tratar, fraturas de bacia que sangram

CIRURGIA GERAL
com o tubo endotraqueal mal locado ou obstruído são algu- ativamente, por meio de cirurgia, não costuma ter bons re-
mas das causas que devem ser prontamente diagnosticadas sultados. O sangramento é multifocal e difuso. A arterio-
e tratadas com reintrodução e aspiração do tubo. Outras grafia costuma ser útil nos casos em que há lesão de ramos
causas, como pneumotórax, hemotórax e sangramento dos vasos hipogástricos. No intraoperatório, as ligaduras
brônquico também podem ocorrer. O tratamento imediato de vasos e o tamponamento temporário com compressas
deve ser instituído com drenagem torácica, controle da he- constituem manobras rápidas e eficientes na maior parte
morragia via endobrônquica ou até por via cirúrgica. A res- dos casos (Figuras 3, 4 e 5).
posta inflamatória causada por trauma ou reposição maciça
de hemoderivados pode resultar em SDRA com comprome-
timento da troca gasosa e retenção de CO2, simulando, mui-
tas vezes, um quadro de congestão pulmonar. A evolução
para essa condição também pode acontecer por compli-
cações sépticas. Formas especiais de ventilação mecânica
com baixos volumes e obtenção de PEEP ideal, ventilação
PRONA e inversão da relação inspiração/expiração são ten-
tadas. Uma condição semelhante que causa transtornos da
troca gasosa é a contusão pulmonar.

C - Compressão ou obstrução dos grandes vasos


ou do coração
Tamponamento cardíaco, ruptura diafragmática com
Figura 3 - Ligadura de veia cava inferior por FAF
migração de vísceras para a cavidade pulmonar, pneumo-
tórax hipertensivo, ventilação com pressão positiva e trom-
boembolismo pulmonar maciço podem causar compressão
ou obstrução direta ou indireta, tanto cardíaca quanto dos
grandes vasos. Como consequência, há redução da pré-car-
ga, dificuldade ventilatória e, em última instância, choque
circulatório do tipo obstrutivo. A descompressão do espaço
pleural é o passo inicial no pneumotórax hipertensivo, se-
guido da drenagem pleural. A pericardiocentese, apesar de
ilustrada em manuais e descrita como opção terapêutica,
costuma ser pouco utilizada. Normalmente, pacientes com
tamponamento pericárdico costumam chegar à atividade
elétrica sem pulso, o que indica uma toracotomia de reani- Figura 4 - Angioembolização de ramo da artéria hipogástrica em
mação. A tríade de Beck (estase jugular, hipotensão arterial trauma de bacia
e abafamento de bulhas), classicamente descrita, ocorre em
cerca de 35% dos pacientes. Também é comum o sangue
acumular-se na face posterior do coração no paciente dei-
tado e se formarem coágulos, dificultando, sobremaneira, a
punção pericárdica. Falsos negativos em pericardiocentese
para hemopericárdio por trauma chegam a 40%.

D - Hemorragia
O conceito fundamental da abordagem do paciente com
sangramento resume-se em controlar precocemente o san-
gramento e restaurar a integridade fisiológica, mantendo
a normalidade hemodinâmica, o equilíbrio ácido-básico, a
normotermia e a função hemostática.
O controle da hemorragia é necessário para que a rea-
nimação inicial possa ser efetiva. Compressão manual do Figura 5 - Fixação externa em trauma de bacia

43
CI RUR G I A G ERAL

Da mesma forma que é necessário o controle da hemor- - A monitorização invasiva está indicada na avaliação da resposta
ragia, um acesso vascular deve ser obtido. O uso de veias às medidas terapêuticas instituídas e em pacientes com
superficiais dos membros superiores é preferencial, e deve diversas causas de choque;
ser realizada canulação com jelco de grosso calibre (nº 14 - O tratamento do choque requer o controle da causa de base
ou nº 16). Quando não é possível, a dissecção da veia sa- e medidas para melhorar a oferta de oxigênio aos tecidos;
fena é preferida. De acordo com a velocidade de infusão como expansão volêmica (com ou sem hemotransfusão),
(fluxo) expressa pela lei de Poiseuille, deve-se optar por um suporte respiratório, controle de foco infeccioso e controle de
cateter grosso, curto, pressurizar o sistema e administrar hemorragias.
soluções cristaloides aquecidas. A velocidade de infusão é
diretamente proporcional à 4ª potência do raio e ao gra-
diente de pressão do sistema, e inversamente proporcional
à viscosidade do fluido e ao comprimento do cateter.
As soluções de Ringer Lactato (RL) e salina a 0,9% (SF
a 0,9%) são as preferidas para a infusão inicial de volume.
Devem ser aquecidas a 39°C para prevenir hipotermia e
administradas de acordo com a regra 3:1, pois apenas 1/3
do volume infundido permanecerá no intravascular. Apesar
de a solução salina a 0,9% ser chamada de fisiológica, esta
tem uma concentração de cloro acima dos valores séricos,
e reposições maciças de SF a 0,9% podem causar acidose hi-
perclorêmica. Desta forma, a reanimação inicial com RL tem
sido preferida. Nos traumas penetrantes com sangramento
ativo, uma forma de reanimação definida como hipotensão
permissiva tem sido utilizada com base no raciocínio de
que infusões de volume em pacientes que sangram ativa-
mente aumentam a pressão hidrostática no vaso lesado,
favorecendo mais sangramento, causando hemodiluição,
inclusive dos fatores de coagulação, e contribuindo para a
hipotermia. Deve-se manter a PAS em torno de 70mmHg e
controlar imediatamente o sangramento para, em seguida,
proceder à reanimação com volume. Não deve ser utilizada
em pacientes com trauma fechado, sobretudo vítimas de
TCE grave, em que a hipotensão é extremamente deletéria.
Outra forma de reposição de volume considera o uso de
solução hipertônica de NaCl a 7,5%, evitando os efeitos da
hemodiluição, e é responsável pela imunomodulação dos
neutrófilos, reduzindo sua citotoxicidade. Tem demonstra-
do algum benefício em pacientes com TCE, mas ainda não
é considerada conduta standard em nenhuma situação de
choque.
As medidas de controle mecânico, principalmente nos
doentes politraumatizados, são discutidas no material de
trauma.
6. Resumo
Quadro-resumo
- Choque significa um estado de hipoperfusão tecidual que, se
não revertido, leva à acidose metabólica e disfunção celular;
- Entre as causas de choque, as principais são depleção do volume
vascular, falha primária da bomba miocárdica, perda do controle
autonômico do sistema vascular, e inflamação sistêmica grave;
- Se não revertido, poderá haver comprometimento de outros
órgãos;
- O diagnóstico e a classificação do choque podem ser obtidos
por medidas clínicas e objetivas;

44
CAPÍTULO

7
Pós-operatório
José Américo Bacchi Hora / Marcelo Simas de Lima / Eduardo Bertolli

madura, perda patológica de líquidos corporais ou no pós-


Pontos essenciais
-operatório. Os mecanismos de defesa compensatórios que
- Balanço hidroeletrolítico no pós-operatório; o organismo utiliza são efetivos em situações não muito
- Suporte nutricional; intensas e de curta duração. Se a agressão for grande, tais
- Controle da dor; mecanismos não conseguirão manter o equilíbrio corporal.
- Cuidados com sondas, drenos e tubos. Quando a agressão se apresenta, a resposta corporal será a
contração em curto prazo da água intracelular, para preser-
var a água extracelular (manter seu tamanho efetivo), ou a
1. Introdução mudança de direção dos líquidos intersticiais para o intra-
O ato cirúrgico desencadeia no organismo uma resposta vascular para manter a volemia (fluxo sanguíneo adequado
metabólica semelhante à experimentada no trauma. O ci- para os órgãos vitais).
rurgião deve conhecer as alterações do organismo no pós-
-operatório e saber como lidar com elas, de modo a propor- Tabela 1 - Balanço hídrico no indivíduo hígido
cionar a recuperação adequada do paciente. Ganhos Perdas
Ingesta líquida: 800 a 1.000mL Diurese: 800 a 1.500mL
2. Controle do balanço hídrico e equilí- Ingesta sólida: 500 a 700mL Evacuação: 0 a 250mL
brio ácido-básico no pós-operatório Perdas insensíveis: 600 a 900mL
Oxidação: 125 a 250mL (25% pelos pulmões + 75% pela
pele)
A - Balanço hídrico
Água celular: 0 a 500mL Sudorese: 0 a 4.000mL
A água corporal total distribui-se amplamente em 2
compartimentos, os espaços de água intracelular e de O balanço hídrico no indivíduo hígido costuma apresen-
água extracelular. As membranas celulares são permeáveis tar ganhos e perdas bem definidos (Tabela 1). O ganho diá-
à água, mas seletivamente permeáveis a solutos. A água rio de água é de 2.000 a 2.500mL, sendo 800 a 1.000mL de
intracelular gira em torno de 66% da água corporal. Logo, ingesta oral de líquidos, 500 a 700mL de ingesta de alimen-
40% do peso magro corporal de um adulto do sexo mascu- tos sólidos, 125 a 250mL de água de oxidação e até 500mL
lino compõem-se, unicamente, de água nas células, princi- de água celular (após 4 a 5 dias de jejum). Já as perdas são
palmente células do músculo esquelético. Já a água extra- de 800 a 1.500mL pela urina, até 250mL pelas fezes e 600
celular responde por 20% do peso corporal total. a 900mL de perdas insensíveis (25% pelos pulmões e 75%
A água extracelular subdivide-se em plasma e em com- pela pele). A sudorese pode chegar a 4.000mL em estados
partimentos intersticiais. Líquido e solutos circulam do com- febris prolongados.
partimento do plasma para os compartimentos intersticiais Entretanto, cada paciente pode apresentar uma particu-
e retornam ao 1º compartimento via linfáticos. Múltiplos laridade que implicará uma prescrição individualizada, res-
fatores fisiológicos controlam o fluxo da água extracelular, peitando as suas reservas orgânicas e limitações. O período
entre eles a pressão hidrostática da luz dos vasos, a drena- pré-operatório determina tais questões, e o procedimento
gem linfática e a pressão coloidosmótica do plasma. cirúrgico também determinará as normas a serem seguidas
Todo esse equilíbrio pode ser rompido em circunstân- no pós-operatório. A presença de disfunção cardíaca, renal,
cias deletérias como choque, infecção generalizada, quei- pulmonar ou hepática afetará o tipo e a taxa de reposição

45
CI RUR G I A G ERAL

dos fluidos venosos no pós-operatório. Similarmente, a mentos não complicados e de curta duração (por exemplo,
peritonite, a septicemia, ou outras condições que afetam herniorrafia, colecistectomia e cirurgia não complicada dos
o volume plasmático do paciente, e a sua permeabilidade cólons), a resposta ao estresse cirúrgico será de curta dura-
capilar influenciarão a abordagem da terapia de fluidos. ção, e o paciente poderá permanecer com fluidos nas pri-
Em um paciente adequadamente hidratado, e que será meiras 24 horas. Submetidos à anestesia local não apresen-
submetido a um procedimento minimamente invasivo com tarão a resposta neuroendócrina exagerada. Portanto, não
perdas pequenas de sangue, a manutenção de fluidos será há a necessidade de reposição de fluidos.
de pequeno volume e de permanência curta. A manuten-
ção para um paciente de 70kg é de 100mL/h de soro glico- B - Hipovolemia
sado 5% com associação de soluções salinas com 20mEq/L A hipovolemia é o decréscimo no volume intravascular
de sódio e de potássio (Tabela 2). De maneira simplificada, causado por perdas volêmicas externas (hemorragias) ou
isso pode ser obtido com a administração de 1.000mL de internas (perdas capilares ou de fluidos para tecidos lesa-
SG5% acrescido de 30mL de NaCl 20% e 10mL de KCl 19,1% dos). O transporte de oxigênio e a perfusão tecidual são
a cada 8 horas. dependentes do débito cardíaco e na presença de hemo-
globina suficientemente saturada em mais de 90% de ten-
Tabela 2 - Necessidades mínimas diárias de um indivíduo adulto
são arterial de oxigênio e pressão arterial média de mais
de 70kg
de 70mmHg. Um volume intravascular inadequado pode
Água 2.000 a 2.500mL determinar uma perfusão pobre, seja por uma baixa pré-
Sódio 80 a 100mEq/dia -carga, seja pela baixa concentração de hemoglobina. Em
Potássio 60 a 80mEq/dia jovens, há maior tolerância à anemia com incremento do
Glicose 100g débito cardíaco, desde que o volume intravascular esteja
mantido. Os idosos com doença coronariana são mais pre-
De maneira geral, a reposição pós-operatória mínima judicados pelos efeitos deletérios do baixo volume intravas-
deve conter de 2.000 a 2.500mL/dia de água (sem conside- cular, anemia ou ambos.
rar a reposição das perdas), 80 a 100mEq/dia de sódio, 60 A monitorização da volemia inclui análise dos sinais
a 80mEq/dia de potássio e 100g de glicose. Os cristaloides vitais, estado mental e débito urinário. Devido aos efeitos
são os fluidos mais empregados no pós-operatório. O uso da anestesia, tais elementos podem ficar prejudicados. Se
de coloides não apresenta vantagens nos cuidados do pós- o paciente está com sonda vesical, o decréscimo da diure-
-operatório, e seu alto custo dificulta justificar o seu empre- se pode ser detectado de forma isolada. O peso corporal é
go em vários pacientes. um parâmetro que pode gerar erro de interpretação, sendo
Em um caso de obstrução intestinal, isquemia intestinal utilizado para as medidas do peso da água corporal total.
ou perfuração de víscera, a manutenção de fluidos isolada- Os dados podem ser superestimados, porque uma elevação
mente não será adequada. Nessas situações, o reequilíbrio e do peso corporal pode não decorrer do excesso de fluidos,
as perdas de fluidos do espaço intravascular continuam por mas do decréscimo no espaço intravascular. Tal situação é
várias horas após a cirurgia, consequentemente a ressusci- comum entre os pacientes com perdas do volume intravas-
tação deve ser intensa por muitas horas no pós-operatório; cular e sangue com evolução para choque circulatório, per-
e a possibilidade de administração de 7 a 10L de fluidos nas das capilares e acúmulos de fluidos no interstício e compar-
primeiras 24 horas pode ser a expansão adequada. A monito- timento intracelular. O peso total é maior, mas o paciente
rização da diurese, da pressão arterial, do pulso e da frequên- está com hipovolemia.
cia cardíaca são parâmetros, a serem avaliados pelo médico, Estudos seriados de pacientes graves em UTI, que apre-
que dirão se a reposição está adequada ou não. sentavam instabilidade hemodinâmica, demonstraram que
Em um paciente normal, não submetido ao estresse o estado volêmico não podia ser medido com precisão ape-
cirúrgico, a ingestão excessiva de líquidos determinará a nas seguindo parâmetros clínicos. A utilização da monito-
diminuição do hormônio antidiurético (ADH), e ocorrerá a rização invasiva torna-se um instrumento de grande valor
excreção de urina diluída até que os níveis de sódio e a os- pela capacidade de medidas do compartimento intravas-
molalidade voltem ao normal. Vários fatores estressantes, cular e a habilidade do organismo de manter a perfusão
incluindo os procedimentos cirúrgicos, resultam na inabi- tecidual. O uso do cateter central para medida da Pressão
lidade em diminuir os níveis de ADH e em eliminar a água Venosa Central (PVC) e de cateter na artéria pulmonar
livre. A administração de fluidos hipotônicos, associada à (Swan-Ganz – Figura 1) determina a pressão de enchimento
água livre do paciente, pode determinar hiponatremia no ventricular esquerdo e o débito cardíaco que, no geral, in-
pós-operatório. Esta, por sua vez, pode causar danos graves formam com maior precisão o estado volêmico do compar-
com morbidade e mortalidade significativas. Em procedi- timento intravascular.

46
P Ó S - O P E R AT Ó R I O

CIRURGIA GERAL
Figura 1 - Cateter de Swan-Ganz

A correção de distúrbios da volemia deve ter início com Portanto, aqueles suspeitos de hipervolemia secundária a
a expansão volêmica seriada e a avaliação clínica. O uso de excesso de fluidos devem ser cuidadosamente avaliados. Se
diuréticos deve ser limitado a portadores de insuficiência não respondem às primeiras medidas para a correção de
cardiopulmonar ou doença renal avançada, e dependentes sua volemia, devem ser monitorizados de forma invasiva.
de diuréticos. A administração desses medicamentos em
um indivíduo com contração do volume intravascular pode D - Hiponatremia
resultar em piora da depleção volêmica, apesar da melhora A hiponatremia é causada pelo excesso de água livre no
da diurese. Outras técnicas úteis de monitorização da vole- espaço intravascular, ou seja, dilucional na maioria das vezes.
mia incluem as medidas de sódio urinário, ecocardiograma A concentração sérica de sódio não é uma medida acurada
e determinação de níveis séricos de lactato. da concentração do sódio corporal total, mas reflete um va-
lor relativo da quantidade de água livre no compartimento
C - Hipervolemia intravascular. A concentração do sódio sérico não está rela-
O excesso de fluidos no pós-operatório apresenta-se cionada ao volume do compartimento intravascular.
com variada frequência. O grau em que o paciente se torna Pacientes podem ser normovolêmicos, hipovolêmicos ou
hipervolêmico (overloaded) depende das condições clínicas hipervolêmicos na presença de hiponatremia. Didaticamen-
no pré-operatório, como idade, existência de disfunções te, as causas de hiponatremia podem ser divididas de acordo
dos sistemas cardiopulmonar, renal e hepático, tempo do com a osmolaridade e o sódio total do corpo (Tabela 3).
procedimento cirúrgico, quantidade de fluidos administra-
dos, presença ou não de infecção e mediadores da inflama- Tabela 3 - Causas de hiponatremia
ção. É geralmente aceito que grandes quantidades de flui- Tipo Causas Diagnóstico
dos administrados determinarão aumento do peso corporal Sódio urinário
total e consequentes problemas no pós-operatório. Hipo- Desordens que
>30mEq/L.
O uso criterioso de fluidos no paciente e o conhecimen- osmolaridade e produzem edema (ICC,
Osmolaridade
aumento total de cirrose e falência renal
to de seu risco cirúrgico auxiliarão as equipes médicas a urinária
sódio no corpo. oligúrica).
tomarem as devidas precauções durante todo o procedi- <400mOsm/L.
mento anestésico e os cuidados posteriores ao período de Urina
Hipo- Perdas contínuas de
convalescença. A aplicação dos princípios da monitorização concentrada,
osmolaridade água e sódio não renais
invasiva trará informações sobre os efeitos dos volumes da conteúdo de
e nível total de (sudorese, perdas
ressuscitação sem as complicações do edema pulmonar ou sódio baixo e
sódio no corpo gastrintestinais e
insuficiência cardíaca congestiva. Deve ser reconhecido, função renal
baixo. formação de 3º espaço).
entretanto, que em pacientes em choque séptico ou que normal.
manifestam uma resposta inflamatória excessiva (com ou Hipo-
Síndrome da secreção
Produção
sem infecção bacteriana), ocorrerá a perda de fluidos capi- osmolaridade reduzida
inadequada do
lares do compartimento intravascular e surgirá a anasarca. e nível total de de urina,
hormônio antidiurético
O resultante aumento no peso corporal associado a grandes sódio no corpo concentrada e
(SIHAD).
quantidades de infusão de fluidos dará a impressão de que normal. hiperosmolar.
o paciente está hiper-hidratado. Esta é a razão por que é Aumento de soluto não
Osmolaridade Hiponatremia
difícil determinar o volume intravascular de quem está se- sódico (hiperglicemia,
aumentada. aparente.
manitol, álcool).
riamente doente, apenas observando parâmetros clínicos.

47
CI RUR G I A G ERAL

No pós-operatório, ela está relacionada ao excesso de Tabela 4 - Fórmula para cálculo de déficit de água e correção de
água livre. Isso acontece quando se utilizam fluidos hipo- hipernatremia
tônicos, quando os níveis de ADH não caem devido ao es- Déficit de água (L) = (0,6 x peso corporal em kg) – (140 / Na +
tresse cirúrgico ou lesional. Esses fluidos não são elimina- plasmático x 0,6 x peso corporal em kg)
dos pelo rim e determinam a hemodiluição do plasma. Em
geral, após a agressão aguda, em 24 a 48 horas os níveis 3. Dieta no pós-operatório e suporte nu-
de ADH cedem, e os rins determinam a compensação do
balanço hídrico adequado. Já os pacientes que se mantêm tricional intensivo
doentes ou sob estresse contínuo, e aqueles com disfunção
A necessidade calórica básica diária é variável, mas,
renal, terão dificuldade em lidar com a água livre em ex-
cesso. Pode ser evitada se não forem administrados fluidos geralmente, próxima de 25kcal/kg de peso corporal ideal.
hipotônicos (“soro ao meio”, composto de metade de soro Ela pode ser maior em crianças e menor em idosos, mas a
fisiológico 0,9% e a outra metade de água destilada ou soro fórmula de cálculo é empregada na maioria dos casos. Nos
glicosado 5%) no pós-operatório. pacientes de constituição média, o peso corporal ideal é o
Os sintomas dependem da severidade e da velocidade seu próprio peso corporal. Nos politraumatizados graves, a
de instalação. Um estado hipo-osmolar agudo leva ao ede- necessidade calórica aumenta para taxas de 30 a 35kcal/
ma cerebral e todas suas complicações. Cãibras, fraqueza e kg e, em queimados com comprometimento >50% da área
vômitos são frequentes. Há mortalidade significativa se a corporal, aumenta para 40kcal/kg.
hiponatremia se mantém abaixo de 120mEq/L. As necessidades diárias basais de proteínas variam de
O tratamento depende das concentrações séricas de 0,65 a 1g/kg em adolescentes e 2g/kg em crianças e serão
sódio encontradas. Pacientes com hiponatremia euvolê- diferentes nas condições patológicas severas. De forma ge-
mica e assintomáticos necessitam apenas de restrição hí- ral, pode-se empregar uma fórmula simples que considera
drica. Estados de volemia depletados, se presentes, devem
tanto as necessidades basais como o estresse associado
ser corrigidos anteriormente. Pacientes com perda rápida
pela condição patológica atual, que consiste em 0,04g pro-
devem ser repostos de forma lenta, e aqueles com perdas
crônicas podem ser assim tratados apenas com soluções teína/kcal necessária/dia.
salinas convencionais (soluções isotônicas de Ringer ou de Aos portadores de insuficiência hepática e renal, em-
soro fisiológico 0,9%). Soluções de maior concentração de pregam-se menores quantidades de aminoácidos. Existem
sódio podem ser empregadas em 24 a 48 horas de reposi- fórmulas específicas para essas condições, em que estão
ção (solução salina a 3%). presentes aminoácidos selecionados.
Quanto à dieta no pós-operatório, esta depende do tipo
E - Hipernatremia de cirurgia e do tipo e duração da anestesia. Em cirurgias
A hipernatremia é definida como sódio plasmático aci- abdominais e pélvicas, o paciente é mantido inicialmente
ma de 150mEq/L, sempre associado a um estado hiperos- em dieta zero. Inicia-se a ingestão oral quando há ruídos in-
molar, podendo haver um déficit de água corporal relativo testinais e eliminação de gases. Iniciar com líquidos e, caso
ou absoluto devido à troca de líquido intracelular para o estes sejam tolerados nas primeiras refeições, progredir
espaço extracelular. para uma dieta mais consistente (pastosa) até sólida (leve
Há 2 causas de hipernatremia. A 1ª é a sobrecarga ex- ou geral). Para pacientes com anastomoses gastrintestinais,
cessiva de sal (reposição com soluções hipotônicas), e a 2ª é o início e a progressão da dieta devem ser avaliados com
a perda de quantidades excessivas de água ou líquido hipo- maior critério. Nos casos em que a dieta por via oral não é
tônico (perdas pela pele no grande queimado, perda renal possível, deve-se considerar, precocemente, o suporte nu-
aumentada no dano renal ou diabetes insipidus). tricional por via enteral ou parenteral.
Sintomas de hipertonicidade refletem-se primeiramen-
te no sistema nervoso central, onde o decréscimo no fluido
intracelular leva à desorientação ou coma. Se o fluido ex- A - Terapia nutricional enteral
tracelular for diminuído, surgem sintomas de hipovolemia. Quando se pode utilizar o tubo digestivo, a nutrição en-
A hipernatremia causada por perda aumentada de água
teral é melhor e de baixo custo em relação à parenteral.
é tratada com reposição do déficit de água (Tabela 4). Se
A enteral aumenta a síntese de proteínas por causa da li-
houver também hipovolemia, esta deverá ser corrigida em
1º lugar com cristaloide isotônico, seguido da reposição do beração de substratos no sistema portal, além de ajudar a
déficit de líquido intracelular. Se há um estado de sobrecar- manter a integridade dos enterócitos e, assim, a barreira
ga de sódio, com líquido extracelular e volume plasmático intestinal para os agentes microbianos Gram negativos e
normais ou aumentados, a remoção do sódio com diuréti- endotoxinas locais. Utilizam-se sondas de alimentação de
cos (desde que a função renal esteja adequada) e a repo- poliuretano ou Silastic® de pequeno calibre (7 a 12Fr). São
sição com fluidos hipotônicos compõem o tratamento de maleáveis e de consistência amolecida e trazem mais con-
escolha. É importante diminuir o sódio no plasma ≤2mEq/h. forto para o paciente (Figura 2A).

48
P Ó S - O P E R AT Ó R I O

tomia. O tempo que se aguarda até a realização do proce-


dimento varia entre os serviços. Nos principais hospitais de
São Paulo, a tendência é aguardar cerca de 6 semanas (40
a 45 dias). Em 2007, a prova do INCA para especialidades
cirúrgicas abordou esse tema. De acordo com a bibliografia

CIRURGIA GERAL
do concurso, a resposta correta era 30 dias.

B - Terapia nutricional parenteral


O apoio nutricional, por meio de terapia parenteral, é
indicado nas condições desfavoráveis do tubo digestivo,
como grandes ressecções intestinais, fístulas entéricas e
pancreatites graves, entre outras. A solução básica para a
Nutrição Parenteral Total (NPT) é uma mistura de glicose
hipertônica e proteínas hidrolisadas, tipicamente 500mL de
glicose 50% e 500mL de aminoácidos a 8%, à qual são adi-
cionados eletrólitos, vitaminas e oligoelementos. Devido à
hipertonicidade da solução (2.000mOsm/L), deve ser admi-
Figura 2 - Formas de administração de dieta enteral: (A) sonda na-
nistrada por via central (cateter venoso central). Soluções
soenteral; (B) e (C) gastrostomia pela técnica de Stam
de menor osmolaridade podem ser administradas em veia
A alimentação gástrica pela sonda enteral permite o uso periférica, mas devem ser substituídas o quanto antes.
de fórmulas poliméricas mais baratas, mas há o risco de as- A solução de NPT é formulada com vários tipos de ele-
piração pulmonar do conteúdo gástrico e extinção do apeti- mentos em sua composição, existindo fórmulas adequadas
te. A alimentação enteral através de sonda de alimentação para condições específicas como grande queimado, hiperme-
instalada no jejuno (sonda nasoenteral ou Dubb-Hoff), du- tabolismo etc. Não se deve associar suporte enteral e paren-
rante o ato operatório, diminui o risco de aspiração e não teral simultaneamente. Além de não haver nenhum benefí-
causa anorexia; porém, como contorna o duodeno (absor- cio do ponto de vista nutricional, há maior possibilidade de
ção de ferro), necessita do emprego de dieta monomérica complicações, em especial as metabólicas e infecciosas.
fórmula-definida (elemental), que é mais cara, e com mais Carboidratos, gorduras e proteínas fornecem calorias
frequência causa diarreias e cólicas abdominais. Se o apoio na dieta enteral, enquanto que na nutrição parenteral so-
nutricional for muito prolongado, a presença da sonda na- mente carboidratos e gorduras são boas fontes de calorias.
sogástrica não será favorável por causar as complicações Isso decorre do fato de o gasto calórico necessário para con-
descritas. verter aminoácidos, administrados por via parenteral, em
A diarreia é a complicação funcional mais comum. Di- proteínas, ser proporcional às calorias fornecidas pelos pró-
minuir a velocidade de infusão da dieta ou aumentar de prios aminoácidos. Portanto, na prática, durante a nutrição
forma gradativa são condutas que auxiliam no controle da parenteral, as calorias vêm principalmente das soluções de
glicose hipertônica. O emprego de soluções de lipídios é ne-
diarreia. Se ela persiste, deve ser avaliada a existência de
cessário para satisfazer às necessidades mínimas de ácidos
medicações que possam estar interferindo na motilidade
graxos essenciais.
intestinal (antibióticos, potássio, fosfato). Em quadro diar-
Para evitar uma hipoglicemia rebote, a nutrição paren-
reico mais prolongado, deve ser considerada a suspeita de
teral não deve ser suspensa abruptamente e pode ser re-
colite associada a antibióticos. Antiespasmódicos e medica-
duzida no 1º dia, quando o paciente inicia a sua dieta oral
ções inibidoras da motilidade intestinal (derivados narcóti-
ou enteral. Mesmo com o desmame progressivo, é necessá-
cos) podem ser empregados nesses casos de difícil controle.
rio ainda manter uma solução glicosada de 10% para uma
Náuseas, vômitos, distensão abdominal, cólicas intestinais
adaptação gradual do organismo e diminuir a hiperinsuli-
e constipação podem impor uma necessidade de ajuste nas
nemia resultante das soluções hipertônicas por períodos
fórmulas enterais e na velocidade de infusão.
prolongados.
As complicações metabólicas possíveis são desidrata- As complicações do uso de nutrição parenteral total são
ção, super-hidratação, deficiência de ácido graxo essencial, inúmeras (Tabela 5).
distúrbios da glicose ou eletrólitos, elevação dos testes de
função hepática, deficiência de vitaminas, ferro e oligoele- Tabela 5 - Complicações da nutrição parenteral
mentos. Medidas de reposição preventivas, se realizadas, Complicações do cateter
evitam essas anormalidades metabólicas. Acidentes de punção com pneumotórax, derrame pleural ou
Pacientes que necessitarão de suporte enteral por tem- tamponamento cardíaco grave ou fatal, se o cateter estiver posi-
po prolongado apresentam risco aumentado para complica- cionado dentro do mediastino durante a infusão da dieta. Deve-
ções infecciosas (como sinusites de repetição) e são candi- -se checar a posição do cateter com raio x após punção percu-
tânea.
datos a vias cirúrgicas como gastrojejunostomia ou jejunos-

49
CI RUR G I A G ERAL

Trombose venosa central (frequentemente da subclávia) uma vez que já são bem estabelecidos os efeitos deletérios
da privação de sono.
Apesar de rara (1 a 2%), pode ser prevenida se aplicada heparina
dentro da solução de nutrição parenteral (1 a 2 unidades/mL de Diante de pacientes oncológicos com doença tumoral
solução parenteral). avançada, o cirurgião pode, em determinadas situações,
Complicações infecciosas
submetê-lo à cirurgia para alívio dos sintomas compressivos
(por exemplo, bypass interno de segmentos de alças de del-
Relacionadas ao cateter. Em caso de febre inexplicada, amostras
de sangue são colhidas para cultura tanto da linha central como
gado ou colostomia, nas situações de obstrução mecânica
de uma via periférica. O cateter deve ser trocado se houver forte do tubo digestivo pelo tumor; videotoracoscopia para es-
suspeita, e a sua ponta encaminhada para cultura. vaziamento de derrame pleural metastático e recidivante, e
Complicações metabólicas realizando a pleurodese química para controle local). Dian-
A mais comum é a hiperglicemia. Também podem ocorrer distúr-
te desse tipo de patologia, o pós-operatório apresentará
bios hidroeletrolíticos, sobrecarga de volume, hipervitaminoses maior prevalência da dor operatória, portanto, necessidade
ou deficiências vitamínicas de ácidos graxos essenciais e oligoe- de várias combinações de drogas.
lementos.
Outras complicações raras 5. Profilaxia de trombose venosa profunda
Embolismo aéreo, lesão arterial, fístula arteriovenosa, fratura do
cateter venoso e embolização central. A Trombose Venosa Profunda (TVP) é uma condição na
qual o desenvolvimento de trombos no sistema venoso pro-
fundo pode ocasionar obstrução ao fluxo sanguíneo. Outra
4. Controle da dor no pós-operatório complicação, muito mais mórbida, da TVP é o tromboem-
O emprego de medidas anestésicas prescritas no pré- bolismo pulmonar (TEP), que acontece quando um desses
-operatório possibilita a analgesia antes do procedimento trombos se desprende e cai na circulação sistêmica até
cirúrgico, além de relaxamento emocional diminuindo as alojar-se nos pulmões. Estima-se que o TEP pode causar ou
tensões e o risco de hipertensão arterial no pré-operatório. contribuir com a morte de até 12% dos pacientes hospitali-
As técnicas que utilizam anestesia epidural ou bloqueios zados em casuísticas norte-americanas.
locorregionais determinam uma maior área de anestesia A formação de trombos remete à tríade de Virchow.
corporal com despertar sem dor no pós-operatório imedia- Alterações da coagulabilidade sanguínea, do endotélio ou
to. Nos casos de anestesia epidural, um cateter pode ser do fluxo no interior do vaso podem predispor a formação
empregado para proporcionar o bloqueio da dor por vários de trombos. Esses fatores podem ser frequentemente en-
dias após a operação. Essa abordagem é muito útil aos sub- contrados nos pacientes após procedimentos cirúrgicos, de
modo que a profilaxia de TVP deve fazer parte das rotinas
metidos a cirurgias do andar inferior do abdome e extremi-
pós-operatórias.
dades.
Inicialmente, é preciso definir o risco de o paciente de-
As medicações sistêmicas utilizadas para a dor do pós-
senvolver TVP no pós-operatório (Tabela 6) antes de de-
-operatório incluem os opioides, os anti-inflamatórios não
finir as medidas de prevenção. As medidas de prevenção
esteroides e outras drogas narcóticas. O uso indiscriminado
dividem-se entre não farmacológicas e farmacológicas (Ta-
de opioides pode determinar situações bem estabelecidas
bela 7). Entre as não farmacológicas, as principais são as
de depressão respiratória, íleo prolongado, aumento das
meias elásticas de compressão, dispositivos pneumáticos
náuseas e vômitos. Uma maneira de escalonar o uso de de compressão e a deambulação precoce. As medicações
analgésicos é a chamada “escada” analgésica proposta pela mais comumente utilizadas são as heparinas não fraciona-
Organização Mundial de Saúde (OMS – Figura 3). das (ex.: Liquemine®) e a heparina de baixo peso molecular
(ex.: enoxaparina).

Tabela 6 - Fatores predisponentes e risco de TVP e TEP (adaptado


de Baruzzi et al., 1996)
Risco
Risco moderado Risco alto
baixo
- Idade >40
anos;
- Idade - Duração
<40 - Idade >40 anos; <60min +
Figura 3 - Escada analgésica proposta pela OMS Cirurgia geral anos; - Duração fator adicio-
- Duração >60min. nal (TVP ou
A anestesia regional e os anti-inflamatórios não esteroi- <60min. TEP prévio,
des são bem efetivos no controle pós-operatório. O controle tumor
extenso).
adequado da dor também deve visar a um sono adequado,

50
P Ó S - O P E R AT Ó R I O

Risco realizada. É amplamente utilizada e muito útil, fornecendo


Risco moderado Risco alto dados de débito e aspecto das secreções. Outras indicações
baixo
- Artroplastia de seu uso são vômitos incoercíveis de causa central, íleo
Cirurgia paralítico pós-operatório e estados comatosos ou convulsi-
- - joelho ou
ortopédica
quadril. vos com risco de aspiração pulmonar.

CIRURGIA GERAL
- Lesões Apesar de um instrumento funcional, a presença da
extensas sonda nasogástrica pode determinar problemas que não
partes mo- podem ser desprezados pelo médico cirurgião. As compli-
Trauma - -
les, fraturas cações são inúmeras e diretamente proporcionais ao tem-
de osso po de utilização. As mais comuns são ulceração e necrose
longo ou de asa nasal, respiração oral, interferência com a ventila-
múltiplas, ção, esofagite distal (podendo evoluir até com estenoses) e
politrauma.
complicações infecciosas.
- IAM, ICC, DPOC, Débitos constantemente elevados devem alertar para a
- Acidente
DM descom-
vascular depleção eletrolítica, em especial de íons, cloreto, potássio
pensado, AVCI,
Condição clínica - Gravidez. cerebral, e hidrogênio da secreção gástrica, ou sódio, em secreções
puerpério,
paralisia dos biliares. Débitos fecaloides são fortemente indicativos de
antecedente de
membros. oclusões intestinais baixas.
TVP/TEP.
% de evento
tromboembólico
Risco
Risco moderado Risco alto B - Drenos abdominais
baixo
(sem profilaxia) Os drenos são colocados, profilaticamente, para impe-
TVP distal 2 10 a 40 40 a 80 dir o acúmulo de fluidos; como sentinelas de anastomoses
TVP proximal 0,4 2a8 10 a 20 ou, terapeuticamente, para promover o escoamento de lí-
TEP sintomático 0,2 1a8 5 a 10 quidos que já se acumularam. Existem os drenos com cole-
TEP fatal 0,002 0,1 a 0,4 1a5
tores a vácuo (Portovac®, Jackson Pratt®, Blake®), que dre-
nam contra a força da gravidade. A vantagem desse sistema
Tabela 7 - Profilaxia da TVP (Adaptado de Baruzzi et al., 1996) de sucção é impedir a lesão cutânea, no caso de secreções
irritantes, e permitir a mensuração segura do volume de
Risco baixo Risco moderado Risco alto
drenagem removido. As secreções são direcionadas nos re-
- Enoxaparina 20mg servatórios, e podem-se avaliar a coloração e o aspecto de-
- Enoxaparina 40mg SC
SC ou nadroparina
ou nadroparina 0,6mL las. Os 2 últimos tipos apresentam válvula unidirecional, im-
0,3mL SC 2h antes
SC 12h antes da cirurgia pedindo o refluxo das secreções para a cavidade corporal.
da cirurgia segui-
seguida de aplicação Os drenos não devem ser colocados em espaços articu-
da de aplicação
diária enquanto persiste lares e ao longo de bainhas tendinosas, pois ocasionam rea-
Não farmaco- diária enquanto
o risco; ção excessiva e prejudicial à função. Nas vizinhanças de ten-
lógica persiste o risco;
- Heparina 5.000UI dões, nervos, grandes vasos sanguíneos e órgãos sólidos,
- Heparina 5.000UI SC (3x/ só devem ser usados drenos moles; caso contrário, pode
SC (2x/dia)
dia) associado ou não a ocorrer necrose de tais estruturas vitais.
associado ou não
medidas não farmaco-
a medidas não Os drenos atuam como um corpo estranho e ocasionam
lógicas.
farmacológicas. uma resposta tecidual com secreção em pequena quantida-
de, que desaparece após a retirada deles. Deve-se lembrar
Indivíduos com necessidade de profilaxia para TVP, mas que o dreno é “uma via de mão dupla” e, dessa forma, per-
com contraindicações à heparina, são candidatos à passa- mite o acesso de bactérias que podem desenvolver infecção
gem de filtro de veia cava durante o ato cirúrgico. local ou invasiva. Curativos cuidadosos, trocas frequentes e
remoção, sempre que possível, reduzem a possibilidade de
6. Cuidados com drenos, sondas e tubos infecção significativa. Devido ao fato de permitir infecção
bacteriana e de impedir o fechamento da ferida, não se
no pós-operatório deve colocar o dreno pela incisão cirúrgica.
Os drenos colocados profilaticamente devem ser re-
A - Sonda nasogástrica movidos tão logo seja evidente que não há mais drenagem
significativa, sem necessidade de tração progressiva. Os co-
A sonda nasogástrica é indicada para remover líqui- locados terapeuticamente são mantidos no local enquanto
do e gases do estômago ou conteúdos refluídos para ele drenam quantidade significativa de secreção. Quando ces-
e impedir a passagem de ar para os intestinos, piorando a sar a drenagem ou o seu débito estiver diminuindo, tracio-
distensão abdominal e as tensões na sutura intestinal, se na-se progressivamente, todos os dias (alguns cm). Dessa

51
CI RUR G I A G ERAL

forma, o trajeto de drenagem será fechado do fundo para derrame pleural de repetição e está no pré-operatório de
a superfície. Se todo o dreno é retirado de uma só vez, a cirurgia eletiva abdominal, será necessária a drenagem do
pele fecha-se imediatamente, formando um compartimen- tórax no centro cirúrgico antes da cirurgia marcada. A indi-
to interno com secreções. Essa condição pode determinar a cação é para promover a assistência ventilatória adequada
formação de um abscesso e até a fistulização cutânea. no intra e no pós-operatório.
O calibre do dreno e a quantidade dependem do tipo
C - Dreno de via biliar (dreno de Kehr ou tubo T) de cirurgia. Devem ser mantidos conectados em sistema
fechado sob selo d’água para drenagem valvular. Utiliza-se
É indicada a colocação do dreno de Kehr no colédoco
a drenagem aspirativa quando se tem drenagem significa-
(Figura 4) para descompressão e drenagem biliar após ex-
tiva, principalmente com fístula aérea. Utiliza-se equipa-
ploração de colédoco, coledocolitotomia (abertura cirúrgica mento que produz 15 a 20cm de pressão negativa, chama-
do colédoco) ou em casos de colangite; como moldagem do Emerson.
para a reparação de estenose de colédoco; ou para forma- Os drenos são removidos quando aparentemente o pul-
ção de fístula biliar externa nas obstruções de colédoco não mão está bem expandido, que não existe escoamento de
passíveis de derivação interna. Pode-se empregar, hoje em ar na ferida ou do pulmão, e quando se aspiram menos de
dia, a punção transparieto-hepática, guiada por US, ao co- 2.000mL de líquido em um período de 24 horas (esse valor
locar o dreno no parênquima hepático, em área de maior pode variar de acordo com o serviço). Os tubos são removi-
acúmulo de bile obstruída dentro do órgão. A colocação de dos com a aspiração mantida. Deve-se solicitar ao paciente
prótese endoscópica no colédoco é outro método empre- que inspire profundamente e prenda a respiração (Valsalva)
gado. Pode ser locada via transtumoral, nas neoplasias de enquanto é removido o tubo. Um curativo local é feito ime-
cabeça de pâncreas, ampola de Vater e das vias biliares. Ob- diatamente (já preparado) sobre a ferida, logo que o tubo
viamente, essa última condição pode falhar ou determinar é removido, e permanece no local por 48 horas. A prática
riscos imediatos. de raio x de controle também varia conforme a instituição.

7. Resumo
Quadro-resumo
- O balanço hídrico deve ser controlado diariamente para evitar
ou controlar distúrbios da volemia, do equilíbrio ácido-básico
e dos eletrólitos;
- O suporte nutricional deve ser reiniciado precocemente no pós-
operatório, utilizando a via enteral sempre que possível;
- O controle adequado da dor está associado a menores
complicações pós-operatórias;
- A profilaxia de TVP está indicada em todo pós-operatório,
e as medidas variam de acordo com o risco do paciente de
desenvolver TVP e TEP;
Figura 4 - (A) Dreno de Kehr e (B) aspecto do dreno na via biliar - Drenos podem ser terapêuticos ou sentinelas e devem ser
principal em colangiografia retirados logo que não estejam mais funcionando.

Nos tubos em T longos, a extremidade que entra no duo-


deno através da ampola de Vater pode obstruí-la e, assim,
ocorrer a pancreatite por obstrução do ducto pancreático,
além de permitir o refluxo de conteúdo duodenal no ducto
comum que pode resultar em colangite. Deve-se fazer uma
colangiografia através do tubo opostamente à extremidade
externa. Assim, é possível avaliar se existe vazamento local
do contraste, se a árvore biliar está bem contrastada e se há
passagem de bile para o duodeno.

D - Drenos torácicos
Tubos de drenagem intrapleural são colocados em ca-
sos de traumatismo torácico e após qualquer cirurgia intra-
torácica de magnitude. Esses tubos servem para remover
fluidos, sangue e ar extrapleural. Se um paciente apresenta

52
CAPÍTULO

8
Complicações pós-operatórias
José Américo Bacchi Hora / Marcelo Simas de Lima / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais Complicações sistêmicas


Insuficiência respiratória aguda, atelectasias,
- Febre; aspiração, pneumonia, tromboembolismo
- Complicações respiratórias; Respiratórias pulmonar, embolia gordurosa, edema
pulmonar, síndrome do desconforto
- Complicações das feridas operatórias; respiratório agudo.
- Deiscências de anastomoses; Cardíacas
Arritmias, infarto do miocárdio, insuficiência
cardíaca.
- Infecções urinárias;
Infecção do trato urinário, incontinência ou
- Complicações cardíacas; Urinárias
retenção.
- Complicações peritoneais; Sistema nervoso
Acidente vascular cerebral, delirium.
central
- Complicações gastrintestinais;
Trato Distúrbios de motilidade, pancreatite aguda,
- Complicações do SNC; gastrintestinal insuficiência hepática, colecistite, colite.
- Rabdomiólise; Outras Rabdomiólise, disfunção sexual.
- Disfunção sexual. Os custos financeiros das complicações cirúrgicas são
incalculáveis, e sua presença não implica apenas a despesa
1. Introdução hospitalar, mas também custos indiretos, como restrições
na capacidade de trabalho, ruptura do equilíbrio familiar
As complicações pós-operatórias podem ser resultado
normal e estresse não esperado para empregadores e para
da doença primária do paciente e de fatores não relacio-
a sociedade em geral (aposentadoria por invalidez ou auxí-
nados com a doença de base ou decorrentes do ato opera-
lio-doença). Além disso, há os custos físico e psicológico das
tório (Tabela 1). Um cirurgião pode realizar uma operação
sequelas e do processo de reabilitação.
tecnicamente perfeita e, ainda assim, haver uma compli-
cação. Os sinais clínicos de anormalidade orgânica po- A prevenção das complicações começa no pré-operató-
dem estar modificados no período de convalescença, e o rio com a avaliação detalhada do histórico do paciente e de
diagnóstico precoce pode ser de difícil interpretação nes- seus fatores de risco cirúrgico. Possibilitar melhora clínica
se período. Logo, avaliações frequentes devem ser feitas no pré-operatório é uma estratégia que traz bons resulta-
na suspeita de alguma anormalidade em curso, e exames dos na prevenção de complicações futuras. Por exemplo, o
complementares, solicitados para auxiliar na investigação abandono do tabagismo por 6 semanas antes da cirurgia
diagnóstica. diminui a incidência de complicações pulmonares no pós-
-operatório de 5 a 10%. A perda de peso diminui a pres-
Tabela 1 - Principais complicações pós-operatórias são intra-abdominal, o risco de complicações da ferida e de
Complicações cirúrgicas problemas respiratórios no período de recuperação opera-
tória. O cirurgião deve orientar seu paciente em todas as
Ferida Hematoma, seroma, deiscência, infecção de
questões envolvidas no pós-operatório, e há a necessidade
operatória ferida operatória.
de cooperação dos familiares no auxílio ao indivíduo nessa
Anastomoses Deiscência e fístula.
fase de convalescença.
Sangramentos (hemoperitônio, hemotórax, Logo na manhã posterior à cirurgia, ele deve ser enco-
Intracavitárias hematomas cervicais), síndrome rajado a sentar-se, tossir, fazer movimentos inspiratórios
compartimental abdominal. profundos e caminhar, se possível. A posição ortostática

53
CI RUR G I A G ERAL

permite a expansão dos segmentos basais pulmonares, e em submetidos a cirurgias de urgência, portadores de do-
a deambulação aumenta a circulação das extremidades in- enças crônicas preexistentes e idosos, pela baixa reserva
feriores e diminui o risco de tromboembolismo venoso. Em orgânica, aumento do volume residual pulmonar e espaço
severamente doentes, a contínua monitorização da pressão morto.
arterial e do débito cardíaco é capaz de identificar e promo-
ver a correção de anormalidades iniciais antes de evoluírem A - Insuficiência respiratória aguda
para situações clínico-cirúrgicas críticas. É definida como qualquer comprometimento na libera-
ção, transporte ou uso de oxigênio, ou eliminação de CO2,
2. Febre e que não é restrito à doença pulmonar. Processos patoló-
A febre pós-operatória é produzida em resposta tanto gicos que dificultam o transporte de oxigênio como baixo
a processos infecciosos quanto a não infecciosos. A preva- débito cardíaco (por exemplo, choque cardiogênico) ou di-
lência da febre nesse período acomete até 40% dos casos. minuem o uso celular efetivo de oxigênio (sepse) são causas
Mínimas elevações de temperatura corporal no pós-opera- potenciais de insuficiência respiratória aguda (Figura 1).
tório de 1°C acima do normal ou durante mais de 2 dias
devem ser consideradas significativas, devendo-se realizar
estudos diagnósticos para determinar a etiologia.

Tabela 2 - Principais causas de febre no pós-operatório


Atelectasia Tosse, dispneia, alteração da
24h
pulmonar. ausculta pulmonar.
Dor, eritema e endurecimento no
48h Flebite.
trajeto venoso superficial.
Disúria, hematúria ou alteração
Infecção
72h do aspecto da urina em pacientes
urinária.
sondados.
Infecção
Até o 5º Dor, hiperemia e saída de secreção
de ferida
dia purulenta pela ferida operatória.
operatória.
Coleção Taquicardia, distensão abdominal,
Após o
intracavitária, íleo prolongado, exteriorização de
7º dia
fístula. conteúdo entérico ou purulento.

As etiologias de febre no pós-operatório costumam se-


guir uma sequência de aparecimento (Tabela 2). A febre nas
primeiras 12 horas, geralmente produzida por alterações Figura 1 - Edema pulmonar por insuficiência cardíaca
metabólicas ou endócrinas (crise tireoidiana, insuficiência
adrenocortical), hipotensão prolongada com perfusão te- B - Atelectasia
cidual periférica inadequada ou reação transfusional, pode
resolver-se espontaneamente. Nas primeiras 24 a 48 horas, A atelectasia é a mais comum das complicações pul-
a causa mais comum de febre são as atelectasias pulmo- monares pós-operatórias e afeta 25% dos submetidos a
nares. Flebites são a causa mais comum até o 3º dia, e in- cirurgias abdominais. É mais frequente em idosos, obesos
fecções do trato urinário, até o 5º dia. Infecções de ferida e aqueles que fumam ou tenham sintomas de doença pul-
costumam manifestar-se na 1ª semana. Febres após o 7º monar prévia, nas primeiras 48 horas após a cirurgia; e é
dia pós-operatório devem alertar para a presença de cole- responsável por mais de 90% dos episódios febris durante
ções intracavitárias. esse período de convalescença. Na maioria das vezes, é au-
tolimitada, porém áreas pulmonares atelectásicas por mais
de 72 horas podem promover a formação de pneumonia.
3. Complicações respiratórias Costuma manifestar-se por febre, taquipneia e taqui-
São as mais comuns nos procedimentos cirúrgicos e a cardia, além de tosse produtiva e com rolhas associadas à
2ª causa mais comum de morte no pós-operatório de pa- diminuição de murmúrios pulmonares. O raio x simples de
cientes com mais de 60 anos. Os submetidos a cirurgias tórax confirma o diagnóstico (Figura 2). A atelectasia pós-
torácicas e do abdome superior são particularmente can- -operatória pode ser prevenida com exercícios respirató-
didatos a esses eventos. A incidência é baixa após cirurgias rios, deambulação precoce, uso do espirômetro e encora-
pélvicas e ainda menor em operações das extremidades jando a tosse. Em casos extremos, a broncoscopia pode ser
corporais. Riscos aumentados também são identificados utilizada para toillete brônquica adequada.

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C O M P L I C A Ç Õ E S P Ó S - O P E R AT Ó R I A S

mente bem tolerada, mas pode evoluir para a formação de


abscesso pulmonar. Os segmentos basais são mais afeta-
dos, apesar de os quadros de aspiração maciça serem mais
comuns no lobo superior direito. Clinicamente, taquipneia
e hipóxia estão presentes por horas. A manifestação de cia-

CIRURGIA GERAL
nose, síncope e apneia é menos frequente. Nas aspirações
maciças, a hipovolemia pode estar presente pela perda de
fluidos para o pulmão, a qual determinará a evolução para
choque e hipotensão.
É possível evitar a aspiração com medidas preventivas,
Figura 2 - Atelectasia pulmonar: (A) no lobo inferior esquerdo (pró-
como jejum adequado na véspera da cirurgia, posiciona-
ximo à silhueta cardíaca) e (B) no lobo superior direito
mento adequado do doente na mesa cirúrgica e no leito,
além de cuidados durante a intubação endotraqueal. O
C - Aspiração pulmonar tratamento da aspiração envolve a manutenção de uma via
aérea livre e previne novos riscos de aspiração e de lesão
A aspiração de conteúdos da boca e do estômago é mais
pulmonar. A aspiração através do tubo endotraqueal esti-
comum em pacientes sedados ou com outras causas de re-
mula a tosse e facilita a eliminação do conteúdo dos brôn-
baixamento do nível de consciência. A inserção de sondas
quios. A broncoscopia pode ser empregada para a retirada
nasogástrica e endotraqueal e a depressão do sistema ner-
de corpo estranho alojado na via aérea. A expansão volêmi-
voso central por drogas interferem nos mecanismos de pro-
ca intravenosa reverte a hipotensão que pode ocorrer nos
teção do organismo e predispõem à aspiração. Outros fa-
quadros maciços. E antibióticos devem ser empregados nas
tores, como refluxo gastroesofágico, alimento no estômago
situações de aspiração de grande volume ou na presença de
ou posição do paciente aumentam esses riscos (Figura 3).
repercussão clínica desfavorável.

D - Pneumonia pós-operatória
A pneumonia é a complicação pulmonar que mais co-
mumente pode determinar a morte do paciente cirúrgico.
Ela é diretamente responsável pela morte ou um fator con-
tribuinte em mais da metade dos casos de infecção pulmo-
nar. Pacientes com peritonite bacteriana no pós-operatório,
longos períodos em ventilação mecânica para suporte de
vida, atelectasias, aspirações e secreções aumentadas nas
vias aéreas são importantes fatores de risco para o desen-
volvimento de pneumonias. Mais da metade das infecções
é causada por bacilos Gram negativos.
As defesas do hospedeiro incluem o reflexo da tosse, o
sistema mucociliar e a atividade das células dos macrófa-
gos. Após a cirurgia, o mecanismo de tosse está enfraqueci-
do, não sendo eficiente para a limpeza da árvore brônquica.
Figura 3 - Pneumonite aspirativa O sistema mucociliar apresenta-se danificado pela intuba-
ção endotraqueal, e a habilidade dos macrófagos alveolares
Cerca de 2/3 dos casos de aspiração acontecem após está comprometida por inúmeros fatores que podem estar
cirurgias torácicas e abdominais, e, desses pacientes, me- presentes, como oxigenação, edema pulmonar, aspiração,
tade desenvolve pneumonia. A taxa de mortalidade para corticoterapia etc. Para completar, a perda dos movimen-
aspiração maciça pulmonar e subsequente pneumonia gira tos ciliares predispõe a colonização bacteriana e a posterior
em torno de 50%. O grau de lesão pulmonar produzida pela infecção.
aspiração do fluido gástrico (síndrome de Mendelson) é de- As manifestações clínicas da pneumonia pós-operatória
terminado pelo volume do aspirado, seu pH, e a frequência são febre, taquipneia e aumento das secreções, e o exame
do evento. Se o aspirado apresenta um pH de 2,5 ou menos, físico confirma a consolidação pulmonar (macicez, bronco-
causa imediata pneumonite química, a qual resulta em ede- fonia aumentada, pectorilóquia). Um raio x do tórax mos-
ma local e inflamação, situações que favorecem a infecção tra a imagem de consolidação do parênquima (Figura 4).
secundária. A mortalidade geral da pneumonia pós-operatória gira em
A aspiração de material sólido resulta em obstrução torno de 20 a 40%. As taxas são maiores se a pneumonia se
aérea. Obstrução de segmentos distais do pulmão é inicial- desenvolve nos submetidos à cirurgia de urgência.

55
CI RUR G I A G ERAL

Alterações eletrocardiográficas associadas à embolia


pulmonar não são diagnósticas e incluem as inversões de
onda T e alterações inespecíficas do segmento ST. Nas em-
bolias pulmonares mais graves, o ECG pode estar associado
a um padrão S1Q3T3, bloqueio do ramo direito ou desvio
do eixo à direita. Os achados radiológicos tendem a ser
inespecíficos, mas, algumas vezes, pode ser observado um
defeito em forma de cunha na base da pleura, conhecido
como corcova de Hampton, fruto do colabamento alveolar
que se segue à interrupção do fluxo pelas artérias pulmo-
nares. Ocasionalmente, quando êmbolos muito grandes
obstruem ramos da artéria pulmonar principal, pode haver
interrupção abrupta dos ramos vasculares pulmonares no
Figura 4 - Pneumonia no lobo médio do pulmão direito: (A) obser-
var a área de condensação (setas) com presença de broncogramas
lado afetado, formando uma imagem de vazio, em cunha,
aéreos na incidência anteroposterior e (B) incidência de perfil conhecida como oligoemia focal de Westermark (Figura 5).

A manutenção da via aérea limpa de secreções já é


uma forma de prevenção da pneumonia hospitalar. Exer-
cícios respiratórios, respiração profunda e tosse frequente
contribuem para evitar atelectasia, que é um precursor da
pneumonia. O uso profilático de antibióticos não diminui a
incidência de colonização Gram negativa da orofaringe, e o
tempo de intubação está diretamente relacionado à ocor-
rência das pneumonias associadas à ventilação.

E - Tromboembolismo pulmonar
Qualquer procedimento cirúrgico aumenta o risco de
Trombose Venosa Profunda (TVP) e embolia pulmonar. É
fundamental recordar a tríade de Virchow, que explica a fi-
siopatologia de base desses eventos: lesão endotelial, esta-
se venosa e hipercoagulabilidade. Sabidamente, a cirurgia
causa lesão endotelial e estase venosa.
O sistema venoso ileofemoral representa o local de Figura 5 - Embolia pulmonar com interrupção da artéria pulmonar
onde se origina a maioria dos êmbolos pulmonares mais esquerda (sinal de Westermark)
significativos. A gravidade clínica destes é uma função do
tamanho do coágulo que se solta do sistema venoso perifé- Para a elucidação diagnóstica, durante anos usou-se a an-
rico e viaja para a vasculatura pulmonar. Quando a embolia giografia como padrão-ouro. Entretanto, tal exame é invasivo,
pulmonar é de maior grau, o paciente apresenta sintomas com morbidade significativa associada. Por isso, foi desenvol-
rapidamente progressivos de dispneia, dor torácica (pleurí- vida a cintilografia de ventilação/perfusão. Durante o exame,
tica, apreensão) e tosse. A embolia maciça está associada a fase ventilatória era obtida inalando-se um marcador (xe-
à hemoptise e síncope, mas é bem menos comum. Os si- nônio). Na fase de perfusão, eram utilizadas injeções marca-
nais físicos mais habituais são taquipneia e taquicardia. Em das de albumina-tecnécio. As imagens eram lidas como alta,
cerca de 1/3 dos casos, observam-se achados consistentes intermediária e baixa probabilidades. Os pacientes com alta
de trombose venosa dos membros inferiores. Entretanto, probabilidade eram tratados com anticoagulação sistêmica.
geralmente os sinais e sintomas associados à embolia pul- Entretanto, os grupos de baixa probabilidade e intermediá-
monar não são específicos e podem sugerir uma gama de rios geralmente necessitavam de angiografia pulmonar. Com
problemas clínicos, incluindo infarto do miocárdio, pneu- o avanço tecnológico da tomografia, que passou a dispor de
motórax, pneumonia e atelectasia. sistemas com multidetectores e possibilitou a qualidade da
Quando um paciente se apresenta com dor torácica e angiotomografia, reduzindo o distanciamento entre os cortes
dispneia, deve-se realizar uma bateria de exames não es- e o tempo de aquisição das imagens, passou-se a obter ima-
pecíficos, incluindo gasometria arterial, eletrocardiograma gens precisas sem abordagem invasiva. É uma técnica nova
e raio x do tórax. Esses testes afastarão a possibilidade de com rapidez diagnóstica, baixa morbidade, sensibilidade de
outras causas para os sintomas. Qualquer indivíduo com ga- 86% e especificidade de 92%.
sometria arterial que apresenta PaO2 inferior a 70cmH2O é Raramente, um paciente desenvolve embolia pulmonar
suspeito para o tromboembolismo. maciça, caracterizada por choque, hipóxia grave e, algumas

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C O M P L I C A Ç Õ E S P Ó S - O P E R AT Ó R I A S

vezes, cianose. O tratamento imediato inclui a adminis- permeabilidade anormal dos capilares pulmonares (cho-
tração de líquidos intravenosos e agentes inotrópicos, e a que, sepse, transfusões maciças, bypass cardiopulmonar,
manutenção de um ritmo cardíaco favorável. Os indivídu- “pulmões rígidos”, lesão craniana, queimaduras e inalação
os com embolia pulmonar necessitam de máscara facial de de agentes químicos industriais e drogas ilícitas), ou hiper-
pressão para auxiliá-los na oferta basal de oxigênio, e, nos volemia devido à ressuscitação agressivamente excessiva.

CIRURGIA GERAL
casos graves, pode ser necessária a intubação orotraqueal. Lesões pulmonares também determinam o extravasamento
Após o diagnóstico, a terapia trombolítica deve ser con- dos fluidos para dentro dos alvéolos, desencadeando res-
siderada aos casos em que não haja histórico recente de posta inflamatória excessiva e formação de maior derrame
lesão intracraniana ou grande procedimento abdominal nos alveolar. No pós-operatório, as causas mais relacionadas
últimos 10 dias. Agentes como a estreptoquinase, uroqui- são as iatrogênicas (excesso de fluidos intravenosos), dis-
nase e ativador do plasminogênio tecidual recombinado função miocárdica primária e hipertensão arterial não con-
podem ser considerados. Ainda mais raramente, a embo- trolada. A infecção generalizada é outro fator de risco para
lectomia pulmonar pode ser considerada uma tentativa aqueles com baixa reserva cardiopulmonar.
extremada de salvar a vida do doente. Para aqueles em te- O edema agudo de pulmão com hipertensão acontece
rapia de anticoagulação e que sofrem grande hemorragia, como o resultado de um aumento agudo da resistência vas-
a instalação de um filtro na veia cava deve ser considerada cular periférica e uma redução da complacência ventricular.
para prevenir a migração de outros êmbolos para os pul- A disfunção diastólica aguda é a responsável pela congestão
mões. pulmonar que ocorre aos indivíduos com o quadro agudo
pulmonar associado à hipertensão. O paciente apresenta-
F - Embolia gordurosa -se agudamente dispneico e ortopneico. Taquicardia, ciano-
O embolismo gorduroso pode ser originário de causas se, ansiedade e sibilos audíveis são facilmente detectáveis
externas, como transfusão, nutrição parenteral ou trans- ao exame clínico. Estertores crepitantes associados ao de-
plante de medula óssea. A síndrome do embolismo gordu- cúbito são audíveis em todos os campos pulmonares. O tra-
roso consiste em sintomas neurológicos, insuficiência respi- tamento é imediato e depende da origem do edema agudo
ratória e petéquias nas axilas, no tórax e nos membros su- do pulmão, mas, em geral, tem como objetivo uma redução
periores proximais. Originalmente, esse quadro foi descrito combinada da pré e da pós-carga. Para tanto, são utilizadas
nas vítimas de trauma e fratura múltipla de ossos longos, drogas como nitritos, diuréticos de alça (furosemida), nitro-
e acredita-se que essa síndrome seja resultado de embolia prussiato de sódio e morfina.
da medula óssea. Há autores que questionam tal quadro
pulmonar pós-trauma. H - Síndrome do desconforto respiratório agudo
Caracteristicamente, o embolismo gorduroso inicia-se A Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA)
de 12 a 72 horas após o trauma, mas pode apresentar-se desenvolve-se após trauma ou sepse. Fatores de ativação
semanas mais tarde. O diagnóstico é clínico, e o achado de da coagulação e agentes inflamatórios são liberados na
êmbolos gordurosos no escarro e urina é comum após trau- presença de lesões teciduais extensas ou em tecidos cor-
ma, mas não específico. Geralmente, são observadas que- porais infectados, condições que podem surgir no paciente
da do hematócrito, trombocitopenia e outras alterações na cirúrgico. Tais fatores determinam resposta inflamatória lo-
coagulação. cal e generalizada intensa devido à disseminação dos seus
Outros sintomas aparecem, e o tratamento de suporte elementos pela microcirculação e circulação geral. Esses
deve ser empregado para promover a ventilação adequa- elementos bioquímicos lesam a parede do endotélio, e o
da e a monitorização da insuficiência respiratória para a plasma extravasa dentro do interstício; no caso do pulmão,
melhora do quadro psiconeurológico. A insuficiência res- dentro do alvéolo. O edema pulmonar resultante impede
piratória é mais bem controlada com ventilação mecânica a ventilação e a oxigenação. A pressão arterial de oxigênio
assistida com pressão final positiva expiratória e diuréticos. declina, e a concentração de dióxido de carbono aumenta.
O prognóstico está relacionado com o grau de comprome- Os elementos responsáveis pela resposta inflamatória
timento. em cadeia são inúmeros: proteases, bradicininas, fatores
do complemento, prostaglandinas, tromboxanas, leucotrie-
G - Edema pulmonar nos, enzimas lisossomais e outros mediadores associados a
Esta é uma condição associada ao acúmulo de líquidos agregados de plaquetas e leucócitos, ou, até mesmo, pro-
nos alvéolos, o que determina redução da troca gasosa, de- dutos do endotélio lesado em associação à ação das pla-
sencadeando hipoxemia. O paciente pode incrementar o quetas in loco. Todas essas reações bioquímicas teciduais
esforço respiratório, por meio do aumento da frequência atraem mais plaquetas e leucócitos, fechando-se um ciclo
respiratória e do uso elevado de musculatura acessória. vicioso que perpetua a ação deletéria em graus cada vez
O edema é causado pelo aumento da pré ou da pós-car- maiores. Após a ressuscitação de um paciente com lesão
ga, com elevação da pressão hidrostática no pulmão (insu- corporal grave ou quadro de infecção visceral ou cavitária,
ficiência cardíaca congestiva, infarto agudo do miocárdio), pode surgir a hipoxemia em 24 horas.

57
CI RUR G I A G ERAL

Afastadas as outras causas de hipoxemia (falência me- Pequenos Derrames Pleurais (DP) são comuns em cirur-
cânica muscular, atelectasias, aspiração, embolia e trauma gias de andar superior do abdome e na maioria das vezes
pulmonares), a suspeita incide sobre o desenvolvimento da são reabsorvidos. Na ausência de insuficiência cardíaca ou
SDRA. Os pulmões desenvolvem uma resposta inflamatória lesão pulmonar, o aparecimento de DP em grande quanti-
inespecífica; monócitos e neutrófilos invadem o interstício. dade ou no pós-operatório tardio deve alertar para a possi-
O edema aparece dentro de poucas horas, líquidos alveo- bilidade de abscessos intracavitários ou até mesmo pancre-
lares surgem dentro das 24 horas iniciais, e a cicatrização atite (DP à esquerda).
local se desenvolverá em 1 semana (Figura 6). Se o processo O tratamento consiste em tratar a condição de base que
não é debelado, os pulmões tornam-se maciços e ingurgita- levou à formação do derrame e na toracocentese alivia-
dos, sendo difícil a ventilação, processo chamado de hepa- dora. Uma amostra do material aspirado deve ser enviada
tização pulmonar. Quando o processo cicatricial entra em para avaliação bioquímica e bacterioscopia.
ação, a fibrose começa a se desenvolver em 2 semanas. Se
tratado prontamente, desde o início da resposta inflamató- J - Pneumotórax
ria, há a total regressão das alterações teciduais, impedindo
a formação da cicatrização tecidual. As principais causas de pneumotórax no pós-operatório
são barotrauma (especialmente nos doentes em ventilação
mecânica sob pressão) e punção iatrogênica durante acesso
venoso central.
Outras causas mais raras são lesões traqueobrônquicas
(cirurgias torácicas e de esôfago), após traqueostomia, le-
sões de diafragma que passam despercebidas e manipula-
ção do hiato diafragmático.
Quando não há DP associado, o tratamento pode ser
feito com drenagem pelo sistema de válvula de Heimlich
com dreno tipo pig tail. Na impossibilidade de excluir na DP
ou quando há chance de contaminação do espaço pleural,
realiza-se a drenagem pleural com dreno em selo d’água.

Figura 6 - SDRA: a dificuldade em enxergar os campos pleuropul- 4. Complicações da ferida operatória


monares se dá pelo edema e pelo líquido no interior dos alvéolos

Um consenso recente identificou a lesão pulmonar trau- A - Hematoma


mática e a SDRA como 2 níveis diferentes de insuficiência O hematoma da ferida operatória, uma coleção de san-
respiratória secundários ao trauma. Em contraste com o
gue dentro da ferida fechada, é uma das complicações mais
edema pulmonar, que está associado ao aumento da pres-
comuns, causada, principalmente, por hemostasia local não
são encunhada e das pressões do lado direito do coração,
adequada. Pacientes usuários de aspirina ou baixas doses
a lesão traumática do pulmão e a SDRA estão associadas a
de heparina apresentam risco relativo aumentado para de-
uma hipo-oxigenação causada por uma resposta inflamató-
ria patológica, que leva ao acúmulo de líquido nos alvéolos, senvolver essas complicações. O risco é mais alto naqueles
bem como ao espessamento no espaço entre os capilares que recebem doses sistêmicas de anticoagulação ou nos
e os alvéolos. portadores de coagulopatia. Tosse persistente ou crises de
hipertensão no pós-operatório podem contribuir para a for-
I - Derrame pleural mação de hematomas na ferida.
Os hematomas determinam a elevação com coloração
da ferida, afastamento de suas bordas, desconforto e se-
creção local. O sangue pode ser expelido espontaneamen-
te da ferida, sendo necessária a reintervenção quando o
sangramento surge precocemente. Hematomas cervicais,
após tireoidectomia ou cirurgias da carótida, são perigosos
porque podem expandir rapidamente e comprimir as vias
aéreas. Os pequenos hematomas podem ser reabsorvidos,
mas aumentam o risco de infecção da ferida operatória. O
Figura 7 - Derrame pleural: (A) aspecto radiológico de derrame tratamento consiste em evacuação dos coágulos sobre con-
pleural volumoso à esquerda e (B) aspecto tomográfico de derra- dições estéreis, ligadura dos vasos e fechamento primário
me laminar à direita da ferida (Figura 8A).

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C O M P L I C A Ç Õ E S P Ó S - O P E R AT Ó R I A S

As principais causas de aumento da pressão intra-abdo-


minal são: obesidade, distensão de alças por íleo paralítico
(ou por obstrução intestinal), ascite ou tosse, e síndrome
compartimental abdominal. A infecção cirúrgica é um fator
associado a mais da metade das feridas deiscentes e, para

CIRURGIA GERAL
o seu desenvolvimento, necessita de, pelo menos, 1 entre
3 fatores: número adequado de bactérias patogênicas, me-
canismos de defesa inadequados do hospedeiro e um am-
Figura 8 - (A) Paciente no pós-operatório de dermolipectomia ab- biente tecidual capaz de manter a propagação continuada
dominal, realizando evacuação de hematoma e (B) seroma por ori- das bactérias. É importante considerar tais fatores de risco
fício prévio de dreno. Na 1ª Figura, há predomínio do hematoma. para minimizar a sua prevalência, permitir o diagnóstico
O material mais fluido observado na 2ª Figura é predominante-
precoce e promover intervenção efetiva.
mente seroma
c) Diagnóstico e tratamento
B - Seroma Embora a deiscência seja possível em qualquer período
O seroma resulta do acúmulo da gordura e linfa liquefei- do pós-operatório, é mais comum entre o 5º e o 8º dias.
tas e frequentemente acompanha operações que envolvem A deiscência de ferida pode ser a 1ª manifestação de abs-
a elevação de retalhos, grandes descolamentos e transec- cesso intra-abdominal. O sinal mais precoce de deiscência
ção de inúmeros canais linfáticos. Sua presença faz aumen- da aponeurose é a descarga de secreção serossanguínea da
tar o risco de infecção da ferida operatória. Aqueles locali- ferida.
zados abaixo da pele podem ser evacuados por aspiração Os pacientes com ascite são de risco para a perda de
com agulha em condições estéreis ou, eventualmente, até fluidos pela ferida operatória. O não tratamento do vaza-
serem conduzidos com observação seriada. mento de fluidos na parede abdominal faz aumentar o ris-
Nas cirurgias oncológicas em que há a necessidade de co de infecção da ferida e/ou da parede abdominal e, por
linfadenectomia regional, o seroma é frequente, e o uso disseminação retrógrada, ocorrer a contaminação da cavi-
de dreno a vácuo é mandatório no pós-operatório. Mesmo dade e peritonite. Uma medida preventiva compreende o
após a retirada do dreno, existe o risco de seroma. Se ocor- fechamento de uma das camadas com sutura contínua e
rer o vazamento contínuo de fluidos na ferida, será necessá- das demais, de modo que não haja espaços entre os planos
ria a ligadura dos vasos linfáticos para o controle local (em da parede abdominal.
ambiente estéril do centro cirúrgico sob anestesia geral). A evisceração é uma condição grave com alta morbi-
mortalidade, e o paciente deve ser prontamente atendido,
C - Deiscência de ferida operatória com cobertura das alças com compressas úmidas e mor-
nas, iniciando-se cobertura antibiótica imediata seguida de
A deiscência pode ser total ou parcial de qualquer ca- transferência para o centro cirúrgico e, sob anestesia geral,
mada da ferida. A ruptura de todas as camadas da parede realização de inventário de toda a cavidade abdominal, la-
abdominal e a extrusão de vísceras abdominais é chamada vagem exaustiva com fluidos aquecidos, desbridamento de
evisceração. Vários fatores causais, sistêmicos ou locais, es- tecidos desvitalizados e preparação de nova sutura com fios
tão envolvidos. inabsorvíveis e de espessura maior. A taxa de mortalidade
a) Fatores sistêmicos da evisceração gira em torno de 10% e é mais frequente
A deiscência é rara em pacientes com faixa etária abai- quando existem fatores de risco como câncer ou sepse as-
xo de 30 anos, mas pode afetar 5% dos pacientes acima de sociados, os quais contribuem para a infecção local. A recor-
60 anos submetidos à laparotomia. É mais comum em pes- rência da evisceração após reparação cirúrgica é rara, em-
soas com algum tipo de imunodepressão, como diabetes bora as hérnias incisionais reapareçam em 20% dos casos.
mellitus, uso de corticosteroides, químio e/ou radioterapia A deiscência de ferida sem evisceração é mais bem con-
e sepse. Outras condições que podem estar associadas a trolada com o fechamento dessa ferida. Se há rompimento
deiscências são uremia, DPOC, icterícia, tabagismo, hipoal- parcial (eventração), o indivíduo está estável e possui baixo
buminemia, obesidade mórbida ou desnutrição severa. O risco anestésico-cirúrgico, o tratamento pode ser adiado, e
controle pré-operatório dessas condições é imprescindível a hérnia incisional é tratada de forma eletiva. Se o paciente
para melhores resultados cirúrgicos. é de alto risco operatório, não se indica reparação, e a hér-
nia incisional deve ser observada e cuidada de forma a ser
b) Fatores de risco locais aceita pelo paciente. No pós-operatório dos casos de repa-
Os 3 fatores de risco mais importantes são técnica ci- ração cirúrgica, todos os cuidados devem ser tomados a fim
rúrgica inadequada, aumento da pressão intra-abdominal de evitar a recidiva da deiscência. Enfaixamento abdominal
e deficiência na cicatrização. A deiscência comumente re- e adiamento da retirada dos pontos de pele são as medidas
sulta de uma combinação desses fatores e não apenas de empregadas. Se há infecção da ferida, deve ser realizada
um deles. coleta da secreção para cultura e antibiograma, o tratamen-

59
CI RUR G I A G ERAL

to empírico com antibióticos é logo iniciado, e, quando os 5. Deiscências anastomóticas


resultados das culturas estão disponíveis, procede-se à ade-
quação da antibioticoterapia. A deiscência de uma anastomose entre 2 órgãos ocos é
As feridas operatórias torácicas são menos propensas às uma das complicações mais sérias que um cirurgião pode
deiscências, exceto as feridas de esterno. Quando uma feri- encontrar. O extravasamento de líquidos carregados de
da de toracotomia se rompe, há a saída de fluidos pleurais, bactérias leva à formação de abscessos locais, fístulas, rup-
ar e movimento paradoxal da caixa torácica. As deiscências tura da anastomose, deiscência da parede abdominal, sep-
do esterno, muito associadas à infecção óssea, produzem se e até morte.
um tórax instável e requerem tratamento urgente. Se a in- Para evitar uma deiscência anastomótica, devem ser ob-
fecção não estiver disseminada e o esterno apresentar os- servados alguns itens. O órgão a ser tratado deve ter supri-
teomielite mínima, o paciente poderá ser encaminhado ao mento sanguíneo adequado até a borda da anastomose, e
centro cirúrgico para reparo. a sutura deve ser livre de tensão e com técnica adequada.
A largura dos lúmens dos órgãos a serem conectados deve
D - Infecção de ferida ser igual e obtida por meio de uma variedade de técnicas.
Certas anastomoses são particularmente difíceis sob o
Febre que aparece após o 4º dia de pós-operatório é co-
ponto de vista técnico, logo mais propensas a uma deiscên-
mumente causada por infecção de ferida, devido a germes
cia anastomótica. Uma pancreatojejunostomia, após um
entéricos ou a estafilococos. A localização da ferida opera-
procedimento de Whipple, apresenta índice de deiscência
tória é importante por ser mais ou menos suscetível à infec-
de 15 a 20%. Como o lúmen do intestino delgado é manipu-
ção local. As feridas da cabeça e do pescoço raramente se
lado para acomodar o tamanho do pâncreas, pode ser feita
infectam devido ao seu excelente suprimento sanguíneo e
uma anastomose não muito segura. Similarmente, como o
à rápida cicatrização.
esôfago não possui serosa, as esofagoenterostomias apre-
Os fatores de risco para infecção da ferida operatória
sentam risco aumentado e devem ser feitas com muito
são semelhantes aos envolvidos nas deiscências de suturas.
cuidado. Anastomoses colorretais baixas são tecnicamente
Os cuidados de assepsia e antissepsia do paciente e equipe
difíceis, assim, deve-se considerar a confecção de ostomia
cirúrgica também estão diretamente relacionados às com-
de proteção.
plicações infecciosas.
O 1º sinal da deiscência anastomótica é a taquicardia.
A manifestação clínico-cirúrgica da infecção de ferida é,
Habitualmente há febre, dor abdominal, mal-estar, íleo pa-
na maioria das vezes, assinalada por elevações diárias da
ralítico, recusa alimentar ou vômitos pós-prandiais e uma
temperatura (padrão apiculado) semelhantes às de um abs-
cesso. O paciente pode apresentar taquicardia, calafrios, incapacidade geral de se recuperar. Exames de imagens po-
mal-estar e leucocitose. A inspeção cuidadosa da ferida re- dem ser empregados na tentativa inicial de fechar o diag-
vela sensibilidade acentuada e celulite peri-incisional. Nas nóstico suspeito. O diagnóstico deve ser considerado na
infecções estafilocócicas, há vermelhidão mais evidente, presença de grandes coleções de líquido, níveis hidroaére-
edema, temperatura cutânea elevada, e, frequentemente, os em uma cavidade com abscesso, grande quantidade de
podem ser palpadas áreas de flutuação. Caso o paciente es- líquido livre na cavidade peritoneal ou grande quantidade
teja recebendo antibioticoterapia por outro motivo, pode de ar livre (pneumoperitônio).
existir infecção dentro da ferida sem muitas das caracterís- O tratamento dependerá de cada caso. Nas situações
ticas de inflamação aguda. A coloração pelo Gram e culturas em que a deiscência é pequena, com uma fístula contro-
do material encontrado dentro da ferida levarão à identifi- lada, pode ser utilizado o tratamento conservador até que
cação do micro-organismo específico responsável. cesse a drenagem do líquido. Se o paciente não está séptico,
O 1º passo para o tratamento das infecções de feridas deve-se mantê-lo em jejum e instituir nutrição parenteral.
é a drenagem adequada, as quais requerem ampla abertu- Se a deiscência anastomótica ocorreu nos cólons, deve ser
ra. Após essa drenagem, são usadas soluções antissépticas realizada uma colostomia e criada uma fístula mucosa em
e a lavagem com soluções salinas, evitando o crescimento uma zona anterior à ostomia. Nas fístulas biliares, coloca-se
bacteriano na ferida e promovendo a formação do tecido um dreno local para dirigi-la. Se ocorrer grande perda de
de granulação em área limpa. Antibióticos sistêmicos são material, estará indicada cirurgia para reconstrução e dre-
utilizados quando há evidências de piora progressiva local nagem.
e sintomas clínicos gerais (febre, adinamia, bacteremia,
toxemia). A cultura das secreções auxilia na escolha mais 6. Complicações urológicas
correta dos antibióticos, mas, em geral, utilizam-se as me-
dicações de forma empírica. Deve-se tomar cuidado com
os diabéticos que podem apresentar evolução rápida da
A - Infecção pós-operatória do trato urinário
infecção e toxemia grave. Feridas perineais nestes últimos Os pacientes portadores de obstrução urinária e que
merecem a vigilância constante de sua evolução, pelo risco apresentam dilatação do sistema pielocalicial devem ser
de evoluírem para síndrome de Fournier. submetidos à passagem de cateter uretral para alívio do

60
C O M P L I C A Ç Õ E S P Ó S - O P E R AT Ó R I A S

regime de hipertensão (cateter duplo J). Estes apresentam não induzirem à vasodilatação comumente encontrada nos
risco de infecção urinária, e, se confirmada a sua presença, bloqueios.
o cateter deve ser retirado. Contaminação preexistente do A duração e a urgência da cirurgia, assim como a perda
trato urinário, retenção urinária e instrumentação local são de controle do sangramento com hipotensão, têm sido di-
os outros fatores contribuintes para o desenvolvimento do retamente correlacionadas a sérias complicações cardíacas.

CIRURGIA GERAL
quadro infeccioso. Entre os portadores de marca-passo, a corrente do eletro-
Os germes mais comuns envolvidos são as bactérias en- cautério pode interferir na função do aparelho eletroesti-
téricas Gram negativas. O local de infecção é, geralmente, mulador. Complicações cirúrgicas não cardiológicas podem
a bexiga (cistite). Não raro, a infecção ascende para o trato afetar o desempenho cardíaco, determinando aumento na
urinário superior (pielite e pielonefrite). Em qualquer indi- demanda em pacientes com reserva diminuída. Septicemia,
víduo com febre pós-operatória que se submeteu à cirur- má perfusão e hipoxemia são fatores de risco para compli-
gia geniturinária ou na qual se introduziu cateter uretral, cações cardiológicas. Excessos de fluidos podem produzir
deve-se suspeitar de infecção do trato urinário. Bacteriúria falência ventricular esquerda. E os pacientes com doença
está presente em, aproximadamente, 5% dos submetidos coronariana, arritmias ou insuficiência cardíaca devem ser
à cateterização vesical de curta duração (<48 horas). Os monitorizados na unidade de terapia intensiva.
sintomas da infecção urinária incluem disúria, calafrios, au-
mento da frequência da micção e dor que se localiza sobre A - Arritmias cardíacas
a área de infecção. Uma amostra de urina pode detectar Podem ser perigosas quando causam redução do débito
bactérias e leucócitos. cardíaco e da pressão sanguínea arterial, ou interferem na
perfusão de órgãos vitais. A maioria das arritmias aparece
B - Retenção e incontinência durante a cirurgia ou dentro dos primeiros 3 dias de pós-
Pode ocorrer retenção transitória após bloqueios regio- -operatório. Elas são especialmente comuns nos procedi-
nais como raquianestesia, que regridem conforme termina mentos intratorácicos.
o efeito da anestesia. Caso o paciente venha a desenvol- Todos os fatores deflagradores para arritmias cardíacas
ver bexigoma palpável e desconforto nesse período, a son- poderão estar presentes durante o procedimento anesté-
dagem vesical de alívio costuma ser resolutiva. Também sico-cirúrgico. É um risco a todos os pacientes e depende
podem ocorrer retenções mais prolongadas em cirurgias dos cuidados pré-operatórios, da resposta neuroendócrina
ginecológicas cuja manipulação pélvica altera a inervação durante o trauma cirúrgico, das condições clínico-cirúrgicas
vesical. Os pacientes, muitas vezes, necessitarão de técni- encontradas antes, durante e após o ato operatório, além
cas como cateterismo intermitente e fisioterapia pélvica. É da técnica cirúrgica empregada.
importante, porém, excluir causas mecânicas de obstrução A incidência global de arritmias intraoperatórias é de
do fluxo urinário antes de confirmar um diagnóstico de re- 20%, e a maioria é autolimitada. A incidência é maior entre
tenção urinária de origem neurogênica. os portadores de arritmias e os pacientes que apresentam
A incontinência acontece principalmente em cirurgias doenças cardíacas (35%). Somente 1/3 das arritmias ocorre
urológicas e pélvicas, seja por alteração da inervação, seja durante a indução anestésica. Esse tipo pode ser causado
por gases anestésicos, como o halotano ou o ciclopropano,
por intervenções locais como a confecção neouretral pós-
ou por drogas simpaticomiméticas. A toxicidade digitálica e
-prostatectomia. O tratamento pode incluir desde medica-
a hipercapnia são outras causas que devem ser lembradas.
ções, fisioterapia e até novas cirurgias.
Nas arritmias, no período pós-operatório, deve-se ava-
liar se as causas são decorrentes de hipopotassemia, hipo-
7. Complicações cardíacas xemia, alcalose, toxicidade digitálica ou estresse durante
Podem ser autolimitadas e de controle adequado, con- cirurgias de emergências. Ocasionalmente, arritmias no
tudo sua incidência diminui caso sejam adotadas medidas pós-operatório podem ser a manifestação de isquemia do
terapêuticas prévias. Dessa forma, o cirurgião, tendo co- miocárdio. A maioria das arritmias é assintomática, mas
nhecimento de que seu paciente é portador de doença car- pode haver sintomas como dor torácica, palpitações ou
díaca, deve solicitar exames complementares, como eletro- dispneia.
cardiograma e ecocardiograma bidimensional com Doppler
de fluxo, para uma avaliação global da função ventricular.
B - Infarto do miocárdio pós-operatório
A anestesia geral deprime o miocárdio. Alguns anesté- Aproximadamente, 0,4% de todos os submetidos à ci-
sicos predispõem às arritmias por sensibilizar o miocárdio rurgia desenvolvem Infarto Agudo do Miocárdio (IAM). A in-
às catecolaminas. A monitorização cardíaca e as medidas cidência aumenta para 5 a 12% nos submetidos a cirurgias
de pressão arterial detectam as arritmias e a hipotensão vasculares (por exemplo, enxerto aórtico, endarterectomia
precocemente. Entre aqueles de alto risco cardiológico, a de carótidas). Outros fatores de risco importantes incluem
anestesia geral pode ser mais segura do que o bloqueio me- a presença de insuficiência cardíaca no pré-operatório, is-
dular, mesmo para procedimentos abaixo do umbigo, por quemia identificada na cintilografia cardíaca (dipiridamol-

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CI RUR G I A G ERAL

-tálio) ou teste ergométrico, idade maior de 70 anos. Em potássio), a restrição hídrica e o estímulo diurético podem
portadores de angina, deve ser considerada a revasculari- ser suficientes nesses casos. A insuficiência respiratória im-
zação miocárdica antes do procedimento cirúrgico eletivo plica suporte ventilatório invasivo (intubação endotraqueal)
em outro órgão. e ventilação mecânica assistida controlada.
O IAM pode ser precipitado por fatores como hipoten-
são ou hipóxia. As manifestações clínicas são dores torá- 8. Complicações intracavitárias
cicas, hipotensão e arritmias cardíacas. Cerca de 1/3 dos
episódios de IAM, entretanto, é assintomático. A ausência
de sintomas deve-se a efeitos residuais da anestesia e à ad- A - Hemoperitônio
ministração de analgésicos no pós-operatório; além disso, O sangramento é a maior causa de choque circulatório
deve-se lembrar que os diabéticos têm maior incidência de nas primeiras 24 horas de uma cirurgia abdominal. O hemo-
infartos silenciosos. O diagnóstico é obtido com 2 de 3 pa- peritônio pós-operatório – uma condição aguda e de rápida
râmetros alterados: eletrocardiograma, enzimas cardíacas evolução – é geralmente resultado de problemas técnicos
e/ou dor típica. O exame eletrocardiográfico demonstrará de hemostasia, mas coagulopatias podem estar envolvidas.
as alterações nas ondas de despolarização, com sinais de Nesses casos, o sangramento tende a ser generalizado, ocor-
isquemia miocárdica (“corrente de lesão”). E ainda, eleva- rendo na ferida operatória, punções venosas, vias aéreas etc.
ção dos níveis de creatinaquinase (CPK) – especialmente a O hemoperitônio, geralmente, torna-se aparente dentro
fração MB – e níveis elevados da isoenzima da troponina. de 24 horas após a cirurgia. Sua manifestação é semelhan-
A taxa de mortalidade do IAM no pós-operatório é mui- te à hipovolemia: taquicardia, queda de pressão arterial,
to alta entre os grupos de alto risco (67%). O prognóstico é queda do débito urinário e vasoconstrição periférica. Se o
melhor se esse é o 1º episódio de IAM, e pior se já existiu sangramento persiste, podem surgir febre e dor abdominal
IAM prévio. A prevenção dessa complicação inclui adiamen- mais intensa. Mudanças no hematócrito não são geralmen-
to da cirurgia por 3 meses ou, se possível, 6 meses após te evidentes nas 4 a 6 horas iniciais do quadro hemorrágico
o evento isquêmico; tratamento da insuficiência cardíaca intra-abdominal, tendo valor diagnóstico limitado.
congestiva e controle da hipertensão arterial. A insufici- A manifestação clínica pode ser súbita, e o diagnóstico,
ência cardíaca congestiva deve ser tratada com digitálicos, superestimado. O diagnóstico diferencial de choque circu-
diuréticos e vasodilatadores, se necessário. latório pós-operatório também inclui tromboembolismo
Os pacientes que desenvolveram IAM no pós-operatório pulmonar, arritmias cardíacas, pneumotórax, IAM e reações
devem ser monitorizados em unidade de terapia intensiva alérgicas severas. Expansão volêmica deve ser administra-
com adequado suporte de oxigênio e hidratação com flui- da tão logo seja possível, enquanto se inicia a investigação
dos e eletrólitos adequados. Anticoagulação, embora não diagnóstica. Se a hipotensão ou outros sinais de hipovole-
seja possível após a cirurgia realizada, previne o desenvol- mia persistirem, deve ser realizada reoperação. Durante a
vimento de trombose mural e embolismo arterial após o cirurgia, sangramentos são controlados, coágulos retirados,
IAM. e a cavidade peritoneal, lavada com solução salina.
Cirurgias pancreáticas podem determinar corrosão da
C - Falência cardíaca parede dos vasos por suco pancreático que extravasa. Ne-
A falência ventricular esquerda e o edema pulmonar las, o hemoperitônio maciço e catastrófico pode acontecer
acometem 4% dos pacientes acima dos 40 anos submetidos já com alguns dias de pós-operatório, geralmente por san-
a procedimentos cirúrgicos com anestesia geral. Excesso gramento da artéria esplênica.
de fluidos intravenosos naqueles com limitação da reserva
miocárdica é a maior causa. O IAM pós-operatório e as ar- B - Síndrome compartimental abdominal
ritmias cardíacas produzem maior pressão intraventricular Define-se hipertensão intra-abdominal a elevação per-
e aumento do débito cardíaco. As manifestações clínicas sistente ou intermitente da Pressão Intra-Abdominal (PIA)
são dispneia progressiva, hipoxemia com tensão normal de acima de 12mmHg (normal: 5 a 7mmHg). Síndrome Com-
gás carbônico e congestão difusa dos pulmões no raio x. partimental Abdominal (SCA) é definida pela elevação per-
O tratamento da falência ventricular esquerda depende sistente da PIA acima de 20mmHg, associada à falência or-
do estado hemodinâmico. Aqueles em choque circulatório gânica não presente previamente.
requerem cuidados de UTI, passagem de um cateter na ar- São fatores predisponentes para o aumento da PIA:
téria pulmonar (Swan-Ganz) e redução da pré e da pós-car- choque hemorrágico, infusões maciças de cristaloide, po-
ga. A redução desta é obtida por diuréticos (e nitroglicerina, litransfusão e grandes sangramentos intra-abdominais. Pa-
se necessário); a da pré-carga, pela administração de nitro- cientes que apresentam esses fatores de risco, associados
prussiato de sódio. Os pacientes que não estão em choque a repercussões sistêmicas, devem ser investigados quanto
circulatório, entretanto, podem utilizar digitálicos. A rápida à possibilidade de síndrome compartimental abdominal.
digitalização (por exemplo, doses fracionadas de um total Apesar de indireto, o método diagnóstico mais empregado
de 1 a 1,5mg em 24 horas, com monitorização dos níveis de é a aferição da pressão intravesical (Figura 9).

62
C O M P L I C A Ç Õ E S P Ó S - O P E R AT Ó R I A S

CIRURGIA GERAL
Figura 9 - Aparelhagem para medição da pressão intra-abdominal

A graduação e o tratamento dependerão desse valor (Figura 10). Valores entre 12 e 20mmHg permitem uma reavaliação
volêmica e otimização hemodinâmica. Valores entre 21 e 25mmHg associados à repercussão sistêmica grave, ou pressão
acima de 25mmHg, são indicações de laparostomia descompressiva.

Figura 10 - Diagnóstico e tratamento da SCA

9. Complicações gastrintestinais

A - Distúrbios da motilidade
O peristaltismo gastrintestinal retorna em 24 horas após procedimentos que não invadam a cavidade abdominal, na
maioria dos casos. Em geral, a cirurgia videolaparoscópica determina menor grau de íleo adinâmico do que a cirurgia aberta.

63
CI RUR G I A G ERAL

Após a laparotomia, o peristaltismo gástrico retorna em 48 A causa, na maioria das vezes, relaciona-se a trauma
horas. A atividade colônica retorna após 48 horas, iniciando mecânico no pâncreas ou no seu suprimento sanguíneo. A
no ceco e, progressivamente, em direção caudal. A motili- prevenção desse evento inclui a exploração manual crite-
dade do delgado é pouco afetada, exceto para os casos de riosa do órgão, evitando-se a manipulação forçada com di-
ressecção segmentar deste, anastomoses e casos de obs- latação do ducto biliar através do esfíncter duodenal, o que
trução intestinal. pode induzir a edema e obstrução do ducto pancreático.
Vários fatores pioram o íleo pós-operatório ou prolon- A taxa de 2% de incidência nos casos pós-transplantados
gam o seu curso. Estes incluem medicações – especialmen- renais está, provavelmente, relacionada a fatores de risco
te opioides –, níveis anormais de eletrólitos, condições como uso de corticosteroide ou azatioprina, hiperparati-
inflamatórias como pancreatite ou peritonite e dor. A pre- reoidismo secundário ou infecções virais. Alterações agudas
sença de íleo adinâmico determina distensão abdominal e do cálcio sérico são responsáveis pela pancreatite, seguida
ausência de sons intestinais. O retorno fisiológico do peris- da cirurgia das paratireoides. A hiperamilasemia desenvol-
taltismo se manifesta com cólicas abdominais, eliminação ve-se na metade dos casos submetidos à cirurgia cardíaca
de flatos e retorno do apetite. Não há uma terapia específi- com circulação extracorpórea, mas a manifestação clínica
ca para o íleo adinâmico, a não ser a descompressão gástri- de pancreatite está presente em apenas 5% dos casos. O
ca por SNG e hidratação venosa. diagnóstico de pancreatite pós-operatória pode ser difícil,
A obstrução intestinal pós-operatória resulta da falência e a monitorização do órgão pode ser obtida realizando-se
da função intestinal determinada pelo íleo adinâmico per- tomografia computadorizada sequencial.
sistente ou obstrução mecânica. Esta é a manifestação mais
tardia e menos comum no período pós-operatório imediato C - Disfunção hepática pós-operatória
e resulta de aderências ou da formação de hérnias internas. A disfunção hepática oscila de leve icterícia à insufici-
A maioria dos pacientes apresenta um período de melhora ência hepática fulminante e pode surgir em 1% dos casos
com funções fisiológicas normais antes de manifestar a obs- submetidos à cirurgia sob anestesia geral. A insuficiência
trução mecânica. Aproximadamente, metade dos casos de hepatocelular é a principal causa de icterícia pós-operató-
obstrução no pós-operatório precoce decorre de cirurgias ria, como consequência da necrose de células hepáticas,
colorretais. inflamação ou grande ressecção de tecido do fígado. Dro-
gas, hipotensão, hipóxia e sepse estão entre as causas de
B - Pancreatite pós-operatória icterícia por lesão parenquimatosa. Embora a hepatite pós-
Representa 10% de todos os casos de pancreatite agu- -transfusional seja geralmente observada em um período
da e acontece em 1 a 3% dos pacientes submetidos à ma- tardio, tal complicação pode acontecer até a 3ª semana de
nipulação peripancreática e nas cirurgias das vias biliares pós-operatório.
(Figura 11). A pancreatite também é possível em cirurgias Todos os pacientes com icterícia no pós-operatório
com circulação extracorpórea, cirurgias da parótida e trans- devem ser investigados para avaliar se há necessidade de
plante renal, e sua forma necrosante é mais habitual no abordagem cirúrgica. A colestase pós-hepática aumenta
pós-operatório. Infecção nos tecidos pancreáticos e outras o risco de colangite aguda e o desenvolvimento de sepse,
complicações locais desenvolvem-se com frequência 3 a 4 portanto acarreta decréscimo na função hepática. Exames
vezes maior do que nas pancreatites alcoólica e biliar. A ra- de função hepática não são determinantes para a causa da
zão da maior gravidade é desconhecida e gira em torno de icterícia e não refletem a gravidade desta. A função renal
30 a 40%. deve ser monitorizada porque a hiperbilirrubinemia pode
causar o desenvolvimento de insuficiência renal.

D - Colecistite pós-operatória
A colecistite aguda pós-operatória pode surgir em qual-
quer tipo de cirurgia, mas é mais comum em procedimen-
tos no trato gastrintestinal. Desenvolve-se logo após esfinc-
terotomia endoscópica em 3 a 5% dos casos. A colecistite
aguda química ocorre em submetidos à quimioembolização
intra-hepática com mitomicina e floxuridina, e alguns au-
tores indicam a colecistectomia eletiva antes da aplicação
dessas drogas. Colecistites fulminantes de etiologia isquê-
mica podem acontecer após embolização da artéria hepá-
tica por tumores malignos do fígado ou malformação arte-
riovenosa envolvendo a artéria hepática. Alguns pacientes
Figura 11 - Pancreatite aguda com solução de continuidade ao ní- com próteses metálicas autoexpansíveis para permear neo-
vel do corpo pancreático (seta) (legenda: P = Pâncreas; B = Baço) plasias obstrutivas das vias biliares desenvolvem colecistite

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C O M P L I C A Ç Õ E S P Ó S - O P E R AT Ó R I A S

aguda de etiologia ainda indefinida; acredita-se em 2 pro- leções diafragmáticas na manipulação do andar superior do
váveis hipóteses: infecciosa, pela possibilidade de ascensão abdome. Doença neoplásica intra-hepática também pode
das bactérias duodenais, e isquêmica, por compressão da necrosar e evoluir para um abscesso. Em cerca de 20% dos
artéria cística provocada pela prótese. casos, a etiologia não será determinada.
A colecistite aguda pós-operatória difere em vários as- O tratamento minimamente invasivo com drenagem

CIRURGIA GERAL
pectos das formas de colecistite aguda. A forma acalculosa percutânea guiada por exame de imagem é utilizado sem-
é a mais comum (de 70 a 80%), é mais frequente em ho- pre que possível. Múltiplos abscessos, ou na impossibili-
mens (75%), progride mais rapidamente para necrose e não dade do método, são indicações para tratamento cirúrgico
responde a tratamento conservador. As causas são bem co- (Figura 13).
nhecidas somente nas colecistites química e isquêmica. Os
fatores de risco são a estase biliar (com formação de barro
biliar), infecção biliar e isquemia.

E - Colite infecciosa por Clostridium difficile


A diarreia causada pelo agente microbiano Clostridium
difficile é uma causa comum de infecção nosocomial em pa-
cientes cirúrgicos. A manifestação clínica é muito variável
e se apresenta de formas assintomáticas de colonização a,
raramente, colite severa tóxica. O risco principal é o uso de
antibiótico perioperatório. O diagnóstico é estabelecido por
meio da identificação da toxina citopática nas fezes, da cul-
tura do organismo nas amostras de fezes ou swab retal ou,
ainda, da retossigmoidoscopia que revela as pseudomem-
branas (Figura 12). A prevenção é a lavagem frequente das
mãos, além da precaução ao lidar com secreções entéricas
e minimização do uso de antibióticos. Quando instalada a
infecção intestinal por Clostridium difficile, seu tratamento
é instituído com o uso de metronidazol ou, para infecções Figura 13 - Aspecto tomográfico de grandes abscessos hepáticos
com patógeno resistente, vancomicina oral.
10. Complicações do sistema nervoso central
O Acidente Vascular Cerebral (AVC) é a maior complica-
ção neurológica que pode acometer os idosos. Ocorre mais
na população com severa aterosclerose e que se mantém
hipotensa durante ou após a cirurgia (decorrentes da infec-
ção grave no pós-operatório, baixo débito cardíaco, hipoter-
mia prolongada etc.) e é suspeita em todo quadro de déficit
Figura 12 - Diferentes aspectos colonoscópicos de colite pseudo- neurológico focal com duração superior a 24 horas.
membranosa (Clostridium difficile) Os possíveis fatores etiológicos da isquemia central são
as reações adrenérgicas: taquicardia, hipertensão, hipoten-
F - Úlcera de estresse são e hipóxia. Os fatores associados ao paciente são qua-
dro de acidente cerebrovascular prévio, aterosclerose com
Os principais fatores de risco para úlceras no pós-ope- obstrução carotídea parcial, hipertensão arterial, diabetes
ratório são insuficiência respiratória, coagulopatia, infecção mellitus ou DPOC. A prevenção baseia-se na manutenção
grave, uremia e hemorragia digestiva. A profilaxia com inibi- da estabilidade cardiovascular, na inibição de grandes va-
dor de bomba protônica deve ser realizada nesses casos. Há riações da pressão arterial e no adequado controle da dor
serviços que, na ausência desses fatores, realizam profilaxia pós-operatória.
com inibidores dos receptores H2. A ansiedade e o medo são reações normais entre os ci-
Nos politraumatizados, as úlceras por estresse recebem rúrgicos. O grau em que essas emoções são expressas de-
o nome de úlceras de Cushing. Nos grandes queimados, pende de variáveis psicológicas e culturais. Depressão sub-
esse quadro chama-se úlcera de Curling. clínica ou história de dor crônica podem levar os pacientes
a superestimar os sintomas de dor no pós-operatório, com
G - Abscessos hepáticos insônia e ansiedade extrema, além de alteração de com-
São raros os abscessos piogênicos no pós-operatório. O portamento. A fronteira entre as manifestações normais de
quadro clínico é de febre alta, dor no hipocôndrio direito e, estresse e a psicose pós-operatória é difícil de ser estabe-
ocasionalmente, icterícia. As causas mais comuns são as co- lecida.

65
CI RUR G I A G ERAL

O delirium é outra condição que acontece, principal- 13. Resumo


mente, entre idosos. Trata-se de um estado de disfunção
cognitiva com flutuação do nível de orientação temporoes- Quadro-resumo
pacial, perda de memória e conversação incoerente. Essa - As causas de febre no pós-operatório costumam seguir uma
condição deve ser diferenciada da demência, em que há sequência de aparecimento;
uma global perda cognitiva sem qualquer efeito sobre a - A causa mais comum nas primeiras 48 horas é atelectasia
pulmonar;
consciência. Algum grau de delirium ocorre entre 5 e 60%
dos pacientes senis após uma cirurgia. É mais prevalente - As complicações pulmonares são as mais comuns. Pacientes
submetidos a cirurgias torácicas ou abdominais altas devem
nas cirurgias ortopédicas por fraturas de quadril.
iniciar precocemente fisioterapia respiratória;
As principais condições que favorecem o quadro de deli-
- Pacientes com antecedente pessoal de cardiopatia devem ser
rium são infecções ativas e distúrbios hidroeletrolíticos. Ou- cuidadosamente monitorizados;
tras condições são abandono familiar, cirurgias prolongadas,
- O infarto agudo do miocárdio pode ser “silencioso” em doentes
hipóxia, perdas sanguíneas excessivas no intraoperatório, de- diabéticos;
ficiência visual e auditiva, demência senil preexistente, doen- - Sinais de choque hipovolêmico no pós-operatório de cirurgias
ças malignas, drogas psicoativas, excesso de medicamentos abdominais devem sugerir a presença de hemoperitônio;
utilizados para as doenças crônicas associadas, suspensão - Complicações como hematomas e seromas de ferida operatória;
abrupta de drogas de utilização prolongada, retenção uriná- ou deiscências anastomóticas estão relacionados a fatores
ria aguda e falência renal. sistêmicos do paciente, mas também a técnica cirúrgica
O delirium ocorre, em geral, no 2º dia de pós-operatório inadequada;
e está associado à internação prolongada e morbidade, mas - Pacientes submetidos à raquianestesia têm maior risco de
é revertido na maioria dos casos. Somente 1% tem piora desenvolver retenção urinária no pós-operatório. Cirurgias
progressiva das funções cognitivas. Se há a necessidade de pélvicas podem evoluir com disfunções urológica e sexual pela
manipulação dos plexos nervosos.
sedação, aplicam-se doses baixas de haloperidol que não
têm efeitos cardiovasculares maiores em relação a outros
agentes sedativos.

11. Rabdomiólise
Pode ser fruto de compressão muscular ou reativa a
agentes anestésicos e é mais comum em obesos mórbidos
submetidos a cirurgias de longa duração. A elevação da
CPK, que se deposita nos glomérulos, pode causar insufici-
ência renal, com oligúria, coloração acastanhada e grumos.
A proteção renal envolve a diurese forçada com hiper-hidra-
tação, alcalinização da urina com infusão de bicarbonato e
estímulo diurético com furosemida e manitol.
Se a causa da rabdomiólise for a síndrome comparti-
mental nos membros inferiores, deve-se proceder com fas-
ciotomias descompressivas o mais precocemente possível,
para cessação da isquemia muscular. Ciclistas e marato-
nistas apresentam maior risco para essas complicações na
musculatura das pernas hipertrofiadas.

12. Disfunção sexual


É observada após certos procedimentos cirúrgicos,
como prostatectomia, cirurgia cardíaca e reconstrução aór-
tica. Em cirurgias pélvicas, pelo risco de lesão dos ramos
sacrais do plexo, é importante apresentar essa possibilida-
de ao paciente antes de qualquer procedimento de risco.
Outros procedimentos, como retossigmoidectomias, po-
dem ocasionar ejaculação retrógrada pela lesão do plexo
hipogástrico.

66
CAPÍTULO

9
Resposta metabólica ao trauma
José Américo Bacchi Hora / Marcelo Simas de Lima / Eduardo Bertolli

Caso a resposta metabólica não esteja à altura das exi-


Pontos essenciais gências do reparo tecidual e do processo inflamatório, o
- Iniciadores e propagadores da resposta metabólica; indivíduo sucumbe a esse insulto. Se o paciente o superar,
- Utilização de substratos energéticos; passará para um período de convalescença, em que pre-
- Implicações clínicas. domina o anabolismo (restauração da massa magra e dos
estoques de gordura). Didaticamente, todo esse processo
pode ser dividido em 3 fases. Uma fase catabólica inicial,
1. Introdução seguida de fases anabólicas, inicial e tardia.
Traumas, infecções e condições que deflagram respos-
tas inflamatórias constituem as bases das doenças cirúr- 2. Definições
gicas de maior gravidade. A mobilização e a utilização dos
substratos energéticos, como ácidos graxos, aminoácidos e A resposta inflamatória pode evoluir em diversos es-
glicose representam a mudança metabólica resultante des- tágios, dependendo do estímulo desencadeante. Os sinais
ses eventos. cardinais que apontam para um evento inflamatório são
Os reservatórios energéticos lipídico, no tecido adipo- dor, rubor, calor, tumor e perda de função (Figura 1). Con-
so, e proteico, no sistema musculoesquelético, garantem o sidera-se síndrome da resposta inflamatória sistêmica todo
doente que apresenta pelo menos 2 itens entre FC >90bpm,
fornecimento de energia para a manutenção das funções
FR >20irpm, T >38° ou <36°C, leuc. >12.000, <4.000 ou
essenciais para a vida após o trauma como a ação dos ór-
>10% bastões.
gãos viscerais, regulação e ativação do sistema imunológico
e reparo de tecidos e órgãos lesados.
É por meio de hormônios e mediadores inflamatórios
que ocorrem o transporte e a distribuição dos substratos
energéticos para os órgãos viscerais. Adicionalmente, even-
tos que acontecem concomitantemente à resposta ao trau-
ma, como imobilização, jejum, intervenções terapêuticas
(ação de drogas anestésicas, reposição maciça de hemode-
rivados etc.), isquemia regional e hipoperfusão tecidual glo-
bal amplificam e prolongam as mudanças metabólicas que
resultam em hipercatabolismo.
Uma resposta metabólica efetiva é capaz de reparar de
forma adequada as lesões teciduais e atender as demandas Figura 1 - Sinais da inflamação
do processo inflamatório até a sua resolução. Entretanto,
não apenas a gordura é prontamente utilizada para essa Se o doente em SIRS apresenta foco infeccioso compro-
proposta, mas também substratos contendo nitrogênio vado com cultura, diz-se que está em sepse. Se a sepse é
derivado da degradação proteica do sistema musculoes- acompanhada de choque circulatório, considera-se sepse
quelético. Estes servem para a síntese de proteínas de fase grave. Se a instabilidade hemodinâmica não é revertida
aguda e a reconstrução dos tecidos lesados, além de serem com volume e o doente necessita de droga vasoativa, defi-
precursores da gliconeogênese. Como prejuízo, pode ocor- ne-se o choque séptico.
rer déficit na função locomotora e na ação dos músculos da Uma vez que acontece o evento desencadeante, inicia-
caixa torácica, o que induz a convalescença prolongada e -se uma série de alterações neuroendócrinas com a ativa-
potencial morbidade ao paciente. ção do eixo hipotalâmico-hipofisário-suprarrenal (Figura 2).

67
CI RUR G I A G ERAL

A partir daí, ocorre o estímulo ou inibição à produção de determinados hormônios cujo objetivo final será o aumento da
oferta de nutrientes (hiperglicemia) e a vasoconstrição.

Figura 2 - Resposta neuroendócrina ao trauma

3. Iniciadores e propagadores da respos- de atividade alfa levam à inibição da reutilização de ácidos


graxos.
ta metabólica
O aumento da demanda metabólica varia de acordo
com a gravidade do trauma imposto, e a resposta metabóli-
ca pode ser notada por vários dias. O sítio de infecção ou a
região anatômica traumatizada representa o arco aferente
da resposta metabólica, sendo essencial o papel do sistema
nervoso. A manutenção dessa resposta metabólica é decor-
rente da descarga sistêmica dos hormônios contrarregula-
dores que representam o arco eferente.
O Sistema Nervoso Central (SNC) é responsável pela ini-
ciação da resposta metabólica diante do insulto. Já o Siste-
ma Nervoso Periférico (SNP) atua na transmissão dos sinais
aferentes. Observam-se o aumento dos hormônios contrar-
reguladores (glicocorticoides, glucagon e catecolaminas), Figura 3 - Atuação do glucagon e insulina; na fase catabólica inicial
amplificação e manutenção da resposta metabólica pela predomina o glucagon, consequentemente ocorre maior gliconeo-
ação de citocinas pró-inflamatórias (TNF, IL-1, IL-6) e au- gênese hepática
mento da atividade oxidante. Por outro lado, há diminuição
da secreção de insulina e aumento da resistência insulínica. Também pode ser observada, na resposta hipermetabó-
Na fase catabólica inicial, predominam catecolaminas, lica, uma redução da atividade endógena de agentes ana-
corticosteroides e glucagon, com queda significativa da in- bólicos (insulina, testosterona e hormônios tireoidianos)
sulinemia (Figura 3). Neste ambiente, ocorre balanço nitro- que, somada à ação dos hormônios contrarreguladores,
genado negativo, independentemente da oferta de glicose resulta em maior perda proteica.
e quebra de proteínas e de triglicérides que acabam alimen- Além da ação dos hormônios contrarreguladores, ocor-
tando a gliconeogênese hepática, e a formação de corpos rem amplificação e manutenção da resposta metabólica
cetônicos. O catabolismo lipídico é mediado pelas cateco- pela ação das citocinas pró-inflamatórias (TNF, interleucinas
laminas, principalmente as que exercem atividade beta. As VI, I e VIII), além de um aumento da atividade oxidante, pela

68
R E S P O S TA M E TA B Ó L I C A A O T R A U M A

ação dos radicais livres e pela participação dos metabólitos A interleucina I (IL-I) em baixas concentrações estimula
do ácido araquidônico, ambos causando aumento da degra- o sistema imunológico de forma positiva, mas em altas con-
dação proteica. centrações produz febre, hipotensão e proteólise. Em asso-
Os mediadores pró-inflamatórios merecem atenção ciação a TNF, tem efeito sinérgico. A IL-VI tem sido encon-
especial, pelo seu papel na propagação da resposta me- trada em grandes concentrações plasmáticas nos politrau-

CIRURGIA GERAL
tabólica. Infusões de TNF (caquexina) em hospedeiros matizados e é responsabilizada por estimular a produção
causam anorexia, ativam o eixo hipotalâmico-pituitário- hepática de proteínas de fase aguda. É também observada
-suprarrenal e aumentam o catabolismo proteico, a lipóli- nos pacientes com pancreatite aguda grave, e, em ambos os
se e a gliconeogênese. Em altas doses, levam à disfunção casos, altos níveis de IL-VI se relacionam a maior gravidade
de diversos órgãos e sistemas, resultando até em óbito e mortalidade nesses grupos.
(Tabela 1). Níveis elevados de citocinas em sítios específicos são
observados em diversas situações. Altos níveis de TNF e
Tabela 1 - Efeito do TNF na resposta do hospedeiro IL-VI são encontrados no líquido peritoneal no pós-opera-
TNF tório de cirurgias abdominais de grande porte. Também se
Resposta Correlação clínica
(mg/2)
observam níveis aumentados de IL-I e IL-VI no liquor de pa-
Redução nos estoques de cientes com TCE grave.
Infecções subclínicas,
1 ferro, mialgia, cefaleia,
influenzae.
anorexia.
Febre, taquicardia, hormônios Apendicite aguda, 4. Utilização de substratos energéticos na
2 contrarreguladores, proteínas abscessos intra-
fase aguda. abdominais. resposta metabólica
Retenção líquida, linfopenia,
>500 Grande queimado. A 1ª fase na resposta ao trauma caracteriza-se por um
hipotensão.
Diminuição do nível de Sepse grave, estado de hipercatabolismo, hiperglicemia, hiperlactatemia
consciência, hipotensão pancreatite aguda e mobilização simultânea de ácidos graxos e glicose como
>620
grave, edema pulmonar, necrosante, grande substratos energéticos pelos processos de glicogenólise e
oligúria. queimado séptico.
gliconeogênese no fígado (Figura 4).

Figura 4 - Processos de gliconeogênese e glicogenólise

A produção de glicose no fígado é derivada da quebra do glicogênio, da síntese de carbonos reciclados (por exemplo,
glicerol e lactato) e, em menor extensão, da utilização de aminoácidos precursores, como a alanina. Normalmente, o meta-
bolismo periférico da glicose se equipara ao aparecimento de glicose sérica. A maior parte da glicose é metabolizada em CO2
e água. Em alguns tecidos, ocorre isquemia locorregional, e a glicose, além de oxidada, pode ser metabolizada em piruvato,
que será transformado em lactato pela glicólise.
Em doentes críticos, é comum o aumento da concentração sérica de lactato. Embora possa refletir um estado de hipo-
perfusão tecidual em pacientes hipercatabólicos, pode haver aumento da produção de lactato sem haver hipóxia. Nesses

69
CI RUR G I A G ERAL

casos, o aumento da produção de piruvato é consequência da glicólise acentuada, tanto pelo aumento da captação de gli-
cose pelos tecidos como pela quebra do glicogênio. O piruvato é degradado em lactato e hidrogênio, resultando em acidose
láctica.
Os ácidos graxos são fruto da hidrólise dos triglicérides do tecido adiposo e circulam no plasma em níveis superiores aos
que se conseguem metabolizar. Os músculos retiram os ácidos graxos do plasma para oxidação, e o fígado, além de oxidar
alguns ácidos graxos, também reesterifica outros triglicérides que acabam se agrupando com proteínas e são excretados
para o sangue como VLDL (Figura 5).

Figura 5 - Metabolismo dos ácidos graxos e triglicérides: após o ciclo de Lynen (e o ciclo de Krebs), ocorre formação de 80 ATP, com con-
sumo de 1 ATP

Esses triglicérides são armazenados ou hidrolisados pela precursor: o glutamato. Entretanto, preferencialmente, a 2ª
lipase lipoproteica e utilizados pelas células musculares. No é formada e utilizada como precursora da glicose por gli-
tecido adiposo, os ácidos graxos são reesterificados em tri- coneogênese. Assim, a maior produção de alanina implica
glicérides. Em não alimentados, esses ácidos representam menor produção de glutamina.
os substratos energéticos predominantes. Esse aminoácido serve como fonte de energia primária
No trauma, há aumento simultâneo da mobilização de para o trato gastrintestinal e o sistema imunológico. Níveis
glicose e ácidos graxos. Associada à estimulação da lipólise, baixos de glutamina induzem a atrofia das vilosidades da
a produção da glicose hepática é aumentada pela glicoge- camada mucosa, com consequente redução na capacidade
nólise e pela gliconeogênese. A utilização de glicose libera
absortiva intestinal e maior incidência de sepse por translo-
lactato, levando ao aumento do seu nível sérico, enquanto
cação bacteriana.
o aumento da lipólise causa elevação nos níveis séricos de
ácidos graxos.
Dentre os aminoácidos de cadeia ramificada, o que so- 5. Implicações clínicas e a resposta meta-
fre redução mais significativa é a glutamina que, além de ter bólica no doente cirúrgico
sua degradação aumentada, tem sua produção diminuída.
Trata-se do mais abundante aminoácido livre no meio intra- As manifestações iniciais após o trauma, a partir das
celular. Em doentes críticos, pode haver uma redução das alterações neuroendócrinas desencadeadas pelo evento
concentrações de glutamina no músculo de até 80 a 90%. A traumático, podem ser divididas em fisiológicas, metabóli-
glutamina e a alanina são formadas a partir de um mesmo cas, clínicas e laboratoriais (Tabela 2).

70
R E S P O S TA M E TA B Ó L I C A A O T R A U M A

Tabela 2 - Manifestações iniciais após o trauma Quando o limite de resposta fisiológica é maior que a
Fisiológicas gravidade do trauma, a reserva do indivíduo é suficiente
- ↑ Débito cardíaco; para responder às demandas criadas pelo trauma e o pa-
ciente sobrevive, começando, então, a fase de recuperação
- ↑ Ventilação;
ou anabólica.

CIRURGIA GERAL
- ↑ Transporte; Na fase anabólica inicial, há queda dos níveis circulantes
- Perda ponderal; de corticosteroides, diurese do líquido retido e recuperação
- Proliferação celular. do apetite. Há redução da gliconeogênese e da formação de
Metabólicas proteínas de fase ativa, com redirecionamento da síntese
- ↑ Catabolismo proteico; proteica para a recuperação muscular. O foco passa a ser a
- ↑ Oxidação lipídica;
reconstituição dos tecidos lesados. O balanço nitrogenado
torna-se positivo, com ganho de peso magro (máximo de
- ↑ Gliconeogênese.
100g/dia) e força muscular, porém o ritmo de ganho nunca
Clínicas se iguala ao ritmo de perda da fase catabólica inicial.
- ↑ Anorexia; Na fase anabólica tardia, há redução do balanço nitroge-
- ↑ Taquicardia; nado positivo, que volta a se aproximar do normal, e redu-
- ↑ Taquipneia; ção do ritmo de ganho de peso. A restauração das reservas
- ↑ Febre. que caracteriza essa fase é medida pela recuperação dos
depósitos de gordura, que consomem mais calorias, por
Laboratoriais
isso acontece de forma mais lenta.
- Hematocitose;
- Hiperglicemia; A - Controle da dor
- ↑ Níveis de proteína C reativa;
A dor influencia a resposta metabólica, pois limita a ati-
- ↑ Excreção urinária de nitrogênio. vidade física do indivíduo, impedindo a sua recuperação, e
estimula a fase catabólica com níveis persistentemente ele-
A importância de eventos que adicionalmente exacer-
vados de catecolaminas. Além de favorecer a imobilidade,
bam a resposta metabólica também deve ser considerada.
a dor compromete a ventilação pulmonar e aumenta o con-
Um exemplo é a isquemia regional, que acontece nas situ- sumo de oxigênio.
ações em que existe, por exemplo, hipovolemia. De acordo A terapia analgésica deverá, portanto, fazer parte dos re-
com uma curva de desempenho ventricular para descrever cursos para o controle da resposta metabólica. O bloqueio
o mecanismo de Frank-Starling, pode-se observar que uma aferente por meio de técnicas anestésicas pode reduzir a
pré-carga por vezes adequada para a manutenção da perfu- resposta metabólica ao estresse cirúrgico. A administração
são de órgãos como coração, cérebro e pulmões pode não de anestésicos locais e narcóticos no espaço peridural pro-
ser adequada para a perfusão de órgãos do território es- move o controle efetivo da dor sem os efeitos sedativos da
plâncnico, como os rins e o trato gastrintestinal (Figura 6). administração parenteral de narcóticos. A analgesia pós-
-operatória permite a mobilização precoce, reduz a utiliza-
ção de Anti-Inflamatórios Não Hormonais (AINHs) e atenua
a liberação de hormônios contrarreguladores da hiperglice-
mia, reduzindo a resistência à insulina e o balanço hidroge-
nado negativo.

B - Jejum e avaliação metabólica


Não apenas o jejum absoluto do pós-operatório recen-
te, mas também o jejum relativo em decorrência de exames
e procedimentos terapêuticos causa limitação do forneci-
mento de substratos energéticos, resultando em consu-
Figura 6 - Curva de desempenho ventricular mo exclusivo dos estoques energéticos do corpo humano.
Embora indivíduos sadios tolerem vários dias de jejum, o
Reduções da perfusão de órgãos como os do trato gastrin- mesmo não acontece com doentes críticos. O jejum deve
testinal resultam em acidemia e hipercapnia, levando a mais ser limitado até, no máximo, 3 ou 4 dias quando se tratam
vasoconstrição esplâncnica por meio de hormônios contrarre- pacientes críticos, sendo o suporte nutricional introduzido
guladores que são secretados, decréscimo dos níveis de insu- o mais precocemente possível.
lina e geração de radicais livres de oxigênio, citocinas pró-in- O suprimento calórico deve ser suficiente para suprir o
flamatórias e ativação de neutrófilos que, ao serem liberados aumento da atividade metabólica decorrente do trauma.
para a circulação, estimulam a degradação proteica. Uma das maneiras de expressar a atividade metabólica é

71
CI RUR G I A G ERAL

a partir da produção de CO2. Com base na medição do CO2 - Ácidos graxos e aminoácidos são utilizados na gliconeogênese
expirado, é possível fazer o cálculo de calorimetria indireta para obtenção de substrato energético;
para obter o Índice Metabólico (IM, Tabela 3). - O objetivo final das alterações neuroendócrinas geradas pelo
Tabela 3 - Índice metabólico por calorimetria indireta trauma será o aumento da oferta de nutrientes (hiperglicemia)
e a vasoconstrição;
Calor produzido = Gasto energético = Índice metabólico
- Interleucinas e mediadores pró-inflamatórios também partici-
IM (Kcal/m2/h) = Avaliação por calorimetria indireta pam de toda essa cascata de reações.
[3,9 x VO2 (L/min) + 1,1 x VCO2 (L/min)] x 60 (min/h)
Superfície corpórea (m2)

Os valores do IM em condições basais são reproduzi-


dos e preditos com base na idade e no sexo do indivíduo,
oscilando entre 1 e 12%. Valores acima desses indicam hi-
permetabolismo. O aumento da taxa metabólica basal é di-
ferente conforme a situação clínica a que o paciente está
submetido. Traumas ortopédicos podem aumentá-la de 10
a 30%. Doentes em sepse podem cursar com aumentos de
30 a 60%. Esse aumento pode chegar a 100% nos grave-
mente queimados.
Existe um limite para o hipermetabolismo. A resposta
do organismo ao trauma tem um limite fisiológico expresso
pela relação entre a gravidade do trauma imposto e a re-
serva fisiológica do indivíduo (Figura 7). Desta forma, condi-
ções extremas podem levar à exaustão dos sistemas fisioló-
gicos, com grave prejuízo para a saúde e até mesmo morte.

Figura 7 - Hipermetabolismo

6. Resumo
Quadro-resumo
- A resposta do indivíduo frente ao trauma divide-se em 3 fases:
catabólica inicial, anabólica inicial e tardia;
- Todo processo se dá por estímulos e inibições do eixo hipotála-
mo – hipófise – suprarrenal;
- Na fase inicial, ocorrem aumento dos hormônios contrarregu-
ladores (corticoides, catecolaminas e glucagon) e diminuição
da insulina;
- O organismo entra em estado de hiperglicemia e balanço nitro-
genado negativo;
- O principal substrato energético do organismo é a glicose;

72
CAPÍTULO

10
Hérnias da parede abdominal
Eduardo Bertolli

Pontos essenciais
- Conhecimento dos principais tipos de hérnias da pare-
de abdominal e suas condutas;

- Hérnias umbilicais;
- Hérnias epigástricas;
Figura 1 - Hérnia (A) umbilical na criança e (B) volumosa no adulto
- Hérnias ventrolaterais de Spiegel;
Anatomicamente, o umbigo é formado por um anel fi-
- Hérnias incisionais. broso coberto por pele, fáscia umbilical e saco peritoneal.
O anel umbilical tem de 2 a 3mm de diâmetro, e, na parte
inferior, estão os restos fibrosos das artérias umbilicais e do
1. Introdução úraco. Na parte superior, há apenas a veia umbilical obli-
As hérnias representam uma das afecções mais frequen- terada, que formará o ligamento redondo, que também se
tes nos serviços de cirurgia geral. Seu tratamento é eminen- insere na borda inferior. Se a fáscia umbilical de Richet não
temente cirúrgico e consiste na cirurgia mais realizada, em estiver presente, haverá uma área de fraqueza no umbigo
serviços públicos ou privados. por onde se desenvolverão as hérnias.
As hérnias são denominadas de acordo com sua região
A - Etiologia
anatômica. Na parede abdominal, encontram-se as hérnias
epigástricas, umbilicais, lombares, ventrolaterais de Spie- As hérnias umbilicais nas crianças são consideradas con-
gel, incisionais e periestomais. Na região inguinofemoral, gênitas. São mais frequentes em recém-nascidos pré-ter-
sede comum de hérnias, podem-se encontrar as herniações mos, de baixo peso, em meninas, na raça negra e associadas
a algumas doenças (hipotireoidismo congênito, mucopolis-
inguinais, femorais e obturatórias.
sacaridoses) ou síndromes (Down, Beckwith-Wiedemann).
Neste capítulo, serão abordadas as hérnias da parede
No adulto, podem-se encontrar hérnias congênitas não
abdominal mais comumente diagnosticadas e suas carac- tratadas ou hérnias adquiridas. As principais causas são
terísticas. obesidade, gravidez, trauma, ascite e outros estados que
aumentam a pressão intra-abdominal. São mais comuns no
2. Hérnias umbilicais sexo feminino.

Hérnias umbilicais ocorrem tanto em adultos quanto B - Quadro clínico


em crianças, mas o modo de apresentação, história natural
Observa-se abaulamento da cicatriz umbilical, que pode
e tratamento são diferentes (Figura 1). É definida como a
ou não ser reduzido espontaneamente. Em pacientes ma-
persistência do anel umbilical sem o fechamento de sua ca-
gros, é possível palpar o anel herniário. O ultrassom confir-
mada aponeurótica, com protrusão anormal do peritônio e ma o diagnóstico na maioria dos casos.
da pele em função de um tecido adiposo pré-peritoneal, in- No adulto, os principais diagnósticos diferenciais são
testino ou grande omento. Mais recentemente, com o uso lipomas, hérnias da linha alba, linfonodos e tumores cutâ-
crescente da cirurgia videolaparoscópica, o umbigo passou neos. A conduta, porém, não muda com o diagnóstico etio-
a ser sede também de hérnias incisionais. lógico.

73
CI RUR G I A G ERAL

Apesar de ser raro, as hérnias umbilicais podem encar- aponeuróticas ou presença de mais de uma hérnia podem
cerar-se e, eventualmente, evoluir com sofrimento vascular. exigir o uso de telas.
O quadro clínico será de dor abdominal e abaulamento não Quando é diagnosticada a diástase do reto abdominal,
redutível. História de oclusão intestinal pode acompanhar o o tratamento consiste na reaproximação da linha alba com
quadro. Outras complicações podem surgir na pele, como uma sutura de reforço tipo plicatura. As principais compli-
úlceras, infecção, linfangite e eczema. cações pós-operatórias em ambas as cirurgias são infecção,
seroma (em cirurgias com grandes descolamentos), deis-
C - Tratamento cência e recidiva.
Na criança, o tratamento vai depender da idade e do
tamanho de anel herniário. O anel menor que 1,5cm de di- 4. Hérnias ventrolaterais de Spiegel
âmetro pode fechar-se espontaneamente. O fechamento Caracterizam-se pela projeção do saco herniário por
espontâneo acontece em 85% dos casos até os 3 anos e em meio da linha semilunar ou pararretal externa, geralmente
96% até os 6 anos. Hérnias maiores que 1,5cm de diâmetro no nível da linha arqueada de Douglas, em que a forma-
ou que persistem após o 6º ano devem ser operadas. Em ção da bainha do reto abdominal muda de configuração e a
15% dos pacientes, existe concomitância de hérnias umbi- aponeurose de Spiegel é mais larga (Figura 2).
lical e inguinal, que devem ser operadas ao mesmo tempo.
No adulto, toda hérnia umbilical tem indicação de corre-
ção cirúrgica para evitar encarceramento. A cirurgia-padrão
descrita por Mayo consiste na incisão semicircular, dissec-
ção do saco herniário (e redução ou retirada do seu con-
teúdo, caso haja sinais de sofrimento vascular), sutura da
aponeurose em sentido transversal (podendo-se realizar
uma superposição das aponeuroses) e fixação da cicatriz
umbilical na aponeurose. O uso de telas não é rotineiro e é
reservado para grandes defeitos.

3. Hérnias epigástricas
Definem-se como a presença de saco herniário na região
epigástrica (linha alba). Alguns autores utilizam o termo
pseudo-hérnia epigástrica, quando o defeito aponeurótico Figura 2 - Linha arqueada “de Douglas”
é muito pequeno, permitindo a passagem somente de gor-
dura pré-peritoneal sem formar o saco herniário clássico.
A - Etiologia
A - Etiologia
Não há uma explicação satisfatória para os defeitos na
Correspondem a 5% das hérnias e ocorrem pelo au- linha semilunar. Normalmente, a região de Spiegel apresen-
mento da pressão intra-abdominal forçando a passagem ta uma resistência menor, de modo que o bom desenvolvi-
do tecido adiposo pré-peritoneal. É comum encontrar mais mento muscular minimiza o aparecimento dessas hérnias.
de uma abertura aponeurótica na linha alba, o que denota São mais comuns na 8ª década de vida, com discreto pre-
uma fraqueza de toda a parede. Podem ocorrer em ambos domínio no sexo feminino. Na experiência pessoal do autor,
os sexos, normalmente dos 18 aos 50 anos, sendo mais co- esse tipo é mais comum em provas e concursos do que na
muns em homens. prática clínica diária.

B - Quadro clínico B - Quadro clínico


A maioria é assintomática ou apresenta dor à palpação. Como o orifício geralmente é estreito, na maior parte
O principal diagnóstico diferencial é a diástase do músculo dos casos as hérnias não são palpáveis ao exame físico. O
reto abdominal. O ultrassom de parede abdominal pode fa- ultrassom é útil no diagnóstico desses casos.
zer a diferenciação, mas ambos são de tratamento cirúrgico.
C - Tratamento
C - Tratamento O tratamento é cirúrgico, podendo o acesso ser feito por
A cirurgia consiste na incisão longitudinal, identificação inguinotomia ou incisão paramediana pararretal. Nos casos
e correção do saco e do anel herniário. O tempo principal de anel herniário muito largo, o reparo do defeito pode ser
da cirurgia é a dissecção do tecido subcutâneo até que seja feito com reforço transversal “em jaquetão”, uso de fáscia
encontrada aponeurose firme para o reparo. Grandes falhas adjacente ou telas.

74
HÉRNIAS DA PAREDE ABDOMINAL

5. Hérnias incisionais Alguns grupos empregam a técnica do pneumoperitô-


nio progressivo. O paciente é internado, e é colocado um
São definidas como uma protrusão do conteúdo abdo-
cateter para insuflação de pneumoperitônio. Esse proce-
minal através de áreas na parede abdominal, enfraquecidas
dimento é repetido até que se obtenha uma melhora da
devido a intervenções cirúrgicas anteriores (Figura 3).
complacência abdominal a ponto de permitir a redução da

CIRURGIA GERAL
hérnia sem prejuízo à função respiratória.
O tratamento escalonado, com uso de telas e fechamen-
to progressivo, também pode ser utilizado. Às vezes, não
é possível o fechamento primário da pele. Então, deve-se
aguardar o fechamento por 2ª intenção e correções da pele
com cirurgia plástica a posteriori (Figura 4).
Em situações de urgência, como no estrangulamento do
conteúdo herniado, muitas vezes são necessárias enterec-
tomias. O cirurgião deve estar sempre atento para evitar
ressecções muito amplas para que o paciente não evolua
com síndrome do intestino curto.

Figura 3 - Casos de hérnias incisionais

A - Etiologia
Sua incidência varia de 7 a 13%, podendo chegar a 30%
em cirurgias contaminadas. Os principais fatores de risco
são os mesmos das deiscências e falhas de cicatrização,
como infecção, desnutrição, estados de imunossupressão
(diabetes, uso de corticoides e quimioterapia ou radiote-
rapia), aumento da pressão intra-abdominal (vômitos, íleo
prolongado com distensão, obesidade, ascite, DPOC), técni-
ca cirúrgica inadequada etc.

B - Quadro clínico
Abaulamento em área de cicatriz cirúrgica prévia. As
hérnias incisionais podem apresentar complicações locais,
como escoriações e úlceras, ou intra-abdominais, como
encarceramento, obstrução intestinal e fístulas enterocutâ-
neas. Ultrassom e tomografia são os principais exames que
podem ser utilizados.

C - Tratamento
O tratamento é eminentemente cirúrgico e deve ser preco-
ce. Hérnias incisionais volumosas são um desafio para o cirur- Figura 4 - Hérnia incisional com fechamento da pele por 2ª intenção
gião, devendo o tratamento ser cuidadosamente planejado.
Hérnias com evolução arrastada podem se desenvolver
com a chamada perda de domicílio do conteúdo herniado.
6. Outros tipos de hérnias
Nesses casos, a simples correção, além de difícil tecnica-
mente, pode evoluir com restrição respiratória e síndrome A - Hérnias lombares
compartimental abdominal. Nesses casos, apesar de alguns São hérnias que ocorrem por meio da ampla aponeuro-
autores defenderem o uso de corticoides no pré-operató- se do transverso, em 2 aberturas localizadas, uma abaixo da
rio, a medida não é consensual. 12ª costela (superiores – hérnia de Grynfelt) e outra acima

75
CI RUR G I A G ERAL

da crista ilíaca (inferiores – hérnia de Petit). As inferiores


são mais comuns, mais frequentes em mulheres, principal-
mente acima dos 50 anos, e o tratamento é cirúrgico.

B - Hérnias obturatórias
Consistem na protrusão visceral por meio do forame ob-
turatório. São incomuns, normalmente unilaterais à direita,
mas mais encontradas em mulheres longilíneas acima dos
60 anos, com queda ponderal, e multíparas. O principal si-
nal propedêutico, o sinal de Howship-Romberg, consiste na
dor no trajeto do nervo obturatório. Pode apresentar em
seu conteúdo o ceco, apêndice, tuba, bexiga e ovário.

C - Hérnias especiais e epônimos


- Hérnia de Richter: quando há pinçamento da parede
lateral antimesentérica da alça;
- Hérnia de Littré: quando há um divertículo de Meckel
no conteúdo herniado;
- Hérnia de Amyand: quando o apêndice cecal faz parte
do conteúdo herniado e existe o quadro de apendicite
aguda;
- Hérnia de Garengeot: semelhante à hérnia de Amyand,
mas quando ocorre em hérnia femoral.

7. Telas
O uso de telas nas técnicas sem tensão é considerado
rotina pela maioria dos cirurgiões. As telas podem ser ina-
bsorvíveis, de polipropileno (Prolene®) ou polipropileno as-
sociado à poligalactina (Prolene® e Vycril®).
Também existem telas absorvíveis, quando há a ne-
cessidade do contato com alças intestinais. Podem ser
naturais (de dura-máter, membrana amniótica, pericárdio
bovino) ou sintéticas (de poligalactina – Vycril® ou polida-
xona – Proceed®).

8. Resumo
Quadro-resumo
- As hérnias umbilicais podem regredir espontaneamente nas
crianças, dependendo do tamanho do anel herniário;
- Hérnias umbilicais em adultos, epigástricas, lombares e
incisionais são de tratamento cirúrgico;
- Os principais fatores de risco para o desenvolvimento de
hérnias incisionais são infecção, desnutrição, estados de
imunossupressão, aumento da pressão intra-abdominal e
técnica cirúrgica inadequada.

76
CAPÍTULO

11
Hérnias inguinofemorais
Eduardo Bertolli

Pontos essenciais
- Noções anatômicas da região inguinofemoral;
- Etiologias das hérnias inguinofemorais;
- Principais técnicas de correção cirúrgica.

1. Hérnias inguinais
As hérnias inguinais constituem o tipo mais comum de hérnia: respondem por 75% dos casos. Podem ocorrer na infância
ou na vida adulta, com mecanismos etiológicos diferentes, e são mais comuns à direita (60%), seguidos da esquerda (30%) e
bilaterais (10%). Mais frequentes em homens do que em mulheres, anatomicamente podem ser diretas ou indiretas, sendo
as últimas as mais comuns (Figura 1).

Figura 1 - Diferença entre hérnias inguinais indiretas e diretas; nos adultos, é comum o achado de hérnias mistas, com ambos os compo-
nentes

Nas crianças, acontecem pela persistência do conduto peritoneovaginal (hérnias indiretas). Nos adultos, na maioria das
vezes, estão associadas à fraqueza da parede inguinal e ao esforço físico (hérnias diretas). As hérnias podem ser classificadas
segundo o esquema proposto por Nyhus:

77
CI RUR G I A G ERAL

- I - Hérnias indiretas, com anel inguinal interno sem dilatação (crianças);


- II - Hérnias indiretas, com anel inguinal interno dilatado;
- III - a) Hérnias diretas; b) hérnias mistas; c) hérnias femorais;
- IV - Hérnias recidivadas: a) diretas; b) indiretas; c) femorais; d) mistas.
A - Anatomia da região inguinal
A anatomia da região inguinal é complexa, pois, além de exigir do cirurgião um entendimento tridimensional da região,
apresenta diversas estruturas que utilizam epônimos em sua nomenclatura (Figura 2).

Figura 2 - Vista anterior da região inguinal

Os principais músculos da região inguinal são o oblíquo interno, oblíquo externo e transverso do abdome. Todos se inte-
gram medialmente para formar a bainha do músculo reto abdominal. A aponeurose do músculo oblíquo interno dá origem
à fáscia cremastérica e ao músculo cremáster. O espessamento inferolateral da aponeurose do músculo oblíquo externo
constitui o ligamento inguinal, cujo decurso da espinha ilíaca anterior até o tubérculo púbico é ligeiramente curvo e de con-
vexidade voltada para baixo. Essa convexidade é espessada e recebe o nome de ligamento de Gimbernat.
O anel inguinal externo também é formado pelas fibras do músculo oblíquo externo com sentido predominantemente
oblíquo e lateromedial junto ao púbis. O anel inguinal interno encontra-se na extremidade lateral do assoalho do canal
inguinal, entre o arco do músculo transverso superiormente e o ligamento ileopúbico de Thompson inferiormente, circun-
dado pela fascia transversalis.
O cordão espermático, principal elemento anatômico na cirurgia da hérnia, é formado pelo músculo cremáster, canal
deferente e vasos deferenciais, vasos cremastéricos, nervos (ileoinguinal, ílio-hipogástrico e genitofemoral) e artérias e

78
HÉRNIAS INGUINOFEMORAIS

veias testiculares. As artérias testiculares são ramos diretos (Figura 4). É difícil diferenciar, mesmo com a propedêutica
da aorta e localizam-se no retroperitônio, enquanto as veias adequada, as hérnias diretas e indiretas. Entretanto, essa
se originam do plexo pampiniforme. A veia testicular direita diferenciação não muda a conduta, que é o tratamento ci-
desemboca na veia cava inferior, e a veia testicular esquer- rúrgico.
da termina na veia renal esquerda.

CIRURGIA GERAL
O nervo ileoinguinal situa-se abaixo da aponeurose do
músculo oblíquo externo e divide-se em ramos que vão
inervar a pele da região púbica, a raiz do pênis e a parte
superior do escroto, no homem, ou do grande lábio, na
mulher. O nervo ílio-hipogástrico tem o mesmo trajeto e
inervação sensorial que o nervo ileoinguinal, além de emitir
ramos motores que inervam os músculos abdominais.
A partir de reparos anatômicos, as hérnias inguinais são
classificadas em diretas e indiretas. As primeiras surgem
medialmente aos vasos epigástricos, na região conhecida
como triângulo de Hesselbach, cujos limites são, medial- Figura 4 - Apresentação clínica das hérnias: (A) hérnia inguinal in-
mente, a aponeurose do músculo reto abdominal; lateral- direta, (B) hérnia inguinal direta e (C) hérnia inguinal em mulher
mente, o ligamento inguinal; superiormente, os vasos epi-
gástricos. Essas hérnias são originadas da fraqueza do asso- As hérnias inguinais encarceradas ou estranguladas
alho da região inguinal. As hérnias indiretas, que ocorrem apresentam-se com quadro de abaulamento não redutível
pela passagem de conteúdo abdominal pelo anel inguinal e bastante doloroso (Figura 5). A presença de sinais flogís-
interno, surgem lateralmente aos vasos epigástricos, na ticos locais depende da duração do quadro. Como pode ser
área conhecida como triângulo de Hessert (Figura 3). causa de abdome agudo obstrutivo em todas as faixas etá-
rias, a pesquisa de hérnias é tempo obrigatório no exame
físico de pacientes que se apresentam na emergência com
esse quadro.

Figura 5 - (A) Volumosa hérnia inguinoescrotal estrangulada, cujo


aspecto intraoperatório (B) confirmou o sofrimento das alças in-
testinais

C - Tratamento
Figura 3 - Visão posterior da região inguinal: observar a passagem O aforismo de que hérnia diagnosticada é hérnia opera-
do cordão espermático pelo anel inguinal interno (crural anterior)
da é verdadeiro. Não se deve postergar o tratamento, salvo
no sítio de origem das hérnias indiretas, lateralmente aos vasos
epigástricos; bem como a região do triângulo de Hesselbach, sítio na presença de comorbidades clínicas importantes, pelo ris-
das hérnias diretas, medialmente aos vasos epigástricos co de encarceramento. Nos casos de hérnias encarceradas,
as tentativas de redução manual devem ser desencorajadas
pela dor do procedimento e por não modificarem a condu-
B - Quadro clínico ta, que é a cirurgia.
Observa-se abaulamento inguinal, principalmente após Desde que Bassini descreveu a 1ª técnica de correção
esforço físico, ou ainda em posição ortostática, que pode da hérnia, respeitando a anatomia da região inguinal, foram
ou não ser reduzido espontaneamente. Durante o exame descritas diversas técnicas. A hernioplastia de Bassini con-
físico, deve-se procurar palpar o anel inguinal interno e ca- siste na sutura do tendão conjunto no ligamento inguinal
racterizar se há ou não dilatação. A manobra de Valsalva (Figura 6). Apesar de ainda ser utilizada, está associada a
(apneia em inspiração forçada) é útil na maioria dos casos quase 25% de recidiva por ser uma técnica com tensão.

79
CI RUR G I A G ERAL

A técnica de Lichtenstein é considerada hoje padrão-ou-


ro na correção de hérnias inguinais por apresentar taxas de
recidiva menores que 1%. É uma técnica dita sem tensão,
que utiliza uma tela colocada sobre a parede posterior do
canal inguinal, fixada no púbis, ligamento inguinal e tendão
conjunto, reforçando a musculatura e corrigindo eventuais
dilatações do anel inguinal interno (Figura 8).

Figura 6 - Hernioplastia à Bassini: (A) oblíquo interno; (B) fascia


transversalis; (C) ligamento inguinal; (D) oblíquo externo e (E) in-
cisão de alívio

A técnica descrita no serviço de Shouldice, no Canadá,


consiste no fechamento por planos com 4 linhas de suturas
contínuas. Apesar da baixa taxa de recidiva relatada pelos
criadores da técnica, esses dados são de difícil reprodução
em outros serviços, e a técnica não é empregada de rotina.
A hernioplastia de Stoppa é considerada sem tensão por
acesso extraperitoneal. O cirurgião acessa a região inguinal Figura 8 - Técnica de Lichtenstein, já com a tela fixada ao tendão
por via extraperitoneal, onde é colocada uma tela (Figura conjunto e ao ligamento inguinal
7). A principal indicação para o uso dessa técnica são as hér-
nias inguinais bilaterais e/ou recidivadas. A correção por videolaparoscopia vem sendo bastante
utilizada. À semelhança da técnica de Stoppa, o acesso é
extraperitoneal, e a principal indicação são as hérnias re-
cidivadas. As 2 principais técnicas são o TEP (Total Extra-
peritoneal Repair) e o TAPP (transabdominal preperitoneal
mesh repair).
A anatomia do canal inguinal pelo acesso retroperito-
neal deve ser bem conhecida pelo cirurgião, em especial
algumas regiões críticas. A região conhecida como triangle
of doom (ou triângulo do desastre) limita-se medialmente
pelo ducto deferente, lateralmente pelos vasos gonadais e
inferiormente pelos vasos ilíacos externos. Nessa região,
encontram-se, além da artéria e veia ilíacas externas, a veia
circunflexa profunda, o ramo genital do nervo genitofemo-
ral e o nervo femoral. O cirurgião deve evitar o uso de gram-
pos nessa região pela chance de lesão de um desses vasos.
Outra região, conhecida como triangle of pain (ou tri-
ângulo da dor), limita-se medialmente pelos vasos gona-
dais, lateralmente pelo trato ileopúbico e inferiormente
pela borda inferior da pele. Essa região contém os nervos
cutâneos femoral lateral e femoral anterior da coxa. O uso
Figura 7 - Técnica de Stoppa, já com a tela colocada, posterior às inadvertido de grampos nessa região poderá acarretar neu-
veias espermáticas (A) e à fascia transversalis (B) ralgias no pós-operatório.

80
HÉRNIAS INGUINOFEMORAIS

CIRURGIA GERAL
Figura 9 - Acesso extraperitoneal: em vermelho, a região conhecida como triangle of doom, e em azul, a região conhecida como triangle of pain

Nos casos de hérnias encarceradas, o tratamento é a mente, a fascia transversalis). O orifício miopectíneo de
cirurgia de urgência. Pode ser realizada por inguinotomia, Fruchaud consiste na projeção do triângulo de Hessert, de
mas, na hipótese de sofrimento vascular, deve-se optar pela Hesselbach e do trígono femoral. Logo, essa região compre-
laparotomia mediana. A correção da hérnia deve ser reali- ende todas as hérnias inguinofemorais (Figura 10).
zada no mesmo procedimento.

2. Hérnia femoral
A hérnia femoral resulta da projeção do saco herniário
pelo trígono femoral, abaixo do ligamento inguinal. É mais
comum no sexo feminino (4:1), e 90% são unilaterais, à di-
reita.

A - Anatomia da região femoral


O canal femoral limita-se, lateralmente, pela bainha dos
vasos femorais, anteriormente, pelo ligamento ileopúbico
(Thompson) e, inferiormente, pelo ligamento pectíneo (Co-
oper, que consiste na aponeurose de inserção do múscu-
lo pectíneo, onde também se insere, posterior e inferior- Figura 10 - Orifício miopectíneo de Fruchaud

81
CI RUR G I A G ERAL

B - Quadro clínico 3. Resumo


O quadro clínico é semelhante ao das hérnias inguinais Quadro-resumo
(Figura 11). Não é incomum o cirurgião indicar a correção
- As hérnias inguinais mais comuns são as indiretas, à direita;
de uma hérnia inguinal e, durante o procedimento, não en-
contrar o defeito nessa região. Nesse caso, o mais provável - A técnica considerada padrão-ouro para o tratamento é a
cirurgia de Lichtenstein, que utiliza uma tela sintética e é
é que se trate de hérnia femoral.
considerada técnica sem tensão;
- As técnicas videolaparoscópicas utilizam acesso extraperitoneal;
- A hérnia femoral é mais comum em mulheres, e o tratamento
é feito pela cirurgia de McVay ou pela colocação de telas e
próteses.

Figura 11 - Diferença entre (A) hérnias femorais e (B) hérnias in-


guinais

C - Tratamento
O tratamento também é cirúrgico. A principal técnica
descrita é a de McVay, pela qual o tendão conjunto é su-
turado ao ligamento de Cooper após a abertura da fascia
transversalis (Figura 12). Na década de 1990, Gilbert des-
creveu a técnica de correção de hérnias com tela dupla
(PHS – Prolene Hernia System®). A porção inferior da tela
é colocada sobre o orifício miopectíneo de Fruchaud, de
modo que permita a correção de hérnias inguinais e femo-
rais. Uma 3ª possibilidade é a correção com colocação de
tela sobre a parede posterior (a semelhança da técnica de
Lichtenstein) associada à colocação de um plug de material
sintético semelhante à tela para fechamento do orifício fe-
moral.

Figura 12 - Técnica de McVay: (A) abertura da fascia transversalis


com exposição do ligamento de Cooper e (B) fixação do tendão
conjunto ao ligamento de Cooper após redução do saco herniário

Nas hérnias femorais encarceradas, na impossibilidade


de redução do conteúdo herniado, uma das opções é a sec-
ção do ligamento inguinal. As complicações mais temidas
das hernioplastias femorais são as lesões vasculares, seja
pela rafia acidental da veia femoral à parede posterior, seja
pela compressão da artéria após o fechamento do orifício
femoral.

82
CAPÍTULO

12
Generalidades sobre o abdome agudo
Eduardo Bertolli

tábua”. Por fim, a dor referida leva à percepção da sensação


Pontos essenciais dolorosa no ponto de inserção da origem do órgão no seg-
- Sinais clínicos clássicos do abdome agudo; mento medular do corno posterior da medula. Como esta
- Avaliação clínica e principais exames complementares. via faz sinapse na medula espinhal com alguns dos neurô-
nios que recebem fibras de dor da pele, esse tipo de dor
1. Introdução pode ser sentida como se fosse superficial (Figura 1).

Define-se abdome agudo uma síndrome dolorosa aguda Tabela 1 - Características da dor nos diversos tipos de abdome
de intensidade variável, que leva o doente a procurar o ser- agudo
viço de urgência e requer tratamento imediato, clínico ou Intervalo entre o início
operatório. Não tratado, evolui para piora dos sintomas e Abdome agudo Tipo de dor da dor e a admissão no
progressiva deterioração do estado geral. serviço de emergência
As características semiológicas, observadas no exame Insidiosa,
clínico por meio da anamnese e do exame físico, são os Inflamatório Geralmente longo
progressiva
principais fatores que conduzirão o médico ao diagnóstico Obstrutivo Cólica Variável
e à possível conduta. As condições clínicas que simulam um Súbita, difusão
abdome agudo devem ser afastadas para uma correta abor- Perfurativo Geralmente curto
precoce
dagem terapêutica.
Hemorrágico Súbita, difusa Curto
Súbita, progressiva
2. Avaliação ou anginosa,
Vascular Curto
associada às
alimentações
A - Anamnese e exame físico
Muitas das afecções agudas do abdome apresentam
características peculiares que podem ser sugeridas no mo-
mento da anamnese e do exame físico. Para tanto, dados
relevantes, como início dos sinais e sintomas, característi-
cas semiológicas da dor, febre, náuseas, vômitos, distensão
abdominal, ruídos hidroaéreos intestinais, hematêmese e/
ou melena, entre outros, são de vital importância.
A dor é o principal sintoma na síndrome do abdome
agudo. A investigação das características da dor pode, mui-
tas vezes, orientar a etiologia do quadro (Tabela 1). É possí-
vel classificar a dor em 3 tipos: visceral, somática e referida.
A dor visceral normalmente é mal localizada, ao longo
da linha média, causada por distensão ou estiramento dos Figura 1 - Principais localizações de dor referida de acordo com a
órgãos e costuma ser a 1ª manifestação das afecções intra- etiologia
-abdominais. A dor somática é mediada por receptores li-
gados a nervos somáticos existentes no peritônio parietal A febre é uma manifestação comum, geralmente dis-
e na raiz do mesentério, sendo responsável por sinais pro- creta, nas fases iniciais de afecções inflamatórias e infec-
pedêuticos como a contratura involuntária e o abdome “em ciosas, tornando-se elevada em fases mais avançadas. Em

83
CI RUR G I A G ERAL

imunodeprimidos, idosos e com doenças crônicas como o


diabetes mellitus, a febre pode estar ausente, assim como
outros sinais de alerta. Por vezes, o abdome agudo se apre-
senta como infecção grave acompanhada de manifestações
sistêmicas como calafrios e toxemia, evoluindo, inclusive,
para choque séptico, o que é mais frequente nos casos de
peritonites graves.
O exame físico é imprescindível para o diagnóstico. O
paciente deve ser examinado em decúbito dorsal, com o
abdome totalmente descoberto. As regiões do abdome,
os movimentos, os aumentos de volume e as alterações na
epiderme devem ser observados. A presença de cicatrizes
abdominais tem importância e pode sugerir a etiologia da
obstrução associada a aderências. A percussão auxilia nos
casos de perfuração e suboclusão. A palpação é conside-
rada a parte mais importante, pois é por meio dela que o
médico poderá sentir a presença de peritonite localizada
(apendicite e colecistite) ou difusa (úlcera perfurada) que
se traduz pela contratilidade da musculatura de forma in-
voluntária.

B - Exames complementares
Devem-se solicitar exames laboratoriais como hemogra-
ma, amilase, lipase, bilirrubinas, transaminases e enzimas
canaliculares, além de eletrólitos e gasometria. A urina I au-
xilia em diagnósticos diferenciais.
Entre os exames de imagem, a rotina para o abdome
agudo deve constar de uma radiografia do abdome em in-
cidência anteroposterior em pé e em decúbito, e de uma
radiografia do tórax anteroposterior com visualização das
cúpulas diafragmáticas. O decúbito lateral esquerdo com
raios transversais (posição de Laurel) pode ser utilizado na
suspeita de perfuração de víscera oca. Ultrassom (US) abdo-
minal e Tomografia Computadorizada (TC) podem ser solici-
tados de acordo com a suspeita diagnóstica.
Alguns exames podem ser diagnósticos e terapêuticos.
É o caso da videolaparoscopia, da endoscopia digestiva alta
e da colonoscopia, cada qual com indicações e contraindi-
cações.

3. Classificação
Didaticamente, é possível classificar o abdome agudo
em 5 categorias:
- Perfurativo;
- Inflamatório;
- Obstrutivo;
- Hemorrágico;
- Isquêmico.
Existem ainda situações clínicas que podem cursar com
dor abdominal, mimetizando abdome agudo como síndro-
mes coronarianas, porfiria, doenças reumatológicas etc.

84
CAPÍTULO

13
Abdome agudo inflamatório
Eduardo Bertolli

A maioria dos casos de apendicite decorre de uma obs-


Pontos essenciais trução da luz apendicular por fecalito, tecidos linfoides
- Apendicite aguda; hiperplásicos, cálculos ou parasitas. Após a obstrução ins-
- Colecistite aguda; talada, a pressão intraluminal aumenta, o que determina
- Pancreatite aguda; isquemia, desenvolvendo um processo inflamatório trans-
- Diverticulite aguda. luminal. Segue-se a infecção bacteriana, que se instala
em toda a parede apendicular, podendo ocorrer gangrena
1. Definições e perfuração em até 24 horas; no entanto, esse tempo é
muito variável. Conforme a evolução do quadro, é possível
Didaticamente, o termo abdome agudo inflamatório
envolve as afecções intra-abdominais que geram um qua- classificar a apendicite aguda em fases. A classificação mais
dro de peritonite secundária a um processo infeccioso ou utilizada a divide em fases edematosa, fibrinosa, flegmono-
inflamatório. sa e perfurativa ou gangrenosa (Figura 2).
De modo geral, o quadro caracteriza-se por dor lenta,
insidiosa e progressiva de início, normalmente com um
intervalo longo entre o início dos sintomas e a procura ao
serviço de emergência. Na propedêutica abdominal, a pal-
pação pode revelar defesa localizada ou generalizada, por
meio da contração voluntária da musculatura abdominal.
É um mecanismo de defesa, tendo em vista o comprometi-
mento peritoneal.
As causas mais comuns de abdome agudo inflamatório
são a apendicite aguda, a colecistite aguda, a pancreatite
aguda e a diverticulite aguda.

2. Apendicite aguda
A apendicite aguda, a afecção cirúrgica mais comumen- Figura 2 - Fisiopatologia e evolução da apendicite aguda
te atendida nos serviços de urgência, é a principal causa de
abdome agudo em crianças, adolescentes e adultos jovens
(Figura 1).

Figura 3 - Correlação da fisiopatologia com a evolução macroscó-


pica da apendicite na obstrução por fecalitos

O diagnóstico de apendicite aguda é eminentemente


clínico. O quadro clássico é de dor abdominal inicialmen-
Figura 1 - Risco de desenvolvimento de apendicite com a idade te periumbilical que migra para a Fossa Ilíaca Direita (FID),

85
CI RUR G I A G ERAL

acompanhada de anorexia, náuseas e vômitos, com estado Exames laboratoriais são inespecíficos e, na maioria das
subfebril ou ausência de febre no início do quadro. A dor vezes, solicitados para afastar diagnósticos diferenciais. En-
se torna cada vez mais localizada na FID, e surge a irritação tre os exames de imagem, o raio x de abdome fornece sinais
peritoneal local. indiretos, como borramento da linha do psoas, posição an-
A ausculta abdominal pode revelar ausência ou diminui- tálgica com escoliose côncava para o apêndice e alça ileal
ção acentuada dos ruídos intestinais. A percussão dolorosa parética próximo à FID. O achado de cálculo no quadrante
é a manobra propedêutica importante. À palpação, revela inferior direito do abdome pode sugerir fecalito. A presença
dor no ponto de McBurney, anatomicamente localizado a de pneumoperitônio na apendicite aguda é rara.
1/3 de uma linha imaginária que vai da espinha ilíaca an- O USG abdominal tem sensibilidade de 75 a 90%, espe-
terossuperior até o umbigo. O sinal de Blumberg consiste cificidade de 86 a 100% e 90 a 98% de acurácia geral para
na descompressão brusca dolorosa após a palpação da FID. apendicite aguda (Figura 5A). O achado de um apêndice
Outros sinais propedêuticos que podem estar presentes na não compressível costuma ser relatado como o dado mais
apendicite aguda estão descritos na Tabela 1. específico, porém isso só pode ser considerado em pacien-
tes magros. Também é possível localizar bloqueio pélvico
Tabela 1 - Sinais propedêuticos na apendicite aguda ou coleção líquida na FID.
Sinal A Tomografia Computadorizada (TC) pode identificar o
Correspondência clínica
propedêutico apêndice distendido ou coleções e bloqueios locais. Também
Descompressão brusca dolorosa após a podem ser encontrados espessamento parietal do ceco, fecali-
Blumberg
palpação da FID no ponto de McBurney. to, ar extraluminal, ar intramural dissecando as paredes e fleg-
Dor na FID quando se palpa a Fossa Ilíaca mão do ceco (Figura 5B). A videolaparoscopia pode ser usada
Rovsing Esquerda (FIE), ocasionando retorno gasoso como recurso diagnóstico e terapêutico. Suas indicações clás-
com distensão do ceco. sicas são obesos, gestantes e nos casos de dúvida diagnóstica.
Dissociação entre temperatura retal e axilar
Lennander
>1°C.
Summer Hiperestesia na FID.
Dor à compressão da FID enquanto se solicita
Lapinsky ao paciente para elevar o membro inferior
direito.
Punho-
Dor na FID à punho-percussão do calcâneo.
percussão

Apresentações clínicas atípicas são comuns em indiví-


duos que apresentam variações anatômicas do apêndice
(Figura 4), imunocomprometidos (HIV, diabetes mellitus, lú-
pus, esclerodermia) ou por uso de imunossupressores (cor-
ticoides ou quimioterapia para câncer). Gestantes também
poderão apresentar dores atípicas no abdome, com dificul-
dade diagnóstica em virtude da posição cecal alterada pelo
aumento do útero gravídico. Mulheres em idade fértil tam-
bém apresentam diagnóstico dificultado pelo maior leque
de possibilidades diagnósticas.

Figura 5 - Apendicite aguda: (A) apresentação ultrassonográfica e


(B) tomografia computadorizada; nota-se um apêndice distendido
de 6mm de diâmetro com captação parietal (seta) – a seta trian-
Figura 4 - Posições anatômicas do apêndice gular demonstra um fecalito

86
A B D O M E A G U D O I N F L A M AT Ó R I O

Confirmado o diagnóstico, o tratamento é eminente-


mente cirúrgico através da apendicectomia. A 1ª descrição
do procedimento em uma apendicite aguda não perfurada
data de 1880. A incisão clássica utilizada é a descrita por

CIRURGIA GERAL
McBurney (Figura 6). O chamado ponto de McBurney está
situado no quadrante inferior direito, a 2/3 de distância do
umbigo, em uma linha imaginária entre a espinha ilíaca an-
terossuperior e o umbigo. Realiza-se uma incisão oblíqua,
sendo 1/3 acima dessa linha imaginária e 2/3 abaixo. B

Figura 6 - (A) Incisão de McBurney e (B) sítios para colocação dos


trocânteres na apendicectomia videolaparoscópica

Outras incisões possíveis são a incisão de Rockey-Davis


(transversa, sobre o ponto de McBurney), de Battle (para-
mediana, pararretal externa, infraumbilical à direita) e a
incisão mediana. Esta deve ser indicada nos casos de diag-
nóstico tardio, presença de plastrão palpável e suspeita de
complicações como fístulas para outros órgãos.
O ceco deve ser identificado primeiramente; caso isso
não seja possível, deve-se considerar má rotação dos intes-
tinos. Uma vez identificado o apêndice cecal, realiza-se a
ligadura dos vasos do meso-apêndice, seguida da ligadura Figura 7 - Apendicectomia: (A) incisão de McBurney; (B) identifi-
e da secção do apêndice na base. O coto cecal pode ser in- cação do apêndice cecal; (C) ligadura do apêndice na base, após a
ligadura do meso-apêndice; e (D) invaginação do coto apendicular
vaginado pela técnica de Osnher (bolsa de tabaqueiro) ou à pela técnica de Osnher ou bolsa de tabaqueiro
Parker-Kehr (Figura 7).
Em caso de apêndice normal no intraoperatório, deve-
-se estender a investigação procurando por divertículo de
Meckel, salpingite aguda e doença de Crohn. Preconiza-se
a remoção do apêndice, mesmo que normal, a todos os pa-
cientes que forem submetidos à incisão de McBurney ou
Rockey-Davis.
A abordagem laparoscópica facilita uma investigação
mais ampla e está associada a menor período de interna-
ção hospitalar e à recuperação mais rápida do paciente para
suas atividades diárias.

3. Colecistite aguda
A colecistite aguda representa a 3ª causa de internação
nos serviços de emergência e está associada a cálculos em

87
CI RUR G I A G ERAL

mais de 95% dos casos. Resulta da obstrução do ducto cís- O tratamento da colecistite aguda é cirúrgico, mas o
tico por cálculo impactado no infundíbulo, tornando a vesí- momento de indicação operatória pode variar. De maneira
cula inflamada e distendida. geral, preconiza-se a indicação precoce, sendo que a ope-
Do ponto de vista epidemiológico, a população mais ração só não é realizada de imediato quando a doença se
frequentemente acometida é a do sexo feminino, acima de apresenta na forma não complicada em doente de alto ris-
40 anos e com sobrepeso ou obesidade. A colecistite aguda co operatório. A colecistectomia videolaparoscópica (CVL)
alitiásica pode ocorrer em 3 a 5% das vezes, principalmente é considerada padrão-ouro (Figura 8B). Antibioticoterapia
em doentes críticos em terapia intensiva, diabéticos e na- é de curta duração, exceto quando houver infecção asso-
queles com recém-nutrição parenteral. ciada.
O quadro clínico caracteriza-se por dor persistente no
hipocôndrio direito (HCD), associada a náuseas e vômitos.
Febre não é comum na fase inicial da doença. Outros epi-
4. Pancreatite aguda
sódios no passado com resolução espontânea ou a partir A pancreatite aguda é um processo inflamatório do
do uso de antiespasmódicos são incomuns (cólica biliar). Ao pâncreas, geralmente de natureza química, provocada por
exame físico, nota-se defesa à palpação no HCD. O chamado enzimas produzidas por ele próprio, e que tem como resul-
sinal de Murphy consiste em comprimir o HCD e solicitar ao tado final uma autodigestão da glândula. A etiologia mais
paciente que realize uma inspiração profunda. Na vigência comum é a litíase biliar (70%), seguida de etilismo e hiper-
de colecistite, a irritação peritoneal fará com que o paciente trigliceridemia. Algumas casuísticas relatam de 5 a 10% de
cesse a respiração. casos de pancreatite aguda idiopática.
A avaliação laboratorial, além de hemograma e bioquí- A dor abdominal é o elemento mais importante no qua-
mica, deve contar com bilirrubinas e enzimas canaliculares dro clínico, normalmente associada a vômitos. A apresen-
para avaliação de cálculos na via biliar. A USG abdominal é o tação da dor em faixa no abdome superior e no dorso está
método de eleição para diagnóstico, revelando espessamen- presente em cerca de 50% dos doentes. Sinais de toxemia,
to da parede da vesícula, líquido e/ou ar perivesicular, além como febre e alterações circulatórias, denotam quadros
de indicar a presença e a localização de cálculos (Figura 8A). avançados. Alguns sinais propedêuticos, como as manchas
equimóticas periumbilicais (sinal de Cullen) ou no flanco es-
querdo (sinal de Grey-Turner), são secundários à hemorra-
gia peritoneal ou retroperitoneal.
Os principais exames para confirmação diagnóstica são
as dosagens de amilase e lípase sérica. Essas medidas são
qualitativas, de modo que não se relacionam à gravidade
do quadro. A avaliação da gravidade é realizada por dados
clínicos e laboratoriais.
Diversas escalas e escores são descritos na avaliação
da gravidade e prognóstico na pancreatite aguda, como
Ranson, APACHE 2 e Glasgow. Os parâmetros de Ranson
(Tabela 2) são avaliados na admissão e após 48 horas. A
presença de 3 ou mais parâmetros indica pancreatite agu-
da grave.

Tabela 2 - Critérios de Ranson na avaliação de gravidade da pan-


creatite aguda
Admissão Após 48h
Idade >55 anos Queda do Ht >10%
Leucócitos >16.000 Aumento BUN >5
Glicemia >200 Ca sérico <
DHL >350 PO2 arterial <60
TGO >250 Sequestro líquido >6.000mL

A USG abdominal pode confirmar a etiologia biliar. A


indicação de TC de abdome reserva-se aos quadros com-
plicados para avaliação de complicações como presença de
Figura 8 - Colecistite aguda: (A) aspecto ultrassonográfico, eviden- coleções e necrose. Preconiza-se a realização de TC após 72
ciando líquido perivesicular e espessamento da parede da vesícu- horas do início dos sintomas àqueles com elementos suges-
la, e (B) colecistectomia videolaparoscópica tivos de gravidade.

88
A B D O M E A G U D O I N F L A M AT Ó R I O

A avaliação de gravidade da pancreatite aguda pela TC que não responderam às medidas clínicas. A tendência é
de abdome segue o trabalho clássico de Balthazar, que ava- aguardar pelo menos 14 dias, após estabelecida a necro-
lia o aspecto do parênquima hepático, presença de coleções se, em cuidados clínicos intensivos, antes de indicar a ci-
e porcentagem de necrose, conferindo uma pontuação a rurgia.
cada um desses itens (Tabela 3). A partir dessa pontuação, A cirurgia precoce pode trazer problemas como maior

CIRURGIA GERAL
é possível prever a possibilidade de morbidade e mortali- sangramento, maior retirada de tecido sadio e maior
dade. Por exemplo, pacientes entre 0 e 1 ponto têm 0% de possibilidade de fístula pancreática no pós-operatório.
morbidade e mortalidade. Já aqueles entre 7 e 10 pontos Entretanto, se um doente apresenta diagnóstico de in-
apresentam 17% de mortalidade e 92% de morbidade. fecção associado à falência orgânica, o tratamento ope-
ratório deve ser indicado independentemente do dia de
Tabela 3 - Escala de Balthazar para avaliação da gravidade da
evolução. Frequentemente, casos como esse necessi-
pancreatite aguda pela tomografia computadorizada – adaptado
de Balthazar, Radiology 2002 tarão de novas laparotomias para limpeza da cavidade.
Mesmo em serviços especializados, o prognóstico é bas-
Pancreatite aguda graduada pela TC
tante limitado.
Gravidade Achados tomográficos
A Pâncreas normal.
5. Diverticulite aguda
B Aumento focal ou difuso do pâncreas.
Inflamação pancreática e/ou gordura A diverticulite aguda é causada pela perfuração de um
C divertículo, resultado da ação erosiva de um fecalito ou do
peripancreática.
D Coleção líquida única peripancreática. aumento demasiado da pressão intraluminal, levando ao
quadro de peritonite. A classificação proposta por Hinchey
2 ou mais coleções líquidas peripancreáticas e/ou
E
gás no pâncreas ou peripancreático.
em 1977 (Figura 9) considera a localização dos abscessos e
a extensão do processo infeccioso.
Índice de gravidade
Pontuação *Necrose
Pontos Índice de
Gravidade Pontos Porcentagem
adicionais gravidade
A 0 0 0 0
B 1 0 0 1
C 2 <30 2 4
D 3 30 a 50 4 7
E 4 >50 6 10
* À pontuação tomográfica, é somada outra pontuação de
acordo com a porcentagem de necrose pancreática.

Formas leves podem ser tratadas com jejum, hidratação


vigorosa e controle da dor. Se a etiologia é biliar, preconiza-
-se a realização da CVL na mesma internação para evitar
novos episódios. Quadros graves, por sua vez, exigem in- Figura 9 - Classificação de Hinchey para localização e extensão
ternação em terapia intensiva. Além das medidas iniciais,
O quadro clínico da diverticulite aguda não complicada
devem-se avaliar a necessidade de sonda nasogástrica e a
já foi descrito como “apendicite do lado esquerdo”. O pa-
correção hidroeletrolítica. Antibióticos são indicados nas
ciente apresenta dor na FIE e febre persistentes. Ao exame
complicações infecciosas, geralmente quando se observa ar
físico, há defesa e peritonite no quadrante inferior esquer-
em retroperitônio pela TC.
do. Podem ocorrer fístulas, sendo a retovesical a mais co-
O suporte nutricional é de suma importância nesses pa-
mum. Nesses casos, observam-se pneumatúria e infecção
cientes devido ao estado de catabolismo em que se encon-
urinária que não responde ao tratamento clínico.
tram, de modo que nenhum doente com pancreatite aguda
grave deve ficar em jejum por mais de 48 horas. Apesar de O exame considerado padrão-ouro para avaliar a doen-
controvérsias em torno da melhor forma de oferecer supor- ça é a TC de abdome e pelve, que confirma a presença do
te nutricional, nutrição enteral ou parenteral, a tendência processo infeccioso e afasta outras hipóteses diagnósticas.
da maioria dos serviços é a nutrição enteral com sonda na- A colonoscopia e o enema opaco são contraindicados na
soentérica locada após o ângulo de Treitz por endoscopia fase aguda, pelo risco de desbloqueio de uma possível per-
ou radioscopia. furação e contaminação da cavidade.
A indicação de cirurgia é conduta de exceção. As ne- O tratamento deve ser orientado conforme a apresen-
crosectomias devem ser realizadas em necroses extensas tação da doença pela classificação de Hinchey (Tabela 4).

89
CI RUR G I A G ERAL

Tabela 4 - Tratamento da diverticulite aguda baseado na Classifi-


cação de Hinchey
Internação hospitalar para jejum, hidratação,
antiespasmódicos, antibióticos (cobertura de Gram
Hinchey I
negativos e anaeróbicos) e observação por 48 a 72
horas.
A falha no tratamento clínico de um abscesso
pequeno ou a presença de uma grande coleção
Hinchey II pélvica demandam drenagem, que pode ser
feita preferencialmente por meio de radiologia
intervencionista ou com abordagem cirúrgica.
Ressecção cirúrgica e, dependendo do caso,
Hinchey III anastomose primária. Pode ser realizada ressecção
videolaparoscópica.
Hinchey IV Cirurgia de Hartmann por laparotomia.

Deve-se ressaltar que casos tratados clinicamente ou


apenas com drenagem do abscesso devem ser operados de
forma eletiva. Outros critérios de indicação cirúrgica são 2
ou mais crises bem documentadas em paciente com mais
de 50 anos ou um quadro agudo em paciente com menos
de 50 anos, presença de complicações (fístulas, estenose
segmentar, perfuração e hemorragia), imunodeprimidos e
impossibilidade de excluir câncer.

6. Resumo
Quadro-resumo
Exame físico Diagnóstico Tratamento
Blumberg,
Apendicite Rovsing, Eminentemente Sempre
aguda Lennander clínico cirúrgico
etc.
Cirurgia, antes
Colecistite ou depois
Murphy USG
aguda do uso de
antibiótico
Inicialmente
Amilase e lipase.
clínico,
Pancreatite Cullens, Grey- A TC deve ser
cirúrgico
aguda Turner usada nas
nas formas
complicações
complicadas
Clínico ou
“Apendicite
Diverticulite cirúrgico, a
do lado TC
aguda depender da
esquerdo”
gravidade

90
CAPÍTULO

14
Abdome agudo perfurativo
Eduardo Bertolli

O diagnóstico pode ser confirmado com a visualização de


Pontos essenciais pneumoperitônio ao raio x ou tomografia de abdome (Figu-
- Quadro clínico e diagnóstico; ra 1). Normalmente, grandes pneumoperitônios associam-
- Conduta. -se a perfurações colônicas. A prática de passar uma sonda
nasogástrica (SNG) para injetar ar, apesar de favorecer a vi-
1. Etiologia sualização do pneumoperitônio, pode destamponar a lesão
e aumenta a contaminação da cavidade.
O abdome agudo perfurativo resulta da peritonite se-
cundária a uma perfuração de víscera oca com extravasa-
mento de material na cavidade abdominal. Em perfurações
gástricas, a etiologia mais comum são as úlceras pépticas,
de modo que é comum o relato de uso de Anti-Inflamató-
rios Não Esteroides (AINEs).
Perfurações do delgado são raras e devem alertar para
a ingestão de corpo estranho. As perfurações colônicas
normalmente estão associadas a patologias de base como
divertículos ou tumores. Doenças infecciosas como citome-
galovírus e tuberculose podem ser causas de perfuração
intestinal em pacientes imunodeprimidos.

2. Quadro clínico
Independente da etiologia, o quadro clínico costuma ser
semelhante. O paciente relata uma dor súbita e intensa, de
início bem determinado. A difusão precoce da dor traduz a
disseminação do líquido gastrintestinal que é intensamente
“irritante” ao peritônio. A queixa de dor em ombro e pesco-
ço pode ocorrer pelo gás ou pela irritação do nervo frênico.
Os antecedentes listados podem ser pesquisados com o in-
tuito de diagnóstico etiológico.
Ao exame físico, o dado principal é o chamado abdo-
me “em tábua”, com contratura generalizada. Outro dado
propedêutico importante é o sinal de Joubert, que consiste
no som timpânico à percussão do hipocôndrio direito pela
interposição gasosa.
Dependendo do tipo de perfuração, pode haver defesa
localizada ou generalizada. Quando a perfuração é bloquea-
da ou tamponada, pode existir dor localizada, sendo flácido
o restante do abdome. Evoluções arrastadas cursam com
sinais evidentes de septicemia.
Exames laboratoriais podem ser solicitados já para Figura 1 - Pneumoperitônio: (A) raio x de tórax com cúpulas e (B)
avaliação global, mas não alteram a hipótese diagnóstica. tomografia computadorizada

91
CI RUR G I A G ERAL

3. Tratamento 4. Resumo
O tratamento é eminentemente cirúrgico, por meio de Quadro-resumo
laparotomia exploradora. A conduta intraoperatória depen- - O diagnóstico do abdome agudo perfurativo é eminentemente
derá da etiologia do quadro. Úlceras perfuradas, na maio- clínico, com base nos achados de dor súbita, irritação
ria das vezes, podem ser suturadas, associando ou não à peritoneal generalizada, abdome “em tábua” e ausência de
proteção com retalho de grande omento (Figuras 2 e 3). É macicez hepática;
recomendado o uso de fios inabsorvíveis. A realização de - Radiografia e tomografia de abdome podem confirmar o
gastrectomias é rara e acaba reservada a úlceras de grande diagnóstico sindrômico, mas, dificilmente, o diagnóstico
diâmetro ou tenebrantes para o pâncreas. etiológico;
- O tratamento é sempre cirúrgico.

Figura 2 - Sutura simples de úlcera pré-pilórica

Figura 3 - Sutura de úlcera com confecção de patch de epíploon

Perfurações de delgado também podem ser suturadas


ou exigir enterectomias segmentares. Quando a origem é
o cólon, é comum o achado de peritonite estercorácea.
Dessa maneira, a maioria dos casos acaba sendo tratada
com retossigmoidectomia à Hartmann. Suturas no cólon,
com ou sem ostomias de proteção, são controversas e de-
vem ser avaliadas individualmente, com base no grau de
contaminação da cavidade e no estado hemodinâmico do
paciente.
Após a correção da perfuração, o paciente deverá ser
orientado quanto ao tratamento da condição de base. Úl-
ceras pépticas devem ser tratadas com inibidores de bom-
ba protônica e suspensão do AINE logo no pós-operatório
imediato. Patologias neoplásicas devem iniciar tratamento
específico assim que o paciente se recupera da cirurgia.

92
CAPÍTULO

15
Abdome agudo obstrutivo
Eduardo Bertolli

Pontos essenciais - Volvos;


- Intussuscepção;
- Características clínicas das obstruções intestinais; - Divertículo de Meckel;
- Tratamentos clínico e cirúrgico do abdome agudo obs- - Corpos estranhos intra ou extraluminares;
trutivo.
- Estenoses benignas.

1. Classificação Dividindo por faixas etárias, as principais causas de obs-


trução em crianças são hérnias estranguladas, divertículo de
Qualquer afecção que dificulte ou impossibilite o trânsi- Meckel e intussuscepção. Em adultos jovens, predominam
to gastrintestinal pode ser definida como obstrução intesti- as hérnias e as bridas. Nos idosos, as causas mais comuns
nal. A obstrução intestinal constitui a 2ª afecção abdominal são aderências, íleo biliar, hérnias e tumores. Observa-se
aguda não traumática mais frequente, sendo a obstrução que as hérnias estão presentes em todas as faixas etárias,
do delgado mais comum que a do intestino grosso. Pode de modo que a procura por hérnias é tempo obrigatório da
ocorrer em qualquer faixa etária, e a letalidade varia de 7 a avaliação de doentes com obstrução intestinal.
30%, dependendo da precocidade do diagnóstico e da insti- Genericamente, utiliza-se o termo íleo adinâmico para
tuição de terapêutica adequada. caracterizar a interrupção funcional dos movimentos pe-
A classificação dos casos de obstrução pode ser adotada ristálticos e, consequentemente, do trânsito intestinal. As
tanto para o diagnóstico diferencial quanto para a conduta principais causas de íleo adinâmico são as doenças primá-
terapêutica. Didaticamente, as obstruções podem ser divi- rias do peritônio, as doenças de órgãos intraperitoneais e
didas em altas (acima da válvula ileocecal) e baixas; funcio- as moléstias extra-abdominais ou sistêmicas. Diversas si-
nais (decorrentes de causas sistêmicas como fatores meta- tuações clínicas, como quadros infecciosos, desequilíbrio
bólicos ou infecciosos) e mecânicas (decorrente de causas hidroeletrolítico e todos os demais quadros sistêmicos
extrínsecas ou intrínsecas ao cólon), ou simples e complica- expressivos, podem ocasionar a obstrução funcional de in-
das (com sofrimento vascular). testino. O uso de drogas lícitas ou ilícitas também deve ser
lembrado como causa prevalente de íleo paralítico.
2. Etiologia
Historicamente, com o maior acesso ao atendimento
3. Fisiopatologia
médico, as hérnias foram suplantadas pelas aderências ou Na obstrução mecânica simples, sem sofrimento de alça,
bridas como as causas mais comuns de obstrução intestinal há distensão do intestino proximal com acúmulo de líquido
de tratamento cirúrgico. Outras causas de obstrução mecâ- e gás a montante do ponto de obstrução. Posteriormente,
nica comuns são as neoplasias, volvos e intussuscepções, há hiperproliferação bacteriana com produção acentuada
corpos estranhos, íleo biliar, doença inflamatória intestinal, de gás e piora da distensão gasosa. A presença de distensão
estenoses isquêmicas, divertículo de Meckel, bolo de ásca- abdominal depende do nível da obstrução e não da fase da
ris e hematomas intramurais (Tabela 1). doença ou do risco de estrangulamento.
A translocação bacteriana sempre ocorre, contribuindo
Tabela 1 - Causas mecânicas mais prevalentes de obstrução intestinal para os sinais sistêmicos de resposta inflamatória. À medida
- Bridas ou aderências pós-operatórias; que a dilatação progride, há extravasamento de líquido para
o 3º espaço, tanto pelo acúmulo intraluminal quanto para a
- Hérnias de parede abdominal ou internas;
cavidade peritoneal. Os vômitos também contribuem para
- Tumores; a desidratação e hipovolemia que acompanham o quadro.

93
CI RUR G I A G ERAL

Na obstrução alta, ocorre alcalose metabólica hipocalêmica


e hipoclorêmica, enquanto na obstrução baixa é mais co-
mum haver acidose metabólica.
O sofrimento de alça ou estrangulamento acontece
quando há comprometimento da vascularização de um
seguimento intestinal secundariamente à obstrução. As
hérnias, os volvos e as intussuscepções intestinais são as
formas de obstrução mais propensas ao estrangulamento.
A drenagem venosa é comprometida mais facilmente que a
irrigação arterial quando o mesentério é envolvido. O seg-
mento gangrenado sangra para o lúmen e para a cavidade
peritoneal, e pode ocorrer perfuração com peritonite. Os Figura 1 - Aspecto radiológico nas obstruções intestinais: (A) dis-
produtos da degradação da parede intestinal, da prolifera- tensão à custa de delgado com sinal de empilhamento de moedas;
ção bacteriana e da coagulação sanguínea podem ter aces- (B) níveis hidroaéreos e (C) distensão do cólon com ausência de ar
so à circulação, gerando toxemia e sepse. em ampola retal

Pneumatose intestinal (gás na parede do intestino),


4. Diagnóstico
pneumoperitônio e a presença de gás nos ramos portais
O quadro clínico é de dor abdominal, geralmente do levam ao diagnóstico de complicações graves. A aerobilia
tipo cólica, associada à distensão, vômitos e história de pa- com presença de imagem hipotransparente no Quadrante
rada de eliminação de flatos e fezes. A dor é mais intensa Inferior Direito (QID) é sugestiva de íleo biliar. Nos casos de
nas obstruções de intestino médio e distal e pode ser con- íleo paralítico, o gás se distribui de forma uniforme pelo es-
siderada um desconforto abdominal pelos pacientes com tômago, intestino delgado, cólon e reto.
obstrução alta. O predomínio de distensão ou de vômitos Os estudos contrastados, como o enema opaco e o trân-
dependerá da altura da obstrução. Quanto mais baixa, mais sito intestinal, podem ser úteis na identificação do ponto
evidente a distensão e menor a frequência dos vômitos. Os de obstrução e na diferenciação dos casos de íleo paralítico
vômitos são, nas obstruções altas, alimentares e biliosos, e
e obstrução mecânica. A utilização de contraste baritado
podem se tornar fecaloides na obstrução baixa, mas man-
deve ser evitada quando há sangramento ou outra suspeita
têm relação com a gravidade do quadro nos pacientes com
de perfuração intestinal.
obstrução alta.
A ultrassonografia de abdome não é um bom método
Ao exame físico, a distensão pode ser facilmente per-
devido à interposição gasosa. A tomografia computadoriza-
cebida à inspeção estática. Em indivíduos magros, é possí-
vel visualizar os movimentos peristálticos (peristaltismo de da de abdome fornece as informações da radiografia sim-
Kussmaul). Os ruídos hidroaéreos de timbre metálico indi- ples, acrescidas de maior especificidade para o diagnóstico
cam obstáculo mecânico ao trânsito intestinal, mas podem de tumores, compressões extrínsecas, fístulas intestinais e
se tornar progressivamente menos intensos ou abolidos doenças inflamatórias. A capacidade do paciente de ingerir
nas fases tardias da obstrução. Nas obstruções de intestino contraste está diretamente relacionada à qualidade da in-
delgado, normalmente o paciente elimina o conteúdo retal formação obtida.
e colônico, apresentando toque retal normal.
Os sinais de choque hipovolêmico ou séptico são encon- 5. Tratamento
trados nas fases tardias e, na ausência de distensão abdo-
minal, indicam o aparecimento de uma complicação secun- Os quadros de obstrução parcial devem ser tratados
dária a obstruções do intestino proximal. Sinais clínicos de inicialmente de maneira conservadora, por meio de des-
peritonite como dor contínua, febre e taquicardia podem compressão nasogástrica e reposição hidroeletrolítica, com
sugerir sofrimento de alça. índices de até 90% de sucesso desde que haja passagem
Os exames laboratoriais são inespecíficos e permitem de gases e fezes e não sobrevenham sinais e sintomas de
uma avaliação global. Pode haver leucocitose, e a dosagem estrangulamento.
bioquímica e de eletrólitos pode evidenciar distúrbios do A indicação de cirurgia pode ser feita em caso de es-
equilíbrio ácido-básico. As radiografias simples de abdome tagnação do quadro após algumas horas. Alguns cirurgiões
e tórax podem trazer informações úteis quanto ao tipo, estipulam 48 horas como limite para a indicação cirúrgica,
grau de evolução, presença de complicações e até etiolo- mas isso não é consensual. A indicação deve ser baseada
gia da obstrução intestinal. A presença de gás no intestino mais em critérios clínicos e na provável etiologia do quadro
delgado com níveis hidroaéreos e dilatação de alças sugere obstrutivo do que em datas-limite específicas. Com exceção
obstrução intestinal. O sinal de “empilhamento de moedas” dos casos de choque hiperdinâmico grave que não respon-
é característico das obstruções do delgado. A avaliação de dem ao tratamento clínico, a operação deve ser realizada
presença ou de gás no cólon e reto está relacionada às obs- somente após a reposição volêmica e eletrolítica, quando
truções parciais ou totais de intestino delgado (Figura 1). as funções vitais estão recuperadas.

94
A B D O M E A G U D O O B S T R U T I VO

Pacientes com obstrução parcial pós-operatória, por bri- (manobra de Bruusgaard). Entretanto, devido ao risco de
das, enterite actínica e carcinomatose intestinal são aqueles novas torções, os pacientes necessitarão de um tratamento
para quem o tratamento cirúrgico trará menos benefícios, definitivo. Os procedimentos mais indicados são a retossig-
o que adia a indicação de laparotomia o máximo possível. moidectomia ou a sigmoidopexia. A decisão dependerá da
Já nos quadros de obstrução total, a operação deve ser re- avaliação do comprometimento do cólon.

CIRURGIA GERAL
tardada apenas o tempo necessário para o preparo clínico
inicial, já que não há como excluir sofrimento de alça. To-
dos os pacientes com sinais e sintomas de estrangulamento
devem ser submetidos a operações de emergência, pois a
mortalidade é bastante elevada nesse subgrupo. O cirur-
gião não deve esperar o desenvolvimento de sinais de piora
com o tratamento clínico para indicar a laparotomia.
A antibioticoterapia deve ser sempre associada ao trata-
mento clínico para tratar de forma preemptiva a transloca-
ção bacteriana que ocorre. É importante, independente da
opção terapêutica, garantir suplemento nutricional. Dessa
maneira, candidatos a jejum prolongado devem iniciar pre-
cocemente dieta enteral.
A chamada pseudo-obstrução intestinal ou síndrome de
Ogilvie pode ser tratada com uso de neostigmina. A colo-
noscopia descompressiva também apresenta resultados sa- Figura 2 - (A) Invaginação intestinal e (B) volvo de sigmoide
tisfatórios quando realizada por endoscopistas experientes.
Entretanto é importante a certeza diagnóstica antes de sub- O íleo biliar, condição que acontece após uma fístula
meter o paciente a qualquer uma dessas medidas. A prin- entre a vesícula e o intestino, que evolui com obstrução
cipal complicação desse quadro é a distensão de ceco, que por cálculo no nível da válvula ileocecal, é a causa mais co-
pode evoluir com rotura em distensões maiores de 10cm mum de obstrução intestinal em idosos sem cirurgia prévia.
ao raio x. É possível encontrar no raio x a chamada tríade de Rigler,
O acesso cirúrgico preferencial é a laparotomia mediana. caracterizada por distensão à custa de delgado, aerobilia
Por meio desse acesso, é possível o tratamento da maioria e imagem calcificada no QID (Figura 3A). Para tratamento,
das afecções cirúrgicas abdominais responsáveis pelo qua- preconiza-se enterotomia em íleo distal para retirada do
dro clínico. Alguns autores advogam a laparoscopia para o cálculo com fechamento primário posteriormente. A corre-
tratamento das aderências pós-operatórias, já que a menor ção da fístula colecistoentérica não deve ser realizada no
agressão ao peritônio é benéfica nesses casos, porém o pro- mesmo ato operatório.
cedimento só deve ser realizado por cirurgião bem treinado
no método e que tenha plena consciência das dificuldades a
serem encontradas na realização do pneumoperitônio e ex-
ploração da cavidade tomada pelas alças distendidas. Nos
casos de hérnias da região inguinal, exceto quando há es-
trangulamento nítido, pode-se realizar a inguinotomia com
avaliação da viabilidade de alças e necessidade de laparoto-
mia mediana no intraoperatório.

6. Casos especiais
A intussuscepção ou invaginação intestinal é frequente
em crianças, mas é possível ocorrer em qualquer idade. A
mais comum é a ileocecocólica, seguida da ileoileal e colo-
cólica (Figura 2A). O diagnóstico pode ser confirmado por
Figura 3 - (A) Íleo biliar, com níveis hidroaéreos em delgado e aero-
ultrassom (sinal da casca de cebola), e o tratamento inicia- colia, e (B) volvo de sigmoide
-se com a tentativa de redução manual. Quando não possí-
vel, devem-se realizar a enterectomia e a anastomose. Pacientes com obstruções por tumores colorretais difi-
Nos volvos por megacólon (Figura 2B), o raio x também cilmente conseguirão ser tratados com princípios oncológi-
é diagnóstico. O achado clássico é o sinal de grão de café cos na urgência. A retossigmoidectomia à Hartmann con-
ou “Frimann-Dahl”, que corresponde à torção do sigmoide siste na retirada do sigmoide com sepultamento do coto
sobre seu próprio eixo (Figura 3B). O tratamento por des- distal no nível do promontório e colostomia terminal, e é
compressão com colonoscopia apresenta bons resultados o procedimento mais indicado para retirar o paciente do

95
CI RUR G I A G ERAL

quadro agudo. Ressecções com anastomoses primárias são


desaconselhadas em doentes com instabilidade hemodinâ-
mica ou com grande contaminação da cavidade. Em casos
de obstrução por carcinomatose, normalmente as ressec-
ções não são factíveis, de modo que os pacientes acabam
sendo submetidos a bypass entre segmentos do intestino
ou derivação externa para paliação dos sintomas.

7. Prognóstico
Quando não há estrangulamento de alças, a mortalida-
de é baixa, geralmente se restringindo aos mais idosos, não
ultrapassando 2% dos casos. Já nos casos de perfuração,
peritonite e necrose de alça, os índices de mortalidade são
diretamente ligados ao tempo entre o início do quadro e a
operação, chegando a 25% quando a evolução é superior
a 36 horas. A etiologia de pior prognóstico é a obstrução
vascular, com mortalidade acima de 50%.
Casos raros de pseudo-obstrução intestinal crônica pri-
mária têm prognóstico muito pior que os quadros agudos,
pois ocorrem em pacientes severamente desnutridos, que
demoram a ter o diagnóstico definitivo estabelecido e,
geralmente, passam por diversas laparotomias “brancas”
antes do diagnóstico definitivo. Sabe-se que, para esses
pacientes, a única terapêutica definitiva é o transplante de
intestino que, por seus resultados pífios, passou a ser mul-
tivisceral. Utiliza-se terapia nutricional parenteral, além de
antibioticoterapia para redução da superpopulação bacte-
riana e controle da translocação. Câmara hiperbárica pare-
ce útil. É necessária biópsia de espessura total da parede in-
testinal que deverá ser avaliada pela microscopia eletrônica
de varredura para observação do plexo mioentérico a fim
de finalizar o esforço diagnóstico.

8. Resumo
Quadro-resumo
- A obstrução intestinal é um quadro grave e pode acontecer em
qualquer faixa etária;
- Todo paciente com obstrução intestinal deve ser avaliado
quanto à presença de hérnias;
- O tratamento inicial é clínico. A cirurgia deve ser indicada aos
casos que não respondem às medidas clínicas e nas obstruções
mecânicas;
- O prognóstico está diretamente relacionado ao diagnóstico e à
intervenção precoces.

96
CAPÍTULO

16
Abdome agudo hemorrágico
Eduardo Bertolli

Pontos essenciais Suspeita-se de gravidez ectópica nas mulheres em ida-


de fértil com atraso menstrual e quadro clínico sugestivo. A
- Principais etiologias; suspeita de rotura de aneurisma da aorta abdominal deve
- Conduta. acontecer em pacientes com frêmitos ou massas pulsáteis
abdominais ou que já se saibam portadores de aneurismas.
1. Etiologia
Definem-se como Abdome Agudo Hemorrágico (AAH) 2. Diagnóstico
os casos de dor abdominal associados ao quadro clínico de A dor abdominal costuma ser súbita, porém de locali-
choque hemorrágico por sangramentos intracavitários. As zação difusa. Entre as alterações hemodinâmicas, a taqui-
principais causas de AAH são gravidez ectópica rota e rotura cardia é o sinal mais precoce, seguido de queda da pres-
de aneurisma da aorta abdominal. Alguns autores conside- são arterial, palidez, sudorese fria e agitação. É possível
ram que as hemorragias digestivas pertencem a essa classe quantificar a perda volêmica por meio de sinais clínicos
de urgência atraumática. (Tabela 1).

Tabela 1 - Classificação do choque hemorrágico


Classe I Classe II Classe III Classe IV

Perda sanguínea (mL) Até 750 750 a 1.500 1.500 a 2.000 >2.000

Perda sanguínea (%
Até 15% 15 a 30% 30 a 40% >40%
volume sanguíneo)
Frequência cardíaca (bpm) <100 >100 >120 >140
Pressão arterial Normal Normal Diminuída Diminuída
Pressão de pulso Normal ou aumentada Diminuída Diminuída Diminuída
Frequência respiratória
14 a 20 20 a 30 30 a 40 >35
(irpm)
Diurese (mL/h) >30 20 a 30 5 a 15 Desprezível
Moderadamente
Estado mental Levemente ansioso Ansioso e confuso Confuso e letárgico
ansioso

Reposição volêmica Cristaloide Cristaloide Cristaloide e sangue Cristaloide e sangue

Exames laboratoriais gerais servem para uma avaliação Nos pacientes estáveis hemodinamicamente, os exames
global do paciente, mas são inespecíficos. A reposição vo- de imagem podem colaborar para a confirmação diagnósti-
lêmica não deve se basear nos valores de Hb e Ht na fase ca. O ultrassom abdominal pode diagnosticar as 2 principais
inicial do atendimento. Toda mulher em idade fértil admi- causas de AAH. Na suspeita de aneurisma da aorta abdo-
tida em um serviço de emergência deve ser submetida à minal, a Tomografia Computadorizada (TC) pode oferecer
dosagem de beta-HCG e teste qualitativo. Esse exame pode mais dados como altura do aneurisma e comprometimento
confirmar a suspeita de prenhez ectópica. das camadas da parede arterial (Figura 1).

97
CI RUR G I A G ERAL

Figura 1 - Tomografia computadorizada evidenciando aneurisma


da aorta abdominal infrarrenal

3. Tratamento
A 1ª conduta é a reposição volêmica de acordo com a
Figura 2 - (A) Aneurisma da aorta abdominal infrarrenal até bi-
perda sanguínea estimada. Nenhum exame complementar furcação das ilíacas e (B) aspecto tomográfico após colocação de
deve ser realizado em pacientes instáveis hemodinamica- endoprótese
mente.
Na prenhez ectópica, o tratamento é cirúrgico e pode
variar de anexectomia unilateral à histerectomia total, de- 4. Resumo
pendendo da origem do sangramento. O sangramento de
Quadro-resumo
miomas subserosos é uma condição rara, mas pode ser tra-
tada da mesma maneira. - O diagnóstico do AAH pode estar associado a sinais de choque
hipovolêmico;
O tratamento dos aneurismas rotos pode ser feito por
via endovascular, desde que esteja rapidamente disponível. - O tratamento inicial envolve a reposição volêmica;
Entre as opções cirúrgicas, é possível a colocação de pró- - As causas mais comuns são prenhez ectópica e rotura de
teses ou derivações vasculares, dependendo da altura do aneurismas da aorta abdominal.
aneurisma (Figura 2).

98
CAPÍTULO

17
Abdome agudo vascular
Eduardo Bertolli

Pontos essenciais 2. Fisiopatologia


- Principais etiologias; A lesão isquêmica da mucosa intestinal ocorre quando
- Conduta. há privação de oxigênio e nutrientes para o tecido manter
o metabolismo e a integridade celular. A resposta fisiopa-
1. Definições tológica a um fluxo reduzido é inicialmente um aumento
O abdome agudo vascular representa uma das formas acentuado na atividade motora intestinal, que resulta em
mais graves entre as urgências abdominais não traumáticas, aumento na demanda de oxigênio.
com índices de mortalidade de 46 a 100%. A insuficiência À medida que a integridade capilar é comprometida,
vascular intestinal pode ser dividida em aguda (infarto in- o intestino torna-se hemorrágico e edemaciado, com au-
testinal) ou crônica (angina abdominal). mento da pressão hidrostática intraluminal e que passa a
Para diagnóstico e tratamento, é necessário conhecer comprometer mais ainda o fluxo sanguíneo. Além disso, a
a anatomia vascular abdominal, em especial a irrigação do produção de metabólitos tóxicos pode exacerbar a lesão is-
intestino (Figura 1). A Artéria Mesentérica Superior (AMS) é quêmica. Com a perda da barreira de proteção da luz intes-
ramo direto da aorta e emite ramos jejunais, ileais, artéria tinal, aumentam as condições para translocação bacteriana
ileocecocólica, artéria cólica direita e artéria cólica média. e sepse.
Além disso, é responsável pela irrigação de todo o intestino Os mediadores vasoativos e as endotoxinas bacterianas
delgado, ceco, ascendente e transverso, até o ângulo esplê- liberadas na cavidade peritoneal acarretam uma variedade
nico por meio das anastomoses marginais. de efeitos fisiológicos, como depressão cardíaca, choque
A Artéria Mesentérica Inferior (AMI) também é ramo séptico e insuficiência renal aguda. Esses efeitos podem le-
direto da aorta e emite a artéria cólica esquerda, 3 ou 4 ar- var a óbito antes mesmo da necrose completa da parede
térias sigmoidianas e a artéria retal superior, irrigando o có- intestinal.
lon esquerdo e reto. A chamada arcada de Riolano consiste
em um arco anastomótico que comunica a AMS e a AMI no
nível do ângulo esplênico, área de maior suscetibilidade à 3. Diagnóstico
isquemia nas ressecções colônicas. O quadro clínico é variável e está na dependência do
grau de oclusão. Na fase inicial, os sintomas são inespecí-
ficos, com predomínio de dor abdominal tipo cólica. Ante-
cedentes como arritmia cardíaca ou insuficiência vascular
periférica devem ser investigados.
Uma das características dos quadros de abdome agudo
vascular é a dissociação entre a queixa do doente e o exa-
me físico. O paciente relata dor de forte intensidade, mas o
exame físico não mostra sinais de peritonite. Isso aconte-
ce quando já ocorre necrose intestinal instalada e denota
prognóstico ruim.
A angina abdominal, comum nos quadros de isquemia
crônica, consiste em episódios de dor abdominal, normal-
mente desencadeados no período pós-prandial que me-
lhoram espontaneamente, mas, progressivamente, vão
Figura 1 - Irrigação sanguínea do intestino aumentando de frequência e intensidade. Outro achado

99
CI RUR G I A G ERAL

bastante sugestivo de isquemia intestinal é a presença de


fezes mucossanguinolentas ao toque retal (“geleia de fram-
boesa”).
Entre os exames complementares, a acidose metabólica
persistente é um parâmetro importante no diagnóstico de
infarto intestinal. As enzimas séricas (desidrogenase láctica,
fosfatase alcalina, amilase e creatino-fosfoquinase) costu-
mam estar aumentadas, mas são inespecíficas.
A radiografia simples pode fornecer sinais indiretos
como pneumoperitônio, líquido livre na cavidade, espes-
samento na parede das alças e gás na circulação portal.
O sinal classicamente descrito como alças “carecas” é al-
tamente sugestivo de isquemia intestinal. Outros exames
de imagem, como tomografia e ultrassom, são pouco elu-
cidativos. A laparoscopia pode ser uma alternativa tanto
para diagnóstico quanto para evitar uma laparotomia des- Figura 2 - Isquemia mesentérica extensa
necessária.
Diversas formas são propostas para avaliação da viabi-
Caso a condição clínica do paciente permita, o estudo lidade intestinal como Doppler, termometria e fluorescei-
angiográfico pode ser indicado para descartar uma embolia noscopia. Entretanto, a avaliação da coloração da alça e
de AMS. A arteriografia seletiva permite diferenciar a isque- da presença ou não de peristalse podem ser suficientes na
mia oclusiva da não oclusiva, identificando o local e a natu- maioria das situações.
reza da obstrução. O tratamento deve ser orientado de acordo com a etio-
São 4 as causas mais frequentes de abdome agudo vas- logia, o que nem sempre é possível. Além disso, mesmo a
cular (Tabela 1), sendo a embolia de AMS a principal causa.
embolectomia ou as revascularizações não apresentam re-
Tabela 1 - Principais causas de abdome agudo vascular
sultados satisfatórios.
Em se optando pela ressecção intestinal, deve-se ava-
Origem Característica Tratamento
liar o intestino remanescente. Pacientes que conseguem
Embolia de
Principal causa, se recuperar da cirurgia, mas que acabam desenvolvendo
normalmente com isquemia Embolectomia. a síndrome do intestino curto, são candidatos à nutrição
AMS
do delgado. parenteral definitiva, além de sofrerem quadros de diarreia
Trombose e disabsorção. Logo, observa-se que o resultado final é di-
Diretamente relacionado à
arterial
aterosclerose aórtica.
Revascularização. retamente proporcional à precocidade do diagnóstico e ao
mesentérica início de medidas gerais e específicas de suporte.
Trombose Investigar a presença de
Anticoagulação
venosa elementos da tríade de
com heparina. 5. Resumo
mesentérica Virchow.
Quadro-resumo
Isquemia Normalmente associado
Papaverina intra- - O diagnóstico do abdome agudo vascular pode ser difícil devido
mesentérica a quadros de hipofluxo
arterial. à inespecificidade dos sintomas e da dissociação entre a queixa
não oclusiva (hipovolemia, sepse etc.).
e o exame físico;
- Pode ocorrer de forma aguda (infarto intestinal) ou crônica
4. Tratamento (angina abdominal);
- A causa mais comum é a embolia de artéria mesentérica
A fase inicial do tratamento consiste na compensação
superior;
clínica do paciente. Não é infrequente o cirurgião indicar a
- As taxas de mortalidade são elevadas, e o prognóstico é
cirurgia e, durante a laparotomia exploradora, deparar com
diretamente proporcional à precocidade do diagnóstico e
necrose extensa sem nenhuma possibilidade terapêutica
tratamento.
(Figura 2).

100
CAPÍTULO

18
Hemorragia digestiva alta varicosa
José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais mento das varizes gástricas e duodenais é um evento me-


nos frequente. Aproximadamente, 40% dos sangramentos
- Fisiopatologia; por varizes cessam espontaneamente, mas a mortalidade
- Diagnóstico; chega a 50% nesses pacientes.
- Conduta;
- Tratamento na fase aguda e definitivo. 2. Fisiopatologia
As varizes do esôfago traduzem um desvio de sangue
1. Epidemiologia do sistema venoso portal para o sistema cava superior, em
consequência da hipertensão portal, criando assim um
A hemorragia varicosa responde por 20 a 30% dos casos fluxo hepatofugal. Quando o gradiente de pressão entre a
de HDA e é consequência da hipertensão portal. Cerca de veia porta e as veias supra-hepáticas é maior que 6mmHg,
35% dos pacientes com hipertensão portal e varizes sangra- o sangue portal flui por intermédio de circulação colateral,
rão, a maioria, pela ruptura de varizes esofágicas. O sangra- havendo o risco de hemorragia.

Figura 1 - Mecanismos envolvidos na fisiopatologia da hipertensão portal

101
CI RUR G I A G ERAL

As varizes são constituídas geralmente por 3 ou 4 cor-


dões verticais, de trajeto tortuoso e calibre variável, locali-
zados na submucosa esofágica. Regimes de pressão portal
acima de 12mmHg podem desencadear rotura das vari-
zes e hemorragia digestiva. Cerca de 60% dos pacientes
com hepatopatia crônica desenvolvem varizes do esôfago
(Figura 2). A função hepatocelular, medida pela classifica-
ção de Child-Pugh, o calibre das varizes e a presença de
marcas vermelhas, os chamados red spots descritos pela
endoscopia, são os maiores determinantes do risco de
sangramento.

Figura 3 - Algoritmo sugerido pela Federação Brasileira de Gastro-


enterologia (Projeto Diretrizes – 2002) para a hemorragia digesti-
va alta de etiologia varicosa

5. Tratamento da hepatopatia
Neste grupo de pacientes, além das complicações da vo-
lumosa hemorragia, também é preciso se preocupar com a
descompensação da hepatopatia, com piora aguda da fun-
ção hepática e suas consequências, como a encefalopatia
hepática, a peritonite bacteriana espontânea e a síndrome
hepatorrenal. Sempre que possível, esses doentes devem
ser internados em ambiente de terapia intensiva, com
Figura 2 - Aspecto endoscópico de varizes do esôfago: (A) fino cali- acompanhamento por equipe especializada.
bre, (B) médio calibre e (C) grosso calibre e tortuosas Os cirróticos têm uma alteração da circulação esplânc-
nica, sendo necessário maior volume de cristaloides para
3. Quadro clínico a estabilização hemodinâmica. Além disso, pode ocorrer
aumento do fluxo e da pressão portal pela reposição volê-
O quadro clínico típico é de hematêmese e melena, mica, que induz a agravamento da hemorragia e formação
podendo haver sinais de instabilidade hemodinâmica de de ascite, em vez de estabilizar a pressão arterial. Por esse
acordo com o volume do sangramento. Deve-se suspeitar motivo, utilizam-se drogas vasoativas que tendem a rever-
de hemorragia varicosa em sabidamente hepatopatas ou ter essas alterações hemodinâmicas.
com estigmas de doença hepática crônica identificados A infusão de drogas vasoativas (somatostatina, octe-
otride ou terlipressina) deve ser iniciada imediatamente
ao exame físico de admissão crônica (ascite, icterícia, te-
quando há suspeita de etiologia varicosa. Elas têm ação va-
langiectasias, eritema palmar, ginecomastia, desnutrição,
soconstritora na circulação esplâncnica, inibem a secreção
circulação colateral na parede abdominal, edema). Nos ácida e são capazes de aumentar o sucesso da hemostasia
demais, o diagnóstico de hipertensão portal só será feito endoscópica inicial e de reduzir os índices de ressangra-
durante o exame endoscópico. mento, mas ainda não foram capazes de reduzir a mortali-
dade dos cirróticos.
4. Conduta A terlipressina, atualmente, é a preferida, pois pode ser
administrada em bolus, sem a necessidade de bomba de in-
O tratamento do paciente hepatopata com HDA consti-
fusão contínua, o que facilita muito o manejo clínico, além
tui um desafio para toda a equipe que conduz o caso. Além
de causar menor número de reações adversas, como isque-
do tratamento da hemorragia, a parte clínica deve ser mui- mia miocárdica. A dose é de 2mg IV de 4/4h nas primeiras
to bem equilibrada. Algumas medidas são utilizadas tem- 24 horas, seguida de 1mg IV de 4/4h na sequência. O octre-
porariamente até que haja condições para o tratamento otide é um análogo sintético da somatostatina, ministrado
definitivo (Figura 3). também por via IV, na dose de 100mcg em bolus, seguida

102
H E M O R R A G I A D I G E S T I V A A LTA V A R I C O S A

de infusão contínua de 50mcg/h. A dose da somatostatina


é de 250mcg em bolus, seguida de infusão contínua de 250
a 500mcg/h. O tempo de manutenção dessas drogas varia
de 2 a 5 dias.
As complicações da hepatopatia decorrentes da hemor-

CIRURGIA GERAL
ragia varicosa devem ser prevenidas. A lavagem intestinal
está indicada aos pacientes com rebaixamento do nível de
consciência ou antecedente de encefalopatia hepática. A
lactulose, que tem efeito catártico e acidifica o cólon, re-
duzindo a absorção de compostos nitrogenados, está indi-
cada e deve ser ministrada por via oral ou sonda, em doses
variáveis que permitam de 2 a 3 evacuações. A neomicina,
Figura 4 - Balão de Sengstaken-Blakemore
administrada na dose de 1g, VO, de 6/6h, diminui a flora
bacteriana intestinal, reduzindo a produção de substâncias Uma vez estabilizada a parte respiratória e hemodinâ-
nitrogenadas. Restrições proteicas só estão indicadas para mica, está indicada a EDA para a confirmação diagnóstica
pacientes com encefalopatia hepática instalada, e o aporte e a tomada de conduta. É importante ressaltar que mes-
diário não pode ser inferior a 40g/dia, por meio de aminoá- mo em doentes sabidamente hepatopatas, pode ocorrer
cidos de cadeia ramificada. HDA de origem não varicosa em até 30% dos casos. Ape-
As infecções bacterianas são documentadas em 35 a sar dos múltiplos métodos endoscópicos disponíveis para
66% dos pacientes com HDA varicosa, e a sua ocorrência é tratamento, não há preferência específica por um deles. A
um importante fator prognóstico. Além da peritonite bac- ligadura elástica, a escleroterapia e a obliteração com cia-
teriana espontânea, as infecções de vias urinárias e vias aé- noacrilato têm bons resultados nos hepatopatas (Figura 5).
reas também são prevalentes. Assim, a antibioticoterapia é Nas varizes de fundo gástrico e nos pacientes Child-Pugh C,
recomendável para todos os hospitalizados por HDA varico- prefere-se a obliteração com cianoacrilato.
sa. As quinolonas são os mais utilizados, com a ciprofloxaci- Até 10% dos pacientes não terão sucesso no controle
na IV ou o norfloxacino VO. do sangramento ou podem apresentar ressangramento nas
primeiras 24 horas depois da 1ª endoscopia. Nesses casos,
6. Tratamento da hemorragia uma 2ª tentativa de hemostasia endoscópica deverá ser fei-
ta, obrigatoriamente, com método de hemostasia diferente
A prioridade no atendimento de pacientes com HDA va- do 1º. Persistindo o sangramento, está indicada a colocação
ricosa são as estabilidades respiratória e hemodinâmica. A do BSB.
reposição deve ser feita por acessos venosos periféricos e Há relatos de índices de ressangramento das varizes de
calibrosos. Utilizam-se, também, proporcionalmente, mais até 40% nas 6 semanas após o 1º evento, sendo a maioria
derivados do sangue, sempre visando à pressão arterial mé- ainda na 1ª semana. Por isso, após o 1º episódio de sangra-
dia de 70mmHg e evitando pressões sistólicas superiores a mento, está indicada a profilaxia secundária com beta-blo-
100mmHg. Também já se demonstrou que a manutenção queador e por meio de endoscopias seriadas. Realiza-se a
ideal do hematócrito é entre 25 e 30%, e que hemotransfu- erradicação das varizes, geralmente iniciando pela ligadura
sões para valores maiores que esses induzem a maior taxa elástica e finalizando com sessões de escleroterapia que le-
de ressangramento. Ictéricos devem receber também repo- varão à fibrose na submucosa, juntamente à transição eso-
sição de vitamina K, de preferência 10mg de vitamina K3 fagogástrica, retardando o aparecimento de recanalização
(Kanakion®), intravenoso ou intramuscular, durante 3 dias ou neovascularização local. Para a escleroterapia, podem-
consecutivos. -se utilizar diferentes substâncias: oleato de etanolamina,
Pacientes com sangramento persistente mesmo duran- glicose a 50%, polidocanol, álcool a 70%, em diferentes as-
te as medidas iniciais são candidatos à passagem do Balão sociações e dosagens.
de Sengstaken-Blakemore (BSB – Figura 4). O BSB deve ser
colocado em doentes com via aérea protegida. Inicialmen-
te, o balão gástrico é preenchido com 200 a 300mL de água
destilada ou solução fisiológica, e então é tracionado para
se posicionar no fundo gástrico. Em seguida, o balão esofá-
gico é insuflado até atingir a pressão de 30mmHg. Pelo alto
risco de complicações, como necrose e perfuração esofági-
cas e broncoaspiração, deverá ser mantido somente até a
estabilização da pressão arterial e a reposição dos fatores
de coagulação. O ideal é manter o balão locado por 24 ho-
ras e retirá-lo sob visão endoscópica.

103
CI RUR G I A G ERAL

Situações de hipertensão portal não associadas à hepa-


topatia crônica, como acontece na forma hepatoesplênica
da esquistossomose mansônica, estão associadas a menor
mortalidade e a menor incidência de complicações. Um epi-
sódio de sangramento nesses pacientes já é indicativo de
procedimento cirúrgico, preferencialmente eletivo e já com
níveis de hemoglobina normalizados. Pacientes sem condi-
ções clínicas para a cirurgia são controlados com o manejo
endoscópico.

Figura 5 - Tratamento endoscópico das varizes de esôfago: (A) e (B)


escleroterapia e (C) e (D) ligadura elástica

Nos casos de insucesso da terapia endoscópica ou em


pacientes com transfusão maciça, deve-se cogitar a re-
alização de cirurgia de urgência. As derivações seletivas
(porto-cava, mesentérico-cava, esplenorrenal distal) ou a
desconexão ázigo-portal com esplenectomia são cirurgias
de grande porte e estão associadas a prognósticos ruins.
Procedimentos de menor porte, como a ligadura transgás-
trica das varizes ou a transecção esofágica com grampeador
circular, também apresentam resultados controversos, mas
à custa da gravidade desses indivíduos quando necessitam
de cirurgia.
Todo paciente que apresenta um quadro de HDA por
varizes de esôfago passa a ter indicação de transplante Figura 7 - Gastropatia congestiva na hipertensão portal
hepático. Obviamente, devido à demora para realizar esse
procedimento, algumas medidas devem ser adotadas para Outra condição especial é o sangramento secundário
controle das varizes e das outras situações consequentes à à gastropatia hipertensiva portal. Nessa situação, a muco-
hipertensão portal. Uma delas é a realização de esclerose sa fúndica adquire aspecto “em mosaico”, ressaltando as
endoscópica periódica das varizes ambulatorialmente para áreas gástricas, e ocorre ectasia dos vasos da submucosa,
evitar novos sangramentos. sem inflamação da mucosa, o que explica o emprego do
Uma medida que pode ser utilizada como ponte en- termo gastropatia em vez de gastrite (Figura 7). Pode ocor-
quanto o doente aguarda o transplante hepático é o TIPS rer sangramento, raramente agudo, que só será controla-
(Transjugular Intra-hepatic Portal Shunt – Figura 6). Con- do com a utilização de beta-bloqueadores ou realização de
siste na colocação, por radiologia intervencionista, de um derivações portossistêmicas; sendo ineficaz a utilização de
shunt intra-hepático entre os sistemas porta e cava. Apesar medicação antissecretória. Essa situação é lembrada neste
de apresentar resultados superiores às cirurgias para trata- capítulo por haver associação a varizes, apesar de o foco da
mento da hipertensão portal, o TIPS ainda não está disponí- hemorragia ser outro.
vel na maioria dos serviços.
7. Resumo
Quadro-resumo
- O objetivo inicial do tratamento da HDA varicosa é a estabilização
hemodinâmica do paciente. Não se deve realizar a endoscopia
em pacientes instáveis;
- Mesmo na HDA varicosa, 30% dos pacientes apresentarão
sangramento de outra etiologia;
- Na HDA varicosa, é necessário tratar as complicações da
hepatopatia como encefalopatia hepática e peritonite bacteriana
espontânea;
- Todo paciente com HDA por varizes de esôfago tem indicação
de transplante hepático. Algumas medidas podem ser usadas
enquanto se aguarda o transplante como a erradicação das
varizes ou o TIPS.
Figura 6 - Esquema do TIPS

104
CAPÍTULO

19
Hemorragia digestiva alta não varicosa
José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais É importante, já na admissão do paciente, avaliar a


presença de fatores de risco para ressangramento após as
- Quadro clínico; medidas iniciais de tratamento. A pontuação de Rockall (Ta-
- Conduta; belas 1 e 2) estratifica o risco de ressangramento e mortali-
- Causas incomuns de hemorragia digestiva alta. dade, a partir de dados clínicos, atribuindo valores de 0 a 11
pontos. A estratificação do risco do paciente determina as
1. Epidemiologia condutas, como tempo de monitorização em terapia inten-
siva, momento de realimentação, e de alta hospitalar; por
A Hemorragia Digestiva Alta (HDA) não varicosa tem vá- tudo isso, tem sido cada vez mais valorizada.
rias etiologias possíveis, sendo as úlceras pépticas gastro-
duodenais as causas mais comuns, respondendo por 60% Tabela 1 - Escore de Rockall para hemorragia digestiva não varicosa
dos casos. O uso de Anti-Inflamatórios Não Esteroides (AI-
Fator/pontos 0 1 2 3
NEs) é o principal fator causal nesses casos.
Idade (anos) <60 60 a 80 >80 >80
A chamada Lesão Água da Mucosa Gástrica (LAMG) res-
ponde por 10 a 15% dos casos de HDA não varicosa. A sín- Pulso (bpm) <100 >100
drome de Mallory-Weiss pode estar presente em cerca de PA sistólica
>100 >100 <100 <100
5% dos casos. Outros eventos que podem cursar com HDA (mmHg)
são neoplasias gástricas, esofagites, angiodisplasias, lesão IRC,
de Dieulafoy, pólipos, hemobilia, hemosuccus pancreaticus hepatopa-
Comorbida- Nenhu-
Nenhuma ICC, ICO tia,
e fístula aortoduodenal. des ma
neoplasia
A história natural mostra que 80% desses sangramentos metastática
cessam espontaneamente, 14% voltam nas primeiras 24 a
Neoplasias,
72h após interrupção inicial e 6% sangram de forma contí- úlceras com
nua. A magnitude do sangramento está mais relacionada à Todos os
Normal, coágulo
idade, às comorbidades e ao uso de anticoagulantes do que outros
Endoscopia Mallory- recente,
diagnósti-
à etiologia da hemorragia. Porém, úlceras sangrantes na Weiss vaso visível,
cos
parede posterior do bulbo duodenal e na pequena curva- sangramen-
tura do corpo proximal merecem atenção especial. Devido to ativo
à proximidade anatômica às artérias, úlceras volumosas e
mais profundas também têm maior taxa de ressangramen- Tabela 2 - Estratificação do risco de ressangramento e morte
segundo o escore de Rockall
to e mortalidade. Isso explica, inclusive, o baixo impacto do
grande avanço dos métodos de diagnóstico e hemostasia Pontos Risco Ressangramento Mortalidade
sobre a mortalidade, que persiste em 6 a 8% dos casos. ≤2 Baixo <5% <1%
3a7 Médio 14% 4,6%
2. Quadro clínico ≥8 Alto 52% 30%

A história é de hematêmese e melena na maioria das


vezes, podendo estar associada a repercussões hemodinâ- 3. Conduta
micas nos sangramentos mais volumosos. Antecedentes de A prioridade no tratamento são as estabilizações res-
doença péptica e de medicações em uso devem ser inves- piratória e hemodinâmica. A reposição volêmica deve ser
tigados. feita por meio de acessos venosos periféricos calibrosos,

105
CI RUR G I A G ERAL

e, dependendo da estimativa da perda volêmica, pode ser O tratamento endoscópico reduz o ressangramento, a
necessário o uso de hemoderivados. Sempre que possível, necessidade de cirurgia e a mortalidade. A precocidade do
os pacientes devem ser monitorizados em ambiente de te- exame está relacionada à diminuição dos custos como me-
rapia intensiva. nor tempo de internação e menor utilização de hemoderi-
O uso de Inibidores de Bomba Protônica (IBP) deve ser vados. Os métodos endoscópicos de hemostasia (Figura 2)
precoce, assim como a suspensão dos agentes que possam são:
ter desencadeado o quadro. A aplicação de IBP também - Injeção: adrenalina, álcool, etanolamina, polidocanol,
tem impacto sobre o ressangramento. Alguns autores de- trombina, cola de fibrina, cianoacrilato, glicose a 50%;
fendem a infusão contínua desse medicamento em indiví- - Térmico: eletrocoagulação monopolar, bipolar ou mul-
duos submetidos a procedimentos hemostáticos. tipolar (Bicap), heater probe, plasma de argônio, laser;
Também defendem a utilização de drogas como terli- - Mecânico: hemoclipe, ligadura elástica.
pressina ou somatostatina na admissão de pacientes com Não há indicação para repetir a endoscopia de forma
hemorragia digestiva, independentemente da etiologia. En- rotineira. Uma nova endoscopia deve ser feita quando há
tretanto, não existem, até o momento, evidências de litera- suspeita de ressangramento ou quando o 1º exame foi in-
tura suficientemente fortes para estabelecer essa conduta completo ou limitado pelas condições do momento, como
como rotina; e a maioria dos serviços no Brasil só adminis- nos casos em que uma grande quantidade de sangue na ca-
tra a droga vasoativa quando há suspeita de hemorragia vidade impede a avaliação de todo o órgão. A pesquisa de
varicosa, até por questões de custo. A tendência parece H. pylori deve ser feita no mesmo momento da hemostasia,
ser a utilização dessa opção para casos selecionados, como e a sua erradicação após a 1ª semana diminui o ressangra-
pacientes com sangramento incontrolável aguardando a mento tardio. Toda úlcera deve ser biopsiada, principal-
realização da endoscopia, com sangramento incontrolável mente em pacientes idosos ou com quadro clínico suspeito
apesar da endoscopia e que aguardam cirurgia, ou, ainda, de neoplasia gástrica.
pacientes sem condições de serem submetidos à cirurgia.
A Endoscopia Digestiva Alta (EDA) tem papel diagnóstico
e terapêutico. É possível classificar as úlceras pelo aspecto
endoscópico segundo a classificação de Forrest, que tem
importância por estar relacionada ao risco de ressangra-
mento (Tabela 3 e Figura 1).

Tabela 3 - Classificação de Forrest


Risco de novo
Classificação Achado endoscópico
sangramento
IA Sangramento “em jato” >50%
IB Sangramento “em babação” 20 a 30%
IIA Coto vascular visível 30 a 50%
IIB Coágulo vermelho 5 a 10%
IIC Coágulo branco <5%
Lesão cicatrizada, sem sinais
III <2%
de sangramento recente
Figura 2 - Modalidades de tratamento endoscópico: (A) e (B) inje-
ção de adrenalina, (C) heater probe e (D) hemoclipes

Alguns fatores estão relacionados à falha do tratamento


endoscópico. Úlceras profundas, com mais de 2cm de di-
âmetro, podem tornar a sangrar. A localização é outro fa-
tor importante, sendo as úlceras de parede posteroinferior
(artéria gastroduodenal) e de pequena curvatura (artéria
gástrica esquerda) as mais propensas à falha das medidas
hemostáticas.
Os referenciados para a cirurgia de urgência geralmente
são os mais graves, que já passaram por todas as outras eta-
pas sem que se obtivesse o controle da hemorragia. As indi-
cações mais comuns de cirurgia são falha na 2ª intervenção
Figura 1 - Aspecto endoscópico de úlceras pépticas segundo a clas- endoscópica; persistência da hemorragia com instabilidade
sificação de Forrest hemodinâmica; necessidade de hemotransfusão maior ou

106
H E M O R R A G I A D I G E S T I V A A LTA N Ã O V A R I C O S A

igual à volemia calculada para o paciente (dentro das 24h ria (síndrome de Rendu-Osler-Weber); a síndrome de
iniciais após a admissão); pacientes com mais de 60 anos, CREST (uma variante da esclerose sistêmica caracteri-
portadores de comorbidades graves e que chegam com ins- zada por calcinose, fenômeno de Raynaud, distúrbios
tabilidade hemodinâmica; e as úlceras de difícil acesso com da motilidade esofágica, esclerodactilia e telangiecta-
o endoscópio. sias); entre outras. O diagnóstico é difícil porque a pre-

CIRURGIA GERAL
Quando optado pela cirurgia, a conduta deve ser indi- sença dessas lesões não exclui a existência de outras
vidualizada. Em alguns casos é possível o controle do foco possíveis causas de sangramento digestivo. Algumas
de sangramento por gastrostomia. Entretanto, podem ser vezes, são necessárias novas endoscopias para detec-
necessárias gastrectomias dependendo da localização da tar o sítio do sangramento. O tratamento pode ser en-
úlcera. Os resultados são melhores quando a indicação ci- doscópico ou arteriográfico;
rúrgica é precoce. - Esofagite erosiva: determinada por refluxo gastroeso-
fágico crônico, raramente causa sangramentos graves
4. Causas raras (Figura 3D e Figura 4), predominando as perdas crôni-
cas e lentas. Quadros agudos geralmente estão asso-
ciados a hérnias paraesofágicas encarceradas (úlcera
de Cameron – Figura 3E), nas quais as úlceras surgem
por isquemia do segmento herniado. O tratamento da
hérnia hiatal normalmente é suficiente para a resolu-
ção dessa úlcera;

Figura 3 - Causas raras de HDA: (A) Erosão de Mallory-Weiss; (B)


lesão de Dieulafoy; (C) angiodisplasia; (D) esofagite; (E) úlcera de Figura 4 - (A) Esofagite erosiva e (B) resíduos pós-hematêmese
Cameron; (F) e câncer gástrico

- Erosão de Mallory-Weiss: responde por 5% dos casos - Gastrite erosiva: por ser uma lesão superficial da mu-
cosa, é incomum sangramento digestivo grave (menos
de HDA (Figura 3A). O quadro clínico é de vômitos com de 5% dos casos); determina, mais comumente, per-
sangue após episódios de vômitos de repetição. É fre- das crônicas de sangue. As causas mais comuns são o
quente em etilistas, pacientes com vômitos autopro- uso de AINEs, álcool ou estresse severo secundário à
vocados e na hiperêmese gravídica. Acontece pela la- cirurgia ou doença grave. Quando ocorre sangramento
ceração do esôfago distal e tem resolução espontânea significativo, o melhor tratamento é realizado com a
na maioria dos casos; associação de IBP e arteriografia, para injeção de vaso-
- Lesão de Dieulafoy: a principal causa de HDA com EDA pressina intra-arterial;
normal (Figura 3B). Consiste em uma anomalia arterial - Neoplasia maligna gástrica: representa 1% das he-
na submucosa, principalmente em corpo alto e fundo morragias digestivas (Figura 3F e Figura 5). Os tipos
gástrico, o que dificulta a avaliação pelo endoscopista. ulcerados são os mais propensos ao sangramento. Na
Quando disponível, a arteriografia seletiva é a melhor maior série nacional sobre os sintomas das neoplasias
opção terapêutica. Alguns casos necessitam de condu- gástricas precoces, a HDA foi a apresentação clínica
ta cirúrgica, e a preferência é pela ressecção ampla; mais comum;
- Anomalias vasculares: podem estar presentes em
qualquer porção do trato digestório e determinam
sangramentos agudos ou crônicos (Figura 3C). São res-
ponsáveis por 7% dos casos de hemorragias do trato
superior e fazem parte das mais variadas condições sis-
têmicas, mas também podem ser um achado isolado.
A incidência de telangiectasias isoladas aumenta entre
os portadores de insuficiência renal crônica. As do-
enças sistêmicas que determinam a presença dessas Figura 5 - Aspecto endoscópico de diversos tumores gástricos; (B)
anomalias são: a telangiectasia hemorrágica hereditá- e (C) aspecto ulcerado e com estigmas de sangramento recente

107
CI RUR G I A G ERAL

- Hemobilia: é o sangramento nas vias biliares, geral-


mente em consequência de traumatismo hepático,
neoplasia maligna do fígado, do pâncreas ou das vias
biliares. Manifesta-se por icterícia, hemorragia diges-
tiva e dor abdominal no hipocôndrio direito (tríade
de Phillip Sandblom) e pode ser decorrente da mani-
pulação das referidas áreas por meios endoscópicos
(biópsia; drenagem percutânea de bile, de cistos ou
de abscessos pancreáticos) ou cirúrgicos (colecistec-
tomias ou ressecções hepáticas). Se o sangramento
ocorre nas vias pancreáticas, em vez de nas vias bi-
liares, dá-se o nome de hemosuccus pancreaticus,
geralmente causado por pseudoaneurisma de artéria
esplênica. O tratamento inicial é a embolização vas-
cular seletiva. No insucesso, deve-se realizar a ressec-
ção cirúrgica;
- Fístulas aortoentéricas: são situações graves e de-
vem ser a 1ª hipótese diagnóstica em pacientes com
antecedentes de aneurismas ou cirurgias vasculares
intra-abdominais. Em 80% dos casos ocorre fístula aor-
toduodenal. O tratamento envolve reparo vascular e
secção intestinal.

5. Resumo
Quadro-resumo
- O objetivo inicial do tratamento da HDA não varicosa é a
estabilização hemodinâmica do paciente. Não se deve realizar
a endoscopia em pacientes instáveis;
- A etiologia mais comum de HDA não varicosa é a úlcera péptica
pelo uso de AINEs. Entretanto, é necessário o conhecimento de
causas mais raras de HDA;
- A endoscopia serve como método diagnóstico e terapêutico.
No entanto, casos com risco de ressangramento devem ter
indicação precoce de cirurgia.

108
CAPÍTULO

20
Hemorragia digestiva baixa
José Américo Bacchi Hora / Marcelo Simas de Lima / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais
- Definição;
- Principais causas;
- Condutas na HDB.

1. Definição Figura 1 - Causas de HDB visualizadas em colonoscopia: (A) do-


ença diverticular dos cólons, (B) angiodisplasia, (C) hemorroidas
Considera-se Hemorragia Digestiva Baixa (HDB) qual- internas, (D) pólipo, (E) adenocarcinoma de cólon e (F) sarcoma
quer sangramento cuja origem esteja abaixo do ângulo de de Kaposi
Treitz (após a transição duodenojejunal), ou seja, quase
todo o intestino delgado e todo o segmento colônico e o As causas mais comuns de sangramento do intestino
reto. A maioria das HDBs origina-se no segmento colorretal delgado são angiodisplasias, tumores (incluindo-se os be-
(95% casos). nignos e os malignos primários ou metastáticos) e, com in-
cidência muito menor, úlceras, divertículos, endometrioses,
2. Etiologia hemobilia, doença celíaca e fístulas aortoentéricas.

Existem inúmeras causas para HDB, e há íntima re- A - Doença diverticular dos cólons
lação com a idade do paciente e a presença de doenças
crônicas prévias (Figura 1). Na criança, o divertículo de Estima-se que, acima dos 70 anos, 2/3 da população
Meckel é a causa mais comum de sangramento. Nos pa- ocidental sejam portadores de diverticulose colônica. As
cientes com idade abaixo de 50 anos, as causas mais co- hemorragias acontecem em 3 a 5% dos casos. É a causa
muns são colite infecciosa, doenças anorretais e doença mais comum de HDB e apresenta-se como quadro agudo
inflamatória intestinal. Nos idosos, as hemorragias mais de hemorragia, com pouca dor abdominal, perda de gran-
frequentes são decorrentes da doença diverticular dos de volume de sangue amarronzado ou vermelho-claro, em
cólons, ectasias vasculares, cânceres ou isquemia me- pacientes com mais de 50 anos. A maioria para de sangrar
sentérica. espontaneamente, mas a recorrência pode se apresentar
As doenças orificiais podem ser causa de HDB, normal- em torno de 25%. Os sangramentos se originam princi-
mente referidas como sangramentos rutilantes, em pe- palmente no cólon direito, onde os divertículos são mais
quena quantidade. Em imunossuprimidos, a HDB pode ser hipotônicos, apesar de a diverticulose predominar à es-
consequente ao sarcoma de Kaposi no delgado, colite por querda.
citomegalovírus ou linfoma. Em 20% dos casos, não é iden-
tificada a origem do sangramento. B - Ectasias vasculares
Responsáveis por 20 a 30% dos casos das HDB, a maioria
tem perdas crônicas (perda de sangue oculto nas fezes), mas
podem ocorrer quadros agudos, com hipotensão. Em alguns
estudos, é considerada a causa mais comum de sangramento
baixo nos pacientes acima de 70 anos e nos portadores de in-
suficiência renal crônica. Os segmentos mais acometidos são
o ceco e a porção proximal do cólon ascendente.

109
CI RUR G I A G ERAL

C - Neoplasias temente da apresentação inicial, o sangramento costuma


ser autolimitado, com parada espontânea em até 85% dos
Pólipos benignos e carcinomas determinam a perda de episódios, e a taxa de mortalidade gira em torno de 3%. Os
sangue de forma crônica, como sangue oculto ou perdas critérios de gravidade da HDB são idade, condição hemo-
sanguíneas intermitentes. As neoplasias malignas podem dinâmica, volume de sangue exteriorizado, comorbidades,
se manifestar como HDB em mais de 10% dos casos. necessidade de hemotransfusões, entre outros.
Quadros de sangramentos de coloração vermelho-viva
D - Doença inflamatória intestinal sugerem perda sanguínea entre o cólon esquerdo e o reto
Os quadros de colite ulcerativa frequentemente apre- baixo. Sangramentos do cólon direito têm aspecto mais
sentam diarreia com variável quantidade de hematoquezia. escuro ou coloração marrom, misturado às fezes. Sangra-
O quadro é acompanhado de dores abdominais, sensação mentos mais volumosos podem se manifestar como franca
de esvaziamento incompleto do reto após as evacuações enterorragia a despeito de sua origem, que é o que ocorre
(tenesmo retal) e urgência evacuatória. em 10% dos casos de HDB. Sangramentos de grande volu-
me são mais comuns nos idosos. O sangramento contínuo
E - Doenças anorretais ocorre em poucos casos, apenas 15%. Diarreia sanguinolen-
ta com dores fortes tipo cólica, urgência evacuatória ou te-
O sangramento geralmente é pequeno, e raramente há nesmo retal são mais característicos de doença inflamatória
maiores perdas sanguíneas. A presença de dor evacuatória intestinal, colite infecciosa ou colite isquêmica.
está mais associada à fissura anal. A história mais comum é O exame proctológico completo é indispensável na
a presença de sangue durante a higiene anal ou perda de avaliação desses doentes, pois permite a correta avaliação
sangue de coloração vermelha no vaso sanitário (histórico quanto ao aspecto do sangramento e é capaz de diagnosti-
de doença hemorroidária). car afecções anorretais. Exames laboratoriais gerais devem
ser solicitados para avaliação hematimétrica e do estado
F - Colite isquêmica geral.
Esta patologia é mais comum entre os idosos, que apre- O enema opaco é de utilidade questionável na urgência.
sentam doença arteriosclerótica generalizada. Há uma O exame não é capaz de identificar o local do sangramento,
perfusão visceral menor nesses pacientes, determinando não identifica anomalias vasculares e atrapalha na realiza-
isquemia localizada. Há, desse modo, hematoquezia ou ção de outros exames como a colonoscopia (Figura 2). Além
diarreia sanguinolenta, com dores abdominais de intensi- disso, o efeito terapêutico de um eventual “tamponamen-
dade variável. Em geral, o sangramento é pequeno e limi- to” da hemorragia com o bário é questionável.
tado. Quadros graves de isquemia mesentérica envolvendo
vários segmentos do trato digestório (intestinos delgado e
grosso) apresentam evolução clínica catastrófica, com re-
percussão hemodinâmica grave. A enterorragia pode não
se manifestar nesses casos.

G - Outras causas
A colite actínica, principalmente na forma de proctite
ocasionada por irradiação pélvica prévia nos tratamentos de
neoplasias malignas de colo uterino e próstata, cursa com
sangramento. O tratamento pode ser feito com sessões re-
petidas de ablação dos focos de hemorragia com bisturi de
argônio, aplicado por meio de retossigmoidoscopia flexível
ou por aplicação local, cuidadosa, de formalina a 4%.
A disenteria aguda é acompanhada de exoneração san-
guinolenta. Formas raras de sangramento baixo são isque-
mia por vasculite, úlcera solitária retal associada à procidên-
cia, úlcera provocada por anti-inflamatório não hormonal,
divertículos de delgado e varizes do cólon. A enteropatia da
hipertensão portal também é causa de hemorragia.
Figura 2 - Enema opaco evidenciando doença diverticular dos có-
3. Diagnóstico lons extensa

A severidade do sangramento digestivo pode variar de A colonoscopia é um dos métodos mais importantes
perdas imperceptíveis à hemorragia maciça. Independen- para a avaliação da HDB na urgência, pois é capaz de iden-

110
HEMORRAGIA DIGESTIVA BAIXA

tificar tanto a causa quanto o local da hemorragia, além de 4. Conduta


oferecer oportunidades terapêuticas. Endoscopistas expe-
rientes são capazes de realizar o exame mesmo na vigência A abordagem inicial dos casos consiste na estabilização
de sangramento, o que acaba sendo importante na avalia- hemodinâmica. Segue-se o esforço diagnóstico para primei-
ção do sítio de origem. Entretanto, exames realizados na au- ramente localizar e posteriormente tratar o foco hemorrági-

CIRURGIA GERAL
sência de sangramento maciço e após preparo anterógrado co. A exclusão de sangramento digestivo alto deve ser a 1ª
do cólon proporcionam uma melhor visualização do intes- medida, uma vez que alguns casos de sangramento acima
tino. Entre as possibilidades terapêuticas da colonoscopia, do Treitz podem manifestar-se como enterorragia.
O limite dos esforços diagnósticos é determinado pela
é possível realizar injeção de vasoconstritores, eletrocoagu-
repercussão clínica da hemorragia. Assim, pacientes com
lação, hemostasia por calor (heater probe) e polipectomia.
sangramento de pequena monta, sem repercussões, não
A arteriografia seletiva tem papel importante na investi-
devem passar por procedimentos invasivos e de maior ris-
gação de doentes com HDB. Como é capaz de diagnosticar
co, enquanto aqueles com hemorragia muito grave podem
sangramentos de até 0,5mL/min, diagnostica sangramentos
não ter condições de cumprir todas as etapas diagnósticas.
não perceptíveis à colonoscopia desde que estejam ativos
no momento do exame (Figura 3A). Uma vez diagnosticado,
A - Hemorragia de origem indeterminada
o sangramento pode ser coibido com injeção de substân-
cias vasoconstritoras ou embolização. Qualquer um deles Apesar de todos os exames complementares apresenta-
deve ser feito da forma mais seletiva possível. A injeção de dos, cerca de 5% dos casos permanecem sem identificação
drogas vasoconstritoras pode cessar a hemorragia em até da causa do sangramento. Geralmente, são sangramentos
80% dos casos. A embolização intra-arterial é mais eficaz do delgado e/ou lesões vasculares. Preconiza-se inicialmen-
(90%), porém as chances de complicações isquêmicas são te a repetição de endoscopia e colonoscopia, desde que as
maiores, com dores abdominais após o procedimento, fe- condições do paciente o permitam. Outros métodos que
bre e isquemia ou infarto segmentar do intestino (15% dos podem ser utilizados são a cápsula endoscópica e a ente-
casos). A embolização pode ser feita de forma temporária, roscopia.
utilizando-se Gelfoam, ou permanente, com microesferas A cápsula fotografa e captura imagens que são armaze-
de Ivalon, molas de Gianturco ou associações. Hemorragias nadas e avaliadas após o percurso pelo trato gastrintesti-
provenientes de tumores, aneurismas ou comunicações ar- nal (Figura 4). A desvantagem do método é não permitir a
teriovenosas são tratadas com embolização permanente. aplicação terapêutica concomitante. A duração do exame
Quando a opção é a embolização temporária, as taxas de depende das condições do trânsito intestinal. A tecnologia
ressangramento chegam a 50%, porém, com o foco hemor- utilizada em cada cápsula descartável torna custoso o pro-
rágico identificado e o paciente já estabilizado, a cirurgia é cedimento.
muito mais segura.
A cintilografia com Tc99m pode diagnosticar sangra-
mentos de apenas 0,1mL/min, mesmo que intermitente
(Figura 3B). Os inconvenientes são a correta localização da
hemorragia e a impossibilidade de associação de medidas
terapêuticas ao método.

Figura 3 - (A) Arteriografia evidenciando sangramento ativo (sinal


do blush) e (B) cintilografia com Tc99m evidenciando sangramento
(seta) Figura 4 - Cápsula endoscópica e representação das imagens obtidas

111
CI RUR G I A G ERAL

Existem diversas modalidades de enteroscopia. A técni- 5. Resumo


ca convencional, com aparelho semelhante ao endoscópio,
porém mais fino e mais longo, atinge até 60cm distal ao ân- Quadro-resumo
gulo de Treitz e tem alcance limitado. A enteroscopia com - Os sangramentos abaixo do ângulo de Treitz normalmente são
duplo balão funciona por meio de um sistema de overtubes autolimitados, mas podem se apresentar como hemorragias
e insuflação de balões, em que se consegue “vestir” o in- maciças e instabilidade hemodinâmica;
testino do aparelho e explorar a partir das 2 extremidades - As causas mais comuns são doença diverticular dos cólons,
(Figura 5). Além disso, permite analisar todo o intestino del- angiodisplasias e tumores;
gado com a vantagem do canal de trabalho que permite bi- - A sequência diagnóstica envolve endoscopia, colonoscopia,
ópsias e procedimentos hemostáticos. Em último caso, po- arteriografia e, se disponível, cápsula endoscópica e
de-se realizar a enteroscopia intraoperatória com o auxílio enteroscopia. A cirurgia pode ser utilizada na falha de todos
do cirurgião, que guia o aparelho através de enterotomias esses métodos.
realizadas no campo cirúrgico, de modo que o endoscopista
localize o foco hemorrágico para a realização do tratamento
definitivo.

Figura 5 - Endoscópio com duplo balão

B - Tratamento cirúrgico
Felizmente, a grande maioria dos sangramentos baixos
cessa espontaneamente ou consegue ser controlada por
colonoscopia ou arteriografia. Na falha ou impossibilidade
diagnóstica e/ou terapêutica, a laparotomia pode ser uti-
lizada como último recurso. Indica-se cirurgia aos sangra-
mentos continuados e que receberam mais de 4 a 6 unida-
des de concentrados de hemácias nas primeiras 24 horas
da admissão. A maioria dos casos decorre de divertículos
ou ectasias vasculares.
A localização do sítio de sangramento no pré-operatório
possibilita menores ressecções intestinais. Quando não há
possibilidade de localização exata do sangramento ou a ci-
rurgia está indicada com extrema urgência, é realizada a co-
lectomia total, com alta taxa de mortalidade pós-operató-
ria. A escolha de anastomose ou ileostomia deve basear-se
nas condições clínicas do paciente durante a cirurgia.

112
CAPÍTULO

21
Bases da cirurgia videolaparoscópica
Eduardo Bertolli

Pontos essenciais O pneumoperitônio é necessário para proporcionar es-


paço intra-abdominal e permitir a visualização da anatomia.
- Aspectos técnicos; O pneumoperitônio é feito com insuflação de CO2 e pode
- Alterações fisiológicas; ser obtido pela técnica fechada, pela punção com agulha
- Complicações do método. de Veress, ou aberta, pela técnica de Hasson (Figura 1). A
pressão inicial para insuflação após a punção deve ser entre
1. Introdução 6 e 8mmHg. O fluxo ideal deve ser de 1L/min, e a pressão
durante a cirurgia deve se manter entre 12 e 15mmHg para
Com o advento das fibras ópticas de iluminação, con- evitar o quadro de síndrome compartimental abdominal.
jugado com o desenho de instrumentais cirúrgicos que
possibilitavam uma manipulação dos órgãos internos com
menores áreas de dissecção, surgiram os primeiros proce-
dimentos videolaparoscópicos. Na década de 1960, Semm
substituiu 75% das operações ginecológicas abertas pela la-
paroscopia com baixo índice de complicações.
Na cirurgia geral, a laparoscopia foi utilizada inicial-
mente para realizar biópsias hepáticas sob visão direta. Em
1977, De Kok realizou apendicectomias videoassistidas. A
1ª colecistectomia videolaparoscópica foi realizada por
Mouret, em 1987.
Inicialmente, a cirurgia laparoscópica aumenta o cus-
to inicial do procedimento em termos de equipamentos e
Figura 1 - (A) Punção com agulha de Veress e (B) técnica de Hasson
manutenção, bem como no treinamento do cirurgião. No
entanto, as vantagens da laparoscopia ultrapassam os cus- Com a óptica inserida, realiza-se um inventário da cavi-
tos de muitos procedimentos, tornando-a vantajosa nesses dade. São então introduzidos os outros trocateres neces-
casos. Entre as principais vantagens, há uma menor perma- sários para afastamento e dissecção, colocados sob visão
nência hospitalar e retorno precoce das atividades normais direta. O número e a localização dos trocateres variam de
do paciente, o trauma cirúrgico é menor, há menos dor pós- acordo com a cirurgia. Uma possibilidade é o uso de single
-operatória, e o efeito estético é superior. port, em que por meio de uma incisão coloca-se um dispo-
sitivo capaz de alojar à óptica os trocateres necessários para
2. Aspectos técnicos a cirurgia (Figura 2).
A preparação pré-operatória permanece a mesma dos
procedimentos tradicionais no que diz respeito ao preparo
do paciente, compensação clínica e avaliação pré-anesté-
sica. Há situações nas quais o cirurgião terá de converter a
cirurgia laparoscópica para a via aberta, de modo que todo
paciente precisa estar ciente disso no pré-operatório.
A cirurgia deve sempre ser realizada sob anestesia geral,
e é prudente a passagem de sondas nasogástrica e vesical
de demora para evitar distensão e minimizar a presença
desses órgãos no campo operatório. Figura 2 - Dispositivo para single port

113
CI RUR G I A G ERAL

A - Alterações fisiológicas do pneumoperitônio Procedimentos realizados


Especialidade
por videolaparoscopia
Logo no início da insuflação, ocorre a liberação de me-
- Nefrectomia (total e parcial);
diadores neuroendócrinos. Isso justifica a necessidade de
- Adrenalectomia;
uma indução lenta e gradual do pneumoperitônio. Do pon- Urologia - Pieloplastia;
to de vista ventilatório, a função respiratória fica compro- - Correção de criptorquidia (ou orquiectomia
metida pela diminuição da complacência pulmonar. Podem ectópica).
acontecer hipercapnia e acidose, rapidamente reversíveis - Histerectomia;
com a desinsuflação do CO2. - Inventário e estadiamento no câncer de ovário;
Ginecologia
O pneumoperitônio (e o consequente aumento da pres- - Inventário e estadiamento na endometriose;
são intra-abdominal) aumenta a pressão venosa central, a - Avaliação de infertilidade.
pressão capilar pulmonar em cunha (pré-carga), a pressão
arterial média e a resistência vascular sistêmica (pós-carga). 4. Complicações
Essas alterações apresentam efeito duplo: o aumento da
A maioria das complicações acontece logo na 1ª fase do
pré-carga aumenta o débito cardíaco, ao passo que o au-
procedimento, decorrentes de punções iatrogênicas. O en-
mento da pós-carga o reduz, mas aumenta o trabalho car-
fisema subcutâneo ocorre em até 2% dos casos e pode ser
díaco. diagnosticado durante a cirurgia e tratado com esvaziamen-
to do CO2 e nova punção.
B - Contraindicações Entre as punções viscerais, podem ocorrer lesão gástrica
Não há nenhuma contraindicação absoluta ao método. em 0,027% dos casos e perfuração entérica em até 0,3%
Do ponto de vista técnico, a presença de cirurgias abdomi- dos casos. O reparo primário muitas vezes é suficiente e
nais prévias e a consequente formação de aderências podem pode ser feito pela própria laparoscopia. A complicação as-
dificultar ou até impedir a introdução dos trocateres. Algu- sociada a maior morbimortalidade é a punção de estruturas
mas aderências podem ser liberadas laparoscopicamente, vasculares. No caso de sangramentos de grande monta, a
mas múltiplas cirurgias anteriores prejudicam essa técnica. conversão para a cirurgia aberta deve ser precoce.
Pacientes com obesidade mórbida podem apresentar Outras complicações mais raras são embolia gasosa, co-
panículo adiposo muito grande, dificultando a colocação lapso cardiovascular e hérnias incisionais, geralmente nas
dos trocateres. O útero aumentado na gestante pode impe- incisões de 10mm. De modo geral, o índice global de mor-
dir a formação de espaço intra-abdominal suficiente. talidade dos procedimentos laparoscópicos é de 0,5% com
Pacientes com doença cardiopulmonar grave podem pio- morbidade de 4%.
rar com a diminuição do retorno venoso pelo pneumoperitô- Cada procedimento poderá ter complicações específi-
nio. Doentes com coagulopatias devem ser compensados e cas. A complicação mais comum da colecistectomia vide-
olaparoscópica, por exemplo, é a lesão iatrogênica de vias
transfundidos antes do procedimento. Em caso de urgência,
biliares, principalmente do ducto biliar principal. A colan-
esses indivíduos devem ser operados por laparotomia. Ape-
giografia intraoperatória é uma alternativa para evitar esse
sar de possível, o tratamento das peritonites generalizadas
tipo de complicação, especialmente nos casos em que a
também é mais bem realizado pela via convencional.
anatomia das vias biliares não é clara.

3. Aplicações 5. Cirurgia endoscópica por orifícios na-


Os procedimentos laparoscópicos fazem parte do arsenal turais
de diversas especialidades cirúrgicas atualmente (Tabela 1).
Definida como a abreviatura de Natural Orifice Translu-
Tabela 1 - Principais procedimentos realizados por videolaparoscopia menal Endoscopic Surgery (cirurgia endoscópica translumi-
Procedimentos realizados por nal por orifício natural), o termo NOTES denota uma gama
Especialidade de possibilidades de procedimentos endoscópico-cirúrgicos
videolaparoscopia
- Correção de hérnias inguinais e incisionais; que têm o potencial de ser menos invasiva até que a cirur-
Cirurgia geral gia laparoscópica. Os primeiros relatos experimentais em
- Apendicectomia.
- Colecistectomia; NOTES utilizando a via transgástrica (Figura 3A) em animais
- Hiatoplastia e fundoplicatura; foram publicados por Kalloo, em 2004. Rao, em 2005, foi o
- Cirurgia bariátrica; pioneiro a realizar cirurgias do apêndice por via transgás-
Cirurgia
gastrintestinal
- Esplenectomia; trica. No entanto, essa via ainda não pode ser considerada
- Hepatectomias (e segmentectomias hepáticas); segura, pela possibilidade de peritonite.
- Colectomia; A via NOTES transvaginal foi realizada pela 1ª vez no
- Retossigmoidectomia.
mundo pela equipe do Dr. Ricardo Zarron, da Universida-

114
BASES DA CIRURGIA VIDEOLAPAROSCÓPICA

de de Teresópolis, Rio de Janeiro (Figura 3B). A equipe re-


alizou, no início de março de 2007, as primeiras colecistec-
tomias NOTES transvaginais sem auxílio de laparoscopia,
em 4 pacientes do sexo feminino. Embora apresente bons
resultados iniciais, sem deixar cicatrizes e com menos dor

CIRURGIA GERAL
pós-operatória, esse tipo de cirurgia tem a desvantagem
de só poder ser realizado em mulheres, e ainda precisa de
mais estudos para estabelecer seu papel no tratamento dos
pacientes.

Figura 3 - NOTES: (A) Acessos transoral e transgástrico e (B) acesso


transvaginal

6. Resumo
Quadro-resumo
- A videolaparoscopia é uma via de acesso segura e considerada
padrão-ouro em diversos procedimentos devido a sua menor
morbidade;
- As principais repercussões fisiológicas ocorrem nos sistemas
cardiovascular e respiratório;
- As principais complicações estão associadas às punções
iatrogênicas de vísceras ou vasos.

115
SUPORTE VENTILATÓRIO NÃO CIRÚRGICO

CAPÍTULO

1
Cirurgia pediátrica geral
André Ribeiro Morrone

tração de soluções intravenosas em temperatura ambiente


1. Sistema respiratório e o bloqueio do processo de autorregulação decorrente dos
A resistência das vias aéreas é alta no Recém-Nascido agentes anestésicos tornam o RN suscetível à hipotermia.
(RN), que respira, quase exclusivamente, pelas narinas; por Esta leva ao aumento da resistência vascular periférica, cau-
isso, usa-se sonda orogástrica para descomprimir o estôma- sa metabolismo anaeróbico e acidose, aumenta o consumo
go e o trato digestório. O consumo de oxigênio no RN é de de energia, diminui o inotropismo e o cronotropismo cardí-
cerca de 7mL/kg/min (2 vezes maior que no adulto). Apneia aco, deprime o SNC, diminui a atividade enzimática e altera
perioperatória é mais comum em prematuros. No pós-ope- o sistema de coagulação.
ratório, ou após pequenos procedimentos realizados nos pri-
meiros 2 a 3 meses de vida, os prematuros devem ficar sob
período mais prolongado de observação (cerca de 24 horas).
5. Hematologia e coagulação
Os RNs têm concentração de Hb dependente do grau de
2. Sistema cardiovascular transfusão placentária, em geral, por volta de 18g%, com
predomínio de Hb do tipo fetal (HbF), que tem maior afini-
O miocárdio do neonato tem capacidade limitada de dade pelo oxigênio em relação à Hb do adulto, resultando
aumentar o volume de ejeção, assim o aumento do débito em desvio da curva de dissociação da Hb para a esquerda.
cardíaco depende, exclusivamente, da capacidade de eleva- Pela maior velocidade de destruição e limitada produção,
ção da frequência cardíaca. Cerca de 50% dos prematuros tem-se a anemia fisiológica nos primeiros 6 meses de vida.
têm ducto arterioso pérvio. A administração excessiva de Nos primeiros dias de vida, em particular nos prematuros, a
volume pode reabrir o ducto arterioso recém-fechado. síntese de fatores da coagulação dependentes de vitamina
K (II, VII, IX e X) é inadequada e pode gerar um estado de hi-
3. Sistema nervoso central pocoagulabilidade (doença hemorrágica do RN), que pode
Variações no fluxo sanguíneo cerebral do RN, com vasos ser corrigida pela administração de vitamina K.
sanguíneos subependimários ainda não adequadamente
desenvolvidos, parecem ser a causa principal da alta inci- 6. Água e eletrólitos
dência de hemorragias intracranianas nessa faixa etária
Nos prematuros, 80% do peso corpóreo são representa-
(frequente em prematuros). Outras causas de sangramento
dos por água, caindo para 65% após o 1º ano de vida. Aos
no SNC são rápida infusão de coloides ou soluções hiperos-
2 anos, tal porcentagem assemelha-se à do adulto (55%). O
molares, hiponatremia, acidose e ventilação com pressão
volume plasmático intravascular varia de 5% do peso corpó-
positiva intermitente. Os RNs são particularmente sensíveis
aos efeitos depressores do sistema respiratório decorrentes reo em adultos a 8% (80mL/kg) em neonatos.
da utilização de agentes anestésicos. A água total corpórea é dividida em 2 compartimentos:
o intracelular e o extracelular. O fluido extracelular repre-
senta 1/3 da água corpórea total e contém o sódio como
4. Homeostase térmica principal cátion e o cloreto e o bicarbonato como principais
A manutenção da temperatura constante é um elemen- ânions. Já o fluido intracelular representa 2/3 da água cor-
to crítico no RN em razão da grande superfície corpórea em pórea total e tem o potássio como principal cátion. A fun-
relação ao peso, da pequena quantidade de gordura subcu- ção renal dos RNs tem como característica uma baixa taxa
tânea e da reduzida capacidade muscular para gerar calor. A de filtração glomerular (cerca de 25% da taxa dos adultos)
associação desses fatores à perda de calor por meio da ex- e uma baixa capacidade de concentração urinária que os
posição de grandes superfícies durante a cirurgia, a adminis- tornam menos tolerantes à desidratação.
116
CIRURGIA PEDIÁTRICA GERAL

O rim do RN pode concentrar a urina entre 500 e Durante a anestesia, são observados os seguintes parâ-
600mOsm/L, e o do prematuro, 400mOsm/L (o adulto che- metros: FC, FR, pressão sanguínea, saturação periférica de
ga a 1.200mOsm/L), por isso requer de 2 a 4mL/kg/h para oxigênio (oximetria de pulso), temperatura e dor.
excretar os solutos (as crianças necessitam de 1 a 2mL/ O jejum é fundamental nos procedimentos eletivos,
kg/h, e os adultos, 0,5mL/kg/h). pois diminui o risco de aspiração e hipoglicemia.

Tabela 4 - Jejum pré-operatório


7. Necessidades hidroeletrolíticas e nu- Idade Sólidos Líquidos sem resíduos
tricionais <6 meses 4 horas 2 horas
6 a 36 meses 6 horas 2 horas
Tabela 1 - Necessidades basais de água
>36 meses 8 horas 2 horas
≤10kg 100mL/kg/dia
- Sólidos: leite materno, fórmula, leite de origem animal e de-
11 a 20kg 1.000mL + 50mL/kg/dia para cada kg >10kg rivados;
>20 1.500mL + 20mL/kg/dia para cada kg >20kg - Líquidos sem resíduos: água, chá, sucos sem polpa, gelatina.
Adulto 2.000 a 3.000mL/dia

CIRURGIA PEDIÁTRICA
A avaliação da dor no pós-operatório auxilia na adminis-
tração de medicamentos para supressão da dor.
Tabela 2 - Necessidades basais de sódio e potássio
Sódio 3mEq/kg/dia (máximo 80mEq/dia)
Potássio 2,5mEq/kg/dia (máximo 40mEq/dia)

Tabela 3 - Necessidades nutricionais básicas diárias


Até 10kg 11 a 20kg >21kg
Calorias 100cal/kg 90cal/kg 80cal/kg Figura 1 - Escala de intensidade de dor; crianças >7 anos: escala
Proteínas 2,5g/kg/dia 2g/kg/dia 1,5g/kg/dia numérica; crianças <7 anos: escala de faces

8. Sistema imunológico
A atividade total do complemento do RN é 50% a do
adulto. A concentração de C3, C4, complexo C5, fator B e
properdina também está diminuída, em comparação à dos
adultos. A IgM é ausente, pois não passa pela placenta.

9. Anestesia pediátrica
O preparo pré-operatório em cirurgia pediátrica é fun-
damental. Nas cirurgias eletivas, a consulta pré-anestésica é
um instrumento muito importante para quantificar os riscos
durante o ato anestésico-cirúrgico e esclarecer os pais da
criança. A anamnese junto com o exame físico detalhado são
fundamentais na avaliação. Não existe obrigatoriedade de
colher exames pré-operatórios. Os exames podem ser soli-
citados de acordo com as características da criança e da ci-
rurgia a ser realizada. Geralmente procedimentos de menor
porte não necessitam de exames laboratoriais. Na anamnese
é importante perguntar sobre problemas cardiopulmonares,
alergias (alimentar, medicamentos e látex), nascimento pre-
maturo, história familiar de morte ou complicações durante
atos anestésico-cirurgicos e doenças recentes.
Segundo a Sociedade Americana de Anestesia Pediátrica,
a incidência de mortalidade relacionada à anestesia é de
0,36 para cada 10.000 anestesias realizadas. No Brasil, es-
tima-se em 9,8 para cada 10.000 anestesias realizadas. As
principais causas foram: cardiovascular (36%), respiratória
(27%), medicamentosa (18%) e de equipamentos (5%).

117
SUPORTE VENTILATÓRIO NÃO CIRÚRGICO

CAPÍTULO

2
Gastrocirurgia pediátrica
André Ribeiro Morrone

gástrico. Na sala de parto, não é possível progredir a sonda


1. Sinais e sintomas de alerta até o estômago, e no berçário há salivação espumosa exces-
- Vômitos biliosos; siva e cianose às mamadas. Neste momento, com a suspei-
- Distensão abdominal; ta o paciente já deve ser mantido em decúbito elevado, um
- Retardo, escassez ou não eliminação de mecônio; proclive de 30°, e iniciado jejum.
- Polidrâmnio materno; A avaliação radiológica confirma o diagnóstico mostran-
- Síndrome de Down; do a sonda enrolada no coto. Se há dúvida, com apenas
- História familiar: doença de Hirschsprung, mãe diabé- 1mL de contraste pela sonda pode-se notar o stop no coto
tica e atresia jejunal; e, além de fechar o diagnóstico, ter uma medida da distân-
- Parada na eliminação de gases e fezes; cia entre os cotos, para programar o tratamento cirúrgico.
- Sangramento gastrintestinal; Há uma associação de malformações conhecida como
- Icterícia com acolia fecal; síndrome de VACTERL: vertebral (hemivértebras e espinha
- Desconforto respiratório; bífida), anal (ânus imperfurado), cardíaca (tetralogia de
- Malformações visíveis. Fallot, CIA, CIV e ducto arterial), traqueoesofágica (fístula),
renal (agenesia renal e hipospádia) e limb (membro: displa-
2. Atresia de esôfago sia de rádio). Entre 50 a 70% das atresias de esôfago têm
outras malformações associadas, a mais comum a cardíaca
A atresia de esôfago é uma malformação congênita ca- (35%). A correção cirúrgica é eletiva, descartadas as malfor-
racterizada pela interrupção da luz esofágica ao nível da sua mações. Enquanto se aguarda, o RN deve ser mantido em
porção torácica, com ausência de segmento em maior ou jejum, decúbito elevado, antibioticoterapia, nutrição paren-
menor extensão. Devem-se conhecer os tipos e a incidên- teral e sonda no coto esofágico em aspiração contínua com
cia: atresia de esôfago com fístula distal (87%), atresia de sistema de Venturi.
esôfago sem fístula (8%), fístula traqueoesofágica sem atre- O prognóstico dependerá do peso e da presença de car-
sia (fístula em H, 4%), atresia de esôfago com fístula proxi- diopatia ou pneumonia associada. Há 2 classificações quan-
mal (<1%) e atresia de esôfago com fístula proximal e distal to ao prognóstico da atresia de esôfago: Waterston (1962)
(<1%). A classificação de “A” até “E” ou de tipo 1 até 4 ou 5 e Sptiz (1994).
varia conforme a fonte.
Tabela 1 - Classificação de Waterston
Grupo % Vida Característica
A 100 Peso >2,5kg e bem.
Peso entre 2 e 2,5kg e bem ou peso
>2,5kg e pneumonia discreta ou mal-
B 85
formação associada de moderada gra-
vidade.
Peso <2kg ou peso >2kg com malfor-
Figura 1 - Tipos de atresia de esôfago: (A) atresia esofágica pura; C 65 mação associada severa ou pneumonia
(B) atresia esofágica com fístula traqueoesofágica proximal; (C) grave.
atresia esofágica com fístula traqueoesofágica distal; (D) atresia
esofágica sem fístula e (E) fístula traqueoesofágica em H - Classificação de Spitz:
A incidência é de 1:2.500 nascidos vivos. Na USG pré- - Grupo I: peso ≥1,5kg sem cardiopatia – 97% de sobre-
-natal, podem-se ter polidrâmnio e diminuição do volume vida;
118
GASTROCIRURGIA PEDIÁTRICA

- Grupo II: peso <1,5kg ou cardiopatia – 59% de sobre- 3. Estenose cáustica do esôfago
vida;
As substâncias alcalinas provocam mais lesões mais
- Grupo III: peso <1,5kg e cardiopatia – 22% de sobre- frequentes e mais graves do que as ácidas. A soda cáusti-
vida. ca presente em vários produtos de limpeza é o agente que
mais causa lesões, sendo a necrose de liquefação a mais
O tratamento cirúrgico depende das malformações as- grave, provocando intenso espasmo, o que leva toda a cir-
sociadas e das condições pulmonares do RN. A via de aces- cunferência do esôfago ao contato com o agente cáustico.
so é a toracotomia posterolateral direita com acesso extra- Se a dose ingerida é grande, pode haver necrose de toda a
pleural, ligadura da fístula e anastomose terminoterminal
parede e consequente cicatrização com acentuadas esteno-
do esôfago em 2 planos ou plano único. Quando o RN não
ses. Tratamento: não se devem provocar vômitos na crian-
está em condições clínicas para a cirurgia, inicialmente se
ça para não retornar o conteúdo ao esôfago, mas se deve
realizam gastrostomia descompressiva e esofagostomia,
proceder à EDA para avaliar a extensão da lesão. Se houver
com posterior correção cirúrgica definitiva. A gastrostomia
lesão grave do esôfago, passagem de sonda nasoenteral
não pode ser usada para alimentação, devido à presença da
sob visão direta, que servirá como fio-guia nas próximas en-
fístula esofagotraqueal. São complicações pós-operatórias:

CIRURGIA PEDIÁTRICA
doscopias, diminuindo o risco de perfuração, e possibilitar
estenose ou fístula da anastomose esofágica, refluxo gas-
a alimentação precocemente. Acredita-se que a adminis-
troesofágico, traqueomalácia (a qual é alteração congêni-
tração de corticoides diminua os índices de estenose que
ta, não complicação pós-operatória) e reabertura da fístula
não respondem à dilatação. Iniciar tratamento com ampi-
esofagotraqueal (“refístula”).
cilina na admissão. Após 48 horas, dieta líquida se não há
salivação. Após 2 a 3 semanas, novo controle com EDA, se
há estenoses, iniciar programa de dilatação. O prognóstico
depende do grau da lesão de assintomáticos àqueles com
indicação de substituição esofágica (esofagocolonplastia ou
esofagogastroplastia).

4. Enterocolite necrosante
A enterocolite necrosante (ECN) é uma doença intesti-
nal e infecciosa que atinge principalmente RNs prematu-
ros, produzindo lesão no trato gastrintestinal por meio da
necrose de coagulação da mucosa, e podendo ocorrer o
comprometimento de toda a espessura da parede intesti-
nal. A ECN inicia-se provavelmente após isquemia intestinal
(em que os prematuros são mais suscetíveis e apresentam
imaturidade da mucosa com maior permeabilidade a bac-
térias), porém pode estar associada a outros fatores, como
início da dieta enteral, asfixia perinatal, cateter umbilical e
outros casos de ECN na unidade de neonatologia, demons-
trando a etiologia infecciosa.
O quadro inicial confunde-se com outras infecções por
inespecificidade, queda do estado geral, hipoatividade, irri-
tabilidade e má aceitação da dieta com alterações laborato-
riais de hemograma e proteína C reativa, associada ou não
ao quadro abdominal. Com o desenvolvimento da doença,
o quadro abdominal se torna mais exuberante, com varie-
dade dos sintomas. Os mais comuns, dor e distensão ab-
dominal, são seguidos de vômitos, evacuação com sangue
e resíduo gástrico. Nesta fase, deve iniciar-se o tratamen-
to clinico precocemente mesmo sem evidencias de ECN.
Antibióticos, sondagem orogástrica com sonda calibrosa e
jejum, além de todo suporte clínico, são indicados.
Figura 2 - Radiografia simples: atresia de esôfago com fístula dis- A radiografia mostra edema de parede das alças, níveis
tal – notar bolsa de ar e sonda no coto esofágico proximal e ar no hidroaéreos e ar na parede das alças que evidenciam a do-
abdome ença (pneumatose intestinal).

119
CI RUR G I A P ED I Á T R ICA

dem desenvolver síndrome do intestino curto. Se houver


boa evolução pós-operatória, após pesquisa de estenoses
no segmento do cólon distal, pode-se realizar a reconstru-
ção do trânsito intestinal, não antes de 6 semanas.
O prognóstico depende mais de fatores infecciosos que
do quadro abdominal e, obviamente, da extensão da doen-
ça. A presença de necrose maciça de todo o intestino torna
o prognóstico reservado com mortalidade de 100%.

Figura 3 - Pneumatose no ângulo esplênico do cólon

A evolução da doença pode levar a perfuração intesti-


nal e peritonite, e o local mais envolvido é o íleo terminal. Figura 5 - ECN: notar a distensão abdominal e a coloração
Nessa fase, o exame físico mostra um RN mais grave, em
mau estado geral, e pode apresentar alterações de cor na
parede abdominal, plastrão palpável, eritema periumbilical.
5. Estenose hipertrófica do piloro
Doença caracterizada por hipertrofia da musculatura do
piloro, impossibilitando o adequado esvaziamento gástrico.
Essa hipertrofia tem etiologia desconhecida e uma incidên-
cia de 3:1.000 nascidos vivos, com predomínio em primo-
gênitos do sexo masculino (4:1 até 10:1) e histórico familiar.
O quadro clínico é bem característico, com vômitos em jato
não biliosos que se iniciam entre a 2ª e a 3ª semanas de
vida, em um paciente saudável. Ao exame físico, encontra-
-se um RN desnutrido, desidratado e irritado porque não
consegue se alimentar adequadamente, estando sempre
faminto.
Em 50 a 70% dos casos, pode-se palpar uma massa mó-
vel e indolor no hipocôndrio direito, a chamada oliva pilóri-
ca. A conduta inicial é a correção dos distúrbios hidroeletro-
líticos, a alcalose metabólica hipoclorêmica, devido à perda
de HCl pelos vômitos persistentes. Sem contar a sondagem
Figura 4 - Pneumoperitônio gigante gástrica com sonda calibrosa.
Quando não se consegue palpar a oliva pilórica, podem-
A cirurgia é reservada às complicações, como perfura- -se fazer exame contrastado do estômago e duodeno que
ção intestinal e gangrena (necrose de toda a parede intes- revelará o sinal do “bico do seio” ou do “fio” ou do “guarda-
tinal). Aos prematuros extremos (abaixo de 1kg), pode-se -chuva”, exames praticamente em desuso pela acurácia da
realizar apenas a drenagem da cavidade com dreno de USG. Os sinais na USG são: comprimento do canal pilórico
Penrose, para melhorar a dinâmica ventilatória, muito pre- >16mm, espessura do músculo >3mm e diâmetro >11mm.
judicada pelo pneumoperitônio. A laparotomia consiste O tratamento é cirúrgico eletivamente e consiste na pi-
em ressecar o segmento intestinal acometido e derivar o loromiotomia de Fredet-Hamstedt-Weber, que consiste na
intestino com ileostomia. Deve-se evitar a anastomose no incisão longitudinal no piloro até a extrusão da submucosa,
1º tempo, pois ainda não se sabe o limite de progressão da sem abrir a mucosa (extramucosa).
necrose e se trata de um RN em estado grave. Complicações Devido ao quadro de irritação gástrica, os vômitos po-
infecciosas e jejum prolongado são as principais causas de dem persistir ainda por 1 a 2 dias no pós-operatório. O
óbito. Alguns pacientes com grandes áreas ressecadas po- prognóstico é excelente.

120
GASTROCIRURGIA PEDIÁTRICA

Vater). A mais comum é a distal à papila duodenal, com a


presença de vômitos biliosos desde as primeiras horas de
vida. A suspeita diagnóstica existe desde a gestação com
polidrâmnio detectado por meio do sinal da dupla-bolha à
USG, radiografia simples de abdome com o mesmo sinal.
São anomalias associadas síndrome de Down (20 a 30%),
síndrome de VACTERL e anomalias do SNC e cardíacas. O
tratamento inicial, como em qualquer quadro obstrutivo
intestinal, consiste em descompressão gástrica com sonda
calibrosa e correção de distúrbio hidroeletrolítico. O tra-
tamento cirúrgico é eletivo e realizado com duodenoduo-
denoanastomose e duodenoplastia, laterolateral na borda
anterior, sem manipulação da via biliar. O prognóstico de-
pende da gravidade das malformações.
Figura 6 - Radiografia contrastada: estenose hipertrófica do piloro

CIRURGIA PEDIÁTRICA
Figura 7 - Piloro hipertrofiado

Figura 8 - Piloromiotomia extramucosa

6. Atresias e obstruções duodenais


As obstruções duodenais podem ser intrínsecas (atresia,
estenose e membrana) ou extrínsecas (pâncreas anular, má
rotação intestinal com bandas de Ladd e duplicidade duo-
denal), proximais ou distais à papila duodenal (ampola de Figura 9 - Radiografia simples: sinal da dupla bolha

121
CI RUR G I A P ED I Á T R ICA

Figura 10 - Duodenoduodenoanastomose (proximal transversal para longitudinal distal) em forma de diamante

7. Má rotação intestinal (rotação intesti-


nal incompleta)
A má rotação intestinal, ou rotação intestinal incomple-
ta, é um defeito na rotação e na fixação do intestino que,
na forma completa, tem a seguinte topografia: duodeno e
intestino delgado à direita da coluna e intestino grosso à
esquerda, com aderências fibrosas (bandas de Ladd) entre
o duodeno, o ceco e o retroperitônio no quadrante superior
direito. A incidência é de 3% da população, com predomí-
nio entre os homens. Ao quadro clínico, há vômitos biliosos,
obstrução duodenal, acidose metabólica e volvo de intesti-
no médio; metade dos casos apresenta sintomas no perío-
do neonatal.
O diagnóstico radiológico é feito com radiografia sim-
ples e exame contrastado de Esôfago, Estômago e Duodeno
(EED). O tratamento é cirúrgico e imediato, pelo risco de
necrose do intestino. Consiste no procedimento de Ladd:
Figura 12 - Má rotação intestinal com volvo de intestino médio
redução do volvo por intermédio de rotação no sentido an-
ti-horário, colocação do delgado à direita da coluna, lise das
bandas de Ladd, colocação do intestino grosso à esquerda
da coluna e apendicectomia.

Figura 11 - EED: sinal do saca-rolha Figura 13 - Bandas de Ladd

122
GASTROCIRURGIA PEDIÁTRICA

8. Atresia intestinal
A atresia intestinal deve-se a um acidente vascular is-
quêmico mesentérico no período intrauterino. Acomete,
frequentemente, o jejuno e o íleo, mais raramente o có-
lon, e pode ser múltipla em 10% dos casos. O diagnóstico
baseia-se na presença de vômitos biliosos, distensão abdo-
minal, obstipação e presença de polidrâmnio materno. Os
sintomas são tão mais evidentes quanto mais baixa é a atre-
sia. Nas atresias mais altas, vômitos mais precoces e pouca
distensão. Nos casos de lesões mais baixas, vômitos mais
tardios por vezes até fecaloides. Classificação das atresias
intestinais, segundo Louw:
- Tipo I: membrana mucosa, sem solução de continuida-
de do mesentério;
- Tipo II: cordão fibroso, sem falha no mesentério;

CIRURGIA PEDIÁTRICA
- Tipo IIIa: com separação entre os cotos proximal e dis-
tal e falha no mesentério (tipo mais comumente en-
contrado); Figura 15 - Radiografia simples: atresia ileal
- Tipo IIIb: atresia jejunal alta e íleo terminal curto e he-
licoidal, com irrigação retrógrada através das artérias
ileocólica ou cólica direita (apple peel);
- Tipo IV: atresias múltiplas. O tratamento cirúrgico con-
siste em anastomose intestinal com utilização de téc-
nicas para corrigir a desproporção de diâmetro entre a
alça proximal e a distal.
A radiografia simples deve ser realizada em 2 posições,
em decúbito dorsal horizontal e em posição ortostática. São
observados níveis hidroaéreos e ausência de ar nas porções
terminais do intestino.

Figura 16 - Radiografia simples: apple peel (“casca de maçã”)

Figura 14 - Radiografia simples: atresia jejunal Figura 17 - Atresia intestinal: apple peel

123
CI RUR G I A P ED I Á T R ICA

O tratamento inicial, como em qualquer quadro obs- 10. Doença de Hirschsprung (megacólon
trutivo intestinal, consiste em descompressão gástrica com
sonda calibrosa e correção de distúrbio hidroeletrolítico. O congênito)
tratamento cirúrgico é eletivo e deve visar ao estabeleci- Descrita em 1887, é uma doença congênita causada por
mento do trânsito intestinal. A anastomose terminotermi- um defeito na migração de células ganglionares parassim-
nal é realizada com técnicas para diminuir a grande despro- páticas para os plexos intermuscular (Auerbach) e submu-
porção entre os 2 cotos. É imperativo verificar a perviedade coso (Meissner) do intestino grosso. Ocorre em 1:1.000 a
de todo o trato intestinal devido ao risco de outras áreas 1.500 nascidos vivos, com predomínio no sexo masculino
atrésicas. O prognóstico depende do tipo da atresia e da (4:1) e RN de termo. O segmento aganglionar (sempre dis-
presença de peristalse no pós-operatório tardio. tal) não se relaxa adequadamente, funcionando como um
segmento de pressão muito alta e espástica (podendo ser
9. Íleo meconial demonstrado em exame de manometria), impedindo a
evacuação normal. O quadro clínico é de constipação que
O íleo meconial é uma doença que se inicia devido a varia conforme a extensão do segmento aganglionar, desde
uma consistência anormal do mecônio por secreção inapro- quase assintomático, onde só se descobre a doença mais
priada de enzima. Relacionado com fibrose cística em até tardiamente, até graves sintomas de obstrução intestinal
80% dos casos, também pode ocorrer nos casos de hipo- na 1ª semana de vida. É característico o exame físico, em
tireoidismo, diabetes materna e doença de Hirschsprung. que há eliminação de fezes de forma explosiva após o toque
Diz respeito a uma obstrução intestinal geralmente no íleo
retal. Se há suspeita da doença, deve-se indicar o enema
terminal, devido ao mecônio anormalmente espesso, visco-
opaco com bário à procura do chamado cone de transição.
so e pegajoso. O quadro clínico pode ser semelhante ao da
A radiografia após 24 horas (retardo) faz parte do exame. O
atresia intestinal. Ocorre obstrução intestinal nas porções
diagnóstico é confirmado através de biópsia retal demons-
terminais do íleo com distensão abdominal e vômitos. Raio
trando ausência de células ganglionares e aumento da ativi-
x revela níveis hidroaéreos e microcólon, além de um aspec-
dade da acetilcolinesterase na submucosa.
to granular fino na porção obstruída pelo mecônio anormal.
O mecônio tem diminuição de água e aumento de pro-
teínas e mucoproteínas, como resultado da deficiência da
atividade de enzimas pancreáticas e do prolongamento
do tempo do trânsito intestinal. Tal deficiência pode ser
demonstrada com o teste da albumina no mecônio (strip
teste) positivo com concentrações acima de 20mg/g de me-
cônio. Pode-se realizar também a dosagem de sódio e cloro
no suor para o diagnóstico de mucoviscidose.
O íleo meconial pode ser dividido em simples e complica-
do. O tipo simples tem tratamento conservador, inicialmen-
te, com substâncias capazes de diluir e remover o mecônio
espesso (diatrizoato de meglumina – gastrografina –, diatri-
zoato de sódio – Hypaque – e n-acetilcisteína – Fluimucil)
e enzimas pancreáticas. Na falha do tratamento conserva-
dor e nos casos de íleo meconial complicado, aplica-se o
tratamento cirúrgico: ressecção e anastomose primária ou
ileostomia que permita acesso à porção distal para irrigação
com mucolíticos (técnica de Milulicz e Bishop-Koop).

Figura 18 - Ileostomia: (A) técnica de Mikulicz e (B) Bishop-Koop Figura 19 - Radiografia simples: megacólon com fecaloma

124
GASTROCIRURGIA PEDIÁTRICA

(Duhamel, Swenson ou Soave). É muito importante a mo-


nitorização clínica dos pacientes pelo risco de desenvolvi-
mento de uma complicação muito grave, o megacólon tóxi-
co ou enterocolite.

Figura 22 - Abaixamento de cólon: (A) Duhamel; (B) Soave e (C)

CIRURGIA PEDIÁTRICA
Swenson

11. Malformação anorretal (ânus imper-


furado)
Consiste num complexo grupo de defeitos congênitos,
erroneamente chamado ânus imperfurado, que se deve a
um defeito na divisão do septo urorretal. A incidência varia
de 1:4.000 a 1:5.000 nascimentos. No sexo masculino, o de-
feito mais comum é a fístula retouretral e, no sexo feminino,
a fístula retovestibular. São malformações associadas: geni-
turinárias (20 a 54%), anomalias vertebrais e sacrais (6%),
gastrintestinais (10 a 20%), cardiovasculares (7%) e síndro-
me de VACTERL.
Na sala de parto, ao exame físico, já pode ser notada
a anomalia. Impossibilidade de introdução da sonda pelo
ânus, que sempre deve ser verificada, ou mesmo orifício
anal fora do centro do esfíncter, deve ser pesquisada. Diante
Figura 20 - Enema opaco perfil: zona de transição – megacólon e de um paciente portador de AAR, devem-se aguardar 24
enterocolite horas para que progrida até as porções terminais do reto.
As características clínicas variam com o tipo de AAR, bem
como a conduta. Esta, nos primeiros dias de vida, depende
basicamente da complexidade da AAR. Anomalias mais sim-
ples podem ser corrigidas a um só tempo, já as mais altas
e mais complexas são corrigidas mais tardiamente, e, nos
primeiros dias de vida, indica-se apenas a colostomia para
descompressão.
Existem várias classificações de AAR, mas basicamente
o que deve ser conhecido pelo cirurgião é a diferença de
conduta nos 2 tipos. Classificação e conduta:
- I-AAR alta (complexa): presença de mecônio na uri-
na ou fístula retovestibular ou cloaca ou invertogra-
ma (Wangensteen-Rice) com distância entre a marca
anal e o reto >1cm. Conduta: colostomia em 2 bocas
(no sigmoide) e, posteriormente, cirurgia de Peña
(anorretoplastia sagital posterior). A cirurgia de Peña
Figura 21 - Megacólon e zona de transição é especialmente útil nas anomalias anorretais baixas,
dificultada tecnicamente pelo aumento da distância
O tratamento cirúrgico consiste na ressecção da zona do reto para a pele. Além disso, faz parte da técnica
aganglionar e no abaixamento de cólon por via endoanal dessa cirurgia inserir a fístula ou o reto dissecado no

125
CI RUR G I A P ED I Á T R ICA

centro de contração do complexo esfincteriano, que A etiologia é idiopática (associação a quadro de infecção
em anomalias muito altas é ausente ou extremamente respiratória), em 90% dos casos, ou secundária a fatores
malformado; predisponentes (divertículo de Meckel, cisto enterógeno,
- II-MAR baixa: fístula perineal ou invertograma com pólipos, linfoma), em geral acima dos 2 anos.
distância entre a marca anal e o reto ≤1cm. Conduta: O quadro clínico típico é o de uma criança entre 6 e 9
cirurgia perineal sem colostomia. meses, com história ou não de vacinação ou quadro viral
respiratório há cerca de 15 dias. Inicia-se com choro muito
forte e irritabilidade, inclusive arranhando os pais. A dor se
apresenta em episódios, tipo cólica, e assim que ela cessa a
criança desfalece, pálida e sudoreica até uma nova crise de
dor. Desde o início do quadro, podem aparecer vômitos e
distensão abdominal, porém estes são mais tardios. Ao exa-
me físico, podem-se palpar uma massa no lado direito do
abdome. O toque retal é obrigatório se não há evacuação
na fralda e pode evidenciar a famosa evacuação mucossan-
guinolenta, conhecida pelo aspecto “em geleia de moran-
go”. Nesta fase, mesmo sem confirmação, deve ser passada
sonda orogástrica de grosso calibre, iniciada correção de
distúrbios hidroeletrolíticos e continuada investigação, lem-
brando que se trata de uma emergência cirúrgica, pois exis-
te um segmento intestinal com sofrimento por isquemia.
O diagnóstico é feito pela clínica, faixa etária, USG (sinal
Figura 23 - MAR: fístula retouretral do “alvo” no corte transversal ou imagem de “pseudorrim”
no corte longitudinal) e enema opaco. O tratamento é con-
servador (redução com enema de solução salina ou gás) nos
casos com menos de 12 horas, com ausência de sangramen-
to retal, de obstrução intestinal, de sinais de complicação, e
crianças menores de 2 anos. Atualmente, o padrão-ouro é
a redução com infusão de solução salina aquecida via retal,
com acompanhamento pelo radiologista por meio de USG,
e cirúrgica na falha ou na contraindicação de tratamento
conservador, consistindo em redução cuidadosa por meio
da compressão do segmento distal invaginado para o proxi-
mal. O índice de recidiva varia de 6 a 10%. E o prognóstico é
muito bom, só piorado se há alguma doença de base como
linfoma ou mucoviscidose ou divertículo de Meckel.

Figura 24 - MAR: cloaca

O prognóstico depende da complexidade da AAR e do


sucesso na anorretoplastia, sendo a incontinência fecal e a
constipação as principais complicações.

12. Invaginação intestinal (intussuscepção)


A invaginação intestinal acontece quando um segmento
proximal de alça intestinal penetra num segmento distal,
causando compressão vascular do mesentério, com con-
sequente edema, isquemia e necrose. O pico de incidência
está entre o 5º e o 9º meses de vida e predomina no sexo
masculino (60 a 70%). Localização: ileocecal (80%), ileoileal,
cecocólica e jejunojejunal. Figura 25 - Invaginação ileocecal

126
GASTROCIRURGIA PEDIÁTRICA

O desenvolvimento de câncer colorretal é regra e sur-


ge em média 10 anos após o desenvolvimento dos pólipos.
Manifestações extracolônicas benignas e malignas podem
estar associadas à PAF. As benignas são pólipos no trato di-
gestivo superior (estômago e duodeno), intestino delgado,
tireoide, suprarrenais, pâncreas e hipófise; cistos sebáce-
os, lipomas, osteomas, dedos hipocráticos, anormalida-
des dentárias (dentes supranumerários), lesões da retina
e tumores desmoides. As malignas são tumores na região
periampular, de ductos biliares, gástricos, no íleo, tireoide,
suprarrenal e sistema nervoso central.
As manifestações extracolônicas mais comuns são os
osteomas (mais comuns no ângulo da mandíbula) e alte-
rações da pigmentação da retina (hipertrofia congênita do
epitélio pigmentar da retina). A associação da PAF com cis-

CIRURGIA PEDIÁTRICA
tos epidermoides e osteomas é conhecida como síndrome
Figura 26 - Imagem em alvo de Gardner; com tumores de sistema nervoso central, como
síndrome de Turcot.
O tratamento consiste na proctocolectomia total com
ileostomia definitiva ou colectomia total mais proctectomia
de mucosa retal e anastomose ileorretal ou ileoanal (bolsa
ileal também pode ser usada). O seguimento desses pacien-
tes é fundamental, pois é possível o aparecimento de mani-
festações extracolônicas após a colectomia. A investigação
nos familiares é importante por ser uma herança autossô-
mica dominante.

14. Apendicite aguda


A apendicite aguda é a causa mais comum de cirurgia
de urgência em crianças, com pico de incidência de 10 a
12 anos. Ocorre por processo inflamatório agudo do apên-
dice cecal devido à obstrução de sua luz, ocasionando em
acúmulo de secreção, e consequente infecção do conteúdo
intraluminal.

- Quadro clínico
Dor periumbilical (dor visceral) que evolui para dor em
quadrante inferior direito e FID (dor somática), náuseas, vô-
mitos, anorexia e febre. O diagnóstico é essencialmente clí-
nico. Exames subsidiários podem ser solicitados em caso de
dúvida diagnóstica, mas é importante saber que, em alguns
Figura 27 - Enema opaco: invaginação intestinal (sinal da taça) casos, podem mais confundir do que ajudar. Os principais são
hemograma, proteína C reativa, radiografia simples de abdo-
13. Polipose adenomatosa familiar me, USG de abdome (diâmetro do apêndice maior que 6mm
e presença de líquido ou pus periapendicular) e TC de abdo-
A Polipose Adenomatosa Familiar (PAF) é uma doença me. Há alta incidência de perfuração do apêndice em crian-
hereditária autossômica dominante, responsável por 1% ças menores de 3 anos, devido a dificuldade no diagnóstico.
dos casos de câncer colorretal na população. Em aproxima- Cerca de 15% dos apêndices têm localizações atípicas (retro-
damente 20% dos casos, a doença pode decorrer de mu- cecal, pélvica, quadrante superior esquerdo). A indicação de
tações genéticas. Geralmente, manifesta-se na puberdade, cirurgia é baseada fundamentalmente em critérios clínicos.
com o aparecimento de pólipos adenomatosos na mucosa O escore de Alvarado correlaciona sintomas, sinais e
colorretal, podendo ser assintomática ou apresentar qua- exames para o diagnóstico de apendicite aguda. Baixo ris-
dro clínico de sangramento retal, anemia, tenesmo e, mais co para apendicite ≤2 pontos, alto risco para apendicite ≥7
raramente, dor abdominal. pontos e intermediário entre 3 e 6 pontos.

127
CI RUR G I A P ED I Á T R ICA

Tabela 2 - Escore de Alvarado furação, bem como da gravidade do quadro infeccioso se


Sintomas Sinais Laboratório houver.
Migração da Dor no quadrante infe- Leucócitos >10.000 A peritonite meconial pode ser dividida em simples
dor = 1 ponto rior direito = 2 pontos = 1 ponto (casos com cicatrização espontânea da perfuração) e com-
Desvio à esquerda plexa (com obstrução intestinal e formação de pseudocis-
Dor à descompressão to). O tratamento cirúrgico está indicado aos casos de pe-
Anorexia = 1 (>10% ou >7.500
ou tosse ou percussão = ritonite meconial complexa, e para tratamento da doença
ponto neutrófilos) = 1
2 pontos
ponto de origem.
Náuseas e vô-
Febre (>38°C) = 1 ponto -
mitos = 1 ponto 16. Divertículo de Meckel
O tratamento adequado da base apendicular, limpeza O divertículo de Meckel é uma persistência parcial do
da cavidade e antibioticoterapia são a base do tratamento, conduto onfalomesentérico, na borda antimesentérica do
não importando a via de acesso para a cirurgia. O método íleo, com incidência de 2% na população e predomínio no
de tratamento no coto apendicular também varia. Com o sexo masculino (3:1). Pode ser assintomático ou causar sin-
advento da videolaparoscopia, existe uma tendência de li- tomas como:
gadura simples, se a sua base no ceco está em bom aspecto. - Hemorragia (40%): hemorragia intestinal baixa indo-
lor e volumosa, muitas vezes necessitando de correção
volêmica, com pico aos 2 anos, raramente acima de 4
anos;
- Obstrução intestinal (30%): devido a um cordão fibro-
so que liga o divertículo à cicatriz umbilical;
- Diverticulite (20%): mais comum no adulto.
A parede do divertículo de Meckel pode conter mucosa
gástrica ou tecido pancreático ectópico. No caso de sangra-
mento, o mapeamento pode auxiliar de 2 maneiras: com
99mTc (pertecnetato de sódio) para pesquisa de mucosa
gástrica ectópica e 99mTc-enxofre coloidal para detectar a
presença de hemorragia ativa (sangramento >0,1mL/min).
O tratamento cirúrgico é feito com ressecção do diver-
tículo e anastomose intestinal, e o prognóstico é excelente.
Alguns serviços indicam a videolaparoscopia e a diverticu-
lectomia com grampeador.

Figura 28 - Apendicectomia à Oschner: bolsa ao redor do coto


apendicular

As principais complicações no período pós-operatório


são abscesso da parede abdominal, íleo paralítico prolon-
gado e coleções intra-abdominais.

15. Peritonite meconial


A peritonite meconial é uma peritonite química e assép-
tica que ocorre por perfuração intestinal durante o período
fetal. O local mais comum de perfuração é o íleo distal, e
50% das peritonites meconiais cursam com obstrução intes-
tinal. A USG pré-natal pode mostrar ascite, massa intra-ab-
Figura 29 - Divertículo de Meckel
dominal, dilatação intestinal e calcificações intra-abdomi-
nais. Podem cursar com essa peritonite atresias intestinais,
volvo intestinal e íleo meconial.
17. Atresia de vias biliares
Apresenta-se como distensão abdominal severa e pro- O quadro clínico inicia-se na 2ª ou na 3ª semana de vida
gressiva com eritema e edema da parede abdominal logo em um RN geralmente anictérico, aparecendo hiperbilirru-
após o nascimento, e os achados clínicos e radiológicos binemia direta, acolia fecal, icterícia, hepatomegalia e bom
vão depender da natureza da obstrução que causou a per- estado geral do lactente. Em cerca de 20% dos casos, há

128
GASTROCIRURGIA PEDIÁTRICA

malformações associadas: poliesplenia, má rotação intesti- giorressonância, porém, se não possível, a USG apresenta
nal, situs inversus, veia porta pré-duodenal e ausência de grande sensibilidade.
veia cava inferior. Além do aumento da bilirrubina, é detec- Classificação:
tado aumento de enzimas canaliculares (fosfatase alcalina - I: dilatação cística isolada do hepatocolédoco (cisto de
e gamaglutamiltranspeptidase). O diagnóstico diferencial colédoco);
é estabelecido com as hepatites neonatais virais (TORSCH: - II: divertículo do hepatocolédoco;
toxoplasmose, rubéola, sífilis, citomegalovírus e herpes- - III: dilatação do colédoco terminal com saliência para a
-vírus), em que o lactente apresenta mau estado geral e he- luz duodenal (coledococele);
patoesplenomegalia. Devem ser realizadas USG ou colan-
giorressonância para afastar as possibilidades de dilatações
- IV: dilatação do hepatocolédoco com dilatação de via
biliar intra-hepática;
congênitas das vias biliares. É fundamental o estudo cintilo-
gráfico do fígado para detectar se há ou não drenagem da
- V: dilatação predominante da árvore intra-hepática
(doença de Caroli);
bile para o duodeno, e este é realizado com derivados do
ácido iminodiacético (Disida). - VI: dilatação cilíndrica ou “forma frustra” do cisto de
O tratamento é feito por meio do procedimento de colédoco, com ou sem dilatação da via biliar intra-he-
pática.

CIRURGIA PEDIÁTRICA
Kasai (portoenteroanastomose em Y de Roux após colan-
giografia intraoperatória), no máximo até a 10ª semana
O tratamento cirúrgico consiste na ressecção do cisto
de vida. A colangite é a complicação mais comum no pós-
e na derivação biliodigestiva em Y de Roux. Nos quadros
-operatório. Nos casos de falha de portoenteroanastomose
infecciosos graves, deve-se ter em mente o tratamento da
e falência hepática, está indicado o transplante hepático.
colangite, complicação mais temida. Também se deve levar
Acredita-se que, como a doença é evolutiva, quase todos
em conta o quadro de destruição do parênquima hepáti-
(cerca de 90%) os pacientes evoluirão para a necessidade
de transplante hepático, e todos devem ser encaminhados co, e nos casos de doença recorrente com colangites pouco
a um grande centro. responsivas ao tratamento clínico podem ser necessárias
hepatectomias parciais ou mesmo transplante hepático.

Figura 30 - Intraoperatório cirurgia de Kasai fígado endurecido Figura 31 - Derivação em Y de Roux


com colestase
19. Hérnia inguinal
18. Dilatação congênita das vias biliares
A hérnia inguinal é ocasionada pela persistência do con-
A dilatação congênita das vias biliares, por muitos cha- duto peritoneovaginal, portanto é uma hérnia indireta (tipo
mada cisto de colédoco, é uma dilatação do colédoco com 1 de Nyhus). Predomina no sexo masculino (3:1 até 10:1), e o
grande prevalência em orientais. A patogenia decorre de lado direito é o mais acometido (30%). Tem incidência maior
uma junção anômala do colédoco e do ducto pancreático no 1º ano de vida e pico no 1º mês de vida (RNT 1 a 4%).
principal, e, como consequência, tem-se passagem con- A idade de aparecimento varia, sendo mais comum nos
tínua de suco pancreático para o interior das vias biliares, primeiros meses de vida. A mãe nota abaulamento inguinal
causando lesão à sua parede e destruindo a camada mus- aos esforços (choro). No exame físico, deve-se sempre veri-
cular, com substituição por tecido fibroso e dilatação em ficar o posicionamento testicular e palpar os elementos do
intensidades e graus variados. cordão inguinal estando espessado nos casos de hérnia. O
A tríade clássica consiste em dor abdominal intermiten- encarceramento é frequente (10%), sendo mais grave nos
te, icterícia e lesão palpável no hipocôndrio direito, geral- primeiros meses de vida. Na consulta, é imperativo explicar
mente na 1ª década de vida. O exame de eleição é a colan- aos pais todos os sinais de encarceramento e a necessidade

129
CI RUR G I A P ED I Á T R ICA

de urgência no tratamento para evitar necrose do conteúdo negros, prematuros e portadores de síndrome de Down.
encarcerado. O fechamento espontâneo pode ocorrer até 2 a 3 anos de
A cirurgia, sempre indicada, deve ser feita por ocasião vida. Existe abaulamento indolor, muitas vezes confundido
do diagnóstico. No 1º ano de vida, alguns cirurgiões indi- com excesso de pele (umbigo cutâneo), e o encarceramen-
cam a cirurgia dos 2 lados. Outros cirurgiões indicam a ex- to é raro. Sistemas de contensão como cintas, moedas etc.,
ploração bilateral até os 2 anos de idade. A cirurgia consiste não têm nenhuma eficácia comprovada.
na ligadura alta do conduto peritoneovaginal. O tratamento cirúrgico está indicado aos casos em
que não houve fechamento espontâneo, grandes hérnias
(>1,5cm), quando não há evidencia de que a hérnia está re-
gredindo e haverá algum outro procedimento associado e
realização de derivação ventriculoperitoneal.

Figura 32 - Persistência do conduto peritoneovaginal: (A) fecha-


mento completo; (B) hérnia inguinal; (C) hérnia inguinoescrotal;
(D) cisto de cordão; e (E) hidrocele comunicante

Figura 35 - Hérnia umbilical

21. Hidrocele comunicante


Ocorre a passagem de líquido peritoneal para o escroto,
valendo-se de um conduto peritoneovaginal pérvio e es-
treito. Existe história de alteração no volume escrotal inde-
pendente de temperatura ambiente. Geralmente, o volume
aumenta no decorrer do dia. O tratamento é semelhante ao
da hérnia inguinal (ligadura alta do conduto peritoneovagi-
nal) e, em geral, é feito após 1 ano de vida ou após a confir-
Figura 33 - Prematuro: hérnia inguinal bilateral mação de que não se trata de hidrocele não comunicante.

Figura 36 - Hidrocele comunicante

Figura 34 - Hérnia inguinal em menina


22. Distopias testiculares
20. Hérnia umbilical As distopias testiculares são definidas como ausência do
testículo na bolsa. Há incidência aumentada de torção de tes-
Neste caso, o umbigo não se fecha após o retorno do tículo. Cinco por cento dos meninos são acometidos, e é mais
intestino médio para a cavidade celômica (ao redor da 10ª comum em prematuros, pois os testículos completam sua
semana de gestação). A hérnia umbilical é mais comum em descida nas últimas semanas de vida intrauterina. Quando

130
GASTROCIRURGIA PEDIÁTRICA

o defeito é bilateral, sugere-se estar associado a deficiências quiectomia e fixação (orquipexia) do testículo contralateral;
hormonais. Quando unilateral, a principal causa de dificulda- se viável, realizam-se destorção e fixação dos 2 testículos.
de na descida testicular é a hérnia inguinal. Tipos: O diagnóstico diferencial é feito pela história clínica, exame
a) Retrátil: parece fora da bolsa quando há contração do físico e USG Doppler evidenciando ausência de fluxo para o
músculo cremáster, mas, ao exame físico, chega ao escroto. testículo torcido. O prognóstico é diretamente relacionado
ao tempo entre o início dos sintomas e a reperfusão (des-
b) Retido: palpável em algum ponto do trajeto normal a
torção) do testículo.
partir do anel inguinal interno.
c) Ectópico: fora do trajeto normal, canal inguinal.
d) Não palpável: pode ser ausente ou intra-abdominal
(criptorquidia).

Quando há suspeita de déficit hormonal, antes do tra-


tamento cirúrgico podem-se administrar 3 doses de gona-
dotrofina coriônica humana para estimular a descida dos
testículos. É de particular importância o conhecimento dos

CIRURGIA PEDIÁTRICA
estados intersexuais em pacientes em 2 condições, criptor-
quidia bilateral e criptorquidia associada a hipospádia.
O tratamento é cirúrgico quando não há sucesso no tra-
tamento hormonal ou quando este não tem indicação. Tem
sido realizada operação cada vez mais precocemente, atu-
almente entre 1 e 2 anos de vida, e consiste na orquipexia
com fixação subdártica do testículo.

A - Escroto agudo
Escroto agudo é o termo que caracteriza o quadro clíni-
co de dor escrotal, aumento do volume, edema e eritema
locais, febre, náuseas e vômitos. Figura 37 - Torção extravaginal, já com aspecto necrótico, mais
comum no período neonatal
B - Torção de testículo
Pode ocorrer desde a vida intrauterina até a fase adul-
ta. A distribuição é bimodal (2 picos no período neonatal e
adolescência).
As principais patologias compatíveis com a clínica de
escroto agudo são torção de testículo, torção de anexos
testiculares (hidátide de Morgagni), orquite, epididimite e
hérnia inguinal encarcerada. A torção de hidátide é muito
frequente como causa de escroto agudo. A parotidite viral
(caxumba) é uma causa de orquiepididimite em crianças. O
quadro clínico da torção de testículo consiste em dor testi-
cular súbita, edema, eritema na bolsa testicular, hidrocele
reacional, reflexo cremastérico ausente (o testículo encon- Figura 38 - Torção de testículo
tra-se mais elevado) e sinal de Prehn (alívio da dor quando
se eleva o testículo) negativo. Na torção extravaginal, mais
comum no período neonatal (12% das torções), o testículo
C - Torção de apêndices testiculares
torce em torno do cordão inguinal. Na torção intravaginal, Os apêndices testiculares (o mais comum é a hidátide
mais habitual no período puberal, o testículo torce em tor- de Morgagni) também estão sujeitos a torção. A torção des-
no de sua circulação dentro da túnica vaginal. tes pode manifestar-se como escroto agudo. À palpação,
O diagnóstico da torção de testículo é essencialmente pode-se diferenciar esse tipo de torção. Na transilumina-
clínico. O tratamento cirúrgico da torção é de urgência, de- ção escrotal, é possível a visibilização do chamado blue dot,
vido à isquemia e à possibilidade de necrose do testículo; um ponto mais escuro onde se encontra o pequeno ane-
o ideal é realizar a cirurgia até 6 horas após a instalação do xo isquêmico e necrosado. Se há confiança no diagnóstico,
quadro. A via de acesso pode ser por inguinotomia (suspeita instaura-se o tratamento clínico, com AINH. Se há qualquer
de hérnia inguinal ou neoplasia) ou incisão escrotal. Avalia- dúvida, deve-se proceder a uma exploração cirúrgica de ur-
se a viabilidade do testículo: se necrótico, realizam-se or- gência. O prognóstico é excelente, sem sequelas.

131
CI RUR G I A P ED I Á T R ICA

D - Orquiepididimite
Processo inflamatório e/ou infeccioso envolvendo o
testículo, o epidídimo ou ambos. A causa mais comum é
a parotidite epidêmica. Quadro clínico de escroto agudo,
algumas vezes com história de trauma. Dor muitas vezes
irradiada para a região inguinal. No exame clínico, têm-
-se dor, hiperemia e sinal de Prehn positivo. Em 1º lugar,
deve-se descartar torção testicular com USG com Doppler.
Se houver qualquer dúvida, deve-se proceder a exploração
cirúrgica de urgência. Exames para detectar infecções tam-
bém devem ser solicitados: urina I, hemograma, testes para
gonorreia e clamídia.
O tratamento é eminentemente clínico, com repouso,
suspensório escrotal e antibióticos, se for o caso. A atrofia
testicular é possível principalmente nos casos relacionados
com parotidite. Se ocorrer, estará indicada fixação do testí-
culo contralateral. Figura 39 - Radiografia simples: hérnia diafragmática de Bochdalek

23. Hérnia diafragmática de Bochdalek 24. Hérnia diafragmática de Morgagni


Trata-se de falha na separação da cavidade pleuroperi- A hérnia de Morgagni, um defeito do diafragma na re-
toneal durante o desenvolvimento embrionário, assim o in- gião anteromedial entre as origens esternal e costal do dia-
testino penetra na cavidade pleural e causa hipoplasia pul- fragma, representa menos de 2% dos defeitos do diafrag-
monar. A hérnia diafragmática é mais comum à esquerda ma. Em 90% dos casos, é à direita e geralmente possui saco
(90%), na região posterolateral do diafragma (Bochdalek), herniário. Frequentemente, é assintomática; crianças mais
com incidência de 1:2.000 nascidos vivos e mortalidade de velhas e adultos podem referir pequeno sintoma gastrin-
60%. A USG pré-natal pode evidenciar a presença de alças testinal ou achado incidental durante raio x de tórax. São
no tórax. O paciente deve ser encaminhado a um grande malformações associadas cardiopatia, onfalocele, trissomia
centro, pela possibilidade de gravidade. Quadro clínico, já do 21 e pentalogia de Cantrell. O tratamento é cirúrgico, re-
pode aparecer na sala de parto: cianose precoce, acidose e alizado por toracotomia, com redução do conteúdo e sutura
desconforto respiratório, abdome escavado e tórax “em to- da falha diafragmática.
nel”. Radiografia de tórax mostra alças intestinais no tórax.
O prognóstico depende de:
- Tempo de aparecimento dos sintomas (se <6 horas,
pior prognóstico);
- Anomalias associadas (cardiopatia piora o prognós-
tico);
- Grau de hipertensão pulmonar.
O principal desafio do tratamento é o controle da hiper-
tensão pulmonar, principal fator prognóstico nesta fase. O
tratamento consiste em IOT, sonda orogástrica, surfactante
pulmonar na sala de parto, correção da acidose, ventila-
ção de alta frequência, ECMO, drogas para diminuir a hi-
pertensão pulmonar (tolazolina, nitroglicerina, acetilcolina, Figura 40 - Radiografia simples: hérnia de Morgagni: notar o ar no
espaço retroesternal
prostaglandina E1, prostaglandina D2, prostaciclina e nife-
dipina). A cirurgia, que não é prioridade no tratamento, é
realizada após melhora da hipertensão pulmonar e da aci-
dose. A correção é realizada por laparotomia subcostal es-
25. Onfalocele
querda para redução do conteúdo herniado para a cavidade A onfalocele é um defeito congênito da parede abdo-
abdominal e sutura primaria do diafragma. Quando não é minal, originado na falha do fechamento da mesma pare-
possível, pode-se fazer um patch de pericárdio bovino ou de na vida embrionária. Pode ser recoberta por peritônio
tela de Marlex. parietal e âmnio. O diagnóstico é feito na USG morfológica

132
GASTROCIRURGIA PEDIÁTRICA

fetal. Onde já são pesquisadas outras malformações. Não -abdominal. O prognóstico depende das malformações
constitui indicação absoluta para cesariana. A criança nasce associadas.
então com o defeito onde o cordão umbilical está sempre
no ápice e pode apresentar diversos tamanhos e conter 26. Gastrosquise
quantidade variável de alças intestinais, com ou sem fígado
no seu interior. Tem alta incidência (40%) de malformações A gastrosquise é um defeito congênito da parede abdo-
associadas: minal, localizado à direita do cordão umbilical. Como na on-
- Síndrome da linha média (fissura vesicointestinal, atre- falocele, apresenta conteúdo abdominal exteriorizado, mas
este é de vísceras ocas. O fígado e o baço são tópicos. Não
sia cólica, extrofia de bexiga, ânus imperfurado, defei-
há membranas recobrindo as vísceras, que se apresentam
tos da coluna sacral e meningomielocele);
expostas ao nascimento. As alças intestinais ficam expostas
- Pentalogia de Cantrell (defeito do esterno, diafragma, prolongadamente ao líquido amniótico, tendo como conse-
pericárdio e malformação cardíaca, inclusive ectopia quência serosite, edema e espessamento de parede. Tem
cordis); baixa incidência (15%) de malformações associadas, mas,
- Síndrome de Beckwith-Wiedemann (defeitos da região quando presente, é representada pelas atresias ou esteno-

CIRURGIA PEDIÁTRICA
umbilical, macroglossia, gigantismo e hipoglicemia por ses ileojejunais. A prematuridade é mais comumente asso-
ciada à gastrosquise.
secreção inapropriada de insulina);
O diagnóstico é feito na USG morfológica e não consti-
- Trissomias 13-15 e 16-18. tui indicação absoluta de parto cesárea, que é muitas ve-
zes indicado pelo risco de lesão das alças que estão fora
Nos casos de onfalocele com a cápsula íntegra, o tra-
da cavidade abdominal. A conduta inicial consiste em son-
tamento é eletivo. O tratamento é cirúrgico com urgência
dagem orogástrica com sonda calibrosa, tratamento com
se há ruptura da cápsula, com fechamento primário, nos
antibióticos, manutenção do RN em decúbito lateral e pro-
pequenos defeitos; nos grandes defeitos, o tratamento é
teção das alças evitando hipotermia e posicionando-as de
escalonado (por etapas), por meio de silo de silicone. modo a evitar a obstrução arterial e a isquemia (volvo e
compressão).
O tratamento cirúrgico consiste no fechamento primário
do defeito quando possível. No pós-operatório, é comum
o íleo paralítico prolongado devido à serosite química cau-
sada pelo líquido amniótico e é um dos principais fatores
prognósticos além do quadro infeccioso.

Figura 41 - Onfalocele: fechamento com silo de silicone

Figura 42 - Onfalocele gigante

A decisão de reduzir o conteúdo para a cavidade ab-


dominal e fechar a parede depende da pressão intra- Figura 43 - Gastrosquise: notar o cordão umbilical cateterizado

133
CI RUR G I A P ED I Á T R ICA

neia, crises de broncoespasmo e doenças reacionais como


pneumonite e displasia broncopulmonar além de infecções
de repetição.
Deve-se ressaltar que o sintoma mais comum é o vô-
mito, e deve-se realizar o esofagograma para afastar mal-
formações anatômicas como a hérnia de hiato, má rotação
intestinal, membranas ou estenoses duodenais, fístula tra-
queoesofágica, compressões vasculares e acalásia. Não é
um bom exame para detectar a presença de DRGE. A en-
doscopia digestiva alta mostra anormalidades na mucosa
esofágica. O teste de escolha para o diagnóstico de DRGE é
a pHmetria. O teste avalia o tempo de refluxo, o número de
episódios, o número de episódios de refluxo acima de 5 mi-
nutos, o tempo para esvaziamento do conteúdo que refluiu
para o esôfago e o tempo total de refluxo. O tratamento
consiste em medidas posturais e dieta, medicamentos ou
correção cirúrgica, conforme o caso. Atualmente, o proce-
Figura 44 - Gastrosquise: colocação de silo
dimento mais indicado é a válvula antirrefluxo tipo Nissen,
preferencialmente realizada por videolaparoscopia, com
bom prognóstico.

Figura 45 - Gastrosquise

27. Doença do refluxo gastroesofágico


A DRGE é definida como disfunção do esfíncter esofági-
co inferior, com refluxo do conteúdo gástrico para o esôfago.
Apesar de sua incidência desconhecida, é uma das queixas
mais comuns no 1º ano de vida. Nem sempre está associa-
da à hérnia hiatal. A intensidade dos sintomas nem sempre
tem relação com a quantidade do refluxo, e o quadro clíni-
co é muito variável. Os pacientes podem estar totalmente
assintomáticos e, no outro extremo, com esofagite grave,
estenoses e até lesões pré-malignas (esôfago de Barrett).
É preciso separar da doença o refluxo fisiológico. Neste,
há regurgitação indolor e sem esforço num bebê saudável,
com início entre o 1º e o 3º meses de vida e confusão com
estenose hipertrófica do piloro. Não existe déficit de ganho
ponderal ou doenças respiratórias e regride em até 18 me-
ses, havendo grande melhora quando a criança se senta
(entre 7 e 10 meses de vida). Quando o refluxo é patológi-
co, há sintomas como irritabilidade (azia), déficit no ganho
ponderal e sangramento oculto nas fezes. Também são no-
tórios os sintomas respiratórios, como tosse, cianose, ap-

134
CAPÍTULO

3
Cirurgia torácica pediátrica
André Ribeiro Morrone

segmento de pulmão hiperinsuflado e pouco funcionante,


1. Introdução por isso algumas vezes ocorre a drenagem do tórax por erro
no diagnóstico, pela confusão do enfisema lobar congênito
com o pneumotórax hipertensivo. O diagnóstico é feito pela
tomografia, evidenciando a assimetria. A conduta é cirúrgi-
ca o mais precoce possível, para possibilitar o crescimento
de pulmão normal nos lobos antes comprimidos pelo lobo
doente. Consiste na lobectomia, e o patologista deve ser
alertado a realizar uma contagem não rotineira de alvéolos,
para fechar o diagnóstico.

Figura 2 - Distribuição da incidência do enfisema lobar congênito

Figura 1 - Patologias torácicas

2. Enfisema lobar congênito


O enfisema lobar congênito, uma malformação causada
pela hiperinsuflação de um lobo pulmonar, acomete mais o
sexo masculino (2:1). Existe, nessa doença, um crescimen-
to desordenado de alvéolos nos bronquíolos, de forma que
cada ácino tem um número excessivo de alvéolos. Em vez de
5 ou 6, de 11 a 13, por isso a doença tem sido chamada po-
lialveolose. Acomete, preferencialmente, os lobos superio-
res (predominando o esquerdo) e, com menos frequência,
o lobo médio; é raro o acometimento dos lobos inferiores.
O quadro clínico é de desconforto respiratório desde dis-
creto e progressivo até insuficiência respiratória aguda (1/3
tem sintomatologia notada no nascimento, e 5% desenvol-
vem sintoma após os 6 meses de vida). Portanto, há um Figura 3 - Radiografia simples: enfisema lobar congênito

135
CI RUR G I A P ED I Á T R ICA

3. Sequestro pulmonar
O sequestro pulmonar, uma massa de tecido pulmonar
normal sem comunicação com a árvore brônquica e com
irrigação arterial sistêmica, é mais frequente no sexo mas-
culino (3:1) e acomete, em 70% dos casos, o lobo inferior.
Há 2 tipos de apresentação:

A - Intralobar
Está dentro do parênquima pulmonar e recebe irrigação
arterial da aorta abdominal ou de vaso torácico.

B - Extralobar
Não apresenta ligação com o parênquima pulmonar, e
a irrigação arterial é variável. Há associação entre seques-
tro e hérnia diafragmática esquerda, duplicação gástrica e
Figura 6 - Radiografia simples: sequestro pulmonar
de cólon. O principal sintoma é a infecção de repetição dos
tecidos pulmonares adjacentes. O diagnóstico pode ser fei-
to pela radiografia simples de tórax e TC de tórax, porém
com adequado estudo nos tempos de infusão do contraste.
Com isso, a arteriografia tem caído em desuso. O tratamen-
to cirúrgico é feito por meio da ressecção do sequestro e
ligadura do pedículo no caso do extralobar, e por meio de
lobectomia ou se possível só ressecção da lesão com seg-
mentectomia em caso de sequestro intralobar. Todo cuida-
do com a irrigação deve ser tomado, pois, como visto, ela é
provinda de uma artéria sistêmica e com fluxo volumoso,
às vezes da aorta abdominal, e o acesso para a ressecção
é a toracotomia. Portanto, pode haver sangramento oculto
durante o ato operatório.

Figura 7 - Arteriografia evidenciando artéria do sequestro pulmo-


nar originada diretamente da aorta abdominal

Figura 4 - Sequestro intralobar

Figura 8 - Arteriografia evidenciando artéria sistêmica anômala


Figura 5 - Sequestro extralobar em direção ao lobo inferior direito

136
CIRURGIA TORÁCICA PEDIÁTRICA

4. Malformação adenomatoide cística


A malformação adenomatoide cística é uma doença
causada pela displasia do epitélio respiratório, levando
à substituição do parênquima pulmonar por uma mas-
sa de tecidos sólidos e císticos com muco e sem comu-
nicação com a via aérea. Existe a perda da arquitetura
normal do parênquima, por isso é chamado por alguns
de hamartoma torácico, formando lesões arredondadas,
císticas e aéreas (após o nascimento e sólidas). O quadro
clínico varia de insuficiência respiratória ao nascimento
a quadros tardios de infecção de repetição no parênqui-
ma adjacente. À USG pré-natal, já se podem visibilizar,
polidrâmnio, cistos ou o grave desvio de mediastino que
leva a hidropisia fetal, requerendo atuação do especialis-

CIRURGIA PEDIÁTRICA
ta em medicina fetal para drenagem dos cistos maiores. Figura 10 - Radiografia simples da malformação adenomatoide
O diagnóstico pós-natal é feito por tomografia de tórax. cística
Lesões múltiplas, aéreas, arredondadas, podem ser con-
fundidas com hérnia diafragmática. Se há dúvida, basta
uma pequena dose de contaste via oral, que neste caso
5. Cisto broncogênico
não aparece no tórax. O cisto broncogênico compreende malformações cís-
Pode ser classificada, segundo Stocker, em: ticas centrais, geralmente em estreita relação com a tra-
a) Tipo I: cisto único ou cistos múltiplos, acima de 2cm queia ou o brônquio-fonte, que contêm muco em seu in-
de diâmetro, com epitélio ciliado colunar. terior e não se comunicam com a via aérea. Cerca de 2/3
b) Tipo II: múltiplos cistos menores de 1cm de diâmetro, localizam-se no mediastino, e 1/3 no parênquima pulmo-
revestidos por epitélio ciliado cuboide, com bronquíolos nar. O quadro clínico pode ser desconforto respiratório,
respiratórios e alvéolos distendidos, sem cartilagem. cianose, infecção respiratória de repetição, e cerca de 1/3
dos casos pode ser assintomático. O diagnóstico pode ser
c) Tipo III: grandes massas não císticas, de estruturas
feito pela radiografia simples de tórax, que mostra área
semelhantes a bronquíolos revestidos de epitélio ciliado
cuboide e massas alveolares revestidas de epitélio cuboide de opacificação arredondada na região central e, algumas
não ciliado. vezes, área de hiperinsuflação pulmonar. O tratamento é
feito pela ressecção do cisto.
A conduta é cirúrgica o mais precoce possível, para pos-
sibilitar o crescimento do pulmão normal.

Figura 11 - Radiografia simples do cisto broncogênico

6. Cisto pulmonar congênito


O cisto broncogênico também pode ser periférico (só
depende em que fase do desenvolvimento embrionário ele
se formou) e único, acometendo qualquer lobo pulmonar, e
Figura 9 - TC: malformação adenomatoide cística tem comunicação com a árvore respiratória, apresentando-

137
CI RUR G I A P ED I Á T R ICA

-se como áreas hiperinsufladas, mas pode ser cístico e com


conteúdo líquido. É mais frequente no pré-escolar, com his-
tória de infecção de repetição. O diagnóstico é feito pela ra-
diografia simples de tórax, e o diagnóstico diferencial deve
ser feito em relação à pneumatocele, caracterizada por pare-
des finas, história prévia de pneumonia estafilocócica, e, na
evolução radiológica, mostra redução e posterior desapareci-
mento ao longo dos meses. O tratamento do cisto congênito
é cirúrgico (lobectomia ou ressecção do cisto), enquanto o
da pneumatocele é clínico (regressão espontânea na maioria
dos casos) ou cirúrgico (se hipertensiva ou infectada).

Figura 15 - Radiografia simples da pneumatocele (paredes finas)

7. Empiema pleural
Empiema é o acúmulo de pus em espaço naturalmen-
te existente. Na cavidade pleural (empiema pleural), geral-
mente é secundário a outra doença, sendo a mais frequen-
te a pneumonia bacteriana, porém também ocorre após
traumas e procedimentos cirúrgicos, infecções vizinhas ou
pneumopatia crônica supurativa. O derrame pleural pós-
-pneumonia passa por 3 fases evolutivas: exsudativa, fibri-
nopurulenta e organizada. A exsudativa caracteriza-se por
Figura 12 - Radiografia simples do cisto pulmonar congênito
líquido claro, fluido e baixa celularidade (derrame inflama-
tório parapneumônico). A evolução para a fase fibrinopuru-
lenta (empiema) caracteriza-se pela presença de bactérias,
aumento de polimorfonucleares, acúmulo de fibrina e ade-
rências entre as pleuras parietal e visceral, com a formação
de lojas e loculações. A fase do empiema organizado ocorre
entre 2 e 4 semanas nos casos sem tratamento e consiste
na migração de fibroblastos formando um espessamento
pleural, que dificulta a expansão pulmonar e leva à diminui-
ção e à retração dos espaços intercostais. Porém, em crian-
ças mesmo que em semanas, geralmente existe expansão
pulmonar sem sequelas.
A história clínica, na grande maioria dos casos, apresen-
ta uma doença primária, com sintomas de infecção pulmo-
nar alguns dias antes ou alguma outra. Na avaliação inicial
Figura 13 - Cisto broncogênico na TC de todos os processos pneumônicos, deve ser considerada
a presença de derrame. No exame físico, diferentemente
da condensação pulmonar, encontra-se frêmito toracovocal
abolido ou diminuído. Na radiografia de perfil, se não forem
observados os 2 seios costofrênicos, será sugerido um der-
rame pleural de volume moderado. Devem-se, a partir daí,
realizar a radiografia em decúbito lateral com raios horizon-
tais (Laurel) e a medida da opacidade pleural. Se esta for
maior do que 1cm, estará indicada a toracocentese. Pode
ser realizada posteriormente abaixo do ângulo da escápula
ou na linha axilar média no 6º espaço intercostal. Também
se deve lembrar que o feixe intercostal neurovascular corre
na borda inferior das costelas.
As características bioquímicas e macroscópicas do líqui-
Figura 14 - Cisto broncogênico de conteúdo mucoide do determinam o diagnóstico e ajudam na terapia imedia-

138
CIRURGIA TORÁCICA PEDIÁTRICA

ta. O principal componente é o aspecto macroscópico do dio), mediastino posterior (entre a traqueia-pericárdio e os
líquido, isto é, se houver aspecto de pus, deverá ser drena- corpos vertebrais) e mediastino médio (entre o mediastino
do. Em casos de dúvida, a análise laboratorial pode ajudar anterior e posterior). Algumas lesões, devido ao tamanho,
na decisão. O líquido do empiema contém, tipicamente, ocupam 2 ou mesmo as 3 porções do mediastino, logo cau-
<40mg/dL de glicose, >3mg/dL de proteína, pH <7,2 e DHL sam alguma dificuldade no diagnóstico. Devem-se, portan-
elevado, >1.000. O organismo mais frequentemente rela- to, ter em mente todas as possibilidades nas lesões volumo-
cionado com empiema em crianças é o Streptococcus pneu- sas. As principais causas de massas mediastinais são:
moniae, seguido pelo Staphylococcus e pelo Haemophilus
influenzae. Tabela 1 - Principais causas de massas mediastinais
O tratamento é feito de acordo com a fase do empiema: Mediastino anterior
nas iniciais, consiste em antibioticoterapia sistêmica, dre- - Timo (hiperplastia, cisto, timoma e carcinoma);
nagem torácica. Sendo de crucial importância e desprezada - Teratoma (tumor de célula germinativa e seminoma);
pela maioria dos médicos a fisioterapia respiratória intensa, - Linfomas;
para que ocorra a expansão pulmonar. - Linfangioma;
Quando há dificuldade na expansão pulmonar, forman- - Lipoma.

CIRURGIA PEDIÁTRICA
do lojas na pleura e encarceramento pulmonar, e mesmo Mediastino médio
com antibióticos adequados o paciente está evoluindo com - Adenomegalia não neoplásica (tuberculose, histoplasmose, cocci-
quadro infeccioso de difícil controle, com febre, adinamia, diomicose);
leucocitose, deve-se indicar a limpeza da cavidade pleural, - Linfomas;
que pode ser realizada por videotoracoscopia ou minitora- - Cisto broncogênico;
cotomia para lise das lojas e aderências, além de drenagem - Hamartoma.
torácica. Aos casos de paquipleuris estão indicadas a de- Mediastino posterior
corticação pulmonar e, em alguns casos, a pleurostomia. O - Cisto neuroentérico;
prognóstico depende do controle da infecção. - Cisto esofágico;
- Cisto enterógeno;
- Cisto de duplicação;
- Ganglioneuroma;
- Neuroblastoma;
- Lipoma;
- PNET (tumor neuroectodérmico primitivo).

Figura 16 - Radiografia simples: empiema

Figura 18 - Massas mediastinais


Figura 17 - Radiografia simples: empiema pós-drenagem
O diagnóstico depende de vários fatores, idade, história
clínica, característica radiológica e sintomatologia. O trata-
8. Lesões mediastinais mento é cirúrgico na grande maioria delas. Nos linfomas, o
Simplificadamente, o mediastino é dividido em 3 partes: procedimento cirúrgico restringe-se à biópsia para diagnós-
mediastino anterior (entre o esterno e a traqueia-pericár- tico. Nas neoplasias malignas, a conduta é particular.

139
SUPORTE VENTILATÓRIO NÃO CIRÚRGICO

CAPÍTULO

4
Cirurgia oncológica pediátrica
André Ribeiro Morrone

1. Introdução - III: tumor residual confinado no abdome;


- IV: metástases hematogênicas (pulmão, fígado, osso e
De maneira geral, simplificadamente pode-se ter a se-
cérebro);
guinte distribuição de neoplasias na faixa pediátrica.
- V: tumor bilateral.
Tabela 1 - Distribuição de neoplasias na faixa pediátrica
Tipo de neoplasia Porcentagem do total O diagnóstico e o estadiamento são feitos por USG de
Leucemias 30 abdome (visualizar rim contralateral e verificar se há inva-
Tumores do sistema nervoso central 25 são vascular da veia renal), urografia excretora (distorção
Linfomas 15 dos cálices renais ou exclusão renal), TC de abdome e tó-
Neuroblastoma 8 rax (metástase pulmonar é a mais frequente). O trata-
Sarcomas 7 mento consiste na ressecção cirúrgica da massa tumoral,
Tumor de Wilms (nefroblastoma) 6 no exame do rim contralateral e na biópsia de linfonodos.
Osteossarcoma 5 Dependendo do estadiamento, serão realizadas quimio-
Retinoblastoma 3 terapia e/ou radioterapia adjuvantes. O prognóstico varia
Tumores hepáticos 1 com o estadiamento e o tipo histológico. Histologia não fa-
vorável está relacionada às formas anaplásica, sarcomatosa
Participando da equipe multidisciplinar, o cirurgião tem
e degeneração rabdoide. No estadio I, 95% dos casos ficam
importância crucial. Procedimentos como ressecção dos
tumores primários e das metástases respeitando princípios livres de doença e, considerando todos os estadios, 77%.
oncológicos, biópsias abertas ou com agulhas, implante de
cateteres vasculares, e tratamento de complicações da qui-
mioterapia como derrame pleural, abscessos etc. obrigam
o cirurgião a ter conhecimentos em Oncologia. Além disso,
deve ter em mente o tratamento das neoplasias mais co-
muns que invariavelmente contam com sua atuação.

2. Tumor de Wilms (nefroblastoma)


O tumor de Wilms é a neoplasia sólida intra-abdominal
mais comum na infância, com pico de incidência entre 3 e 5
anos de idade. A apresentação clínica é a presença de massa
abdominal, preferencialmente em flanco (60%), hematúria
microscópica (15%), febre, perda de peso, anemia, varicocele
à esquerda e hipertensão. Anomalias associadas são hemi-
-hipertrofia, pseudo-hermafroditismo, aniridia, síndrome de
Beckwith-Wiedemann, trissomia do 18 e outras malforma-
ções geniturinárias. Estadiamento do tumor de Wilms:
- I: tumor limitado ao rim e completamente ressecado;
- II: tumor que se estende além do rim, mas completa- Figura 1 - Urografia: tumor de Wilms (rim esquerdo) com distorção
mente ressecado; dos cálices
140
CIRURGIA ONCOLÓGICA PEDIÁTRICA

- I: Tumor limitado ao órgão de origem;


- II: Tumor disseminado localmente sem passar a linha
média;
- III: Tumor que ultrapassa a linha média;
- IV: Metástases a distância (ossos, medula óssea, fígado
e/ou outros órgãos);
- IV-S: Pacientes com pequeno tumor primário e me-
tástases limitadas ao fígado, pele, medula óssea sem
evidência radiológica de metástase óssea.

CIRURGIA PEDIÁTRICA
Figura 2 - TC: tumor de Wilms (rim esquerdo)

Figura 4 - TC: neuroblastoma suprarrenal esquerdo

Figura 3 - TC: tumor de Wilms bilateral

3. Neuroblastoma
O neuroblastoma resulta da proliferação maligna de
células derivadas da crista neural, portanto podendo ocor-
rer nos locais derivados dessa crista, como nos gânglios do
sistema nervoso simpático e na medula da suprarrenal:
3/4 dos neuroblastomas acontecem no abdome (50% na
suprarrenal), 20% no mediastino posterior, 4% no pescoço
e 4% na pelve. É a neoplasia sólida extrassistema nervoso
central mais comum na infância, frequente nos primeiros 5
anos de vida. Cinquenta por cento das crianças abaixo dos 2
anos de vida e 2/3 das crianças acima de 2 anos têm doença
disseminada.
A apresentação clínica pode ser massa abdominal (50 a
75%), hipertensão, perda de peso, diarreia, febre, dor óssea,
opsomioclonia, síndrome de Horner, exoftalmia. O diag- Figura 5 - Urografia: neuroblastoma suprarrenal esquerdo (sinal
nóstico e o estadiamento são feitos por USG de abdome, do lírio caído)
urografia excretora (sinal do lírio caído), radiografia simples
de tórax e ossos longos, mielograma, dosagem urinária de - Prognóstico desfavorável:
ácido vanil mandélico (VMA) e homovanil mandélico (HVA), 1 - Idade >1 ano.
cintilografia óssea e TC e biópsia da lesão. Estadiamento: 2 - Pouca maturidade tumoral.

141
CI RUR G I A P ED I Á T R ICA

3 - Linfonodos positivos.
4 - Níveis altos de ferritina.
5 - Enolase neuronal-específica.
6 - Células com DNA diploide.
7 - Amplificação do N-myc presente.
O pequeno sucesso do neuroblastoma avançado faz os
protocolos diferirem quanto ao uso da quimioterapia, ra-
dioterapia e cirurgia. Sabe-se que a quimioterapia é a pedra
fundamental do tratamento inicial, pois melhora condições
de ressecabilidade do tumor. No neuroblastoma inicial, o
tratamento cirúrgico é o principal.
- Tratamento:
• Estadios I e II: cirúrgico;
• Estadios III e IV: controverso (quimioterapia e trans-
plante de medula óssea);
• Estadio IV-S: pode sofrer regressão espontânea.

- Sobrevida:
• Estadio I: 88%;
• Estadio II: 75%;
• Estadio III: 35%;
• Estadio IV: 10 a 20%; Figura 6 - Relação de um RMS com vasos do braço
• Estadio IV-S: 80%.

4. Rabdomiossarcoma
O rabdomiossarcoma é o sarcoma mais comum de par-
tes moles na infância e representa de 5 a 15% de todos os
tumores malignos sólidos. É um tumor altamente agressivo,
com tendência a invasão local precoce, bem como dissemi-
nação hematogênica. Apresenta pico de incidência entre 2
e 5 anos e entre 10 e 15 anos. Na infância, localiza-se, mais
frequentemente, na pelve e no pescoço, e é paratesticular
no adolescente. É classificado em embrionário, botrioide,
alveolar, indiferenciado e sarcoma de Ewing extraósseo.
O quadro clínico varia muito, dependendo da localiza-
ção. Os sintomas mais comuns são massa palpável, às vezes
dolorosa, e alteração da função, como estrabismo e exof-
Figura 7 - Metástase pulmonar de RMS testicular
talmia (orbitários), epistaxe e rinorreia (face), paralisia de
pares cranianos (seios da face), otorreia (ouvido médio), O tratamento é multidisciplinar, feito com quimiotera-
massas testiculares, sangramento vaginal, corrimento (sar- pia, radioterapia, braquiterapia e cirurgia (tanto da lesão
coma botrioide vaginal) etc. primária quando das metástases).
O diagnóstico é feito por exames de imagem, radio-
grafia, USG, TC, mas principalmente por RNM, exame que 5. Teratoma
mostra com extrema clareza a relação da lesão com tecidos
O teratoma é um tumor derivado dos 3 folhetos embrio-
adjacentes para programação tanto da biópsia quanto do nários derivados de células totipotentes. A grande maioria
tratamento definitivo. é constituída de tumores benignos (80%). A localização sa-
O estadiamento varia para cada tumor, mas de maneira crococcígea é a mais comum (65%), seguida do mediasti-
geral obedece à classificação TNM acrescido da letra G, que no (10%) e das gônadas (10%). Seu principal marcador é a
inclui o tipo histológico. A mesma variação vale para o tra- alfa-fetoproteína e pode ser dividido em maduro, imaturo
tamento e para o prognóstico. e maligno.

142
CIRURGIA ONCOLÓGICA PEDIÁTRICA

O teratoma sacrococcígeo é a neoplasia mais comum do


período neonatal, cerca de 80% em meninas. Mais de 90%
são benignos e com alto potencial de cura. São classificados
em:
- I: tumor exteriorizado com componente pré-sacral mí-
nimo;
- II: tumor exteriorizado com extensão intrapélvica sig-
nificativa;
- III: porção externa pequena e massa com predomínio
pélvico e extensão para o abdome;
- IV: massa pré-sacral sem parte externa.
O tratamento consiste na ressecção da massa e do cóc-
cix. Alguns casos de teratoma maligno e imaturo com níveis
altos de alfa-fetoproteína no pós-operatório podem benefi-

CIRURGIA PEDIÁTRICA
ciar-se com quimioterapia adjuvante. Quando diagnostica-
dos antes dos 2 meses, 90% são benignos, mostrando seu
potencial de transformação maligna.

Figura 8 - Teratoma sacrococcígeo

143
SUPORTE VENTILATÓRIO NÃO CIRÚRGICO

CAPÍTULO

5
Outras malformações
André Ribeiro Morrone

1. Linfadenopatia cervical
A linfadenopatia cervical, a causa mais comum de mas-
sa cervical em crianças, ocorre na região anterior do mús-
culo esternocleidomastóideo e na região submandibular.
Infecção viral é a causa mais frequente de adenomegalia
cervical, que pode persistir por meses. A adenite supura-
tiva aguda pode ocorrer após faringite e deve ser tratada
com antibiótico e drenagem. A biópsia é indicada a linfono-
dos >2cm com rápido crescimento, coalescentes e duros.
Outras causas de adenomegalia cervical são infecções por
micobactérias, doença da arranhadura do gato e linfoma de Figura 2 - Vício postural em um RN com torcicolo congênito
Hodgkin.

Figura 3 - Fisioterapia para tratamento de torcicolo congênito

3. Cisto tireoglosso
Figura 1 - Adenite submandibular aguda
O cisto tireoglosso, a causa mais comum de massa cervi-
cal anterior na linha média (2/3 dos casos), é mais frequen-
2. Torcicolo congênito te em meninos e na faixa etária de 4 anos. Ocorre por um
Têm-se um encurtamento e fibrose do músculo esterno- defeito na involução do ducto tireoglosso, canal que na vida
cleidomastóideo. Clinicamente, apresenta-se como nódulo embrionária se forma na base da língua, no chamado fora-
endurecido (o próprio músculo esternocleidomastóideo) na me cego, e é composto de células que migrarão ao pescoço
região cervical lateral com rotação da cabeça para o lado para formar a tireoide. Apresenta-se como massa cística
afetado; é mais comum nos primeiros 6 meses de vida. O na linha média, indolor, móvel à deglutição ou à protrusão
tratamento consiste em fisioterapia por intermédio da ro- da língua. Apresenta em alguns casos como um cisto com
tação passiva do pescoço. Se o tratamento é tardio ou ine- infecções recorrentes. O diagnóstico é clínico, e deve ser
ficiente, podem-se ter plagiocefalia (deformidade craniofa- excluída a presença de glândula tireoide ectópica, através
cial), assimetria facial (hemi-hipoplasia), escoliose e atrofia da cintilografia. O tratamento é realizado com a cirurgia de
ipsilateral do músculo trapézio. A esses casos, indica-se ci- Sistrunk, que consiste na ressecção do cisto, da porção cen-
rurgia de transecção do músculo esternocleidomastóideo. tral do osso hioide, e do trajeto até o forame cego.
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OUTRAS MALFORMAÇÕES

cística e multilobulada que acomete a região posterior do


pescoço e pode envolver a via aérea e as estruturas vitais
do pescoço. De maneira geral, localiza-se no triângulo pos-
terior do pescoço, porém as lesões maiores podem atraves-
sar a linha média ou invadir o tórax. Muito são notados ao
nascimento ou mesmo na USG morfológica do 1º trimestre.
Outros aparecem mais tardiamente, o aumento pode ser
súbito, atribuído à infecção ou à hemorragia, e o tratamen-
to, ser feito por meio de injeção de substâncias esclerosan-
tes (bleomicina e OK-432) ou ressecção cirúrgica. A opera-
ção é trabalhosa e requer identificação e preservação das
estruturas importantes, tendo como objetivo a ressecção
completa, embora rara. Às vezes a cirurgia pode ser reali-
Figura 4 - Cisto tireoglosso zada em mais de 1 tempo. O índice de recidiva é alto nas
doenças mais complexas.

CIRURGIA PEDIÁTRICA
4. Vestígios branquiais
A persistência anormal das estruturas branquiais inclui
cistos, trajetos fistulosos e vestígios cartilaginosos. Esses
vestígios branquiais se originam do 1º ao 4º arco branquial,
e o mais comum se origina do 2º arco branquial. Quando
são cartilaginosos, costumam ser notados logo ao nasci-
mento como projeções puntiformes endurecidas. As fístu-
las apresentam secreção hialina ou esbranquiçada e podem
apresentar infecção de repetição. Os cistos são mais pro-
fundos, apresentando-se como nódulos móveis e indolores.
O tratamento é cirúrgico e consiste na ressecção do trajeto
fistuloso, da cartilagem ou do cisto. Quando se resseca um
trajeto fistuloso, deve-se ter conhecimento de seu caminho Figura 6 - Linfangioma cervical
e ressecá-lo por inteiro para evitar recidivas. O do 2º arco
branquial (o mais comum) caminha ao longo da borda ante-
rior do músculo esternocleidomastóideo, cruza a bifurcação
da artéria carótida comum e termina na fossa tonsilar.

Figura 5 - Fístula branquial de 2º arco

5. Higroma cístico (linfangioma)


O higroma cístico, ou linfangioma, é uma malforma-
ção congênita dos vasos linfáticos formada por uma massa

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