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MarcioSeixas

Fragmentos e Memórias
da História da Dublagem no Brasil.

Baseado no projeto: Eu Conheço Essa Voz!

1ª Edição

Belo Horizonte, 2018


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Introdução
Os textos a seguir foram escritos por Marcio Roberto Seixas ao
longo de sua carreira como locutor e dublador.

Não existe nenhuma pretensão comercial em sua publicação,


apenas a divulgação de casos, fatos e histórias pessoais e
profissionais.

O objetivo principal, desde a sua idealização, é dividir com o


público os fragmentos e memórias, acumulados ao longo dos
anos, sobre a história da dublagem no Brasil, sob o ponto de
vista de um dublador veterano.

Este livro digital fazia parte das estratégias de marketing do


curso Fórmula da Comunicação Envolvente, criado em 2015
numa sociedade entre Marcelo Rezende e Marcio Seixas.

Este livro seria distribuído gratuitamente por todo o país em


troca de e-mails que somariam à lista de leads para a
prospecção de futuros clientes dos cursos oferecidos pela FCE.

Todavia, o curso deixou de ser comercial no final de 2017 e,


sendo assim, não há mais nenhum interesse em trocar o livro
em PDF por e-mails válidos para futuramente oferecer por e-
mail produtos e serviços vinculados à FCE.

Por último, vale dizer que o conteúdo deste livro não passou
por nenhuma revisão gramatical, e oferece o pensamento bruto
do autor, tal qual se deu no momento da sua produção literária.
Todo o conteúdo deste PDF é de inteira responsabilidade de
seu autor Marcio Seixas.
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O BICHO

VI ONTEM UM BICHO
NA IMUNDÍCIE DO PÁTIO
CATANDO COMIDA ENTRE OS DETRITOS.
QUANDO ACHAVA ALGUMA COISA,
NÃO EXAMINAVA NEM CHEIRAVA:
ENGOLIA COM VORACIDADE.

O BICHO NÃO ERA UM CÃO,


NÃO ERA UM GATO,
NÃO ERA UM RATO.

O BICHO, MEU DEUS, ERA UM HOMEM.

MANUEL BANDEIRA

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C ONTEÚDO
INTRODUÇÃO ● 2
1. Primeiro Rascunho de “Eu Conheço Essa Voz!”● 5

2. Segundo Rascunho de “Eu Conheço Essa Voz!” ● 86

3. Terceiro Rascunho de “Eu Conheço Essa Voz!”● 161

4. Apêndice ● 178

4.1 Banco de Memórias para “Eu Conheço Essa Voz” ● 178


4.2 Excertos para “Eu Conheço Essa Voz” ● 181
4.3 Relatos de Viagens ● 182
4.3.1 Viagem à Rússia ● 182
4.3.2 1ª Viagem à Europa ● 224
4.3.3 2ª Viagem à Europa ● 276
4.3.4 3ª Viagem à Europa ● 305
4.3.5 4ª Viagem à Europa ● 326
4.3.6 Leste Europeu ● 357
4.3.7 Lisboa, Marrocos, Gênova e La Spezia ● 404
4.3.8 México ● 436
4.3.9 Funchal ● 463
4.3.10 Disney ● 477
4.3.11 Frederico Marcio Seixas e o Racismo Contra Negros ● 498
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Capítulo 1

PRIMEIRO RASCUNHO DE
“EU CONHEÇO ESSA VOZ!”

“Soldat! De haut de ce pyramide quarente siècle vos


contemplan!”

Com 20 anos incompletos, eufórico, mal conseguindo controlar a


emoção no topo da pirâmide de Quéops, essa frase de Napoleão
martelando meu cérebro que fritava sob um sol de verão carioca, me
senti um homem indestrutível, sem amarras. Eu conhecia as batalhas
de Napoleão pelos livros de história e através de filmes. Portanto,
estar no topo de um monumento que ele admirou e conquistou fazia
um bem enorme ao meu ego. Mas de onde eu estava, a 146 metros
de altura, olhava em direção à esfinge e me perguntava: “porque
razão ele que era tão culto, tão respeitador das tradições, um
incentivador das artes, ele próprio um literato, amante de música,
dança, teatro, destruiu o nariz da esfinge com um tiro de
canhão?...”

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À noite, no platô de Gizeh, felizmente uma noite muito escura e
quente que tornava ainda mais impressionante os efeitos das cores
vivas fazendo as pirâmides e a esfinge desaparecerem, me extasiava
assistindo o SHOW DAS PIRÂMIDES, um evento de luz e som que
fascina o mundo até hoje. A voz magnífica da esfinge cravou na
minha emoção a frase “THE WORLD FEAR TIME, TIME FEAR
PYRAMIDS!”

Eu tinha acabado de escalar a pirâmide e de chegar ao topo com


mais 4 colegas brasileiros, militares sob a bandeira azul da ONU
como eu. Que usavam capacete a boina azul como eu. Estavamos
em férias da faixa de Gaza depois de 6 meses de trabalho ao longo
da linha de armistício que separa Israel da Palestina.

Pouco antes de iniciar a subida por uma das faces da pirâmide, um


dos colegas do grupo lembrou a tragédia ocorrida com um brasileiro
dos primeiros contingentes; no topo da pirâmide ele levou a câmera
à altura dos olhos focando a paisagem pra lente capturar. Outros
brasileiros que estavam com ele no topo informaram que a máquina
caiu da mão do rapaz.

Na ânsia de não deixar a câmera bater no chão, fez um gesto brusco


se projetando pra frente... e despencou pirâmide abaixo. Seu corpo
chegou à base esfacelado.

A história era horripilante. Em silêncio, olhando a monumental


muralha inclinada sob meus olhos e pés, respiração ofegante, me
concentrei em ter muito cuidado em cada movimento que fizesse.
Helicópteros de observação turística circulavam o topo muito perto
de nós. A ventania daqueles hélices poderia perfeitamente nos
desequilibrar. Tive a noção exata do que seria perder o equilíbrio
sem ter absolutamente nada que pudesse conter nossa queda.

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Nada de mal poderia me acontecer. Estava pronto pra iniciar a mais
perigosa, excitante, genuína, inesquecível travessura de toda minha
vida. A 4 meses de completar 20 anos, eu tinha ido longe demais.
Da rua Junquilhos, uma rua muito pobre, sem calçamento, poeirenta,
no bairro da Nova Suissa, para o topo de 4 mil e quinhentos anos de
mistério numa jornada épica para minhas possibilidades nulas
materialmente.

Então eu soube que podia ir mais além. Queria satisfazer minha


curiosidade, aumentar meus conhecimentos, sair da pobreza, ter
mais de um par de sapatos, morar numa casa decente. Eram
aspirações que povoavam meus sonhos e expectativas. Foi com esse
único intuito que me apresentei como integrante voluntário das
forças de paz do CANAL DE SUEZ em 1.964. Ainda prestava o serviço
militar obrigatório no Décimo Segundo Regimento de Infantaria em
Belo Horizonte quando fui escolhido.

Meu avô materno João Anselmo da Silva um homem rude, negro,


dono de uma voz grave, poderosíssima, ligeiramente gago, me deu
um recorte do salmo 140 de DAVI recomendando que eu guardasse
como se fosse um bem maior, como se fosse um amuleto.
Recomendou que eu mantivesse o pequeno quadradinho de papel
sempre junto ao meu corpo. Amei os versículos que li atentamente,
dobrei a oração em quatro partes e coloquei dentro de minha
carteira. Naquele momento era o único suporte espiritual que com
que eu poderia contar. No ônibus COMETA, a caminho do Rio de
Janeiro, retirei da carteira a oração e li de novo os 13 versículos.

Durante minha infância fui frequentador assíduo da missa no


domingo. Adulto, perdi o interesse em participar de missas lotadas
de fiéis. Virei um católico não praticante. Desenvolvi uma mania que
sempre me deu muita paz; entrar em igrejas vazias, principalmente
em cidades do interior e ficar horas olhando as imagens, pensando
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nos mistérios da vida, de Deus.O trinadinho das andorinhas nas
torres do campanário me comoviam tanto que provocavam nó na
garganta. Eu gostava de imaginar que essas criaturinhas eram anjos
brincando de voar dentro da igreja vazia. Era a prática da fé à minha
maneira. Era assim que eu me sentia conversando com Deus.

Porém quando li o salmo 140, tive certeza inabalável de que ele seria
meu amuleto. Eu me sentia confortável pensando assim, confortável
e protegido. Parti sem demora no final do ano e me integrei como
agregado militar ao Segundo Regimento de Infantaria da Vila Militar
no Rio de Janeiro.

Passei meses em treinamentos militares, sendo preparado pra evitar


situações de perigo como um enfrentamento com os temíveis
FEDAYNS, terroristas árabes que atacavam integrantes da ONU
naquela região . Tive que aprender a manejar com mais eficiência o
mosquetão e a baioneta. Os oficiais instrutores insistiam em colocar
nos nossos espíritos o sentido de alerta, para que evitássemos ser
mortos em emboscada ou combate. Por mais que eles se
esforçassem, não víamos esse perigo, não sentíamos a necessidade
de tanto apuro no uso da baioneta. Cheguei a sorrir disfarçadamente
no meio da tropa sentada no chão observando o tenente
“penetrando” o corpo do terrorista com a baioneta e movendo-a
depois nas vísceras do individuo para que ele morresse mais
depressa... Eu não me via numa situação assim. Eu não podia. Em
todo caso segui as instruções, sem acreditar um único segundo que
apontaria uma arma pra alguém.

Treinamos meses a fio as táticas militares para uma tropa de


ocupação – a nós foi dito que as tropas de Suez eram “TROPAS
CONVIDADAS” - pra reagir em caso de aproximação de pessoas em
grupo ou solitárias.

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Esse era o procedimento; descer do alto da torre de observação
junto à ADL se víssemos alguém se aproximando, apontar o fuzil
para o chão e perguntar em árabe “QUEM VEM LÁ?”

Se o suspeito não respondesse e continuasse andando em minha


direção eu deveria levar o fuzil ao ombro e engatilhar, colocando
uma bala na camara da culatra, destravando a arma. Depois disso
deveria gritar “ALTO!” Uma vez, duas vezes, na terceira vez se o
movimento em minha direção continuasse eu deveria abrir fogo. Meu
ceticismo era irremovível.

Preparados, vacinados, instruídos, sem noção, inocentes, saímos da


Vila Militar em caminhões do Exército Brasileiro em direção à ilha do
Governador no dia 08 de agosto de 1.965. Não me recordo da hora
do embarque no Galeão.

Um magnífico avião quadrimotor comercial DC6-B yugoslavo nos


aguardava pra nos levar ao Egito fazendo escalas em RECIFE –
DAKAR - ARGEL e finalmente EL ARISH na Palestina. Foram 36
horas de viagem.

Até o embarque no dia 8 de agosto de 64, nunca havia entrado em


um avião. O mais longe que eu tinha me afastado do bairro da Nova
Suissa em Belo Horizonte era o Rio de Janeiro.

O suave quadrimotor a hélice pousou feito uma garça naquela faixa


preta de asfalto na imensidão beje da areia de EL ARISH. Não por
acaso a pista de pouso foi construída ali cerca de 100 quilômetros
distante da zona do conflito árabe/israelense pra receber aviões
militares de grande porte.

Em tese era para receber os suprimentos trazidos por aviões de


transporte dos 7 países membros das forças de paz da ONU na

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região; BRASIL, CANADÁ, DINAMARCA, HOLANDA, INDIA, SUÉCIA,
YUGOSLÁVIA.

Caso a trégua entre os dois países fosse rompida, segundo


comentários dos oficiais que nos treinavam, os beligerantes deveriam
avisar à ONU a declaração recíproca de guerra que assim enviaria
um alerta urgente para evacuação da área. As tropas dos 7 países
deveriam sair em 48 horas. Não foi o que aconteceu na guerra dos 6
dias.

Segundo relatos dos pracinhas do décimo nono contingente que


tiveram que sair escorraçados, o céu ficou coberto de aviões de caça
israelenses que davam rasantes com as metralhadoras cuspindo
balas. Alguns brasileiros foram mortos, mas a perda maior de vidas
foi dos indianos. Não tenho os números.

No auge do ditadura do governo Costa e Silva, as informações na


imprensa eram severamente censuradas. Não acredito que
historiadores, pesquisadores, comissões de investigação consigam
desencavar esses acontecimentos pra levantar toda história desse
ataque repentino que matou palestinos civis e militares e integrantes
das forças de paz.

O ataque foi tão eficiente, tão violento, tão perfeitamente


coordenado por terra, ar e mar, que Israel conquistou em uma
semana todo o território da palestina até a margem esquerda do
Canal de Suez, o que significou uma anexação territorial de cerca de
250 quilômetros ao Estado judeu.

Antes de descer as escadas do avião, dei uma olhada no aeroporto


de EL ARISH. Que pobreza! Um deserto dentro do deserto já que
não havia outras aeronaves no chão nem galpões para abrigar
aeronaves. As instalações do aeroporto eram paupérrimas. Saimos

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do avião direto pra dentro de um veículo da ONU, um ônibus branco,
que nos levou para o batalhão brasileiro na cidade de Rafah Camp,
em RAFAH CITY, distante 40 quilômetros do aeroporto.

O calor dentro do ônibus que seguia pela estradinha sinuosa entre as


tamareiras e dunas do caminho a 25 milhas – 40 kms - por hora nos
sufocava. Pulamos de 36 horas de conforto em uma cabine
climatizada para um inferno de 42 graus com sensação térmica de 50
e um turbilhão de moscas.

Nossas peles brancas contrastavam com a cor da pele queimada dos


nossos conterrâneos que nos aguardavam no desembarque, o
coronel Silvio Miscow comandante do décimo sexto batalhão de
Suez,à frente da comissão de recepção.Eu era integrante do décimo
sétimo batalhão, pra substituir o décimo sexto

Fui designado para o segundo pelotão denominado PELOTÃO


PARANÁ da Nona Compahia de Infantaria instalado na zona de
armistício. Depois da recepção calorosa dos brasileiros que se
achavam lá esperando nossa chegada pra voltarem ao Brasil,
assumimos o segundo pelotão e a missão de manter a ADL
(ARMISTICE DEMARCATION LINE) limpa, e manter vigilância
constante para evitar que palestinos e israelenses entrassem em
conflito e combate. Como se pudéssemos.

De imediato, eu que sempre tive aversão à moscas travei contato


com as malditas. Todo o estoque dessa praga torturante dos lixões
de todo o mundo prolifera naquela área. Não se tem sossego um
único instante. Logo estávamos todos dando porrada no ar, no rosto,
na orelha, no nariz. Por precaução estávamos com nossas bocas
trancadas. Elas não davam trégua.

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A visão árida do caminho, a figura dos camelos sozinhos ou em
cáfilas pelo acostamento davam uma impressão de sermos figurantes
do filme LAWRENCE DA ARÁBIA. As moscas eram tantas que havia
zumbido no ar. Elas são um excelente alimento para os camelos.
Como fazem? Deixam a língua pender pra fora da boca. As moscas
atraídas pela mucosa cor de rosa e pegajosa caem aos milhares
naquela bola “babante” do tamanho de uma laranja Bahia, e ficam
presas na mucosa pegajosa.

Elas se grudam nessa bola que é sugada pra dentro da boca do


camelo. Maneira engenhosa de se alimentar enquanto caminha.

Nem bem cheguei ao pelotão e já integrava a primeira turma de


manutenção; fui pra ADL tirar o excesso de areia que se acumula
por causa das constantes tempestades de areia. A ADL tem 60
centímetros de largura por 60 de profundidade. A linha (NÃO TENHO
ESSA INFORMAÇÃO; A QUILOMETRAGEM) de mais de 150
quilômetros foi criada e cavada pra separar Palestina de Israel.

A convite de Nasser e intermediação da ONU sob o comando de U


THANT, o secretário geral em 1.956 (CONFIRMAR SE ERA MESMO U
THANT EM 1.956) sete países ficariam encarregados de se
posicionarem ao longo da ADL.

Teríamos que mantê-la visível para observação aérea, retirando com


a força dos nossos braços a areia das frequentes tempestades que
devolviam à vala a areia que arfantes retirávamos com pás. Um
monte de garotos de 20 anos com mãos lisas pegando pra valer nos
cabos das pás durante uma manhã inteira, sob o sol de 45 graus.

Do nosso lado, o patrulhamento aéreo era feito por grandes aviões


monomotores brancos com o dístico da ONU, uma espécie de teco
teco com o dobro do tamanho dos que conhecemos. Do lado de

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Israel essa vigilância era feita com esquadrilhas de jatos franceses
Mirage. Nossa missão, quer dizer, da infantaria em terra durante o
dia pelo menos duas vezes por semana era braçal. Munidos de pá,
saíamos cedo em carrocerias de caminhões que nos despejavam na
vala. Passavamos toda a manhã retirando toneladas de areia para
mante-la visível do ar. À noite tínhamos que patrulhar a ADL, por
horas e horas de caminhadas.Lanternas nas mãos, nos divertíamos
com os reflexos da luz nos olhinhos em fogo dos chacais que
acompanhavam nossa movimentação. Corujas às centenas, voando
silenciosamente, pousada nos cáctus, davam um frio no estômago,
pois a visão era meio fantasmagórica. Levavamos metralhadora
pendurada num dos ombros, cinturão cheio de balas, e cada um de
nós da patrulha de 4 membros trazia uma granada de iluminação
noturna.

Se percebêssemos algum perigo,ou se fossemos atacados, quem


pudesse deveria atirar para o alto essa granada que subiria à
atmosfera impulsionada por um lança granada manual, uma espécie
de pistola de cano curto, da extensão da granada, com uma boca do
tamanho de uma xícara de chá, o diâmetro da sinalizadora. Uma vez
no alto, essa granada explode abrindo um espectro de luz branca
que ilumina uma área equivalente a dois campos de futebol por
alguns minutos.Não havia serviço fácil na missão de patrulhar esta
linha divisória.

Nos meus 12 meses vivendo na palestina, vi o contraste entre a


modernidade e o atraso motivado por crenças religiosas arraigadas.

Na época da plantação do trigo naquela vasta região de vegetação


rasteira onde proliferam mamoneiras e melancias, os árabes, por
respeito ao corão que proíbe motor a explosão pra tirar o sustento
do solo, aravam com camelos por dias a fio a areia. Abertos os
sulcos, faziam manualmente a semeadura do trigo.
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Depois, com tonéis de água nas laterais da sela no camelo aguavam
o terreno árido, semeado.

Semanas mais tarde víamos no lado de Israel um exército de


máquinas agrícolas em formação lado a lado arando o mesmo solo e
semeando ao mesmo tempo.

Outro batalhão de máquinas irrigadoras vinha atrás molhando e


adubando o terreno fértil para o trigo. Em poucos dias o cenário
árido, beje, ressecado de vegetação calcinada pelo sol e calor,
florescia num tapete verde lindíssimo do lado de Israel.

Do lado da palestina, a paisagem era irregular, com quadrados ainda


secos, partes de um verde insípido, outras com o trigo já bem alto,
outras ainda com o cereal já em fase de colheita. A vista aérea da
região plantada era o testemunho do choque entre culturas.

Um serviço social da ONU me encantou; um caminhão chegava ao


nosso pelotão trazendo trabalhadores árabes pra trabalhar na nossa
cozinha sob o comando de um cabo brasileiro, e outros pra cuidar da
fossa sanitária, da manutenção hidráulica, das caixas dágua, dos
nossos alojamentos,etc. Se uma janela estivesse emperrada eram
esses trabalhadores que a consertavam.

Os dias seguiam monótonos, com escalas de vigilância e manutenção


de ADL bem folgadas. No tempo que tínhamos livres, escrevíamos
cartas pra família, amigos, namoradas, praticávamos esportes como
futebol de salão ou vôlei na quadra de cimento, ou basquete. Uma
vez a cada 15 ou 20 dias, fazíamos uma festa barulhenta com gritos,
assovios, acenando para o avião Caribu que vinha muito baixo
percorrendo a ADL trazendo a correspondência.

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Esse avião bimotor russo Antonov 24 B que chamávamos de
“Caribu” ia até o Libano colher todos os envios de correspondência
dos 7 países.

O piloto canadense fazia nossa felicidade ao sobrevoar toda a ADL


balançando ostensivamente as asas do Caribu. Era o sinal pra
informar que cartas do Brasil chegariam em nossas mãos em poucas
horas. Que visão maravilhosa era ver aquele avião balançando as
asas durante todo o percurso da ADL até sumir de nossas vistas.

Desta equipe de trabalhadores árabes contratados pela ONU pra dar


suporte à manutenção do acampamento, um em particular gostava
de ver nossas partidas de vôlei. Se chamava MAHMUD. Quando me
disse seu nome, não consegui fazer o “R” gutural, mesmo tentando
diversas vezes. Então de brincadeira eu exagerei no “R” vibrante na
ponta da língua: MARRRRRMUD, o que o fez rir muito. Embora
tivesse muito sotaque, o inglês de Mahmud era fácil de entender.
Nos tornamos muito camaradas.

Inteligente, bem humorado, pronunciava com perfeição o SEIXAS


quando me procurava no meu alojamento. Um dia, chegando pra
trabalhar no pelotão me viu no alto da torre de observação. Muito
ressabiado, falando com muito jeito, me pediu pra subir no alto da
torre pra tentar ver sua propriedade que teve de abandonar pois foi
expulso em 1956 quando da decretação do ESTADO DE ISRAEL por
um voto na ONU proferido pelo chancelar OSWALDO ARANHA.
Mahmud me contou com detalhes, com olhos sonhadores e tristes a
penosa marcha em direção à Rafah, onde foi instalado com milhares
de outros refugiados árabes expulsos a ponta pé de ISRAEL.

O presidente egípcio na época era GAMAL ABDEL NASSER, que não


permitiu que esses refugiados viessem para o Cairo pra não
comprometer a estabilidade econômica e social, pois não haveria
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escola, moradia e trabalho pra todos os refugiados, o que
certamente provocaria graves conflitos sociais.

Esses assuntos eram narrados por Mahmud que falava com uma
grande dor na voz de seu caminhão que lotava com os produtos
hortifrutigranjeiros que transportava para atacadistas em Israel.
Falava da casa confortável onde esperava ver os filhos numerosos
crescerem.

Dava nó na garganta ouvir a triste história do meu querido amigo


árabe. Que apunhalava meu coração pedindo pra subir na torre na
tentativa de ver através de nossos binóculos com o dístico da ONU
sua propriedade e sua casa agora em poder dos israelenses.

Argumentei que dificilmente ele veria sua casa já que do ponto de


vista da observação com binóculos do alto da torre só dava pra ver e
mal, os kibutzes dos israelenses.

Ele insistiu que era possível sim, ver sua terra, sua casa. Neguei,
com profundo pesar, alegando que se o meu comandante, o tenente
PONCE visse um árabe na torre, local de observação militar, eu seria
deportado para o Brasil, sem chance de defesa. Ele pareceu recuar.
Pareceu apenas. Pois acabava voltando à carga.

Um dia, tendo começado meu turno ás 6 da manhã, e conhecendo o


pesado sono do tenente, chamei Mahmud furtivamente pra subir as
escadas da torre enquanto todos dormiam no pelotão. Ele subiu
excitado e olhou feliz em direção à Israel. Dei-lhe o binóculo pra
divisar as terras, mas ele não conseguiu ver. Perscrutou todo o
horizonte, da esquerda pra direita e vice versa. Estava feliz, parecia
uma criança. Preocupado que alguém nos visse pedi que ele
descesse. Me agradeceu efusivamente, os olhos brilhantes de criança
fazendo arte.

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Quando meu turno acabou ao meio dia fui chamado à barraca do
tenente Ponce. Estava em sua mesa de trabalho, o olhar sério,mudo.
Me mandou sentar.

Sem rodeios me disse que estava numa situação terrívelmente


embaraçosa; sua permanência no comando do pelotão estava
correndo tanto risco quanto eu de voltar ao Brasil como repatriado
por ter deixado um árabe palestino subir na torre, local de vigilância
militar da ONU. Fiquei gelado. Não tive o que responder. Ele tinha
visto toda a movimentação.

Não consegui balbuciar uma única palavra. Fiquei mudo por um bom
tempo, ele também.

Num fio de voz, eu disse que reconhecia minha falta, que fui
induzido por compaixão, só isso. “Tenente, Mahmud é um árabe
adorável que perdeu tudo quando foi expulso de Israel. Me
comoveram os constantes pedidos dele pra ver sua terra e sua casa.
Me comoveu e acabei cedendo...”

Por incrível que pareça, o meu relato tocou o tenente que me disse:
“vamos torcer pra que ninguém nos denuncie.” Me levantei,
agradecendo, e quando já ia cruzar a porta, ele me disse, “ponha o
calção pra gente disputar uma partida de vôlei!” Eu era o adversário
predileto dele. Sempre estávamos em times antagônicos.

Na quadra parecíamos cachorros brigando por um pedaço de osso


suculento; quando ele subia na rede pra cortar sempre esbarrava
com o punho, ou mão na rede, eu impugnava o ponto aos berros.
Ele berrava mais ainda dizendo que não havia tocado a rede.
Ganhava a discussão literalmente no berro. Quando um de nós, do
meu time cometia a mesma falta ele gritava que nem louco. Não por
acaso o time dele vencia TODAS AS VEZES. Nós todos curtíamos

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essa guerra que era quase diária. Eu, do time oponente era o que
mais reclamava, o que mais protestava. Ficávamos horas discutindo
“tocou sim, não tocou, tocou sim, não tocou, eu vi, não viu não, viu
sim...” Mas esse era o jogo, era o barato do jogo e ele adorava essa
confusão.

Poucas semanas depois, não me lembro bem por que, tive uma
complicação gastronômica séria, com febre, vômitos constantes.
Baixei hospital no batalhão central que ficava em Rafah Camp, na
localidade DE RAFAH CITY. Fiquei internado vários dias.

O nosso hospital ficava distante do meu pelotão que era junto a ADL.
No domingo, estava eu na enfermaria com outros internos quando
uma sentinela veio dizer que havia visita pra mim. Saiu da
enfermaria e voltou com Mahmud.

Ele sorria feliz, trazia no rosto aquele sorriso bonito, aberto, gentil,
trazendo nas mãos um volume envolto num papel pardo. Me
cumprimentou efusivamente, colocou o pacote em minhas mãos e se
sentou numa cadeira ao lado da minha cama, querendo saber o
motivo de minha internação.

Abri o pacote e vi as bananas da terra mais lindas que já comi um


dia. Mahmud com grande orgulho esclareceu que eram produzidas
em seu pequeno terreno ali em RAFAH. Percebi que mesmo
precáriamente ele continuava agricultor. E aumentava seus ganhos
trabalhando como empregado da ONU para manter funcionando a
infra estrutura para o batalhão brasileiro. Recomendou que eu
bebesse água, que tivesse cuidado com a saúde, parecia um pai
falando como filho. Devia ser essa nossa diferença de idade. De
repente, me fitou com grande intensidade, pediu que eu prestasse
bastante atenção à novidade que estava para me contar: abri um
sorriso de cumplicidade e me preparei pra ouvir.
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O que entrou nos meus ouvidos me encheu de terror: “meus cinco
“chicos” (filhos) já estão sabendo atirar perfeitamente com fuzil.
Com revólver, com pistola. Eles vão me ajudar a matar israelenses.
Alah vai nos guiar na guerra contra os porcos israelenses e vamos
matar todos eles, vamos finalmente recuperar nossas terras...”

Mahmud parecia em transe, com um sorriso luminoso. Não notou ou


não quis notar que meu sorriso tinha morrido. Naquele momento, eu
não podia perturbar o sonho de um homem. Qualquer coisa que eu
me atrevesse a dizer naquele momento seria inadequada. Me calei.
Ele se levantou sem registrar meu desapontamento, sem se comover
com meus olhos marejados, me abraçou com força e se despediu. A
satisfação de Mahmud comunicando com orgulho a formação de
seus filhos, pouco mais que adolescentes, para a macabra missão de
atirar contra um inimigo que eles nunca viram mas aprenderam a
odiar, tirou minha alegria por muito tempo. Não consigo pensar
nesse momento sem sentir uma tristeza imensa. Apesar dos meus 20
anos, da falta de vivência, algumas coisas me pareciam tão óbvias,
que não foi preciso raciocinar muito pra entender que esse conflito
nunca vai acabar. Criei uma frase que virou bordão nas minhas
conversas sobre esse assunto se por acaso me abordam, ou eu
esteja perto de uma eventual discussão; SABEM QUANDO ISSO VAI
ACABAR? NUNCA!!!Quando a guerra dos 6 dias aconteceu em abril
de 67, eu, menos de seis meses em Belo Horizonte pensava todos
os dias em Mahmud, pedindo a Deus que o poupasse. Não tive mais
como saber dele.

Desde então, cada vez que as agressões acontecem e ganham as


manchetes dos jornais, eu digo pra mim em voz alta “SABEM
QUANDO ISSO VAI ACABAR? NUNCA!!!! Mas em silêncio eu
pergunto; o que terá acontecido a MAHMUD e seus filhos?

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Minha amizade próxima com Mahmud e não tão próximas com
outros árabes que serviam o batalhão brasileiro me deu a certeza de
que eu jamais apontaria uma arma pra algum árabe, mesmo
sabendo que disso poderia depender minha própria vida.

Uma manhã, bem cedo, eu estava no alto de uma das várias torres
ao longo da ADL quando percebi um rebanho de carneiros se
aproximando. Desci da torre, gritei em árabe para aquelas pessoas
que eu não podia saber se eram homens, mulheres, se eram
disfarces, pois usavam roupas escuras, panos nos rosto e na
cabeça, tudo escuro. Sem tocar na minha arma que estava
atravessada nas minhas costas presa pela bandoleira, eu fazia gestos
com as mãos gritando “YALÁ, YALÁ, YALÁ” (AFASTEM-SE! ) Os 4
vultos não se intimidaram, continuaram a se aproximar
acompanhados por um rebanho de carneiro.Naturalmente
perceberem que eu não manipulava a arma, nem tocava nela, muito
menos exibia atitude intimidadora.

Gritei outras duas vezes e desisti do intento. Fui andando


devagarinho em direção ao rebanho e mesmo assim os quatro
vultos que agora se revelavam moças pelos risinhos que davam,
continuavam no sentido contrário. Até que ficamos a menos de dois
metros de distância. A mais ousada delas me pediu cigarro. Tirei do
bolso o maço de KENT – os cigarros das mais famosas marcas
americanas eram fornecidos aos integrantes da ONU a preço de
banana - e dei pra ela que falava excitada com as 3 pastoras que
deviam ser muito meninas pois eram bem pequenas.

Eu só via os seus olhos escuros, era tudo o que sobressaia daquele


monte de tecidos escuros, sujos. A que pediu o cigarro olhava
encantada o maço muito branco em suas mãos de unhas escuras de
sujeira.

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Tirou um cigarro e pediu que eu acendesse. A fumaça subiu no ar.
Elas davam risinhos tão encantadores que me deu vontade de
prolongar aquele contato. Meu trabalho de vigilância era solitário,
NUNCA falávamos com ninguém que não fosse o próprio colega que
chegava pra nos substituir. Mesmo assim esses contatos eram muito
rápidos porque a torre não podia ficar sem vigilância. Portanto,
quando um militar descia, o outro subia. No alto da minha torre
havia um bule cheio de refresco de grapefruit e sanduiches de
presunto com queijo. Fiz sinal a elas que aguardassem. Subi
rapidamente os degraus e desci com as iguarias. Meu Deus, que
visão comovente, elas bebendo na minha caneca de alumínio o
refresco e devorando os dois sanduiches que eram minha cota de
alimentação durante o meu trabalho de observação.

DESCENDO A PIRÂMIDE DE QUÉOPS

A minha vidinha insossa sem perspectiva em Belo Horizonte havia


sofrido uma mudança vertiginosa. Eu me espantava com os
acontecimentos, e pensava nisso enquanto descia lentamente os 146
metros da pirâmide, pedra por pedra, com a respiração suspensa,
ouvindo os gritos intermitentes do guia árabe gritando ao nosso lado
“slowly, slowly, don’t jump, don’t jump, help each other, dont’t
jump!!”

Era um feito extraordinário em minha vida. Finda a descida, eu


olhava agora pra cima, onde estivera há meia hora e não contive o
sorriso de orgulho, de felicidade.

Súbito, um grupo de militares como eu, cerca de 5 colegas andando


a esmo, se aproximou me pedindo pra ser o guia deles naquele
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passeio já que eu me mostrava tão interessado. Eles queriam saber
tudo das três pirâmides. Sugeri que contratássemos um guia dos
muitos que proliferam no local oferecendo seus serviços pra turistas
desacompanhados, pra fazer o roteiro conosco, e eu iria traduzindo.
Concordaram.

UM VATICINIO ENCANTADOR

Me aproximei de um grupo de egípcios com seus camelos, e me


dirigi a um senhor vestido a caráter, turbante(?) na cabeça, um
longo caftan na cor creme, barba rala. Devia ter entre 80 e 85 anos.
Era mais alto do que os meus 1 metro e 85. Tão velho e tão ereto. A
pele cor de bronze contrastava com seu maxilar avantajado, dentes
escuros de nicotina, olhos verdes, limpos.

Aceitou narrar pra nós a história dos faraós egípcios e suas tumbas
fantásticas, mas impôs como condição que ninguém fotografasse
enquanto ele estivesse narrando. Deu ênfase a essa exigência
brandindo o dedo indicador contra as máquinas penduradas nos
pescoços de todos nós. Eu traduzi pra eles com mais ênfase ainda,
pedindo respeito à condição imposta pelo velho guia.

Mal ele começou a discorrer sobre a pirâmide, os colegas começaram


a fotografar. Antes que o velho reagisse, chamei à atenção para o
fato e o guia retomou a narrativa.

De novo o barulho dos obturadores. Meio impaciente, com a voz


ligeiramente alterada pedi que parassem de fotografar, que
esperassem a ordem de velho pra faze-lo. Percebi que o guia fez
uma pausa um pouco maior antes de recomeçar. Olhou pra mim
somente. Um olhar indefinido, vago, inexpressivo, mas contínuo. Me
perturbou um pouco pois entendi aquele silêncio como uma
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contagem de paciência, tipo “vou contar de 1 a 10 antes de
explodir...” Imaginei que deveria estar com raiva, ou quisesse
interromper o trato, não narrar mais, nos mandar pro inferno, coisas
de velho ranzinza. Me sentindo culpado pelo comportamento mal
educado do grupo, pedi desculpas a ele, prometendo que os
recalcitrantes não fotografariam mais.

Retomou a narração.

Não pronunciou uma frase inteira e logo os obturadores das AGFAS


se misturaram à voz do guia. Perdi a compostura, a educação.

Dei um espôrro monumental, chamando eles de animais,


grosseirões, e terminava cada frase do espôrro com um palavrão. Já
havíamos feito o pagamento antecipado obedecendo às exigências
do velho. Ameacei ir embora e deixa-los ouvindo as explicações em
inglês, e sujeitos às reprimendas do guia. Felizmente o meu espôrro
funcionou. Todos fecharam os estojos de sua máquinas.

Mas o velho continuava estático, braços cruzados, me olhando de


novo enigmáticamente. Um silêncio constrangedor se instalou entre
nós. Pensei; “ele deve estar tão puto, que vai nos mandar embora e
não vai devolver o dinheiro...”

Lentamente como eram todos os seus movimentos, sua articulação


ao narrar, seu modo de se expressar, pôs as duas mãos nos meus
ombros, e disse bem pausadamente me olhando agora com imensa
ternura: “my son.....you will be..... very happy...”

Só consegui balbuciar um tímido “obrigado”, e fiquei ao seu lado


traduzindo o que dizia sobre os monumentos e os faraós.

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A rapaziada se comportou bem durante o trajeto acompanhando o
guia, parando de instante a instante, as máquinas operando fotos
nas pausas do velho.

CLINT EASTWOOD NO CAIRO?

Voltamos ao hotel AMBASSADOR, que ficava bem próximo à praça EL


TAHRIR. Era este hotel que hospedava todos os militares da ONU
quando em passeio pelo Egito. A ONU nos dava passeios e estadias
neste hotel e em outros ótimos hotéis no Libano, Jordânia,
Jerusalém, e Damasco.

O carinho do velho, o olhar cansado, enigmático provocaram em


mim uma emoção inexplicável, mas ao mesmo tempo uma sensação
maravilhosa de apoio, de conforto, de certeza de que a vida me
sorriria. Me atrevi a acreditar que eu teria essa ventura. Que merecia
esse vaticínio. Católico, eu trazia o meu amuleto na carteira de
documentos; o salmo de DAVI , num papel recortado, dobrado ao
meio, a oração do salmo em letras miudinhas.

Me foi dada pelo meu avô materno JOÃO ANSELMO DA SILVA. Me


lembro de seu vozeirão estrondoso, uma ligeira gagueira,
recomendando que eu lesse sempre a oração, que procurasse
decorá-la pra servir de leniência nos momentos de angústia ou
perigo “LIVRA-ME Ó SENHOR DO HOMEM MAU;GUARDA-ME DO
HOMEM VIOLENTO, CONTINUAMENTE SE AJUNTARAM PARA A
GUERRA; AGUÇARAM A LINGUA COMO A SERPENTE.

O VENENO DAS VÍBORAS ESTÁ DEBAIXO DOS SEUS LÁBIOS.


GUARDA-ME Ó SENHOR, DAS MÃOS DO ÍMPIO E GUARDA-ME DO
HOMEM VIOLENTO OS QUAIS SE PROPUSERAM DESVIAR OS MEUS
PASSOS.

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OS SOBERBOS ARMARAM-ME LAÇOS E CORDAS; ESTENDERAM A
REDE À BEIRA DO CAMINHO, ARMARAM- ME LAÇOS CORREDIÇOS.

EU DISSE AO SENHOR: TÚ ÉS O MEU DEUS; OUVE A VOZ DAS


MINHAS SÚPLICAS, Ó SENHOR.

SENHOR DEUS, FORTALEZA DA MINHA SALVAÇÃO,TU COBRIESTE A


MINHA CABEÇA NO DIA DA BATALHA. NÃO CUMPRA Ó SENHOR AO
IMPIO OS SEUS DESEJOS. NÃO DEIXE IR POR DIANTE O SEU MAU
PRÓPOSITO PARA QUE NÃO SE EXALTE.

QUANTO AOS QUE CERCANDO-ME LEVANTAM A CABEÇA, CUBRA-OS


A MALDADE DOS SEUS LÁBIOS.

CAIAM SOBRE ELES BRASA VIVAS, SEJAM LANÇADOS NO FOGO EM


COVAS PROFUNDAS, PARA QUE SE NÃO TORNEM A LEVANTAR.

NÃO TERÁ FIRMEZA NA TERRA O HOMEM DE MÁ LINGUA; O MAL


PERSEGUIRÁ O HOMEM VIOLENTO, ATÉ QUE SEJA DESTERRADO.

SEI QUE O SENHOR SUSTENTARÁ A CAUSA DO OPRIMIDO E O


DIREITO DO NECESSITADO.

ASSIM, OS JUSTOS LOUVARÃO O TEU NOME. OS RETOS


HABITARÃO NA TUA PRESENÇA“

Uma semana livre no Cairo! Cerveja deliciosa, shows noturnos com


DANÇA DO VENTRE, visita ao museu. Era uma delícia passear sem
destino pelas ruas da cidade, ao longo do Nilo, pra todo lugar sem
hora pra voltar, sem compromisso, depois de 6 meses retirando areia
da linha de armistício da faixa de Gaza. Uma tarde, passei diante de
um cinema cujo cartaz gigantesco trazia um cowboy de chapéu,
poncho, barba rala, cigarro nos lábios fechados sobrepondo-se ao
título “FOR FEW DOLARS MORE with CLINT EASTWOOD”.
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Fã ardoroso de faroeste, vidrado nos clássicos DA TERRA NASCEM
OS HOMENS, O ÚLTIMO POR DO SOL, OS BRUTOS TAMBÉM AMAM,
fã de carteirinha de ídolos como GARY COOPER, RICHARD WIDMARK
RANDOLPH SCOTT, AUDIE MURPHY, ROCKY LANE, JOHNH MC
BROWN, JOHN WAYNE, JAMES STEWART, ALAN LADD, fiquei
intrigado, ao mesmo tempo atraído por aquele cartaz. Entrei no
cinema. Meu inglês não era suficiente pra tanta ousadia, mas me
interessava mais saber o que era aquilo do que entender todo o
roteiro.

Saí do cinema fascinado pelo que acabara de assistir. Estava em


curso a glorificação de personagens criados ou dirigidos por SERGIO
LEONE. Os protagonistas do “western spaghetti” eram personagens
solitários, de pouquíssimas palavras, à procura de adversários para
acerto de contas, com a morte nos olhos quando fitavam os
bandidos. A trilha sonora eletrizante, uma reinvenção notável.

Nossa memória afetiva retém até hoje a maravilhosa música


interpretada por uma orquestra fabulosa de SETE HOMENS E UM
DESTINO, DUELO AO POR DO SOL. Frankie Lane vendia toneladas
de Long Plays com trilhas de westerns.

E no entanto, o que eu ouvi em FOR FEW DOLARS MORE, foi um


violão, tenso, grave,pontuando os lentos olhares,lentos passos dos
personagens quase pé ante pé caminhando pras posições do duelo
na rua sem calçamento ladeada por armazéns e saloons. O acordes
de notas graves que brotavam das cordas do instrumento
pontuando essas cenas eram eletrizantes.

Provocaram em mim ao mesmo tempo ansiedade e


angústia.Começava ali, naquele cinema egípcio, com um intervalo de
quase 40 anos minha ligação com Clint Eastwood. Tive o privilégio, a
alegria, a felicidade, de falar por ele em vários filmes, sendo que o
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meu preferido é PODER ABSOLUTO. O amor que o personagem dele
dedica à filha, o cuidado ao organizar a geladeira na ausência dela
me remete às mesmas atitudes que tenho com minha filha.

VOLTA AO BRASIL NO DIA 10 DE AGOSTO. MONTAR UMA PADARIA

Voltei ao Brasil no dia 10 de agosto de 1.966. Levei uma vida sem


gastos na palestina de modo que pude amealhar pouco mais de 1
dólares, a soma dos 12 meses de soldo a 108 dólares por mês.Eu
queria me casar, ter vários filhos, melhorar de vida.Imediatamente
comecei a dar forma ao sonho de me tornar dono de uma rede de
padarias. Sempre adorei padaria, o cheiro do pão saindo do forno, o
cheiro do café sendo moído. Na rua Pouso Alegre no bairro HORTO
em Belo Horizonte, montei um depósito de pães. Era o que o
dinheiro dava pra realizar.

E mesmo assim, abri as portas devendo mais que o dobro das


minhas economias. 8 meses depois tive que admitir o meu fracasso
como comerciante.

MARCIO GREYCK ME INCENTIVA A SAIR DE BELO HORIZONTE.

Nesses 8 meses de trabalho infrutífero, recebi algumas vezes a visita


do meu amigo querido de infancia, Marcio Greyck, agora um cantor
de sucesso. Na nossa infância, no nosso bairro pobre de ruas sem
calçamento, brincávamos de rádio, onde eu era o locutor que
anunciava o cantor MARCIO PEREIRAAAAA LEITEEEEEEEEEE!!!!
Palmas para ele que vai cantar UNA VEZ UM RUISEÑOR, imitando o
cantor mirim mexicano JOSELITO!!!!!!”

O sonho dele se tornou realidade, eu continuava a vender o pão.


Que outros amassavam. Porém minhas possibilidades eram neutras,
ou inexistente.

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De carro, a caminho da casa de sua mãe no bairro da SAGRADA
FAMILIA, Marcio parava no meu depósito de pães, entrava e me
perguntava sem rodeios; “até quando você vai ficar aqui vendo a
vida passar? Seu lugar é no Rio de Janeiro, cara! Isso aqui é um
buraco. Você não tem nada a ver com isso, cotovelos no balcão,
esperando freguês chegar, pra vender um litro de , dois pães
franceses, balas, biscoitos. Saia disso, vá pro Rio de Janeiro trabalhar
com a voz! Vá fazer o que você gosta. O que você sonha! Vá pro Rio
de Janeiro e me procure. Lá eu te apresento nas rádios pra fazer
teste de locutor...”

O RÁDIO SE APROXIMA DE MIM.

Vendi a mercearia a preço de banana e fui trabalhar como


representante comercial dos CARAMELOS VAN MELLE, holandeses. O
que eu ganhava mal passava de dois salários mínimos. Um dia,
visitando um comerciante atacadista de chocolates e balas no
segundo andar de um edifício na Rua Rio de Janeiro na PRAÇA 7,
centro de Belo Horizonte, percebi um sujeito a um canto, mastigando
um bombom, me ouvindo conversar com o comerciante.

Intrigado pela insistência com que ele me olhava, resolvi


cumprimentá-lo. Respondeu ao cumprimento acrescentando: “sua
voz é boa, não quer fazer um teste na rádio lá em cima? Estamos
procurando um locutor pra trabalhar como noticiarista de hora em
hora. Quer fazer o teste? Fique tranquilo, não tem ninguém na rádio
agora!”

Surpreso, feliz, entusiasmadíssimo, aceitei na mesma hora. A rádio


MINAS do locutor RAMOS DE CARVALHO ficava no décimo segundo

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andar deste edifício, situado à Rua Rio de Janeiro, entre praça 7 e
rua Tupinambás, centro da cidade.

Ressabiado, tremendo de emoção, coração disparado, fui relaxando


aos poucos ao perceber que não havia viva alma no ambiente. O
operador que me fez o convite colocou em minhas mãos uma pasta
grossa cheia de textos, abriu a porta do estúdio pra mim, mandando
que eu desse uma lida em voz alta pra ir conhecendo os temas,
enquanto ele ligaria os equipamentos para gravar meu teste.

Eu conhecia aqueles textos, lidos pelos locutores da emissora que eu


ouvia em casa, uma das últimas no ranking de audiência. Seu sinal
era fraco. Eu lia os textos em voz alta, aguardando o sinal deste
operador, sem saber que ele já estava gravando minha locução.
Quando levantei a cabeça pra dizer “estou pronto” vi ao seu lado na
técnica um grupo de pessoas, dentre elas, um sujeito engravatado
que me fez um sinal de positivo. Abriu a porta do estúdio e me
perguntou se eu podia começar naquele momento como locutor
noticiarista. “Não temos como te pagar um salário ainda porque
precisamos de patrocinador do noticiário pra combinar uma
remuneração pra você...”

Não questionei. Era tudo o que eu queria. Estava acontecendo sem


que eu tivesse que ficar batendo de porta em porta. Numa euforia de
garoto que ganha pirulito eu chegava cedo à emissora, e corria pra
redação, pra ler o que estava sendo preparado. Naqueles dias, as
manchetes dos jornais, os noticiários de tv e rádio eram os
confrontos entres as forças mixtas de exército, aeronáutica e policia
federal contra os grupos extremistas que se propunham a derrubar o
governo militar. O presidente da república era o general COSTA E
SILVA. As mortes violentas se sucediam em ambos os lados. Com a
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imprensa amordaçada, graças à presença de censores militares nas
oficinas rotativas dos jornais, havia um medo generalizado de que a
qualquer momento redatores, jornalistas, repórteres poderiam sair
algemados com as cabeças cobertas direto pra um camburão.
Jornais chegavam as ruas com espaços em branco, pois não havia
tempo hábil para substituir o texto arbitráriamente retirado da pauta
na rotativa. Uma vez retirado, paciência, era impossível obter
explicações. O censor cismava com a matéria e isso bastava pra ele
não querer o artigo ou noticia publicados. Era literalmente “não
gostei, não sei do que se trata, mas não quero que saia, e pronto!”
Eu sabia dessas ações lendo o pasquim, ouvindo os jornalistas
conversando na redação da rádio, nos bares tomando um café.

Certa manhã, minutos antes de eu entrar no ar com o noticiário, o


telefone tilintou na redação.

“Bom dia, com quem estou falando?” a voz pausada, grave


perguntou.

“Marcio Seixas, bom dia.”

- Você é o locutor do noticiário?

- Sou

– Ótimo, então estou falando com pessoa certa. Eu sou o major


fulano de tal, da ID4. ( O CENTRO OPERACIONAL DO QUARTO
EXÉRCITO INSTALADO NUMA CASA LUXUOSA NA ÁREA NOBRE DO
BAIRRO DE LOURDES. FOI NESTA CASA QUE MAGALHÃES PINTO
JUNTO COM O GENERAL GUEDES LEVANTARAM A INSURREIÇÃO
QUE ORIGINOU A REVOLUÇÃO DE 31 DE MARÇO)

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Silêncio meu. O sangue gelado nas veias.

- No noticiário que você vai ler daqui a pouco há alguma menção


aos tumultos que aconteceram na Universidade de VIÇOSA?

– Não, major, nenhuma menção a esse assunto.

- Perfeito, então, preste atenção; se nas próximas edições do seu


noticiário houver uma nota sequer sobre os tumultos...não leia.Você
entendeu bem?

Claro, major, entendi sim.

–Ótimo, melhor assim. Muito obrigado. Meu nome é major fulano. Da


ID4. Bom dia, e bom trabalho.

Aquela força brutal, sanguinária,que não dava trégua aos


extremistas, que surpreendia os elementos nos chamados aparelhos,
fuzilado-os sem qualquer misericórdia, se materializou, ganhou
dimensão palpável concreta, intimidadora, na voz suave e pausada
no telefone. A realidade chegou aos meus ouvidos de forma
aterradora.

As ações dos representantes da oligarquia militar não conheciam


limites. Fazia-se o que se quisesse, em nome da ordem, do
progresso, da “normalidade democrática”, em nome da moralidade
social.

A rádio INCONFIDÊNCIA, antiga emissora estatal mineira, outrora


poderosa, ia de mal a pior, atrasando os salários de operadores,
locutores, profissionais do jornalismo, da parte burocrática,
departamento artístico.Com uma folha de pagamento extensa devido
ao enorme elenco que produzia de tudo, programas educativos,
programas sertanejos, rádio novelas, programas humorísticos,
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esportivos, a receita sempre abaixo da despesa foi se avolumando. A
situação era caótica, aparentemente sem fim. A INCONFIDÊNCIA,
magnificamente posicionada no meio do dial, era um gigante
tombado, abatido por sucessivas administrações ruinosas. Não por
acaso seu slogan durante anos foi “INCONFIDÊNCIA, O GIGANTE DO
AR!!”

O governador FRANCELINO PEREIRA - não se sabe se foi ele, mas


alguém com poderes - resolveu nomear um coronel da ativa do
exército cuja função burocrática o habilitara a salvar a rádio da
bancarrota. Ao coronel foi dada carta branca pra agir.O homem era
um empreendedor. Em poucos meses, os credores foram pagos, os
salários colocados em dia, os anunciantes voltaram a anunciar, a
audiência subiu um pouco.

Mas...o coronel era um apaixonado por rádio. Se viu na berlinda,


literalmente. Seu nome era citado no inicio de cada programa em
forma de vinheta junto com o prefixo. “ZYF 29 RÁDIO
INCONFIDÊNCIA, sob a direção do coronel FULANO DE TAL.” Havia
um programa noturno diário, comandado por cantores sertanejos
que era a paixão do povo mineiro e próprio coronel. A impressão viva
que passava era que o coronel vivia dentro da emissora pois além de
dirigir com mão de ferro a emissor durante o expediente normal, à
noite, ele ia pra dentro do estúdio com os apresentadores. Falava no
microfone, cumprimentava pessoas, mandava abraços mil pra
amigos, pra colegas, pra ouvintes...e CANTAVA junto com os
sertanejos.

Eram inúmeras as músicas saudosistas que ele interpretava


acompanhado pelo violão de um músico qualquer que estivesse com
o instrumento disponível. A voz era horrorosa, e seu talento como
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artista dispensável. Quem dispensaria? A situação não poderia ser
mais ridícula e única. Não se tem noticia de coisa mais bizarra.

Um radialista que fez história no rádio mineiro por seu estilo


agressivo, destemido, um sucesso absoluto em qualquer emissora
que trabalhasse, passava da conta nos recados mal criados, nas
ameaças que fazia a políticos que não atendiam os anseios da
população. Nada lhe acontecia, naturalmente se escudava em seu
distintivo “INVESTIGADOR DE POLÍCIA” nos documentos, em
decalques no seu carro. Ele confiava na sua imunidade. Seu nome
era ALDAIR PINTO.Ninguém o enfrentava. Aldair no microfone do
seu programa na radio Itatiaia, emissora concorrente, resolveu
ridicularizar as ações do coronel. Várias reeeleito vereador a cada
pleito, deputado depois, ele se sentia à vontade. Não havia limites
pra sua verborragia virulenta, às vezes engraçada, na maioria das
vezes ofensiva. Ele teve grande influência no sucesso do cantor
AGNALDO TIMÓTEO que o idolatrava.

Aldair Pinto consumia um bom tempo de seu programa diário apenas


pra ridicularizar, com apoio de uma gargalhada eletrônica que
infestou o rádio nesse década e dirigir comentários ácidos às
incursões do coronel na programação da rádio.

O valente radialista pagou caro a ousadia.Pra ele, a realidade chegou


de forma violenta e traumática. O general EMILIO GARRASTAZÚ
MÉDICI, viria a Belo Horizonte em visita oficial. Aldair Pinto foi preso,
pouco antes da chegada do general e sua comitiva à cidade,
permanecendo preso incomunicável nos dois dias da visita do
general a BH.Foi acusado de armar um complô pra cometer um
atentado contra o presidente do Brasil. Era mentira, claro. O coronel
foi o artífice desse plano diabólico. Os militares podiam tudo. Não
deviam satisfação à ninguém.

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Solto quando o general foi embora, Aldair, estranhamente, tão
corajoso, tão destemido, tão desassombrado, a partir desta prisão
não disse mais uma única palavra em seu programa sobre o coronel.
O que se passou entre os que o prenderam e ele, só os envolvidos
sabem. Esses acontecimentos permanecem ocultos até hoje.
Consolidava-se na nossa consciência o poder dos militares sobre
nossos destinos.

Outro fato grave ocorreu, desta vez com o locutor PAULO LOPES.
Seu programa PATRULHA DA CIDADE era sucesso absoluto na rádio
TIRADENTES. Desnecessário dizer que o que consagra esse tipo de
programa é a irreverência, que suavisa as cores da tragédia,
enveredando para o caminho do humor. A fórmula tem gosto
discutível, mas pelo menos desarma os espíritos, sem dúvida. Tanto
é verdade que funciona até hoje, principalmente nas grandes
capitais. Paulo fazia as chamadas dos principais assuntos da crônica
policial com manchetes sempre resvalando na comédia. Até que
uma delas transformou sua própria vida num drama e num inferno:
“OFICIAL DA AERONÁUTICA BÊBADO, BATE EM POSTE E SOBE MAIS
CEDO.” Mas nos jornais ESTADO DE MINAS, DIÁRIO DE MINAS, E
DIÁRIO DA TARDE, a morte do oficial que bateu num poste na
avenida Antonio Carlos que dá acesso ao aeroporto da Pampulha, foi
repercutida sériamente como convém aos órgãos de comunicação
sérios.

Paulo ainda estava na emissora comandando seu programa quando


os militares chegaram, e o levaram para a ID4.Lá sofreu maus tratos
e teve pouquíssimo tempo pra limpar suas gavetas na emissora, e se
mudar de Belo Horizonte.

14 DIAS APENAS E FUI PRA RÁDIO ATALAIA DEPOIS DE UM TESTE.

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Trabalhei na rádio MINAS exatos 14 dias quando ouvi em caráter
experimental o sinal da RÁDIO ATALAIA, que viria a ser um
fenômeno de audiência, ainda em fase de experiência. O ano era
1.968. As emissoras de rádio AM em BH não passavam de 8 ou 10,
sendo que apenas as rádios ITATIAIA, INCONFIDÊNCIA, GUARANI,
MINEIRA eram de grande importância.

A audiência da ATALAIA era tão avassaladora que a levou ao


primeiro lugar disparado sobre as outras em questão de semanas. A
soma da audiência das emissoras abaixo dela não chegava perto do
espantoso número de domicílios que a rádio penetrava.

RADIO ATALAIA, AS PRIMEIRAS LIÇÕES.

Procurei a ATALAIA, encorajado pelos 14 dias de locução no


noticiário. Fiz o teste com o diretor da rádio FRANCISCO OZIRES
MOURÃO e fui contratado. Era um vitrolão que entrava no ar às 5 da
manhã e saia à meia noite. Às 18 horas em ponto, um texto gravado
por Mourão pregava bons valores de vida, espirituais, sociais, de
reflexão, tendo como cortina musical para sua narração a AVE
MARIA de GOUNOD. Era a hora do Angelus. A rádio era um sucesso
artístico e comercial estrondoso. Era tema de estudos nas faculdades
onde o som da emissora alcançava. Nunca Belo Horizonte havia
experimentado uma programação assim; uma música, hora certa,
uma música hora certa. 9 músicas brasileiras para uma americana de
sucesso comprovado. Jamais uma música americana desconhecida
seria irradiada. Eu fui logo escalado pra trabalhar abrindo a rádio.

Trabalhava de 5 horas da manhã até 10 horas. Acordava às 3 e meia


da madrugada eufórico, tomava meia xícara de um café de garrafa
térmica feito na véspera, e saía andando a pé da minha casa até à
avenida Amazonas num percurso equivalente a 15 quarteirões. O
ônibus BARREIRO percorria toda a avenida Amazonas, passando
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pelos bairros da Gameleira, Vila Oeste, Cidade Industrial e chegava
ao meu destino, o bairro de ÁGUA BRANCA 25 minutos depois.
Durante o dia, esse percurso demoraria no mínimo o dobro do
tempo.

Caminhava outros 15 quarteirões, e até me equilibrava sobre uma


pinguela ligando as duas margens de um riacho próximo à rádio,
atravessava a linha do trem e, ufa! chegava ao transmissor da rádio!

O estúdio foi montado no próprio imóvel construído para abrigar o


gigantesco transmissor a válvula que irradiava 5 kilowatts de
potência. Eu chegava quase todos os dias no limite.

Uma manhã, logo nos meus primeiros dias atuando no microfone,


Mourão abriu a porta do estúdio reclamando do meu tom de voz. Ele
se irritara com a minha falta de postura ao anunciar “É MEU, É MEU,
É MEU” de ROBERTO CARLOS. Áspero, reproduziu de maneira jocosa
o que ouviu no rádio do carro, cobrou mais “impostação” “classe”
“presença” no microfone. Eu e meus colegas éramos obrigados a
anunciar música por música e dizer em seguida “Atalaia, tantas horas
tantos minutos. 5 horas fazendo só isso. Perdão, havia uma pequena
variação nas horas cheias quando tínhamos que dizer o prefixo
completo: “ZYF55 RÁDIO ATALAIA DE BELO HORIZONTE, 960
KILOHERTZ. Era necessário mencionar BH porque era a filial. A
matriz era em Curitiba.

Poucos meses depois de sair do caráter experimental e com


audiência esmagadora sobre todas as emissoras mineiras, a rádio
cumprindo a legislação da rádio difusão de dedicar algumas horas da
programação ao noticiário jornalístico, passou a irradiar de hora em
hora o “gilete press” CORRESPONDENTE ATALAIA.

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Ele queria que datilografássemos esse noticiário e não recortar o
jornal e colar numa folha em branco. Coube a mim fazer isso.
Acreditem; eu chegava pra abrir a rádio às 5 da manhã, com o
ESTADO DE MINAS debaixo do braço, dizia as horas, começava a
rodar a música que durava não mais do dois minutos e meio cada
uma. Ao final desse tempo eu tinha que anunciar: “Wanderley
Cardoso, Amor da minha vida. Atalaia, cinco horas 3 minutos...”

De caneta em punho, marcava as noticias e fazia um resumo de


duas ou três, na maioria das vezes a frase ficava um pouco maior do
que a manchete. Estava pronto a jornal das 6 da manhã. Tendo que
interromper a leitura e o resumo do noticiário a cada 2 ou 3 minutos,
eu preparava o noticiário das 7 e assim por diante. Até a última
edição da noite.

Ao final da minha jornada de 5 horas no microfone estavam prontas


TODAS as edições do CORRESPONDENTE ATALAIA.

Abalado pela crítica ao meu desempenho, eu não sabia o que fazer


pra melhorar o que Mourão achava ruim.

Eu percebia na voz e na locução dele que meu desempenho era


diametralmente oposto àquela voz maravilhosa, séria, elegante no
microfone.. Minha voz não tinha mesmo presença, não tinha aquele
timbre aveludado, sereno, grave sem ser forçado. Mas como adquirir
isso, meu Deus? Onde buscar isso?

De madrugada, na avenida Amazonas esperando o ônibus Barreiro,


eu falava sem parar “ATALAIA, 5 HORAS, 3 MINUTOS, ATALAIA, 5
HORAS 6 MINUTOS, ATALAIA, 5 HORAS, 9 MINUTOS...” Na minha
memória o timbre que minha audição captava era a minha voz rala,
sem qualquer encanto,sem um atrativo sequer, sem personalidade,

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embora no meu cérebro estivesse de maneira viva a voz dele
fazendo o anúncio.

Um frio de congelar percorreu minha espinha vendo os movimentos


dele se sentando na cadeira pra ler a programação da mesma
maneira que eu. Senti vergonha de me ver retratado assim, percebi
na irritação dele, no seu jeito hostil, a minha incompetência. Mais do
que incompetente, me senti impotente. Como melhorar? Onde posso
aprender? Quem se importava com isso em Belo Horizonte? Eu, tão
seguro de minhas escolhas e atitudes, agora tão inseguro. Aquela
frase em inglês nunca me parecera tão dramática, tão real:
“LONELINESS IS A STEP WITHOUT PLACE TO GO...” A solidão é um
passo sem ter pra onde ir...”

Eu não queria ser demitido. Não podia. Era a minha chance. Era um
sonho realizado quase aos trombolhões. Os acontecimentos eram
mais vertiginosos do que a construção do meu sonho. Pela primeira
vez desde aqueles meus 30 e poucos dias de carreira como locutor,
no máximo 35 dias, me senti perdido, sem saber o que fazer pra
adquirir “postura” “classe” “presença” “personalidade” “impostação”.
Fascinado pelo tom que ele usou pra servir de modelo pra mim, tive
a certeza de que havia colocado o nó górdio em meu pescoço.

Abrir o alçapão pra eu mergulhar pra morte era questão de semanas,


dada a irritação e aspereza com que ele anunciou que eu deveria
adquirir todas aquelas qualidades pra pelo menos ficar perto do
padrão dele.

Sim, o padrão era ele. Conversa com um com outro, pede opinião
aqui e a ali, não encontrei nada, nenhum curso, nenhuma sugestão
que eu pudesse colocar em prática pra garantir a chance maravilhosa
de ter sido contratado pela primeira rádio de Belo Horizonte.

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O máximo que ouvi foi “vai repetindo O RRRRATO RRROEU A
RRRROUPA DO RRRRREI DE RRRROMA, EXAGERANDO NO R” que
anos, muitos anos mais tarde eu vim a saber que é “R VIBRANTE”. O
do meio da palavra “carta” é o “R GUTURAL”! Eu era meu próprio
carrasco à beira do alçapão com a ameaça do Mourão martelando
meu cérebro: “se não melhorar essa locução, vou ter que te mandar
embora e colocar alguém com experiência no seu horário que é o
mais importante da rádio. Já te dei uma chance, o resto é com
você...”

A RÁDIO CULTURA, EMISSORA CLASSE A ME TIROU DA ATALAIA

E tome de “O rrrrrrrrrrrrato rrrrrrrrrrroeu a rrrrrrroupa do rrrrrrrei


de Roma, Atalaia, 5 horas 3 minutos, Atalaia, 5 horas 6 minutos,
Atalaia, 5 horas 9 minutos e assim por diante até às 10 horas da
manhã.De segunda a segunda. Não tínhamos folga.

Jamais acreditei um segundo sequer na eficácia da roupa roída do


Rei de Roma, mas há um ditado chinês de origem galesa que lancei
mão pra afugentar o medo da demissão: “não tem tu, vai tu mesmo”
e tome de “o rrrato rrroeu a rrroupa do rrrei de RRRRRoma...” Por
mais que treinasse não acreditava naquilo.

Como é possível alguém se tornar um bom locutor fazendo isso?


Onde eu achcaria uma referência que pudesse comprovar a eficácia
do exercício? .

Me sentindo ridículo falando sem parar o rato roeu, acabei por deixar
o rato de lado. Quanta bobagem.Não queria acreditar porque não
era crível, só isso. Teria que haver um modo de eu me preparar.

“Atalaia, 6 horas 3 minutos, Atalaia, 6 horas 6 minutos, Atalaia, 6


horas 12 minutos, o tempo todo, dentro do estúdio, sentado nos
ônibus indo e voltando do trabalho, indo pra casa, eu não me
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cansava de tentar produzir aquele som lindo que Mourão fazia no
microfone.

Meus momentos de descontração, quando eu perdia completamente


a vontade de brigar, de lutar, era quando eu ouvia AQUARIUS, LET
THE SUNSHINE IN, com o conjunto FIFTH DIMENSION, THE LETTER
com o conjunto THE ARBORS, FIRST OF MAY com BEE GEES, e
YELLOW BIRD com ROGER WHITAKER.

Logo após eu dizer “Nelson Ned, O que será será” – Atalaia, 6 horas
9 minutos, ouvindo a seguir a introdução dessas músicas
americanas, eu me permitia uma pausa na busca angustiante por
uma personalidade no microfone. Uma busca cega.Relaxava mesmo,
a ponto de sonhar. A beleza dessas músicas era um balsamo no meu
espírito. Eu implorava ao programador pra colocar no meu horário,
mais de uma vez, se possível, YELLOW BIRD. Musicas que marcam e
a gente não sabe por que.

Um manhã, pra minha surpresa, lendo o jornal DIÁRIO DE MINAS do


grupo FORÇA NOVA DE COMUNICAÇÃO ao qual eu pertenceria muito
em breve levei um susto lendo uma nota na coluna de variedades
que era escrita pelo jornalista ALFREDO BUZZELIN: “O LOCUTOR
MARCIO SEIXAS DA RÁDIO ATALAIA PARECIA UM ALUCINADO
CAMINHANDO NO CENTRO DA CIDADE FALANDO SEM PARAR
“ATALAIA, TANTAS HORAS TANTOS MINUTOS, ATALAIA, TANTOS
HORAS TANTOS MINUTOS.DÊEM UM CALMANTE PRA ELE!”

1 ano e 8 meses depois fui convidado a trabalhar na rádio Cultura, o


sonho de consumo de qualquer locutor. Era a chamada rádio dos
universitários. O estúdio funcionava num casebre tosco, feito de
adobe atrás do INSTITUTO BUTANTÃ que ficava ao lado do parque
de exposições pecuárias da GAMELEIRA, durante anos, programa
obrigatório para o mineiro.
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Quem cultuava a rádio Cultura e se encantava com o charme das
vinhetas, da programação musical – mistura de MUNDIAL com
ELDORADO de São Paulo - ficava chocado ao conhecer o casebre de
onde fluía uma programação que fascinava o público classe AA na
faixa etária dos 10 aos 50 anos.

Era uma casa baixa, suja, com piso de cimento vermelho, cercada de
bananeiras no fim de uma rua poeirenta, sem calçamento. Quando
um veículo passava em frente, levantava uma cortina de poeira
vermelha que chegava até aos ossos. Havia junto a essa casa baixa
muitos cães vira-latas, cavalos andando soltos , cabritos, bodes,
patos, galinhas, um esgoto a céu aberto. E moscas, centenas de
moscas que eu matava até que a última fosse esmagada a
“jornaladas”.

Dos três locutores da rádio, eu era o único que ficava com a porta do
estúdio, caindo aos pedaços, fechada, justamente pra evitar que as
moscas invadissem o pequeno estúdio. Luziário Pinto e Geraldo
Ferreira, meus outros cois colegas, trabalhavam com a porta aberta.
Por isso, quando eu chegava às 6 da manhã pra abrir a rádio,
passava pelo menos meia hora matando moscas pra ter sossego. Me
derretia de calor, mas pelo menos ficava livre daquela praga que um
dia entrou na minha boca quando eu anunciava as musicas.

Era espantoso que uma rádio AM, com péssimo som – não tinha nem
UM kilowatt – pudesse ter tanto prestigio. Eu disse PRESTÍGIO, e
não AUDIÊNCIA que durante anos seria totalmente da rádio
ATALAIA.

Havia muitos anunciantes. Tocava rock, blues, toda a parada de


sucessos americana, e aos domingos, era um charme a apresentação
de música clássica de 22 horas até meia noite.

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Orgulhoso de pertencer à rádio CULTURA, “A CAÇULINHA DA FORÇA
NOVA DE COMUNICAÇÃO” ouvia a rádio nas seis horas em que
ficava no microfone e em casa à noite, principalmente no domingo
pra ouvir de 22 horas a meia noite as músicas clássicas. Então fui
descobrindo que música clássica não era só VALSA DO IMPERADOR,
DANÚBIO AZUL, CANÇÃO DA ÍNDIA, peças curtas assim, que
constituiam meu repertório clássico. Não conhecia poucas coisas
mais. No acervo dos lps que ficavam na prateleira da rárdio procurei
artistas italianos que encantaram meu pai; TITO SCHIPPA,
BENIAMINO GIGLI, MARIO LANZA, CARUSO, BIDU
SAYÃO,DOMENICO MODUGNO, MARIA CALLAS. Eu só conhecia
esses nomes de ouvir meu pai falar.

Não havia nada. Já deveria estar na categoria de “passado muito


distante”. Dentre os citados, minha maior curiosidade era conhecer a
voz de TITO SCHIPPA. Meu pai teve esse privilégio, pois falava desse
artista com muita propriedade. Se ele gostava, eu teria que gostar
também.

Menino ainda, eu solfejava as lindas melodias de COIMBRA, SOU


LES CIEL DE PARIS, LA VIE EM ROSE, CUORE INGRATO. Adorava
porque eram a paixão do meu pai, que assoviava lindamente todas
elas. Quantas vezes me comovi com seus olhos verdes expressivos
fixos em algum ponto da parede da sala, expressão neutra, perdidos
num mundo só dele enquanto ouvia no rádio essas músicas.

Esses momentos eram mágicos pra mim, porque me sentia próximo


fisicamente do meu pai. Não compreendo hoje como ele não se
irritava já que eu não desgrudava meus olhos de sua figura. Eu
ficava calado o tempo todo, pra não perturbar sua fuga, seu silêncio,
seus devaneios, e suspiros. Qualquer movimento, por menor que
fosse não me escapava. Me acostumei a “ler” esse pai que era
omisso em todos os aspectos da vida familiar, menos o de provedor,
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beberrão, vulgar em sua embriaguês rotineira, mas que tinha um
olhar terno, doce, um mixto de culpa e admiração por me ver todos
as manhãs de pé, uniforme do primário, sacola com merenda
atravessada no peito e alpercatas de solado de corda, pronto pra ir
pra escola.

Enquanto eu tiver vida, vou me lembrar do deslumbramento dele


vendo na tv Semp de quatro pezinhos tipo palito na sala vendo a
apresentação de DOMENICO MODUGNO no teatro FRANCISCO
NUNES em Belo Horizonte. Vejo a importância que OSWALDO
BENEDITO SEIXAS, nascido em 03 de abril de 1.922 tem e terá no
meu espírito, pelo tempo que emprego pensando nele. Com a
obsessão por aprender mais e mais na profissão que eu inaugurava
em minha vida, querendo fazer dela o sustento da família que eu
sonhava ter, sempre tive enorme vontade que meu pai me visse num
estúdio trabalhando. Isso jamais aconteceu. Não quero me
questionar se isso foi minha culpa ou dele. Prefiro falar de interesse.
O dele era nenhum, o meu não muito profundo.

O gosto musical do senhor Oswaldo Seixas era completamente


diferente do meu agora. Se continuei querendo saber como BIDU
SAYÃO CANTAVA, ou TITO SCHIPPA, ou BENIAMINO GIGLI, abri
espaço na minha curiosidade pra ouvir e gostar de rock, blues, jazz,
música sertaneja, folclórica. Meu acesso a um mundo variado e
sofisticado de musica popular brasileira e estrangeira não poderia
mirar lugar melhor. Durante meu horário das 6 da manhã ao meio
dia, eu fazia a mesmíssima coisa que fazia na Atalaia, mas nos meus
ouvidos agora uma programação infinitamente mais elaborada.

Ser “obrigado” a ouvir a seleção musical da CULTURA era um prêmio


na minha vida. A rádio tocava tudo dos Beatles, Tom Jobim, Chico
Buarque, Elis Regina, Os Cariocas, MPB-4, Quarteto em Cy, Nara
Leão, Todo o lp dos MUTANTES, TODAS AS MÚSICAS dos festivais
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nacionais de música, TODAS AS MÚSICAS do festival italiano de SAN
REMO, Guess Who, Black Sabbah, Santana, Rolling Stones TODAS as
músicas de WOODSTOCK, Simon e Garfunkel. Só a CULTURA rodava
as musicas de TAIGUARA. Que fim levou “DIA 5”? Como pode uma
obra prima como essa ficar esquecida?

A locução de GERALDO FERREIRA, o diretor da rádio e apresentador


do CLÁSSICOS DA CULTURA, era fascinante. Sua voz grave, gutural,
classuda pronunciava aqueles nomes com uma segurança
formidável. Eu trabalhava 6 horas no microfone de segunda a
segunda. Não tinha folga. Pra que? Eu queria aprender mais e mais.

No domingo, eu trabalhava de 16 às 22 horas, quando Geraldo vinha


me render. O horário do clássico era dele. Que selecionava e
apresentava o programa.

E então, um dia, Geraldo não veio trabalhar, não me lembro por que.
Eu, um novato, sem conhecer música erudita, seus intérpretes,
compositores, regentes, teria que apresentar o programa que durava
duas horas. Eram várias peças, várias, o que aumentava o número
de incorreções que eu certamente cometeria – e cometi - no
momento de anunciar antes e ao final da execução. Entrei em
desespero.Geraldo ouviu de casa minha pronúncia errada de
HERBERT VON KARAJAN,com o “JAN” igual ao som de “CARAJÁS.”

Eu deveria ter dito “KÁRAIAN”. Geraldo me ridicularizou o quanto


pôde, imitando a minha pronuncia errada pelos corredores da
Itatiaia, onde havia uma central de produção da CULTURA. Era dessa
central, 30 kilômetros distante do estúdio que Geraldo trabalhava.
Envergonhado, não me abati. Tive certeza de que era uma
dificuldade momentânea. Ela seria sanada.

ACUMULANDO FUNÇÃO COMO LOCUTOR DA TV VILA RICA

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A rádio Cultura pertencia ao grupo FORÇA NOVA DE COMUNICAÇÃO
do jornalista JANUÁRIO CARNEIRO.

Desse grupo faziam parte RADIO ITATIAIA até hoje uma das líderes
de audiência em Minas Gerais, RADIO CULTURA, DIÁRIO DE MINAS
e TV VILA RICA. Recebi o convite de EMANUEL CARNEIRO, irmão de
JANUÁRIO, para cobrir as férias do locutor titular das chamadas da
tv.

Fui voando assimilar a função. Era mais um trabalho que entrava na


minha rotina, e uma mãozinha na receita financeira. Eu trabalhava
no microfone da rádio Cultura de 6 ao meio dia, pegava um ônibus
que passava perto da rádio ao meio dia 15. Se o colega LUZIÁRIO
PINTO, o locutor da tarde, se atrasasse, eu chegaria atrasado à tv
VILA RICA pra render o colega que saía do microfone às 13 horas.
Conte os dedos das mãos, dos pés, triplique esse número e ainda
assim não terá chegado à quantidade de vezes que esse atraso
ocorreu.

Passava a tarde toda na cabine da TV VILA RICA, fazendo as


passagens,de um programa pra outro, anunciando a hora certa e a
próxima atração. Me deliciava vendo as séries JORNADA NAS
ESTRELAS, MAVERICK, RIN TIN TIN, OS BATUTINHAS, O GORDO E
O MAGRO, BAT MASTERSON, A NOVIÇA VOADORA, e tantas outras.

Fumando, tomando café o dia inteiro, me alimentando as pressas,


correndo o tempo todo pela cidade, adquiri uma gastrite. Chegava
em casa exausto de tanto correr pra todos os lados, e ainda assim
conseguia espaços pra gravar os comerciais que começavam a entrar
na minha rotina profissional.

As novidades inerentes à minha atividade de comunicador não


paravam de acontecer. Inaugurei uma outra atividade na

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comunicação; garoto propaganda. Gravei de terno e gravata o
lançamento do emagrecedor ZUPAVITIN, que prometia emagrecer os
obesos em uma semana.

DIRETOR ARTÍSTICO DA PRIMEIRA RÁDIO FM DE BH. MAS O


SALÁRIO,Ó..

Não havia completado um ano de microfone na rádio Cultura quando


fui convidado a organizar e colocar no ar a programação musical da
primeira emissora de FM de Belo Horizonte; RADIO D’EL REY que
pertencia a um grupo de comerciantes de pneus eacauchutados.

Aceitei sem questionar. Meu salário somava agora a impressionante


quantia de 3 salários mínimos e meio. O som da rádio DEL REY era
limpo, um deslumbramento. Entrava no ar a primeira estação de FM
de Belo Horizonte.

O problema é que ninguém sabia o que era um receptor de FM. Só


se ouvia rádio em ondas médias. Os proprietários da rádio não
queriam gastar pra comprar long plays, de modo que o acervo
musical da emissora era paupérrimo.

Fui enviado a uma loja de departamentos na rua da Bahia chamada


PEPS. A gerente da seção de discos da gigantesca loja era amiga de
um dos donos da rádio que ligou pra ela pedindo discos emprestados
pra copiarmos em fita. O surpreendente é que a gerente concordou.
Fiz uma seleção de mais de 30 long plays, levei pra rádio, compilei o
que era compilável e com essa pequena ajuda sem custo para os
proprietários, botei a rádio no ar. O som puro da rádio merecia uma
incursão no clássico.

APRENDENDO E ME ENVOLVENDO COM MÚSICA CLÁSSICA.

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A questão era: eu não conhecia, nem as músicas nem a
nomenclatura. Com a vontade a fervilhar meu cérebro, mas sem
saber aonde buscar orientação, quis Deus, ou o destino, acho que foi
o salmo de DAVI que colocou um anjo da guarda me ouvindo falar
deste desejo e dúvidas com um técnico de som do estúdio BEMOL no
bairro CAIÇARAS. Era neste estúdio que eu gravava os comerciais
para agencias de publicidade que descobriram potencial na minha
voz para gravar comerciais.

Um sujeito macérrimo, de óculos de grau com armação escura,


antiquada, bigode gigantesco que estava ali na técnica fazendo um
trabalho seu,me ouviu falando do desejo de apresentar um programa
de música séria com duração de uma hora. Completei o pensamento
dizendo que eu me sentiria um profissional realizado se eu pudesse
apresentar esse programa ao meio dia, com uma hora de duração,
com a ajuda de alguém especializado.

Esse homem magro, de óculos antigos, e bigodões era o regente do


coral do MINAS TENIS CLUBE, um dos mais importantes corais do
Brasil. ROBERTO DE CASTRO. Sem qualquer reserva, sem impor
qualquer condição nem ao menos mencionar pagamento para o que
estava para oferecer, disse que eu poderia contar com ele para
colocar no ar um programa só de músicas clássicas mas com
verbetes, com textos de apoio e comentários sobre a obra e sobre o
compositor. Agradeci mentalmente a Deus a oportunidade de ouro
que Ele colocava nas minhas mãos sem que eu tivesse que sair à
cata sabe-se lá onde. Ah, meu Deus, felicidade é isso! Eu adoraria
dar um beijo na face encovada daquele velhinho cheirando a tabaco
aos pés da pirâmide!

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No dia seguinte, ROBERTO DE CASTRO estava na minha sala, no
décimo quinto andar do edifício CODÓ na avenida Amazonas bem
perto da estação ferroviária, com uma sacola cheia de discos
clássicos. Colocou sobre minha mesa umas folhas de papel. Era o
roteiro com a relação das músicas e os comentários dele PRA EU
LER NO MICROFONE. A trilha musical que servia de back ground
pras minhas narrações era o delicioso CONCERTO DE
BRANDENBURGO NUMERO 3 DE BACH. Roberto não quis em
nenhum momento aparecer ou falar ao meu lado durante a
apresentação. Humildemente redigia todos os dias o programa pra
mim. Com toda paciência de um pai amoroso explicava e dizia como
eu deveria pronunciar nomes complicados.

Em poucos dias eu dominava com maestria toda a nomenclatura


clássica; ALLEGRO VIVACE, ALLEGRO MA NO MOLTO, PIANÍSSIMO,
ANDANTE MAESTOSO, PRESTISSIMO, LIEDS, EXCERTOS
SINFÔNICOS, CARMINA BURANA, JOHANN SEBASTIAN BACH,
PADEREWSKY, RIMSKY KORSAKOV, EDVARD GRIEG, MUSSORGSKY.

Roberto era um apaixonado por música clássica e TODAS as músicas


que ele selecionava continha uma história reveladora, empolgante,
triste, adorável, dolorosa. Eu bebia aquelas informações que ele
escrevia. Não me contentava em receber o programa pronto pra
durar uma hora, trocar um aperto de mãos e ele sair porta afora.
Não, de jeito nenhum! Eu o segurava provocando-o pra ouvir mais
histórias além daquelas que eu lia no ar. Me envolvi de tal maneira
na produção e apresentação do CLÁSSICOS D’EL REY, que o
resultado não demorou a aparecer.

A radio recebia muitas cartas de ouvintes pedindo pra tocar músicas.


Atendi a todas as solicitações. ROBERTO se sentava na sua mesa de
trabalho em casa, colocava papel na máquina, fazia uma seleção das

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músicas com duração variada, pra em seguida tirar da memória fatos
ligados à composição ou ao compositor.

Certo dia ele chegou muito excitado à emissora dizendo que soube
de fonte segura que em Petrópolis estaria vivendo em idade muito
avançada uma senhora que quando menina, servia de companhia
para CLARA SCHUMANN que a levava em caminhadas sob o sol.
(DUARTE, TEMOS QUE CONFIRMAR EM QUE CIDADE CLARA
SCHUMANNA MORREU, E COM QUAL IDADE.)

Perdi o juízo! Entrei em polvorosa. Contei o fato aos diretores da


rádio que impassíveis negaram dinheiro de ônibus pra eu ir à
Petrópolis atrás dessa possibilidade. ROBERTO DE CASTRO montou
um programa só com peças curtas de ROBERT SCHUMAN na
hipótese de eu conseguir trazer a velhinha à Belo Horizonte pra uma
entrevista no microfone da rádio D’EL REY. Meu Deus, seria bom
demais! Eu sonhava de olhos abertos. De nada valeram os apelos
que fiz aos donos da emissora. Sofri meu primeiro desencanto
profissional.

Mais desencantado ainda fiquei quando um dia o operador de áudio


veio à minha sala assustado dizendo que MARTIUS JARJOUR
CARNEIRO irmão do sócio majoritário da rádio, Marco Aurélio,
estava no telefone ordenando que tirássemos do ar a TOCATTA E
FUGA EM RÉ MENOR de BACH. O operador estava em pânico. Tomei
o telefone das mãos dele e passei a ouvir as ameaças e imprecações
do Martius que estava possesso no telefone, reclamando da música.
Mandou que parasse a TOCATTA e colocasse outra música.
Desdenhou fazendo a mim uma oferta em dinheiro pra eu tirar não
só a musica de Bach, como o programa inteiro. Ele odiava os
CLÁSSICOS D’EL REY.Bati pé firme dizendo que não tiraria a música
do ar.

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Martius, arrogante, poderoso, ameaçou me mandar embora,
dizendo-se irritado porque “ música de casamento não era pra ser
transmitida no rádio, principalmente na hora do almoço”.
Amedrontado, não querendo perder o emprego, mesmo assim
sustentei a discussão no telefone, dizendo que não tiraria a música
do ar. Ela rodaria até o fim. Martius despediu-se dizendo: “pois não,
a cabeça é sua...”

Eu lutava contra um bocado de obstáculos à frente da direção


artística da primeira emissora de FM de Belo Horizonte, mas não
podia imaginar que um dos mais sérios estava dentro da própria
emissora. Em minhas mãos havia um grande desafio, o pior deles era
a escassez material.

Mas a duras penas, e com a ajuda de ROBERTO DE CASTRO, o


horário foi ganhando prestígio e cresceu em interesse. Até que um
dia chegou um telegrama da assessoria do governo dizendo que o
governador RONDON PACHECO era ouvinte assíduo do programa e
que despachava com seus auxiliares ao som do CLÁSSICOS D’EL
REY.

O PATROCINADOR ODIAVA MÚSICA CLÁSSICA.

Tive certeza de que o programa tinha emplacado. Pouco depois do


telegrama, chegou à rádio o diretor de uma importante agência de
propaganda de Minas Gerais, que detinha as contas do governo.
Esse diretor foi lá pra discutir um possível patrocínio.

Era conhecido por sua insuportável arrogância. Fui chamado à sala


da diretoria, apresentado a ele que mal se dignou a falar comigo.
Apertou minha mão com visível má vontade, com a “mão mole”
como se fizesse um grande favor.

Minha antipatia pelo imbecil saltava dos meus olhos fixos nele.
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E então o ogro proferiu do alto de sua importância: “não gosto de
música clássica, acho um saco, nunca ouvi o programa, mas sei que
o governador gosta de ouvir. Antes de falar sobre patrocínio quero
avisar que vou fazer uma lista de itens que quero implantar e
modificar no programa....”

Me levantei bruscamente da cadeira dizendo que eu não mudaria um


vírgula do programa. E saí da reunião. Eu tinha acabado de colocar
minha cabeça na boca da caçapa.Acaba ali a única chance do
programa permanecer no ar. A vida dele ficou curtíssima.

Que experiência riquíssima foi o meu envolvimento com o mundo da


música clássica. Eu ouvia, apresentava, narrava tudo sobre esse
mundo extraordinário. Me orgulhava da rapidez com que dominei
esse segmento do rádio.

Ter sido ridicularizado por causa de um nome pronunciado de


maneira errada teve o efeito de uma lapidação em minha vida e no
meu espírito. Entendi como uma libertação mesmo. Meu orgulho
andava bem lustrado. Fui apresentado aos pais de ROBERTO DE
CASTRO, OLGA ZECCHINA DE CASTRO E PEDRO DE CASTRO.

Ela, bem velhinha, ágil como um coelho, simpática risonha, ainda


com forte sotaque italiano, foi durante anos a fio a SPALLA da
orquestra de ARTURO TOSCANINI, na Europa e o marido dela,
PEDRO DE CASTRO era o primeiro violoncelo da orquestra sinfônica
mineira. Roberto que demonstrava um carinho e um respeito enorme
por mim, numa demonstração de afeto, de amizade, de intimidade,
me convidou pra almoçar num fim de semana com a família; a
mulher, o filho único, e os pais músicos. Me senti abençoado pelo
convite. Seria um privilégio me vir cercado de tanta gente séria e
musical.

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Durante todo o almoço, o filho do Roberto ouvia nossa conversa
animada e não dizia um “ái!” Já achei estranho um menino entrando
na adolescência ser tão comportado. Servido o cafezinho, o menino
não quis mais ficar na mesa, pedindo licença pra sair. Quando ele
estava indo pro quintal, Roberto gritou com ele, com uma voz que eu
não conhecia, impregnada de autoridade, de irritabilidade, desferindo
uma ordem: JÁ PRO SEU QUARTO, ESTUDAR VIOLINO!!!”

O garoto, chorando, ainda tentou argumentar que queria brincar um


pouco no quintal. Não conseguiu convencer o pai. Submetido à
imposição do Roberto, foi chorando se fechar em seu quarto.

Os avós do garoto, Olga Zecchina e Pedro de Castro, na mesa, vendo


meu embaraço pela situação que presenciei, explicaram a atitude do
Roberto, me explicando que o neto não poderia negligenciar um
estudo tão sério como o violino, afinal ele estava sendo preparado
pra ser um concertista. Cheguei à casa do Roberto com um espírito e
saí com outro totalmente diferente. Desencanto, explica melhor o
que senti ao sair daquele almoço.Me fez mal, testemunhar o rigor de
uma disciplina prussiana em pleno domingo, pra cima de um garoto
de que não tinha mais do que 12 anos.

CLÁSSICOS D’EL REY era irradiado de meia dia e meia às uma e


meia da tarde, diáriamente. A rádio entrava no ar às 7 horas com
uma programação classe AAA, e saia às 22 horas. Isso me
enlouquecia. Havia um público possuidor de rádios fms nos seus
carros que ficavam órfãos às 22 horas.

Os donos, ex-comerciantes que viviam do ramo de recauchutagem


de pneus, eram de uma obtusidade que me levava ao desespero.

Numa discussão com eles sobre a necessidade de anunciar ao


público como ouvir e sintonizar o dial, tentei convencê-los de que o

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meio mais eficiente e barato era o OUT DOOR, esses cartazes de
propaganda que infestam nossas ruas, muros e topos dos edifícios.

O borracheiro-mor discordava de mim virulentamente dizendo que


“só os desocupados é que se interessavam em olhar as mensagens
dos “ALT DOGS”. Eu adoçava a boca dos ouvintes da rádio e jogava
pérolas aos proprietários borracheiros. O sócio majoritário, era bem
mais jovem, da área bancária mas vivia e trabalhava no Rio de
Janeiro. Eu não tinha como contar como o apoio dele. Meu orgulho
profissional me embebedava, mas minha carteira estava sempre
minguada.

No final do expediente, eu saía caminhando a pé em direção ao


ponto de ônibus atrás da Igreja de São José que me levava ao bairro
do CRUZEIRO onde eu morava.

Muito combativo ao defender meus valores ideias e conceitos, eu


sabia que minha permanência na rádio não seria longeva. Mas eu
pensava no meu Salmo 140, beijava o pedaço de papel dobradinho,
e pensava: qual é o futuro que tenho ao lado desses trogloditas,
meu Deus? Jamais vão me deixar desenvolver qualquer
trabalho,jamais vão investir na produção de programas, e na
consolidação da marca D’EL REY FM. Eu tinha que sair dali, não
podia ficar ganhando pouco mais de 2 salários mínimos e meio.

ENTRANDO NO MERCADO DE GRAVAÇÕES COMERCIAIS. RÁPIDO


DEMAIS.

Apesar dos meus ganhos com as locuções comerciais que


aumentavam gradativamente, passei a viver uma realidade que se
escancarou imediatamente. Para receber o cachet era um sem
número de telefonemas, comparecimentos pesssoais aos
departamentos financeiros das agências de propaganda. Meu destino

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sinalizava que eu deveria sair de Belo Horizonte se quisesse viver da
profissão e principalmente se quisesse ser respeitado. O aviso veio
no meu patético encontro com o repórter da tv ITACOLOMI, então
líder de audiência, RONAN RAMOS.

Baixotinho, metido, endeusado pela mulherada ganhou fama com o


apelido de “o repórter da camisa amarela” o comentarista
queridinho das duas maiores torcidas mineiras, Cruzeiro e Atlético.
Ronan era sócio de uma agência de publicidade que tinha a conta da
CARBEL VEÍCULOS, revendedor WOLKSVAGEN. Gravei um spot pra
rádio e tv por um cachet até razoável para o padrão local que era
muito mais baixo; chegava quase a meio salário mínimo.

Esperei os 30 dias regulamentares pra receber, resolvi esperar outros


30, mesmo precisando muito daquele dinheiro, e parti pra agência,
achando que ia receber.Era minha intenção comprar com o dinheiro
o berço do meu primeiro filho que nasceria em janeiro de 73.
Estavamos na metade do segundo semestre de 72. Saí do elevador,
e dei de cara com uma pessoa sentada na cadeira da recepcionista
lendo o ESTADO DE MINAS, ainda hoje, um jornal imbatível em
números na preferência do mineiro.Percebi que quem lia o jornal era
um homem de muito pequena estatura pois o jornal o encobria, mas
pude ver que o braço que segurava alto o caderno do jornal tinha
paletó e camisa com abotoadura.

Pensando que a recepcionista tinha ido pra dentro das instalações da


agência, preferí não incomodar o leitor do jornal. Deveria ser um
visitante como eu, pensei.Permaneci sentado, quieto, aguardando a
recepcionista.

Após um longo tempo de silêncio, só quebrado de vez em quando


pela campainha do elevador que parava naquele andar, a pessoa
baixou o jornal e...surpresa! RONAN RAMOS, O REPÓRTER DA
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CAMISA AMARELA!. Fez um meneio de cabeça em minha direção
indicando “o que é?” Respondi que estava ali pra cobrar o cachet da
CARBEL que já estava vencido havia 60 dias. RONAN RAMOS, sem
proferir palavra, fez um meneio negativo com a cabeça e voltou a
elevar o jornal, saindo do meu campo de visão.

Continuei sentado por um tempo, olhando o jornal que nos separava,


me levantei, com um turbilhão de pensamentos me atormentando,
me encaminhei para a saída. Do resto eu não me lembro, se me
pagou, se liguei pra protestar, reclamar, não me lembro de nada. Do
que me lembro é: “duvido que no Rio de Janeiro ou São Paulo um
profissional seja tratado desta maneira escrôta!”

Eu já confiava em meu talento, na minha capacidade de acatar


direção, na minha humildade, na minha vontade insaciável de
aprender. Qualquer observação que faziam à minha locução eu
recebia com grande orgulho, e levava a recomendação a sério.
Estava aprendendo com a prática.

Mas essas observações eram muito escassas comparadas ao volume


formidável de informações sobre o mundo da música clássica que eu
recebia do meu mentor maestro Roberto de Castro. Um ou outro
publicitário, muito esporádicamente me dizia que seria melhor fazer
assim assado. Eram ensinamentos voláteis, subjetivos, baseados em
“eu gosto assim prefiro assim, desse jeito é melhor...” “vamos tentar
fazer assim?”

Portanto, prudentemente, eu aguentava uma grosseria como essa do


repórter da camisa amarela, quando o que eu queria era mandá-lo
pra aquele lugar. Não era hora ainda.Eu não me achava pronto.
Sabia que faltava muito ainda pra me sentir seguro. Não me sentia
um locutor pertencente ao mercado de gravações publicitárias, pois
os trabalhos eram esporádicos, variados, não havia constância da
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minha voz na mídia eletrônica. A presença da minha voz no rádio e
na tv ganhou expressão ao ser convidado pra gravar as campanhas
publicitárias da EMBRAVA, Empresa Brasileira de Varejo, loja de
departamentos. Esse trabalho acontecia todas as semanas.

Finalmente, minha situação financeira teria um excelente up grade.


Uma vez por semana eu estava na Bemol gravando uma infinidade
de produtos “em suaves prestações mensais” liquidificador,
batedeira, torradeira, forno e fogão, móveis, vestuário, calçados. Ao
final de um mês gravando, fui à agencia STARLIGHT PROPAGANDA
que ficava bem próxima do MINAS TÊNIS CLUBE no bairro Santo
Antonio. Fui certo de que receberia o pagamento cuja liberação
dependia de um indivíduo que era conhecido pelo apelido de
“SARGENTO”. Logo saberia a razão. Ele era o contato da agência que
atendia e planejava as campanhas da Embrava.

Ele não estava, informou a voz desanimada da recepcionista. Insisti


com ela que precisava receber, e que precisava da autorização dele.
Ela resistiu, afirmando que ele não estava, não sabia a que horas ele
chegaria, não sabia se ele trabalharia no dia seguinte, não podia
afirmar com segurança a que horas ele chegava à Starlight. Percebi
que seria inútil insistir, não falaria assim tão fácil com o tal do
Sargento. O dinheiro que eu tinha pra receber era mais do que
suficiente pra comprar o berço, a roupa de cama do bebê.

Passei a ligar pela manhã, à tarde, no inicio da noite, sem sucesso.


Já estava gravando os textos do segundo mês e ainda não tinha
conseguido falar com o jumento, digo, sargento. Resolvi dar incertas,
comparecendo pessoalmente à agência. Em algum momento eu
falaria com ele. Até que consegui.

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O quadrúpede, digo, sargento estava sentado em sua mesa de
trabalho quando me aproximei, e pedi a ele que liberasse meu
pagamento. “Vou pensar nisso com algum carinho. Hoje é sexta
feira, foi um milagre você me achar aqui. Mas vamos fazer o
seguinte; eu vou estar aqui neste lugar na segunda feira, ou melhor;
não sei se venho. Pra te falar a verdade, não estou com a menor
vontade de estar aqui na segunda feira, na terça, na quarta...”

Não esperei completar com quinta..sexta..virei as costas pra ele e fui


embora. Não seria nada bom se eu desse vazão ao meu instinto no
momento em que começou a debochar. Parecia que um incidente
assim tinha o único propósito de me colocar na estrada, pra sair de
Belo Horizonte. Mas, tem sempre o “mas” que chega trazido pelo
meu velhinho egípcio, ou o Salmo 140,meus amuletos.

A MESBLA, a melhor loja de departamentos de BH na época havia


lançado uma campanha de varejo que era um sucesso absoluto de
público de venda, de simpatia. A venda dos produtos era feita por
um locutor chamado JURANDIR, afro-descendente, carioca, radicado
em Belo Horizonte, locutor contratado da rádio ITATIAIA. Os filmes
de varejo da MESBLA eram deliciosos, agradáveis. A assinatura de
cada comercial no fim dos 25 segundos, tinha a risada da cantora
REGININHA na música TELETEMA, sucesso no rádio por causa da
novela CAVALO DE AÇO. Esse fonograma final tinha a duração de 10
segundos. Abria a risadinha ao final das ofertas pro Jurandir
finalizar:”GOSTOU HEIN? É BOM VIVER NUMA CIDADE QUE TEM
UMA LOJA COMO A MESBLA!!” Nenhuma campanha publicitária de
varejo foi mais feliz, mais duradoura,mais eficiente do que essa.

Jurandir mostrava uma simpatia, uma interpretação tão simpática,


tão envolvente que sem dúvida alguma ficaria anos no ar, se não
fosse... o próprio Jurandir. Ele era amado pelos colegas da Itatiaia,
pelos funcionários da produtora dos comerciais da MESBLA, pelos
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funcionários do marketing da Mesbla, pela equipe do estúdio onde
ele gravava. O problema – insolúvel era a incostância do Jura a
horários e comparecimentos pra gravar, o que sempre deixava a
Mesbla não mão, tendo que repetir produtos na tv e no rádio porque
ele desaparecia sem deixar vestígios. Lá pelo meio da semana ele
aparecia. Carioca, ele pegava um ônibus em BH na sexta feira, e
botava pé no mundo. Esquecia da vida. As reclamações contra a falta
de profissionalismo dele foram se avolumando, até que um dia a
panela de pressão explodiu.

A agência house, passou a efetuar testes para selecionar uma voz


nova pra dar continuar com a campanha. Queriam um locutor que
interpretasse aquela frase final, que pra ela era um ponto de venda
extraordinário. A agência queria manter aquela inflexão que já
estava consagrada depois dos risos de REGININHA na música
TELETEMA. “GOSTOU HEIN? É BOM VIVER NUMA CIDADE COMO A
MESBLA!!! Não me lembro quem me chamou, o fato que é que
recebi instruções pra ir à Bemol pra fazer um teste. Quando me
deram o texto pra ler, fiquei encantado pois eu era um apaixonado
por aquele tipo de locução de varejo comentada, sem grito. Quando
o técnico me fez o sinal de gravar, abri um sorriso enorme, me
lembrando dos risinhos da REGININHA e fiz a assinatura. Fui
escolhido no ato pra ser a nova voz das campanhas da MESBLA.

Meu orgulho profissional já estava na estratosfera.Assim que


comecei a gravar as ofertas, ouvi da produção que o maior problema
que todos os envolvidos na campanha enfrentavam, era a dificuldade
que JURANDIR mostrava em pronunciar MESBLA. Eram muitas
tentativas até que ele conseguisse dizer M E S B L A. Mesmo assim,
havia no departamento de marketing da empresa, quem achasse que
Jurandir jamais conseguia pronunciar direito. Afirmava-se que o que
ele dizia era MESBA! Entretanto não era um sentimento pleno o meu,
de felcidade de dar voz a uma lojua de departamentos tão
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importante. Afinal, eu e Jura fomos colegas de empresa, ele na
ITATIAIA, eu na CULTURA.

Mesmo com essa avalanche de acontecimentos positivos,


especialmente no mercado de gravações comerciais, eu buscava uma
teoria sobre como produzir essa ou aquela voz pra utilizar num texto
comercial, especialmente se esse texto pedir uma interpretação. Eu
simplesmente não tinha referência sobre o meu trabalho, não saberia
discorrer como é ser um bom locutor e como não ser. Ao ouvir os
spots e locuções de tv dos meus colegas, minha sensibilidade
indicava que “fulano me convence mais do que beltrano. Fulano me
emocionou nesse texto. Sicrano falou de uma maneira que me
pareceu não acreditar no que falava ...”

Eu tinha certeza de que não bastava ter só a voz bonita. Os


profissionais veteranos do radio mineiro eram auto-didatas. Não
conheci um sequer que tivesse passado por algum curso. Nunca
houve uma escola para essa profissão em Belo Horizonte. Luiz
Edmundo,jornalista e locutor da rádio TIRADENTES pra mim, era o
expoente, o meu modelo de locução comercial. Dos locutores do Rio
de Janeiro, minha admiração era toda direcionada para JORGE
MAGESTADE DA SILVA, WILLIAM MENDONÇA, HERON DOMINGUES.
Em São Paulo, eu nutria verdadeira paixão pela voz de HUMBERTO
MARÇAL, sem sombra de dúvida, um dos locutores mais longevos e
talentosos deste país. Eu colocava Luiz Edmundo no patamar do
Marçal. Eu me espelhava nas locuções do Marçal.

Meu envolvimento, meu interesse constante nos trabalhos dos


colegas, nas rádios, nas TVs, era um caminho pra me guiar, absorver
o que é bom desse aqui, esquecer isso aqui daquele que é bem ruim,
aquele lá faz uma coisa que é instigante. Acho até que me
desenvolvi bem depressa, mas se eu fosse convidado – nunca fui –
a dar uma palestra naquele inicio de carreira promissor em alguma
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faculdade sobre a minha comunicação por exemplo, que era suave,
linear, um narrador dos verbetes clássicos em rádio FM, eu não teria
o que explicar, não poderia me apoiar em nenhuma tese, em didática
nenhuma. Não tinha palavras pra descrever a minha locução.

Quando um produtor de comerciais me convidava pra gravar um


texto eu perguntava como era a comunicação. “Varejo, gritado.!” Eu
passo, dizia. E perdia mais um dinheirinho que compraria no
máximo uma cesta muito, muito básica de alimentos. Uma cesta
básica pobre. É assim ainda hoje. À noite na tv, eu prestava atenção
nos comerciais, um festival de gritos de fazer inveja Á CASA E
VÍDEO. Eram piores do que os comerciais de venda de automóveis
nos finais de semana no Rio de Janeiro.

Aquele tipo de trabalho definitivamente, concretamente não me


atraía. Eu tinha crença profunda de que algum publicitário, redator,
algum cliente, tivesse a ideia de fazer um texto em que a minha voz
comunicasse a venda do serviço ou produto, mas falando com uma
voz natural, conversando com cliente, ali bem próximo no seu rádio.
Fazer comerciais com minha voz normal, era um ponto de honra.
Tive certeza de que esse momento chegou quando passei a gravar
toda a campanha publicitária da MESBLA.

MEU PRIMEIRO PROFESSOR DE LOCUÇÃO; AGNELO PACHECO

Meus pensamentos tinham força, foi esse o sentimento que invadiu


meu espírito quando recebi um convite pra ir ao estúdio gravar um
comercial sob a direção de AGNELO PACHECO, na época a mais
sofisticada, premiada e cobiçada agencia de propaganda de Minas.
Trabalhar sob a direção do consagrado Agnelo era ser distinguido,
era ser merecedor de louros. Chegando ao estúdio, cheio de
conficança pois “era a voz da MESBLA” fui recebido até com alguma
indiferença por AGNELO que não me conhecia. Belo Horizonte
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conheceria através da minha voz o lançamento do aparelho de
emagrecer que tinha o nome de BEL LINHA. Esse aparelho era
vendido exclusivamente pela MESBLA, uma das mais tradicionais
lojas de departamentos brasileiras, concorrente direta da SEARS e
ROEBUCK.

Não sei explicar, como tantas outras coisas e sensações, por que
aquele encontro com um sujeito até meio carrancudo me deu uma
sensação de esperança e mudança em minha vida. O que se seguiu
depois, desmentiria o que acabei de escrever.

Agnelo me mandou colocar os fones nos ouvidos, me posicionar


diante do microfone, e pelo sistema de comunicação da mesa de
som, sob o comando do operador de áudio HAROLDO BOUÇADAS
MAURO, sobrinho do cineasta JOSÉ MAURO, me passou as
instruções: “Marcio, você vai dar uma noticia em primeiríssima mão.
COM UM SORRISO NA VOZ, você vai comunicar ao povo mineiro que
as torturas pra se perder peso acabaram. As mulheres agora ficarão
em forma graças aos efeitos do BEL LINHA. Seja bem risonho,bem
simpático ao ler o texto, ok? Por favor, dê uma lida pra mim...”

Enchi o pulmão, e... “A MESBLA ORGULHOSAMENTE APRESENTA:


BEEEEEELLLL LINHAAAAAAAAA!!!! Disse a frase entremeando risos,
gargalhadinhas curtas.

Um estalo nos fones me trouxe à realidade. Agnelo estava com o


terror estampado nos olhos. “Que maluquice é essa? Você está rindo
por que?”

Meu sorriso foi morrendo, respondi bastante envergonhando que


estava seguindo a orientação dele, que pediu um sorriso na voz...

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Ele me fitou por longos minutos, os mais terríveis que já enfrentei
durante uma sessão de gravação, e pra minha surpresa, pra minha
emoção, gratidão e sei lá mais o que, Agnelo,percebendo que eu era
totalmente inexperiente, fez uma longa dissertação sobre o que era o
sorriso na voz.

Que aula, meu Deus! Era disso que eu precisava. Nomenclatura,


didática. Voz sorridente, brifada por um talento como do AGNELO era
um serviço valioso prestado ao mercado de locuções comerciais.
Estava eu ali recebendo uma aula maravilhosa de um puta ator,
advogado, um dos mais talentosos publicitários do BRASIL.

Depois de várias vezes gravando, apurando cada vez mais o “ritmo”,


a voz, a “projeção, as palavras de valor”, os “pontos de venda”, “ a
simpatia, o sorriso na voz”, ficou pronto o comercial de BEL LINHA.

30 ANOS ANTES COM O PAI DO AGNELO NA RÁDIO GUARANY

Comentando feliz da vida com meu pai o ocorrido, ouvi uma história
fantástica, surpreendente; meu pai aos 24 anos, me levou a um
programa de auditório na rádio Guarani que ficava na rua São Paulo,
bem próximo da Avenida Afonso Pena. Eu tinha dois anos. Distraido
na plateia,prestando atenção às atrações apresentadas pelo
animador, não percebeu que eu me soltei do colo dele e fui
caminhando pelo corredor central da rádio. Chegando ao palco, vi as
escadas laterais de acesso, e subi.

O apresentador parou de ler o seu texto no microfone de pedestal,


me olhou,tirou o microfone do pedestal e comentou com a plateia
“senhoras e senhores, acaba de chegar a esse microfone o mais
novo locutor desta emissora!” Gargalhadas da plateia. O
apresentador se ajoelhou, ajustou o pedestal telescópico que ficou
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do meu tamanho e perguntou o que eu queria falar. Não sei o que
fiz. Meu pai não foi preciso sobre minha atuação. Disse apenas que o
público se divertiu a valer com os comentários e brincadeiras que ele
fazia comigo. Nome do apresentador: AGNALDO PACHECO, pai dos
irmãos ORLANDO E AGNELO PACHECO. Pela segunda vez, um
Pacheco me oferecia um microfone com um intervalo de 24 anos.
Um nos meus dois anos. Outro, com o filho, nos meus 26. Alguns
anos depois, bem poucos, voltei a ficar lado a lado com AGNELO
PACHECO, agora no Rio de Janeiro, mais precisamente na
GLOBOTEC no bairro do HORTO, a produtora de comerciais da TV
GLOBO.

Eu tinha acabado de gravar um comercial de um banco, sob a


direção de CARLOS MANGA, quando Agnelo o dono da conta
publicitária entrou na técnica semi escura. Os produtores reduzem as
luzes quando vão mostrar o filme para o cliente aprovar.

Acabada a projeção, Agnelo ao estilo americano, começou a bater


palmas, primeiro lentamente, acelerando um pouquinho só, dando
parabenizando Manga e a equipe pela excelência do trabalho todo.

Não resisti. Me aproximei dele, que não me reconheceu, claro. Nem


de longe se lembrou do nosso único contato em Belo Horizonte no
estúdio BEMOL gravando o lançamento de BEL LINHA. Narrei o meu
inicio no microfone comandado pelo pai dele. Ficou surpreso e
encantado, dizendo que estava escrevendo um livro e adoraria
contar esse fato sobre seu pai. Não sei se escreveu.

Voltando a Belo Horizonte; gravar pra MESBLA emprestava prestigio


ao locutor. Logo os convites pra gravar aumentaram
consideravelmente. Entretanto eu tinha certeza de que precisava

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melhorar. Eu me ouvia em casa, e sentia que faltava alguma coisa,
mas não conseguia explicar. Não desistia de tentar achar um curso
sobre impostação de voz. Não havia. Havia os maravilhosos atores
do GRANDE TEATRO LOURDES que enenado toda quinta pela TV
ITACOLOMI que eram ótimos profissionais, mas certamente não
teriam tempo, ou interesse em ministrar aulas pra mim. Aulas que
seriam específicas. Sonhei com a possibilidade de ter um curso
individual com aqueles atores que me fascinavam: THALES PENA,
ROGÉRIO FALABELA, ANTONIO NADDEO, cuja articulação das
palavras era um verdadeiro encanto, RICARDO LUIZ, famoso durante
anos pela gargalhada fantástica que produzia com sua cara
maquiada de diabo numa garrafa no pavoroso seriado A GARRAFA
DO DIABO, WANDA MARLENE, ARY FONTENELLE, e tantos outros
que já não me recordo os nomes.

O clima de animosidade entre mim e os borracheiros donos da DEL


REY FM piorava visivelmente porque eu recebia os chamados pra
gravar, e atendia, indo aos estúdios, o que significava ausência do
trabalho.

Saía correndo pro estúdio no bairro do CAIÇARAS, distante 20


quilômetros do centro da cidade onde ficava a rádio. Com isso eu
passava muito tempo fora. A angústia que eu sentia ao ouvir minha
voz no rádio e na tv era uma tortura. EU PRECISAVA MELHORAR. Já
estavam me pegando pra vernder produtos, mas eu eu sabia que
não estava completo.O que eu sentia não era a necessidade de uma
busca, era obsessão mesmo.

À noite, em casa, meu lazer era sintonizar a rádio JORNAL DO


BRASIL. O sistema de ondas médias tinha um fenômeno técnico
muito enjoado; o som não era constante. Abaixava, aumentava,
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abaixava aumentava, com isso eu perdia os textos e comerciais que
eram irradiados por Jorge Majestade, William Mendonça, Maravilha
Rodrigues, Othon Gomes, Eliakim Araujo. Que paixão eu sentia pela
rádio, a programação musical, o programa clássico produzido por
EDINO KRIEGER e apresentado por Orlando de Souza. Esses
locutores fabulosos enchiam minha cabeça de sonhos.

Eu queria falar como eles, eu queria ter aquela sonoridade. Como foi
que eles desenvolveram isso? Eu me perguntava. Um dia, me enchi
de coragem, consegui anotar um telefone dito por alguma razão por
um desses locutores e falei com o operador de áudio ELMO ROCHA.
Fui muito bem atendido e perguntei se ele abriria as portas pra eu
fazer um teste na rádio. Simpático, Elmo me incentivou a vir.

MINHA DEMISSÃO DA RÁDIO DEY REY ERA INEVITÁVEL.

Descontroladamente feliz, perturbado por essa chance, comprei


passagem num ônibus da Cometa e vim à avenida Rio Branco -
onde ficava a rádio - fazer o teste.

Recebi das mãos de MARAVILHA RODRIGUES, minha amada amiga


querida e colega anos mais tarde, uma pasta com os textos pra
gravar. Elmo gravou, rotulou a caixa com a fita e disse que mostraria
para o diretor FERNANDO VEIGA. Voltei a BH felicíssimo.Que chance!
Conseguir cruzar aquelas portas magníficas pra fazer um teste foi um
prêmio à minha perseverança.

Ousar sonhar em trabalhar lado a lado com aqueles ases da voz


aumentou minha auto confiança. Eu pensava no meu salmo 140,
mas jamais me afastei da crença de que eu tinha muito o que fazer,
o que tentar, e trabalhar.

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Minha situação na Del Rey ficava dia a dia mais delicada. Se pelo
menos alguma das principais emissoras mineiras tivesse um mínimo
de interesse em mim, seria uma ótima chance de poder ter acesso a
um salário mais digno.

Uma noite, diante da tv, um comercial absurdamente ousado me


deixou em estado de choque. Uma voz de homossexual muito,
exageradamente afeminada perguntava no inicio do comercial em
off: “LIQUIDANDO ELEGÂAAANCIA???” Em seguida no corpo do
texto, a voz lindíssima, aveludada, grave , de LUIZ EDMUNDO,
comunicando que a mais tradicional casa de modas e tecidos de Belo
Horizonte estava pra fechar suas portas e portanto precisava vender
todo o estoque de mercadorias. O comercial provocou um rebuliço
na capital mineira, a sociedade ficou em estado de pânico e
admiração. O comercial foi irradiado num sábado. Na segunda feira,
no final da tarde, a loja estava vazia. FOI UM SUCESSO
ESTRONDOSO.

Fiquei mais tiete ainda de Luiz Edmundo.Que golaço esse comercial,


criado, produzido e dirigido por ele. O “costureiro”, era JUVENIL –
que fez a voz afetada imitando o modo de um homossexual falar - o
técnico de som da rádio TIRADENTES, onde Luiz Edmundo
trabalhava como redator de noticias e locutor noticiarista. Liguei pra
rádio Tiradentes, Luiz me atendeu, dei a ele parabéns efusivos pelo
belíssimo comercial e pedi uma chance de trabalhar com locutor da
rádio, pois me sentia infeliz na DEL REY.

Simpático, digno, me assegurou que eu seria chamado pra um teste


QUANDO e SE houvesse uma vaga. Edmundo era a materialização
do que eu imaginava para um locutor sério vendendo produtos
COMENTANDO o texto e não gritando. Portanto eu não estava
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sonhando em vão, eu podia acreditar que era possível gravar
comerciais com a voz normal. LUIZ EDMUNDO falava nos comerciais
exatamente como eu adoraria falar.

ENFIM, VOU TRABALHAR NA TV GLOBO! O SONHO DE TODO


LOCUTOR.

Os dias passavam rápidos. Minha angústia não cessava. E um dia o


telefone toca na recepção, eu atendo. Era o chefe do jornalismo da
tv GLOBO BH me chamando pra fazer um teste como locutor de
telejornal.

Fui voando, de novo com minha fé sendo fustigada, apertando nas


mãos o salmo 140. “Cubra minha cabeça no dia da batalha,
Senhor...” Teste feito, me despedi não sem antes tentar saber das
minhas chances. Minha ansiedade era visível. Mas Bira, o impaciente
Bira mal pronunciou “qualquer coisa a gente te liga!” Ele próprio
ligou logo logo.Meu coração disparou. Fui chamado de novo à
emissora que ficava na rua SÃO PAULO (CONFIRMAR). Bira, o chefe
do jornalismo, afoito, falando depressa, me disse que meu teste
havia sido enviado ao Rio de Janeiro e que eu tinha sido escolhido. A
noticia que eu mais queria ouvir veio: “você tem que partir
imediatamente pro Rio de Janeiro pra começar os treinamentos pra
entrar no ar já.!”

Nessas minhas idas à Globo e mais as saídas pra gravar comerciais,


irritou os borracheiros, e eles me mandaram embora. Não liguei.
Melhor, puxa, que alivio, não ter que conviver com eles mais.
Cheguei em casa, esbaforido e comentei com minha mulher a
novidade.

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Eu tinha uma semana pra me desfazer da casa alugada e partir com
ela e o meu filho de 6 ou 7 meses pro Rio de Janeiro. Não sentimos
medo, apreensão, nada, só queríamos sair de Belo Horizonte.

Obrigado, salmo 140! Despedido num dia e convidado a trabalhar na


poderosa logo depois. Só pode ser Deus brincando de pegadinha
comigo. Uma semana depois estávamos na casa da minha sogra,
mãe da minha mulher, na rua Lourenço Ribeiro em BENFICA.

PERDI MEU AMIGO ROBERTO DE CASTRO.

Mas meu coração ficou em frangalhos por não continuar a


apresentar o CLÁSSICOS DEL REY. Primeiro por ter sido demitido.
Segundo porque o pai do programa, o meu amado amigo ROBERTO
DE CASTRO havia falecido de um descolamento de retina. Ninguém
no mundo morre por descolamento de retina. Roberto morreu. Me
senti terrívelmente desamparado. Sua viúva foi à rádio devolver
alguma coisa que era da rádio e me contou com dificuldade que o
coral do MINAS TÊNIS CLUBE iria se apresentar num teatro em
CURITIBA numa solenidade oficial.

Roberto no hospital não obteve permissão pra viajar com o coral


para os ensaios. Ele tinha a esperança de ser liberado pelo menos no
dia da apresentação pra reger o coral, mesmo debilitado. O estado
dele piorou no dia da estreia do espetáculo.

À noite, em Curitiba, poucas horas antes da abertura das cortinas,


veio a noticia do seu falecimento. Os coristas entraram em
desespero, o primeiro impulso foi cancelar a apresentação, o que
seria perfeitamente aceito pelo público e pelo governo paranaense. A
mulher do ROBERTO, que fazia o papel de assistente dele, conseguiu
serenar o nervosismo, implorou que se apresentassem, e à noite,
quando as cortinas se abriram, o coral de frente pro público, tinha no

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local onde o regente fica, um halo de luz fixa o tempo todo no chão
vazio. O lugar que era do ROBERTO DE CASTRO.

Demitido, meu primeiro filho com 7 meses, sem CLÁSSICOS DEL


REY, sem ROBERTO DE CASTRO, sem perspectiva, contando apenas
com o cachet rídiculo dos comerciais pra tv e rádio. A oração, o
salmo de DAVI, meu consolo, meu conforto saia de novo da carteira.
Era um lampejo de fé, de crença que nada de mal me aconteceria.
Bastava crer. Era o que eu fazia. Eu acreditava, e esperava. E então,
pela primeira vez nesses três ou quatro anos de vivência como
locutor, meu coração disparou. E conheci o medo. Medo do
desconhecido, medo do que me esperava.

Com um único terno, um único par de sapatos, uma camisa social,


uma única gravata, me apresentei. Fui recebido com frieza por um
produtor de nome WLADIMIR. Levado ao estúdio onde CID
MOREIRA e SERGIO CHAPELLIN, e HERON DOMINGUES
apresentavam os jornais, me sentei á frente da câmera, e ao sinal de
uma voz, li o texto que estava sobre a mesa. Apenas uma lauda.
Wladimir entrou no estúdio dizendo que ARMANDO NOGUEIRA e
ALICE MARIA viram a minha performance, gostaram do que ouviram,
mas eu deveria passar por um intenso treinamento de imagem,
cabelos, postura,etc. Senti a confiança recobrada. Pois não,
começamos quando?, perguntei ao Wladimir. Amanhã, aqui no
mesmo horário, terno e gravata, ok?

UM SONHO SE DESFAZENDO POUCO A POUCO

E assim fiz. Cheguei a emissora bem antes do jornal principal, e


aguardei o término pra treinar. Não pude. Havia uma matéria em
evolução e estavam todos ocupados, diretores de tv, câmeras,

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iluminadores. Voltei no dia seguinte. A mesma coisa. E no outro, e
no outro. Sempre com o mesmo terno, a mesa camisa que eu lavava
durante o dia, trocava a cueca e as meias, porém o sapato, o terno e
a gravata eram os mesmos. Com o passar dos dias fui encaminhado
ao jornalisa LUIZ LOBO.

Agora eu deveria me reportar a ele que era um dos redatores do


GLOBO REPÓRTER. Todos os dias chegava a sala dele, me sentava
em silêncio esperando a ordem de entrar em estúdio com um texto
produzido por ele pra fazer o treinamento. Durante o tempo em que
ficava na sala, meu silêncio era absoluto, eu não queria atrapalha-lo,
que batia interminávelmente nas teclas da máquina.

“Luiz Edgar de Andrade teve que viajar pro Japão fazer uma matéria,
estou sozinho, não vou poder te atender hoje...”

“Senta aí, vai lendo esses textos, mas não vou poder te treinar
porque tenho que acabar de redigir o texto do programa de fulano,
já que o redator dele, teve que cobrir fulano não sei onde...” Meu
silêncio e resignação.

“Ih, hoje não vai dar mesmo, porque com a tragédia do JOELMA, a
prioridade do jornalismo é toda por incêndio, mas não deixe de vir,
fique sentado aí lendo os textos, pelo menos vai lendo os textos...”

Eu não pronunciava palavra.Meu constrangimento era horrível, a


vontade era de não voltar mais àquela sala. Eu vivia a angustiante
espera do desconhecido, em silêncio. Na sala da redação pessoas
apressadas, barulhentas, quietas, falantes, boys apressados,
entravam e saiam. Cada vez que a porta se abria, meu desejo era
me esconder. Aquelas pessoas deviam se perguntar: - “ o que é que
esse sujeito de terno e gravata faz nesse canto da sala, sentado,
quieto, sem dizer palavra?” No dia seguinte, estômago queimando,

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coração disparado, cabeça latejando, lá estava eu sentado na
mesma cadeira, em silêncio.

O dinheiro que eu trouxe de Belo Horizonte, acabando. O pânico


começou a me atormentar. Me faltava coragem pra cobrar: “essa
droga de vir até aqui pra ficar sentado durante duas horas todas as
noites vai durar até quando?”. Da auto piedade, fui pouco a pouco
migrando pra revolta, pra vergonha, pro fracasso. Da minha vinda
até a minha reação foram mais de 40 dias. Sem qualquer esperança,
sem conversar com ninguém. Sem travar contato com ninguém.

Quase perto de desenlace desta situação absurda, eu estava no


terraço da emissora, debruçado na mureta, olhando o movimento da
rua embaixo quando percebi uma aproximação silenciosa. Não olhei,
mas a pessoa que se aproximou estava bem perto de mim. Ficou
também olhando pra baixo, para o movimento na rua VON MARTIUS.

Súbito, nossos olhares se encontraram. Ela perguntou o que eu fazia


naquele momento. Respondi, com voz desanimada. Ela estava na
mesma situação que eu. Haviam prometido a ela algum papel em
novela mas quando chegou à emissora, não conseguiu a confirmação
do convite. Estava revoltada. Me limitei a ouvir seus desabafos
carregados de ressentimento. “Isso aqui é uma comédia, meu
querido, é uma farsa, um ambiente em que é cada um por sí,
ninguém ajuda ninguém, ninguém sabe de nada. Eu caminho por
esses corredores com a cabeça erguida, não quero que pensem que
estou dependendo de um empreguinho qualquer em novelas. Eles
não podem ter a certeza de que você está em queda, que está por
baixo. Não dê esse gosto a essa turma de saber que você está em
dificuldade, senão você vira doença contagiosa! Pessoas que
começaram junto comigo na profissão, hoje passam por mim e
evitam me cumprimentar. Você me conhece?”

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A essa pergunta, fixei meus olhos no rosto dela e não soube
responder. “Sou Clarisse Abujamra, ex-mulher do ANTONIO
FAGUNDES, meu querido, não sou qualquer uma não. Mesmo assim,
não consigo ser recebida na sala de (GUTA) fulana de tal...” O
colóquio de 15 ou 20 minutos com essa atriz longe de me levantar,
acabou por eliminar minhas esperanças. Nem voltei à sala desse
jornalista, fui pra rua Jardim Botânico, paletó no braço esperar pelo
ônibus 174, que me levaria até a praça Tiradentes onde eu pegaria
o 284, TIRADENTES =- PRAÇA SECA.

O ônibus veio abarrotado de passageiros, vários deles literalmente


pendurados na porta que conseguiram manter aberta. Nas
proximidades do Morro da viúva, o ônibus teve um defeito e parou.
Tivemos que descer e esperar outro ônibus da empresa que viria
atrás. As pessoas aglomeradas na frente do ônibus quebrado
começaram a gritar, assoviar, rir, fazer gracejos quando o outro
veículo apareceu na curva da enseada e parou pra socorrer os
passageiros. Foi uma debandada, um estouro da boiada. Um monte
de pessoas correndo, gritando, rindo. Eu parado no acostamento
olhava com horror a cena.

Como é possível o publico ser tão maltratado, tão desrespeitado e


mesmo assim se divertir com essa decadência moral? Não tive ânimo
de me meter na confusão. Não poderia. Estava derrotado demais.
Sem força. Não sei quanto tempo fiquei sentado naquela grama
vendo os ônibus passarem lotados. Por fim, o movimento foi
diminuindo, caminhei bastante até chegar à praia de Botafogo, onde
pude pegar outro 174. Nesta noite eu tomei minha decisão.

Cheguei à emissora, agora sem qualquer esperança de virar a


situação, não acreditava nem em milagre mais. Era o fim. Eu não ia
perpetuar aquela tortura diária. Às 22 horas, quebrei o silêncio e
pedi uma explicação ao LUIZ LOBO. Ele parou de teclar, se
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espreguiçou lentamente, demoradamente, bocejou outro tanto, e
disse com os olhos bem vermelhos: “hoje eu tô muito cansado, vou
acabar de escrever esse texto e vou pra casa. Volte amanhã, pra ver
o que podemos fazer...”

RUA JARDIM BOTÂNICO DA AMARGURA. MUITA AMARGURA.

Não respondi nada. Não pude. Me levantei a tempo de esconder as


lágrimas que saiam fervendo dos meus olhos. Eu estava possuído de
ódio, revolta,fome, frustração. Caminhando pelos corredores
gelados, cruzando com pessoas apressadas nos dois sentidos, eu
chorava copiosamente em silêncio. Eu não fui pro ponto do ônibus
409 que me levaria a outro, o 284, eu queria caminhar a pé pela rua
Jardim Botânico. Os sapatos me apertavam, machucavam meu
calcanhar.

Mas eu não queria entrar no ônibus, precisava ficar sozinho, chorar,


me livrar do ódio que me maltratava. Peguei a carteira com o SALMO
140 mas guardei logo, porque o fluxo das lágrimas não parava. Não
me perdoaria se molhasse, se destruísse aquele papelzinho dobrado.
Ele entrou assim na minha carteira, não admitia a possibilidade de
trocar por outro. Aquele tinha toda a importância pra mim.

Entrando na casa da minha sogra, onde eu também já não vinha me


sentindo bem há muito tempo, por me sentir intruso, por morrer de
vergonha e humilhação por não poder contribuir com um centavo
sequer para as despesas da casa, narrei meu fracasso pra minha
mulher. Fazer o que agora meu Deus do céu? Ir aonde? Procurar
qual trabalho? Era preciso encontrar trabalho,mas qual? A dor da
perda, da derrota, a humilhação não me davam trégua, liberando as
amarras do choro que era convulsivo, dolorido, constatante. Quando

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meu cérebro aventava a hipótese de eu voltar pra Belo Horizonte, eu
sofria mais ainda.

A INSUPORTÁVEL DOR DA DERROTA, DO FRACASSO

Marta desorientada não sabia o que fazer, o que dizer. Eu sabia, eu


queria que ela voltasse pra Belo Horizonte pra ficar na casa da minha
mãe, até eu poder encontrar algum emprego. Nós já estávamos há
mais de dois meses na casa de dona Maria Romana, mãe dela. Tarde
da noite, quando o companheiro dela chegava do trabalho, eu queria
me esconder num buraco, tal era a humilhação de me ver na casa
dele sem poder contribuir pelo menos com as despesas de padaria,
açougue, ou feira. Uma ideia terrível tomou conta do meu cérebro:
Marta precisava voltar pra Belo Horizonte.

Casa não tínhamos mais. Teria que ficar na casa da minha mãe. A
ideia me torturava, me afastar do meu filho quase às vésperas de
fazer um ano queimava minha garganta. Mas eu não ia recuar. Eu
me sentiria mais seguro com a certeza de que meu filho e a mãe
dele estavam em segurança na casa dos meus pais em Belo
Horizonte.

Eu iria arranjar trabalho a qualquer preço, o que encontrasse. Muito


independente desde os 13 anos, ser acolhido numa casa e não
contribuir para as despesas ia contra tudo o que eu acreditava.

Ser um peso para alguém, seria a maior humilhação que Deus me


imporia. Estabeleci a mim mesmo o prazo que terminaria no domingo
desta semana. Não me lembro em que dia da semana estávamos
quando tomei silenciosamente essa decisão. Ela seria comunicada à
minha mulher quando eu já tivesse nas mãos a passagens dela. Eu
via com crescente horror minhas economias se esvaírem.Marta e
meu filho iriam embora para Belo Horizonte num domingo de janeiro.

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Em várias ocasiões senti que ia fraquejar, que compraria também
uma passagem pra mim e voltaria pra BH e recomeçar tudo. O
domingo chegou. Eu estava muito sombrio, pela solidão que já se
avizinhava. Eu deixaria Marta na rodoviária e já não voltaria pra casa
da mãe dela.

DEUS GOSTA DE MIM. DESCOBRINDO A DUBLAGEM POR ACASO

O sacrifício de tentar conter o choro que a todo momento teimava


em jorrar dos meus olhos, fazia meu peito doer,provocando falta de
ar, suores intensos, tremor nas mãos. Eu queria que as horas
corressem céleres pra eu me jogar na arena.Envergonhado pela
situação em si, eu evitava até pensar no meu salmo de David.Eu
brincava com meu filho no chão do apartamento, enquanto ela lia O
GLOBO todo espalhado pela sala. De repente soltou uma longa
exclamação segurando o jornal, me mandando prestar atenção. Leu
em voz alta, animada: HERBERT RICHERS PRODUÇÕES
CINEMATOGRÁFICAS ESTÁ SELECIONANDO CANDIDATOS QUE
TENHAM BOA VOZ E BOA LEITURA EM VOZ ALTA PARA TESTES E
ESTÁGIO EM DUBLAGEM.INSCRIÇÕES NA PORTARIA DA EMPRESA À
RUA CONDE DE BONFIM 1.331.” Ela acabou de ler esse anúncio e
como se fosse uma onda de otimismo, de esperança, de incentivo,
senti toda a minha segurança voltar. Mal podia conter o entusiasmo.

Sempre tive paixão por dublagem. Esta seria minha chance de tentar
entrar pra esse mercado. Confiando na minha pouca experiência na
tímidas e única rádio novelas que a rádio Atalaia produziu onde eu
fui o narrador e o papel principal num texto de RAIMUNDO DE
OLIVEIRA, e apertando contra o meu coração o quadradinho de
papel já amarelado, percebi pra meu júbilo que minhas esperanças
renasciam. Pensei nesse teste cada segundo desde que tomei
conhecimento do anúncio.

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ME SEPARANDO DO MEU BÊBÊ E MINHA MULHER QUE VOLTAM A
BH.

Agora era hora de enfrentar a realidade. Comuniquei à ela minha


decisão. Felizmente não se opôs, entendeu que nossa situação era
bastante grave, e ficar aqui dando despesa só iria piorar meu estado
de espírito. À noite fomos pra rodoviária. Entrei com ela no ônibus,
ajudei a instalar meu filho na poltrona, desci e fiquei na plataforma
aguardando a partida. Fiquei com os olhos grudados no veículo até
ele desaparecer no meio da noite e dos carros. Meu estômago
queimava. De dor. Da rodoviária fui caminhando em direção à praça
Mauá.

Subi a escadaria que levava à recepção de um hotel bem barato, de


aspecto medonho, velho, mal cheiroso. Um jovem me atendeu, me
disse o preço da diária e me entregou uma chave com um barbante
sujo amarrado nela. Caminhei pra minha vaga. Não era um quarto.
Era uma vaga, demarcada por um biombo. Devia ter 4 metros
quadrados. Junto com a chave recebi uma manta que em Minas
chamam de “peleja”. O cheiro da manta me provocava náusea. Um
cheiro de umidade misturado com suor humano.

Na manhã seguinte, acordei bem cedo, eu queria chegar cedo ao


endereço da HERBERT RICHERS. Ao chegar ao banheiro pra usar o
vaso, escovar os dentes, tomar um banho, entrei em desespero.
Havia uma balbúrdia de homens nus mal encarados, assoviando,
outros cantando, escarrando no chão imundo. Era um banheiro
público. Num cômodo relativamente grande havia uma fileira de
tanques pequenos onde vi pessoas com a cabeça debaixo da água
da torneira se lavando.

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Várias casinhas lado a lado com ums louça encardida no chão e um
buraco no meio. Não havia vaso sanitário. No ar o cheiro de suor, de
desodorante barato, e excrementos humanos, urina.

CONVIVENDO COM O SUBMUNDO. A LEMBRANÇA DO VELHO GUIA


ÁRABE.

Fiquei um tempo esperando que de dentro de uma dessas casinhas


alguém saísse pra eu poder usar e entrar debaixo do chuveiro em
seguida.

Vendo o aspecto horrível daquelas pessoas tive certeza de que eram


camelôs, travestis, falsos mendigos que ficam o dia inteiro
esmolando pelas calçadas da cidade, me perguntei se eu desceria
mais ainda. Nesse momento, no calor daquele cômodo barulhento,
podre, mal cheiroso, eu pensei no meu velho guia aos pés da
pirâmide. Nele e no Salmo. No guia árabe porque o amor repentino
de um desconhecido dirigido a mim, ficou guardado no meu peito
como uma bússula, um apoio, um incentivo de que tudo que eu
fizesse na vida valeria a pena, a despeito de qualquer dificuldade.

Eu enxerguei naquela frase simples e curta, uma couraça a me


proteger, um adendo ao Salmo de Davi. Eu sentia em torno do meu
corpo um halo de proteção, que houvesse o que houvesse, eu
superaria as dificuldades que a vida colocasse em meu caminho.
Entretanto, parado ali naquele pardieiro, segurando uma escova de
dentes na mão, uma toalha tosca de tecido vagabundo fornecido
junto com a manta mal cheirosa no momento da aquisição do
biombo para dormir, uma caixinha com sabonete, essa certeza
espiritual me parecia uma tolice sem tamanho. A confiança
despencava.

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Até quando eu teria que viver naquela promiscuidade social? Mesmo
pensando que a realidade é muitas vezes pior do que esta que eu
estava vivendo, não era fácil me situar. E me acostumar com a ideia.
Uma das casinhas se abriu, entrei, saí rápido, tomei a chuveirada,
tendo outros indivíduos ao meu lado fazendo a mesma coisa, saí
mais rápidamente ainda. Eu precisava de ar puro.O cansaço da noite
anterior deve ter me apagado de maneira bem pesada, porque a
julgar pelo barulho que aquelas pessoas faziam dentro do banheiro,
dos gritos, das cantorias, dos assovios, a noite nesta sucursal do
inferno devia ser desesperadora. Ledo engano.

Minha mala era uma bolsa de tecido com duas calças, algumas
cuecas que eu trocava em rodízio, pois lavava a usada debaixo da
água do chuveiro depois de bastante esfregada de sabonete, meias e
três camisas de malha. Terno, gravata, paletó e camisa social haviam
ido pra Belo Horizonte na mala da minha mulher.

Olhar pra vestimenta do fracasso, da ilusão, as peças que


compunham a imagem das minhas esperanças e alegrias não me
fazia bem.O dinheiro que eu tinha precisava ser administrado de
maneira mesquinha até. De vez em quando a desesperança me
dominava de tal forma, que tinha vontade me sentar numa mesa de
bar e ficar ali indefinidamente, sem falar, sem olhar, sem sofrer, sem
esperar, sem sonhar... Outras vezes era assaltado crises de suor, de
dor de cabeça, de puro pânico: e se o dinheiro acabar, onde vou
conseguir outro? Pedir à Belo Horizonte? Nunca!! Pedir à minha
sogra no bairro de Benfica? Sem chance. E se eu fosse assaltado? O
ambiente em que eu estava agora vivendo deveria ter mais de 10 ou
20 chances de isso acontecer. E se perdesse o dinheiro?

As elucubrações negativas me atormentavam. Eu precisava de paz,


pra enfrentar o desconhecido, pra ter força pra lutar contra não sei o
que me esperava. Pra aplacar meu espírito, eu enrolava o pacotinho
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de dinheiro num plástico e coloquei debaixo do travesseiro na hora
de dormir. De manhã, o dinheiro vinha para o meu bolso.À noite
voltaria para o plástico e dormiria debaixo de minha cabeça.Resolvi
que aquelas poucas economias deveriam durar. Por isso, parei de
almoçar. Nestas centenas de lanchonetes da cidade que exibem
pizzas com caldo de cana eu comia em pé um quarto de pizza e um
copo de caldo. Estava suprido de carboidratos e da energia do
açúcar.

Na sexta feira, ou no sábado, eu me permitiria uma alimentação


melhor; almoçava um prato do dia na SPAGHETILANDIA. Uma ficava
na Alvaro Alvim, a outra na praça Saens Peña. No bolsinho de
moedas da calça várias fichas de telefone pra ligar para os números
que eu procurava garimpando anúncios de empregos e os telefones
das emissoras de rádio, tv, estúdios de gravação comerciais.
Pesquisava esses números nos grossos catálogos semi destruídos
que ficavam presos à correntes nos balcões da lojas da CTB,
Companhia Telefônica Brasileira. A loja da Praça Tiradentes era a
que eu mais usava.

INDO FAZER O TESTE NA HERBERT RICHERSDe banho tomado,


calça de algodão, camisa idem, sapato e meia, e muita fome peguei
o ônibus 220 e fui para o endereço fornecido.

Não eram 8 da manhã e já havia uma multidão de pessoas no pátio


da empresa. No meio daquelas pessoas eu reconhecia atores e
atrizes de novelas, os chamados elenco de apoio. São os
profissionais que dão suporte à trama central desempenhando
pequenos papéis. Eramos 330 candidatos. Impossível manter-se
confiante no meio dessa multidão desconhecida buscando o mesmo
objetivo. Por mais que se confie nos próprios predicados, há uma
chuva de interrogações dançando sobre sua cabeça. Mas o que eu
queria sobre minha cabeça eram os versículos 6 e 7 do Salmo: “EU
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DISSE AO SENHOR,:TU ÉS O MEU DEUS, OUVE A VOZ DAS MINHAS
SÚPLICAS, Ó SENHOR. SENHOR DEUS, FORTALEZA DA MINHA
SALVAÇÃO, TU COBRISTE A MINHA CABEÇA NO DIA DA BATALHA...”
Ah, meu velhinho egípcio, por que você não está aqui agora?

Meu nome da lista de presença deveria estar perto do número 330.


Um sujeito alto, muito magro, barba branca, na faixa dos 45 anos,
cabelos encaracolados já muito brancos chamava os candidatos pelo
nome. Estranhamente as chamadas se sucediam num ritmo
acelerado. As expressões que eu via na cara de quem saia da sala
não eram das melhores. Vi também, em maior número, diversas
expressões gaiatas, de quem não tendo nada pra fazer em casa
resolveu se inscrever pra “fazer o teste só pra ver no que vai dar
isso”.

E chegou minha vez. O sujeito magro era WALDIR FIÓRI, diretor de


dublagem, ex-comediante da linha de shows da TV TUPI.
Gentilmente me recebeu na sala, me chamando de pessoa,
econômico nas palavras, me deu um papel pra ler. “Leia esta frase
da maneira mais lenta que você puder...” Agora leia o mais rápido
que puder. Agora tente interpretar essa frase, como se fosse uma
conversa...” Me limitei a cumprir o que ele determinava. Sem
qualquer pergunta, sem qualquer comentário. Como deveria estar o
humor dele depois de entrevistar e testar 300 e tantas pesoas? O
próprio Waldir Fióri manejava um pequeno projetor de 16 milimetros
que mostrava na parede branca da sala a cena de um velho cowboy
fazendo a barba diante de um espelho.Fióri me ordenou que
tentasse sincronizar em português os impropérios que o personagem
dizia enquanto deslizava a navalha na espuma espessa.

Me mandou prestar atenção, exibiu uma vez, duas. Perguntou se eu


já gostaria de tentar sincronizar. Fiz que sim com a cabeça. Olhei
para aquela imagem como um falcão identifica sua presa no chão. Eu
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não queria cometer nenhum equívoco de sincronia, de leitura, e do
que eu acreditava ser interpretação. O velho tinha a voz rascante
como são esses personagens de filmes de bang bang.Finalizada a
gravação, ele me agradeceu, pediu um telefone de contato e me
dispensou. Esse era o teste. Que achei insignificante. Quanto
equívoco pensar isso, meu Deus! Essa insignificância reprovou 314
candidatos. 314!!!!!!!!!!! O telefone que forneci foi o da minha
sogra. 260. 91.69. Rua Lourenço Ribeiro 116. Benfica.

Na quarta feira ligaram pedindo que eu comparecesse à empresa


levando documentos. Fui selecionado. Estava entre os 16 candidatos
que sobraram dos 330.Não me permiti abrir espaço no meu espírito
para a euforia. Havia ainda um bocado de estrada pra trilhar.

À noite, na pensão barata, tirei do saco de papel uma maçã que comi
substituindo o jantar. Enquanto eu não descobrisse um meio de
repor o pouco dinheiro que eu gastava com ônibus e pedaços de
pizza com caldo de cana pra almoçar, comeria menos ainda à noite.
Sempre uma fruta, pra forrar o estômago. Sentado no colchão
macio em cima do estrado, me dei conta de que apesar do horário, o
silêncio na pensão era total. Surpreendente para o padrão dos
frequentadores grosseiros, mal educados, barulhentos.

PRIMEIRO CONTATO, RÁDIO NACIONAL

Me levantei mais cedo ainda pra evitar o barulho, o caos, a sujeira


no banheiro. Idéia feliz, pois não havia ninguém, mas a sujeira
deixada pelos que chegavam durante a noite pra dormir estava lá no
chão de cimento, na louça sanitária, nos tanques de cimento. Papel
higiênico era uma raridade. Por precaução, tinha meu próprio rolo.

Nas adjacências da praça Mauá, vendo o frenesi de carros,


ônibus,”trabalhadores apressados, tão sem revolta” como no poema

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de Cora Coralina, entrei numa lanchonete pra tomar uma xícara de
café com leite e um pão francês com manteiga.

Este cardápio ficaria fixo no período em que fui morador desta


pensão. Com raríssimas variações. Esperei dar 8 horas pra chegar ao
prédio da Radio Nacional que ficava práticamente do lado. Subi os 20
e tantos andares, mas não sabia a quem me dirigir. Perambulei
encantado por aqueles corredores, aqueles móveis velhos, mal
conservados.

Era tão bom estar nesse templo sagrado que não me empenhei
muito em travar contato com quem quer que fosse. Até que percebi
uma pessoa que havia passado por mim algumas vezes me olhando
com certa curiosidade. Era um senhor de aparência bastante
amigável, que me perguntou o que eu fazia ali há tanto tempo. Sem
rodeios eu disse que estava à procura de uma chance de fazer um
teste para locutor. Era CAUHÊ FILHO, o famoso moleque Saci da
rádio novela JERÔNIMO O HERÓI DO SERTÃO.

Me encantei quando CAUHÊ se identificou, porque por extensão,


deduzi que MILTON RANGEL poderia em algum momento passar por
ali. Como locutor de cabine da TV VILA RICA em BELO HORIZONTE
eu não perdia um episódio sequer e MAVERICK que eu
acompanhava pelos monitores da emissora. MILTON RANGEL
dublava o personagem de JAMES GARNER.

Cauhê não soube informar quem eu deveria procurar. Nisso,


enquanto ele falava comigo, viu DEISY LÚCIDI sair de uma sala.
Excitado ele disse: “Olha, corra atrás da Daisy, ela pode levar você
pra fazer um teste, ou indicar quem você deve procurar. Vá rápido!”
Assim fiz. Me aproximei de Daisy, pedi licença, e disse o meu
propósito. Impaciente ela respondeu “NÃO TEMOS VAGA” e
continuou sua caminhada pelo corredor.
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Não, eu não fiquei chocado com a indiferença. É esse o padrão;
alguém precisando de ajuda é sempre um incômodo, seja porque a
pessoa abordada não quer se incomodar em ajudar, seja porque não
pode, ou por indiferença mesmo. Se fosse fácil eu não estaria com
meu amuleto quadradinho dobrado dentro da minha carteira, e nem
apelava pra a lembrança do meu velhinho egípcio. Percebi que não
era prudente tentar contato com mais alguém. Fui embora.

Caminhar, mesmo na balbúrdia do centro da cidade serenava os


sentidos, me ajudava a resolver os problemas do mundo. E a
esquecer os meus. À tarde liguei pra dona Maria Romana. Que
felicidade, meu Deus!!! Eu havia sido convocado pra dublar no dia
seguinte. A funcionária queria me passar algumas informações.
Liguei sem demora. Eufórico. “Traga caneta e não chegue atrasado
por favor”. Recomendou a funcionária que convocava os atores.

“Se você se atrasar será substituído!” JAMAIS me atrasaria.


Concorrer com 330 candidatos, fazer parte de um time de 16
selecionados e colocar tudo a perder por causa de atraso? Não
haveria essa possibilidade. Timido, não conseguia me relacionar com
os outros 15 que já conversavam animados a um canto no pátio
interno da empresa. Fióri chamou alguns de nós – o estúdio não
comportava 16 pessoas – e distribuiu os papéis. Pequenos. O filme
era AS 24 HORAS DE LE MANS. Fióri sempre muito detalhista, nos
chamando a todos de “pessoa” pedindo que tivéssemos calma, que
estaria ali pra ajudar pra orientar, me disse o número da cena a ser
gravada. A mim coube o papel de um pai que vê seu filho, um dos
pilotos bater violentamente durante a corrida.

Ele chega correndo ao local do desastre arfando, descontrolado,


desesperado gritando em francês “ASSASSINS, ASSASSINS!!!” Fióri
me orientou a ficar calado e olhar de novo a cena. Me pediu que
prestasse bastante atenção ao estado de espírito do pai do piloto. Me
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mostrou que ele arfava de exaustão pela corrida, desespero pela
morte do filho. Eu não estava nervoso. Estava paralisado de terror. A
voz amigável de Fíóri comandou; “vamos lá, pessoa? Vamos tentar?”
Ensaiei uma vez, duas, ainda sem gritar. “Quero gravar!”

Meu velhinho egípcio tinha poder! Acertei sincronismo, interpretação,


voz e timing. Fióri aprovou a gravação indicando para o operador de
áudio o sinal de positivo com o polegar a passou à cena seguinte. Eu
precisava explodir de alegria, de alívio. Onde? Naquele estúdio
escuro, lotado de novatos? Seria cantar vitória antes da hora. Quais
eram as cenas ou personagens que me esperavam depois? Nós
todos estávamos petrificados de nervosismo, o pânico estampado
nos nossos olhos. Estavamos efetivamente começando a trabalhar,
como estagiários. Figurávamos na folha de pagamento que nesta
época era feito na sexta feira. No dia seguinte estava escalado de
novo. Papel pequeno. Não tive dificuldade. Que onda adorável de
calor, de otimismo eu senti do lado de fora da empresa aguardando
o ônibus para ir pro centro da cidade. Meu entusiasmo era tão
intenso que resolvi procurar a rádio Globo na Glória. Tentaria
também um teste na Mundial, ou Eldorado, ou Globo. Achei que eu
estava tendo um inicio emblemático. Meu otimismo trazia um
sentimento indescritível de crença, de que eu superaria as
dificuldades.Que as portas se abririam.

No ônibus que descia a Conde de Bonfim, evoquei a imagem do meu


filho dias antes, na janela do ônibus que saía lentamente do box na
rodoviária partindo pra Belo Horizonte. As lágrimas desciam. Droga,
era incontrolável essa emoção.Pensava na minha sogra, no seu rosto
triste por causa da minha decisão de mandar Marta pra Belo
Horizonte levando o neto que ela adorava.

Eu não podia ficar na casa dela. Tenho certeza de que por ela eu
ficaria o quanto quisesse. Mas o companheiro dela não escondia a
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irritação de ter um casal com criança na casa que era dele. E não era
pra menos.

Para o meu padrão de desconfiômetro e consciência, fiquei tempo


demais na casa que era dele, bancada por ele. Eu, Marta e meu
filho chegamos com toda confiança e alegria à casa dele bem perto
do natal na crença de que após um rápido treinamento na Globo, eu
estaria contratado, ganhando salário e morando em minha própria
casa. As coisas deram errado. Em janeiro ainda estávamos lá
dentro. É tempo demais. Até para a um monge que abrigasse um
necessitado.

Este hotel, um atentado à dignidade humana, seria minha residência,


meu local de repouso das batalhas por um emprego.Foi nesse
purgatório que vivi cerca de dois meses.

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Capítulo 2

PRIMEIRO RASCUNHO DE
“EU CONHEÇO ESSA VOZ!”

MORANDO MOMENTÂNEAMENTE NUM CORTIÇO.

No inicio da noite, quando eu voltava pro hotel, era impossível entrar


pra um banho sem a presença daquelas pessoas barulhentas. Me
sentava na cama e ficava esperando a intensidade da balbúrdia no
banheiro diminuir. O cansaço, o sono galopante, a angústia de partir
no dia seguinte à procura de oportunidades, iam me dobrando
literalmente. E desistia do banho. Decidi que o melhor era mesmo na
madrugada, já que era um hábito meu. Acordava cedo mesmo,
sempre acordei, desde o primário.

Por razões que não vou jamais entender, mesmo sendo inicio de
ano, à noite eu me cobria com a manta fina e vagabunda que ficava
sobre a minha cama. Eu não tinha com quem conversar, mas essa
constatação não me incomodava. Acostumado aos plantões noturnos
no quartel em Belo Horizonte, e aos turnos de 6 horas no alto de
uma torre no deserto da Palestina sem conversar com ninguém, meu

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isolamento não era incômodo, de modo algum. Eu ficava bem
comigo mesmo, não sentia necessidade de companhia.

O mutismo imposto pelas circunstâncias me colocava frente à frente


comigo mesmo. Como na música de SERGIO RICARDO “tenho a mim
mesmo no espelho dos olhos de toda gente...” Meus pensamentos
fervilhavam, os sonhos mais ainda. Eventualmente, muito
eventualmente o desespero abalava minha segurança. E se eu não
aprendesse a dublar? E se começarem a me ridicularizar por ser
mineiro? Esse estigma me colocaria aos olhos dos dubladores, todos
cariocas, falando com sotaque roceiro nos rostos angulosos de olhos
azuis dos americanos. Até um pensamento assim me fustigava, me
obrigava a pensar em defesas na hipótese dessa restrição se
insinuar.

E se, e se, e se, um turbilhão subjetivo mas passível de acontecer.


Esses pensamentos em noites longas, cujo sono demorava a me
apagar, me torturavam, fazendo minha pele ficar molhada de suor.
Ao ponto de provocar nó na garganta.

Apesar dos meus torturantes questionamentos, eu sentia esperança.

Uma euforia arrepiante assomava meu corpo todo. Sem ao menos


vislumbrar um mínimo de realidade, sentia que tinha um ponto de
apoio, onde eu sentia que podia pisar e sentir o chão firme, na
certeza de que eu ia superar todas as dificuldades, e que muito em
breve eu poderia buscar meu filho e minha mulher em Belo
Horizonte. Eu era um estagiário da melhor e mais importante
empresa de dublagem do eixo Rio-São Paulo! Aconteceu mais rápido
do que eu pude sonhar.

Era uma sensação insuportável de boa. Logo eu, que até poucas
semanas antes em Belo Horizonte ouvia no inicio dos filmes na TV

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essa locução mágica do locutor MARIANO “VERSÃO BRASILEIRA,
HERBÉRT RICHERS!” com a segunda letra “E” acentuada de forma
errada. A pronuncia correta do nome era HÉRBERT RICHERS.
Mariano dizia “HERBÉRT.”

Adorava ouvir “VERSÃO BRASILEIRA, HERBÉRT(*) RICHERS, com


essa acentuação forte no “É” nos inícios de filmes na voz
personalíssima de seu apresentador oficial, Mariano, também locutor
da rádio Relógio. Sua apresentação inesquecível, na minha opinião,
era sobre a cena dos catamarãs havaianos na abertura sob créditos
da magnífica série HAVAI CINCO-ZERO.

Desempregado, sem uma perspectiva animadora, absolutamente


invisível dentro da empresa como profissional e como pessoa, mas
sentindo um enorme orgulho de estar dentro dos altos muros da
empresa. Como estagiário.

NÃO HAVIA MÉTODO, NEM CARTILHA. NEM UM ÚNICO


DOCUMENTO DIDÁTICO.

Misturando entusiasmo, expectativa, imensa curiosidade, fascínio,


pensei que a parte teórica fosse um bicho de sete cabeças, um
emaranhado de ditames escritos que eu deveria estudar e praticar.
Não houve isso. Fióri nos dava informações em pílulas, de acordo
com o papel a ser desempenhado ali no momento.

Recomendou apenas que tivéssemos à mão uma caneta “a


ferramenta do dublador” segundo ele. –“Tragam suas canetas
porque não há nada mais chato do que ter que emprestar caneta pra
dublador marcar seu texto. Tragam as suas. Eu não vou ceder as
minhas”

Eu tinha duas bics, pra não incorrer no risco de emprestar – como


ocorreria durante toda minha vida como dublador - pra algum colega
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e esse esquecer. Uma em cada bolso. Com essa caneta, eu teria que
marcar no texto em português as pausas da fala do ator na tela.

Foi ensinado também que se o meu “boneco” - o ator que esta


sendo dublado - fizer uma reação de limpar garganta, fungar o nariz,
tossir, ofegar, eu deveria marcar com a caneta, uma indicação de “R”
(reação) no meio da frase pra não esquecer de fazer, muito embora
estivesse com o som do inglês num dos ouvidos.

EQUIPAMENTOS MODERNOS PARA O EMPRESÁRIO, SUCATA


REMENDADA COM ARAME PARA DUBLADOR. QUE NÃO RECLAMA.

Eu que até aquele momento de minha vida usava os dois fones no


meu trabalho como locutor de comerciais ou de rádio, agora teria
que usar apenas um fone, num dos ouvidos. A outra mão precisaria
estar livre pra marcar os textos e controlar o som desse fone caso o
retorno estivesse sendo captado pelo microfone, uma queixa
constante dos operadores de áudio. O problema dos equipamentos
baratos colocados à disposição do dublador é crônico. O dono da
produtora investe em máquinas modernas, atende a exigência das
emissoras de tv aberta e a cabo para modernizar seu parque técnico,
mas os equipamentos que o dublador precisa pra melhorar
técnicamente seu trabalho é abaixo da crítica. Os fones da bancada
são sempre remendados com fita isolante, durex, arame, fita crepe.
Os contatos elétricos na bancada são insuficientes, o fone falha
durante a locução, basta balançar um pouco o cabo que liga o fone à
régua onde os plugs são introduzidos. A bancada onde os
profissionais se apoiam pra ficar 6 horas ininterruptas em pé
gravando, ensaiando, gravando ensaiando fazem barulho
interrompendo a gravação.

Numa dessas produtoras, o piso velho de madeira é o mesmo há


quase 70 anos. Estala à menor pressão de um passo dado.
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Se o dublador estiver fazendo uma cena em que tenha que falar de
maneira enérgica, ou gritar, ou simulando uma briga, é um inferno
porque o piso estala o tempo todo. O dublador tem que se esforçar
pra fazer a cena sem mover o corpo. Só assim consegue, nem
sempre, evitar que os estalos atrasem o cronograma de produção.

Se a minha fala em português estivesse mais lenta do que o original


na tela, eu teria que marcar uma linha tracejada embaixo da frase
pra indicar leitura bem mais lenta.

Se a frase em inglês fosse bem menor do que a frase em português,


eu teria que colocar uma seta apontada pra esquerda debaixo desta
frase, indicando que eu deveria ler de maneira muito rápida pra
frase ficar do tamanho da frase em inglês. Ou então usar essa seta
apontando par o lado direito significando que eu deveria ler mais
devagar. Chamaram nossa atenção – minha e do meu companheiro
remanescente – que deveríamos ficar muito atentos à “dinâmica” da
fala.

Esse foi todo o método didático pra aprender a dublar. O


desenvolvimento, o domínio da técnica viria com a prática. Mas
então, se eu não prestar atenção na dinâmica, estarei defasado em
relação ao ator na tela? Mas o que é dinâmica, minha Nossa
Senhora? Como é que se descobre isso? Não nos é mostrado esse
momento? Nós, os dubladores é que temos que apontar e ressaltar?
Acabada minha participação eu ficava ainda pelo pátio, junto aos
estúdios, ouvindo pelo sistema de som da técnica que trabalhava de
portas abertas, o trabalho dos profissionais.

A INTERPRETAÇÃO ERA DIFERENTE DE TUDO O QUE EU HAVIA


ESCUTADO ATÉ AQUELE MOMENTO

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Ao sair do estúdio A por exemplo, eu ficava na porta do estúdio B
ouvindo os fantásticos dubladores Gualter de França, ou Magalhães
Graça. Era um deleite ouvir e vê-los dublando. Eles não dublavam,
mas “conversavam” o texto, o que é muito diferente das inflexões de
um ator no teatro.

Mesmo analisando subjetivamente a maneira como esses dubladores


faziam suas falas, havia alguma coisa naquela maneira natural de ler
um texto que me fascinava.

Era uma leitura muito diferente da que eu estava acostumado a ouvir


dos locutores de rádio e tv de Belo Horizonte. Por mais que eu
tentasse encontrar, não havia meio de eu entender e descrever
aquela interpretação que era muito intima, era uma conversa bem
elaborada, uma leitura quase improvisada, sem o formalismo dos
esses, erres tão comuns na voz de locutores, apresentadores,
mestres de cerimônia.

Vendo o ator ENIO SANTOS dublar JOHN WAYNE no filme HATARI,


fiquei fascinado pela maneira como ele falava com um personagem
de nome MORAIS no filme. Se não me falha a memória, era na cena
do aprisionamento das girafas. Parecia que ENIO SANTOS estava
assistindo o filme e fazendo comentários em cima da imagem de
JOHN WAYNE. Parecia que o texto não estava ali na frente dele.
Como explicar isso? Como transformar isso num verbete, num
enunciado? Numa apostila? “AQUI FALAR COMO ENIO SANTOS FALA
NA CARA DE JOHN WAYNE.”

“AQUI FALAR COMO PAULO GONÇALVES FALA SEU TEXTO NA


IMAGEM DO PERSONAGEM MCGARRET DE HAWAY CINCO ZERO.”
Absolutamente improvável transformar aquela interpretação
magnífica numa apostila para os novos dubladores. Porém os vícios
melódicos dos atores americanos estava presente na fala dos
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profissionais. Isso eu não iria fazer. Se por um lado eu amava a
coloquialidade da interpretação, por outro lamentava o ouvido de
papagaio que reproduzia as chatices melódicas dos atores
americanos que podemos chamar também de vicio melódico. Eu
queria uma interpretação nossa, a nossa prosódia brasileira, afinal,
no inicio do filme, o locutor MARIANO dizia “VERSÃO BRASILEIRA,
HERBÉRT RICHERS!” Se era VERSÃO então teríamos que fazer à
nossa maneira. Portanto, não deveríamos copiar os maneirismos e
vícios melódicos dos americanos. Mal eu sabia que estava muito
perto de ser agredido por causa desta minha defesa de uma fala
brasileira na cara de atores estrangeiros.

Sem perguntar nada, sem incomodar o operador de áudio que


trabalhava sob tensão o tempo todo gravando as falas e
manipulando os loops do celuloide no projetor, eu ficava em silêncio,
acompanhando a dublagem.

Através do vidro da técnica, um inferno de calor aumentado pelo


aquecimento dos enormes projetores com lâmpadas de 300 wats eu
podia ver os vultos escuros dos dubladores recortados contra a luz
clara da tela de um metro e meio por um e meio. Eles podiam ser 2,
3 , 4, 5 ou até 6 na cena, todos muito colados uns nos outros e
tinham uma prática tremenda de passar os fones pro colega ao final
da sua fala, já que a bancada não possuía fones suficientes pra todo
mundo. Eram movimentos muito lentos, cuidadosos, de fones saindo
de um ouvido e sendo colocados em outro ouvido, tudo sem fazer
barulho já que o microfone captava esses ruídos, como por exemplo
alguém mascando chicletes, o que provocava a ira dos diretores,
especialmente o diretor Luiz Manoel.

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Ele odiava quem fizesse isso enquanto dublava. O ruído que o
microfone teimava em captar obrigando a regravação da cena era o
maldito, incontrolável peristaltismo estomacal. A dublagem começava
às 8 e 45 da manhã. Em tese todo mundo chegava nesse horário pra
começar a gravar tendo feito um lanche ou um café completo em
casa. Por volta das 11 horas em diante, feita e digestão, o estomago
vazio reclamava sua participação nas gravações. Eram roncos longos,
intermitentes, que irritavam o elenco, mas expunham o dublador a
vexame.

Mas eram todos amigos, todos colegas de bancada noite e dia, já


estavam acostumados. O constrangimento era quando esse
peristaltismo vinha das mulheres. Que ficavam muito perturbadas,
envergonhadas mesmo. Sempre que eu estava escalado com vários
atores, era natural que os veteranos chegasse à bancada e se
apoderassem dos fones. A prioridade era deles. A bancada tinha
saída pra 5 fones.

Eu era invariávelmente o sexto dublador, o de papel menor, o ponta,


o figuração como dizem dos atores que fazem elenco de apoio em
novelas. Eu dependia de um dos atores passar seu fone pra mim,
quando chegasse o momento da minha fala. Era fatal que um ruído
atrapalhasse a gravação, ou que eu não conseguisse adaptar o fone
ao meu ouvido a tempo de acompanhar a fala do meu ator.

E teríamos que voltar ao inicio pois não havia ainda a mídia precisa
dos fabulosos equipamentos digitais pra fazer o CUE, ou seja,
aproveitar o que ficou bom e só regravar a fala com defeito. Todos
ganharíamos tempo, e eu menos caras irritadas em minha direção.

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Horrível a sensação de ter que repetir tudo porque eu não possuía
habilidade suficiente pra receber o fone das mãos do colega, colar no
ouvido, me aproximar mais da bancada e do texto e finalmente
gravar minha fala. O nervosismo tomava conta dos movimentos o
que acabava por fazer o fone esbarrar em outro fone, ou mesmo
fazer o fone se chocar contra os meus próprios óculos, ou o maldito
caia na bancada prejudicando a gravação.

A revolta, o inconformismo me perturbava. Como é possível o


empregador não pensar num mínimo de condições técnicas e de
conforto para esses profissionais que enriquecem sua empresa e
seus caríssimos equipamentos de áudio e tv? Como é possível se
pensar com profissionalismo e responsabilidade na entrega de um
bom produto se o empresário só se preocupava em modernizar seu
parque técnico, os gravadores para gravar as vozes brasileiras. Com
raras exceções o empresário se recusa a investir na melhoria técnica
de um estúdio, fazer um melhor isolamento, essa deficiência crônica
que assola a maioria dos estúdios cariocas e paulistas. Ele deve
achar perda de tempo e dinheiro implementar melhoria técnica nos
equipamentos que o dublador precisa pra desempenhar sua função.
Tudo o que nós precisamos é de um excelente microfone, e fones de
ouvido que nos permitam gravar as falas, ouvindo o original num
volume que nos possibilite falar no mesmo ritmo e intensidade do
original sem que esse som original vaze para o microfone.

Ainda estão atuantes alguns estúdios em que os dubladores já


conhecem a rotina da família dos donos do estúdio que mora em
cima. Por exemplo; os dubladores já sabem que de 11 e 45 até meio
dia e meia mais ou menos não adianta gravar porque a mulher do
dono do estúdio está colocando sapatos para ir buscar os filhos no
colégio. Ela anda batendo com os saltos no piso que retumba no
microfone poucos metros abaixo. Entre 18 e 18 e 30 é a hora do

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cafezinho e do lanche porque o vizinho da casa ao lado chega do
trabalho.

Os dubladores sabem que nessa hora o vizinho está chegando do


trabalho porque os cachorros dele – são vários – latem alegremente.
Os latidos vazam pra dentro do estúdio. Os profissionais de
dublagem já estão acostumados e param a gravação até os
cachorros acabarem a festa de recepção ao dono. O dublador,
conformado, humilde, subjugado, se adapta às piores condições, não
protesta, não se revolta.

Simplesmente se ajeita pra continuar trabalhando, sem irritar o dono


do estúdio com reivindicações que possam chamar sua atenção para
o que deve ser uma ameaça ao empresário. “É melhor não escalar
mais esse dublador, porque ele reinvindica demais, presta atenção
demais nas minhas deficiências....”

Quantas vezes eu via o trabalho intenso dos veteranos ser paralisado


porque um avião a jato passou baixo demais sobre a área vazando
ruído na gravação. Descargas de motocicletas sem silencioso eram
uma constante. Sempre tínhamos que parar, esperar a moto se
afastar e recomeçar a leitura onde fomos interrompidos. Eu percebia
o conformismo, o alheiamento, a falta de reinvindicação naqueles
homens e mulheres de vozes e interpretações maravilhosas. Eu
queria que eles se revoltassem, que cobrassem mais conforto,
melhor condição técnica já que era normal passarem até 15 horas
gravando sem parar. Enfrentamos durante anos a fio o monóxido de
carbono dos caminhões a diesel que vinham trazer e buscar cenários
para a Globo que gravava no estúdio de cinema do Herbert.

Esses caminhões entravam no pátio da empresa de ré, puxavam o


freio de mão,mas deixavam os motores funcionando exatamente
junto à máquina central que distribuía ar condicionado para os
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estúdios. Era uma tortura continuar a gravação. Parávamos a
gravação e íamos até esse motorista pedir que ele desligasse seu
motor ou procurasse outra área da empresa pra descarregar. Ele se
recusava dizendo que não podia contrariar ordens do setor de
transporte da Globo. E as negociações prosseguiam por um tempo
precioso até que alguém de raciocinio mediano ordenava que esses
motores fossem desligados.

COMO ESINAR DINÂMICA NUMA APOSTILA? IMPOSSÍVEL!

Dinâmica. Eu tinha que aprender a identificar isso e praticar. O


desconhecimento dessa ferramenta me angustiava. Certamente eu
ganharia pontos, quem sabe até um rasgo de simpatia de algum
diretor se eu aplicasse essa dinâmica dublando meus pequenos
papéis. Portanto eu precisava saber o que era isso. A falta de
domínio desta técnica é responsável pela implicância que o público
devota à dublagem.

É comum até hoje ouvir um dublador projetando sua voz a 60


DECIBÉIS QUANDO O ATOR NA TELA ESTÁ A 90, COM AS VEIAS DO
PESCOÇO, DO ROSTO E DA TESTA RESSALTADAS. Essa é uma das
falhas mais comuns nos filmes dublados. O personagem na tela está
excitado, olhos brilhantes, gestos nervosos, gesticulado, falando alto,
e o dublador, seja pela pouca potência de sua voz, seja pela timidez
que não lhe permite falar no mesmo tom do personagem, seja por
causa da falta de observação do diretor que deveria obrigar esse
dublador a falar no mesmo tom do ator americano, o dublador não
percebe que está um tom abaixo.

A discrepância fica evidente demais, qualquer pessoa percebe. Assim


como uma voz inadequada ao personagem do filme. Que aula
prática maravilhosa eu tinha ali na técnica vendo os veteranos
brilharem. Entretanto por ouvir demais e não falar nunca, tive minha
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atenção despertada para algumas expressões viciadas, vícios
melódicos e maneirismos que são bastante enjoados. Me
impressionava a frequência de frases chavões, com inflexões
típicamente americanas, como “MUITO BEM RAPAZES!” - “VAMOS
DIRETO AOPONTO!” - “QUEM VOCÊ PENSA QUE É AAHN???NÃO
TENTE BANCAR O ESPERTINHO!!!” – “ORA, ORA, ORA , ORA!” -
“BEM, NÃO EXATAMENTE...” - ORA BOLAS, SE NÃO É O VELHO
RABUGENTO LYLE MCCAIN!” – “VOCÊ NÃO PASSA DE UM TOLO!” -
“TIRE SUAS MALDITAS MÃOS SUJAS DE CIMA DE MIM!” - “OLLIE
THURBULL FUGINDO DO XERIFE PARECIA UM ALCE LOUCO EM
DISPARADA PELAS PLANÍCIES RESSEQUIDAS DO WYOMING!” -
“ORA, VEJAM SÓ QUEM VEM LÁ. SE NÃO É O VELHO JOE, SEU
MALDITO CASTOR DESTENTADO DA RAVINA DE CREEPLE
CREEK!!!”, - “VOU DAR UM PONTA PÉ NESSE SEU TRASEIRO
GORDO!” Não, definitivamente esse texto, essas interjeições não são
do nosso idioma, pertencem ao idioma inglês.

Lá se fala assim, aqui não. Portanto o tradutor deveria escrever um


texto condizendo com nossa cultura, sem contudo descaracterizar a
obra americana.

Cães, cavalos, golfinhos, baleias, gatos, leões,elefantes,


especialmente os animais e aves resgatados e tratados por biólogos
em contato com seus tratadores em filmes ou documentários falam
assim: “BOM GAROTO, EI, CALMA, CALMA, BOM GAROTO, QUER UM
BISCOITO,HHAN? UM TORRÃO DE AÇUCAR? QUER? ISSO!! ÉÉÉÉ!!!
BOM GAROTO!”

Ouvindo essas expressões eu me perguntava se não haveria uma


maneira de se dizer exatamente essa idéia mas com nossa prosódia,
nossa maneira brasileira de expressar. Essa implicância com a
prosódia americana com palavras em português me incomodava e foi
uma obsessão em toda minha vida profissional. Eu tentaria fugir
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desses vícios mesmo correndo o risco de despertar antipatias ou até
mesmo sofrer represálias não sendo escalado para trabalhar.

MAGNÍFICA ESCOLA DE INTERPRETAÇÃO. RADIO ATORES


MARAVILHOSOS.

Que orgulho, meu Deus, colocar minha voz junto à outras vozes tão
marcantes de dubladores que eu via como entidades; ANDRÉ
FILHO, NAIR AMORIM, MIRIAM TEREZA, CLEONIR DOS SANTOS,
ANTONIO PATIÑO, LUIZ MOTA, a imortal voz de KOJAK, MILTON
LUIZ, perfeito, impressionante como o macaco chefe de O PLANETA
DOS MACACOS, e em Barnaby Jones, WALDIR SANTANA, BRUNO
NETO, ANTONIO MORENO, ORLANDO DRUMOND, ANGELA
BONATTI, NELY AMARAL, DARCY PEDROSA, ALVARO REZENDE,
FRANCISCO MILANI, CLAUDIO CLAVALCANTI, MILTON GONÇALVES,
ARY COSLOV, LUIZ MANOEL, PAULO GONÇALVES, ENIO SANTOS,
ROBERTO MAYA, ARTHUR COSTA FILHO, GUALTER DE FRANÇA,
OTÁVIO AUGUSTO, FELIPE WAGNER, IDA GOMES, RUTH SCHELZKY,
SELMA LOPES, NEIDA RODRIGUES, MIRIAM TEREZA, RODNEY
GOMES, NELY AMARAL, MAGALHÃES GRAÇA, JURACIARA
DIÁCOVO,JORGE RAMOS, NILTON VALÉRIO, CARLOS LEÃO, SONIA
FERREIRA, ANGELA BONATTI, PAULO PINHEIRO, SONIA DE
MORAIS, ALBERTO PEREZ. Deus do céu, que timaço!

Depois de ficar o dia inteiro pelos estúdios da HERBERT fazendo


pequenas participações e prestando atenção nas vozes e na maneira
de dublar desses profissionais maravilhosos, voltava pro hotel. A
cabeça cheia dos acontecimentos do dia, do que se falou e se dublou
nos estúdios, e lembranças das atividades de mais uma jornada de
sonhos e coices. O saldo artístico do dia era pífio; no estúdio A eu
entrava pra fazer apenas uma única fala numa única cena: “aqui está
seu troco, madame...” na boca de um taxista em Nova York, pulava
para o estúdio B pra ser a voz em off de algum aeroporto
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anunciando uma partida, palavras ad libitum nos vozerios de festas,
saguões de aeroportos, ambientação na rua para os artistas em
primeiro plano, um barman que fala “o que vai querer senhor?” para
Columbo em trabalho de investigação que entra num pub pra fazer
perguntas informais ao barman.

As ocorrências de mais um dia na Herbert passavam como um


celuloide colorido na minha mente. O pára anda do ônibus 220 vai
me relaxando e me despeja na Praça Mauá, seu ponto final.

E para minha pensão fétida, barulhenta. Antes de subir as escadas


rangentes de madeira velha da pensão, aplacava a minha fome
numa das pastelarias de chinesas nas imediações. Comia apenas um
triangulo de pizza, um copo de caldo de cana e entrava na pensão.
Estava com o estômago forrado. Ia direto pra minha vaga,
esperando uma chance de um banho que em pouco tempo ficou fixo
nas madrugadas, e me deitava. Quanto mais cedo eu dormisse, mais
cedo acordaria, podendo portanto tomar um banho, fazer a barba,
usar o banheiro e sair pra batalha do dia. O ônibus 220 saia da praça
Mauá e me deixava em frente à Herbert.

Antes, de estômago vazio, eu descia na Praça Saens Peña pra tomar


uma média de café com leite e um pão francês. Comia em pé
mesmo, e pegava o próximo ônibus Usina, podia ser um 220 de
novo, ou 226, 233, 219, 416,415. Todos esses passavam pela Usina
em direção à barra e me despejavam em frente à Herbert. Passaria
mais um dia pelos estúdios A, B, D, D, E dublando, sempre escalado
por Waldir Fióri.

Hoje um soldado na guerra que dava um grito ao ser mortalmente


atingido por uma bala inimiga, um bandido no velho oeste que diz ao

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principal homem mau da película aguardando a diligência pra
assaltarem - “”olhe, Stu, quem vem lá!”

Uma fala aqui, outra acolá. Entrei no estúdio do Luiz Manoel e


encontrei uma cara nova; DIANA MOREL. Voz espetacular. Mulher
bonita, soberana na maneira de se expressar dialogando com Luiz. O
temperamento? Conheci imediatamente dublando um Jonhy qualquer
que contracenava com a artista dela. “Quem é você? Nunca o vi por
aqui. Aliás, nem poderia porque não venho muito a essa empresa...”
Antes que eu respondesse ela levou o fone ao ouvido e me mandou
fazer o mesmo, encerrando a conversa bruscamente. Ensaiamos,
gravamos, ensaiamos gravamos. Até que ela voltou a falar comigo.

Com um sorriso estereotipado, aberto. Os olhos brilhantes invocando


meu profissionalismo. Meu cavalheirismo. Sem entender as frases
curtas, entremeadas com risinhos sarcásticos, não entendia aonde
ela queria chegar. Sempre mudo, pensei – qual foi a merda que fiz
dessa vez?

Com o sorriso imorredouro entendi que ela estava se queixando de


eu não manipular o script. Atividade que a maioria dos dubladores
não gosta de desempenhar. Eu adorava. Todas as vezes que entrei
num estúdio chamei pra mim a função de manipular o escript, dobrar
e deixar visivel pra todos os profissionais na bancada, especialmente
os colegas de baixa estatura já que tenho 1 metro e 85.

A quantidade de páginas de um filme a ser dublado pode variar de


30 a 100. A diferença é simples de explicar; um episódio de KOJAK
deve ter no máximo 15 páginas, nem isso. Um filme como GUERRA E
PAZ ou BEN HUR pode ter até 100 páginas. Manipular as páginas, à
procura das cenas que são numeradas antecipadamente pelo diretor
é tarefa chata. Chamamos essas cenas de loop que são pequenos
trechos com duração de 20 segundos cada loop. Portanto, cada
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página tem que ter 5 loops. Digamos que o loop 35 é o último da
página, mas como é relativamente grande, continua na página
seguinte, ou seja; o loop 35 está metade no pé da página e a outra
metade no inicio da página seguinte. A tarefa de posicionar isso na
bancada para uma leitura confortável e ao alcance de todos é chata,
bastante enjoada. Ninguém gosta, percebi depois, obsevando os
profissionais lidando com isso. O sarcasmo de DIANA MOREL deixou
isso bem claro, quando tirou as mãos do script deixando a mim a
tarefa. Bendito sarcasmo! Adorei a tarefa.

Que eu desempenhava automáticamente cada vez que chegava à


bancada pra gravar. Os dubladores percebendo meu capricho e o
meu prazer fazendo isso, nem tentavam, deixavam pra mim.

Sexta feira, fim da atividade. Dia de receber os cheques no final da


tarde. Reunidos na área aguardando a entrega dos cheques já
percebi duas ou três defecções. Pessoas que chegavam, anônimas
como eu pra dublar, mal dizendo bom dia, mas pela frequência
diária, me eram familiares, não vieram buscar o pagamento.

Na segunda feira, no quadro de avisos, a tabela do Fióri, exibia


alguns nomes riscados. Eram as desistências. A cara de decepção
dos estagiários olhando o cheque era um prenúncio de que iriam
desistir. E desistiram. Vários, logo de cara. Alguns mais corajosos
desses 16 afirmaram que não voltariam ali pra perder tempo e
ganhar aquela miséria na sexta feira.

Os ramanescentes, como que procurando se protegerem, se


isolavam em algum canto da empresa pra conversar baixinho,
aguardando as chamadas pra gravar. Assim, eu fiquei sabendo que
os cinco diretores da empresa; ALBERTO PEREZ, LUIZ MANOEL,
RIBEIRO SANTOS, MARIO MONJARDIM, e WALDIR FIÓRI, e JORGE

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RAMOS foram instruídos pelo departamento pessoal de que nós
deveríamos ser escalados.

Percebemos o primeiro sinal da intolerância; apenas WALDIR FIÓRI,


aquele que entrevistou os 330 candidatos, aquele que deu os
primeiros ensinamentos, as primeiras ferramentas, nos escalava. Um
pressentimento desagradável começou a tomar conta do grupo.
Eramos ridicularizados como os discípulos do DIVINO MESTRE.
Alberto Perez fazia seus colegas dentro do estúdio se dobrarem de rir
criando pantomimas calcadas no monge de KUNG FU, um sucesso
na época, bem antes de KOJAK.

David Karradine voltava ao passado como criança sendo treinada por


seu guru e monge, portanto, nós, os dubladores novos éramos as
crianças, sentadas na posição de lótus diante do divino mestre que
filosofando nos ensinava a dublar. Eu não teria estômago pra
presenciar esse deboche. Mas, os meus colegas de incertezas
contavam isso, rindo de si mesmos.

Identifiquei muito depois deles, finalmente, os olhares hostis de


muitos desses profissionais, e não raro, as expressões de escárnio
em sua feições quando entravamos nos estúdios atendendo a
chamada do sistema de auto-falantes externos. Isso me incomodava
bastante pois não tenho esse bom humor, essa leveza de ser
ridicularizado por pessoas que eu não conhecia.

Fióri, o DIVINO MESTRE não se incomodava com o escárnio de seus


colegas. Eu me sentia mal, detestava presenciar isso.

Paulo Neiva, ator de teatro, dono de uma voz especialíssima, grave,


de um ritmo de fala incomum que causava forte impressão era um
encanto de ser humano. Sua elegância extremada, suas roupas

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caras, sua aparência finamente cuidada indicava alguém
culturalmente e socialmente muito elevado.

Seus modos eram refinados. Neiva era de poucas palavras. Mas


extremamente simpático e agradável. Devia ter entre 55 e 60 anos.

Foi a primeira vítima das hostilidades dos veteranos. A desistência


tácita do NEIVA aconteceu do meu lado. Estavamos dublando junto
do ator PAULO GONÇALVES, a voz maravilhosa de STEVE MCGARRET
de HAVAI CINCO ZERO. Estudio cheio, estávamos dublando um filme
longa metragem. Neiva foi escalado por Fióri pra dublar um padre na
cerimônia de um cemitério. Na solenidade grave do evento, a voz
do Neiva ecoou no estúdio silencioso de maneira perfeita, sóbria,
solene, calma proferindo o sermão antes do caixão baixar à
sepultura. Paulo Gonçalves falava logo após o sermão do padre. No
meio da interpretação do Neiva, Paulo largou o fone na bancada,
interrompeu a gravação, e perguntou irritado ao Neiva: “vem cá, sua
maneira de falar é assim mesmo?” Voltou a colocar o fone nos
ouvidos.

Neiva não reagiu. O movimento que fez, foi baixar a cabeça, esperar
que Paulo levasse o fone ao ouvido se posicionando pra voltar a se
ocupar do ator que estava dublando, levou também o dele ao
ouvido, e continuou a a dublar o padre. Terminado o trabalho, Neiva
se despediu de nós mansamente, educadamente. E não voltou mais.

O jogo estava começando a ficar pesado.

O fim de semana pra mim era interminável, pois não tinha o que
fazer, aonde ir. Comprava os jornais, o único gasto que me permitia.
Impossível pensar em lazer, com tantas preocupações, medos,
incertezas a me atormentar. Apaixonado por aviões, eu caminhava a
pé da praça Mauá e ia pro aeroporto Santos Dumont. Me debruçava

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na sacada que havia na parte superior e passava o dia vendo aquele
movimento fascinante de aeronaves recebendo filas de passageiros,
despejando filas de passageiros. Um espetáculo que não me
cansava. Ser comissário de bordo foi uma pretensão descartada
quando procurei a REAL AEROVIAS no Edificio Acaiaca no centro de
Belo Horizonte, logo que voltei do Canal de Suez em 1.966.

Estava à procura de uma oportunidade de testes para uma vaga. A


resposta que obtive – “você é alto demais”. A altura máxima é de....,
pois com sua estatura, tocaria o teto das aeronaves com sua cabeça.
Meio incrédulo com a afirmação preferi não insistir. Eu tinha 21 anos.
Essas lembranças me ajudavam a matar o tempo, enquanto ficava
horas no grande terraço do aeroporto admirando toda a
movimentação.

Por fim, com a tarde começando a morrer, as costas e os pés


doendo pelo tempo debruçado sem me sentar, desci as escadas para
ir embora caminhando ao longo do saguão. Foi quando vi uma cena
inesquecível, comovente de linda. O que eu vi, me emociona até hoje
quando me lembro, pelo que ela representou de afeto, de carinho,
de família. Era tudo o que eu desejaria fazer; estar com meu filho,
com minha mulher, eu queria ter uma família naquele momento de
tanta angústia e incerteza. Murilo Néri era esse modelo do que eu
adoraria ser, ali na minha frente, a poucos metros de mim, um ícone
perfeito para qualquer homem ou mulher que pensem em constituir
sua familia.

Poucos anos depois, pude comentar esse meu encantamento com o


próprio Murilo em sua sala na produtora ARTE RIO do diretor
CARLOS MANGA a ARTE RIO que ficava na Lagoa Rodrigo de Freitas.
Travamos conhecimento numa de minhas idas à produtora pra
gravar e nasceu ali uma camaradagem que durou pouco. Murilo
morreria pouco depois.
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O apresentador, dublador, locutor, narrador, jornalista, mestre de
cerimônias mais simpático que o Brasil já teve, MURILO NÉRI veio
caminhando do portão de desembarque dentro do saguão em
direção à sua mulher e os dois filhos pequenos que deviam estar na
casa dos 10 a 12 anos. Alto, segurando um cachimbo com os dentes,
casaco de camurça aberto. Os meninos pularam nele, a esposa
caminhava devagar deixando os filhos correrem à frente pra
bagunçarem o pai. Ela se aproximou, ele a beijou carinhosamente,
trocaram algumas palavras, ele sorridente o tempo todo, mas com os
dois braços atrás depois de retirar o cachimbo.

Achei curiosa a postura daquele beijo sem abraço mas tinha tudo a
ver com os garotos que puxavam ele pelas duas mangas do paletó,
balançavam, perguntavam. Ele mantinha os braços escondidos atrás
do corpo.

Eu vi toda a cena, estava a poucos metros deles pra observar, sem


que eles notassem, claro.MURILO então perguntou “em qual braço
está a surpresa?” Os meninos acertaram, gritaram de felicidade, pai
e mãe riram da algazarra dos filhotes, ato contínuo a familia foi
caminhando pra fora do aeroporto,naturalmente em direção ao
estacionamento.

Que imagens, meu Deus, que encanto, que representação perfeita


de uma família feliz. Que exemplo admirável do chefe escoltado pela
mulher, os dois filhos, a família embolada, falando e rindo em
algazarra, o aconhechego enquanto caminhavam, os barulhos da
felicidade ficando cada vez mais inaudíveis pra mim que continuava
acompanhando eles com o olhar enfeitiçado. Foi bom demais
testemunhar essa cena, que desejei fosse minha. E então me percebi
pequeno, insignificante, muito aquém de uma possibilidade assim .
Suspirando viver não a mesma cena, mas um status social assim,
achei que a estrada seria longa e difícil demais.
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Voltei caminhando pra praça Mauá, passando pela praça 15, sempre
devagar para ficar cansado mesmo, querendo que o tempo passasse
logo, pra continuar a batalha no dia seguinte.

Segunda feira, tudo de novo. Lá estávamos os remanescentes no


pátio aguardando as chamadas. Dos 16 que éramos, não
passávamos de 10 pessoas. Dentre essas, uma cantora lírica do
teatro municipal. Que voz, que interpretação, que simpatia! Dava
prazer ficar perto dela. Espirituosa, talentosa, inteligentíssima.

De um modo muito próprio, engraçado até disse que ia “picar a


mula”, não ia ficar levantando cedo, ou sendo chamada à noite pra
dublar voz de hospital “chamando médicos na emergência.” Ou
dublando aeromoças oferecendo lanche aos passageiros durante o
voo. Mais uma defecção. Não a vi mais.

O grupo ficou menor ainda. Luiz Manoel, um portuguesinho de não


mais do que 1 metro e 50 de altura, simpático, adorável, me escalou
novamente. Sinal de que acreditou no meu trabalho.

Senti minhas esperanças aumentarem muito. Obrigado, meu Deus!


Outro diretor se interessou por meu trabalho. Luiz não fez nenhum
comentário, me dispensou e voltei a ficar no pátio.

Mas antes fiz aquilo que TODOS OS DIRETORES ODEIAM: “Luiz,


você acha que fui bem? Você acha que tenho que melhorar? Eu
tenho que melhorar em que, hein?” Eu saberia depois que TODOS os
diretores querem matar os novatos que fazem isso. Minha
insegurança se devia a uma correção que LUIZ fez numa de minhas
cenas gravadas. Eu gritei pra alguém “Côrra!” Luiz mandou que eu
repetisse pra falar “CORRE” ou “VENHA” porque CÔRRA, pode soar
como PÔRRA aos ouvidos mais desatentos. Alguns exageravam. Um
diretora que ainda está na ativa, cultura zero, informação mais

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ainda, não permite que os dubladores falem TEMPO TODO. Ela acha
que é CACÓFATO por causa do som do PU de “temPO Todo. Ela
consegue ouvir PUTO como cacófato no encontro das silabas.
Idiota.Pra não ficar jogando conversa fora no tempo livre, adorava
ficar bem perto da técnica, ouvindo as vozes dos dubladores
elaborando seus trabalhos. Era meu momento de encantamento.

Uma coisa na inflexão de todos eles me chamava a atenção, me


incomodava demais; a prosódia era igual à americana.

Aquelas frases viciadas que estamos acostumados a ouvir nos filmes


dublados passaram a me incomodar quando eu tive que fazer. Eu
não conseguia fazer como todos eles nesta frase que está
práticamente EM TODOS OS FILMES DUBLADOS: “Muito bem
rapaaaaazz!” A inflexão ascendente como na prosódia americana me
matava de constrangimento. Me sentia um papagaio tendo que fazer
a mesma inflexão do ator americano.

Calado, sentado nos bancos no pátio interno, ouvia essas inflexões


me perguntando se essa expressão viciada não poderia ser mudada
pra alguma coisa próxima da nossa maneira de falar,de nos
expressar. No inicio dos filmes, há uma indicação muito clara pra
mim, de que podemos fazer essas mudanças sim; - VERSÃO
BRASILEIRA. Ou seja, poderíamos criar uma versão pra essa vinheta
que assola os filmes americanos. Anotava essas observações e ao
mesmo tempo criando frases pra substituir esse chavão quando elas
fatalmente viessem no meu texto. Se o diretor permitiria, isso era
outra questão. Fui tentar fazer isso num filme dirigido por TELMO DE
AVELAR e quase fui substituído.

A tradução era dele. Até palavrão eu ouvi. “NÃO MEXA NO MEU


TEXTO! VAI MUDAR O CARALHO! VAI MUDAR SEUS SCRIPS
CAIPIRAS EM BELO HORIZONTE! O MEU TEXTO NÃO. QUE AUDÁCIA
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A SUA QUERER MUDAR ALGUMA COISA NO MEU TEXTO, APONTAR
ALGUM DEFEITO NO MEU TEXTO!!” Fiquei esperando ser posto pra
fora do estúdio. Foi assim que conheci TELMO DE AVELAR, talvez o
mais culto, o mais bem informado, o mais sensível e inteligente dos
diretores com quem convivo até hoje. Mais um espôrro,menos um.
Já era rotina. Que começou a dar no meu saco. A bagunçar com
minha mais-valia, com minha dignidade, com o meu saber me
colocar.

Minhas implicâncias cresciam. Criava mentalmente as opções, “ POIS


É MINHA GENTE – POIS É TURMA, ENTÃO É ISSO pra substituir os
malditos MUITO BEM RAPAZES – AFINAL RAPAZES – MUITO BEM
TURMA.

É claro que os movimentos labiais que formulam essa frase jamais


vão se encaixar em ALL RIGHT BOYS.Tente, leitor, falar em inglês e
em seguida uma dessas opções. Não vão se encaixar, eu sei, mas
MUITO BEM RAPAZES também não. Portanto se não se encaixam,
não podemos falar como os brasileiros falam? Eu estava mexendo
num vespeiro e não sabia.

Quando essa frase caiu pra mim num filme do Jorge Ramos na
direção, tive que ouvir: “não mude o texto, fale o que está escrito!”
Eu tinha substituído o MUITO BEM RAPAZ, para “Então é isso,
rapaz!” Não pude. Não contra-argumentei. Gravei de novo, falando o
chatíssimo MUITO BEM RAPAZ. A imposição da autoridade do diretor
não me desanimou, não me desestimulou. Entretanto o momento
não era propício. Não dominava a atividade. O cerco de
agressividade e hostilidade estava se fechando porque as
desistências nos tornavam cada vez mais expostos, mais visíveis.

Se numa segunda feira, não tinha trabalho que me fizesse estar


disponível pra ser chamado, na terça podia não ter trabalho nenhum.
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Portanto, eu tinha o dever – assim me foi instruído na sala da
recepcionista da HERBERT – de ligar do orelhão todos os dias pela
manhã, e no final da tarde pra saber se meu nome estava nas
tabelas.

O dinherinho zelosamente guardado pra comprar triângulos de pizza


com caldos de cana, teria que ser desfalcado pra comprar tiras de
fichas de telefone da TELERJ. Ligava na terça, nos dois expedientes,
nada. Ligava na quarta, a mesma coisa. Na quinta, eu recebia os
horários; de 9 e 45 às 10 e 45 de manhã na sexta, de 16 às 17 com
Luiz Manoel, e – surpresa! – 22, 00 às 23 com Mario Monjardim.

A voz iningualável do caipira do desenho BIONICÃO, a voz divertida


do FESTUS de GUNSMOKE. Três horários na sexta feira. Fazia
contas. Que bom. Me daria ao luxo de comer um prato de comida
num restaurante barato, como SPAGHETTILÂNDIA.

TENTANDO FAZER TESTE DE LOCUTOR NAS RÁDIOS TUPI/TAMOIO.


BARRADO PELO PORTEIRO.

O que fazer nesses dois dias sem trabalho? Bater nas portas das
rádios. Na NACIONAL eu não voltaria. Resolvi tentar a rádio TUPI, e
se ia até lá, tentaria um teste para as duas emissoras; TUPI e
TAMOIO. Parti com coragem e determinação. Fui barrado pelo
porteiro da TUPI. Insisti que queria falar com o diretor artístico.
Quem sabe ele me daria uma chance, ou anotaria meu nome, ou
gravaria minha voz pra ficar no arquivo pra quando precisasse, tentei
argumentar com o babaca. De nada valeram os meus argumentos.

O porteiro, um estúpido dizia que a rádio não precisava de ninguém,


os quadros estavam completos. Finquei pé, com um pouco mais de
firmeza, insisti que quem deveria me dizer isso seria o diretor
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artístico e não ele, um porteiro. O idiota se ofendeu, e num gesto
brusco tirou o interfone do gancho apertando uma tecla. –“Fulano,
tem um cara aqui na portaria insistindo pra fazer teste de locução.
Eu já falei que não tem vaga, mas ele tá insistindo em
subir.(pausa)... Tá. Tá legal. Obrigado. Ok, tá vendo? Ele disse que
não tem vaga!”

E bateu com força o fone no aparelho. Mandar ele tomar naquele


lugar me faria bem. Evitei,virei as costas e parti direto pra rádio
Globo. Peguei um ônibus, desci na Glória e fui à pé pro prédio da
Rua do Russel.

Pelo menos o porteiro aqui foi mais profissional, mais educado,


dizendo que não tinha permissão de me deixar subir, a não ser que
alguém do departamento artístico ou jornalístico viesse me buscar.

Agradeci e saí. Não, não era fácil. Eu sabia que não era. Não me iludi
nem um minuto quando resolvi buscar a chance. Me lembrei da JB,
da minha ousadia saindo de Belo Horizonte numa quinta feira à
noite, viajando por 10 horas, indo direto da rodoviária pra avenida
Rio Branco – felizmente era perto – onde ficava a rádio pra fazer o
teste. Consegui o teste.

Por que essas rádios que são tão menores em prestigio do que a JB
me barram na pessoa de um porteiro?

Revolta sim, autopiedade nunca! Mas pra ir à JB agora era


complicado, tinha que pegar outros ônibus, gastar mais dinheiro,
resolvi dar um basta na procura. Uma terceira negativa não ia me
fazer bem. Não, deixa eu juntar mais energias,mais esperanças e
voltar a carga.

MARCIO GREYCK, UMA VAGA ESPERANÇA

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Por enquanto, o que resolvi fazer foi procurar MARCIO GREYCK. Ele
insistiu tanto comigo, me deu tanto espôrro por estar marcando
passo atrás de um balcão de mercearia em Belo Horizonte.

Quem sabe, se eu chegar à essas emissoras acompanhado por ele,


posso até refrescar a memória do porteiro da TUPI? “ Olha aqui, seu
merda, seu sem futuro, olha quem está ao meu lado, seu merda!”
Puxa, seria bom demais poder fazer isso. Rua Hilário de Gouveia,
entre Tonelero e Barata Ribeiro, endereço do apartamento do
MARCIO. Casado com Conceição, grávida de Rafael. Abraços, beijos,
um lanche no magnífico apartamento, troca de histórias da nossa
infância e por fim, o pedido.

Contei o que houve na tv Globo, ficou furioso, solidário, e me disse


pra não me preocupar. Que iríamos voltar às rádios. “Só que eu
tenho que ir à CBS continuar gravando meu LP, está quase
terminando. Faça o seguinte, pra você não ficar à toa; vamos comigo
pra lá. Fica logo depois da praça Tiradentes, na Visconde de Rio
Branco. Quando acabar de gravar, a gente volta aqui pra casa,
jantamos e conversamos mais.”

A felicidade estava batendo como tambor de atabaque no meu


coração. Depois de tanta decepção, de procura, de recusa, ser
acolhido assim, era maravilhoso. Procurei me manter invisível nas
dependências da CBS enquanto ele gravava. Terminada a sessão
voltamos pra casa. Eu ia jantar, meu Deus! Que noticia maravilhosa!
A conversa à noite com Conceição foi agradável, Marcio divertido e
engraçado como sempre, comida deliciosa. 10 da noite, hora de ir
embora. “Fica, eu durmo tarde!” “Não, já passou da hora de eu ir
embora. Quando não tiver dublagem eu volto.” Pegava um ônibus na
Nossa Senhora de Cocabana, descia na praça Mauá e entrava no
meu hotel.

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Feliz, como se tivesse jantado no CAESAR PALACE.

De volta ao pátio da Herbert, me sentia um peixe fora dágua. Mesmo


trabalhando agora com outros três diretores, não me relacionava
nem com os novatos nem com os veteranos. Bem que eu queria.
Pensava nessa coisa do DARWIN de perceber a seleção natural e não
entendia por que sendo novato não havia nenhum relacionamento
entre nós, os 9 ou 8 restantes,portanto eu não fazia parte desta
seleção e nem da outra, de veteranos.

Duas únicas pessoas, mulheres, uma delas dona de voz deliciosa,


suave, de olhos absurdamente violetas, de causar inveja a Liz Taylor,
sempre me dava um sorriso, um cumprimento. Era RUTH SCHELZKY.
A dubladora adorável de MARY TYLEER MOORE, série de sucesso.

Atriz de novelas da Excelsior, Tv Rio, Tupi. Pequenina, franzina


mesmo, de aparência muito frágil, pele muito branca parecia me
reconhecer quando eu me aproximava do pátio interno junto aos
estúdios A, B, C e D.

A outra era LEA BULCÃO prima em primeiro grau de FLORINDA


BULCÃO. Segundo ela. Um amor de moça, inteligente, adorável,
devia estar há pouco tempo na profissão. Era muito festejada pelos
colegas quando chegava.

Não a conhecia, nem sei o que fez em cinema tv, ou rádio. Ela tinha
sempre uma palavra doce, um cumprimento, um gesto de carinho.
Cheguei a me surpreender encantado além da conta por ela. Graças
a Deus, não passou de um clarão, um flash.

Meu olhar desconfiado para Paulo Gonçalves – seria eu a próxima


vítima da intolerância dele?- me deixou desguarnecido para pessoas
ainda piores do que ele. Me senti chocado, humilhado demais pela
impaciência demonstrada por Antonio Patiño quando eu não acertava
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a fala. Bufando, produzindo sons de impaciência na garganta, ele
soltava o fone na bancada e batia com os saltos dos sapatos no
chão. Murmurava palavras entredentes mas deixava escapar “...tem
que ficar atento, não tenho que ficar repetindo indefinidamente...”
Não me atrevia a olhar em direção a ele. A reação desagradável e
hostil da impaciência era provocada por mim, por ter errado no
sincronismo, por ter tropeçado na palavra ao ler, por nervosismo.

Abalado, trêmulo, eu prestava muita atenção ao inicio da cena e aos


movimentos labiais do ator que eu estava dublando. O pânico era
tanto, que me fazia errar, de insegurança, de desorientação. As
manifestações de desagrado dele me deixavam num pavoroso estado
de constrangimento. Logo eu que detesto incomodar alguém. Então
agora eu teria que me precaver contra esses dois. Tentar acertar pra
não despertar a ira deles. No ônibus, à noite, muito abatido,
envergonhado, voltava pra o hotel. Com uma sensação insuportável
de fracasso, de vergonha, de incompetência.

Na manhã seguinte, já menos encantado por estar escalado, só


pensava nos shows de grosserias. Passei incólume. Mais filmes, sem
que eu tivesse que contracenar com os dois nervosos. A paz durou
pouco tempo. Waldir Fióri me escalou num filme em que o dublador
principal era ROBERTO MAYA, e seu magnífico, incomparável, forte,
estupendo vozeirão. Maya era impenetrável, carrancudo. Sua voz era
perturbadora. Bem mais do que eu gostaria de experimentar. Aquela
história do pão do pobre que cai com a manteiga pra baixo foi toda
criada pra mim.

Tentei me aproximar da bancada pra conseguir ler o script e não


pude. A bancada semi-circular estava repleta de dubladores.
Enquanto a cena rolava, estiquei o pescoço por cima dos ombros do
pessoal na bancada pra ler e tentar decorar a fala do meu
personagem naqueles minutos de ensaio. Não havia meio de eu
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achar uma posição no grupo. Fiquei repetindo a frase enquanto eles
ensaiavam mas cometi o pecado de me distrair e ficar na frente da
lente do projetor que exibia a cena pra nós.

Droga, eu não percebi que na tela branca de um metro por um


metro diante deles, mostrava minha cabeça e meus ombros. A
posição do aparelho projetor na técnica que ficava atrás de nós,
separado por um aquário muito pequeno devia estar numa altura de
no máximo 1 metro e 80. Eu tenho 1 e 85. Preocupado em não errar,
fechei os olhos repetindo a frase do meu texto pra não causar
embaraço, pra que os veteranos, especialmente aquele que eu
estava conhecendo naquele momento não se aborrecessem.

A voz poderosa, intimidadora, lindíssima do Maya, tonitroou


magnífica no estúdio, endereçada a mim; -“ A ESTRUTURA
AMADORA DA CASA NÃO SÓ ERRA NO POSICIONAMENTO DOS
APARELHOS DE PROJEÇÃO, COMO COLOCAM AMADORES NA
FRENTE DELES, ATRAPALHANDO BASTANTE O RITMO DA
PRODUÇÃO, NOS IMPEDINDO DE VER A CENA A SER DUBLADA. Era
uma fala bem articulada, bem interpretada, eu diria até com
solenidade, encantadora, mesmo que carregada de ironia. Só então,
eu vi, pra meu horror, a minha própria sombra escura delineada da
minha cabeça e tronco ocupando quase toda a tela.

E então chegou a vez das mulheres. Embora com um sorriso nos


lábios, SELMA LOPES me chamando de querido, me disse com a voz
bem alterada que eu deveria ver várias vezes a cena a ser dublada
pra acertar de vez. “Não adianta você dizer que está pronto, e
depois ficar tentando acertar, o que acaba me obrigando a gravar
várias vezes. Portanto, veja com cuidado a cena e só diga QUERO
GRAVAR! Quando tiver certeza de que sabe o que está fazendo!!!”

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Respondi com um SIM SENHORA inaudível, prestei bastante atenção
e acertei a maldita da cena. Saí do estúdio pensando em desistir e
voltar pra casa, pedir perdão a todo mundo em BH, admitir o
equívoco, procurar a rádio, implorar pra ter meu emprego de volta.
Me reunir com meu filho e minha mulher.

Deus me livre ficar aqui nesta cidade servindo de saco de pancada


pra gente temperamental! Caramba! A coisa é muito pior do que eu
imaginava! Me sentei num dos bancos vazios do pátio, sem vontade
de ir embora, sem vontade de comer, de falar, de entrar em estúdio.
Nem vi Ruth Schelszky se sentando perto de mim no banco.
Interrompi minhas sombrias reflexões ao ouvir a voz amigável da
Ruth me oferecendo um pedaço do sanduiche que comia. Agradeci.
Era a hora do almoço, os dubladores saiam em grupos alegres
falando animadamente entrando em seus carros pra irem à rua
almoçar nos restaurantes das redondezas da Usina.

“Está gostando de dublar?” perguntou mastigando um pedaço do


sanduiche. Respondi sem convicção que estava e não acrescentei
mais nada. Queria ficar calado pra amadurecer minha decisão
dramática de desistir e voltar pra Belo Horizonte. Droga, consigo
entrar na maior empresa de dublagem do mercado, o que significa
ter sido acolhido pelo dono da empresa, mas sou hostilizado pelos
empregados em tese, porque não tenho experiência? Sou estagiário
pra isso, pra aprender, cacete! Eu misturava raiva, autopiedade,
determinação, desânimo alternadamente. Só pensava em voltar a
Belo Horizonte. Meus pensamentos eram tão confusos que não
conseguia ordenar as ideias. Pensava no porteiro de uma rádio me
dispensando, pensava naquele hotel fétido de décima categoria,
deprimente, pensava no meu filho.

Se eu pudesse pelo menos ouvir a voz dele pra me animar...Ruth


continuou provocando conversa. “O que está achando da
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dublagem?” Resolvi me abrir, falar do que sentia: “-estou adorando,
agradeço a Deus essa chance de aprender a dublar. Sou um
apaixonado por essa atividade. Mas estou pensando sériamente em
desistir. O clima pra mim está pesadíssimo, muito hostil....”

“...Me encontro numa situação desesperadora, longe do meu filho,


sem emprego, sem família, sem lugar pra morar e como se não
bastasse, venho aqui todo dia pra ser humilhado. Não sei se terei
estrutura mental e emocional pra sofrer toda essa impaciência sem
revidar da maneira como eles merecem....”

“Não tenho nem o direito de reclamar, quanto mais reagir às


grosserias dos veteranos. Mas não estou suportando....”

Ruth me fitava em silêncio, aquele mar de flores violetas nos olhos,


me olhando fixamente, sem piscar, como a esperar que eu
prosseguisse no desabafo. Só conseguiu dizer: “eles começaram um
dia também. Se esqueceram disso!” No hotel, comi a maçã, meu
jantar, que ficava sobre o travesseiro num saquinho de papel, e
apaguei. O dia tinha sido pesado. Aquela fruta saborosa, cheirosa,
forrava meu estômago o que me possibilitava dormir quase que
imediatamente. Bastava eu acordar pro estômago roncar de fome.

Dentro do 220 a caminho da USINA, agora rechaçava a idéia de


desistir da dublagem. Talvez se eu desse um tempo, quem sabe?
Uma noite bem dormida repõe energias. Voltar a BH? Pra fazer o
que? Pra me submeter ao energúmero sargento da STARLIGHT? Ao
arrrogante ANÃO da camisa amarela? Não, eu posso mais. Ainda
não me deixaram inerte no chão. Posso aguentar mais porradas.
Estou renovado. Dormi bem, estou disposto, quero continuar
aprendendo. Se vou desagradar mais uma celebridade da dublagem
não importava. É a isso que eu chamo de aprender a duras penas.
Não sei do que adiantaria isso, mas, sei lá, se eu conseguisse um
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emprego numa rádio, talvez pudesse continuar tentando dublar, mas
sem a obrigatoriedade de ser estagiário. Eram idéias absurdas,eu sei.
Chegava ao pátio ressabiado, pedindo ao meu salmo 140 que não
me deixasse fracassar, que me desse força, que orientasse minha
decisão.

Puxa vida, eu tinha conseguido quase por acaso entrar nesta


empresa emblemática, e no entanto meu entusiasmo morria a cada
dia. Olhei as tabelas, fiz o papel para o qual fora escalado, saí da
empresa e fui direto pra casa do Marcio.

“Seu Marcio Greick tá dormindo, volte mais tarde,porque ele vai ter
que acordar pra almoçar e sair pra atender compromisso!” avisou a
empregada pelo interfone. Meio dia e meia, e Marcio está dormindo,
puxa vida, deve ter trabalhado muito, feito show na noite anterior.
Saí caminhando pela Hilário, sem rumo.

Precisava falar, não da brabeza que estava vivendo, mas falar, da


nossa infância, da atual vida artística dele. Precisava recompor minha
dignidade, muito ferida, muito atrapalhada por causa do conflito
entre paixão pela profissão e os meus limites de aguentar
hostilidades. Resolvi me premiar, aplacar minha ansiedade
presenteando a primeira vítima do nosso stress; o estômago. Parti
resoluto pro centro da cidade para almoçar na SPAGHETILÂNDIA na
rua Alvaro Alvim. O prato do dia era pouquinha coisa mais cara que
meu menu diário de pizza e caldo de cana. Com a vantagem de vir
muito quente. Estava precisando, pelo menos desse calor.

Caminhando pela Alvaro Alvim, parei diante da vitrine de outro


restaurante do qual não me lembro o nome, mas devia ser de um
nível muito superior. Sempre que passei ali, a geladeira que era
posicionada para a rua ao lado da entrada exibia um BADEJO, ou
DOURADO, XERNE sem peles, a carne cor de rosa, linda, saudável,
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viçosa, decorada com batatas, tomate, cebolas, pimentões, alhos,
ramos de coentro. Todo esse arranjo repousando sobre folhas de
couve. Prontos pra ir ao forno. Morto de fome, fiquei um bom tempo
fitando a iguaria, imaginando o sabor de um peixe dessa qualidade e
o preço do prato.

Não pensei em entrar, de jeito nenhum. O preço, eu imaginava,


deveria consumir no mínimo duas horas de dublagem. Nem pensar!
Não podia gastar esse dinheiro que poderia pagar vários pratos do
dia no SPAGHETILANDIA que ficava na esquina oposta. Mas que
tentação, meu Deus! Que vontade de conhecer esse sabor. O
mineiro não tem hábito de comer esses peixes porque são de mar.
SURUBI ensopado é como frango com quiabo na culinária mineira.

Desviava meu olhar dos peixes para os garçons se movendo entre as


mesas, na esperança de que um deles viesse até a porta. Se
viessem, eu teria coragem de perguntar o preço do prato.

Estavam ocupados demais atendendo. Então, uma idéia absurda


para os meus padrões de dignidade, postura, mais valia me assaltou
e passei a considerar; vou pedir a alguém que pague esse prato de
peixe pra mim. Tomei a coragem, motivado por um acontecimento
formidável que me impressionou quando eu era ainda aquele garoto
que voltava da escola primária, almoçava e ia correndo levar o
almoço do meu pai numa marmita.

Eu vinha do grupo escolar MAURICIO MURGEL na avenida


Amazonas, andando rápido, até o final da Rua Junquilhos 988 numa
distância entre 3 a 4 quilômetros. Almoçava enquanto minha mãe
colocava a comida do meu pai numa marmita enrolada num pano de
prato, descia de novo a Rua Junquilhos pra esperar o ônibus NOVA
SUISSA na esquina de rua JAVA. Os intervalos de chegada do
coletivo eram longos.
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Me angustiava pensar na irritação do meu pai causada pela fome
quando eu finalmente entrava na oficina.

Lá vinha o “lotação” que seguia lentamente parando de ponto em


ponto ao longo da Avenida Amazonas até chegar ao seu ponto final
da Rua São Paulo junto à Praça Sete. Era uma longa e lenta
trajetória. Descia do NOVA SUISSA, andando rápido até à FEIRA DE
AMOSTRAS pra pegar o bonde BONFIM que me deixava em frente à
CAPOTARIA TIETÊ do meu pai. Nunca conseguia chegar com seu
almoço antes de 14 e 30. Meu pai com seus enormes olhos verdes
fundos de tanto sono, cansaço e fome,e irritação soltava os
cachorros contra minha moleza, a moleza da minha mãe, a preguiça
da minha mãe enquanto desfazia o enorme nó do pano de prato que
revelava a marmita quase fria e comia avidamente.

Não deixava um grão sequer de arroz. Minha mãe sempre cozinhou


mal, pois detestava ser dona de casa. Sua macarronada era um
horror de ruim, uma massaroca apimentada de gosto insuportável.
Que ela comia com prazer. Amava pimenta e o macarrão quase
derretendo de tão cozido. Era assim que ela gostava, era assim que
devíamos comer. Ái de nós se reclamássemos do sabor. Macarrão de
qualidade inferior ela deixava ficar mais de meia hora ao fogo quase
se desmanchando e frango ensopado. Tudo muito apimentado.

Foi esse o prato fixo durante TODA MINHA INFANCIA, JUVENTUDE E


PARTE DA VIDA ADULTA. A exceção muito eventualmente era o que
ela chamava de PANELADA DE “SURUBIM”. Bom, isso é devaneio, é
outra história. Pra falar do temperamento irascível, violento ao
extremo, do egoísmo e do folclore de MAGNÓLIA NEVES DA SILVA
SEIXAS, eu precisaria ocupar um livro do tamanho de toda a
enciclopédia Barsa.

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Voltando à minha volúpia olhando os peixes na vitrine da geladeira,
via clientes chegando um a um, ou em duplas, homens de negócios,
mulheres executivas, todos muito vem vestidos. Mirei num grupo de
rapazes que caminhavam alegres, já desatando os nós das gravatas,
alguns com os paletós no braço, outros com ele só jogado sobre os
ombros. Olhei pra eles, escolhi um e quando ia abordar pra fazer o
pedido, uma força invisível barrou meu passo.

Nem de longe ameacei interromper a marcha daquelas pessoas que


nem notaram aquela pessoa parada diante da geladeira à porta de
entrada do restaurante. Fraquejei envergonhado. Mesmo com aquela
lembrança formidável, em detalhes muito vivos na minha mente; um
dia, meu pai fazia seus trabalhos na oficina quando um jovem de 18
anos, não mais do que isso, vestido com uma roupa toda na cor
cinza, os cabelos cortados na moda “escovinha” pele muito branca,
olhar severo pediu licença para falar com meu pai, que concordou
parando o que estava fazendo. “O senhor poderia pagar um prato de
comida pra mim? O dinheiro que tenho aqui no meu bolso só dá pra
pagar a minha passagem de volta pra minha cidade. Vim à procura
de um emprego que não deu certo e agora quero voltar pra casa...”
Eu não conseguia desgrudar os olhos do rapaz. Sua testa estava
molhada de suor que escorria nas laterais do seu rosto. Meu pai
completamente comovido com a firmeza do rapaz concordou
imediatamente em pagar o prato de comida, metendo a mão no
bolso pra tirar o dinheiro. Não completou o gesto. O rapaz disse não
querer dinheiro, o que ele queria era um prato de comida com água,
só isso. Meu pai insistiu, ele não concordou. Papai então o convidou
pra ir ao restaurante que ficava do lado. Ordenou que dessem um
prato de comida à escolha do rapaz. Pediu então uma garrafa de
guaraná. O rapaz imediatamente recusou o refrigerante dizendo que
só queria água.

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Foi então que vi o valoroso, ríspido, abrutalhado, beberrão Oswaldo
Benedito Seixas selecionando as notas pra pagar o almoço, com os
olhos inundados de lágrimas. Ao invés de ir embora, ficou
disfarçando, conversando com o dono do restaurante. Eu assistia a
tudo isso fascinado. O prato chegou fumegante na frente do jovem
que começou imediatamente a comer. Meu pai, se despediu dele que
agradeceu dizendo “Deus lhe pague, senhor” e voltou ao prato. Meu
pai estava muito perturbado, emocionado com o que acabara de
viver. Tanto valor, tanta fibra, tanta decisão em alguém tão jovem.
Eu acabara de testemunharum flagrante encantador de firmeza de
caráter, de postura, do saber se colocar, do valor das atitudes
transparentes, que inspiram confiança. Essa lembrança desfilava
como um filme em câmara lenta na minha memória.

Voltei à realidade e olhei o grupo já puxando suas cadeiras,


colocando os paletós nos espaldares. Pensava no jovem destemido
que pediu um prato ao meu pai, e no entanto não tive a mesma
segurança do rapaz da minha lembrança. No pensamento essas
imagens e lembranças passavam como um filme acelerado. Os
jovens que eu pensei abordar, agora tinham nas mãos os grandes
cardápios que olhavam com atenção, percorrendo as páginas com as
mãos, falando com o garçon que escrevia num bloco na mão.
Perdido em meus pensamentos, sentia enorme alívio. Acreditei que
tinha varrido do meu horizonte um limite que por pouco eu próprio
estabeleci.

A mão poderosa que impediu meu ato, atirou no meu rosto uma
lição estupenda; “você pode mais do que isso. Pode resistir. Pode ir
mais longe. Se não foi hoje, será daqui a um tempo...” Senti alívio
pensando nas possíveis respostas daquele grupo:. “Não tem
vergonha de fazer esse pedido,malandro?” Essa pra mim seria a mais
cotada, a mais votada, o modelo perfeito de acordo com as leis da

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probabilidades. Meu Deus, não posso me imaginar ouvindo um
hostilidade assim...

O estômago doendo de fome, a imaginação potencializando ainda


mais o sabor daquele peixe, contrastando com a realidade palpável
de uma dura frase de negativa. De alguém que poderia não
acreditar na minha sinceridade.

Meu pai acreditou no jovem pedinte, e foi agraciado pela experiência


magnífica do contato com um bom caráter, um modelo de postura.
Eu teria a mesma sorte? Que alívio não ter pago pra ver. Não, não,
meu Deus, que horror, se tivesse que ouvir uma agressão dessas!
Não me recuperaria jamais. A vergonha seria uma eterna auto-
expiação. Nossa, que bom! Não cometi o desatino.

Saí logo da frente da vitrine dos peixes e entrei na SPAGHTILANDIA.


Comi com vontade, com prazer, com orgulho. Limpei a travessinha
redonda com a massa. Voltei caminhando da Cinelândia em direção à
praça Mauá. Estava particularmente feliz da vida. Naturalmente vou
provocar descontentamento amanhã em algum figurão, algum astro
da dublagem amanhã, então amanhã eu verei como reagir.

Hoje eu quero me sentir bem, me olhar no espelho e sentir orgulho.


Entrei antes na pastelaria pra tomar um caldo de cana como
sobremesa. Um cafezinho e pronto. Faltava pouco pra tarde acabar.
A maçã seria devorada à noite, por volta das 10 pra forrar o
estômago e poder dormir. Tirei da carteira o salmo 140 dobradinho,
li tudo lentamente, voltando às frases, pensando no sentido delas,
no quanto significava em paz interior pra mim, saber que aqueles
pensamentos expressos em palavras estavam colados ao meu corpo,
na carteira de documentos. Pensei na cara enigmática do meu
velhinho egípcio. Droga, por que não fotografei ele? Por que não
pedi o nome dele? Faria uma ampliação da imagem dele e colocaria
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num canto meu da casa que eu tinha certeza de que alugaria pra
trazer de Belo Horizonte minha mulher e meu filho pra sermos de
novo uma família.

Pensei na oração e pedi força pra resistir às caras feias, aos


comentários feitos entredentes, às piadinhas dos intolerantes, às
ironias e paródias ridículas sobre nós, diante daquele a quem
chamavam de DIVINO MESTRE. Voltei ao orelhão pra saber minha
escalação para amanhã. Não estava escalado no dia seguinte. Ótimo,
vou pro Marcio de novo. Cheguei às duas. Estava acordando naquele
momento. Se espreguiçou, me pediu pra aguardar um pouco, comeu
uma fruta qualquer, e fomos andando pra um escritório que ele tinha
na Nossa Senhora de Copacabana pouco abaixo da Paula Freitas.

Chegando lá, havia um monte de pessoas, dentre elas seu cunhado


Fernando Adour irmão da Conceição, o cantor Robert Livi, a dupla
Leno e Lilian. Fui apresentado a todos eles como o amigo de Belo
Horizonte que estava fazendo estágio como dublador na Herbert
Richers. Me sentei numa das várias poltronas do ambiente e fiquei a
tarde toda ouvindo a conversa dos pares, dos selecionados naturais,
cantores de lamê. O papo era comum de vários. Eu era espectador.
Não poderia participar das conversas. Calado estava, calado
continuava. Ouvindo toda a algazarra que faziam, eu só pensava;
“tudo o que eu quero é que ele entre comigo numa dessas emissoras
e me apresente a alguém, a algum disc jóquei, um diretor artístico,
alguém que manifeste algum interesse em me ouvir.” A tarde morria
rápida.

Sem jeito, meio encabulado, dei tchau pra todo mundo, Marcio
acenou um adeuzinho dizendo “volta aí amanhã, vamos ver se a
gente combina alguma coisa...” Claro, respondi e sai porta afora.
Tenho que ter paciência. Não adianta querer mover as pedras do
tabuleiro conforme meu desejo. Sou um dependente, sou um fardo,
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tenho que ter isso em mente pra não botar tudo a perder. Não tenho
direito algum de cobrar nada. Que eu espere então. Entro na
Herbert. Meu sangue gela. Estou fazendo outro papel pequeno num
filme com ANTONIO PATIÑO. De novo, as bufadas, os tacões das
botas, digo, sapatos batendo no chão do estúdio, o fone jogado de
maneira irritada sobre a bancada, comentários desagradáveis em voz
baixa.

Eu era mesmo um merda, um aprendiz que só fazia irritar os


figurões, as estrelas da dublagem. No guichê, sexta feira, pegando
os cheques, já não vi algumas caras que me eram familiares. Um
mês já havia se passado, e agora éramos apenas dois aprendizes, eu
e JOÃO JACY. Simplesmente 14 aprendizes desistiram de dublar.
Deus do céu, íamos ser alvo muito fácil à sanha reinante. Seriamos
muito humilhados, levaríamos muitos espôrros, causaríamos muita
irritação nos tiranos veteranos. Imagine, apenas nós dois
desconhecidos no meio de uma legião de amigos de longa data,
oriundos das mesmas rádios, TVs, cinema. A idéia da desistência
voltou a povoar minha cabeça. Levei um choque quando Francisco
Milani se aproximou de mim e perguntou: “você é o mineiro que está
pensando em desistir da profissão?”

Surpreso, lisonjeado, perturbando pelo interesse de um profissional


consagrado como ele, balbuciei que estava me sentindo mal pelo
tratamento que recebia dentro do estúdio. Então, ouvi atônito ele
dizer: “Tome, aqui está o telefone da rádio JORNAL DO BRASIL. Sou
locutor da FM. Vou ter que sair da rádio porque vou viajar com uma
peça de teatro. Vou dizer ao ELIAKIM ARAUJO sobre você. Vou
sugerir que ele faça um teste com você. Não desiste não, rapaz.
Chegou até aqui, vindo de Belo Horizonte e agora vai desistir? Não
faça isso.” Despejou toda essa carga de afeto com a cara mais
fechada do mundo, virou as costas e entrou num estúdio. Fiquei

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pasmo, perturbado, minha primeira grande felicidade depois de um
mês de sobressaltos e pensamentos conflitantes.

Esperei o dia seguinte pra telefonar. Era mais político, mais educado.
Liguei e fui atendido pelo próprio Eliakim, que se dispôs a gravar
meu teste, bastava eu ir ao prédio na avenida BRASIL numero 500.
Dava pra acreditar? Eu me arranquei de Belo Horizonte pra fazer um
teste, que não aconteceu, e agora, numa velocidade estonteante,
estou num ônibus me dirigindo à rádio que era meu sonho
inatingível? Os corredores frios da rádio no sétimo andar, aquelas
paredes forradas de papel creme, as madeiras de lei dos vários
estúdios eram uma festa para os meus olhos. Excitado, com um nó
na garganta, fui encaminhado ao ELIAKIM. Nossa empatia foi
imediata. Me deu uma pasta com vários textos, perguntou se eu
sabia alguma coisa de música clássica,respondi que sim,q eu
produzia um programa do tipo em BH. Entrei no estúdio, Elmo Rocha
gravou e me mandou sair. Dei a volta pelos estúdios e cheguei ao
corredor. Eliakim comentou entusiasmado. “Garoto, a vaga que vai
surgir, deve acontecer por esses dias. Se eu precisar de você já,
posso contar com sua disponibilidade? Pra mim você já começaria
hoje!” Ah, meu Deus, meu Deus!! Será possível?? Consegui? Meu
adorável salmo 140, meu adorável velhinho egípcio!! Ah, meu
velhinho, se eu pudesse correr pra te abraçar, minha figura linda,
afetuosa!!! Eu precisava sair daquele corredor e ir pra rua, pra chorar
de felicidade. Não ficaria nada bem isso acontecer na frente daquele
pessoal ali na técnica. Embaraçado, já com os olhos marejados, me
despedi e peguei o elevador. Na rua dei vazão ao alívio, à emoção.
Chorei muito. Chorei de soluçar. De gratidão, de felicidade, de
alívio.

No sábado dessa semana, eu liguei pra dona Maria, minha sogra –


eu tinha deixado esse telefone para o ELIAKIM: 260.91.39 como
contato. Não podia correr o risco de fornecer o telefone da Herbert.
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Desconhecido como era, duvido que aquelas recepcionistas
anotariam o recado, ou me procurariam pra passar o recado. Dona
Maria Romana atendeu dizendo que “um homem que eu não sei se
é Joaquim, da rádio ligou querendo falar com você com urgência...”
Larguei o telefone e fui voando pra avenida Brasil 500. Era de
manhã. Eliakim parecia satisfeito em me ver. Queria que eu ficasse
no estúdio de FM treinando a locução padrão da emissora.

Antes me perguntou meio sem jeito se eu teria algum problema em


trabalhar à noite. Respondi que era tudo o que eu queria, porque
poderia continuar tentando a dublagem, que eu precisava muito
acabar de treinar. Exultante já me escalou às 22 horas de segunda
feira. Passei o sábado mais feliz da minha vida dentro da rádio. Meu
encantamento era total. No inicio da noite, voltei ao hotel em estado
de graça. O hotel estava práticamente vazio. Estranho, em se
tratando de um hotel em área de promiscuidade entre prostitutas,
marinheiros estrangeiros que desfilavam suas fardas brancas pelas
redondezas. Minha excitação era tanta que achei que não ia
conseguir dormir. Mas eu precisava. Precisava mais do que nunca de
energia, de energia boa, espiritual. Me sentei na beirada da cama,
abri o saquinho e quando fui levar a maçã à boca, percebi que
estava metade podre. Comi a metade boa, mas não foi suficiente
pra forrar o estômago. Virava pra lá, pra cá, e nada de dormir.
Sentia frio. Pode alguém sentir frio em março, inicio de abril? Pode.
Eu sentia. Meia noite, uma da manhã, a fome e o frio me impedindo
de relaxar, pra poder dormir em paz. Como vi que o hotel estava
com movimento muito reduzido, me levantei e fui até ao
recepcionista que se equilibrava sobre um banquinho de quatro pés
ouvindo rádio. Um grupo de homens jogava cartas numa mesa baixa
bem ao lado da recepção. Falando baixo, eu pedi a sujeito que me
emprestasse uma manta já que estava morrendo de frio. Negou,
alegando que cada vaga tinha uma manta, se ele tirasse uma, teria

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que devolver caso o hóspede quisesse. Insisti que o hotel estava
vazio, que compreendesse, que tivesse um mínimo de boa vontade.
Sem chance de convence-lo. Estava irredutível. Eu insistia porque
não conseguiria dormir com fome e com frio. Súbito, um dos homens
que jogava cartas, se aproximou, rosto de expressão dura, fechada,
mulato, 40 anos mais ou menos, me estendeu sua manta. Agradeci
dizendo que não adiantaria porque ele logo ia precisar da dele. Sem
dar atenção à minha negativa, encostou a manta no meu flanco
dizendo de maneira meio abrutalhada que não ia dormir, que
passaria a noite jogando, e que eu aceitasse a manta. Cedi,
prometendo devolver a ele na manhã seguinte. Me instruiu a deixar
a manta com qualquer pessoa que estivesse na recepção. Peguei a
manta e voei pra minha vaga. Me enfiei debaixo, puxa que delicia,
estava agasalhado.

Botei a cabeça no travesseiro, pensei detidamente no salmo 140, no


meu velhinho egípcio, agradeci a Deus as emoções desse sábado, e
mesmo com estômago vazio, apaguei. Conforme prometera, a
primeira coisa que fiz ao acordar foi levar a manta à recepção. Ainda
era o idiota da noite anterior. Perguntei pelo nome do sujeito que
tinha me emprestado a manta. O individuo me disse não saber o
nome, e que ele era taifeiro, que era comum ele se ausentar por
vários dias. Me faria muito bem se pudesse apertar a mão desse
taifeiro, tão carrancudo e no entanto capaz de um gesto de afeto,
emprestando a própria manta pra alguém que nem conhecia mas
que alegava sentir frio. Ironicamente pensei no nome da peça de
Plinio Marcos DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA. No nosso caso,
éramos dois perdidos numa noite fria. A felicidade da contratação na
JB contrastava agora com a tristeza de ir levar porrada na Herbert.
Animado pelo premio de ter sido acolhido pela rádio dos meus
sonhos, cheguei à Herbert de teto bem baixo mesmo. Já estava
tentando identificar nas caras dos atores que agora me eram bem

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familiares, quem seria o próximo a lavar a mão em mim. Sentado no
pátio aguardando a chamada pra entrar, me surpreendo com a
aproximação de RIBEIRO SANTOS, diretor de dublagem, cara
carrancuda, de poucos amigos. “Você é o mineiro que está pensando
em desistir disso aqui e voltar pra Belo Horizonte?” Surpreso,
querendo agora desmentir essa situação por causa da JB, tentei
responder mas ele me interrompeu dizendo exatamente essas
palavras: “ PRESTA ATENÇAO, GAROTO. QUANDO VOCÊ ESTIVER
DENTRO DE UM ESTÚDIO, E PERCEBER QUE OS INTOLERANTES
COMEÇAM A BUFAR E A RECLAMAR, VOCÊ TEM DUAS
ALTERNATIVAS; A PRIMEIRA DELAS É USAR SEU TAMANHO, SUA
FORÇA E MANDAR O BABACA PRA PUTA QUE PARIU. A segunda,
mais educada é essa; quando o palhaço reclamar que você está
demorando a acertar, pergunte ao diretor quem está dirigindo o
filme. NATURALMENTE VOU RESPONDER “SOU EU”. ENTÃO , VOCÊ
MANDA O IMPACIENTE A MERDA, E VOLTE A ENSAIAR SEU
TEXTO...” Meu Deus, que coisa inacreditável ouvir isso de um
profissional que até aquele momento nunca tinha me
cumprimentado!! Ribeiro Santos finalizou seu monólogo dizendo
“esses merdas começaram um dia e eram tão inseguros como você,
mas já se esqueceram disso. Manda eles se fuderem, pôrra.

Use esse seu tamanho, essa sua força e manda todos eles tomarem
no cú!” Caramba!! Eu estava me sentindo um HULK. É claro que eu
não chegaria a fazer isso, mas adquiri uma independência tão
extraordinária que entrei no estúdio dono da situação. Estava louco
pra responder no mesmo tom ao primeiro filho da puta que
demonstrasse impaciência com meus erros. E então aconteceu um
milagre; a confiança que RIBEIRO SANTOS infundiu em mim deletou
meu medo, o constrangimento, a culpa de errar junto aos figurões.
Em todos os filmes em que era escalado, raramente repetia a
gravação, acertava todas.

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Apesar dessa disposição de reagir à menor exibição de cara feia aos
meus eventuais erros, admirava o trabalho deles. Mas também
prestava atenção nos vícios melódicos que reproduziam as inflexões
padrão das interjeições e maneirismos dos filmes americanos. Se
estivesse escalado pra gravar às 9 da manhã, chegava às 8 pra ficar
na técnica do estúdio ouvindo todo o processo. O que falavam, como
resolviam dificuldades em cenas. Fascínio não é uma figura de
retórica, muito menos exagero. Era o que eu sentia ouvindo muito
perto de mim as vozes que me encantavam quando vivia em Belo
Horizonte. Mas na obsessão de aprender mais e mais, botei um foco
com lente MACRO ZOOM na interpretação deles, na articulação, na
repetição sistemática dos vícios de linguagem e tradução, nas
palavras de apoio. O primeiro dos vícios de dublagem, já me
incomodava desde que eu era um simples espectador que via filmes
dublados na tv. MUITO BEM RAPAZES. All right boys. Passando o dia
inteiro na Herbert, e ocupando um lugar muito discreto junto ao
operador de áudio, eu ficava intrigado que nenhum ator se rebelava
contra esses vícios. Todo filme dublado carrega uma tonelada de
MUITO BEM, MUITO BEM RAPAZES, BEM, NÃO EXATAMENTE.
VAMOS DIRETO AO PONTO. Restava saber se eu poderia evitar
essas expressões, substituindo-as por vocábulos do mesmo tamanho.
Me refiro aos diretores. Nem todos eram de boa paz.Resolvi me
arriscar. A cada filme que eu entrava, ficava atento pra descobrir em
que parte dos diálogos esse vicio estaria exposto.

Eu passava um traço de caneta debaixo da palavra enquanto


ensaiávamos mas não avisava nem ao colega que estivesse na
bancada dublando comigo, muito menos ao diretor. Passei incólume
por eles.

No ônibus voltando pra minha pensão na praça Mauá, eu pensava


em vários termos que pudessem ser colocados no lugar desses
vícios. Memorizava eles todos e aplicava no dia seguinte na
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dublagem. A falta de observância às minhas iniciativas substituindo
esses termos, me encorajou ainda mais. Um mês, dois, três, seis
meses. A impaciência tomou conta de mim. Já considerava meu
trabalho em dublagem desinteressante, fácil demais. Minha ambição
de estrelar como dublador principal baixou minha prudência.
Animado pelos pequenos bons papéis que Waldir Fióri me confiava,
me considerei pronto pra ser escalado em papéis centrais fosse
comédia, drama, aventura. Um desses papéis foi das coisas mais
difíceis que já fiz até hoje. Eu dublava um bandido milionário que
recebe em sua academia de ginástica montada em sua cobertura de
luxo, um policial. Se não me engano era o detetive Columbo. A cena
era insólita; o detetive se aproxima do homem que está se
exercitando em sua academia doméstica,pulando corda à maneira
dos pugilistas. Respondia ás perguntas do policial sem parar de
pular. Fióri detalhista, vendo minha hesitação enquanto ensaiava
perguntou; “você está pronto pra gravar pulando?” Não acreditei na
pergunta, fiz cara de espanto divertido. Ele confirmou, com sua
impaciência costumeira que era sim, pra eu gravar pulando, pra dar
maior realismo à dublagem. De fato, ouvindo o bandido falar, a sua
voz saia ofegante, e travas subsequentes.

A insegurança veio toda ao meu espírito. Como fazer isso, pra voz
parecer arfante, cansada, e toda metralhada? “É simples, ensaie
pulando também!” Morrendo de constrangimento tentei ensaiar
pulando. Quem pulou mesmo foi o técnico lá atrás dizendo “Fióri, o
microfone está captando as pancadas do sapato do Marcio!!” Tive
que tirar os sapatos. Ensaiei. Não conseguia ver as frases direito, já
que eu pulava mesmo bem perto do texto à minha frente. O técnico
do áudio continuou reclamando que os meu pulos estavam sendo
registrados pelo microfone. “Pule na ponta dos pés!” sugeriu Fióri.
Assim fiz. Demorou um bocado, mas consegui fazer. Superei mais
uma dificuldade. Não demorou e passei a atormentar os diretores a

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me darem filmes mais difíceis, pois eu estava achando tudo fácil
demais. As respostas evasivas não me convenciam.

O único que tentou me trazer à realidade foi RIBEIRO SANTOS,


aquele mesmo que me libertou dos meus receios, aquele que me
incentivou a ter auto-respeito, à enfrentar a arrogância de uma meia
dúzia de “celebridades” da dublagem. Na primeira vez que pedi a ele
que me escalasse em papéis melhores, respondeu que eu deveria ter
paciência, observar mais, que minha hora chegaria. Concordei
momentâneamente. Quando eu o via sozinho se movimentando
dentro da empresa, eu o abordava pedindo uma chance. Um dia, ele
me ouviu atentamente. Me olhava fixamente nos olhos ostentando o
conhecido semblante carrancudo e o humor ácido. “Tenho um papel
no meu filme pra você. É pequeno, mas é muito importante. Vamos
ver se consegue fazer.” E me deu as costas. Exultante, vibrei. Mais
um diretor a me escalar, logo, uma chance de aumentar um
pouquinho o meu faturamento mensal que não ultrapassava um
salário mínimo e meio. O filme dele seria pro dia seguinte. Ribeiro
dentre todos os diretores era considerado o mais competente, o mais
intransigente, e o mais ríspido de todos. Sómente com os
dubladores novatos, raramente com alguém do primeiro time. Cheio
de certezas e autoconfiança, ouvi meu nome chamado por Ribeiro no
sistema de alto falantes que dava pro pátio, onde ficávamos
sentados aguardando as chamadas; “Fulano, estúdio A!” Beltrano,
estúdio B!” “Sicrano, estúdio C!” Entrei. Eram cerca de 4 dubladores,
todos veteranos que estavam na bancada. Ribeiro pediu que eles se
sentassem pra eu poder gravar as cenas que me esperava. Pediu
que os dubladores não saíssem, “porque o Marcio vai gravar isso
rápido, tendo em vista que vive me cobrando papéis mais
significativos nos meus filmes. Agora chegou a vez dele. Aguardem
um minuto só.”

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Alguma coisa naquela maneira de falar me causou uma impressão
desagradável de que o que me esperava não era nada promissor.
Dinâmico, apressado, Ribeiro ordenou ao projecionista que exibisse a
primeira das várias cenas que selecionou pra eu dublar. Meu
personagem era um jogar de basquete que treinava com seu time.
Dois policiais se aproximam da quadra e o chamam pelo nome. O
meu personagem vem se aproximando, expressão grave, encarando
os policiais. Esses dizem ao jogador que ele era suspeito de um
crime. Estavam ali na quadra para prende-lo.

O jogador, tenta se defender, porém o desespero toma conta dele,


que não consegue articular as palavras por inteiro. Arfando por causa
do esforço físico de correr atrás da bola, desesperado de medo de
ser preso, chorando protestando inocência e falando. Travei contato
com a realidade da pior maneira possível. Eu simplesmente não sabia
como dublar aquilo. Tudo o que havia dublado, parecia brincadeira
comparado com aquilo que eu via na tela. Meu coração disparou,
comecei a suar mesmo no estúdio gelado, petrificado de silêncio e
medo. Os quatro profissionais que estavam sentados me olhavam
também em silêncio. Ribeiro idem, com a cara mais fechada ainda
me olhando. Perdi a conta da quantidade de vezes que tentei
ensaiar, tentando encaixar as palavras que não eram ditas inteiras
pelo personagem. Quando ele tentava falar, usava só a metade da
palavra nos movimentos de boca cheios de hesitações, paradas,
engolidas em seco, choro, choro falando. Tentei uma, duas, 5 vezes.
O tempo era precioso, correndo contra mim e a favor da tese do
Ribeiro. Se eu não conseguisse resolver a cena em 6 minutos, teria
que sair do estúdio e outro dublador seria convocado às pressas pra
fazer o papel. Por fim, derrotado pela minha inexperiência, pela
impaciência do Ribeiro, pelo meu excesso de auto-confiança, pela
censura que via no semblante daqueles 4 silenciosos dubladores
sentados me olhando, baixei minha cabeça pedindo desculpas,

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desistindo de tentar dublar o jogador. Ribeiro não fez por menos. Mal
humorado, olhou o relógio me mostrando o tempo precioso que
perdeu comigo, me fez ver que eu ainda não estava pronto, e que o
melhor era parar de encher a paciência dele e de outros diretores. Eu
não disse palavra. De novo pedi desculpas abandonando o estúdio.
Morto de vergonha. Me perguntei se o que passei era realmente
necessário. Ele sabia que eu não tinha experiência pra dublar uma
cena tão complexa. Afastei de cara a auto-piedade, considerei
amarga a lição, porém valiosa demais. Era preciso ficar atento pra
não cair de novo uma situação como essa. Há um consenso entre
diretores e até dubladores, que aquele profissional que demora os
exatos três minutos pra dublar uma cena de 20 segundos, é um
dublador de risco, porque ele pode comprometer o ritmo e o
orçamento de um filme.

Era hábito geral de que um diretor que orçava um filme por 3 mil e
quinhentos Reais, era considerado um diretor lucrativo pois se o
Herbert destinava 3 mil e 500 pra pagar todos os dubladores daquele
filme e no final custasse só 3 mil, isso era sinal de competência, de
enxugamento de custos. Neste ponto vale a pena me deter um
pouco mais para que o leitor possa acompanhar a causa que produz
um efeito desastroso na dublagem. Aos olhos e ouvidos do público, o
trabalho mal feito denigre nossa profissão. O telespectador detesta e
não se permite questionar o POR QUE. Ele não tem essa boa
vontade de separar o joio do trigo. Não tem o tirocínio de eleger os
bons trabalhos e condenar a porcaria. O volume de filmes pra tv é
imenso e grande parte dele é feito de maneira a tentar enganar o
telespectador mas principamente todo o contingente de profissionais
que dá sustento às produtoras. Espero conseguir colocar luz nesse
raciocínio pra que o maior numero de consumidores de filmes
dublados possa ter uma idéia bem próxima do que acontece. Vou
começar do B a BA.

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Vamos colocar a WARNER enviando o filme PAPAI PINGUIN para um
estúdio de dublagem. Esse filme chega ao departamento comercial
pra ser transformado em cópias. Uma dessas cópias é enviada por
email ao tradutor que pode ser contratado da empresa ou autônomo.
Um profissional de tradução que trabalha vendo o filme com
minúcias, que confia no seu trabalho, no seu português, que que
tem a consciência de verificar e corrigir o texto depois de pronto ao
ser consultado para traduzir PAPAI PINGUIN, concorda, e dá o preço
máximo que o mercado pratica: 5 Reais por lauda. O dono da
produtora ou o seu preposto diz que não pode pagar esse preço
porque tem vários tradutores no mercado trabalhando por dois e
cinquenta a página. Já está começando a ficar podre o trabalho. O
bom profissional de tradução não se sujeita a essa pressão, não
aceita fazer o trabalho e fica em casa porque alguém, digo; vários
algúens estão prontos a trabalhar – mal – pela metade do preço por
lauda. Esse sem consciência recebe por email a cópia do PINGUIN,
coloca o texto no tradutor eletrônico, clica TRADUZIR e em menos de
meia hora o texto está pronto. Ele envia o a tradução, e não se dá
ao trabalho de “pentear” o texto que vai abarrotado de imperfeições
para o estúdio.

Na produtora, o dono entrega esse texto para o diretor, que deveria


ler o script antes acompanhando os diálogos pra ver se o texto
condiz com a situação na tela. Isso acontecia há 20 ou 30 anos. Nos
dias atuais, uma pessoa vê o filme, conta a quantidade de
personagens, entrega duas três cópias do texto, uma para o diretor,
outra para a bancada dos dubladores que vão ler esse texto pra
encaixar nos movimentos labiais dos personagens, e outra para o
técnico. Portanto, aquela que deveria ser a preocupação primordial
de um texto artístico, que é a prosódia, as correções, as informações
corretas, passa ao largo. É importante dublar logo, que haja pressa,
“começando junto com o ator e terminando junto já tá bom demais”

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era a brincadeira predileta dos diretores quando alguém da
administração vinha ao estúdio pra verificar o tempo que ainda
restava pro filme terminar a dublagem. Era imperativo, sempre foi
imperativo, hoje mais do que nunca é imperativo que se entregue o
filme antes do prazao estipulado. Então corram, paspalhos, nada de
ficar procurando defeitos ao fim de cada gravação. Temos que
atender aos pedidos de urgência do distribuidor, senão ele pára de
enviar filmes pra cá. E a concorrência está ávida pra tirar nossos
bons clientes. Portanto, o distribuidor apressa o produtor de
dublagem que nos apressa e ameaça, trabalhamos da manhã à noite
pra entregar o filme dublado ao distribuidor, e este para as estações
de tv paga e aberta. O resultado dessa padaria aparece
imediatamente. E então começa a dublagem. Num determinado
ponto de texto, o dublador se depara com diálogos que podem durar
um quarto de página sem tradução. O diretor, que deveria parar a
dublagem do filme, chamar o tradutor ao estúdio pra ele traduzir
aquela fala, não o faz. Ele,o diretor não pode perder esse tempo,
porque seu colega que por um acaso não está vivendo esse
problema vai acabar o filme antes da hora marcada, vai colocar isso
no relatório de produção, que será lido pelo patrão que por sua vez
vai enaltecer esse diretor que acabou antes do prazo previsto. Esse
dono de empresa não se interessa em saber por que esse diretor
acabou antes. Pra ele o diretor é rápido. E rapidez no entender desse
dono de birosca, perdão; empresa de dublagem é lucro.

E então ele recebe o relatório do diretor que teve a consciência do


trabalho bem feito, parou o filme e mandou que a secretária
telefonasse pro tradutor vir de casa pra traduzir aquela fala que não
foi traduzida. “Francamente, seu borra bosta, poderia ter inventado
um texto qualquer e entregue o filme dentro do prazo! E agora?
Tenho que entregar esse filme ONTEM!!!! E você e aí bancando o
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culto, respeitando a obra, perdendo seu tempo, o meu, me fazendo
perder dinheiro e a confiança do cliente na minha presteza!!!” O
leitor pode pensar que esses comentários são exagerados. Tem todo
o direito. Pois o leitor nem imagina que o diálogo é dez vezes mais
agressivo e tosco do que esse. Portanto a regra é essa; pra não
perder tempo, o diretor, ou o próprio dublador inventa um diálogo
que seja mais ou menos condizente com a cena mostrada naquele
ponto. Perdi a conta da quantidade de vezes que isso aconteceu nos
filmes que dublei. Vou citar específicamente um do CLINT
EASTWOOD. “CORAÇÃO DE CAÇADOR”. Há uma cena em que JOHN
HOUSTON, o personagem intepretado por CLINT vocifera com um
produtor do filme que está fazendo na África. É uma cena longa, que
tem a duração de quase um minuto. O tradutor deixou esse trecho
imenso sem traduzir. Sugeri parar a produção, telefonar pra casa do
tradutor, trazer ele à empresa pra completar o que deixou pra trás,
pra fazer direito seu trabalho. Não me foi permitido continuar, sob o
pretexto de que isso ia demorar muito, atrasando portanto, a
entrega do filme para a mixagem começar a fazer a montagem das
falas em português com a trilha sonora original. Nunca vi o filme,
nunca tive vontade de procurar o filme pra ver. Sinto vergonha de
ter concordado com essa desonestidade. Como dublador, não posso
me insurgir contra as decisões que um diretor toma quando está
dirigindo os atores. A mutilação que foi feita de maneira criminosa
está lá até hoje pra quem quiser comprovar. A arrogância, o
despreparo de diretores que cometem desatinos diáriamente no eixo
Rio São Paulo jamais vai acabar porque essa preocupação pela busca
da excelência quase inexiste. O distribuidor pouco interfere,
raramente opina, os donos das empresas de dublagem querem maior
volume de filmes sempre, a maioria dos dubladores não questiona
se o texto é bom ou ruim, eles querem dublar e sair voando a caça
de mais escalações em outros filmes.

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Quanto mais escalação melhor, o montante do salário no final do
mês fica mais atraente. Outro momento vergonhoso pra mim está
num dos 16 filmes que dublei de JAMES BOND. Um diretor
estressado quando me ouviu dizer “QUERO UM MARTINI COM
VODKA, BATIDO, NÃO MEXIDO” me obrigou a dizer,”QUERO UM
DRINQUE BEM GELADO”. Não estamos aqui pra fazer mídia
expontânea pra Martini ou pra qualquer vodka...”

Em outro ponto do filme O agente Q, fala dos recursos bélicos do


ASTON MARTIN para JAMES BOND que mostra encantamento ao
olhar pro carro. Não pude manter a fala no original que seria mais ou
menos assim: “ESSE É UM LINDO ASTON MARTIN”. O diretor não
concordou. Disse que não estava ali pra fazer propaganda de carros
ingleses. Irritado tentei argumentar que duvidava da possibilidade do
filme passar num fim de semana e na segunda feira uma horda de
consumidores apaixonados sairia às ruas procurando carros ASTON
MARTIN um brinquedinho de quinhentos mil dólares. Neste mesmo
filme, terminando a sequencia de barbáries contra um dos mais
fabulosos personagens do cinema mundial, JAMES BOND, não pude
falar PISTOLA WALTER, a arma letal que ele usa em caso de
agressão. Tive que falar “ESTA ARMA”.

DUARTE, ACABEI POR ME ENTUSIASMAR, E ANTECIPANDO O QUE


EU TINHA PREVISTO PRA SER COMENTADO NA PARTE EM QUE VOU
EXPLICAR POR QUE ME AFASTEI DE DUBLAGEM. ISSO É COM VOCÊ.
SE ACHAR QUE ESSE ASSUNTO PODE FIGURAR AQUI, FIQUE À
VONTADE. AINDA TENHO UM MONTE DE ACONTECIMENTOS E
BIZARRICES PARA COMENTAR, INCLUSIVE DO PRÓPRIO WALDIR
FIÓRI DUBLANDO UMA CRIANÇA QUE ASSISTIA OS PAIS BRIGANDO
À NOITE. FIÓRI FEZ UMA FALA INTEIRA COM AQUELA VOZ
RIDICULA, COM SOTAQUE BAIANO DUBLANDO UMA CRIANÇA DE 5
ANOS!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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Estamos ainda apenas no inicio de um hábito sujo,sórdido,
desonesto, disseminado por diretores em conluio com os donos de
produtoras, a dobra de vozes. E o roubo. Isso mesmo, roubo,
praticado pelo diretor contra o dublador.O estratagema continua a
ser usado, em grande parte mantido pelos próprios dubladores que
são cúmplices desse roubo. A mecânica é complexa e exige atenção
de quem lê.

Primeiro as dobras, em seguida vem a explicação de como se dá o


roubo com a cumplicidade do dublador. Nossas regras criadas e
conquistadas pelos primeiros dubladores brasileiros vem sendo
modificada ano após ano como moeda de troca com os donos de
estúdios quando em outubro se discute a convenção coletiva de
trabalho.Por exemplo; o dublador tem que ser capaz de dublar 20
cenas de 20 segundos cada no tempo máximo de 3 minutos. Qual é
então o golpe que o canalha aplica contra o dublador? Simples. Por
nossa convenção de trabalho, um dublador pode ser escalado em até
3 DOBRAS, ou seja, ele utiliza sua voz pra dublar três pequenos
papéis num mesmo filme, desde que a soma desses pequenos papéis
não seja superior a 20 LOOPS. Ou CENAS. Portanto, ele entra no
filme pra fazer a voz de um motorista de táxi que troca 2 ou três
palavras com o personagem que esta no banco de trás. Meia hora
após esse mesmo dublador dubla um velho pai da mocinha do filme.
Nesse ponto o diretor sugere ao dublador fazer umja voz afetada de
modo a parecer velho cansado. Ridículo. Com mais 20 minutos, esse
dublador agora vai dublar o barman onde o personagem entrou pra
tomar um drink com um amigo ou namorada.Pronto, em tese, o
diretor cumpriu em parte a nossa legislação pois o dublador fazendo
vozes caricatas dublou um taxista fazendo uma voz grotesca, meio
grave, fez a voz do pai da mocinha simulando voz cansada e
rascante pra dar impressão de velho falando , e completa o terceiro
papel previsto na nossa convenção dublando um barman com voz

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neutra. Pois não raro, esse diretor escala esse ator pra fazer já no
final do filme um juiz de direito que permaneceu calado durante todo
o julgamento pra dizer no final “ESSA CORTE ENTRA EM RECESSO E
VOLTA DAQUI A MEIA HORA.!” Pronto, conforme foi explicado o
dublador em tese fez esses três papéis, ganhou uma hora de
dublagem e vai pra outras produções. É aqui que o roubo se
consuma. O safado do diretor, além de faturar o seu salário como
diretor, dubla esse taxista, o velhinho, o barman e o juiz. Utilizando
vozes grotescas. Assim que entendi o funcionamento das regras de
dublagem, sempre lamentei esse sórdido recurso para baratear o
orçamento de um filme. Sempre achei que esses quatro pequenos
papéis renderiam trabalho para 4 dubladores.

Embora hoje eu seja persona non grata aos estúdios Disney por
causa de minha ousadia em desejar uma parte do imenso lucro pela
venda do desenho OS INCRÍVEIS, com guarida obtida em todas as
instancias jurídicas brasileiras, digo com orgulho; o leitor não vai
encontrar esse recuro podre, pobre nas produções dela. Um
dublador deixou de ser convocado, portanto deixou de trabalhar, o
diretor que orçou o filme em 3 mil e quinentos Reais, vai entregar o
filme todo dublado por menos do que foi calculado incialmente.
Portanto, é candidato ideal, porque traz lucro pra empresa. Às custas
da violação da nossa convenção coletiva que rege as normas de
produção e dublagem.

Voltando à prova de fogo, ao método grosseiro, áspero do Ribeiro de


dizer que eu ainda não estava preparado, considerei a atitude dele
embora cruel, construtiva. Eu precisava conter minha ansiedade.
Precisava ter cautela. Ainda não conhecia a dublagem e suas
dificuldades pra pleitear ser escalado por todos os diretores. Até este
momento, eu ficava restrito apenas à Herbert Richers. Havia ainda os
estúdios da TECNISOM que ficava no MAM, a PERI FILMES do norte
americano Ralph Norman na rua Alice em Laranjeiras, e a
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CINECASTRO que ficava na rua da Passagem em Botafgo.DUARTE,
AQUI ESTOU EM DÚVIDA SOBRE O NOME DO ESTÚDIO. FICAVA
NUM DOS ÚLTIMOS ANDARES DO NÚMERO 22 DA RUA BARÃO DO
FLAMENGO. O PROPRIETÁRIO SE CHAMAVA ALOISIO LEITE, SE NÃO
ME FALHA A MEMÓRIA. A DIRETORA DE DUBLAGEM ERA UMA
ITALIANA DE NOME CARLA CIVELLI.

Saí à procura desses estúdios na esperança de trabalhar mais,


conhecer mais, travar contato com outros diretores, conhecer seus
sistemas de direção. Assim fui apresentado a CARLA CIVELLI, uma
italiana casada com um técnico da área do cinema nacional chamado
MARIO CIVELLI. Carla devia ter entre 65 e 70 anos.

Simpática, afável, anotou meu telefone de favor, dizendo que me


convocaria pra trabalhar o mais breve possível. Esse breve possível
foi a jato. Imediatamente recebi convocação pra trabalhar com ela.
Cheguei ao estúdio na rua Barão de Flamengo numero 22 com o
coração aos pulos. Até hoje não vou conseguir explicar como pude
fazer tantos papéis importantes sob a direção de Carla Civelli, sem
enfrentar qualquer dificuldade. Com a lembrança viva do que passei
no estúdio do Ribeiro, não conseguia produzir um raciocínio lógico
que me fizesse entender a facilidade com que desempenhei os
papéis que ganhei da Carla. Um em especial foi bastante curioso,
embora sob o aspecto da ética, me agredisse. Eu fazia um piloto
instrutor na segunda guerra mundial treinando vários jovens oficiais.
Esse instrutor falava do principcio ao fim de filme. Chegando quase
ao final da jornada de trabalho, Carla me escalou em outro papel,
também de um piloto. Constrangido, tentei argumentar que se minha
voz estava presente na cara do ator principal, como eu poderia
interpretar outro personagem? Carla, com toda a segurança que lhe
era peculiar, me entregou dois chumaços de algodão dizendo:
“preciso contar com sua boa vontade porque o dublador que faria
esse papel que estou pedindo a voce pra fazer não apareceu. Preciso
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entregar o filme e só posso contar com você. Portanto, encha suas
bochechas com esse algodão de modo a disfarçar o som da sua voz,
e duble por favor. Quando ouvi o resultado desse “jeitinho” fiquei
pasmo com a modificação havida na minha voz. Meus níveis de
testosterona para trabalhar foram a níveis estratosféricos. Mas
prudentemente continuei fazendo todos os pequenos papéis que
eram destinados a mim na Herbert. Qual não foi minha surpresa
quando WALDIR FIÓRI me convocou pra fazer um teste de voz e
interpretação pra dublar o ator JAMES GARNER no seriado ARQUIVO
CONFIDENCIAL. A resposta não tardou; fui escolhido pelo cliente pra
ser a voz do detetive JIM ROCKFORD no seriado ROCKFORD FILES
em português ARQUIVO CONFIDENCIAL. A série estreou na tv
GLOBO às quintas feiras logo depois da novela da novela que vinha
depois do JORNAL NACIONAL. Não me lembro qual era.

Eu transbordava de orgulho, felicidade e autoconfiança. Animado


com o fluxo de trabalho que afluía a mim, fui á TECNISOM solicitar
uma chance de trabalho.

Meu sangue gelou quando fui encaminhado ao diretor diretor TELMO


DE AVELAR. Era nada mais nada menos que o representante direto
dos estúdios Disney no Brasil. Era também o tradutor dos textos de
todos aqueles desenhos maravilhosos. Não por acaso era ele o
criador de todas as músicas que apareciam nos desenhos. Era o
diretor que traduzia e dirigia todos os desenhos e produções da
DISNEY no Brasil com total independência. Afável, educado, me
recebeu com muita simpatia e não me reconheceu naquele foi um
incidente infeliz quando propus trocar uma palavra do texto num
filme que ele dirigia na Herbert. Eu disse a ele que tinha paixão pelas
narrações que eu ouvia nos desenhos, e estava pleiteando uma
chance de também narrar nas produções que ele dirigia. Telmo
pareceu não se importar com minha ousadia. Com aquele seu jeito
meio aéreo, de quem não está prestando atenção na conversa só
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balbuciou “ah, é, você quer fazer narrações? Ah, sim...pois não,
quero ouvir sua voz num próximo trabalho que for dirigir. Me dê seus
contatos. Forneci o de MARIA ROMANA e não me lembro como foi
que percorri o longo corredor que me levava pra fora do MUSEU DE
ARTE MODERNA. Mesmo que Telmo não me escalasse, o simples
fato de ele ter me ouvido era lisonjeiro pra mim. E porque não
esperar ser escalado? Em questão de dias, fui escalado. Cheguei ao
estúdio trepidando de entusiasmo. Cheguei bem antes da hora, aliás.
Me apresentei na técnica. Ele foi festivo, me pedindo um pouquinho
de paciência pois me chamaria logo. Chamou. Fui pra bancada. Ele
me deu o número da cena pra eu localizar no script à minha frente.
Enquanto eu procurava o projecionista colocou na tela o looop a ser
gravado. Era um jovem, no alto de uma palmeira que gritava
“PAIÊÊÊ!!”

Acabei de gritar “paiêêê!” e ouvi do Telmo: “pronto, você acabou.”


Numa fração de segundo, fiquei na dúvida se ele estava brincando
comigo, se era sério, se era teste, e se fosse teste, que merda de
teste era aquele? Telmo, da maneira mais indiferente que só ele
sabe expor no rosto, me agradeceu. Saí andando devagar, ainda sem
acreditar que eu fui àquele estúdio pra gravar “paiêêêêê!” só isso,
uma única palavra e ganhar uma hora de dublagem. Prudente, me
lembrando de RIBEIRO SANTOS e o meu desastre dublando o
suspeito jogador de basquete, fui em frente.

Antes, agradeci a oportunidade de ter ido lá só pra gravar “paiê” em


cima de uma palmeira e pedi que não se esquecesse de mim. Estava
nascendo naquele momento uma amizade e confiança que dura até
hoje. Poucas semanas depois dessa gravação, Telmo me escalou
para uma narração de Disney. Criterioso, exigente, impaciente não
me deu trégua. Quando eu gravei o primeiro dos vários blocos de
narração ele perguntou se estava tudo bem pra mim. Bastou essa
pergunta pra abalar minha confiança. “Tudo bem, e pra você?”
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devolvi. Ele me fitou por um tempo e voltou a insistir se o que eu
gravei estava correto. Mudei minha resposta porque o semblante
dele indecifrável dizia um monte de coisas que eu não conseguia
deduzir. Apenas tive a certeza de que boa coisa não era aquele
semblante. Com a voz cansada, em sua folclórica impaciência, olhou
para o projecionista na cabine e disse: - “projeta de novo esse trecho
pra ele. Quem sabe pode haver um mínimo de massa cinzenta e ele
consiga identificar as falhas na narração!” Era uma observação
indelicada, mas vindo do Telmo era um elogio, principalmente por
causa de sua personalidade afável, meio João Grandão. Não por
acaso ele foi durante décadas a voz do Pateta do Disney. Sem
qualquer alusão a ele, por favor. Ouvi seguidamente minha narração,
desistindo por fim. Eu não ouvia o que ele tinha ouvido. Não me
lembro do que ele reclamou que eu havia engolido algumas vogais.
Para compor um exemplo concreto: “O GUAXINIM, APROXIMANDO-
SE DA GAIVOT’ESCUTOU UM RUID’EXATAMENTE NO INSTANTE EM
QUE DARIA O BOT’ESTRATÉGICO...” Telmo apontava uma a uma as
vogais que minha articulação ocultou. EU ATÉ AQUELE MOMENTO
NÃO TINHA IDÉIA DE QUE FAZIA ISSO. Em gramática chama-se
ELISÃO.

O seriado ARQUIVO CONFIDENCIAL fez um relativo sucesso. Mas foi


o responsável direto por minha entrada no concorrido e atraente
mercado de gravações comerciais publicitárias. A agência de
propaganda que tinha a conta da SOUZA CRUZ, me escolheu pra ser
a voz do CIGARRO MINISTER O SUAVE SABOR PARA QUEM SABE O
QUE QUER.

Outro estúdio da cidade, de nome TELECINE, de propriedade de um


técnico de tv de nome ELIAS e outro , um grego chamado SPYROS
que existia em frente ao prédio que ainda hoje está diante da central
do Brasil, me convidou pra fazer um teste de dublagem pra um
personagem chamado HUTCH do seriado STARSKY E HUTCH. Minha
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confiança estava tinindo. O episódio com Ribeiro Santos já não me
perturbava. Estava disposto a ser convocado e fazer outra cena
como aquela ou até pior do que aquela. Com essa independência
adquirida, pude me impor como profissional, me negando a gravar
os malditos vícios de tradução que me incomodavam tanto. Até a
prosódia americana que os dubladores veteranos reproduziam eu me
negava a fazer. Uma das piores pra mim era o o famigerado “well,
well, well, well, well!” TODOS OS DUBLADORE S que eu tinha ouvido
até então gravavam assim “ORA, ORA, ORA, ORA!” Eu me recusava
a fazer isso. Falaria outra coisa, menos essa porcaria. Minha aversão
à esses vícios eu não escondia. Nos filmes que eu dublava, não
falava “MUITO BEM”, “BEM”, “MUITO BEM RAPAZES” “VAMOS
DIRETO AO PONTO” “ORA ORA ORA ORA” “NÃO EXATAMENTE”,
“APENAS FAÇA” “SEU BODE VELHO” OLÁ, MALDITO CASTOR
DESDENTADO DAS PLANICIES RESSEQUIDAS DE CREEPLE CREEK”
“LEVANTE SEU MALDITO TRAZEIRO GORDO DESTA CADEIRA” “TIRE
ESSAS MÃOS SUJAS DE CIMA DE MIM”, “NÃO TENTE BANCAR O
ESPERTINHO, HAAAAHHNN???”. “ACARICIOU GENTILMENTE SEUS
CABELOS” (gently; suavemnte)

EM TODOS OS TEXTOS TRADUZIDOS PARA DUBLAGEM, esses vícios,


lixo na acepção mais radical da palavra, estão presentes. Num
documentário sobre vida selvagem, linda a história do ganso ferido,
acolhido e tratado durante semanas por biólogos em algum lugar do
planeta. Durante a recuperação da ave majestosa, o afeto mútuo
criou situações adoráveis de carinhos, gestos, sinais. No finalzinho do
documentário, a bióloga chefe que tratou da ave, é filmada segundo
a segundo, abraçada ao ganso no barco que está levando a ave pra
ser solta em seu hábitat. O barco pára, a bióloga solta a ave, que
indecisa faz movimentos de cabeça, abre as asas e alça vôo. A cena
que poderia ser emocionante, que poderia arrancar lágrimas do
telespectador sofre um assassinato revoltante. A bióloga americana,

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grita a intervalos, chorando “RIGTH! ALL RIGHT! YES, ALL RIGHT!
YES, RIGHT!!!

A dubladora robô - só falando assim - disse exatamente o que a


tradutora escreveu: ‘CERTO!! ESTÁ BEM! ESTÁ BEM! CERTO! SIM,
CERTO!” Imagine-se leitor, à margem de uma lagoa, liberando um
ganso que alça vôo, e você gritando assim, dando adeus, e dirigindo
esses gritos à ave. Onde estava esse diretor no momento da
dublagem? Onde está a consciência dessa dubladora que não se
incomodou com esse ridículo? Outra bióloga, agora com uma
elefanta recuperada de um circo onde era maltratada na India.
Amando o paquiderme a mulher se enrosca na tromba do animal, faz
carinhos, encosta seu rosto bem perto dos olhos da elefanta e com
uma das mãos dá guloseimas pro bicho. A bióloga fala no original “
eat it, eat, good girl, good girl, are you happy? Are you? Good, good
girl!...” A dublagem mais uma vez irritando os preconceituosos
fornece elementos para mais implicância: “COMA, COMA, BOA
GAROTA, BOA GAROTA, VOCÊ ESTÁ FELIZ? ESTÁ? BOA, BOA
GAROTA!” TODAS AS CENAS de adultos ou crianças se aproximando
de cachorros, gatos, cavalos para brincar ou fazer carinhos o texto
americano viciado não muda, é sempre GOOD BOY!, GOOD BOY!
Pois o dublador é incapaz de mudar esse texto. Continua anos a fio
dizendo “BOM GAROTO, BOM GAROTO!” Ponto para os detratores
da dublagem. Mesmo admirando e adorando as vozes desses atores
consagrados da dublagem, jamais entendi como eles sendo tão
competentes, donos de leitura irreprovável, de interpretação idem,
reproduziam com absoluta fidelidade as inflexões americanas no
enunciado das frases. Eu agora, menos de dois anos depois de ter
entrado nesse meio, era um deles. Era do primeiro time. O fantasma
daquele suspeito negro jogador de basquete já havia desaparecido
dos meus temores. Os grosseirões impacientes agora faziam
pequenas participações em filmes onde o papel principal era meu.

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Paulo Gonçalves, conhecido pelo mau humor, agora era muito
camarada comigo, ao ponto de me divertir com suas histórias
engraçadas. Antonio Patiño não era impaciente comigo ou com meu
colega João Jacy. Era impaciente com ele mesmo, com a vida. Achei
mais prudente ficar bem longe dele, mesmo trabalhando com
frequência juntos. Jamais em momento algum pensei em retaliação
pelo que sofri ao lado das celebridades da dublagem. Nunca. Me
sentia compensado pelo merecimento do que me acontecia
profissionalmente.

Num único momento senti uma tentação que não passou de


tentação de mencionar de viva voz a famosa lei do retorno.
Aconteceu num filme de Elvis Presley. Meu personagem a uma certa
altura dizia que estava assumindo a direção da “Nineteenten (1910)
Fruitgum Company” na Costa Rica. O inglês que eu falava
possibilitou essa pronúncia sem qualquer dificuldade.Já o colega que
fazia um dos principais papéis tinha que responder surpreso “puxa,
estou orgulhoso de você ter assumido esse posto de diretor da
NINETEEN TEN FRUITGUM COMPANY!” Não conseguiu. Ele tentou
inúmeras vezes, sem sucesso gravar esse nome da companhia. Por
fim, o diretor, impaciente com a demora, aprovou o que pra ele
parecia o mais próximo da minha pronuncia. Confesso, foi meu
momento particular de vitória, de saborear uma revanche, de ter
abaixo de minha competência uma pessoa que foi sempre tão
arrogante nas várias vezes em que estivemos lado a lado dublando.
Fui me alimentando das deficiências desses tão acima do bem e do
mal, pra embasar minha postura, de não me achar inferior a eles, de
superar e até apagar do meu espírito a quantidade de gestos e caras
hostis quando eu lutava pra tentar acertar uma gravação. Uma das
mais escaladas e festejadas dubladoras veteranas não conseguiu
dizer a palavra BIBLIA num filme. O diretor teve que adaptar a frase
pra caber LIVRO SAGRADO, já que ela só falava “BLIBIA”. Ela tentou

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em desespero gravar BIBLIA, porque sua personagem falava em
close BIBLE. Imagine como encaixar “LIVRO SAGRADO” numa boca
que só diz “BIBLE”. Minha enorme admiração pelo trabalho desses
monstros sagrados da dublagem não diminuiu por causa dessas e de
tantas falhas que eu identificava na articulação e nos vícios de
dublagem que perpetuavam. Certo dia, dublando uma cena de
grande tensão cometi um desatino. Um colega dublava um
delegado que comandava o cerco a um bandido escondido num
prédio. O delegado falava com seus comandados por rádio. O
diálogo se deu desta maneira:

AGUIA UM, NA ESCUTA?

“sim, ouvindo alto e claro, cambio.”

MUITO BEM, FIQUE NESSA POSIÇÃO, E NÃO SAIA ANTES DO MEU


COMANDO!

“Entendido! Cambio e desligo.”

AGUIA DOIS,VOCÊ ME OUVE?

“Alto e claro, delegado!”

MUITO BEM, QUALQUER MOVIMENTO, ME AVISE. CAMBIO,


DESLLIGO!”

“Positivo”!

AGUIA 3, NA ESCUTA?”

“positivo, senhor!”

MUITO BEM, CONTINUE ATENTO. AGUIA 4, TUDO BEM?

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“posicionado e atento, senhor!”

MUITO BEM, AGUARDE MEU COMANDO.

Esse diálog monótono, viciado, continuava ao longo de toda a lauda.

Incomodado com a falta de interesse do colega em trocar esses


malditos MUITO BEM por outras expressões, aproveitei um momento
de pausa no ensaio pra apagar com minha pilot todos os MUITO
BEM. Esse colega quis ir ao banheiro rapidinho, pois estava apertado.
Por cima do rabisco escrevi coisas como “ÓTIMO, RAPAZ”
“PERFEITO, COLEGA!” “FIQUE DE OLHO” “MUITO CUIDADO” e
outras expressões. Escrevi rápido pra ele não me ver fazendo isso
quando voltasse do banheiro.

Chegando à bancada viu as rasuras e ficou puto. Questionei a


repetição monótona do ALL RIGHT, tentei argumentar que o texto
ficaria até mais dinâmico, daria mais ênfase à interpretação. Ele
irredutível disse que gravaria exatamente como o tradutor escreveu
o texto com todos os MUITO BEM. E gravou assim. “As coisas são
como devem ser, e não como você acha que devem ser...”

É, concordei, recolhi minhas barbas, minha interferência, me


conscientizando que eu deveria mudar o meu texto e não o dos
meus colegas. Eles não se incomodavam com a pobreza do texto,
não tinham interesse em tornar a frase mais coloquial, mais ao nosso
modo de falar.

Não, isso não os incomodava. Só a mim. A partir desse momento, fiz


um esforço nada fácil de tentar melhorar apenas o meu trabalho.

Mas bastava ver uma situação de “enganação” pra sentir meu


estômago doendo de vontade de falar, de cobrar. Dublando um filme
sobre um avião que faria um pouso de emergência, o diretor se
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escalou como piloto...e co-piloto deste avião. Acredite; o diretor fez
a voz mais grave, um grave esganiçado, completamente diferente do
original. Esse piloto trocava informações tensas com o co-piloto. Pra
dublar este o diretor fez uma voz aguda, angustiada, bem afônica,
tendo a certeza de que o telespectador não identificaria esse recurso.
De novo a revolta me assaltava; dois dubladores deixaram de
trabalhar. O filme perdeu em autenticidade, em verdade. Pois o
telespectador reconhece essa pouca vergonha. O difícil pra mim é
presenciar isso e não poder fazer nada pra impedir. Conhecendo meu
temperamento, tive muito medo de provocar confrontos, mas o meu
maior medo era ser afastado da dublagem por inconveniência. Eu já
estava vivendo um problema semelhante nas dublagens semanais do
seriado STARSKY E HUTCH. Toda segunda feira às 9 da manhã eu
estava a postos pra dublar o adorável detetive KEN HUTCHINSON,
ou HUTCH, simplesmente. Inicialmente, seguindo a programação das
cenas a serem dubladas, trabalhávamos apenas eu e meu amigo
JULIO CHAVES que fazia a voz do sargento STARSKY. Quando os
personagens passavam a contracenar com o chefe, interpretado pelo
ator negro ANTONIO FARGAS, ou o informante de polícia
maravilhosamente dublado por RODNEY GOMES, a eterna voz de
ROBIN companheiro do Batman, ou os personagens daquele
episódio, contracenávamos com vários colegas que vinham,
entravam no estúdio, dublavam seus pequenos papéis e iam embora.
Mas quando chegava a vez do principal papel feminino, a diretora do
filme se escalava no papel. Se ela já estava ganhando o dinheiro dela
como diretora e outros acréscimos inerentes à função de dirigir, por
que não chamar uma dubladora pra fazer o papel? Calado, eu remoia
e continha meu gênio. Na segunda feira seguinte, outro papel
feminino importante. A diretora se escalava no papel. Eu vinha
prometendo a mim mesmo que iria à VTI do empresário VITOR
BERBARA pedir pra sair da série por não concordar com esse sistema
porco de trabalhar.
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Julio Chaves ponderava, pedia que eu me reservasse só como
dublador, botava panos quentes e eu acabava por acatar as
sugestões. Um dia – obrigado ,meu santo velhinho egípcio, você não
falha! – logo na parte da manhã, eu e Julio dublávamos um episódio
que tinha um aniversário de uma menina. A diretora tinha se
escalado no papel da mãe da menina. O trabalho prosseguia durante
a manhã. Numa outra cena, completamente diferente aparecia uma
outra mulher. Perguntei à diretora quem faria aquele papel. “eu, é
claro!” Arrogante, antipática, seu perfume barato misturado com o
alcool que bebia às toneladas chegou à bancada e dublou a
personagem feminina. E então Deus me presenteou numa cena
espetacular. Encontravam-se na festa de aniversário da menina, sua
mãe e sua avó. As duas conversavam com a menina que seria
dublada...pela diretora! As três falando na mesma cena, a diretora
estava pronta pra fazer as três vozes num sistema de gravação que
seria feito uma após outra em três fitas diferentes. Neste momento
eu saí do estúdio, puto da vida dizendo à diretora que a partir
daquele momento eu não dublava mais a série, e estava naquele
momento indo ao distribuidor da série, o senhor VITOR BERBARA. E
assim fiz. Saí deste prédio que fica em frente à Central do
Brasil,peguei minha moto e fui até rua da Lapa num prédio ao lado
da ACM onde ficavam os escritórios da CENTURY NETWORK do
VITOR. Fui recebido por ele, que afável à primeira vista me convidou
a me sentar numa poltrona diante dele. Estava disposto a me ouvir.
Ouviu calado toda minha revolta. Durante todo o tempo que falei ele
não abriu a boca. Ao final me disse o seguinte; “A ATITUDE QUE
VOCÊ ESTÁ TOMANDO NÃO É SENSATA, É ANTIPROFISSIONAL E
DANOSA. SUA VOZ JÁ ESTÁ MARCADA NO PERSONAGEM, E SE
VOCÊ INSISTIR EM SE DESLIGAR DO SERIADO, VAI SER RUIM PRA
TODO MUNDO. ENTÃO EU FAÇO UM APELO AO SEU BOM SENSO, VÁ
PRA CASA, CONFIE EM MIM E VOLTE AMANHÃ PRA TERMINAR O
TRABALHO QUE COMEÇOU HOJE.
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Fui pra casa, à noite pra JB, na manhã seguinte cheguei á empresa
pra dublar. Pra minha surpresa tinha um diretor na cadeira. A
picareta incompetente tinha sido afastada da direção.

Eu e ela que nunca tínhamos nos aproximado por causa de uma


forte antipatia pessoal, voltamos a nos encontrar nos estúdios
dublando, ela apenas como dubladora, como eu.

Num filme na HERBERT ela dublava uma advogada, eu um


advogado. Numa das falas havia a palavra MARKETING, que essa
irresponsável falava “MARQUETENGUE”. O diretor de dublagem,
talvez por distração, ou por não querer despertar a ira dessa mulher,
ficou quieto. Meu recurso foi tossir durante a gravação. Ela de novo
falou MARQUETENGUE. Não me contive e corrigi a pronuncia, à
revelia do diretor, que felizmente não me contestou, apelando pra
idiota que dissesse corretamente a palavra. Esse episódio me deu a
certeza do quanto eu representava como profissional de dublagem.
Eu definitivamente não ia aceitar alguns comportamentos viciados de
direção. Era comum chegar pra trabalhar na parte da tarde quando
outros atores já tinham trabalhado na parte da manhã. Quando um
nome em inglês aparecia na minha fala, como no caso de um médico
chamado HUXTABLE, seria obrigação do diretor obrigar o dublador a
falar exatamente como o ator fala no original. O ator americano
disse OLÁ SENHOR “RÂCSTABÔUL”. Não pude falar. O diretor me
mandou falar “RÂCSTÊIBÔUL “ porque um dublador hoje na parte da
manhã falou assim.”

Respondi no ato que falaria exatamente como o ator americano


estava falando. Esta situação absurda, irresponsável, que destrói
uma obra, acontece a todo momento. Deve estar acontecendo agora
num dos mais de 20 estúdios do Rio de Janeiro, e num dos mais de
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28 estúdios de São Paulo. A lista de barbaridades contra o trabalho
de dublagem é perpetrada pelo próprio diretor, com a passividade do
dublador que não questiona, acolhe e obedece o que lhe é dito.
Infelizmente venho falando há anos que a dublagem se ressente do
preconceito de grande parte da mídia que nos ridiculariza em artigos
ou comentários em jornais, mas ela também, mos moldes em que é
feita, colabora com denodo pra esse fim. Dublando na Delarte o ator
ELLIOT GOULD que interpretava na tela um dono de agencia de
publicidade a cena transcorreu assim: Elliot com um taco de golfe
nas costas se dirigiu ao elevador.

Um personagem vai correndo atrás dele pra falar de aumento de


salário. Elliot responde que não poderia falar desse assunto naquele
momento, pois estava indo jogar golfe. Não queria chegar atrasado
pra não perder o seu DOCE PREDILETO.

O inteligente tradutor deve ter incluído a letra N na palavra CADDY,


o jovem que acompanha o golfista quando está jogando. Portanto
com a inclusão do N na palavra, naturalmente ELLIOT estava
dizendo que não queria perder o seu “doce predileto” e não o seu
caddy predileto. Numa novela mexicana, o ator que eu dublava pedia
à camareira de sua mansão que trouxesse suas calcinhas. O mesmo
inteligente tradutor traduziu como CALCINHA a palavra CALCETINES
que significa meias. Esse “tradutor” continua trabalhando para vários
estúdios no Rio de Janeiro.

Fui surpreendido um dia com um telefonema de uma repórter do


jornal ULTIMA HORA querendo me entrevistar. Essa entrevista foi
marcada nos estúdios da DELARTE (antes era TECNISOM) que havia
se mudado para a rua ELISEU VISCONTI no CATUMBI. A reportagem
era sobre o interesse que o seriado STARSKY E HUTCH despertava
no publico jovem e de resto, havia o interesse nos meus trabalhos
como narrador das histórias de DISNEY. A uma certa altura, a
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repórter me perguntou se eu mudaria alguma coisa pra melhorar a
dublagem. Respondi sem pestanejar que mudaria a tradução,
obrigando-nos a uma revisão rigorosa do texto para que os
brasileiros tivessem acesso a qualquer obra na tela num português
nosso, ao nosso alcance, falado da maneira que o brasileiro fala.
Finalizei o comentário dizendo que “DUBLAGEM É MAIS DO QUE
MUITO BEM RAPAZES”. Dias depois no caderno de cultura do jornal,
essa foi a frase, em letras enormes. Quando eu cheguei à Herbert
pra trabalhar havia uma hostilidade geral o ar. Um dos diretores,
com o caderno de cultura nas mãos gritou assim que me viu:
“chegou de BÉL ZONTE outro dia e já quer mudar a dublagem!” Fui
um bocado agredido com palavras, palavrões. Respondi no mesmo
tom e não voltei atrás na opinião. Queria mudar a dublagem sim, pra
melhor. Era só ter vontade geral.”

O volume de trabalho na Herbert era enorme, eu era escalado na


maioria desses trabalhos, diáriamente.

Trabalhava o dia inteiro, até 21 horas, meu horário limite. A partir


das 21 eu tinha que sair voando da Usina pra avenida Brasil numero
500, sétimo andar, RADIO JORNAL DO BRASIL FM.

Eu saía de um caldeirão efervescente de trabalhos variados; um


padre no estúdio A, um bandido no estúdio B, um político em
campanha no estúdio C, pra calmaria sagrada dos clássicos que
apresentava na JB, uma programação escolhida pelo maestro EDINO
KRIEGER. CLÁSSICOS JB FM. Antes de substituir o colega que fazia o
horário de 18 às 22, eu passava no restaurante do sétimo andar,
comia qualquer coisa e ia pro estúdio liberar o colega. Dentes
escovados, ligava pra casa pra falar com meus filhos, Fred, 3 anos e
Vitor com 1. Só podia me dedicar a eles nos finais de semana. Meu
casamento ia de mal a pior. Eu dizia que trabalhar na dublagem o dia
inteiro, nos intervalos do lanche e do almoço correr pros estúdios pra
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gravar comerciais, tudo o que me faltava era terminar minha noite
apresentando música clássica na melhor emissora do rádio brasileiro.
Era à noite que eu recuperava minhas energias espirituais e físicas,
relaxando ao som de músicas eternas. O meu estúdio de FM ficava
ao lado do estúdio de AM. Mas às vezes, preocupado em não chegar
a tempo pra substituir o colega que me esperava com ansiedade por
causa da mulher barraqueira que o esperava na portaria do jornal,
eu chegava às 8 horas. Com isso teria tempo de jantar com bastante
tranquilidade no restaurante, bater papo com os amigos. Como não
poderia deixar de acontecer comigo, prestava bastante atenção na
maneira como Orlando de Souza lia as edições do JB noticias de hora
em em hora. Eu ficava intrigado particularmente na edição das 20 e
30. Orlando dava a hora certa pra chamar o noticiário da seguinte
maneira: “JORNAL DO BRASIL AM, “ÔITCHI” MEIA. Logo em
seguida, uma vinheta de abertura fixa na voz do maravilhoso,
inesquecível, perfeito locutor WILLIAM MENDONÇA dizia “O JORNAL
DO BRASIL INFORMA!” Orlando então lia um noticiário com as mais
recentes noticias. Esse noticiário tinha 5, no máximo 6 laudas. Neste
horário, o locutor ORLANDO DE SOUZA, veterano do rádio carioca,
muito conceituado, era o locutor noticiarista das edições de hora em
hora do JB noticias e à meia noite O JORNAL DO BRASIL INFORMA.

Quando eu não estava presente na técnica ou no estúdio ao lado do


Orlando, eu ouvia pelo rádio do meu carro ele dizer “JORNAL DO
BRASIL AM, “ÔITCHI MEIA” Nunca o ouvi dizer “OITO E MEIA” era
todo dia “ÔITCHI MEIA!”

De novo o vermezinho que me cutucava pra interferir, pra querer


tudo certo, da maneira que eu achava que devia ser. Fernando Veiga
nosso amado diretor, culto, dono de um francês impecável que
falava com facilidade, inglês idem, era perfeccionista, e no entanto
não implicava com o OITCHI MEIA do Orlando. Jamais abri a boca
pra comentar isso com quem quer que fosse. Mas me incomodava
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muito. Em 1.978 eu estava em plena atividade profissional como
dublador sendo escalado nas quatro casas de dublagem mais
importantes da cidade; HERBERT RICHERS, TECNICOM, PERY
FILMES e TELECINE, locutor de comerciais pra rádio, tv, e cinema, e
locutor da rádio JB FM. Financeiramente eu não podia me queixar.
Estava em curso a reivindicação dos dubladores por uma
remuneração menos degradante. Depois de sucessivas e infrutíferas
tentativas de elevar o valor da hora da dublagem, foi decretada uma
paralização APENAS NO RIO DE JANEIRO das atividades da
dublagem.Estavamos em pleno regime militar, sob a presidência do
general ERNESTO GEISEL. Não podíamos nem sonhar com a palavra
GREVE. Em todos as reportagens da época, não se vê uma única vez
a palavra GREVE. Quando entrevistados, os líderes do movimento
diziam que os dubladores haviam paralisado as atividades
profissionais para tentar uma negociação salarial. A liderança do
movimento, sob a chancela do sindicato dos Artistas, cujo presidente
era o ator OTÁVIO AUGUSTO, com o apoio maciço dos dubladores
cruzou os braços à espera de um acordo que fosse bom pra classe.
Estavamos em assembleia permanente. O ministro do trabalho era
ALMIR PAZZIANOTO. (ATENÇÃO DUARTE, NÃO TENHO CERTEZA SE
ERA MESMO ALMIR PAZZIANOTO. Se não me engano, Almir foi
ministro quando DARIO DE CASTRO passou a ser nosso líder em
1.982)

As dependências do sindicato dos Artistas era pequena pra caber os


quase 200 dubladores que iam todas as noites ao 26 andar pra
tomar conhecimento das diretrizes e do avanço ou não dos contatos
com os patrões. A liderança do movimento criou várias comissões
pra manter uma base organizada do movimento, com a distribuição
de tarefas. Eu estava na comissão de comunicação com a mídia, já
que era funcionário de um jornal reacionário e muito respeitado O
JORNAL DO BRASIL. Eramos três colegas nesta comissão, sendo que

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um deles era diretor de dublagem. Embora essa fosse a primeira
greve em pleno regime militar, a chamada imprensa livre não se
intimidou e veio até nós à caça de depoimentos. Falávamos sobre
nossa insatisfação, e na manhã seguinte víamos matérias assim
como chamada “MULHER MARAVILHA PEDE AUMENTO DE SALÁRIO.
Outra mais infame ainda dizia assim “KOJAK E BARETA
INSATISFEITOS COM SALÁRIOS, PEDEM AUMENTO.” Nos 4 meses
de duração desse movimento, o tom das reportagens era de
deboche, de pura ironia. Recebíamos os repórteres, raros, que nos
procuravam nas dependências do sindicato dos artistas pra
entrevistas. As perguntas que eram obrigados a fazer nos davam a
certeza de que estavam cumprindo fielmente a tarefa imposta pelo
pauteiro dos jornais e revistas. Uma repórter da revista FATOS E
FOTOS não escondia a irritação ao fazer as perguntas. Mal ouvindo
as respostas que dávamos disparava outra pergunta. Ela
simplesmente não queria ouvir o que tínhamos a dizer. Encerrou o
elenco de quatro ou cinco questões e não escondia seu desconforto
esperando o fotógrafo fazer alguns registros. Como era de se
esperar, o que saiu nem de longe mostrava o que fazíamos. O Brasil
conhecia tímidamente através de notas curtas nas páginas internas
do JB, de O DIA, A NOTICIA, raramente alguma coisa em O GLOBO,
a primeira greve de um segmento profissional que se não era de
atividades essenciais, mexia diretamente no organograma das
distribuidoras americanas. Não tínhamos a ilusão de que poderíamos
provocar prejuízos a essas distribuidora nem aos veículos que
exibiam as produções dubladas.Os 4 meses de paralização
definitivamente não trouxeram um único tostão de prejuízo às
estações de tv, afinal elas reprisam nossos trabalhos ad infinitum
sem que isso canalize um único centavo de remuneração a nós
dubladores e tradutores.

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A liderança do movimento grevista alardeava a coragem da classe de
votar diáriamente pela paralizaçao e a permanência do estado de
assembleia permanente. Durante os 4 meses que durou a
paralização, houve um formidável trabalho social desenvolvido pelos
próprios dubladores que traziam pras dependências do sindicato
panelas cheias de salsichas com molho, almôndegas ao molho, tortas
salgadas, doces,pães, bolos, biscoitos, pizzas, toneladas de garrafas
de água mineral. Os profissionais que dependiam da dublagem pra
pagar contas e se manterem utilizavam esse fundo social, saindo de
suas casas e ficando o dia inteiro no sindicato. Era uma maneira de
não aumentar seus déficits pessoais. As contas de luz, de telefones,
gás, contas pessoais, aluguéis se acumulavam. Foi criada uma
comissão de apoio composta pelo ator OSMAR PRADO, a dubladora
MARALIZE que fazia a voz da zebrinha nas resenhas esportivas das
noites de domingo no fantástico, o ator CHICO SILVA e eu pra
levantar dinheiro oriundo de doações dentro da própria classe
artística. A generosidade das doações que eram assinaladas num
livro que chamamos de OURO deu um novo fôlego ao fundo de
manutenção para comprar coisas básicas como água mineral, café,
chá, biscoitos, leite, chocolate que eram processados nas
dependencias do sindicato, como eu disse, cujo diretor era o ator
OTAVIO AUGUSTO. Como eu circulava à bordo de motocicleta, tinha
maior raio de ação, percorrendo durante o dia emissoras de rádio,
TVs, estúdios de gravação. Ninguém se negava a doar. Uma noite,
fomos ao JARDIM BOTÂNICO solicitar uma doação do CHICO
ANÍSIO. Tivemos permissão de entrar o estúdio onde ele gravava
CHICO CITY. Ele tinha acabado de concluir a gravação do quadro do
NAZARENO e veio em nossa direção, rápido, direto e nos atendeu.
Ouviu nossa explicação, assinou um valor bem mais alto do que
todos os que assinaram o livro, e no lugar de seu nome escreveu
com letras de imprensa BRUNO MAZZEO. As únicas negativas que
recebemos foram de WALTER CLARK que nos escorraçou da portaria
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do prédio onde morava, e PAULO JOSÉ. Este vociferou contra nossa
invasão da privacidade dele, ainda mais numa manhã de domingo
quando DINA SFAT cansada de uma jornada de trabalho ainda
dormia. Pedimos perdão e nos retiramos imediatamente.

Eram essas ações e mais as doações que nós mesmos, os


independentes fazíamos que davam sustentação ao movimento que
poderia continuar assim, à míngua, mas com fôlego ainda por um
bom tempo. E então começou a circular dentro do movimento a
insatisfação daqueles que não viam uma solução imediata. Os donos
de estúdios estavam irredutíveis sobre o valor oferecido, a liderança
irredutível sobre nossas pretensões. O impasse não sofria abalos.
Dia a após dia. Minha vida financeira não sofreu qualquer
modificação. Eu tinha meu salário como locutor da JB, e gravava
comerciais para radio, tv, e cinema diáriamente. O que eu ganhava
como dublador representava muito pouco nas minhas finanças. Um
dia, particularmente sombrio, incomodado pela falta de caridade da
liderança que parecia não se importar com a penúria de vários
colegas, cheguei à sede do sindicato e comentei com um colega que
tinha a mesma independência financeira que a minha, que a situação
já não nos parecia difícil, era grave, grave demais. Nesse dia
rumores circulavam sobre dubladores que já estavam em contato
com os estúdios se oferecendo para trabalhar, voltariam pelo mesmo
valor que ganhavam antes da greve. Nesse estado de espírito, me
sentei pra ouvir mais uma vez uma resenha das atividades do dia.
Meu cérebro não registrava o que era dito. Pedi a palavra. Com toda
a força da minha convicção, olhando a assembleia de frente, fiz o
seguinte comentário; - “Os rumores que chegam aos meus ouvidos,
dizem que nossos colegas já estão dispostos a trabalhar pelo mesmo
valor de antes deste movimento. Já percebi também as reações
iradas de colegas recriminando e até ameaçando de alijar do
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mercado as pessoas que pretensamente estariam pensando em
voltar a trabalhar. Percebo também com um sentimento de asco, que
me embrulha o estômago, que esses comentários, pelo menos de
duas dubladoras, foram feitos por pessoas que tem outras fontes de
renda. Eu tenho duas fontes de renda que me permitem ficar o resto
da vida em greve. 4 meses de paralisação. 4 longos meses. Se
voltarmos a trabalhar neste exato momento, vamos trabalhar um
mês inteiro pra então receber ao final do período. Então chegaremos
ao quinto mês inadimplentes, com o valor dos nossos atrasos
acrescido de juros e multas. É cruel. É desumano. A plateia à minha
frente estava muda. Estática. O ambiente perfeito pra finalizar com
essa frase:” PORTANTO, EU DEFENDO O ENCERRAMENTO DESTE
MOVIMENTO HOJE, ACEITANDO O QUE OS ESTÚDIOS OFERECEM.
DEFENDO A VOLTA IMEDITA AO TRABALHO.
INCONDICIONALMENTE!” Nosso salário hora de 21 cruzeiros, foi
aumentando para 24 cruzeiros. O que significava menos de 4 por
cento de aumento. Houve um encontro em São Paulo em que as
propostas na mesa de negociações estavam em 16 por cento de
aumento. Um impasse impediu que fosse celebrado o acordo. Depois
desse encontro, os donos de estúdio retiraram a proposta, voltando
ao patamar de 4 por cento e encerraram as negociações.A maioria
voltou ao trabalho. Mas um pequeno grupo de dubladores
insatisfeitos se recusando a voltar ao trabalho, e insatisfeitos com o
índice oferecido pelos estúdios resolveu fundar uma cooperativa com
o sugestivo nome de COMBAT. Nesta cooperativa não haveria
patrões e empregados. Todos os 15 ou 20 membros eram os dois. A
iniciativa se revelou inócua. Poucos meses depois foi extinta. Não
havia tempo a perder, a produção estava acumulada, teríamos
inclusive que redublar alguns filmes que foram feitos com pessoas
arregimentadas aqui a e ali pra interpretar os papéis. O resultado,
como seria de se esperar foi um desastre. A carga de trabalho ficou
redobrada. Às 8 e 45 diáriamente lá estava eu dentro de um estúdio
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trabalhando. À noite corria pra JB FM, pra relaxar, descansar
enquanto apresentava CLÁSSICOS JB FM. Nesses momentos eu
pedia ao meu Salmo 140 que me desse saúde pra aguentar a minha
jornada de trabalho que nunca era inferior a 18 horas. Eu encerrava
a rádio à uma da manhã, corria pra casa em Del Castilho, dormia até
às 6 e meia, ficava de pé, e às 8 e 45 estava nos estúdios dublando.
Eu gravava os comerciais na hora do almoço.Eram esses
momentos......

Meu amado Dom Duarte, agora vou partir para o terceiro tomo.

Que Deus, meu velhinho Egípcio e o Salmo 140 ilumine nossa


criatividade. Beijos.

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Capítulo 3

TERCEIRO RASCUNHO DE
“EU CONHEÇO ESSA VOZ!”

Voltando de uma paralização de 4 meses, encontramos nas


prateleiras da Herbert um imenso estoque de filmes e séries pra
dublar em regime de urgência. Havia também os filmes devolvidos
pelas estações de tv pra serem redublados, substituindo as vozes
amadoras que foram arregimentadas durante nossa paralização. Foi
uma tentativa de demonstrar que não fazíamos falta. O grande
volume de devoluções foi a resposta que os produtores e TVs
tiveram. Houve repulsa do público ao péssimo trabalho exibido.

Eu não tinha trégua, trabalhava o dia inteiro dublando, gravava


comerciais no intervalo do almoço ou nas horas em que não estava
escalado, continuava dublando até 21 horas quando despencava da
Usina, bairro onde ficava os estúdios da HERBERT RICHERS, direto
para o prédio do JORNAL DO BRASIL na avenida Brasil 500.
Conseguia chegar à tempo de comer rápidamente no restaurante do
sétimo andar, e rendia meu colega às 22 horas. Deste horário até
duas da manhã, eu apresentava músicas clássicas ligeiras. De 20 até
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22 horas o programa CLÁSSICOS JB FM gravado era apresentado
pelo extraordinário WILLIAM MENDONÇA. De 22 até 2 da manhã, eu
apresentava ao vivo a programação que era constituída de pequenas
peças clássicas que eu anunciava de 15 em 15 minutos. Ainda hoje
me lembro de vários números que essas peças ostentavam na
lombada das caixinhas que abrigavam as fitas de 7 polegadas e
meia. Sequencia5003 – O BOI NO TELHADO – de Darius Milhaud.
Sequencia 5035: FANTASIA SOBRE TEMAS DA ÓPERA CARMEN de
Georges Bizet. Sequencia 5011 – ASTURIAS, de Isaac Albeniz com o
vilonista Narciso Yepes. Sequencia 5097 SALVA DEUS O TEU POVO
da GRANDE LITURGIA ORTODOXA RUSSA. GRAVAÇÃO REALIZADA
NA BASÍLICA ALEXANDER NÉVSKY, EM SÓFIA. Anner Bylsmá
tocando num violoncelo Pressenda de 1.835. Essas pequenas peças
eram selecionadas e programadas pelo maestro EDINO KRIEGER.
Meu único dia de folga era na quinta feira. Minha rotina diária era
muito cansativa, mas eu amava, me sentia plenamente realizado, me
sentia importante mesmo. Me achava agora um profissional do
primeiro time.

Encerrava a rádio às duas da manhã, corria pra casa no bairro de


BENFICA, fazia um lanche rápido, e antes das 3 e meia já estava na
cama, não sem antes me esfregar nos meus filhos ainda muito
pequenos que eu só conseguia ver nas quintas feiras, dia da minha
folga, e durante o dia no sábado e no domingo. À noite eu estava
diante do microfone da JB FM. Na segunda feira recomeçava tudo.
Passava o dia inteiro dublando em pé, apoiando apenas os cotovelos
nas bancadas dos estúdios escuros, com a luminosidade da tela que
media 1,20 por um metro, diretamente sobre nossos olhos. Um
abajur preso no teto do estúdio, fazia as vezes de um spot
projetando luz sobre o script que ficava na bancada na altura do
nossos olhos. Pra direcionar um facho de luz diretamente sobre o
texto à nossa frente, foi improvisado um cone feito de jornal como

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extensão do abajour com o papel ficando amarelado pelo calor da
lâmpada de 40 velas.Nesse facho de luz a fumaça dos nossos
cigarros fazia evoluções. Às vezes éramos 4, 5 ou mais dubladores
fumando enquanto dublávamos no estúdio que não tinha mais do
que 3 metros e meio por três e meio, sem janela. O Eucatex que
forrava esse estúdio liberava um cheiro de mofo com tabaco
impregnado. Nossos olhos ardiam por causa dessa fumaça. Não nos
importávamos com os fumantes passivos. Um dia, o nosso querido
ORLANDO DRUMOND, o pai dos dubladores, entrou na sala do
Herbert pra dizer que não estava mais suportando dublar na
empresa por causa desse cigarro que ele aspirava. Ele odeia o cheiro
da fumaça. Imediatamente o Herbert proibiu que se fumasse dentro
dos estúdios. A classe deve isso ao Drumond. Bendita rebeldia. Na
JB, eu era envolto por um halo de luz fria fluorescente, na
temperatura de 19 graus. No teto do estúdio moderníssimo,
projetado por arquiteto, havia pelo menos 5 “bocas” com tela de ar
condicionado. Os cinco locutores que trabalhavam diáriamente eram
fumantes e no entanto não havia cheiro de cigarro. Eu rendia meu
colega às 22 horas, me esparramava na confortável cadeira giratória,
e descansava. Aliás; o termo correto era RELAXAVA das tensões do
dia e do trabalho. Era neste horário que eu fazia minha higiene
mental, ouvindo uma programação suave, num ambiente de silêncio
absoluto. Eu era o locutor e o operador de todo o sistema de
transmissão, ou seja; colocava as fitas no ponto em duas máquinas
profissionais AMPEX.

Enquanto uma tocava, a outra já estava com a próxima música


pronta a ser irradiada. As peças que eu apresentava tinham duração
variada de modo a terminarem sempre com 13 ou 14 minutos. Eu
anunciava a ou as músicas, dizia “ESTAMOS APRESENTANDO
CLÁSSICOS PELA JB FM, dizia a hora certa, rodava alguma chamada
de produtos da empresa, geralmente as edições do Jornal do Brasil,

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e as chamadas para a REVISTA DE DOMINGO. Era uma rotina,
apesar de suave, tediosa, absolutamente imutável. A sensação que
eu tinha era a de falar de maneira linear, sem emoção alguma...num
velório. Assim que eu apresentava a primeira música, tirava o
telefone do gancho e ligava pra minha casa, pra falar com meus três
filhos. Raramente conseguia, pois às 10 e 15, 10 e meia já estavam
dormindo. Portanto, o que me restava era uma luta titânica pra não
dormir, pois o relaxamento inevitavelmente tomava conta de mim.
Aproveitava essa quietude pra rememorar as atividades profissionais
do dia. A que mais me fazia refletir eram as narrações que agora
fazia para os estúdios DISNEY, sob a direção de Telmo de Avelar.
Telmo não foi um diretor que Deus colocou no meu caminho, foi um
amigo, um anjo da guarda, um professor. Um professor exigente,
ranzinza que me questionava e me testava o tempo todo. Pelas mãos
dele eu estava me tornando um narrador e não percebia.
Começamos a gravar todas as semanas um programa delicioso que
tinha o nome de DISNEYLÂNDIA. Os filmes que eu narrava eram
apresentados nas tardes de sábado na tv Globo. Cada nova história,
era um desafio delicioso. Telmo me deixava ver a cena, eu lia o
texto, ensaiava e quando dizia “estou pronto, vamos gravar?” ele
respondia com sua voz calma, ponderada, especial – não há
substituto para a voz que ele empregava pra dublar Sir LAWRENCE
OLIVIER – “está pronto mesmo?”

Eu confirmava e gravava a cena. Terminada a gravação, olhava pra


ele esperado aprovação. Imóvel, olhando ainda a tela, me
perguntava: “tá tudo bem pra você? Gostou do que narrou? Acha
que está perfeito?” Era o que bastava pra abalar minha segurança e
afoiteza. Eu respondia meio hesitante, não acreditando muito no que
dizia. Telmo mandava o operador rodar a cena com minha narração
e ia apontando os defeitos. Como era possível eu falar tanta
imperfeição e não perceber, meu Deus?

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Na cena seguinte, eu ensaiava, já prestando atenção nas correções
da cena anterior. Gravava cheio de vontade e segurança. Ao final, a
frase que me perturbava;”está tudo bem, você gostou?” Lá ia
embora minha segurança. Eu narrava e recebia uma aula fantástica
de percepção que – me perdoem o entusiasmo – em lugar nenhum
do mundo outro profissional conseguiria. Eu olhava pro Telmo
analisando na tela minha narração e ficava pasmo com a capacidade
de prestar atenção a tantos detalhes. “Veja aqui, Marcio, nessa frase
em que você fala da foca prestando atenção no tratador. Use uma
voz mais carinhosa pra se envolver com a foca. Não fique tão acima
da foca, fique junto dela, seja carinhoso ao dizer essas e essas
palavras. Valorize mais a frase “mas salgadinho ( o nome da foca)
não desiste de seu intento!” usando uma inflexão que conte uma
história, traga a criança pra junto da sua narração. ..”

Meu Deus, se eu era escalado pra ser a voz de DISNEYLÂNDIA, já


era um privilégio abençoado, e ainda por cima era ensinado o tempo
todo é porque Deus achou que eu merecia. Perdi a conta, e nem
relacionei a quantidade de filmes e desenhos que narrei pra esse
programa de fim de semana. Desses todos, vou guardar um
profundo remorso não ter conseguido uma cópia pra mim; PATETA
NOS ESPORTES e O TOURO FERDINANDO. Tenho o resto da minha
vida pra lamentar não ter insistido em obter uma cópia. Adoraria que
meus netos me ouvissem narrar essas duas histórias em especial.
Jamais vou me esquecer do clima adorável que foi a gravação de um
longa metragem que narrei para cinema sob a direção do memo
Telmo Perle Münch: AS MELHORES MARAVILHAS DE WALT DISNEY.
Que trabalho delicioso, que clima extraordinário criamos ao gravar
esse clássico. O texto era do próprio Telmo. Que não se desgrudava
um minuto sequer do cuidado com as inflexões corretas. Ele não
deixava passar nada.

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Certo dia, cheguei à Herbert pra trabalhar bem cedo e encontrei um
ambiente alvoroçado; JOAQUIM MOTA, a voz lindíssima, única,
especial, poderosa, que dublava TELLY SAVALLAS em KOJAK, se
recusava a dublar o personagem. Ao ser convocado para gravar
disse que não iria mais fazer o personagem.

Pânico, tentativas de dissuasão, telefonistas e as secretárias do


Herbert perseguindo Joaquim o dia inteiro, pedindo que ele
atendesse o Herbert, sem sucesso. A noticia se espalhou como uma
tragédia. A série de maior audiência da tv no Brasil acabava de
receber um golpe de morte. Estavamos todos desorientados,
excitados, admirados mesmo pela atitude gerada pelo tranquilo,
afável, perfeito profissional Joaquim Motta. Todos nós nos
perguntávamos sobre os motivos, mas ninguém, rigorosamente
ninguém tinha uma explicação razoável. O caráter reservado do
Motta não permitia que o sabatinássemos à procura de resposta,
mesmo porque, ele se tornou incomunicável a partir desse momento.
Até que Gualter de França, que era dono de uma voz absolutamente
igual à voz de ROCK HUDSON, sendo portanto seu dublador,
cumpadre de JOAQUIM, soltou a bomba: o próprio Gualter, ao retirar
o telefone do gancho em sua casa pra ligar pra Herbert, percebeu na
linha cruzada o Herbert conversando com Boni sobre o compromisso
do Herbert de não escalar JOAQUIM em outro papel que não fosse o
KOJAK. Estava ali a razão do baixo faturamento do JOAQUIM em
relação a todos nós que ganhávamos mais que ele fazendo vários
personagens. Mota simplesmente não trabalhava. Ficou, sem saber,
numa geladeira de modo a não ter sua voz na cara de nenhum ator
que não fosse TELLY SAVALLAS. Gualter, revoltado com que ouviu,
foi o revelador do motivo. Boni queria que a voz do KOJAK não fosse
usada pra mais nada. E NINGUÉM TEVE A DECÊNCIA DE
PERGUNTAR OU OFERECER A ELE UMA REMUNERAÇÃO QUE
GARANTISSE ESSA EXCLUSIVIDADE. Joaquim Mota ao entender por

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fim o porque de não ser escalado, não se perturbou. Simplesmente
disse que não queria mais dublar KOJAK. Que coragem! Que
orgulho! Era um peixinho bem pequeno enfrentando e provocando
dois tubarões muito poderosos. Boni não se deu por vencido.
Selecionou ele próprio vários atores da linha de shows e novelas da
Globo que também eram dubladores pra testar as vozes no
personagem KOJAK. Herbert por seu lado também determinou que
o diretor da série, Waldir Fiori realizasse testes com os dubladores de
vozes graves pra escolher a que ficasse mais adequado à voz da
Motta. Dos dubladores, NENHUM se mostrou disponível pra fazer o
teste.

Quando o telefone tocava, ou recebíamos o recado em casa pra ir à


empresa gravar o teste, parecia que todos nós havíamos feito um
pacto tácito; “não posso, tenho consulta médica. Também não posso
ir amanhã. Nem depois de amanhã.” As respostas eram variadas mas
não passavam de fuga. A situação de opressão aumentava o tom. As
convocações tinham um tom de ameaça. Embora não fossemos
contratados com carteira assinada, poderíamos ser impedidos de
trabalhar. Bastava o Herbert dar essa ordem. Já da parte da Globo,
houve um grande desfile de atores, todos empenhados em fazer uma
voz que se aproximasse da voz do MOTA. Diáriamente chegavam à
empresa caras mais do que conhecidas do público, pra fazer o teste
na cara do Telly Savalas. A voz escolhida foi a do ator CASTRO
GONZAGA, ator veterano, pioneiro da dublagem, pai do ator e
excelente dublador REINALDO GONZAGA. Essa impasse deve ter
durado no máximo 15 dias. Escolhida a voz de Castro,
imediatamente ele comparecia à empresa pra dublar os episódios
que estavam na prateleira aguardando produção. Em represália,
Herbert proibiu que Mota fosse escalado em qualquer filme na
empresa. Pelo menos na Herbert a carreira do Mota estava
encerrada. Quando o primeiro capítulo de KOJAK foi ao ar na noite

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de Quinta feira na Globo, houve uma avalanche de protestos e
repulsa pela dublagem. A audiência da séria afundou. Não foram
exibidos mais do que 4 semanas, e saiu do ar, com índices
baixíssimos de audiência. Estava ali, batendo nos nosso ouvidos e
mentes, a importância do nosso trabalho. O valor do nosso trabalho.
Uma única atitude, de um único profissional, colocou duas empresas
de joelhos. Estava mais do que claro que se continuássemos unidos,
poderíamos ter o nosso trabalho reconhecido e com uma
remuneração menos indecente. Só precisávamos disso; coesão,
união, e paciência. A demonstração de força de JOAQUIM MOTA foi
um libelo embriagador de nosso talento e força. Mota não ficou feliz
com o desfecho. Muito espiritualizado, muito equilibrado, dono de
uma educação extraordinária, foi se retirando discretamente do
meio. Poucos anos depois morria de câncer. Não contávamos mais
com o nosso maior exemplo de coragem, força e determinação. Anos
mais tarde a mesma situação envolveria a série OS SIMPSONS. Os
acontecimentos em torno desta série eram foram estarrecedores. Os
dubladores americanos, insatisfeitos com o cachet que recebiam pra
gravar CADA EPISÓDIO, resolveram paralisar os trabalhos
reivindicando aumento. Não estavam satisfeitos com os US $
650.000,00 dólares (Seiscentos e cinquenta mil dólares!!!!) por
episódio gravado. Os dubladores brasileiros que fizeram a o sucesso
da série recebiam...350...REAIS, por episódio, talvez nem isso.
Resolveram, num ato suicida enfrentar o poderoso, temperamental,
frio, instransigente VITOR BERBARA, dono da VTI NETWORK onde
era gravada a série. Queriam um aumento no valor da hora.
Receberam um NÃO categórico, inegociável. Waldir Santana, a
inesquecível, impagável voz do SIMPSON foi o primeiro a ser
substituído. Peterson Adriano também foi. Junto com a extraordinária
SELMA LOPES. Com novas vozes a série voltou ao ar, provocando
uma avalanche de protestos dos fãs da série, que continua sendo
exibida nos canais a caba sem a força que possuía. De todas as
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relações profissionais que tive ao longo da minha carreira, Vitor
Berbara foi a mais complexa. Arrogante, excessivamente inteligente,
autoritário, mostrava um espaço largo, muito evidente, muito visível
quando em contato com qualquer pessoa. Podia ser verborrágico, ou
lacônico, indicando com isso não dar chance a quem quer que seja
de de prolongar algum eventual contato com dubladores, tradutores,
diretores de dublagem, técnicos. Nos aproximamos por causa da
atitude extremada que tomei no episódio da diretora que estava
emporcalhando um dos trabalhos de dublagem que eu mais amei;
STARSKY e HUTCH, fato que mencionei há alguns capítulos atrás.
Conhecendo-o como conheço hoje, especialmente depois de um
enfrentamento pesado que protagonizamos por causa do SENHOR
SPOCK, me causa surpresa que ele tenha agido com tamanha calma
e paciência à minha rebeldia querendo deixar de dublar o ator
DAVID SOUL no personagem HUTCH de Starsky e Hutch. Em
meados dos anos 90, houve um alvoroço na imprensa e no meio da
dublagem por causa da decisão da PARAMOUNT de redublar o
seriado de maior sucesso em todos os tempos; JORNADA NAS
ESTRELAS. Eu trabalhava na empresa dele, a VTI há alguns anos
sempre como ator convidado, sem vínculo empregatício, já que era
contratado com carteira assinada no Herbert Richers. O som original
da série já não era compatível com os modernos equipamentos
transmissores de tv, todos na era digital, portanto a distribuidora
queria redublar. Marcos Miranda, a voz do capitão KIRK, interpretado
por WILLIAM SHATNER havia falecido. Portanto, estavam à procura
de uma voz para o KIRK. A voz original do SENHOR SPOCK era do
ator, radiator GARCIA NETO que não pode aceitar o convite pois era
diretor de dublagem com contratado da Herbert Richers. Os diretores
herbertianos não tinham a nossa liberdade de dubladores pra dublar
em todas as casas do Rio de Janeiro. Portanto, por causa desse
impedimento contratual, não pode aceitar redublar seu próprio
trabalho. Portanto, convidado a fazer o teste para a voz do vulcano
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SPOCK, aceitei sem crises de consciência pois além de já saber do
impedimento do Garcia, ele próprio me disse que não arriscaria seu
posto de diretor pra redublar o seu personagem favorito. Cheguei à
VTI e encontrei pelo menos 6 pessoas estranhas com idades
variando entre 25 e 35 anos. Eram os TREKKERS, cultuadores da
série, sob a liderença de CRISTINA NASTASI, uma jornalista muito
simpática, portadora de um par de óculos de grau de lentes grossas
o que lhe deu sempre um ar de intelectual. Cristina, funcionária da
FRANCE PRESS, dona de inglês impecável, é também tradutora de
livros. Antes de entrar no estúdio pra gravar as cenas do teste,
passei por uma verdadeira sabatina por parte dos jovens. Cristina
falava em nome do grupo, adiantando que todos ali conheciam meu
trabalho, admiravam, mas estavam preocupados por causa da
maneira que faço dublagem, modificando constante o texto original,
empregando sempre termos, gírias, e cacos da prosódia brasileira
nos filmes leves e cômicos. De maneira muito educada eles pediram
que eu ficasse restrito ao texto do SENHOR SPOCK, não trocando
uma única palavra do que ele falava. Fiquei impressionado pela
seriedade daqueles jovens inteligentes. Nem por um momento me
passou pela cabeça desrespeitar seu modo de cultuar a série ou criar
embaraços me negando acatar as recomendações. Teste feito, logo
em seguida fui convocado pra dublar todo o seriado. Havia pressa
em aprontar todas as falas, não me lembro mais por que. Não custa
lembrar que eu era dublador free lancer, não tendo nenhum vinculo
empregatício com a VTI do senhor Vitor Berbara. Acontece que pelo
fato de não ser empregado da empresa, minha remuneração era um
pouco mais atraente do que a do restante do elenco.

Pelos motivos óbvios; não tendo que pagar os encargos sociais da


minha hora, naturalmente o RH repassava à minha remuneração no
final do mês esse salário indireto, que beirava 30 ou 40 por cento no
total. Era uma vantagem, não restava duvida. Duas vezes por

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semana, lá estava eu com o resto do elenco redublando a série.
Comendo o pão que o diabo amassou, tentando encaixar as falas do
SPOCK, de maneira linear, fria, e com todos aqueles nomes
impronunciáveis. O grupo de trekkers, permanecia olímpicamente na
técnica, caras coladas no vidro-aquário que separava o estúdio da
técnica, por 6 horas inteiras – duração do período de dublagem dos
episódios – nos observando. Mesmo que não estivessem nos
monitorando durante a dublagem, eu respeitaria as recomendações,
seguiria fielmente todas as indicações artísticas, mas vê-los ali
colados no vidro, calados, olhos fixos em nós por 6 horas inteiras,
era um suplicio. Se ao me falha a memória, ao cabo de 4 meses
havíamos dublado cerca de 35 episódios. Faltavam outros 35 que
estavam em fase de tradução e adaptação técnica. Passadas
algumas semanas, fui novamente convocado pelo departamento de
pessoal com o seguinte recado: “por determinação do doutor Vitor
Berbara, você terá que trazer sua carteira de trabalho para ser
assinada, e mais os documentos assim assado, certidão de
nascimento de filhos menores e terá que fazer exame médico
admissional pois será contratado com assinatura na carteira...”
Enquanto o funcionários descrevia a arbitrariedade, ouvi em silêncio
pra no fim responder “não me interessa ser contratado, já que é essa
minha condição na Herbert Richers, e além disso já tenho carteira
assinada como locutor da Rádio Jornal do Brasil. Portanto só vou
dublar o personagem nas mesmas condições do que fiz
recentemente, como profissional free-lancer. Desliguei o aparelho.

O telefone tocou de novo, desta vez era o próprio VITOR BERBARA,


impondo a condição. Recusei. Ele com seu jeito inconfundível,
autoritário, magnânimo finalizou “pra dublar o SPOCK você será
contratado com carteira assinada, segundo as novas regras que
vocês mesmos impuseram no último acordo coletivo de trabalho,
portanto a escolha é sua. Sem carteira, você não trabalha aqui!”

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“Pois então não trabalharei porque não quero que minha carteira
seja assinada!” Desliguei indiganado. “Droga, quem manda na minha
vida sou eu, quem faz as escolhas sou eu. Não me dobro! Assunto
discutido, terminado, morto, passam-se alguns dias, recebo a ligação
de Cristina Nastasi, falando docemente comigo querendo saber o
motivo da minha recusa. Expliquei. À medida em que ela falava
sobre o que iria acontecer com a série com a minha recusa, fui me
tomando por uma culpa que passou imediatamente a me incomodar.

escaldado pela paralização de quatro meses da categoria, resolveu


incentivar a criação de cursos de dublagem numa conversa comigo.
Me perguntou se eu toparia dar aulas pra novos talentos nas
dependências da empresa. Fiquei de dar a resposta com um
organograma. Nesse organograma, estabeleci que os candidatos
deveriam ser testados em várias etapas; leitura de impacto, ou seja;
ler corretamente alguns textos sem conhecimento prévio do
candidato, testes de coloquialidade, velocidade, leitura de timbres
diferenciados, conhecimento das regras que pautam nossa atividade,
consciência coletiva comparecendo às reuniões de classe em épocas
de dissídio pra discutir e aprovar mudanças.

Vencidas essas etapas, os candidatos seriam treinados por um


tempo. Depois desse tempo, eles gravariam várias cenas que seriam
avaliadas por todos os diretores de dublagem que haviam na época.
O candidato só seria contratado se todos os diretores concordassem
no SIM. Levei alguns dias elaborando uma minuta pra ser submetida
ao Herbert. Qual não foi minha surpresa ouvir do Herbert no
momento em que eu entregava uma pasta com o curso que imaginei
responder: “Pode esquecer isso, já permiti que NEWTON DA MATTA
faça o curso onde quiser. Ele vai dar o curso em casa, isso é
problema dele, de cobrar ou não, só quero é que ele forme novos
dubladores!” Rasguei a pasta de papel. Da Matta jamais compareceu
a uma única reunião de classe,não esteve conosco nos quatro meses
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de greve da categoria. Agora, esse individuo egoísta, frio, cínico,
seria o descobridor dos novos talentos. A cada dia chegavam novos
talentos. Bons dubladores. Criativos, inteligentes, pontuais. Quando a
classe foi convocada pra discutir novas reinvindicações, percebi uma
mudança notável; poucos presentes. Demorei a perceber o motivo
da baixa frequência. Não me lembro porque não nos reuníamos no
sindicato. Nossos encontros eram numa sala cedida de um hospital
no Estácio, numa área de uma igreja na Tijuca, na casa de uma
dubladora em Ipanema, raramente no sindicato. Não compareciam
mais do que 30 ou 40 profissionais. Os mesmos veteranos se
encontravam ao lado de algumas caras novas. Esses não falavam, só
ouviam e votavam os itens encaminhados pra isso. Nossa
remuneração baixa não saía desse patamar. Por essa época, um
hábito estranho se insinuou no nosso meio; as listas de
solidariedade. Elas se sucediam, uma após outra. Todo dia havia
uma lista pra ajudar alguém, que quebrou a perna e não pode
comparecer a dublagem. Alguém que está se tratando de uma
enfermidade e está se tratando em casa, portanto, impossibilitada de
atender convocações para dublar. Virou uma mania, uma febre.
Numa dessas listas, a pessoa a ser ajudada, estava com a sua vida
financeira num caos total. Contas de luz acumulados, prestes a
serem cortadas, o mesmo acontecendo com o gaz, com a água,
contas de telefone. Com o agravante de não ter gêneros alimentícios
na cozinha para os três filhos, sendo dois menores. Na esperança de
levantar um bom dinheiro, fui dos primeiros a assinar a lista expondo
um valor relativamente alto. Eu esperava com esse gesto que as
pessoas que se dispusessem a assinar, não oferecessem um real,
dois reais, como eram os valores médios de todas essas listas.
Tentativa inútil de minha parte. Logo abaixo da minha assinatura
estavam lá varias doações de um real, dois reais em valores da
época. No final do dia, fazendo a soma das doações, percebemos eu
e mais as pessoas que me ajudavam passando a lista, que o dinheiro
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arrecadado não faria frente ao déficit da pessoa necessitada, a
agraciada com a lista. Então, meio no desespero, sugeri que
fossemos juntos a outras casas de dublagem tentar comover quem
não tinha doado ainda, a fazê-lo. E assim fizemos. O dia era sexta
feira. O ano, me lembro bem, era 1.985. No sábado de manhã, o
telefone tocou na minha casa. Era a aquinhoada da vez da fila de
prioridades, fula da vida, porque até aquele momento a lista com as
doações em espécie ainda não tinha chegado às mãos dela.
Argumentei que ela deveria ter um pouco mais de paciência, pois
estávamos tentando conseguir um valor mais significativo pra fazer
frente às despesas imediatas dela. Levei um espôrro do tamanho de
um bonde. Resolvi então levar à casa dela o que tinha arrecadado.
Desse dia em diante, decidi não contribuir com um único centavo,
pra quem quer que fosse. E então testemunhei um momento
deprimente, vergonhoso, de duas dubladoras aos berros uma contra
a outra, discutindo a prioridade da lista de doações. “A preferência é
minha, eu sou mais antiga que você. Enquanto eu estava lá embaixo
na greve, parada há 4 meses, você estava aqui tentando aprender a
dublar pra nos substituir. Agora acha que tem direito à lista?” A
discussão grotesca, humilhante foi travada ao vivo, na frente de
quem estava no pátio, eu inclusive. Não podia descer mais fundo na
indignidade. PRIORIDADE NA LISTA DE BENEFICIÁRIOS DAS
DOAÇÕES. “Agora é a minha vez...” Deus do céu,que vergonha!
Como somos pequenos, como somos pés de chinelo. Não temos
vergonha na cara, não nos valorizamos. Ao invés de colocarmos na
pauta de reivindicações um plano de saúde pra nós e nossas
famílias, estamos cristalizando e perpetuando a lista de doações.
Deus ouviu minha súplicas e se apiedou do meu enorme
constrangimento na atitude da valorosa SONIA DE MORAIS.
Acometida de hepatite ficou dois meses em casa sem poder
trabalhar. Logo a lista surgiu. Não dei um único centavo, e a cada
vez que alguém passava com a lista perto de mim eu dizia, “tenho fé
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em Deus que essa humilhação um dia vai acabar. Tenho certeza de
que algum dia, teremos vergonha na cara!” Fechada a lista, levaram
à casa da Sonia que morava em Botafogo.

Um dia, Sonia retornou. Estava triste, rosto sério. Comento comigo a


raiva que sentiu quando chegou ao seu conhecimento que os
cretinos viciados em lista tinham aberto uma pra ela. Não querendo
ser grosseira, recebeu a lista com o dinheiro em pacotes, embrulhou
o dinheiro na própria lista e guardou. Estava agora voltando ao
trabalho, e à medida que ia encontrando as pessoas que doaram,
ela devolvia o dinheiro correspondente, e dava baixa no nome do
doador. Devolveu cada centavo a TODOS OS QUE DOARAM. Chorei
de felicidade, de orgulho.

Pouco tempo depois, os dubladores do Rio de Janeiro se


encontraram com os dubladores de São Paulo no teatro Dulcina de
Morais, tia da Sonia. No auge da discussão de nossa pauta, pedi a
palavra, e fiz num estilo de narração, a exposição do patético vicio
disseminado na nossa classe no Rio. Eu podia ouvir uma mosca
voando no ambiente, tal o silêncio da plateia. Falei do meu orgulho,
do imenso respeito que devotava a Sonia de Morais, que revelando
ter sangue nas veias, caráter, e vergonha acima de tudo, não
concordou com esse vicio humilhante de ficarem amealhando
migalhas pra ajudar dublador doente em casa. Nesse ponto eu
carreguei no asco na voz, enaltecendo a fibra, a coragem e a
DECÊNCIA de uma das mais importantes dubladores desse pais.

Graças Deus, depois do episódio SONIA DE MORAIS, as malditas


listas foram banidas. Porém, contiuávamos sem conseguir um plano
de saúde pra nossas famílias. Os empresários de dublagem não
concordavam.Não custa repetir que eu não dependia disso como
dublador, já que como locutor contratado da RÁDIO JORNAL DO
BRASIL eu contava com uma ótima assistência médica e toda a
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proteção da ASSOCIAÇÃO PEREIRA CARNEIRO do Jornal do Brasil,
que dava ao associado os remédios que os médicos prescreviam.
Todos os anos, na época do dissídio, a reinvindicação por um plano
de saúde voltava à mesa de discussões. Se Deus me concedeu o
orgulho e a alegria na atitude da Sonia, por outro lado, permitiu que
eu levasse uma bofetada na cara, desferida por uma advogada
escrôta, asquerosa, que defendia os empresários de dublagem, que
pouco antes de uma reunião com nossa liderança, Dario de Castro,
falou em alto em bom som: “ELES ESTÃO PEDINDO ISSO DE NOVO?
DÊEM ENTÃO QUALQUER COISA, ELES ACEITAM. JOGUEM UM
PACOTE DE MACARRÃO NO CHÃO QUE ELES CORREM PRA
APANHAR!” Essa frase foi dita em publico, testemunhadas por DARIO
DE CASTRO,
ETC,ETC,ETC,ETC,ETC,ETC,............................................................
..................

Passei a devotar um ódio irracional contra essa nazista escrôta, e


nunca consegui que a classe desse a ela a resposta que merecia.
Sonhei com a classe botando os empresários de joelhos de novo,
como JOAQUIM MOTA colocou. Que sonho infantil! As reuniões de
dubladores pra discutir nossas reivindicações, contavam cada vez
menos com a presença dos profissionais. A cada convocação,
apareciam 15 dubladores, 12. Até menos. Já houve falta de quórum,
com o cancelamento da reunião. Alguma coisa precisava ser feita.
Não é possível que houvesse tanto desinteresse Resolvi deixar que
minha paixão e minha emoção trabalhassem livremente. Passei a
escreve textos conclamando os dubladores a comparecer às
reuniões. Eu estava entrando num terreno minado e sofri as
consequências de minhas atitudes extremadas ao convocar a classe.

À noite na rádio Jornal do Brasil, enquanto eu relaxava apresentando


e ouvindo as pequenas peças clássicas, tentava encontrar alguma
maneira de convocar a classe e ela comparecer. Já havia desistido de
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tentar convencer o pessoal do primeiro time a concordar com o
comparecimento inclusive entrando nos estúdios chamando a
atenção do pessoal para comparecer às reuniões. Abordei uma das
vozes femininas mais bonitas, mais sensuais da nova geração de
vozes, insistindo que ela seria importante na convocação se nos
ajudasse a conscientizar os outros novatos a compareceram. Ela
reagiu com asco dizendo “você só pode tá de brincadeira comigo,
imagine se vou comparecer a essas reuniões pra discutir
abobrinhas!”... Um outro novato, que já era bastante requisitado
embora leve os colegas e os diretores ao desesepero por não
conseguir ler uma única frase sem tropeçar, ao ouvir minha
insistência pra comparecer às reuniões, começou a rir com muito
deboche, dizendo que “enquanto vocês perdem tempo discutindo
essas chatices, eu vou ao cinema com meu amor logo mais...”

Também decidi não me indispor com mais ninguém por causa de


convocações sindicais. Passei a agir, estampando textos agressivos
no interior dos estúdios e nas paredes do pátio onde nos reuníamos
esperando a hora de entrar nos estúdios.

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Apêndice 4.1

BANCO DE MEMÓRIAS PARA


“EU CONHEÇO ESSA VOZ”

- Marcellus Leitão preso num bar por oficiais do exército por ter
comentado sobre a possível autoria do atentado no Rio Centro ter
sido cometido pelo capitão Wilson e o sargento.

- Carlos Lemos, cuidadoso, recomendando que eu não valorizasse


com ênfase a prisão e a soltura do Marcellus.

- Conclusão do laudo vergonhoso e cínico do major JOB DE LORENA


– promovido logo depois a Coronel.

- Comentário corajoso de VILLAS BOAS CORREIA.

- Comentário corajoso do historiador HELIO SILVA.

- Choque com a morte de JONHN LENNON minutos antes de


encerrar a rádio JB. Editor; VENERANDO CARLOS MARTINS.

- IBSEN PINHEIRO na rádio, nosso contato, a brincadeira de pegar


meu telefone, a decepção depois.

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- AS 10 MAIS DA SUA VIDA com Aloísio de Oliveira. Telmo deu o
telefone. Contato frio. Pior ainda ao vivo na rádio.

- Deus, na concepção de ISMÊNIA. Obras de Paganini, Mozart, Bach,


Haendel, Beethoven, Liszt

- “ELÉ CARIOCA, É PAU É PEDRÉO FIM DO CAMINHO, TUDÉ...

- “ELÉ O MEU AMOR!”

- “BNDS, dificilmente falam B N D E S

- “Sua obra FICUMÁ BELEZA!”

- Diretor do filme O GATÃO DE “MÊIDADE”

-“ A lei das INELEGIBILIDADES”

- TEMPO TODO (“pu tô) cacófato? Babaquice da Marlene.

- Côrra! Não pode porque parece “PÔRRA” – Luiz Manoel

- Bunda, trazeiro – SBT e Globo

- Carla Civelli com o “naisceu” do ELCIO.

- LETREIROS QUE DURAM SEGUNDOS NA TELA

- PILOTO E CO-PILOTO DUBLADOS PELO DRUMOND

- PAULO GONÇALVES JOGANDO O FONE NA TELA COM RAIVA.

- ROBERTO MAYA ME DANDO ESPÔRRO.

- NELLY AMARAL SE JUSTIFICANDO PELAS GROSSERIAS.

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- RIBEIRO SUBSTITUINDO ANDRÉ EM MCLOUD

- RONALDO PORTA VOZ DE ELOGIOS DO HERBERT

- “PISSÊUDÔNIMO”

- “NO COMECIAL DO IDEB LOCUTORA FALOU “AMPLIA O


ACESSACRECHE”

- ZÉ MARIA EM BELO HORIZONTE COM O CARRO FANTASMA

- OS SAPATOS DO IRMÃO DA MARLUCE EM CIMA DA MESA

- ARCEBISPÊMÉRITO

- NA MÚSICA DE ZECA BALEIRO A IMBECIL DA SIMONE DIZ NO QUE


POSSA “PARICÊ!”

- RITA LEE EM SUA MUSICA DIZ “LÁ NO SEU ISCONDIRIJO”

- PRESSÃO PISSICOLÓGICA

- PAULISTAS SÓ FALAM “A PARTCHI” QUANDO QUEREM DIZER A


PARTIR

- HELCIO ROMAR DIRIGINDO EPISÓDIO DE 007 COM ROGER


MOORE, DUBLOU CRISTOPHER WALKER NO PERSONAGEM ZORIN.
BOND DIALOGANDO COM ZORIN NO ESCRITÓRIO, ESTE BUSCA NO
COMPUTADOR OS DADOS DE BOND NA INTERNET. ENQUANTO LÊ
EM SILÊNCIO TODA A FICHA DE BOND QUE SE APRESENTOU A ELE
COMO JAMES SMYTHE. HELCIO DIRIGINDO PREFERIU DOBRAR OS
PAPÉIS LENDO O LETREIRO NA TELA AO INVÉS DE ESCALAR UM
DUBLADOR PRA LER AS LEGENDAS DA TELA.

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Apêndice 4.2

EXCERTOS PARA
“EU CONHEÇO ESSA VOZ”

01 – Mencionar corrupto da petrolífera que queria metade.

02 – Meu pai fascinado por minha entrevista com Severino.

03 – Analogia do nome Karajan errado com a casa dele em


Salzburgo

05 – Listas de ajuda. Prioridades da VERA, SONIA, MORAIS.


Arrogância da Vera pra cima de todos nós, principalmente Sonia.

06 – Carla Civelli dirigindo Elcio “naisceu”.

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Apêndice 4.3

RELATOS DE VIAGENS

NOSSA VIAGEM À RÚSSIA

QUINTA FEIRA, 24 DE JULHO DE 2014

Saímos de casa às 13 e 40 no carro da Tânia com Ivo de ajudante


para o Galeão. Check in rápido na executiva da TAP, relaxamento no
lounge da empresa, local amplo com poltronas enormes, de couro,
que afundam sob nosso peso.
Poucas pessoas falando baixo, musica agradável. Lanchezinho do
nível dos aviões da Gol na ponte aérea. O de Lisboa é um desbunde!
Embarcamos às 17 e 25. 20 minutos de atraso. Dentro do finger, já
quase na porta do avião, a visão do inferno; uma família com um
bebê e um casal jovem com duas crianças na pré adolescência. Puta
merda, a praga que me acompanha em viagens. Me acompanha não,
me assola, me tortura, faz nascer em mim um Heródes muito mais
cruel! Firmei meu pensamento nos homens chefes dessas famílias no
momento em que eles mostram o cartão de embarque. A aeromoça
verifica o cartão da primeira família. E faz sinal com as mãos em
direção..à esquerda. Puta merda, vão na executiva o casal que tem a
criança, bebê mesmo, que mama no peito.
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Tenho certeza de que essa criança vai viajar na poltrona do meu
lado, ou atrás de mim, ou na minha frente e vai gritar o vôo todo. 10
HORAS GRITANDO E CHORANDO!!! Em seguida, o jovem casal com
os pré adolescentes mostram os cartões de embarque. Chego a virar
a cara pro outro lado pra não ver o suplicio. Não resisto e volto a
olhar. A aeromoça recebe o cartão, olha, e faz sinal com a mão...pra
esquerda!! Puta merda, esses adolescentes vão ficar passeando
entre as poltronas, vão ficar brincando nas poltronas apertando
todos os botões, esticando elas, encolhendo. Pensei em Deus,
respirei fundo, resignado e entrei pra guardar os pertences de mão.
Sempre com um olhar desconfiado pras duas famílias.Entrei no largo,
cheiroso, adorável espaço da classe executiva. O avião taxia e
decola. O piloto pediu desculpas pelo atraso. Imagine! Vem pra cá,
filhinho, vem trabalhar nas companhias aéreas do Brasil, vem!
Classe executiva lotada. Jantarzinho bem chinfrin. Um passageiro
português que estava logo na minha frente conversava em voz muito
alta com um brasileiro. Os dois bebiam sem parar. Esvaziavam suas
taças e pediam mais aos comissários. Em seguida passaram a
consumir whisky. Eu esperava pacientemente que eles ficassem
quietos pra eu poder ver um filme, ou ler.Pela animação da
conversa, pela quantidade de gargalhadas percebi que a noite
prometia. Aquilo iria longe. E eu cheio de medos por causa das
crianças e dos adolescentes. Desisti e fui pra galley, aquela espécie
de dispensa onde ficam os carrinhos que levam as refeições e
lanches aos passageiros.

Nesta área há um bom espaço junto à porta de emergência. O chão


forrado de carpete azul marinho é sempre quentinho ali por causa do
calor das turbinas localizadas exatamente onde eu estava. O contato
nos meus pés descalços estava ótimo. Olhei o relógio que me
transmitiu um grande alívio; eu já estava em pé naquele local há
uma hora e 50 minutos.

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Afastei as cortinas e qual não foi minha surpresa ao encontrar o
português deitado NA MINHA POLTRONA AO LADO DA TÂNIA. Que
dormia tão profundamente que roncava. Indignado, respirei fundo e
cutuquei o puto, a princípio com delicadeza. Parecia adormecido,
inconsciente mesmo. Agora ao invés de cutucar, segurei o ombro
dele com uma das mãos e balancei, pra valer. Parecia desmaiado. A
irritação me subiu à cabeça. Abandonando a discrição, sacudi o filho
da puta com violência. Com as duas mãos. Parecia morto. Não se
mexeu. Trincando os dentes, vociferando baixo, indignado, eu
alternava sacudir ele com muita violência e até dando umas
pancadas no ombro pra despertar o puto. Parecia um cadável sem o
rigor mortis. Chamei a aeromoça. Não sei qual é o método que ela
usa mas tocou no idiota com delicadeza, falando baixo no ouvido do
imbecil. Que acordou totalmente desorientado. Fedendo a álcool
azedo, ficou de pé, oscilando bêbado, balbuciando palavras que eu
não entendia, nem a aeromoça. Quase caiu em cima da Tânia toda
esticada e coberta pela manta. Meio cambaleando, com a aeromoça
atrás dele, foi caminhando pra galley.

Me sentei ainda sentindo o cheiro azedo de bebida do filho da puta.


Minutos depois a aeromoça se aproximou de mim dizendo que ele
tentava se explicar dizendo que eu havia concordado que ele se
deitasse na minha poltrona.,Maluco! Resto do vôo tranquilo, embora
eu não conseguisse pregar os olhos. Chegamos à Lisboa às 06 e 25,
exatamente na hora prevista. Tempo feio, nublado, frio.

PORTO – SEXTA FEIRA, 25 DE JULHO

Aguardando o vôo pra Porto. O atraso é de uma hora. O mau tempo


impedia o pouso lá. Finalmente decolamos. Chegamos à cidade sem
multidão desembarcando, sem multidão na esteira pra pegar
bagagem, sem correria, sem gritaria, que bom.

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Direto pro táxi. Um português na casa dos 73, 75 anos, baixinho,
graças a Deus sem futum, nos recebeu, ajeitou no porta malas
nossas bagagens perguntando o destino. Foi só o que conseguimos
falar: “INTERCONTINENTAL CARDOSAS” porque ele pegou nossa
palavra e foi nos torturando DURANTE TODO O TRAJETO ATÉ À
PORTA DO HOTEL falando das maravilhas da cidade e dos pontos
turísticos da cidade. Ele falava rápido, enrolado, era ansioso.

Deu um jeito de ficar do lado direito, quase no acostamento,


diminuiu a marcha pra abrir um mapa e mostrar “o lado de lá do
canal tem isso assim assado, que se chamava assim antes da
primeira guerra, e do lado de cá do canal...” Deus do céu que
falação!! Nos livramos dele agradecendo a verborragia turística, e
entramos no hotel para o nosso deleite, deslumbramento mesmo. O
atendimento é extraordinário, o hall do hotel deslumbrante de
bonito, de classudo, com pingentes e candelabros indescritíveis de
tão lindos.
Enquanto aguardamos a burocracia de preenchimentos, amostra de
vouchers, anotações de passaporte, cartões de crédito, liberação do
apartamento, João, o recepcionista nos indicou o lobby do hotel pra
aguardar as chaves eletrônicas. A fome nos matando, Tânia fez sinal
pra Vanessa, a garçonete, um amor de moça e pediu um belisquete;
tempura de polvo. Que delícia! Vanessa abriu um vinho branco
VALLADO 2012. Bonzinho. Não é nenhum GEWÜRSTRAMINER, ou
PINOT GRIGIO tão apreciados por Ivolino de pai e Pedroquinha de
pai, mas tava bonzinho.
Nossa curiosidade é enorme. Estou “no ar” desde ontem de manhã,
quinta feira. Não preguei os olhos, mas o sono não está me avisando
de nada. Estou elétrico. Fascinado por PORTO. Malas no
apartamento, saímos caminhando pelas redondezas. Entramos no
restaurante CANTINA, rua das Flores, 32. O garçon elétrico, Jacinto,
atencioso, adorável, serviu a entrada que Tânia adorou. Eu comi
bacalhau grelhado com batatas aos murros. Deus do céu, que
delícia!

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Acabamos de saborear nossas delicias e saímos trôpegos de sono,
cansaço, prazer, ligeiramente tocados pelo maravilhoso vinho
branco. Pouco depois do CANTINA, uma loja de artigos de decoração
chamou nossa atenção. Descobrimos que Portugal produz os
sabonetões deliciosos, super cremosos e cheirosos, mais baratos que
os fabulosos NESTI DANTE que compro com frequência por preços
que variam de 23 a 30 Reais.
Comprei umas xícaras lindas, leves, por 10 euros. Entramos no
ônibus vermelho dos turistas pra conhecer a cidade que é uma
Lisboa mais modernosa, segundo Tânia. A opinião é dela. O comércio
é bastante concentrado em ruas estreitas, íngremes, várias delas só
para pedestres. São uma festa pros nossos olhos. Os turistas sobem
e descem essas ruas em bandos. Tânia em sua obsessão por lentes
de contatos entrou na primeira farmácia que encontrou. Claro;
comprou cremes, sombras, esmaltes, escovinhas, quinquilharias,
pasta de dente e mais outras coisinhas que ela nem sabe pra que
servem. Das farmacêuticas simpáticas obteve a informação de que
na rua Santa Catarina, ali perto encontraria várias óticas.
E tome de caminhar até a rua Santa Catarina. Santo Deus! Que rua
magnífica, enorme, só de pedestres, larga, colorida, abarrotada de
turistas e portugueses, indo e vindo, muitas sacolas de compras.
Tânia desiste das lentes. Numa vitrine de antiquário, duas me
encantam pelo formato.

O preço bem barato. Chinesas. A dona da loja, muito loura, 60 anos,


simpática nos convida a entrar. Ao me nos aproximarmos veio um
cheiro forte de bebida do hálito dela. Puta merda, ainda não eram 11
da manhã! Dentro da loja, entro em desespero vendo outras xícaras
chinesas, maravilhosas, raras, caríssimas. A pau dágua, vendo meu
encantamento, me convida a ir à outra loja que fica 100 metros mais
acima na rua.
Fecha essa e vamos acompanhando. Quando chegamos, perdi o
juízo quando ela me mostrou as xícaras que poderia me vender de
uma coleção. Encantada com minha excitação com as xícaras nas

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mãos ela dizia com muito orgulho que eu segurava um espécime da
grife DRAGÃO DOURADO. Sei lá que merda é essa!
Mentalmente eu disse a mim mesmo que pagaria até uns 60 ou 70
euros por cada uma. Pra minha felicidade ela me cobrou só 30 euros
por cada uma. Comprei duas. Ela fez uma embalagem porca,
insuficiente, que ao menor impacto sobre elas, quebraria. Depois
dessas xícaras compradas eu não queria ver mais nada, tava louco
pra voltar ao hotel e fazer uma embalagem bem protegida pois ainda
teria que viajar muito, entrar em mais aviões, trens, nossa, quantos
embarques ainda teria que fazer.
Tive a idéia de despachar as xícaras pelos correios que aqui tem a
sigla CTT. O conciérge informou que no aeroporto havia uma
agência. Me enchi de esperança. Tava rezando pra essa possibilidade
existir.

O encantamento de Tânia pela rua Santa Catarina foi efêmero. Eu


sabia o que ela estava querendo. Pegamos um táxi e formos direto
pro... El Corte Inglês. Ao sair do táxi, ela, atraída como um pedaço
de ferro em direção a um imã poderoso, foi levada como por encanto
para aquele reino mágico. A loja de departamentos da vida dela. EL
CORTE INGLÊS. Um peregrino sedento, perdido no deserto do Saara,
torturado pela sede, no auge do verão, ao descobrir um oásis com
água de coco gelada e sombras generosas das palmeiras, não
mostraria tamanha volúpia.
Ela adentra as dependências desse templo de consumo europeu,
sorriso petrificado, os olhos revirando nas órbitas, frenéticos. Não
quer perder um só detalhe, uma só REBAJA, palavra mágica que ela
aprendeu logo na primeira viagem à Espanha:LIQUIDAÇÃO. Geme
de prazer ao ler a palavra SALDOS em cartazes enormes, coloridos,
pendurados por todo lugar. Ela pega tudo o que está exposto, olha,
avalia, sorri conversando animadamente, simpática com os
vendedores de ambos os sexos, faz umas comprinhas, pula pra outra
sessão, mais comprinhas de quinquilharias, se encanta com as
sacolas de cores lindas da LACOSTE. A azul é da Cunca. A verde é da
Cláudia. Embriagada de prazer, pula de balcão em balcão como

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borboleta nas flores da primavera viçosa. Quase grita de emoção
quando se depara na vitrine com o chaveiro que havia perdido esse
ano. Achou a repica. Feliz da vida pagou 60 euros. 180 REAIS POR
UM CHAVEIRO!! Está feliz, se sente recompensada por ter
encontrado exatamente o tão pranteado chaveiro que alguém
roubou ou ela perdeu.

Eu ando pelos balcões de artigos masculinos de couro. Gosto da loja


também, e não tenho pressa. Ela pode ficar o tempo que quiser.
Embora meu Corte Inglês preferido seja o de Madrid. Mas ela não
me perde de vista. Se me afasto e saio do seu campo de visão, não
sei como, ela me localiza. Ouço sua voz tonitroante falar um
“SEIXAS!!!” que ecoa sobre qualquer vozerio de clientes em qualquer
parte do mundo, por todo o andar. Na sessão de perfumaria, me
rendo, caio de joelhos diante dos sabonetes portugueses, lindos,
enormes, ovais, cheirosos, baratos.
Comprei vários. Só de sabonetes minha bolsa deve estar pesando
uns 4 quilos. Fora o peso das coisas que Tânia compra. ISSO NO
NOSSO PRIMEIRO DIA DE VIAGEM, NA NOSSA PRIMEIRA SAÍDA
DEPOIS DE DEIXAR A BAGAGEM NO QUARTO!!!! Voltamos ao hotel.
Só então percebo que após 48 horas sem pregar os olhos, o cansaço
aparece. Eram 8 da noite. Que não era noite, porque a claridade do
dia é intensa, apesar do frio, da névoa constante. Me deitei, e
apaguei.

PORTO - SÁBADO – 26 DE JULHO

São 8 da manhã. Tânia continua na cama. Vamos depois do café ao


Corte Inglês pegar nossas compras que deixamos separadas.
Estavamos sem os passaportes que dariam descontos turísticos e
tentar que entreguem no Corte de Lisboa, ou mesmo no nosso hotel
Tívoli quando voltarmos da Russia. Não conseguimos. Só fazem
entrega na cidade onde se localiza a loja. Continuamos a fazer o que
mais gostamos; andar a esmo, sem destino certo. Quando a fome

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apertou fomos de táxi até MATOSINHOS, um bairro distante, a barra
da Tijuca de PORTO, não com aquele traçado, com aquela beleza,
claro. Mas é um recanto muito bonito, repleto de prédios novos,
avenidas largas, paisagismo elegante. Tinhamos reserva pro
restaurante GAVETO.
Na entrada do restaurante, lagostas vivas em tanques e caranguejos
aguçam nossa fome. Os portugueses chamam os enormes
caranguejos de SAPATEIRAS. Comemos ALMEJONES – os conhecidos
vôngoles - de entrada cozidos no vinho branco com manteiga e ervas
verdes aromáticas. A SAPATEIRA não foi nada comparada ao
CENTOLA que saboreamos no Chile. A cidade nos pareceu vazia, de
turistas e moradores.

DOMINGO – 27 DE JULHO

Depois do café rumamos para GAIA. Caminhamos pela ponte LUIZ


PRIMEIRO, descemos a pé as ladeiras de Gaia pra bater pernas no
cais abarrotado de barraquinhas de artesanato que por mais incrível
que possa parecer não atraiu Tânia, não tirou o juízo dela. Entramos
num restaurante onde pedimos um bacalhau e Tânia um COD FISH
grelhado absolutamente comum. Tanto o prato dela como o meu.
Voltamos ao hotel pra arrumar as malas. Amanhã, segunda feira,
vamos para um longo, tedioso, interminável, deslocamento de
PORTO até MOSCOU com escala em FRANKFURT.

SEGUNDA FEIRA, 28 DE JULHO

Às 8 e 15 no táxi para o aeroporto. A cidade está coberta por neblina


desde que chegamos. Em alguns pontos da estraa o motorista
diminuía a marcha, tão espessa era a cerração. No aeroporto meu
pensamento era um só; encontrar a agência dos correios pra
despachar minhas as minhas valiosas, lindas, adoráveis xícaras
chinesas.

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Fui atendido logo por Maria de Fátima, uma mulher na casa dos 35,
elétrica, que fala rápido. Estranha meu pedido de despachar a
encomenda pra mim mesmo em Lisboa.

Expliquei que estava indo pra Moscou. De Moscou pra São


Petersburgo, depois Munich e por fim Lisboa.
Meu medo era que tantos embarques, e tantas manipulações nas
esteiras de segurança dos aeroportos, elas quebrassem. Falei do
quando essas xícaras eram importantes. Maria de Fátima que a
princípio se mostrou reticente à eficácia da minha estratégia de
despachar as xícaras para o hotel Tívoli onde eu me hospedaria dali
a uma semana e meia, se esmerou na embalagem, reforçando a
proteção sobre as xícaras. Fiquei muito agradecido vendo o empenho
dela em proteger a encomenda e mais ainda pela boa vontade.
E assim foi feita; despachada uma caixa de papelão de tamanho
médio contendo 6 xícaras de porcelana, sendo duas raríssimas.
Destinatário: Eu. Endereço; Hotel Tívoli Lisboa, avenida da
Liberdade- Centro – Portugal. Minha felicidade só não era total
porque eu precisava comprovar que a idéia tinha sido boa. Teria que
esperar uma semana e meia pra saber. Confesso que de vez em
quando o pessimismo me assolava, imaginando a perda do pacote
no trajeto PORTO-LISBOA. Em se tratando de correios isso pode
acontecer. Voltei à sala de espera onde Tânia me aguardava e fomos
providenciar nosso embarque.

Quando entramos no avião, levei um choque; a classe executiva,


pela qual pagamos uma boa baba era uma merda! A única vantagem
era uma boa distância lateral entre duas poltronas. Mas o
reclinamento era mínimo. Meus joelhos práticamente roçando no
encosto da poltrona à minha frente. Pelo menos nosso desembarque
é rápido pois nossa fileira era a segunda. O avião saiu na hora; 10
horas com chegada prevista em FRANKFURT às 14 e 30. O almoço
deve ter sido preparado com água sem tempero algum num hospital.

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Em Frankfurt no horário previsto teríamos que aguardar até às 5 da
tarde pra novo embarque, desta vez para MOSCOU. Caminhamos por
imensos corredores luxuosos, o aeroporto é moderníssimo, lindo,
bem sinalizado. Consegui comprar mil euros em Rublos. Pra minha
surpresa o simpático caixa da loja de câmbio me sugeriu voltar à loja
pra devolver os rublos e receber euros de volta sem pagar taxa, caso
sobre rublos durante a viagem. Nosso portão de embarque é o B-44.
Saimos do finger na altura do A-4. Caminhando em direção ao B-44
fui lendo a progressão dos números; A-5 - A-6 – A 7. Senti um gelo
na boca do estômago. Pelas minhas contas, demoraríamos umas
duas horas ate chegar ao B-44. Droga, esse é uma das partes chatas
da viagem. Ainda bem que temos a gentileza do lounge que a classe
executiva contempla.

Vi logo que o acesso ao lounge da LUFTHANSA, que nos trouxe de


PORTO pra levar a MOSCOU e trazer até LISBOA, era através de
uma longa escadaria.
Eu tava louco pra me estirar em alguma poltrona, comer alguma
coisa com sabor, as deliciosas salsichas alemãs, ou presunto, ou que
fosse. Tânia, chata, pirracenta, irritada de tanto andar – ela
desenvolveu ojeriza por movimentos em aeroportos – não quis subir
não quis conhecer o lounge da companhia. Me arrependi de ter
comido só duas salsichas. Estavam de matar de tão gostosas, o
molho nem se fala. A variedade de petiscos, de lanche quente,
lanche frio era surpreendente. Sentados aguarando o vôo nos
surpreendemos com um temporal que caiu no aeroporto. Temporal
mesmo. Todos os voos suspensos. Nosso vôo saiu com uma hora de
atraso. Chegamos à Moscou às 21 e 30 no nosso relógio ajustado
para a hora de Lisboa. O fuso é de 7 horas. Neste momento eram 2
e meia da tarde no Brasil.

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MOSCOU – 28 DE JULHO – HORA LOCAL: 23,30

Saimos do avião na temperatura de 21 graus para 37 no finger do


aeroporto de DOMODEDOVO. No terminal estava 33. Nossa bagagem
veio intacta. Saimos logo procurando um quiosque de taxis especiais.
Inocentes que somos!

A bandalha, o caos, as abordagens dos motoristas particulares é tão


acintosa quanto em qualquer cidade brasileira. Identifiquei neste
aeroporto feio, sujo, velho, um balcãozinho não menos feio e sujo
com uma moça dentro. TAXI estava escrito assim, o resto em cirílico.
Quando mostrei o voucher pra ela, não soube identificar o hotel,
mesmo com voucher em cirílico. Idiota! Um sujeito então, agressivo,
falou com ela rispidamente em russo, me mostrou uma pasta com
várias folhas plastificadas imundas, já despedaçando de tanto
manuseadas e mostrou um valor; 4.200 rublos até o hotel. Sem
aguardar meu sinal de ok, já pegou o carrinho com as malas me
fazendo sinal pra segui-lo. Do lado de fora do terminal ficamos
horrorizados com a balbúrdia, a desorganização. Havia uma fila tripla
de carros bandalha aguardando passageiros. Um sujeito num carro
branco deixou o carro numa das filas travando Toto mundo.
Ninguém andava. Saiu não sei de onde, caminhando calmamente,
entrou no carro, deu partida, então aquela enorme aglomeração em
fila tripla de carros particulares à procura de passageiros começou
andar.
Não soubemos identificar o que era táxi, o que não era. O sujeito
enfim parou perto de um carro pouco maior do que um Gol
volkaswagen com seguramente 30 anos de uso. Imundo, fedorento,
barulhento, bancos com as molas já cedendo devido ao peso dos
passageiros durante tantos anos.

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Meu Deus, que sensação horrorosa de estar em contato com
bandido. Foi isso que pensei; caí no conto do táxi, estou à mercê de
uma quadrilha, vão roubar nossas malas, tomara que nos deixem
vivos.
O motorista era aterrorizante, cabeça raspada, enorme, cara de
assassino. Ele deu a partida no carro. Tânia e eu num silêncio
constrangedor. Fazia muito calor. Tive certeza de ter sido roubado
pagando 4 mil e 200 rublos por uma corrida até o nosso hotel que
era central, muito perto da praça Vermelha. Mas a longa estrada em
obras me deu a idéia de que afinal, 100 euros, ou 300 Reais por uma
corrida com dois passageiros e duas malas não foi tão extorsivo
assim. O filho da puta atendeu o celular e falou sem parar. Devia ser
a mulher enchendo o saco dele. Desligou e começou a teclar
enquanto dirigia a 130 quilômetros por hora!!!. O fluxo do trânsito à
frente parou e ele não percebeu. Dei um grito. Agora o filho da puta
respondeu em inglês que estava vendo o trânsito. Escrôto! O
deslocamento demorou uns 50 minutos. Nunca transitei por estrada
tão reta, tão longa, tão escura, tão feia e com tráfego tão intenso.
Já passava de meia noite.
A visão imponente do luxuoso SWISSHOTEL MOSCOU arrefeceu
meus dissabores, meu mau humor. Saímos da podridão fedorenta de
um carro velho particular para o enorme hall fresquinho, de piso de
mármore porcelanato.

Fomos recepcionados ainda do lado de fora, por ALISHER, o adorável


recepcionista do FRONT DESK. Ao abrir a porta do nosso
apartamento, tudo o que eu havia pensado, vivido de desagradável
desde que botei os pés em DOMODEDOVO desapareceu. Que luxo!
Que beleza de acomodação. Enorme, dois ambientes. Tomamos um
bom banho e apagamos.

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MOSCOU – TERÇA FEIRA 29 DE JULHO

Acordamos às 10 da manhã. Imagine, eu acordando às 10 da


manhã!! Que noite maravilhosa, que cama magnífica! Descemos
rápido pro café que se encerra às 11. Logo depois fomos à Ana,
conciérge falar de roteiros turísticos. Ela sugeriu que fossemos a pé
pra Praça Vermelha alegando que era perto, bastava seguir a
margem esquerda do Rio em frente ao hotel. Topei. E me arrependi.
Apesar de ver as cúpulas douradas da igreja de São Basílio, não a
distância era enorme. O calor era sufocante. Tânia ficou com o cão,
com a avó atrás do toco. Puuuuuta da vida por ter que andar tanto.
Bufava, resfolegava, suando por todos os poros fazia imprecações,
ela estava com ódio!! Pra piorar as coisas, me perdi algumas vezes.
Com a graça de Deus, a benção de Nehru e a graça de Indhira,
chegamos à praça Vermelha. Então ela se soltou, ficou feliz de estar
bem perto desse símbolo do poder mundial.

Fez pose, abriu os braços, sorriu até. Pois não é que o faro
consumista dela farejou que naquela cadeia de prédios históricos,
lindos, classudos havia um dos maiores shopings do mundo?
Percorremos as imensas galerias e corredores até sentir fome.
Entramos no restaurante BOSCO pra comer o tão propalado
strogonoff, prato que dizem imperdível na Russia. Comemos. O meu
é muito melhor!!!! Sem presunção! O meu tem champignon. O russo
não tem. Tânia, impossível em seu inglês turístico que foi
especializado por Miri sua amada professora particular, consultou o
cardápio e se interessou em saborear o “ICE CREAM HOME MADE”.
Com sua simpatia cativante, sorriso de orelha a orelha, com seu
inglês de Oxford pediu de chocolate. Veio um bolo de baunilha com
uma bola de creme. Cansados, felizes, resolvemos voltar ao hotel de
metrô. Claro, quebramos a cara!
Rodamos feito cachorro sem rumo, desistimos e voltamos à
superfície pra pegar um táxi. Descobrimos que não sabíamos onde
estávamos. Perdemos a referência. Andamos em todas as direções
na esperança de pegar um táxi que ainda não sabemos como é.

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Nossa experiência na noite anterior tinha sido péssima numa furreca
velha fedorenta. Depois de uma hora de espera, de sinais inúteis, de
indiferença daqueles que a gente achava que eram táxi, achamos
um. Particular, claro! Estava parado numa esquina.

O motorista, era um jovem, de bermudas. Não tinha taxímetro.


Mostrou com os dedos o valor da corrida até o nosso hotel; 600
rublos. Alívio!
No hotel tomamos um banhão, trocamos de roupa e descemos pra
pegar outro táxi, este chamado pelo front desk do hotel. Era um
carro moderno, preto, grande. O motorista, 70 anos mais ou menos
nos levou ao BODU, o restaurante mais badalado de Moscou,
segundo dizem onde o puto do Putin frequenta. Assim que nos
sentamos percebemos que era japa. Garçonetes lindas, atenciosas.
Uma me ensinou a falar água em russo; “wada”. Tânia estrilou na
hora. Como ela adora dar um piti, como ela fica bonita estrilando!!!
“Deteshshshshshto comidas japonêêêsaaaaaa!!!!” Estrilei de volta,
tão desagradável como ela! Pedi um branco alsaciano delicioso. Ela
tomou um caldo, eu meia dúzia de patinhas de caranguejos sobre
uma cama de pedaços de melancia a laranja. Nome do prato; “paella
à moda NOBU”. Vá tomar no cú! Um galetinho no Largo do Machado
é 10 vezes mais saboroso. Saimos caminhando pela área repleta de
lojas de grifes, restaurantes e bares muito bonitos, em prédios
lindos, clássicos. Ainda tínhamos fome. Numa rua larga só de
pedestres, motos gigantescas paradas nas extremidades laterais,
havia uma fileira de restaurantes. Como é que a gente podia
imaginar uma coisa assim em Moscou, meu Deus? Entramos no
GUSTO. Italiano,lotado de turistas. Pedi uma frigideira de camarões.
Tânia pediu bruscheta.

Pra acompanha pedi Piña Colada. Nos quiosques da praia de


Copacabana são mais saborosos, além de bem decorados.
Pedi a conta. Enquanto aguardava, uma cena me fez abrir a boca, os
olhos, a surpresa, tudo!! Um homem e uma mulher, cada um
montado num cavalo desses de competição, cavalgava lentamente,

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olhando pras pessoas nas mesas dos bares que olhavam pra essa
visão de um quadro de Salvador Dalí. Eram animais ferrados pelo
barulho das ferraduras no cimento da rua. Os animais garbosos
passando em frente às motos estacionadas nas laterais da rua
criavam um cenário de publicidade sofisticadíssimo! O som
desencontrado das ferraduras se fundindo com o vozerio e as
musicas em volume alto do ambiente serão sempre uma lembrança
de sonho. Taxi de volta ao hotel e cama! Que aposentos, meu Deus,
que delícia, que lençóis, que travesseiros!

MOSCOU – QUARTA FEIRA – 30 DE JUNHO

Às 11 da manhã de hoje descemos pra conhecer a guia em espanhol


que nos mostrará o principal de Moscou. TATIANA FIRSOVA. No seu
cartão de visita em espanhol seu email é fitadevis777@rambler.ru 55
anos presumíveis. Pele muito branca toda manchada de vermelho,
olhos grandes verdes, esbanja simpatia.

O valor do seu trabalho por 3 horas, contratado na conciergeria com


Anna, a linda e fria Anna foi de 120 euros – 4.800 Rublos.
Tatiana nos conquista imediatamente por sua alegria, simpatia,
energia contagiante, ritmo difícil de acompanhar, como constaríamos
minutos depois de sair do carro com motorista que nos aguardava.
Mal sabíamos que iríamos mergulhar numa montanha russa em
todas as direções. Primeira parada; KREMLIN que significa
FORTALEZA. Até aquele momento eu acreditava que o KREMLIN é
onde o puto do Putin governa. Não, Kremlin é toda aquela área da
praça Vermelha, onde fica o palácio do governo. Por exemplo; o vice
presidente MEDVEDEV fica num edifício comum, bem afastado do
Kremlin.
Falei à Tatiana do meu sonho de conhecer alguma ou algumas das
estações do metrô. Como num passe de mágica minutos depois
estávamos dentro de uma estação no Kremlin. Rápida, barulhenta,
dinâmica, falando o tempo todo aumentava ainda mais a voz quando

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a composição chegava ou partia. Não dava tempo de raciocionar, de
esquadrinhar toda aquela imensidão de azulejos luxuosos e lindos.
Tatiana estava visivelmente encantada com nosso deslumbramento
olhando pro teto, pro chão, pras paredes, para as composições. Eu
fotografava seguidamente, aturdido com tanta beleza. A imensidão
das estações impede a densidade de passageiros embarcando ou
desembarcando. Os passageiros saem dos trens caminhando
normalmente em várias direções pelos espaços enormes do lugar.
Escadas rolantes de 20, 30 metros de extensão.

O russo é educado. Quem está parado na escada fica do lado direito


pra deixar livre o lado esquerdo de quem quer continuar galgando os
degraus. Travei conhecimento com essa educação urbana no metrô
de Praga antes. Entre um e outro falatório interminável dela num
espanhol perfeito eu tecia comentários sobre a incrível limpeza das
dependências da estação, dos trilhos e mais surpreendente ainda é a
limpeza das calçadas e ruas. O russo não suja a rua. Que coisa
maravilhosa! Por incrível que pareça a prefeitura não dotou a cidade
com milhares de caixas coletoras de lixo. Quando eu precisei jogar
fora algum papel, um embalagem de algum alimento, ou lanche que
comia andando, passava horas com aquilo na mochila até encontrar
uma lixeira.
Tatiana faz sinal com a cabeça pra acompanhar ela. Saimos rápidos
até nos misturarmos com o povo. De repente ela entra em novo
buraco, nova escada com degraus, passamos por portas de vidro
pesadíssimas com mola, pra mergulhar em outro metrô. Pronto,
outra estação. Não tive o cuidado de anotar os nomes
complicadíssimos das estações. Só me lembro das estações que
figuram no meu texto O ESPIÃO DESGARRADO, uma lição com
dificuldade relativa pros alunos do curso de locução. Esse texto tem
dificuldades enormes pros alunos interpretarem pois a ação se dá no
metrô e os eventos em várias estações como KIWSKAYA,
SMOLENWSKAYA, ARBATSKO-PROKOWSKAYA, SEMIONOVSKAYA, e
outras mais que não me recordo agora.

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E lá vamos nós resfolegando atrás de Tatiana rumo a outra obra
tombada pela UNESCO. O metrô é patrimônio da Humanidade. Voila!
Máquina à altura dos olhos eu queria registrar tudo. Ouço os gritos
de Tatiana nos empurrando pra dentro de um trem. Desta vez
estamos num trem no sentido contrário. Fechadas as portas, só se
ouve a vozinha estridente de Tatiana, falando, rindo. Os russos em
pé e sentados olham pra ela. Muitos olham. Ela chama atenção pelo
descontrole da voz. Pra provocar ainda mais curiosidade ela tem um
casal de turistas que traz uma placa gigantesca na na testa
“NOOOOOSSA, COMO ESSE METÔ É LIIIIIINDO, PUXA VIDAAAA!!!”
Ela com sua verborragia não nos dava tempo de raciocionar, de
trocar ideias e impressões sobre o que viamos.
Estávamos num deslocamento vertiginoso de norte a sul, de leste a
oeste, de sudeste pra noroeste. Se por uma infelicidade nos
perdêssemos dela, não tínhamos a menor idéia da nossa localização.
Pra que os mapas que tínhamos se tudo estava em Cirilo? Gritando,
falando, empurrando, nos fotografando, rindo, a vaca não
demonstrava o menor sinal de cansaço. Eu e Tânia já tínhamos um
ar apatetado na cara pelo cansaço, pela agitação, correria, falação,
sede, fome. Comecei a falar, a principio meio constrangido, depois
acintosamente que estava cansado, com fome, com sede, que queria
parar.

Fomos levados a um restaurante lindíssimo, dos mais antigos de


Moscou. O ambiente era deslumbrante de classudo, de imponente.
Quem dera se a comida pelo menos se aproximasse da excelência do
ambiente. Naquela hora e meia de almoço, de um atendimento
adorável por jovens garçons, bons profissionais, num silêncio gostoso
demos um refresco aos nossos ouvidos. Pra de repente levarmos um
susto com Tatiana irrompendo no salão. “Que tal??” Tagarelou
parecendo uma arara no cio. Na rua, ela nos convenceu a ver o
espetáculo folclórico russo mais antigo e tradicional do país.
Aceitamos, claro, eu adoraria ver. O horário era às 19 e 30. Teríamos
que chegar ao local pra comprar os ingressos. Entusiasmado por

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essa possibilidade de ver um dos espetáculos mais bonitos do
mundo, nem percebi que Tatiana já estava levando a gente pro
buraco de novo. Mais escadas, mais rolantes, mais portas pesadas de
vidro, multidões, gritos, falatório, e muitas, muitíssimas fotos. Deus
do céu, tudo isso valia a pena! Guardo a máquina, ela grita pra
entrarmos na composição em sentido contrário, lá dentro ela fala
alto chamando a atenção, as horas passando, a gente saindo de
novo da composição, fazendo mais fotos, abrindo a boca de tanto
deslumbramento, voltamos pra outra composição, o barulho das
rodas nos trilhos é ensurdecedor, a velocidade é o dobro da nossa, o
espetáculo é as 19 e 30, são 6 da tarde e não temos a mínima idéia
de onde fica o local do espetáculo.

Eu pergunto, ela diz “no se preocupe, teníamos tempo!” Tatiana


parece embriagada de prazer vendo nosso êxtase, nosso interesse
em fixar os olhos naquelas paredes, lustres, pinturas, mosaicos. Ela,
superexcitada pergunta nossa profissão. Quando ouve que sou
dublador e Tânia publicitária, diz que queria muito ser atriz. Ela pára,
põe as duas mãos esticadas debaixo do queixo, vira a cabecinha de
lado, põe um pé atrás do outro, faz um sorriso de Mona Lisa e fica
piscando as pestanas. “Yo queria ser actriz, mas mamá non permitió.
Fué trabajar de secretária.” Caminhamos feito loucos apressados,
subimos mais escadas, entramos em mais composições, são 18 e 40,
nem sinal de que estamos indo pra casa de espetáculo. Imagino que
deve ser nesta área porque ela não mostra preocupação. Vendo que
nosso interesse já havia diminuído um pouco ela levanta o dedo
indicar dizendo “solo más uma estacion e vamos ao teatro...”
Caminhamos por túneis longos, limpos, sem cheiro de urina, sem um
pedaço sequer de papel no chão até sairmos numa larga avenida.
Pensei que nossa maratona dos jogos olímpicos de conhecer 20
estações de metrô por minuto tinha chegado ao fim e que já
estávamos indo pra fila comprar os ingressos. Ela fez sinal e sumiu
de vista. Tinha descido mais escadas, abrindo mais portas, descendo
escadas rolantes. Comecei a ficar incomodado. Queria gritar que já

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não aguentava mais descer escadas, subir escadas, rolantes
inclusive, entrar e sair de trens, pra mim já bastava.

Ela viu minha cara e resolveu parar. Se aproximou de um sujeito


parado ao lado de um carro velho encostado na calçada. Falaram em
russo. O filho da puta cobrou 800 rublos pra nos levar. Não quero
nem questionar se tá caro, eu quero é sentar, parar de entrar em
buracos, subir escadas, quero beber água, quero ficar quieto, chega
de barulho! Entramos naquele carro velho, párabrisas imundo em
direção à casa de espetáculo. O carro fede. O motorista fede,
Tatiana fala, Tânia concorda com uma sequência de “si, claro, claro,
claro...” Eu só queria uma trégua. Só isso. Trégua. Pra ficar quieto.
Em paz. Sem vozes. Sem metrô. Sem escadas.
O carro podre chega a um prédio enorme, imponente, Tatiana
desceu do carro dando gritinhos e correndo. Meu Deus, isso não vai
ter fim???? Vou ter que descer escada de novo??? Tatiana corria
literalmente, dando gritinhos. Comecei a correr também. Tânia
também. O relógio marcava 19 e 30. O gigantesco lobby estava
cheio de cartazes de shows. Eu não sabia qual era o nosso show.
Tatiana continuava correndo e dando gritinhos. Lá no final do lobby,
uma senhora de 60 anos gritava “ESTÁ CERRADO, ESTÁ CERRADO!!”
olhando com angústia pra Tatiana com os braços estendidos em
direção a ela.Era a bilheteira, pedindo pra gente correr mais porque
as cortinas já estavam fechadas e já iam fechar as pesadas enormes
portas.

Tirei o dinheiro do bolso, 4 mil e 200 rublos, 100 euros pra nós dois.
A velha me deu o troco e fez sinal pra eu corrermos atrás dela.
Claro, recomeçamos a correr. Tatiana gritou lá atrás “TE ESPERO NA
SAÍDA!!!!!” A velha angustiada, coitada, foi até muito gentil,
descendo em silêncio a imensa plateia e chegou perto de duas
moças que ocupavam nossos privilegiados lugares, bem perto do
palco. As moças se levantaram na mesma hora. Devem ter
imaginado que ninguém havia comprado. E fez-se o silêncio, a

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calma, o relaxamento. A visão diante dos meus olhos era de sonho.
O corpo de bailarinas com seus corpos colados uma na lateral da
outra fazendo um movimento de rotação vestidos com uma roupa
linda que roçava no chão. Parecia que estavam de pé numa
plataforma giratória pois seus movimentos de pés não apareciam
debaixo daquelas roupas lindas e pesadas. Passei uma hora e meia
das mais agradáveis da minha vida. Que espetáculo inesquecível,
meu Deus, que precisão, que perfeição de movimentos! Que trilha
emocionante. Fiquei muito comovido em alguns momentos, a ponto
de ficar com os olhos cheios dágua. Infelizmente o espetáculo
chegou ao fim. Poderia ter o dobro da duração. A plateia inteira
aplaudia em pé, urrando de prazer. Um bailarino que fez seu número
com uma fantasia de cavalo preto de pelúcia foi o mais aplaudido.
Não sei por que. Seguramente havia 2 mil pessoas naquele recinto.
Fomos acompanhando a multidão em direção à saída. Tatiana, como
se fosse um tatu saindo de um buraco emergiu no meio do povo já
dando gritinhos.

Ah, não, mais buracos, escadas, metrô não!!! Se fosse esse o intento
eu não iria. Puta merda, estávamos exaustos. Ela foi falando,
falando, falando, falando, falando, falando até um carro que nos
esperava. Mais 800 rublos. Era um carro preto, novo, com ar
condicionado. Dentro do carro Tatiana falava, falava, falava, falava
sem parar. Estava muito feliz pela oportunidade de mandar um
cartãozinho de visita pra sua cliente Maria Clara, ex-dona do Hotel
Glória, que foi ciceroneada por ela, Tatiana, há alguns anos, quando
a milionária vivia com um playboy. Tatiana serviu aos dois e ficou
encantada de conviver com Maria Clara. Nos fez de portadores do
cartão dela e de um broche lindo da Virgem Maria. Agora, aliviado
pela certeza de que não voltaria ao metrô, pedi a ela que nos
indicasse uma guia como ela em São Petersburgo para onde vamos
amanhã. Ela indicou sua sócia Maria, pelo visto uma mulher jovem
por causa de um bebê mencionado por Tatiana. Na porta do
magnífico SWISS HOTEL de Moscou na rua KOSMODAMIANSKAYA
nos despedimos com abraços, beijinhos, carinhos....e alívio. Meus

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ouvidos estão zunindo. Querendo prolongar o êxtase, o prazer do
espetáculo que acabáramos de ver, entramos no lounge do hotel.
Saboreei um delicioso filé mignon acompanhado de um branco
PUILLY FUMMÉ HOFFSTETER alsaciano. Tânia pediu peixe. No
apartamento, não éramos dois turistas, e sim duas carcaças, porém
felizes ligeiramente tocadas pelo vinho e pelo jantar.

MOSCOU – 31 DE JULHO – QUINTA FEIRA

Sobreviventes de Tatiana, acordamos e fomos direto pro café. Os


cogumelos que eu comi todos os dias no café da manhã com ovos
fritos eram muito escuros mas muito saborosos. Às 11 e 40 pegamos
um táxi pra estação ferroviária. Vamos pra São Petersburgo.
Arrastando as malas, resfolegando, subindo os degraus – não há
rampas pra deficientes nem pra viajantes puxando malas – entramos
na estação velha, feia, imunda, numa área horrorosa da cidade. Com
os tickets das passagens impressos em russo, que imprimi no meu
computador, sentindo um pouco de desconfiança e desconforto
sobre a eficácia desse tipo de compra, fui tenso pros guichets
acreditando que teria que trocar esse impresso pelos tickets. Havia 4
ou 5 atendentes. Eu fiquei atrás de uma odara toda colorida, de
sandálias havaianas. Meu guichet era o 5. A moça atendia um sujeito
que parecia bem rústico, daqueles de interior bravo mesmo, tipo
capiau. Pua merda, como demorou. Talvez uns 20 minutos só com
esse merda. Chegou a vez da odara. Caralho, o atendimento não
terminava nunca. Enquanto bufava aguardando minha vez, percebi
uma mulher dos seus 50 anos, bem vestida que foi se esgueirando
do lado e se projetando na minha frente. Meu sangue subiu. Não é
possível que aqui eu vou ter que enfrentar isso também, a falta de
educação, de respeito.

A filha da puta conseguiu ficar um pouco à frente do lugar onde eu


estava. Quando a atendente terminou com a odara, a vaca pulou na
frente. Não tive dúvidas; abri a boca dizendo “essa senhora não

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respeitou a fila. Estou aguardando há muito tempo atrás da moça
que acabou de sair, essa senhora passou à minha frente. A vaca me
olhou com ódio, balbuciando em russo e olhou pra um sujeito que
enorme, gordo, de bigode que estava na fila ao lado. Nossa, quase
morri de medo da cara feia dele. Devia ser o marido da vaca esperta.
Cada um pegou uma fila, o velho golpe de sair da fila quando o outro
é atendido. Filha da puta! Mostrei o papel impresso pra ouvir o
seguinte; VOCÊ JÁ TEM O BILHETE, É SÓ EMBARCAR!”
Puuuuuuuuuuuuuuuta que pariu, era só seguir direto pra plataforme
que estava informada no meu impresso, merda!!! Perdi um tempo
enorme, mais de uma hora, ainda fiquei puto com uma esperta e não
precisava passar por nada disso.
Às 13 e 30, a hora marcada pra saída, o trem se movimentou.
Estamos perfeitamente acomodados em duas poltronas largas,
macias, hidráulicas que práticamente deitam. Temos mantas pra um
eventual frio. O ar condicionado é perfeito. O vagão lindo, e por obra
e graça de Deus, a única criança que tem nesse vagão está bem lá
na frente, nas primeiras poltronas. Vamos ver se o demoninho vai
ficar gritando durante a viagem que deve durar 4 horas e meia até
São Petersburgo. A composição roda suave, sem atrito nos trilhos,
sem barulho. Um monitor mostrava constantemente nossa
velocidade que oscilava entre 180 a 250 quilômetros por hora.

Não dá pra observar bem a paisagem lá fora. Somente nos locais de


travessia de povoados é que a velocidade é reduzida a menos de 100
quilômetros. O nosso almoço foi servido logo depos da partida, bem
chinfrinzinho, assim com a sobremesa que foi incomível. Porém o
que mais interessava era a viagem, que foi ótima. Chegamos a São
Petersburgo às 18 horas. O sol brilhava, calor intenso. Na estação
pobrezinha de marré marré marre, fui direto a um quiosque desses
que ficam na praça 15. Lá dentro, um garoto de uns 22 anos olhou
com expressão camarada. Quando pedi um táxi ele balbuciou
algumas palavras. Não sabia inglês, mas por sinais me pediu pra
esperar o motorista que já estava a caminho.

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Bem perto de nós um grupo de japoneses esperava a vez de pedir o
táxi. Um velhinho, de 75 a 80 anos perguntou de onde éramos. Quis
saber em qual hotel ficaríamos. Quando ele ouviu HOTEL EUROPA,
sua expressão se iluminou, os olhos também, dizendo maravilhas
dele. Que bom. A conversa ia continuar mas vi um sujeito
grandalhão vindo em minha direção, me olhando. De novo um
sujeito enorme, suarento, mal vestido pegou uma das malas e foi
nos levando pra fora. Claro, era o carro dele, uma podridão imunda,
fedorenta como ele. Tive até vergonha de saltar de uma furreca
podre em frente ao luxuoso hotel Europa. Com empregados de libré,
quepe na cabeça.

No front desk, fui atendido por uma perfeição em forma de mulher, a


Varvara, linda, deslumbrante de linda, olhos azuis de piscina,
sorridente, agradável, simpática, inglês perfeito. Preenchendo as
fichas precisei do passaporte. Que não encontrei nos bolsos. A
cabeça começou a latejar, não achava de jeito nenhum nos bolsos,
na mochila. O coração disparado. O mala man, Yuri, inglês muito
bom, muito simpático aguardando pra nos levar ao apartamento me
acalmou dizendo que tivesse calma, que eu iria encontrar. De
repente um lampejo; eu tinha colocado o passaporte numa bolsa
lateral laranja, uma das bagagens mais feias, pobres e ridículas que
já arrastei em viagens. Tânia comprou na 25 de março por 45 Reais.
Eu estava entrando num hotel 10 ESTRELAS, com empregados
uniformizados de libré, quebre, que estava levando pro apartamento
uma bolsa de cor laranja de 45 Reais. Que vergonha, meu Deus!!
Descansados pois o deslocamento de Moscou pra cá num trem veloz,
suave e confortável, nossa excitação é total. Dei uma gorgeta pro
Yuri, fizems uma rápida inspeção no luxo do apartamento. Em
questão de poucos minutos o telefone tocou. Era Tatiana. Nossa,
que vontade de pular deste quarto andar onde estou! Achei que
tinha me livrado dela, do falatório! Não, não me livrei não, ela me
alcançou no hotel Europa. Consegui me livrar da Tatiana, a gente
tava querendo ir pra rua. Foi só pensar e ligou Maria. Dizendo o

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preço de dois dias de guia a cargo de uma outra guia. Cobrou 580
euros que neguei na hora.

Puta que pariu! Nosso tempo em São Pertersburgo é de 4 dias e 3


noites, vou passou dois desses três dias com uma guia tagarelando
nos nossos ouvidos?? Não mesmo. Pra meu desagrado, percebi que
Maria estava resistente a não concordar com um dia só, deixando
claro que eu havia manifestado essa vontade com Tatiana. Neguei
com veemência, dizendo que só me interessaria um dia apenas e
que ela me desse o preço. Puto da vida, descemos pra bater perna
na rua.
Partimos rápido, antes que Tatiana ligasse de novo. Queríamos a
pulsação da cidade, ver as pessoas, o movimento, o vai e vem. Ruas
limpíssimas como em Moscou, porém apinhadas de gente indo e
vindo. Bares, pubs, lojas abertas, muitas luzes. O cenário era
inebriante. Como todo bom turista ignorante, não observei a regra
de se reservar o restaurante do hotel pra jantar. Fomos de cara
lavada. Ao chegar à entrada, vimos uma equipe vestida com classe,
e muita sobriedade. Eram o maitre, o assitente dele, e uma
assistente. Os três vestidos com rigor. À pergunta “fizeram reserva?”
respondi constrangido que não. O maitre num inglês perfeito,
educadíssimo nos instalou numa mesa. Deus do céu quando luxo! Os
talheres, a louça, o ambiente refinadíssimo. Numa espécie de palco,
um pianista tocava jazz acompanhado de um saxofone. Pouco depois
de nos sentarmos começamos a ouvir GAROTA DE IPANEMA. Eles
sabem sempre. Ou porque percebem ou porque a recepção avisa.

O jantar foi magnífico. De volta ao apartamento, ligeiramente


cansados, mas felizes, Maria, a guia daqui nos liga. Foi um custo
convencer a mulher de que eu não contrataria dois dias. A vaca da
mulher falava tanto ou mais do que Tatiana. Por fim concordou, ufa!

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SÃO PETERSBURGO - 1º DE AGOSTO – SEXTA FEIRA

O café da manhã é impressionante. De cair o queixo. O luxo, a


variedade de alimentos, guloseimas, as cores, as louças, os talheres,
o atendimento. Em todas as nossas viagens não desfrutamos de luxo
igual. Os garçons e garçonetes são jovens, bonitos, educadíssimos,
todos falando inglês. Esbanjam simpatia. No palco onde ontem eu
ouvia jazz agora estava uma pianista tocando repertório clássico.
Mozart, Chopin, Debussy. Peças curtas. É uma pianista mesmo, com
todo o gestual elegante e clássico dos grandes pianistas. Que luxo
meu Deus!!!! No hall do hotel, aguardamos Dária, que chegou
pontualmente às 10 horas. Branquinha, tímida, falando espanhol
perfeito, olhos muito azuis saiu logo depois que nos apresentamos e
nós atrás dela. Estavamos a caminho do Ermitage, o Palácio de
Inverno. Na entrada do palácio, Dária nos pediu que aguardasse
onde estávamos pois ia buscar os nossos ingressos. Enquanto
aguardava, um idiota me deu um cutucão agressivo no ombro com
um vidro de caviar nas mãos.

Parecia que tinha ódio ou muita cocaína nos olhos. Enfurecido nem
esperei ele falar o que queria, pois eu disse NÃO, NÃO QUERO em
português mesmo, de forma bem agressiva. O filho da puta se
afastou dizendo “BRASIL, SEVEN TO ONE!!!!” Caramba, que ódio!
Dentro do palácio, me emocionei vendo os objetos das filhas e do
filho de Nicolau Romanov. O czar Nicolau II. Foi dilacerante ver de
tão perto os objetos do menino, das meninas, tão barbaramente
assassinados. Nicolau sonhava com o filho herdando o trono embora
odiasse a tarefa de governar a Russia. Uma caixa de madeira nobre
continha um rifle pequeno, feito sob encomenda pro menino treinar
tiro. Ele adorava cavalgar ao lado do pai nas inspeções da tropa.
Comovente também as roupas das meninas, confeccionadas com
tecidos finíssimos, roupas que foram concebidas e executadas por
costureiras muito hábeis. A brutalidade com a que a família foi
chacinada numa casa na localidade de YECATERIMBURGO muito
distante de São Petersburgo choca a humanidade até hoje. O

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PALÁCIO DE INVERNO é maior, mais luxuoso e mais espaçoso que o
de Versalhes. O pé direito de todas as dependências é muito alto.
Segundo a guia Dária, para se ver todas as obras de arte do palácio
seriam necessário 11 anos com observações de apenas 1 minuto
para cada peça. É espantoso; a maioria dos vasos de cerâmica,
quadros, esculturas, objetos, móveis, adornos, porcelanas, estão ao
alcance das mãos de qualquer pessoa.

A vigilância nas dependências está a cargo de senhoras sonolentas


que devem torcer pro expediente acabar pra irem embora. O calor é
sufocante. Mesmo com as janelas abertas. Assim que saímos do
PALACIO DE INVERNO, fomos pro cais do RIO NEVA, em frente ao
palácio pra entrar num barco que nos levará à ao palácio
PETERHOFF construído por PEDRO O GRANDE. Uma curiosidade; as
aves marinhas inexistem aqui. Não vi nenhuma. Dária com sua voz e
jeito de menina cdf, a primeira aluna da escola e fodona em história
disserta sobre a historia russa a passos muito lentos. Após 7 horas,
quase 8 nesse ritmo, minhas articulações ardem insuportavelmente.
Eu e Tânia temos enorme dificuldade de nos mover por causa dessas
dores na bacia, nos joelhos, pés, cervical. Às 17 e 30 ela deu por
terminado seu trabalho. Voltamos ao hotel na intenção de comer
alguma coisa substancial já que nosso almoço hoje nas imediações
do PETERHOFF foi um enorme cachorro quente, que por sinal estava
gostoso. Enquanto saboreávamos os cachorro quentes, olhei a
vegetação magnífica em torno desse palácio de verão PETERHOFF e
não vi uma única ave na vegetação. Que coisa estranha. As únicas
aves que vi, graciosas, foram os patos nadando nos canais das águas
que vertem das centenas de fontes do local. É um pato com penas
de cor marron. Eu já não aguentava mais andar, ouvir descrições da
Dária. Queria uma trégua, queria uma água gelada, ar condicionado.
Eu queria ir embora! E foi o que fizemos.

Nos despedimos de Dária logo depois que saímos da casa de câmbio


onde ela foi trocar os euros que recebeu de nós pelo trabalho e
Tânia também foi trocar euros por rublos. Descansamos um pouco

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pra voltar pra rua de novo. A alegria, a descontração das pessoas na
rua, o vai e vem intenso na iluminada e barulhenta PROSPEKT
NEVSKY nos atrái. É como andar a pé na Visconde de Pirajá. Temos
ouvido e visto grupos de rapazes vestindo uma camiseta listrada de
branco e azul, boina azul, aos gritos de guerra por toda a parte na
cidade. A principio pensamos que era algum agito jovem, alguma
manifestação porque embora não identificássemos as palavras, o
uníssono do grito de guerra indicava que celebravam alguma coisa,
ou convocavam pessoas pra alguma manifestação.
Alguns desses grupos tinham rapazes que tinham nas mãos latas de
cerveja, garrafas de whisky, vodka, totalmente bêbados. Intrigado
perguntei a Varvara, a linda recepcionista do nosso hotel o que era
aquilo. Ela respondeu que eram marines desfrutando alguns dias de
folga após terem participado de exercícios de guerra em seus navios.
O clima geral é de festas. Os bares na PROSPEKT NEVSKY e ruas
transversais estão repletos de pessoas bebendo, fumando. As hordas
de chineses, japoneses, coreanos, todos muito baixinhos, com seus
chapeuzinhos ridículos são um contra-ponto à beleza, à brancura, os
cabelos lisos e loiros, olhos muito azuis das moças e rapazes nativos.
Os malditos skatistas, ciclistas e motoqueiros são a maldição de
qualquer grande centro urbano.

Ainda mais numa cidade de jovens como essa. Eles andam com seus
skates e bicicletas com se estivessem na ciclovia. O risco de acidente
grave é constante. O barulho enervante, ensurdecedor das s motos é
padrão. Parece que TODAS tiveram os miolos dos canos de descarga
retirados. De modo que ao parar no sinal, eles ficam acelerando,
numa ânsia desgraçada de arrancar assim que o sinal de pedestre
começa a piscar. Arrancam esticando a marcha atingindo velocidades
espantosas. Não vejo ninguém se incomodar com isso. Não há
guarda de trânsito, não há viaturas policiais. Aqui também em São
Petersburgo, os russos não jogam lixo nas ruas. É tudo muito limpo.
Não vimos um único mendigo.
Tânia está perdidamente apaixonada pela ZARA, pela INTIMISSIMI e
outras lojas de departamentos. Bem perto do nosso hotel, há uma

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galeria luxuosíssima que desperta grande amor e prazer em Tânia.
Ela entra, compra mais um arquinho, mais um batonzinho, mais um
esmaltezinho, mais uma tesourinha, mais um prendedorzinho. Numa
loja de bolsas femininas caiu de amores por uma bolsa que jura
custar mais de mil e quinhentos Reais no Brasil. Comprou por 200
euros.

SÃO PETERSBURGO – SÁBADO – 02 DE AGOSTO DE 2014


Desde que chegamos aqui Tânia fala sem parar na vontade de ver
um espetáculo clássico. Consulto a conciérge Ana, uma mulher na
casa dos 40 anos, olhos muito azuis, muito tristes, cabelos castanhos
bem claros crespos. Ela nos indica o ballet GISELLE. Tudo esgotado.

Ela menciona a chance de eu ver o espetáculo desde que espere até


15 horas pra me vender as cadeiras que não foram utilizadas pelos
membros do governo. É uma praxe. As casas de espetáculo, segundo
ela, tem lugares no balcão superior especialmente dedicado aos
governantes e seus convidados. O preço, se ninguém quiser as
cadeiras é salgado. Pensei em desistir; 250 euros pra cada um. Tânia
não vacila, quer ver o espetáculo. Ana sugere que um dos carros
oficiais do hotel nos leve ao teatro e nos busque ao final. Concordo.
Puta merda, 100 euros!!! Chegamos quase meia hora antes. Tânia
em êxtase não perde um detalhe da peruagem.
Vai começar o espetáculo. Vamos pra frisa. Que tem poucas
cadeiras. Localizada em frente ao palco. O local não pode ser mais
privilegiado. São 15 cadeiras no máximo. Imaginei que ppor um
preço tão salgado, haveria poltronas confortáveis. Que nada! Eram
cadeiras pouco mais que comuns com um assento acolchoado muito
básico, muito simples. Não havia ninguém no recinto, só nós dois.
Embaixo, na plateia não havia mais lugar, tudo ocupado. Comecei a
perceber que as pessoas da plateia, dos camarotes laterais, abaixo
de nós, acima de nós fotografavam onde estávamos. Olhei
discretamente pra trás e não vi ninguém. O que me espantou é que
eram muitas pessoas fotografando com máquinas, com celulares.
Será que estávamos em lugar errado?

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A única explicação que tenho é que sendo um camarote num lugar
absolutamente privilegiado, as pessoas deveriam estar pensando que
nós éramos, ou gente do governo, ou enviados do governo. A
princípio me incomodei com o tanto que fotografavam, mas depois
gostei do status. Todo mundo se abanava, ou com leque, ou com o
programa da peça. O calor era um grande incômodo. GISELLE é um
ballet lindo, corpo gigantesco de bailarinos em perfeita sincronia.
Pra nossa sorte, quando o ballet começou, ligaram o ar
condicionado. A orquestra é divina. Foi muito aplaudida. Terminado o
espetáculo saímos logo, tínhamos fome.
Do lado de fora, um motorista nos esperava com a placa MR.SEIXAS.
Um puta BMW preto, muito limpo, bem refrigerado, nos esperava
com garrafas dágua nos consoles traseiros. Valeu cada centavo.
No hotel trocamos de roupa e voltamos à rua. Temos fome. Já são
10 da noite. Noite branca, pois continua muito claro. Nos sentamos
numa varanda linda, longa, na esquina do nosso hotel pra comer
pizza. E tomar cerveja. Quente. Tudo aqui é quente. Não conhecem
cerveja gelada. Olho relógio, 23 e 45. Há claridade no céu. Estou
desfrutando de uma noite branca, a famosa noite branca russa.

Caminhamos felizes pro nosso magnífico hotel que tem uma suíte
especial dedicada a Tchaikowsky. Ele se hospedava aqui. Enquanto
caminhava sob a claridade embora não houvesse sol, senti uma
perturbação momentânea, olhando o relógio que marcava 23 e 45. O
meu relógio, que não estava estragado, eu tinha certeza, estava
indicando que faltavam 15 minutos para meia noite, mas não havia
escuridão, muito menos lua cheia. Era a claridade de um sol que
ainda não havia se escondido completamente no horizonte. Havia
tanta claridade que era possível ler um jornal sentado num banco de
praça. É uma sensação indescritível.

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SÃO PETERSBURGO – DOMINGO – 03 DE AGOSTO

Acordamos tarde, fomos pro café e saboreamos lentamente todas


aquelas delícias ouvindo a pianista tocando clássicos. Em seguida
fomos pra rua bater perna em direção ao Hermitage. Bem próximo
do Palácio nos defrontamos com produção de cinema. Em duas
ocasiões. Tânia parou pra ver a gravação de uma cena da briga de
um casal. Ele empurrando um carrinho de bebê. Os dois discutindo
asperamente. A mulher num surto de descontrole sái correndo em
direção oposta à que seguia ao lado do marido. Ao ouvir o “CORTA!”
parou, tirou os sapatos de época, fez cara de alívio e veio
caminhando em direção à equipe atrás das câmeras com os pés no
chão.Pra deleite da Tânia. Logo a seguir demos de cara com outra
cena. Agora eram vários figurantes em roupas de época, numa
pausa para o almoço misturados aos membros da equipe de
produção Todos caracterizados, almoçando quentinhas em pé
mesmo. Não havia cadeiras. Seguravam nas mãos a quentinha sob
um sol de quase 40 graus. Andamos bastante, sem rumo, ao longo
do Rio Neva até que a fome bateu feio. Entramos no restaurante
BARBARESCO, italiano. Pedi tentáculos de polvo. Meu Deus, que
delícia, não me lembro de ter comido polvo tão saboroso! Tânia
comeu um spagheti a carbonara. Bem original mesmo. Segundo ela,
tava marromenos. Pedi uma dose de vodka beluga. Bem gostosa.
Voltamos pro hotel pra dormir.

À noite a fome bateu de novo. Saimos de novo pra Prospekt Nevsky.


Entramos num restaurante e pedimos um strogonoff que tava bem
bundinha. Mas desceu sem problemas. Uma das garçonetes tinha
uma trança grossa que descia da cabeça até os joelhos. Zapeando
tv, parei num canal que apresentava LA TRAVIATA com legendas em
italiano do livreto. Que inveja, puta merda, que recurso maravilhoso
pra se entender uma obra, expondo o texto na tela.

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SÃO PETERSBURGO – SEGUNDA FEIRA – 04 DE AGOSTO

No café da manhã. Na área onde Nicolae, o nosso garoto saído de


um livro de Dostoiewsky nos atende com extrema simpatia. Eu
estava me preparando pra dar a ele uma gorgeta generosa como dei
pra Nina, nossa adorável garçonete que nos atendeu nesses dias em
que estamos aqui. Dei 500 Rublos, o equivalente a 50 Reais. Ele,
como Nina, agradeceu feliz, envergonhado até. Nicolae e Nina nos
deram um atendimento adorável na nossa deliciosa permanência
nesse hotel. Não vejo as pessoas fazendo isso com a turma de
profissionais que atende os turistas no café da manhã. Não vejo por
que não dar uma gorgeta a eles. Vamos sair daqui a pouco pro
aeroporto em direção à Lisboa com escala em MUNICH. Nos
despedimos de Nina. Brinquei que ela deveria vir ao Brasil, quem
sabe se casaria com Ivo?

Não escondemos nossa surpresa ao ouvir essa linda menina dizer


que era casada e que tinha um bebê. Caramba, com aquela carinha
de adolescente!... Desejei boa sorte, agradeci o atendimento e nos
despedimos emocionados. O sorriso dela pra nós todas as manhãs
era lindo! Antes de nos retirarmos recomendei que ela continuasse
com os estudos de inglês. Apertamos nossas mãos. Já estávamos
fora do salão do café quando ouvimos ela nos chamando. Tímida,
muito graciosa, medindo com cuidado as palavras, perguntou se eu
poderia emitir num escrito à gerência do hotel tudo o que falei dela.
“Farei isso agora, com o maior prazer!” O rostinho dela se iluminou,
me agradeceu muito fazendo mesuras de respeito e voltou pra salão
do café.. Varvara, a lindíssima recepcionista que nos atendeu no
primeiro dia estava no front desk. Me deu uma folha de papel
timbrado onde expus rasgados elogios à excelência do atendimento
dela, de Nicolai, da própria Varvara, Ana a conciérge e Yuri o Best
boy. Vou sentir muita saudade desse hotel, das pessoas. Descemos
pra pagar as despesas, pedi um táxi pro aeroporto. Pedi um táxi
normal, não quis gastar 150 euros pra ir até o aeroporto que nem é

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tão longe. Daí a pouco chegou o táxi, táxi não, o lixo, o monte de
estrume, sujo, velho, fedorento, e de como de hábito, o motorista
também. 35 minutos depois eles nos deixou no aeroporto, graças a
Deus. O maldito calor continuou a nos atormentar dentro do
terminal. Às 15 horas começou o nosso embarque.

Mal podia esperar pra adentrar o lounge da lufthansas pra comer


iguarias, e principalmente “os salsichos”, beber sucos variados,
yogurtes, chá, vinhos. Ao passar pelo controle de bagagem a policial
encarregada do raio X segurou minha mochila pedindo pra eu abrir.
Ela e colega diante da tela viram alguma coisa estranha que chamou
a atenção. Ela esvaziou minha mochila. Apalpou cada centímetro
quadrado da mochila.Até as alças ela apertou. Agradeceu, me deu o
sorriso mais bonito do mundo – era uma bela mulher – e botou
todos os meus pertences de volta. Irritado fomos pra duty free. A
vodka mais cara, a beluga gold line estava custando 45 euros. A
garrafa é deslumbrante de bonita, é uma obra de arte. Tânia
comprou uma beluga de garrafa normal. Aliás, duas, uma pro Ivo
outra pro Marcio. Eu tava louco pra ir pro lounge. Andamos pra
caralho, puta merda que aeroporto comprido, cacete! Adentrei o
lounge finalmente. Que bosta!!!!! Era uma área aberta, sem ar
condicionado, com meia dúzia de biscoitinhos muito cretinos! Não
comi nada. Decolamos às 17 e 30. Rumo a MUNICH.

MUNICH, SEGUNDA FEIRA, 04 DE AGOSTO

Descemos em Munich às 18 horas, hora local com diferença pra


menos no fuso horário já que saímos de São Petersburgo duas horas
e meia atrás. Fomos direto pra imigração.

Filas no raio X, demora, me impaciento, tiro dos bolsos tudo o que é


metal, tiro tudo. Procuro o lounge da Lufthansa. Será que é a mesma
merda? A escadaria de acesso é interminável, larga e em espiral. O

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mau humor da Tânia está na estratosfera por causa de tudo. Ela se
queixa de sapato apertado. Quando chego ao lounge, Deus do céu!
O paraíso tava me aguardando. Que conforto, que beleza de lugar,
que variedade de alimentos frios, quentes, bolos, biscoitos, bebidas,
e até picolés! Me delicio com uma carne cor de rosa. Não tenho idéia
do que seja isso. Nosso vôo é o de número 551-TAP. Portão 21.
Tinhamos andando quilômetros pra chegar ao portão 21. Que ficava
exatamente em frente ao lounge.
Depois o nosso embarque foi modificado pro portão A-32. Estamos
relaxados aguardando o chamado pra embarque. Passa o tempo. De
repente, como só acontece com ela, Tânia se agita. Sai pisando duro
em busca de informação. Volta fula da vida ao descobrir que nosso
vôo foi mudado de novo, agora pro portão A-20. Assustada,
estressada, espumando de indignação, falando alto, nós dois
tropeçando nas próprias pernas, ela pega a parte dela das nossas
bagagens e de novo começamos a andar. Chegamos ao portão A-20
que já estavam em operação de embarque. Que coisa insuportável é
aeroporto. Duas horas depois desemos em Lisboa. Às 22 e 10, hora
local. Quando eu vejo os ônibus se acercando do avião, tenho
vontade de chorar de tanta raiva. É uma merda entrar neles porque
mesmo quando o veículo está abarrotado o puto não sái de jeito
nenhum.

Finalmente o ônibus sai pra nos despejar no terminal. Trafegou por


esse imenso aeroporto por 15 minutos até encostar e nos despejar. É
quando acontece a debandada. Saem todos se atropelando todos
loucos pra se livrar desse tédio que é aguardar horas a fio e de
caminhar por intermináveis corredores. Estou no auge do meu
cansaçdo, da irritação, Tânia idem. Na esteira tivemos que aguarda
UMA HORA INTEIRA pra reaver as bagagens.Eu estava desesperado
pra esticar as pernas, me deitar, tomar um banho antes. Estavamos
na função de viajar há 12 horas ininterruptas! De vez em quando a
lembrança das xícaras chinesas que despachei de Porto pro HOTEL

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TÍVOLI LISBOA me incomodava. Incomodava não, atormentava
mesmo.
Num cálculo otimista, dos quase 200 passageiros deste vôo, não
éramos mais do que 20 pessoas aguardando as malas. O pessimismo
começava a me torturar quando finalmente as malas apareceram.
Que alívio. A mala cinza por baixo, a azul em cima, a bolsa verde
pesadíssima em cima da azul, a mochila em cima da bolsa verde. Era
uma coisa monstruosa, feia, pesada sendo empurrado pra fila do
táxi. Do lado de fora senti um frio na barriga. Havia pelo menos 300
pessoas aguardando os táxis. Vários voos chegaram quase à mesma
hora. Tive enorme dificuldade pra segurar o carrinho com as
bagagens porque a calçada onde estávamos tinha um desnível muito
acentuado de modo que o carrinho insistia em correr pra pista onde
os carros passavam.

Eu não estava estressado, estava espumando de raiva, deprimido


mesmo por causa de toda essa confusão, de tanto vozerio, de tanta
chatice. Meus joelhos, pés, costas, braços, estão entorpecidos de
dor. De cansaço. Meus olhos ardiam terrívelmente. A pele úmida de
suor de um dia inteiro de deslocamento me provocava calafrios.
Uma hora depois, chegou nossa vez. Embarcamos em direção ao
oásis que é o TIVOLI HOTEL LISBOA. Contrariando seus hábitos,
Tânia chegou ao hotel, em silêncio, tirou a roupa e se jogou na
cama, sem banho e sem escovar os dentes. Eu tomei um banho
muito demorado. Tava querendo lavar mais a alma do que o corpo.

LISBOA – TERÇA FEIRA – 05 DE AGOSTO

Acordamos quase 9 e meia. Pra mim é uma raridade já que todos os


dias estou acordado às 5 e meia. O café foi maravilhoso na varanda
do terraço com vista pro Rossio, pro castelo de São Jorge, pra
cidade e pro mar. Ainda abalado pelo dia e pela noite tenebrosa que
vivi ontem, meu coração disparou quando me lembrei de perguntar

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na recepção pelas minhas xícaras. Um gelo apertou meu estômago.
Se fizemos nosso registro ontem à noite e ninguém nos falou das
xícaras, então elas não chegaram.

Ai, meu Deus, não quero nem pensar nisso! Corri à recepção. Fui
atendido por Philipe, jovem, simpático, prestativo. Disse deconhecer
qualquer entrega dos correios endereçada a mim ou ao hotel. Ele
deve ter percebido minha palidez e meu desânimo com essa
informação. Mostrei a ele o recibo do despacho feito no Porto
momentos antes de embarcar pra Frankfurt a caminho de Moscou.
Na minha frente ele fez algumas chamadas. E não encontrou indícios
da entrega. A única informação que me dava alguma esperança é
que houve na data indicada no recibo uma entrega no hotel TIVOLI
MAYA muito distante desse em que nos encontrávamos. Pra acabar
comigo Philipe disse que não tinha idéia do que era TIVOLI MAYA.
Vendo minha profunda prostração, Philipe me incentivou a não me
deixar abater, pois continuaria tentando durante o dia rastrear a
encomenda. Desanimado, agradeci e fui pra rua com Tânia. Fomos
pro Rossio, onde adoramos ficar andando sem ter nada pra fazer.
Pegamos um táxi pra nos levar ao SOLAR DOS PRESUNTOS.
Surpresa! Fechado pra férias coletivas durante o mês de agosto
inteiro. Almoçamos num restaurante de frutos do mar e continuamos
a bater perna. Tânia quer ir ao bairro do CHIADO. Nunca ouvi falar
desse lugar. Ela que tem crises horrorosas de mau humor quando vê
uma escada nem se abalou quando um português nos indicou uma
escada enorme que dava acesso ao bairro. 70 DEGRAUS!!!

Toda animada foi toda serelepe caminhando pra lá. Felizinha,


saltitante, catita, vaporosa, jovial, efervescente, dançante,
espraiando alegria ela começou a galgar os 70 degraus. Pela
felicidade dela parecia que eram 7 degraus. Eu atrás, bufando,
arrastando minha enorme carcaça, sonolento, exausto, pessimista
pensando nas xícaras. Cá de baixo, eu mirava o gólgota e pensava
“se ele subiu com a cruz nos ombros, e era mais baixo do que eu,
por que não posso tentar também?” Detalhe, sem multidão

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apupando meu martírio. Aqui a multidão é solidária sofrendo comigo,
vencendo degrau por degrau. O que podem alguns degraus contra
quem subiu a encosta de um vulcão extinto na ilha de Santorini 3
anos antes? E quando estava mais gordo do que estou hoje. E com o
joelho operado de menisco havia poucas semanas.
Vencidos os 70 degraus, chegamos à rua íngreme, repleta de lojas
bem transadas, lindas, convidativas. É por isso que Tânia Maria
estava tão catita. Ela fareja lojas. Lolita Tânia não esconde sua
euforia. Que cansaço das pernas ou sapato apertado que nada!
Esqueceu as queixas de minutos antes e transitava tal qual a paina
ao suave sabor do vendo primaveril pulando de um lado a outro da
rua entrando numa loja e saindo por outra. Cada vez que ela saia de
uma Benneton ou de outras congêneres seu sorriso de
encantamento era precedido da voz derretida numa cascata de mel;
“ LINDINHA, NÉÉÉÉÉÉ´????”

Tenho que concordar, essa rua é um dos lugares mais charmosos de


Lisboa. Não tínhamos idéia da sua existência, mesmo tendo vindo
aqui tantas vezes. A felicidade dela poreja. Estamos em plena via-
consumus rua acima. O topo não chega nunca. Estou resfolegando.
Ela infatigável. Tem sede, vê uma vitrine de confeitaria, começa a
ronronar olhando pras bombas de chocolate, de doce de leite, e
biscoitos de aspecto convidativo. Na mesa pedimos água e café, ah,
e o nome do biscoito. Dois minutos depois não nos lembrávamos do
nome do boscoito. Sim, era delicios. Quase ao final Tânia pergunta
ao garçon se ele conhece uma loja de nome tal. Ele responde sério
dizendo que conhece mas que era muito longe. Antes que a cara
dela fique desmontada de decepção ele aponta o braço pra fora do
recinto indicando a loja em frente.
Ela ri deliciada. É uma loja de artigos pra casa. Entra e se despeja
em elogios, onomatopeias, ronrona, ri, sorri pra vendedora que olha
pra ela encantada. A moça parece uma nordestina. Meu coração
dispara quando a moça abre pacotes de jogos de toalhas de banho,
cobre leitos, edredons, colchas, travesseiros. Não, não, pelo amor de
Deus, chega de comprar, chega de sacolas. Nossa bagagem já pesa

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uma tonelada! Ela olha pra mim com semblante em súplica. Resisto,
vou pra fora, pacificamente, em protesto pela simples idéia de ter
que carregar fardos com roupas de cama e banho.

Por fim, desesperado de cansaço, de sede, entramos num táxi. O


veículo continuou a subir, subir, subir, subir. Puta que pariu, não tem
descida em Portugal? Só descida? No táxi, meus pensamentos
sombrios voltam a me incomodar. Será que as xícaras se perderam?
Desço do táxi indo direto à recepção. Lá estava Philipe. Cravei os
olhos nele. Sem que eu dissesse palavra ouvi a frase mágica;
“Senhora Seixas, tenho uma ótima notícia! Sua encomenda está
aqui!” E ma entregou. Como sou acima de tudo um forte, consegui
esconder minha emoção. As duas xícaras chinesas da grife DRAGÃO
DOURADO são desde já as mais bonitas da minha coleção que é
usada diáriamente, em rodízio no meu café da manhã.a Dentro do
apartamento, feliz feito criança, abro o pacote pra conferir a
integridade das minhas formosuras.

LISBOA – HOTEL TÍVOLI – QUARTA FEIRA – 06 DE AGOSTO

Acordei às 6 da manhã. 13 HORAS DORMINDO!! Café delicioso,


banho, rua! Pegamos um “ascensor” como os portugueses chamam
o bondinho aqui. Ele nos levou ao alto da praça do Campo de
Santana onde há uma estátua do doutor SOUZA MARTINS, um
médico e farmacêutico que viveu no local. Era professor da
universidade de medicina. Religioso cristão e muito generoso, depois
de sua morte, milagres foram creditados a ele.

Sua estátua contém velas, fotos em porta retratos, cartazes com


fotos e dizeres das pessoas agradecendo com fervor a graça que que
teriam alcançado. Tânia quer saber mais sobre o médico. Uma
senhora posta-se em atitude contrita diante da estátua num pedestal
que eleva a figura de tamanho natural a 5 metros. A senhora tem
um terço nas mãos e um véu na cabeça. Sem qualquer cerimônia
Tânia interpela a mulher perguntando detalhes sobre SOUZA

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MARTINS. A senhora aparentemente de origem muito humilde e com
total desconhecimento de quem foi Souza Martins se desculpa por
não poder fornecer as informações que Tânia pede.
Consigo afastar Tânia da estátua, e da senhora que rezava.
Proponho pegar um táxi pra ir ao Corte Inglês. Ela mais do que
depressa, correndo aliás, fogosa, melhor dizendo, concorda. Na
velocidade da luz aparece um táxi. Que nos deixa em frente à igreja
que tanto bem faz ao espírito de Tânia Marinho; EL CORTE INGLÊS.
Não nego, o entusiasmo dela me contamina. Compro 4 camisas.
Lindas! Achei um par de mocassins lindíssimo pela bagatela de 29
EUROS. Achei a macadâmia SANDRAL. Delícia. Muito cara. Mas única
no mundo. Às duas da tarde a fome nos chama. Resolvemos almoçar
no hotel. Que bacalhau, misericórdia! Delícia! Dormimos à tarde pra
ver o show da fadista à noite com jantar. O mesmo bacalhau que
comi no almoço. A cantora não nos emociona. É linda, quase dois
metros de altura, cabelos lisos, voz agradável, muito simpática.

Uma imagem totalmente inversa à de Amália Rodrigues, que tinha


boca vermelho brilhante de batom, os cabelos negros como a asa do
urubu, a pele branca macilenta, carregada de creme que a tornava
mais branca ainda, olhos semi-cerrados com expressão de
sofrimento. “Ai mouuuuurariaaaaa...” Terminado o show nos
levantamos. No elevador a fadista linda e gigantesca acompanhada
por seus instrumentistas, um deles brasileiro, é comunicativa, fala
conosmo. Está indo direto pra outro restaurante. “Eu e minha arte”
como diz Tânia Marinho.

LISBOA – TIVOLI HOTEL – QUINTA FEIRA – 07 DE AGOSTO

Tomamos café hoje no TERRAZZO, o restaurante lindíssimo do nono


andar. São dois ambientes de café nesse hotel magnífico. O nome
Terrazzo com Z é por isso, porque é o topo do imponente edifício. O
outro, de nome BRASSERIE fica no térreo. É bem mais simples o
local. Mas bastante agradável. O café e as opções de alimentos são
muito variadas, deliciosas, porém o atendimento deixa muito a

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desejar. Apesar da educação de todos os garçons. Tânia está fula da
vida com o Corte Inglês. Descobriu que ao compar as bolsas do
jacarezinho – lindas – no corte inglês de PORTO que não deram a ela
o desconto apregoado, o que barateou e muito o valor unitário.

Ela já havia comentado isso antes de irmos pra Moscou, mas não
teve saco pra voltar à loja. Disse que tentaria o ressarcimento, ou
reconhecimento da ilegalidade no Corte de Lisboa. No Corte Inglês
foi atendida pela gerente da seção dessa grife, que foi incansável
tentando resolver a questão. Depois de muito tempo, a gerente
admitiu que houve erro na loja de Porto. Tânia venceu, obteve o
crédito. Quis o dinheiro de volta? Nem morta! Comprou outra bolsa.
Uma é dela, a outra da Cláudia Sininho e a outra é da minha
espevitada filha, Cunquinha. Felizinha da vida por ter resolvido com
toda simpatia essa pendência, voltamos ao hotel. Pegamos um táxi
pra ir ao restaurante GAMBRINUS. Deus do céu, que bacalhau foi
aquele??? E que filé mignon foi aquele que Tãnia saboreou, meu
Deus?? Pedi um branco. O maitre sugeriu o Filipa Pato. Que bebi
gemendo de prazer. Não encontrei no Corte Inglês. Tomara que haja
no free shopping. Depois do almoço, satisfeitos, felizes, meio
tocadinhos pelo vinho branco o ideal era voltarmos ao hotel pra tirar
uma soneca. Pra que??? Tânia Maria disposta, alegre, animda, botou
20 no viado e fomos a pé pra onde? Pro
CHIAAAAAAAAAAAAAAADOOOOO!!!!! Ela entrou de novo EM
TOOOOOOOOOOOOOOOOOODAS as lojas que ela adorou ontem.

MALMAISON – TERÇA FEIRA 13 DE MAIO DE 2013

Dia abençoado; tive a chance de conhecer a tão mencionada


residência de Josefina Beauharnais - senhora Napoleão Bonaparte -
nos livros de história francesa. De todos os imóveis que o imperador
deu a ela, Malmaison foi a preferida.
Eu, Tânia e Ivo tínhamos apenas 5 dias e 4 noites pra mostrar Paris
a ele que estava numa excitação que não prevíramos. Ele queria ir a

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todos os lugares, todos os monumentos e principalmente ao MUSÉE
DES INVALIDES onde estão os despojos da guerra napoleônica. E eu
com o pensamento fixo em Mailmaison que descobri quase por acaso
poder visitar num roteiro específico, graças à simpatia e boa vontade
da senhorita, ou; mademoiselle DIANA PHOUMILAY, recepcionista do
hotel PULLMAN MONTPARNASSE.
Diana, extremamente simpática, agradável, de fala baixinha, óculos
de lentes grossas, era atacada por mim com francês, misturado com
inglês, espanhol, Ivo atacava com inglês a cada investida nossa indo
à recepção pra obter informações sobre visitas a monumentos.
Na segunda feira ela indicou que na terça haveria uma excursão de
meio dia à Malmaison. Exultante pedi que me incluísse. Não havia
mais espaço vaga na excursão. Vendo meu enorme desapontamento,
Diana me disse que eu poderia ir sozinho, mas que era um
pouquinho complicado chegar até lá mas que ela me indicaria em
mapas. Topei. Sózinho. Com a graça de Deus, pois sabia que me
perderia no caminho.
Ela pegou os mapas impressos com rotas de metrô/ônibus de
Montparnasse até o subúrbio de RUEIL MALMAISON, e de lá o ônibus
número 27 que passaria bem próximo da casa.
Na manhã seguinte, ao acordar, encontrei no chão junto à porta, um
envelope. Dentro estavam instruções mais detalhadas que Diana
teve o cuidado de elaborar pra eu não me perder. Que encanto!
Animado, tomamos café eu e Tânia, - Ivo não tomou café um dia
sequer durante toda nossa viagem de 18 dias – em seguida parti
todo animado pra embarcar na estação MONTPARNASSE BIENVENU
que ficava quase em frente ao nosso hotel.
Naquele mundo frenético de máquinas automáticas, de barulho de
trens chegando, trens partindo, gente saindo, gente entrando pelos
buracos, túneis, e galerias aos montes passando pelas catracas,
comprei, hesitante o bilhete em direção à estação CHARLES DE
GAULLE/ETOILE. Depois de 25 minutos de deslocamento em alta
velocidade e inúmeras paradas ao longo de várias estações, desci
com o coração aos pulos em Charles De Gaulle/Etoile.

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Teria que pegar outro trem na plataforma RER, agora em direção à
SAINT GERMAIN EM LAYE. Claro, que embarquei na direção
contrária. As luzinhas que vão se apagando no teto do vagão me
mostraram que eu estava voltando pra Ch.D. Gaulle/Et.
Desembarquei de novo, passando pelo labirinto de escadas de
cimento e rolante, rampas, e fiquei do lado certo da estação pra
Saint Geramain Em Laye. O trem logo saiu do subterrâneo deslizando
pela superfície.

O trajeto é longo, passando por uma Paris que eu não conhecia.


Casas adoráveis, com jardins, quintais, palmeiras, coqueiros, prédios
baixos, trânsito humano, calçadas largas. Que visão maravilhosa! Por
fim cheguei à estação de RUEIL MAILMAISON, subúrbio parisiense. A
distância do centro de Paris até esse ponto onde eu havia descido é
a mesma de Petrópolis/Rio.
Esperei no ponto de uma avenida larga e vazia de pessoas e carros
pelo ônibus 27 que demorou 15 minutos pra chegar. Era pilotado por
um francês de cabeça branquinha, óculos de grau, pele muito cor de
rosa. O ônibus deu partida, com 3 passageiros, eu, incluído. A
intervalos de 2 quilômetros no máximo, ele parava pra subir
passageiros. Depois de quase meia hora de anda/pára, eu não
conseguia deduzir que estava perto da casa de Josefine.
Me levantei do banco, perguntei – em francês, claro! - ao motorista
se eu estava longe do lugar. Ele teve uma reação formidável para o
padrão francês de cortesia que num livro de 10 páginas vai só até à
página dois; se sentiu incomodado por eu já ter passado do ponto
onde deveria descer.
Chegamos ao final do percurso, pra esperar mais 10 minutos – as
paradas tem hora certa de saída - ele me pediu mil desculpas como
se fosse culpa dele me indicando o banco pra eu me se sentar pois
sairíamos logo. Voltando pelo mesmo percurso lindíssimo, uma área
toda arborizada,paisagismo maravilhoso eu estava muito encantado.
Por fim, o motorista chamou minha atenção de que estávamos nos
aproximando. Quando eu tirei o dinheiro do bolso pra pagar, ele não

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quis aceitar de jeito nenhum, por mais que eu insistisse. Meu Deus,
será que estou mesmo em París?
Do ponto onde desci, caminhei por uma alameda arborizada, com
árvores altíssimas dos dois lados da estreita avenida. Voilá! Estava
diante dos portões de ferro de Malmaison. Me aproximei de um
senhor de terno e gravata sentando num banco junto à pequena
cabine de bilhetes. Abri a porta e fui atendido por um jovem. Paguei
6 euros pra entrar.
Na porta do imenso casarão fui recebido por outro senhor de terno e
gravata com um rádio-comunicador numa das mãos. Ao entrar no
salão, fiquei em êxtase. Eu estava nos domínios da maior paixão de
Napoleão Bonaparte. Eu estava caminhando pelos mesmos lugares
em que ele se movia quando não estava atacando algum país
europeu pra aumentar seus domínios. Me surpreendeu a ausência de
turistas. Eramos só eu e um casal de velhos silenciosos. Tirei
fotografias, muitas, muitas.
Infelizmente cheguei faltando uma hora e meia pra casa fechar. As
visitas estão permitidas de 9 ao meio dia e meia e de uma e meia às
4 da tarde. A casa era grande mas essa hora e meia que eu tinha foi
mais do que suficiente pra eu ver o que me interessou.
Feliz feito criança, saí caminhando no sentido oposto da alameda
arborizada pra ficar no ponto do ônibus 27 pra voltar à estação do
metrô e em seguida pegar o trem em direção à Montparnasse.
Quando o ônibus chegou quem estava no volante? O meu amável
motorista!
Parou no ponto junto ao metrô, e de novo, quando quis pagar a
passagem, ele não aceitou de novo. Me perguntou de onde eu vinha.

Quando eu disse BRASIL, RIO DE JANEIRO, a cara dele se iluminou,


fez expressão de lascívia, desenhando no ar os corpos queimados de
sol das mulheres na praia. Rimos um bocado e nos despedimos.
De novo na estação REUIL MALMAISON pra fazer todo o percurso de
volta. Foi dos passeios mais adoráveis que já fiz em toda minha vida.

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PRIMEIRA VIAGEM À EUROPA
RIO DE JANEIRO – AEROPORTO INTERNACIONAL

29 DE MAIO DE 1.984

Eu e Tânia vamos realizar o grande sonho de nossas vidas. Estamos


no aeroporto internacional do Rio de Janeiro aguardando embarque
para a Europa. Paulo e Lia, ele locutor da rádio FM de Curitiba serão
nossos colegas de viagem.
Eles já estão no aeroporto nos aguardando. Lúcia, Afonso, Bibi, seu
Mello e Glorinha chegam pra despedidas.
No semblante de Bibi, orgulho e felicidade.
Ela trabalhou quadro décadas sem se permitir nenhum descanso ou
lazer. Agora aos 59 anos, aposentada, com algumas economias bem
aplicadas, vê na filha a realização de tantas coisas sonhadas e que
não teve coragem nem estímulo pra realizar.

O Jumbo saiu na hora. Abarrotado. Sem um único lugar vazio. O


calor era insuportável.. Em pouco tempo descobriríamos que o
serviço de bordo de um avião desses não pode ser bom na classe
econômica, é claro.
As aeromoças argentinas são friamente educadas. Tentamos dormir.
Inutilmente. Nove horas depois pousamos em Miami.

MIAMI – 30 DE MAIO

O dia é lindo apesar da chuva que caiu minutos antes.


Desembaraçamos nossa bagagem sem problemas. Táxi, a eterna e
insolúvel questão nos preocupa; seremos bem atendidos? Seremos
roubados? Um agente de segurança no desembarque, do lado de
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fora do aeroporto nos explica e nos convence sobre a diferença entre
o ônibus e uma limusine até o hotel.

Chegamos tão apreensivos e desconfiados e de cara aceitamos a


sugestão de um homem que nunca víramos na vida?
Entramos na primeira e enorme limusine que parou à nossa frente. O
motorista, cara fechadíssima, cinqüenta anos aproximadamente,
começa a sorrir por causa da algazarra que fazemos. No painel da
limusine um plástico de vinte centímetros por vinte traz estampados
nome e foto do nosso profissional do volante; SOTOLONGO

Um momento de corujice no pedágio; uma buzina chama a atenção


de Sotolongo. Todos olhamos pra limusine que buzinou. No volante,
um jovem sorria feliz olhando pra nós.
-“é meu filho!” esclarece Sotolongo com cara de pai babão.
No HOTEL BELAIRE somos atendidos por um coroa absolutamente
sério mas gentil. “Al”, sugeriu ele respondendo à minha pergunta
não deixando dúvida de que não gostaria de ser chamado de
ALFREDO.
Temos sede e fome de curiosidade. Tânia está radiante, não esconde
sua excitação. No saguão do hotel uma placa anunciava
“Panquecas”. Sentamos os quatro, pedimos a própria com café. Que
bela merda!

Temos algum sono e muita disposição pra ver coisas apesar do


tremendo desconforto da viagem.Tomamos um ônibus para a cidade.
Estamos distantes do centro quase 20 quilômetros. Embarcamos no
“T” conforme as indicações que nos deram no hotel.
Os ônibus aqui – ótimos – trazem uma letra no painel externo. Nosso
“T” bus é dirigido por um motorista negro que responde
grosseiramente quando estendo a mão querendo os tickets
correspondentes aos cents colocados no cofre ao lado dele.
Ele vocifera puto e rápido.

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Impotente, me afasto dele olhando pra cara de todos os velhos
dentro do ônibus. Uma velhinha se comoveu vendo minha cara. Nos
orienta. Volto ao motorista mal-humorado e deposito na negra palma
de sua mão uma porrada de moedas. A paz volta a reinar dentro do
ônibus. Chegamos ao centro. Compras. Lanche no Burger King.,
voltamos ao hotel pra dormir.

MIAMI – 31 E MAIO

Às seis da manhã, estamos de pé esperando o ônibus que nos levará


à Disneylândia. Chega sem um minuto de atraso com outro negro
como motorista. Talvez pelo péssimo contato com o meu primeiro
negro, antipatizei logo com esse. Estamos na estrada. Sinto-me
como se estivesse fazendo figuração num desses filmes de sábado à
noite na Globo.
O motorista, calças justas, botas, óculos escuros e cabelos
gomalinados conversa o temo todo com duas americanas que vão no
primeiro banco. Chegamos à Disneylândia.

Ele dá as últimas instruções quanto ao horário da volta, lugar de


estacionamento do ônibus, saída antecipada do reino do
encantamento por causa do aglomerado humano na estação do
monorail, etc.
Ele pareceu impaciente quando tinha que falar com os colombianos
ou chilenos passageiros do ônibus, que pela expressão facial
angustiada demonstravam não entender nada quando o motorista
falava ao microfone.
Enfim, vamos em direção ao sonho. O monorail é na minha cabeça o
contato com o meu sonho de criança, pois uma noite sonhei com um

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veículo que andava em trilhos suspensos exatamente como esse que
me leva agora.

Vibramos e nos atrapalhamos de tanto entusiasmo pelas coisas. Os


cavalos me impressionam pelo tamanho. Os funcionários
uniformizados de Disney são cordialíssimos. Um motorista de “carro
antigo” cede seu lugar ao volante pra eu fotografar Tânia.
Adoramos o cachorro quente, o SPRITE, um refrigerante delicioso
que lembra uma soda limonada. Queremos comprar tudo o que
vemos. 15 horas.

Hora da parada diária. Este é o grande momento da Disneylândia. O


público se acotovela para assistir ao mais importante desfile deste
mundo mágico. Tânia vibra com vovó Donalda dançando. A música é
sobre os 50 anos do Pato Donald. Mickey e Minnie dançando são
lindos. O olhar dos adultos é mais bonito e enternecedor que o das
crianças. Me comovo.
Pensa na Cunca vendo toda essa fantasia linda. Vou dar essa
felicidade à minha filha, se Deus quiser. Inebriado com toda essa
beleza, esqueço da vida, das recomendações do motorista e
continuei zanzando pelo reino mágico.

De repente olho o relógio e me assusto. São 19,15, o sol brilha


ainda, temos só quinze minutos pra sair e chegar até o ônibus.
Corremos para a estação de embarque do monorail.
Senti um gelo percorrendo a espinha: a estação era uma multidão
só. Penso em ir a pé. Impossível. Comecei a sentir no estômago o
desconforto de perder o ônibus que nos levaria ao hotel em Orlando,
distante quase 40 quilômetros ou mais.

Enquanto me entregava a pensamentos desesperadores percebi que


a fila gigantesca se movimentava rápido.A organização é perfeita.
Ninguém fura fila, ninguém tumultua. Fiquei pasmado: em cinco
minutos estávamos no estacionamento do nosso ônibus.

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Vamos agora para o hotel em Orlando, como parte do pacote de 140
dólares que valem: hospedagem, traslado e permanência em Disney,
World of Disney, e Epcot Center por três dias.
Acho barato. Nosso motelzinho fica na beira da estrada. São 20,30 e
o sol continua alto, bem; não tão alto: pousando no horizonte. O fato
é que às 21 horas o céu estava claro. Pude travar amizade com o
motorista que se mostrou uma pessoa afável, educada.

Nossa amizade começou porque eu pedi a ele paciência com os


latinos do grupo, porque eles estavam completamente alheios a tudo
por não saberem absolutamente nada de inglês. Tentei inclusive
ajudá-los traduzindo para o motorista Hamilton suas dúvidas e
traduzindo de volta as explicações. Nem assim adiantava. O
problema deles não era a barreira do idioma, mas a barreira do
cérebro. Aí pude entender o cansaço do Hamilton.

O DAYS INN está abarrotado de turistas. Um grupo de negros


escolares inferniza a vida de quem quer dormir. Eles correm, gritam,
ligam alto o som da tv e de seus rádios portáteis enormes que
trazem debaixo dos braços.

ORLANDO – PRIMEIRO DE JUNHO

Estamos com nossas bandejas fascInados com o Breakfast à nossa


frente. Pegamos um pouco de cada coisa. Tânia toma chocolate
gelado e adora. Fazemos algumas compras na pequena loja anexa
ao restaurante do DAYS INN. A vendedora é uma pessoa agradável
que não esconde sua simpatia por nós, principalmente por Tânia.

Embarcamos para WORLD OF CIRCUS. Nunca senti tanta vergonha.


Ficar sentado naquele mini-estádio vendo um bando de idiotas dando
tiros de revólver, caindo no chão como nos filmes de bang bang me
irritou profundamente. WORLD OF CIRCUS é uma bobagem, um

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blefe. Só valeu pelas baleias. Me emocionei muito vendo os monstros
perfeitamente integrados ao ambiente humano desempenhando suas
funções com perfeição para ganhar ao final de cada exibição um
punhado de sardinhas. O carinho com que os tratadores
demonstraram pelas baleias e golfinhos me fez chorar. Gostaria
muito de poder cumprimentá-los.

Enquanto esperávamos nosso ônibus, agora sem Hamilton,


discutíamos eu e Paulo com um motorista de táxi, o preço de uma
corrida até a uma grande loja nas redondezas para comprar bolsas
grandes com rodinhas para acomodar nossas compras, problema que
nos aflige bastante.
O preço cobrado não nos entusiasmou.

O Ônibus chegou finalmente, agora dirigido por um porto-riquenho


de pouco mais de um metro e cinqüenta de altura com os dedos
cheios de anéis de ouro, pulseira de ouro, bigode ralo grisalho,
piteira dourada e bundinha arrebitada.
O velho baixinho era mal humorado e grosseirão.

ORLANDO - 02 DE JUNHO

EPCOT CENTER é um mundo futurista que não provocou, pelo


menos em mim, a menor emoção. O cinema em terceira dimensão
foi interessante.
Tínhamos a impressão de que podíamos tocar as coisas com as
mãos.
Foi lindo. É, no mundo de Disney, o lugar mais freqüentado por
crianças e adultos.

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Embarcamos de volta à Miami. Chegamos à meia noite. Gastamos
boa parte da madrugada tentando racionalizar nossas bagagens para
embarcarmos em direção à Nova York.
Foi horrível passar quase cinco horas naquele aeroporto gelado
esperando a hora do embarque.

AEROPORTO DE MIAMI/ NOVA YORK - 03 DE JUNHO

No ar, à bordo de um DC-10 de AEROLÍNEAS ARGENTINAS também


lotado até o teto. Café horroroso. Detestável. Cinco horas de vôo
depois chegamos a N.Y.
Embarcamos no táxi de um polonês chamado MISHA de 57 anos,
gordo, cara bonachona, fala mole de sotaque forte, pálpebras
enormes cobrindo metade do globo ocular, pai de dois filhos; um
divorciado, o outro se divorciando. Rio muito quando ele me
pergunta se no Brasil as coisas são assim também.
Gosto dele.

Vê com paciência minha admiração pelo lixo nas ruas à medida em


que avançamos para o centro, para a Broadway, onde vamos nos
hospedar.
Cidade imunda. Os prédios são sujos. Nossa decepção é tremenda.
Paulo e Lia vibram, acham tudo lindo, os prédios altos fazem o delírio
do casal. Paulo quer por todos os meios me fotografar em frente do
prédio da revista TIME. Consigo evitar a foto para a posteridade. Eles
olham em êxtase para os prédios. E esta é a terceira vez que eles
vêm a N.Y.
Imagine se fosse a primeira.

Nos instalamos no REMINGTON HOTEL na rua 46 entre Broadway e


sexta avenida.. O quarto é modesto. Cruzo com alguns hóspedes de

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cara esquisita. Alguns são punk, outros homossexuais. Na portaria do
hotel, como urubus à espera de carniça, alguns brasileiros nos
oferecem táxi por preços invariavelmente mais caros que os YELLOW
CABS novaiorquinos.
Tentam parecer amigáveis e íntimos oferecendo dicas que eu
dispenso sem abrir a cara.
Faço pior; chega um casal de brasileiros da Europa para se hospedar.
A mulher conversa animada com Tânia e eu com o marido dela. Faço
um alerta; cuidado! Cuidado com esses marginais brasileiros que
ficam à espreita de conterrâneos que aceitam suas sugestões. São
verdadeiros bandidos.

Um outro marginal, este porto-riquenho, sei lá, me oferece mulher


ao pé do ouvido. Olho pra ele com cara de nojo e aponto pra Tânia.
Ele sai do hall do hotel feito cachorro que não encontra comida na
lata de lixo. Estou odiando N.Y.

NOVA YORK 04 DE JUNHO

Nosso primeiro café desde o dia 29. Café brasileiro, forte, cheiroso,
gostoso. Vamos pra rua, às compras, e adquirir o bilhete aéreo para
Paris. Na saída da agência de viagens, paramos numa farmácia para
compras. Quando eu passava pela porta, indo embora, o alarme
contra roubo soou forte, insistente.
Desastrado, estabanado que sou, fiz o sistema de alarme disparar
por acidente, pensei comigo. Mas para minha surpresa, o guarda da
farmácia avançou para uma senhora com ar distante que saía junto
comigo e tirou das mãos dela sua sacola de compras. Estava lá o
produto do roubo.

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Tânia, Paulo e Lia se divertiram muito com o incidente. Eu dei asas
às divagações. Na cabeça daquela senhora americana, alta, branca,
olhos azuis, cabelos grisalhos, muito bem vestida, passou-se a
seguinte hipótese. Com aquele ar nobre, bastava esperar alguém de
aparência humilde, ou estranha, ou latina sair para ela sair junto. O
alarme fatalmente soaria e a segurança, por falsa indução prenderia
essa pessoa humilde, mal vestida ou estranha, ou latina, dando a ela
tempo de fugir.
Esta filha da puta me achou o modelo ideal. Olhos vermelhos de
sono e cansaço, barrigudo, camiseta de português do cáis do porto,
tênis sujo, cabelo atrapalhado.
“Só pode ser brasileiro”, deve ter concluído.
Mas a vaca quebrou a cara. Dela não me lembro quase nada, a não
ser um risinho muito amarelo quando o guarda tomou a bolsa da
mão dela.
Não estou detestando Nova Iorque à toa.

À tarde passamos numa sapataria pra comprar um lindo par de tênis.


O vendedor era africano. Uma simpatia, féz o encanto de Tânia e
vice versa.
Pai de cinco filhos. Declinou todos os nomes. Só consigo me lembrar
de um: NYANO.

À noite fomos ao teatro assistir A GAIOLA DAS LOUCAS agora


transformado em musical. Tremendo sucesso de público e crítica e
premiadíssimo. Guarda roupa, música, o cenário nos impressionou
por suas múltiplas transformações, os atores maravilhosos.
A propósito, hoje pela manhã quando eu estava na fila esperando o
guichê abrir, um maluco fez a nossa diversão; estava ali para
comprar mais ingressos. Já havia visto a peça 25 vezes, viu CHORUS
LINE 100 vezes. Era uma figura engraçadíssima, muito branco,
óculos de armação grossa preta, tinha um defeito na articulação que
colocava sua língua à mostra quando falava, usava um chapéu preto
com as abas amassadas que puxava para baixo, capa preta abotoada

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até o pescoço. Ele falava, dirigia gracejos a cada pessoa que chegava
na fila.
Todos sem exceção riam dele.

NOVA YORK – 05 DE JUNHO

Levantamos tarde, tomamos café num barzinho apertado cuja


garçonete, cara fechada, mas friamente gentil, nos serviu. Tânia quis
um “sonho” de aspecto cremoso muito gostoso. Apontei pro sonho
na vitrine, e perguntei o nome. Alguém do meu lado disse “curd”.
Uma moça gordinha que estava sentada ao meu lado me disse o
nome da garçonete, percebendo que ela não atendia aos meus
chamados.
Caroline! – disse eu com falsa familiaridade.
Ato contínuo ela me atendeu com uma expressão meio marota no
olhar que provocou comentários irônicos da Tânia.
Voamos de helicóptero por metade de Nova York.
Que sensação horrorosa. Nunca mais!
Me senti dentro de uma gaiola oscilante, pendurada poucos metros
acima daquele paliteiro de prédios. E como tem prédios pontiagudos
nesta cidade!
Tânia tava adorando o passeio.

Mais compras, desta vez na Bloomingsdale’s. No stand da REVLON,


uma vendedora de seus 75 anos atendia Tânia se desmanchando em
gentilezas.
Quando cheguei perto, Tânia estava tão entusiasmada com a velha
que passei a traduzir a conversa das duas.
Num determinado momento, quando Tânia disse que queria pagar os
produtos escolhidos, mandou essa frase pra vendedora; “ gente
como você a gente só vê nos filmes do cinema!”

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Quando acabei de traduzir essa frase pra vendedora, sua emoção foi
uma das coisas mais bonitas que já senti na vida, tal era a ternura
com que ela olhava com os olhos cheios de lágrimas pra Tânia.

À noite embarcamos pra Paris, à bordo do D.C.10 da PAKISTAN


AIRLINES.
Comida cheirosa pelas especiarias indianas, delicia!
Paulo, Lia e Tânia detestaram.
Quando achei que íamos decolar, o comandante avisou que a
aeronave apresentava um defeito técnico. Enquanto esperávamos
sanar o problema, uma equipe de segurança do aeroporto vasculhou
o avião com aparelhos que indicavam ser detectores de explosivos.
A equipe parou atrás da nossa fileira de cadeiras, desalojou os
passageiro, uma família de indianos e apontou o aparelho pra o
assoalho. Em silêncio como chegaram, saíram, e pudemos levantar
vôo em seguida. Uma das aeromoças tinha um rubi cravado na aba
do nariz. Era um inferno de bonita!

PARIS - 06 JUNHO

Pousamos em Orly. Tânia tem fome, muita fome. Vou ao bar e peço
um sanduíche. Por sorte sou atendido por um jovem português. Ele
me serve sanduíches, croissants, cerveja e coca cola.
Tânia come os croissants em contrição dizendo que nunca havia
provado nada mais gostoso.
No serviço de atendimento ao turista, depois de alguma demora,
deixamos um sinal da reserva do hotel , embarcamos num táxi
dirigido por uma senhora muito simpática de nome IRENA.
Ela me corrige quando a chamo pela pronúncia a que estamos
acostumados no Brasil. Ela exige IRENÁ com acentuação forte no
“A”.
O percurso até o hotel foi uma farra. Ela se divertiu muito conosco.

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Chegamos ao hotel MONT BLANC na RUE DE LA HUCHETE na PLACE
SAINT MICHEL.
O hotelzinho é simples, aconchegante.
Tânia está radiante, feliz da vida. Nossa excitação é exagerada.
A recepcionista é simpática, a camareira também.
Tudo é charme em Paris.
As pessoas carregando bisnagas na mão, sem papel para proteger o
pão causam espanto e nos divertem.
Os bares e cafés com mesas e cadeiras na calçada são um
encantamento. As vitrines nos atraem feito imã.
Tânia vibra com os sanduíches expostos nas vitrines das confeitarias.
À noite fomos ao show do LIDO.
Pensei que fosse mais empolgante. Não é nem de longe parecido
com o show desse mesmo LIDO que vi no Líbano em 1.966, há 20
anos portanto.
A parte que mais gostamos foi o coroa com sua cadela JENNY. Ri
tanto que tive dor de cabeça.

PARIS - 07 DE JUNHO.

Chove bastante em Paris. Vamos à torre Eiffel. Adoramos aquilo tudo


apesar do tremendo mal estar provocado pelo elevador transparente
que nos leva diretamente para o céu. A sensação é essa.
Num shoppinzinho charmoso, pequeno, nos Champs Eliséés, Nicole,
uma senhora dos seus 50 anos é um capítulo à parte. Nos ajudou a
telefonar pro Brasil, tirou das minhas mãos as moedas
correspondentes às despesas, discou pra Tânia o número do código,
etc,etc.

Nicole foi um barato. Eu tive vontade de ir ao banheiro e perguntei a


ela onde ficavam os toiletes. Ela mostrou, não sem antes me fazer
entender que eu teria que pagar pra usar o banheiro.. De novo abri a

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mão, pois não conheço ainda o valor das moedas. Ela tirou algumas
e me empurrou levemente em direção ao banheiro.
Quando eu me deliciava esvaziando a bexiga ao lado de vários
outros homens, eis que adentra o recinto ninguém mais, ninguém
menos que NICOLE que falava enérgica a um rapaz que
imperturbável, usou a outra mão pra tirar do bolso as moedas que
ele esqueceu de dar quando entrou.
Terminei o xixi.
Nicole estava na entrada do banheiro como porteira administradora
do feminino e masculino.
Olhou pra mim com a melhor cara do mundo. Criatura encantadora,
simples, pequena, forte, determinada.

Num bazar perto do hotel, Tânia comprou um colar ou gargantilha,


sei lá, feito de um material esquisito, mas muito bonito.
A proprietária do bazar foi outra surpresa agradável, e sua filha
também.
Me comuniquei com ela num francês capenga que elas entenderam e
recebi delas palavras de incentivo pra continuar aprendendo já que
eu tinha “pronúncia muito boa.”
Tânia pagou 58 dólares pela gargantilha. À noite estávamos na
estação ferroviária GARE DU NORD para embarcar em direção à
Londres.

Tivemos uma péssima impressão ao entrar o trem.


Tinha aspecto sujo, a maioria das pessoas se esparramava de
qualquer maneira pelas poltronas deixando pernas e pés pelo
caminho atrapalhando a circulação dentro dos vagões.

Tânia ficou muito deprimida, eu também. Por incrível que possa


parecer fizemos uma ótima viagem, melhor do que as feitas nos
fabulosos jumbos que tem nos transportado. Chegamos ao porto de
Dunquerne depois de quase 5 horas de viagem.
Esperamos uma eternidade até embarcarmos no navio que nos
levará a Londres pelo canal da Mancha.

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Vamos até DOVER na Inglaterra num percurso de aproximadamente
3 horas meia, onde embarcaremos num novo trem, desta vez em
direção à Londres.

DUNQUERNE/ CANAL DA MANCHA/ DOVER - 08 DE JUNHO

Dentro do trem, agora numa viagem mais curta até Londres. Nos
instalamos bem à brasileira numa cabine de primeira classe sem ter
direito a isso. Agimos como brasileiros, de posse do eurailpass que
neste trecho não dava direito à primeira classe. Mas como somos
espertos, somos brasileiros, nos instalamos na primeira classe, na
certeza de que enganaríamos o fiscal da composição.
Quando o trem iniciou sua marcha, veio o fiscal com voz de taquara
rachada, pedindo desculpas por nos avisar que teríamos que pagar a
diferença da segunda para a primeira classe. Foram 22 dólares para
nós quatro. O fiscal sorria constrangido o tempo todo repetindo que
lamentava muito ter que nos cobrar a diferença. Acabei morto de
vergonha pela falta de educação que estávamos cometendo. Hão
havia dúvida; eu estava nos domínios da Inglaterra dos lordes.

A paisagem que passava por nós era deslumbrante. Muito verde,


casas de campo, fazendas, sítios, tudo limpo, bem traçado, bem
cuidado, gado forte e gordo de cor marron e branca, pastando feno
ao longo da cerca das propriedades.

VICTORIA STATION – LONDRES – 08 DE JUNHO

Chegamos à VICTÓRIA STATION. Um cenário só visto nos filmes.


Carros, ônibus vermelhos de dois andares, arquitetura clássica. A
garota do serviço de turismo que nos arranjou hotel falava o inglês
que eu temia, todo empolado.

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No London Brothers Hotel fui atendido pela recepcionista, olhos
escuros vivos, cabelos grisalhos, porte ereto, inflexões de teatro
inglês. Quando comecei a conversar com a mulher, em poucos
minutos se revelou um verdadeiro homem; soava agressiva a
qualquer dúvida que demonstrássemos, até que eu, cansado e
decepcionado respondi com grosseria e impaciência que estava
cansado, morto de cansado, para ficar uma hora inteira arrumarem
os quartos.
Ela não deu a menor importância à aspereza da minha reclamação.
Animal!

E realmente estávamos mortos de cansaço. Deitamo-nos por volta do


meio dia e acordamos às 18,15.
Tomamos banho, um lanche rápido no MacDonalds, depois, Palácio
de Buckingham, etc.
Tânia esqueceu o dinheiro no hotel., coisa rara na vida dela durante
essa viagem, pois ela anda e dorme com uma bolsa de pano presa
por um elástico dentro da calça. Voltamos voando ao hotel e lá
estava intacto, o vil mental americano.
Agora calmos tentávamos pegar o ônibus para ir à cidade. Perguntei
a várias pessoas qual ônibus nos levaria ao centro.
Uma moça nos indicou o 253- CAMDEN TOWN. Embarcamos neste
veículo lindo, vermelho, de dois andares em direção ao centro. Três
quadras depois, a cobradora que anda com uma maquininha
registradora pendurada no pescoço bateu no meu ombro que
havíamos passado do ponto de descer: CAMDEN TOWN. Isto é; não
chegamos a sair de lá. Descemos rindo muito nos sentindo ridículos.
Um táxi resolveu nossa burrice.

Descemos em PICADILLY CIRCUS. Delírio. São 22,30. As ruas


estreitas estão fervilhando de pessoas de todos os tipos. Temos
fome de novo. Entramos numa STEAK HOUESE e comemos um
suculento bife com legumes. 15 dólares para cada um. Faz frio em
Londres. Voltamos ao hotel.

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A cama é de mola, mói nosso corpo. Decidimos dormir em cima dos
cobertores estendidos no chão. De manhã acordamos ótimos.

09 DE JUNHO

Levantamos às 7 horas despertados pela campainha indecente do


telefone e com a voz enjoada daquela sargento que me lembra a
assassina de filme de mistério. No refeitório às 07,30 para o delicioso
breakfast, a única coisa que vale a pena nesse hotel; bacon frito em
fatias grandes, feijão branco com molho de tomate delicioso, ovo
frito, salsicha, leite com flocos de milho, geléias, manteiga, mel, um
barato!

Vou à recepção pagar a conta e devolver a chave à Maguila com


gestos arrogantes, deixo claro que detestei nosso contato.
Ela percebeu. Não trocamos uma única palavra, nem mesmo
obrigado. Já não agüentava mais ficar ali. Levamos nossa bagagem
para o guarda volumes na VICTÓRIA STATION.
Dali seguimos direto para o desfile de Buckingham.
Chegamos às 11,15 como desfile previsto para 12,15. Arranjamos
um lugarzinho em frente à praça da cerimônia real.
Exatamente às 12,15 começou o desfile. Que fardas lindas. Que
ordem unida perfeita.!
Não vimos o príncipe nem a rainha.
Tânia implicou com o cocô dos cavalos. Um casal de brasileiros
estava do nosso lado. Eu não ouvi, mas Tânia disse que a mulher
perguntou se aquele enorme gorro preto na cabeça do guarda era
cabelo dele.
Quando acabou o desfile caminhávamos em direção à TRAFALGAR
SQUARE e PICADILLY CIRCUS quando de longe vi um grupo de
Punks sentados em linha no chão, impedindo o tráfego de carros.
Era mais um dos protestos do dia pela instalação dos mísseis
PERSHING-UM e CRUISE na Europa.

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Corri para fotografar mas um guarda mais alto do que eu deteve
nossa caminhada obrigando-nos a abandonar a alameda.
Vi os punks sendo retirados delicadamente da rua para a calçada. Os
protestos prosseguiram durante o dia todo nas imediações do
palácio.
Na Trafalgar Square um grupo dizendo frases e termos ritmados
chamou minha atenção.
Fui lá pro meio dos punks para fotografá-los quando de repente senti
um empurrão forte nas costas.
Voltei à cabeça pra saber de onde vinha a agressão e vi um homem
de aproximadamente 30 anos, gordo, baixo, boné na cabeça ao lado
de uma mulher gorda, mais alta que ele, ambos de cara feia pra
mim, dizendo coisas que eu não conseguia entender. Mas um grupo
de Punks apareceu ao meu lado e começou a discutir com o casal.
Dentre a saraivada de impropérios consegui traduzir uma frase mais
irritada de um dos punks ao gordinho: “você também é vitima,
idiota!”
É a glória, meu Deus, punks em minha defesa em plena Trafalgar
Square!

Parada para almoço. Compras na TOTHEHAM COUCH ROAD E


PICADILLY CIRCUS, uma circulada no ônibus azul de dois andares só
para turistas. Vimos a casa onde morava LORD MOUNTBATEN,
primeiro governador da Índia, amigo pessoal de Ghandi e parente da
rainha Elizabeth.
Vimos também o quartel general onde DWIGHT ENSENHOWER
montou com Winston Churchill as operações de desembarque na
Normandia, a igreja onde Diana se casou, uma porrada de casarões
velhos onde moravam uma porrada de parentes da Rainha Elizabeth
e do Príncipe Philip.

À noite na VICTORIA STATION embarcamos para DOVER onde já


nos esperava o navio que nos levaria até Dunquerne, onde estou
agora no momento em que escrevo. Não consegui dormir nem um

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pouco porque havia uma festa à bordo do navio com o som
estourando nossos tímpanos. Tânia dormiu o tempo todo. Chegamos
a Dunquerne com as pessoas se atropelando pra conseguir um bom
lugar no trem até Paris numa travessia de 4 horas e meia. Também
estou ansioso pois vou passar o dia de hoje dentro de um trem com
destino à Amsterdã na Holanda e quero ir instalado
confortavelmente.
Consigo uma cabine inteira. A acomodação é ótima. Aqui nos
separamos do casal Lia e Paulo para alívio geral dos quatro. Nossa
convivência se tornou impossível devido ao comportamento infantil,
grosseiro e desrespeitoso da Lia com o grupo. A situação se tornou
insustentável porque passei a me opor sistemáticamente às atitudes
intempestivas da Lia. Felizmente para todos, nos separamos em
Paris, voltamos a nos encontrar casualmente em Munich onde o
contato foi melhor. Lia estava afável, mais civilizada, parecia
constrangida pelo péssimo comportamento. Fomos de Munique até
Salzburgo juntos. Continuava a mesma coisa, a mesma pessoa
egoísta, invasora, inconveniente. No tour da NOVIÇA REBELDE, eu já
não agüentava mais sua presença, a voz dela, etc.
Felizmente, Paulo percebeu que àquela altura, faltando 20 dias mais
ou menos pra acabar a viagem, forçar nossa convivência seria um
erro, pois a tensão era uma constante no nosso relacionamento.
Tânia conseguiu o prodígio de ignorar Lia completamente, o que não
aconteceu comigo, menos ainda com o Paulo que sofria horrores os
constrangimentos causados pela mulher. Num final de tarde em
Salzburgo eles saíram na frente em direção à Viena. Lá, Paulo se
desentendeu com o funcionário do serviço de informação ao turista.
Quando chegamos à Viena ele estava possesso na estação
ferroviária, dizendo que “não ficaria nesta cidade de filhos da puta.”
Eu disse que tentaria ficar. Fui até o guichê, fui muito bem atendido,
pondo um ponto final num relacionamento que estava prestes a
explodir.

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Enquanto Paulo falava comigo, eu vi Lia sentada num banco distante
de nós a uns 60 metros, expressão carregada, o olhar fixo na nossa
direção.
Aí percebi o quanto estava cansado dela; não conseguia nem forçar
um gesto de adeuzinho ou forçar um sorriso de despedida.
Afinal esse seria nosso último contato.
Tânia fez as honras da família indo até lá tentando ser gentil. Nos
separamos, eles seguiram não sei pra onde e nós fomos embora,
aliviados para o hotel.
Eu levantava todos os dias com dor de cabeça. Eu não precisava me
encher de Fiorinal para me curar, era só me separar da casal. Espero
nunca mais vê-los. O que é uma pena, porque o Paulo é uma pessoa
formidável.

Voltando à descrição do trem que está nos levando para Dunquerne;


os bancos se transformam em camas. Adoramos a descoberta. Há
medo no rosto das pessoas. Ninguém conversa com estranhos. Tânia
também tem medo. O trem sai. Estamos felicíssimos. No auge do
nosso entusiasmo, Tânia estava deitada em cima de mim, fazendo
algazarra, quando as portas da cabine se abriram bruscamente
mostrando os rostos de dois fiscais pedindo identificação e bagagem.
Morro de sede. Não temos água potável. Fico sabendo disso pelo
segundo fiscal que me dá a noticia através de mímica, já que não
consigo perguntar se tem água em francês. Já estamos dentro do
trem que desliza há duas horas. Tânia dorme profundamente.

SABADO 10 DE JUNHO.

O trem roda suave e rápido. Acho uma delicia esse desfile de


pequenas cidades pelo caminho. Tento gravar os nomes das cidades
na memória.
Não conheço a grande maioria nem mesmo de ouvir falar.
O cansaço vai me vencendo. Dormimos em confortáveis camas que
antes eram nossas poltronas de veludo na cor vinho.

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Tânia acorda às 3 e meia da madrugada durante uma parada do
trem e me pergunta se já chegamos. Respondo que nem saímos. Ela
nem ouviu a resposta pois perguntou dormindo e assim continuou.
Apagamos e acordamos às 07,30 felizes por termos dormido tão
bem.
Estamos pagando uma média de 35 dólares por dia pra dormir mal.
No trem dormimos melhor.
8 horas da manhã na estação ferroviária de Paris. Tomamos café
com deliciosos croissants. Embarcamos para Amsterdã. A cabine do
trem é grande, confortável e toda nossa. Ninguém entra na nossa
cabine. Não há muitos passageiros na primeira classe.
Reorganizamos toda nossa bagagem e eu ainda trago na cabeça a
forte impressão causada pelo horário rígido da saída do trem.
Ele partiu exatamente às 10,30 como estava marcado no quadro de
horários da gare.
Vou almoçar, trago pra Tânia na cabine um melão esquisito com um
presunto delicioso. Comi um bife estupendo com fritas e vagem
cozida. Nosso trem pára numa cidadezinha francesa e nos mudamos
para outro trem que está à frente do nosso.
O funcionário da estação mostra impaciência comigo demonstrando
que estou atrasando a saída da composição.

Me irrito com ele. Afinal, sou brasileiro e desorganizado, não deu pra
incorporar o espírito europeu.
Desço com duas grandes bolsas com rodinhas e alças se embolando
nas minhas pernas, com Tânia suplicante atrás de mim apanhando
da bolsa dela.
A visão é patética; Tânia e a bolsa tem a mesma estatura.
Outro funcionário, esse da estação, me avisa que o trem para
AMSTEDÃ vai sair às 13,29 e já são 13,26.
Brinco com Tânia mostrando o relógio que marca 13,29 e digo: “o
trem vai sair agora, quer ver?”
Acabei de falar, o trem saiu voando sobre trilhos. Tânia colou o rosto
na vidraça da janela admirando as cidadezinhas do interior da

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Holanda. Num dado momento, ela fala que já viu algumas vezes um
out-door com a frase em português: BATIDA DE CÔCO.
Concordo com ela. Coitada, deve ser o cansaço da viagem.
O folheto que encontramos na cabine com o roteiro do trem, as
paradas, partidas, conexões indica que chegaremos à Amsterdã às
16,23.
Será?

Não, não chegamos, não sei porque. O trem se atrasou.. O governo


holandês tem um serviço de utilidade pública que é maravilhoso: à
bordo do trem um especialista em câmbio faz a troca do dinheiro
para os passageiros. Desembarcamos na estação deserta, quase sem
passageiros.
Caminhando em direção à saída, um som delicioso, harmonioso
acaricia meus ouvidos.. Um negro de bigodão toca uma guitarra.
Acompanhado por rum homem tocando violão com o instrumento
deitado nos joelhos. Não percebi de imediato o porque daquela
insólita posição de tocar o instrumento.
Nos arredores da estação entrei no CENTRO DE INFORMAÇÕES AO
TURISTA para conseguir um hotel, mas antes de entrar no prédio,
uma mulher dos seus 60 anos mais ou menos me interpelou
oferecendo sua casa com 3 quartos, banheiro fora dos quartos, por
25 dólares a diária sendo que eu teria que pagar 2 dias segundo ela
porque nenhum hotel em Amsterdã aceita hóspede de um dia.
Tânia não gostou da mulher, achando-a com cara de cafetina safada.
A mulher era agressiva no seu propósito, chegou quase a me deixar
constrangido por eu recusar a oferta. Consegui me desvencilhar dela.

Nos hospedamos no VICTÓRIA HOTEL que nos impressionou pelo


requinte, bom gosto na decoração, apartamento espaçoso.
Tomamos banho e fomos pra rua. Nosso intuito era um só: as sexi-
shops com suas mulheres na vitrine.
Estava tudo perto do hotel pois o centro de Amsterdã é pequeno e o
mundo todo converge para ali..

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Tânia teve medo. A coisa toda é muito grotesca. Nossa decepção é
enorme. A cidade fervilha de gente, o cheiro da maconha é comum
em toda parte, sendo insuportável nos lugares fechados.
O aspecto das pessoas, a maioria de fora, é sujo, suas roupas são
quase um uniforme. Hoje de manhã quando eu ouvia aquele som na
praça, fiquei observando detidamente aquele individuo tirando um
som maravilhoso, sem as duas mãos. Aliás o que ele tinha na
extremidade do braço um grande dedo, grosso.
Ele interpretava com sua voz rouca à maneira dos negro spirituals,
uma atuação digna de um grande espetáculo.
Sua voz áspera fazia aquele lamento soar mais angustiado ainda.
Ele acabou de cantar e ninguém jogou moeda alguma, ninguém se
mexeu, nem mesmo olhou pra o estojo do instrumento no chão.
São 22,30 e ainda há luz do sol. Na Europa os dias são muito longos
e as noites muito curtas.

DOMINGO – 11 DE JUNHO

Acordamos às 9 horas, cheios de disposição. Aliás, acordamos não,


eu acordei Tânia à s 9 horas. Foi difícil acordá-la. Depois do banho
delicioso descemos ao refeitório para um café também delicioso. Pedi
informações em inglês a uma senhora que me respondeu em
português. Era uma mineira de Belo Horizonte.

Saímos para a rua, embarcamos num FERRY BOAT pelos inúmeros


canais de Amsterdã.Como tem rios essa cidade. Paramos para
almoçar às 13 horas. Menu: sopa de galinha como entrada, bife de
carne de porco ao molho de vinho com salada e batatas
fritas.Sorvete com creme de chantily como sobremesa.
Tomei uma caneca de cerveja HEINEKEN deliciosamente gelada.
Voltamos pra rua que está fervilhando de gente das mais diferentes
nacionalidades. Parece uma feira.

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A cada formação de grupos de pessoas interessadas olhando alguma
coisa no centro da aglomeração, nós também paramos pra ver o que
é.
Um negro toca violão com um amplificador. Seus dedos correm ágeis
pelas cordas. Comento; “ele tem intimidade com o violão”.
A música é linda; ROMANCE DE AMOR.
Continuamos nossa caminhada. Poucos passos adiante, paro noutro
agrupamento onde um maluco cospe línguas de fogo. Outra
aglomeração nos atrái; um punk toca flauta, outros dois cantam e
dançam o break. Foi a apresentação que mais curiosos atraiu por
causa da criatividade e do inusitado de suas figuras. Os três eram
absolutamente iguais. Param de tocar e dançar abandonando o local.
Os três andam feito bicha com a multidão atrás deles. Parece que
todos estão desvairados. Na praça cheia de gente, Tânia se encanta
com dois indianos sikhs. Ela quer ser fotografada ao lado deles mas
fica envergonhada.

Me aproximo em tom amistoso e peço a um deles que me fotografe


com Tânia. Eles riem divertidos e o mais alto faz foto. Depois sugiro
fotografar os dois com a máquina deles. Concordam. Me aproveito
disso e ponho Tânia no meio deles. Faço fotos com minha Pentax e a
deles. Tento agradar dizendo que “minha mulher ama seu povo!”
O mais baixo me olha sério. Pareceu comover-se ou emputecer-se.

Continuamos nossa caminhada fascinados. Passamos de novo diante


do negro com viola que ainda toca Romance de Amor. Pensei;
“crioulo esperto, só sabe essa música, não merece o dólar que eu
pus com todo respeito e admiração na caixa do instrumento.”

Já são quase 16 horas. Até agora devem ter me oferecido maconha


umas 10 vezes. Isso é comum aqui. Amsterdã é o paraíso dos
desocupados, drogados, punks, homossexuais, prostitutas. Há um
clima de irresponsabilidade no ar que é fantástico. As pessoas não

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conseguem nos meter medo. Eu diria até que há euforia no ar.
Ninguém se incomoda com ninguém. Cada um vive como quer.

Entramos numa rua estreita de comércio intenso. Uma placa com os


dizeres DIAMONDS OF AMSTERDÃ nos atrai.
Somos atendidos por uma mulher linda e gentil, cúmplice do marido.
Compro dois diamantes pra Cunca e Tânia compra dois diamantes de
zircônia, uma imitação perfeita.

Perambulamos mais um pouco, voltamos à praça e cá estamos nós


diante do negro de violão que continua a tocar Romance de Amor.
Enganador! E eu que elogiei ele. “!Dedos hábeis”, pois sim!
18,30 na praça da estação. O negro bigodudo que encontramos na
nossa chegada, agora está sem o seu parceiro sem mãos. Ele canta
bonito, suave, de uma maneira melancólica. Um outro negro no
saxofone nos impressiona. Dei um dólar a ele também.

Às 19,21 o trem sai de Amsterdã, exatamente na hora prevista. Já


estou me acostumando à essa pontualidade que para eles é normal,
pra nós é excitante, invejável. Arrumamos nossa bagagem dentro da
cabine, pensando naquele delicioso jantar dentro de minutos.

Às 22,15 resolvo procurar o carro refeitório, quase enlouqueço; não


há vagão restaurante.
Ninguém nessa composição fala inglês. No primeiro carro o
funcionário me entende e informa que na cidade de KREFELD, o
trem vai parar por 35 minutos.
Na parada desço feito louco, procurando um restaurante. O máximo
que encontro é um bar muito merda com três mulheres que acham
graça na afobação que falo com elas e não demonstram o menor
interesse na nota de 20 dólares que agito na mão direita, enquanto
faço gestos com a mão esquerda esfregando o estômago.
Tento também despertá-las com uma nota de 10 GILDARES. Tento
falar inglês, misturado com espanhol, italiano, francês. Elas me

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olham com cara de deboche e desinteresse. Não entendem nada que
falo. Claro que entendem, filhas da puta, elas sabem pelo gestual e
minha cara angustiada que estou querendo comida.
Elas cacarejam em holandês rindo muito, trazem 4 sanduiches secos,
ordinários, parecendo sanduíches de pão que o diabo amassou, um
copo de coca cola quente e um pacotinho de biscoito.
Saio disparado pela estação em direção ao meu vagão. Quando
estou quase embarcando, um holandês que eu já havia visto no
trem, dá um berro indicando que eu estava entrando no trem errado.
Não faltava mais nada! Estou puto! Tânia calma. Comemos os
sanduíches e é só o que teremos no estômago até amanhã, às 07,22
quando chegaremos a MUNICH.

MUNICH – 12 DE JUNHO

A gare é movimentadíssima. As guloseimas e sanduíches expostos


nas vitrines das lanchonetes têm aparência lindíssima e apetitosa.
Os “salsichons” cheiram bem quando jogados nas chapas quentes.
As caneconas de vidro com capacidade para um litro de chope me
fascinam.
Estamos na fila do serviço de informação ao turista, que ainda está
pequena.
Afinal, são oito horas e o serviço só vai começar às 10;
Temos fome, dólar, e nenhuma possibilidade de comprar um lanche
porque o alemão caga e anda pra dólar.
Um funcionário de lanchonete me informa que o serviço de câmbio já
está aberto. Quase morro de tanta felicidade. Meu estômago se
assanha todo.
Troco 30 dólares e volto pra fila levando um sanduíche pra Tânia que
chegou a fechar os olhos de vertigem não acreditando no que eu
trazia pra ela.

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Debelada a fome, continuo impávido colosso em pé na fila. Tânia
vagueia pela estação olhando tudo.
Nos hospedamos no HOTEL SCHWEITZ na GOETHSTRASSE n.29.
Entreguei o voucher a uma alemã enorme, 26 anos presumíveis,
elétrica, simpática, que fala com os hóspedes que circulam pelo hall.
Seu nome é HILDE.
Responde com um “yesssss!” engraçado cada vez que a
cumprimento “HEIL HILDE” assumindo impostação de comando
nazista.
Estamos nos divertindo com a brincadeira, eu e ela, mas não
agüentei a curiosidade e comentei com ela sobre sua simpatia, sua
alegria, coisa rara de ver nos nossos contatos na Europa.
Ela explicou que os hóspedes e os homens são muito formais só se
dirigindo a ela chamando-a de FRAU e não brincam nunca.
Do hall do hotel Tânia localiza e fala com sua prima Silvia que vem
ao nosso encontro em menos de vinte minutos.
As duas conversam e riem animadamente. Faço fotos. Silvia é nossa
cicerone. Nos leva a uma lavanderia automática.
Andamos muito de metrô e a pé. A operação lava-roupa é muito
complicada. Silvia faz tudo. O convívio é agradável. Almoçamos antes
da lavanderia, tomando aquela canecona de chope.
Comida razoável. Como tudo. Tânia deixa restos no prato.

A tarde passa rápido, não compramos nada, aliás; minto, eu compro


mais um canivete suíço e um excelente cortador de unha.
Continuamos a perambular pela cidade e pra variar acabamos num
supermercado. As compras da Tânia são um prodígio; 3 sabonetes
Camay, 2 escovas de dente, um esmalte, um baton, várias lixas de
unha, pinça, e um xampu, total: 20 dólares.
São 20 horas, o sol está alto, céu muito azul, morremos de sono e
cansaço.
Hotel, banho, e apagamos.

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MUNICH – 13 DE JUNHO

Acordamos às 8 horas. Banho, café. Beijamos Silvia que foi se


despedir da gente na estação e embarcamos às 11,30 para
SALZBURGO.
Tomara que lá seja melhor. Às 11,30 em ponto, o trem parou na
estação de Salzburgo, onde o clima e as pessoas nos conquistam
imediatamente. Almoçamos no restaurante da estação ferroviária,
um GULASH. Delicia!
A cerveja é melhor ainda.

Tomamos um táxi em direção ao hotel, um casarão gigantesco, típico


das construções bávaras, com ares de taberna, lindo, digno de um
cartão postal. Passando pela porta de entrada, nos dirigimos à
recepção. Estava vazia porque a família que dirige a linda pousada,
estava visivelmente bêbada ocupando com amigos igualmente
bêbados uma mesa longa, enorme, de madeira grossa rústica na
maior alegria.
Jogavam baralho.
Estamos apaixonados pelo lugar e pela estalagem. Colocamos a
bagagem no quarto, tomamos um banho e voltamos para a rua.

Vamos à casa onde nasceu e viveu parte de sua infância,


WOLFGANG AMADEUS MOZART.
Não há muito o que dizer, só o que sentir e se emocionar; o
primeiro piano, objetos pessoais, o banquinho onde ele se sentava
pra estudar e compor suas obras primas.
Somos abordados por uma austríaca gorda, olhos muito azuis, cara
vermelha, redonda.
Fala português fluentemente em razão de ter trabalhado como
secretária alguns anos em São Bernardo do Campo.

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Ela saiu de São Paulo pra voltar a viver em Salzburgo, agora como
guia e recepcionista na casa de Mozart.
Revela seu desagrado pela opção que fez.
Seu tom de voz é baixo, sonoridade agradável, passando a
impressão de estar constrangida pelo forte cheiro de álcool que
exala.
Saímos da casa satisfeitos com o encontro. As ruazinhas estreitas de
Salzburgo são lindas. Comércio caríssimo. Claro, na cidade onde
Herbert Von Karajan rege a sinfônica de Viena todos os anos no
festival Mozart, as coisas não podem ser baratas.
Amanhã nosso nível cultural cai bastante, benzadeus, porque vamos
fazer o THE SOUND OF MUSIC-TOUR, as locações onde ROBERT
WISE filmou A NOVIÇA REBELDE.

Voltamos à estalagem para dormir. A visão da cama depois de


andarmos o dia inteiro parecia miragem. Me deito, espreguiçando,
estalando todos os ossos do corpo.
Tânia vibra com a cama. Nosso quarto é lindo, pena ficarmos tão
pouco.
Hoje pela manhã, ao acordarmos, nos invadiu uma sensação
insuportável de plenitude e felicidade.
Foi com esse espírito que fomos à rua o dia inteiro hoje. Nem
olhamos pra nossa bagagem que ficou no canto onde a colocamos
na noite de ontem.

Qualquer pessoa normal arruma bagagem. Nós não. Nós lutamos


contra nossa bagagem. É uma mistura de luta livre, com sumô,
caratê, jiu-jitsu.
É um corpo-a-corpo feroz. Rolamos literalmente no chão, até
fecharmos o zipper. É um espanto essas grandes bolsas não
explodirem.

Tomamos café e vamos pro local indicado no ingresso pra fazer o


tour pelas lindas colinas da cidade.

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Adoro o filme. Estou louco pra ver as locações. Antes de sairmos,
descubro que deixei o equipamento fotográfico dentro da mochila no
guarda volumes da estação.

O ônibus sai, a guia Patrícia, uma quarentona muito feia me


pergunta se falo inglês, digo que sei mais ou menos. Ela diz que vai
falar devagar, e dispara sua matraca. Perco quase tudo o que ela
fala, porque além do forte sotaque, seu inglês é britânico. A boca
colada no microfone dificulta ainda mais a compreensão das
palavras.

A paisagem das montanhas e florestas é muito mais bonita que no


filme. Quando Patrícia faz uma pausa na sua verborragia, o motorista
do ônibus roda a fita com a trilha sonora do filme. É emocionante.
Passamos pela casa do Nikki Lauda. Vimos lagos lindíssimos. Três
horas depois acaba o nosso tour. Almoçamos e estamos novamente
nas ruazinhas charmosas da cidade.
Tânia comprou um tênis branco muito bonito. Por 25 dólares.
Comprei uma bolsa cinza de viagem por 12 dólares.
Pagamos a estalagem e fomos para a estação ferroviária, agora indo
para Viena.

VIENA – 14 DE JUNHO.

Embarcamos às 16,40. É uma droga a barreira da língua. Eu não


sabia exatamente a hora da chegada a Viena. A cada parada do trem
eu tentava ler o nome da cidade na estação e não conseguia.
Rodamos rápida e suavemente até Viena. Tudo cheira a
modernidade aqui. O táxi nos leva ao hotel. O motorista, um iraniano
de cabeça raspada cheia de cicatrizes tenta me roubar, cobrando
oitenta e cinco shillings enquanto o taxímetro marcava 58.Eu olhava
fixamente o marcador que acusava 58. Ele fez gestos nervosos com
as mãos dizendo que tem pressa.

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Tiro o dinheiro da bolsa e e mando Tânia anotar o número da placa.
Ele entendeu ou advinhou minha intenção.
Subitamente ficou gentil, até abriu um sorriso cretino. Meu olhar pra
ele é hostil e volto a perguntar o valor da corrida. Responde “85”
mas desenha com os dedos no ar o 58.Eu concordo e verbalizo 58
com muita ironia na voz e no olhar. Ele então fez uma cara de anjo
cínico mencionando que por ser árabe , vive fazendo confusão por
escrever da direita pra esquerda. Babaca! Até agora foi único a
tentar me roubar em toda a viagem.

No hotel somos explendidamente atendidos pelo recepcionista, um


velho chamado Francisco, 75 anos aproximadamente, alto, forte, voz
mansa muito agradável, austríaco. Ele morou 18 anos na Colômbia.
Quando eu lhe disse que ficaria apenas 3 dias em Viena, lamentou
muito. Queria que ficássemos mais.

VIENA – 16 DE JUNHO

Levantamos às 07,30 para apanhar o ônibus do Vienatour. Chegou


atrasado, coisa rara em compromissos na Europa. Primeira parada:
Palácio de SCHOENBRÜN, onde viveu o imperador Francisco José.
Tudo muito bonito, folheado a ouro, o madeirame do palácio em sua
maioria, de pau Brasil, cobrindo ou forrando 1.600 metros de área
construída.
Depois do roteiro turístico, perambulamos pelas ruas centrais de
Viena. Comércio ativo, artigos de couro lindíssimos e caríssimos, os
travesseiros de pena me enlouquecendo. Foi uma tarde bastante
agradável, apesar do cansaço e do peso da bolsa cinza.
Às 19 horas chegamos à estação para embarcarmos para Suíça, às
21 horas.

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Ao me dirigir ao setor de informações ao turista, uma surpresa
bastante agradável: um jovem austríaco de nome FRANZ me
atendeu falando português fluentemente quase sem sotaque.
Viveu em várias cidades do Brasil.
No Rio de Janeiro morou no Rio Comprido. Tânia conseguiu ligar pra
mãe depois de várias tentativas. Às 21 horas em ponto o trem saiu
em direção à ZURICH numa jornada de 10 horas.

ZURICH – 16 DE JUNHO

São 08,35, estamos naquele dorme-acorda desde 04,30.


A paisagem suíça é um sonho. Os picos dos Alpes estão cobertos de
neblina.
Estamos sem água desde ontem. Água potável e fresca, problema
crucial na Europa.
Na estação compro um ticket para conhecer a cidade num tour..
Em poucos minutos descobrimos que Zurich é uma bobagem
sofisticada.
A guia simplesmente não tem o que falar porque simplesmente não
há o que se ver.
Junto dela está a filha de 10 anos. Deve ser pra ajudar a passar o
tempo mais depressa.
O ônibus percorre a cidade devagar e ela calada.
Subimos num bondinho pra ver Zurich de 800 metros de altura.
Antes do bondinho o ônibus parou no zoológico por 20 minutos para
que pudéssemos ver os carneiros de chifres longos. Nossa, que
emoção ver os silenciosos e pachorrentos carneiros!
O zôo é de uma pobreza franciscana, mas localizado numa floresta
belíssima e bem cuidada.
De repente, tiros, mais tiros. Não víamos ninguém a não ser a
fumaça que subia do interior da mata repleta de árvores altas.
Fiquei pasmado com a explicação da guia; ali, no meio da floresta
havia um stand de tiro aonde as pessoas vem habitualmente praticar
tiro ao alvo. Queremos ir embora. Não restamos gostando daqui. Às

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13,05 embarcamos com destino à Milão. Chegamos às 17,38.
Descemos do trem para embarcar para Veneza, cidade milenar,
onde o gondoleiro em noite de luar, leva enamorados em sua
gôndola cantando “Ó SÓLE MIO!”
Deus,tomara que seja verdade!...

Ainda queremos água, a sede não passa, apesar da quantidade de


refrigerantes que tomamos.
Da janela do trem nos preparando para descer, Tânia vê um carrinho
com garrafas d água mineral e biscoitos. Ela fica histérica.
Peço algumas garrafas para o vendedor que faz uma cara horrível ao
ver os francos suíços nas minhas mãos.
Era o que eu tinha, ou dólar.
Tânia arranca os francos da minha mão e vai trocar numa casa de
câmbio.
15 minutos depois volta puta da vida por causa das grosserias que
fizeram com ela durante a troca das moedas.
Pagamos e bebemos ali mesmo. O liquido chegava a escorrer pelos
cantos da boca.
Esvaziei as garrafas e tornei a encher numa fonte que havia na
estação.
Às 18,30 embarcamos para Veneza.
Pela primeira vez em toda nossa viagem de trem pela Europa,
chegamos adiantados 10 minutos. Vimos uma extensão muito
grande de água. Por ter me acostumado à incrível pontualidade dos
trens, não quis de imediato acreditar que já estávamos em VENEZA.
As placas da estação passando devagarinho dissiparam minhas
dúvidas.
Fomos ao serviço de informação ao turista inútilmente pois estava
fechado.
No caixa da casa de câmbio, a moça me explicava a diferença do
preço da lira que flutuava em função da quantidade de dólares que
se quisesse trocar. Não entendi de imediato, pois ela falava italiano,
e eu só queria a confirmação do que ela havia me dito.

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Ela parou de contar o pacote de dinheiro que trazia nas mãos, olhou
pro teto revirando os olhos, deu uma bufada tão grande que
esvaziou os dois pulmões, me fitou com profundo desânimo e falou
tudo de novo...mais rápido ainda.

Desisti de entender. O cansaço era enorme, e a vontade de tomar


um banho demorado maior ainda.
Na saída da estação, uma enorme escadaria, cheia de pessoas, a
maioria jovens, deitados ou encostados em suas mochilas.
À nossa frente, um dos inúmeros canais de Veneza era riscado em
todas as direções por barcos grandes, pequenos, gôndolas.
Começamos a andar meio extasiados pela ruazinha estreita à
margem do canal em direção ao hotel que visualizamos logo à
frente.
À medida que avançávamos, nosso entusiasmo crescia por causa do
grande vai-e-vem de pessoas e do intenso comércio àquela hora da
noite.

Tânia empaca de repente, em delírio com as máscaras venezianas de


carnaval expostas do lado de fora das lojas.
São obras de arte.
Caríssimas. De 40 a mais de 100 dólares cada uma. Queremos
comprar tudo o que vemos.

Na recepção do hotel um homem de 50 anos mais ou menos nos


atende. Peço um quarto com banho privativo e café da manhã.
Ele me apresenta dois preços; 45 e 51 dólares. Tânia pergunta o por
que da diferença dos preços.
Ele começa a explicar e perde a paciência. Meu estômago dá voltas
de ódio.
Mas o cansaço é maior.
Pego a chave e um velhinho de 70 anos mais ou menos se aproxima
para pegar nossa bagagem para levar ao quarto.
Ele abre a porta e Tânia vai direto ao banheiro.

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Ela ri de satisfação ao se deparar com uma banheira enorme. Temos
muita fome e ânsia de participar daquele burburinho de pessoas às
10 da noite de sábado.
Mas estou com aquele cavalo de terno atravessado na minha
garganta.
Deixamos a bagagem no quarto e voltamos ao corredor.
O elevador sobe e desce algumas vezes sem parar para nós.
Estou porejando adrenalina. E o elevador continua a subir e a descer
sem parar para nós.
Finalmente ele pára, e vou ao quadrúpede pedir os passaportes que
haviam ficado com ele.
Responde grosseiramente que o registro de hóspedes demora e não
pode devolver ainda.

Perco a paciência e começo a vociferar com o filho da puta.


Ele se irrita ainda mais e pede calma. Estamos aos berros um com o
outro.
Mas ganho a discussão no berro. Literalmente. Tânia tem o rosto cor
de cera. Eu e o cavalo estamos a um milímetro da porrada. Mudo de
idéia, volto ao quarto pego a bagagem, exijo os passaportes e entro
em outro hotel logo depois. Somos atendidos agora por um senhor
amabilíssimo com um sorriso bondoso no rosto. E a noite acaba em
paz, principalmente depois de um delicioso spaggetti à bolonheza
que comemos numa cantina perto do hotel.

VENEZA – DOMIGO – 17 DE JUNHO.

Adorei o café da manhã. Tânia detestou. Chata!


Estamos loucos para bater perna. Deus do céu, que confusão
maravilhosa! Os venezianos gritam. Oferecem barcos para passeio,
oferecem mercadorias que as pessoas compram. O ambiente é de
excitação.
Tentamos convencer o gondoleiro a reduzir o preço de 50 para 40
mil liras. Ele reclama, parece querer engrossar, mas concorda em

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baixar para 45 mil liras. Aceito logo, porque estamos loucos para
andar de gôndola.
No meio daqueles “puta cocô boiando” segundo Silvia, a simpática e
agradável prima da Tânia.
Entramos na mais antiga gôndola de Veneza; 36 anos.
A embarcação é longa e leve. Balança demais. Os movimentos do
jovem gondoleiro me impressionam. Com um único remo, longo, do
lado direito da canoa ele nos leva pelo canal, repleto de lanchas
velozes. Tânia acha que tantos barcos modernos e barulhentos
quebram a fantasia de quem só imagina Veneza com gôndolas nos
canais.

O jovem que nos leva, ao invés de cantar “ó sole mio” dá um banho


de cultura sobre a história de Veneza.
Estamos encantados com ele, que narra todo o trajeto num italiano
claro e bem articulado, pausado, permitindo a compreensão de tudo
que ele fala.

40 minutos depois voltamos ao ponto de partida. Vamos agora à


igreja de São Marcos. Andamos muito. Os diversos restaurantes que
encontramos pelo caminho são uma tentação.
As estreitas vielas de Veneza não devem ter mais do que 1 metro e
meio de largura. Pelo caminho as vitrines infernizam nossa vida; é
tudo lindo!

Chegamos à igreja de São Marcos. Êxtase. A praça fervilha de gente.


Depois de fotos mil, resolvemos voltar ao ponto de partida e é claro
que nos ,perdemos.

Isso aqui é um labirinto. Se teseu fosse solto aqui com o Minotauro e


cada um partisse em busca do outro, jamais se encontrariam.
Um lojista deve ser agora a décima pessoa a nos indicar o caminho
de volta. Nos ensina que devemos seguir as lajotas retangulares do
piso e que não sejam assimétricas. Adoro a indicação e passo a
segui-las. Percebo minutos depois que estou voltando ao mesmo

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lugar. Meu Deus, parece tão simples seguir esta indicação já que o
piso é todo coberto por lajotas quadradas e retangulares, no entanto
não conseguimos fazer o caminho de volta. Estamos putos, com os
nervos à flor da pele. Se alguma vez voltarmos aqui, trarei 10 quilos
de jujubas vermelhas pra marcar o caminho com elas.

No meio dessa situação desagradável, um momento curioso e


divertido; um garotinho de 12 anos mais ou menos puxando um
cãozinho pela corda, abre sua fabulosa garganta num furioso agudo
trêmolo a intervalos regulares.
Resolvemos tentar agora vielas que margeiam o canal.
Numa das românticas pontes, Tânia cai de joelhos diante de uma
bolsa à porta de um artesanato, que ela jura custar muito caro no
Brasil.

O vendedor, óculos de fundo de garrafa, sorriso melado, mascando


chicletes, timbre de voz desagradável, conquista Tânia
imediatamente. Ainda mais depois que ele diz que adora as mulatas,
vai ao Brasil ano que vem, vai ao Maracanã ver futebol, mostra-se
profundamente infeliz por não poder ir no carnaval, já que tem que
trabalhar dobrado durante o carnaval de Veneza.
Pronto, era o que faltava: Tânia está irremediavelmente subjugada
aos seus pés. Ele vende a bolsa para ela, reduzindo seu preço de 26
para 22 mil liras. Ele masca o chicletes com um olhar indecente,
sorriso pegajoso, lábios molhados.

Quando faço uma pergunta, ele fica sério de repente, pára de


mascar, responde sem interesse e volta a sorrir melado pra vitima da
vez das espertezas e da lábia dele.
Tânia já não quer só a bolsa, quer mais coisas, e Deus sabe o que
mais ela quer com esse ser nojento que deve feder por falta de
banho!
Voltamos ao hotel, pegamos nossas coisas e embarcamos no trem
em direção à ROMA às 16,25.

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O trem atrasa, e sái às 16,27. O calor é sufocante. Entramos na
cabine de 6 lugares, confortável, só pra nós dois. Ligamos o ar
condicionado numa temperatura bastante agradável.

ROMA – SEGUNDA FEIRA - 18 DE JUNHO.

Meia noite e 4 minutos. Após 8 horas de viagem, estamos diante de


um cenário de horror! Um antro de bandidos mal encarados. Fiquei
assustadíssimo ao descer do trem.
Fomos cercados por uma matilha que oferecia seus carros
particulares e outras coisas que preferi não entender. Suas
expressões e modos eram medonhos e falavam ao mesmo tempo,
algumas vezes me tocando o braço. Ninguém na fila cedeu às
investidas, todos se encaminharam em fila indiana em direção aos
táxis profissionais.

Parecia consenso; ninguém dava a mínima atenção aos bandidos.


Procurei dissimular o pavor que estava sentindo pra não assustar
Tânia. Me pareceu que se algum de nós, os passageiros fizesse um
movimento brusco de impaciência ou repulsa, aquela horda cairia em
cima de nós feito urubu em carniça.

Tânia muito amedrontada com a situação e já nervosa por causa de


uma briga de um casal que saiu se estapeando na descida do trem,
me induzia a conversar com o rapaz atrás de mim.
Eu queria que ele indicasse um hotel pra nós.
Naturalmente ele não entendeu o que eu falava.
Tânia por sua vez tentava arduamente se comunicar com a mulher
loura de meia idade que estava na frente dela. Era francesa.

Meu nervosismo crescia à medida que a fila diminuía. Comecei a


imaginar que íamos pegar um táxi cujo motorista baixinho, cabelos

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brancos, óculos de grau, 50 anos, vozeirão grave, percebendo nosso
nervosismo em não conseguir explicar o que queríamos, se
aproveitaria da situação. Ao contrário, adquiriu uma postura
relaxada, falou lentamente, aí sim, foi fácil o entendimento.
Na primeira parada que ele fez diante de um hotel pra saber se havia
vaga pra gente, a resposta foi desanimadora. Não havia vaga. Pelo
rádio do carro pediu orientação à central enquanto rodávamos.
Eu ia calado, aterrorizado com a idéia de ficar rodando a noite toda
procurando hotel e não achar.
Numa esquina mal iluminada, uma figura chamou a atenção da Tânia
que alheia a tudo o que se passava observou entre divertida e
excitada: “um travesti!”
O motorista se divertiu com a reação dela e arrematou: - “ela
percebeu rápido, êh!”

Em menos de 20 minutos estávamos defronte ao SPRING HOUSE


HOTEL, onde um italiano muito educado e de voz baixa nos atendeu,
nos acomodando num ótimo quarto por 35 dólares.
O motorista cobrou 50 por cento a mais sobre o valor do taxímetro
por “serviço noturno”. Estávamos tão felizes e aliviados que nem
discuti, paguei e ainda dei mais uma gorgeta pra ele.
Tomamos um banho relaxante e apagamos.

Às 9 estávamos de pé para o DESAJUNO no “PIANO” número 6. O


café foi bastante simples. Tomamos rápido e ganhamos a rua em
direção à cidade do Vaticano. Que zorra é aquilo! Que algazarra! Que
exploração, que comércio desvairado! Numa das alas da Capela
Sistina, andávamos maravilhados olhando as telas de Da Vinci,
quando percebi dois guardas de segurança lançarem olhares e
expressões inconvenientes pra baixinha. Ao cruzarmos com eles, um
mais ousado disse com expressão cômica meio musicada: -
“Gabriela, Cravo e Canela!”
Caímos na risada. Todos. Mas nem sempre a coisa nos diverte.
Ainda ontem em Veneza, alguém nos chamava com insistência.

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Quando olhamos, um homem abriu a bocarra, e deu uma piscada
erótica pra Tânia.

A Capela Sistina me deu um pouco no saco. O que queríamos


mesmo era a Basílica de São Pedro, e foi o que fizemos.
De uma daquelas janelas, o papa abençoa e fala aos fiéis. O interior
é estupendo, inimaginável. Nunca pensei que ela fosse tão
descomunal. Percorremos todas as dependências da Basílica.

Tânia me chamou a atenção por eu ser a única pessoa “pelada”


dentro da basílica. Por causa de uma camiseta sem manga que eu
usava.
Nos lembramos da cúpula externa com aquele monte de cabecinhas
observando Roma de lá do alto. Voamos para a fila do elevador. Ele
só vai a um determinado estágio, a pior parte é feita a pé, por uma
escada em espiral que não acaba nunca mais.
No meio do caminho paramos para respirar. Tânia blasfema na casa
do Senhor, provocando meu horror.

As poucas pessoas que se aventuraram a ir até o topo, passam


ofegantes por nós, vagarosamente, afogueadas, boca aberta,
expressão de sofrimento no rosto. Reiniciamos a subida, com o corpo
curvado para o lado por causa da curvatura da abóbada.
Por fim o martírio termina e estamos no topo.
Roma aos nossos pés! Tânia gotejava de suor, o humor péssimo.
Fotos, fotos, fotos.

Vi no meio daquele tráfego louco uma linda carruagem puxada por


cavalos. Descemos com a intenção de irmos ao Coliseu de
carruagem.
A distância é um pouco longa, mas íamos tentar. Nos aproximamos
do carruajódromo.

Os animais são magníficos, enormes, bem tratados. Faço contato


com o que pareceu o carruajeiro mais simpático.

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Ele me ofereceu a carruagem e paradas em pontos turísticos pelo
caminho a 68 mil liras, ou 38 dólares. Fiz cara de desânimo e pedi
pra baixar. A partir daí foi impossível negociar, porque ele era
engraçadíssimo nos fazendo rir muito. Cada vez que eu tentava
baixar dos 38 dólares, ele desenhava no ar, uma escadinha com a
mão indicando a quantidade de filhos pra alimentar, depois, com
cara de sofrimento apontava para o gigantesco cavalo que “mangia
molto” e me implorou “capice?”

Que sujeito impagável! Eu ria de chorar, e Tânia também, não sei se


de mim ou dele. Afinal riamos os três. Ele, claro, ganhou a parada.
Safado! No meio do caminho conseguiu me convencer a pagar 50
dólares para esticar até a FONTANA DI TREVI.
Corrado, a pedido da Tânia parou sua carruagem em frente a uma
casa de câmbio para trocar dólares.

Enquanto esperávamos, ficamos trocando figurinhas sobre coisas do


Brasil e Itália. De vez em quanto, no meio da conversa, ele emitia
sons estranhos da garganta, ao que o belo animal reagia, se
balançando todo, elevando a cabeça. Fiquei fascinado por esse
momento porque vi nos olhos do Corrado muito carinho pelo animal
que sustentava a ele e a família. Foi lindo...
Tânia voltou do banco e fomos direto à FONTA DI TREVI.

Fizemos algumas fotos e subimos de novo na carruagem. Corrado


assumia uma postura orgulhosa quando cruzava com outro
charreteiro. Mais à frente deu um grito pra um colega que vinha em
sentido contrário e com sua voz rouca esganiçada perguntou aonde
ele ia com “questo cadáver” apontando para o cavalo do amigo.
Tive outra crise de riso.

Nessa viagem até agora não encontrei ninguém mais divertido. Ele
nos deixou no Coliseu e voltou ao seu posto de trabalho no Vaticano,
e nós nos metemos pelas ruínas do Coliseu para mais um êxtase.
O dia terminou ótimo com um passeio pela VIA ÁPPIA.

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O ônibus nos deixou numa espécie de Ipanema romana, pela
quantidade de carros e motos possantes e coloridos estacionados de
qualquer maneira. Fizemos pequenas compras num supermercado,
como frios, e pães para comer no hotel em caso de fome, e assim
terminou agradavelmente um dia bastante agitado.

Não posso deixar de registrar a situação ridícula que vivi na


FONTANA DI TREVI; quando Tânia jogou moedas na fonte, veio
voltando ao lugar onde eu estava fazendo fotos. Como qualquer
turista sem compromisso, tinha aquele ar deslumbrado no rosto e
não percebeu que sua passagem tinha sido impedida por um jovem
pequenininho.
Me dirigi a ela pra avisar que o rapaz estava impedindo a passagem
dela à direita e à esquerda, à medida que ela distraída tentava se
desvencilhar.
Até que finalmente ela percebeu e continuou com aquele sorriso
enorme nos lábios para o rapaz que falava com ela e ela não
entendendo nada.
Cheguei por trás dele, bati nos seus ombros e perguntei o que
estava havendo.
Quando se virou, seu rosto ficou quase à altura do meu peito. Aí,
ficamos os dois naquela posição ridícula de filme de gordo e o
magro, eu olhando pra baixo, ele olhando pra cima.
Perguntei o que estava havendo, e ele agora, sem sacanagem na
expressão, me explicava que de acordo com a lenda, quem jogava
moedas na fonte, voltava a Roma. Eu acrescentei: “comigo!”

ROMA – 19 DE JUNHO

Acordamos bem humorados. Saímos para trocar dinheiro e pagar o


hotel. Depois fomos para o centro da cidade, andar à toa, conhecer
as ruas, as pessoas, as lojas, e antes de mais nada, ou antes de
tudo, fomos comer o famoso FETUCCINI ALFREDO.

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Mama mia, que a Bibi me perdoe, mas jamais comi macarrão como
aquele, e que molho, Deus do céu!
Comemos até transbordar de felicidade. O garçon que nos atendia
era um garoto de pouco mais de 17 anos e bastante agradável.
Tânia arriscou: “qual é o segredo do fetuccini Alfredo, é o queijo?”
O garoto, com expressão de quem tem experiência na comida
respondeu que eram vários os fatores: massa, queijo, e
principalmente a manteiga que é fabricada no próprio restaurante.
Nas paredes do Alfredo estão expostas fotografias de personalidades
mundiais à mesa olhando a excentricidade do Alfredo, bonachão,
bigodudo, boca aberta quase encostando num monte de macarrão
nas mãos, dando a impressão de que vai abocanhar aquela
quantidade. Perdemos um tempão observando as caras dos famosos.
Robert Wagner sorri sem jeito para o fetuccini e a bocarra do
Alfredo, que pela idade deve ser filho do Alfredão. Na mesma mesa,
de cabeça baixa, sério, KIRK DOUGLAS.
O pianista Arthur Rubinstein atrapalhou o exibicionismo do garçon
somente apertando a mão dele. EDWARD G. ROBINSON aparece
sozinho, charutasso na boca. Charlton Heston olha maravilhado para
a grande quantidade de macarrão a dois palmos do seu rosto.
ARISTÓTELES ONASSIS ria felicíssimo com a brincadeira. Noutra
foto, CRISTINA ONASSIS também parecia se divertir com Alfredão
com o bocão quase comendo o macarrão.
Numa foto tamanho 18 por 24, desfocada, mal iluminada, aparece
um grupo de diretores, atores, técnicos da tv.Globo, dentre eles,
PAULO GRACINDO, EMILIANO QUEIRÓS, LIMA DUARTE, IDA
GOMES.

Na galeria das personalidades políticas a coisa é diferente. Os reis,


governadores, príncipes, ministros, etc, não dão esse privilégio ao
Alfredo.
Aparecem nas fotos sem o garçon, sem o fetuccini, só com os
amigos ou familiares.

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Depois dessa maravilhosa degustação de massa italiana andamos per
tutta Roma para fazer digestão e compras. No finalzinho da tarde
voltamos ao hotel para pegar a bagagem com direção à Madrid.
Nosso trem saiu, ou melhor; deveria ter saído no horário, mas uma
agitação intensa de jovens que partiam para Gênova para
incorporação militar atrasou o trem. Foi interessante ver toda a
algazarra, a família emocionada beijando seus meninos, fazendo
recomendações a eles que partiam para o exército. Era muito canto,
alegria, choro, nomes gritados em ritmo de torcida organizada.
Quem estava do lado de fora batia tanto nos vagões que parecia
afundar a lataria do vagão. Às 23 horas o trem saiu. Quando fui
procurar o restaurante, descobri que não existia. Salvou-nos os
nossos presuntos de sabores variados na composição do indefectível,
generoso, e salutar sanduba.

MONTE CARLO – 20 DE JUNHO

Acordei Tânia imediatamente depois de ter despertado assustado.


Tomamos café na estação, guardamos nossa bagagem nos armários
automáticos e fomos conhecer MÔNACO do Príncipe RAINIER e de
GRACE KELLY. Depois de Amsterdã, foi a cidade que mais gostamos,
pela sua localização junto ao mar e por sua beleza natural.
O ar de MONACO é puríssimo, a cidade é bastante agradável,
ajardinada, as ruas estreitas. Nas imediações do castelo onde vive o
príncipe, as ruas são tão estreitas como em Veneza.
Comércio tímido. As pessoas agradáveis. Almoçamos por volta do
meio dia num restaurante pequeno, simpático tendo como
companhia de mesa, minutos depois de nos sentarmos de um casal
de franceses que se divertia com a infelicidade da minha cara com
determinadas comidas que vinham pra nós. Creme de mariscos, foi
a pior coisa que já comi, e olha que já comi um bocado de merda na
vida! A salada de frutas era mais azeda que o próprio limão, parecia
que a salada era só limão. Andando para fazer digestão entramos no

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museu de cera. Na entrada do museu, cartazes anunciavam que ali
dentro estava a história da familia GRIMALDI. Que saco! As imagens
que eram anunciadas como de cera, eram na verdade manequins
desses de gesso acetinado das vitrines, tudo com a cara e as roupas
do príncipe nas diversas atividades do monarca..
Que porre! Saímos dali e continuamos andando a pé. Monaco tem
uma piscina pública de alta qualidade. Tomei um belíssimo banho de
chuveiro nas instalações da piscina, Tânia também. De volta a
estação, esperando o trem para Barcelona que chegaria às 21,45.
Mais uma vez conseguimos uma cabine de primeira classe só pra
nós. O trem deu a partida e em poucos minutos estávamos
dormindo. Deitei-me pensando que o meu destino final seria às 6 da
manhã na cidade francesa de PORT BOU fazendo conexão com outro
trem às 7,10 chegando então à Barcelona às 09,40. Ledo engano.

MARSELHA – 21 DE JUNHO

01,05 fomos acordados pelo chefe inspetor pedindo que


descêssemos pra entrar em outra composição. Estávamos em
MARSELHA.
Que vergonha! Cansados como estávamos, dormimos feito pedra. A
certa altura do nosso sono, acordei com muitas pancadas na porta
que estava aberta. Bêbado de sono, levantei um pouco a cabeça e
fiquei alguns segundos tentando descobrir qual tinha sido o filho da
puta que deu as porradas na porta.
Achei estranha a ausência total de qualquer ruído, Tânia ressonava
alto, virei pro lado e dormi de novo. Pancadas de novo, mais fortes
ainda, só que desta vez na vidraça da nossa cabine.
Era o fiscal do lado de fora, na estação, fazendo sinais nervosos com
as mãos pra gente sair rápido pra entrar em outra composição que
estava parada na outra plataforma em frente à nossa.
Atordoado, chamei Tânia que levantou-se logo e ajudou a descer a
nossa traumática, volumosa, insuportável bagagem. Que angústia,
sair da cabine atabalhoados, vendo os corredores vazios, as

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poltronas, as cabines. Que horror, éramos os únicos passageiros
dentro do trem que só esperava a nossa saída pra se movimentar.
Em menos de dois minutos estávamos atravessando a plataforma
para embarcar na composição.
O fiscal que nos acordou,teve a gentileza de ver nossa atrapalhada
movimentação e ficou perto da composição nos indicando que
deveríamos entrar nela. Ainda faltava um bom tempo para chegar a
PORT BOU.
Afobados, sonolentos, envergonhados, constrangidos, mesmo assim,
procuramos e mais uma vez achamos uma cabine de primeira classe
só pra nós.
Apesar de toda essa agitação deitamos rápido e mais rápido ainda
voltamos a dormir. Às 06,25 acordo com “UUUUIIIIIIIIIII!!!!” longo e
agudo na voz de um fiscal, desta vez nos acordando em PORT BOU.
De novo havíamos ferrado no sono e não notamos o trem parando
para mais uma baldeação.
O fiscal andava pra lá e pra cá na plataforma falando muito
,gesticulando muito, eu não entendia porra nenhuma.

Mas de novo senti a angústia de sermos os únicos passageiros de um


trem vazio. Todos os passageiros já haviam entrado no outro trem.
Descemos desorientados de sono olhando à nossa volta; deserto
total. Meu Deus – pensei – foram todos embora em outro trem e nos
deixaram sozinho em cima do mundo!
Sonolentos, passamos pela alfândega, tomamos café com queijo de
uma espanhola que cobrou caro pelo café; 4 dólares.
Às 08,24 começamos a correr pelos trilhos em direção à Madrid. A
paisagem agora é diferente. Os campos não são tão verdes, o leito
da via férrea é irregular, mal nivelado, fazendo o vagão balançar
muito. Irrita. Buzina a todo instante. Irrita muito também. Não
existem cabines de primeira classe. São bancos relativamente
confortáveis em vagões curtos.

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Mas tem alguns detalhes que encantam; música à bordo, sinalzinho
eletrônico que precede as informações do sistema de alto falantes
em inglês, francês, italiano, espanhol e alemão. Tem mesinhas
adaptáveis aos bancos para as refeições sendo desnecessária a
penosa jornada oscilante até o vagão restaurante. Garçons vêm aos
vagões perguntar aos interessados os pratos de preferência depois
de terem distribuído os cardápios. Ótimo, e assim vamos enfrentar
quase 12 horas de viagem até MADRID, nosso destino final antes de
voltarmos ao Rio.

19,25. A estação ferroviária de Madrid nos impressionou pela


arquitetura, pelo modernismo. Tânia comentou que a estação mais
parecia um aeroporto. Foi bom poder ver coisas escritas num idioma
que me é familiar. Minha cabeça já está cansada de tanto falar
inglês. Agora vou poder falar normalmente em português, vão me
responder em castelhano e vai ser uma maravilha. Fui então para a
fila da reserva de hotéis. Enquanto aguardava minha vez, fiquei
pensando na paisagem que desfilou pelos nossos olhos nas últimas
24 horas. De Mônaco à Port Bou, fronteira da França com Espanha, a
paisagem foi de uma beleza verde que nos encantou por todo o
trajeto. Mas a partir da Espanha, a paisagem mudou bruscamente
para o agreste, árido, parecendo abandonado.
As casas e os edificios dos lugarejos onde parávamos – perdi a conta
da quantidade de lugares em que paramos – eram muito simples e
até sujos num contraste violento com o casario austríaco que era um
sonho de tão bonito.
Enfim, chegou a minha vez de ser atendido. Falei pra moça minhas
pretensões de um bom hotel com banho no quarto e café da manhã
e ela me respondeu quase 5 vezes, tentando me fazer entender que
faria o melhor pra conseguir alguma coisa aproximada ao que eu
pedia.
Meu Deus, como a moça falava enrolado!
De posse da reserva fomos para a fila do táxi. O motorista falava pior
ainda.

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Cada vez que ele falava alguma coisa, eu chegava bem perto do seu
rosto para tentar ler seus movimentos labiais, valendo-me da minha
profissão. Desisti. Eu também quando falava, provocava no rosto do
motorista a expressão viva da estranheza.
Como se tivéssemos feito um pacto, nos calamos, os três, eu, ele e
Tânia num silêncio sepulcral até a porta do hotel CAPITOL, situado
na GRAN VIA número 41. Tânia adorou a localização. As pessoas
pareciam estar em férias. E estão. De junho até setembro são férias
escolares na Europa. Eu soube disso hoje dentro da loja EL CORTE
INGLÉS.
Nos instalamos, tomamos nosso banho e saímos para jantar. Tânia
parece estar dormindo em pé de tanto cansaço.

MADRID – 22 DE JUNHO

Na recepção do hotel uma promoção nos entusiasma; uma semana


no Marrocos, passagem de avião ida e volta, estadia em hotel 3
estrêlas com café da manhã por apenas Us$ 185,00 dólares por
pessoa.
Faltando 4 dias para voltar ao Brasil, é impossível fazer mais essa
viagem. Andamos pelas ruas de Madrid o dia inteiro, conhecendo a
cidade, fazendo pequenas compras e depois descansamos no final da
tarde.
Agora vamos a um “tablao”, um espetáculo de dança flamenca com
“cena” (jantar) incluído.

Às 21 horas um ônibus luxuosíssimo nos apanha. Fomos direto ao


restaurante. Deus do céu! Que jantar! Se não houvesse show não
teria a menor importância porque pela primeira vez em 25 dias,
comemos e bebemos como convidados de reis e rainhas. Aquela
carne era de enlouquecer de tão saborosa.
Depois fomos para a taberna, ou “tablao” como dizem os espanhóis.
O espetáculo começou frio. Ao final, o show foi inesquecível,
protagonizado por um casal. Ele cantava com voz metálica,

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anasalada, forte, num profundo lamento. Suava, gotejando, em
bicas. A platéia, muda, não desgrudava os olhos dele.
Ela, bom, ela é indescritível. Tive vontade de chorar, tal era a
intensidade da emoção que ele mostrava. Que expressão mais linda.
Que paixão! Ora dançava com os olhos baixos, ora com os olhos
acima das cabeças dos espectadores, dando a impressão de fitar
alguma coisa muito longe.

Seu rosto brilhava de tanto suor. Eu estava realizando um sonho,


porque desejei muito ver este espetáculo de perto.

SABADO – 23 DE JUNHO

Acordamos para tomar café. Fomos a uma confeitaria perto do hotel


e pedimos croissants na manteira, ovos com bacon, torradas, leite,
café e chocolate quente.
Eu havia me esquecido que o espanhol não sabe o que é chocolate
quente.

Portanto, o que veio à nossa mesa era uma musse gelada,


impossível de ser consumida.
Chamei o garçon e pedi o que pensei ser “leite quente”- LECHE
CALDO.
Tenho certeza de que pedi assim. O garçon me trouxe um copo de
leite gelado. Aí meu humor foi pra casa do caralho! Visivelmente
irritado, falei bem devagar, pedindo leite quente, enquanto tentava
desenhar com os dedos acima da xícara a fumaça saindo. Ele não
gostou da representação, mas finalmente trouxe leite quente.
Jurei não pedir mais essa merda!

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A seguir saímos para conhecer mais o comércio e fazer algumas
comprinhas. Tentei comprar numa perfumaria um perfume que
conheci em VIENA e não vi em parte alguma da Europa: NITCHEVO.
Compramos um DIORÍSSIMO pra Lucia Mara. Paramos pra almoçar e
a tarde continuamos a ver vitrines. Por volta das 8 da noite mas com
sol ainda alto, cansados, fomos a um bar que descobrimos perto do
Corte Inglês, chamado o REI DO BACALAO. Eles fazem um bolinho
que é desesperante de gostoso, o bar vive apinhado de pessoas
elegantes, comendo os bolinhos e bebendo chopes em copos
menores que os de mocotó embasa.
Os garçons só atendem se eu pedir “!dá-me uma caña!”
Termina nossa noite, Tânia sóbria, eu bêbado, e feliz, feliz!

DOMINGO – 24 DE JUNHO

Tomamos café e fomos ao mercado das pulgas, nossa feira hippie


espanhola.
É impossível andar nessa feira pela quantidade de gente.
As coisas são caríssimas. Tânia comprou um bottom pra ela do
Picasso com a pomba da paz e outro do John Lennon pra Lucia. Eu
comprei um do snoopy pra cunca, um do Kiss pro Vitor, e outro do
THE POLICE pro Fred.
Compramos também 3 máscaras venezianas lindas e voltamos para o
hotel, ou melhor, para o REI DO BACALAO porque já estávamos
viciados.
Às 17 horas estávamos dentro do ônibus da TRAP SATUR que nos
levaria para um giro conosco antes de nos deixar na PLAZA DE
TOROS. Foi um passeio entediante, chato, arrastado, a guia dava a
impressão de estar ali contra a vontade, tinha a voz mal educada e
falava com a boca grudada no microfone o que dificultava muito
entendimento das palavras. Raramente temos visto algum guia que
saiba usar corretamente o microfone.

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Numa das paradas do ônibus, sugeri a ela que mantivesse um
palmo de distância do microfone, mas ela fez uma cara tão antipática
que preferi não insistir.
Chegamos a um estádio enfeitado com bandeirolas e procuramos um
lugar na arquibancada. Os clarins soaram para dar inicio à “corrida”
como eles chamam essa selvageria.
Seguiu-se um desfile de toureiros enfileirados em número de 12,
vestidos com suas indumentárias justinhas no corpo.
Um homem montava um cavalo enorme, envolto por uma grossa
manta cheia de furinhos, e atrás do cavalo um séqüito de orgulhosos
profissionais da barbárie.
Soltaram o primeiro touro, que atravessou a arena e investiu contra
as capas que apareceram pelo caminho, deu chifradas a torto e a
direito, até que percebi o porque daquela manta grossa envolvendo
o cavalo. O toureiro vem atraindo o animal até perto do seu cavalo.
O homem, chamado de “picador” que monta este cavalo, traz nas
mãos uma enorme lança que ele arremessa com força sobre o dorso
do touro. Ele faz isso repetidas vezes e logo o sangue jorra pelo
couro preto do touro.
Espumando de ódio e dor, o animal investe contra o cavalo que tem
os olhos coberto por venda para evitar que se assuste contra as
“marradas” que o touro dá de encontro a essa manta grossa. O
touro, talvez por instinto, procura chifrar o cavalo na barriga. Por
isso, a grossura exagerada da manta que o envolve.
Cada vez que o touro investe contra a barriga do cavalo, o picador
atinge o dorso do touro com a ponta aguda da lança, ferindo-o cada
vez mais profundamente.

Os clarins soam de novo. Os picadores, os auxiliares, se retiram da


arena.
O animal agora está esvaindo-se em sangue que continua
escorrendo abundantemente.
De sua boca aberta pelo sofrimento saem rosnados de agonia e
ameaça.

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Sua ferocidade é assustadora. Sinto-me mal. Tânia chora desejando
a morte do toureiro, ou dos auxiliares na arena.
A barbárie continua.

Os bandarilheiros vão espetando as bandarilhas no dorso já muito


ferido do touro. Espetam uma meia dúzia daqueles arpões no bicho.
O touro tenta se livrar das bandarilhas com movimentos desajeitados
da cabeça., mas elas estão bem enterradas em sua carne e resistem.
Ele esfrega as patas dianteiras no chão de saibro a intervalos.
Imagina-se que esse gesto seja uma preparação para uma investida,
mas na realidade ele tenta se livrar da areia misturada com saibro
que penetra na fenda dos cascos provocando dor e nervosismo.

O touro com metade de seu flanco banhado em sangue que brilha


sob o sol quente da tarde, espuma muito pela boca, tem a língua o
tempo todo pra fora, mas é raçudo, combativo. Aos poucos vai
perdendo o ímpeto de lutar. Agoniza em pé. Já não corre pela arena.
Fica parado olhando para o toureiro, mas sem forças pra investir.
O toureiro vem se aproximando devagar dos chifres provocando-o
com movimentos graciosos e tensos. Os acidentes fatais acontecem
justamente neste estágio, quando todos pensam que o animal não
tem arrancada pra chifrar.
Homem e touro estão a menos de um metro um do outro. O toureiro
ajoelha-se diante da cabeça baixa do touro. Os espanhóis gritam,
aplaudem, assoviam, jogam objetos. Num derradeiro ato de
exibicionismo e coragem, continua ajoelhado, mas...de costas para o
animal.
Soam os clarins e os tambores. O toureiro vai sacrificar sua vitima.
Um auxiliar lhe entrega uma espada fina e longa.
Ele leva o cabo da espada quase à altura dos olhos fazendo mira, faz
pontaria, projeta o corpo pra frente fazendo pêndulo e investe,
cravando a lâmina de 60 centimetros da espada no dorso do touro
que penetra até o cabo. O golpe é mortal pois atravessa o coração
do animal. A partir dessa execução segue-se uma dança macabra

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que dura mais ou menos 1 minuto com os toureiros fazendo o animal
dar voltas no mesmo lugar jorrando sangue pela boca. Finalmente
cái. O golpe de um pequeno punhal atrás dos chifres põe fim aos
movimentos descoordenados do touro. Está morto. Eu paguei pra ver
isso.

25 DE JUNHO – SEGUNDA FEIRA.

O relógio nos despertou às 7 horas. Estávamos mortos de sono mas


deixamos a cama direto pro banho, depois o café com leite já que o
espanhol não conhece chocolate quente, com saída para SEGÓVIA às
08,30.
Quando chegamos à agência de viagens, os ônibus já estacionados
na porta, a recepcionista nos avisou que o passeio à LA GRANJA
estava cancelado porque às segundas feiras o palácio real não abre
as portas à visitação. Ficamos contentes porque não agüentamos
mais ver palácios, ruínas, museus, igrejas,túmulos, jazigos, essas
velharias todas, que contém muita história, mas cacete, haja saco
pra ver tanta história, tanto mofo!
Voltamos pro hotel, dormimos mais um pouco e saímos para
compras. Daqui a dois dias voltaremos ao Brasil, que bom!

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SEGUNDA VIAGEM À EUROPA

03 DE JUNHO DE 1.986.

Voilá, Paris! Chegamos hoje às 19,25 ao aeroporto de Orly depois de


uma longa viagem.
Tânia nunca acha penoso ficar 10 horas dentro de um avião, porque
para ela tudo é festa, tudo é divino, tudo é maravilhoso, e quando se
cansa, mergulha em sono profundo.
Eu fico como um sonâmbulo, andando pelos corredores do avião,
esperando as horas passarem.

Todos dormiam de boca aberta, os braços pendendo das poltronas,


outros com as pernas jogadas no corredor atrapalhando a passagem
dos comissários.
Alguns estavam absolutamente quietos, pensativos.
Seria medo?
Eu andava, na verdade procurava um lugar no rabo do avião onde
não há transito de pessoas, o carpete que cobre o assoalho é novo.
Não consegui: grupos de pessoas já estavam lá conversando,
fumando etc.
O avião estava às escuras muito embora já fosse 09,30 da manhã.
Os black-outs das janelas estavam ainda baixados.
Por fim acordei Tânia e pedi pra ficar junto à janela. Tentei me
acomodar de todas as humanas maneiras possíveis.
Não consegui.
No aeroporto Tânia é só encantamento, só deslumbramento. Estou
tenso. Procuro esconder e acho que consigo.
Vou submeter à prova o francês que apreendi com Helena em tão
pouco tempo.

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Tânia me chama à atenção para a recepcionista que em junho de 84
quase provocou uma briga comigo e Paulo por causa do seu péssimo
atendimento. Meu Deus do céu!
Passam-se dois anos e cá estou na fila de atendimento ao turista e
quem vai nos atender é a própria? Está quase chegando minha vez.

Repasso todo um diálogo imaginário com perguntas e resposta


complicadas procurando criar dificuldades pra mim mesmo.
Não tiro os olhos da mulher que é muito gentil com os franceses.
Acho que eu e Tânia somos os únicos estrangeiros na fila.
A mulher trabalha rápido. Reconheço sua eficiência. Será que vai ter
paciência comigo?
Ta me dando uma vontade danada de sair da fila. Quando vou
chegando perto do balcão, outra funcionária faz sinal pra eu me
aproximar. Quase desmaiei de tanto alivio – maravilha! – ela entende
o meu francês.
E quando ela fala, entendo tudo!

Felicidade! Meu Senhor do Bonfim! Que bom! No taxi a caminho do


HOTEL ALTONA que fica na rua FAUBOURG POISSONIÉRE no bairro
de BARBÉS ROCHECHOUART.
Infelizmente não conseguimos vaga no HOTEL MONT BLANC que nos
hospedou na vez passada.
Quando o táxi entrou na rua do hotel ALTONA tivemos uma péssima
impressão do lugar.

Aliás; tudo o que não é QUARTIER LATIN, pra nós é péssimo!...


O recepcionista do hotel, um argelino, não podia ser mais simpático.
Fala fluentemente o espanhol.É divertido, inspira confiança.
Temos fome.
Tomamos um banho gostoso e saímos pra comer no Mac Donalds.
Quando eu me preparava pra sair depois de ter comido, enfiei a mão
num saco para tirar o lenço de papel e não percebi um negro
vociferando alto, puto da vida, protestando porque eu havia tirado

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guardanapos de dentro do saco das coisas que ele havia comprado e
estava esperando o troco.
Muito envergonhado, passei o braço em volta dos ombros dele e pedi
perdão.
Ele pareceu aceitar o pedido de desculpa mas não abriu a cara.
Tânia estava pálida de pavor. Perguntamos ao recepcionista o
inevitável; assaltos.
Ele explicou que assaltos à mão armada são muito raros,
acrescentando que não há violência nas ruas. Pode ser, mas o
aspecto dos drogados que encontramos a toda hora são de arrepiar.

PARIS – 04 DE JUNHO DE 86

Acordamos às 09,15, tomamos café e fomos de metrô pro QUARTIER


LATIN, tentar conseguir uma vaga no hotel Mont Blanc.
Dentro do metrô, o famoso, nauseante cheiro dos franceses quase
provoca nosso vômito.
Eu achava que isso era lenda. Agora a verdade me foi mostrada no
estômago e no nariz.
Tânia teve a idéia de mandar um cartão pra mãe dela dizendo
“PARIS É UM GRANDE SOVACO MAL LAVADO!”

Não havia vaga no MONT BLANC, aliás, todos os hotéis de primeira à


quinta categoria estão lotados em Paris. Está acontecendo o SALÃO
DE AERONÁUTICA E ESPAÇO em LE BOURGET, e também o
campeonato de tênis de Roland Garros.
As ruas estão apinhadas de gente. Os restaurantes superlotados.
Pegar táxi é uma dificuldade.

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PARIS – 05 DE JUNHO

Acordamos às 09,20. Quase perdemos o café que só funciona até


09,30.
Era preferível ter perdido, porque o café é de uma pobreza
franciscana.
Tânia adora. São baguetes aos pedaços, torradas, manteiga, geléia
de morango, chá, leite, e café.
Ela come de tudo com cara de tesão. Às 11 horas saímos para
conhecer o Palácio de Versailles.
Pegamos o metrô e 25 minutos depois estávamos dentro da maior
suntuosidade que a arrogância humana já concebeu; o PALÁCIO DE
VERSAILLES.
É uma obra de engenharia tão perfeita que chega a comover. Mas
Luiz XIV devia se achar um Deus por ter concebido uma obra
daquelas.
Fiquei fascinado pela ala das batalhas, o salão de cristais.
Os funcionários públicos que recebem do governo para orientar os
turistas não podem ser mais ignorantes.

Quando quero saber alguma coisa me dirijo a um turista, como a


garota alemã, que me indicou onde comprar o bilhete de entrada do
palácio. Tânia disse que ouviu a garota vibrar por ter falado inglês
comigo.
À saída comemos um belo filé com fritas.
Voltamos para a PLACE SAINT MICHEL num bode desgraçado.
Quando saímos do metrô, um som me chamou a atenção.
Subi rápido as escadas para localizar de onde vinha o som. Era um
grupo boliviano tocando um instrumento feito de vários bambus
amarrados, um cavaquinho de som abafado, violão, bumbo feito de
pele de lhama, ou cabrito.
Fotografei de todos os ângulos. Aquele som me enlouquece. São
músicos extraordinários. Um membro do grupo, a intervalos

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regulares ao final da excecução de um número, percorre a pequena
platéia que se forma para ouvi-los tocar.
Dentro do chapéu na sua mão caem algumas moedas.
Fico envergonhado com o pãodurismo das pessoas que jogam
centavos dentro do chapéu. Peço à Tânia que me dê as moedas que
estão na bolsa dela.
Ontem eu já havia fotografado o flautista que tocava músicas de
CARL PHILIP EMANNUEL BACH (filho de JOHANN) e HAENDEL.
Até a mendicância é sofisticada em Paris.
Estamos em êxtase percorrendo as ruelas e becos do quartier latin.
Vi na vitrine de um restaurante brochetes de camarões enormes que
mais pareciam lagostas. Quero comer um, para saber que gosto tem.
Seu nome em francês é GAMBAS.

Fotografei a CATEDRAL DE NOTRE DAME por dentro com os efeitos


de luz de velas acesas e também por fora com a luz natural.
Estou muito feliz, o tempo passa rápido, voltamos ao hotel para um
rápido banho pois hoje à noite vamos ao PALAIS DE CONGRÉS no
bairro de PORTE MAILLOT ver CARMEN com o fabuloso ANTONIO
GADES dançando com CRISTINA HOYOS.
Morro de sono. De banho tomado, cheirosos, Tânia maquiada,
vamos ao palácio do congresso.
Fica num shopping lindíssimo com as butiques mais sofisticadas de
Paris. Comprei os ingressos de uma senhora que desistiu de 2 que os
revendeu pra mim por 20 francos a menos.
Já são 20,30, a campainha soa em todo o enorme shopping. Vai
começar o espetáculo.
Corremos feito baratas tontas de um lado para outro. Não encontro a
minha porta correspondente ao número marcado nos bilhetes. Subo
as escadas onde uma funcionária orienta os que procuram suas
poltronas.
É uma pena que no Brasil não tenhamos uma casa assim. Para
minha surpresa o espetáculo começou com 20 minutos de atraso.
Platéia lotada.

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A luz se apaga e chega aos meus ouvidos a voz sinuosa, metálica do
cantor acompanhado do violão. Ele canta (como todo cantor
flamenco) de uma maneira que não se consegue entender uma única
palavra.
Mas não tem importância, já estou em transe.
Antonio Gades entra no palco. A divindade flamenca. Pequeno,
magro, rosto encovado, nariz adunco, boca trancada fina, esguio,
movimentos precisos, rápidos, o conhecido hábito de jogar os
cabelos pro alto quando gira violentamente a cabeça para os lados. É
narcisista, exercendo um magnetismo impressionante sobre elenco e
platéia.

A primeira parte – a suíte flamenca – é rápida; não mais do que 40


minutos.
Intervalo. Segunda parte, agora vem o delírio. Antonio Gades e
Cristina Hoyos fazem Carmen muito melhor do que no cinema.
Parece que ninguém sentiu falta de Laura Del Sol.

Estou agora na apresentação da segunda parte quase junto ao palco,


ocupando poltronas que devem valer no mínimo 200 dólares. Mas
estavam vazias (poucas) e me sentei assim mesmo, não sem antes
percorrer com os olhos todo o teatro à procura de algum fiscal que
porventura estivesse advinhando minhas intenções pra fosse dar um
bote em cima de mim tão logo eu me sentasse.
Nossa! A precisão daqueles saltos batendo no chão ao som das
palmas dos músicos me deixa baratinado.

Acompanho atentamente e não encontro um movimento defasado.


Ao final do ato o publico urra de prazer assoviando e aplaudindo.
Antonio Gades está na boca de cena, em primeiríssimo plano, imóvel,
sem qualquer contração no rosto, olhando – eu diria com indiferença
– o público que parece querer avançar sobre ele.

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Os outros participantes da peça estão bem atrás dele.
Cristina Hoyos está a uns três metros atrás dele. Os aplausos e
apupos não cessam.
Subitamente, Gades vira-se pra trás, levanta os dois braços como
um toureiro que vai cravar as bandarilhas no dorso do touro, os
dançarinos se agrupam e realizam uma rápida evolução sob os
movimentos dos braços de Gades, como se fosse uma batuta de
maestro a reger-lhe os movimentos.
O público fica mais excitado ainda.
Gades volta a ficar na posição em que estava, os olhos fixos, frios,
olhando de frente a platéia. O público adora a demonstração de
domínio e arrogância. Então, lentamente, Gades dá dois ou três
passos para trás, pega Cristina Hoyos pelo braço e vem até a boca
do palco com ela ao seu lado. A concessão dura só alguns segundos,
pois a própria Cristina, depois das mesuras, volta ao lugar onde
estava, deixando o Deus supremo brilhar lá na frente.
Eu queria que esse colóquio fosse eterno, mas Antonio Gades se
encarrega de me trazer à realidade, saindo bruscamente do palco.

PARIS – 06 DE JUNHO

Dia neutro. Algumas visitas à agência de turismo tentando viagens


pelos paises escandinavos ou à Grécia.
Os preços das promoções nos deixam animados, mas temos pouco
tempo e pouco dinheiro. As oportunidades de turismo e passeio são
inacreditáveis mas é preciso ter tempo e dinheiro.
Fotografei a Catedral de Notre Dame por dentro e por fora.
Jantamos num restaurante grego brochete de “gambás” – camarão
em francês – gigantes que enfeitam as vitrines dos restaurantes na
Boulevard Saint Michel.

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São deliciosos, devem pesar uns 300 gramas cada um. São pescados
em águas africanas.
Jamais em minha vida, vi camarões tão grandes.
O dono do restaurante é uma simpatia. O som ambiente é de música
grega, agradável. O proprietário circula entre as mesas cantando
junto com a música.

O clima do lugar é delicioso. Depois fomos perambular pelas ruas


que parecem estar em festa.
Há alegria no ar, agitação, gente bonita, gente drogada, perfume
bom misturado com maconha, fumo de cachimbo. Não dá vontade
de ir embora. Pegamos o metrô que a essa hora, 21 horas, já está
vazio. Mas o cheiro de suor que paira no ar é nauseante.

Acho que o francês só toma banho em ocasiões especiais. No


espetáculo de Antonio Gades, fazia muito calor no intervalo do show
e não havia mau cheiro.O público dever ter tomado banho pra ver
Antonio Gades.
Circulamos na multidão e não sentimos o tradicional cheiro de
sovaco mal lavado. Quando voltamos ao hotel, batemos um papo
com DJAMEL, o recepcionista argelino boa praça que já se tornou
nosso amigo. Ele é louco pelo Brasil. E diz que vai visitá-lo em
dezembro.

PARIS – 07 DE JUNHO

Acordamos satisfeitos. Tânia esperou que eu dormisse ontem pouco


depois das 11 e desceu para buscar água na recepção. Lá se
encontrou com um casal de brasileiros que conhecemos no aeroporto
de Orly e que vieram no mesmo avião que a gente. Tânia ficou
encantada com eles, principalmente com a mulher que é repórter de
Veja.

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Fomos para o Palais Royal de ônibus. Toda tentativa que fizemos de
andar neste veículo fracassou na nossa viagem anterior.
Agora estamos aqui, felizes da vida – dentro de um ônibus
parisiense! 20 minutos depois chegamos ao Palais Royal, mais
exatamente na rua RIVOLI.
Compramos gravuras lindíssimas numa loja, andamos muito a pé. Às
13,30 entramos num restaurante italiano. Estava louco pra comer
uma macarronada.
Pedi spagetti aos quatro queijos.
Fiquei com água na boca.
Imagine; um quatro queijos feito em Paris, num restaurante italiano!
Vou comer até o guardanapo! Tomei uma HEINEKEN geladíssima,
coisa rara na Europa, aguardando ansiosamente o macarrão.

Finalmente ele chegou. Aquilo que estava debaixo dos meus olhos
era inacreditável; mais parecia sopa que Brizola dá aos mendigos da
Lapa nos fins de semana.
O macarrão era o tubinho, meio duro, que tentei comer mas foi
impossível.
Tânia só conseguiu balbuciar que “entramos por um cano
monumental!”
Eu devia estar fazendo uma figura tão derrotada e decepcionada que
o garçon veio até a mesa perguntar se estava tudo certo, se esse era
o prato que eu havia pedido.
Respondi meio sem jeito que eu havia imaginado o quatro queijos da
maneira que conhecia e não aquele que estava diante de mim.
Percebi o mal estar criado mas me apressei a dizer que o problema
da desinformação era meu, que ele por favor não se preocupasse e
pedi outro prato.
Menos de 10 minutos depois ele chegou à mesa um delicioso
talharim à carbonara que comi até limpar o molho com miolo de pão.
Se fossem dois pratos, eu teria devorado os dois.

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Quando veio a conta, notei que o garçon não tinha incluído o
malfadado prato aos quatro queijos.
Ele por gentileza não cobrou o prato equivocado. Agradeci muito não
sem antes dar uma boa gorgeta.

Voltamos rápido ao hotel depois de ter trocado 500 dólares em


$f.4.500,00 francos para pagar o pacote da Grécia que comprei
numa agência de viagem perto do nosso hotel.
Vamos para Atenas no domingo, às 05,30 da manhã. Vamos ficar
uma semana.

À noite fomos à PLACE PIGALLE ver aquela festa de luzes e pessoas.


As lojas pornôs fazem a delicia da Tânia, mas os negros africanos, os
argelinos, indianos, uns bem vestidos, outros mal vestidos metem
medo nela.
Comprei de um camelô africano muito simpático outra família de
elefantes de ébano para aumentar a que já tenho e que comprei em
Madrid. Paguei 50 francos, o equivalente a 4 dólares.
Continuamos andando no meio da multidão.
De repente nosso passo é bruscamente interrompido por dois
rapazes e duas moças de estatura pequena e senti um forte puxão
na minha bolsa presa à cintura.

Dei um passo atrás olhando fixamente pra eles. Perceberam que eu


não caí na cilada da encenação forjando um encontrão em mim por
acidente.
Como não senti ameaça concreta, prossegui na minha caminhada.
Tânia, como de hábito, ficou muito assustada, depois acabei
explodindo com ela porque começou a ficar com medo de todo
mundo na rua. Todos na rua significavam uma ameaça a ela. Saco!

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PARIS – 08 DE JUNHO

Acordamos tarde. Quase perdemos o café de novo. No pequeno


refeitório lá estava Djamel, com aquela sua cara de carioca boa
praça. Sempre um sorriso nos lábios, sem maldade alguma nos
olhos.
Tânia tem um orgasmo a cada pedaço de baguete que põe na boca
se deliciando com as histórias e sacanagens de Djamel.
A todo momento manifesto meu desejo de sair do hotel para ir à LE
BOURGET onde a cada ano a aviação civil e militar do primeiro
mundo expõe suas novidades.

Djamel vai ao mercado, aliás, aquele tumulto de gente, barracas,


verduras, frutas, stands de carnes variadas, quiosques de
quinquilharias, e o vozerio infernal mais parece um mercado Persa.
Estamos colados em Djamel não sabendo exatamente porque ele nos
guiou até aqui. Tudo o que pedi, é que ele me indicasse como ir a LE
BOURGET. Cái uma chuva fininha, fria, todos gritam histéricos.

São poucos os comerciantes franceses, a maioria é de argelinos,


sírios, libaneses, armênios. A feira fica embaixo da via férrea do
metrô de superfície, de modo que a algazarra infernal da feira
aumenta cada vez que a composição passa, elevando o pregão. É
quase impossível nos movimentar devido à multidão compacta.
Comecei a perder a paciência, principalmente depois de sentir alguns
puxões na minha mochila que tem todo meu equipamento
fotográfico.

Dei um tchau apressado pro Djamel e saí do meio do inferno.


Na GARE DU NORD compramos o bilhete pra LE BOURGET. GARE DU
NORD é uma estação gigantesca com dezenas de ramais.
Não há quem não se atrapalhe aqui, tentando achar um caminho.
Desembarcamos, entramos no ônibus que 15 minutos depois nos
deixou na exposição.

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Os guardas orientavam as filas de pessoas,ouvia-se som de alto-
falantes anunciando suas maravilhas aladas, no meu campo de visão
vejo bicos de aviões, asas, caldas, som de decolagens.
A primeira coisa que vejo é um helicóptero francês de combate. Mas
há muito o que ver.
Estou quase perdendo o juízo e a razão. Quero correr em todas as
direções, não me detenho em nada especialmente porque tudo me
fascina. Tiro fotos no salão coberto de um helicóptero que transporta
carros no seu interior.. Ele é gigantesco, tenho dificuldades de
enquadrá-lo na lente da minha Pentax. Do lado de fora, o ruído da
explosão sônica dos caças mirage se exibindo é um imã me atraindo.
A evolução de cada aparelho no ar dura no máximo três minutos.
Quando ele volta e toca a pista, outro aparelho em outra pista decola
imediatamente.
O arrojo das manobras é impressionante pela força dos motores,
pela beleza das evoluções. Até agora não vi o sensacional SEA
HARRIER, avião de caça inglês que decola na vertical, sendo único
no mundo. Já estou há quase três horas aqui e nem sinal dele.
Bato as últimas fotos e tiro o último filme da máquina. Por motivo de
precaução procuro um stand da Kodak pra comprar um filme de
reserva.
Tenho sede, procuro um bar.

Enquanto tomava meu refrigerante e levava outro pra Tânia que


estava no hangar dos modelos antigos confortavelmente sentada,
ouvi um ruído de reator que aguçou minha curiosidade; era um ruído
forte, de sustentação, próprio de turbina levando ao ar todo um peso
descomunal, mas não fazia a passagem costumeira de arremetida,
de ascenção.
Era um ruído fixo, estável,intenso, ensurdecedor.
Fiquei intrigado com o ruído que continuava na mesma intensidade,
mas não conseguia localizar de onde vinha. Entrei no hangar, dei o
refrigerante da Tânia, voltei pra fora procurando no ar o aparelho
que fazia tal barulho.

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O que vi, foi um jato de passageiros de 4 turbinas, com 8 rodas no
trem de pouso, fora a bequilha com 4 de cada lado enfileiradas. Mas
o rudio forte continuava.

De repente, ao passar por outro hangar, vi o SEA HARRIER, o dono


do barulho constante.
Lá estava ele, inacreditavelmente baixo, por cima das cabeças das
pessoas, oscilando levemente no ar.
Dava a impressão de que se quiséssemos dar um pulo, tocaríamos
sua fuselagem com as mãos. Fiquei eletrizado, sem conseguir tirar o
os olhos dele. Pensei em por o filme na máquina,mas desisti, porque
a operação de pôr o filme me roubaria minutos preciosos de
observar a maravilha. Da absoluta imobilidade, ele balançava
lentamente o bico pra cima e pra baixo cumprimentando as pessoas.
Depois foi avançando devagarinho e disparou numa linda arremetida
soltando uma enorme língua de fogo de suas poderosas turbinas.
Ele desaparece no espaço não sei pra onde, e volto a respirar
normalmente. De volta ao hotel, pedi ao recepcionista que nos
acordasse amanhã de manhã bem cedinho pois temos que estar no
aeroporto às 05.30 para pegar o bilhete aéreo que nos levará à
GRÉCIA.
Enquanto eu falava com o recepcionista, Tânia conversava com um
casal de brasileiros que acabava de chegar de Londres. Paulo e
Cristina, dupla de criação da M.P.M de São Paulo.
Juntei-me ao grupo e ficamos conversando até quase meia noite.
Casal agradabilíssimo.

PARIS – 09 DE JUNHO

Não consegui pregar o olhos um único minuto durante toda a


madrugada.
Insônia absoluta. O chá que tomo todas as manhãs e os dois ou três
cafés italianos são os responsáveis por esta insônia.

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Meu Deus, que coisa horrível é ver a noite passar minuto após
minuto sem que o sono chegue. Quanto mais desejo dormir, aí
mesmo é que não durmo.
Mexo muito na cama, me levanto a toda hora e faço tanto barulho
que acordo Tânia. O relógio marca duas e meia da manhã. Tento
pensar em coisas agradáveis. Penso na CARMEN de Antonio Gades e
Cristina Hoyos. Ainda estou sob o impacto daquela visão flamenca.
As imagens se sucedem; a arrogância dele ao final da apresentação,
seu rosto sem mover um único músculo, o jeito de encarar a
platéia...
Merda, três e quinze da madrugada.
O tempo não passa...Vou me lembrando de todos os filmes que
gostei até hoje.
Por fim minha paciência se esgota. São 4 da manhã. Me levanto,
tomo banho, chamo Tânia.
Pegamos nossa bagagem e vamos pra recepção. O francesinho filho
do dono do hotel e que fala muito rápido está na recepção. Como é
difícil me entender com ele apesar de sua extrema docilidade e
educação. Fala muito baixo, e pra dentro.
Peço a ele que fale devagar, que sou brasileiro, mas não adianta, ele
fala rápido e eu não entendo o que ele fala.
O táxi chega. Um senhor de cara de árabe muito simpático me ajuda
a colocar a enorme bolsa marrom no porta malas e partimos para o
aeroporto de Orly.
O carro voa na madrugada. Paris é mais charmosa ainda a esta hora.
As ruas estão iluminadas e desertas.
Deserto também está o aeroporto. Pouco a pouco vão chegando
passageiros e funcionários. Em pouco tempo a fila diante do portão
35 está enorme e confusa.
É bastante tumultuado o embarque no AIR BUS da “AIR INTER”,
uma companhia aérea que jamais ouvi falar.
Está me parecendo um braço pequeno da AIR FRANCE.
Tânia está há uns quatro metros na minha frente tentando
acompanhar o ritmo da fila. Ela vai tentar bloquear três poltronas pra
nós.Ela tem feito isso nas nossas viagens longas e tem dado certo.

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Todo mundo odeia viajar no meio da fileira de três poltronas porque
não sobra apoio para os ante-braços.
Apanhamos nossa caixinha de lanche que estava empilhada às
centenas na entrada do túnel sanfonado, percorremos rápido o túnel,
entramos no avião e nos sentamos.
Quando abrimos as caixinhas, que decepção! O que oferecem aos
passageiros que viajam pela AIR INTER de Paris à Atenas num vôo
de duas horas e cinqüenta minutos é de matar de rir até o
passageiro pau de arara no nordeste. Esses não tem o que comer
quando viajam naqueles caminhões, mas também não pagem, ou
pagam muito pouco. As mazelas da viagem não param por aí.
Quando eu quis deitar o encosto, descobri que não podia.
Esses moderníssimos AIR BUS n/ao tem poltrona reclinável que é
para caber mais passageiros.
Como bebida oferecem café com leite ou refrigerante.
Preferimos não nos arriscar. Não aceitamos nada. É por isso que
esse pacote custa tão barato; US$ 270,00 por cabeça.
O tempo passa rápido.
Chegamos à Atenas. Senti uma sensação deliciosa vendo os
caracteres gregos por toda parte.
Novo tumulto na fila de passaportes. Outro tumulto para retirar a
bagagem, nossa indefectível bolsa marron com rodinhas.
A esteira giratória do restaurante é muito pequena. Os afoitos se
acotovelam junto à esteira para apanhar sua bagagem.Quando
conseguem, vão trombando nas pernas e barrigas de quem estiver
por perto esperando sua vez de pegar sua bagagem, o que azedou
meu bom humor.
Entramos no ônibus da V.V.S a companhia que nos vendeu o pacote
de sete dias em Atenas e logo chegamos ao HOTEL ECONOMY. Duas
estrelas, muito agradável, simples demais.
Tomamos um banho gostoso depois de termos dormido quase 3
horas ininterruptas. Acordamos animados. Botei bermuda porque o
calor está igual ao do Rio.
Estávamos indo para a rua quando ainda no elevador me lembrei de
comprar ingressos para o show de hoje à noite.

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Meu relógio marcava 19,20. Perguntei ao recepcionista se havia
tempo de participar de algum grupo de turismo noturno, quando se
aproximou de nós um velho alto de cabelos brancos, óculos de grau
fino dizendo que nos ouviu falar num idioma que ele sabe falar pois
morou em São Paulo. Sugere que saiamos no mesmo tour que o
dele: SON ET LUMIÉRE no PARTENON em Acrópolis. O ônibus vai
nos apanhar daqui a vinte minutos. Pergunto ao meu novo amigo, o
romeno Johny, se ela já conhecia a dança típica grega. Ele responde
que sim, me mostrando como as dançarinas fazem com a barriga.
Tenho uma crise de riso. Gosto mais ainda da cara da mulher dele,
Helen que é uma simpatia. Ela é americana e vivem juntos em São
Francisco. Tânia cái de amores pelos dois velhos. Helen se encanta
por Tânia que lhe conta estar grávida. Helen se desmancha em
cuidados e ternura. Johny acende um cigarro sendo repreendido
severamente por Helen que lembra a ele a gravidez da Tânia.
Ele parece comovido mas Tânia diz que não se importa, que fuma
também, e só paro agora por estar esperando bebê..
Helen contudo, não perdoa Johny, continuando a implicar com ele
pra apagar o cigarro.
Tentando apaziguar a mulher ele diz angustiado expressando um
garoto impossível no rosto: “She fuma!”
No ônibus trocava idéia com Johny e Helen sobre o som e Lumiére
que eu já conhecia do show das pirâmides do Egito. Johny conhece
esse show também.
Comentamos com elas que verão um espetáculo inesquecível.
Ao final do show eu não sabia onde aonde enfiar minha cara pela
porcaria que tínhamos acabado de ver.
Em seguida fomos para uma taberna assistir a um show do folclore
grego seguido de jantar.
Johny foi a figura mais simpática da noite,pois dançou a dança do
ventre com a artista principal que era uma excelente animadora. Eu
achei o jantar delicioso. Tânia não gostou.
A festa acabou depois da meia noite com os americanos do nosso
ônibus cantando STRANGERS IN THE NIGHT pelas ruas de PLAKA,
lugar delicioso, com lojas de souvenirs, restaurantes, night clubes,

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trânsito intenso de pessoas alegres. Dentro do ônibus JOnhy quer
ficar perto de nós conversando mas Helen, lá do fundo dá bronca
nele por causa do cigarro.
Ele concorda e se afasta muito a contra-gosto.
O casal tem 70 anos de idade cada um, têm certa dificuldade em
andar e não escondem que se sentem seguros quando estão
conosco.
Chegamos ao hotel. Enfim, famos dormir relaxados. Acho um barato
estar na Grécia de Zorba o Grego.

GRÉCIA – 10 DE JUNHO
O café do ECONOMY não podia ser pior. Fomos para a rua. Olhamos
o comércio, compramos algumas bobagens, fomos ao Partenon e
voltamos caindo aos pedaços de cansaço.
Comprei uma cabeça de cavalo árabe feita de alabastro branco por
78 dólares. Amanhã vamos fazer o tour das ilhas AEGYNA, HYDRA E
POROS, com almoço incluído a bordo do navio. Nome do navio.
MYSTRAL.

GRÉCIA – 11 DE JUNHO

No navio a rotina é preguiçosa e gostosa. A comida não agrada mas


também não é insuportável. Paramos nas ilhas só para tirar fotos
porque é tudo uma grande bobagem. Só valeu saber que o mar Egeu
não é a latrina da Grécia.
A água é tão limpa que dá pra ver o calado dos barcos e suas hélices
em movimento. Uma maravilha.
Numa das paradas numa loja de souvenirs a proprietária agradeceu
ao Brasil por haver feito uma série maravilhosa como MALU MULHER.
Ela adorava assistir.

GRÉCIA – 12 DE JUNHO

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Levantamos hoje esbanjando bom humor. Dormimos otimamente a
noite toda.Durante o café, estivemos com onosso casal de velhinhos.
Lembrei Johny que deposi do café eu iria com ele procurar uma
oficina pra cosertar sua filmadora. Ele morre de orgulho dela. A
expressão de seu rosto e a confirmação de Helen não deixaram
dúvidas de que ele queria isso acima de qualquer coias no dia de
hjoje. Subi para tomar um banho e desci com Tânia. O casal já
estava no haal nos esperando. Johny estava impaciente. Helen
conversava com outra mulher. Quando me preparava pra sair, Helen
disse; “querido, vá com ele consertar sua câmera, eu vou ficar
porque preciso ir a um salão de beleza!”
Ele concordou de imediato e perguntrou pra moça quanto ia custar
essa visita ao salão. Ele estava preocupado com seus Dracmas.
Quando a moça disse que era bararto, ele ficou muito satisfeitoi e já
ia perguntar mais alguma coias quando Helen o cortou dizendo:
“querido, vá par a rua e não encha o saco, por favor!”
Os dois tem uma relação mãe e filho, embora Johny seja mais velho
do que ela, mas a coisa fica mais no nível da camaradagem. Essas
broncas que Helen dá no Johny tem um poiuco de encenação porque
eu me divirto muito elas e os dois já perceberam isso e exageram na
interpretação. Visitamos alguns revendedores de câmera e todos os
profissionais consultados indcaram que a câmera deveria ficar para
ser examinada com o que Jonhy não permitiu..
Ele queria que a máquina fosse consertada ali na sua frente, naquele
momento.
A cada visita, ele ficava mais irritado. Tentei argumentar que esse é
o procedimento normal, mas não adiantava. Desisti de convencê-lo e
só fiquei como acompanhante. Subitamente ele quis entrar numa
casa de câmbio para trocar dólares. Enquanto esperávamos o
dinheiro, sugeri que voltássemos ao hotel para pegar a máquina
fotográfica para tirar fotos dos guardas do Palácio.
Milagrosamente concordou não sem antes recomendar; “Ok, but you
não demora!”
Ri tanto que perdi as forças.

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Quando cheguei ao hotel ele foi para o apartamento e eu aproveitei
para ir com Tânia ao correio, mas no meio do caminho encontramos
uma casa de frios e laticínios que nos enlouqueceu. Feita a compra
voltei a passos largos ao hotel imaginando que Jonhy já devia estar
impaciente me esperando.
Liguei pro seu apartamento. Não houve resposta.
Então comi calmamente esse queijo deliciosa chamado FETAH, com
salaminho e outros frios.
Depois fiquei no hall aguardando ele chegar.
Daí a pouco ele chega da rua, cara fechada, voz baixa monossilábica,
comentando que saiu e se perdeu.
Menti que também havia me perdido.
Ele deu gargalhadas e voltou a ficar bem humorado. Logo me puxou
pelo braço querendo ir ao palácio fotografar os guardas.
Assumiu ares de importante, me tranqüilizando dizendo que eu não
me preocupasse que ele me levaria atéo palávio porque ele sabia o
caminho.
Andávamos dois quarteirões e ele parava uma pessoa perguntando
pela rua VENIZELOS, endereço do palácio.
A pessoa abordada gentilmente explicava e ele saia animado na nova
direção indicada, mas me puxando pelo braço.
Entrávamos à esquerda, à direita, dobrávamos de novo
e...estavamos perdidos de novo.
De novo ele parava algum grego na rua, peguntava onde era a rua
VENIZELOS, e saiamos em direção à indicação.
Andávamos rápido, gesticulando muito, feito dois italianos. Numa
dessas abordagens, Johny parou um velho que pareceu detestar o
inglês de Jonhy, corando bruscamente a palavra do meu amigo, se
recusando a parar e responder.
Jonhy inicialmente surpreso, se recobrou e mandou em alto e bom
som: “VÁ TOMAR NO CÚ!”
Eu ria tanto que cheguei a me apoiar numa parede. Jonhy estava
feliz com a malcriação.
Nossa marcha de barata tonta prosseguiu. Até que chegamos ao
palácio. Posso afirmar sem sombra de dúvida que os movimentos

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marciais dos gaurdas em frente ao palácio é muito mais bonito e
imponente do que aquele observado no Palácio de Bucckingham.
Três rapazes australianos se aproximaram de nós. Os 4 deviam ter
18 anos. Quando descobriram que eu sou brasileiro, vibraram de
prazer. Falamos de futebol, praia, mulheres. Jonhy fez os
comentários próprios de quem domina o assunto, adora, mas finge
não dar importância ao fato.

Os garotos olhavam pra ele maravihados. De repente Jonhny me sai


com a frase: “THE WOMEN IN THE BEACH COVER ONLY THE
BUCETA!”
Tive outro acesso incontrolável de gargalhadas. Os rapazes não
entenderam nada. De volta ao hotel caminhando por ruas repletas
de pessoas, automóveis, motos, motonetas.
Comemos no próprio hotel um churrasco bem ruinzinho.
Dormi a tarde toda.
Hoje à notie vamos a uma taberna grega jantar e ver o SIRTAKI, a
dança do ZORBA.
Saímos às 21,15 para o show, depois de termos feito algumas
tentativas de fazer um tour até MICONOS.
De barco até lá, são 6 horas de viagem. De avião, 30 minutos com a
passagem custando 4.450 dracmas. Ida e volta. Não é cara, pouco
mais de 200 dólares.
Descartamos a idéia porque não teríamos tempo.
Vamos andando pela rua em direção à PLAKA, lugar onde estão
todos os bares, tabernaas, night clubs de Atenas.
A temperatura esta´agradável, muito embora o calor durante o dia
tengha estado insuportaável. São 21,45, o dia ainda não terminou. A
nouite só começa a acontecer por volta das 22,15. Tânia está
encantada com os colares de contas grandes, quase do tamanho de
uma bola de gude que vê numa loja.
O proprietário, um baixinho de modos agressivos mas muito
simpático convidas Tânia pra ir ao fundo da loja ver a sua oficina de
fabricação.

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Enquanto Tânia escolhe, ele fala orgulhoso de seu segredo de fazer
contas inquebráveis. Ele demonstra batendo com um colar na
beirada de uma mesa. A pancada é forte. Revela que quando
esta´compondo a massa que vai resutlar em milhares de contas, não
permite a presença de ninguém perto dele.
Nem sua própria mulher sabe a fórmula. Diz que tem 7 fábricas em
Atenas, mas somente ele consegue fazer as bolinhas inquebráveis.
Escolhemos 5 colares e saímos. Quando estávamos botando os pés
do lado de fora da porta, ouvimos em português: “como é
bonitinho!...”
Era um grupo de três pessoas olhando as vitrines dessa loja em que
estávamos.
Me aproximei lentamente e disse: “como é bom ouvir meu idioma
longe de casa!”
Foi uma festa o nosso encontro com essa família; a mulher, o marido
e o filho estudante de engenharia na Alemanha, em Nuremberg.
Ele, o pai, oficial reformado do exército trabalhando na assessoria do
INAMPS.
A mãe, Edilce, falou com Tânia o tempo todo. Meia hora depois nos
despedimos.

Plaka está em festa com muito turista, muita gente bonita, seus
bares com cadeiras na calçada. O ambiente é agradável.
Um sujeito de de foz forte pula em cima de nós tentando nos atrair
para o seu restaurante e consegue.
Queremos comer polvo. Ele sugere polvo ao vinagrete. Fazemos cara
de repulsa. De repente ele me puxa pelo braço e me leva dentro da
cozinha.
Isso mesmo, dentro da cozinha, no meio dos cozinheiros, de frente
para o enorme fogão. Experimento o polvo que ele me dá no
pratinho. Não gosto. Numa grelha me encanto por um espeto de
peixe espada, um brochete. Peço dois.
Comemos tudo, sentados numa mesa de calçada, vendo o povo
passar pra lá e pra cá.
Que jantar delicioso e só custou 12 dólares os dois pratos.

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GRÉCIA – 13 DE JUNHO

Dia neutro hoje. Não fizemos nada de especial. Minha esperança de


ir à MICONOS hoje de manhã quando falei com o recepcionista que
me informou estarem esgotadas todas as reservas de hotéis e aviões
para a ilha.
Curiosidade: a única companhia de aviação que explora a linha
comercial até MICONOS é a OLIMPIC AIRWAYS que pertence a
CRISTINA ONASSIS.
Andamos à toa o dia inteiro.
Temos almoçado e jantado no hotel que tem uma comida gostosa. O
café da manhã é que tem sido danado de ruim.
As três mulheres que nos atendem no restaurante são divertidas e
muito agradáveis: CALHÓPI, VULAH E HARAH.
Todas as manhãs descemos com tubos de leite condensado,
biscoitos, salaminhos, para tornar a mesa mais saborosa. Meu
relacionamento com as três mulheres tem sido uma farra. Elas
adoram a algazarra que faço. A primeira vez que pedi uma cerveja,
ela veio quente porque também na Grécia, apesar do clima tropical,
a cerveja é servida quente.
Calhópi não fala uma palavra sequer em inglês. As outras duas
também não.
Mas temos nossa forma de comunicação.
Mediante uma boa gorgeta, Calhópi que parece ser a cozinheira
chefe, coloca uma garrafa de cerveja no congelador, faltando uma
hora pro almoço.
Quando chegamos pra almoçar, ela já está quase congelada..
Bebo fazendo caras e bocas. Calhópi dá gargalhadas gostosas e fala
grego Vulah e Harah que também riem muito.

Rio junto com elas.


Vulah me mostra um pequeno álbum de fotos de sua filha e sua
neta.

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Ela fala comigo discorrendo sobre as pessoas na foto e faço cara de
quem esta entendendo tudo. Sinto a maior ternura pela voz doce e
calma de Vulah, que deve ter 50 anos. Calhópi também. Harah não
tem mais do que 20 anos.
Quando ela se apresentou a mim, eu a chamei de HÁRAH!
Me corrigiu irritada dizendo “HARÁ!”
Um acento grave é a única diferença que faz o nome dela não ter o
significado de BOSTA em árabe.

GRÉCIA – 14 DE JUNHO

Acordei cedo hoje e custei a ficar na cama. Descemos para o café e


fomos pra rua. Tânia queria ir ao anfiteatro de Acrópolis. Ficamos
mais de 15 minutos esperando um ônibus vazio. Todos passavam
cheios.
Finalmente veio o 731, enorme, velho e sujo.
O trocador perguntou se éramos alemães. Foi um custo entender a
pergunta.
Olhei para o que parecia ser a tabela de preços e desisti log porque
estava em grego. Abri a bolsinha de moeda e ele retirou o que valia
a passagem. Por mímica nos indicou onde deveríamos descer.
Perdemos algumas horas olhando o local e batendo fotos. Depois
voltamos ao comércio. Comprei uma cabeça de cavalo árabe linda,
por 78 dólares. Tânia comprou uma pulseira de prata lindíssima por
59 dólares.

GRÉCIA – 15 DE JUNHO.

Acordamos com a sensação agradável de não fazer nada. Hoje é


sábado, não queremos fazer nada. Durante o café tirei algumas fotos
com VULAH E CALHÓPI.
Saímos animados para a rua, andando sem destino. Numa galeria, o
letreiro L’ANCÔME chamou à atenção de Tânia que entrou feito um

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raio numa loja pequenina me puxando pela mão. A vendedora
chamda CHRISA, era bonita e muito agradável.
Enquanto ela demonstrava os produtos para nós, aproximou-se uma
garota mais ou menos gordinha vestida de preto, óculos de grau,
olhos muito azuis e um belo sorriso. As duas falaram em grego e
riram.
Chrisa percebendo que eu as observava com um sorriso também,
apressou-se a traduzir dizendo que a amiga havia oferecido sorvete
que ela recusou, apesar de querer muito. Entrei na brincadeira
dizendo que aceitava.
A gordinha tentou falar espanhou comigo. Demonstrava nervosismo,
ânsia até, tentando achar as palavras. Fiquei tão maravihado com a
pronúncia dela que continuei falabndo espanhol para encorajá-la.
Entusiasma-se à medida que conseguia expressar e me fazer
entender.
Conseguiu dominar a timidez mostrando notável equilíbrio, botando
pra fora tudo o que sabia ou que deduzia. Quando tropeçava numa
palavra, eu a ajudava com carinho.
Em pouco tempo ela estava absolutamente segura.
Pude ver orgulho em seus olhos.
Tânia e Chrisa torciam por ela. JOANA é seu nome. JOANA
SCOPELITOU.
Ela estava muito feliz por se saber capaz, por saber tanto, apesar de
só ter estudado por 4 meses, professores espanhóis de Barcelona.
Ela é funcionária de uma casa lotérica, estuda à noite pois pretende
progresso profissional trabalhando com importação e exportação.
Perguntei se o patrão dela não criar problemas caso pois ela já
estava conversando comigo há mais de 20 minutos.
Pareceu assustar-se, escreveu seu nome e endereço num pedaço de
papel e saiu correndo para a sua loja lotérica.
Estava imensamente feliz. Chrisa tinha no seu belíssimo rosto aquela
expressão gostosa de amiga cúmplice olhando Joana se afastando
quase correndo. Pedi a ela que me dissesse o valor das compras
para que Tânia puxasse os dólares de seu esconderijo na cintura.

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Convertidos os drácamas, a despesa deu 54 dólares. Quando Tânia
estendeu a nota pra ela, se surpreendeu com o gesto simpática de
Chrisa que reduziu a despesa para 41 dólares, sem que pedissmos.
Agrademos bastante a ela e já nos preparávamos para sair quando
Joana apareceu com um sorriso de orelha a orelha, com os olhinhos
brilhando, trazendo sorvete pra mim e pra Tânia. Tornou a se
despedir dizendo que ia escrever em espanhol. Recomendou que eu
aguardasse suas cartas.
Fez meia volta pra sair, parou, virou-se pra Chrisa e falou em grego.
Agora estava séria. Parecia não quer ir embora. Deu um tchauzinho
com a mão, e sumiu rápido dentro da galeria.

Voltamos ao hotel. Tânia tem muito sono, está cansada. Eu estou


acesíssimo. Pego a Pentax, vou pra rua fazer fotos. Não sei o que
fotografar, a inspiração vai determinar.
Todos os caminhos me levam a PLAKA, o lugar da badalação, de
gente bonita,animada, pele dourada por este verão lindo que faz
aqui.

Vou primeiro `a loja de um rapaz grego que estuda no Canadá.Assim


que chegamos à Atenas formos recebidos por ele em sua loja.
Mostrou-se uma
pessoa moderna pelas idéia que expunha, adorava rock, gostaria
muito de ter ido ao Rio de janeiro para ver o ROCK IN RIO, serviu-
nos água geladíssima, prometeu bons descontos nos artigos de sua
loja. Quero comprar uma estátua de um símbolo, mito, ou filósofo
grego pra tia Nana, Magnólia e tia Elza.
Assim que chego ele me faz de confidente sobre suas aventuras com
as turistas estrangeiras que dão mole pra ele. Passou a contar
detalhes de sua mais recente aventura com uma americana de
Cincinatti. Apanhado de surpresa por aquela conversa, não tve como
interrompê-lo, tal era o seu entusiasmo ao falar de sua aventura com
uma americana muito tímida, etc, etc.etc. e foi despejando detalhes.

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Meia hora depois, aproveitando uma pausa que ele fez pra somar o
valor das despesas, aproveitei para me despedir, não sem antes
prometer que voltaria pra continuar nossa conversa.
E consegui sair fora. Ufa! Que conversa chata!
Vou lentamente passeando em direção à PLAKA. Paro numa loja
avalando os preços de ume sta´tau de AFRODTE e outro da deusa
Ateghena esculpidas em alabastro. O preço inicial é de 1.960
dracmas, ou 14 dólares e 60 cents pelas duas.
Comcei a pechinchar fazendo mil caras, inentando histórias
comomventes tipo: “mamãe vai até chorar quando eu der esta
estátua pra ela...”
Inútil, nãop consegui amolecer a danada da grega que era ótima
comerciante. Consegui uma pequena redução para 1,400 dracmas,
ou 10 dólares e 45 cents.
Fui ao pé das colinas que sustentam o Partenon. Fiz algumas fotos.
Voltei lentamente por PLAKA, pensando e olhando todas aquelas
letras e caracteres gregos e anúncios comerciais.
Súbito tive o cenário que sonhei; lá estava eu numa rua longa
eestreita, cheia deletreiros comeriaiis, sem carro algum, sem
pedestre, sem pessoas nas calçadas. Fiz varias fotos. Estava muito
feliz. Quando olhei no sentido contrário da rua, vi um efeito de luz
jnatural do sol que me fascinou. Ao apertar o obturador pra fazer a
foto, o filme tinha acabado. Me sentei num degrau de uma loja à
sombra de uma marquise.
Estava muito absorto. De repente senti uns salpicos frios na nos
braços, no pescoço, nas pernas.Salpicos que por pouco não caíram
na minha cabeça.
Era uma enorme cagada de pombo., daquelas bem espalhada,
verde e branca.
Olhei para cima e lá estava o cagalhão, o porcalhão na beirada da
marquise, com seus olhos de contornos amarelos me o fitando
curioso.
Achei tão engraçado que comecei a rir.
Coloquei o filme, a tele-objetiva para registrar o cagão numa foto.

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Levei a máquina ao rosto, ajustando o foco, o que quase nãoc nsgui
porqueo a lnete aproximou mais ainda aquela cabecinha dos meus
olhos, e os movimentos que ele fazia com a cabeça me davam a
impressão de que ele estava tão interessa no que eu fazia que
estava quase caindo na máquina, me fazendo rir tanto, que a
máquina oscilava me impedindo de fazer a foto que eu queria.
Hoje é sábado, as ruas de Atenas estão vazias, um deserto,
provocando em sentimentos inexplicávelmente deliciosos. Deixei
Tânia dormindo no hotel. Ela sente muito sono por causa da
gravidez.Ao voltar encontro- a acordada.
Descemos para jantar. A semana inteira tenho comido a mesma
coisa praticamente todos os dias.
Almôndegas, batata frita, e salada grega que é composta de pepinos,
tomate, uma folha que eu não conhecia, mas de sabor agradável e
queijo.Um queijo delicioso, de consistência dura, salgado, branco,
chamado FÉTAH.
Tânia faz cara de choro debochado para a comida que ela come há
uma semana. Não tivemos outra saída, tentamos comida italiana,
salgados avulsos, sái tudo caro e com sabor duvidoso. Tudo o que eu
não quero nesta ou em qualquer outra viagem é uma infecção
intestinal.

GRÉCIA – 16 DE JUNHO.

Acordamos às 9. Descemos às 09,30 para o café, voltamos rápido ao


apartamento para arrumar a bagagem coisa chata. É a parte ejuoada
da vaigem. Deixamso tudo pronto e trancado na recepção do hotel e
fomos para a rua andar a toa.
Tânia me mostrou numa vitrine um cartaz onde estavam desenhadas
varias raças de cachorros. Ficamos ali trocando impressões por
alguns minutos. Continuamos nossa caminhada, quando 100 metros
adiante ouvi um grito; “Ei, brasileiro, vem cá tomar cerveja!”

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Era um senhor, cabeça branca, baixa estatura, que estava junto a
aum casal jovem e mais dois velhos que haviam nos observado
olhando o cartaz dos cães na vidraça.
Me aproximei do grupo. Ele grego, vivendono Brasil há 33 anos no
bairro deBonsucesso. O casal jovem de São Paulo.
Batemos um papo animado, trocamos endereços e continuamos
nossa caminhada procurando um restaurante pra almoçar. Acabamos
no hotel de novo,mas desta vez comemos carré de porco, batata
frita e a salada com FETÁH.
Às 16,30 o ônibus da V.V.S a companhia que nos trouxe de Paris à
Atenas nos apanha no hotel. No aeroporto, para as formalidades
nuam desorganizção danada, embarcamos fihnalmente às 19,20 para
decolarmos às 19,40.
Dentro do avião, um antigo Caravelle, o calor é insuportável. Os
bancos não são reclináveis e muito próximos um do outro.
O comandante avisa que que levaremos três horas e meia até Paris.
Pelo trajeto vai anunciando nossa localização.
À leste a costa italiana com as ciades de ANCONA, FLORENÇA.
Olho pela janela e vejo tudo azul.
Não idêntico nem terra nem água.
Falta menos de uma hora para o tormento terminar.
Pousaremos logo no aeroporto de Orly.
A aeromoça deve ser uma moça com muito talento para atriz de
comédia, ou é boa contadora de história porque pelos alto falantes
do avião, enquanto ela fala os passageiros gargalham.
No chão de Orly.Espero todo mundo sair.
Vou lá atrás, no rabo do avião e pego a cabeça de cavalo que foi
acomodada num compartimento especial porque não cabia nos
bagageiros.
Ela é incômoda de carregar porque é muito pesada, sem contar o
pavor que estou de quebrá-la ou mesmo tirar uma lasquinha das
orelhas, ou da crina, ou da cauda.
Foi a coisa mais bonita que já comprei em todas as minhas viagens.
Somos os últimos passageiros a descer do avião. Estou bêbado de

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sono e cansaço. Vou ficando cada vez mais para trás com Tânia que
já é muito lerda pra caminhar. Com sono, fica pior ainda.
Ao nos aproximarmos da Policia Federal francesa, era um monte de
funcionários e só nós, eu e Tânia de passageiros. Nos olham
atentamente.. Têm walkie-talkie nas mãos e cara de poucos amigos.
Não se interessam pela minha bagagem e sim pelo pacote horrendo,
disforme, de papelão todo colado com fita adesiva preso a um
carrinho desses de levar preso à mala.
Olham com vivo interesse o volume e até apontam. Entrego os dois
passaportes. Estamos todos em silêncio. Eu encarando eles, e eles
me encarando.
Me perguntam que pacote era aquele. Respondo. Há hesitação no ar.
Estou começando a gostar desta coisa mal parada.
Eles ficaram um pouco desconcertados porque eu os encarava
indefinidamnte, dentro dos seus olhos.. Me pedem pra abrir o
pacote.
Quando comecei a arrebentar a fita adesiva, desistiram e me
mandaram embora.

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TERCEIRA VIAGEM À EUROPA

SEGUNDA FEIRA – 02 DE JUNHO DE 1.997

Às 11 horas entramos no táxi que nos aguardava no G-1 do nosso


prédio na rua Presidente Carlos de Campos em Laranjeira pra nos
levar ao aeroporto internacional.
Vamos à Roma e Madri.
Fiquei muito frustrado por não conseguir o up-grade para a classe
executiva da ALITÁLIA.
Bia, a vendedora da TI chegou quase a afirmar que conseguiria isso
pra nós. Ao entregar as passagens no check-in, nossa esperança
sumiu.
E veio o desânimo imaginando que dentro de poucos minutos
estaríamos sentados em poltronas apertadas, gente barulhenta, fila
nas portas dos banheiros imundos.

Contrariando meus hábitos de não pedir nada a ninguém para não


incomodar, perdi a vergonha, fiz cara de sofrimento para Rosa, a
simpática recepcionista da Alitália no chek-in, pedindo a ela na maior
cara de pau que nos desse três poltronas; as duas pra mim e Tânia,
e bloqueasse a do meio.
Pra minha felicidade, Rosa bloqueou.

Agradecido, comovido, subjugado de alivio, fui ao Free Shop comprar


um perfume recém lançado em Paris, de nome ORGANZA, e uma lata
de bombons CADBURY’S.
Minha felicidade era tanta que me deu vontade de dançar pelos
corredores do aeroporto enquanto me dirigia à sala da Alitália.

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Era minha intenção deixar com qualquer funcionário da empresa o
presente pra Rosa.
Qual não foi minha surpresa quando abri a porta e lá estava sentada,
lindíssima, simpaticíssima, a nossa ROSA.
Ela ficou muito encantada com meu gesto.
Dentro do avião, eufóricos, eu Tânia acomodávamos nossos pacotes
na poltrona do meio quando Rosa apareceu de repente para verificar
se estávamos bem acomodados, se estávamos satisfeitos e
novamente nos desejou boa viagem.

Decolamos às 14,15. Antes, prevendo que o almoço não seria lá


essas coisas, comemos uma picanha fatiada deliciosa no restaurante
do aeroporto.

AEROPORTO DE FIUMICCINO – ROMA – 03 DE JUNHO – 1.997

Às 5 da manhã, hora local, descemos em FIUMICCINO em Roma.


No Brasil é meia noite e meia.
Para ser mais exato, o nosso piloto colocou essa jamanta de 500
toneladas no solo às 05,37.
O aeroporto estava coberto pela neblina.
Nossa gigantesca mala veio rápido.
Tânia inaugura em solo italiano sua genética aflição indagando se
alguém estaria esperando por nós com nossos nomes escritos num
cartaz erguido acima das cabeças no terminal de saída.
Acabamos de sair do terminal, lá estava o “signore” Antonio e o
SEIXAS estampado num pedaço de papelão.

Cordial, mas de poucas palavras na direção do seu velho Mercedes,


em poucos minutos nos deixou em frente ao hotel.
Fachada bonita, lugar bucólico, área linda com pizzaria exatamente
em frente.

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Ao abrir a porta do apartamento; um cheiro insuportável de mofo
invadiu meu nariz, o carpete todo manchado.
Instalações pobres.
Morro de calor.
Ligo para a recepção, me atende o gentilíssimo Roberto. Quero saber
onde ligar o ar condicionado.

Ele responde calmamente que não está fazendo calor.


Que o ar condicionado é ligado no controle geral quando realmente
faz muito calor, e que não era esse o caso, completou, mansamente.
Ficamos bastante deprimidos.

Mas enfim, Roma, aqui vamos nós!

Resolvemos dormir, pois eram pouco mais de 7 da manhã, estava


tudo fechado.
Apagamos até às 11 horas.
Fomos bater perna pelas redondezas. O bairro é bastante agradável.
Pegamos o ônibus 46 em direção à VECCHIA CITÁ.
Tânia mergulha de cabeça a 180 km por hora sobre cada vitrine que
encontra na calçada, não importando o que tivesse dentro.
Praça de São Pedro. Fotos. Almoço, voltamos ao hotel. Queremos
saber quem é nosso guia.

ROMA – 04 DE JUNHO

De novo batendo pernas na rua e colando o nariz em todas as


vitrines de lojas, bares, quiosques, restaurantes, para brisas de
carro.
Tânia está que é uma desinibição só. Aliás, eu diria EXIBIÇÃO pois
acha que está arrasando em italiano.

O sotaque dela é uma mistura de dialeto da Úmbria com leve


ascendência no Vêneto, estágio em Nápoles mas com forte influência
basca.

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“USTÊ TIENES UMA MÁS GRANDE QUE ESTA ACÁ PERQUÊ FICÔ
MUCHO FOLGADA?”
Eu fico nas imediações do ato de compra fazendo uma espécie de
tradução simultânea tomando o cuidado de pedir desculpas pelos
descalabros que saem dessa boca.
Outro aspecto desta torre de babel de Bonsucesso é o gestual surdo
mudo que ela faz em apoio à salada multilingua verbal.
Com inflexões ritmadas de pastelão mexicano, ela abre a boca em
cavernas de 30 centimetros por 40, com gestual mais extravagante
ainda.
Os italianos devem estar muito espantados de travar contato com
alguém que gesticula mais do que eles.
À tarde conhecemos nossa guia. Maria José. Uma bela mulher de 40
anos que fala pelos cotovelos.

ROMA – 05 DE JUNHO

Acordamos às 05,30 da manhã par irmos à NÁPOLES, POMPÉIA,


CÁPRI.
Pompéia é impressionante. Mas é muito cansativo. Nápoles não nos
atraiu em nada. Trânsito caótico, cidade feia, imunda.

CAPRI é o paraíso num rochedo sobre o mar. Eu não podia imaginar


que existisse um oceano com águas tão azuis. As lojas que vendem
corais extraídos de suas águas levam as mulheres ao
delírio.Voltamos à Roma por volta das 10 de noite. Mortos de
cansaço.
ROMA – 06 DE JUNHO

De pé às 6 da manhã para irmos à ASSIS e FLORENÇA. O melhor de


Assis foi o delicioso fetuccini aos 4 queijos e o filé à primavera que
eu e Tânia comemos no RESTAURANTE DA CECCO.
O pequenino restaurante na praça SÃO FRANCISCO DE ASSIS produz
seu próprio vinho.
Bebi uma botiglia de um tinto levemente suave chamado UVA & UVA.

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Bebi gemendo de prazer cada gole.
A paisagem das estradas italianas é lindíssima. Chegamos à Florença
às 16 horas com tempo nublado.
Aliás; coisa curiosa: enquanto estamos na estrada, chove sem parar.
Chegando ao destino, a chuva pára.

FLORENÇA – 06 DE JUNHO DE 97

Ficamos desorientados em Florença.


Há muita alegria e excitação no ar, comercio intenso, lojas
maravilhosas.
Nossa guia Maria José nos apresenta a guia italiana que vai nos levar
ao museu; ela também se chama MARIA JOSÉ.

Baixinha, 55 anos presumíveis, cabelos pintados de vinho, roupas


simples muito desalinhadas, mochila surrada nas costas, um alto
falante quadrado parecendo um rádio de pilha pendurado no
pescoço.

De microfone, ela nos explicava em espanhol as obras de


MICHELÂNGELO.
Maria José é um show ela própria, porque ao dizer o texto, ela o faz
de maneira teatral.
Ela compõe uma figura tão agradável de se ver e ouvir que poderia,
sem exagero, figurar num comercial ou mesmo num filme de longa
metragem.
Batemos perna pelo centro de Florença em volta da praça do
DUOMO.

FLORENÇA – SÁBADO – 07 DE JUNHO

Sacanagem! De pé às 7 da manhã!
Dá pena sair deste apartamento lindíssimo, luxuoso, duplex, enorme.

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Na fila do museu que dá volta no quarteirão. Vamos conhecer a obra
e a vida de MICHELÂNGELO. Fico de queixo caído, babando mesmo
diante do DAVI e da PIETÁ.
Na CAPELA MONUMENTAL ficam as tumbas da família MÉDICI que
incentivou e financiou as artes em Florença através de
MICHELÂNGELO, pintores, escultores, poetas, escritores, como
DANTE ALIGHIÉRI, LEONARDO DA VINCI, GALILEO GALILEI.
Quando a história deixa margem a mais de uma interpretação de
uma obra ou feito histórico, é instigante.
Por exemplo; DAVI, a escultura mais célebre de MICHELÂNGELO que
esculpiu até poucos meses antes de sua morte aos 89 anos, na bíblia
não está nu.
E a pergunta mais intrigante sobre a intenção do artista é: esta
posição de Davi é antes ou depois de matar o gigante Golias?
A mão direita da estátua é levemente maior que a esquerda, por
que?

A guia fez uma afirmação que me deixou muito desconcertado. A


autenticidade da PIETÁ.
Há correntes do pensamento artístico duvidando que seja sua a
escultura por causa de uma série de incoerências na obra: o corpo,
ou melhor; o tronco de Cristo é enorme em relação ao resto do
corpo.
O braço direito é duas vezes mais grosso que o esquerdo.
As pernas são curtas e finas para suportar tronco tão grande.
A cabeça inexistente sugere estar caída par trás envolta nas roupas
de um homem que o ampara.

O corpo de Cristo que conhecemos depois que é despregado da cruz


está apenas no colo de sua mãe. Por causa destes detalhes tão
significativos é que se atribui a PIETÁ à alunos de Michelangelo. A
guia reforça a suspeita dizendo que com sua força física no auge de
seu explendor, o mestre era perfeito demais para cometer erros tão
primários.

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Para me deixar mais desorientado ainda, ela complementa:
Michelângelo pode ter feito a obra assim para que os admiradores
pudessem dar asas à imaginação e a compreendessem segundo a
própria inspiração de quem vê.
Davi expressaria essa vontade de seu criador ao fazer a mão direita
e a cabeça grandes demais para sugerir que a força poderia ser
aliada da inteligência, uma vez que o próprio Michelangelo era um
homem fortíssimo.

Maravilhados voltamos à praça Del Duomo para ver toda a excitação


das pessoas se movendo em todas as direções.
À uma da tarde o comércio fecha suas portas. Às 14 horas já
estávamos à postos em frente à catedral para irmos até PÁDUA onde
chegamos às 16 horas. Parada de 40 minutos na estrada de novo.
Agora em direção à VENEZA.

VENEZA – 07 DE JUNHO DE 97

Chegamos no inicio da noite. Às 21 horas estávamos dentro de um


barco pra irmos à Veneza das gôndolas, da praça de São Marcos.
Descobrimos maravilhados uma Veneza que não sabíamos que
existia.
Uma Veneza de terra, prédios novos. Casas lindas, fazendas
modernas.

Pelo sistema de alto falantes do barco, Tânia ouviu a guia explicar


dentre outras coisas que a famosa PONTE DO SUSPIRO era assim
chamada porque os escravos que aqui chegavam, ao passar por
debaixo da ponte, suspiravam por ser esta a ultima vez que veriam o
mar, que em torno de Veneza é muito raso, chegando a ter 40
centímetros de profundidade provocando efeito surpreendente; um
pescador com água pelos joelhos em plena imensidão do mar.
A navegação aqui só pode ser feita por Venezianos que conhecem o
contorno geográfico marinho.
Esta é a razão de tantos mastros de madeira fincados na água.

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São padronizados de tal maneira que o mais leigo navegador só
encalha sua embarcação se for cego ou burro.
Dois mastros amarrados significa que naquela área só podem
navegar barcos pequenos.
Três mastros indicam que barcos maiores podem transitar
livremente.
Vistos ao longe, as centenas, talvez milhares de mastros dão a
impressão de obstáculos contra a invasão de barcos inimigos.
De volta ao hotel, dormimos às duas da manhã.

VENEZA – DOMINGO – 08 DE JUNHO – 97

São 10 horas da manhã. A voz grave e monocórdia da guia


veneziana fica mais incompreensível ainda no péssimo sistema de
som do barco.
Tânia finalmente vai conhecer a ilha de MURANO e seus cristais
famosos.
Ela fala disso sem parar na viagem.
Vimos uma demonstração espetacular de um mestre artesão
esculpindo um cavalo a partir de uma bola incandescente do
tamanho de uma laranja.
Com uma ferramenta parecendo alicate de bico na mão direita, ele
fazia movimentos rápidos, precisos, curtos, enquanto com a outra
mão, rodava sem paraR um cano de 1,80 de comprimento, onde
assoprava de vez em quando fazendo a figura inflar como uma bola
de chicletes.
Em menos de 1 minuto estava pronto o cavalinho em posição de
marcha.
Sensacional. Nosso grupo de 40 pessoas aproximadamente junto
com outros grupos aplaudiu a proeza.
Este tipo de artesanato está em extinção devido ao desinteresse dos
filhos dos artesãos e da concorrência de mais de 300 fábricas
mecanizadas contra pouco mais de 10 artesãos.

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Apesar da industrialização e da tecnologia, os cristais feitos à mão
são bem superiores aos industriais.
Da oficina de demonstração passamos ao stand de vendas. Loucura
total.
Todos aqueles turistas que estavam em posição quase de contrição
em silêncio acompanhando o a moldagem do cavalinho agora se
acotovelavam, gritavam, riam, exclamavam, pulavam de um balcão
para outro.

Um vendedor muito divertido dizendo ser filho único de mãe


neurótica e esposa dominadora fazia Tânia soltar gargalhadas
ribombantes. Passei uma vergonha danada ao me apaixonar por um
cálice de licor, modelo realeza do ano de 1.500.
Perguntei quanto custava a dúzia.
Giovani meio sem jeito, escolhendo as palavras me explicou que
aquele cálice só podia ser comprado sob encomenda e seu preço
unitário era de US$ 580,00 CADA cálice.
Que vergonha, meu Deus!
Mas me apaixonei por uma licoreira com seis tacinhas que adquiri
por 354 dólares. Passado o vendaval do stand de vendas saímos em
direção à praça de São Marcos.

Maria José, nossa guia espanhola, nos indicou um restaurante


chamado DO FORNI. Lá, fomos maravilhosamente bem atendidos
pelo maitre que sugeriu FRITADA DE PESCADO e LINGUINI
PRIMAVERA.
Comemos gemendo de prazer.
O vinho era de dar vertigem de tão gostoso.
Nem achamos tão caro; 90 dólares para os dois.
Saímos felizes a bater pernas pelos becos de Veneza. Numa ótica,
Tânia praticava seu “hispaliano” quando a vendedora respondeu em
português. Perguntei a ela o preço de um Carrera lindo. Ela
respondeu: “já, já, meu filho, deixa esses fedidos saírem daqui
primeiro!”

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Ela disse a frase com cara de nojo, se referindo a três indianos que
também perguntavam preços.
Claudete é uma curitibana de modos e aparência ásperos mas muito
divertida bem como seu marido veneziano muito simpático.

O casal nos deu um belo desconto na compra de dois pares de


óculos. O meu era 100, baixou pra 84 dólares, o da Tânia baixou de
130 para 107. Foi um encontro bastante agradável.
Claudete é uma pessoa elétrica em contraste com o marido, 60 anos,
cara boa, óculos de grau de lentes redondas, mas parecendo um
padre pela bondade de seu sorriso e pelos modos afáveis.
Brincamos bastante, rimos muito,conversamos outro tanto.
Na hora de ir embora, Claudete pegou nossos óculos e disse que iria
colocá-los numa...parou de repente, dizendo que não deveria
pronunciar o nome da bolsa que em italiano sugeria um palavrão.
O marido dela, sem nenhuma cerimônia, disse que ela colocaria os
óculos numa bôrsetta mas recomendou à Tânia que não
pronunciasse “bu” para não incorrer no palavrão.
Novas gargalhadas.

Veneza estava intransitável de tanta gente.


Depois de muito andar, fomos para o enorme pátio em frente à
igreja de São Marcos desfrutar o som de vários grupos de músicos
que se apresentavam em cima de mini-palcos na frente de cada
restaurante.

VENEZA – VERONA – 09 DE JUNHO – 97

Na estrada em direção à Verona.


O ritmo lento do ônibus é quase insuportável.
Todos os passageiros demonstram cansaço. Maria José que fala
pelos cotovelos está com a voz mais baixa, só fala o necessário.
Coloca a música SINFONIA VENEZIANA que de tão chata acaba
relaxando.

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Com poucos minutos de marcha, as cabeças começam a tombar para
os lados.
Um frio percorre minha espinha; será que Antonio, nosso motorista
não se cansa?

Estamos acordando todos os dias às 6 da manhã, tomamos café


correndo, levando bagagem correndo para o bagageiro, corremos
para pegar os melhores lugares, descemos correndo para fotografar
ou visitar locais de atração turística, voltamos correndo para o
ônibus, sobe, desce, sobe, desce, sobe, desce, saco, SACO, mil
vezes!
Os velhos espanhóis que são maioria no nosso grupo são grosseiros
e antipáticos.
Fedem. Fedem por falta de banho!
Chegamos à Verona, vemos algumas ruínas, a estátua de Julieta em
metal opaco que brilha em dois pontos; braço e seio direitos.
No seio, as mulheres pegam para invocar fertilidade, no braço os
homens pegam para invocar paciência para agüentar as mulheres.
Na estrada de novo. Para Milão. A catedral é uma obra gótica
lindíssima.
Tenho sempre a tendência de achar que o homem está involuindo
porque a inteligência que concebe e realiza uma igreja como essa ou
a de Florença não existe mais hoje em dia.
Babando de êxtase nós caminhávamos defronte à igreja fazendo
comentários em voz alta quando uma voz ao nosso lado comentou
que aqui só faltam as praias brasileiras.

Era um nordestino de Maceió em viagem de férias com passagem de


volta para HAMBURGO na Alemanha onde reside há seis anos.
Pessoa cativante, dono de forte personalidade, 36 anos, viúvo de
uma alemã que morreu num acidente de carro.
Nos convidou para um copo de cerveja. Aceitamos com prazer. Na
mesa da galeria, a lindíssima estação ferroviária, nossa conversa
seguia animada quando um japonês de pasta 007 na mão se
aproximou dizendo que era paulista.

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Se sentiu atraído pelo bate papo animado em português. Ele
almoçava numa mesa ao lado.
Curiosidade: seu nome é SEICHI, mas é conhecido por SEIXAS. Mais
brasileiro impossível.
Nasceu no Japão, trinta e poucos anos, dois filhos brasileiros:
Marcelo e Nina. Ele nos diverte com observações sobre cenas da vida
diária como trabalho, família, emprego.
Trocamos endereços e nos despedimos.

Às 8 da noite, conforme Maria José havia recomendado que


fossemos pontuais, estávamos todos juntos, 12 pessoas mais ou
menos num local determinado por ela.
Ali ela nos apanharia na volta do LAGO DE COMO onde foi com o
resto dos velhos espanhóis visitar.
O ônibus só chegou quando faltavam 7 minutos para as 9 horas.
Estavamos bastante preocupados com a demora, sem saber o que
fazer, mas ninguém estava revoltado.
Com grande alivio, apanhamos nossas bolsas para embarcar.

Olhando o veículo se aproximar lentamente para encostar, vi Maria


José de pé na escada, o rosto sério, quase colado no pára brisas do
ônibus. Quando a porta se abriu, ela desceu muito constrangida,
pedindo desculpas com as mãos postas diante do rosto, em atitude
de contrição explicando que o tráfego estava muito difícil.
Um dos espanhóis não a deixou continuar a explicação, cortando a
palavra dela, e dando um espôrro monumental, e entrou no ônibus.
Maria José, tentou continuar a justificativa, mas não conseguiu
porque começou a chorar.
De nada valeram nossos gestos acariciando-a; chorava
copiosamente. Meu asco por esse nojento e por todo o grupo fedido
de velhos aumentou insuportavelmente.

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MILÃO – 10 DE JUNHO DE 97 – TERÇA FEIRA

O café da manhã em Milão foi ótimo. Às 11,30 o ônibus nos levou ao


aeroporto para viajarmos a Madrid. Ufa! Estou livre destes 58
espanhóis estúpidos.
No aeroporto, Maria José mostra cansaço, frustração.
Parece gostar de conversar com Tânia, dando dicas incríveis,
principalmente sobre restaurantes. No free shop compramos um
perfume francês em lançamento, e uma linda caixa de bombons
LINDT. Agradeceu o presente dizendo à Tânia que queria me dar um
beijo para demonstrar que elas eram leais uma à outra.
Mesmo assim achei que ela continuava de teto baixo. Falou com
carinho da irmã mais nova que adora Gal Costa. Vou mandar alguns
cds de músicas brasileiras pra ela. Ela seguiria em outro vôo com os
velhos nojentos fedidos. Demos os últimos beijos nela,
recomendando que quando fosse ao Rio, nos procurasse para
comermos um churrasco. Poucos dias de convivência foram
suficientes pra gente se apaixonar por essa espanhola de lábios
grossos, pele branquinha, olhos muito escuros, gestual estabanado e
muito divertida.

Voamos de Milão à Madrid em pouco mais de uma hora e quarenta


minutos. Retiramos as bagagens, Tânia feliz da vida, levando nas
mãos minha licoreira com as 6 tacinhas, ouvindo de mim a cada 5
minutos que tivesse muito cuidado com aquilo.

Na saída do terminal, lá estava meu nome numa placa de papelão


nas mãos do sr. Antonio, um português muito agradável que vive há
anos em Madrid.
Entramos no hotel para deixar nossa bagagem no hotel e fomos
voando para a BAR LABRA comer bolinhos de bacalhau com caña,
um chope saborosíssimo.
O BAR LABRA fundado em 1.820 é freqüentado por Madrid
inteira.Quando o comércio fecha suas portas às 13 horas, para abrir

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às 17, todos os empregados vêm superlotar as pequenas
dependências do bar.
Todo mundo tem um copinho de chope nas mãos, e um pratinho
com bolinhos fumegantes.
É impossível a movimentação, todo mundo se espreme. O vozerio é
alto. Ninguém se entende. Desisto de conversar porque Tânia esta
inebriada com a zona reinante.
O chão é coberto de papéis, guardanapos, maços vazios de cigarros,
pontas de cigarro, palitos, restos de bolinho, restos de pão.
Cada guardanapo que vai para o chão leva um pedacinho de
bacalhau grudado, que por sua vez cola na sola do sapato, ou do
tênis.

Na rua ficamos raspando os pés no chão tentando retirar a sujeira


grudada.
O corredor que leva ao banheiro é tão apertado que duas pessoas
em sentido contrário não conseguem se cruzar. É preciso que os dois
colem as costas na parede e andem de lado, mesmo assim roçando
as barrigas.

Exageradamente felizes caímos de cabeça no CORTE INGLÈS. Na


seção de jóias fiquei maravilhado com o preço do ouro.
Comprei um par de brincos de ouro 18 k com lápis lazúli que é a cara
da tia Nana por 85 dólares e outro de coral, uma pulseira de ouro
para Bruninha que também vai ganhar um par de brincos de coral da
cor da pele.
Tânia fica tão alucinada dentro do Corte Inglês que não sabe para
onde olhar.
Acha tudo lindo.
É tão desenvolta ao se comunicar com os vendedores que parece
intima deles há anos.

Só não consigo fazê-la entender que a letra J não tem som de R. É


uma tentativa de evitar que ela fale REBARRAS (Rebajas) que
significa a coisa que ela mais adora: LIQUIDAÇÃO.

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Ela já aprendeu que quando quer ver alguma mercadoria que está
em lugar alto nas prateleiras, o vendedor diz que vai BAJAR o
produto pra ela ver. Mas ela é fodona em espanhol.
Transforma uma frase simples como: “JUEGO DE LIMPIA PLATOS
(jogo de pano de pratos) na bombástica frase: “PER FAVOR, USTÊ
PUEDE BARRRAR ESTÊ ROGUITO DE PANOS DE PRATO QUE SON
MUINTCHO BONITOS?”
Atento, sempre por perto, vou rápido em socorro do vendedor e
traduzo pra ele o que ela quer.

Quando uma peça de roupa parece apertada, não se faz de rogada:


“USTÊ TIENESSSS UM PÔCO MAIÔR DO QUE ÊSTA?”
Checheca, alheia a tudo, sái de gôndola, entra em gôndola, sai de
seção, entra em seção, vai ao primeiro andar, volta pro terceiro.
Irritada, aborda um vendedor querendo saber “DONDE PUÊDE
COMPRAR MALAS PARA VIAJÊ”.

Antes de ir ao terceiro andar, se encanta por um montão de


correntinhas douradas no segundo andar, ficando ali por 50 minutos.
A vendedora se sente atraída pelo festival de interjeições que ouve
de uma maluca de boca aberta idolatrando as bugigangas.
Ao se aproximar, Tânia despeja feliz em seus ouvidos: NO
BRACILLLLL, ESTAS BIJUTERIAS SON MUNTCHO MÁS CÁRAS QUE
AQUI E NON SON TON BONITAS!”

A vendedora arregala os olhos, franze a testa, abrindo um sorriso de


mármore pra parecer simpática, mas não entendeu bulhufas do que
ouviu.

Fico a uma distância segura, monitorando as caras das vitimas de


seu espanhol, ressaltado pela língua de cobra que ela mostra pra
falar qualquer vocábulo.

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MADRID - 11 DE JUNHO DE 97

Acordamos felizes. Bem descansados. Tínhamos pensado em ir ao


museu do Prado mas fomos pra rua bater perna e também porque
Tânia quer comprar artigos de couro pra dar de presente.
Fomos à LA ESCOSURA, onde compramos pela primeira vez em
1.984
Lá estava a casa do mesmo jeito parecendo ter artigos ainda mais
bonitos. Pedi a um dos donos que nos indicasse um bom lugar pra
gente comer uma paella. Nos deu um cartão do LA BARRACA.
Fomos a pé. Era perto.

Ao chegarmos o lugar parecia abandonado. Esperamos quase 5


minutos. Quando eu já pensava em ir embora, apareceu um garçon
perguntando se havíamos feito reserva. Respondi que não, me
desculpando.
Nos acomodou numa mesa posta com classe, com 4 taças de cristal.
Chegou a entrada: Lomo de anchova com tomate natural e
CARABINEROS PLANCHADOS.

Tânia devorou a anchova com purê de tomate, eu devorei os 4


“carabineros”, 4 enormes camarões.
Veio a paella, cheirosa, inesquecível, colorida, saborosíssima.
Essa sofisticação toda custou pra nós dois pouco mais de 50 dólares.
Tânia comeu tanto que parecia estar dormindo sentada.

Obriguei ela a andar por quase uma hora pra espantar a moleza e
fazer digestão.
Voltamos ao hotel para dormir um pouco já que o comércio fecha às
13 horas para reabrir às 17.
Acordamos às 18. Para onde fomos? AO CORTE
INGLÈÈÈÈÈÈÈSSSSS!!!!!
De novo, sobe, desce, sobe, desce, pergunta. “USTÊ TIENES ESSA
BOLSA NA CÔR NÊRO??”

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Ela aprendeu a falar preto em italiano, agora está impossível, é
“nêra” ou “nero” pra tudo que é cor escura dos artigos que ela
deseja.

Por fim, com as graças do Onipotente, na fila do caixa para pagar e


ir embora. Ficamos atrás de uma senhora argentina qeu se
interessou por Tânia.
Batem um papo animadíssimo.
Em minutos as duas estão às gargalhadas. A velha paga e vai
embora. Tânia conta que ela é puta da vida com Carlos Menem
porque ele vive rodeado de putas que ajudam ele a roubar o povo.
Um homem que estava atrás de nós na fila, ouve a conversa e faz
uma defesa apaixonada de Menem.
É argentino também. Acabou sendo uma conversa divertida.

MADRID – QUARTA FEIRA – 12 DE JUNHO

08 e 15 da manhã. Na estrada em direção à Córdoba. A paisagem


lindíssima que temos visto pelo interior da Itália, agora é monótona,
ressecada, feia. Andamos 5 horas em silêncio, já que o guia deste
roteiro de ANDALUCIA não fala.
Quando fala, ninguém entende. Somos um casal de brasileiros e
umas poucas velhas espanholas.
Elas reclamam da dicção dele. Seu nome é JESUS. Sua inexperiência
é visível. Tem cara de quem adora um copo, o mais provável é que
seja chegado a um baseado.
Nossa comunicação é bastante complicada. Eu falo uma mistura de
espanhol, italiano, inglês. Mesmo assim ele não entende, porque
quando fala, responde sobre outro assunto.

CÓRDOBA – 12 DE JUNHO

Chegamos à Córdoba às 13,15. Aspecto calmo de cidade do interior.

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Ruas apertadas. Ruas não, becos. Quando um carro ou moto se
aproximam, temos que colar a bunda na parede pros veículos
passarem. Tânia entra em todas as lojinhas de souvenirs.
Às 14,e lá vai pedrada resolvemos parar para almoçar no restaurante
LOS CALIFAS, um prediozinho triplex bem antigo do século passado.
Fomos recebidos pelo maitre LAHK LAHK, filho de árabes, jovem,
muito atencioso, muito profissional.

Ele sugeriu a comida. A cerveja que o garçon trouxe, tinha cristais de


gelo boiando na superfície, nada mais delicioso nesse calor
insuportável. O liquido desce pela minha garganta saboroso,
refrescante. Pedi outra.
Chega o prato de entrada; pedaços de bacalhau fresco em cima de
rodelas de laranja, salpicado com um molho vermelho estupendo.
A nossa felicidade transborda.
O maitre a curta distância assiste com grande satisfação os
comentários espalianos da Tânia. Um garçon a nosso pedido nos
fotografa. Eu quero que todos acreditem que um dia eu comi
bacalhau com laranja.
Em seguida vem o peixe assado com pedaços de alho. Delicia maior
ainda. Refinadíssimos os pratos. A despesa não chega a 50 dólares.
Lahk Lahk, ao final da refeição, nos mostra orgulhoso todas as
instalações do restaurante.

Dava a impressão de que de alguns daqueles arcos de madeira que


separam os cômodos, nós iríamos dar de cara com zorro e o
Sargento Garcia atrás dele.
Às 17,20 nosso ônibus sob o comando do calado JESUS retoma a
estrada em direção à SEVILHA.
Chegamos às 19,30.
A cidade é barulhenta. As ruas estreitas são divididas por carros e
motos.
Deixamos nossa bagagem no hotel que fica numa pracinha e já
estamos na rua batendo perna.

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Em questão de minutos, entrando e saindo de ruelas, caímos dentro
do,do,do,do? IIIIIIIIIIIIssssssoooooooooooo!!!!! Do El CÓRTE
INGLÊS!!!!!
Parece que tem imã lá dentro e uma enorme ferradura na bunda
dela.
Os vendedores começam a nos botar pra fora, graças a Deus!
Às 21,25 a loja consegue se ver livre de nós para fechar as portas às
21,30.
Comemos uns pedaços de bacalhau antes de voltar ao hotel.
Deitamos mais mortos do que vivos.

SEVILHA – SEXTA FEIRA – 13 DE JUNHO DE


97

O café do HOTEL DON PACO é bom. Às 10 da manhã nosso ônibus


nos leva para um giro pela cidade. Às 11,30 já não suportando ver
prédios velhos, ruínas, castelos, igrejas, tumbas, saímos caminhando
a pé pela cidade.
Ao meio dia estávamos dentro do, do, do, do,do,do????? ÈÈÈÈÈLLLL
CÓÒÒÒRTE INGLÉÉÉÉÉÉÉSSSS!!!!!!
Comprei um cd do grupo flamenco chamado RUMBOLERO.
Tânia agora compra 17 “batoiinzinhos”, uns 14
“eshshmaltezinhoshshsh”
20 “paresinhoshshsh” de meias, mais um monte de penduricalhos e
bugigangas pra colocar na cabeça, na axila, no pulso, no dedo, no
calcanhar.
No almoço comemos bacalhau com merluza. A anchova daqui é
longa e deliciosa.
Mais ou menos às 22,15 saimos para o PALÁCIO DEL FLAMENCO.

Tudo relacionado a este guia chamado Jesus é mais ou menos.

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Ele nunca sabe nada. Tânia perguntou a ele se nosso vôo de Madrid
para Roma está confirmado, tudo o que ele respondeu foi um
emaranhado de grunhidos que nós não conseguimos entender.
Nosso grupo é composto or 12 argentinos, 2 colombianos e nós.
Nem os argentinos entendem o que ele fala. Acabou sés tornando
alvo de zombarias do grupo. Ao final do show de flamenco ele disse
que poderíamos ir à pé para o hotel, se quiséssemos, pois era muito
perto.
Já estávamos caminhando há 20 minutos quando Tânia perguntou
pelo guia. Paramos todos. Cadê o guia? Cadê Jesus? Reiniciamos
nossa caminhada e eis que Jesus se materializa, correndo feito louco
para nos levar pelo caminho certo. Idiota.
Showzinho bem bunda, pra turista ver. Não chega ao pés dos
flamencos de Madrid.
Dormimos feito pedra.

SEVILHA – 14 DE JUNHO DE 97

Às 09,30, nosso ônibus saiu em direção à Granada. Chegamos às


12,35. Descemos no centro da cidade para almoçar, fazer câmbio,
fazer pipi,etc.
Granada é uma paixão de tão bonita.
Se eu já sou apaixonado pela música...
Comi num restaurante simpático localizado numa pracinha linda. De
entrada, coquetel de camarões, prato principal RABO DE TORO À
ROMANA.
A nossa popular rabada, apenas um pouco mais sofisticada. Pelo
tamanho do osso que sobrou no meu prato, deduzi que o touro era
enorme.
Às 17,30, saímos a pé com o guia do hotel PACO, excelente
profisional, inteligente, muito divertido.
Fomos ao castelo de LA ALHAMBRA.
Maravilha das maravilhas. Os jardins são impressionantes.

GRANADA – DOMINGO – 15 DE JUNHO DE 97

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Às 09,25 partimos em direção à Madrid. Manhã linda. Céu azul, sol
dourado. Às margens da rodovia, numa paisagem monótona,
plantações intermináveis de oliveiras. Na primeira parada para pipi,
ficamos 25 minutos. Na segunda parada mais de uma hora para
almoçar.
Comemos merluza frita que não tinha gosto de nada. E macarrão
nadando em molho de tomate com judia (vagem) verde. Tudo sem
graça.
Às 16,30 chegamos à Madrid, que estava banhada por um sol
dourado, céu muito azul sem nuvens. Uma gripezinha deixou Tânia
meio caidinha. Este final de viagem promete.
Alegando dor de cabeça, muito sono, indisposição, ela quis dormir.
Eu fui pra rua, caminhar pelas redondezas. À tarde arrumamos
bagagem para irmos ao aeroporto de BARAJAS embarcar para Roma
e de lá em conexão para o Brasil pela ALITÁLIA que espero nunca
mais voar.
Aliás, classe econômica de companhia nenhuma, se Deus quiser.

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QUARTA VIAGEM À EUROPA

31 DE AGOSTO DE 1.998

Às 18,40 saimos de casa no meu carro dirigido pela Rachel para


embarcarmos às 21 horas pra São Paulo, e de lá pra Madrid (escala)
depois Barcelona.
Desta vez compramos na AEROLINEAS ARGENTINAS bilhetes para
classe executiva que é muito boa.
Consegui convencer Tânia a gastar mais um pouco pra ficarmos
livres do suplicio da superlotação, poltronas apertadas, pessoas
barulhentas, filas nas portas dos banheiros.
E ademais, ser recebido na executiva com uma taça de champagne
gelado é qualquer coisa de reconfortante.
O nosso vôo de número 854 da Varig para SP também foi pela classe
executiva.
Razoavelmente confortável.
Faltavam poucos minutos para pousarmos quando uma voz bastante
agradável, fugindo da maneira monocórdia dos comunicados de
bordo, passou a fazer comentários descontraídos sobre as condições
do tempo em São Paulo, e outras informações relevantes.

Imediatamente me lembrei de um vôo de São Paulo para o Rio,


voltando de uma temporada no navio FUNCHAL com Tânia e os
meninos.
Nunca vou esquecer o que ouvimos aquele dia, do comandante,
enquanto avião taxiava em direção à cabeceira da pista.: - “senhoras
e senhores passageiros, quando vocês estavam vindo ao aeroporto
para embarcar nesse vôo conosco, devem ter percebido umas
nuvens escuras.

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Quando a aeronave atravessa nuvens como essas, sofre uma ligeira
turbulência, nada que preocupe.
Embora a turbulência seja uma coisa que sempre incomoda um
pouco.
Fiquem relaxados, aproveitem bem esse vôo, façam uma boa
viagem, e não se preocupem, porque essa aeronave é muito segura.
Tenham todos uma boa viagem!”

O boeing 737-400 correu pela pista, empinou o bico em direção às


nuvens e tremeu só um pouquinho.
A maioria dos passageiros é leiga.
Naturalmente fica esperando que o avião pule feito cabrito.

Nossos pensamentos foram interrompidos pela voz agradável de


novo: “sentiram alguma coisa? Viram como não doeu nada?”
Gargalhadas dos passageiros.
A voz continuou: -“ bem meus amigos, nosso tempo de vôo ate o Rio
será de 40 minutos, a temperatura na cidade é de tantos graus, mas
é bom que vocês saibam que o tempo está bastante encoberto no
Rio. E vocês sabem meus amigos que quando o temporal cai no Rio,
o bicho pega.”
Mais gargalhadas.

De novo surge a voz: “se o aguaceiro cair, só de barco a gente


consegue ir pra casa.”
Mais gargalhadas, aplausos, risos, assovios, vozes animadas.
O avião fez um pouso perfeito tocando suavemente na pista. Todos
os passageiros sem exceção aplaudiram e gritaram ressaltando a
elegância do pouso e os modos agradáveis do comandante.
Ao nos dirigirmos à saída, eu estava fascinado pela possibilidade de
cumprimentar o autor da façanha.
Era um homem de estatura média, forte, pele bem avermelhada,
cabelos grisalhos, 58 anos, não mais do que isso.
Segurava o quepe debaixo do braço, ao lado das comissárias na
porta do avião.

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Eu o cumprimentei efusivamente, dando-lhe parabéns pelo bom
humor e criatividade.
Agradeceu de forma bastante simpática, me disse o nome, e eu,
claro, esqueci de anotar.

Agora, indo pra São Paulo, ouvindo de novo essa comunicação não
tive dúvidas, era o próprio.
O sistema de som deste MD-11 estava fraco.
Com o barulho das turbinas, perdia-se muito do que o comandante
falava.
Pousamos em São Paulo.
A aeronave taxiando bem devagar com rotação baixa das turbinas
permitia se entender tudo o que ele dizia.

Sempre coisas agradáveis, desejando boa viagem aos que seguiam


pra outros destinos e aos que ficavam em São Paulo.
Subitamente o avião para.
Esperamos. Esperamos.De novo a voz... estou esquecendo de
descrever o melhor momento dos comentários dele; quando tocamos
a pista e a corrida terminou, o comandante disse: “bem meus
amigos, depois do carinho com que as rodas do nosso avião tocaram
o planeta, só nos resta desejar a todos uma boa viagem. Pra nós foi
um prazer tê-los à bordo.”

Então, continuando, estávamos parados há uns 4 minutos quando a


voz soou: -“Senhoras e senhores passageiros, nós estamos aqui
parados, aguardando ordem de parqueamento.
Todas as sanfonas estão ocupadas. Nos informaram que dentro de
no máximo 10 minutos iremos desembarcá-los. O aeroporto de
Guarulhos já está pequeno pra tanto movimento.
Por favor, aguardem só mais alguns minutos e já já, os senhores
serão desembarcados.”
Silêncio.
Pelas janelas do MD-11, víamos a movimentação nas pistas.

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Os minutos correm lentamente pra quem tem ânsia de viajar, de
perambular pelos corredores, lanchonetes, e no nosso caso, pelas
lojas e artigos do free-shopping que vasculharemos antes de
embarcarmos pra Europa.
A voz retorna: - “senhores passageiros, acabamos de receber ordem
de parqueamento numa zona remota, o que significa que os
senhores terão que desembarcar e entrar naquele ônibus pra chegar
ao terminal.
É um absurdo isso.
Não podemos fazer nada. Mas é um absurdo. Peço perdão a vocês, e
mais uma vez, obrigado por voarem conosco, e uma boa viagem.
Esperamos vê-los em breve, e tomara que seja bem breve.!”
Não podia haver dúvida – conjeturávamos eu e carrôia enquanto nos
dirigíamos à porta de saída – era coincidência demais aquela maneira
de falar tão semelhante à do comandante do 737-400 da volta do
Funchal.
Quando chegamos à porta, lá estava ele.
O nosso comandante. Aquela expressão agradável no rosto.
Não estava junto com a tripulação na porta como da outra vez.
Conversava em pé com alguém na entrada da cabine de comando.
Fomos até ele.
Apertamos sua mão, dando-lhe de novo parabéns. Perguntei seu
nome. JOSÉ SABATINO. Vou escrever pra VARIG comentando sua
simpática e humana comunicação.
No aeroporto de Guarulhos, uma imensidão de alas, alamedas,
corredores, e divisórias de vidro, fomos orientados a aguardar junto
a um aglomerado de pessoas sentadas.
Era um grupo de jovens falando espanhol. 40 ou 50 pessoas.
Parecia que todos eram amigos, ou se conheciam. Sempre que
viajamos, Tânia consegue transmitir comportamento tão blasée, um
descompromisso tão evidente, que qualquer pessoa percebe que ela
está começando a curtir deliciosas férias.
Sugiro que ela vá ao free shopping.
Ela, docemente constrangida de me deixar ali sentadinho,
desaparece pelos corredores, mal escondendo a excitação.

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Procuro nos monitores suspensos no teto o nosso vôo de aerolineas.
Ainda é cedo- pensei.
O tempo passa rápido. A funcionária que nos mandou aguardar ali
não aparece.

Tânia volta, dizendo com falsa contrariedade que o free-shopping


está “micadissimo!
Resolvi conferir. O vôo não aparecia na tela, logo – deduzi – temos
tempo de sobra.
Dentro de um free-shopping, não fale com Tânia. Ela fica catatônica.
Cada pergunta que faço a ela é respondida com gemidos de
desinteresse.
Parem o mundo porque ela está atracada com um monte de merda
de 4 dólares cada.
A cestinha que ela traz pendurada no braço está cheia de coisinhas e
ela de felicidade.
Num raro momento de lucidez, ela assume um ar estudadamente
preocupado e me apressa, dizendo que já devem estar chamando
nosso vôo. Quando ela entrega ao caixa as mercadorias, o
passaporte, e a passagem, ele examina detidamente a passagem e
fulmina: “esse vôo já está saindo!”
Tânia fica pálida. Meu estômago congela. Minha pele imediatamente
fica úmida de suor.
Saímos em disparada procurando a funcionária da infraero que nos
mandou aguardar.
Tânia está à beira de um descontrole nervoso querendo chorar. Eu
me amaldiçoava por ter sido tão crédulo.
Aquelas pessoas falando espanhol ali no saguão quando chegamos
me deram a falsa idéia de que embarcariam comigo pra Madrid, por
isso não me preocupei em fazer o check-in logo.
Em desespero nos sentíamos perdidos dentro de intermináveis
corredores e galerias. Sobe escada, desce escada, sobe rampa,
desce rampa, pede informação, ninguém informa porra nenhuma, o
desespero aumentando, Tânia já chorando.
Estávamos completamente desnorteados.

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Até que chegamos ao check-in de Aerolineas. Não havia uma única
pessoa no imenso salão alem da japonezinha sentada no check-
point.
Que angústia ver o salão vazio, absolutamente silencioso. Meu
estômago era uma pedra de gelo. Sensação insuportável de sermos
as pessoas mais erradas do mundo.
Quando colocamos nossas passagens nas mãos dela, perguntei num
fio de voz:”esse vôo já está saindo?”
Ao ler nossos nomes, seu rosto se iluminou num sorriso: “já
chamamos o seus nomes várias vezes. Um colega foi lá na frente
tentar localiza-los.
Não se preocupem. Todo mundo já embarcou, mas o avião não sairá
sem vocês.
Ainda temos um tempinho pra verificar tudo!”

De fato nossa japonezinha simpática foi rápida e nos mandou direto


pro portão de embarque.
Ao chegarmos à porta do avião, percebemos que todos os
passageiros estavam sentados, acomodados. Ao mostrarmos os
cartões de embarque, a aeromoça, ao invés de nos introduzir na
classe executiva, suavemente indicou com mão “ARRIBA!”

Subimos a escada em caracol do jumbo, meio sem acreditar que


aquilo estava acontecendo. Será que era pra subir mesmo?
Meu Deus, o Alfredo, meu amigo diretor de Aerolineas nos deu up-
grade para a primeira classe!

Como num passe de mágica, Tânia abriu os 640 dentes num largo
sorriso se instalando numa confortabilíssima poltrona. Ela estava tão
encantada que até esqueceu o ódio que sentia minutos antes pela
funcionária da infraero que quase fudeu nossa viagem.

Era meio inacreditável olhar aquela pequena platéia de privilegiados,


alguns já deitados nas poltronas transformadas em camas. Taças de
champagne borbulhante circulando na cabine.

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Meu Deus, que presente inesperado e agradável! Quanto espaço,
quanto conforto!
Depois do delicioso jantar deitamos nossas poltronas e dormimos até
o dia amanhecer. Foi uma bela compensação para o stress de
ontem.

MADRID - PRIMEIRO DE SETEMBRO DE 98

Descemos no aeroporto de Barajas às 14,30, hora local.


Nas filas do controle de passaportes, policia federal, que se
movimenta rápido, Tânia entregou o passaporte ao funcionário que
abriu o documento, olhou detidamente a foto, olhou detidamente a
cara dela quase colada no vidro, olhou de novo a foto, voltou a
encará-la de novo, ao vivo agora, por debaixo das sobrancelhas, sem
mexer a cabeça, retornou o olhar pra foto, folheou página por página
do passaporte, carimbou e o devolveu olhando Tânia dentro dos
olhos.

Na minha vez, ele pegou meu passaporte, abriu na página do


carimbo, deu a carimbada e devolveu na hora.
Deve ser porque minha cara inspira confiança. Também pudera,
branco, olhos azuis, expressão simpática e respeitosa...vai conferir o
que?
Desconfiar de que?
Para chegar ao balcão da PUNTE AEREO para Barcelona andamos
por longas, intermináveis esteiras rolantes.
Demorou tanto que me deu a impressão de estarmos atravessando
Madrid de norte a sul..

Embarcamos às 17,30, chegando a Barcelona 50 minutos depois.


Vôo muito agradável, também na classe executiva.
Táxi direto ao hotel TABER na carrér Aragó (em catalão) “calle
Aragon”,catalão e castelhano se alternavam nas placas ao longo da
larga avenida.

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Estávamos na esquina de LA RAMBLA, lugar que adoramos.
“Montcha” (Montserrat) recepcionista simpática de óculos nos
acolheu muito bem.
Bagagens no quarto, fomos pra rua bater perna que é o que se faz
na LA RAMBLA.
Descobrimos logo que estávamos hospedados numa parte menos
movimentada de La Rambla que é muito extensa.
O grande frisson começa na Plaza Cataluña, e vai até o porto,na
Plaza Colón, finalizando na estátua de Cristóvão Colombo. Neste
trecho, que deve ter entre 3 e 4 quilômetros, há a maior
concentração de seres humanos diferentes por centímetro quadrado
do mundo.

Consegue ser mais movimentado e alegre do que o quartier latin em


Paris.
O policiamento é ostensivo transmitindo reconfortante sensação de
segurança.
Temos fome.
Procuro uma JAMONERIA. Acabamos comendo pedaços crocantes de
galinha do Kentucky fried chicken.
De volta ao hotel, batemos na cama e dormimos feito pedra.

BARCELONA – 02 DE SETEMBRO DE 98

Café da manhã, farto, delicioso. Tânia quer ao parque GÜELL e na


PEDRERA, do Gaudi.
Tive muito paciência rodando aqueles labirintos malucos da Pedrera.
Em seguida pegamos o metrô não sem antes perder quase uma hora
diante da máquina automática de venda de bilhetes tentando
decifrá-la.
Finalmente vamos em direção ao Parque GÜELL. Descemos na
estação de VALCARCA.
Quando botei a cabeça pra fora da escada rolante, tive vontade de
me sentar no chão e chorar, chorar sem parar; era uma subida

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íngreme com dezenas, eu disse DEZENAS de escadas rolantes,
TODAS PARADAS.
Estavam aparentemente estragadas.

Acho que pelo aspecto de destruição e sujeira, elas só funcionaram


no dia da inauguração para agradar a GAUDI e o prefeito.
Mas vá lá, vamos conhecer o PARQUE GÜELL. Subi, subi, subi, arfei,
que nem corno pagando promessa em escadaria da Penha. Tirei
fotos pra mostrar a quem duvidar do que estou descrevendo.

Cheguei ao topo.
Então comecei a descer, descer, descer, feito corno que acaba de
pagar promessa na escadaria da Penha. Tânia era só sorrisos, eu era
só um mulambo arfante.
Ela quis fotos, várias fotos. Teve fotos adoidado, claro. Ela adora o
Parque Güell, adora Gaudi, como é que não vai ter fotos?
Pelas chagas de Cristo e pelo doce olhar de Maria mãe de Jesus,
retomamos nossa caminhada, agora de volta ao centro de Barcelona.
Para a amada La Rambla pátria amada salve salve?
Não, ledo engano!
Descemos do ônibus e entramos no EL CORTE INGLÈS, que ela
adora, e não pode viver sem ele.
Compramos um monte de merda e voltamos para o hotel.
Pra dormir. Pra dormir não, pra desmaiar.

BARCELONA – 03 DE SETEMBRO DE 98

Tânia odeia o café apesar da fartura.


Eu não tenho do que reclamar. Na rua, agora entrando e saindo de
todas – todas mesmo – livrarias de Barcelona procurando uma caixa
de lápis de cor pro Pedro. Carand’ache de 120 cores.
Ô Cristo onipresente, olhai cá pra baixo e ajude-nos a achar esses
lápis de cor. Gastei foi sola do meu Reebock procurando o mimo.

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Andei feito corno que continua pagando promessas nas escadarias
da Penha.
Estava tão pregado que já andava dormindo.
E o filho da puta do lápis de cor estava mais difícil do que agulha no
palheiro.
O pior de tudo era ter que ouvir Tânia falando espanhol com as
vendedoras.

Por fim, quase no finalzinho da tarde achamos o mimo ao custo de


151 dólares.
Apesar da tortura, valeu a pena porque no Brasil, essa caixa não
custaria menos de $ 350,00.
Meio bêbado de cansaço, fome e sono, entramos no ônibus numero
24 depois de perguntarmos ao motorista se ele atravessava a
CARRER DE ARAGÓ, que ao longo de suas calçadas, ora é CARRER
ARAGÓ, ora é CALLE ARAGON.
O ônibus atravessou Barcelona inteira, chegou ao ponto final e a
gente não atravessou a calle Aragon.
Fizemos o equivalente a pegar um ônibus em laranjeiras para
Copacabana mas passando pela ilha do governador.

À noite jantamos no restaurante MESON 5 JOTA.


Comi um delicioso filé ao molho de champignon e Tânia comeu
JAMON COM ENSALADA DE LECHUGA E CROQUETES DE JAMON.
Tava tudo bom demais.

BARCELONA – 04 DE SETEMBRO DE 98

Estamos frustrados porque até agora não conseguimos comer uma


paella.
A inesquecível, aquela que a gente fica lembrando de tempos em
tempos, e fazendo “hummmmm”.
O regime foi pro cacete.

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Faz muito calor. As cervejas são deliciosas. Tenho bebido cada uma
melhor do que a outra.

BARCELONA – 05 DE SETEMBRO DE 98

Já passa das 10. O comércio está fechado. O bochicho só começa na


parte da tarde.
Estamos ramblando, a única coisa que gostamos de fazer aqui.
Tânia entra em cada mafuá de dar medo. Ela adora a loja SEPU.
Qualquer loja do Saara dá de dez nessa baixaria chamada SEPU, mas
Tânia adora.
Ela olha gôndola por gôndola.
Às 4 da tarde entramos na PIZZERIA GRILL, que já conhecemos da
outra vez.
Tânia pediu CALAMARCITO ENSEBOLLADO assim mesmo com S.
Eu pedi paella. Maravilhosa.
Acabamos de jantar, fomos pro AQUARIUM.
Uma novidade que não conhecíamos. O lugar é lindo, muito
iluminado, muita animação, música no ar, restaurantes, lojas. Parece
que o mundo inteiro está aqui nesta área da do porto.
No restaurante CHIPIRON comi pedaços de bacalhau frito com chope
delicioso.
Tania come bocaditos de frutos do mar. Há excitação, alegria no ar.
Às 22 horas várias famílias com bebês nos carrinhos passeiam pelo
piso de madeira do cais sobre á água do mar. É fascinante o lugar.

BARCELONA - 06 DE SETEMBRO DE 98

Deixamos nossa mala maior na CONSIGNA do aeroporto pra apanhá-


la quando voltarmos da viagem que a partir de hoje estaremos
fazendo para conhecer NICE, AVIGNON, E MONTPELLIER.

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Embarcamos na estação de PASSEIG DE GRACIA a duas quadras do
nosso hotel.
Deveríamos embarcar às 11,44, aliás.
Na hora prevista para embarcarmos uma voz pelos alto-falantes
chamou os passageiros à sala de informações.
Lá nos informaram que uma avaria impediu que o trem viesse até à
estação.
Seriamos então acomodados em táxis que nos levariam até à
estação de MAÇANET.

5 táxis pegaram as estradas, cada um levando 4 passageiros.


Nós fomos num carro com duas mulheres. Uma delas chamou nossa
atenção; 70 anos, alta, cabelos grisalhos, arrogante e antipática.
Eu já havia percebido a bisca na estação fazendo recomendações em
catalão ao marido que dizia sim a tudo o que vaca dizia.
Ela agora estava sentada ao lado do motorista deste táxi.
Todos os táxis saíram, menos o nosso.

O motorista tinha ido ao guichet da rede ferroviária tratar de algum


assunto.
Calor insuportável.
A velha antipática resmungava sobre a demora do nosso taxista
abanando com impaciência um leque que abria e fechava
nervosamente, mas com graça, lembrando os movimentos das
bailarinas de flamenco.
Quando o motorista sentou-se ao volante levou um espôrro que
humildemente aceitou calado.
Começa a viagem.

A velha, sempre abanando o leque ordena a ele que ligue o ar


condicionado, acrescentando que se recusa a entrar em táxis que
não tenham ar condicionado.
O motorista calado, fechou todos os vidros e ligou o ar.

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Na tentativa de acompanhar os outros 4 táxis que já haviam partido,
o motorista pisou fundo.
Como hoje é domingo, quase não há movimento nas ruas.
A pavimentação é excelente.
O velocímetro marcava 150 km por hora quando a velha estrilou.
Disse que não entendia porque tanta velocidade.
Aí o nosso motorista reagiu firme e educadamente.

Respondeu que era uma velocidade normal para se usar na estrada e


até aumentou um pouco; foi pra 160 kms por hora.
Felizmente eu estava errado.
A velha até se mostrou simpática, muito falante, constituindo uma
agradável companhia ao motorista, já que eu, Tânia, e a passageira
ao meu lado fizemos todo o tajeto no mais absoluto silêncio.
Tudo o que a velha falava eu entendia.

Mas o motorista era uma lástima; quase não articulava ao falar.


A pouca abertura de sua boca revelou ausência de todos os dentes.
E assim, voando baixo, chegamos à estação ferroviária de MAÇANET
50 minutos depois em território francês.
Em plena era moderna, de trens subaquáticos, trem bala
japonês,etc, fomos desembarcados numa pequena plataforma de
cimento junto à linha férrea no meio do mato.
Uma placa pendurada no alto de um telhado da rústica estação
indicava MAÇANET.
15 minutos depois chegou nosso trem.

Fomos para o vagão de primeira classe já que havíamos comprado


no Brasil o eurail-pass.
Que alivio, sair daquele calor sufocante e nos instalarmos no ar
condicionado com poltronas largas e macias.
3 horas depois, desembarcamos em MONTPELLIER.
O NOVOTEL nos esperava.

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A recepção nos surpreendeu pela educação da recepcionista. Sempre
com fogo no rabo, mal deixamos a bagagem no quarto, já
estávamos na rua batendo perna.
Mortos de fome, comemos no abominável MacDonalds e voltamos
para o hotel porque a cidade estava toda fechada por causa do
domingo.
Mas também não nos sentimos atraídos pela cidade.

MONTPELLIER – SEGUNDA FEIRA – 07 DE SETEMBRO DE 98

Café da manhã delicioso, em seguida direto pra estação ferroviária


pra pegar o TGV (Train de Grand Vitesse) o veloz trem francês.
Fizemos uma rápida parada em NIMES com a intenção de percorrer
a pé a cidade para fazer algumas fotos mas o serviço de guarda
bagagem estava fechado, só reabriria às 17,30.
Desistimos, preferindo seguir viagem para AVIGNON às 14,38,
também pelo TGV.
O mesmo trem veloz na Espanha se chama TALGO.

AVIGNON – SEGUNDA FEIRA – 07 DE SETEMBRO

Lá chegando, nos apaixonamos pela cidade. Que beleza de lugar


meu Deus!
Entramos no táxi de um jovem motorista bastante agradável que nos
perguntou de onde éramos. Quando ouviu que éramos brasileiros,
riu gostosamente.

Depois de fazer hora com nossa cara por causa da derrota para a
seleção francesa, perguntou para onde estávamos indo. Quando
ouviu o nome do HOTEL D’EUROPE, fez expressão admirada
arregalando os olhos: “é lá que se hospeda o primeiro ministro
JACQUES CHIRAC!”

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Quem estava espantando agora éramos nós. Ele riu muito ao notar
meu horror. O hotel deveria custar o olho da cara.

Chegando à entrada lindíssima do hotel, pedi a ele que aguardasse


pra nos levar a outro se aquele fosse de todo inviável.
A diária não chegava a 140 dólares, muito barato para o luxo do
ambiente que parecia cenário pra filmes europeus.
Foi o hotel mais bonito e encantador de todas as nossas viagens.
Um perfume suave parecia sair de cada canto do quarto e do
banheiro.
Toda a decoração consistia de quadros e móveis antigos, lustres
monumentais de cristais, sacadas em mármore Carrara.
Tudo muito refinado.
As mesas do restaurante impressionavam pelo bom gosto na
arrumação.

Deixamos nossa bagagem no quarto e fomos bundear.


Uma chuvinha fina caia provocando queda de temperatura.
A visão agora era de cinema europeu mesmo.
Cinza e fria.
Na pequena alameda na entrada do hotel, um gigantesco plátano
que ficava defronte à nossa janela a ponto de das folhas tocarem a
vidraça, cobria toda a área com seus galhos formando uma abóboda,
criando um quatro surreal.
Era lindo demais, lindo, insuportavelmente lindo!
Estávamos excitadíssimos e com muita fome.

Tânia queria entrar em todos os restaurantes que surgiam no


caminho. Mas no seu caminho apareciam...as lojas!
Claro, as lojas!
Papelarias principalmente.
Ela parava pra olhar todas. Entrava e circulava por todas as lojas que
encontrava.
Se apaixonou por uma agenda que fazia ela dar gritinhos.
Mas apareciam as baixarias também.

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Aí era demais para ela! Um ultraje!
Principalmente se aparecia uma liquidação. Imagine se ela não vai
entrar numa liquidação em Avignon?
Entrava e fuçava tudo.
Daí a pouquinho lá estava ela com o cestinho pendurado no braço
feliz da vida com um monte de merdinhas de um dólar.

A chuva aumentou muito, o que nos fez sentar numa cafeteria para
comer um pão redondo com jamom e queijo parmesão que levado
ao forno veio crocante, muito saboroso.
Bebi duas taças da deliciosa cerveja LEFFE. Voltamos ao hotel para
descansar, tomar um bom banho e aguardar o jantar no refeitório,
que marcamos quando chegamos ao hotel.
Às 20,30 estavamos à postos, majestosos, entrando no salão.
Quando 2 ou três garçons se aproximaram, imaginei que seria ótimo
ter sido anunciado por um francês com meias branquinhas longas
até os joelhos, o saiote de babadinhos, os sapatos com enormes
fivelas prateadas no peito do pé, peruca loura caindo em cachos até
os ombros, um enorme cajado que ele bateria no chão três vezes no
assoalho para nos anunciar: “Monsieur Marciô Seixas, dublatéur, e
Madame Tâniá, publicitaire!”

Nos sentamos com pompa e circunstância.


Logo nos serviram duas taças de um delicioso champagne geladinho.
Para beber, pedi depois CHATENEUF DU PAPE.
Para comer; bem, para comer foi o bicho. Não há texto que possa
descrever o sabor do AIGNON ao molho de provence, alcachofra e
uns grãos verdes chamados de FEVETES.
Pelas chagas de Cristo, eu quero comer aquilo de novo!
Era tudo de extremo bom gosto e de sabor inesquecível. O AIGNON
é costela de carneiro ao molho de provence.
Veio em duas baixelas de prata com o domo cobrindo. Vocês sabem,
o que é DOMO não sabem, ignorantes?
É aquela meia bola de prata parecendo cúpula de igreja.

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Trazida por duas lindas serviçais (chamar aquelas “coisas” de
garçonete, é ofender o hotel) as duas enormes baixelas ocuparam
quase toda a nossa mesa. Num movimento sincronizado, as suaves
mucamas destamparam todo aquele aparato.
O movimento dos domos puxados pra cima, trouxe o vapor com os
aromas da comida quente para nossos olfatos.
Conseguimos conter nossos uivos de prazer.
Tânia se divertiu com a cena, dizendo que as duas fariam um
excelente comercial tal a graça com que nos serviram.
Foram gestos lindos, perfeitos, com direito à mão esquerda
posicionada atrás do corpo.
Acredito que a mis-en-cene tem a função mal disfarçada de eliminar
o impacto na apresentação da conta do dia seguinte; 150,00 dólares.
E eu nem comentei o sabor do CHATENEUF DU PAPE, produzido em
Avignon.
Esta foi a segunda vez em minha vida que comi carne de carneiro. A
primeira foi no Cairo, em 1.966 no Hotel Ambassador.
Confesso que não gostei muito.

Mas péra lá, costela de carneiro servida em AVIGNON com o nome


de AIGNON AUX HERBES DE PROVENCE, num hotel onde se hospeda
JACQUES CHIRAC, o banheiro tem sabonete em lâminas finas
parecendo uma pequena carta de baralho, pilhas de toalhas brancas
perfumadas para secar as mãos, tem que ser muito saborosa.
Tem que ser...inesquecível!
O hotel D’EUROPE que fica na Place CRILLON fazendo esquina com
RUE DIMAS, é tão cheiroso, que me senti compensado pela
fedentina do francês que sou obrigado a suportar.
Franceses filhos da puta, fedidos, que peidam dentro de vagão da
primeira classe do T.G.V, como o escroto que veio sentado atrás de
mim antes de chegarmos a AVIGNON.
De manhã, ao acertar as contas na recepção, percebi que o maitre
esqueceu de incluir o vinho no nosso jantar e colocou o Chateneuf
na conta de outro hóspede, segundo comentário do funcionário da

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recepção, que ficou muito agradecido por eu ter lembrado a ele de
incluir o vinho.
Aliás, o maitre debitou o jantar na conta de outro hóspede que ficou
muito puto de ter sido cobrado, ainda segundo o coroa da recepção.
Ele ficou muito agradecido por eu ter esclarecido o engano.
“OH, VERY KIND OF YOU, VERY KIND INDEED, THANK YOU VERY
MUCH!!” debulhava-se em ele em agradecimentos.

NO T.G.V – 08 DE SETEMBRO DE 98 A CAMINHO DE NICE.

Neste trem veloz, indo para NICE mas fazendo uma porrada de
escalas. Embarcamos às 11,02 devendo chegar lá às 14,40.
Fato raro; chegamos pouco depois da 15 horas.
Na estação de NICE, só pra matar a saudade, recebi um par de
coices de uma funcionária do serviço de informação ao turista
porque falei em inglês. Devolvi o par de coices com juros e correção
monetária.
Desde a última viagem, aliás; a última não; só levei coices algumas
vezes, o suficiente pra aprender a devolver as delicadezas.
Um guarda que estava bem perto, se limitou a olhar pra mim,
atraído pelos berros que dei com a filha da puta.

Com a Adrenalina a toda fui pra fila do táxi. Um motorista de pouco


mais de 30 anos, simpaticíssimo nos levou ao centro da cidade, não
sem antes nos matar de susto ao dizer que os hotéis de NICE
estavam superlotados por causa do congresso de medicina sobre
AIDS.

Não foi ele quem quase nos matou de susto, foi a realidade. Na
relação de hoteis fornecida por Berenice, nossa vizinha, os hotéis
estavam lotados. O motorista então, sem que pedíssemos, sacou do
celular ligando para vários hotéis à procura de vagas pra nós.
Depois de sucessivos “pás de chambres?” ele parou em frente ao
PLAZA CONCORDE numa praça maravilhosa pertinho da praia.
Diária salgada; 200 dólares.

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Muito luxuoso, mas talvez por ser grande demais, perde em
originalidade.

À noite, por indicação do recepcionista, um africano muito simpático,


prestativo, comemos paella gigantesca no restaurante BOCACCIO.
Nesta rua larga, que fica atrás do nosso hotel só há restaurantes.
Cada um mais alegre e movimentado do que o outro.
As mesas arrumadas nas calçadas dão um charme que só na Europa
se consegue transmitir.
Apesar do intenso movimento de pessoas indo e vindo, só estávamos
eu e Tânia, e uma família de chineses ou coreanos que havia pedido
a mesma PAELLA AUX FRUITS DE MÉR.

Quando a enorme panela preta aterrissou na nossa mesa, ainda


estalando bolhas de tão quente, os mariscos abertos em cima do
arroz alaranjado de cheiro delicioso, comemos com sofreguidão.
Em questão de minutos o restaurante estava lotado de clientes. As
panelonas pretas chegavam às mesas como se fosse um cortejo.
Os garçons, ao trazer o serviço, o faziam numa grande algazarra.
Todos sem exceção pediram a mesma paella.
E tome de luzes de flashes das máquinas documentando a
extravagância gastronômica.
Ao acabarmos, foi difícil ficar de pé.
Fomos pra praia, praia não; calçadão caminhar pra fazer a digestão.
Por fim nos deitamos às 23,30.

NICE – 09 DE SETEMBRO DE 98 – QUARTA FEIRA.

Quase ia me esquecendo de relatar que ontem entramos num


trenzinho puxado por um trator no calçadão da praia pra dar uma
volta de 40 minutos pelos principais pontos da cidade.
Sentado de frente pra nós, um casal de israelenses.

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Eles vivem no kibutz na fronteira com o Líbano. Ele viaja muito a São
Paulo (adora a Varig) Nova Iorque e outros paises.
A mulher dele falou com muito carinho do filho e da nora que lhe
deram 3 netos de 8, 6 e 1 ano.
Derretida, mostra as fotos.
Tânia observou que o garoto mais velho tem problemas e nosso
novo amigo israelense gordo, alto, tem cara de quem desce do avião
em São Paulo já de pau na mão procurando sacanagem.

O casal ficou entusiasmado quando falei da minha simpatia pelos


militares israelenses que eu via durante minhas patrulhas na
fronteira de Gaza com Israel.
Falei pra eles do desejo momentâneo que o Vitor tinha manifestado
de servir num kibutz.
Ficaram muito excitados, me estendendo os cartões de visitas, se
oferecendo para acolher o meu filho no seu kibutz.
A mulher da qual não me lembrei de perguntar o nome, sugeriu que
visitássemos SAINT PAUL DE VENCE a poucos quilômetros de Nice.
Aguçou nossa curiosidade.

Então, saímos da cama hoje determinados a conhecer SAINT PAUL.


Tomamos o ônibus às 11 horas, e ao meio dia e meia descemos
nesse lugar de indescritível beleza.
Que sonho! Fizemos muitas fotos.
Almoçamos num restaurante com mesas ao ar livre debaixo de uma
arvore frondosa na entrada do lugarejo.
Saint Paul é um vilarejo.
Pedimos saladas com creme de queijo e fetuccini.
Tânia come sempre uivando. Passamos um dia bastante agradável.
NO final da tarde estávamos de volta à Nice pra fazer o que mais
gostamos; nada!
O irremovível para nós, o insolúvel é a fedentina, o cheiro nauseante
da maioria dos franceses ou turistas com quem temos que conviver a
todo momento em lojas, elevadores, recepção de hotéis, corredores,

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lugares fechados, trens, ônibus, o metrô então é um suplicio que
provoca vômitos.
Em Nice, até que a coisa é mais suportável.
Em Barcelona tava difícil de agüentar.

Quando o garçon se aproxima para colocar talheres, ou a comida na


mesa, o cheiro que vem antes da comida é o dele, fedido, azedo,
nauseante.
O porco põe a comida, deseja bom apetite, se retira, mas o futum
ainda permanece por alguns segundos, o que nos obriga a aguardar
um pouco antes de começar a comer.
Pedro Seixas talvez não se importasse tanto com isso se estivesse
aqui.
À noite comemos MOULES FRITES com batatas fritas. Bom demais.

NICE – 10 DE SETEMBRO DE 98 - QUINTA FEIRA

Embarcamos às 10,27 em direção à MONTPELLIER, para fazer


baldeação às 15,09, e daí para BARCELONA, onde deveremos chegar
às 19,11, a tempo de pegar a ponte área para MADRID. Ufa!!!
O trem como de hábito, sái rigorosamente no horário.
A cada parada sobem 2 ou 3 passageiros no nosso vagão de primeira
classe.
Raramente sobe um jovem.
Sua velocidade de cruzeiro é em torno de 180 quilômetros por hora.
As árvores, casas ,postes, prédios, pontes, passam tão rápido que
não se consegue olhar nada.
O espantoso é a suavidade dessa monstruosa composição de aço e
rodas em seus movimentos.
Não há atritos de ferro contra ferro nos trilhos. Não há plact, plact,
plact tão familiar aos nossos ouvidos.

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Os vagões não balançam. Observo pelas malas nos bagageiros;
imóveis.
Não há curvas.
Claro, claro que há, só que ninguém percebe porque seu corpo não é
jogado de um lado para outro.
Assisto um monótono desfilar de rápidas imagens que apesar de
belas, são repetitivas.
Viajar no vagão da primeira classe é ter certeza de viajar em sossego
total. Os poucos passageiros viajam calados.
Há quietude no ar.

Tânia dorme ocupando duas poltronas. Estou no banco de trás,


também ocupando duas poltronas.
Às 15,30 mais ou menos chegávamos a MONTPELLIER, para nos
transferirmos para o TALGO, a versão espanhola para o T.G.V
francês.
Após alguns minutos uma voz anunciava que os passageiros para
BARCELONA deveriam ir de ônibus até a cidade de FIGUERAS. Do
lado de fora da estação, quatro ônibus estacionados e um guarda
recebiam os passageiros que iam chegando.
O policial sempre educado com a quantidade de perguntas que
ouvia, indicava o lugar onde ele estava como o ponto onde todos
deveriam se reunir antes de entrar nos ônibus.
O pequeno grupo aumentava rápidamente com a chegada de mais
passageiros. Cada pessoa que chegava fazia as mesmas perguntas:
“o que houve?” “Até onde vamos de ônibus?” “Chegaremos
atrasados em Barcelona?”
“Quanto tempo demora até FIGUERAS?”
Um passageiro carregando mala de grife, olhar arrogante, expressão
de impaciência, perguntou ao guarda como ele viajaria no ônibus, se
havia comprado a primeira classe do trem?
O guarda segurando o walkie-talkie numa das mãos, abriu
lentamente os braços, inclinou um pouco a cabeça para o lado e não
proferiu palavra.

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Eu, respondi mentalmente para o boçal todos os palavrões que
haviam no gesto do guarda.
O calor insuportável aumentava a irritação de todo mundo. De
repente houve o estouro da boiada com todos correndo em direção
aos ônibus. Nosso guarda foi incapaz de conter a turba.
Senti um desânimo de morte.
Era decepcionante ver um comportamento desses em europeus.
Não respeitaram velhos, mulheres.
Os espertos correram para garantir os melhores lugares.
Não eram ônibus confortáveis, as poltronas estreitas com pouca
reclinação.

Tive uma idéia e nenhum remorso em botá-la em prática;; estampei


no rosto um sofrimento atroz, consegui chegar perto do guarda e
falei olhando dentro dos olhos dele, pedindo ajuda, sugerindo que
ele marcasse com seu quepe duas poltronas perto do banheiro do
ônibus e que pedisse ao motorista pra me dar a chave porque eu
vomitaria todo o trajeto já que não posso respirar o cheiro do óleo
diesel, razão pela qual eu só viajava de trem, bastava ele conferir no
meu Eurailpass.

O meu pedido teve o efeito de uma bomba; nosso guardinha, rápido


como um coelho, procurou o motorista, relatou o que ouviu de mim,
não me deu a chave mas garantiu duas poltronas perto da escada e
do banheiro. Eu vi solidariedade em seus olhos, o que me deu na
hora um certo completo de culpa, misturando com uma tremenda
vontade de pedir desculpas a ele pela malandragem.
Mas naquele monte de cavalos vestidos de europeus, o que eu fiz
combinou bem com eles.
Acho que o que provocou a imediata solidariedade do guarda ao que
eu expus, foi o fato de eu dizer pra ele que estava com muita
“HONTE” (vergonha) de ter que revelar esse problema.
Ele, muito compreensivo e afável, me tranqüilizou dizendo para eu
ficar tranqüilo e que não era HONTE nenhuma.

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Graças ao meu dicionário de francês que sempre levo quando venho
à Europa pude consultar ali durante o tumulto como proferir a
palavra mágica para o guarda.
Foi a salvação.
Chegamos à FIGUERAS, território espanhol às 18,45, porque na
estrada o ônibus não pôde ultrapassar os 80 quilômetros. Foram
quase 4 horas de viagem tranqüila, apesar do inicio tumultuado. O
TALGO já nos esperava.

Benzadeus, o Talgo, é uma composição alaranjada só um pouco


melhor do que os trens do Rio que saem da central.
O banheiro era intragável, irrespirável, inusável, tudo “ável”.
Repugnante.
Não havia uma gota d’água. Não havia vagão restaurante.
Às 20,45 chegamos à estação de BARCELONA-SANZ.
Pulamos para um trem-metrô para o aeroporto, para pegar as malas
na CONSIGNA e nos mandarmos pra Madrid.
Estávamos já antegozando nosso avião sobrevoando a cidade de
Madrid toda iluminada nos esperando com seus jamons e as
REBAJAS, baixarias que a Tânia adora, quando um fiscal nos trouxe
à realidade, perguntando pelos bilhetes.
Estávamos longe do aeroporto? Perguntei.
“Neste trem não!”
Putos, putos, muuito putos, descemos para pegar outro trem em
direção oposta.
Quando chegamos ao aeroporto, a CONSIGNA já estava fechada, a
ponte aérea já havia encerrado as operações.
Irritados, cansados, mal humorados pelo sono e pelo cansaço, com
muita fome, tentamos comprar batatas fritas numa maquina
automática.
A filha da puta engoliu minhas moedas. Voltamos para o metrô pra
irmos ao centro da cidade procurar um hotel para dormir.
Queriamos dormir. Dormir, só isso.

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Precisavamos dormir. Pra esquecer esse dia. O metrô também já
estava fechado.
“Aquele ônibus ali é o último!” alguém nos informou.
Corremos. Conseguimos. Graças a Deus. Quando fui dar as moedas
pra pagar, o motorista disse que não precisava, que eu deveria pagar
no ônibus da frente, já que o dele estava recolhendo.
Descemos correndo e entramos no da frente que já estava lotado.
Por que todo mundo vê essas coisas menos eu, caralho??????? Mil
vezes caralho!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Apesar do cansaço, Tânia travou conversa animada com uma garota


branquinha, colombiana, muito bonitinha, risonha, animada. Estava
vindo à Barcelona pela primeira vez. Tinha acabado de desembarcar
no aeroporto vinda da Colômbia pra se encontrar com a irmã que
trabalha e estuda em Paris.
As duas combinaram de se encontrar na praça Catalunha.
Ficamos horrorizados.
Ela não via a irmã há anos, e marcaram de se encontrar numa praça
`a noite em plena LA RAMBLA com um milhão de pessoas circulando.
Ela ria da nossa aflição.

Quando nosso ônibus começou a circular a gigantesca praça


Catalunha, a Colombianinha deu um gritinho de felicidade ao
identificar a irmã sentada na beirada de um chafariz.
As duas se descobriram ao mesmo tempo. Que coisa incrível, meu
Deus!...
Tânia se divertia com a cena da colombiana descendo aflita do
ônibus e correndo ao encontro da irmã.
A alegria, a excitação que emanam da LA RAMBLA não conseguiu
nos contaminar, queríamos cama e colo.
Foi um dia de cão, precisávamos descansar, fechar os olhos, apagar.
Foi um sufoco achar hotel.
Até que achamos um bem bonzinho. Tânia tomou um banho e
mergulhou na cama não sem antes me atormentar pra procurar uma
farmácia pra comprar um pente.

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Saco! Nem sei como se fala pente em espanhol.
Em catalão muito menos.
Procurei, procurei, a fome aumentou. Comi um baita hamburgão no
BURGER’S KING, voltando ao hotel sem o pente.
O recepcionista muito educadamente perguntou se eu estava
precisando de alguma coisa.
Respondi que sim, de, de...”como se chama aquilo de...?
reproduzindo com as mãos o ato de pentear os cabelos.
Com um sorriso, ele abriu a gaveta da recepção e tirou um pente
que era exatamente para dar de brinde pros hóspedes.

BARCELONA – 11 DE SETEMBRO

Café da manhã maravilhoso. Chovia, o céu estava cinzento.


LA RAMBLA estava absolutamente vazia de seres humanos, os
quiosques fechados. Uma cerração suave pintava de cinza todo o
calçadão da LA RAMBLA.
Foi uma visão inesquecível. Fotografei. Tomara que saia. Pegamos a
ponte aérea das 11,45 chegando a Madrid às 13 horas.

Durante o vôo, uma aeromoça morena, alta,bonita, sempre com um


sorriso nos lábios, cara de devassa se derretia de amores pelo Rio de
Janeiro, dizendo que adorava o VOCÊ que falamos.
Apaixonada por caipirosca quase perdeu um vôo certa vez, ao se
embebedar tomando caipirosca.
Adorava também “pau de queixo”.
O café da manhã dos hotéis do Rio não a impressionavam. O que ela
exigia mesmo era “PAU DÊ QUÊIXO!”
Contou os assaltos que os amigos da tripulação sofreram.
Seu olhar brilhava estranhamente quando começou a falar baixinho
pra Tânia sobre a beleza da bunda das brasileiras, que era muito
mais bonita do que as espanholas.

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Pedi a ela alguma coisa salgadinha pra comer tomando cerveja. Me
deu logo 3 pacotinhos de avelãs, castanhas, etc.
Sempre com um baita sorriso.
Ela ia e vinha.
Eu tentava olhar noutra direção, mas não conseguia, meu olhar
cruzava com o dela.
Se agachou ao lado da poltrona da Tânia falando de novo da bunda
feia espanhola e da bela bunda brasileira.
Tânia ribombava em gargalhadas. A aeromoça estava literalmente
aos pés de checheca.
Tão nos pés que achei que ia dormir sozinho esta noite em Madrid.
O hotel que reservamos ainda no aeroporto fica numa rua em obras.
O táxi não podia chegar lá.
Irritados, resolvemos procurar outro lugar. Achamos uma hostal
deprimente e suja.
De madrugada bem debaixo da nossa janela, alguém berrava
palavras nacionalistas de exaltação à Espanha.

MADRID – SABADO – 12 DE SETEMBRO.

Sobrevivemos à essa hostal odiosa e nem quisemos ver a cara do


café da manhã, incluído na diária de 45 dólares. Pegamos a
bagagem e fomos pro aeroporto tentar embarcar de volta pro Brasil
antes da data marcada no bilhete.
Sem sucesso, estava tudo lotado.
Deprimidos pela péssima noite que passamos, deixamos a bagagem
na CONSIGNA. Conseguimos uma reserva no NOVOTEL, fora do
centro comercial de Madrid. Tivemos uma agradabilíssima surpresa;
era um hotel luxuoso com recepcionistas agradáveis.
O restaurante do hotel era espetacular de bonito.
Tânia comeu FRITURAS ANDALUZAS COM SUQUET DE MARISCOS,
eu tomei um vinho branco saboroso e frutas de sobremesa. Foi uma

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bela compensação pela noite de horror que vivemos. Dormimos por
duas horas. Precisávamos desse relaxamento.
Acordamos em estado de graça.
Como de costume fomos para o centro da cidade, mais precisamente
para a CALLE TETUAN 12, um restaurante do final do século passado
que tem o bacalhau mais saboroso do mundo.
Eu sou viciado nos bolinhos de bacalhau com “cañas”. Tânia come de
babar.

MADRID – 13 DE SETEMBRO DE 98

Hoje foi um dia de MUSEU DO PRADO. É um privilégio conhecer esse


museu. Um privilégio divino mesmo. Voltei à ala que consome horas
dos meus devaneios; a do pintor ANDRIES BENEDETTI. Ele pintou
frutos, baixelas de cristais, ouro, bronze, prata, ouro, e caça, com
fidelidade desconcertante.
Espantoso; não há informações sobre BENEDETTI. Não há nenhum
dado conhecido sobre ele. O único dado que se conhece é que teria
vivido em AMBERES – FRANÇA, de 1.636 a 1.650. Só isso.
Entretanto, um ala inteira de aproximadamente 600 metros
quadrados do museu é ocupada por seus quadros. Em todos os
museus que entrei em minha vida, nada me impressionou mais do
que os frutos de ANDRIES BENEDETTI.
A reprodução de um limão, com a casca granulada é emocionante.
Em pinturas, a ilusão se desfaz bastante quando nos aproximamos
muito da tela. Mas isso não acontece nos quadros de Benedetti.
As uvas brancas refletem luz, transparência. As uvas pretas
absorvem luz quase totalmente. Não pude desfrutar do museu como
gosto porque aos domingos a entrada é gratuita. Havia pessoas
saindo pelo ladrão.
O ar condicionado era insuficiente para refrescar os enormes salões.
A fedentina dos corpos suados sem banho pairava no ar.
Do museu fomos a pé ao restaurante LA BARRACA, especializado em
Paellas.
Fica na CALLE LA REINA, uma rua paralela à GRAN VIA.

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É a segunda vez que comemos lá. Batemos perna pra fazer digestão.
Voltamos ao hotel para dormir cedo porque levantaremos cedo
amanhã. Vamos conhecer ÁVILA e SEGÓVIA.
Temos que sair às 07,30 da manhã.

MADRID – SEGUNDA FEIRA – 14 DE SETEMBRO

Às 08,40 da manhã, ainda escuro, ventando muito, fazendo frio,


estávamos no ponto do ônibus 53 para ir até o ponto final na
PUERTA DEL SOL, indo depois a pé até ao teatro Real pegar o ônibus
para AVILA.

Tânia está mal humorada de frio. Me dá espôrros homéricos dizendo


que por minha culpa não trouxe agasalhos. Os braços dela estão
gelados. Saímos com meia hora de atraso num ônibus da PULMANN
TOUR lotado de velhos espanhóis e três alemães.
Em ÁVILA, na primeira igreja que entramos, o saco encheu na hora.
Não dá mais para agüentar igrejas, túmulos de papas, bispos, reis,
rainhas, príncipes, santos, saco!
Tânia entrou na igreja de Santa Terezinha de Jesus.
Segundo o guia, a igreja foi construída em cima das ruínas da casa
onde nasceu.
Andamos, andamos, andamos, andamos, o guia falou, falou, falou,
falou, voltamos todos pro ônibus, agora em direção à SEGÓVIA.
O ônibus vai a 16 kilômetros por hora, porque a estrada é estreita,
cheia de curvas, e perigosa demais.
Estou curioso pra ver e fotografar o AQUEDUTO construído pelos
romanos no ano de 1.015.
Meu estômago ronca de fome, e da Tânia também.
A viagem é monótona. A paisagem sempre igual, vegetação baixa,
ressecada, alternando vez por outra com alguma plantação.
Os campos estão assim porque o inverno está chegando. Ninguém
planta nessa época do ano.

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Uma curiosidade; nesta região alta, montanhosa e seca entre ÁVILA
e SEGÓVIA vivem as cegonhas. Stark em inglês.
Elas fazem seus ninhos nos lugares mais inusitados; vi dois ninhos,
cada um numa extremidade da lança dos guindastes da construção
civil.
A voz da guia, suave, monocórdia, provoca mais relaxamento do que
cultura.
Tem a aparência descuidada e não é chegada a um chuveiro,
trazendo no rosto a inexpressão típica de quem se droga ou bebe.
Tânia antipatizou com ela.
Chegando a SEGÓVIA fomos direto comer. Os espanhóis não dizem
“almoçar” dizem “comerrr”
O SOLAIRE é um restaurante típico daqui. Considerado o melhor,
tem impresso no cartão a estrela de ouro de uma entidade muito
importante na Espanha chamada GASTRONOMIA.
Logo iríamos comprovar o título.
Mesas bem arrumadas, taças de vinho, degustação e água, louça e
talheres maravilhosos. Me lembrei do comentário da guia odara
sobre o JUDION, uma fava gigante cultivada nesta região de
SEGÓVIA.
O sabor é um mixto de feijão branco com fava.
Cada JUDION é do tamanho de um ovo de codorna.
Foi o que nos ofereceram como entrada.
Comi tudo. Delicia. Em seguida comemos COCHINILO, um leitão com
20 dias de vida.
Tânia parecia uma alucinada comendo o leitão. Nosso garçon, sr.
MARINO, muito gentil, sem dúvidas o espanhol mais agradável com
quem já conviemos até hoje na Espanha, demonstrava
encantamento pela sucessão de caretas e uivos que a Tânia produz
enquanto devora pedaços de COCHINILO assado.
Comemos muito.
Essa foi nossa comida inesquecível.
Caminhamos por quase duas horas pra fazer digestão.
Fomos até o AQUEDUTO, obra impressionante, perfeita desde sua
construção há quase mil anos.

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Fiz muitas fotos.
Quero mostrar pras crianças aquele sistema de pedras em cunha
compondo o arco das portas e portais.
Os templos egípcios já apresentavam esse sistema de apoio para
vigas nos postiços há 5 mil anos.
Às 17 horas voltamos pachorrentamente à Madrid para o conforto, a
classe, o ambiente fino, agradável, silencioso, do NOVOTEL, que foi
um prêmio na nossa viagem.

MADRID – TERÇA FEIRA – 15 DE SETEMBRO.

Mais um desayuno farto, saboroso, colorido, variado do NOVOTEL,


mais algumas comprinhas no CORTE INGLÉS, aguardando
preguiçosamente a hora de ir pro aeroporto embarcar para o Brasil,
não sem antes travar uma árdua batalha contra a mala de 60 quilos
ou mais por causa das bugigangas da Tânia.
Esqueci de relatar uma coisa curiosa: no sábado à tarde, enquanto
eu tomava banho, Tânia, a fodona, ligou para AEROLÍNEAS
ARGENTINAS tentando antecipar nossa volta.
Ao exprimir o que ela acha que é espanhol, assume comportamento
e inflexões de pastelão mexicano.
A mulher que a atendeu perguntou qual a FECHA (data) de partida.
Tânia muito importante respondeu: - “Non, nóstra partida non está
fêtchada, está abiérta!”
Ela pára de falar, só pronunciando si,si,si,si,si emendando “AH SI, LÁ
FÊTCHA ÉS LÁ DATA, LÔ DIA DE PARTIDA?” Ah,ah,ah,ah,ah,ah,ah,
gargalhadas ribombantes.
AH, SI,SI,SI,SI,SI,SI. UNO MOMENTITO POR FAVORE, AH SI,
SI,SI,SI, ESTÁ ACÁ; LA FÊTCHA DE SALIDA ÉS TIÊRÇA, NON?
TIÊRÇA. Como? TIÊRÇA, TIÊRÇA. USTÊ COMPREENDEU AGÔRA?
Antes que virasse briga de cachorro no telefone, saí do banheiro,
peguei o telefone a tempo de corrigir TIÊRÇA para MARTES.
Tânia não consegue reter MARTES na memória porque pra ela,
MARTES é é plural do planeta Marte.

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LESTE EUROPEU

04 DE JUNHO DE 2008 – QUARTA FEIRA

Chegamos ao aeroporto internacional às 15,30. Vamos ao Leste


Europeu. Estamos felizes e excitados.. Mas tem uma outra pessoa
que está muito feliz além de nós; Rachel;
Ela ganhou de presente da Tânia esta viagem de 15 dias.
O nosso Boeing A-330 decolou às 17,30, 15 minutos depois da hora
marcada.

Vamos na classe executiva. Custou uma baba. Mas vale cada centavo
gasto. As poltronas hidráulicas nos colocam na posição que
desejamos. Estou tossindo por culpa de um resfriado maldito que já
dura um mês. Cunca também tosse muito.
Trazemos remédios pra tentar conter as crises. Paliativos apenas.
Estranhamente, Tânia ainda não começou a espirrar. Nem Rachel.
Elas espirram.

O jantar, maravilhoso, foi servido pouco depois da decolagem.


Apesar do conforto, não consigo dormir. Tânia também não. O vôo é
tranqüilo, o avião é silencioso, apesar de suas duas gigantescas
turbinas.
Rachel está sentada atrás de nós. E atrás dela, a escrota, filha da
puta, escandalosa, espaçosa da cantora Marina dá gargalhadas
estrondosas ao lado de sua companhia feminina. Não consigo ouvir a
voz da moça, mas as gargalhadas da Marina ecoam na cabine de

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tamanho médio e tenho certeza de que a maioria dos 10 ou 12
passageiros da classe executiva não conseguiu dormir.
A vaca da pirocuda gargalhou na maior altura durante as 9 horas do
vôo. Filha da puta!

Devo ter comido além da conta.. Tenho náusea. A “aero-velha”, 65


anos presumíveis, muito agradável, me socorreu, com uma pastilha
que ela recomendou várias vezes que fossem chupadas, não
mastigadas.
O tempo passou rápido.
9 horas depois, estamos sobrevoando Lisboa. A data no relógio já
virou pra dia 05 de junho e já estamos 5 horas na frente do Brasil.
No aeroporto perdemos um tempo enorme submetendo nossas
vísceras e pertences aos órgãos de segurança.

05 DE JUNHO – 2008 – QUINTA FEIRA.

Agora estamos dentro de um boeing –A-320 com destino à Paris.O


relógio marca 9 horas e alguns minutos. Voaremos por 2 horas. A
temperatura está agradável; 15 graus. Eu e Tânia estamos letárgicos
pela noite sem dormir.

Rachel é um vulcão, excitação constante, fala sem parar.

São 11 horas da manhã, hora de Paris. Já vamos descer.


Comprei à bordo um joguinho de perfumes Barbie pra dar de
presente de natal pra Vanessinha, um perfume novo, lançamento de
JENNIFER LOPEZ para Alexandra, minha contadora.
Enquanto estávamos em Lisboa fomos revistados, filmados,
despidos, descalçados, apalpados, olhados de cara feia. Cada
passageiro que entra em Lisboa é um terrorista em potencial.
E cá estamos de novo, na fila dos passaportes, os estrangeiros, os
perigos potenciais, olhados, filmados, olhados com cara feia.

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Tânia está na minha frente. Talvez a poluição de Paris, ou a
mudança de ares mesmo, tenha provocado alguma mudança no
aparelho respiratório da Tânia que está espirrando em série. Ela deu
uns 8 espirros enquanto aguardávamos pra ser fotografados,
filmados, despidos, revistados, apalpados, perscrutados com detector
de explosivos, detector de produtos químicos.

Dentro do avião, antes de pousar, a minha preocupação com a


grosseria do parisiense me atormenta. Estou temendo pela Rachel
que é muito simpática, muito sorridente, muito dócil.
Pegamos nossas três malas e fomos pra saída pegar um táxi. Um
motorista gordo, velho, faz um sinal pra nós na fila, pra nos
aproximarmos com as bagagens pro Mercedes dele.
Enquanto caminhamos por carro, Rachel começa a espirrar. Tânia dá
uns dois ou três só. Deve ser o ar de Paris.

O motorista feio feito um sapo pergunta o destino. Respondo em


francês: “Rue dês écoles...” e ao invés de dizer o número da rua,
falei o número do cep. Ele se impacientou. Eu respondi no ato com
igual impaciência que ele lesse o voucher. Rachel se apressou em
dizer o número: 31.
O gordo francês grunhiu qualquer coisa.
“Começou” – pensei.

E lá fomos nós pra RUE DES ÉCOLES 31, endereço do HOTEL SULLY
SAINT GERMAIN no bairro do mesmo nome.
Pra nossa surpresa descobrimos que nessa rua, a poucos metros do
nosso hotel, está a SORBONNE.

Na recepção do Hotel Sully, um homem com cara de indiano,


péssima dicção nos recepciona. É uma pessoa bastante agradável.
Me entendo com ele em francês, apesar de falar muito baixo, e
enrolado.

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Ele nos dá as chaves dos apartamentos 55 pra Rachel e 56 pra nós.

Os apartamentos ficam no sexto piso. É isso mesmo, coisas de Paris.


Os números cinco ficam no sexto andar.
O elevador tem um metro e 20 de comprimento e 60 centimetros de
largura.
Cada um de nós tem uma mala. A da Tânia tem o meu diâmetro e
do Tânia juntos.

O elevador só dá pra uma pessoa com mala. Tivemos que dar três
viagens pro sexto andar. Cada hora subia um.
Rachel não teve paciência pra esperar o elevador que anda mais
lento do que uma tartaruga. Resolveu subir a pé sem a mala.
Chegou ao sexto andar sem fôlego. Espirrou fragorosamente. Devem
ser os carpetes fedidos do piso.
Tânia espirra vigorosamente dentro do elevador. Deve ser a
pequenez do espaço.

O quarto é feio, pobre, fede pra cacete a mofo e coisa velha. A


janela dá pra telhados, só telhados.
O silêncio chega a doer nos ouvidos.

A excitação das duas é tamanha pra sair e bater perna na rua, que
não me atrevo a pedir pra dormir um pouco. Estou literalmente no ar
há quase 20 horas.

Saímos à pé. 30 metros depois do nosso hotel, elas se encantam por


uma vitrine de 70 centimetros de largura, por 25 de profundidade
que mostra um aviso de promoção de BASQUE.
Não tenho idéia do que seja isso.
De cara, elas já deixaram 48 euros por uns cachecóis malucos que
elas chamam de PASHMINA. 15 metros abaixo, na rua, uma feirinha
com artigos indianos provoca exclamações delas que enlouquecem e
compram adoidado.

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Continuamos caminhando sem rumo. Estamos no QUARTIER LATIN.
Paramos em frente à NOTRE DAME. Elas entram. Eu espero do lado
de fora.
Ao lado da catedral, mortos de fome entramos num restaurante onde
fomos atendidos por um garçon simpático que nos ofereceu
spaghetti com coxas de frango. A pedida não podia ser melhor.

Quando os três pratos chegaram, não conseguimos comer, de tão


feio o aspecto, de tão ruim o gosto.
Pedi a conta o garçon que perguntou por que não comemos.
Respondi que não dava pra comer uma coisa tão ruim e sem
tempero. Ele deu de ombros, como se dissesse: “problema seu”. Esta
é Paris.

Continuamos andando até que meia hora depois entramos num


outro restaurante onde outro garçon mais simpático ainda no
atendeu. Estou surpreso com tanta simpatia desde nossa chegada.
Paris não é assim, tenho certeza, olha o que estou falando, estou
avisando. Estamos há horas na cidade, já falamos com varias
pessoas, já compramos, consumimos e até agora nenhum coice.

Tomamos uma sopa de cebola que tinha um pão preto mergulhado


na panelinha e omelete de presunto pra cunca.
A disposição delas pra falar e bater perna é invejável. Morto de sono
resolvi voltar a pé pro hotel. O relógio marca 4 e pouco da tarde.
Entro no hotel, neste quarto horroroso, porém bem arrumado,
silencioso e durmo feito pedra.

Às 7 da noite, com dia claro, acordo com as batidas de Tânia na


porta.
Minha cabeça lateja de dor. Tânia se queixa de dores fortes no
calcanhar. Ela também tem esporão. Elas chegaram da rua,
excitadas, mas não estão espirrando. Que coisa, por que será que
elas não estão espirrando?

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Tomamos banho e saímos de novo, agora em direção ao CHAMPS
ELISÉÉS.
Um motorista de táxi gentil à bessa nos leva. Tava ouvindo música
brasileira.

Rachel se encanta com o Arco do Triunfo iluminado. Jantamos num


restaurante movimentado. Eu comi Penne aos 4 queijos, Rachel e
Tânia, pizza.
Comentam sobre Luiza Tomé passando perto de nossa mesa pra
uma mijada.
Pagamos a conta e voltamos às 2 da manhã, para, ufa! Dormir.

PARIS – 06 DE JUNHO DE 2008-07-03


Acordamos às 8 e meia. Tomamos café, para nossa surpresa muito
bom, simples, porém variado e bom.
A temperatura está maravilhosa. Estamos descansados e fazendo
corpo mole. Saímos do hotel faltando 15 minutos para meio dia em
direção ao museu do Louvre.

Tiramos muitas fotos. Comprei um colarzinho delicado, lindíssimo, a


cara da tia Nana. Tenho certeza de que vai ficar lindo nela. Comprei
na SWAROWSKY no shopping que fica no piso debaixo do museu.
Uma vendedora japonesa eficientíssima me atendeu, fazendo um
embrulho de presente lindo que, custe o que custar vai chegar assim
às mãos de tia Naná.

Às 3 e meia da tarde resolvemos comer no próprio Louvre na praça


de alimentação. Comemos Paella que estava razoável. Tânia queria ir
a `rua de Rivoli, sua paixão.
Foi um entra e sai de TODAS AS LOJAS de artigos femininos. Rachel
se acaba de comprar. Rachel pára diante de lojas de telefonia
celular. Está querendo comprar um I.PHONE

Às 7 da “noite”, com dia claro, resolvemos ir ao bairro do MARAIS.

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O motorista do táxi que nos levava, um senhor careca, alertou o
tempo todo sobre o lugar que é uma concentração de homossexuais
provocando a ira de checheca e Rachel.

Elas amam as bichas de suas vidas, portanto não querem nem saber
de se lembrar desse motorista que se mostrou tão “desrespeitoso”
com as bichas francesas. Audácia do motorista! Velho! Rabugento!
Elas estão fulas da vida com ele, cujo único pecado foi mencionar
que estávamos indo a um lugar de “gente especial”...

Descemos do táxi, Tânia deu uns 5 ou 6 espirros, Rachel ainda não.


Está sem espirrar desde que saímos do hotel por volta do meio dia.
Tô achando estranho.
A temperatura deliciosa em torno dos 12 graus compõe um lindo
cenário pra ebulição do Marais, com turistas misturados a francêses
agasalhados. Há cheiro de cigarro, tabaco, perfume e comida no ar.

Não sei se o fato de estar envelhecendo diminuiu meu olfato, porque


não estou sentindo o famoso futum do francês que é de provocar
náusea.Ou talvez por causa da espessura dos casacos, o futum fica
restrito ao interior dos casacos.

Olhamos uma centena de vitrines e até uma feira coberta de


artesanato. Neste mercadinho de artigos lindos, percebi a maior
concentração de bicha por metro quadrado.
Numa padaria perto da feira tomamos café numa confeitaria.
Croissants com café e café com leite.

Pegamos um táxi às 9 da “noite” com dia claro e voltamos ao hotel


com algumas guloseimas para comer no quarto, como queijo
cammembert, queijo emmental, peito de peru defumado, coca cola,
e uma lata de cerveja leffe, belga, maravilhosa. E assim terminou
nosso dia cultural em Paris. Amanhã, sábado, vamos cedo pra torre
Eiffel.

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PARIS - 07 DE JUNHO - SABADO

Passei a noite em claro, não sei porque, apesar do quanto andamos


durante o roteiro e a visita interminável às lojas de roupas femininas
na Rue de Rivoli.
Acordei Tânia às 07,45 que abriu os olhos reclamando dos sinos da
catedral de Notre Dame que fica bem perto do nosso hotel.

Alguém em sã consciência pode reclamar de acordar com o som dos


sinos da mais famosa catedral do mundo? Às 8 da manhã?
Pentelha!!!

Era nosso plano ontem à noite acordar cedo pra chegar cedo à torre
Eiffel. Só saímos às 10,30. Como sempre uma multidão faz fila pra
subir. A temperatura deve estar a 9 graus.

Venta uma brisa gelada, cortante. Nossas colunas doem., nossos


calcanhares doem. Rachel vai espirrando pra fila de ingressos para o
terceiro estágio da torre.
4 euros e cinqüenta centavos por ingresso.
Eu e checheca ficamos sentados junto a uma das patas da torre,
enquanto Rachelzinha ralava em pé numa fila interminável.
Depois de quase meia hora em pé, fez um sinal pra nos
aproximarmos.

Estava puta da vida porque um palhaço italiano provavelmente de


Nápoles – o reduto da grosseria italiana – quis passar à frente dela
com sua mulher e seu filho de colo além de um maiorzinho de 3
anos.
Rachel não permitiu e iniciou-se uma discussão. Naturalmente o
machão me vendo chegar, o imbecil, se acovardou.

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E acabou por se fuder porque se perdeu da mulher que saiu da fila
provavelmente pra ir ao banheiro. Com isso teve que deixar a fila
passar por ele durante um longo tempo.
No topo da torre Rachel se divertiu. E espirrou. Tânia espirrou pra
dedéu.
Descendo da torre às 2 da tarde ainda não tínhamos fome.

Um táxi nos levou à MONTPARNASSE.


Que paixão é esse lugar, meu Deus! Quanta gente bonita, esquisita,
se misturando, falando alto, fumando cachimbos, charutos, muitos
cigarros. O ar está impregnado do cheiro de comida, e tabaco.

Eu e checheca comemos MULLE, marisco para os menos aviadados,


e Rachel, vitela com fritas.
Como entrada um magnífico patê de fois. Estava dos deuses.
Pintores compondo suas imagens alheios à curiosidade das pessoas
que param bem próximos a eles pra verificar a obra em formação,
desenhistas fazendo retratos à lápis cera de turistas que se sentam
em banquinhos pagando 20 euros pra posar como modelos
provocam encantamento no olhar dos passantes.

Começamos a descer as centenas de degraus, para, agora, entrar e


sair de dezenas de lojas.
Quando percebi que minha tarde acabaria dentro das galerias
Lafayette, peguei um táxi de um japonês que deixou elas na galeria
e vim pro hotel dormir.
Acordei às 10 da “noite” e fomos passear a pé pelo Boulevard Saint
Germain.

E assim a noite terminou às duas da manhã.

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PARIS – DOMINGO – 08 DE JUNHO

Faltam 20 minutos para uma da manhã.. Rachel que espirrou


algumas vezes aqui no nosso quarto enquanto tagarelava com Tânia,
acabou de sair pro quarto dela, dizendo que ia ligar pra Noy, sua
amiga tailandesa.
Assim, acabou nossa noite que era pra ser finalizada em grande
estilo em algum restaurante de luxo. Ficamos batendo papo aqui e
gastando os quase 60 minutos de telefonia de longa distância em
telefonemas disparados pro Brasil.

Tânia falou com Pedro, com Ivo, que quis falar com Rachel, que
mandou chamar o Pedro que não quis falar e devolveu o telefone pro
Ivo que quis falar comigo contando alguns detalhes da festa que vai
promover neste domingo em casa.

Rachel ligou pra Marta que avisou que o Vitor já estava embarcando
de volta ao Brasil porque está com problemas no ombro de novo.
Liguei pro Fred querendo falar com Gustavo mas ele estava
dormindo. Eram 18 horas no Brasil.
Acordamos cedo e fomos logo pro café e dali fomos pro metrô
estação de SAINT MICHEL para pegar um trem pra Versailles.
Parece que o mundo resolveu visitar esse palácio hoje. Filas
gigantescas. Era uma dificuldade a locomoção nas dependências
internas do palácio devido à superlotação.

O banheiro masculino era um nojo de tanta sujeira.


A fome começou a dar sinais. Entrei em outra fila pra comprar um
sanduíche com água. Um homem dos seus 50 anos reclamou em
inglês comigo sobre pessoas furando fila. Respondi em inglês tão
puto quanto ele. O homem que estava na minha frente com a
mulher era um paulista que tava puto com a falta de educação dos
turistas.

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Quando essas situações acontecem, sinto tanta vergonha do ridículo
que se puder, não me identifico,pra não matar o outro também de
vergonha. Já vivi várias situações assim.

Tânia geme de dor no calcanhar . Cunca é puro encantamento


fotografando tudo o que o palácio tem. Dentro do Palácio não ouvi
ela dar nenhum espirro.Por ela valeu a pena gastar 70 Reais, o
equivalente a 30 euros para cada um de nós, pra participar desta
muvuca.
Às 4 da tarde, exaustos, saímos do palácio e contrariando nossos
planos de comer num bom restaurante, entramos num Macdonalds
próximo ao palácio.

Voltamos à praça Saint Michel, andamos um pouco pela


movimentada RUE DE LA HUCHETE, a deliciosa Rue de La Huchete
onde ficamos hospedados no charmoso HOTEL MONTBLANC quando
viemos à Paris pela primeira vez há 24 anos.
Sentamos num café, tomamos o dito cujo, Rachel e Tânia se
fartaram de comer ECLAIR, mil folhas, água mineral.
Quando acabou de miar várias vezes comendo a sua, Tânia espirrou
pouco desta vez, umas 4 no máximo.

Chegamos ao hotel Sully às 18 horas pra dar uma rápida descansada


e saímos de novo pra jantar num restaurante desses que Tânia
recorta de matérias dos jornais de turismo.
Cunca que havia se despedido de nós no Boulevard Saint Michel, saiu
caminhando sozinha. Acho que foi procurar uma determinada bolsa
La Coste e tentar encontrar o seu I.PHONE. Ela só fala nesses dois
assuntos, além é claro de Noy, Manara, Brasiltelecom, Noy, Manara,
Silvia, Aloísio, o escroto chefe dele, Noy, Manara.

Às 21,30, chamamos ela pro nosso quarto com sacolas de plástico


cheias de queijo, presunto, peito de peru, patê, latas de coca,
cerveja. Assim terminou nossa noite de domingo.

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PARIS – SEGUNDA FEIRA – 09 DE JUNHO - 2008-07-

Acordei de novo às 08 horas, ou melhor; às 15 para as 8, coisa que


tem sido constante nesta viagem.
Aliás, antes de viajar eu já estava acordando entre 6 e meia e 7 e
meia, o que estou achando muito estranho porque normalmente, há
anos, venho acordando às 5 da manhã.
Acordei Tânia, eu seguida acordei Rachel, que estava ferrada no
sono.

Tomamos café na frente dela. Tânia ouviu as mulheres velhas de um


grupo de brasileiras reclamando do HOTEL SULLY SAINT GERMAIN.
Esquisito, feio, fedorento, mas pelo menos a roupa de cama e as
toalhas são limpas.
É um hotel 3 estrelas. Por que nos hospedamos num hotel assim?
Segundo Berenice, nossa agente de viagens, se optamos por um
hotel de 4 estrelas, a diária seria mais cara 100 euros no mínimo.

Estamos conformados em tomar uma ducha num pequeno quarto de


banho e fazer as necessidades num cubículo distante 2 metros, num
espaço ridículo de 80 centimetros de largura por um metro e vinte de
profundidade onde só tem o vaso sanitário e o papel higiênico. Não
cabe mais nada.
Nem a escova pra lavar o vaso, cabe.

O quarto de banho, pois é, o quarto de banho tem aquele maldito


chuveiro móvel na extremidade de uma mangueira de alumínio. É
um saco segurar a ducha com uma mão e com a outra segurar o
sabonete e esfregar no corpo.
O atendimento é muito bom na recepção, os funcionários muito
gentis e atenciosos.

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Fizemos o check-out – vamos embarcar pra Budapeste num vôo da
Air France às 15,45 horas – deixamos a bagagem no guarda-volumes
e fomos à rua procurar uma loja LA COSTE onde Rachel viu uma
bolsa que a enlouqueceu e não comprou. Mas se arrependeu. Agora
quer porque quer a danada da bolsa.
Vamos à pé. É longe pá carái.
Tô com pena de checheca com seu calcanhar dolorido.
Finalmente chegamos.
Não havia mais a bolsa.
O próprio vendedor, um negrinho parecendo jamaicano nos indica
outra loja LA COSTE ali perto, num shopping center de nome BON
MARCHÉ.

Lá fomos nós, resfolegando, à pé, checheca mancando em direção


ao Bon Marché.
Do lado de fora, parece uma espelunca, um armazém desses podres
do cais do porto, uma estação ferroviária abandonada.
Por dentro é puro encantamento. Lojas bonitas, decoração bonita,
movimento nenhum. É o São Conrado Fashion Mall de Paris.
Checheca olhava deslumbrada o interior do shopping e começou a
espirrar. Deve ser porque o ar dentro desse shopping é puro, muito
superior ao ar do lado de fora do Boulevard Saint Germain.

Ela se apaixonou por uma loja de artigos para bebês. Comprou


alguma coisa pro filho do Rafael que vai nascer.
Pegamos um táxi para o hotel. Assim que chegamos, um japonês
com cara de safado simpático nos apanhou em seu carro grande. O
filho da puta já chegou com o velocímetro marcando 11 euros e
cinqüenta. O valor da partida é de 4,50.

O trajeto de volta ao aeroporto foi muito mais longo e o valor total


da corrida foi de 48 euros. Quando chegamos em Paris há 4 dias
atrás, o táxi que nos trouxe do aeroporto nos cobrou 25 euros.
Perguntei a ele por que eu estava pagando o dobro. O safado

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simpático respondeu que a tarifa de segunda feira era mais cara.
Filho da puta!

No check da Air France, fomos atendidos por uma recepcionista


portuguesa muito simpática, uma gordinha moreninha.
Despachamos as malas e fomos almoçar. Rachel pediu carpaccio.
Checheca Tagliatele ao pesto com alguns grãos verdes que pareciam
favas.
Eu pedi um filé mignon com batata frita e uma taça de vinho branco
GEWURSTRAMINER. Deus do céu, que néctar!

Terminado o almoço, fomos para a área do portão 29 aguardar


embarque, que começou às 15,15, exatamente no horário marcado.
Fomos acomodados, encaixotados, espremidos na ralé, no
apertamento. Não aceitamos o sanduíche que foi oferecido.

Nossa chegada a Budapeste se dará às 18 horas, hora local. O tempo


esquentou bastante.
No aeroporto vi muita gente suada. Parece que o tempo não passa
quando voamos na classe econômica.
Um grandalhão sentado ao meu lado esquerdo lê jornal com o braço
direito esfregando no meu pneu e no meu braço.

Tânia tenta dormir, fecha os olhos e muda de posição a todo


momento. Cunca depois de um breve cochilo lê Carta Capital. Ela
espirra algumas vezes enquanto folheia a revista. Deve ser porque
desta vez estamos voando na baixaria, na classe econômica.
Ficou quietinha durante toda a viagem.

Eu escrevo pra matar o tempo.


Minha bunda dói por ficar sentado há tanto tempo. Sentado quase
50 minutos dentro do táxi, sentado no restaurante, sentado nos
bancos da sala de embarque, sentado no avião, ufa!
Faltam 45 minutos pra gente chegar.

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No aeroporto, o guia Jorge, um colombiano jovial e muito agradável
nos espera na saída da sala de desembarque com uma placa de
papelão pendurada no pescoço onde lemos SENHOR SEIXAS em
meio a vários outros guias com os mesmos artifícios pra chamar a
atenção dos passageiros.

Uma van Mercedes novinha pilotada por Jorge nos leva ao hotel
RADISSON na rua Téréze Kórót.
Faz calor, a temperatura está em 25 graus.
A moeda é o FLORIN. Somos avisados de que a cidade é tranqüila e
sem violência.
Recebemos as chaves dos aptos 818 para Cunca e 819 para nós..
Precisamos trocar euros por Florins.
Não é muito fácil falar inglês aqui em PEST que é plana, velha, suja,
mas seus prédios são lindos, vitorianos, cinzentos, resquícios ainda
do comunismo.

Buda é do outro lado do Danúbio e montanhosa. Fomos à procura do


café mais famoso e luxuoso da Europa seguindo indicação do guia
Jorge.CAFÉ NEW YORK.
O local é explêndido, luxuosíssimo, parece um castelo de cenário de
filme.
Suas abóbodas suntuosas com pinturas renascentistas, afrescos com
anjinhos, muito veludo na cor vinho, e muito dourado.

Uma húngara imbecil e mau-humorada vem nos atender. É muito


antipática, economica nas palavras. Somos socorridos por um garçon
de dois metros de altura, muito gentil.
Infelizmente não havia mais café porque já era tarde.
Eu e Cunca tomamos uma sopa de batata que era apenas comível e
Tânia uma pizza com mortadela.
Às 9 da noite voltamos ao hotel de bonde.

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Tânia espirra algumas vezes debaixo do abrigo junto aos trilhos
enquanto aguardamos a chegada do bonde. Deve ser por causa do
pó de ferro que sai das rodas do bonde.
Na praça OKTOGON descemos para caminhar duas quadras até ao
hotel.
Tânia tá muito cansada e vai na frente, se recusando a entrar num
supermercado pra comprar água mineral.

Eu e cunca compramos 6 garrafas de água Evian que tentei pagar


com euro. A vaca húngara do caixa se recusou a receber. Cunca dá o
cartão de crédito. Voltamos aos quartos. Cunca foi pra Internet.
Checheca já está pronta pra dormir.
Vi luta livre até que o sono bateu forte. Apaguei.

BUDAPESTE – 10 DE JUNHO DE 2008

Acordamos ás 8 e meia. Tânia quer ir à piscina no segundo andar.


Estamos no oitavo.
O sol que não vemos desde que chegamos a Paris na manhã do dia
5, bate na janela do nosso apartamento e aquece.
A temperatura lá fora deve estar em 28 graus. Descemos para o
café. Maravilhoso, farto e gostoso.

A seguir fomos bater perna na rua, mas com a missão prioritária de


achar a casa onde LISZT viveu seus últimos dias.
Procuro bancos, casas de câmbio pra tentar trocar 200 euros em
travellers cheques sem sucesso.
A maioria das pessoas com quem tento falar inglês não entende mas
recusa o meu pedido vendo os cheques na minha mão.

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Depois de várias tentativas consegui um banco de nome K e H onde
uma mulher horrorosa e ignorante nos atendeu. Em seguida
começou o nosso calvário à procura da casa do Liszt.
Ninguém sabe do que estou falando quando pergunto onde é a casa
de Liszt, o compositor, o pianista. Minha pergunta é ilustrada com
minhas mãos no ar simulando tocar piano.
Entramos e saímos de várias ruas, mas com ajuda da perspicácia de
Cunca, chegamos ao museu, à casa onde Liszt vivia.
Um prédio feio, velho, imundo de fuligem guarda esse tesouro da
humanidade; o acervo da vida deste compositor maravilhoso.

Na recepção outro calvário;a mulher que vende os ingressos não fala


inglês.
Mas mostra na tela da calculadora o valor dos três ingressos.
Pago.
Me vendo tirar a câmera do bolso do casaco de couro, ela aponta pra
máquina e fala pra cacete em húngaro.

Somos observados por uma velha dos seus 70 anos, parecendo uma
militar da GESTAPO, na entrada do grande salão onde estão os
pianos de Liszt.
Ela tem o olhar e a postura de um buldog com fome.
Entendo que tenho que pagar mais 4 euros para fotografar no
interior das salas onde estão os objetos de Liszt.
Sem flash. Pago sem questionar. Mercenários!

Calçamos sobre nossos tênis uma pantufas podres, velhas, puídas,


feitas em tecido ruim, barato.
Mas enfim, chegamos perto de Liszt.
São duas salas de 6 metros por 6 contendo vários pianos, órgão,
pianolas. Ao lado das duas salas, um auditório com capacidade para
100 pessoas, faz parte do acervo. É onde pianistas e alunos se
apresentam.
A velha da Gestapo nos indica por gestos, mas falando húngaro,
algumas informações.

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Qualquer pergunta que fazíamos era respondida em húngaro.
Não ficamos no lugar mais do que 15 minutos. Escolhi duas
partituras; OS PRELÚDIOS, e RAPSÓDIA HÚNGARA NUMERO DOIS.

Tânia escreveu sobre Ivo no livro de visitas. Saímos do museu e


fomos andar na rua, pra conhecer o povo, a cara das pessoas.
Entramos num shopping de nome WEST END, um prédio esquisito,
em longos corredores que se bifurcam nas extremidades. Tânia
andou pelos 4 andares do shopping com Cunca enquanto fiquei
muna poltrona muito agradável, num café ILLY vendo o povo passar
pra lá e pra cá.

Uma e meia depois, elas voltaram revoltadas porque deixaram de


fazer várias compras devido à ignorância das húngaras que não
conhecem ainda o sistema de chip nos cartões de crédito VISA.
Voltamos andando lentamente para o hotel.
Tânia se queixa de dores no calcanhar. Enquanto manca, espirra.
Ela quer jantar em grande estilo no próprio hotel RADISON SAS que
também é suntuoso.

Concordamos, ainda mais porque estamos de saco cheio de Pest.


Tânia reclama a intervalos: “Ah, Chico Buarque filho da puta!”
Por mim, eu nem viria a essa merda de cidade, velha, feia, cinzenta,
de povo antipático, grosseiro.

De volta aos quartos abrimos nossas compras, descansamos, vemos


tv. Rachel deu um espirro só até agora. Deve ser o ar de Budapeste.
Na Espanha os caminhoneiros bloquearam as estradas, mais
terremoto na China, terremoto na Grécia, avião que explode e pega
fogo no SUDÃO matando todo mundo, Eurocopa.

Descemos para jantar. Somos atendidos por um soldado das SS de


Hitler que num gesto surpreendente, virou às costas quando se

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preparava pra anotar nossos pedidos, apenas porque resolvi pedir
também a carta de vinhos.
Estúpido, filho da puta!
Sou socorrido por um garçon a pouca distância que presenciou toda
a palhaçada do grosseirão.
Robert, seu nome. Nos atendeu muito bem, e ficou muito
constrangido com o comportamento do colega idiota.

Eu e checheca tomamos um Chardonnay geladinho, cunca tomou


coca e pediu uma pechuga (peito de frango) com um molho
delicioso.
Tânia comeu um macarrão razoável, e no meu prato, parece que
alguém fez cocô bem sólido e botou 5 mariscos em volta da bosta.
Não deu nem pra provar. O aspecto era medonho de feio.
Percebi que estava frio aquele montinho de cocô marron, parecendo
miojo que grudou parecendo um orangotango moído.
Robert, o garçon, gentilmente não cobrou o prato, dizendo que era
obrigação da casa não me cobrar.
Em seguida me ofereceu um cafezinho, comentando meio sem jeito
pra eu esquecer a palhaçada do maitre.

Assim terminou a jornada do dia 10 de junho.Não.não terminou


não;Tânia e Cunca foram para a Internet tagarelar com Adriana,
Rafael, e Claudia no MSN por 15 minutos ao preço de 15 dólares.
Depois fomos dormir.

BUDAPESTE – QUARTA FEIRA – 11 DE JUNHO

Após o café da manhã, fomos conhecer um pouco da história da


Hungria. Nosso hotel RADISON SAS está localizado numa zona de
nível social e comercial médio.É como se estivéssemos hóspedes na
avenida Rio Branco. Estamos hospedados portanto em Pest. O guia
Jorge veio com sua van nos apanhar.

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Ouvimos histórias sangrentas de guerras e lutas libertárias sob o
comando de uma porrada de monarcas, e fomos em direção à Buda,
a outra parte da Hungria na margem oposta do Danúbio que possui
7 pontes muito importantes ligando Pest à Buda. Peste é plana. Buda
é toda localizada em colinas.
Suas ruas estreitas serpenteiam em aclives..
O sol queima nossa pele.
Ouvimos toda a narração do excelente guia Jorge, um colombiano
que vive de turismo há anos na Hungria.

Terminado nosso roteiro cultural, a van nos deixou no centro


comercial de Pest. É uma parte fascinante, com ruas comerciais só
para pedestres, lojas muito bonitas.
A fome nos fez entrar num restaurante muito agradável. Fomos
atendidos por um jovem garçon de nome FERENC, Francisco, em
Húngaro.
De nós três eu fiz o pedido melhor; meu filé com molho funghi e
batatas pequeninas cozidas com casca estava deliciosa.
A cerveja, saborosíssima, gelada. Terminado o almoço nos dirigimos
ao mercado central. Uma chuva grossa e repentina nos reteve por
alguns minutos debaixo de uma marquise.

Logo estávamos dentro do mercado central, gigantesco, fascinante,


todo coberto. No piso nível da rua, lojas de hortifrutis, cereais e
embutidos são um fascínio. Subindo uma longa escadaria, nos
deparamos com um piso retangular de dois mil metros quadrados no
mínimo, repleto de lojinhas e quiosques de artesanato.

As matriôshkas são um show à parte, pelas cores e tamanhos


expostos.
Rachel e Tânia param num quiosque onde são atendidas por uma
moça dos seus 29 anos, muito alegre, de nome GABRIELA. Um
encanto de pessoa.
Nos despedimos com votos de boa sorte e vida longa, e deixamos
Gabi toda sorridente. Foi um encontro divertido e gratificante.

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Voltamos ao hotel, de táxi, pra alivio dos calcanhares de checheca.
Precisamos descansar para o programa de logo mais à noite, um
show típico húngaro.
Às 19,30, duas vans, uma pra mim, Tânia e Rachel e outra para um
grupo de 6 argentinos vieram nos buscar.

Percorremos um longo caminho até chegar numa área fora da


cidade. O local é lindo, todo arborizado. As vans circulam por ruas,
ou melhor; por faixas estreitas de ruas, vielas asfaltadas entre
árvores. Lindo, muito lindo.

Chegamos a um rancho, uma fazenda onde nos instalaram numa


espécie de estrebaria.
O local, um galpão rústico com o teto 20 metros acima de nossas
cabeças, decorado com fardos de fenos pendurados no teto,
utensílios de fazenda, rodas de carruagens e carros de boi, cangas, é
bastante original. O local devia ser um celeiro.

O ambiente, todo ocupado por 50 turistas, coreanos ou chineses


incluídos, é abafado, o ar não circula e não há ventilação mecânica,
muito menos aparelhos de ar condicionado. Todos estamos
transpirando.
Sobre a mesa, duas garrafas de litro de vinhos branco e tinto
acompanhadas de garrafão de soda, e garrafas menores de água
mineral.

Em cima de um pequeno palco com um metro de altura, uma


formação de cinco músicos executando violinos, contra-baixo, um
grande xilofone de formato e som estranho,clarinete, e um spalla
executam músicas populares conhecidas. O violinista é maravilhoso.
O guia Jorge nos explicou depois que ele é o chefe do grupo e
cigano por convicção, aliás;todo o grupo é cigano.

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Durante o jantar farto que incluía gaspacho, um grupo de 3 casais de
dançarinos, se exibe com danças típicas. As três moças fazem um
recitativo em uníssono num dialeto húngaro. Suas vozes parecem de
desenho animado,meio caricatas, infantis.

As canções que devem ser divertidas pelos sorrisos que estampam


no semblante, são entrecortadas de vez em quando por um gritinho
encantador com trêmulo por uma das moças.
A comida é razoável. O vinho de baixa qualidade é produzido no
local.

O showzinho simpático, que não deveria durar mais do que trinta


minutos graças a Deus terminou após uma hora e meia de musicas e
danças intercaladas, com direito a homenagem a nós com a viciada
QUEM PARTE LEVA A SAUDADE, etc,etc.

Nem vou me estender sobre o constrangimento que todos os turistas


do local viveram com a pressão que o chefe dos violinistas exerceu
sobre nós tentando nos empurrar o cd do grupo. Saco!
Do celeiro fomos, nas duas vans, direto pro embarcadouro no
Danúbio. Um barco longo, de 25 metros e 10 de largura nos
esperava pra um passeio noturno pelo Danúbio. Fomos percorrer os
monumentos iluminados por holofotes.Uma moça à bordo nos
brindava com taças de pró-seco geladinho.
Hoje e dia foi maravilhoso e a noite explêndida.

BUDAPESTE – 12 DE JUNHO DE 2008

Café da manhã, malas na porta dos quartos, check-out e lá estamos


nós e os 6 argentinos; 2 casais velhos e um casal jovem em lua de
mel. Vamos para Viena, passando antes por Bratislava.

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Tânia e Rachel já sabem de tudo sobre o casal e estão de implicância
porque os dois não falam, não se manifestam pra nada. Nem
conhecemos os sons de suas vozes.

Uma das velhas é muito antipática. Eles conhecem o Brasil e adoram.


Às 9 em ponto deixamos Budapeste numa van grande em direção à
Bratislava. Andamos durante duas horas e meia por uma estrada
cortando uma paisagem verde, constante, monótona, um porre de
chata. A vegetação é igual, não há cor, não há flor. Não há variação
do verde.
Às 11 e meia estamos no centro comercial de Bratislava.

Fizemos xixi, tomamos café numa confeitaria da praça principal.


Às 12, 45 entramos de novo na van agora rumo ao nosso destino
final; VIENA.
Chegamos em menos de uma hora ao ARCOTEL HOTEL. O hall de
entrada está repleto de homens de terno e gravata. É uma
convenção.

Somos recepcionados agora por outro guia, este argentino, Carlos


que vai ficar conosco até nosso destino final; PRAGA.
Jorge se despede de nós, desejamos a ele os melhores votos de
sucesso e boa sorte.

Um maleteiro austríaco, velho, fedido pra cacete, de modos


abrutalhados fez uma puta confusão com os cartões magnéticos que
não abriam nossas portas e os cofres.
Mais uma coisa que não conhecíamos, temos que passar o cartão no
leitor ótico dentro dos elevadores e só então conseguimos o registro
do andar.
Confusão, falatório, troca de quartos, já que Rachel recebeu o dela
com cama de casal, putz!
Partimos pra rua, em direção à famosa salsicha austríaca.
Devoramos algumas com mostarda, pão, coca cola gelada e partimos
pra rua MARIA AUXILIADORA para entrar e sair de lojas, em meio à

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balburdia que os torcedores alemães faziam na rua por causa do
jogo contra a Croácia, que venceu.

VIENA – 13 DE JUNHO DE 2008-07

Acordei às 6 e 15 com náusea, provavelmente provocada pela


salsicha, Ainda bem que o mal estar se dissipou.
Vamos sair por um tour na cidade, parando primeiro no palácio de
SCHOENBRUN.
De dentro do quarto vejo da janela as árvores fustigadas pelo vento.
O céu está encoberto. Saio em manga de camisa. Foi botar a o pé na
rua e voltei voando pra colocar o casaco de couro.
A temperatura está em 14 graus. A sensação térmica incomoda
muito.

Chegamos ao palácio com chuva e ventos fortes.


Nossa visita foi externa. Tiramos algumas fotos nos magníficos
jardins do palácio e voltamos correndo pra dentro do ônibus.

Nosso guia Carlos dono de uma voz feia, monocórdia conta história o
tempo todo descrevendo castelos, palácios, edifícios, pontes, igrejas,
muitas igrejas.
Paramos de novo, agora em outro palácio;O BELVEDERE.
Rachel quer ver a exposição de KLIMT, que não é o meu Eastwood.
Deus seja louvado, que chatice as obras desse cara. Rachel e Tânia
parecem intimas dele, parecem até que foram à escola com ele
quando eram menininhas.

Do palácio pegamos um táxi pra ir ao museu do FREUD. Checheca


quer ir ao museu do Freud. Desejo antigo. Ela ta falando isso desde
que chegamos à Viena. Então vamos ao museu do rei dos doidos.

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Dentro do museu abarrotado pelas 8 ou 10 pessoas que circulavam
com caras de loucas, movendo-se parecendo Jason sexta feira meia
noite, na porta do cemitério, a atmosfera é um pouquinho pior do
que a de um manicômio.
Nossa, que ambiente saudável!
Uma moça idiota, que deve ser carioca, lia alguma coisa esticada
num divã, réplica do divã do doido mor.

Ficar perto de doidos dá fome.


Entramos num restaurante, onde um garçon nos dedicou uma
atenção especial.
Dentre várias demonstrações de cortezia e simpatia, se encarregou
de traçar um roteiro simples de metrô pra voltamos ao hotel.
A comida que ele nos serviu estava maravilhosa. Tânia pediu um
antipasto à base de champignon, shitake, funghi, alcachofra,
azeitonas e pimentão vermelho cozido. Que delicia!
Eu tomei sopa de cenoura como entrada. Rachel sopa de tomate. O
prato principal foi talharim à carbonara, Tânia pediu Tagliatelle com
frutos do mar.
Comemos de lamber os beiços.

VIENA – 14 DE JUNHO DE 2008-07-04

Às 7 horas, ou melhor; faltando 10 minutos para as 7 horas,


estávamos no lobby do hotel esperando o guia pra nos levar à
SALZBURGO num passeio de o dia inteiro ao preço de 100 euros por
cabeça.
Fizemos tudo correndo por recomendação do guia Carlos para que
não nos atrasássemos.

O filho da puta do guia José, com uma voz grave e pastosa de viado
cansado, cara redonda de nordestino, óculos de grau e um chapéu
ridículo na cabeça chegou sorridente às 7 e meia.

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Subimos no ônibus parcialmente cheio e logo começamos a ouvir sua
narrativa monótona em inglês, e espanhol, terminando cada frase
com “NON?”
-“Good morning, my name is José, non, we are going now to
Salzburg, non, our trip will endure non, all day long, non, but during
the trip, non, i will explain, non…”
Cacete, que narração chata, puta que pariu! Acabava de falar em
inglês, repetia toda a cantilena em espanhol, sempre com o “non” no
final das frases: “Buenos dias, non, meu nome és José, non...” –
Saco!

A paisagem ao longo da estrada em sua maior parte dá sono, de tão


igual, de tão sem graça.
O guia fala dos bosques de Viena que a estrada corta. Quem tiver
insônia, fica curado se tiver que utilizar essa estrada todos os dias
para trabalhar.
Não há outra cor que não seja o verde dos pinheiros que tem 90 por
cento de presença nas encostas e às margens da estrada.
Andamos, andamos, andamos em marcha constante de 100 kms,
num tédio do caralho até nosso ônibus chega a uma parada
obrigatória de nome ROZEMBERGER

O local é luxuoso, a comida exposta é de dar água na boca, os bolos,


tortas, e pudins provocam exclamações das mulheres multiraciais
dos ônibus.
35 minutos depois retornamos à estrada que começou a ficar mais
interessante por causa das fazendas, casas, galpões, celeiros,
grandes extensões de terra plantadas com lavanda, centeio, trigo e
outras culturas que não conheço ou reconheço.

São grande áreas, que se assemelham a tapetes assimétricos,


mudando os tons de verde ocasionados por maturação por cultivo
em dias espaçados.

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A arquitetura dessas fazendas é de cartão postal. O paisagismo em
torno dessas fazendas, sítios, mansões é lindo.

O ônibus pára mais uma vez, depois de quase 1 hora de marcha a


100 quilômetros, para admirarmos os lagos límpidos de um azul
marinho profundo.
Mas não há vida, não há movimentos nesta paisagem. Não vemos
pessoas. Parece cenário fantasma. Rachel olha embevecida o grande
lago azul marinho. E espirra. Deve ser pela beleza do lago fantasma
que nem marola tem.

O único movimento é o de carros indo e vindo, poucos.


Chegamos à SALZBURGO às 13 horas. Nosso ônibus nos despejou na
rua PARIS LODRON e seguimos à pé, atravessando uma ponte sobre
o Danúbio para o lado antigo da cidade, onde fica a rua de comércio
mais movimentada da cidade.

A rua que vimos semi-deserta e encantadora, com roupas de


tiroleses na vitrine há 21 anos, está apinhada de turistas, a maioria
torcedores gregos e russos que vão se enfrentar hoje à noite às 21
horas no estádio da cidade pela eurocopa 2008.

A balbúrdia é ensurdecedora. A estreita rua está multicolorida de


azul, vermelho e branco. Ou melhor azul e branco dos gregos e
vermelho e azul dos russos.

Os bares e cafés estão superlotados. Os cantos de guerra dos dois


paises são ouvidos em várias partes desse lugar.
As vozes de centenas de torcedores ganham dimensão de eco por
contra das ruas estreitas e prédios altos.

Entramos num restaurante para comer salsicha com chucrute e um


grupo numeroso de russos entrou cantando e assoprando aquela
corneta maldita que parece uma buzina de caminhão.

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Alguns clientes reclamam.
Os garçons atarantados tentam servir a todos com presteza e
simpatia.O nosso, um velho afeminado, é elétrico, muito ágil e rápido
nas explicações e no gestual.

Almoçamos rápido pra nos integrarmos à animação que contamina


todo mundo. Me separei das duas pra ir até a casa do Mozart pra
tirar fotos de seus pertences como banquinho, mesinha, violininho,
pianinho, cravinho, instrumentos que ele tocava quando tinha 6 anos
de idade.
O museu fechou às 13,30, naturalmente temendo a bagunça que
reinava desde que o dia nasceu.

Perambular pela rua mais charmosa de SALZBURGO estava muito


difícil devido à massa humana que se comprimia movendo-se em
todas as direções.
Os torcedores gregos e russos com suas fantasias divertidas são um
espetáculo assustador mas ao mesmo tempo engraçado porque
entoam refrões fazendo as pessoas gargalharem. A maioria está
bastante bêbada, circulando em bandos, latas de cerveja nas mãos.

Entretanto não consigo perceber hostilidades no ambiente apesar


das provocações entre eles.. As 15 horas estávamos de volta ao
ônibus para ouvir José dizer “NON” em inglês e espanhol ao final de
cada frase até Viena.

Tânia e Rachel ocupam as penúltimas poltronas do ônibus que é


confortável.
Atrás delas, na última fileira de 6 bancos, um brasileiro de Caxias do
Sul, diverte as duas com suas histórias de conquistador aos 73 anos.
Elas riem muito.
Ao lado do gaúcho, uma moça que desde o inicio da viagem chama a
atenção das duas sobre sua maquiagem carregada, sua falta de
graça, seu mutismo, não diz palavra.

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O velho, incentivado pelo tanto que Rachel e Tânia se divertem com
seus “causos” familiares e conquistas amorosas pela Internet se
empolga e vai retirando da memória casos de conquistas e fracassos,
enganos, mentiras que ele conta via Internet.

Sua neta, a figura apagada que não movia um músculo sequer


ouvindo as histórias do avô, tem no máximo 18 anos.

Um momento de sinceridade do velho gaúcho; sua solidão – é


divorciado há muitos anos – foi amenizada por conta da Internet,
sua companhia constante. De volta ao hotel, Tânia e Rachel fazem o
roteiro diário no final do dia; entram na Internet.
Ficam 15 minutos disparando emails.

VIENA – PRAGA – 15 DE JUNHO DE 2008

Ontem à noite fizemos as malas, deixando tudo pronto para sairmos


depois do café em direção à Praga. Durante o café decidi explicar à
Rachel meus hábitos quando viajo.. Ela se ofendeu, levantou-se da
mesa e saiu pisando duro.
Talvez tenha sido meu modo muito direto de explicar. Mas tenho a
consciência tranqüila de que não fui rude ou desagradável em
nenhum momento, ao contrário dela que tem torrado minha
paciência com suas chatices.

Desde que eu e Tânia começamos a viajar pelo mundo em 1.984


adotamos hábitos muito simples e parecidos de quem tem afinidades
e interesses comuns durante a viagem.
Nos encantamos com vitrines, livrarias, papelarias, cafés,
restaurantes, quiosques de shoppings.

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Jamais viajamos com programação cultural ou social agendada.
Chegamos ao destino, tiramos nossas roupas da mala, colocamos um
pouco de dinheiro na bolsa, máquina, cartão de crédito e vamos pra
rua perambular. Sem rumo, sem pressa, sem pressa nenhuma, sem
mapa.
É assim que viajamos desde que nos conhecemos. Artigos ou objetos
interessantes que não existem no Brasil chamam nossa atenção.
Dependendo do preço, e da aplicação que o objeto vai ter na nossa
vida, compramos.

Eu tenho adoração por bolsinhas de moedas, porta moedas de


couro, chaveiros, ferramentas pequenas, adoro.
Sempre que viajamos, escrevemos uma lista com nomes de pessoas
que desejamos presentear com uma lembrancinha, um cartão que
seja. A única finalidade destes presentes ou gestos é; “estive em tal
lugar e me lembrei de voce.”

Às vezes dou mais do que um objeto, ou item sempre


acompanhados por um chocolate, ou guloseima. É assim com
algumas pessoas, que adoro, e que adoram quando recebem pelo
correio ou diretamente das minhas mãos.

Dentre essas pessoas está minha adorada tia Naná. Pra ela eu
procuro aquele presente que me encanta, que me emociona, que me
faz vibrar de alegria e orgulho. Eu preciso bater o olho e dizer: “é
esse o presente da tia Nana!”

Mando também presentes pra tia Marlene, pra Gardênia, pro tio
Francisquinho e pra minha querida amiga ZELMA CLARK de Sabará.
Ela adora tudo o que compro pra ela.
Logo que chegamos em Paris, comprei numa papelaria perto do
nosso hotel, um porta-moedas de couro muito lindo, porém
pequeno. Comprei, na esperança de achar outro mais bonito e mais
prático.

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Independentemente da minha necessidade, eu gosto de olhar
vitrines, eu e checheca.
Cada parada pra olhar vitrine provocava comentários debochados da
Rachel.
A brincadeira encheu logo o saco porque não tinha fim, era
permanente.
LINA ROSSANA, minha amiga amada que adora gatinhos sempre
ganha presentes meus.
A bobalhona da Eda se desmancha quando levo um presente
qualquer, uma besteira que seja.

À minha lista acrescentei mais duas pessoas que aprendi a gostar


por serem muito atenciosas comigo, pelo tanto que são prestativas;
o meu gerente Eduardo e a assistente Aline do Itaú Personalité.

As meninas da contabilidade e da produção dos estúdios de


dublagem sempre ganham presentes meus. As meninas do café
onde paro pra saborear um pão de queijo com cafezinho ganharam
todas um tubo de chocolate Droiste.
Elas vibram com os presentes. Sempre faço isso também quando vou
a Belo Horizonte e compro bijuterias baratinhas mas muito bonitas
que só existem lá, segundo checheca.

Pros técnicos dos 3 estúdios de dublagem onde trabalho, trago todas


as vezes gelatina de cachaça. Pra alguns amigos trago cachaça
mineira, queijo, doces. Trago também guloseimas mineiras pros
meus amigos queridos da Xerox, Fafá e Manoel.

Vários desses amigos ligados ao meu trabalho são gente humilde,


pessoas que ganham pouco, e se sentem felizes, lisonjeadas com
meu gesto, me lembrando delas.
Numa papelaria perto do nosso hotel em Paris, vi um marcador de
livro com o nome ANDREA, minha professora de hidroginástica.
Comprei, apesar de custar dois euros e 80 centavos, caríssimo!

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Também estava à procura de uma reprodução de gato pra levar pra
Lina, e pra Eda Hungria.
Pra tia Nana eu queria ter levado a loja toda.

Portanto, vitrines que exibiam variedades de reproduções de gato


atraiam minha curiosidade, e conseqüentemente, um comentário
debochado da Rachel.
Ela por seu lado, parou em cada vitrine de lojas de celulares à
procura de um I-phone. ELA ENTROU EM TODAS AS LOJAS, OLHOU,
PERGUNTOU PREÇO, MAS NÃO COMPROU.

Eu e Tânia ficávamos parados do lado de fora esperando ela analisar


o aparelho, o custo, se valeria a pena, etc.
Ela também procurou cada loja LA COSTE que aparecia pelo caminho
querendo encontrar um modelo de bolsa que havia visto em outra
loja e não se lembrava onde. Não comprou e se arrependeu.

No nosso último dia em Paris saímos a pé por vários quarteirões do


BOULEVARD SAINT GERMAIN à procura de uma loja LA COSTE que
havia visto durante o dia.
E lá fomos nós, andando rápido, Tânia com o calcanhar avariado
pelo maldito esporão.

Depois de vários quarteirões chegamos à loja. Batemos com a cara


na porta. Não havia a bolsa. O vendedor nos indicou uma galeria
bem perto de onde estávamos chamada BON MARCHÉ. Lá haveria
uma loja LA COSTE.

Saímos à procura da loja, andando rápido, correndo contra o tempo.


Já eram 11 horas. O táxi viria nos pegar às 12,30 pra nos levar ao
aeroporto Charles De Gaulle pra irmos à Budapeste.
Graças a Deus, achou a bolsa e comprou.
Só faltava realizar agora a compra do I- phone.

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Em Budapeste continuamos parando em frente de vitrines de lojas
que vendiam celulares e eu parava em vitrines de artigos de couro
sempre na esperança de achar um bonito porta moedas. Até hoje eu
procuro um tão lindo e prático como o que comprei de um camelô
africano quando estivemos em Paris em 1.984. Eu adorava esse
porta moedas.

Era só eu parar em frente a alguma vitrine que já vinha a pergunta:


“procurando porta moedas de novo?” – “escolhendo gato de novo?”
“Vai comprar outro presente pra fulana?”
Tânia algumas vezes acompanhava essa chatice, debochando
também.
Uma chata eu tenho que agüentar, mas, caralho, duas?
Para evitar os deboches e eventualmente uma discussão, passei a
olhar vitrines calado.
Olhava tudo e não comentava nada.

Mas, como não poderia deixar de ser, ela continuou atenta ao meu
interesse e tinha sempre na ponta da língua um comentáriozinho
debochado.
Então, hoje pela manhã, durante o café em Viena, resolvi explicar a
ela que tenho o hábito de comprar mais do que um objeto pra dar à
mesma pessoa, e que esse hábito é antigo.]
Ela se ofendeu, achou a explicação longa demais, considerando ter
levado um sermão.

E não falou mais comigo durante o dia inteiro.


Pode ficar o tempo que quiser.

Depois de muitos anos afastados fisicamente, estamos convivendo


24 horas por dia. Nos finais de noite em Paris, levávamos pra dentro
do nosso quarto, um sortimento de presuntos, patês que ela adora,
pão, refrigerante, doces, frutas, cerveja pra finalizar dias adoráveis.
Mas bastou ela se aborrecer pra me isolar. Conheci minha filha um
pouco mais.

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Hoje, durante o almoço numa pizzaria junto ao hotel, pedi um vinho
delicioso.
Tânia sempre brinda a qualquer coisa.
Ou aos 25 anos de casados, ou à viagem, ou ao estágio do Ivo que
não saiu, do Pedro que já saiu, da Glorinha que mandou seu Néio
tomar no cu, da Viviane que agora é garçonete em Amsterdã.
Checheca checheca brinda a tudo. Até a falta de espirros.
Tânia levantou a taça, eu levantei a minha e empurramos uma em
direção à outra.
Rachel levou a taça dela a se chocar só com a da Tânia.
Essa vai ficar na minha memória...

Já estamos há 48 horas sem nos falarmos. Permaneceu assim


durante toda a a viagem até Praga, até chegarmos ao hotel ANDEL’S
pouco depois da 13,15.

PRAGA – 16 DE JUNHO DE 2008

Graças a Deus esqueci o pesadelo que foi a estrada VIENA-PRAGA. A


pavimentação é feita de placas de asfalto com juntas de dilatação
elevadas fazendo os pneus se chocarem contra essa elevação que
causou profundo desconforto em nós por causa dos solavancos
contínuos em nossos corpos. Uma tortura que durou 4 horas e 15
minutos.
O HOTEL ANDEL’S quatro estrelas é maravilhoso, a cama deliciosa
contém dois travesseiros, um grande tipo almofada, e outro pequeno
de penas de ganso.

O piso do banheiro é aquecido.


Dentro do quarto faz frio.
A temperatura ambiente está em 14 ou 15 graus.

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Andar descalço dentro do quarto é uma delicia, porque sair desta
temperatura e pisar no porcelanato quente é uma sensação
desconhecida.A louça, as ferragens, o Box, são moderníssimos de
alto luxo. Rachel foi agraciada com uma banheira.

Passado o encanto da descoberta fomos ao encontro da guia tcheca


às 9 horas pra um tour de 4 horas, sendo 3 horas e meia à pé, sendo
que um dos trechos foi feito numa descida de 700 metros mais ou
menos.
Faz muito frio e chove.
No nosso grupo de mais 8 argentinos, quatro casais, que estão
conosco desde Budapeste, só um deles, um coroa baixinho, 60 anos
presumíveis, é feio e antipático com sua jovem mulher de 35 anos no
máximo.
Não se relacionam conosco.

E há um casal jovem, que deve estar em lua de mel que devem ser
surdos mudos, porque eles não falam em momento nenhum e não
devem mijar também, porque nas paradas na beira da estrada, os
homens corriam pro banheiro pra esvaziar a bexiga. O jovem
argentino não. Deve estar se alimentando de luz. Ela também.
O nosso guia Carlos, tentou proteger Tânia e Rachel da chuva com
seu guarda-chuva.
Na descida dessa rua íngreme Tânia se estabacou porque o o piso
está muito escorregadio.

A guia de nome impronunciável tem um espanhol impecável.Feitas


todas as explicações sobre a república tcheca, sua história, suas
guerras, monarquias, principados, santos, Wenceslaus, irmão
matando irmão por causa do trono, subserviência aos Habsburgos do
império AUSTRO-HUNGARO, depois de falar de castelos, palácios,
nobreza, pontes, partes baixas, partes altas, rios Danúbio, Moldava,
depois de mencionar tchecos ilustres como DVORAK, JANACEK,

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GUSTAV MAHLER, entramos na igreja de São Wenceslau que tem os
vitrais mais lindos que já vimos na vida.

Fomos liberados de las explicaciones na PONTE CARLOS que está em


obras. E então passamos a conhecer as vielas charmosas de Praga,
as lojas, os souvenirs, os cristais, porcelanas, matriôshkas. O guia
Carlos detesta os tchecos por sua antipatia no relacionamento com
turistas.
Logo logo comprovei isso.

Olham com hostilidade pra o turista entrando em suas lojas e


respondem à consultas sobre o artigo com extrema má vontade.
Numa loja de artigos de madeira lindíssimos, me encantei por um
gatinho de pouco mais de 10 centímetros de altura que estava na
vitrine.
A loja é lindíssima, com artigos exclusivos, Rachel e Tânia se
encantam com os artigos de madeira.

Enquanto espero ser atendido, ouço alguns espirros de Tânia. Deve


ser por causa da quantidade de madeiras.
Uma garota muito bonita se aproxima de mim. Peço o gato que
estava lá fora. Ela parece não entender o inglês. Por gestos, faço ela
me acompanhar e indico o gatinho.

Ela faz uma cara que não consegui decifrar, falando em tcheco. Ela
me mostra um gato igual mas com o dobro do tamanho.
Recusei, indicando que queria o que estava lá fora na vitrine.
A jovem linda, mas com expressão de burra, consultou sua chefe que
parecia uma lutadora de boxe, ou segurança de bordel.
Insuportável de antipática, mascando chicletes, murmurou qualquer
coisa em tcheco.
Olhei pra ela com cara de deboche. A Maguila resolveu então dar a
chave pra burrinha tirar o artigo que estava na vitrine.

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Acompanhei a idiota.Tentou colocar a chave na fechadura. Não
correspondia. Fez um sinal pra eu aguardar e foi lá dentro. Voltou
com outra chave que também não entrou na fechadura.
Voltou lá dentro de novo, agora com a terceira chave que não
entrou. Irritado virei as costas e fui embora.

Quando não somos atendidos por vendedores despreparados, é o


proprietário que fica por perto o tempo todo fiscalizando nossos
movimentos, um saco!
Mas ainda não estou odiando o povo.

Há muito barulho no ar por causa da eurocopa.


Hoje vão jogar Croácia e Alemanha que perdeu de 2 a 1.
Rachel continua me ignorando.
Não podia imaginar que ao se aborrecer comigo, pudesse me evitar.
Algumas vezes tivemos que ficar próximos um do outro enquanto
Tânia ia ao banheiro e percebi o quanto isso a incomodava por causa
do silêncio que se instalava entre nós e que já dura dois dias.

Ela não escondia o alivio vendo Tânia voltar do xixi.


Deus do céu, tão meiga! Quando quer. Ou quando é conveniente. E
tão geniosa.
Estou surpreso e chocado. Mas se ela quiser, assim será nosso
relacionamento pelo tempo que ela quiser. A indiferença é um ótimo
combustível pra cavar abismos.

Tânia já travou contato com esse temperamento na própria pele ao


desistir de um projeto de sociedade com ela em 2007.
Contrariada, o troco que ela dá é pesado.
Chegamos ao hotel mais mortos do que vivos de tanto andar.
Viemos de metrô da estação MÜSTEK até a estação ANDEL’S.
Dentro do quarto nos livramos dos casacos e dos tênis, nos jogamos
na cama.

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Tânia está vivendo uma tortura por conta do esporão no pé
esquerdo.
Pra piorar seu desconforto, o joelho esquerdo está com um esfolado
feio causado pelo tombo de hoje de manhã.
Tomei meia garrafa de vinho que trouxe de Viena e comi um
pacotinho de pistache. Me deitei pra ver o segundo tempo de
CROÁCIA E ALEMANHA que começou às 18 horas. Apaguei.

PRAGA – 17 DE JUNHO DE 2008

Acordei às 5 e quInze da manhã e encontrei o quarto do mesmo jeito


que deixamos ontem, ou seja; Tânia apagou antes de mim. Estou
com fome.
Estou escrevendo pra gastar tempo e poder acordar checheca daqui
a pouco.
O dia está lindo. Vou propor à checheca que a gente ande por
outras partes de Praga. Tentativa inútil. Pegamos o bonde número 9
que passa aqui na esquina do nosso hotel e nos deixamos
transportar pra ver até onde ia dar o destino dele.

Curioso o bonde; o passageiro pede a parada, o bonde pára, mas o


próprio passageiro é que tem que apertar um botão pra porta abrir.
Serpenteamos por cerca de 40 minutos pelas ruas de Praga até parar
num local ermo muito parecido com a estrada Rio Petrópolis.
O motorneiro desceu de sua cabine e veio em nossa direção,
percebendo que éramos os únicos passageiros á bordo. Perdidos.
Ele não fala inglês.
Indicamos que queríamos a estação MÜSTEK.
O tcheco entendeu e apontou com o dedo que deveríamos sair dali,
esperar outro bonde e fazer conexão com outro mais na frente.

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Caminhamos a pé por quase 500 metros, checheca mancando,
pegamos o trem e descemos no centro da cidade.
Era o que queríamos; o resto do dia foi dedicado a perambular por
lojas, vitrines, algumas comprinhas e pausa pra saborear um bom filé
argentino com batata ao murro com creme.
Delicioso.

Rachel que pouco a pouco volta a olhar na minha direção, e arrisca


algumas palavras continua muito arredia, me evitando.
Foi tão grave assim o que fiz?
Chegamos de volta ao hotel às 8 da noite, com dia claro. Comprei no
supermercado TESTO alguns presuntos, queijos, pão, água, coca
cola, pasta dental.
As duas ficaram tagarelando dentro do quarto enquanto eu via na tv
tcheca a Itália bater a França por 2 a zero pela eurocopa.

PRAGA – 18 DE JUNHO DE 2008-07-13

O dia hoje foi dedicado à bateção de perna pelas lojas no centro


turístico. Perambulamos pela ponte Carlos, Tânia espirrou bastante
na ponte. Deve ser a evaporação da água do rio Moldávia.
Entramos num restaurante, quer dizer; entramos não, ficamos
debaixo de barracas coloridas de um restaurante bem próximo à
saída da Ponte Carlos. Pedimos kafta que aqui é chamada de KEBAB.
Eu pedi um filé de frango e os acompanhamentos foram berinjela –
deliciosa - à milanesa e salada grega.

Depois do almoço continuamos nossa peregrinação por lojas e


galerias. Votamos cedo ao hotel para descansar porque à noite
vamos perambular pela ponte Carlos, ver os palácios e pontes
iluminados sobre o Rio Moldávia.

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De tanto caminhar sentimos fome. Na praça onde os torcedores se
reúnem pra assistir num telão aos jogos da eurocopa, entramos num
restaurante e comemos a pior refeição de toda nossa viagem.
Alguém pode errar numa BRATWURST?
Pois essa merda de restaurante errou! Pedi uma sopa de legumes
que veio com umas 8 mini-almôndegas absolutamente indigestas de
tão ruins.
Pagamos a conta e fomos procurar um MacDonald’s pra comer
hambúrguer e batata frita.

Dali caminhamos cerca de 100 metros e entramos na estação do


metrô MÜSTEK.
Na maior cagada, pegamos o último trem que nos deixa ao lado do
hotel.

PRAGA – 19 DE JUNHO DE 2008-07-13

Acordamos relaxados e felizes porque hoje é o ultimo dia desta


viagem que foi, talvez, a melhor de todas as que fizemos.
Desço com as malas e bolsas para fazer o check-out enquanto
Rachel e Tânia vão fazer mais umas comprinhas.
Às 11,20 elas chegam. Tanto procuraram que acharam o edredon
que está nos cobrindo desde que chegamos à Europa.
Mas Tânia se apaixonou especialmente por esse do HOTEL ANDEL’S.
Às 11,45 um senhor semi-calvo, cara simpática chega nos
procurando. É o transfer para Lisboa.

Rachel que já se dirige à mim, comprou uma manequim decorativo


do tamanho dela. O simpático tcheco falando um espanhol impecável
nos levou até o chek-in do aeroporto. No chek-in, já despachamos
nossas 3 malas que juntas, ultrapassaram os 60 quilos. Como essas
mulheres compram, meu Deus do céu!

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Uma loirinha gordinha muito simpática fez todo o nosso embarque.
Vamos na classe executiva que imaginei lotada e superapertada por
causa do deslocamento curto de no máximo 3 horas até Lisboa.

Passamos pela revista, detector de metais, ficamos quase nus, mas


finalmente estávamos liberados para bundear pelas várias lojas do
FREE-SHOP.

Temos direito ao Lounge e corremos pra lá. Um local reservado,


agradável com snakes, vinhos, whisky, refrescos, yogurtes, patês,
salgados, queijos, embutidos, geléias, pães variados.
Até camarão grande à milanesa tinha. E largas poltronas pra gente
relaxar e esperar o tempo passar, já que são apenas 13 horas e
nosso vôo está previsto para 14,30. Tenho algumas coroas que gasto
comprando chocolates que darei de presente para várias pessoas.

Entramos no avião com 20 minutos de atraso, portanto, às 14,50.


Chegando à classe executiva, tivemos a deliciosa surpresa de tê-la só
pra nós três. Somos os únicos passageiros a ocupar 3 poltronas num
espaço que deve ter 30 poltronas.

Recebemos uma atenção especial das comissárias e do comissário


que se encantou com Tânia e Rachel. Os três estão tagarelando
desde que foi servida a refeição, por sinal deliciosa.
Eu pedi POMPANO com vagem, batatas, mini-cenouras, cebolas,
champignons tudo misturado a um molho maravilhoso. Tomei um
vinho estupendo de gostoso.
Como sobremesa, apfelstrudel.

Estamos nos aproximando de Lisboa e o comissário não sai de perto


da Tânia e da Rachel. Os três continuam se divertindo, agora estão
comprando todo o estoque de importados. Um quarto integrante se
junta ao grupo. São 4 a dar gargalhadas. Pensei que fosse mais um
comissário de bordo. Não era. Tratava-se do piloto em pessoa, um
jovem de 24 anos que ficou parado junto delas jogando charme.

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As duas devem estar encantadas com ele. Curiosamente nem uma
nem outra espirram. Deve ser por causa do entusiasmo pelo piloto.
Do lado esquerdo da aeronave onde me encontro, vejo os Alpes
italianos cobertos de neve. Lindo. Já percebo o avião baixando. O
piloto foi dar uma circulada pelo avião e parou de novo perto das
duas. Mais risadas. Tânia quer saber se ele vai com freqüência ao
Rio. Deve estar armando pra Rachel. E nada de espirrar.

Nossa, que comida, que vinho! É a compensação que estou tendo


por causa da droga de comida que nos serviram ontem naquele
restaurante de merda em Praga.

Estou particularmente maravilhado com o conforto desta viagem,


com a camaradagem da tripulação, a qualidade dos alimentos. Quem
dera nossas viagens fossem todas assim.
No desembarque, um motorista de táxi à serviço da TAP como
transfer nos levou ao hotel Dom Pedro Pálace.
Assim que saimos do aeroporto, Tânia começou a sabatinar o
motorista ANTONIO SANTOS, cara de bebum, bafo de bebum, cara
avermelhada, olhos muito vermelhos. Ele devia estar mamando
dentro do carro enquanto nos aguardava.

Tânia quer porque quer comer um bacalhau aos murros. Antonio a


corrige dizendo que é bacalhau “ao murro”. Ela já veio do Brasil com
várias indicações mas Antonio nos indica o restaurante PAP’AÇORDA.
O hotel DOM PEDRO PÁLACE é luxuosíssimo. É onde a TAP aloja
seus passageiros que porventura tenham que pernoitar em Lisboa
por conta de conexão demorada entre um vôo e outro.
A recepção foi excelente com recepcionista educadíssimos e
atenciosos.

As moças pras quais trabalho como carregador se encantam com os


dois apartamentos.
Temos fome.

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Tânia enche o saco falando do bacalhau ao murro.
Mal entramos no apartamento 714 – o da Rachel é o 715 – deixamos
nossa bagagem, e fomos caminhar pelo shopping amoreira, para
esticar as pernas. Estamos há quase 10 horas inativos e sentados.
As duas concordam com minha sugestão de caminharmos para ativar
a circulação.
Andamos pelo shopping durante uma hora e meia por corredores
totalmente vazios.

Os portugueses estavam em suas casas acompanhando a seleção


portuguesa do Felipão apanhar de 3 a 2 da Alemanha.
Por fim, exaustos, com fome, pegamos um táxi e fomos pra
PAP’AÇORDA, um restaurante velho, feio, numa rua estreita, suja,
com gente feia, mal encarada nas redondezas.
O ambiente é feio mas não nos assusta.

Dentro do restaurante cheio pedi como entrada mariscos ao molho


de natas. Tânia pediu camarões sem casca, frito com alho. Ao pegar
nos talheres pra começar a devorar os camarões, espirrou um espirro
só, mas que espirro! Deve ser por causa da visão do camarão frito.
As duas miam de prazer. Quando o bacalhau chegou acompanhado
de batatas, quem teve vontade de gritar fui eu.
Deus do céu, seja louvado! O cozinheiro que faz aquela delicia sabe
o que está fazendo.
Tomamos um chardonnay muito saboroso.
Rachel toma coca cola.

Durante o jantar minha filha chora falando de seu término de


relacionamento com o carcamano. Falamos de vida, de
desencontros, de equívocos, exponho minha opinião, favorável à
atitude dele, árdua, indigesta, mas honesta, sensata. Ele descurtiu,
desistiu, não quis mais. E tem esse direito.

A sobremesa foi uma curiosa mousse, quer dizer; curiosa é onde e


como ela é servida.

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Um garçon abraçado a uma bacia enorme cheia de musse e uma
colher de pau chega à mesa e enche o prato de sobremesa de uma
massa escura, apetitosa. As mulheres vibram com a mis-en-cene
muito mais do que com o a musse de chocolate.

Na saída, um táxi tendo ao volante um jovem que se revelou cantor


de fados veio discutindo comigo sobre futebol. Tânia e Rachel estão
quietinhas. Rachel mais ainda. Só ouvi alguns espirros dela. O
motorista disse ter cantado com AMALIA RODRIGUES num concurso
de jovens cantores fadistas. Entramos no hotel bêbados de tanto
sono. Desmaiamos.

LISBOA – 20 DE JUNHO DE 2008.

Acordamos hoje de bem com a vida, ainda não eram 8 horas.


Lamentei ser tão cedo Tânia lembrou que em Lisboa estamos uma
hora atrás de Praga por conta do fuso-horário. Liguei pro quarto da
Rachel que já estava acesa querendo descer pra tomar café. Que
bom, a raiva dela parece ter passado, ela já fala comigo
normalmente. Voltou a me chamar de paizinho.
As duas estão loucas pra ir ao CORTE INGLÈS, uma loja de
departamentos espanhola que é a paixão da mulherada.

Eu também estou excitado pra ir lá.Tenho esperança de encontrar a


carga de ponta de feltro fina pra a caneta Cross que comprei em
promoção há 20 anos em Madrid. Desde que a carga acabou não
encontrei mais a substituta. A caneta então ficou esquecida na
gaveta.

Um brasileiro muito legal de Porto Seguro empregado do hotel, ficou


um longo tempo perto de nós durante o café. Disse que podemos ir
à pé ao Corte Inglês.
Tânia se recusa, primeiro por causa do calcanhar que atormentou ela
durante a viagem. Segundo porque ela não quer se arriscar a perder

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tempo. Nosso transfer do hotel para o aeroporto está marcado para
as 13,15.

Rachel fica excitadíssima travando contato com o Corte Inglês.


Completamente perdidas, sem saber por onde começar a comprar,
olham em todas as direções. Rachel começa a espirrar. Deve ser por
causa da excitação de ver uma loja tão grande e com tantos artigos.
Tânia fica feliz com a alegria dela, já que é viciada em Corte Inglês.
Me separo das duas e saio à procura da seção onde tenho esperança
de encontrar a carga da caneta.

Aleluia! Achei a carga por 3 euros e 10 centavos. Comprei 3 cargas.


Agora vou à seção de brinquedos. Perco o juízo com um kit HOMEM
ARANHA pro Gu. A mascara do kit é de tecido, de modo que o Gu vai
poder enfiar a máscara e esconder toda a cabeça.
Tem até o lança teia de aranha. Em seguida fui mais um piso abaixo
pra tentar encontrar um salgadinho inesquecível que comprei há
anos em Barcelona; favas fritas fatiadas. Uma delicia.

Foi chegar na seção e encontrar. Comprei 3 pacotinhos, dois pacotes


de pistache sem casca.
Com as mãos cheias de sacolas, preocupado com a falta de espaço
na nossa bagagem de mão, estou rezando para que as duas não
estejam cheias de pacotes.
Em Praga despachamos nossas três malas para o Brasil.
É um ótimo sistema porque nos livra da tortura de ficar esperando a
mala sair na esteira, conferir, pegar aquele peso de novo, botar no
táxi, chegar no hotel, tirar de novo. Ufa!

Então fizemos uma bolsa pequena só com uma muda de roupa,


necessaire pra eventualidades e viajamos sem carregar bolsas.
Mas agora, dentro desta gigantesca e enlouquecedora loja de
departamentos, fascinados com a variedade de artigos e mais ainda
com os preços, to achando que vamos voltar pendurados em
toneladas de bolsas.

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Na mosca!

Quando estou me dirigindo ao caixa pra pagar minhas compras, me


deparo com as duas debaixo de montanhas de sacolas. Meu Deus,
onde vamos acomodar tantos pacotes?
Embora estejamos desfrutando de muitos privilégios e conforto na
classe executiva, tenho medo do abuso. Voltamos correndo ao hotel
onde chegamos ao meio dia e 20.

Tive que pedir à recepcionista que revalidasse os cartões magnéticos


das fechaduras das portas para poder entrar nos apartamentos,
acabar de arrumar a bagagem, desocupar o quarto, o cofre.

Às 13,16 a van do transfer chegou. Logo estávamos no check-in da


TAP onde fomos atendidos por uma moça feia e grosseira, ao
contrário da tcheca, simpática e atenciosa.
Quando fomos passar a bagagem pelo detector de metais, o alarme
soou. Era a latinha de espuma que pressionada soltava um fio
branco, o fio da teia de aranha.
A policial federal, educadamente lamentou, mas tivemos que abrir a
caixa do kit e jogar fora a lata de spray. É proibido o acesso à aviões
com frascos contendo mais do que 100 ml de qualquer tipo de
liquido, principalmente spray.
Que pena! Paciência.

Resolvida essa questão, fomos ao lounge da TAP desfrutar das


mordomias, aliás, bem melhor esse aqui do que o de Praga.
Nosso vôo de número 175 marcado pra 15,35 decolou às 16,15.
A classe executiva desse A-330 está bastante cheia.

Almoçamos bem. Adorei a carne do porco pata negra que os


espanhóis transformam no mais delicioso e caro presunto de Parma
do mundo.
Jamais poderia imaginar um dia poder comer a carne desse porco
frita como me foi servida. Sensacional de tão saborosa.

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Rachel não comeu a carne. Detestou – “Ah, pai, ta ruim!...Chata!

Ela tem um passageiro na poltrona do lado. Está de trelêlê com o


passageiro desde que o avião decolou. O homem é foda. É diretor
financeiro da Merck do Brasil.

Enquanto escrevo esse diário, temos 3 horas de vôo. Faltam 6 horas


e meia
pra chegarmos ao Rio. Tânia trava uma batalha com sua poltrona,
subindo, baixando, esticando, encolhendo, bota cobertor, tira
cobertor, resmunga, resfolega, espirra, vira de um lado, pra outro,
começa tudo de novo. Chegaremos ao Rio às 21,30.
E assim termina nossa deliciosa viagem de 15 dias pelo Leste
Europeu.

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LISBOA – MARROCOS – LA SPEZIA –
GÊNOVA

08 DE AGOSTO – SEGUNDA FEIRA

14,30. Saimos de casa num taxi PONTUAL pro galeão.


17,20. PRIMEIRO AEROPORTO .GALEÃO, RIO DE JANEIRO.
Embarcamos sem problemas no vôo da TAP pra Lisboa, escala de
nossa viagem ao Marrocos. Na excelente classe executiva. Comida
quente, assistência das aeromoças e comissários incansáveis no seu
trabalho de servir. Poltronas hidráulicas que se estendem permitindo
esticar as pernas e até pra dormir um bom sono.

09 DE AGOSTO – TERÇA FEIRA – LISBOA

SEGUNDO AEROPORTO: CHEGANDO À LISBOA. Chegamos


rigorosamente na hora prevista; 06 e 36. Desembarque normal.
Aeroporto descomunal. Andamos à pé alguns quilômetros por
corredores intermináveis. O nosso vôo pra CASABLANCA no Marrocos
sairia às 15,45. Conseguimos fazer o check in logo e fomos pro
centro da cidade mortos de sono andar um pouco e comer bacalhau
no JOÃO DO GRÃO, um restaurante típico que adoramos, no centro
da cidade. Tânia, pra variar, entrou na Zara da rua Augusta.
Voltamos ao aeroporto às 14 horas achando que embarcaríamos às
15 e 45.
TERCEIRO AEROPORTO: SAINDO DE LISBOA. Só decolamos às 17 e
35. Voamos num jatinho nem sei de qual companhia por 55
minutos.
QUARTO AEROPORTO: CHEGANDO À CASABLANCA. Fila de entrada
no pais. Guichê da imigração. O funcionário, pele morena, barba por
fazer, dentes encardidos, aspecto de falta de banho – coisa natural
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nessa gente que anda coberta da cabeça aos pés – olhar antipático,
sonolento, olha detidamente meu passaporte.
Me olha nos olhos, volta a olhar o passaporte. Pergunta o que venho
fazer no Marrocos. Turismo, respondo. Pergunta minha profissão.
Quer detalhes. “Onde trabalha?” pergunta. “Globosat”, respondo.
Ele quer saber o que faço na GLOBOSAT. Respondo, com preguiça,
sem pressa, sem emoção alguma. Eu ficaria ali o dobro do tempo se
essa merda de questionário prosseguisse. Pergunta o nome da
minha atividade. Explico com muitos exemplos. Com a cara mais
para quem quer cair numa cama do que trabalhar, o gorila me
devolve o passaporte me desejando boa estada no país. Ainda
dentro do aeroporto de CASABLANCA nos esperavam KALIL e
ABDUL.
KALIL será nosso guia, nesses 8 dias que passaremos aqui, e ABDUL
é o receptivo, que olha nossos vouchers pra confirmar nossas
passagens. Troquei 1.000 dólares por 8 MIL DIHRAMS em notas
velhas, sujas, fedorentas, que Tânia vai chamar durante toda essa
semana “DIRÁ!”
Percorremos em silêncio as estradas poeirentas mas bem
pavimentadas até o hotel no carro confortável de KALIL que
conversa durante todo o trajeto com Abdul. Cidade feia, poeirenta
um canteiro de obras,ruas bempavimentadas. Transito barulhento.
Todos buzinam impacientes como no Cairo.Os carros são imundos,
cobertos com poeira. Não vejo a vaidade comum no motorista de ter
seu carro limpo. Apesar da frota ser de importados e novos.
O HOTEL SHERATON está localizado numa área feia, pobre, com
prédios velhos, sujos, poeirentos. O desânimo invade nosso espírito à
essa visão seca, sem cor, sem vida. Contrariando nossos hábitos em
viagens, de jogar a mala num canto do apartamento e começar a
bater pernas nas ruas, desta vez não sentimos a menor vontade de
fazer isso.
Optamos por pendurar algumas roupas, e esperar o jantar num dos
dois restaurantes do hotel. O quarto é confortável. No restaurante,
comecei minha batalha épica contra as moscas. Somos servidos por
uma mulher. O cardápio é de uma pobreza franciscana. Pedimos um

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peixe por sugestão da mulher que afirmou ser muito bom.
Recomendo que não usem pimenta no preparo.
E então vem o prato. Inacreditável de ruim, um caldo alaranjado,
aguado, sem gosto, sem sal. Puta que pariu!
Pedi uma garrafa de vinho branco, meia garrafa, pra provocar sono e
voltamos logo pro apartamento pra dormir.

10 DE AGOSTO – QUARTA FEIRA - CASABLANCA

Acordamos às 09. Café pobrin pobrin.


Kalil já nos aguardava do lado de fora do hotel, estacionado com seu
carro, um belo utilitário. É uma espécie de PAJERO, de TUCSON
SANTA FÉ, muito confortável. Eles nos mostra CASABLANCA, fazendo
comentários com seu castelhano que mistura francês, inglês. Logo
nos apaixonamos por ele. Comenta que não sabe o que o turista vê
em Casablanca pra passar 3 dias como nós. Ele diz que a cidade não
tem nada, é ruim, feia, sem graça, não há nada pra se ver.Disse que
ficou três dias dirigindo pra uma brasileira que levou uma porrada de
malas cheias de artigos marroquinos. Ele disse que nunca viu tanta
mala com uma única mulher. Mas ressalta que não sabe o que é que
os brasileiros vem fazer em CASABLANCA.
Damos gargalhadas ao ouvir as observações dele. Pára numa praça
feia, pobre, e mostra um sobrado maltratado, branco encardido, a
madeira das janelas e das portas mal pintadas. Indica que é a boate
onde Humphrey Bogart bebia com Ingrid Bergman e SAM tocava AS
TIME GOES BY no filme CASABLACA. Pergunta se eu não vou
fotografar. Não mostro interesse. Seguimos pelo tour. Paramos
diante da mesquita de HASSAN SEGUNDO, a terceira do mundo
árabe em tamanho, impressiona pela arquitetura e luxo. Compramos
os ingressos e ficamos esperando o momento de entrarmos com a
guia que vai falar pra nós, um pequeno grupo de espanhóis.
Enquanto aguardamos a abertura da mesquita, Tânia, já encantada
com as observações de Kalil, pergunta se ele é casado com 4
mulheres. Nega veementemente dizendo que a própria mulher

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muçulmana já não aceita essa aberração. Mas ressalta que isso pode
acontecer nas classes sociais abastadas, já que o felizardo que tem 4
mulheres, é obrigado a mantê-las com o mesmo padrão social, o que
sái muito caro. E faz um comentário surpreendente pra um
praticante do corão como ele; “entretanto, o sujeito que tem quatro
mulheres não pode ter certeza de que os filhos que pensa que faz
com essas quatro mulheres são mesmo dele...” Tânia se desmancha
de dar gargalhada. Entramos finalmente.
Fiz um monte de imagens do interior da Mesquita. Por causa do
RAMADAN, os poucos restaurantes na cidade estavam fechados. Kalil
nos leva a uma ruazinha em declive bem próximo do mar e para
diante de um hotelzinho razoável de nome HOTEL D’ANFA. Entramos
pra almoçar. Pedimos prato com lagostim, camarões pequenos fritos,
dois pedaços fritos de pescadinha. Bebemos um vinho branco
razoável da região de MEKHNESS. Depois do almoço fomos para o
centro comercial. Kalil aponta para um prédio grande na avenida
principal fazendo comentários zombeteiros sobre o seu proprietário;
Muhamar Khadafi. Descemos do carro pra andar a pé na calçada de
lojas de griffe. Surpreeeeesa!!!! Tânia caiu de boca na ZARA!!!.
Fiquei perambulando pela loja, e tive a idéia de ir pra seção de
roupas infantis. Fiquei alucinado com a moda pra crianças ocidentais.
Comprei dois agasalhos lindos pra Elliot lindo do vô pra botar
debaixo da árvore de natal. E Tânia tá que põe vestido, tira vestido,
põe blusa, tira blusa, experimenta, deixa pra lá, experimenta outra,
deixa pra lá. Ela é feliz dentro da Zara. Aliás, ela já é manjada no
mundo todo como a brasileira que entra, tira tudo dos cabides, leva
muito pouco e fala um espanhol que nenhum espanhol é capaz de
entender.
Eu continuo perambulando, agora na seção ZARA HOME. Caio de
paixão por um par de xícaras de chá de vidro transparente, leves
feito casca de ovo. Comprei o par por menos de 50 dólares.
Maravilhosas. Peço pra fazer a embalagem em plástico bolha.
Já estamos há uma hora dentro da Zara, e Tânia perdida no meio
das gôndolas, comprando blusinhas bolsinhas, carteirinhas,
paninhos. Não tendo mais o que fazer voltamos ao hotel. Bateu

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preguiça às 4 e meia da tarde. Dormimos até às 20,30. Descemos
para jantar no restaurante ANDALUZ do SHERATON.
Tânia pediu “pidgeon pastilla” e eu arrisquei o “crevette grise à
l’huille d’argant”
Que bosta, meu Deus do céu!! Pelo menos o vinho “medaillon” meia
garrafa tava gostoso. Jantamos ao som de um conjunto típico de
música árabe e um crooner agradável. O serviço do restaurante, e
os garçons não podiam ser piores. Não havia uma alma sequer nas
imediações das mesas pra eu pedir a conta.
Por fim, desisti de esperar que alguém aparecesse e saí pelo salão,
olhando pra tudo que é porta que aparecesse pra pedir a conta.O
hotel SHERATON é um 5 estrelas. Imagine como é um hotel de duas,
ou uma só!

11 DE AGOSTO – QUINTA FEIRA – FEZ

Às 7 horas no salão do café o ar no ambiente abafado é uma mistura


de cigarro, futum de sovaco sem banho, café, desodorantes fortes,
perfumes variados. Cafézin pobre, benza Deus!...Às 7 e meia Kalil
vem nos apanhar pra irmos à FEZ. No check out, um recepcionista
antipático, impaciente tentou cobrar os dois jantares que estavam
incluidos na diária. Endureci o jogo com o filho da puta que esbarrou
na minha determinação de levar a briga até o fim. Depois de um
diálogo que ameaçava a paz na portaria pela aspereza que comecei a
demonstrar, o babaca fez cara de Judas arrependido pedindo
desculpas pelo engano. Filho da puta! Hotelzinho de merda!

Na estrada. Calor aumentando. Por causa do Ramadan, Kalil está em


jejum, só se alimentando às 19 horas. De 4 da madrugada até 19
horas sem comer e sem beber nem água. Kalil é muçulmano
fanático. Pratica e lê o corão todo santo dia para a mulher e as três
filhas de nomes complicadíssimos. Tânia faz perguntas de minuto em
minuto. Para responder as perguntas num espanhol complicado,
misturado com um pouco de francês e inglês, ele se vira pra trás. Na

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ânsia de se fazer entender ele fica agitado, gesticulando enquanto
dirige. Ao se virar pra trás pra responder, o bafo do estômago vazio
é trazido até meu nariz pelo fluxo do ar condicionado. Diretamente
na minha cara! Acho que vou viver aqui no Marrocos 8 dias de uma
intensa catinga, tanto dentro como fora do carro.
As ruas imundas de CASABLANCA fedem mais do que qualquer rua
do centro da cidade do Rio de Janeiro. Ao longo da estrada, o lixo
em abundância aparece nos dois acostamentos. O marroquino é
porco com o meio ambiente, joga tudo que é lixo no
acostamento.Percorremos a estrada em silêncio, observando a
monótona paisagem de vegetação baixa. Raramente vemos árvores
altas. Num ponto da estrada, me chama à atenção uma
concentração de árvores sempre do mesmo tamanho. Elas compõem
a paisagem que desfila aos nossos olhos por longo tempo. Pouco
depois, uma floresta de árvores baixas, mostra uma imagem que eu
não conhecia; do chão até a uma altura de 1 metro e meio, não mais
do que isso, os troncos estavam nus, descascados mas de maneira
uniforme.
Kalil subitamente pára o carro no acostamento junto a essas árvores
apontando pra elas dizendo; “ESTO ES CROC. CROC!!”
Não consigo compreender o que é CROC. Ele insiste, repetindo várias
vezes o estranho som de “CROC, CRÓC, CRÓC!!” Quanto mais ele
repetia mais eu desenhava no rosto a expressão de um retardado. O
que é “croc”, meu Deus do céu?? Ele insiste no som mas agora
acrescenta a palavra VINO ao CRÓC. “VINO, CRÓC, VINO, CRÓC.”

A confusão na minha cabeça está enorme. E então veio, finalmente,


o significado de CROC quando ele enfiou o dedo na boca e fez o
barulho de uma rolha saindo do gargalo. Só então eu entendi que ele
queria dizer CORK – rolha. Estávamos ao lado de uma plantação de
cortiças. Descemos pra fazer imagens. Kalil arrancou de uma das
árvores um pedaço da casca, a cortiça e me deu, pra eu mostrar aos
bebedores de vinho.
Seguimos estrada afora. Chegamos à Rabat, percorremos o centro
da cidade, construções novas pra todo lado.

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Temos fome, os restaurantes estão fechados. Kalil circula, agora
saindo do centro em direção ao um bairro. Pára diante de uma casa
grande, num bairro poeirento, cheio de construções novas. Estaciona
diante de um restaurante. Entramos no ambiente. As pessoas
ficaram surpresas com nossa entrada no ambiente escuro, de pé
direito alto. Logo os poucos funcionários silenciosos, acenderam as
luzes, vieram colocar toalha na mesa pra nós, pães com azeitonas e
outros acepipes. As moscas, essa praga que assola o mundo árabe
nos rodeiam o tempo todo. Passamos todo o tempo do almoço
espantando essas pragas. Felizmente o ambiente era muito limpo, as
pessoas muito agradáveis, educadas, discretas, o serviço bem
razoável, as azeitonas deliciosas. Eu pedi – sem saber – como
entrada, iscas de fígado de boi apimentadas. Comi poucas.
Tânia pediu frango, e eu carne de peito de boi cozida com ameixas.
Combinação esquisita, mas estava comível, até com razoável sabor.
Depois do almoço pegamos de novo a estrada, agora em direção à
MEKNESS.Perdi a noção da distância e do tempo percorrido quando
Kalil sái do asfalto tomando um atalho em estrada de terra e areia,
parando perto de um quiosque pobre, feio, sujo. Ao lado do
quiosque, um grupo de homens rudes, suarentos, vestidos com
djalaba se protegem do sol incandescente nas poucas sombras
produzidas pelo quiosque. Eles olham com interesse para nós. O
mais baixinho, vestido com roupas normais, ocidentais, grande
chapéu de palha na cabeça se aproxima do carro. Simpático, falante,
a pele bem escura, curtida no sol, será o nosso guia por entre as
ruínas desta civilização que ocupou o local há mil e duzentos anos.
Ele pede que o acompanhemos.
Estamos em VOLUBILIS, um sitio arqueológico romano. Do século
12. A área geográfica é acidentada, com altos e baixos, vegetação
baixa, seca, o ar quente entra por nossas narinas queimando a
mucosa. O homenzinho caminha rápido por entre trilhas, declives,
aclives, morros e nós atrás dele. Logo começamos a arfar. Uma
revelação nos estarrece; o grande terremoto que destruiu LISBOA
em 1.755 teve reflexos devastadores no Marrocos, atingindo esse
enclave romano destruindo tudo. Pouca coisa ficou de pé. Filmei com

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detalhes as ruínas que ficaram. O espantoso é verificar que
pequenas pastilhas quadradas de cores variadas compunham
desenhos maravilhosos nos pisos das casas, salões, palácios.
O sistema de irrigação, aproveitamento e utilização da água da
chuva era engenhoso. Tânia adora o guia com voz de mulher, pai de
família. Ele tem sempre uma piadinha na ponta da língua. Seu
espanhol é perfeito. Tânia fala que filhos dão um cansaço danado se
referindo à educação deles. O guia disse que eles dão muito
CANSANCIO. Tânia gargalha ribombantemente. As colunas romanas
de VOLUBILIS chegaram a dar uma balançada. Juro que vi.
Finalmente a tortura sob um sol de 50 graus acaba. Voltamos ao
carro de Kalil semi-desfalecidos de sede, cansaço. O ar condicionado
não refrigera nem com a ajuda de HASSAH SEGUNDO o Deus dos
marroquinos com quem EDIR MACEDO aprendeu toda a arte de
fascinar o povo e ficar milionário.
Na estrada de novo, agora em direção FEZ. O movimento de veículos
é quase inexistente. Passa um carro, depois de algum tempo passa
outro, um caminhão, um ônibus, outro carro, com espaços enormes
de tempo. Por todo o caminho, a visão é de vegetação baixa,
ressecada, terra e pedras. Não há cores nas eventuais construções
ao longo do nosso deslocamento. Num trecho da estrada, Kalil pára
no acostamento buzinando pra um pastor de ovelhas cercado de
animais que pastam. O homem, vestido com roupas normais se
aproxima do carro. Kalil oferece a ele o mesmo saquinho com uma
embalagem tetra Pack de leite.

O homem agradece com um imenso sorriso de dentes amarelos,


vários cariados, levando a mão direita ao peito, em cima do coração,
um gesto que estamos recebendo cada vez que nos aproximamos
dos marroquinos. Kalil fala animado com o pastor, a conversa deve
ter sido muito agradável porque o homem sorri sem parar enquanto
fala. Voltamos pra estrada ouvindo a voz pesarosa de Kalil dizendo
que havia comprado esse leite pro amigo que é muito pobre, não
tem a menor chance de melhorar de vida, já que essa região não

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oferece nenhuma chance de melhoria. Diz que o homem mal sabe
escrever o nome e não sabe nada além de pastorear carneiros.
Chegamos às 6 da tarde ao novíssimo “PALAIS MEDINA SPA” Todo o
hall em mármore bege Bahia. O hotel novíssimo, em operação há
apenas dois meses, brilha de tanto mármore. Jantamos bem às 21
horas. Tânia comeu frango de novo – os cardápios são
reduzidíssimos e sem criatividade - e eu um Bife de contra-filé com
cenoura e vagem no vapor. Sem graça, sem graça...
Mas o vinho branco de MEKNESS é excelente. Um detalhe curioso
chamou nossa atenção; ao abrir a pequena embalagem com
manteiga, estava na temperatura quente, a lactose embaixo e a
gordura em cima. Eram 4 ou 5 embalagens. Chamei a garçonete,
que muito humildemente, com um sorriso tímido nos lábios, ouviu
minha reclamação e trouxe outras embalagens, que foram retiradas
de geladeira. Estavam em ótimo estado. Parece que esqueceram a
manteiga fora da geladeira perto de algum calor.

12 DE AGOSTO – SEXTA FEIRA - FEZ


Nosso encanto já está sofrendo os abalos por conta dos contrastes;
opulência em tamanhos, mármores, luxos, ouros, pratas, pedras,
contra atendimentos e serviços pobres, mal executados, comida
ruim, apimentada, sem gosto, sem variedade, com aspectos de falta
de higiene.

Percorrendo a cidade com Kalil e o guia local,HALID. Guia perfeito,


apaixonado pela história de seu povo e seu país, espanhol fluente.
Em sua boca não há um único indicio de dente inteiro. É uma boca
em ruínas, com carcaças enegrecidas. Mais parece uma área
incendiada à espera do rescaldo. Ele é conciso nas explicações, nas
datas, e primoroso na interpretação. Debaixo de um sol de 46 graus
vamos seguindo ele. Aos nossos olhos vão passando rapidamente
muralhas, vielas, palácios, fortificações, vielas.
Enfim chegamos à Medina. Primeira visita: uma fábrica de tapetes
com showroom. Somos apresentados a YUSUF, simpaticíssimo, olhar
e sorrisos angelicais, óculos de grau John Lennon, trajando kaftan,

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não desarmava o sorriso, mencionando num espanhol também
perfeito que éramos muito bem vindos, que importante era nosso
bom relacionamento. Se não desejássemos comprar nada, isso não
teria a menor importância. Frisou esse último item quase com
lágrimas nos olhos. “Son hechos de pura Lana!” O comentário deve
ser um forte ponto de venda. Nos impressiona. E convence. A seguir
um empregado passou a desenrolar aos nossos pés tapetes
lindíssimos, enormes, multicoloridos, de três metros por 4. Preço;
milhares de euros. Tânia com um sorriso resignado declina da oferta.
Yusuf reforça: “Señora, esto es pura Lana, mira!...” e faz um sinal
pro homem que sái rápido, trazendo em seguida um outro menor,
talvez 2 metros por um meio. Preço; hum mil e poucos euros. O
sorriso de virgem Maria não sai dos lábios de checheca. Assustada
com os preços ela sacou de seu espanhol-esperanto: “IÔ TIENGO
TAPÊTÊS COMO ÊSSÊS, EU COMPRÊ COM MINHA AMICA QUE TIENE
UMA LOJA DE TAPÊTÊS EN NOSTRA CIDADE QUE CHAMAMOS DE
ITAIPAVÁ!!” Yusuf fez literalmente ouvidos de mercador, primeiro
por não entender o castelhano que chegou aos seus ouvidos,
segundo porque ele não ia querer perder pra uma concorrente em
Itaipava.
O sorriso de YUSUF continuava beatificado, os olhinhos escuros
enternecidos não mudava o foco; sempre na cara da Tânia. O
homem substituía os tapetes um após outro, por medidas cada vez
menores. Até chegar a um pequenininho de 60 centímetros por 40.
Preço perto de 100 euros.
Desta vez, fiz coro com checheca e nos levantamos dos banquinhos
dizendo que não tínhamos interesse nos tapetes. Yusuf, agora com
um quase imperceptível sorriso nos cantos dos lábios apenas, fez
uma mesura com a cabeça, colocou a mão direita sobre o peito, no
lugar, onde presume-se esteja o coração, deu dois passos pra trás
liberando nosso caminho pra saída.
Em seguida se juntou a outros homens vestidos como ele, que
deveriam ser os donos da loja. Ao passarmos pelo grupo, nosso
sorriso ainda de amigos bem chegados, arriscamos uma expressão
de gratidão pela gentileza da amostragem ,mas não encontramos o

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doce sorriso de YUSUF. Agora sua carinha, antes angelical, estava
dura, eu diria até demoníaca, sem qualquer traço de sorriso nos
lábios, menos ainda nos olhos. Mal murmurou um “até logo.” Mas
também poderia ser um “vão tomar no rabo!” Saimos rapidinho
daquele ambiente abafado, repleto de rolos de tapetes e tecidos.
Achei melhor não fazer o salamaleque que aprendi com Kalil desde
que me recebeu no aeroporto; o de levar a mão direita ao peito em
cima do coração, em sinal de amizade e carinho. De repente, quem
sabe, Yusuf poderia achar que era provocação e me mandar na
cabeça um daqueles tapetes enrolados de 3 metros por 4.
Saindo dali fomos para a área de curtição e produção de couros. O
cheiro no local é nauseante.
Num pequeno e sujo prédio de 4 andares, um marroquino de
expressão safada, canalha mesmo, nos aguarda na porta de 1 metro
de largura por 2 de altura com raminhos de hortelã nas mãos. Pra
que, não sei. Fomos seguindo ele por uma escadaria acima estreita,
de degraus muito altos até chegar ao terraço. Chegando ao
parapeito, vimos abaixo, um pouco à direita de onde estavamos,
uma enorme área repleta de poços com liquidos dentro de cores
diferentes. Então me lembrei dessa imagem na abertura da novela o
O CLONE.
Ué, então foi aqui que fizeram essa cena? E não na India? O anfitrião
com cara de safado explicava que os liquidos de diferentes cores na
superfície desses tanques se devia à agentes químicos adicionados à
água em decantação.
Dentro desses tanques estavam sendo curtidas peles de camelo,
burro, cavalo, boi, carneiro, cabrito, porco. O cheiro é intragável, de
carniça mesmo. Os vários homens, em condições de insalubridade
absoluta, sem camisa, sob um sol de 50 graus, mexiam com pás de
madeira nesses tanques, revolvendo as peles. É espantosa a
capacidade do ser humano de se adaptar às piores condições
climáticas. Depois de nos explicar tudo aquilo, o guia, com olhos de
águia, nos levou de volta ao interior do pequeno e mal cheiroso
prédio pra o showroom. Às compras! Tânia se encanta com os

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artigos de gosto duvidoso pendurados sem ordem, amontoados
mesmo uns sobre os outros.
Graças a Deus saímos daquele forno! Tânia exultante com o monte
de merdas de 2 Reais, 3 Reais que comprou pra dar de presente pra
uma infinidade de pessoas agora e no natal. Ufa! De volta ao carro
de KALIL.
Agora vamos à uma fábrica de ladrilhos, os mais belos do mundo,
pisos, beneficiamento de mármore.
Dentro de um galpão, em parte a céu aberto, somos apresentados
por HALID à um homem, muito simpático, pele clara, olhos verdes,
aparência de quem passa a noite bebendo, de nome AZIZ, porém
com a aparência inconfundível do esperto, o carioca típico. Meu
alerta entrou em ebulição no ato. Não queremos comprar nada,
mesmo porque não quero mais carregar o peso fenomenal da mala
que Tânia vai entupindo de lembranças pra eu ficar puxando pelo
mundo feito burro de carga. Aziz, com muito jeitinho, com muita
doçura, foi nos mostrando passo a passo as fases de produção de
um ladrilho decorado. Desde sua formação no cimento, até ganhar o
esmalte, ser queimado a mais de mil graus em fornos rudimentares.
Espalhados ao longo da visita, em báias, vários jovens, com
predominância de homens – pouquíssimas mulheres em vestes
ocidentais – fazem marcação com papel dos desenhos a serem
reproduzidos, elaboram a pintura com pincéis fininhos, tudo à mão.
Fico maravilhado de ver a destreza desses rapazes fazendo círculos
perfeitos, linhas sinuosas harmônicas sem apoio nenhum para a mão
que pinta os motivos na superfície do ladrilho. Fiz imagens dessas
fases, espero ter registrado boas imagens.

Aziz nos explica com orgulho que vários desses profissionais –


sentados em minúsculos banquinhos, cercados de cacos de cimento,
ladrilhos quebrados, restos de latas de tintas, numa sujeira
monumental – são já formados, mas muitos são aprendizes, que
demoram 5 anos pra serem admitidos como artesãos e ganham até
certificado. Segundo Aziz, essa fábrica de ladrilhos é uma instituição
do estado que banca o aprendizado desses jovens.

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Aziz, o malvado, preparava o golpe final sobre nós. Ao nos introduzir
no showroom, ficamos completamente descontrolados de tanta
admiração, de fascínio, de paixão por tanta coisa bonita, por tantas
mesas de mármores. Uma em especial, uma obra de arte, de tirar o
juízo do Lama do Tibete nos derrotou. Manifestamos interesse em
comprar a mesa. Aziz, com sua expressão camarada, mas ao mesmo
tempo ladina diz meio constrangido o preço da mesa: 50 mil
DIRHAM que Tânia só fala “DIRA.”
Esse valor em euros significa 4 mil e novecentos aproximadamente.
Ameaço sair do showroom, alarmado com o preço, criando pra mim
mesmo dificuldade em levar a mesa pro Brasil. Aziz trava um corpo a
corpo comigo, não me deixa ir embora. Estimulado pelos suspiros em
voz alta da Tânia, e dos murmúrios dela de puro encantamento, eu
digo que não quero comprar a mesa simplesmente por não poder
gastar esse dinheiro, e por não ter. Aziz não se rende; com a
máquina de somar na mão esquerda, tecla um número em DIHRAM
pra tentar me convencer: 45 mil DIHRAM.
Digo que é impossível e quero sair do showroom, ele me segura pelo
braço bloqueando meu caminho. Reduz pra 40 mil. Nego. Ele baixa
pra 35 mil. Tento desesperadamente sair do cerco que ele criou pra
me segurar dentro do showroom, tento mesmo sair, ele me segura
pelo braço com força, e me pede pra fazer oferta, eu me nego, ele
insiste.

Senti nesse momento que poderia fazer uma oferta, mas ainda
segurei o jogo dizendo que não podia gastar esse dinheiro e
acrescentei um comentário, sincero, de que eu não tinha coragem de
propor um preço à altura das minhas posses principalmente depois
de ter testemunhado o cuidado, o profissionalismo, a bela iniciativa
do governo marroquino montando uma fábrica pra ensinar jovens
artesãos.
Eu me sentiria envergonhado de propor algum preço, por essa razão
preferia abrir mão de ter a mesa e queria ir embora, Aziz, arrisquei

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fazendo uma ligeira expressão de beatitude nos olhos. Se ele é
safado, eu serei igual. Ou pior.
Aziz, como um leão que pega sua presa pelo pescoço, me obrigou a
dizer quanto eu podia pagar. Ofereci 25 mil. Ele tentou elevar pra 30
mil. Neguei. Por fim ele concordou. Cheguei a ficar atordoado com o
concordância dele. Uma mesa desse tipo num antiquário no Rio ou
em São Paulo valeria de 15 mil a 20 mil Reais.
Aziz nos vendeu a mesa, fazendo um recibo de menor valor pra
pagarmos menos imposto na transportadora no aeroporto Tom
Jobim ao retirar a mesa que ele prometeu entregar novembro. Que
Deus encaminhe, mas a nossa felicidade foi imensa, comprando essa
mesa que deve precisar de pelo menos 3 homens pra ser
transportada.
Todo esse embate durou um pouco mais de uma hora. Encantados,
apaixonados pela mesa, e pelo clima cordial que envolveu nossa
presença durante o tempo inteiro de nosso percurso dentro dessa
fábrica – a dona, ou diretora da fábrica, fez elogios rasgados a mim
pra Tânia – entramos no carro pra irmos à MEDINA. Não foi um
passeio, foi uma tortura, por um labirinto, de onde o autor da lenda
TESEU E O MINOTAURO se inspiraram pra compor a história. Vamos
seguindo HALID por uma teia interminável, confusa, estreita,
fedorenta, imunda, barulhenta, com as odiosas motonetas circulando
em alta velocidade passando a centímetros de nossos corpos. Nosso
amado guia espiritual KALIL nos disse que jamais entraria numa
Medina, pois não conseguiria sair sozinho. Ninguém consegue. A não
ser quem nasce ali e vive ali.
HALID nos leva pra um restaurante marroquino semi escuro,
decoração deslumbrante. Tânia comeu miando, eu com reservas,
deixei mais da metade da comida que brilha de tanto óleo
avermelhado. Meu estômago, fraco, fica o tempo todo embrulhado.
Me refugio no pão, e no vinho pra saciar meu estômago vazio.
Do restaurante fomos direto pro carro, saindo do ambiente
asfixiante, quente, abafado, poeirento, do futum do povo.
Graças a Deus, de volta ao hotel pra passar o resto da tarde na
piscina deliciosa, água quase morna, sem uma viva alma na água,

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local paradisíaco. Tomamos uma cerveja marroquina deliciosa,
geladinha. À noite, descemos para o restaurante pra jantar. Quando
abrimos as embalagens de manteiga; de novo as que estavam
estragadas. Já fiquei apreensivo e puto. Não consegui fazer cara
simpática e pedi pra trocarem por manteiga em bom estado.
Trocarem sem argumentar. O jantar foi vergonhoso de tão ruim. Um
bife de contra-filé duro, sem gosto parecendo que deixaram a carne
o dia inteiro fora da geladeira. Tinha gosto de sebo. Fiquei muito,
muito puto!

13 DE AGOSTO – SÁBADO - FEZ

No café da manhã; surpresa; a manteiga estragada de novo. Agora


já falei com mais agressividade, comentando que não entendia
porque estavam fazendo aquilo. Ainda na portaria do hotel, comentei
a sacanagem com KALIL, que me deu uma sugestão ótima; pedir
frutas e pães dentro do apartamento em lugar da refeição que já
havia sido paga adiantado. Adorei a sugestão. Mas eu queria fazer
um discurso e reclamar por escrito com alguém que pudesse levar
algum temor aos responsáveis pelo restaurante.Tânia e eu não
queremos mais muralhas, Medinas, casas de artesanato, moscas,
calor, motonetas velozes buzinando nas nossas costas pedindo
passagem, ela quer por que quer ir algum shopping. Kalil não
entende essa sanha consumista de Tânia.
Não demoramos a descobrir que não há esse tipo de comércio em
FEZ. Fomos bater perna no centro da cidade, igualmente imundo,
poeirento, pequeno. Comprei numa loja suja, pobre, um lindo par de
sandálias de couro. Tânia comprou numa loja ao lado alguns artigos
de prata. Voltamos ao hotel pra almoçar. Ao chegar à recepção, me
dirigi a um dos rapazes, por sinal muito simpático, muito agradável.
Toda a recepção é atendida por moças e rapazes educadíssimos
falando francês fluente e inglês.

Num tom de voz baixo, educado, eu pedi que mandassem ao meu


apartamento à noite, um cesto de pães, frutas e água, pra substituir

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o péssimo jantar que tivemos na noite passada. Estava pedindo isso,
também como reparação à falta de educação, de ética, de cortesia,
pela insistência que o restaurante colocava manteiga estrada na
nossa mesa junto com o pão. O meu discurso, apesar de proferido
em voz baixa, calma, era muito pausado, de modo que todos na
recepção ouviam o que eu dizia. Percebi no rosto de todos eles a
vergonha, o constrangimento causado pela falta de seriedade dos
funcionários do restaurante e da cozinha. O rapaz a quem eu me
dirigia, com muita aflição no olhar, me pediu uma chance, me
pedindo que não deixasse de jantar à noite, que a minha reclamação
iria ser levada a sério, mas que por favor, eu não deixasse de voltar
ao restaurante. Assim fiz. Confesso que cheguei meio sem graça,
meio desanimado, por ter me enganado tanto com os serviços de um
hotel tão luxuoso, e de ter sido vítima de tanta falta de respeito.
Os maitres estampavam nos semblantes cortesia e preocupação. A
primeira coisa que fiz ao me sentar à mesa foi abrir as
embalagenzinhas de manteiga. O que parecia ser o gerente, um
senhor dos seus 70 anos, muito alto, cabelos grisalhos, se apressou
a chegar perto de mim e dizer que “essa manteiga está em perfeito
estado, pode acreditar!”.
Jantamos bem, peixe com legumes. Vinho, pão. Estava bom, sem
nenhum requinte, ou sabor especial. Mas pelo menos comemos sem
sobressaltos. Noite tranqüila, pertences dentro da mala e das bolsas
cada vez mais numerosas pelo tanto que Tânia compra.

14 DE AGOSTO – DOMINGO – FEZ – MARRAKECH

Saímos de FEZ às 8 e meia da manhã, em direção à Marrakech.


Antes de entrar no carro, separei 2.000 DIHRAM pra dar de presente
pro Kalil, pelo excelente serviço que está nos prestando como guia,
como motorista, com suas recomendações, dicas e informações
preciosas. Ele ganhou em Reais, o equivalente a pouco mais de $
400,00, uma senhora gorjeta. Educado e gentil como sempre não
quis aceitar o dinheiro, indicando que eu poderia dar depois ao
término da viagem. Mas achei melhor dar o dinheiro antes de

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entrarmos em MARRAKECH, o ponto culminante de nossa estadia no
Marrocos, e onde, segundo o próprio KALIL, gastaríamos melhor
nosso dinheiro comprando produtos artesanais. Ele pareceu muito
constrangido ao receber o dinheiro, acho mesmo que deve ter se
surpreendido com o valor da gorjeta. Atravessando a cidade em
direção à estrada, ele quebra o silêncio, comentando com um sorrido
divertido no rosto que a vida tem seus mistérios e seu fascínio. Disse
que hoje pela manhã, ele sentiu a mão esquerda coçando muito.
Indicou isso por gestos, já que não tem espanhol pra narrar o que
aconteceu. Sentiu a coceira, e se lembrou que quando criança, sua
mãe dizia que isso significava ganhar dinheiro não esperado.
Rimos demais os três, por causa do comentário de que não se
encontraria com ninguém, não era esperado por ninguém, não faria
negócio com ninguém, portanto não tinha a menor possibilidade de
receber algum dinheiro. Não deu mais importância às lembranças
nem à coceira na mão esquerda. Até receber de minhas mãos os
dois mil Dihrams. Foi um momento adorável de diversão. Rimos
muito.

Abrimos mão de uma parada em EFRAM, o que reduziu nosso tempo


de viagem em 3 horas num total de 6 horas e meia.

Iriamos chegar a Marrakech às 18 horas, mas agora nossa previsão é


de chegar às 14 horas. Kalil dirige seu carro com serenidade, por
estradas ótimas, bem pavimentadas, sem movimento algum.
Entramos no nosso hotel ATLAS MEDINA às 14 e 30 mortos de
fome. Corremos para o restaurante, antes que esse fechasse às 15
horas. Meu Deus, que comida de merda! Quanta mosca! Quando
veio a sobremesa, não deu pra comer, só de olhar o aspecto. Kalil
fala com entusiasmo da maior atração turística de MARRAKECH; o
show FANTASIA. Como o vocabulário dele é restrito, não consegue
discorrer sobre o que é a atração.

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Menciona os cavalos, os personagens que galopam com armas e
atiram. Fiquei meio ressabiado, mas como nas mil e uma noites, tudo
relacionado a festas, folclores, músicas, shows, sons, musicas no
oriente médio exerce curiosidade e fascínio. Ele se encarrega de
comprar os ingressos pra nós com toda boa vontade, com todo
entusiasmo. À noite vem nos buscar, está radiante, estômago cheio,
não tem mais o hálito de carniça que eu respiro o dia inteiro dentro
do carro dele. Diz que nossos ingressos, que custaram 100 dólares
por cabeça dá direito a ceia. E lá fomos nós pro show FANTASIA.
Rodamos um bocado até chegar a uma região deserta. No meio
desse vazio, um imenso conglomerado, todo murado. Somos
conduzidos ao interior desse conglomerado. À entrada, umas
odaliscas ridículamente vestidas, muito coloridas, parecendo uma
árvore de natal por tantos enfeites pendurados nas orelhas, nos
cabelos, nos braços, nas roupas, abrem sorrisos à nossa passagem,
já se postando pra fazer as clássicas fotos que eu dispenso. Somos
ciceroneados por alguém da produção do show, que nos leva por
labirintos feitos de gesso recriando com extremo mau gosto as
cavernas dos beduínos, dos povos árabes. Dá pra ver claramente a
péssima qualidade do papelão utilizado pra recriar o perfil irregular
da caverna, as cores berrantes, horrorosas. Deus do céu, que coisa
feia!

Saimos daquele patético túnel dos horrores que só encontra similar


em São João de Meritii pra andar agora por uma alameda longa toda
coberta.
Ao longo dessa alameda, grupos de marroquinos, de 5 ou 6 e até
mais elementos entre homens e mulheres vestidos a caráter, fazem
uma barulhada infernal com seus cantos, gritinhos trêmulos
produzidos por línguas na ponta dos lábios, e instrumentos de
percussão. Não há música feita por instrumentos, apenas percussão,
e os gemidos monótonos que caracterizam a música oriental. Somos
levados à nossa mesa. Diante de nós, uma arena retangular
gigantesca, do tamanho de um campo de futebol, parcialmente

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iluminada por holofotes. Deve ter chovido durante o dia, ou devem
ter molhado a terra da arena, porque se vê claramente que está um
lamaçal em fase de secagem.
Dentro da arena, um preguiçoso camelo selado, sái de vez em
quando levando uma criança para uma volta pela arena. Os turistas
vão chegando, procurando mesas, tirando fotos, há muitos risos no
ar, todos falam excitados, os garçons agem e se movem rápidos.
Começam a nos servir. Peço água pra mim e Tânia. Vem o Cuzcuz.
Tânia come com avidez. Em seguida, vem a metade de um leitão
assado. A cor é linda, o cheiro delicioso. Tânia come tudo uivando.
Vem a sobremesa, frutas em abundância, tâmaras.
Enquanto comemos, os grupos que estavam na alameda nos
recepcionando, agora acrescidos de muito mais membros ,muito
mais instrumentos de percussão, fazem um barulho ensurdecedor.
Eles chegam ao local onde o turista se encontra, envolvem a mesa,
gritando, as mulheres fazendo o tradicional gritinho com a língua
tremendo entre os lábios e batendo nas caixas com um vigor
ininterrupto. Minha cabeça parece que vai explodir. Quando eu penso
que fiquei livre daquele grupo, outro se aproxima, sempre com a
mesma gritaria.
Por fim, uma movimentação de turistas pras arquibancadas da arena
indica que o show vai começar. Nossa, nunca vi nada tão ridículo na
minha vida! Nada mais tedioso, mais chato.

Um grupo de 10 cavaleiros vem em direção às arquibancadas em


alta velocidade com seus fuzis apontados pra cima. Ao chegarem
bem próximos, disparam de maneira sincronizada suas armas. O
barulho é intenso, assusta as pessoas. Voltam ao local onde
estavam, se alinham e voltam novamente em correria pra fazer a
mesma coisa, mais uma, duas, três vezes. Depois um show de
habilidades, com alguns cavaleiros bem magrinhos, jovens, fazendo
os manjados malabarismos de andar em pé no dorso do cavalo,
pular no chão, bater com os pés e voltar pra sela. Um primor de
criatividade.

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E com a graça de Deus, o SHOW FANTASIA – HORROR - ACABA.
Nossa, que vergonha!! Que coisa ridícula. Por isso é tão barato, tão
farto em comida.

15 DE AGOSTO – SEGUNDA FEIRA – MARRAKECH

Acordamos às 7 e meia. Café bonzin. Às 9 o guia RACHID local veio


nos buscar para mostrar muralhas, mesquitas, ruínas, rei tal, filho
tal, dinastia tal, século tal, e tome de KOUTOBIA, KOUTOBIA,
KOUTOBIA, tudo aqui gira em torno da mesquita de KOUTOBIA que
era o centro da cidade e ponto de referência.
Os prédios modernos foram subindo e ofuscaram a importância de
Koutobia na vida do marroquino. Mas o suplicio de sujeira, barulho,
poeira, calor, motonetas velozes são personagens fixos.
Tânia quer comprar DJALABA, as batas orientais que homens e
mulheres usam no oriente médio e que fascinam a fantasia dos
modistas. Quer comprar pratas, ouros, metais, berloques, enfeites,
penduricalhos pra dar de presente. Rachid o guia, anda a passos
rápidos pelas vielas escaldantes, imundas fedorentas. Ao longo
desses becos sinuosos, os comerciantes expõem em gamelas,
bateias, caixas de papelão, de madeira, as suas mercadorias;
cabeças de carneiro, de cabrito, patas, pernas, carnes expostas,
peixes, galinhas, pães.
Tudo fica no chão, poeirento, onde circulam gatos, cães, enxame de
moscas. Meu Deus! Eu tento não olhar pra esse festival de horrores
mas é impossível. Não quero imaginar pisando a cabeça de um
carneiro, nos olhos que são separados das cabeças, nas vísceras. Eu
vou atrás dele, e Tânia resfolegando atrás de mim. O ar que entra
pelas minhas narinas arde, é quente, poluído. Minha garganta,
lábios, estão ressecados. O sol avança rápido para o meio dia.
Entrando à direita, à esquerda, subindo um pequeno aclive, depois
um pequeno declive, virando a direita, a esquerda de novo, sempre
rápido, Rachid até que enfim pára diante de uma loja velha, caindo
as pedaços, suja, fachada pobre onde se lê “EPICES” (ESPECIARIAS)

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Entramos no local apertado, lotado de mulheres turistas de todas as
raças que compram ávidamente essências para rugas, manchas na
pele, verrugas, envelhecimento, cansaço, stress, desânimo, diarréia,
gripe, pneumonia, erisipela, psoríase, o diabo a quatro.
Somos levados por RACHID à presença de SAMIRA, um tribufu muito
agradável que conquista Tânia logo de cara pela simpatia com que
ela discorre sobre as ervas e suas essências. Checheca sempre muito
sempre muito risonha, sempre muito gargalhante, deixou 280 euros.
Desses, pelo menos 80 vão pro bolso do RACHID. Do ambiente
fresquinho com água fria, voltamos ao inferno das vielas de Medina
desta vez à procura de uma loja de jóias características e objetos de
decoração.
Na loja, cuja entrada é pequena e acanhada, não dá pra imaginar
tanta suntuosidade em seu interior. Por três ou quatro andares.
Somos levados por RACHID à presença de ABDUL, um jovem e
simpático vendedor, que tem sua maior arma de persuasão, sua voz
artificialmente soprosa, indicando ao freguês que se trata de um
vendedor de modos suaves, fala mansa, e delicada. Ele retira
frenéticamente de dentro das vitrines horrorosas, de vidros baratos,
manchados, sujos, todos os artigos que merecem as exclamações
entusiasmadas da Tânia que já está caída de amores por ele.

Quando ela pergunta o preço, ele desconversa, guiando ela pelas


vitrines, dizendo: “vamos tirar tudo da vitrine, depois conversamos
sobre os preços...”
Mas ao ver algum item mais bonito ainda, ela suspira e pergunta o
preço. Ele se nega a dizer. Insisto. Ele responde com seu espanhol
quase perfeito: “YO QUIERO SU MUJER CONTENTA!” E põe força no
“CONTENTÁ!!!” Mas não abre mão da voz charmosa, soprosa,
sedutora. Artigos inicialmente de 110 euros caem para menos da
metade. Os anéis, pulseiras, brincos, são lindos, é de tirar o juízo da
mulherada. Tânia sai inebriada de felicidade com as compras.
RACHID mais ainda.
De volta ao inferno das vielas calorentas. Ela quer porque quer
comprar uma KAFTEN pra Andréa. E pra ela própria, claro. Não

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agüento mais essa maratona, minha coluna dói,meus pés queimam,
minha garganta idem, meus lábios, não consigo beber uma única
água gelada.
RACHID depois de muito andar, pára diante de uma parede imunda,
velha, onde aparece uma porta aberta. Lá dentro tudo escuro.

Rachid entra, e nós atrás dele. Dentro do ambiente, abafado, o


futum de suor. Um homem está deitado num banco, em sono
profundo vestindo uma DJALABA. Rachid meio constrangido acorda o
homem que custa a se dar conta de que tem cliente dentro daquele
antro que parece um forno. Um outro homem acende as luzes,
fracas, que iluminam um pouco a escuridão. Tânia fica desanimada
logo com a péssima qualidade das roupas. Graças a Deus saímos
rápido dalí. Já passa de duas da tarde. A fome e a sede atormentam.
Não se consegue beber uma água mineral gelada. Parece que o
marroquino não sente falta disso. Nem todas as biroscas horrorosas,
imundas, fétidas, possuem geladeira, e as raras que possuem,
exibem carcaças encardidas, com buracos de tanto ferrugem. Numa
dessas paradas, a geladeira era depósito de bebida, não funcionava.
RACHID continua andando rápido, deve estar nos levando para outro
pardieiro de roupas feitas pra satisfazer Tânia. Estou atrás dele,
sempre preocupado com essas motos que nos ameaçam a
integridade o tempo todo, estou me emputecendo com essa tortura.
Tânia se mantém atrás de mim, resfolegando, a pele dela brilha de
tanto suor. De repente, o pânico, náusea, tontura,formigamento dos
pés, meu Deus, não quero infartar! Parei junto a um muro, me
encostei numa réstia de sombra e disse ao RACHID que não
agüentava mais. Não queria mais segui-lo. Pedi que chamasse Kalil,
eu queria sair daquele inferno. Rachid vendo minha aparência e
minha excitação nervosa se assusta e chama Kalil pelo celular.
O carro chega rápido. Temos fome. Peço ao Rachid que nos leve a
um bom restaurante. Ele nos leva. Quando entramos, fico puto,
porque é um bar. As batatas fritas que vi num prato perto de mim,
me causam repugnância. Estou cada vez mais puto. A pizza que vi

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numa outra mesa seria capaz de matar uma dúzia de porcos com
uma fatia apenas.
Saimos. Kalil então sugere outro restaurante e saímos à procura.
Parece que ele não conhece bem Marrakech. Paramos diante de um
que não tinha ar, só ventiladores. O cardápio nos pareceu bom.
Enquanto lutava contra as moscas, conversava com Tânia.

Um sujeito gordinho, cara simpática, aproximou-se da nossa mesa.


Na casa dos seus 60 anos, com a pele bem cor de rosa pelo sol de
verão, bem vestido, que mostrava muita satisfação de ouvir o
português. Era um paulista que trabalha com resorts de golfe. Já
estava há três meses trabalhando em Marrakech.
Almoçamos rápido, nos livramos das moscas e voltamos ao carro de
Kalil que nos levou de volta ao hotel. Queriamos piscina. Pelo
caminho.,Tânia reclamou da péssima qualidade das DJALABAS que
vimos por indicação de RACHID. Aborrecido com essa reclamação,
Kalil nos levou a um lugar que tirou nosso sossego, pela beleza dos
artigos, pela confiabilidade da confecção; um centro de artesanato
mantido pelo governo. Qualquer ser humano por mais indiferente
que seja, perde o juízo dentro do centro de artesanato, onde
compramos muitos artigos e Tânia pode finalmente comprar suas
DJALABAS, inclusive pra DÉIA, a tia que é tetéia.
Deus do céu! Perdemos o juízo. Jamais em todas as nossas viagens
conhecemos coisa mais espetacular e tentadora. Indescritível. Fiz
algumas imagens para recordação. O cansaço, o sono, a irritação
desapareceram. Foi um custo arrastar Tânia pra fora. Eu queria
ainda desfrutar da piscina, me livrar daquela umidade, do calor
insuportável, do cheiro de futum dessas djalabas encardidas que vejo
no corpo dos marroquinos.
Chegamos ao hotel às 18 horas. Deu pra tomar banho de piscina por
mais uma hora, numa tarde bonita, clara, água morna, gostosa, mas
a obsessão de Tânia leva qualquer ser humano ao desespero; ela
quer conhecer a tal praça popular que recebe até 5 mil pessoas por
dia. Às 20 e 30 o valoroso e paciente Kalil nos aguarda na portaria
pra levar à praça principal de Medina. Mas Tânia faz mil

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recomendações que não quer ver cobra subindo dentro de cesto
enquanto o marroquino toca flauta.
A praça, gigantesca, é exatamente como as nossas feiras livres,
porém mais variada, com milhares de pessoas que circulam alegres,
as malditas motos no meio do povo parecem não incomodar
ninguém só a mim. O cheiro de fritura infesta o ar. Tudo é muito
iluminado, há excitação no ar, festa, barulho, vozes, musica.
Voltamos ao hotel à meia noite, felizes da vida com nossas compras.
O dia foi produtivo, graças a Deus.

16 DE AGOSTO – TERÇA FEIRA - MARRAKECH.

Nosso vôo em direção à Madrid está marcado para 13e 10. Mas
antes, Tânia quer conhecer a casa de YVES SAINT LAURENT.
Pagamos 40 DIHRAMS - 3 EUROS E MEIO - cada um pra ver uma
floresta tropical que cerca a casa fortaleza hoje transformada em
museu. Na loja de souvenir, as quatro ou cinco moças que atendem
os clientes, são as únicas pessoas antipáticas e anti-sociais que
conhecemos em todo o Marrocos.Voltamos pro carro, queremos ir
embora, partir de Marrakech. Que prazer sentimos todas as vezes
que entramos em museus, lojas, lugares, restaurantes, lugares
públicos, e voltando ao ponto combinado, encontrar Kalil sempre
com o semblante sereno nos esperando.
Ao nos aproximarmos do carro, ele pergunta se gostamos. Agradeço
por ter nos esperado. Ele satisfeito comenta qualquer coisa de ter
tido muita satisfação trabalhando pra nós, que somos muito
diferentes do japoneses. Em seguida conta pra nossa diversão, a
ponto de chorarmos de rir, do espanto dele lidando com japoneses,
do silêncio deles dentro do carro.
“Eu dirigia durante horas, parecia que tinha um cadáver no banco de
trás pois ninguém dizia uma palavra!” Tânia gargalha
compulsivamente. Ele disse que o o japonês se restringe
rigorosamente ao roteiro impresso em poder dele, o japonês, e o de
Kalil. E dá um exemplo; “ se tenho que levar à mesquita de
HASSSAN SEGUNDO, mas comento antes com o japonês que

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poderíamos dar uma parada pra ver uma outra atração fora do
roteiro, sem custo pra ele, sem ter que pagar nada, o japonês
pergunta; ”está no roteiro?” eu respondo NÃO. O japonês sem
vacilar responde NON!! Eu insisto, o japonês responde NON!!” Nossa
mãe, como rimos! “Eles só fotografam. Tudo. O tempo tudo!!”. Kalil
faz com a boca ilustrando com as mãos as maquinas fazendo barulho
ao fotografar em ritmo acelerado”TIK, TIK, TIK, TIK, TIK, TIK, TIK.
Estamos bambos de tanto rir. Ele se diverte vendo o quanto rimos
dos comentários dele. Em seguida, fica imitando os japoneses se
curvando pra frente a cada vez que se encontram. Kalil faz vários
movimentos engraçadíssimos. Nos despedimos dele com tristeza e
saudade. Apesar de divertido, sempre manteve uma postura
respeitosa, teve muita paciência com o espanhol de Tânia, e sabia
que eu o socorria todas as vezes que ele enlouquecia ouvindo o
espanhol de bilbao que Tânia pratica. Pessoa adorável.
Ávidos pra viajar, fizemos o check in, pra descobrir em pouco tempo
que nosso vôo sairia com um atraso previsto de uma hora e meia.

17 DE AGOSTO – QUARTA FEIRA - MARRAKECH


QUARTO AEROPORTO – SAINDO DE MARRAKECH – Nosso vôo
decolou com duas horas e meia de atraso.

QUINTO AEROPORTO: CHEGANDO EM MADRID. Entramos no país


sem problema. Nossa que bom ver esse aeroporto magnífico de
novo, os longos corredores de mármores que brilham, as luzes, as
cores. Loucos de fome paramos numa lanchonete pra lanchar. Não
me lembro de ter comido sanduiches de JAMON com tanta
voracidade. Que pena não poder ficar. Adoraríamos bater perna por
pelo menos dois dias por essa cidade encantadora. Percorremos
corredores, escadas rolantes – é, talvez,o aeroporto mais bonito que
já vimos – à procura do portão K. Bagagens de mão em caixas de
acrílico, mochila, chaves, moedas, máquina fotográfica, raios x,
somos liberados em mais um embarque, por incrível que pareça o
menos aborrecido dos embarques por causa da praticidade dos
agentes de segurança,perfeitamente organizados, competentes em

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seu trabalho de orientar, guiar, informar. Nos
“despimos”rápidamente e mais rápidamente ainda nos “vestimos” e
embarcamos finalmente em direção à GÊNOVA.

17 DE AGOSTO – QUINTA FEIRA - GÊNOVA

SEXTO AEROPORTO. CHEGADA À GÊNOVA. Quase meia noite. O


contraste entre esse aeroporto e o de Madrid, é como colocar a
rodoviária de Nova Iguaçu ao lado do São Conrado Fashion Mall.
Nossas malas saem na esteira. Direto ao ponto de táxi que nos deixa
em frente ao SAVOYA HOTEL no centro da cidade. Uma atitude do
motorista do táxi nos surpreende; ele pára diante do hotel que tem
dois lances de escadas, tira nossas malas e coloca no hall do hotel.
Isso nunca nos aconteceu. O que causa estranheza é merecer uma
gentileza dessas de um italiano. Hotelzinho simpático, recepcionista
educado, sorridente. Em se tratando de Italia, consideramos um
milagre contar com essa simpatia. Dormimos feito criança.

18 DE AGOSTO – SEXTA FEIRA - GÊNOVA – LA SPEZIA

Tomamos o café da manhã numa varanda maravilhosa que


descortina aos nossos olhos a visão aérea de Genova, o seu porto
famoso de onde saiu Cristóvão Colombo para descobrir a América. O
Buffet do café é deslumbrante. O scrambled egg que tanto adoro
com bacon, infelizmente é muito ruim, com excesso de leite. Logo
fomos pra rua pra bater perna. Tânia se encanta com a igreja de
SÃO LOURENÇO. Tentei encontrar alguma corretora de valores, ou
casa de câmbio ou banco que trocasse dois mil DIHRAMS, pouco
mais de 300 Reais, que deixei esquecido dentro da mochila.Droga,
eu poderia ter dado esse dinheiro pro Kalil!
Nenhuma das instituições financeiras que visitei teve interesse em
trocar o dinheiro. Joguei na primeira lixeira que encontrei ao sair de
um banco que foi minha última tentativa de fazer câmbio.

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Nossa bagagem cresce a olhos vistos. Vamos embarcar amanhã cedo
em direção à LA SPEZIA na estação ferroviária que fica em frente ao
hotel. Tânia sugere que eu compre um carrinho pra amarrar a bolsa
que também já está pesada. Comprei na loja do do chinês uma
sacola de nylon que custou 18 Reais, mas era um bom produto.
Distribuimos a bagagem pra equilibrar o peso na hora de arrastar
mala e bolsa pela rua até chegar à estação de trem. Deus do céu, as
duas bagagens parecem pesar uma tonelada cada. Fomos andando
pela rua em declive rumando pra estação ferroviária arrastando os
dois elefantes paralisados.
PRIMEIRA ESTAÇÃO DE TREM. Logo descobrimos que vamos ter
que descer escadas. O sacrifício é enorme, minha impaciência maior
ainda. Pergunta daqui,pergunta de lá, vai pra lá, pra cá. Tânia
esbarra com um casal de brasileiros da nossa idade. Estão tão
perdidos como nós. Finalmente estamos na plataforma certa.
Entramos no trem. Que alívio! Consegui colocar no bagageiro acima
das nossas cabeças a mala, e a bolsa preta de nylon, cheia até a
boca foi ao nosso lado, num vão existente entre a porta do vagão e a
nossa poltrona.
Viagem tranqüila, gostosa, sem barulho, a composição desliza em
alta velocidade sobre os trilhos. Chegamos a LA SPEZIA já com fome.
O táxi nos deixa no HOTEL MY ONE. Estava começando meu
pesadelo em hospedagem. A moça que nos recebe na recepção
dispensa a nós um tratamento cortês mas muito frio. Monossilábica,
responde com palavras curtas e rápidas as nossas indagações.
Perguntamos sobre restaurantes próximos. Ela retira da gaveta um
mapa, mostra com uma caneta o centro de LA SPEZIA onde estão
todos os restaurantes. Descemos para o nosso APERTAMENTO. Que
droga de apartamento, meu Deus do céu!!! A nossa janela dava
diretamente pra um prédio residencial em frente. Impossível abrir a
janela. Queriamos guardar nossos passaportes e dinheiros no cofre.
Estava estragado, não funcionava. A raiva me cegava. Na recepção,
uma voz masculina disse que o técnico de manutenção só chegaria
pra consertar às 16 horas. Com fome,resolvemos ir pra rua procurar
um restaurante. Descobrimos que estávamos muito perto de todos

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eles. Escolhemos um, e ficamos batendo pernas pelas ruas
simpáticas, totalmente desertas, já que o comércio fecha as portas
pra todo mundo ir pra casa fazer a sesta. Voltamos ao hotel, o
técnico apareceu quase às 5, consertou, guardamos nossas coisas e
fomos pra rua de novo.
Mortos de sono e cansaço voltamos ao hotel a pé, já que estamos
bem no centro da cidade.

LA SPEZIA – SEXTA FEIRA - 18 DE


AGOSTO
O refeitório desse hotel desgraçado, é minúsculo, o italiano que dá
suporte as operações de bota xícara suja, bota xícara limpa, talheres,
arruma mesa, atende o balcão, faz um barulho infernal mexendo nas
pias e nas louças. Os poucos hóspedes estão calados, tomando o
café, a voz do italiano é alta, esporrenta, parecendo italiano de
Roma. O café destinado aos hóspedes é uma água marron
horrorosa! Tânia teve a feliz idéia de pedir café expresso em xícara
média. Foi uma idéia dos deuses. O pão, a manteiga, o croissant são
ótimos. O scrambled egg assusta até cachorro esfomeado pela
aparência nojenta. Não dá pra comer, mas o bacon é uma delícia.
Nos livramos do café e fomos pra rua, bater perna. Queremos
conhecer os cinco vilarejos de CINQUE TERRE. Indo em direção ao
porto, ficamos deslumbrados pela paisagem, lindíssima. A cidade é
uma delicia. Chegando ao porto, nos quiosques de venda de
passagens, compramos ida e volta pra MONTEROSSO.
O embarque foi o caos, muito demorado, uma multidão esperando
pra entrar, chinês a dar com o pau. Ô gente sem educação, puta que
pariu! Nos empurram, não pedem desculpas, passam como animal
entre as pessoas trombando, empurrando e são incapazes de pedir
desculpas. Estou muito irritado.
Descobri que estou num barco desses que ligam Paquetá à Praça 15
nos sábados de verão no Rio de Janeiro. Não há mais bancos
disponíveis, o calor é infernal, o trânsito de pessoas se espremendo
pra lá e pra cá é intenso. O barco está superlotado, a maioria está
de biquíni, sunga e saídas de praia. Saimos navegando por águas de

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cor azul marinho. A paisagem é linda. A voz estridente do timoneiro
avisa: “PORTO VENERE!” Nossa primeira parada. Sobe mais gente do
que entra nessa parada, todos paramentados pra praia. Logo
descobrimos nas pedras banhistas tomando sol, pulando na água.
Portanto, não é praia, a praia desse povo todo é tomar sol em cima
de pedras. De novo a voz avisa: “RIOMAGGIORE!” a segunda
parada. Descem poucos, entram muitos. Pensei no Le bateau, mas
claro, sem comentar com Tânia. Agora estamos indo em direção à
MANAROLA, a terceira parada. Mesma coisa. Já tem quase uma hora
de viagem. As encostas de CINQUE TERRE apresentam um tipo de
FOLHELHO que me fascina. Fiz várias fotos, pra mim espetaculares.
CORNIGLIA é a nossa quarta parada. Quase não desce ninguém.
Não vejo a hora de chegar, quero muito sair desse barco. Que
finalmente ancora na quinta e última parada VERNAZZA
MONTEROSSO. Monterosso simplesmente. O italiano fala não fala o
“Vernazza”, só Monterosso.

Em poucos minutos, descobrimos que a cidadezinha não passa de


uma vila, de casas, prédios baixos com varandinhas charmosas e
vielas estreitas em aclive, declive. É possível que não haja nem mil
habitantes.Já é quase meio dia. Temos fome e sede. Andando pelas
ruazinhas charmosas pra constatar que todos os restaurantes tinham
gente saindo pelo ladrão. Vamos nos embrenhando ruazinha acima,
até que nos deparamos com um restaurante muito simpático.
Fomos atendidos por uma mocinha adorável, muito simpática.
Comemos um peixe que estava bom. Nossa volta será às 16 e 30.
Falta uma hora e meia ainda. Não há mais o que ver por aqui,
queremos ir embora. A praia de Monterosso, é a metade da praia
Vermelha na Urca. Forrada de cascalho escuro. Muito pedregosa. Um
monte de corpos brancos se espreme naquele espacinho. A água é
cristalina.
O barco chega e parte na hora exata. Não agüento mais essa gente
engordurada, esse futum de sovaco sem sabão dos banhistas do

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piscinão de Ramos. Chegamos enfim...em LERICI. Achei que era LA
SPEZIA. Descemos uma parada antes. Burro!
Ficamos quase meia hora esperando o ônibus que nos trouxe à LA
SPEZIA. Loucos pra ir pro hotel, tomar um banho, me livrar desse
cheiro insuportável de maresia. No apartamento tive uma crise de
ódio incontrolável, por causa da pouca água que corria daquele
chuveiro filho da puta. O banheiro é tão pequeno que quando o
sabonete cai – e ele cai várias vezes – tenho que abrir a porta pra
poder pegar. Ah hotelzinho filho da puta!!De banho tomado, humor
melhorado, vamos pra rua procurar um restaurante. Comemos muito
bem, com vinho, frutos do mar. Cama. Sono reparador.

LA SPEZIA – SABADO - 19 DE AGOSTO

Dolce far niente. Só bater perna, fazer fotos, comprar bobagenzinhas


que nos encantam. O hotel é tão filho da puta que resolvemos sair
um dia antes das diárias acabarem. Fomos à estação ferroviária pedir
pra antecipar de domingo pra sábado nossa partida pra Milão. De lá
nós vamos pegar um avião pra Lisboa. Fizemos a troca sem
problema, pra meu alivio. Felizes, voltamos pro centro da cidade pra
continuar nossa atividade constante; NADA. Paramos num
restaurante que nos pareceu muito simpático.

O garçon, de nome STEFANO foi uma grata surpresa. Tânia se


encantou por ele, que adora as havaianas. Se queixou do preço
delas em euros na Italia. Tânia pediu a ele o endereço pra enviar de
presente. A comida estava simplesmente deliciosa! O vinho mais
ainda.
Voltamos à noite pra jantar, comida mais deliciosa ainda. Que pena
não termos descoberto esse restaurante e o Stefano antes.
LA SPEZIA – DOMINGO - 21 DE AGOSTO

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Café da manhã nesta merda de hotel barulhento. Dando graças a
Deus, saímos em direção à estação ferroviária. Pegamos nossa mala
que estava no depósito, e em plena estação, Tânia tentou rearrumar
a mala e a valise preta que compramos na loja do china em frente ao
hotel SAVOY em Gênova. O trem partiu no horário previsto de 11 e
20 da manhã em direção à Milão. No imenso vagão somos três
pessoas; eu, Tânia, e o passageiro à nossa frente, tocando nossos
joelhos nos dele. Tânia sai da poltrona e vai pra uma individual à
direita.
A nossa mala está no corredor. O chefe do trem passa pra lá e pra
cá a todo momento e ainda não implicou com nossa mala no chão.
A cada parada do trem, mais passageiros vão ocupando as poltronas
e colocando suas malas no bagageiro acima de nossas cabeças.
Chega o momento em que tive que enfrentar a realidade; empunhar
a mala acima da cabeça, levantar esse peso monumental de quase
35 quilos e botar no bagageiro. Olhei pra mala no chão não
acreditando que conseguiria levanta-la sozinho. Não sei o que me
deu, o fato é que de um arranco só, levei aquele hipopótamo acima
da minha cabeça, e quase arrebentando todos os nervos do meu
pescoço, consegui botar no bagageiro. E o medo dela cair na cabeça
da mulher que estava exatamente embaixo dela? Por sorte, os trilhos
na Europa não tem curvas fortes, tudo é muito suave. Duas horas
depois chegamos à MILÃO.

MILÃO – DOMINGO - 21 DE AGOSTO.

Depois do sossego dessa viagem, ainda no clima interiorano de La


Spezia, é choque a visão da estação ferroviária de Milão. Primeiro
mundo, literlamente. Imensa. Uma multidão de turistas circula em
todas as direções, em todas as alas. O pé direito da estação deve ter
de 20 a 30 metros de altura. Uma infinidade de lojas, o barulho é
intenso. UM serviço de atendimento ao turista aparece na nossa
frente depois de eu ter procurado muito. Sou atendido na hora. Peço
um hotel perto do aeroporto. O atendente nos indica um dessa rede
HOLLIDAY INN, por 100 euros a diária. Achei barato demais. Ao

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entrar no táxi, nos espantamos como valor que o motorista cobrou
pela corrida; 100 EUROS. Caralho!!! Uma hora depois, o táxi parou
num lugar paradisíaco a 5 minutos do aeroporto. O hotel era
simplesmente maravilhoso. Mas no fim do mundo. Conveniente
porque é colado ao aeroporto. Os atendentes são extremamente
simpáticos, cordiais. Nem me lembro como foi o café da manhã. Bem
cedo fomos para o aeroporto.

MILÃO SEGUNDA FEIRA – 22 DE AGOSTO

SÉTIMO AEROPORTO – MILÃO – LISBOA


OITAVAO AEROPORTO: Lisboa. Pegamos nossas malas que
demoraram um bocado. De táxi direto para o hotel.Só penso em
comer bacalhau, ouvir fado, ir ao PAP’AÇORDA, e Tânia em mais
uma blusinha na ZARA.
Os 4 dias que ficamos aqui foram só pra andar à toa, sem rumo, sem
destino, entramos e saímos do CORTE INGLÉZ, comprei duas
camisas lindíssimas, Tânia um monte de camisas, calcinhas, etc.
Ela quer conhecer um shopping novo. Pegamos um táxi pra ir.
Nossa, que distância, é longe pra caralho!! Demoramos quase uma
hora pra chegar. Mas é bastante simpático o shopping.
Absolutamente vazio. Surpresa! Tânia achou uma ZARA!!!!!!!!!
Comprei numa loja da Swarowsky umas canetas lindas, que não
havíamos visto ainda. Vou dar de presente e nem sei pra quem.

LISBOA QUARTA FEIRA – 24 DE AGOSTO

OITAVO AEROPORTO. LISBOA em direção ao Rio de Janeiro.


NONO AEROPORTO – GALEÃO. 25 DE AGOSTO – QUINTA FEIRA
Viagem excelente, na classe executiva. Na hora prevista, chegamos
ao Galeão. Ufa!!!

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MÉXICO

SÁBADO – 20 DE NOVEMBRO –

Às 6 da manhã estamos no aeroporto internacional para mais uma


viagem. Agora para o México.
O inferno no vôo 8676 começou logo depois das 11,30 quando o
Boeing 777 ganhou altura..

As 9 poltronas em linha na classe econômica são separadas em


grupos de 3 por dois corredores estreitos. Apagado o aviso de
apertar cinto, a passageira da poltrona da frente desceu o encosto
da poltrona... nos meus joelhos..
Começava o suplicio.

Saí do meu lugar e fui para o final da cabine. Os comissários não


deixaram. Portanto, tentando me ajeitar na poltrona coloquei a perna
esquerda no corredor. Não pude ficar assim.

Dois ou três tropeções nos meus pés indicaram os modos educados e


pacientes da tripulação de me chamarem, à atenção.
A má postura logo mostrou seus efeitos: dores lombares agudas me
faziam trocar de posição de 5 em 5 minutos.

Tentei ficar na parte traseira do avião. De novo a tripulação mandou


que eu me sentasse. Tentei argumentar. Inutilmente.
Flávia, a chefe das comissárias me disse que por causa de BIN
LADEN ninguém mais pode ficar em pé durante o vôo. (????????)
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Outros passageiros como eu, tentaram alguma movimentação.
O suplício teve fim por volta das 17 horas – hora do México – 21
horas no Brasil.

Andamos alguns quilômetros dentro do aeroporto até chegarmos à


aduana.…

Não houve demora nem burocracia na liberação dos nossos


passaportes.
O guia Juan nos esperava. Jovem, não mais do que 25 anos, fala
muito mansa e monossilábico.
Tânia sempre curiosa dispara perguntas sobre tudo. Juan
olimpicamente não sabe nada de nada.
Aliás, minto: ele respondeu sobre violência nas ruas. Igual à do Rio
de Janeiro.
Com um inseparável Nextel na mão direita ele checava nossos
vouchers, conferia, conferia.
Pediu as passagens MÉXICO-ACAPULCO-CANCUN-MÉXICO-RIO. Não
as encontrou dentro da pequena pasta de nylon organizada por
nossa poderosa agente Berenice.

Meu sangue gelou. Um instante perturbador. Tânia com os olhos


arregalados olhou pra mim sem entender.
Eu botei as mãos na cabeça em desespero. E agora, meu senhor do
Bonfim?
E agora? E se deixamos as passagens no Rio? Juan nos olhava com
uma calma de fazer inveja. Devia estar pensando: “pobres diablos
brasileños que perderan sus bilhetes de viaje”
Eu abria e fechava zipers das bolsas, enfiava e tirava as mãos nos
bolsos, Tânia fazia a mesma coisa.

Então Juan, olhou pra pequena pasta nas suas mãos com um
pouquinho mais de atenção e verificou – “arriba Zapata!” – que o
boleto de viagem com todo o roteiro estava nas mãos dele..

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Juan plácidamente passou o nextel pra mão esquerda e disse
“sigam-me” e saiu caminhando. Nós atrás.

O rosto da Tânia continuava numa coloração entre cocõ de criança e


amarelo pós porre. Mas logo se recobrou e voltou a disparar
perguntas. Com sotaque cada vez mais impecável. O espanhol dela é
de fazer inveja.
Juan prussianamente, conforme fora orientado, dizia “yo no sè. Voy
a consultar mi jefe.”
Nos juntamos a um casal do Rio de Janeiro. Ele, Philipe, advogado,
ela SÔNIA, do BNDES.

Como o guia não falava porra nenhuma, viemos conversando até o


Hotel Casablanca no centro da cidade poluidíssima, por causa das
obras públicas.
A fome era negra.
Deixamos as bagagens e fomos ao shopping SANBORN em frente ao
hotel. Nossa preocupação - minha principalmente – era com o a
famosa cozinha mexicana que usa pimenta até em sobremesa.
Sentamos no restaurante que parecia cantina de ciep. Indescritível o
que tentamos comer.
Comi um pedaço, comi não; botei na boca um pedaço do
hambúrguer e duas batatas que Tânia pediu como segunda opção já
que a primeira ela não tocou. Tive náusea.
Me levantei e fui cuspir no lixo do banheiro; que parecia banheiro de
rodoviária.
Aquilo que estava dentro do pão era carne de iguana, juro!
Dentro do elevador do hotel, uma foto de um talharim à carbonara já
tinha chamado minha atenção.

Saímos do Sanborn frustrados e fomos comer o talharim ao sugo e à


carbonara no restaurante do hotel. Maravilhosos. Felizes e parecendo
zumbis de tão cansados fomos dormir.
Uma sensação desagradável foi a novidade da noite.: falta de ar.
Parece que não há oxigênio no México.

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Com dois mil, 250 metros acima do nível do mar, estamos arfando
feito sapo chamando a atenção da fêmea. É uma sensação horrorosa
de sufocamento. Apesar disso foi uma noite tranqüila.

21/11 – DOMINGO

Café da manhã maravilhoso. Às 9 da manhã, Pepe, nosso novo guia


veio nos buscar para o city tour. 1 metro e 55 de altura, 60 anos,
pele morena, e cabelos lisos, cordial e atencioso.
E bem humorado.
De novo aquele roteiro trepidante; casa do presidente , casa do
bispo, a sede do partido dos trabalhadores, igreja assim, igreja
assado, “puede salir para que tome-lo fotos.”
Museu, faculdade, praça tal, praça acolá Alfonso.” Junto conosco na
espaçosa van um salvadorenho velho, 70 anos, cego de um olho,
cara de pé de cana, com sua filha, Patrícia, médica, de 30 anos.

Luizito enxerga com o outro através de uma lente grossa de 6 graus.


Ou mais. Ela, muito branquinha, tímida, ao falar conosco não olhava
nos meus olhos, mas fixava o olhar no meu queixo, ou um pouco
abaixo no pescoço.
A impressão que eu tinha é que ela também não enxergava.
Apesar da beleza dos olhos tristes, um deles, o esquerdo, parecia
esquisito, como se estivesse fora do eixo..

Ela adorável, ele meio chatinho, conversava comigo todo animado


como seu fosse salvadorenho. Falava baixo e muito embolado.
De 10 palavras eu não entendia as 10. E a toda hora fazia alguma
gracinha porque ria divertido.
Eu ria junto, embora com menos intensidade porque não sabia do
que ele estava rindo.

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Patrícia é “médica general” – clínica geral – Trabalha em duas
clínicas de emergência. Mãe do Eric Daniel de 2 anos. Mostrou a
foto dele com o marido dela.
O que estará fazendo a filha no México com o pai, longe do filhinho e
do marido?
À tarde fomos às pirâmides. Escalei 3 quartos da maior, a do sol.
Tânia foi até a primeira seção.
Pensei em chamar uma ambulância com maca pra buscar ela.

22/11 – SEGUNDA FEIRA

Às 08,35 Pepe chegou com sua van para nos levar à CUERNAVACA, e
TAXCO, cidade que produz a prata mais pura do mundo. Mais duas
turistas se juntaram a nós. Duas guatemaltecas.
Mãe e filha. Agradabilíssimas.
Em Cuernavaca entramos só para ir ao banheiro, fazer câmbio e
tomar um café.
Tive a nítida impressão de estar passeando no Méier. Não há muita
diferença.
Chegamos à TAXCO às 13 horas.

Vimos os artigos de prata mais lindos do mundo. Fomos a uma mina


de extração de prata. Ou melhor; um cenário reproduzindo uma
mina dentro de uma loja enorme lotada de turistas.
Compramos muita coisa.
Miudezas.
Saímos de Taxco às 18 horas e chagamos às 21 no hotel.

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23/11 – TERÇA FEIRA.

Depois do café, fizemos as malas e embarcamos para Acapulco.


Sempre tive vontade de conhecer Acapulco, por causa dos filmes de
Cantinflas, comediante mexicano ídolo da minha infância.
Acapulco tem uma sonoridade linda quando pronunciado pelos
mexicanos. Me lembro de ter ficado fascinado quando vi no filme de
Cantinflas
“A VOLTA AO MUNDO EM 80 DIAS” a cena do mergulhador pulando
do penhasco de uma altura incrível.
Decolamos da capital às 10,35 chegando à Acapulco às 11,15.

Na chegada um susto; o guia cuja função é esperar o passageiro


com o nome escrito em letras grandes num cartaz, não estava.
Em poucos minutos o aeroporto ficou vazio e nada do guia.
Até que alguém de outra empresa de turismo local disse que o nosso
“estava em algum lugar do aeroporto”
Finalmente o idiota apareceu dizendo que “estava ocupado fazendo
outras coisas”;
Dei-lhe um bom espôrro e graças a Deus nos livramos dele que só
estava ali para nos esperar e encaminhar ao carro que nos
aguardava com as malas para nos levar ao hotel.
Chegamos ao Hotel El Cano, lindo, típico hotel de cidades litorâneas
como Natal, Fortaleza.
À noite fomos ao MAYAN HOTEL, o mais luxuoso e exótico de
Acapulco, assistir a um show típico mexicano de MARIACHIS.

Um showzinho bem vagabundo que não combinava com a


suntuosidade do hotel e arredores.
O Mayan hotel parece construído para um filme em holywood. As
vias de acesso ao fabuloso portal com inscrições maias já eram um
deslumbramento pelo paisagismo, os coqueiros, palmeiras, plantas
ornamentais.

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O hall de entrada foi desenhado pra dar ao turista a impressão de
estar no interior de uma pirâmide Maya.
A iluminação fantástica contribui pra essa fantasia ficar ainda mais
excitante.

Eu mal via a hora de começar o show, sentado numa mesa com mais
8 ou 10 americanos e um casal à direita bem mulato, de meia idade,
que era de Belize.
O coroa falava das praias e das mulheres seminuas nas praias com
sacanagem e volúpia nos olhos debaixo de lentes grossas. Ela
parecia se divertir com o assanhamento dele.
O show era ao ar livre, e nossas mesas foram arrumadas no imenso
gramado que margeava um lago.
Os dois animadores com seu sotaque macarrônico abriram o show
tentando animar a platéia, a maioria americanos. A comida – self
service – era até razoável tendo em conta que o público presente
chegava a 300 pessoas.
Ao final do espetáculo eu percebi que as americanas falavam da
Tânia e olhavam com admiração. Que por sua vez, como é de seu
costume abriu aquele sorriso social encantador mas sem entender
porra nenhuma do que as velhas falavam. Estavam encantadas com
a roupa da Tânia.

Êta showzinho merda, puta merda! Os Mariachis que eu queria tanto


ver,eram uma pálida lembrança do que eu já tinha visto em filmes.
Calor insuportável.
Alívio, no hotel, no nosso apartamento lindo com vista total pra
Bahia, e um ar bem geladinho. Dormimos imediatamente. Pela
segunda noite, acordei com a cabeça latejando de dor. Por causa da
altitude. E eu não tinha posto na nécessaire uma caixa de PAR.
Cacete, será que vou sentir essa dor diariamente?

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24/11 – QUARTA FEIRA

Café da manhã maravilhoso, ao ar livre, cercado de plantas, flores,


palmeiras, com gaivotas e atobás pairando sobre nós, com direito a
cocô de passarinho caindo na toalha muito branca da mesa.
Às 10,15 saimos para mais um trepidante city-tour.
O guia Hector chegou na hora marcada num Honda Civic, ou coisa
parecida.
Carro novinho, com ar condicionado, ao contrário da van horrorosa
de ontem, apesar da simpatia do proprietário, o Miranda, que cantou
O PATO do João Gilberto, fazendo o barulho do pato.
Passear num Honda Civic com ar condicionado neste verão de
Acapulco que é como o Rio de Janeiro é um privilégio.
Hector, que Tânia achou com cara de picareta fez de tudo para nos
agradar. Nos levou a alguns lugares que proporcionavam uma visão
deslumbrante de Acapulco. A propósito; o adjetivo pátrio de quem
nasce aqui é “ACAPULQUEÑO”.

Às 12 e 55 chegamos a um lugar chamado LA QUEBRADA onde fica


o penhasco de 35 metros de onde pulam de mergulho os
CLAVADISTAS.
O sol estava insuportável.
Do alto do penhasco, cinco jovens de sunga faziam aquecimento e se
exercitavam para o mergulho, uma atração da cidade.

Nas escadarias escaldantes pelo calor, a platéia se acotovelava


tentando conseguir um bom local pra ver e fotografar os mergulhos.
Apesar de ser uma quarta feira, havia um público numeroso, 40 ou
50 pessoas no máximo.
A exibição não demora nem 30 minutos.
Primeiro pula um, depois o outro. Depois pulam os três restantes que
dão um salto mortal antes de caírem na água.

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Em seguida Hector nos deixou num restaurante na pequena orla
chamado AMIGO MIGUEL.
Comer é uma fonte constante de preocupação. Tudo aqui tem
pimenta, cheira a pimenta.

Qualquer coisa que pedimos, acrescentamos enfaticamente: “SIN


CHILI, SIM PICANTE, POR FAVOR!”
Mesmo assim, por diversas vezes incendiei minha boca.
Tânia come com a melhor boca do mundo.
Miando até, como adora fazer quando gosta do que come.

Ela pediu um HUACHINANGO FRITO com batata frita. Este peixe é


um tipo de pescadinha, pargo vermelho, ou corvina.
Tânia não reclamou.
Eu pedi ALMEJA um marisco grande. Pedi que fosse cozido, ou
fervido com ervas cebola e alho.
Veio cru com creme de “ESPINACA”.
Aceitei a sugestão pensando que era espinafre. É tudo de
insuportável, menos espinafre.
Um tipo de queijo prato derretido em cima do marisco cru.
Não comi. Desceu.
Esse tipo de comida você não come. Desce pelo esôfago e explode
no estômago.
Fiquei o dia inteiro achando que ia ter uma diarréia.
Parei em todas as lojas de artesanato pra Tânia perguntar com seu
sotaque mexicano impecável o preço de tudo, sem comprar nada.
Voltamos ao hotel. A praia estava convidativa, linda, limpa, deserta.
Nos espalhamos pela areia mas não tive nenhuma vontade de entrar
na água. A noite chegou rápido. Uma música linda chegava aos
meus ouvidos. Era cantada em mexicano. Vinha do som portátil de
três moças mexicanas que estavam perto. Não resisti e fui até elas
perguntar quem estava cantando. “ORÊRRA DE BANGÔ” foi o
estranho nome que consegui entender. Perguntei de novo, apurando
bem os meus ouvidos pra ver se o nome era esse mesmo.

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Confirmaram. Fiquei com esse nome estranho por muito tempo, até
que no dia seguinte, me veio o estalo: OREJA DE VAN GOGH.

À noite fomos jantar no restaurante EL FARO, uma reprodução


arquitetônica de um farol marítimo.
Que restaurante lindo, meu Deus do céu...
Pedimos bolinho de BACALAO para empezar – começar – e filé de
bacalhau com um creme.
Pedi um vinho branco alemão delicioso.
No enorme restaurante havia um patriarca mexicano comemorando
seu aniversário com o que parecia ser seus familiares e amigos mais
próximos num total de 15 pessoas.
Ele próprio – segundo o garçon Salvador que nos atendia – trouxe
seu conjunto de Mariachis pra cantar pra ele.

Mais uma vez tive a certeza de que aquele Moço lá em cima vai com
a minha cara.
Desde que cheguei ao México quero ouvir um conjunto desses à
caráter, cantando perto de mim num restaurante típico.

Não foi preciso. O EL FARO me fez – sem saber – uma grande


surpresa.
O conjunto de Mariachis era maravilhoso.
Todos vestidos de branco contrariando a tradição de só se vestirem
de preto.
Até os sapatos dos 8 integrantes eram brancos. Músicos
maravilhosos. Um detalhe curioso; a cantora violinista estava grávida
de 9 meses.
Quase ao final do jantar, minha conversa com a Tânia ficou pesada.
Muito pesada...
Há quase dois anos venho enfrentando uma depressão e tristeza
insuportáveis. Todo esse processo de doença, mais as confidências
que fizemos de nossas vidas em 2003 numa viagem à Tiradentes,
nossos erros, o tédio das nossas vidas, a minha falta de importância

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que descobri na vida dos gêmeos, a insensibilidade e egoísmo da
Tânia em não me ajudar a sair desse buraco, andam me perturbando
bastante.
Se Deus está querendo me submeter à prova, não poderia ter
escolhido momento mais apropriado do que estes em minha vida.

Aos 59 anos, me sentindo inútil, desnecessário para qualquer pessoa


em volta de mim.

No meu cérebro a frase terrível, dura, áspera como é seu


comportamento quando está acuada ou irritada: “sua tristeza é
química. Procure um psiquiatra. Eu não posso resolver suas
carências!!”

Essa frase dita quase aos berros num sábado em Petrópolis me


obrigou a encarar uma dificuldade que jamais passou pela minha
cabeça: resolver sozinho um problema grave de saúde – mental, é
verdade – que casais que vivem juntos há duas décadas devem
resolver com ajuda, com amor, com solidariedade, com apoio, com
carinho. Os dois procurando a solução. A “ajuda” veio segunda feira:
havia na minha caixa postal os nomes, endereços e telefones de 3
psiquiatras. Pra eu procurar sozinho.

Aqui neste fim de mundo, não tenho meus apoios, meus suportes,
que me ajudam a distrair o espírito, o corpo, e a cabeça.

Com essa eu não contava. Para mim, seria fácil afastar a angústia,
pelo tanto que eu teria que falar, traduzir, embarcar, desembarcar,
entrar em hotel, sair de hotel, entrar e sair de todos os shoppings e
todas as lojas carregando todas as bolsas, sacolas, compras.

Me enganei. A angústia veio violenta. Estou só. Terrivelmente só.


Achando minha existência uma bosta, sem sentido. Tive um pesadelo
horrível nesta madrugada.

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Meu Deus, por que me fazer passar por isso a esta altura da minha
jornada na vida? Pra que abrir minha consciência pra eu perceber
tudo à minha volta?
Parece que estou afundando lentamente e não vejo uma mão para
segurar.
Seja feita sua vontade, Deus todo misericordioso, mas não apague
as luzes do meu caminho.

25/11 – QUINTA FEIRA

Acordei pouco antes das 6. Com o espírito sombrio. Fui à praia


caminhar e fazer exercícios. Me sentei numa cadeira e fiquei olhando
o mar, a claridade empurrando lentamente a madrugada iluminando
o dia.
O silêncio.
Uma gostosa impressão de serenidade começou a me invadir. Teve
um momento que considerei mágico, um aviso de Deus, um sinal,
olhando o sol dourado refletido na fachada envidraçada dos hotéis
ao final da curva da praia.
Senti prazer, excitação, euforia. Quero acreditar que seja uma
resposta às minhas preces, à minha angústia.
Preciso acreditar que terei de novo paz de espírito, que vou limpar
da minha mente todo esse suplício que se apoderou de mim...

De Acapulco embarcamos num vôo de 40 minutos até Cidade do


México. Aeroporto gigantesco.

Nossas malas sairão deste avião para o outro que nos levará à
Cancun. Na saída do túnel, nos indicam a sala 35 para embarque.
Pensei: “vai ser uma longa caminhada, já que saímos na sala 1 ou
2.”
Logo vi a maratona que nos esperava.

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Eu puxava uma mala pesada que felizmente tinha rodinhas, e no
ombro uma bolsa gigante que devia pesar entre 25 e 30 quilos.
Da sala 2 até a 3 a distância é de pelo menos 200 metros.
O longo corredor parecia não ter fim.
Morria de inveja vendo passageiros circulando pelo corredor todo
atapetado de veludo vermelho à bordo de carrinhos elétricos. Sala
4... 5... 6.... Só faltam 29!....

Me preocupei com Tânia por causa do joelho contundido por um


tombo que levou dias antes que deixou um forte hematoma.
Subir e descer degraus foi um suplício pra ela.
Estamos ofegantes, apressados nos dirigindo à sala 35 às 13,45 para
embarcar num vôo a Cancun que sairá às 14,30.
Temos 45 minutos para vencer a pé toda essa distância interminável.
Minha angústia apressa meu passo.
Mas me lembro da Tânia, paro e olho pra trás. Cadê ela? Lá
embaixo, andando com dificuldade.
Chegamos finalmente, exaustos, irritados, prostrados. Calor
insuportável. Embarcamos faltando uns 10 minutos pro vôo.
Avião lotado até o ladrão.

Surpresa; a recepcionista grosseira que me atendeu de maneira


impaciente no aeroporto de Cancun quando eu pedi que imobilizasse
a poltrona do meio ou me desse as poltronas da emergência,
atendeu ao meu pedido. Pudemos viajar com as pernas esticadas.

Pouco antes de aterrissarmos, um choro de crianças nos chamou à


atenção. Era um choro de dor, de desespero, choro de criança
quando toma injeção de aplicação lenta.
Não sei como uma garganta tão novinha consegue produzir tanto
barulho. Eram gritos ensurdecedores.
Era um garoto de 5 anos, de um casal de americanos.

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O homem – segundo Tânia – era horroroso, e a mulher clone de
Nicole Kidman, lindíssima.

Ela já havia me chamado a atenção pela beleza perturbadora,


circulando no avião com esse capeta e uma menina menorzinha.
Foram os passageiros que mais se movimentaram numa viagem que
não durou 2 horas.
A todo momento entravam nos banheiros que estavam disponíveis.

No chão, quando as turbinas pararam de rodar, o único ruído à


bordo era o choro histérico do menino.
Os passageiros só olhavam, solidários para aquele casal que não
falava, ou no mínimo sussurrava nos ouvido do peste, pra fazer ele
ficar calado. Inútilmente.
Saímos do avião, andamos pelo túnel da aeronave até o terminal e o
choro do diabo não parava.

Na sala de esteiras que cospiam nossas bagagens uma cena


deprimente: a mãe, já sem forças pra controlar a histeria do menino,
estava agachada no chão, sem dizer palavra tentando conter as
convulsões de rebeldia do menino.
Ela que estava elegantemente vestida, era um farrapo no chão, com
parte das costas e da bunda muito branca aparecendo, e a calcinha
aparecendo também.

Ele parecia um peixe tentando escapar da mão do pescador. O pai,


com a menina no colo, a uma distância de 30 metros, tinha o olhar
fixo na cena, mas não enxergava.
Olhava mas não enxergava, não exprimia nenhuma emoção.
Estava apático. Parecia estar em choque.
Em todo o episódio não ouvi a voz da Nicole Kidman nem a do
marido dela. Senti pena dos dois. Aquele menino estava possuído.
Ninguém consegue chorar ininterruptamente durante quase 2 horas
com tanta força. Tinha um diabo muito poderoso dentro daquele
corpinho de 5 anos.

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Da esteira saíram todas as malas do avião, menos as nossas.
Uma mexicana grávida, Sandra, com uma vozinha fraca de quem ia
ter seu “chiquito” naquele momento, muito mansa, muito
desanimada, me deu um catálogo de malas e bolsas de viagem pra
eu identificar dizendo pra eu não ficar preocupado porque
certamente a bagagem ia aparecer no meu hotel. Me mandou ir
embora, despreocupado dizendo que as malas chegariam ao hotel.
Fizemos o check-in no lindíssimo hotel KRISTAL, saímos pra dar uma
volta, já bem broxas por causa do extravio.

Fomos a pé em direção à uma feira de artesanato bem perto do


hotel que logo excitou a Tânia. Pouco depois da entrada principal do
hotel umas estátuas brancas, réplicas perfeitas de Ingrid Bergman e
Humprey Bogart na célebre cena do aeroporto em CASABLANCA ao
lado de um bimotor Beechcraft, chamava a atenção.
O sistema de travessia de pedestres em Acapulco ou em Cancun, é o
mesmo europeu: se você atravessa na faixa, os veículos param.
Tânia não consegue entender isso e refuga que nem jumento
quando vê cobra no meio da mato.

Não há meio dessa cabeça dura entender que ao colocar os pés na


faixa branca, os motoristas são obrigados a parar.
Todas as vezes que iniciamos a travessia ela empacava ao ver um
carro se aproximando e diminuindo a marcha. Eu entrava em ação
logo, arrastando ela pelo braço. Ela terminava a travessia arrastada.
Ou empurrada. E falava um monte de palavrões. Malcriada!

Na feira de artesanato, era impossível parar pra admirar algum


artigo. Os barraqueiros, homens, mulheres, adolescentes em
corredor polonês não te deixam em paz pra olhar o artigo. Todos
oferecem preço baixo, descontos, mercadorias excelentes, aceitam
pesos, dólares, travellers cheques, euros, tocam com as pontas dos

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dedos nossos braços, ombros, puxam nossos braços, falam inglês,
mexicano, repetem o tempo todo “Brasil” “Ronaldino” “Fútbol”.
Entretanto nas lojas de artigos de prata o tratamento é outro.
Ninguém nos molesta. Podemos ficar horas admirando o artesanato
que é fabuloso e ninguém nos perturba.
Falam o tempo todo, começam com um preço e vão baixando e
encostando o produto no seu braço, nas suas mãos. Desistimos e
voltamos ao hotel.
Nossas malas intactas nos esperavam.

Eufóricos, guardamos as malas e fomos pra rua pegar um ônibus


para um shopping lindíssimo chamado PLAZA LA ISLA.
Tânia comprou numa única loja de perfumaria todos os presentes
que imaginou pra dar no natal.
Estava encantada com os preços.

Compramos um touro estilizado de cristal por 280 dólares que nos


deixou enlouquecidos de tão lindo e original.
Criação de um estilista polonês que vive na Alemanha. O preço
normal era 320 dólares, mas com o desconto baixou pra 280. Se não
ganhássemos o desconto teríamos comprado assim mesmo.

Tânia fez amizade com uma japonesa paulista de nome Helenita que
deu a ela um monte de informações, dentre elas a mais importante
pra nós nesta viagem: o nome do funcionário da Varig que poderia
resolver a angústia que estou sentindo com a viagem de vota ao
Brasil.
Na ida pro México, consegui com a recepcionista da Varig que
imobilizasse a poltrona do meio, portanto viajamos no maior
conforto.
Helenita foi um fio de esperança ao nos dar o nome e o telefone do
Sidney funcionário da Varig em Cancun.

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26/11 – SEXTA FEIRA

Acordamos felizes, bem dispostos, tomamos um café da manhã


reforçado e fomos à procura do Sidney na PLAZA MÉXICO.
Lá chegando se mostrou uma pessoa muito agradável e prestativa.
Tânia pediu pra usar o banheiro.
Ele pediu um tempo, foi lá dentro, demorou um bocado e voltou
dizendo que estava liberado para uso.
Depois Tânia entendeu o motivo da demora; ele estava ajeitando o
banheiro, dando os retoques num local de oferendas aos espíritos.
Sidney se revelou devoto e kardecista o que nos encantou.
38 anos, 2 filhos adultos e uma menina de 3 anos, Yasmim,
constituem sua família.
Se prontificou a tentar conseguir pra nós a imobilização da poltrona
do meio ao fazer o nosso no check-in.
Comentamos com ele nossa frustração de não ter encontrado
ninguém no aeroporto para o traslado embora tivessemos pago.
Imediatamente pediu o nosso voucher onde constava o nome da
empresa responsável por esse serviço.

Telefonou para o proprietário relatando o serviço não prestado. Em 5


minutos, Eduardo, o simpático dono da agência de traslado estava
na nossa frente, bastante constrangido querendo explicações, pois o
motorista dele alegou que foi ao aeroporto nos buscar mas não
encontrou ninguém.

Dadas as explicações, ele, todo cheio de mesuras, nos colocou


dentro de sua van, nos levou até à sua loja se desdobrando em
gentilezas.
Apresentou seu filho, nora, mulher, neto, o motorista.

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A nora se chama Geni, o filho Abraão, e o neto...ARAT. Só nomes
pomposos, pensei.
Nomes bíblicos, fortes. Devem ser muito devotos, ou devem ler
muito sobre oriente médio.

Não eram.
O Nome ARAT, é de um cantor mexicano de sucesso que a nora de
Eduardo gosta, segundo nos explicou seu motorista, um baixinho
cara de safado, e cara de bebum que fedia por falta de banho.
Por indicação do Eduardo fomos almoçar num restaurante chamado
LA PARRILLLA. Ali perto mesmo. Seu motorista nos levou. Nos
despedimos com juras de cordialidade e recebemos a confirmação de
que na data da nossa volta ao Brasil, seríamos apanhados no hotel
às 12 horas para voar de Cancun à cidade do México e de 18,40 da
cidade do México para São Paulo/Rio.]

Do restaurante pegamos um táxi e fomos para o SHOPPING LA ISLA,


um lugar delicioso, parece uma cidade e não um shopping. Tânia
comprou adoidado achando tudo barato.

Voltamos ao hotel para descansar, aliviados por termos resolvido o


traslado na segunda 29 do novembro e com esperança de
conseguirmos as poltronas da emergência com a imobilização da
poltrona do meio, o que me daria a oportunidade de esticar as
pernas e sofrer menos dores lombares.
À noite fomos jantar num restaurante chamado PERICO’S.
Que em Mexicano quer dizer Papagaio.

Na chegada fomos recebidos por “cowboys” vestidos com roupas


pretas, sombreros, cinturões cheios de bala, revolver na cintura,
muito divertido.
Laura, a recepcionista se encantou por nós e ficou conversando
sobre sua vida enquanto aguardávamos nossa mesa ficar pronta. O
restaurante, uma enorme taberna barulhenta pela música de

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Mariachis e vozes falantes e cantantes, fervilhava de vida,
movimentação e alegria. Muita música no ar, gritos, assovios.

Impossível descrever a decoração. O comportamento dos garçons,


todos – inclusive as moças – vestidos de bandoleros era
engraçadíssimo. Traziam as deliciosas “frozen margaritas” dos
fregueses equilibrando a taça na cabeça.

Chegando à mesa se ajoelhavam para o freguês retirar a bebida.


Enquanto alguns garçons entregavam a comida, outros bailavam
com as freguesas mais animadas. Dançavam também junto às
mesas.
E fotografavam os turistas à pedido destes.
Que balbúrdia deliciosa. Tudo parecia dar certo apesar do caos no
ambiente. Conversar, nem pensar! Impossível. Alguns garçons me
pareceram bêbados, especialmente Adolfo, o homem dos drinks no
bar logo na entrada do restaurante.

Junto à nossa mesa, um grupo de 10 a 15 americanos entre


mulheres, homens, adolescentes e crianças colocava mais lenha na
fogueira com seus gritos, assovios, palmas. O barulho estava
insuportável. Mas agüentei firme.

Tânia ficou encantada com o anão desta família de americanos


enormes. De fato ele era muito gracioso. Devia ter 80, 90
centímetros no máximo, 6 anos de idade, e pesar uns 20 quilos.
Não sei como é possível uma coincidência dessas, mas no
restaurante havia um anão adulto do tamanho dele. Não era bem um
anão, era um mini homem, porque não tinha a cabeça grande e
porte físico dos anões.
Ele era todo proporcional, cabeça pequena, braços e pernas
proporcionais ao corpo pequeno. Dançou e brincou com seu
coleguinha americano.

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Tânia comentou com a nossa garçonete, Rocio, sobre os dois
anõezinhos. Ela, sem a menor cerimônia revelou que o anão
mexicano era gay.
Nosso pedido de frutos do mar chegou, lindo, delicioso, cheiroso,
com lagosta, camarão, lagostim, lula.
Até que enfim comíamos bem, com prazer. Bebi duas “margaritas
frozen” e Tânia um “côco loco”, uma espécie de piña colada sem
abacaxi.

Despedimo-nos da encantadora Rocio, uma linda mexicana de olhos


castanhos vivos, e da adorável Laura, mãe do Axel, de 3 anos. Que
dentes maravilhosos!
Que boca linda, Deus do céu! O show dos Mariachis que não era lá
grande coisa acabou às 23 horas. Os nossos Mariachis de Acapulco
no restaurante EL FARO continuam insuperáveis.

SÁBADO – 27/11/2004

Compramos da Helenita um passeio à ruínas Mayas. Huaxctlang,


uma coisa complicada assim. Passeiozinho chato, cacete!
Nossa guia no ônibus, de voz sensual, agradável, suava em
cachoeiras. Seu rosto redondo brilhava de tanto suor. Pra piorar o
desconforto, o ar condicionado do ônibus parou de funcionar. Norma
a guia eficiente, pediu outro ônibus pelo celular.
A temperatura devia estar em torno dos 38 graus. Norma com seus
160 quilos era a que mais sofria com o calor. Ô passeiozinho merda,
benzaDeus.

Duas horas pra ir e duas horas pra voltar. Ainda bem que voltamos
às 2 da tarde, podíamos ir pra linda piscina do hotel.

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Nosso ar do quarto no hotel também estava muito fraco. A recepção
nos deu outro apartamento. Pulamos do 433 para o 517.
Deixamos nossas coisas no quarto e fomos pra piscina toda sinuosa
de estupendos um metro e 15 de profundidade. Pulei com toda
vontade achando que teria água até o peito. A água só chegava
abaixo da minha cintura.
Tânia tagarelava com duas mexicanas velhas de Guadalajara muito
engraçadas.

Pouco depois das 5 da tarde, cansados demais para sair resolvemos


petiscar qualquer bobagem, tomamos banho e deitamos pra
conversar e ver tv.
Acordamos no dia seguinte.

DOMINGO – 28 DE NOVEMBRO-2004

Me levantei excitado. Hoje vou ao AQUARIUM do shopping La Isla


brincar com os golfinhos. Paguei 115 dólares por essa possibilidade
maravilhosa. Eu pagaria o dobro para realizar esse sonho.

Chegamos quase uma hora mais cedo. Uma garota linda brincava
com tartarugas gigantes, arraias, e tubarões. Botei a mão no que me
pareceu mais uma inofensiva tartaruga, claro. A moça não deixou.
Eu só podia pegar nas arraias e nos tubarões. (!)

Olhei incrédulo pra ela que me tranqüilizou. Enquanto falava comigo,


puxou para perto de si, o enorme tubarão de 120 quilos, abraçando
seu roliço corpo que tem a pele que mais parece lixa de madeira.
Nunca tinha ouvido falar de tubarão domestico, comentei com ela.

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Não era, respondeu, sem surpresa, sem valorizar a informação. Disse
que era animal capturado ferido, ou doente, que estava em
quarentena aguardando remoção para o seu hábitat, o mar, no final
do mês de dezembro. O mesmo destino das tartarugas e das arraias.

Perguntei se ela já havia sido atacada por alguns desses bichinhos.


Me mostrou o dedo mindinho com um curativo impermeável como
resposta.
Levou uma mordida de uma das tartarugas, uma delas Albina.
Tentei convencer Tânia a colocar a mão nas arraias, que tem a pele
lisa parecendo ensaboada. Sua reação foi tão histérica que desisti na
hora.

Uma arraia imaginando que havia alimento na mão da Tânia que


mexia na água com as mãos, subiu de repente à flor dágua e
começou a bater as asas nas paredes do tanque. Achei que Tânia ia
ter um surto e ficar paralisada de medo.
Ao meio dia chegou a vez do nosso grupo entrar na água para
brincar com os golfinhos. Quase morri de vergonha. Era o único
velho com um monte de adolescentes. Devíamos ser umas 12
pessoas.
Tânia viu uma velha toda tatuada no grupo das 11 horas.

No meu grupo só tinha jovens. Fiquei fascinado vendo o sorriso dos


moços (poucos) e das moças quando os bichinhos de 220 quilos se
aproximavam.
Deram adeuzinho com as nadadeiras, choraram, resmungaram,
davam gritinhos, para chamar a atenção, segundo um dos
tratadores.
Dá uma vontade imensa de abraçar eles, mas fomos orientados a
não fazer isso porque poderíamos bloquear o respiradouro no alto da

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cabeça, ou imobilizar as nadadeiras o que poderia estressar animal
com conseqüências imprevisíveis.

O que mais me encantou foram os “beijos” que um deles deu com


toda suvidade na bochecha de uma criança de 1 ano que não chorou
ante a aproximação de um bicho tão grande tocando seu rostinho
com o bico.
Os próprios treinadores ficaram tão encantados, que fizeram o
golfinho repetir o beijo 3 vezes.

Como é possível tanta suavidade de movimentos? Será que ele


percebe que qualquer movimento mais brusco na ação do “beijo”
pode ferir gravemente o rosto da criança?
Os pais do bebê estavam em êxtase.

Um dos golfinhos fez um movimento com a cauda para gerar impulso


e acabou me dando uma porrada na perna abaixo do joelho. Tive a
impressão de que um cavalo passou por mim e me esbarrou tal a
força desta “caudada” na minha perna.
Uma hora depois o sonho acabou. Saímos do Aquarium mortos de
fome procurando um restaurante.

Entramos no suntuoso MADONA.Italiano.


Como entrada pedimos uma “torreta” – uma torre mesmo, de 3
andares com presunto de Parma, copa, berinjela, muito azeite, pão
quentinho parecido com o árabe.

Tânia pediu um Linguini ao frutos do mar, e eu, um espagheti ao


vôngole. Comi até lamber o prato. Em seguida fomos bater pernas
olhando as lojas. Tânia comprou mais uma porrada de perfumes,
anéis, calçados, cremes, potes, escovas, prendedores de cabelo,
quinquilharias. Dou a maior força pra ela comprar.

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29 DE NOVEMBRO – SEGUNDA FEIRA

Levantei esquisito, com um pouco de náusea. Depois do café, o mal


estar aumentou. Uma cólica aguda no intestino me tirou a alegria.
Tentei ficar com a Tânia na piscina mas não pude. Corri pro banheiro
e botei tudo pra fora, por cima e por baixo.

Fiquei correndo no quarto, da cama pro banheiro até a hora de


pegarmos a van pra embarcar para a cidade do México e de lá pro
Brasil.
Decolamos às 14,45 com avião lotado. Três fileiras atrás de mim,
uma família levou os passageiros ao limite: 3 ou 4 crianças gritaram
durante uma hora e quarenta minutos. Filhos da puta!

Eram gritos agudos, piores que o daquele histérico filho da Nicole


Kidman.
O tormento passou logo. Chegamos à cidade do México às 16,45. Me
animava a possibilidade maravilhosa de ter as cadeiras da
emergência imobilizadas conforme promessa do Sydney em Cancun.
Ao chegar ao balcão da Varig, decepção.
Não havia nenhuma reserva pra nós. O amigo mexicano da Varig,
segundo o Sydney, imobilizaria a poltrona do meio “com a maior
satisfação”.
Pôrra nenhuma!
Absolutamente limpo por dentro, há horas sem comer nada nem
beber, sinto uma mal-estar horroroso. O corpo todo dói. Preciso
tomar um chá com torrada pra injetar açucar, amido, carboidrato no
meu metabolismo pra melhorar meu estado.

Bastante zonzo, sem me alimentar há mais de 24 horas, procurei no


duty free algum biscoito para comer. Nada. Achei um bar, desses

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típicos bares londrinos. Falei pro primeiro garçon que estava dentro
do balcão. “USTED HACE TE?”

A cara confusa dele deu a impressão de que eu estava falando


indiano. Repeti palavra por palavra bem devagar não conseguindo
esconder a irritação.

Agora 3 garçons olhavam pra mim sem entender o que eu falava.


Tentei me fazer entender em inglês, português, italiano com a voz
bem alta, bem descontrolada. “EXISTE CAFÉ E TE. YO QUIERO TE”
Continuaram sem entender. Possesso eu dizia repetidamente “CHÁ,
TEA, TE!!”
Até que um deles perguntou: - “NEGRO?”
Olhei pro teto do aeroporto revirando os olhos magnólicamente,
suspendi os braços pra cima em sinal de alívio, mas deixei os braços
cair como força, o que fez cinzeiros e copos pularem na superfície do
balcão.
O tormento que eu acabava de viver não deve ter servido de lição
porque eu quis continuar me stressando. Arrisquei outra pergunta:
“USTED HACEN TOSTADA?”
Que quer dizer torrada em qualquer país de língua espanhola, menos
para os mexicanos.
Pronunciei de novo, no mais lento espanhol que minha paciência
permitia mostrando a ponta da língua batendo nos dentes ao
pronunciar “TOS – TA – DA!!!”
Não entenderam.
Apelei pra mímica. Representei com as mãos as torradas sendo
cuspidas da torradeira.
Aí sim, entenderam. Porque não fiz isso antes, misericórdia?

Quando o garçon colocou a xícara na minha frente, era um café, de


tão escuro e forte. A xícara estava pela metade. Pedi a ele que
completasse até a borda com mais água quente. Ele não entendeu.
Jogou fora aquele, pegou outra xícara, botou o saquinho...com
metade de água.

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Agora o chá estava fraco, segundo ele. Desisti. E tomei meia xícara
de chá. Quase infartando de tanta raiva voltei pro portão 22. O
embarque já estava começando.

Na hora do embarque, chamei Tânia pra sermos os primeiros a


entrar por causa do espaço para nossa bagagem de mão. O touro de
cristal do designer polaco que vive na Alemanha é nossa maior
preocupação.
Eu levo uma sacola com 2 litros de Tequila e outras bugigangas
dentro. Uma das tequilas é para a Rachel presentear o Juquinha. A
outra é dos meninos.

Uma sacola de viagem da Urbi et Orbi cheia de chocolate branco com


recheio de amêndoas da Ferrero Rocher – eu imagino, vai fazer a
alegria dos meninos.

Levo também a bolsa com a máquina fotográfica. Tânia leva sua


própria bolsa e uma caixa enorme com o touro dentro. Ela não se
desgruda da caixa pra nada. Quando tem que ir ao banheiro me faz
mil recomendações.
Entramos no avião e acomodamos toda nossa bagagem, graças a
Deus,havia espaço.
Tânia percorreu com os olhos enormes toda a área onde estávamos
acomodados e me indicou uma fileira de três poltronas que estava
vazia. Eu como sempre ético demais, me recuso a sentar nas três
cadeiras pra viajar mais confortável.

Mas logo vi os olhares de ganância dos espertos já procurando


fileiras vazias pra se aboletarem. Logo escolhi a minha. O dono da
poltrona que eu ocupava chegou logo. Fui pra última fileira. Quando
achei que o avião já começaria a aquecer as turbinas, chegou o dono

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de uma das poltronas. Saí de novo. Me sentei numa ponta e na outra
havia outro passageiro.

Tânia espertamente se apoderou de 3 poltronas. De repente me deu


um estalo: me levantei pra ficar junto dela.
O que foi que encontrei?
Duas poltronas da emergência vazias. Pedi licença à moça que
estava na janela e ocupei o corredor. Pude então fazer a viagem com
as pernas esticadas.
O Boeing 777 saiu exatamente às 18,40. Vamos voar durante 8
horas até São Paulo onde chegaremos às 7 da manhã.
Devemos chegar ao Rio às 10 ou 11 horas.

Minha cabeça está vazia. Meu estômago mais ainda. Às 5 da tarde,


ainda na cidade do México tomei uma xícara de chá com três
torradas. É tudo o que tenho no estômago o dia inteiro.
Tomei chá de novo, agora às 19,30, com pãezinhos frios e passados.
Mas o chá estava bom.

E assim terminou mais uma viagem nossa pelos caminhos do mundo.

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FUNCHAL

Embarcamos no aeroporto internacional exatamente às 21 horas do


dia 08 de fevereiro, num Boeing 737 lotado até o ladrão, rumo à
Salvador para realizar meu sonho de consumo, que no entanto era
uma surpresa para os meninos que a todo momento faziam
perguntas tentando advinhar para onde estávamos indo.
Eu e Tânia fizemos um pacto de nada revelar até que a surpresa se
descortinasse diante dele.
A curiosidade deles inspirava as mais absurdas e engraçadas
suposições.
Agora a pressão estava maior porque dentro de poucas horas
saberiam o que era a surpresa.

Nos minúsculos compartimentos de cargas do jato conseguimos


acomodar nossas valises – duas pequenas – da Soletur.
Pouco antes de o avião decolar surgiu uma passageira gordinha
acompanhada de uma velha de seus 75 anos.
Por mais que tentasse, a gordinha não conseguia acomodar sua
bagagem no compartimento.
Revoltada, fez comentários grosseiros em voz alta.
Tânia entendeu aquilo como um recado.
Com o olhar tentou me fazer entender que estava horrorizada com a
gordinha que se sentou ao seu lado.
Aliás, minto; quem estava ao lado era a velha.
A gordinha estava na janela.
Mas falava alto.
Eu que sou surdo como uma porta tive minha atenção despertada
para o volume de voz da moça.
Mas não consegui entender o que se passava.

Decolamos para pousar logo depois em Vitória, em escala.


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Os meninos excitadíssimos, conversavam, perguntavam,
acompanhavam todos os movimentos da aeronave.
Ivo perguntou à aeromoça – encorajado por mim – se ele e o irmão
poderiam ir até a cabine de comando ver a pilotagem.
Ela disse que ia tentar.
Logo após o lanche a aeromoça veio buscar os meninos para irem à
cabine. Ivo, afoito como sempre, pulou na frente do Pedro e lá foram
os dois com os sorrisos de orelha a orelha.
Ficaram lá por 25 minutos.
Fiquei com pena dos pilotos pela quantidade de perguntas que
devem ter respondido pra ouvir
“caraaaaaaaaaaaaaaaaccccaaaaaaaas!!” em profusão.
Voltaram esfuziantes.
Ao chegarmos a Salvador, o piloto baixou bem o Boeing, para que os
passageiros pudessem ver a na orla o povo dançando em pleno
sábado de carnaval.
Que visão maravilhosa!
Ivo e Pedro não se cansavam dos CAAAAAARAAAAACCAAAAAAA!!!!!!!

Desembarcamos.
Nossa bagagem saiu rápido. Dei uma olhada na gordinha e perguntei
à Tânia o que estava havendo à bordo.
Me respondeu que estava horrorizada com a arrogância dos
comentários da gorda.
De posse da bagagem nos dirigimos ao saguão para encontrar um
suposto guia ou recepcionista da Soletur.
O aeroporto estava deserto.

Éramos mais ou menos 20 passageiros atônitos procurando em todas


as direções alguém para nos receber e continuar a viagem rumo ao
“sonho.”
15 minutos depois a angústia começava a substituir o que era a
principio apenas uma preocupação.
Ninguém aparecia.

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Pergunta daqui, pergunta dali, me indicaram a Infraero.
Quando eu estava na sala do militar que tentava descobrir alguém
da Soletur em Salvador, o Ivo chegou esbaforido avisando que um
ônibus havia chegado e que já estavam recolhendo as bagagens.
Agradeci e embarquei na espelunca que parecia um forno.
O ar foi ligado, melhorando a temperatura.
Andamos quase 45 minutos.
Os meninos adormeceram amontoados em mim devido ao cansaço.
Andando por vias escuras e ruas da cidade, chegamos ao porto de
Salvador.
Diante de nós, majestoso, muito branco, limpíssimo, o navio
FUNCHAL.
Devagarinho despertei os meninos que preguiçosamente começaram
a se aprumar no banco do ônibus quando finalmente vislumbraram
com assombro o gigante branco à frente deles.
Aturdidos perguntavam; “é aí que vamos ficar?”
De vouchers nas mãos começamos a subir longa escada de acesso
ao navio. Na recepção nos guiaram ao “camaroteiro” Darlindo, um
senhor português simpaticíssimo que cuidaria dos nossos camarotes
durante os 8 dias da viagem para mantê-lo limpo e organizado.

Pedro e Ivo, ainda sob o impacto da surpresa, pareciam


embaraçados e até que não perguntavam muito.
Fomos para o camarote do deck AÇORES, preocupados com nossa
bagagem que em poucos minutos estava dentro da cabine, trazidas
pelo prestativo senhor DARLINDO.
Felizes fomos dormir quase duas horas da manhã.
As camas, agradáveis, muito confortáveis.

Como sempre acontece, acordei antes das 7, naturalmente antes de


todos. Coloquei tênis, bermuda pra explorar o navio.
As portas do gigantesco salão de refeições já estavam abertas
deixando à mostra a mesa central do buffet multicolorida de pães,
biscoitos, bolos , queijos, geléias, yogurtes, sucos, jarras de leite,
café, chá frutas.

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O cheiro do screambled egg era delicioso.
Quase voltei à cabine para acordar todo mundo, mas me contive e
fui para o convés.
A movimentação no porto de Salvador era nenhuma.
O único navio ancorado era o nosso.
As dezenas de guindastes de carga enfileirados, com seus longos
cabos de aço imóveis indicavam a quietude do domingo, embora
fosse domingo de carnaval.
Uma sensação de euforia misturada com uma fome dos diabos me
invadiu. Olhei o relógio que marcava 8 horas.
Não agüentei, entrei na cabine pra acordar todo mundo. Os meninos
normalmente preguiçosos quando acordam em casa, se aprontaram
com rapidez cômica. Falei da beleza do salão de café. Entramos para
megulhar naquela orgia de sabores e alimentos.
Eles não se impressionaram pelo buffet, pedindo ao garçon o
famigerado chocolate gelado. Não comeram nada.
Eles tinham muita pressa e curiosidade.
Sumiram de repente. E voltaram de repente pra dizer que a piscina
não tinha água..

Argumentei que a água da piscina de qualquer transatlântico é


fornecida pelo próprio mar, e que por ser zona portuária, aquela
água era imprópria pra ser sugada pra dentro das piscinas.
Esta sucção só se daria em alto mar.
Satisfeitos com a explicação, sumiram de novo, não sem antes
perguntarem se ficaríamos parados ali no porto.
Respondi que não, que por volta das 22 horas o navio iria zarpar
com destino a uma cidadezinha litorânea da Bahia de nome MORRO
DE SÃO PAULO.

Perguntei se já haviam visto outras crianças porque me lembrava a


todo momento de uma amiga da Tânia de nome Andréa ter dito que
a viagem que estávamos fazendo seria deliciosa para nós adultos,
menos para os meninos já que os transatlânticos só atraiam velhos.

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Eu estava mais ou menos apreensivo com a possível constatação do
que dissera Andréa.
Denise a diretora de recreação do Funchal comunicou pelos alto
falantes que o nosso domingo era livre e que poderíamos sair pelas
ruas de Salvador para conhecer a cidade.

Tânia quis logo sair para mostrar aos meninos o Pelourinho, o


Mercado Modelo, e o elevador Lacerda.
Lá fomos nós a pé sem relógio, jóias, só com a maquina fotográfica
do Ivo. No Mercado Modelo, ficaram alucinados pelo berimbau.
Os vendedores dos quiosques aumentavam ainda mais a excitação
deles tocando o instrumento que emitia um som delicioso.

Claro, nas mãos dos meninos parecia que o som estava sendo tirado
de debaixo de um travesseiro. Mas não deixavam a peteca cair;
tocavam essas merdas o dia inteiro.
Passeamos no elevador, fomos ao Pelourinho, fizemos paradas para
fotos. Andamos bastante e voltamos ao navio para almoçar.
Ao chegarmos ao salão de refeições, o maitre nos indicou nossa
mesa apontando para o garçon que vai nos atender durante esses 8
dias.

Ficamos de cara apaixonados pelo nosso garçon, de nome Martinho,


pela sua educação, pela simpatia com que nos servia.
O cardápio de luxo era uma tentação, a comida deliciosa e farta.
Pedro e Ivo pediam macarrão com suco de tomate.

Eu tentava discorrer sobre a necessidade de experimentar outras


comidas, até para conhecerem o gosto. Inutilmente.
Eles só queriam macarrão com molho de tomate.
No jantar variavam um pouco às vezes; bife com batatas fritas.
Depois do almoço bateu a preguiça.
Dei uma chave da cabine pra eles, outra pra Tânia, pedi que não
perturbassem meu sono e caí na cama.
Dormi durante 4 horas.

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Que coisa fantástica essa ausência de barulho na cabine climatizada.

Levantei, tomei um banho delicioso e fui procurar a família.


Tânia me encontrou animadíssimo.
Quando nos preparávamos pra andar pelo navio, Pedro chegou perto
da gente perguntando se não havia nada pra se fazer.
Só estávamos a menos de 24 horas ali dentro.
Senti meu sangue gelar nas veias, uma irritação surda. Meu Deus,
passamos o ano inteiro escondendo deles a surpresa, achando que
iam desmaiar de emoção, e agora estava o merdinha ali me
perguntando se não havia nada pra fazer!

Respondi que se ele achasse muito chato, eu os mandaria de volta


pro Rio, mas nós continuaríamos a viagem.
Nos sentamos pra jantar.
Aproveitei o estado de felicidade em que me encontrava pra fazer
uma recomendação: que me poupassem de falar pra alguém que “o
papai é dublador!”
Eu estava ali a procura de sossego, e não gostaria de ter criança me
cutucando o braço me pedindo pra fazer voz de Batman, Homem
Pássaro, Balú, etc. Muito menos eu não queria ter que explicar para
os pais de crianças como é que a dublagem é feita.
Pelo amor de Deus, aqui não!
Reforcei o pedido com veemência, quase uma ameaça.

O salão de refeições apesar de enorme estava lotado. Pude ver


vários adolescentes e crianças.
Fiquei aliviado e mais animado.
Os meninos já tinham se aproximado de um garoto gordinho de
óculos chamado Davi. O navio era uma festa de luzes, sons música,
gente falante. O barzinho tipo pub londrino tinha um clima delicioso.
Um pianista chamado Beto dedilhava como muito profissionalismo
canções famosas que faziam as pessoas cantarolarem.
Pedi uma Carlsberg geladinha, me sentei numa poltrona e fiquei
vendo a vida passar pela noite gostosa do Funchal.

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Tânia tão curiosa como os meninos perambulava pelo navio.
Enquanto eu cantarolava junto com o piano, baixinho
evidentemente, vi passar um bando de cabeças, uma pós outra.
Passou Ivo, passou Pedro, passou David depois outro, depois outro,
outro, e mais outro, vários outros.
Meu Deus, é adolescente que não acaba mais.
Que bom ver aquele bando de moleques.
Pedro e Ivo terão o que fazer agora.
Daí a pouquinho as mesmas cabeças, agora no sentido contrário,
cruzavam o barzinho. Pedi Deus que não deixasse eles fazerem zona
dentro do pub. Fomos todos dormir quase meia noite, com o navio já
a caminho do morro de São Paulo.

Acordamos na segunda feira, com sol alto. Abri a cortina da janela


panorâmica do nosso camarote pra me deparar com um mar
incrivelmente azul marinho de tão profundo. Lembrei aos meninos
que a piscina já deveria estar cheia. Puseram as sungas esse
mandaram Pelo serviço de som Denise informaou que em poiucoas
horas chegaríamos a Motrro de S~]ao Paulo e quem qui9sesse
descer poderia fazer-lo podi steriamos a disposição as escunas que
nos deixaraiam nas praias.
Pelo menos metade dos passageiros do Funchal estava em trajes de
banho pra se dourar nas praias de areias brancas.
Entretando as condições do vento e da água eram muto
adversas;depois de várias tentativas de colocar uma plataforma junto
à escada do navio, o comandante cancelou o desembarque temendo
pela segurança dos passageiros, pois as ondas eram enormes,
fazendo a plataforma oscilar perigosamente pra cima e pra baixo no
casco do navio produzindo um barulho impressionante. A escuna
balançava tanto que chegava a se afastar 5 metros do navio, embora
estivesse amarrada por um grosso cabo de segurança. Recolhida a
escada, recolhida a âncora, o navio seguiu viagem rumo a Arraial da
Ajuda, a 25 nós por hora. Viajaríamos o dia todo, chegando por volta
das 23 horas.

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Os viciados em praia, a maioria paulistas, correram então para o
deck da piscina que já estaa ocupadas pelos adolescentes.
Como eu estava muito encantado com tudo o que me cercava, na
percebi que Tânia já estava começando a ficar mariadinha,
mariadinha.
Senti a boca do estomago apertar quando ela disse que já tinha
vomitado até os intestinos.
Ela já falou essa frase com a boca meio mole.
Acabou de falar, arregalou os olhos e voltou correndo pro camarote.
Eu olhava pra cima e perguntava: “Jesus misericordioso, esperei
tanto essa viagem, será que vou ter que interromper pra voltar pro
Rio???”

Me sentei na poltrona dentro da cabine, enquanto Tânia se


desmanchava dentro banheiro. Abriu a porta, saiu em câmara lenta,
a pele completamente amarela, dizendo que tava com a impressão
de que estava morr...não completou a frase, voltando correndo pra
dentro do banheiro.
Dava pena ver o estado dela.
Fomos ao hospital, do navio, claro.
Levou uma injeção fortíssima de FENERGAN que fez ela melhorar no
ato.
Voltou pra cabine e dormiu quase 8 horas seguidas, mas levantou
ótima.
Eu estava tomando uma Carlsberg geladissima no salão Ilha Verde,
onde acontecem os grandes shows de música e dança, quando a vi
surgindo, com a cara ótima, olhos brilhando, sorriso largo, mas não
mexia o braço, tamanha a dor provocada pela injeção.
E a vida prosseguia calma, divertida e maravilhosa. Eu só encontrava
os meninos nas refeições. Aliás,eles nem chamavam a gente, ou nos
esperavam; quando entravamos no refeitório, de longe eu vias as
duas cabeças iguais uma de frente pra outra na nossa mesas, já
pedindo ao Martinho sua preferência; macarrão com molho de
tomate, ou já terminando a refeição.

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Eu queria conversar um pouco, saber das atividades, das novas
amizades, mas não dava tempo, eles saiam afoitos da mesa pra
voltar ao convívio dos novos amigos marinhos.
Desses amigos marinhos, dois colegas certamente ficarão na
lembrança deles pro resto de suas vidas, o Renato, um paulista de
21 anos com síndrome de Dawn, e o Rafael, uma sanseizinho de 3
anos bochechudo que eles adoravam, a ponto de cada vez que o
encontravam, apertavam suas bochechas.
Rafa, por sua vez, apertava a bochecha deles também.
Renato, o síndrome de Dawn, foi uma agradável convivência pela
simpatia, pela educação, pelo carisma que demonstrava.
Seu pai estava a bordo com a mulher - que não era sua mãe – e a
filha, irmã do Renato.
Pedro e Ivo ficaram apaixonados por ele. Num raro, talvez único
momento de malcriação do Renato, testemunharam uma briga dele
com a irmã em a mão dele desenhou no ar a figura tão do agrado de
qualquer adolescente, a fechada com o dedo anular estendido.
Já a família do Rafael foi um caso à parte; era composta dos pais,
Nisseis, os avós e os tios. Pedro e Ivo ficaram fissurados no avô do
Rafa, at´te jogaram ping pong como velho que revelou um
temperamento cômico, mas muito competitivo. Os meninos se
divertiram com os ruídos que o velho fazia cada vez que dava uma
raquetada na bolinha. A mãe do Rafa, tinha sempre um enorme
sorriso nos lábios. À noite, durante um concurso de fantasias
originais, várias pessoas apresentaram o melhor de sua
inventividade. A mãe do Rafa ganhou, se apresentando sozinha, com
um vestudo azul curto, cheio de strass, que ela chamou de
CONFETE.
Ganhou o primeiro lugar em originalidade. Cada vez que a mãe do
Rafa aparecia, Tânia dava uma gargalhada.
A terça feira amanheceu com dia lindo, sol dourado, calor quase
insuportável. Estávamos em Arraial d’Ajuda.
Cheios de animação, eu e Tânia e os meninos tomamos uma escuna
pra desembarcar em Arraial e tomar uma condução para a famosa
praia de Trancoso.

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Ao desembarcar, levei um choque vendo o lugar: imundo, cheio de
lama, lotado de vendedores de muidezas sujas como coisas do mar,
salgados, picolés feitos em casa, isopores imundos, com copos de
água de mineral.
Entramos num ônibus caindo aos pedaços que nos levaria até
Trancoso. À medida que o ônibus avançava pela estrada
completamente esburacada e cheia de lama, me senti invadido por
uma grande angustia.
Eu estava horrorizado com a sujeira, com a falta de educação dos
passageiros, do motorista que jogava essa sucata sobre rodas contra
os carros que vinham em sentido contrário. Quando sentia o impulso
de pedir parada e descer com Tânia e os meninos para voltar ao
navio, parecia que uma voz me dizia: “vá até o fim da viagem...”
Eu pensava no meu quase terrível mal humor, que essa praia de
Trancoso deveria ser o paraíso, porque só o paraíso justificaria uma
viagem tão grotesca, tão imunda, tão insuportável como essa.
Sair da mansidão de um navio que se movimenta sem ruído, sem
barulho, que desliza como se fosse um sonho, para arrancos,
solavancos, ruído de motor parecendo que vai explodir pela rotação
era um contrate deprimente.
E tome de entrar passageiros apanhados ao longo da estrada. Ivo,
não conseguindo mais ficar quieto, virou-se pra mim, com a cara
retorcida de repulsa, de raiva e disse: “que merda é esse ônibus,
essa gente suja, que merda, o que é que a gente ta fazendo aqui
dentro deste ônibus imundo???”

Quase desmaiei de tanto susto. Com os olhos aterrorizados, mandei


ele calar a boca, se sentar e virar pra frente.
Uma hora e quinze minutos depois formos cuspidos pra fora dessa
lata de lixo. Havíamos chegado à Trancoso.
Um vilarejo pobre, imundo, sem infra-estrutura nenhuma, sem
sinalização. Meu mal humor beirava a histeria, mas eu conseguia
disfarçar conversando com os meninos assuntos variados.
Até do Carcará eu falei, uma ave meio falcão, meio águia, que só
tem no nordeste. Eles pareceram interessados no que eu dizia.

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Tânia permanecia estranhamente quieta e calada.
Caminhamos, caminhamos, caminhamos. Meu Deus, essa praia tem
que me compensar por toda essa merda que estou vivenciando.
Finalmente chegamos à praia.
Ficamos os 4, como que paralisados, olhando aquela merda de praia.
Nossa decepção era tão grande, que nem tínhamos vontade de falar.
Tudo o que eu queria era sair dali.
Aquilo tudo era um pesadelo.
Eu precisava sumir dali o quanto antes, estava me controlando pros
meninos não perceberem, já que eles também estavam putos da
vida.
Uma Kombi veio passando, eu perguntei se estava voltando pra
Arraial. Paguei 4 Reais por cabeça – pagaria 20, se ele pedisse – e
com a graça de Deus estava voltando pra Arraial da Ajuda.
O motorista pisou no acelerador fazendo vibrar a lataria velha da
Kombi que parecia querer se desmanchar.
Ivo e Pedro à nos bancos da frente, olhavam pra trás, procurando
meus olhos e encontravam duas brasas incandescentes exprimindo
ódio pela furada em que nos metemos.
Uma hora depois, a Kombi chegou ao local onde havíamos
embarcado.perto de um resort luxuoso com piscinas e tobo-água,
restaurante e até um arara domesticada que andou no braço do Ivo.
Sentei para almoçar com Tânia enquanto os meninos se divertiam na
piscina, livres do pesadelo de Trancoso.
Depois do almoço tomamos uma balsa que nos levou de Arraial
d’Ajuda para Porto Seguro, numa travessia que durou cerca de 20
minutos, de onde pegaríamos a escuna para voltar ao Funchal.
Estávamos cansados, suados, loucos para voltar ao conforto e o ar
condicionado do navio. A escuna com cerca de 30 passageiros partiu.
Não andamos nem 5 minutos e ondas enormes faziam a embarcação
subir e descer como numa montanha russa. A cada subida e descida
da proa, todo mundo gritava “êêêêêêêêê!!!”
Ivo e Pedro viajavam sentados na ponta da proa se divertindo com o
balanço. Tânia que ontem falava com a boca mole de tão enjoada

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pelo balança suave do navio, agora dava gargalhadas quando o
pessoal gritava “êêêêêêêêêê!!!”
Pensei com meus botões, botões não; bermuda de linho: “tomara
que essa gargalhada não fique amarela porque ainda temos um bom
pedaço de mar até chegar ao Funchal que de onde estávamos
parecia pequenino fundeado em alto mar.
Quando mais a escuna avançava, mais altas eram as ondas.
A preocupação tomou conta dos meus pensamentos.
Uma passageira já estava sentada no deck visivelmente enjoada,
num contraste brutal com a alegria e algazarra das pessoas reagindo
aos movimentos bruscos da escuna.
Finalmente chegamos sem nenhum problema, graças a Deus. Ao
entrar na nossa cabine numero 35 do deck AÇORES, a visão
agradável de todo dia; nossa cabine arrumadinha, limpa, e em cada
cama um tabletezinho azul marinho de chocolate CADBURY’S.
Ivo devorava todos os dias os tabletinhos num total de 8, porque o
senhor Darlindo arrumava a cama duas vezes por dia.
Jantar, depois show com Claudia que cantou DON’T CRY FOR ME
ARGENTINA de maneira única, insuperável, arrebatadora, merecendo
bis da platéia que urrava de aplausos e gritos.
O navio zarpou às 22 horas com destino à ilhéus onde chegaríamos
com o nascer do sol.

Às 6 horas acordei pra fazer minha caminhada de uma hora no deck


MADEIRA, acima da AÇORES, com o Funchal diminuindo a velocidade
pra ancorar no porto de Ilhéus.
Sempre tive vontade de conhecer essa cidade.

Ninguém acordava, portanto fui tomar café sozinho. Quando os


meninos e Tânia finalmente se dignaram a sair da cabine, já eram
quase 9 e meia.
Pegamos um táxi de um motorista chamado Jorge que nos deu uma
aula de história sobre a cidade chegando inclusive a parar seu táxi
para que os meninos pudessem ver um cacaueiro e seus frutos.
Vimos o bar do seu Nacibe, a casa de Jorge Amado.

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Tomei um refresco delicioso feito com a polpa branca do cacau e
depois fomos comer um prato típico de peixe num restaurante bem
simples longe do centro da cidade.

Jorge havia prometido nos buscar o que acabou não acontecendo.


Pegamos um ônibus até a cidade e de lá um táxi até o Funchal.
Zarpamos no finalzinho da tarde em direção à Parati no Rio de
Janeiro navegando 48 horas sem parar.
Em Parati apanhamos escunas pra fazer SNOORKELLING, que é o
ato de observar debaixo dágua com uma máscara e um tubo de
respiração que se põe na boca.
Eu não sabia que existia esse termo snoorkelling.
Ouvi pela primeira vez dentro do navio.
Nossa escuna era pilotada por um alemão de 30 anos, muito
educado e prestativo.
Meus óculos de grau caíram dentro dágua e ele pulou imediatamente
atrás tentando encontrar.
Estávamos ancorados sobre 12 metros de água.
Ele voltou decepcionado dizendo ser impossível a localização dos
óculos. Agradeci e fui pro snoorkeling com os meninos e duas
paulistas gordinhas muito simpáticas.
Depois de algum tempo de observação e alguns CARAAAACAS dos
meninos, resolvemos sair de onde estávamos pra ir a uma praia ali
perto.
Lindo o lugar.
A nossa escuna jogou âncora a uns 100 metros da arrebentação para
que dois jovens pudessem ir à praia numa canoa que estava
amarrada na popa da escuna.
O barco só tinha um remo.
Ivo pediu pra ir com os dois rapazes mas pediu pra ir como remador,
com o que eles concordaram.
Ivo à principio remando à maneira dos índios, fazia tração com o
remo dirigindo o barquinho atabalhoadamente como é de seu
costume.

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Com poucas remadas ele conseguiu equilibrar a marcha da canoa
que seguiu retinha em direção à praia.
Nosso adolescente impulsivo e corajoso ficou em pé remando, com
os dois rapazes sentados no fundo da canoa conversando
despreocupadamente.

Meia hora depois estavam de volta.


Quando os três já estavam a bordo da escuna, as mulheres, Tânia, e
as duas gordinhas paulistas gritaram apontando algumas notas de 10
Reais e de um Real boiando na água.
Sem que ninguém esperasse Ivo gritou: “é meu!” e mergulhou.
Com uma das mãos dava braçadas, com a outra segurava no ar as
notas encharcadas.
Rimos à beça.
Mas o dinheiro não era dele.
Era de um dos rapazes que deixou o dinheiro cair ao subir na
escuna.
O dono do dinheiro, encantado com a proeza do carioquinha, deu a
ele as notas de um real.
Voltamos ao Funchal, todos cor de bronze lilás.
Banho tomado, limpos, perfumados, jantar, música, festa, muito
samba, de novo fomos deitar mais de meia noite.
O Funchal zarpou em direção Santos, nosso destino final.

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VIAGEM À DISNEY

QUINTA FEIRA - 12 DE JUNHO DE 1986

O dia tão ansiosamente esperado pelas crianças chegou.: irão à


Orlando viver o sonho de Disney. Estão felicíssimos, ansiosamente
curiosos sobre tudo o que cerca o embarque e deles.
Querem saber como vão encontrar o Idel, o primo que adoram.

No meio da tarde, recebo em casa um recado da AEROLÍNEAS que


faz meu sangue gelar; possivelmente não embarcaremos hoje
porque todos os funcionários da companhia entrarão em greve.
O que dizer às crianças agora, meu Deus?
Deixei a missão pra Marta na esperança de atenuar a quantidade de
telefonemas deles perguntando a toda hora sobre o embarque.
Eu em casa, na av.Osvaldo Cruz, esquina com Barão de Icaraí,
aguardando também com ansiedade a confirmação da viagem, para
pegar um táxi, ir à Tijuca pegar os três e ir direto pro aeroporto.
Lá nos encontraremos com José Roichmann, pai do Idel que dali
mesmo, pega outro vôo de volta para Belo Horizonte.

Nem Marta na casa dela, nem aqui no Flamengo fomos capazes de


agüentar as investidas mal humoradas e grosseiras do Frederico
ligando a todo momento “exigindo” que embarcássemos.
Também recebi vários telefonemas da Rachel muito decepcionado
por causa do cancelamento da viagem.
O telefone toca pela milésima vez, do outro lado Frederico não dá
trégua;
- pai, a gente vai embarcar ou não vai?

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- Não sei, meu filho, tenho a impressão de que a companhia deve
nos acomodar noutro avião, mas se a greve for curtinha, a gente
deve embarcar amanhã, ou no mais tardar no sábado.
- E se demorar pra caralho?
...

Às 8 da noite, liguei pro aeroporto recebendo do funcionário que me


atendeu a seguinte advertência: “venha pro aeroporto, mas não
conte como certo seu embarque com as crianças!”
Com o coração na mão, partimos todos para o aeoroporto que
estava um forno porque o ar tinha pifado.
Mas graças a Deus, em poucos minutos, o nosso vôo foi confirmado.
Entretanto, mesmo depois de todas as explicações sobre o tempo
que o jumbo levava de Buenos Aires para chegar ao Rio, que nosso
embarque só teria 2 horas de atraso, Frederico continuava mais mal
humorado do que nunca.
Depois é que tive um estalo, quando já estava quase dando uma
porrada nele, tal era a quantidade de grosserias que ele fazia
comigo; a FOME!!
Ele faminto é um pesadelo. O curioso é que nem por um momento
ele pediu comida no aeroporto.

É claro! Era isso! Eu tinha feito tamanha propaganda do serviço de


bordo de aerolíneas, que ele desistiu de comer qualquer coisa, só
esperando pelo belo jantar à bordo. Por sorte eles logo descobriram
o free shop e me deixaram em paz.

Aí passaram a encher minha paciência de outra maneira; iam olhar


as vitrines, voltavam correndo cheios de suplicas; “pai compra aquele
relógio pra mim, compra pai? Compra isso? Compra aquilo? Tem
uma mochila linda lá, compra pai?
Fred se encantou com um africano vestido a caráter. Veio correndo
descrever as roupas extravagantes e coloridas do crioulo e voltou
para o free shop.

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Finalmente entramos no avião que decolou logo. Quando soltamos
os cintos, o cheiro gostoso da comida se espalhava no ar. O barulho
dos talheres sendo separados, era música nos nossos ouvidos,
principalmente nos ouvidos do Fred.
Ele estava ligadíssimo na movimentação da tripulação. Idel, Vitor,
Rachel e Idel, pareciam não ligar pra fome. Nossas poltronas ficavam
pertinho da cozinha, a menos de dois metros de distância, o que
possibilitava ao Fred acompanhar tudo o que acontecia lá dentro. O
mal humor dele piorava; “pô, não vão servir comida não?”

Enfim começaram a servir as bandejas! O aspecto era apetitoso. Pra


mim veio um filé de peixe coberto por uma maionese deliciosa, uma
salada de maionese decorada com ovo em cima de uma alface
diferente, gostosa.
Noutra tigela um delicioso filé mignon alto com creme gratinado de
batata. Frederico levantou-se da cadeira dele, botou a cara quase
dentro da minha bandeja e reclamou: “pô, pai, você o Vitor
ganharam filé, pra mim veio frango!”
Respondi que tudo era comida, que tudo estava delicioso.
Pareceu concordar e se ficou quieto comendo.
Rachel como sempre faz em comidas rebuscadas, ciscou, ciscou,
levantou os olhos de Nossa Senhora em minha direção dizendo: “Ah,
pai, não estou gostando do frango não, eu queria carne igual a
você...”
Lógico que eu dei meu filé pra ela e peguei o frango. A fome era
negra. Idel quietinho, comia com vontade, Vitor com aquela
indiferença tão própria dele, comia quietinho também. Rachel ciscou,
ciscou , tirou dois pedaços do filé e largou dizendo que estava
“cheia”.
Que coisa mais chata, meu Deus do céu. Me controlei, fiquei calado,
peguei o filé de volta e comi até o ultimo pedaço.

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Quando o carrinho de comida passou de novo, Frederico pediu outra
bandeja de comida, mas que tivesse filé. Ganhou outra bandeja. E
omeu tudo! Bebeu três copos de coca cola e uma lata de Ginger Ale.

Depois do jantar, exibiram um filme que começou com um sujeito


encapuzado amarrando uma mulher e esfaqueando ela. Que final de
jantar mais sugestivo...
Todos adormeceram, menos eu.
É um inferno dormir nessa jamanta voadora com sua gigantescas
turbinas que desenvolvem 20 mil cavalos de força.
O barulho é forte, o frio também.
Vi o dia clarear e as crianças despertarem. Elas já abrem os olhos
ávidas de curiosidade e excitação. Como eu já havia avisado, o café
é uma droga. Mesmo assim tomaram sem reclamar.
Frederico foi o primeiro a descobrir a Flórida. A partir da descoberta,
eram 4 cabeças disputando lugar na janelinha redonda. Tivemos
sorte com o visual porque nossas poltronas ficaram exatamente atrás
das asas, portanto a visibilidade era total.

SEXTA FEIRA – 13 DE JUNHO

Desembarque, pessoas falando vários idiomas, filas de passaportes,


filas de conferências, filas de revista, filas, filas, mais filas, sai de
uma, entra em outra, demora, anda, demora, anda e as crianças
nem aí;excitadas, curiosas.
Uma grande limusine nos levou até o hotel, o que fez Fred vibrar
durante todo o longo trajeto ouvindo minha conversa com o
motorista.
No HOTEL BEL-AIRE sou atendido por uma recepcionista muito
gentil.
Cubana, loura, 35 anos presumíveis, de nome Silvia.
Pergunto por Alfred. Ela não sabe quem é. Esclareço que ele era o
recepcionista que me atendeu em 1.984 na minha primeira viagem à
Flórida.

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Silvia, uma bela mulher, me inspirou confiança. Ela olhava para as
crianças de um jeito curioso e agradável.
Muito prestativa, respondia a todas as perguntas. Seu inglês é
perfeito, sem sotaque.
Nossa comunicação era um misto de cubano, português e inglês.

Chaves nas mãos, estamos no apartamento. Eles adoram a maciez


dos colchões e passam a pular vigorosamente.
Eu não tirava os olhos do telefone, esperando ele tocar a qualquer
momento com alguém reclamando do barulho.
As camas são fortes, resistentes, e arremetem as crianças pra cima,
bem alto, quase tocando o teto.
Rachel quase toca o teto com as mãozinhas.
É impressionante a vitalidade dessa menina. Vitor dá pulos
acrobáticos de uma cama pra outra.
Idel acompanha.
Quando Fred pula, tenho a impressão de que vamos abrir um rombo
no chão e cair no apartamento de baixo.
Deixo tudo como está, tomamos um banho e vamos para a LINCOLN
ROAD fazer compras e almoçar.
Voltamos ao hotel depois de andar muito. Tomamos outro banho
porque o verão aqui deve ser pior do que o do Rio.
Apagamos todos, exaustos.

SABADO – 14 DE JUNHO

Acordei antes deles para arrumar a bagunça do quarto. Daqui a


pouco ouço vários BIP BIP BIP BIP.
São os relógios com alarme que eles compraram.
Estão achando lindo e me azucrinam a cabeça com esse ruidinho
insuportável.
Fred foi o último a acordar.

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Levantou com uma cara linda dizendo que o relógio dele havia
despertado, só que ele não ouviu e continuou a dormir.
Bebemos chocolate frio com biscoitos.

Às 7 e 05 o ônibus vem nos apanhar pra levar pra Orlando.


Duas horas depois o ônibus para numa lanchonete na beira da
estrada.
Ofereço comida, ninguém quer.
Só querem moedas pra enfiar nas máquinas de refrigerantes e
chocolates. Fred adora a SHERRY-COKE, coca cola com sabor cereja,
intragável!
Acompanhada de SCRAMBLED EGGS.
Rachel come bacon.
Na estrada de novo. Por fim o Reino Mágico.
Quando me vi com os 4 entrando nesta terra de fantasia, um temor
mais do que justificado me passou pela cabeça;e se alguém se
perder?
O pensamento me fez gelar o sangue. Não posso imaginar um
incidente desses tirando o brilho da nossa felicidade.
Parei com eles diante da bola prateada e falei com mal disfarçada
indiferença, mas com firmeza as recomendações que aliás não eram
recomendações, eram um pacto: se algum de nós se perdesse do
grupo, bastaria vir andando em direção à bola prateada.

O resto do grupo, ao perceber que ficou faltando alguém, vai


correndo pra bola prateada.
“Nada de pânico, nem choro!”, recomendei.
No rostinho dos 4 não vi medo, ou apreensão, só excitação, vontade
de começar a brincar em tudo o que estão vendo.
Andamos em tudo que o tempo permitiu.
Começou a chover forte por volta das 17 horas. Às 7 embarcamos de
novo no ônibus, desta vez para Orlando, MOTEL DAYS INN.
Todos adoraram.
O pula pula nas camas é retomado.
Levo a roupa suja para a lavanderia automática.

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Tem que botar moeda, moeda pro sabão em pó, moeda pro
amaciante, moeda pra fazer funcionar, moeda pra secar.
Fred está me assessorando na administração das moedas.
Botar moeda é com ele mesmo.
Percebo que uma senhora gorda, de cara simpática, enquanto
conversa com a sua filha, uma moça lindíssima, alta, pernas muito
bonitas, mas com pés enormes, 43 tenho certeza, nos observa.
É evidente que essas luzes de cores variadas piscando, barulho, etc,
me deixam confuso e não sei por onde começar.
Se não sei mexer na lavadora da minha casa, imagine essa nave
espacial à minha frente?
Lanço um olhar de súplica pra senhora que funciona.
Ela se levanta da cadeira onde aguardava sua roupa bater pra me
ajudar.
É uma tagarela que fala sem parar.
Levo um espôrro porque coloquei sabão em pó no local destinado a
BLEACH.
Me explica que bleach é sabão liquido. Ela abre a tampa, joga a
roupa suja dos meninos lá dentro, pega água, joga em cima do
sabão em pó que se desmancha e cai dentro da máquina.
A mulher fecha a tampa, e liga um daqueles inúmeros botões não
sem antes dar um último espôrro: “venho pra cá de férias, mas o
que acabo fazendo é ensinar a um estranho como lavar as roupas
dele!”

Sorrio sem graça, e disse um obrigado tão cheio de gratidão que eu


acho até que amoleceu ela.
Enquanto espero chacoalhar, outras mulheres vão chegando, e mais
outras, cada uma ocupando uma máquina, todas com uma
intimidade invejável com os botões e procedimentos.
Conversam alto, e só eu de homem lá no meio delas. Algumas me
olharam com curiosidade e antes que alguém me perguntasse qual o
detergente preferido pra branquear minhas roupas, fui lá pra fora,
mas sempre de olho naquelas malditas luzes coloridas.

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Enfim pego as roupas, volto pro quarto, obrigo todos a tomar banho
e escovar os dentes.
Apagamos todos.

DOMINGO – 15 DE JUNHO

Acordamos cedo de pura excitação. A alegria das crianças é


contagiante. Fomos para a cafeteria. Vejo 8 pares de olhos
arregalados para as delicias expostas. Elas querem tudo, mas o que
fez sucesso foi o SCRAMBLED EGG. Idel comeu um prato cheio. Fred
repetiu, Rachel também, mas com um detalhe: ela recolhia dos cinco
pratos o bacon que recebíamos.
Nunca vi Cunca comer tanto bacon. Às 08,45 o ônibus vem nos
apanhar pra irmos ao SEA WORLD.
Quando passamos pelas roletas, a primeira coisa que as crianças
descobrem é um tanque de alimentação de golfinhos.
Elas deliram, tocam na pele deles.
Houve um momento em que me distraí porque me concentrei nas
travessuras de um dos bichos e fiquei muito debruçado no parapeito.
De repente sai da água uma cabeça enorme de golfinho que só não
me tocou o rosto porque dei um pulo pra trás de susto.

Rachel dá gargalhadas com as diabruras desses bichinhos graciosos.


Tenho medo de que ela caia na água de tanta excitação.
Depois fomos ver as baleias.
Emocionante.
Em seguida o show aquático numa das muitas lagoas artificiais.
Divertidíssimo.

Andando sem rumo nesse mundo de alegria, eles pedem todos os


picolés e sorvetes que vêem nas mãos das pessoas.
Eu dou.
A unanimidade é pelo picolé com formato de Mickey, metade branco,
metade vermelho.

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Estávamos numa fila e Rachel se deliciava chupando lentamente um
sorvete quando nossa vez de entrar num túnel de fantasia deixou
Cunca tão excitada que me pediu pra guardar o sorvete no bolso pra
quando acabasse a aventura dentro do túnel.
Os meninos riram dela o dia inteiro por causa disso.

Faz muito calor.


Estão todos muito cansados e só pensamos em voltar para o hotel
por causa da piscina.
Chegamos às 07,20 com o sol arrebentando mamona.
Os 4 mal chegam ao quarto, trocam de roupa e descem a escada
feito bala em direção à piscina.
Vou até a máquina de refrigerantes enquanto ouço a algazarra deles
na água.
Fred importantíssimo cronometrando no seu G-SHOCK quanto tempo
fica debaixo dágua.

SEGUNDA FEIRA – 16 DE JUNHO

O dia amanheceu frio e gostoso. Ligo o rádio de cabeceira


procurando uma emissora de FM que tivesse uma música calma.
Também quero ouvir meus colegas de profissão atuando. Paro numa
emissora que executa música orquestrada, muito agradável. Ao final
da execução ele anuncia o nome das músicas, diz o nome da rádio
com três letras e o slogan WHISPERING – sussurrando.
Me encanta o trabalho dele.
Ao finalizar um longo boletim meteorológico ele acrescentou: são
tantas horas e tantos minutos, meu filho acabou de ligar pra mim
perguntando a que horas vou sair da rádio pra ficar com ele, e
respondi que dentro de mais alguns minutos.
Aguarde só mais um pouquinho, ok, filho, papai já estará logo logo
com você. Beijos!”

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Maravilhoso, encantador, fiquei fascinado ouvindo meu colega, pai
como eu, mandando seu recadinho carinhoso pro filho através do
microfone.
Me lembrei do Fredeca quando nasceu. O programa de musica
clássica que eu produzia e apresentava na rádio Del Rey, a primeira
emissora FM de Belo Horizonte, foi todo dedicado a ele.
Eu rodava uma música e agradecia ao hospital, que por coincidência
se chama FREDERICO OZANAN.
Eu agradecia ao final das peças pequenas pra piano, ou violão, ou
violino o tratamento que dispensaram à mãe dele. Rodava outra
música e agradecia a equipe médica que o trouxe ao mundo. Foi um
dos dias mais felizes da minha vida.
No dia em que Frederico nasceu todos os outros bebês que
nasceram eram mulheres.

As crianças dormem pesado, o que me faz sentir um ligeiro remorso


por causa do pensamento irresistível de procurar um martelo e
triturar todos os relógios que eles compraram.
Esses plim plim malditos me torturam de hora em hora. Pode parecer
insignificante durante o dia mas a noite parecem sinos batendo ao
lado da minha cabeça.
Acordam todos e vamos para a cafeteria. Antes um belo espetáculo;
dois balões gigantescos se aproximam do hotel, um deles baixo
demais.
As crianças acenam para os ocupantes da cestinha, que respondem.
Somos os primeiros a chegar à cafeteria. Todos vão com gula ao
famigerado SCRAMBLED EGG.
Rachel de novo come muito bacon, mais do que um adulto pode
aguentar. O ônibus vem nos apanhar pra EPCOT CENTER.
É difícil descrevê-lo tal a quantidade de emoções que existe dentro
daquela bola prateada.
Depois do almoço, bem mais tarde, quando caía uma chuva pesada,
fizemos um giro pelos paises.

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Incrível como conseguiram recriar num espaço de menos de 400
metros quadrados o clima, o espírito melhor dizendo, a arquitetura e
os costumes de cada país.
Acho que é a coisa que mais impressiona o visitante.
Às 19,15 embarcamos de volta pra Miami.
Chegamos ao hotel mortos de sono e cansaço. Era mais de meia
noite.
Antes de apagarmos, tive o cuidado de recolher todos os relógios
despertadores e os coloquei dentro de um armário no banheiro,
fechando a porta em seguida. Dormimos feito pedra. Sem o ruído
dos G-SHOCK, graças a Deus!

TERÇA FEIRA – 17 DE JUNHO

De pé, todo mundo já na maior algazarra. Tentei lavar debaixo do


chuveiro as roupas molhadas da chuva de ontem que estavam sujas.
Consegui mas fiquei com uma bruta dor nas costas, exatamente na
região lombar.
Meu Deus, ser dona de casa não é fácil!
À tarde fomos fazer compras no shopping VENTURA MALL.
Que maravilha de shopping! Todo refrigerado, lojas lindíssimas e
pouquíssimas pessoas circulando.

Entrei numa loja de brinquedos e perdi imediatamente o controle


sobre as crianças; quando eu tirava um brinquedo das mãos do Idel,
os outros três já estavam cada um com um brinquedo rolando pelo
chão.
Olhei com cara de desespero para os vendedores que sorriam, me
dando a impressão de que não estavam ligando a mínima pra farra
dos meninos.
Então aderi também, passei a brincar com um guindaste que era
maravilhoso.
Pena que era grande demais.
Vitor e Idel ficam enlouquecidos com o POGO, brinquedo tipicamente
americano.

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Rachel quer brincar também.
Tento convencê-la a escolher outra coisa. Ela vibra com um mini-play
ground, mas fica de olho no POGO dos meninos.
Não tenho a menor dúvida de que ela vai brincar a valer na ausência
do Vitor.
A noite chega e nos encontra carregados de embrulhos até a cabeça.
Depois de virarmos o Ventura Mall de cabeça pra baixo, fomos para
o ponto de ônibus, aguardar condução.
Vimos quando se aproximava uma bela mulher jovem com algumas
sacolas na mão.
Não se passaram nem dois minutos quando um guarda de segurança
negro, alto, muito forte, acompanhado de outro guarda de cor
branca, walkie talkie na mão, pediu à moça que devolvesse o objeto
que estava em sua bolsa. Ela tentou protestar falando com
arrogância e em tom de voz elevado, ameaçando-os com processo.
O guarda negro disse sem se perturbar que ela poderia fazer o que
quisesse, mas ela teria que acompanhá-lo de volta à loja onde
estava.
As crianças deduziram pelo nervosismo dela e pela postura do
guarda que ela havia roubado ou deixado de pagar alguma coisa.
Ficaram em silêncio e um pouco constrangidos pela cena que
presenciaram.
A chegada do ônibus não serviu para devolver nosso ânimo, pois já
estávamos bastante cansados.
As pessoas que formavam a pequena fila entraram e foram
ocupando seus assentos.
Nisso , a porta de vidro do shopping se abre com violência e nossa
americana safada, lalau, bonita, com ódio estampado no rosto
procura um banco e se senta.
O motorista dá partida.
Os meninos agora estão mudos, olhando atentamente a mulher que
tem movimentos bruscos de cabeça e mãos.
À medida que o ônibus percorre as ruas, mais passageiros vão
entrando. Mais uma parada, desta vez pra pegar um jovem negro de
aparência simples, que vai se equilibrando a procura de um lugar.

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Ele se senta justamente ao lado da loura ladra.
Ela olha pra ele, faz cara de nojo e ficou de pé.
Acintosamente.

Chegamos ao hotel às 22,30. Peço aos meninos que coloquem os


relógios para despertar às 5 da manhã, já que as 6 horas o ônibus
vem nos apanhar pra irmos ao aeroporto de Miami, onde um cruzeiro
até Bahamas nos espera.

TERÇA FEIRA – 18 DE JUNHO

Acordei às 4 da manhã sobressaltado, podia dormir mais um pouco.


Acordei de novo às 05,30 apavorado.
Este susto só serviu para aumentar minha antipatia pelos relógios
despertadores porque no único momento em que eu precisei deles,
não funcionaram.
Tomamos chocolate gelado com biscoitos, às 06,30 o ônibus nos
apanhou e fomos para o cais.
Depois de toda aquela chatice de preencher fichas, 15 no total,
finalmente embarcamos. Agora vamos tomar um delicioso breakfast.
Meu Deus, quanta variedade!
Como não podia deixar de ser, no meio de tanta coisa colorida, um
panelaço cheio de SCRAMBLED EGGS.
Rachel comeu um prato cheio, Idel também. Há tanta coisa gostosa
para se comer que não sabem por onde começar.
Curtimos nosso café numa mesa junto à janela que oferecia a beleza
das águas em contraste com o céu azul e nuvens muito brancas. Os
meninos exploram o navio, fuçam todos os espaços.
Vitor já descobriu que não há chicletes no navio e que as máquinas
do salão de fliperama são acionadas por moedas de 25 cents em vez
de fichas.
Rachel já sabe quais são os bebedouros de água mais gelada e jato
forte.

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Dou moedas pra todo mundo jogar.
Todos perdem, exceto Idel que é danadinho na fórmula um,
ganhando o bônus de disputar outra corrida de graça.
Agora todos almoçam.
O buffet é lindíssimo. Chegamos às Bahamas às 13 horas. Quem
ouve esse nome pensa em algo misterioso, fascinante, fervilhante.
Mas o que vimos foi uma grande extensão de terra e vegetação, um
porto muito mixuruca totalmennte entregue às moscas. Felizmente
as crianças não criaram falsas expectativas.
Só o Fred disse repetidas vezes que Bahamos era uma decepção.
Expliquei a eles que o barato desse cruzeiro é o navio, as diversões à
bordo, o buffet, as pessoas, etc.
Demos uma circulada ali pelo porto mesmo, voltando ao navio depois
de uma hora.
O calor também é insuportável aqui.
Tento dormir num dos conveses.
Os garotos não deixam.
Às 6 em ponto começam a servir o jantar.
Vou pra fila com Rachel. A fila está relativamente grande.
Peço a Cunca para procurar os meninos para que possamos ocupar
uma mesa grande de 6 lugares na parte que é atendida por um
garçon muito amável, português, de nome Antonio.
Já está quase chegando a minha vez e até agora os meninos não
apareceram.
Rachel já procurou o navio todo e nada.
Fico puto!
Penso em mandar as pessoas atrás de mim passaram à frente, para
tentar ganhar tempo enquanto Rachel sai de novo à procura dos
meninos.
Desisto da idéia, tal é o estado de puteza em que me encontro.
Resolvo seguir em frente com Rachel atrás de mim. O jantar era
mais lindo ainda que o almoço.
Cunca está explodindo de felicidade, não sabe por qual delicia vai
começar a se servir.
Vamos para a área do Antonio que faz todas as vontades da Cunca.

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Continuo preocupado com os meninos. Onde é que esses putos se
meteram?
Devem estar mergulhados em máquinas de flipper.
Chego a sentir um certo prazer imaginando as caras deles
esfomeadas vindo até nossa mesa dizendo: “queremos jantar.”
Mas eis que surge Fred com a boca toda branca de maionese, me
pedindo dinheiro pra coca.
Dou um espôrro nele, dizendo que agora vai ter que enfrentar uma
fila enorme, e pior, comer separado da gente.
Ele me olha com aquele ar de enfado, tão próprio dele, com a
mãozona quase perto da minha cara esperando a moeda pra
comprar coca cola, e arremata dizendo que já está acabando de
jantar com Idel e Vitor.
Os três ordinários vieram caladinhos na frente.
Apesar de o jantar ser delicioso, Rachel fala sem parar da feijoada da
avó.
O garçon se rende à graciosidade dela. Essa menina desperta um
sentimento curioso nas pessoas, tanto homens como mulheres,
todos brincam com ela como se brincassem com um garoto.
Observei isso a viagem inteira. Ela desperta o riso no semblante das
pessoas.
Em todos os lugares onde havia um certo silêncio como no ônibus, o
ponto de ônibus, monorail, filas de caixas em supermercado, ou
lanchonetes, quando ela falava, as pessoas riam, falavam frases
curtas pra ela.
Dentro do monorail em Disney, quando ela viu a bola prateada de
EPCOT, deve ter feito expressões e interjeições tão engraçadas que
um senhor que estava sentado com as filhas diante de nós, começou
a rir alto.
Quando o monorail parou, ele desejou a ela um ótimo divertimento.
O garçon Francisco do restaurante cubano da avenida Collins olhava
pra ela com uma expressão engraçada no rosto, como se estivesse
prestes a rir muito de alguma coisa que ela fosse dizer.

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Agora estou aqui olhando pra ela que não para de falar. Comi muito.
Ela também. Saímos do refeitório pra andar um pouco e fazer a
digestão. Rachel me pede insistentemente pra ir até o cassino jogar
nas máquinas. Me recuso, mas ela é insistente, acabo cedendo.
Dou a ela uma moeda de 25 centavos. Ela põe na máquina e escolhe
a figura, melancia.
No almoço havia melancia de sobremesa, que pelo aspecto rosado,
pálido não devia estar muito doce. Ela aceitou meus argumentos e
não comeu.
Mas no jantar não resistiu e acabou comendo um pedaço. Achou sem
doce, e despejou açúcar em cima.
Agora estava ali diante da máquinas escolhendo justamente a figura
desta fruta.
Puxou a alavanca, as rodas com figuras de frutas variadas
dispararam por alguns segundos parando em três...melancias.
A maquina tocou uma espécie de telefone despejando 25 moedas de
25 cents. Ganhou 5 dólares.
Tive um acesso de riso.Ela toda feliz com a sorte na maquina fala e
fala sem parar.
Estou me segurando pra não dizer a frase que ela mais ouviu na
vidinha dela. “CALA A BOCA RACHEL!
À noite assistimos a um show de jazz interessante num salão
luxuosíssimo e lindamente decorado.
Vitor assiste atento. Idel e Fred dormem.
Rachel aplaude entusiasmada ao final de cada número.
Ela não se dava conta de que as pessoas aplaudiam e paravam em
seguida. Ela continuava batendo palma.
Devia estar com pensamento nas melancias da fortuna.
À meia noite estávamos ancorando no porto de Miami.

Chegamos ao hotel à uma hora da madrugada. As crianças


excitadíssimas faziam barulho, riam de tudo e pulavam feito macacos
sobre as camas de mola. Eu já tinha mandado parar.

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Daí a pouco, ouço batidas na porta. Abro e dou de cara com um
americano de roupão mal humorado, puto da vida, dizendo que era
impossível dormir com esse barulho que os meninos faziam.
Ouvi calado, só consegui balbuciar um pedido de desculpas, mas que
ele não se preocupasse porque o barulho já havia cessado.
Virou as costas pra mim e se afastou, puto da vida.
Com a voz bem baixinha dei um espôrro nos quatro. Ninguém dizia
“ái!”
Dormimos todos, mas antes tive o cuidado de pegar todos os
relógios,colocar dentro da banheira, coloquei várias toalhas de banho
por cima pra abafar os ruidinhos de bip bip e tranquei a porta.

QUARTA FEIRA – 19 DE JUNHO

O dia amanheceu lindo de novo. Céu azul, sol forte. Estávamos


loucos pra ir à praia, que ficava nos fundos do hotel.

Indo pra praia, resolveram ficar brincando na piscina que parecia


muito mais convidativa. Tendo que fazer algumas compras, chamei
Rachel pra ir comigo.
A caminho do centro da cidade eu e Cunca íamos admirando a
paisagem quando uma velha chamou nossa atenção pelo tom de voz
irritado com que se dirigiu a um grupo que parecia de trabalhadores
da construção civil.
Eles conversavam animados, o que irritou a velha que deu um grito
em francês. “SILENCE!”
Eles se calaram.
Satisfeita com sua prepotência, ela veio chegando mais pra frente do
ônibus e ficou em pé, exatamente perto de mim e de Cunca.
Então ouvi de novo sua voz desagradável autoritária dizer: “senhor,
eu sou velha, talvez sua filha queira dar seu lugar para que eu me
sente!”
Antes que ela prosseguisse respondi: “minha filha vai continuar
sentada, sente-se então no lugar!”

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Achei que essa foi a melhor solução, pra não criar atrito com uma
maluca. Havia outros lugares vagos no ônibus, mas a vaca quis o
banco em que estávamos.
Não consegui nem ficar com raiva porque os olhares da Rachel de
rabo de olho pra velha eram tão engraçados que tive vontade de rir.
Comprei o que precisava e voltei correndo pro hotel pra ir com os
meninos almoçar. Greve na aerolíneas.

Fui até a piscina, chamei os meninos, custaram um pouco a sair, só


saíram porque comecei a fazer chantagem dizendo: “vamos comer o
que hoje, MacDonalds, Burger King, Popeye, Kentucky Fried, o filé
com fritas do restaurante cubano ou o que?
Nesta algazarra, já passava do meio dia, eu tentando apressá-los pra
que se vestissem, mas eles adoravam ficar pulando me cima
daquelas comas de mola.
De repente ouço batidas fortes na porta. O barulho cessa.
Quando abro a porta, quem está? O americano de ontem à noite,
puto da vida com o mesmo roupão dizendo que era impossível
descansar depois do almoço com o barulho que os meninos faziam.
Nem deixei ele terminar, cortando sua palavra dizendo: “ontem à
noite você tinha razão, mas a esta hora, por favor não enche meu
saco!”
Bati a porta e mandei as crianças continuarem a pular.

Me lembrei agora de um acontecimento divertido num dos parques


da Disney; Fred queria pedir sozinho um picolé. Queria fazer o
pedido em inglês, sem minha ajuda.
Ensino ele a formular a frase I WANT A BAR.
Falo devagar, pra ele repetir várias vezes. Olha pra mim, e testa sua
memória: “ I WANT A BAR.”
Ele vai caminhando pra carrocinha de picolé, com seu jeito calmo e
se aproxima do vendedor. Estamos na espectativa.
Os meninos querem presenciar esse grande momento do Fredera.
O vendedor está atendendo várias pessoas.

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Depois que ele despacha todos, olha pro Fred, e pergunta MAY I
HELP YOU?
Quase desmaiamos de tanta aflição. Os meninos vibram com a
ousadia dele.
Balbucia qualquer coisa parecida com I AM HEAD TWO.
O vendedor franze o rosto e retruca “I AM HEAD TWO?”
Fred agora titubeante manda de novo: “I AM HEAD TWO.
Antes que o vendedor coçasse a cabeça, intervenho e peço o picolé.
Não sei de onde ele tirou essas palavras que traduzida ao pé da letra
quer dizer “EU SOU CABEÇA DOIS.”
Vitor, Rachel e Idel dão gargalhadas porque fiquei repetindo a
entonação dele o dia inteiro com inflexão de índio “EU QUERER
CABEÇA DOIS!”

Ao entrar no enorme hall do hotel, Silvia com expressão preocupada


se apressa em dizer que havia um recado urgente de Aerolineas.
Silvia talvez pensando que eu soubesse o que signfica a palavra me
disse: “Mr. Marcio, ligaram de aerolineas avisando que empezaram
hoy uma HUELGA total!”
- O que é isso? Perguntei.
Traduzido pra greve, me apressei a ligar pra companhia pra saber se
eu não embarcaria. Tudo resolvido, seriamos acomodados com toda
a segurança num jumbo da PAN AM.
Era só o que me faltava, uma greve total de uma companhia de
aviação, e eu tendo que aguentar 4 capetas enchendo meu saco.
Que alivio pela solução encontrada.

20 horas. Estou no aeroporto de Miami agudando embarque para o


Brasil.
Os meninos se divertem e falam tão alto que um americano velho –
sempre os americanos velhos – saiu de uma sala perguntando que
barulho era aquele.
Não deu tempo de mandar ele à merda porque fechou a porta de
novo.

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Quase 23 horas. Finalmente todos embarcados. Uma aeromoça traz
um carrinho pelo corredor distribuindo fones de ouvido dentro de
sacos plásticos.
Eu não quis, mas cada um pegou o seu.
Tudo pra eles é motivo para brincadeira. Ficaram monitorando as
músicas no comando instalado no braço da poltrona.
Decolamos. Vem o jantar pra alegria do Fred.
Aliás, um jantarzinho bem inferior ao de aerolineas argentinas.
Depois do jantar as luzes foram se apagando. Vai começar a sessão
de filmes de açougue humano.
Munidos de suas mantas e travesseiros, eles não tem muito interesse
no filme e já procuram se aninhar o melhor que podem, para a longa
jornada.
Os fones foram abandonados, mas eis que no corredor, surge a
figura da aeromoça recolhendo o dinheiro das pessoas. Ela é rápida
na operação, logo chegando perto de mim.
Pergunto o que é, ela responde “3 dólares pelo uso do fone.”
Fui mais rápido do que ela dizendo que em lugar nenhum do mundo
se cobra por fone de ouvidos à bordo, que ela então levasse os 4
fones de volta.

Vitor teve uma idéia brilhante; como havia espaço razoável entre as
fileiras de poltronas que ele, Fred e Idel ocupavam, e a divisória que
separa a cozinha das poltronas, ele foi pro chão deitar-se naquele
carpete limpinho. Ficou ali confortavelmente esticado, quando de
repente levantou-se pra ir ao banheiro. Fred vendo aquela caminha
feita logo abaixo do nariz dele, não se conteve e ocupou o lugar do
Vitor.
Tive vontade de obrigar Fred a sair dali,mas resolvi esperar pra ver
no que ia dar.
Quando Vitor se deparou com aquele ursão deitado, ordenou em voz
baixa que ele saísse de sua “cama.”
Fred por sua vez não mexia um único músculo do corpo pra dar a
impressão de que estava dormindo.

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Vitor, respeitando o silêncio no avião, agachou-se um pouco naquela
coisa gordinha envolta em mantas deitada na cama dele. Por mais
que tentasse não conseguiu “acordar” o irmão.
Então ele se sentou na poltrona que era do Fred e passou a dirigir
palavrões pro Fred que agora estava com a cabeça coberta pela
manta.
Vitor desferiu algumas pezadas contra o volume gordinho que
imperturbável continuava ocupando sua cama.
Pouco a pouco fomos apagando. Acordamos com a claridade
penetrando pelas frestas das janelas. Estávamos sobrevoando o Rio
de Janeiro.
Terminava aí uma gradável experiência com esses quatro merdinhas
na Flórida.

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FREDERICO MARCIO SEIXAS EM PARIS

Frederico foi pra Europa com Ana Tolda, e em Paris foi ciceroneado
pelo padrasto da Ana que é um industrial francês rico.
Fred ligou de Paris às 21,20 (18,20 aqui) com a voz excitadíssima.
Ele queria falar 10 coisas ao mesmo tempo.
Ligou do quarto de “um hotelzinho...como se chama esse hotel ,
Ana?”

-“LA CAMPAVILLE”

-“É, La Campaville, fica pertinho da Torre Eiffel...péra aí, a Ana quer


falar...”

- “Num to gostando de Paris não, é tudo muito caro! Mas o


hotelzinho é muito bom, o Campaville.

- Não é Campaville, Ana, é CAMPANILLE. Eu e Tânia ficamos nele o


ano passado...

-É,É,É,É, Campanille. O Fred...

- Ô pai, comprei 2 litros de licor Baileys pra você em Andorra; Sabe


quanto custou? 10 dólares!!! Ah, comprei um capacete A.G.V pra
mim, sabe quanto? 135 dólares! Péra aí, a Ana quer falar...

- Fred, você ta brigando com a Ana?


- (RISOS, GARGALHADAS) Papai ta perguntando se eu to brigando
com você, Ana. Não, pai a gente ta se dando bem. Pai, Barcelona é
muito linda. Fiquei apaixonado por aquela cidade.. Péra aí que a Ana
quer falar...

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- Num to gostando de Paris não. Ta muito suja, muito negro, muito
“argeliano”...

- Argeliano não, Ana, Argelino...

-É,É,É,É, Argelino. O Fred não tem paciência quando entro nas


lojas...

- Sabe o que é, pai? Ela quer comprar paninho de botar na cabeça,


essas merda!” Ah, pai, comprei dez disquinho MD PRA você, sabe
quanto foi cada um? 11 dólares. Cara, Barcelona é muito linda...

- Chama a Ana...

- Oi!

- Ana, você foi naquele porto de onde Cristóvão Colombo saiu com
as três caravelas pra descobrir a América?

- Fui, é a PLAZA COLÓN. É linda...

- Pai, o catalão é muito fácil, eu...

- Então fala pra mim como é POR FAVOR em catalão.


- Ana, como é POR FAVOR em catalão?

- (Ana, ao fundo: “si ex plau”)

- É, SI EX PLAU!

- Pai, sabe como é BENVINDO em catalão? BENVEGUT! Eu já


aprendi. Ah, cadê a Tânia? Fala que eu mandei um beijão pra ela.
Fala que eu to morrendo de saudade do Ivo, do Pedro. Liga pra
mamãe, pai. Ah, o Vitor conseguiu fazer aquele trabalho que ele tava
esperando?

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- Não, está aguardando ainda.

- Cara, a gente veio de avião de Andorra pra cá, uma hora de


viagem. Foi muito legal. Ah, fala pra Rachel, pra mamãe que eu
liguei, que ta tudo bem...

- Fred, não fique gastando o seu dinheiro, você ainda tem vários dias
pra viajar, não fique viajando com peso...

- To pagando tudo com cartão. E o peso, que nada, dá pra levar


legal. Vou desligar, senão a ligação fica muito cara. Ah! Pai, fala que
eu liguei, ta? Beijos.

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