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coleção TRANS

Jacques Rancière

O DESEN TEN DIMEN TO


Política e Filosofia

Tradução
A ngela Leite Lopes

Jg j MéDiaTHèque
J 4 * MaisondeFránce
5 £ 0 - 0 >

P-A a J

ed i t or al 3 4
ED ITO RA 34

Distribu ição p ela Cód ice Com ércio Distribu ição e Casa Ed itorial Ltd a.
R. Simões Pinto, 120 CEP 04356-100 Tel. (011) 240-8033 São Pau lo - SP

Cop yright © 34 Literatu ra S/C Ltd a. (ed ição brasileira), 1996


La mésentente © Éd itions Galilée, Paris, 1995

A FO TO CÓ PIA D E Q U A LQ U ER FO LH A D ES TE LIV RO É ILEG A L, E CO N FIG U RA U M A

A PRO PRIA ÇÃ O IN D EV ID A D OS D IREITO S IN TELECTU A IS E PA TRIM O N IA IS D O A U T O R.

Títu lo original:
La mésentente
Cap a, p rojeto gráfico e ed itoração eletrônica:
Bracher & M alta Produção Gráfica
Revisão técn ica:
Renato ]anine Ribeiro
Revisão:
Geraldo Gerson de Souza

I a Ed ição - 1996

34 Literatu ra S/C Ltd a.


R. H u ngria, 592 CEP 01455-000
São Pau lo - SP Tel./Fax (011) 210-9478 Tel. (011) 832-1041

Dad os Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP)


(Câm ara Brasileira d o Livro, SP^ Brasil)
Rancière, Jacques
O desentendimento - política e filosofia / Jacques
Rancière ; tradução de Ângela Leite Lopes. — São Paulo :
Ed. 34, 1996
144 p. (Coleção TRAN S)

Tradução de : La mésentente - politique et philosophie

ISBN 85-7326-026-2

1. Filosofia francesa. 2. Política. I. Título.


II. Série.

96-0595 CD D - 1(44)
O DESEN TEN DIMEN TO
Política e Filosofia
O DESEN TEN DIM EN TO
Política e Filosofia

Prefácio 9

O com eço da p olítica 17

O d ano: p olítica e p olícia 35

A razão do d esentend im ento 55

Da arqu i-p olítica à m eta-p olítica 71

Dem ocracia ou consenso 99

A p olítica em sua era niilista 123


PREFÁCIO

"lloicov Ô ' LAOTTIÇ eaxi m i TCOIÍOV


aviaorriç, Ôei |LLT\ ÀavBaveiv e%si yap
TO D T arcopiav K A I (| )iXooo<| )iav

7tOÀ,lTlKr| V."
Aristóteles, Política, 1282 b 21

Será que a filosofia p olítica existe? Tal pergunta parece im p ró-


p ria p or duas razões. A prim eira é que a reflexão sobre a com u nid ad e
e sua finalid ad e, sobre a lei e seu fu nd am ento está presente na origem
de nossa trad ição filosófica e nu nca d eixou de insp irá-la. A segunda é
qu e, de algum tem p o p ara cá, a filosofia p olítica vem afirm and o com
estard alhaço a sua volta e sua nova vitalidade. Entravad a durante muito
tem p o pelo m arxism o que fazia da p olítica a exp ressão ou a m áscara
de relações sociais, submetid a às usurpações do social e das ciências
sociais, ela estaria reencontrand o h oje, na d errocad a dos m arxism os
de Estad o e no fim das u top ias, sua pureza de reflexão sobre os p rin-
cíp ios e as form as de uma p olítica restitu íd a à sua pureza pelo recu o
d o social e de suas am bigü id ad es.
Essa volta coloca, p orém , alguns p roblem as. Qu and o não se li-
m ita a com entar alguns textos, ilustres ou esqu ecid os, de sua p róp ria
h istória, a filosofia p olítica restau rad a qu ase-não p arece levar sua
reflexão além d aqu ilo que os ad m inistrad ores do Estad o pod em ar-
gu m entar sobre a d em ocracia e a lei, sobre o d ireito e o Estad o de
d ireito. Em su m a, ela parece sobretu d o assegurar a com u nicação en-
tre as grand es d ou trinas clássicas e as form as de legitim ação usuais
d os cham ad os Estad os de d em ocracia liberal. Mas tam bém a supos-
ta concord ância entre a volta da filosofia p olítica e a volta de seu ob-
jeto, a p olítica, carece de evid ência. N o tem p o em que a p olítica era
contestad a em nom e do social, do m ovim ento social ou da ciência so-
cial, ela se m anifestava, no entanto, numa m ultiplicid ad e de m od os e
de lugares, da rua à fábrica ou à universid ad e. A restau ração da p olí-
tica enu ncia-se, h oje, na d iscrição desses m od os ou no au sentar-se

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C) Desentend imento
desses lu gares. Dir-se-á que ju stam ente a p olítica p u rificad a reen-
controu os lugares ad equ ad os à d eliberação e à d ecisão sobre o bem
com u m , as assem bléias onde se d iscute e se legisla, as esferas do Es-
tad o onde se tom am d ecisões, as ju risd ições supremas que averiguam
a conform id ad e das d eliberações e das d ecisões às leis fu nd ad oras da
com u nid ad e. A d esgraça é qu e, nesses p róp rios lu gares, se p rop aga a
op inião d esencantad a de que há p ou co a d eliberar e de que as d eci-
sões se impõem p or si m esm as, sendo o trabalh o p róp rio da p olítica
apenas o de ad ap tação p ontu al às exigências do m ercad o mund ial e
de uma d istribu ição eqü itativa dos lucros e dos cu stos dessa ad ap ta-
ção. A restau ração da filosofia p olítica m anifesta-se, assim , ao mes-
m o tem po que o au sentar-se da p olítica p or p arte de seus represen-
tantes au torizad os.
Essa singular concord ância exige uma volta à questão da evidência
prim eira da filosofia p olítica. O fato de (quase) sempre ter havid o po-
lítica na filosofia não p rova, de m od o algum , que a filosofia p olítica é
um ram o natu ral da árvore-filosofia. Em Descartes, com certeza, a
p olítica não é citad a entre os ram os da árvore; a med icina e a m oral
cobrem ap arentem ente tod o o cam p o em que ou tras filosofias a en-
contravam . E o prim eiro da nossa trad ição a encontrá-la, Platão, fê-
lo apenas sob a form a da excep cionalid ad e rad ical. Sócrates não é um
filósofo que pensa sobre a p olítica de Atenas. É o ú nico ateniense que
"faz as coisas da p olítica"1 , que faz a p olítica de verdade que se op õe
a tu d o o que se faz em Atenas sob o nom e de p olítica. O en con tro
p rim eiro da p olítica e da filosofia é o de uma alternativa: ou a p olíti-
ca dos p olíticos ou a dos filósofos.
A brutalid ad e da d isjunção p latônica esclarece, então, aqu ilo que
a am bígu a relação entre a segu rança de nossa filosofia p olítica e a
d iscrição de nossa p olítica d eixa entrever. N ão há prova alguma de
que a filosofia p olítica seja uma divisão natu ral da filosofia, que acom -
p anha a p olítica de sua reflexão, mesmo que crítica. N ão há p rova,
antes de mais nad a, da figu ração de uma filosofia que vem d uplicar
com sua reflexão, ou fund ar com sua legislação, tod a grand e form a
do agir hu m ano, científica, artística, p olítica ou ou tra. A filosofia não
tem divisões que proviriam do seu próprio conceito ou dos cam p os so-
bre os quais ela ap lica sua reflexão ou sua legislação. Ela tem objetos

1 Platão, Górgias, 521 d.

10 Jacqu es Rancière
singu lares, nós de p ensam ento nascid os de certo encontro com a p olí-
tica, a arte, a ciência ou alguma ou tra ativid ad e do p ensam ento, sob
o signo de um p arad oxo, de um con flito, de uma ap oria esp ecíficos.
Aristóteles nos ind ica isso numa frase que é um dos prim eiros encon-
tros entre o su bstantivo "filosofia" e o ad jetivo "p olítica": "D o que
há igualdad e e do que há d esiguald ad e, a coisa leva à ap oria e à filo-
sofia p olítica"2 . A filosofia torna-se "p olítica" qu and o acolhe a ap oria
ou o em baraço p róp rio da p olítica. A p olítica — voltarem os a isso —
é a atividade que tem p or p rincíp io a iguald ad e, e o princípio da igual-
dade transform a-se em rep artição das parcelas51* de com u nid ad e ao
m od o do em baraço: de quais coisas há e não há iguald ad e entre qu ais
e qu ais? O que são essas "q u a is", quem são esses "q u a is"? De qu e
m od o a iguald ade consiste em iguald ade e d esiguald ad e? Tal é o em-
baraço p róp rio da p olítica, pelo qu al a p olítica se torna um em baraço
p ara a filosofia, um objeto da filosofia. N ão se deve entender com isso
a visão p ied osa, segundo a qual a filosofia vem socorrer o p raticante
da p olítica, da ciência ou da arte, exp licand o-lhe a razão de seu em-
baraço ao lhe divulgar o p rincíp io de sua p rática. A filosofia não so-
corre ninguém e ninguém lhe pede socorro, mesmo que as regras de
conveniência da d emand a social tenham institu íd o o hábito de p olíti-
cos, ju ristas, m éd icos ou qu alqu er ou tra corp oração, quand o esta se
reúne p ara p ensar, convid arem o filósofo com o esp ecialista da refle-
xão em geral. Para que o convite prod uza algum efeito de pensam en-
to, é preciso que o encontro ache seu p onto de d esentend im ento.
Por d esentend im ento entend erem os um tip o d eterm inad o de si-
tu ação de p alavra: aqu ela em que um dos interlocu tores ao m esm o
tem p o entende e não entend e o que diz o ou tro. O d esentend imento
não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz p reto. E
o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco mas
não entend e a mesma coisa, ou não entend e de m od o nenhum que o
ou tro diz a mesma coisa com o nom e de brancu ra. O caráter genéri-
co da fórm u la exige evid entemente algumas p recisões e obriga a fa-

2 Aristóteles, Política, IV, 1282 b 21.


* Parcela. N o original, part (o term o francês partie foi traduzid o com o par-
te). Designa a parte qüe cabe a alguém numa divisão ou d istribu ição, o qu inhão
que é dado a uma pessoa ou que legitimamente deveria ser seu. Jogam com esta
p alavra, igualmente, partido (francês partie), parceiro (francês partenaire), divi-
são (francês partage). (N . do revisor técnico)

C) Desentend imento 11
zer algumas d istinções. O d esentend im ento não é de m od o nenhum
o d esconhecim ento. O conceito de d esconhecim ento pressupõe que
um ou ou tro dos interlocu tores ou os dois — pelo efeito de uma sim-
ples ignorância, de uma d issim u lação concertad a ou de uma ilu são
constitu tiva — não sabem o que um diz ou o que diz o ou tro. N ão é
tam p ou co o m al-entend id o prod uzid o pela im p recisão das p alavras.
Uma velha sabed oria que é hoje p articu larm ente ap reciad a d ep lora
que as pessoas se entendam mal porque as palavras trocad as são equí-
vocas. E exige qu e, pelo menos qu and o estão em jogo a verd ad e, o
bem e a ju stiça, tod os tentem atribu ir a cad a p alavra um sentid o bem
d efinid o que a separe das ou tras, d esistind o-se das palavras que não
designam nenhum a propried ad e d efinid a ou d aqu elas que não con-
seguem fugir de uma confu são hom oním ica. Ocorre que essa sabed o-
ria assuma o nom e de filosofia e dite essa regra de econom ia lingüís-
tica p ara o exercício privilegiad o da filosofia. Acontece-lhe ao con-
trário que d enuncie a filosofia com o a p róp ria forneced ora das p ala-
vras vazias e dos hom ônim os irred utíveis e p rop onha que cad a ativi-
dade hu m ana enfim se entend a, d epurand o seu léxico e seus concei-
tos de tod as as usurpações da filosofia.
Tan to o argu m ento do d esconhecim ento qu anto o do m al-en-
tend id o requerem assim duas med icinas da linguagem , que consistem
em ensinar o que quer dizer falar. Vêem -se facilm ente seus lim ites. A
p rim eira deve p ressu p or constantem ente esse d esconhecim ento do
qu al ela é o avesso, o saber reservad o. A segunda ap lica em d em asia-
dos cam p os seu interd ito de racionalid ad e. Inú m eras situ ações de pa-
lavra em que atu a a razão podem ser pensad as d entro de uma estru -
tu ra específica de d esentend imento que não é nem de d esconhecim en-
to a pedir um saber su p lem entar, nem de m al-entend id o a solicitar
uma rarefação das p alavras. Os casos de d esentend im ento são aqu e-
les em que a d isputa sobre o que quer dizer falar constitu i a p róp ria
racionalid ad e da situ ação de p alavra. Os interlocu tores então enten-
dem e não entend em aí a mesma coisa nas mesmas p alavras. H á to-
das as espécies de razão p ara que um X entend a e não entend a ao
mesmo tem p o um Y: p orqu e, em bora entend a claram ente o que o
ou tro diz, ele não vê o objeto do qu al o ou tro lhe fala; ou então p or-
que ele entend e e deve entend er, vê e quer fazer ver um objeto d ife-
rente sob a mesma p alavra, uma razão d iferente no mesmo argu m en-
to. Assim, na República, a "filosofia p olítica" com eça sua existência
pelo longo p rotocolo do d esentend im ento acerca de um argu m ento

12 Jacqu es Rancière
sobre o qual tod os concord am : que a ju stiça consiste em dar a cad a
um o que lhe é d evid o. Seria côm od o sem dúvida qu e, para dizer o
que entend e p or ju stiça, o filósofo dispusesse de palavras totalm ente
d iferentes das do p oeta, do negociante, do orad or e do p olítico. Coi-
sa que a divindade ap arentem ente não p rovid enciou e que o ap recia-
d or das linguagens p róp rias só consegu iria suprir a preço de não ser
entend id o de m od o algum. Ali ond e a filosofia encontra a p oesia, a
p olítica e a sabed oria dos negociantes honestos, p recisa tom ar as p a-
lavras dos ou tros p ara dizer que diz uma coisa totalm ente d iferente.
É nisso que há d esentend im ento e não apenas m al-entend id o, d ecor-
rend o este de uma simples exp licação do que diz a frase do ou tro e
que o ou tro não sabe.
Eqü ivale a dizer tam bém que o d esentend im ento não diz respei-
to apenas às p alavras. Incid e geralm ente sobre a p róp ria situ ação dos
que falam . N isso, o d esentend im ento se distingue do que Jean -Fran -
çois Lyotard conceitu ou sob o nom e de d iferend o (différend)^. O de-
sentend im ento não diz respeito à qu estão da heterogeneid ad e dos re-
gimes de frases e da presença ou au sência de uma regra p ara ju lgar
gêneros de d iscursos heterogêneos. Diz respeito m enos à argu m enta-
ção que ao argu m entável, à p resença ou au sência de um objeto co-
mum entre um X e um Y. Diz resp eito à ap resentação sensível desse
com u m , à p róp ria qualid ad e dos interlocu tores em ap resentá-lo. A si-
tu ação extrem a de d esentend im ento é aqu ela em que X não vê o ob-
jeto com u m que Y lhe ap resenta p orqu e não entend e que os sons
em itid os p or Y com p õem p alavras e agenciam entos de palavras se-
m elhantes aos seus. Com o verem os, essa situ ação extrem a diz respei-
to, essencialm ente, à p olítica. Ali ond e a filosofia encontra ao mes-
m o tem p o a p olítica e a p oesia, o d esentend im ento se refere ao que é
ser um ser que se serve da p alavra p ara d iscu tir. As estru tu ras de de-
sentend im ento são aqu elas em que a d iscussão de um argu m ento re-
mete ao litígio acerca do objeto da d iscussão e sobre a cond ição d a-
queles que o constitu em com o objeto.
As páginas que se seguem tentarão p ortanto d efinir alguns re-
ferenciais p ara um entend im ento do d esentend imento segundo o qu al
a ap oria da p olítica é acolhid a a títu lo de objeto filosófico. N ela ten-
tarem os p rovar a seguinte hip ótese: o que se cham a de "filosofia p o-

3 Jean-François Lyotard , Le Différend, Minu it, 1983.

C) Desentend imento 11
lítica" pod eria m u ito bem ser o conju nto das op erações de pensamen-
to pelas qu ais a filosofia tenta acabar com a p olítica, suprimir um es-
când alo de p ensam ento ad equ ad o ao exercício da p olítica. Esse es-
când alo teórico, por sua vez, é apenas a racionalid ad e do d esenten-
d im ento. O que torna a p olítica um objeto escand aloso é que a polí-
tica é a ativid ad e que tem p or racionalid ad e p róp ria a racionalid ad e
do d esentend imento. O desentendimento da p olítica pela filosofia tem
então p or p rincíp io a red u ção mesma da racionalid ad e do d esenten-
d im ento. Essa op eração pela qual a filosofia exp u lsa de si mesma o
d esentend imento id entifica-se então natu ralm ente ao p rojeto de fazer
"realm en te" p olítica, de realizar a essência verd ad eira d aquilo de que
fala a p olítica. A filosofia não se torna "p olítica" porqu e a p olítica
seria algo im p ortante que p recisaria de sua intervenção. Ela se torna
tal porqu e regular a situ ação de racionalid ad e da p olítica é uma con-
d ição para d efinir o que é p róp rio à filosofia.
A ord em dessa obra está assim d eterm inad a. Partirá das linhas
supostam ente fu nd ad oras em que Aristóteles define o logos p róp rio
da p olítica. Tentarem os colocar em evid ência, na d eterm inação do
anim al lógico-p olítico, o p onto em que o logos se divide, d eixand o
ap arecer esse próprio da p olítica que a filosofia rejeita com Platão e
de que tenta com Aristóteles ap rop riar-se. É a p artir, p ois, d o texto
de Aristóteles e do que ele ind ica aquém de si mesmo que p rocu rare-
mos respond er à pergunta: O que há de esp ecífico p ara ser pensad o
sob o nome de p olítica? Pensar essa especificid ad e im p licará separá-
la d aquilo que com um ente se coloca sob esse nom e e para o qual pro-
p onho reservar o nome de "p olícia ". A p artir dessa d istinção, tenta-
remos d efinir prim eiram ente a lógica do d esentend im ento d istintiva
da racionalid ad e p olítica, em seguida o p rincíp io e as grandes form as
da "filosofia p olítica" com preend id a no sentid o de recu p eração es-
pecífica da d istinção. Tentarem os então pensar o efeito reflexo da "fi-
losofia p olítica" no cam p o da p rática p olítica. Serão deduzidos a par-
tir d aí alguns referenciais de p ensam ento p rop ostos p ara d istinguir o
que se pode entend er pelo nom e de d em ocracia e sua d iferença das
p ráticas e legitim ações do sistema consensu al, p ara ap reciar o que se
p ratica e se diz sob o nome de fim da p olítica ou de seu retorn o, o
que se exalta sob o nome de humanid ad e sem fronteiras e se d ep lora
sob o nome de reino do d esu m ano.
O au tor deve d eclarar aqu i uma dupla d ívid a: p rim eiram ente
p ara com aqueles qu e, convid and o-o generosam ente para falar sobre

12 Jacqu es Ran cière


as qu estões da p olítica, da d em ocracia e da ju stiça, acabaram p or
convencê-lo de que havia algo de específico a ser d ito; para com aque-
les tam bém com os quais o d iálogo p ú blico, privad o ou às vezes si-
lencioso estimulou seu esforço p ara tentar d efinir essa especificid ad e.
Cad a um deles reconhecerá a p arcela que lhe cabe desse anônim o
agrad ecim ento.

C) Desentend im ento 11
O CO M EÇO DA POLÍTICA

Com ecem os então pelo com eço, ou seja, pelas frases ilustres que
d efinem, no Livro I da Política de Aristóteles, o caráter eminentemente
p olítico do animal humano e assentam , ao mesmo tem p o, o fundamen-
to da p ólis.

Único entre tod os os anim ais, o homem possui a pa-


lavra. Sem d úvid a, a voz é o m eio pelo qual se ind ica a d or
e o p razer. Por isso pertence aos ou tros anim ais. A natu re-
za deles vai só até aí: possuem o sentimento da d or e do pra-
zer e pod em ind icá-lo entre si. Mas a palavra está aí p ara
m anifestar o útil e o nocivo e, p or conseqü ência, o ju sto e
o inju sto. É isso que é p róp rio dos hom ens, em com p ara-
ção com os ou tros anim ais: o hom em é o ú nico que possui
0 sentim ento do bem e do m al, do ju sto e do inju sto. Ora,
é a com u nid ad e dessas coisas que faz a fam ília e a p olis.1

Assim se resume a idéia de uma natu reza p olítica do hom em :


qu im era dos antigos, segundo H obbes, que pretend e su bstitu í-la p or
uma ciência exata dos recursos da natu reza hu m ana; ou , ao contrá-
rio, p rincíp io eterno de uma p olítica do bem com u m e da ed u cação
cívica, que Leo Strau ss op õe à m od erna d ep reciação, u tilitarista, das
exigências da com u nid ad e. Mas, antes de recu sar ou de exaltar essa
natu reza, convém ingressar um p ou co mais na singularid ad e de sua
d ed ução. A d estinação supremamente política do homem atesta-se por
um indício: a posse do logos, ou seja, da p alavra, que manifesta, en-
qu anto a voz apenas indica. O que a palavra m anifesta, o que ela tor-
na evidente p ara uma com u nid ad e de su jeitos que a ouvem, é o útil e
o nocivo e, conseqüentemente, o ju sto e o inju sto. A posse desse ór-
gão de m anifestação m arca a sep aração entre duas espécies de ani-

1 Aristóteles, Política, 1, 1253 a 9-18.

C) Desentend imento 11
mais com o d iferença de duas m aneiras de se p articip ar do sensível: a
do prazer e do sofrim ento, com um a tod os os animais d otad os de voz;
e a do bem e do m al, p róp ria somente aos hom ens e já presente na
p ercep ção do útil e do nocivo. Fu nd a-se, p or aí, não a exclusivid ad e
da p oliticid ad e, mas uma p oliticid ad e de tip o su p erior, que se perfaz
na fam ília e na p olis.
N essa clara d em onstração, vários p ontos continu am obscu ros.
Sem d úvid a, qu alqu er leitor de Platão com p reend e que a objetivid ad e
do bem se separa da relativid ad e do agrad ável. Mas a d ivisão de sua
aisthesis não é tão evidente assim : ond e está exatam ente a fronteira
entre a sensação desagradável de um golpe recebid o e o sentim ento da
"n ocivid ad e" sofrid a p or cau sa desse mesmo golpe? Dir-se-á que a di-
ferença está m arcad a p recisam ente pelo logos que separa a articu la-
ção d iscursiva de uma d or e a articu lação fônica de um gem id o. Ain-
da assim é p reciso que a d iferença entre d esagrad o e nocivid ad e seja
sentid a e sentid a com o com u nicável, com o d efinind o uma esfera de
com u nid ad e do bem e do m al. O ind ício que se tira da posse do órgão
— a linguagem articu lad a — é uma coisa. A m aneira com o esse ór-
gão exerce sua fu nção, com o a linguagem manifesta uma aisthesis com -
p artilhad a, é ou tra totalm ente. O raciocínio teleológico im p lica que o
telos do bem com u m seja im anente à sensação e à exp ressão com o
"n ocivid ad e" da d or infligid a p or um ou tro. Mas com o com p reend er
exatam ente a conseqü ência entre o "ú til" e o "n ociv o" assim m ani-
festad os e a ord em p rop riam ente p olítica da ju stiça? À prim eira vista,
o envergonhad o u tilitarista pod eria rep licar ao nobre p artid ário dos
"clássicos" que essa passagem do útil e do nocivo à ju stiça com u nitá-
ria não está tão d istante de sua p róp ria d ed u ção de uma u tilid ad e
comum feita da otim ização das utilidades respectivas e da red u ção das
nocivid ad es. A linha que separa a com u nid ad e do Bem d o con trato
u tilitarista p arece aqui bem d ifícil de se traçar.
Façam os entretanto uma concessão aos partidários dos "clássicos":
essa linha pode e deve ser traçad a. Só que seu traçad o passa p or alguns
desfiladeiros onde correm o risco de perder-se não só o pressuposto "u ti-
litarista" d enu nciad o p or Leo Strau ss com o tam bém aqu ele que ele
próprio com p artilha com os u tilitaristas: aquele que assimila o logos
que m anifesta o ju sto à d eliberação pela qual as particu larid ad es dos
indivíduos se encontram subsumid as sob a universalid ade do Estad o.
O problem a aqui não é enobrecer a acep ção do útil para ap roxim á-lo
da idealidade do ju sto, que é seu fim . É ver que a passagem d o primei-

12 Jacqu es Rancière
ro para o segundo só se faz p or interm éd io de seu s con trários e que é
no jogo desses con trários, na relação obscu ra do "n o civ o" e do inju s-
to, que reside o âm ago do p roblem a p olítico, do p roblem a que a polí-
11< .1 lorm u la ao p ensam ento filosófico da com u n id ad e. Entre o útil e o
| iistof a conseqü ência é com efeito contrariad a p or duas heterogenei-
ihulcs. Prim eiro, a que separa os term os falsam ente equ ilibrad os com
< »s lerm os de "ú t il" e de "n ociv o". Isso p orqu e o u so grego não estabe-
l» i c nenhuma op osição clara desse tip o entre os term os de Aristóteles,
s vmpheron e blaberon. Blaberon tem , na verd ad e, d u as acep ções: num
sentid o, é a parte de d esagrad o que cabe a um ind ivíd u o p or qu alqu er
> .i/flo que seja, catástrofe natu ral ou ação hu m ana. N u m ou tro, é a con -
sciiu cncia negativa que um ind ivíd uo recebe de seu ato ou , no mais d as
ve/es, da ação de ou trem . Blabé d esigna assim , corren tem en te, o d ano
no sentid o ju d iciário d o term o, o agravo objetivam en te d eterm inável
leito por um ind ivíd uo a ou tro. A n oção im plica p ortan to, u su alm en-
n , .1 idéia de uma relação entre duas p artes. Sympheron, em con trap ar-
i KI.I, designa essencialm ente uma relação a si m esm o, a vantagem qu e
nm indivíduo ou uma coletivid ad e obtém ou con ta obter de uma ação-
< > sympheron não im p lica pois uma relação com o ou tro. Os d ois ter-
mos s.io, assim , falsos op ostos. N o uso grego corren te, o que h abitu al-
mente se op õe ao blaberon com o d ano sofrid o é ôphelimòn, o socorro
• | ii< se recebe. N a Ética a N icômaco, o que o p róp rio Aristóteles op õe
H > blaberony com o m á ação, é aireton, a via boa de se tom ar. Mas d o
M tnpheron, da vantagem que um ind ivíd uo recebe, não se infere, d e
Ioi m.i algu m a, o d ano que ou tro sofre. Essa falsa con clu são é ap enas
i d» I rasím aco qu and o, no livro I da República, trad u z em term os d e
111« i os e perdas sua enigm ática e p olissêm ica fórm u la: a ju stiça é a van -
i.if.t in do su perior (to sympheron tou kreittonos). Digam o-lo de p as-
sagem: trad u zir, com o é costu m e, p or "interesse d o m ais forte" é en -
< < n ii se de cara na p osição em que Platão encerra Trasím aco, é p ôr
< in (u rto-circu ito tod a a d em onstração p latôn ica, a qu al joga com a
| K)lissemia da fórm u la p ara op erar uma dupla d isju n ção: não apenas o
Im r o" de um não é o "d a n o " de ou tro, com o, além d isso, a su p erio-
i uLulc exatam ente entend id a tem sempre um só ben eficiário: o "in fe-
i n m " sobre o qu al ela se exerce. N essa d em on stração, um term o d esa-
p.i i ecc, o do d ano. O que a refu tação de Trasím aco antecip a é uma p olis
sem d ano, uma polis ond e a su periorid ad e exercid a de. acord o com a
< H ilem natural produz a reciprocid ade dos serviços entre os guardas p r o-
h ioies c os artesãos p roved ores.

l) I >rsrntcnd imento 19
mais com o d iferença de duas m aneiras de se p articip ar do sensível: a
do prazer e do sofrim ento, com u m a tod os os animais d otad os de voz;
e a do bem e d o m al, p róp ria som ente aos hom ens e já presente na
p ercep ção do útil e do nocivo. Fu nd a-se, p or aí, não a exclusivid ad e
da p oliticid ad e, mas uma p oliticid ad e de tip o su p erior, que se perfaz
na fam ília e na p olis.
N essa clara d em onstração, vários p ontos continu am obscu ros.
Sem d úvid a, qu alqu er leitor de Platão com preend e que a objetivid ad e
do bem se separa da relativid ad e do agrad ável. Mas a d ivisão de sua
aisthesis não é tão evidente assim : onde está exatam ente a fronteira
entre a sensação desagradável de um golpe recebid o e o sentim ento da
"n ocivid ad e" sofrid a p or cau sa desse mesmo golpe? Dir-se-á que a di-
ferença está m arcad a precisam ente pelo logos que separa a articu la-
ção discursiva de uma d or e a articu lação fônica de um gem id o. Ain-
da assim é p reciso que a d iferença entre d esagrad o e nocivid ad e seja
sentid a e sentid a com o com u nicável, com o d efinind o uma esfera de
com u nid ad e do bem e do m al. O ind ício que se tira da posse d o órgão
— a linguagem articu lad a — é uma coisa. A m aneira com o esse ór-
gão exerce sua fu nção, com o a linguagem manifesta uma aisthesis com -
p artilhad a, é ou tra totalm ente. O raciocínio teleológico im plica que o
telos do bem com u m seja im anente à sensação e à exp ressão com o
"n ocivid ad e" da d or infligid a p or um ou tro. Mas com o com preend er
exatam ente a conseqü ência entre o "ú til" e o "n ociv o" assim m ani-
festad os e a ord em p rop riam ente p olítica da ju stiça? À prim eira vista,
o envergonhad o u tilitarista pod eria rep licar ao nobre p artid ário dos
"clássicos" que essa passagem d o útil e do nocivo à ju stiça com u nitá-
ria não está tão d istante de sua p róp ria d ed u ção de uma u tilid ad e
comum feita da otim ização das utilidades respectivas e da red u ção das
nocivid ad es. A linha que separa a com u nid ad e do Bem do con trato
u tilitarista p arece aqui bem d ifícil de se traçar.
Façam os entretanto uma concessão aos partidários dos "clássicos":
essa linha pode e deve ser traçad a. Só que seu traçad o passa p or alguns
desfiladeiros onde correm o risco de perder-se não só o pressuposto "u ti-
litarista" d enu nciad o p or Leo Strau ss com o tam bém aquele que ele
p róp rio com p artilha com os u tilitaristas: aquele que assimila o logos
que m anifesta o ju sto à d eliberação pela qual as particu larid ad es dos
indivíduos se encontram subsumidas sob a universalid ade do Estad o.
O p roblem a aqui não é enobrecer a acep ção d o útil para ap roxim á-lo
da idealidad e do ju sto, que é seu fim . É ver que a passagem do primei-

12 Jacqu es Ran cière


ro p ara o segundo só se faz p or interm éd io de seus contrários e que é
no jogo desses contrários, na relação obscu ra do "n ociv o" e do inju s-
to, que reside o âm ago do p roblem a p olítico, do p roblem a que a p olí-
tica form u la ao p ensam ento filosófico da com u nid ad e. Entre o útil e o
ju sto, a conseqü ência é com efeito contrariad a p or duas heterogenei-
d ad es. Prim eiro, a que separa os term os falsam ente equ ilibrad os com
os term os de "ú til" e de "n ociv o". Isso porqu e o uso grego não estabe-
lece nenhuma op osição clara desse tip o entre os term os de Aristóteles,
sympheron e blaberon. Blaberon tem , na verd ad e, duas acep ções: num
sentid o, é a parte de d esagrad o que cabe a um indivíduo p or qu alqu er
razão que seja, catástrofe natural ou ação hum ana. N um ou tro, é a con-
seqüência negativa que um indivíduo recebe de seu ato ou , no mais das
vezes, da ação de ou trem . Blabé designa assim , correntem ente, o d ano
no sentid o ju d iciário do term o, o agravo objetivam ente d eterminável
feito p or um indivíduo a ou tro. A noção implica p ortan to, usualmen-
te, a idéia de uma relação entre duas p artes. Sympheron, em contrap ar-
tid a, designa essencialm ente uma relação a si m esm o, a vantagem que
um indivíduo ou uma coletivid ad e obtém ou conta obter de uma ação.
O sympheron não implica pois uma relação com o ou tro. Os dois ter-
mos são, assim, falsos op ostos. N o uso grego corrente, o que habitu al-
mente se opõe ao blaberon com o d ano sofrid o é ôphelimòn, o socorro
que se recebe. N a Ética a N icômaco, o que o p róp rio Aristóteles op õe
ao blaberon, com o má ação, é aireton, a via boa de se tom ar. Mas d o
sympheron, da vantagem que um ind ivíd uo recebe, não se infere, de
form a algu m a, o d ano que ou tro sofre. Essa falsa conclu são é apenas
a de Trasím aco qu and o, no livro I da República, trad u z em term os de
lu cros e perdas sua enigm ática e polissêm ica fórm u la: a ju stiça é a van-
tagem do superior (to sympheron tou kreittonos). Digam o-lo de pas-
sagem: trad u zir, com o é costu m e, p or "interesse do mais forte" é en-
cerrar-se de cara na p osição em que Platão encerra Trasím aco, é p ôr
em cu rto-circu ito tod a a d em onstração p latônica, a qual joga com a
polissem ia da fórm u la para op erar uma dupla d isju nção: não apenas o
"lu cr o" de um não é o "d a n o" de ou tro, com o, além d isso, a superio-
ridade exatam ente entend id a tem sempre um só beneficiário: o "in fe-
rior" sobre o qual ela se exerce. N essa d em onstração, um term o d esa-
p arece, o do d ano. O que a refu tação de Trasím aco antecipa é uma pólis
sem d ano, uma pólis ond e a superiorid ade exercid a de. acord o com a
ordem natural produz a reciprocidad e dos serviços entre os guardas pro-
tetores e os artesãos proved ores.

C) Desentend im ento 11
Pois aí está o segundo p roblem a e a segunda heterogeneid ad e:
para Platão com o para Aristóteles, que é a esse respeito fiel a seu mestre,
o ju sto da polis é fu nd am entalm ente um estad o em que o sympheron
não tem por correlato nenhum blaberon. A boa d istribu ição das "van -
tagens" pressupõe a supressão prévia de um certo d an o*, de um certo
regime do d ano. "Q u e d ano me fizeste, que d ano te fiz?", são essas,
segundo o Teeteto, palavras de ad vogad o, p erito em transações e tri-
bunais, quer dizer, definitivamente ignorante da justiça que fundamenta
a polis. Esta só com eça ali ond e se pára de rep artir utilid ad es, de equi-
librar lucros e perdas. A ju stiça enqu anto princípio de comunidade não
existe aind a ali onde tod os se ocu p am unicam ente em impedir que os
indivíduos que vivem ju ntos se causem d anos recíp rocos e em reequi-
librar, ali ond e o cau sam , a balança dos lu cros e das perd as. Ela co-
meça som ente ali onde se trata d aquilo que os cid ad ãos possuem em
comum e ond e se cuid a da m aneira com o são repartid as as form as de
exercício e controle do exercício desse pod er com u m . De um lad o, a
ju stiça enqu anto virtude não é o simples equ ilíbrio dos interesses en-
tre os indivíduos ou a rep aração dos d anos que uns cau sam aos ou -
tros. É a escolha da p róp ria medida segundo a qual cad a parte só pega
a parcela que lhe cabe. De ou tro lad o, a ju stiça p olítica não é apenas
a ordem que m antém ju ntas as relações med id as entre os indivíduos e
os bens. Ela é a ord em que d eterm ina a d ivisão do com u m . Ora, nes-
sa ord em , a d ed ução do útil p ara o ju sto não se faz da mesma m anei-
ra que na ord em dos ind ivíd uos. Para os ind ivíd u os, aind a se pod e
resolver, simplesmente, o p roblem a da passagem entre a ord em do útil
e a do ju sto. O livro V da Ética a N icômaco d á, na verd ad e, uma so-
lução para o nosso p roblem a: a ju stiça consiste em não pegar mais do
que sua p arcela nas coisas vantajosas e menos do que sua p arcela nas
coisas d esvantajosas. Contanto que se reduza o blaberon ao "n ociv o"
e se id entifiqu e com o sympheron essas coisas "v an tajosas", é possível
d ar um sentid o preciso à passagem da ord em do útil à do ju sto: o van-
tajoso e o d esvantajoso são então a m atéria sobre a qual se exerce a

* Dano. N o original, tort. Ind ica o d ano cau sad o a alguém, com sentid o
não apenas físico m as, sobretu d o, ju ríd ico. A voir tort é estar errad o, não ter ra-
zão; faire tort a alguém é fazer-lhe m al. N uma citação de H obbes, no último capí-
tulo deste livro, é a forma com o o trad utor francês do século XVII, Samuel Sorbière,
verteu o inglês "w/rowg"; conota-se, com o se vê, das idéias de errad o, torto etc. (N .
do revisor técnico)

12 Jacqu es Rancière
virtud e da ju stiça que consiste em pegar a p arcela conveniente, a p ar-
cela méd ia de umas e de ou tras.
O p roblem a, evid entem ente, é que com isso aind a não está d efi-
nid a nenhuma ord em p olítica. A p olítica com eça ju stam ente ond e se
p ára de equ ilibrar lu cros e p erd as, ond e se tenta rep artir as p arcelas
do comum, harm onizar segundo a p rop orção geom étrica as p arcelas
de com u nid ad e e os títu los p ara se obter essas p arcelas, as axiai que
d ão d ireito à com u nid ad e. Para que a com u nid ad e p olítica seja m ais
d o que um con trato entre quem troca bens ou serviços, é preciso que
a iguald ad e que nela reina seja rad icalm ente d iferente d aqu ela segun-
do a qu al as m ercad orias se trocam e os d anos se rep aram . Mas o p ar-
tid ário dos "clássicos" estaria se alegrand o ced o d emais em reconhe-
cer aí a superiorid ad e do bem com u m , cu jo telos sobre o regateio d os
interesses individuais a natu reza hu m ana traz consigo. Isso p orqu e o
fund o do p roblem a então se ap resenta: p ara os fu nd ad ores da "filo-
sofia p olítica", essa su bm issão da lógica trocad ora ao bem com u m
exp rim e-se de m aneira bem d eterm inad a: ela é su bm issão da iguald a-
de aritm ética que preside as trocas m ercantis e as penas ju d iciárias, à
iguald ad e geom étrica qu e, p ara a harm onia com u m , coloca em p ro-
p orção as p arcelas da coisa com u m possuíd as p or cad a parte da co-
munidade à p arcela que ela traz ao bem com u m . Mas essa passagem
da aritm ética vulgar à geom etria id eal im p lica, ela m esm a, um estra-
nho com p rom isso com a em p iria, uma singular con tagem * das "p ar-
tes" da com u nid ad e. Para que a p olis seja ord enad a conform e o bem ,
é p reciso que as p arcelas da com u nid ad e estejam em estrita p rop or-
ção com a axia de cad a parte da com u nid ad e: ao valor que ela traz
para a comunid ade e ao direito que esse valor lhe dá de deter uma parte
do pod er com u m . Por trás da op osição p roblem ática do sympheron
ao blaberon está a qu estão p olítica essencial. Para que exista a filoso-
fia p olítica, é p reciso que a ord em das id ealid ad es p olíticas se ligue a
uma com p osição das "p ar tes" da p ólis, a uma contagem cu jas com -
p lexid ad es escond em talvez um erro fu nd am ental, um erro que pod e-
ria ser o blaberon, o d ano constitu tivo da p róp ria p olítica. O que os
"clássicos" nos ensinam é antes de mais nad a o seguinte: a p olítica não
se ocu p a dos víncu los entre os ind ivíd uos, nem das relações entre os
indivíduos e a com u nid ad e, ela é da alçad a de uma contagem das "p ar-

* Em francês, compte, que tam bém tem o sentido de "cálcu lo", "co n t a ",
"côm p u to". (N . do revisor técnico)

C) Desentend im ento 11
tes" da com u nid ad e, contagem que é sempre uma falsa contagem , uma
dupla contagem ou um erro na contagem .
Pois vejamos essas axiai, esses títulos de comunidade, de mais per-
to. Aristóteles enumera três: a riqueza dos p ou cos (os oligoi); a virtu-
de ou a excelência (areté) que dá seu nome aos melhores (aos aristoi);
e a liberd ad e (a eleutéria) que pertence ao p ovo (demos). Concebid o
u nilateralm ente, cad a um desses títu los fornece um regime p articu lar,
am eaçad o pela sed ição dos ou tros: a oligarqu ia dos ricos, a aristocra-
cia das pessoas de bem ou a d em ocracia do p ovo. Em contrap artid a,
a com binação exata de seus títu los de comunid ad e p rop orciona o bem
com u m . Um d esequilíbrio secreto p ertu rba, no entanto, essa bela cons-
tru ção. Sem dúvida, pod e-se medir a contribu ição respectiva das com -
petências oligárqu icas e aristocráticas e do controle popu lar à busca
do bem com u m . E o livro III da Política esforça-se p or concretizar esse
cálcu lo, p or d efinir as qu antid ad es de cap acid ad e p olítica que são
detidas pela m inoria dos hom ens de "m ér ito" e pela m aioria dos ho-
mens com u ns. A m etáfora da mistura permite figurar uma comunidade
nu trid a pela som a p rop orcional das qualid ad es respectivas "d a mes-
ma m an eira", diz Aristóteles, "qu e uma com id a impura m istu rad a a
uma com id a pura torna o tod o mais p roveitoso que a pequena quan-
tid ad e in icia l"2 . O puro e o im puro podem m istu rar seus efeitos. Mas
de que m aneira podem med ir-se um ao ou tro em seu p rincíp io? O que
é na verdade o títu lo d etid o por cad a uma das partes? N a bela har-
m onia das axiai, um único títu lo se d eixa facilm ente reconhecer: a ri-
queza dos oligoi. Mas é tam bém aquele que depende apenas da arit-
m ética das trocas. O que é, em contrap artid a, a liberd ad e trazid a pe-
las pessoas do povo à com u nid ad e? E em que lhes é p róp ria? E aqui
que se revela o erro fu nd am ental na contagem . Prim eiro, a liberd ad e
do demos não é nenhuma propried ad e d eterminável mas facticid ad e
p u ra: p or trás da "au tocton ia", m ito de origem reivind icad o pelo de-
mos ateniense, im põe-se esse fato bru to que faz da d em ocracia um
objeto escand aloso para o p ensam ento: pelo simples fato de ter nasci-
do em tal p ólis, e especialm ente na pólis ateniense, depois que a es-
cravid ão p or dívidas foi abolid a, qu alqu er um desses corp os falantes
fad ad os ao anonim ato do trabalh o e da rep rod u ção, desses corp os fa-
lantes que não têm mais valor do que os escravos — e menos até, já

2 Aristóteles, Política, III, 1281 b 36.

12 Jacqu es Rancière
qu e, diz Aristóteles, o escravo recebe sua virtud e da virtud e de seu
senhor —, qu alqu er artesão ou com erciante é contad o nessa parte da
pólis que se cham a p ovo com o p articip ante dos negócios com u ns en-
qu anto tais. A simples im p ossibilid ad e, para os oligoi, de reduzir à es-
cravid ão seus devedores transform ou -se na aparência de uma liberdade
que seria propried ad e positiva do p ovo, com o p arte da com u nid ad e.
Alguns atribu íram essa p rom oção do povo e de sua liberd ad e à
sabed oria do bom legislad or, do qu al Sólon fornece o arqu étip o. Ou -
tros im p u taram -na à "d em agogia" de alguns nobres, que tom aram
ap oio na p op u laça p ara afastar seus concorrentes. Cad a uma dessas
exp licações já pressupõe uma determinada idéia da p olítica. Mais, por-
tan to, do que op tar p or uma ou p or ou tra, é m elhor d eter-se sobre o
que as m otiva: o nó originário do fato e do d ireito e a relação singu-
lar que ele estabelece entre duas p alavras-chave da p olítica, a igual-
dade e a liberd ad e. A sabed oria "liber al" nos descreve com com p la-
cência os efeitos perversos de uma iguald ad e artificial que vem con-
trariar a liberdade natu ral de empreender e de trocar. Qu anto aos clás-
sicos, encontram , nas origens da p olítica, um fenôm eno de uma p ro-
fundidade totalm ente d iferente: é a liberd ad e, enqu anto propried ad e
vazia, que vem colocar um limite aos cálcu los da iguald ad e m ercante,
aos efeitos da simples lei do deve e do haver. A liberdade vem, em suma,
sep arar a oligarqu ia dela m esm a, im ped i-la de governar pelo simples
jogo aritm ético dos lu cros e das d ívid as. A lei da oligarqu ia é, de fato,
que a igualdade "aritm ética" mande sem entraves, que a riqueza seja
im ed iatam ente id êntica à d om inação. Direm os que os p obres de Ate-
nas eram submetidos ao poder dos nobres, não ao dos mercad ores. Mas
p recisam ente a liberd ad e do povo de Atenas recond uz a d om inação
natural dos nobres, fundada no caráter ilustre e antigo de sua linhagem,
à sua simples d om inação com o ricos p rop rietários e açam barcad ores
da propried ad e com u m . Ela recond u z os nobres à sua cond ição de ri-
cos e transform a seu d ireito absolu to, recond u zid o ao pod er dos ri-
cos, numa axia p articu lar.
Mas o erro da contagem não p ára p or aí. N ão só esse "p r óp r io"
do demos que é a liberd ad e não se d eixa d eterminar por nenhuma pro-
pried ad e p ositiva. Mas ele aind a não lhe é absolu tam ente p róp rio. O
p ovo nad a mais é que a massa ind iferenciad a d aqueles que não têm
nenhum títu lo p ositivo — nem riqu eza, nem virtude — mas qu e, no
en tan to, têm reconhecid a a mesma liberd ad e que aqueles que os pos-
suem. A gente do povo é de fato simplesmente livre como os ou tros.

11
C) Desentend im ento
Ora, é dessa simples id entid ad e com aqueles qu e, p or ou tro lad o, lhes
são em tu d o superiores que eles tiram um títu lo esp ecífico. O demos
atribu i-se, com o sua p arcela p róp ria, a iguald ad e que pertence a to-
dos os cid ad ãos. E, com isso, essa parte que não é parte id entifica sua
propried ad e im p róp ria com o p rincíp io exclu sivo da com u nid ad e, e
id entifica seu nom e — o nom e da massa ind istinta dos hom ens sem
qualid ad e — com o nome da p róp ria com u nid ad e. Isso p orqu e a li-
berdade — que é simplesmente a qualid ad e d aqueles que não têm ne-
nhuma ou tra (nem m érito, nem riqueza) — é ao mesmo tem p o con ta-
da com o a virtud e com u m . Ela permite ao demos — ou seja, o aju n-
tam ento factu al dos homens sem qu alid ad e, desses homens qu e, com o
nos diz Aristóteles, "n ão tom avam p arte em n a d a "3 — id entificar-se
p or hom oním ia com o tod o da com u nid ad e. Tal é o d ano fund am en-
tal, o nó original do blaberon e do adikon, cu ja "m an ifestação" vem
interrom p er tod a d ed ução do útil p ara o ju sto: o povo ap rop ria-se da
qualid ad e com u m com o sua qualid ad e p róp ria. O que ele traz à co-
munidade é, p rop riam ente, o litígio. Devem os entend er isso num du-
plo sentid o: o títu lo que ele traz é uma propried ad e litigiosa, já que
não lhe p ertence p rop riam ente. Mas essa propried ad e litigiosa não é,
apenas, a institu ição de um com u m -litigioso. A massa dos homens sem
propried ad es id entifica-se à com u nid ad e em nom e do d ano que não
cessam de lhe cau sar aqueles cu ja qualid ad e ou propried ad e têm p or
efeito natural relançá-la na inexistência daqueles que não tom am "p arte
em n ad a". É em nome do d ano que lhe é cau sad o pelas ou tras partes
que o povo se id entifica com o tod o da com u nid ad e. Qu em não tem
parcela — os pobres da Antigüidade, o terceiro estado ou o proletariad o
mod erno — não pode mesmo ter ou tra parcela a não ser nad a ou tu d o.
Mas é tam bém med iante a existência dessa p arcela dos sem -p arcela,
desse nad a que é tu d o, que a com u nid ad e existe enqu anto com u nid a-
de p olítica, ou seja, enqu anto dividida por um litígio fu nd am ental, por
um litígio que afeta a contagem de suas p artes antes mesmo de afetar
seus "d ir eitos". O povo não é uma classe entre ou tras. É a classe do
d ano que cau sa d ano à com u nid ad e e a institui com o "com u n id ad e"
do ju sto e do inju sto.
É assim qu e, para grand e escând alo das pessoas de bem , o demos,
esse am ontoad o das pessoas de nad a, torna-se o p ovo, a com u nid ad e

3 Aristóteles, Constituição de A tenas, II.

12 Jacqu es Rancière
p olítica dos atenienses livres, a que fala, conta a si mesma e decide na
Assem bléia, depois do quê os logógrafos escrevem: "Eôo^e xcoÁT| jico":
aprouve ao p ovo, o povo decidiu. Para o inventor de nossa filosofia po-
lítica,* Platão, essa fórm u la d eixa-se facilm ente trad u zir na equivalên-
cia de dois term os: demos e doxa: aprouve àqueles que só conhecem
essas ilusões do mais e do menos cham ad as prazer e d or; houve sim-
ples doxa, "ap arên cia" para o p ovo, ap arência de p ovo. Povo é apenas
a ap arência produzid a pelas sensações de prazer e d or m anejad as pe-
los retóricos e sofistas p ara ad ular ou assustar o grande anim al, a massa
ind istinta das pessoas de nada reunid as na assem bléia.
Digam os de uma vez: o ód io resolu to do antid em ocrata Platão
enxerga com mais ju steza os fu nd am entos da p olítica e da d em ocra-
cia d o que os m ornos am ores desses ap ologistas cansad os que nos ga-
rantem que convém am ar "racion alm en te", quer d izer, "m od erad a-
m en te", a d em ocracia. Pois ele enxerga o que estes esqu eceram : o erro
de cálcu lo da d em ocracia, que em ú ltim a instância é ap enas o erro de
cálcu lo fu nd ad or da p olítica. H á.jgolítica — e não simplesmente d o-
m inação — p orqu e há uma conta m alfeita nas ^áFtTs^o tod o. É es$a
impossível equ ação que a fórm u la atribu íd a por H eród oto ao persa
Otanes resume: "ev yap xco noXXco £vi xa 7tavxa": o tod o está no múl-
tip lo 4 . O demos é o m ú ltip lo id êntico ao tod o: o m ú ltip lo com o um, a
p arte com o tod o. A d iferença qu alitativa inexistente da liberd ad e p ro-
duz essa equ ação im possível, que não se d eixa com p reend er na divi-
são da iguald ade aritm ética que governa a com p ensação dos lu cros e
das perd as e da iguald ad e geom étrica que deve associar uma qu alid a-
de a uma p osição. O povo é y assim , sempre mais ou m enos do que ele
p róp rio. As pessoas de bem d ivertem-se ou afligem -se com tod as as
m anifestações d aqu ilo que para elas é fraud e e u su rp ação: o demos é
a m aioria no lugar da assem bléia, a assem bléia no lugar da com u ni-
d ad e, os p obres em nom e da p ólis, ap lau sos à guisa de acord o, ped ras
contad as no lugar de uma d ecisão tom ad a. Mas tod as essas m anifes^-
tações de desigualdade do povo para com ele mesmo são apenas a moe-
da de troco de um erro de cálcu lo fu nd am ental: essa impossível igual-
dade do m últiplo e do tod o, prod uzid a pela ap rop riação da liberd ad e
com o o que é p róp rio do p ovo. Essa impossível igualdad e arru ina, em
cad eia, tod a a d ed u ção das p artes e títu los que constitu em a p olis.

4 H eród oto, Histórias, III, 80, 30.

O Desentend im ento 25
Ora, é dessa simples id entid ad e com aqueles qu e, p or ou tro lad o, lhes
são em tu d o superiores que eles tiram um títu lo esp ecífico. O demos
atribu i-se, com o sua p arcela p róp ria, a iguald ad e que p ertence a to-
dos os cid ad ãos. E, com isso, essa parte que não é parte id entifica sua
propried ad e im p róp ria com o p rincíp io exclu sivo da com u nid ad e, e
id entifica seu nom e — o nom e da m assa ind istinta dos hom ens sem
qualid ad e — com o nom e da p róp ria com u nid ad e. Isso p orqu e a li-
berdade — que é simplesmente a qualid ad e d aqueles que não têm ne-
nhuma ou tra (nem m érito, nem riqu eza) — é ao mesmo tem p o con ta-
da com o a virtud e com u m . Ela permite ao demos — ou seja, o aju n-
tam ento factu al dos homens sem qu alid ad e, desses homens qu e, com o
nos diz Aristóteles, "n ão tom avam p arte em n a d a "3 — id entificar-se
p or hom oním ia com o tod o da com u nid ad e. Tal é o d ano fund am en-
tal, o nó original do blaberon e do adikon, cu ja "m an ifestação" vem
interrom p er tod a d ed ução do útil para o ju sto: o povo ap rop ria-se da
qualid ad e com u m com o sua qualid ad e p róp ria. O que ele traz à co-
munidade é, p rop riam ente, o litígio. Devem os entend er isso num du-
plo sentid o: o títu lo que ele traz é uma propried ad e litigiosa, já que
não lhe p ertence p rop riam ente. Mas essa propried ad e litigiosa não é,
apenas, a institu ição de um com u m -litigioso. A massa dos homens sem
propried ad es id entifica-se à com u nid ad e em nom e do d ano que não
cessam de lhe cau sar aqueles cu ja qu alid ad e ou propried ad e têm p or
efeito natural relançá-la na inexistência daqueles que não tom am "p arte
em n ad a". É em nome do d ano que lhe é cau sad o pelas ou tras p artes
que o povo se id entifica com o tod o da com u nid ad e. Quem não tem
parcela — os pobres da Antigüidade, o terceiro estado ou o proletariad o
mod erno — não pode mesmo ter ou tra parcela a não ser nad a ou tu d o.
Mas é tam bém med iante a existência dessa p arcela dos sem -p arcela,
desse nad a que é tu d o, que a com u nid ad e existe enqu anto com u nid a-
de p olítica, ou seja, enqu anto dividida por um litígio fu nd am ental, por
um litígio que afeta a contagem de suas p artes antes mesmo de afetar
seus "d ir eitos". O povo não é uma classe entre ou tras. É a classe do
d ano que cau sa d ano à com u nid ad e e a institu i com o "com u n id ad e"
do ju sto e do inju sto.
E assim qu e, para grand e escând alo das pessoas de bem , o demos,
esse am ontoad o das pessoas de nad a, torna-se o p ovo, a com u nid ad e

3 Aristóteles, Constituição de A tenas, II.

12 Jacqu es Rancière
p olítica dos atenienses livres, a que fala, conta a si mesma e decide na
Assembléia, depois do quê os logógrafos escrevem: "Eôoí;£XCDÀr| | iCD":
aprouve ao povo, o povo decidiu. Para o inventor de nossa filosofia po-
lítica; Platão, essa fórmula d eixa-se facilmente trad uzir na equivalên-
cia de dois term os: demos e doxa: aprouve àqueles que só conhecem
essas ilusões do mais e do menos chamad as prazer e d or; houve sim-
ples doxa, "ap arên cia" para o povo, aparência de povo. Povo é apenas
a aparência produzida pelas sensações de prazer e d or manejadas pe-
los retóricos e sofistas para adular ou assustar o grande animal, a massa
ind istinta das pessoas de nada reunidas na assembléia.
Digamos de uma vez: o ód io resolu to do antid em ocrata Platão
enxerga com mais justeza os fund amentos da p olítica e da d emocra-
cia do que os m ornos amores desses apologistas cansad os que nos ga-
rantem que convém amar "racion alm en te", quer d izer, "m od erad a-
m en te", a d em ocracia. Pois ele enxerga o que estes esqueceram: o erro
de cálcu lo da d em ocracia, que em última instância é apenas o erro de
cálcu lo fundador da p olítica. Há >jpolítica — e não simplesmente do-
m inação — porque há uma conta m alfeita nas pártTs~cfo>torto. É esSa
impossível equ ação que a fórmula atribuíd a por H erócfoío ao persa
Otanes resume: "ev yap xco noXkco evi xa 7iavxa": o tod o está no múl-
tip lo 4. O demos é o múltiplo id êntico ao tod o: o múltiplo com o um, a
parte com o tod o. A diferença qualitativa inexistente da liberdade pro-
duz essa equ ação impossível, que não se d eixa compreend er na divi-
são da igualdade aritm ética que governa a com p ensação dos lucros e
das perdas e da igualdade geométrica que deve associar uma qualid a-
de a uma p osição. O povo é y assim, sempre mais ou menos do que ele
p róp rio. As pessoas de bem divertem-se ou afligem -se com tod às as
m anifestações d aquilo que para elas é fraude e u su rpação: o demos é
a m aioria no lugar da assembléia, a assembléia no lugar da com uni-
d ad e, os pobres em nome da pólis, aplausos à guisa de acord o, pedras
contad as no lugar de uma d ecisão tom ad a. Mas tod as essas m anifesz-
tações de desigualdade do povo para com ele mesmo são apenas a moe-
da de troco de um erro de cálcu lo fund amental: essa impossível igual-
dade do múltiplo e do tod o, produzida pela ap rop riação da liberdade
com o o que é próprio do povo. Essa impossível igualdade arru ina, em
cad eia, tod a a d ed ução das partes e títu los que constitu em a p olis.

4 H eród oto, Histórias, III, 80, 30.

O Desentend im ento 25
Dep ois d essa singu lar p rop ried ad e do demos, é a p rop ried ad e d os
aristoi, a virtu d e, que ap arece com o o lugar de um estranho equ ívoco.
Quem são exatam ente essas pessoas de bem ou de excelência que tra-
zem a virtud e p ara o bolo com u m , assim com o o povo traz uma liber-
dade que não é a sua? Se não são o sonho do filósofo, a con ta de seu
sonho de p rop orção transform ad a em p arte do tod o, p od eriam mui-
to bem não passar de ou tro nome para os oligoi, ou seja, simplesmente,
os ricos. O mesmo Aristóteles que se esforça, na Ética a N icômaco ou
no livro III da Política, p or d ar consistência às três partes e aos três
títu los, no-lo confessa sem m istério no livro IV, ou então na Consti-
tuição de A tenas: a polis tem , na verd ad e, apenas duas p artes: os ri-
cos e os p obres. "Qu ase em tod a a p arte, são os abastad os que pare-
cem ocu p ar o lugar das pessoas de b em "5 . É p ortanto aos arranjos que
d istribuem apenas entre essas duas p artes, essas partes irred utíveis da
p olis, os pod eres ou ap arências de p od er, que se deve solicitar a reali-
zação dessa areté com u nitária na qual os aristoi vão, sem pre, faltar.
Será que disso se deve simplesmente entend er que os erud itos cál-
culos da p rop orção geom étrica não passam de constru ções id eais, pelas
quais a boa vontade filosófica busca originariamente corrigir a realidade
prim ária e incontornável da luta de classes? A resposta a essa pergunta
só pode ser dada em dois tempos. Antes de mais nada é preciso enfatizar:
foram os antigos, muito mais que os m od ernos, que reconheceram no
princípio da p olítica a luta dos pobres e dos ricos. Mas reconheceram
exatam ente — com o risco de querer apagá-la — sua realidade propria-
mente p olítica. A luta dos ricos e dos pobres não é a realid ad e social
com que a p olítica deveria contar. Ela se confu nd e com sua institu ição.
H á p olítica qu and o existe uma parcela dos sem -p arcela, uma parte ou
um p artid o dos p obres. N ão há p olítica simplesmente porque os po-
bres se op õem aos ricos. Melh or d izend o, é a p olítica — ou seja, a in-
terrupção dos simples efeitos da dominação dos ricos — que faz os pobres
existirem enqu anto entid ad e. A pretensão exorbitante do demos a ser
o tod o da comunid ad e não faz mais que realizar à sua m aneira — a de
um partido — a cond ição da p olítica. A p olítica existe qu and o a ord em
natu ral da d om inação é interrom pid a pela institu ição de uma parcela
dos sem -p arcela. Essa institu ição é o tod o da p olítica enqu anto form a
específica de víncu lo. Ela define o com um da comunid ad e com o com u -

5 Aristóteles, Política, IV, 1294 a 17-19.

12 Jacqu es Rancière
nidade p olítica, quer dizer, dividida, basead a num d ano que escapa à
aritm ética das trocas e das rep arações. Fora dessa institu ição, não há
p olítica. H á apenas ord em da d om inação ou desordem da revolta.
É essa pura alternativa que um relato de H eród oto em form a de
apólogo nos apresenta. Esse relato-apólogo exemplar é dedicado à revol-
ta dos escravos dos citas. Os citas, diz ele, têm o hábito de vazar os olhos
daqueles a quem escravizam, para melhor submetê-los à sua tarefa servil,
que é ord enhar o gad o. Essa ordem norm al das coisas viu-se p ertu rba-
da por suas grandes exp ed ições. Para conqu istar o país dos med os, os
guerreiros citas em brenharam -se na Ásia e lá ficaram retid os o p razo
de uma geração. Enqu anto isso, nascera uma geração de filhos de es-
cravos, que cresceu com os olhos abertos. De seu olhar p ara o m u nd o,
haviam conclu íd o que não tinham razões particu lares p ara ser escra-
vos, já que haviam nascid o da mesma maneira que seus senhores dis-
tantes e com os mesmos atribu tos. Confirm ad os, pelas mulheres que
ficaram em casa, nessa identidade de natu reza, eles d ecid iram qu e, até
prova em con trário, eram iguais aos gu erreiros. Em conseqü ência, cer-
caram o território com um grande fosso e arm aram -se p ara esperar de
pé firme a volta dos conquistadores. Quand o estes retornaram , pensaram
que facilmente esm agariam , com suas lanças e arcos, essa revolta de va-
qu eiros. Mas o ataqu e foi um fracasso. Foi então que um guerreiro de
bom conselho avaliou a situação e assim a expôs a seus irmãos de arm as:

Su giro qu e d eixem os aqu i nossas lanças e nossos ar-


cos e qu e os en fren tem os em p u n h an d o os ch icotes com
qu e fu stigam os n ossos cavalos. Até agora, eles viam -n os
com arm as e im agin avam qu e eram n ossos igu ais e de
igu al berço. M a s, qu and o nos virem com ch icotes em vez
de arm as, saberão qu e são n ossos escravos e, com p reen -
d end o isso, ced er ã o. 6

Assim foi feito, e com pleno êxito: surpreend id os p or esse espe-


tácu lo, os escravos fugiram sem lu tar.
O relato de H eród oto nos aju d a a com preend er com o o p ara-
digma da "gu erra servil" e do "escravo revoltad o" pôde servir de ne-
gativo a tod a m anifestação da luta dos "p obr es" con tra os "r ico s".

4 H eród oto, Histórias, III,80,30.

O Desentend imento 25
O parad igm a da guerra servil é o de uma realização p u ram ente guer-
reira da iguald ad e dos d om inad os com os d om inantes. Os escravos
dos citas constitu em com o acam p am ento m ilitar o território de sua
antiga servid ão e opõem arm as a arm as. Essa d em onstração igualitá-
ria com eça p or d esconcertar aqueles que se consid eravam seus senho-
res natu rais. Mas, qu and o estes voltam a exibir as insígnias da dife-
rença de natu reza, os revoltad os ficam sem resp osta. O que não po-
dem fazer é transform ar a iguald ad e gu erreira em liberd ad e p olítica.
Essa igu ald ad e, literalm ente m arcad a no território e defendid a pelas
arm as, não cria uma comunid ad e dividida. N ão se transform a na pro-
priedade im p róp ria dessa liberd ad e que institu i o demos ao mesmo
tem p o com o p arte e com o tod o da com u nid ad e. Ora, só há p olítica
m ed iante a in terru p ção, m ed iante a torção p rim ária que institu i a
p olítica com o o d esd obram ento de um d ano ou de um litígio fund a-
m ental. Essa torção é o d ano, o blaberon fu nd am ental encontrad o
pelo p ensam ento filosófico da com u nid ad e. Blaberon significa "o que
detém a corren te", diz uma das etim ologias fantasiosas do Cr atilo7.
Ora, acontece mais de uma vez que essas etim ologias fantasiosas acer-
tem num nó de p ensam ento essencial. Blaberon significa a corrente
interrom p id a, a torção p rim eira que bloqu eia a lógica natu ral das
"p rop ried ad es". Essa interru p ção obriga a pensar a p rop orção, a ana-
logia do corp o com u nitário. Mas tam bém arru ina, por anteced ência,
o sonho dessa p rop orção!
Isso p orqu e o d ano não é simplesmente a luta de classes, a dis-
sensão interna a ser corrigid a d and o-se à polis seu princípio de unida-
d e, fu nd and o-se a pólis sobre a arkhé da com u nid ad e. É a p róp ria im-
possibilid ad e da arkhé. As coisas seriam simples demais se houvesse
apenas a infelicid ad e da lu ta que op õe os ricos e os p obres. A solu ção
do p roblem a foi encontrad a ced o. Basta suprimir a causa da dissen-
são, quer d izer, a desigualdad e das riqu ezas, d and o-se a cad a um uma
p arcela de terra igual. O m al é mais p rofu nd o. Da mesma form a que
o povo não é realm ente o povo mas os p obres, os próprios pobres não
são verdadeiramente os p obres. São apenas o reino da ausência de qua-
lid ad e, a efetivid ad e da d isju nção primeira que porta o nome vazio de
liberd ad e, a propried ad e im p róp ria, o títu lo do litígio. São eles mes-
mos p or antecip ação a u nião torcid a do p róp rio que não é realm ente

7 Platão, Crátilo, 417 d/e.

28 Jacq u e s Ran ci è re
p róp rio e do com u m que não é realm ente com u m . São simplesmente
o d ano ou a torção constitu tivos da p olítica com o tal. O p artid o dos
p obres não encarna nada mais que a p róp ria p olítica com o institu ição
de uma p arcela dos sem-parcela. Sim etricam ente, o p artid o dos ricos
não encarna nad a mais que o antip olítico. Da Atenas do século V an-
tes de Jesu s Cristo até os governos de hoje em dia> o p artid o dos ricos
sempre terá d ito uma única coisa — que é m u ito exatam ente a nega-
ção da p olítica: não há parcela dos sem-parcela.
Essa p rop osição fund am ental p od e, é claro, m od ular-se de for-
m a d iferente de acord o com o que cham am os a evolu ção dos costu -
mes e das m entalid ad es. N a franqu eza antiga que aind a subsiste nos
"liberais" do século XIX, ela se exp rim e assim: há apenas chefes e su-
bord inad os, pessoas de bem e pessoas de nad a, elites e m ultid ões, pe-
ritos e ignorantes. N os eufemismos contem p orâneos, a proposta enun-
cia-se de m aneira d iferente: há apenas partes da socied ad e: m aiorias e
m inorias sociais, categorias sócio-p rofissionais, grupos de interesses,
comunidades etc. H á apenas partes, das quais devemos fazer p arceiros.
Mas, tanto nas form as policiad as da socied ad e contratu al e do gover-
no de con certação, com o nas form as bru tais da afirm ação igu alitária,
a p rop osta fund amental permanece a m esm a: não há parcela dos sem-
p arcela. Só há as parcelas das p artes. Em ou tras p alavras: não há p o-
lítica ou não deveria haver. A gu erra d os p obres e dos ricos é assim a
gu erra sobre a p róp ria existência da p olítica. O litígio em torn o da
contagem dos p obres com o p ovo, e do povo com o com u nid ad e, é o
litígio em torno da existência da p olítica, devido ao qual há p olítica.
A política é a esfera de atividade de um comum que só pode ser litigioso,
a relação entre as partes que não passam de partid os e títulos cu ja soma
é sempre d iferente do tod o.
É esse o escând alo prim ord ial da p olítica, que a factualid ad e de-
m ocrática pede à filosofia que consid ere. O p rojeto nuclear da filo-
sofia, tal com o se resume em Platão, consiste em su bstitu ir a ord em
aritm ética, a ord em do mais e do m enos que regula a troca dos bens
p erecíveis e d os m ales hu m anos, p ela ord em d ivina da p rop orção
geom étrica que regula o verd ad eiro bem , o bem com u m que é virtu al-
mente a vantagem de cad a um, sem ser a d esvantagem de ninguém.
Uma ciência, a ciência m atem ática, fornece o m od elo d isso, o mod e-
lo de uma ord em do número cu jo p róp rio rigor provém do fato de
escap ar à medida com u m . O cam inho do bem passa pela su bstitu i-
ção da aritm ética dos com erciantes e dos trap aceiros p or uma m ate-

11
C) Desentend im ento
m ática d os incom ensu ráveis. O p roblem a é que há pelo m enos um
cam p o em que a simples ord em d o mais e do menos foi suspensa, sen-
do su bstitu íd a p or uma ord em , p or uma p rop orção esp ecífica. Esse
cam p o se cham a p olítica. A p olítica existe devido a uma grandeza que
escapa à med id a ord inária, essa p arcela dos sem -parcela que é nad a
e tu d o. Essa grand eza p arad oxal já bloqu eou a "corren te" das gran-
dezas m ercantis, suspendeu os efeitos da aritm ética no corp o social.
A filosofia quer su bstitu ir na pólis e na alm a, com o na ciência das su-
p erfícies, d os volumes e dos astros, a iguald ade aritm ética pela igual-
dade geom étrica. Ora, o que a liberdade vazia dos atenienses lhe apre-
senta é o efeito de uma iguald ade d iferente, que suspende a aritm éti-
ca simples sem fu nd am entar nenhum a geom etria. Essa iguald ad e é
sim plesm ente a iguald ad e de qu alqu er um com qu alqu er u m , quer
d izer, em última instância, a ausência de arkhé, a pura contingência
de tod a ord em social. O au tor do Górgias emprega tod a sua raiva em
p rovar que tal igualdad e nad a mais é que a igualdad e aritm ética dos
oligarcas, qu er d izer, a desigualdade do d esejo, o apetite desmedido
que faz girar as alm as vulgares no círcu lo do prazer que o sofrim en-
to acom p anha ind efinid amente e os regimes no círcu lo infernal da oli-
garqu ia, da d em ocracia e da tirania. A "igu ald ad e" que os chefes do
p artid o p op u lar deram ao povo de Atenas é p ara ele apenas a fom e
nu nca saciad a do cad a vez m ais: cad a vez mais p ortos e navios, mer-
cad orias e colônias, arsenais e fortificações. Mas ele sabe m u ito bem
que o mal é m ais p rofu nd o. O mal não é essa fom e insaciável de na-
vios e de fortificações. É qu e, na Assembléia do p ovo, qu alqu er sapa-
teiro ou ferreiro possa levantar-se para d ar sua op inião sobre a ma-
neira de cond u zir esses navios ou de constru ir essas fortificações e,
mais aind a, sobre a m aneira ju sta ou inju sta de usá-los p ara o bem
com u m . O m al não é o cada vez mais mas o qualquer um, a bru tal
revelação da anarquia ú ltim a sobre que rep ou sa tod a hierarqu ia. O
d ebate sobre a natu reza ou a convenção, que op õe Sócrates a Protá-
goras ou a Cálicles, é aind a uma m aneira tranqü ilizad ora de apresen-
tar o escând alo. Pois o fund am ento da p olítica, se não é natu reza, não
é tam p ou co convenção: é au sência de fu nd am ento, é a pura contin-
gência de tod a ord em social. H á p olítica simplesmente porque nenhu-
ma ord em social está fund ad a na natu reza, p orqu e nenhuma lei divi-
na ord ena as socied ad es hu m anas. Tal é a lição que o p róp rio Platão
dá no grand e m ito do Político. É inútil querer bu scar m od elos na era
de Cron os e nos sonhos néscios d os reis p astores. Entre a era de

12
Jacqu es Rancière
Cronos e nós, a incisão do d ano já está sempre p assad a. Qu and o se
decide basear em seu p rincíp io a p rop orção da p ólis, é que a d emo-
cracia já passou p or aí. N osso m u nd o gira "em sentid o con trário" e
quem quiser cu rar a p olítica de seus males terá apenas uma solu ção:
a m entira que inventa uma natu reza social p ara d ar à com u nid ad e
uma arkhé.
Existe p olítica p orqu e — qu and o — a ord em natu ral dos reis
p astores, dos senhores de guerra ou das pessoas de posse é interrom -
pida p or uma liberd ad e que vem atu alizar a iguald ad e última na qu al
assenta tod a ord em social. Antes d o logos que d iscute sobre o útil e
o nocivo, há o logos que ord ena e confere o d ireito de ord enar. Mas
esse logos p rim eiro já está m ord id o p or uma con trad ição p rim eira.
H á ord em na socied ad e p orqu e uns m and am e os ou tros obed ecem .
Mas, p ara obed ecer a uma ord em , são necessárias pelo menos duas
coisas: deve-se compreend er a ordem e deve-se compreend er que é pre-
ciso obed ecer-lhe. E, p ara fazer isso, é preciso você já ser o igual d a-
quele que m and a. E essa iguald ad e que corrói tod a ord em natu ral.
Sem d úvid a, os inferiores obed ecem na quase totalid ad e dos casos.
Resta que p or aí a ord em social é rem etid a à sua contingência ú ltim a.
A d esiguald ad e só é, em ú ltim a in stân cia, possível pela igu ald ad e.
Existe p olítica qu and o pela lógica su p ostam ente natu ral da d om ina-
ção perpassa o efeito dessa iguald ad e. Isso quer dizer que não existe
sempre p olítica. Ela acontece, aliás, m u ito p ou co e raram ente. O que
com u m ente se atribu i à história p olítica ou à ciência do p olítico na
verd ad e d ep end e, com freqü ência m u ito m aior, de ou tras m aqu i-
narias, que por sua vez provêm do exercício da m ajestad e, do vicariato
da d ivind ad e, do com and o dos exércitos ou da gestão dos interesses.
Só existe p olítica qu and o essas m aqu inarias são interrom p id as pelo
efeito de uma p ressu p osição que lhes é totalm ente estranha e sem a
qu al no entanto, em ú ltim a instância, nenhuma d elas pod eria fu ncio-
nar: a p ressu p osição da igualdade de qu alqu er pessoa com qu alqu er
p essoa, ou seja, em d efinitivo, a p arad oxal efetivid ad e da pura con-
tingência de tod a ord em .
Esse segredo ú ltim o da p olítica será enu nciad o p or um "m od er-
n o ", H obbes, com o inconveniente de tê-lo rebatizad o, p ara as neces-
sidades de sua cau sa, de guerra de tod os contra tod os. Os "clássicos",
eles, d eterm inam com m uita p recisão essa iguald ad e, ao mesmo tem -
po em que se esquivam de seu enu nciad o. É que a liberd ad e deles se
d efine em relação a um contrário m u ito esp ecífico, que é a escravatu -

C) Desentend im ento 11
ra. E o escravo é, m uito p recisam ente, aqu ele que tem a cap acid ad e
de com preend er um logos sem ter a cap acid ad e do logos. É essa tran-
sição esp ecífica entre a anim alid ad e e a humanid ad e que Aristóteles
define com exatid ão: "o KO IVCÚV X oyou TO CO UZO V oaov aiaOavecrOca
aX X a /J,ri £%£iv": o escravo é aquele que p articip a da com u nid ad e da
linguagem apenas sob a form a da compreensão (aisthesis), não da posse
(hexis)8. A natu ralid ad e contingente da liberd ad e do hom em do povo
e a natu ralid ad e da escravid ão podem então se d ivid ir, sem rem eter à
contingência final da igualdade. Isso quer dizer, tam bém, que essa igual-
dade pode ser colocad a com o não tendo conseqüências sobre algo com o
a p olítica. É a d em onstração que Platão já havia>ealizad o ao fazer o
escravo de Mén on d escobrir a regra da d u p licação do qu ad rad o. O
fato de o pequeno escravo chegar tão bem qu anto Sócrates a essa ope-
ração que sep ara a ord em geom étrica da ord em aritm ética, que ele
p articip e pois da mesma inteligência, não estabelece em seu favor ne-
nhuma form a de inclu são com u nitária.
Os "clássicos" cercam pois a iguald ade p rim ária d o logos sem
nom eá-la. O que d efinem, em contrap artid a, de uma m aneira que per-
m anecerá incompreensível aos pensad ores m od ernos do con trato e do
estad o de natu reza, é a torção que esse p rincíp io, que não é um prin-
cíp io, produz quand o se efetua com o "liberd ad e" das pessoas de nad a.
Existe p olítica quand o a contingência igu alitária interrompe com o "li-
berd ad e" do povo a ord em natu ral das d om inações, qu and o essa in-
terru p ção produz um d ispositivo esp ecífico: uma d ivisão da socied a-
de em partes que não são "verd ad eiras" p artes; a institu ição de uma
parte que se iguala ao tod o em nome de uma "p rop ried ad e" que não
lhe é absolu tam ente p róp ria, e de um "com u m " que é a com u nid ad e
de um litígio. Tal é em d efinitivo o d ano qu e, passand o entre o útil e
o ju sto, p roíbe qu alqu er d ed ução de um p ara o ou tro. A institu ição
da p olítica é id êntica à institu ição da luta de classes. A luta de classes
não é o m otor secreto da p olítica ou a verd ade escond id a p or trás de
suas ap arências. Ela é a p róp ria p olítica, a p olítica tal com o a encon-
tram , sempre já estabelecid a, os que querem fund ar a comunid ad e com
base em sua arkhé. N ão se deve entend er com isso que a p olítica exis-
ta porqu e grupos sociais entram em luta p or seus interesses divergen-
tes. A torção pela qual existe p olítica é tam bém a que institu i as clas-

8 Aristóteles, Política, I, 1254 b 22.

12 Jacqu es Rancière
ses com o diferentes de si mesmas. O p roletariad o não é uma classe mas
a d issolu ção de tod as as classes, e nisso consiste sua universalid ad e,
d irá M ar x. Devem os d ar a esse enu nciad o o seu p leno caráter genéri-
co. A p olítica é a institu ição do litígio entre classes que não são ver-
d ad eiram ente classes. Classes "verd ad eiras", isso quer dizer — que-
reria dizer — p artes reais da socied ad e, categorias que corresp ond em
a suas fu nções. O r a, vale p ara o demos ateniense, que se id entifica à
com u nid ad e inteira, o mesmo que vale para o p roletariad o m arxista,
que confessa ser exceção rad ical à com u nid ad e. Um e ou tro unem em
nom e de uma p arte da socied ad e o pu ro títu lo da igualdad e de qu al-
quer um a qu alqu er um, através do qu al tod as as classes se disj ungem
e a p olítica existe. A universalid ad e da p olítica é a de uma d iferença a
si de cad a parte e a do d iferend o com o com u nid ad e. O d ano que ins-
titu i a p olítica não é p rim eiram ente a d issensão das classes, é a d ife-
rença a si de cad a uma que impõe à p róp ria d ivisão do corp o social a
lei da m istu ra, a lei do qu alqu er um fazend o qu alqu er coisa. Platão
tem p ara isso uma p alavra: polypragmosyné, o fato de fazer "m u it o ",
de fazer "d em ais", de fazer qu alqu er coisa. Se o Górgias é a interm i-
nável d em onstração de que a iguald ad e d em ocrática não passa de de-
sigualdade tirân ica, a organização da República é, p or sua vez, uma
caça interm inável a essa polypragmosyné, a essa confu são das ativi-
dades que d estruiria tod a rep artição ord enad a das fu nções da polis e
faria passarem as classes umas pelas ou tras. O livro IV da República,
no m om ento de d efinir a ju stiça — a verd ad eira ju stiça, a que exclu i
o d ano —, nos ad verte solenem ente: essa confu são "cau saria à p olis
o m aior d ano e é com razão que p assaria p or ser crim e m a io r ."9
A p olítica com eça p or um d ano m aior: a suspensão p osta pela
liberd ad e vazia do povo entre a ord em aritm ética e a ord em geom é-
trica. N ão é a utilid ad e com um que pod e basear a com u nid ad e p olíti-
ca, com o tam bém não é o enfrentam ento e a com p osição dos interes-
ses. O d ano pelo qu al existe p olítica não é nenhum erro ped ind o re-
p aração. E a introd u ção de um incom ensu rável no seio da d istribu i-
ção dos corp os falantes. Esse incom ensu rável não rom p e som ente a
iguald ad e dos lu cros e das perd as. Ele arru ina tam bém p or antecip a-
ção o p rojeto da p olis ord enad a segund o a p rop orção do cosmos,
basead a na arkbé da com u nid ad e.

9 Platão, República, IV, 433 c.

O Desentend im ento 33
O DAN O: POLÍTICA E POLÍCIA

A bela d ed ução que vai das propried ad es do anim al lógico p ara


os fins do anim al p olítico escond e então uma falha. Entre o útil e o ju s-
to, há o incomensurável do d ano que sozinho institui a comunid ade p o-
lítica com o antagonism o de partes da com unid ad e que não são verd a-
deiras partes do corp o social. Mas, p or sua vez, a falsa continu id ad e
do útil ao ju sto vem d enunciar a falsa evidência da op osição tão inci-
siva que separa os hom ens d otad os de logos dos anim ais lim itad os uni-
cam ente ao instru m ento da voz (phoné). A voz, diz Aristóteles, é um
instru m ento d estinad o a um fim lim itad o. Serve aos anim ais em geral
p ara ind icar (semainein) a sensação que têm de d or e agrad o. Agrad o
e d or situam-se aqu ém da divisão que reserva aos hu m anos e à com u -
nidade p olítica o sentim ento do p roveitoso e do nocivo, logo a com u -
nhão do ju sto e do inju sto. Mas, dividind o tão claram ente as fu nções
com u ns da voz e os privilégios da p alavra, pode Aristóteles esquecer o
fu ror das acusações lançad as por seu mestre Platão contra o "gord o ani-
m al" popular? O livro VI da República se com praz em nos m ostrar esse
gord o anim al respond end o às palavras que o ad ulam com o tu m u lto
de suas aclam ações, e às que o irritam com o alarid o de sua rep rova-
ção. Eis por que a "ciên cia" daqueles que se apresentam à sua volta con-
siste só em conhecer os efeitos de voz que fazem o gord o animal gru-
nhir e os que o d eixam calm o e d ócil. Assim com o o demos usurpa o
títu lo da com u nid ad e, a d em ocracia é o regime — o m od o de vida —
em que a voz que não apenas exprim e mas tam bém p rop orciona os sen-
tim entos ilusórios do prazer e do sofrim ento usurpa os privilégios do
logos que faz reconhecer o ju sto e ord ena sua realização na p rop orção
com u nitária. A m etáfora do gord o anim al não é uma simples m etáfo-
ra. Ela serve rigorosam ente para p rostrar na animalid ad e esses seres fa-
lantes sem qualid ad e que introd uzem a p ertu rbação no logos e em sua
realização p olítica com o analogia das partes da com u nid ad e.
A simples op osição entre os anim ais lógicos e os anim ais fônicos
não é p ois, de form a algu m a, o d ad o sobre o qual se funda a p olítica.
Ela é, ao con trário, uma ap osta do jogo do p róp rio litígio que institui

11
C) Desentend im ento
a p olítica. N o âm ago da p olítica, há um duplo d ano, um conflito fun-
d am ental e nu nca consid erad o com o tal em torn o da relação entre a
capacid ad e do ser falante sem propried ade e a capacid ad e p olítica. Para
Platão, a m u ltip licid ad e dos seres falantes anônim os cham ad a povo
prejud ica tod a d istribu ição ord enad a dos corp os em com u nid ad e. Mas
inversamente "p ov o" é o nom e, a form a de su bjetivação, desse d ano
im em orial e sempre atu al pelo qual a ord em social se sim boliza rejei-
tand o a m aioria dos seres falantes para a noite do silêncio ou o baru -
lho animal das vozes que exprim em satisfação ou sofrim ento. Isso p or-
qu e, antes das dívidas que colocam as pessoas de nad a na dependência
dos oligarcas, há a d istribu ição sim bólica dos corp os, que as divide em
duas categorias: aqueles a quem se vê e a quem não se vê, os de quem
há um logos — uma palavra m em orial, uma contagem a m anter —, e
aqueles acerca dos quais não há /ogos, os que falam realmente e aqu e-
les cu ja voz, p ara exp rim ir prazer e d or, apenas im ita a voz articu lad a.
H á p olítica p orqu e o logos nu nca é apenas a p alavra, porque ele é sem-
pre ind issoluvelmente a contagem que é feita dessa p alavra: a conta-
gem pela qual uma emissão sonora é ouvida com o p alavra, apta a enun-
ciar o ju sto, enqu anto uma ou tra é apenas percebid a com o baru lho que
designa prazer ou d or, consentim ento ou revolta.
É o que con ta um pensad or francês do sécu lo XIX ao reescre-
ver o relato feito por Tito Lívio da secessão d os plebeus rom anos no
Aventino. Em 1829, Pierre-Sim on Ballanche p u blica na Revue de Pa-
ris uma série de artigos sob o títu lo de "Fórm u la geral da história de
tod os os p ovos aplicad a à história do povo r om an o". À sua m anei-
ra, Ballanche estabelece um víncu lo entre a p olítica dos "clássicos" e
a dos "m od er n os". O relato de Tito Lívio encad eava o fim da guerra
contra os volscos, a retirad a da plebe p ara o Aventino, a em baixad a
de Menênio Agrip a, a fábu la que o celebrizou e a volta dos plebeus à
ord em . Ballanche censu ra ao historiad or latino sua incap acid ad e de
pensar o acontecim ento a não ser com o revolta, um levante da misé-
ria e da cólera que institui uma relação de forças privad a de sentid o.
Tito Lívio é incap az de conferir sentid o ao conflito porqu e é incap az
de situar a fábu la de Menênio Agripa no seu verd ad eiro con texto: o
de uma querela sobre a qu estão da própria p alavra. Centralizand o seu
relato-ap ólogo nas discussões dos senad ores e nos atos de palavra dos
plebeu s, Ballanche efetua uma reencenação do conflito na qual tod a
a qu estão consiste em saber se existe um p alco com u m onde plebeus
e p atrícios possam d ebater sobre alguma coisa.

12
Jacqu es Ran cière
A p osição dos p atrícios intransigentes é simples: não há por que
d iscutir com os p lebeu s, pela simples razão de que estes não falam . E
não falam p orqu e são seres sem nom e, privad os de /ogos, quer dizer
de inscrição sim bólica na pólis. Vivem uma vida puramente individual,
que não transm ite nad a, a não ser a p róp ria vid a, reduzida a sua fa-
culd ad e rep rod u tiva. Aquele que não tem nome não pode falar. Um
erro fatal faz o d eputad o Menênio im aginar que da boca dos plebeus
saíssem palavras, qu and o logicam ente só pod eria sair ru íd o.

Possuem a palavra com o nós, ousaram eles dizer a Me-


nênio! Foi um deus quem fechou a boca de Men ên io, quem
ofu scou seu olhar, quem fez zumbir seus ouvid os? Será que
foi tom ad o de uma vertigem sagrad a? [...] ele não soube res-
pond er-lhes que tinham uma p alavra transitória, uma pa-
lavra que é um som fugid io, espécie de m ugid o, sinal da ne-
cessid ad e e não da m anifestação da inteligência. São priva-
dos da p alavra eterna que estava no p assad o, que estará no
fu tu ro.1

O d iscurso que Ballanche atribu i a Ápio Cláu d io apresenta per-


feitam ente o argu m ento da qu erela. Entre a linguagem d aqueles que
têm um nome e o mugido dos seres sem nom e, não há situ ação de tro-
ca lingüística que possa ser constitu íd a, não há regras ou cód igo p ara
a d iscu ssão. Esse vered ito não reflete apenas a obstinação dos d omi-
nantes ou sua cegu eira id eológica. Exp rim e estritam ente a ord em do
sensível que organiza sua d om inação, que é essa p róp ria d om inação.
Antes de ser um traid or da sua classe, o d eputad o Men ên io, que pen-
sa ter ouvido os plebeus falarem , é vítim a de uma ilu são dos senti-
d os. A ord em que estru tu ra a d om inação dos p atrícios não conhece
logos que possa ser articu lad o p or seres privad os de logos, nem pala-
vra que possa ser p roferid a p or seres sem nom e, p or seres dos qu ais
não há contagem.
Diante de tal situ ação, o que fazem os plebeus reunid os no Aven-
tino? N ão arm am trincheiras, a exem p lo dos escravos dos citas. Fa-
zem o que para estes era impensável: instituem uma ou tra ord em , uma

1 Ballanche, "Form u le générale de tou s les peuples appliquée à 1'histoire du


peuple rom ain ", Revue de Paris, setem bro de 1830, p. 94.

11
C) Desentend imento
outra divisão do sensível, constituind o-se não com o guerreiros iguais
a outros guerreiros, mas com o seres falantes repartindo as mesmas pro-
priedades daqueles que as negam a eles. Execu tam assim uma série de
atos de palavra que mimetizam os dos patrícios: proferem imprecações
e celebram apoteoses; delegam um dos seus para ir consultar seus orá-
culos; outorgam-se representantes rebatizand o-os. Em suma, com por-
tam-se com o seres que têm nomes. Descobrem -se, ao modo da trans-
gressão, com o seres falantes, d otad os de uma palavra que não expri-
me simplesmente a necessidade, o sofrimento e o fu ror, mas manifesta
a inteligência. Escrevem, diz Ballanche, "u m nome no céu ": um lugar
numa ordem simbólica da comunidade dos seres falantes, numa co-
munidade que ainda não tem efetividade na civitas rom ana.
O relato nos apresenta essas duas cenas e nos m ostra, entre as
duas, observad ores e emissários que circulam — num único sentid o,
é claro: são patrícios atípicos que vêm ver e ouvir o que se passa nes-
sa cena, inexistente por d ireito. E observam este fenômeno incrível:
os plebeus transgred iram, pelo fato, a ordem da cidade. Deram-se no-
mes. Execu taram uma série de atos de palavra que ligam a vida de
seus corpos a palavras e a usos das palavras. Em suma, na linguagem
de Ballanche, de "m ortais" que eram , tornaram -se "h om en s", quer
dizer, seres que empenham em palavras um destino coletivo. Torna-
ram-se seres passíveis de firm ar promessas e de estabelecer contratos.
A conseqüência disso é que, quando Menênio Agripa conta seu apó-
logo, escu tam -no ed ucad amente e agrad ecem , mas para ped ir-lhe,
depois, um tratad o. Ele p rotesta, dizendo que isso é logicamente im-
possível. Infelizmente, diz Ballanche, seu apólogo tinha, num único
d ia, "envelhecid o de um ciclo". A coisa é simples de form u lar: se os
plebeus podiam compreender seu apólogo — o apólogo da necessá-
ria desigualdade entre o princípio vital p atrício e os membros execu-
tantes da plebe —, é que já eram , necessariamente, iguais. O apólogo
quer dar a compreender uma divisão desigualitária do sensível. Ora,
o senso necessário para compreender essa divisão pressupõe uma di-
visão igualitária que destrói a primeira. Mas somente o desenvolvi-
mento de uma cena de m anifestação específica confere, a essa igual-
dade, efetividade. Somente esse dispositivo mede a d istancia do logos
a si mesmo e faz efeito dessa medida, organizand o um ou tro espaço
sensível em que se verifica que os plebeus falam como os patrícios e
que a d om inação destes não tem ou tro fund amento que .1 pura con-
tingência de tod a ordem social.

38 | ncqurs Rancière
O Senad o rom an o, no relato de Ballanche, é anim ad o p or um
Conselho secreto de velhos sábios. Estes sabem qu e, quand o acaba um
ciclo, quer isso nos agrad e, quer não, ele está acabad o. E concluem qu e,
já que os plebeus se tornaram seres de p alavra, nad a mais há a fazer,
a não ser falar com eles. Essa conclu são está em conform id ad e com a
filosofia que Ballanche retom a de Vico: a passagem de uma era da p a-
lavra a ou tra não é uma revolta que se possa rep rim ir, é uma revela-
ção progressiva, cu jos sinais se reconhecem e contra a qual não se lu ta.
Mas o que nos im p orta aqu i, m ais do que essa filosofia d eterm inad a,
é a m aneira com o o ap ólogo situa a relação entre o privilégio do logos
e o jogo do litígio que institui a cena p olítica. Antes de qu alqu er m e-
dida dos interesses e dos títu los de tal ou qual p arte, o litígio refere-se
à existência das p artes com o p artes, a existência de uma relação qu e
as constitui com o tais. E o duplo sentido do logos, com o palavra e com o
contagem , é o lugar ond e se trava o con flito. O ap ólogo do Aventino
p erm ite-nos reform u lar o enu nciad o aristotélico sobre a fu nção p olí-
tica do logos hu m ano e sobre a significação do d ano que ele m anifes-
ta. A p alavra p or m eio da qual existe p olítica é a que mede o afasta-
m ento mesmo da p alavra e de sua contagem . E a aisthesis que se m a-
nifesta nessa p alavra é a p róp ria qu erela em torn o da constitu ição da
aisthesis, sobre a d ivisão do sensível pela qual corp os se encontram em
com u nid ad e. Vam os entend er aqu i d ivisão * no d uplo sentid o da pa-
lavra: com u nid ad e e sep aração. É a relação de am bas que define uma
d ivisão do sensível. E é essa relação que está em jogo no "d u p lo sen-
tid o" do ap ólogo: o que ele faz entend er e o que é necessário p ara
entend ê-lo. Saber se os plebeus falam é saber se existe algo "en tr e" as
p artes. Para os p atrícios, não há cena p olítica já que não há p artes.
N ão há p artes já que os plebeu s, não tend o /ogos, não são. "A des-
graça de vocês é n ão serem ", diz um p atrício aos p lebeu s, "e essa des-
graça é in elu tável."2 É esse o p onto d ecisivo que se vê obscu ram ente
d esignad o na d efinição aristotélica ou na p olêm ica p latônica, mas cla-
ram ente ocu ltad o, em contrap artid a, p or tod as as concep ções cam bis-
tas, contratu ais ou com u nicacionais da com u nid ad e p olítica. A p olí-
tica é p rim eiram ente o conflito em torn o da existência de uma cena
com u m , em torn o da existência e a qualid ad e d aqueles que estão ali

* Em francês, partage, que tem as duas conotações ap ontad as acim a. (N .


do revisor técnico)
2 Ballanche, op. cit., p. 75.

11
C) Desentend im ento
presentes. É p reciso antes de mais nad a estabelecer que a cena existe
p ara o uso de um interlocu tor que não a vê e que não tem razões para
vê-la já que ela não existe. As p artes não p reexistem ao con flito, que
elas nom eiam e no qual são contad as com o p artes. A "d iscu ssão" do
d ano não é uma troca — sequer violenta — entre p arceiros constitu í-
d os. Ela diz respeito à p róp ria situ ação de p alavra e a seus atores. N ão
há p olítica p orqu e os hom ens, pelo privilégio da p alavra, põem seus
interesses em com u m . Existe p olítica p orqu e aqueles que não têm di-
reito de ser contad os com o seres falantes conseguem ser con tad os, e
instituem uma com unid ad e pelo fato de colocarem em com u m o d ano
que nad a mais é que o p róp rio enfrentam ento, a contrad ição de dois
mundos alojad os num só: o mund o em que estão e aquele em que não
estão, o mund o ond e há algo "en tr e" eles e aqueles que não os conhe-
cem com o seres falantes e contáveis e o mund o ond e não há nad a. A
facticid ad e da liberd ad e ateniense e o extraord inário da secessão ple-
béia encenam , assim , um conflito fu nd am ental, que é ao mesmo tem -
po m arcad o e abortad o pela guerra servil da Cítia. O conflito separa
dois m od os do estar-ju nto hu m ano, dois tip os de divisão do sensível,
op ostos em seu p rincíp io e no entanto entrelaçad os um no ou tro nas
contagens impossíveis da p rop orção, assim com o nas violências do con-
flito. H á o m od o de estar-ju nto que situa os corp os em seu lugar e nas
suas fu nções segundo suas "p rop ried ad es", segundo seu nom e ou sua
ausência de nom e, o caráter "lóg ico" ou "fô n ico" dos sons que saem
de sua boca. O p rincíp io desse estar-ju nto é simples: dá a cad a um a
p arcela que lhe cabe segundo a evid ência do que ele é. As m aneiras de
ser, as m aneiras de fazer e as m aneiras de dizer — ou de não dizer —
aí remetem exatam ente umas às ou tras. Os citas, ao fu rar os olhos da-
queles que têm de execu tar com as m ãos a tarefa que lhes é m and ad a,
d ão o exem p lo selvagem d isso. Os p atrícios, que não podem ouvir a
p alavra d aqueles que não pod em tê-la, fornecem a sua fórm u la clássi-
ca. Os "p olíticos" da com u nicação e da sondagem qu e, a cad a instante,
d ão a cad a um de nós o esp etácu lo inteiro de um mund o que se tor-
nou ind iferente e a contagem exata d aqu ilo que cad a classe de idade e
cad a categoria sócio-p rofissional pensam do "fu tu ro p olítico" de tal
ou qual m inistro pod eriam ser consid erad os uma fórm u la m od erna
exem p lar d isso. H á p ortan to, de um lad o, essa lógica que con ta as
p arcelas u nicam ente das p artes, que d istribu i os corp os no esp aço de
sua visibilid ade ou de sua invisibilid ade e põe em concord ância os m o-
dos do ser, os m od os do fazer e os m od os do dizer que convém a cad a

12
Jacqu es Ran cière
um. E há a ou tra lógica, aqu ela que suspende essa harm onia pelo sim-
ples fato de atu alizar a contingência da iguald ad e, nem aritm ética nem
geom étrica, dos seres falantes qu aisqu er.
N o conflito p rim ário que põe em litígio a d ed u ção entre a cap a-
cid ad e do ser falante qu alqu er e a com u nid ad e do ju sto e do inju sto,
deve-se então reconhecer duas lógicas do estar-ju nto hum ano que ge-
ralm ente se confu nd em sob o nom e de p olítica, qu and o a ativid ad e
p olítica nad a mais é que a ativid ad e que as divide. Cham am os geral-
mente pelo nome de p olítica o con ju n to dos p rocessos pelos qu ais se
op eram a agregação e o consentim ento das coletivid ad es, a organiza-
ção dos p od eres, a d istribu ição dos lugares e fu nções e os sistemas de
legitim ação dessa d istribu ição. Prop onho dar ou tro nom e a essa dis-
tribu ição e ao sistem a dessas legitim ações. Prop onho cham á-la de po-
lícia. Sem d úvid a, essa d esignação coloca alguns p roblem as. A p ala-
vra polícia evoca com u m ente o que cham am os baixa p olícia, os gol-
pes de cassetete das forças da ord em e as inqu isições das p olícias se-
cretas. Mas essa id entificação restritiva pode ser consid erad a contin-
gente. Michel Fou cau lt m ostrou qu e, com o técnica de governo, a p o-
lícia d efinid a pelos au tores do sécu lo XVII e XVIII estend ia-se a tu d o
o que diz resp eito ao "h om em " e à sua "felicid ad e"3 . A baixa p olícia
é apenas uma form a p articu lar de uma ord em mais geral que d ispõe o
sensível, na qu al os corp os são d istribu íd os em com u nid ad e. E a fra-
queza e não a força dessa ord em que incha em certos estad os a baixa
p olícia, até encarregá-la do con ju n to das fu nções de p olícia. Prova
d isso, a contrario, é a evolu ção das socied ad es ocid entais que faz do
p olicial um elem ento de um d isp ositivo social, em que se entrelaçam
o m éd ico, o assistencial e o cu ltu ral. O p olicial está fad ad o nesse con -
texto a tornar-se conselheiro e anim ad or tanto qu anto agente da or-
dem p ú blica e sem dúvida até o seu nome será trocad o um d ia, nesse
p rocesso de eu fem ização pelo qu al nossas socied ad es revalorizam , ao
m enos em im agem , tod as as fu nções trad icionalm ente d esprezad as.
Utilizarei p ortanto a p artir de agora a palavra polícia e o ad jetivo po-
licial num sentid o am p lo, que é tam bém um sentid o "n eu tr o", n ão pe-
jorativo. N em p or isso estou id entificand o a p olícia àqu ilo que é de-
signad o pelo nom e de "ap arelh o de Estad o". A noção de ap arelho de

3 Michel Fou cau lt, "O m n es et singulatim: vers une critiqu e de la raison
p olitiqu e", Dits et Écrits, t. IV, pp. 134-161.

C) Desentend imento 11
Estad o encontra-se de fato ligada à pressuposição de que Estad o e socie-
dade se op õem , sendo o p rim eiro figurad o com o a m áqu ina, o "m on s-
tro frio" que impõe a rigidez de sua ord em à vida da segunda. Ora essa
figu ração já pressupõe uma certa "filosofia p olítica", isto é, uma certa
confu são da p olítica e da p olícia. A d istribu ição d os lugares e fu nções
que define uma ord em p olicial depende tan to da suposta esp ontanei-
dade das relações sociais qu anto da rigidez das fu nções de Estad o. A
p olícia é, na sua essência, a lei, geralm ente im p lícita, que define a par-
cela ou a au sência de p arcela das p artes. Mas, p ara d efinir isso, é pre-
ciso antes definir a configu ração do sensível na qual se inscrevem umas
e ou tras. A p olícia é assim , antes de mais nad a, uma ord em dos cor-
pos que d efine as divisões entre os m od os do fazer, os m od os de ser e
os mod os do d izer, que faz que tais corp os sejam designados p or seu
nome p ara tal lugar e tal tarefa; é uma ord em d o visível e do dizível
que faz com que essa ativid ad e seja visível e ou tra não o seja, que essa
palavra seja entendida com o discurso e outra com o ruíd o. É, p or exem-
p lo, uma lei de p olícia que faz trad icionalm ente do lugar de trabalh o
um esp aço privad o não regid o pelos m od os do ver e dizer p róp rios do
que se cham a o esp aço p ú blico, ond e o ter parcela do trabalhad or é
estritam ente d efinid o pela rem u neração de seu trabalho. A p olícia não
é tanto uma "d iscip lin arização" dos corp os qu anto uma regra de seu
ap arecer, uma con figu ração d as ocupações e d as p rop ried ad es dos
espaços em que essas ocu p ações são d istribu íd as.
Prop onho agora reservar o nome de p olítica a uma atividade bem
d eterm inad a e antagônica à p rim eira: a que rom p e a con figu ração
sensível na qual se definem as p arcelas e as p artes ou sua au sência a
p artir de um pressu posto que p or d efinição não tem cabim ento ali: a
de uma p arcela dos sem -p arcela. Essa ru ptu ra se m anifesta p or uma
série de atos que reconfigu ram o esp aço ond e as p artes, as p arcelas e
as ausências de p arcelas se d efiniam . A ativid ad e p olítica é a que des-
loca um corp o do lugar que lhe era d esignad o ou muda a d estinação
de um lu gar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um dis-
cu rso ali ond e só tinha lugar o baru lho, faz ouvir com o d iscurso o que
só era ou vid o com o baru lh o. Pod e ser a ativid ad e dos plebeus de
Ballanche que fazem uso de uma palavra que "n ã o têm ". Pode ser a
desses op erários do século XI X que colocam em razões coletivas rela-
ções de trabalh o que só dependem de uma infinid ad e de relações in-
dividuais p rivad as. Ou aind a a desses m anifestantes de ruas ou barri-
cad as que literalizam com o "esp aço p ú blico" as vias de com u nicação

12 Jacqu es Ran cière


u rbanas. Esp etacu lar ou n ão, a ativid ad e p olítica é sempre um m od o
de m anifestação que d esfaz as divisões sensíveis da ord em p olicial ao
atu alizar uma p ressu p osição que lhe é heterogênea p or p rincíp io, a de
uma parcela dos sem -parcela que m anifesta ela m esm a, em última ins-
tân cia, a pura contingência da ord em , a igualdade de qu alqu er ser fa-
lante com qu alqu er ou tro ser falante. Existe p olítica qu and o existe um
lugar e form as p ara o encontro entre dois p rocessos heterogêneos. O
p rim eiro é o p rocesso p olicial no sentid o que o tentam os d efinir. O
segund o é o p rocesso da iguald ad e. Entend am os p rovisoriam ente sob
esse term o o con ju n to aberto das p ráticas guiad as pela su p osição da
igualdade de qualquer ser falante com qualquer ou tro ser falante e pela
p reocu p ação de averiguar essa iguald ad e.
A form u lação dessa op osição exige algumas precisões e acarreta
alguns corolários. Antes de tu d o, não farem os da ord em p olicial as-
sim d efinida a noite ond e tud o se eqü ivale. A p rática dos citas de fu rar
os olhos de seus escravos e a das estratégias m od ernas da inform ação
e da com u nicação qu e, ao con trário, abrem infinitam ente os olh os,
prend em-se am bas à p olícia. N ão tirarem os de form a alguma a con-
clu são niilista de que uma e ou tra se eqüivalem . N ossa situ ação é em
tu d o m elhor que a dos escravos d os citas. H á a p olícia menos boa e a
m elhor — não send o a m elhor, aliás, a que segue a ord em su p osta-
mente natu ral das socied ad es ou a ciência dos legislad ores, mas a que
os arrom bam entos da lógica igu alitária vieram na m aioria das vezes
afastar de sua lógica "n a tu r a l". A p olícia pode p rop orcionar tod os os
tip os de bens, e uma p olícia pod e ser infinitam ente preferível a uma
ou tra. Isso não muda sua natu reza, que é a única coisa aqui que está
em qu estão. O regime da op inião sond ad a e da exibição p erm anente
do real é hoje a form a com u m da p olícia nas socied ad es ocid entais. A
p olícia pode ser d oce e am ável. Continu a send o, mesmo assim , o con-
trário da p olítica, e convém circu nscrever o que cabe a cad a uma de-
las. É assim que muitas questões trad icionalm ente rep ertoriad as com o
qu estões sobre as relações da m oral e da p olítica só tratam , a rigor,
das relações da m oral e da p olícia. Saber, p or exem p lo, se tod os os
m eios são bons p ara assegurar a tranqü ilid ad e da p op u lação e a segu-
rança do Estad o é uma qu estão que não depende do pensam ento p o-
lítico — o que não significa que não possa fornecer o lugar de uma
intervenção transversal da p olítica. É assim tam bém que a m aior p ar-
te das medidas que nossos clu bes e laboratórios de "reflexão p olíti-
ca " im aginam p ara mud ar ou renovar a p olítica ap roxim and o o cid a-

11
C) Desentend im ento
d ão do Estad o ou o Estad o do cid ad ão oferece, na verd ad e, à p olítica
sua mais simples alternativa: a da simples p olícia. Pois é uma figura-
ção da com u nid ad e p róp ria à p olícia aqu ela que id entifica a cid ad a-
nia com o propried ad e dos indivíduos passível de se d efinir numa re-
lação de m aior ou m enor p roxim id ad e entre o seu lugar e o d o pod er
p ú blico. Qu anto à p olítica, ela não conhece relação entre os cid ad ãos
e o Estad o. Ela conhece apenas d ispositivos e m anifestações singula-
res pelos qu ais às vezes há uma cid ad ania que nunca pertence aos in-
divíduos com o tais.
N ão se deve esquecer tam bém qu e, se a p olítica emprega uma
lógica totalm ente heterogênea à da p olícia, está sempre am arrad a a
ela. A razão disso é simples. A p olítica não tem objetos ou qu estões
que lhe sejam p róp rios. Seu ú nico p rincíp io, a iguald ad e, não lhe é
p róp rio e não tem nad a de p olítico em si m esm o. Tu d o o que ela faz
é d ar-lhe uma atualid ad e sob a form a de caso, inscrever, sob a form a
de litígio, a averifigu ação da igualdade no seio da ord em p olicial. O
que constitu i o caráter p olítico de uma ação não é seu objeto ou o
lugar onde é exercid a mas unicamente sua form a, a que inscreve a ave-
rigu ação da igualdade na institu ição de um litígio, de uma com u ni-
dade que existe apenas pela d ivisão. A p olítica encontra em tod a parte
a p olícia. Aind a se deve pensar esse encontro com o encontro dos he-
terogêneos. Deve-se p ara isso renu nciar ao benefício de alguns con-
ceitos que asseguram por antecip ação a passagem entre os d ois cam -
p os. O conceito de pod er é o p rim eiro desses conceitos. Foi ele que
perm itiu , ou trora, que uma certa boa vontad e m ilitante assegurasse
que "tu d o é p olítico", já que p or tod a p arte há relações de p od er. A
p artir disso podem separar-se a visão som bria de um pod er presente
em tod a p arte e a tod o instante, a visão heróica da p olítica com o re-
sistência ou a visão lúdica dos espaços de afirm ação criad os p or aque-
les e aqu elas que viram as costas à p olítica e a seus jogos de p od er. O
conceito de pod er permite conclu ir de um "tu d o é p olicial" um "tu d o
é p olítico". Ora, a conseqü ência não é boa. Se tu d o é p olítico, nad a
o é. Se então é im p ortante m ostrar, com o Michel Fou cau lt o fez m a-
gistralm ente, que a ord em p olicial se estende p ara muito além de suas
institu ições e técnicas esp ecializad as, é igualm ente im p ortante dizer
que nenhum a coisa é em si p olítica, pelo ú nico fato de exercerem -se
relações de p od er. Para que uma coisa seja p olítica, é preciso que sus-
cite o encontro entre a lógica p olicial e a lógica igu alitária, a qu al
nunca está p reconstitu íd a.

12
Jacqu es Ran cière
N enhu m a coisa é então p or si p olítica. Mas qu alqu er coisa pod e
vir a sê-lo se der ocasião ao encontro das duas lógicas. Uma mesma
coisa — uma eleição, uma greve, uma m anifestação — pode d ar ense-
jo à política ou não dar nenhum ensejo. Uma greve não é política quan-
do exige reform as em vez de m elhorias ou qu and o ataca as relações
de au torid ad e em vez da insu ficiência dos salários. Ela o é qu and o
reconfigu ra as relações que d eterm inam o local de trabalho em sua
relação com a com u nid ad e. O lar pôd e se tornar um lugar p olítico,
não pelo simples fato de que nele se exercem relações de pod er mas
p orqu e se viu arguíd o no interior de um litígio sobre a cap acid ad e dás
mulheres à com u nid ad e. Um m esm o conceito — a op inião ou o d irei-
to, p or exem p lo — pode d esignar uma estru tu ra do agir p olítico ou
uma estru tu ra da ord em p olicial. E assim que a mesma p alavra opi-
nião designa dois processos op ostos: a rep rod u ção das legitim ações de
Estad o sob a form a de "sen tim en tos" dos governad os ou a constitu i-
ção de uma cena em que se arm a o litígio desse jogo de legitim ações e
de sentim entos; a escolha entre resp ostas p rop ostas ou a invenção de
uma qu estão que ninguém se colocava. Mas é p reciso acrescentar que
essas p alavras pod em tam bém d esignar, e d esignam na m aioria das
vezes, o p róp rio entrelaçam ento das lógicas. A p olítica age sobre a p o-
lícia. Ela age em lugares e com p alavras que lhes são com u ns, se for
p reciso reconfigu rand o esses lugares e mud and o o estatu to dessas p a-
lavras. O que é habitu alm ente colocad o com o o lugar do p olítico, ou
seja, o con ju n to das institu ições do Estad o, ju stam ente não é um lu-
gar hom ogêneo. Sua configu ração é d eterm inad a p or um estad o das
relações entre a lógica política e a lógica policial. Mas é tam bém , é claro,
o lugar privilegiad o ond e sua d iferença se d issimula na p ressu p osição
de uma relação d ireta entre a arkbé da com u nid ad e e a d istribu ição
das institu ições, das arcbai que efetu am o p rincíp io.
N enhu m a coisa é em si p olítica, pois a p olítica só existe p or um
p rincíp io que não lhe é p róp rio, a iguald ad e. O estatu to desse "p rin -
cíp io" deve ser p recisad o. A iguald ad e não é um d ad o que a p olítica
ap lica, uma essência que a lei encarna nem um objetivo que ela se
p rop õe atingir. E apenas uma p ressu p osição que deve ser d iscernid a
nas p ráticas que a põem em u so. Assim , no ap ólogo do Aventino, a
p ressu p osição igu alitária deve ser d iscernid a até no d iscurso que p ro-
nu ncia a fatalid ad e da d esiguald ad e. Menênio Agripa exp lica aos ple-
beus que eles são apenas os m em bros estúpid os de uma pólis cu jo co-
ração são os p atrícios. Mas, p ara ensinar-lhes assim seu lu gar, deve

11
C) Desentend im ento
pressupor que os plebeus entend am seu d iscu rso. Deve pressupor essa
igualdade dos seres falantes que contrad iz a d istribu ição p olicial dos
corp os colocad os em seu lugar e estabelecid os em sua fu nção.
Conced am os, de antem ão, aos espíritos pond erad os, para os quais
igualdade rima com utopia enquanto desigualdade evoca a sadia robus-
teza das coisas natu rais: essa pressu posição é mesmo tão vazia quan-
to eles a d escrevem . N ão tem p or si mesma nenhum efeito p articu lar,
nenhuma consistência p olítica. Pode-se até duvidar de que chegue um
dia a ter esse efeito e essa consistência. Melh or aind a, os que levaram
essa dúvida a seu limite extrem o são os p artid ários mais resolu tos da
iguald ad e. Para que haja p olítica, é preciso que a lógica p olicial e a
lógica igu alitária tenham um p onto de encontro. Essa consistência da
igualdade vazia só pode ser ela mesma uma propried ad e vazia, com o
o é a liberd ad e dos atenienses. A possibilid ad e ou a im possibilid ad e
da p olítica joga-se aí. E tam bém aí que os esp íritos p ond erad os per-
dem seus referenciais: para eles, são as noções vazias de iguald ade e
de liberd ad e que impedem a p olítica. Ora, o p roblem a é estritam ente
o inverso: p ara que haja p olítica, é preciso que o vazio ap olítico da
igualdade de qu alqu er pessoa com qu alqu er pessoa produza o vazio
de uma propried ad e p olítica com o a liberd ad e do demos ateniense. É
uma suposição que se pode rejeitar. Analisei num ou tro trabalho a for-
ma pura dessa rejeição na obra d o teórico da iguald ad e das inteligên-
cias e da em ancip ação intelectu al, Josep h Ja co t o t 4 . Ele opõe rad ical-
mente a lógica da p ressu p osição igu alitária à da agregação d os cor-
pos sociais. Para ele sempre é possível fazer prova dessa igualdade sem
a qu al nenhu m a d esigu ald ad e pod e ser p ensad a, mas sob a estrita
cond ição de que essa prova seja sempre singu lar, que seja a cad a vez
a reiteração do puro traçad o de sua verificação. Essa prova sempre sin-
gular da iguald ade não pode consistir em nenhuma form a de víncu lo
social. A igualdade vira seu con trário, tão logo ela quer inscrever-se
num lugar da organização social e estatal. É assim que a em ancip a-
ção intelectu al não pode institu cionalizar-se sem tornar-se instru ção
do p ovo, isto é, organização de sua m inoria p erp étu a. Assim , os dois
p rocessos devem continu ar absolu tam ente estranhos um ao ou tro,
constitu ind o duas com unid ad es rad icalm ente d iferentes, mesmo que
sejam com p ostas pelos mesmos ind ivíd uos, a com u nid ad e das inteli-

4 J. Rancière, Le M aitre ignorant, Fayard , 1987.

12
Jacqu es Rancière
gências iguais e a dos corpos sociais agregados pela ficção desigualitária.
Eles nu nca pod em entrelaçar-se, a não ser transform and o a iguald ad e
em seu con trário. A iguald ade das inteligências, cond ição absolu ta de
tod a com u nicação e de tod a ord em social, não pod eria cau sar efeito
nessa ord em pela liberd ad e vazia de nenhum su jeito coletivo. Tod os
os ind ivíd uos de uma socied ad e pod em ser em ancip ad os. Mas essa
em ancipação — que é o nome mod erno do efeito de igualdade — nunca
prod u zirá o vazio de alguma liberd ad e p ertencente a um demos ou a
qu alqu er ou tro su jeito do mesmo tip o. N a ord em social, não p od eria
haver vazio. H á apenas o p leno, ap enas pesos e contrap esos. A p olíti-
ca não é, assim , o nom e de nad a. N ão pode ser ou tra coisa senão a
p olícia, isto é, a d enegação da iguald ad e. O p arad oxo da em ancip a-
ção intelectual nos permite pensar o nó essencial do logos com o d ano,
a fu nção constitu tiva do d ano para transform ar a lógica igualitária em
lógica p olítica. Ou a igualdade não cau sa nenhum efeito na ord em so-
cial. Ou cau sa efeito sob a form a esp ecífica do d ano. A "liberd ad e"
vazia que faz dos pobres de Atenas o su jeito p olítico demos não é ou tra
coisa senão o encontro das duas lógicas. N ão é ou tra coisa senão o
d ano que institui a com u nid ad e com o com u nid ad e do litígio. A p olí-
tica é a p rática na qu al a lógica do traço igu alitário assume a form a
do tratam ento de um d ano, onde ela se torna o argumento de um d ano
principiai que vem ligar-se a tal litígio d eterminad o na divisão das ocu -
p ações, das fu nções e dos lugares. Ela existe m ed iante su jeitos ou dis-
positivos de su bjetivação específicos. Estes medem os incomensuráveis,
a lógica do traço igu alitário e a da ord em p olicial. Fazem -no unind o
ao nome de tal grupo social o pu ro títu lo vazio da iguald ade de qu al-
quer pessoa com qu alqu er p essoa. Fazem -no sobre-im p ond o à ord em
p olicial que estru tu ra a com u nid ad e uma ou tra com u nid ad e que só
existe p or e para o con flito, uma com u nid ad e que é a do conflito em
torn o da p róp ria existência do com u m entre o que tem parcela e o que
é sem p arcela.
A p olítica é assu nto de su jeitos, ou m elhor, de m od os de sub-
jetivação. Por subjetivação vam os entend er a p rod u ção, por uma sé-
rie de atos, de uma instância e de uma cap acid ad e de enu nciação que
não eram id entificáveis num cam p o de exp eriência d ad o, cu ja id enti-
ficação p ortanto cam inha a par com a reconfigu ração do cam p o da
exp eriência. Form alm ente, o ego sum f ego existo cartesiano é o p ro-
tótip o desses sujeitos indissociáveis de uma série de operações implican-
do a p rod u ção de um novo cam p o de exp eriência. Tod a su bjetivação

11
C) Desentend im ento
política se parece com essa fórm u la. Ela é um nos sumus, nos existimus.
O que significa que o su jeito que ela faz existir tem nem mais nem me-
nos que a consistência desse con ju n to de op erações e desse cam p o de
exp eriência. A su bjetivação p olítica produz um m últiplo que não era
d ad o na constitu ição p olicial da com u nid ad e, um múltiplo cu ja con-
tagem se põe com o contrad itória com a lógica p olicial. Povo é o pri-
meiro desses m ú ltiplos que desunem a com unid ad e dela mesma, a ins-
crição p rim ária de um su jeito e de uma esfera de ap arência de su jeito
no fund o do qu al ou tros m od os de su bjetivação propõem a inscrição
de ou tros "existen tes", de ou tros su jeitos do litígio p olítico. Um mod o
de su bjetivação não cria su jeitos ex nihilo. Ele os cria transform and o
identidades definidas na ordem natural da rep artição das funções e dos
lugares em instâncias de exp eriência de um litígio. "O p er ár ios" ou
"m u lh eres" são id entid ad es ap arentem ente sem m istério. Tod o mun-
do vê de quem se trata. Ora, a su bjetivação p olítica arranca-os dessa
evid ência, colocand o a qu estão da relação entre um quem e um qual
na ap arente red u nd ância de uma p rop osição de existência. "M u lh er "
em p olítica é o su jeito de exp eriência — o su jeito d esnatu rad o, des-
fem inizad o — que mede a d istância entre uma p arcela reconhecid a —
o da com p lem entarid ad e sexu al — e uma au sência de p arcela. "O p e-
r á r io", ou m elhor "p r oletár io", é da mesma form a o su jeito que mede
a d istância entre a p arcela do trabalh o com o fu nção social e a ausên-
cia de parcela d aqueles que o execu tam na d efinição do com u m da co-
munid ad e. Tod a su bjetivação p olítica é a m anifestação de um afasta-
mento desse tip o. A bem conhecid a lógica policial que julga que os pro-
letários m ilitantes não são trabalhad ores mas d esclassificad os, e que
as m ilitantes dos d ireitos das mulheres são criatu ras estranhas a seu
sexo tem , afinal de contas, fu nd am ento. Tod a su bjetivação é uma desi-
d entificação, o arrancar à natu ralid ad e de um lu gar, a abertu ra de um
esp aço de su jeito ond e qu alqu er um pode contar-se p orqu e é o espa-
ço de uma contagem dos incontad os, do relacionam ento entre uma
p arcela e uma au sência de p arcela. A su bjetivação p olítica "p roletá-
r ia ", com o tentei m ostrá-lo em ou tro local, não é nenhuma form a de
"cu ltu r a", de ethos coletivo que ganharia voz. Ela pressu põe, ao con-
trário, uma m ultiplicid ad e de fratu ras que sep aram os corp os op erá-
rios de seu ethos e da voz que su postam ente exp rim e sua alm a, uma
m ultiplicid ad e de eventos de p alavra, quer d izer, de exp eriências sin-
gulares do litígio em torno da p alavra e da voz, em torn o da d ivisão
do sensível. A "tom ad a da p alavra" não é consciência e exp ressão de

12
Jacqu es Ran cière
um si mesmo que afirm a o seu p róp rio. Ela é ocu p ação do lugar ond e
o logos define ou tra natu reza que a phoné. Essa ocu p ação pressupõe
que d estinos de "trabalh ad ores" sejam de uma m aneira ou de ou tra
d esviad os p or uma exp eriência do p od er d os logoi na qual a revi-
vescência de antigas inscrições p olíticas pode com binar-se com o se-
gred o d escoberto do alexand rino. O anim al p olítico m od erno é antes
de tudo um animal literário, preso no circu ito de uma literaried ad e que
d esfaz as relações entre a ord em das p alavras e a ord em dos corp os
que d eterminavam o lugar de cad a um. Um a su bjetivação p olítica é o
produto dessas linhas de fratura múltiplas pelas quais indivíduos e redes
de indivíduos subjetivam a d istância entre sua cond ição de animais do-
tad os de voz e o encontro violento da iguald ad e do logos5.
A d iferença que a desordem p olítica vem inscrever na ord em p o-
licial pode p ortan to, em prim eira análise, exp rim ir-se com o d iferença
entre uma su bjetivação e uma id entificação. Ela inscreve um nome de
su jeito com o d iferente de tod a parte id entificad a da com u nid ad e. Esse
p onto pode ser ilu strad o p or um episód io histórico, uma cena de pa-
lavra que é uma das prim eiras ocorrências p olíticas do su jeito p role-
tário m od erno. Trata-se de um d iálogo exem p lar, ocasionad o pelo pro-
cesso movid o em 1832 contra o revolu cionário Auguste Blanqu i. Ins-
tad o pelo presid ente do tribu nal a d eclinar sua p rofissão, ele respon-
de sim plesm ente: "p r oletár io". A essa resp osta o presid ente objeta de
p ronto: "Isso não é p rofissão", para logo ouvir o acu sad o rep licar: "É
a p rofissão de trinta m ilhões de franceses que vivem de seu trabalh o e
que são privad os de seus d ireitos p olíticos"6 . O que faz o presid ente
p erm itir que o escrivão anote essa nova "p r ofissão". N essas duas ré-
plicas pode-se resumir tod o o conflito entre a p olítica e a p olícia. Tu d o
aí se liga à dupla acep ção de uma mesma p alavra, profissão. Para o
p rom otor, encarnand o a lógica p olicial, profissão significa ofício: a ati-
vidade que situa um corp o em seu lugar e em sua fu nção. Ora, está

5 Que é ao mesmo tem p o a perd a, a p assagem -p ara-além , no sentid o do


Untergang nietzschiano, foi o que tentei m ostrar em La N uit des prolétaires, Fay-
ard , 1981. Sobre a lógica dos acontecim entos de palavra, permito-me remeter tam -
bém a meu livro Les N oms de Vhistoire, Le Seuil, 1992. Essa noção me parece ter
relação com o que Jean-Lu c N ancy pensa sob a noção de "tom ad a de p alavra"
em Le sens du monde, Galilée, 1993.
6 Défense du citoyen Louis-A uguste Blanqui devant la Cour d' assises, Pa-
ris, 1832, p. 4.

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C) Desentend imento
claro que p roletário não designa nenhum ofício, qu and o m u ito um
estad o vagam ente d efinid o de trabalh ad or braçal miserável qu e, de
qu alqu er form a, não se aju sta ao acu sad o. Mas, com o p olítico revo-
lu cionário, Blanqu i dá à mesma palavra uma acep ção d iferente: uma
p rofissão é uma confissão, uma d eclaração de p ertencim ento a um co-
letivo. Só que esse coletivo tem uma natu reza bem p articu lar. A clas-
se dos p roletários na qual Blanqu i faz p rofissão de alinhar-se não é de
form a algum a id entificável a um grupo social. Os p roletários não são
nem os trabalhad ores braçais, nem as classes laboriosas. São a classe
dos incontad os que só existe na p róp ria d eclaração pela qu al eles se
contam com o os que não são contad os. O nom e p roletário não defi-
ne nem um conju nto de propried ad es (trabalhad or braçal, trabalho in-
d u strial, miséria etc.) que seriam igualmente d etid as p or uma multi-
d ão de ind ivíd uos, nem um corp o coletivo, que encarna um p rincíp io,
do qual esses indivíduos seriam os m em bros. Ele pertence a um pro-
cesso de su bjetivação que é id êntico ao p rocesso de exp osição de um
d ano. A su bjetivação "p roletária" d efine, numa sobre-im p ressão em
relação à m u ltid ão dos trabalhad ores, um su jeito do d ano. O que é
subjetivid ad e não é nem o trabalh o nem a m iséria, mas a pura conta-
gem dos incontad os, a d iferença entre a d istribu ição d esigualitária dos
corp os sociais e a igualdade dos seres falantes.
Essa é tam bém a razão pela qual o d ano exp osto no nome de pro-
letário não se id entifica de form a alguma à figura historicam ente da-
tad a da "vítim a u niversal" e a seu pathos esp ecífico. O d ano exp osto
pelo p roletariad o sofred or dos anos 1830 tem a mesma estru tu ra ló-
gica que o blaberon im p licad o na liberd ad e sem p rincíp ios desse de-
mos ateniense que se id entificava insolentem ente ao tod o da com u ni-
d ad e. Simplesmente essa estru tu ra lógica, no caso da d em ocracia ate-
niense, fu nciona sob sua form a elem entar, na unid ade im ed iata do
demos com o tod o e com o p arte. A d eclaração de p ertencim ento p ro-
letário, em contrap artid a, exp licita o afastam ento entre dois p ovos: o
da com u nid ad e p olítica d eclarad a e o que se define por ser exclu íd o
dessa com u nid ad e. "Demos" é o su jeito da id entid ade da p arte e do
tod o. "Pr oletár io", ao con trário, su bjetiva essa p arcela d os sem -par-
cela que torna o tod o d iferente de si m esm o. Platão insurgia-se contra
esse demos que é a contagem do incontável. Blanqu i inscreve, sob o
nome de p roletários, os incontad os no esp aço em que são contáveis
com o incontad os. A p olítica em geral é feita desses erros de cálculo, é
obra de classes que não são classes, que inscrevem sob o nom e p arti-

12
Jacqu es Rancière
cu lar de uma p arte excep cional ou de um tod o da com u nid ad e (os p o-
bres, o p roletariad o, o p ovo) o d ano que separa e reúne duas lógicas
heterogêneas da com u nid ad e. O conceito de d ano não se liga pois a
nenhuma d ram atu rgia de "vitim ização". Faz p arte da estru tu ra origi-
nal de tod a p olítica. O d ano é simplesmente o m od o de su bjetivação
no qual a verificação da iguald ade assume figura p olítica. H á p olítica
p or cau sa apenas de um universal, a igu ald ad e, a qual assume a figu-
ra específica do d ano. O d ano institu i um universal singu lar, um uni-
versal p olêm ico, vincu land o a ap resentação da iguald ad e, com o p ar-
te dos sem -p arte, ao conflito das p artes sociais.
O d ano fu nd ad or da p olítica é p ortanto de uma natu reza m u ito
p articu lar, que convém d istinguir das figuras às qu ais se costu m a assi-
m ilá-lo, fazend o assim d esaparecer a p olítica no d ireito, na religião ou
na gu erra. Distingu e-se antes de mais nad a do litígio ju ríd ico passível
de se objetivar com o relação entre p artes d eterm inad as, regulável p or
proced imentos ju ríd icos apropriad os. Isso se deve simplesmente ao fato
de que as partes não existem anteriorm ente à d eclaração do d ano. O
p roletariad o não tem , antes do d ano que seu nom e exp õe, nenhum a
existência com o p arte real da socied ad e. Assim , o d ano que ele exp õe
não pod eria ser regulad o sob a form a de um acord o entre p artes. Ele
não pode ser regulad o p orqu e os su jeitos que o d ano p olítico põe em
jogo não são entidades às quais ocorreria acid entalmente esse ou aquele
d ano, mas su jeitos, cu ja p róp ria existência é o m od o de m anifestação
desse d ano. A p ersistência desse d ano é infinita p orqu e a verificação
da iguald ad e é infinita e porqu e a resistência de tod a ord em p olicial a
essa verificação é p rincip iai. Mas, mesmo esse d ano que não é solu-
cionável, nem p or isso é intratável. Ele não se id entifica nem com a
gu erra inexpiável nem com a dívida irresgatável. O d ano p olítico não
se regula — p or objetivação do litígio e com p rom isso entre as p artes.
Mas é tratad o — p or d ispositivos de su bjetivação que o fazem consis-
tir com o relação m od ificável entre p artes, com o m od ificação mesmo
do terreno no qual o jogo é jogad o. Os incom ensu ráveis da iguald ade
dos seres falantes e da d istribu ição dos corp os sociais medem-se um
ao ou tro e essa medida influ encia essa p róp ria d istribu ição. Entre a
regu lação ju ríd ica e a dívida inexp iável, o litígio p olítico revela um in-
conciliável qu e, entretanto, é tratável. Só que esse tratam ento u ltra-
passa tod o d iálogo de interesses respectivos com o tod a recip rocid ad e
de d ireitos e de d everes. Ele passa pela constitu ição de su jeitos especí-
ficos que assumem o d ano, conferem -lhe uma figu ra, inventam suas

C) Desentend im ento 11
form as e seus novos nomes e cond uzem seu tratam ento numa m onta-
gem específica de demonstrações: de argumentos "lógicos" que são ao
mesmo tem p o reagenciam entos da relação entre a palavra e sua con-
tagem , da configu ração sensível que recorta os cam p os e os poderes
do logos e da phoné, os lugares do visível e do invisível, e articu la-os
na repartição das partes e das parcelas. Uma subjetivação política torna
a recortar o cam p o da exp eriência que conferia a cad a um sua id enti-
dade com sua p arcela. Ela d esfaz e recom p õe as relações entre os m o-
dos do fazer, os mod os do ser e os m od os do dizer que definem a or-
ganização sensível da com u nid ad e, as relações entre os espaços onde
se faz tal coisa e aqueles ond e se faz ou tra, as capacid ad es ligad as a
esse fazer e as que são requerid as para ou tro. Ela pergunta se o traba-
lho ou a m aternid ad e, por exem p lo, são assu nto privad o ou assu nto
social, se essa fu nção pública implica uma capacid ad e p olítica. Um su-
jeito p olítico não é um grupo que "tom a con sciên cia" de si, se dá voz,
impõe seu peso na socied ad e. E um op erad or que ju nta e separa as re-
giões, as id entid ad es, as fu nções, as cap acid ad es que existem na con-
figu ração da exp eriência d ad a, quer d izer, no nó entre as divisões da
ord em p olicial e o que nelas já se inscreveu com o iguald ad e, p or frá-
geis e fugazes que sejam essas inscrições. É assim , p or exem p lo, que
uma greve op erária, na sua form a clássica, pode ju ntar duas coisas que
não têm "n ad a a ver" uma com a ou tra: a igualdade p roclam ad a pe-
las Declarações dos Direitos do H om em e um obscu ro tóp ico de ho-
ras de trabalh o ou de regu lam ento da oficina. O ato p olítico da greve
é, então, constru ir a relação entre essas coisas que não têm relação, é
fazer ver ju n to, com o objeto do litígio, a relação e a não-relação. Essa
constru ção im p lica tod a uma série de d eslocam entos na ord em que
define a "p a r te" do trabalh o: ela pressupõe que uma m ultiplicid ad e
de relações de indivíduo (o empregad or) a indivíduo (cada um dos seus
empregad os) seja posta com o relação coletiva, que o lugar privad o do
trabalho seja p osto com o p ertencente ao cam p o de uma visibilid ad e
p ú blica, que o p róp rio estatu to da relação entre o ruído (das m áqu i-
nas, dos gritos ou dos sofrim entos) e a p alavra argu m entativa que
configu ra o lugar e a p arcela do trabalh o com o relação privad a seja
reconfigu rad o. Uma su bjetivação p olítica é uma cap acid ad e de pro-
duzir essas cenas polêm icas, essas cenas p arad oxais que revelam a con-
trad ição de duas lógicas, ao colocar existências que são ao mesmo tem-
po inexistências ou inexistências que são ao mesmo tempo existências.
Foi o que Jean n e Deroin fez de m aneira exem p lar qu and o, em 1849,

12 Jacqu es Rancière
se cand id atou a uma eleição legislativa à qual não p od ia cand id atar-
se, isto é, d em onstrand o a contrad ição de um su frágio universal que
exclu ía o seu sexo dessa universalid ad e. Ela se m ostra e m ostra o su-
jeito "a s m u lheres" com o necessariam ente incluíd o no povo francês
soberano que goza d o su frágio universal e da iguald ade de tod os pe-
rante a lei e ao mesmo tem p o com o rad icalm ente exclu íd o. Essa de-
m onstração não é apenas a denúncia de uma inconseqüência ou de uma
m entira do u niversal. É tam bém a encenação da contrad ição mesma
da lógica p olicial e da lógica p olítica que está no cerne da d efinição
rep u blicana de com u nid ad e. A d em onstração de Jean n e Deroin não é
p olítica no sentid o em que d iria que o lar e a d om esticid ad e são tam -
bém coisa "p olítica". O lar e o esp aço d om éstico não são mais p olíti-
cos em si mesmos que a ru a, a fábrica ou a ad m inistração. Sua demons-
tração é política porque evidencia o extraord inário im bróglio que m ar-
ca a relação republicana entre a parcela das mulheres e a d efinição mes-
m a do com u m da com u nid ad e. A rep ú blica é, ao mesmo tem p o, o re-
gime fund ad o numa d eclaração igu alitária que não conhece d iferença
de sexos e a idéia de uma com p lem entarid ad e das leis e dos costu m es.
Segund o essa com p lem entarid ad e, a p arcela das mulheres é a dos cos-
tumes e da ed u cação pelos quais se form am os espíritos e corações dos
cid ad ãos. A mulher é m ãe e ed u cad ora, não som ente dos fu tu ros ci-
d ad ãos que são seus filhos mas tam bém , e p articu larm ente p ara a mu-
lher p obre, de seu m arid o. O espaço d om éstico é assim ao mesmo tem -
po o espaço privad o, separad o do espaço da cid ad ania, e o espaço com -
preend id o na com p lem entarid ad e das leis e dos costu m es pelos quais
se d efine a realização da cid ad ania. A ap arição indevida de uma mu-
lher na cena eleitoral transform a em m od o de exp osição de um d ano,
no sentid o lógico, esse topos rep u blicano das leis e d os costu m es que
envolve a lógica p olicial na d efinição do p olítico. Constru ind o a uni-
versalid ad e singu lar, p olêm ica, de uma d em onstração, ela faz o uni-
versal da rep ú blica ap arecer com o universal p articu larizad o, torcid o
em sua p róp ria d efinição pela lógica p olicial das fu nções e das p arce-
las. Isso quer d izer, inversam ente, que ela transform a em argu m entos
do nos sumos, nos existimus fem inino tod as essas fu nções, "p rivilégi-
os" e capacid ad es que a lógica p olicial, assim p olitizad a, atribui às mu-
lheres m ães, ed u cad oras, cu rad oras e civilizad oras da classe dos cid a-
d ãos legislad ores.
É assim que o relacionar duas coisas sem relação torna-se a me-
d id a do incom ensu rável entre duas ord ens: a da d istribu ição desi-

11
C) Desentend im ento
gu alitária dos corp os sociais numa d ivisão do sensível e a da cap aci-
dade igual dos seres falantes em geral. Trata-se, m esm o, de incom en-
suráveis. Mas esses incom ensu ráveis estão bem medidos um no ou-
tro. E essa medida refigura as relações das p arcelas e das p artes, os
objetos passíveis de p rovocar litígio, os su jeitos capazes de articu lá-
lo. Ela prod u z, ao mesmo tem p o, inscrições novas da igualdade em
liberd ad e e uma esfera de visibilid ad e nova p ara ou tras d em onstra-
ções. A p olítica não é feita de relações de p od er, é feita de relações
de m u nd os.

12
Jacqu es Rancière
A RAZÃO DO DESEN TEN DIM EN TO

O incomensurável que funda a política não se identifica então com


nenhuma "irracion alid ad e". É antes a p róp ria medida da relação en-
tre um logos e a alogia que ele d efine — no duplo sentid o da alogia
qu e, no grego de Platão e de Aristóteles, significa duas coisas: a ani-
malid ad e da criatu ra cond enad a apenas ao ruíd o do prazer e da d or,
mas tam bém a incom ensu rabilid ad e que separa a ord em geom étrica
do bem da simples aritm ética das trocas e das rep arações. H á, de fato,
uma lógica da p olítica. Mas essa lógica deve ser fund ad a na dualidade
mesma do /ogos, p alavra e contagem da p alavra, e deve ser referid a à
fu nção esp ecífica dessa lógica: torn ar m anifesta (delun) uma aisthesis
que o ap ólogo ballanchiano nos m ostrou ser o lugar de uma d ivisão,
de uma com u nid ad e e de uma sep aração. Perd er de vista essa dupla
especificid ad e do "d iálogo" p olítico é encerrar-se em falsas alternati-
vas que exigem uma escolha entre as luzes da racionalid ad e com u ni-
cativa e as trevas da violência originária ou da d iferença irred utível.
A racionalid ad e p olítica só é pensável de m aneira precisa se for isola-
da da alternativa em que um certo racionalism o qu er enclau su rá-la:
ou a troca entre p arceiros que colocam em d iscussão seus interesses
ou norm as, ou a violência do irracional.
Colocar u m a altern ativa com o essa é p ressu p or, um p ou co
apressadamente, com o certo aquilo que está em questão: a id entificação
da d iscussão d istintiva da racionalid ad e p olítica e de sua manifestação
do ju sto e do inju sto com uma certa situ ação do ato de p alavra. Id en-
tifica-se assim a racionalid ad e do d iálogo com a relação de locu tores
que se dirigem um ao ou tro, no m od o gram atical da primeira e da se-
gunda p essoa, p ara con fron tar seus interesses e sistemas de valores e
testar sua valid ad e. Tom a-se facilm ente demais com o certo que isso
constitu a uma d escrição exata das form as do logos p olítico racional e
que p or isso seja deste m od o que a ju stiça abre seu cam inho nas rela-
ções sociais: pelo encontro de p arceiros qu e, num mesmo movimen-
to, entend em um enu nciad o, com preend em o ato que o fez enu nciar e

11
C) Desentend im ento
tom am a seu cargo a relação intersubjetiva que sustenta essa compreen-
são. Assim, a pragm ática da linguagem em geral (as cond ições necessá-
rias p ara que um enu nciad o faça sentid o e efeito para quem o emite)
forneceria o telos da troca razoável e ju sta.
Será que é assim que o logos circu la nas relações sociais e nelas
se efetu a: nessa id entid ad e da com p reensão e da intercom p reensão?
Pode-se resp ond er, é claro, que tal id entificação é uma antecip ação,
que ela deve antecip ar uma situ ação id eal, aind a não d ad a, da inter-
locu ção. Conced am os que uma ilocu ção bem-sucedid a antecip a, sem-
pre, uma situ ação de p alavra que aind a não é d ad a. Mas d isto não se
segue, de form a alguma, que o vetor dessa antecip ação seja a identida-
de entre com p reend er e com p reend er. É, ao con trário, a d istância en-
tre duas acep ções de "com p reen d er" que institui a racionalid ad e da
interlocu ção p olítica e fund a o tip o de "su cesso" que lhe é p róp rio:
não o acord o dos p arceiros sobre a rep artição optim al das p arcelas,
mas a m elhor m anifestação da d ivisão. O uso corrente basta de fato
para nos instru ir sobre um fato de linguagem singular: as exp ressões
que contêm o verbo "com p reen d er" contam entre as exp ressões que
devem mais freqü entem ente ser interp retad as de maneira não literal,
e m esm o, o m ais das vezes, ser entend id as estritam ente com o antí-
frases. N o uso social com u m , uma exp ressão com o "Você me com -
p reend eu ?" é uma falsa interrogação cu jo conteú d o afirm ativo é o se-
guinte: "Você não tem nada para com preend er, você não precisa com -
p reen d er", e m esm o, eventu alm ente: "Você não tem con d ições de
com p reend er. Você só tem que obed ecer." Assim , "Você me com -
p reend eu " é uma exp ressão que nos diz que ju stam ente "com p reen -
d er" quer dizer duas coisas d iferentes, senão op ostas: com p reend er
um p roblem a e com preend er uma ord em . N a lógica p ragm ática, o lo-
cu tor é obrigad o, para o sucesso de sua p róp ria performance, a sub-
m etê-la a cond ições de valid ad e que dependem da intercom p reensão.
Caso con trário, cai na "con trad ição p erform ativa", que arru ina a
força de seu enu nciad o. Ora, "Você me com p reend eu ?" é um p erfor-
m ativo que zom ba da "con trad ição p erform ativa", p orqu e sua per-
formance p róp ria, sua m aneira de se fazer com p reend er, é traçar a
linha de d em arcação entre d ois sentid os da mesma palavra e duas ca-
tegorias de seres falantes. Esse p erform ativo dá a entend er àqueles a
quem se dirige que existem pessoas que com preend em os p roblem as
e pessoas que devem compreend er as ordens que as primeiras lhes d ão.
É um d esignad or da d ivisão do sensível que op era, sem ter de con-

12
Jacqu es Rancière
ceitu alizá-la, a d istinção aristotélica entre os que têm apenas a ais-
thesis do logos e os que têm a hexis1.
Dizer isso não é invocar a fatalidade de uma lei do poder que sempre
selaria, por anteced ência, a língua da com u nicação e m arcaria com sua
violência tod a racionalid ad e argu m entativa. É d izer, ap enas, que essa
racionalid ad e p olítica da argu m entação nunca pode ser a mera exp li-
citação do que falar quer dizer. Su bm eter os enu nciad os às cond ições
de sua validad e é colocar em litígio o m od o com o cad a uma das p artes
p articip a do logos. Um a situ ação de argu m entação p olítica deve sem-
pre ser ganha da d ivisão p reexistente, e constantem ente reprod u zid a,
entre uma língua dos p roblem as e de uma língua das ord ens. O engano
do "Você me com p reend eu " não é a noite do pod er em que as cap aci-
dades da argu m entação d esapareceriam — e em p articu lar as da argu-
m entação do d ireito. Mas ela obriga a tornar a cena mais com p lexa.
Assim , a resp osta ao "Você me com p reend eu ?" vai necessariam ente
d esm u ltiplicar-se. O d estinatário dessa ilocu ção vai realm ente resp on-
der refletind o, em vários níveis, o enu nciad o e seu duplo sentid o. Vai
resp ond er, num p rim eiro nível: "Com p reend em os vocês, já que com -
p reend em os." O que quer dizer: "já que com p reend em os suas ord ens,
compartilhamos com vocês o mesmo poder de com p reend er." Mas, num
segundo grau , essa tau tologia se com p lica exatam ente pelo evid enciar
— colocar num com u m litigioso — da d istância pressuposta pela ques-
tão: a d istância entre língua das ord ens e língua dos p roblem as, que é
tam bém a d istância interna do logos: a que separa a com p reensão de
um enu nciad o e a com p reensão da contagem da p alavra de cad a um
que ela im p lica. A resp osta vai então com p licar-se dessa form a: "Com -
preend emos o que você diz qu and o diz Você me com p reend eu ?'. Com -
preend emos que qu and o diz 'você me com p reend eu ', diz na verd ad e:
'n ão precisa me com p reend er, não têm com o me com p reend er, et c.'".
Mas essa com p reensão de segundo grau pode ela mesma ser com -
preend id a e universalizad a de duas m aneiras op ostas, dependendo da
m aneira com o ela articu la a com u nid ad e e a não-com u nid ad e impli-
cad as pelo afastam ento da cap acid ad e falante e da contagem da p ala-
vra. A prim eira m aneira coloca essa contagem em p osição de inter-
p retante último do sentid o do enu nciad o. Ela se resumirá p ortanto as-
sim: "Com p reend em os que vocês utilizam o meio da com u nicação para
nos im p or sua linguagem . Com p reend em os que vocês mentem ao co-

1 Cf. Aristóteles, Política, I, 1254 b 22, com entad o acim a.

11
C) Desentend im ento
locar com o língua com u m a língua de suas ord ens. Com p reend em os,
em sum a, que tod o universal da língua e da com u nicação é apenas um
logro, que há tão-som ente id iomas de pod er e que d evemos, nós tam -
bém , forjar o n osso". A segunda m aneira raciocinará de form a inver-
sa, fazend o da com unid ad e (de cap acid ad e) a razão última da não-co-
munidade (da contagem ): "Com preend em os que vocês querem d eclarar
a nós que existem duas línguas e que não pod em os com p reend er vo-
cês. Percebem os que vocês fazem isso p ara dividir o mund o entre os
que m and am e os que obed ecem . Dizem os, ao con trário, que há uma
ú nica linguagem que nos é com u m e que conseqü entem ente nós com -
preendemos vocês mesmo que vocês não o qu eiram . Enfim , com preen-
demos que vocês mentem ao negar que existe uma linguagem com u m ".
A resp osta à falsa pergunta "Você me com p reend eu ?" implica
p ortanto a constitu ição de uma cena de p alavra específica em que se
trata de constru ir uma ou tra relação, ao exp licitar a p osição do enun-
ciad or. O enu nciad o assim com p letad o vê-se então extraíd o da situa-
ção de p alavra em que fu ncionava de m aneira natu ral. É colocad o
numa ou tra situ ação em que não fu nciona m ais, em que é objeto de
exam e, entregue ao estatu to de enu nciad o de uma língua com u m . É
nesse esp aço do com entário que objetiva e universaliza o enu nciad o
"fu n cion al" que as pretensões de valid ade desse enu nciad o são rad i-
calm ente p ostas à p rova. N a institu ição do com u m litigioso p róp rio
da p olítica, o cum do comentário que objetiva o afastam ento d o logos
de si m esm o, no afastam ento p olêm ico de uma primeira e de uma ter-
ceira p essoas, não se separa realm ente d aquele da comunicação entre
uma prim eira e uma segunda pessoa. Sem dúvida é a d esconfiança em
relação a essa red ução das pessoas que contraria os esforços feitos por
Juergen H aberm as para distinguir a racionalid ad e argumentativa cria-
d ora de com unid ad e e a simples d iscussão e com p osição dos interes-
ses p articu lares. Em O discurso filosófico da modernidade, ele censu -
ra aqu eles a quem com bate p or tom arem na cena argu m entativa e
com u nicacional o p onto de vista do observad or, da terceira p essoa,
que congela a racionalid ad e com u nicativa, cu jo trabalho se op era no
jogo de uma prim eira pessoa empenhad a em assumir o p onto de vista
da segunda p essoa 2. Mas tal op osição bloqu eia a racionalid ad e ar-

2 "Sob o olhar da terceira pessoa, esteja esse olhar voltad o para o exterior
ou para o interior, tudo se congela em objeto", Le Discours philosophique de la
modernité, Gallim ard , 1988, p. 352.

12
Jacqu es Rancière
gu m entativa da d iscu ssão p olítica na mesma situ ação de palavra que
ele quer u ltrap assar: a simples racionalid ad e do d iálogo dos interes-
ses. Desconhecend o essa d esm u ltip licação das pessoas que se liga à
d esm u ltip licação do logos p olítico, ela esquece tam bém que a terceira
pessoa é tanto uma pessoa de interlocu ção direta e indireta quanto uma
pessoa de observação e de objetivação. Ela esquece que se fala corren-
tem ente com os p arceiros na terceira p essoa, não só nas fórm u las de
tratam ento de várias línguas, mas em tod a parte ond e se trata de pôr
a relação entre os interlocu tores com o o p róp rio cerne da situ ação de
interlocu ção. N osso teatro resume esse jogo em alguns d iálogos exem -
p lares, com o o do cozinheiro/cocheiro de H arp agon e seu intend ente:

— Mestre Jacqu es está se fazend o de inteligente!


— O sen h or intend ente faz-se de necessário!"*

Esses conflitos de teatro que são conflitos de d omesticid ade mos-


tram bem o vínculo entre a "terceira pessoa de tratam en to" e essa ter-
ceira pessoa de id entificação que institu cionaliza o conflito social, a
do representante op erário que d eclara: "O s trabalhad ores não aceita-
rão et c.". Pecam os contra a lógica do jogo das pessoas aqui implicada
se rep ortam os essa terceira pessoa enunciad a por uma primeira pes-
soa seja ao p rocesso natu ral — p rocesso "an im al" — da aisthesis de
um corp o coletivo que ganha voz, seja ao engano de uma id entifica-
ção com um corp o coletivo impossível ou ausente. Os jogos da terceira
pessoa são essenciais p ara a lógica da d iscussão p olítica. Esta não é
nu nca, p recisam ente, um simples d iálogo. É, sem pre, menos e m ais. É
m enos, porqu e é sempre sob a form a de m onólogo que o litígio se de-
clara, o afastam ento do logos de si m esm o. É mais porque o com en-
tário institu i uma d esm u ltip licação das pessoas. Nesse jogo, o "eles"
exerce uma trip la fu nção. Prim eiro, designa o ou tro com o aquele com
o qual está em d ebate não somente um conflito de interesses com o tam -
bém a própria situação dos interlocutores com o seres falantes. Segundo,
d irige-se a uma terceira pessoa p ara ju nto à qual ele leva, virtualm en-
te, essa qu estão. Terceiro, institui a primeira pessoa, o "eu " ou o "n ó s"
do interlocu tor com o representante de uma com u nid ad e. É o conju n-
to desses jogos que em p olítica quer dizer "op in ião p ú blica". Um a

* O avarento, Molière. (N . da T.)

O Desentend imento 59
op inião p ú blica política — d istinta da gestão p olicial dos p rocessos
estatais de legitim ação — não é antes de m ais nad a a rede d os espíri-
tos esclarecid os que d iscutem p roblem as com u ns. É, antes, uma opi-
nião eru d ita de tip o p articu lar: uma op inião que ju lga a p róp ria m a-
neira com o as pessoas se falam e com o a ord em social está ligad a ao
fato de falar e à sua interp retação. Por aí, pod e-se com p reend er o laço
histórico entre a fortu na de alguns criad os de com éd ia e a form ação
da p róp ria idéia de op inião p ú blica.
N o âm ago de tod a argu m entação e de tod o litígio argu m entativo
p olíticos, há uma querela p rim eira que incid e sobre aqu ilo im p licad o
pelo entend im ento da linguagem. Certam ente, tod a interlocu ção su-
põe uma com p reensão de um conteú d o da ilocu ção. Mas qu e essa
com p reensão pressuponha um telos da intercom p reensão, eis a ques-
tão litigiosa. Por "qu estão litigiosa" se qu er dizer duas coisas. Primei-
ram ente, há aí uma p ressu p osição que aind a tem os de p rovar. Mas,
tam bém , é p recisam ente este o litígio p rim eiro que está em jogo p or
trás de tod o litígio argu m entativo p articu lar. Tod a situ ação de inter-
locu ção e de argu m entação está de saíd a fragm entad a pela qu estão li-
tigiosa — irresolvid a e conflitu osa — de saber o que se deduz do en-
tend im ento de uma linguagem .
Desse entend im ento, com efeito, pod e-se deduzir alguma coisa
ou então nad a. Do fato de uma ord em ser com preend id a p or um infe-
rior pod e-se deduzir simplesmente que essa ord em foi bem d ad a, que
quem ord ena teve pleno sucesso no seu trabalho p róp rio e conseqü en-
tem ente quem recebe a ord em execu tará bem o seu trábalh o que é um
p rolongam ento d aqu ele, de acord o com a d ivisão entre a simples ais-
thesis e a plenitud e da hexis. Mas tam bém se pode deduzir uma con-
seqüência totalm ente d esconcertante: se o inferior com preend eu a or-
dem do su p erior, é que ele p articip a da mesma com u nid ad e dos seres
falantes, que é, nisso, seu igu al. Ded uz-se d aí, em sum a, que a desi-
gualdade d os níveis sociais só fu nciona p or cau sa da p róp ria iguald a-
de dos seres falantes.
Essa d ed u ção é, no sentid o p róp rio do term o, d esconcertante.
Qu and o nos lem bram os de fazê-la, de fato, já havia m uito tem p o que
as socied ad es giravam . E giram em torn o da idéia de que o entend i-
m ento da linguagem não tem conseqü ência p ara a d efinição da ord em
social. Elas and am com suas fu nções e suas ord ens, suas rep artições
das p arcelas e das p artes, com base na idéia que parece confirm ad a
pela lógica mais simples, ou seja, de que a desigualdad e existe em vir-

12
Jacqu es Ran cière
tude da d esiguald ad e. A conseqü ência disso é que a lógica do enten-
dimento "n orm alm en te" só se apresenta sob a forma do p arad oxo des-
concertante e do conflito interminável. Dizer que há uma cena comum
da p alavra porque o inferior entend e o que diz o su p erior só é possí-
vel med iante a institu ição de um d iscord e, de um enfrentam ento de
princípio entre dois cam pos: há os que pensam que existe entendimento
no entend imento, isto é, que tod os os seres falantes são iguais enquanto
seres falantes. E há os que não pensam assim . Mas o p arad oxo reside
no seguinte: os que pensam que existe entend im ento no entend im en-
to precisamente só podem fazer valer essa d ed ução a não ser sob a for-
ma do con flito, do d esentend im ento, já que devem fazer ver uma con-
seqüência que nad a d eixa ver. Por esse fato, a cena p olítica, a cena de
comunid ad e p arad oxal que põe em com u m o litígio, não pod eria iden-
tificar-se com um m od elo de com u nicação entre p arceiros constitu í-
dos sobre objetos ou fins pertencentes a uma linguagem com u m . Isso
não implica remetê-la a uma incomunicabilid ad e das linguagens, a uma
im possibilid ad e de entend im ento ligad a à heterogeneid ad e dos jogos
de linguagem. A interlocu ção p olítica sempre m isturou os jogos de lin-
guagem e os regimes de frases e sempre singularizou o universal em
seqüências d em onstrativas feitas do encontro dos heterogêneos. Com
jogos de linguagem e regimes de frases heterogêneos, sempre se cons-
tru íram intrigas e argu m entações com p reensíveis. Porqu e o p roblem a
não é se entend erem pessoas que falam , no sentid o p róp rio ou figu ra-
d o, "língu as d iferen tes", nem rem ed iar "p an es da lingu agem " pela
invenção de linguagens novas. O p roblem a está em saber se os su jei-
tos que se fazem con tar na interlocu ção "s ã o " ou "n ã o sã o ", se falam
ou prod uzem ru íd o. Está em saber se cabe ver o objeto que eles desig-
nam com o o objeto visível do conflito. Está em saber se a linguagem
com u m na qual exp õem o d ano é, realm ente, uma linguagem com u m .
A qu erela não tem p or objeto os conteú d os de linguagem mais ou me-
nos transp arentes ou op acos. Incid e sobre a consid eração dos seres fa-
lantes com o tais. E p or isso que não se trata de op or uma era mod er-
na do litígio, ligada à grand e narrativa de ontem e à d ram atu rgia da
vítim a universal, a uma era m od erna do d iferend o, ligada ao esface-
lam ento contem p orâneo dos jogos de linguagem e d os pequenos con-
tos 3 . A heterogeneid ad e dos jogos de linguagem não é um d estino das

3 Cf. J.-F. Lyotard , Le Différend, Minu it, 1983.

C) Desentend imento 11
socied ad es atu ais que viria suspender a grand e narrativa da p olítica.
Ela é, ao con trário, constitu tiva da p olítica, é o que a separa da igual
troca ju ríd ica e com ercial de um lad o, da alterid ad e religiosa ou guer-
reira de ou tro.
Tal é o sentid o da cena no Aventino. Essa cena excep cional não
é apenas uma "n arrativa de origem ". Essa "or igem " não p ára de re-
p etir-se. A narrativa de Ballanche ap resenta-se sob a form a singular
de uma p rofecia retrosp ectiva: Um m om ento da história rom ana é
reinterpretad o de m aneira a transform á-lo em p rofecia do d estino his-
tórico dos povos em geral. Mas essa p rofecia retrosp ectiva é tam bém
uma antecip ação do fu tu ro im ed iato. O texto de Ballanche aparece
na Revue de Paris entre a prim avera e o ou tono de 1830. Entre essas
duas d atas estou ra a revolu ção parisiense de ju lho, que p ara m uitos
p arece a d em onstração hic et nunc dessa "fórm u la geral de tod os os
p ovos" de que falava Ballanche. E essa revolu ção é seguida por tod a
uma série de m ovim entos sociais que afetam exatam ente a mesma
form a de seu relato. O nom e dos atores, do cenário e dos acessórios
pode m u d ar. Mas a fórm u la é a mesma. Ela consiste em criar, em tor-
no de tod o conflito singu lar, uma cena ond e se põe em jogo a igual-
dade ou desigualdad e dos p arceiros do conflito enqu anto seres falan-
tes. Sem d úvid a, na ép oca em que Ballanche escreve seu ap ólogo, não
se diz m ais que os equ ivalentes dos plebeu s antigos, os p roletários
m od ernos, não são seres falantes. Sim plesm ente, pressupõe-se que o
fato de falarem não tem relação com o fato de trabalharem . N ão se
precisa exp licitar a não-conseqü ência, basta que não se veja a conse-
qü ência. Os que fazem fu ncionar a ord em existente, com o p atrões,
magistrad os ou governantes, não vêem a conseqü ência que leva de um
term o ao ou tro. N ão vêem o meio term o entre duas id entid ad es que
poderia reunir o ser falante, que com -p artilha uma linguagem com u m ,
e o op erário que exerce uma p rofissão d eterm inad a, é em p regad o
numa fábrica ou trabalha p ara um fabricante. Eles não vêem , conse-
qü entem ente, com o a p arcela recebid a p or um op erário sob o nom e
de salário pod eria tornar-se uma qu estão da com u nid ad e, objeto de
uma d iscu ssão p ú blica.
A qu erela tem p or objeto, p ortan to, sempre a qu estão pré-ju d i-
cial: o mund o com u m de uma interlocu ção sobre esse assu nto cabe ser
constitu íd o? E o d esentend im ento que se instala nos anos que se se-
guem ao ap ólogo de Ballanche, esse d esentend im ento que se cham ará
m ovim ento social ou m ovim ento op erário, consistiu em dizer que esse

12 Jacqu es Rancière
mund o com u m existia; que a qualid ad e com u m ao ser falante em ge-
ral e ao op erário empregad o em tal fu nção d eterm inad a existia; e que
essa qualid ad e com u m era tam bém com u m aos op erários e a seus em-
p regad ores, que era a sua p ertença a uma mesma esfera de com u nid a-
de já reconhecid a, já escrita — mesmo que fosse em inscrições id eais
e fugazes: a da d eclaração revolu cionária da iguald ad e, em d ireito, dos
hom ens e dos cid ad ãos. O d esentend im ento d estinad o a p ôr em ato o
entend im ento consistiu no seguinte: afirm ar que a inscrição da igual-
dade sob a form a de "igu ald ad e dos hom ens e dos cid ad ãos" p erante
a lei d efinia uma esfera de com u nid ad e e pu blicid ad e que incluía os
"assu n tos" do trabalh o e d eterminava o espaço de seu exercício com o
dependente da d iscu ssão p ú blica entre su jeitos esp ecíficos.
Ora, essa afirm ação implica uma cena de argu m entação m u ito
singular. O sujeito op erário que nela se d eixa contar com o interlocu tor
deve fazer como se a cena existisse, com o se houvesse um mundo co-
mum de argu m entação, o que é em inentem ente razoável e em inente-
mente d esarrazoad o, eminentemente com portad o e eminentemente sub-
versivo, já que esse mund o não existe. As greves desse tem p o tiram da
exasp eração desse p arad oxo sua estrutura discursiva singular: aplicam-
se a m ostrar que é realm ente enqu anto seres falantes racionais que os
op erários fazem greve, que o ato que os faz p arar ju ntos o trabalho
não é um ruído, uma reação violenta a uma situ ação p enosa, mas que
exp rim e um logos, o qual não é apenas o estad o de uma relação de
forças mas constitu i uma demonstração de seu d ireito, uma manifes-
tação do ju sto que pod e ser com p reend id o pela ou tra p arte.
Os m anifestos op erários desse tem p o ap resentam assim uma no-
tável estru tu ração d iscu rsiva, cu jo p rim eiro elem ento pod e ser assim
esqu em atizad o: "Eis nossos argu m entos. Vocês p od em , ou , m elhor,
"eles" podem reconhecê-los. Qu alqu er um pode recon h ecê-los": de-
m onstração d irigid a ao mesmo tem p o ao "eles" da op inião p ú blica e
ao "eles" que lhe é assim d esignad o. É claro, esse reconhecim ento não
ocorre, porque o que ele mesmo pressupõe não é reconhecid o, ou seja,
que h aja um mund o com u m , sob a form a de um esp aço p ú blico em
que d ois grupos de seres falantes, os chefes e os op erários, trocariam
seus argu m entos. Ora, o mundo do trabalho é su p ostam ente um uni-
verso privad o em que um indivíduo p rop õe cond ições a n ind ivíd uos
qu e, cad a um p or sua con ta, as aceitam ou recu sam . Os argu m entos,
p or consegu inte, não podem mais ser recebid os, já que são d irigid os
p or su jeitos que não existem a su jeitos que tam p ou co existem , a p ro-

11
C) Desentend im ento
p ósito de um objeto com u m igualmente inexistente. En tão o que há é
apenas uma revolta, um ruíd o de corp os irritad os. E basta esperar que
pare ou pedir à au torid ad e que o faça p arar.
A estru tu ração d iscursiva do conflito enriquece-se então de um
segund o elem ento, de um segundo m om ento que se enu ncia assim :
"Tem os razão de argu m entar em favor de nossos d ireitos e de colo-
car, assim , a existência de um mundo com u m de argu m entação. E te-
mos razão de fazê-lo, exatam ente p orqu e os que deveriam reconhecê-
lo não o fazem, pois agem com o pessoas que ignoram a existência desse
mund o com u m ". E nesse segundo m om ento da estru tu ra argumen-
tativa que a fu nção objetivante do com entário desempenha um papel
essencial. Os m anifestos op erários da ép oca com entam a palavra dos
chefes que só se exerce p ara cham ar a repressão dos pod eres p ú blicos,
a p alavra dos m agistrad os que cond enam e a dos jornalistas que co-
m entam , para d em onstrar que seus p rop ósitos vão ao encontro da evi-
dência de um mundo com u m da razão e da argu m entação. Dem ons-
tram assim que as falas dos chefes ou dos m agistrad os, que negam aos
op erários o d ireito de greve, são uma confirm ação desse d ireito, já que
tais falas implicam uma não-com u nid ad e, uma desigualdade que é im-
possível, contrad itória. Se a "con trad ição p erform ativa" pode inter-
vir aqu i, é no cerne dessa cena argu m entativa que deve prim eiram en-
te ignorá-la, p ara evid enciar sua ignorância.
Vejam os, então, uma situ ação de d esentend im ento desse tip o,
trad u z em um conflito op erário a cena ballanchiana. A argu m enta-
ção situa p rim eiram ente, p ara uso da terceira pessoa da op inião pú-
blica, a cena do d esentend im ento, ou seja, a própria qu alificação da
relação entre as partes: ruído da revolta ou palavra que exp õe o d ano.

Esses senhores nos tratam com d esprezo. Pedem ao


pod er que nos persiga; ousam nos acu sar de revolta. Mas
seríamos nós seus escravos? Revolta! quand o pedimos o au-
m ento de nossa p aga, qu and o nos associam os p ara abolir
a exp loração de que som os vítim as, p ara reduzir as agru-
ras de nossa con d ição! N a verd ad e, há impud or nessa pa-
lavra. Ela só ju stifica a d eterm inação que tom am os. 4

4 "Rép on se au manifeste des maitres tailleu rs", La Tribune politique et lit-


téraire, 7 de novembro de 1833 (sublinhad o no texto).

12
Jacqu es Rancière
O tom da carta dos chefes que qu alifica a m anifestação grevista
de revolta ju stifica essa m anifestação, já que m ostra que os chefes não
falam d aqueles que empregam com o seres falantes unid os a eles p elo
entend im ento da mesma linguagem , mas com o anim ais baru lhentos
ou escravos capazes apenas de com p reend er ord ens, já que ela m os-
tra assim que a não-consid eração im plicad a em sua m aneira de falar
é um não-d ireito. Estand o então arm ad a a cena do d esentend im ento,
é possível argu m entar como se estivesse ocorrend o essa d iscussão en-
tre p arceiros que é recusad a pela ou tra p arte, em su m a, estabelecer,
p or raciocínio e cálcu lo, a valid ad e das reivind icações op erárias. Um a
vez estabelecid a essa d em onstração do "d ireito" dos grevistas, é p os-
sível acrescentar-lhe uma segunda, tirad a exatam ente da recusa de levar
em consid eração esse d ireito, de acolhê-lo com o uma palavra que conte.

Será que aind a é p reciso uma prova de nosso d ireito?


Vejam o tom da carta desses senhores (...) E em vão que
term inam faland o em m od eração: já os com p reend em os.5

Esse "já os com p reend em os" resume bem o que é com p reend er,
numa estrutura política de desentendimento. Essa compreensão implica
uma estru tu ra de interlocu ção com p lexa que reconstitu i, duas vezes,
uma cena de com u nid ad e duas vezes negad a. Mas essa cena de com u -
nidade só existe na relação de um "n ó s" com um "eles". E essa rela-
ção é tam bém de fato uma não-relação. Ela inclui por duas vezes na
situ ação de argu m entação aquele que lhe recusa a existência — e que
é ju stificad o, pela ord em existente das coisas, em recusar sua existên-
cia. Ela o inclui uma prim eira vez, sob a su p osição de que está de fato
com p reend id o na situ ação, de que é cap az de entend er o argu m ento
(e que aliás o entend e, já que não encontra nada para lhe respond er).
Ela o inclui ali com o a segunda pessoa im plícita de um d iálogo. E ela
o inclui uma segunda vez na d em onstração do fato de que ele se sub-
trai a essa situ ação, de que não quer entend er o argu m ento, op erar as
nom eações e as d escrições ad equ ad as a uma cena de d iscussão entre
seres falantes.
Em tod a d iscussão social em que há efetivam ente algo a d iscu tir
é essa a estru tu ra que está im p lícita, essa estru tu ra na qual o lu gar, o

5 "Rép onse au manifeste (...)", op. cit.

11
O Desentend imento 101
objeto e os su jeitos da d iscussão estão, eles p róp rios, em litígio e têm
prim eiro de ser testad os. Antes de qu alqu er confronto de interesses e
de valores, antes de qu alqu er submissão de afirm ações a pedidos de
valid ad e entre p arceiros constitu íd os, há o litígio em torno do objeto
do litígio, o litígio em torno da existência do litígio e das partes que
nele se enfrentam . Pois a idéia de que os seres falantes são iguais por
sua cap acid ad e com u m de falar é uma idéia razoável/d esarrazoad a,
d esarrazoad a em relação à maneira com o se estruturam as socied ad es,
desde as antigas realezas sagrad as até as m od ernas socied ad es de pe-
ritos. A afirm ação de um mund o comum efetua-se assim numa ence-
nação p arad oxal que coloca ju ntas a com u nid ad e e a não-com u nid a-
de. E uma tal con ju n ção remete sempre ao p arad oxo e ao escând alo
que p ertu rba as situ ações legítimas de com u nicação, as divisões legí-
tim as dos mund os e das linguagens, e red istribu i a maneira com o os
corp os falantes estão d istribu íd os numa articu lação entre a ord em do
d izer, a ord em do fazer e a ord em do ser. A demonstração d o d ireito
ou manifestação do ju sto é refigu ração da divisão do sensível. N os ter-
mos de Ju ergen H aberm as, essa d em onstração é indissoluvelmente um
agir com u nicacional que p õe em jogo as p retensões de valid ad e de
certos enu nciad os e um agir estratégico que d esloca a relação de for-
ças, d eterm inand o a ad missibilid ad e dos enu nciad os com o argumen-
tos sobre sobre uma cena com u m . É que essa com u nicação escapa tam-
bém às d istinções que fund am as regras supostas "n or m ais" da dis-
cu ssão. Ju ergen H aberm as insiste, em O discurso filosófico da moder-
nidade na tensão entre d ois tip os de atos de linguagem : linguagens
"p oéticas" de abertu ra p ara o mundo e form as intram u nd anas de ar-
gu m entação e valid ação. Ele reprova àqueles que critica o fato de des-
conhecerem essa tensão e a necessid ade de que as linguagens estéticas
de abertu ra para o mundo tam bém se legitimem no interior das regras
da ativid ad e com u n icacion al 6. Mas exatam ente a demonstração pró-
pria da p olítica é sempre, a um só tempo argu m entação e abertu ra do
mundo no qual a argu m entação pode ser recebid a e fazer efeito, ar-
gu m entação sobre a p róp ria existência desse mund o. E é aí que se joga
a questão do universal antes de se jogar nas questões da universalização
possível ou impossível dos interesses e de averigu ação das form as da

6 J. H aberm as, Le Discours philosophique de la modernité, op. citp. 241


e seguintes (essas páginas tratam p articu larm ente da crítica à d esconstru ção de
Derrid a).

12
100 Jacqu es Rancière
argu m entação numa situ ação suposta norm al. O prim eiro pedido de
universalid ad e é o da pertença universal dos seres falantes à com u ni-
dade da linguagem. E ele sempre é tratad o em situ ações "an orm ais"
de com u n icação, em situ ações que instau ram casos. Essas situ ações
p olêm icas são aquelas em que um dos p arceiros da interlocu ção se re-
cusa a reconhecer um de seus elem entos (seu lu gar, seu objeto, seus
su jeitos...). N elas, o universal sempre está em jogo de m aneira singu-
lar, sob a form a de casos em que sua existência e sua pertença estão
em litígio. Ele sempre está em jogo de m aneira local e p olêm ica, ao
mesmo tem po com o aqu ilo que obriga e com o aqu ilo que não obriga.
E p reciso antes de tu d o reconhecer e fazer reconhecer que uma situ a-
ção apresenta um caso de universalid ad e que obriga. E esse reconhe-
cim ento não au toriza a separar uma ord em racional da argu m entação
e uma ord em p oética, senão irracional, do com entário e da m etáfora.
Ele é prod uzid o p or atos de linguagem que são, a um só tem p o, argu-
m entações racionais e m etáforas "p oéticas".
Deve-se na verdade d izer, p arafraseand o Platão, "sem com isso
se assu star": as form as de interlocu ção social que fazem efeito são, a
um só tem p o, argu m entações numa situ ação e m etáforas dessa situ a-
ção. O fato de a argu m entação ter com u nid ad e com a m etáfora e a
m etáfora com a argu m entação, isso em si não acarreta nenhuma das
conseqü ências catastróficas por vezes d escritas. Essa comunid ad e não
é uma d escoberta da exau rid a mod ernid ade que d enunciaria a univer-
salid ad e da d iscussão e do conflito sociais com o send o o artefato p ro-
duzido por um grande relato. A argumentação que encadeia duas idéias
e a m etáfora que faz ver uma coisa numa ou tra sempre tiveram co-
munid ad e. Sim plesm ente, essa com u nid ad e é mais ou menos forte em
fu nção dos cam pos de racionalid ad e e as situações de interlocu ção. H á
cam p os em que ela pode reduzir-se até a extenu ação. São os cam p os
em que a p ressu p osição do entend im ento não é p roblem ática, em que
se pressupõe ou que tod os se entend em ou podem entend er-se sobre o
que dizem, ou que isso não tem nenhuma im portância. O primeiro caso
é o das linguagens sim bólicas que não remetem a nad a de exterior a
elas m esm as, o segundo é o da tagarelice que pode remeter livremente
a qu alqu er coisa. H á cam p os, em contrap artid a, em que essa com u ni-
dade atinge o seu m áxim o. São aqueles onde a pressu posição do en-
tend im ento está em litígio, em que é preciso prod uzir ao mesmo tem -
po a argu m entação e a cena em que ela deve ser entend id a, o objeto
da d iscussão e o mund o em que figura com o objeto.

101
O Desentend im ento
A interlocu ção p olítica é, p or excelência, um tal cam p o. N o que
se reíe ao p róp rio nó do logos e de sua consideração com a aisthesis
— a d ivisão do sensível —, sua lógica da demonstração é ind issolu-
velmente uma estética da manifestação. A p olítica não sofreu , recen-
tem ente, a d esgraça de ser estetizad a ou esp etacu larizad a. A configu -
ração estética na qual se inscreve a palavra do ser falante sempre cons-
tituiu o p róp rio cerne do litígio que a p olítica vem inscrever na or-
dem p olicial. Isso m ostra o qu anto é falso id entificar a "estética" ao
cam p o da "au to-referen cialid ad e" que d esconcertaria a lógica da
interlocu ção. A "estética" é, ao con trário, o que coloca em com u ni-
cação regimes separad os de exp ressão. O que é verd ad e, em contra-
p artid a, é que a história m od erna das form as da p olítica está ligada
às m u tações que fizeram a estética ap arecer com o d ivisão do sensível
e discurso sobre o sensível. O aparecimento mod erno da estética com o
d iscurso au tônom o que d etermina um recorte au tônom o do sensível
é o aparecim ento de uma ap reciação do sensível que se separa de tod o
ju lgam ento sobre seu uso e define assim um mundo de com u nid ad e
virtual — de com u nid ad e exigid a — sobre-im p resso no mundo das
ordens e das partes que dá a cad a coisa seu uso. Que um p alácio possa
ser o objeto de uma ap reciação que não recai nem sobre a com od i-
dade de uma habitação nem sobre os privilégios de uma fu nção ou
os em blem as de uma m ajestad e, eis o que p ara Kant singulariza a co-
munidade estética e a exigência de universalid ade que lhe é p róp ria 7.
A estética assim autonomizad a é em primeiro lugar a em ancipação das
normas da rep resentação, em segundo lugar a constitu ição de um tipo
de com u nid ad e do sensível que fu nciona sob o m od o da p resu nção,
do como se que inclui aqueles que não estão inclu íd os, ao fazer ver
um m od o de existência do sensível su btraíd o à rep artição das partes
e das p arcelas.
N ão hou ve, en tão, "estetização" da p olítica na era m od erna,
porque esta é estética em seu p rincíp io. Mas a au tonom ização da es-
tética com o um novo nó entre a ord em do logos e a d ivisão do sensí-
vel faz p arte da configu ração mod erna da p olítica. A p olítica antiga
arm ava-se com base em noções ind istintas com o essa doxa, essa apa-
rência que institu ía o povo em p osição de su jeito decisor da com u ni-
d ad e. A p olítica m od erna arm a-se, p rim eiro, nessa d istinção de uma

7 Kan t, Critique de la faculté de juger, Vrin, 1979, p. 50.

100
Jacqu es Rancière
comunid ad e sensível virtual ou exigível, acim a da d istribu ição das or-
dens e das fu nções. A p olítica antiga exigia o ú nico conceito de de-
mos e de suas propried ad es im p róp rias, que abrem o espaço p ú blico
com o espaço do litígio. A p olítica mod erna exige a m u ltip licação des-
sas op erações de su bjetivação que inventam mund os de com u nid ad e,
que são mundos de d issentimento, exige esses dispositivos de demons-
tração que são, a cad a vez e a um só tem p o, argu m entações e abertu -
ras de m u nd o, abertu ra de mundos com u ns — o que não quer dizer
consensu ais —, de mundos nos quais o su jeito que argumenta é sem-
pre contad o com o argu m entad or. Esse su jeito é sempre um um-a-
mais. O su jeito que escreve em nosso m anifesto "Já os com preend e-
m os" não é a coleção dos op erários, não é um corp o coletivo. É um
su jeito exced ente, que se define no con ju n to das op erações que de-
monstram essa com p reensão manifestando sua estru tu ra de afasta-
m ento, sua estru tu ra de relação entre o com u m e o não-com u m . A
p olítica m od erna existe pela m u ltip licação dos mundos com u ns/liti-
giosos passíveis de ser extraíd os da su perfície das ativid ad es e d as
ord ens sociais. Existe pelos su jeitos que essa m u ltip licação au toriza,
su jeitos cu ja contagem é sempre extra-nu m erária. A p olítica antiga
prend ia-se ao único erro de cálcu lo desse demos que é parte e tod o e
dessa liberd ad e que só pertence a ele, ao mesmo tem po que pertence
a tod os. A p olítica m od erna prend e-se ao d esd obram ento de d isposi-
tivos de su bjetivação do litígio que ligam a contagem dos incontad os
ao afastam ento de si de tod o su jeito ap rop riad o para enu nciá-lo. N ão
é só que os cid ad ãos, os trabalhad ores e as mulheres designados numa
seqü ência do tip o "n ós, cid ad ãos", "n ós, trabalh ad ores" ou "n ós,
m u lheres" não se id entifiquem com nenhuma coleção, com nenhum
grupo social. E tam bém que a relação do "n ó s ", do su jeito de enun-
ciação que abre a seqü ência, com o su jeito do enu nciad o cu ja id enti-
dade é d eclinad a (cid ad ãos, trabalhad ores, m ulheres, p roletários) se
define apenas pelo con ju n to das relações e das op erações da seqüên-
cia d em onstrativa. N em o nós nem a identidad e que lhe é atribu íd a,
nem a ap osição dos dois definem um su jeito. Só há su jeitos, ou , me-
lhor, mod os de su bjetivação p olíticos, no con ju n to de relações que o
nós e seu nome mantêm com o con ju n to das "p essoas", o jogo com -
p leto das id entid ad es e das alterid ad es im plicad as na d em onstração,
e dos m u nd os, com u ns ou sep arad os, em que se d efinem.
Sem d úvid a, a d em onstração opera-se mais claram ente qu and o
os nomes de su jeitos se separam de tod o grupo social id entificável

101
O Desentend im ento
com o tal. Qu and o os op ositores do Leste europeu retom avam para
si o term o de "h ou ligan s" com que os d irigentes desses regimes os es-
tigm atizavam , quand o os m anifestantes parisienses de 1968 afirm a-
vam , con tra qu alqu er evid ência p olicial, "Som os tod os jud eus ale-
m ã es", estavam colocan d o em plena luz o afastam en to da su bje-
tivação p olítica, d efinid a no nó de uma enu nciação lógica e de uma
m anifestação estética, em face de tod a id entificação. O d ialogismo da
p olítica tem m uito da heterologia literária, de seus enu nciad os sub-
traíd os de seus au tores e devolvidos a eles, de seus jogos da primeira
e da terceira pessoa — tem m uito mais disso que da situ ação, supos-
tam ente id eal, do d iálogo entre uma primeira e uma segunda pessoa.
A invenção p olítica op era-se em atos que são ao mesmo tem p o ar-
gu m entativos e p oéticos, golpes de força que abrem e reabrem tantas
vezes qu antas for necessário os mundos nos quais esses atos de co-
munidade são atos de com u nid ad e. Eis p or que o "p oético" não se
opõe ao argu m entativo. E tam bém p or que a criação dos mundos es-
téticos litigiosos não é a simples invenção de linguagens ap tas a re-
form u lar p roblem as intratáveis nas linguagens existentes. Em Con-
tingência, Ironia e Solidariedade, Richard Rorty distingue as situações
com uns de com u nicação em que se entend e p raticam ente tu d o o que
se discute e as situ ações excep cionais em que os motivos e os term os
da d iscussão estão, eles m esm os, em qu estão 8. Estes últimos d efiniri-
am m om entos p oéticos em que criad ores form am novas linguagens
que permitem a red escrição da exp eriência com u m , inventam m etá-
foras novas, cham ad as mais tard e a integrar o cam p o das ferram en-
tas lingüísticas com uns e da racionalid ad e consensu al. Assim , segun-
do Richard Rorty, elaborar-se-ia um acord o entre a m etaforização po-
ética e a consensualid ad e liberal: consensualid ad e não exclu siva, p or-
que é a sed im entação de velhas m etáforas e de velhas intervenções da
ironia p oética. Mas não é apenas em momentos de exceção e pela ação
de especialistas da ironia que o consenso exclu sivo se d esfaz. Ele se
desfaz tantas vezes qu antas se abrem mundos singulares de com u ni-
dade, mundos de d esentend imento e de d issensão. H á p olítica se a co-
munidade da cap acid ad e argu m entativa e da cap acid ad e m etafórica
é, a qu alqu er hora e pela ação de qualquer um, passível de ocorrer.

8 R. Rorty, Contingence, Ironie et Solidarité, Armand Colin, 1992.

100 Jacqu es Rancière


DA ARQUI-POLÍTICA À META-POLÍTICA

Agora é possível d eterm inar a relação da filosofia com a p olítica


im plícita no term o "filosofia p olítica". A palavra "filosofia p olítica"
não designa nenhum gênero, nenhum território ou esp ecificação da fi-
losofia. N ão designa tam p ou co a reflexão da p olítica sobre sua racio-
nalid ad e im anente. E o nome de um encontro — e de um encontro po-
lêm ico — no qual se exp õe o p arad oxo ou o escând alo da p olítica: sua
au sência de fu nd am ento p róp rio. A p olítica só existe med iante a efe-
tu ação da iguald ade de qu alqu er pessoa com qu alqu er pessoa na li-
berdade vazia de uma parte da com u nid ad e que desregula tod a e qu al-
quer contagem das p artes. A igu ald ad e, que é a cond ição não-p olítica
da p olítica, não se ap resenta ali enqu anto tal. Só ap arece sob a figura
d o d ano. A p olítica assim está sempre torcid a pela refração da igual-
dade em liberd ad e. Ela nunca é p u ra, fund ad a numa essência p róp ria
da com u nid ad e e da lei. Só existe qu and o a com u nid ad e e a lei mu-
dam de estatuto pela ad ju nção da igualdade à lei (a isonomia ateniense,
que não é apenas o fato de que a lei é "igu al p ara tod os" mas de que
o sentido legal consista em representar a igualdade) e pelo aparecimento
de uma parte id êntica ao tod o.
A "filosofia p olítica" com eça pela exibição desse escând alo. E
essa exp osição se dá sob o signo de uma idéia ap resentad a com o al-
ternativa a esse estad o infund ad o da p olítica. É a p alavra de ord em
pela qu al Sócrates exp rim e sua d iferença dos hom ens da pólis d emo-
crática: fazer realm ente p olítica, fazer p olítica de verd ad e, fazer p olí-
tica com o efetu ação da essência p róp ria da p olítica. Essa palavra de
ord em supõe uma certa atestação e um certo d iagnóstico: a atestação
de uma factualid ad e sempre anteced ente da política em relação a qual-
quer p rincíp io da com u nid ad e. É prim eiram ente em relação à p olíti-
ca que a filosofia, desde o início, "chega tard e d em ais". Só que esse
"a tr a so" é pensad o p or ela com o o d ano da d em ocracia. Sob a for-
ma da d em ocracia, à p olítica já está presente, sem esperar seu p rincí-
pio ou sua arkhé, sem esperar pelo bom com eço que a fará nascer
com o efetu ação de seu p rincíp io p róp rio. O demos já está presente

O Desentend im ento 101


com seus três atribu tos: a constitu ição de uma esfera de ap arência
para o nome do p ovo; a contagem desigual desse povo que é tod o e
parte a um só tem p o; a exibição p arad oxal do litígio p or uma parte
da com u nid ad e que se id entifica com seu tod o em nom e do d ano
mesmo que a ou tra parte lhe cau sa. Essa con statação de anteced ên-
cia, a "filosofia p olítica" transform a-a em d iagnóstico de vício cons-
titu tivo. A anteced ência da d em ocracia torna-se sua pura factualid ad e
ou facticid ad e, sua regu lação pela sim ples regra — a simples des-
regu lação — da circu lação empírica dos bens e dos m ales, dos praze-
res e das p enas, pela simples igualdade — a simples desigualdad e —
do mais e do m enos. A d em ocracia só ap resenta, em term os de ju sti-
ça, a d ram atu rgia do litígio. Apresentand o uma ju stiça travad a nas
form as do litígio e uma igualdade achatad a nos cálcu los aritm éticos
da d esiguald ad e, a d em ocracia é incap az de dar à p olítica sua medi-
da p róp ria. O d iscurso inaugural da filosofia p olítica pod e então se
resumir em duas fórm u las: p rim eiro, a igualdade não é a d em ocra-
cia. Segu nd o, a ju stiça não é o encam inham ento do d ano.
Em seu enu nciad o bru to, essas duas p rop osições são exatas. A
iguald ad e, de fato, não se presentifica na d em ocracia, nem a ju stiça
no d ano. A p olítica trabalha sempre na d istância que faz a igualdade
consistir apenas na figura do d ano. Ela trabalh a ao encontro da lógi-
ca p olicial e da lógica da igualdade. Mas tod a a questão é saber com o
interp retar essa d istância. Ora, a p olêm ica filosófica, com Platão,
transform a-a no signo de uma falsid ade rad ical. Ela d ecreta que uma
p olítica que não é a efetu ação de seu p róp rio p rincíp io, que não é a
encarnação de um p rincíp io da com u nid ad e, não é uma p olítica do
tod o. A "p olítica de verd ad e" vem então op or-se ao kratein do de-
mos e su bstitu ir a sua torsão específica p or uma pura lógica do ow,
ow, da pura alternativa entre o mod elo d ivino e o m od elo perecível.
A harm onia da ju stiça opõe-se então ao d ano, reduzido à chicana dos
rábu las de espírito torto; a igualdade geom étrica, com o p rop orção do
cosm o p róp ria para harm onizar a alma da p ólis, opõe-se a uma igual-
dade d em ocrática reduzida à igualdade aritm ética, quer d izer, ao rei-
no do mais e do m enos. Face ao impensável nó p olítico do igual e do
d esigual, d efine-se o p rogram a da filosofia p olítica, ou m elhor, da
p olítica dos filósofos: realizar a essência verd ad eira da p olítica, da
qual a d em ocracia só prod uz a ap arência; suprimir essa im proprie-
d ad e, essa d istância de si da com unid ad e que o d ispositivo p olítico
d em ocrático instala no centro mesmo do esp aço da p ólis. Trata-se,

100
Jacqu es Rancière
em su m a, de realizar a essência da p olítica pela supressão da p olíti-
ca, pela realização da filosofia "n o lu gar" da p olítica.
Mas suprimir a p olítica em sua realização, colocar a idéia ver-
d ad eira da com u nid ad e e do bem ligad o a sua natu reza no lugar da
torsão da igualdade em d ano, isso significa antes de mais nada supri-
mir a d iferença entre p olítica e p olícia. O p rincíp io da p olítica dos fi-
lósofos é a id entificação do p rincíp io da p olítica com o atividade com
o da p olícia enqu anto d eterm inação da d ivisão do sensível que define
as parcelas dos indivíduos e das partes. O ato conceituai inaugural dessa
p olítica é a cisão que Platão op era numa n oção, a de politéia. N a for-
ma com o ele a p ensa, esta não é a constitu ição, a form a geral que se
rep artiria em varied ad es, d em ocrática, oligárqu ica ou tirânica. Ela é
a alternativa a essas alternâncias. H á de um lad o a politéia, de ou tro
as politeiai, as diversas varied ad es de maus regimes ligad as ao confli-
to das partes da polis e à d om inação de uma sobre as ou tras. O m al,
diz o livro VIII das Leis, está nessas politeiai das quais nenhuma é uma
politéia, que são tod as ap enas facções, governos do d esacord o 1. A
politéia p latônica é o regime de interiorid ad e da comunid ad e que se
opõe à cirand a dos maus regimes. A politéia opõe-se às politeiai com o
o Um da com unid ad e opõe-se ao múltiplo das com binações do d ano.
E mesmo o "realism o" aristotélico conhece a politéia com o o bom es-
tad o da com u nid ad e, do qual a d em ocracia é a form a d esviad a. É que
a politéia é o regime da com u nid ad e fund ad o em sua essência, aquele
no qual tod as as m anifestações do com u m provêm do mesmo p rincí-
p io. Os que hoje opõem a boa rep ú blica à duvidosa d em ocracia her-
d am , com m aior ou menor consciência, essa sep aração prim eira. A re-
pública ou a politéia, tal com o Platão a inventa, é a com unid ad e que
fu nciona no regime do Mesm o, que exprim e em tod as as ativid ad es
das partes da sociedade o princípio e o telos da com unid ad e. A politéia
é prim eiro um regim e, um m od o de vid a, um m od o da p olítica segun-
do o qual ela é a vida de um organism o regulad o p or sua lei, que res-
pira segundo seu ritm o, que inerva cad a uma de suas partes com o prin-
cíp io vital que o d estina à fu nção e ao bem que lhe são p róp rios. A
politéia, segundo seu conceito fom u lad o por Platão, é a com unid ad e
que efetua seu p róp rio p rincíp io de interiorid ad e em tod as as m ani-

1Cf. Leis, VIII, 832 b/c, que deve ser com p arad o notad am ente a República,
IV, 445 c.

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O Desentend imento
festações de sua vid a. É tornar impossível o d ano. Pod e-se d izer, sim-
plesmente: a politéia dos filósofos é a identidade da política e da polícia.
Essa identidad e tem dois asp ectos. De um lad o, a p olítica dos
filósofos id entifica a p olítica à p olícia. Coloca-a sob o regime do Um
d istribu íd o em p arcelas e fu nções. Incorp ora a com u nid ad e na assi-
m ilação de suas leis a m aneiras de viver, ao p rincíp io de resp iração
de um corp o vivo. Mas essa incorp oração não significa que a filoso-
fia p olítica volte à naturalid ad e p olicial. A filosofia política existe por-
que essa naturalid ad e está perd id a, porqu e a era de Cronos ficou para
trás e p orqu e, aliás, sua tão d ecantad a beatitud e celebra apenas a par-
voíce de uma existência vegetativa. A filosofia p olítica ou a p olítica
dos filósofos existe p orqu e a divisão está aí presente, p orqu e a d emo-
cracia p rop õe o p arad oxo de um incom ensurável esp ecífico, de uma
p arcela dos sem -parcela com o p roblem a a ser resolvid o pela filoso-
fia. A isonomia passou p or aí, isto é, a idéia de que a lei esp ecífica da
p olítica é uma lei fund ad a na igualdade que se op õe a tod a lei natu -
ral de d om inação. A República não é a restau ração da virtude dos
tem pos antigos. É tam bém uma solu ção para o p roblem a lógico pelo
qual a d em ocracia p rovoca a filosofia, o p arad oxo da p arcela d os
sem -p arcela. Id entificar a p olítica à p olícia pode tam bém significar
id entificar a polícia à p olítica, construir uma im itação da p olítica. Para
im itar a id éia do bem , a politéia im ita então a "m á " p olítica que sua
im itação deve su bstitu ir. As filosofias p olíticas, pelo m enos as que
merecem esse nom e, o nome desse p arad oxo, são filosofias que tra-
zem uma solu ção p ara o p arad oxo da p arcela dos sem -p arcela, seja
su bstitu ind o-o por uma fu nção equ ivalente, seja criand o seu simula-
cro, op erand o uma im itação da p olítica na sua negação. É a p artir
do duplo asp ecto dessa id entificação que se definem as três grand es
figuras da filosofia p olítica, as três grand es figuras do conflito da fi-
losofia e da p olítica e do p arad oxo dessa realização-su p ressão da po-
lítica cu ja última p alavra é, talvez, a realização-su p ressão da p róp ria
filosofia. Designarei essas três grandes figuras pelos nom es de arqui-
política, para-política e meta-política.
A arqu i-p olítica, de que Platão m ostra o m od elo, exp õe em tod a
a sua rad icalid ad e o p rojeto de uma com unid ad e fund ad a na realiza-
ção integral, na sensibilização integral da arkhé da com u nid ad e, subs-
titu ind o sem d eixar qu alqu er resto a configu ração d em ocrática da po-
lítica. Su bstitu ir sem resto essa configu ração quer dizer d ar uma solu-
ção lógica ao p arad oxo da parcela dos sem -parcela. Essa solu ção passa

100
Jacqu es Rancière
p or um p rincíp io que não é apenas de p rop orcionalid ad e mas de p ro-
porcionalid ad e inversa. O relato fund ad or das três raças e dos três me-
tais, no livro III da República, não estabelece apenas a ordem hierár-
qu ica da pólis em que a cabeça com and a a barriga. Estabelece uma
pólis na qual a su periorid ad e, o kratos do m elhor sobre o menos bom
não significa nenhuma relação de d om inação, nenhuma "cracia" no
sentid o p olítico. Para isso, é preciso que o kratein do m elhor se reali-
ze com o d istribu ição invertida das p arcelas. O fato de os m agistrad os,
que têm ou ro na alm a, não pod erem ter nenhum ou ro m aterial nas
m ãos significa que eles só podem ter com o coisa p róp ria aqu ilo que é
com u m . Send o o "títu lo" deles o conhecim ento da amizade dos cor-
pos celestes que a com u nid ad e deve im itar, a p arcela que lhes é "p ró-
p ria" só pod eria ser o com u m da com u nid ad e. Sim etricam ente, o co-
mum dos artesãos é possuir apenas aqu ilo que lhes é p róp rio. As ca-
sas e o ou ro que eles são os únicos a ter d ireito de possuir são o p aga-
mento por sua singular participação na comunidade. Só participam dela
sob a cond ição de não terem que cu id ar do tod o. São m em bros da co-
munidade apenas pelo fato de execu tarem a obra própria para a qu al
a natureza os destina com exclusividade: sap ataria, carpintaria ou qual-
quer outra obra das mãos — ou , antes, pelo fato de nad a fazerem além
dessa fu nção, de não terem ou tro esp aço-tem p o senão o de seu ofício.
O que é evid entemente suprimid o p or essa lei de exclusivid ad e dada
com o característica própria e natu ral do exercício de tod o ofício, é esse
esp aço com u m que a d em ocracia recortava no seio da pólis enqu anto
lugar de exercício da liberd ad e, lugar de exercício do pod er desse de-
mos que atu aliza a p arcela dos sem -p arcela; é esse tem p o p arad oxal
que aqueles que não têm tem p o p ara isso d ed icam a esse exercício. A
ap arente empiricid ad e do início da República, com sua enu m eração
das necessidades e das fu nções, é um regu lam ento inicial do p arad o-
xo d em ocrático: o demos é d ecom p osto em seus m em bros para que a
com unid ad e seja recom p osta em suas fu nções. O relato ed ificante da
reu nião prim eira dos indivíduos pond o em com u m suas necessid ad es
e trocan d o seus serviços, que a filosofia p olítica e seus su ced âneos
arrastarão de era em era, em versões ingênuas ou sofisticad as, tem
originalm ente essa fu nção bem d eterm inad a de d ecom p osição e de
recom p osição, ap ta a lim par do demos o território da p ólis, a lim pá-
lo de sua "liberd ad e" e dos lugares e tem pos de seu exercício. Antes
de ed ificar a com u nid ad e sobre sua lei p róp ria, antes do gesto refu n-
d ad or e da ed u cação cívica, o regime de vida da politéia já está m ol-

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O Desentend im ento
dado na fábula desses qu atro trabalhad ores que nada devem fazer além
de seu p róp rio n egócio 2. A virtude de fazer (apenas) isso cham a-se so-
phrosyné. As palavras tem p erança e m od eração, pelas quais nos ve-
mos obrigad os a trad u zi-la, escondem atrás de pálidas imagens de con-
trole dos apetites a relação propriamente lógica expressa por essa "vir-
tu d e" da classe inferior. A sophrosyné é a estrita réplica da "liberd a-
d e" do demos. A liberd ad e era a axia p arad oxal do p ovo, o títu lo
comum do qual o demos se apropriava com o sua coisa "p r óp r ia". Por
simetria, a sophrosyné que é definida com o a virtude dos artesãos nada
mais é que a virtud e com u m . Mas essa id entid ad e do p róp rio e do
com u m fu nciona ao inverso da "liberd ad e" do demos. N ão pertence
em absolu to àqueles de quem ela é a única virtud e. É, ap enas, a domi-
nação do m elhor sobre o menos bom . A virtude própria e com u m dos
homens da multidão nada é além da submissão à ordem segundo a qual
eles são apenas o que são e só fazem o que fazem. A sophrosyné dos
artesãos é id êntica à sua "au sência de tem p o". É sua m aneira de vi-
ver, na exteriorid ad e rad ical, a interiorid ad e da p ólis.
A ordem da politéia pressupõe assim a ausência de tod o vazio, a
satu ração do espaço e do tem p o da com u nid ad e. O reino da lei é tam -
bém o d esap arecim ento do que é consu bstanciai ao m od o de ser da
lei ali ond e a p olítica existe: a exteriorid ad e da escrita. A repú blica é
a comunidad e onde a lei (o nomos) existe com o logos vivo: com o ethos
(costu m es, m aneira de ser, caráter) da com unid ad e e de cad a um de
seus m em bros; com o ocu p ação dos trabalhad ores; com o m elod ia que
fica nas cabeças e com o m ovim ento que anim a esp ontaneam ente os
corp os, com o alim ento espiritual (t rophé) que volta natu ralm ente os
espíritos para um certo torneio (t ropos) de com p ortam ento e de pen-
sam ento. A repú blica é um sistema de trop ism os. A p olítica dos filó-
sofos não com eça, com o o querem os bem -p ensantes, com a lei. Co-
meça com o espírito da lei. O fato de as leis exp rim irem antes de mais
nad a uma m aneira de ser, um tem p eram ento, um clim a da com u ni-
d ad e, isso não é a d escoberta de um esp írito cu rioso do século das Lu-
zes. Ou , m elhor, se Montesqu ieu d escobriu à sua m aneira esse espíri-
to, é que ele já estava acop lad o à lei, na d eterm inação filosófica origi-
nal da lei p olítica. A igualdade da lei é antes de tud o a igualdade de

2Cf. República, II, 369 c-370 c. Propus um extenso com entário sobre essa
passagem em Le Philosophe et ses pauvres, Fayard , 1983.

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Jacqu es Rancière
um hu m or. A boa polis é aqu ela ond e a ordem do kosmos, a ord em
geom étrica que rege o m ovim ento d os astros d ivinos, m anifesta-se
com o tem p eram ento de um organism o, no qual o cid ad ão age não se-
gund o a lei mas segundo o esp írito da lei, o sop ro vital que o insp ira.
É aqu ela na qual o cid ad ão é convencid o por uma história, mais d o
que retid o p or uma lei, em que o legislad or, ao escrever as leis, entre-
laça numa tram a cerrad a as ad m oestações necessárias aos cid ad ãos
assim com o "su a op inião sobre o belo e o feio "3 . É aquela na qu al a
legislação se absorve por inteiro na ed u cação, mas tam bém na qu al a
ed u cação transbord a os m eros ensinam entos do m estre-escola, e em
que ela se oferece a tod o instante no concerto do que se oferece a ver
e se dá a entend er. A arqu i-p olítica é a integral realização da physis
em nomos, o total tornar-se sensível da lei comunitária. N ão pode haver
tem p o m orto nem esp aço vazio na tram a da com u nid ad e.
Essa arqu i-p olítica é, então, tam bém uma arqu i-p olícia que con -
cilia sem d eixar restos as m aneiras de ser e as de fazer, as m aneiras de
sentir e as de p ensar. Mas red uzimos o alcance dessa arqu i-p olítica ou
arqu i-p olícia e d esconhecem os sua herança, se a assim ilarm os à u to-
pia do filósofo ou ao fanatism o da polis fechad a. O que Platão inven-
ta, de m aneira mais ampla e mais d urad oura, é a op osição da rep ú bli-
ca à d em ocracia. O regime do d ano e da divisão d em ocráticos, a exte-
riorid ad e da lei que mede a eficácia da parcela dos sem-parcela no con-
flito dos partid os, ele os substitui pela república que não se funda tanto
no universal da lei, mas sobretu d o na ed ucação que transform a, in-
cessantem ente, a lei em seu esp írito. Ele inventa o regime de interiori-
dade da com u nid ad e, na qual a lei é a harmonia do ethos, a con cor-
d ância do caráter dos indivíduos aos costumes da coletivid ad e. Ele in-
venta as ciências que acom p anham essa interiorização do víncu lo co-
m u nitário, essas ciências da alm a individual e coletiva que a m od er-
nidade cham ará p sicologia e sociologia. O p rojeto "rep u blican o", tal
com o é elaborad o pela arqu i-p olítica p latônica, é a p sicologização e a
sociologização integrais dos elem entos do d ispositivo p olítico. A poli-
téia coloca, no lugar dos elem entos turvos da su bjetivação p olítica, as
fu nções, as aptid ões e os sentim entos da comunid ade concebid a com o
corp o anim ad o pela alma una do tod o: divisão dos ofícios, unid ad e
dos trop ism os éticos, u níssono das fábulas e d os refrões.

3 Cf. Leis, VII, 823 a.

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O Desentend imento
É im p ortante ver com o a idéia de rep ú blica, o p rojeto ed ucati-
vo e a invenção das ciências da alma individual e coletiva se mantêm
ju ntos enqu anto elem entos do d ispositivo arqu i-p olítico. A "restau -
r ação" hoje p roclam ad a da filosofia p olítica afirm a constitu ir uma
reação à ilegítima u su rpação sobre a p olítica e as prerrogativas da fi-
losofia p olítica pelas ciências sociais. E o ideal da república e de sua
instru ção universalista é constantem ente op osto a uma escola subme-
tid a aos im perativos p arasitários de uma psicoped agogia e de uma
sociop ed agogia ligadas aos vícios conju gad os do individualismo de-
m ocrático e do totalitarism o socialista. Mas essas polêm icas esque-
cem , geralm ente, que foi a "filosofia p olítica" que inventou as ciên-
cias "hu m anas e sociais" enqu anto ciências da com u nid ad e. A cen-
tralid ad e da paidéia na repú blica é também o primad o da harm oni-
zação dos caracteres individuais e dos costum es coletivos sobre tod a
d istribu ição de saber. A república de Ju les Ferry, paraíso supostamen-
te perd id o do universalism o cívico, nasceu à som bra de ciências hu-
m anas e sociais, herd ad as p or sua vez do p rojeto arqu i-p olítico. A
escola e a repú blica não foram recentem ente pervertidas pela p sico-
logia e pela sociologia. Apenas mudaram de psicologia e de sociolo-
gia e mud aram o fu ncionam ento desses saberes da alma individual e
coletiva no sistema da d istribu ição dos saberes, conciliaram de for-
ma d iferente a relação de cam p o p ed agógico, a an-arqu ia da circu la-
ção d em ocrática dos saberes e a form ação repu blicana da harm onia
dos caracteres e dos costu m es. N ão aband onaram o universal pelo
p articu lar. Com binaram de ou tra m aneira o universal singularizad o
(p olêm ico) da d em ocracia e o universal p articu larizad o (ético) da re-
p ú blica. As d enúncias filosóficas e rep u blicanas do im perialism o so-
ciológico, assim com o as denúncias sociológicas de uma filosofia e de
uma rep ú blica d enegad oras das leis da rep rod u ção social e cu ltu ral,
esquecem tam bém o nó p rim ário que a arqu i-p olítica estabelece en-
tre a com unid ad e fund ad a na p rop orção do cosm o e o trabalho das
ciências da alm a individual e coletiva.
A arqu i-p olítica, da qual Platão dá a fórm u la, resume-se assim
na realização integral da physis em nomos. Isto supõe a supressão dos
elem entos do d ispositivo polêm ico da p olítica, sua su bstitu ição pelas
form as de sensibilização da lei com u nitária. A su bstitu ição de um tí-
tu lo vazio — a liberdade do povo — por uma virtude igualmente va-
zia — a sopbrosyné dos artesãos — é o p onto nod al desse p rocesso. A
supressão total da p olítica enqu anto ativid ad e específica é seu resul-

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Jacqu es Rancière
tad o. A para-política, cu jo princípio Aristóteles inventa, recusa-se a pa-
gar esse p reço. Com o tod a "filosofia p olítica", ela tend e a id entificar
em última instância a ativid ad e p olítica com a ord em p olicial. Mas o
faz do p onto de vista da especificid ad e da p olítica. A especificid ad e
da p olítica é a interru p ção, o efeito da iguald ade enqu anto "liberd a-
d e" litigiosa do p ovo. E a d ivisão original da physis que é cham ad a a
realizar-se em nomos com u nitário. H á política porque a igualdade vem
operar essa cisão originária da "natu reza" p olítica, que é cond ição para
que se possa simplesmente im aginar uma tal natu reza. Essa cisão, essa
submissão do telos com u nitário ao fato da iguald ad e, é constatad a p or
Aristóteles no início desse segundo livro da Política que constitui o acer-
to de contas com seu mestre Platão. Sem dúvida, d eclara ele, seria pre-
ferível que os m elhores mand assem na pólis e que mand assem sem-
pre. Mas essa ord em natu ral das coisas é impossível quand o se está
numa pólis ond e "tod os são iguais por n atu reza"4 . Inútil p ergu ntar-
se p or que essa igualdade é natu ral e por que essa natureza advém em
Atenas e não na Laced em ônia. Basta que exista. Numa tal pólis, é justo
— seja isso uma coisa boa ou má — que tod os p articip em do m and o
e que essa d ivisão igual se m anifeste numa "im ita çã o" esp ecífica: a
alternância entre o lugar de governante e o de governad o.
Tu d o se decide nessas p ou cas linhas que separam o bem d istin-
tivo da política — a justiça — de tod a e qualquer ou tra form a do bem .
O bem da p olítica com eça p or qu ebrar a simples tau tologia segund o
a qual o que é bom é que o m elhor tenha preced ência sobre o m enos
bom . A p artir do m om ento em que a igualdade existe e configu ra-se
com o liberd ad e do p ovo, o justo não pod eria ser sinônim o do bem e
não pod eria ser o d esd obram ento de sua tau tologia. A virtude do ho-
mem de bem , que é m and ar, não é a virtude p róp ria da p olítica. Só
existe p olítica p orqu e há iguais e porque é sobre eles que o m and o se
exerce. O p roblem a não é apenas "ad equ ar-se" à presença bru ta da
duvidosa liberd ad e do demos. Pois essa presença bruta é tam bém a
presença da p olítica, o que distingue sua arkhé própria de qu alqu er
ou tra form a de m and o. Tod os os ou tros se exercem de um su perior
sobre um inferior. Mu d ar o m od o dessa su periorid ad e, com o p rop õe
Sócrates a Trasím aco, não resulta em nad a. Se a política é alguma coi-
sa, é por uma cap acid ad e totalm ente singular qu e, antes de existir o

4 Cf. Política, II, 1261 b 1.

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O Desentend imento
demos, era simplesmente inimaginável: a igual cap acid ad e de com an-
dar e de ser com and ad o. Essa virtude não pod eria red uzir-se à virtu-
de m ilitar bem conhecid a do exercício que torna ap to a m and ar me-
d iante a p rática da obed iência. Platão abriu lugar a esse aprend izad o
pela obed iência. Mas este aind a não é a cap acid ad e p olítica de per-
mutabilid ad e. Por isso, a pólis p latônica não é p olítica. Mas uma pólis
não-p olítica não é, de form a algu m a, uma pólis. Platão com p õe um
estranho m onstro, que impõe à pólis o m od o de mand o da fam ília.
Que ele deva para isso suprimir a família é um p arad oxo perfeitamen-
te lógico: suprimir a d iferença entre uma e ou tra é suprimir as d uas.
N ão existe pólis que não seja p olítica e a p olítica com eça com a con-
tingência igu alitária.
O p roblem a da p ara-p olítica estará então em conciliar as duas
natu rezas e suas lógicas antagônicas: a que quer que o m elhor em to-
das as coisas seja o m and o do m elhor e a que quer que o m elhor em
m atéria de igualdade seja a iguald ad e. Pou co im p orta o que se diga
sobre os antigos e sua pólis do bem com u m : Aristóteles efetu a nesse
bem com u m um corte d ecisivo, pelo qual tem início um novo m od o
da "filosofia p olítica". Qu e esse novo m od o seja id entificad o à quin-
tessência da filosofia p olítica e que Aristóteles seja o ú ltim o recu rso
de tod os esses "restau rad ores", é fácil de com p reend er. Ele propõe a
figu ra, p ara sempre fascinante, de uma realização feliz da contrad ição
im plícita na própria exp ressão. É aquele que resolveu a qu ad ratu ra do
círcu lo: p rop or a realização de uma ord em natu ral da p olítica em or^
dem constitu cional pela inclusão mesma do que causa obstácu lo a qual-
quer realização desse gênero — o demos, isto é, a form a de exp osição
da guerra dos "r icos" e dos "p obr es", isto é, enfim , a eficácia da anar-
quia igu alitária. E realiza tam bém a proeza de ap resentar esse tour de
force com o a conseqü ência bastante simples da d eterm inação prim á-
ria do anim al p olítico. Assim com o Platão realiza de p ronto a perfei-
ção da arqu i-p olítica, Aristóteles conclu i de p ronto o telos dessa p ara-
p olítica que fu ncionará com o o regime norm al, honesto, da "filosofia
p olítica": transform ar os atores e as form as de ação do litígio p olítico
em partes e form as de d istribu ição do d ispositivo p olicial.
Em vez da su bstitu ição de uma ord em por ou tra, a p ara-p olíti-
ca efetu a assim o recobrim ento. O demos, p or interm éd io do qual
existe a especificid ad e da p olítica, torna-se uma das partes de um con-
flito p olítico que se id entifica com o conflito pela ocu p ação dos "car -
gos de m an d o", das arkhai da p ólis. E para isso que Aristóteles ope-

100 Jacqu es Rancière


ra uma fixação da "filosofia p olítica" num centro qu e, d epois d ele,
vai parecer totalm ente natu ral apesar de não sê-lo de m od o nenhu m .
Esse centro é o dispositivo institu cional das arkhai e a relação de cam -
po que nele se arm a, o que os m od ernos cham arão poder e p ara o
que Aristóteles não tinha nom e, apenas um ad jetivo: "ku rion ", o ele-
m ento d om inante, aquele qu e, exercend o sua d om inação sobre o ou -
tro, confere à com u nid ad e sua tôn ica, seu estilo p róp rio. A p ara-p o-
lítica é antes de tu d o esse centram ento do p ensam ento p olítico no lu-
gar e no m od o da rep artição das arkhai pelo qu al se define um regi-
m e, no exercício de um certo kurion. Esse centram ento parece eviden-
te aos olhos de uma mod ernid ad e p ara a qual a qu estão do p olítico é
natu ralm ente a do p od er, dos princípios que o legitim am , das form as
nas quais ele se d istribui e dos tipos que o esp ecificam . Ora, é p reciso
ver que ele é antes de tu d o uma resposta singular ao p arad oxo espe-
cífico da p olítica, ao enfrentam ento da lógica p olicial da d istribu ição
das parcelas e da lógica p olítica da parcela dos sem -p arcela. O entre-
laçam ento singular do efeito de igualdade à lógica d esigualitária dos
corp os sociais que constitu i o traço p róp rio da p olítica, é d eslocad o,
p or Aristóteles, p ara o p olítico com o lugar esp ecífico das institu ições.
O conflito das duas lógicas torna-se então o conflito das duas p artes
que lutam p ara ocu p ar as arkhai e conqu istar o kurion da p ólis. Em
su m a, o p arad oxo teórico do p olítico, o encontro dos incom ensu rá-
veis, torna-se o p arad oxo p rático do governo, que tom a a form a de
um problema certamente espinhoso mas rigorosamente formulável en-
qu anto relação entre d ad os hom ogêneos: o governo da p ólis, a ins-
tância que a dirige e a m antém , é sempre o governo de uma das "p ar-
tes", de uma das facções qu e, im pond o sua lei à ou tra, irr^õe à cid a-
de a lei da d ivisão. O p roblem a é p ortanto: com o fazer para que a
pólis seja m antid a por um "govern o" cu ja lógica, qu alqu er que ele
seja, é a d om inação sobre a ou tra p arte, pela qual se mantém a dis-
sensão que arru ina a pólis? A solu ção aristotélica, sabem os, consiste
em tom ar o p roblem a pelo avesso. Já que tod o governo, por sua lei
natu ral, cria a sed ição que o d erru bará, convém a tod o governo ir ao
encontro de sua própria lei. Ou , m elhor, ele deve d escobrir sua lei ver-
d ad eira, a lei com u m a tod os os governos: esta lhe ord ena que ele se
m antenha e que p ara isso u tilize, contra sua tend ência n atu ral, os
m eios que asseguram a salvaguard a de tod os os governos e, com ela,
a da pólis que eles governam . A tend ência p róp ria da tirania está em
servir o interesse e o bel-prazer som ente do tiran o, o que su scita a

O Desentend im ento 101


revolta conju nta dos oligarcas e das massas e, em conseqü ência, o de-
sequ ilíbrio que faz perecer a tirania. O único meio de conservar a ti-
rania será, então, p ara o tiran o, subm eter-se ao reino da lei e favore-
cer o enriqu ecim ento do povo e a p articip ação das pessoas de bem
no p od er. Os oligarcas têm o hábito de prestar entre eles ju ram ento
de em tu d o p reju d icar o p ovo. E cumprem a palavra com constância
suficiente p ara atrair, com tod a a certeza, a sed ição p op u lar que ar-
ru inará o seu p od er. Qu e se esmerem ao contrário em servir em tudo
os interesses do p ovo, e terão seu pod er consolid ad o. Qu e se esme-
rem , ou pelo menos façam com o se estivessem se esm erand o. Pois a
p olítica é coisa estética, qu estão de ap arência. O bom regime é aque-
le que faz os oligarcas verem a oligarqu ia e o demos a d em ocracia.
Assim, o p artid o dos ricos e o p artid o dos pobres serão levad os a fa-
zer a mesma "p olítica", a p olítica ímpar dos que não são ricos nem
p obres, essa classe média que falta em tod o lugar, não som ente por-
que o qu ad ro restrito da pólis não lhe dá esp aço de d esenvolvimento
mas p orqu e, de uma m aneira mais p rofu nd a, a p olítica só se ocu pa
de ricos e de p obres. O social continu a send o, p ois, a utopia da polí-
tica p oliciad a e é p or um m eticu loso jogo de red istribu ição dos pod e-
res e das aparências de poder que cad a politéia, cada form a de — mau
— governo, se ap roxim a de seu hom ônim o, a politéia, o governo da
lei. Para que a lei reine, é p reciso que cad a regime, para se m anter, se
anule nesse regime méd io que é o regime ideal da d ivisão, pelo me-
nos qu and o a d em ocracia já passou p or ali.
Em sua figura nova, o filósofo, sábio e artista, legislad or e refor-
m ad or, redispõe os elementos do dispositivo d em ocrático — a aparên-
cia do p ovo, sua contagem desigual e seu litígio fund ad or — nas for-
mas da racionalid ad e do bom governo que realiza o telos da com u ni-
dade na d istribu ição dos poderes e dos m od os de sua visibilid ad e. Por
uma singular mimésis, o demos e seu erro de cálcu lo, cond ições da po-
lítica, são integrad os na realização do telos da natureza com u nitária.
Mas essa integração só atinge a perfeição sob a form a de um ausentar-
se. É o que exprim e a célebre hierarquia dos tipos de d em ocracia apre-
sentad a nos livros IV e VI da Política. A m elhor d em ocracia é a de-
m ocracia cam p onesa, pois é precisamente aquela em que o demos está
ausente de seu lugar. A d ispersão dos cam poneses nos cam p os d istan-
tes e a coerção do trabalho imped em-nos de vir ocu p ar o lugar de seu
p od er. Detentores do títu lo da soberan ia, d eixarão o seu exercício
concreto p ara as pessoas de bem. A lei reina então, diz Aristóteles, por

100
Jacqu es Rancière
au sência de recu rso 5: ausência de d inheiro e de lazer para ir à assem -
bléia, ausência de meio que p erm ita ao demos ser um mod o efetivo
de su bjetivação da p olítica. A com u nid ad e contém então o demos sem
exp erim entar o seu litígio. A politéia realiza-se assim com o d istribu i-
ção dos corp os num território que os m antém afastad os uns d os ou-
tros, d eixand o apenas aos "m elh ores" o esp aço central do p olítico.
Um a d iferença do povo em relação a si mesmo im ita e anula uma ou-
tra. A esp acialização — a d iferença em relação a si mesmo do demos
bem constitu íd o — inverte, im itand o-a, a d iferença em relação a si
mesmo do povo d em ocrático. Essa utopia da d em ocracia corrigid a, da
política espacializada terá, também ela, vida longa: a "b o a " d emocracia
tocqu evilliana, a Am érica dos grand es espaços em que é possível não
se encontrar, lhe serve de eco, assim com o, em m enor escala, a Eu ro-
pa de nossos p olíticos. Se a arqu i-p olítica p latônica se transm u d a, na
era m od erna, em sociologia do víncu lo social e das crenças com u ns
que corrigem o laisser-aller d em ocrático e d ão coesão ao corp o repu-
blicano, a p ara-p olítica se transm ud a numa ou tra "sociologia": repre-
sentação de uma d em ocracia separad a de si m esm a, tornand o, inver-
sam ente, em virtude da d ispersão que impede o povo de tom ar corp o.
Se a "filosofia p olítica" p latônica e seus suced âneos p rop õem cu rar a
p olítica su bstitu ind o as ap arências litigiosas do demos pela verd ade
de um corp o social anim ad o pela alm a das fu nções com u nitárias, a fi-
losofia p olítica aristotélica e seus suced âneos p rop õem a realização da
idéia do bem pela exata mimésis do d istú rbio d em ocrático que obsta
a sua efetu ação: u topia última de uma p olítica sociologizad a, inverti-
da em seu con trário; fim calm o da p olítica em que os dois sentid os do
"fim ", o telos que se realiza e o gesto que suprime, acabam por coin-
cid ir de m aneira exata.
Mas, antes que se opere essa transform ação da "filosofia p olíti-
ca " em "ciên cia social", há a form a m od erna que o em preend im ento
p ara-p olítico assum e, aquela que se resume nos term os da soberania
e do con trato. É H obbes quem fixa sua fórm u la, e quem a fixa com o
crítica à "filosofia p olítica" dos antigos. Esta é, para ele, u tóp ica, ao
afirm ar a existência de uma "p oliticid ad e" inerente à natureza huma-
na. E é sed iciosa, ao fazer dessa p oliticid ad e natu ral a norm a p or cu jo
p ad rão qu alqu er um pode pretend er avaliar a conform id ad e de um

5 Política, IV, 1292 b 37-38. Para uma análise mais detalhada, ver J. Rancière,
A ux bords du politique, Osiris, 1990.

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O Desentend imento
regime a essa p oliticid ad e p rincip iai e ao bom governo que é a sua
realização id eal. H obbes, com efeito, está entre aqueles que percebem
ced o o nó singular da p olítica e da filosofia p olítica. Os conceitos que
a filosofia p olítica su btrai à p olítica p ara elaborar as regras de uma
com unid ad e sem litígio, a p olítica não cessa de retom á-los com o fito
de reconvertê-los, mais uma vez, em elementos de um novo litígio. As-
sim, Aristóteles dividia os regimes em bons e m au s, segundo servissem
ao interesse de tod os ou ao da parte soberana. O tirano se d istinguia
do rei, não pela form a de seu p od er, mas p or sua finalid ad e. Ou tros-
sim , o tiran o, ao mud ar os meios da tirania, fazia "com o se" mudasse
sua finalid ad e 6. Ele transform ava sua tirania numa qu ase-realeza, o
que era o meio de servir ao mesmo tem po a seu interesse e ao da co-
munid ad e. A d istância entre os dois nomes só era d enotad a p ara mos-
trar, m elhor, a possibilid ad e de tornar as coisas id ênticas: um bom ti-
rano é com o um rei, e p ou co im p orta p ortanto o seu nom e. H obbes é
confrontad o com a inversão da relação: o nom e de tirano é o nome
vazio que permite a qu alqu er p regad or, oficial ou homem de letras,
contestar a conform id ad e do exercício do pod er real à razão de ser da
realeza, ju lgar que é um mau rei. Um mau rei é um tirano. E um tira-
no é um falso rei, alguém que tom a ilegitim am ente o lugar do rei, al-
guém que é p ortanto legítim o exp u lsar ou m atar. Da mesma form a,
Aristóteles guard ava o títu lo do povo ad equand o a d istância do nom e
do povo soberano à realidade do poder das pessoas de bem. Ainda aqui
as coisas se invertem : o nome vazio de povo torna-se o pod er su bjeti-
vo de ju lgar a d istância entre a realeza e a sua essência e de consid erar
esse ju lgam ento para reabrir o litígio. O p roblem a é, então, suprimir
essa contagem flutuante do povo que coloca em cena a d istância en-
tre um regime e sua norm a. O mal fu nesto, diz H obbes, é que as "p es-
soas p rivad as"7 ocupem-se em decidir sobre o ju sto e o inju sto. Mas
o que ele entende por "p essoas p rivad as" nad a mais é que aqueles qu e,
em term os aristotélicos, "n ã o tom am p arte" no governo da coisa co-
mum. O que está em jogo é então a própria estrutura do d ano que ins-
titui a p olítica, a eficácia da igualdade com o p arcela dos sem -p arcela,
d efinição de "p artes" que são na verdade su jeitos do litígio. Para cor-

6 Cf. Política, V, 1314 a -1315 b.


7 H obbes, Le Citoyen, Flam m arion, 1982, p. 69. ["Particu lares" na trad .
brasileira, Do cidadão, Martins Fontes, 1992, p. 13. (N . do revisor técnico)]

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Jacqu es Rancière
tar o mal pela raiz e desarmar "as falsas opiniões do vulgo no que tange
ao d ireito e ao d a n o "8 , é preciso refu tar a p róp ria idéia de uma "p oli-
ticid ad e" natu ral do anim al hu m ano, pela qu al ele estaria d estinad o
a um bem diferente de sua mera conservação. É preciso estabelecer que
a politicidade é apenas secund ária, que é apenas a vitória do sentimento
da conservação sobre o ilimitad o do d esejo que põe cad a um em guerra
contra tod os.
O p arad oxo é que H obbes, p ara refu tar Aristóteles, no fu nd o
apenas transp õe o raciocínio aristotélico — a vitória do d esejo racio-
nal de conservação sobre a p aixão p róp ria do d em ocrata, do oligarca
ou do tirano. Ele o desloca do plano das "p artes" no poder para o plano
dos ind ivíd uos, de uma teoria do governo p ara uma teoria da origem
do p od er. Esse duplo d eslocam ento que cria um objeto privilegiad o
da filosofia p olítica m od erna — a origem do pod er — tem uma fun-
ção bem esp ecífica: liquid a inicialm ente a p arcela dos sem -p arcela. A
p oliticid ad e só existe assim m ed iante a alienação inicial e sem resto
de uma liberd ad e que é apenas dos ind ivíd uos. A liberd ad e não pod e-
ria existir com o p arcela dos sem -p arcela, com o a propried ad e vazia
de algum su jeito p olítico. Ela deve ser tud o ou nad a. Só pode existir
sob duas form as: com o propried ad e de puros indivíduos a-sociais ou ,
na sua alienação rad ical, com o soberania do soberano.
Isso quer dizer tam bém que a soberania não é mais a d om ina-
ção de uma p arte sobre ou tra. Ela é o não-lu gar rad ical das p artes e
d aquilo a que seu jogo dá ensejo: a eficácia da parcela dos sem -parcela.
A problem atização da "origem " do poder e os termos de seu enunciad o
— con trato, alienação e soberania — dizem antes de tu d o: não há
p arcela dos sem -p arcela. Só há indivíduos e o pod er do Estad o. Tod a
parte a pôr em jogo o d ireito e o d ano é contrad itória com a p róp ria
idéia da com u nid ad e. Rou sseau d enunciou a frivolid ad e da d emons-
tração hobbesiana. É um hysteron proteron grosseiro refu tar a idéia
de uma sociabilid ad e natu ral invocand o as m aled icências dos salões e
as intrigas das cortes. Mas Rou sseau — e a trad ição rep u blicana m o-
d erna depois dele — concord a com o que é o cerne sério dessa frívola
d em onstração, a liqu id ação dessa p arcela dos sem -p arcela que a teo-
ria aristotélica se empenhava em integrar na sua p róp ria negação. Ele

8 Ibid., p. 84. [Trad . brasileira, p. 6: "as errôneas opiniões do vulgo qu anto


à natureza do que é certo ou errad o". (N . do revisor técnico)]

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O Desentend imento
concord a com a tau tologia hobbesiana da soberania: a soberania só
repou sa em si m esm a, p orqu e fora dela existem apenas ind ivíd uos.
Qu alqu er ou tra instância no jogo p olítico é apenas facção. A p ara-p o-
lítica mod erna com eça p or inventar uma natureza esp ecífica, uma "in -
d ivid u alid ad e" estritam ente correlata ao absolu to de uma soberania
que deve excluir a querela das frações, a querela das parcelas e das par-
tes. Ela com eça por uma primeira d ecom p osição do povo em indiví-
d uos, que exorciza de golp e, na guerra de tod os contra tod os, a guer-
ra das classes em que consiste a p olítica. Os d efensores dos "an tigos"
facilm ente vêem a origem das catástrofes da p olítica m od erna na fa-
tal su bstitu ição da regra objetiva do d ireito, que fund aria a com u ni-
dade p olítica aristotélica, pelos "d ireitos su bjetivos". Mas Aristóteles
não conhece "o d ireito" com o princípio organizad or da sociedade civil
e p olítica. Ele conhece o justo e suas d iferentes form as. O r a, a form a
p olítica do ju sto é, para ele, a que d etermina as relações entre as "p ar-
tes" da com u nid ad e. A mod ernid ad e não coloca som ente os d ireitos
"su bjetivos" no lugar da regra objetiva de d ireito. Ela inventa o direi-
to com o princípio filosófico da com unid ad e política. E essa invenção
cam inha a par da fábu la de origem , da fábu la da relação dos indiví-
duos com o tod o, feita p ara liqu id ar a relação litigiosa d as p artes.
Inclusive porqu e uma coisa é o direito, que conceitu aliza a "filosofia
p olítica" para regular a qu estão do d ano, ou tra coisa é o d ireito que a
p olítica faz fu ncionar no d ispositivo de tratam ento de um d ano. Pois,
em p olítica, não é o d ireito que é fu nd ad or mas o d ano, e o que pode
d iferenciar uma p olítica dos m od ernos de uma p olítica dos antigos é
uma d iferente estrutura do d ano. Mas é p reciso acrescentar que o tra-
tam ento p olítico do d ano não pára de tom ar em prestad os à "filosofia
p olítica" elem entos para transform á-los em elementos de uma argu-
m entação e uma m anifestação novas do litígio. É assim que as form as
m od ernas do d ano ligarão ao litígio acerca da contagem das partes da
com u nid ad e o novo litígio que refere cad a um ao tod o da soberania.
Pois o p arad oxo está aí: a ficção de origem que deve fund ar a
paz social é aquela qu e, no fim , cavará o abism o de um litígio mais
rad ical que o dos antigos. Recu sar a luta de classes com o segunda ló-
gica, segunda "n atu reza" que institui o p olítico, fazer logo de início
que a d ivisão da natureza represente uma passagem do d ireito natu -
ral à lei natu ral, é confessar que o princípio último do p olítico é a pura
e simples iguald ad e. A fábu la da guerra de tod os contra tod os é nés-
cia com o tod as as fábu las de origem . Mas, por trás dessa p obre fá-

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Jacqu es Rancière
bula de m orte e de salvação, d eclara-se algo mais sério, a enu nciação
do segredo ú ltim o de tod a ord em social, a pura e simples iguald ade
de qu alqu er um a qu alqu er um: não há um p rincíp io natural de d o-
m inação de um homem sobre ou tro. A ord em social rep ou sa, em úl-
tima instância, na igualdade que é tam bém sua ruína. Nenhuma "con -
ven ção" pode mud ar nad a dessa falha da "n atu reza" se ela não for
alienação total e sem volta de tod a "liberd ad e" na qual essa iguald a-
de pod eria ter efeito. É preciso p ortanto id entificar originariam ente
igualdade e liberd ad e e liqu id á-las ju ntas. O absolu to da alienação e
o da soberania são necessários p rop orcionalm ente à iguald ad e. Isso
quer dizer tam bém que só são ju stificáveis a p reço de nomear a igual-
dade com o fu nd am ento e abism o p rim eiro da ord em com u n itária,
com o única razão da d esiguald ad e. E contra o fund o dessa iguald ad e
d oravante d eclarad a dispõem-se os elementos do litígio p olítico novo,
as razões da alienação e do inalienável que virão argum entar as no-
vas form as da guerra das classes.
De um lad o, a liberdade tornou -se o próprio dos indivíduos com o
tais, e da fábu la da alienação sairá, a contrap elo da intenção hobbe-
siana, a qu estão de saber se e em que cond ições os indivíduos podem
aliená-la totalm ente, sairá em suma o d ireito do indivíduo enqu anto
não-d ireito do Estad o, o título de qu alqu er um a p ôr em qu estão o Es-
tad o ou a servir de prova de sua infid elid ad e a seu p rincíp io. De ou-
tro lad o, o p ovo, que se pretend ia suprimir na tau tologia da sobera-
nia, ap arecerá com o a personagem que deve ser pressuposta p ara que
a alienação seja pensável e, em d efinitivo, com o o verd ad eiro su jeito
da soberania. É a d em onstração que Rou sseau opera na sua crítica a
Grócio. A "liberd ad e" do p ovo, que se devia liqu id ar, pod erá então
voltar, com o id êntica à realização do pod er com u m dos homens que
nascem "livres e iguais em d ireito". Ela pod erá argu m entar-se na es-
tru tu ra de um d ano rad ical, aquele cau sad o a esses homens que "n as-
ceram livres e em tod a a p arte se encontram a ferros". Aristóteles co-
nhecia o fato acid ental dessas pólis em que os p obres são "livres por
natu reza" e o p arad oxo que liga essa natu reza "acid en tal" à p róp ria
d efinição da natureza p olítica. Mas a ficção de origem , em sua trans-
form ação ú ltim a, torna o litígio da liberd ad e p róp ria e im própria do
povo no absolu to da contrad ição original de uma liberd ad e da qual
cad a su jeito — cad a homem — é originalm ente possuid or e d espos-
suíd o. H om em é então o su jeito mesmo da relação do tod o e do nad a,
o cu rto-circu ito vertiginoso entre o mund o d os seres que nascem e

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O Desentend im ento
m orrem e os term os da igualdade e da liberd ad e. E o direito, cu ja de-
term inação filosófica fora prod uzida p ara desfazer o nó do justo ao
litígio, torna-se o nom e novo, o nome p or excelência do d ano. Sob
qu alqu er d em onstração de uma contagem dos incontáveis, sob tod o
m od o de com u nid ad e organizad o para a m anifestação de um litígio,
estará d oravante presente a figura-mestra daquele cuja contagem é sem-
pre d eficitária: esse hom em que não é contad o enqu anto uma qual-
quer de suas réplicas não o for; m as, tam bém , que nu nca é contad o
em sua integrid ad e enqu anto não for contad o com o anim al p olítico.
Denu nciand o os com p rom issos da p ara-p olítica aristotélica com a se-
d ição que am eaça o corp o social e d ecom p ond o o demos em indiví-
d uos, a p ara-p olítica do con trato e da soberania reabre uma d istância
mais rad ical do que a velha d istância p olítica da parte tom ad a pelo
tod o. Ela dispõe a d istância do homem a si mesmo com o o fund o pri-
meiro e ú ltim o da d istância do povo a si m esm o.
Pois, ao mesmo tem po que o povo da soberania, apresenta-se seu
hom ônim o, que não se parece em nad a com ele, que é a d enegação ou
o escárnio da soberania, o povo p ré-p olítico ou fora-d o-p olítico que
se cham a p op u lação ou p op u lacho: p op u lação laboriosa e sofred ora,
massa ignorante, tu rba acorrentad a ou d esacorrentad a etc., cu ja fac-
tualid ad e entrava ou contrad iz a realização da soberania. Assim tor-
na a se estabelecer a d istância do povo m od erno, essa d istância que
está inscrita na con ju n ção p roblem ática dos term os do hom em e do
cid ad ão: elementos de um novo d ispositivo do litígio p olítico, em que
cad a term o serve para m anifestar a não-contagem do ou tro; m as, tam -
bém , p rincíp io de um restabelecim ento da d istância entre a arqu i-p o-
lítica e a p olítica e instalação dessa d istância sobre a p róp ria cena do
p olítico. Essa eficácia p olítica da d istância arqu i-política tem um nome.
Cham a-se terror. O terror é o agir p olítico que assume com o tarefa
política o pedido da efetu ação da arkhé com u nitária, de sua interiori-
zação e de sua sensibilização integral, que assum e, p ortan to, o p ro-
grama arqu i-p olítico mas que o assume nos term os da p ara-p olítica
m od erna, os da relação apenas entre o pod er soberano e indivíduos
qu e, cad a um no que lhe concerne, são sua d issolu ção virtu al, am ea-
çand o em si mesmos a cid ad ania que é a alm a do tod o.
N o fund o do d ano rad ical — a desumanidade do hom em —, vão
entrecru zar-se assim o d ano novo que coloca os indivíduos e seus di-
reitos em relação com o Estad o; o d ano que coloca o verd ad eiro so-
berano — o povo — às voltas com os usurpad ores da soberania; a di-

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Jacqu es Rancière
ferença do povo da soberania e do povo com o p arte; o d ano que op õe
as classes, e aquele que op õe a realid ad e de seus conflitos aos jogos
do indivíduo e do Estad o. É nesse jogo que se forja a terceira grand e
figura da "p olítica dos filósofos", que será cham ad a m eta-p olítica. A
m eta-p olítica ocu p a uma situ ação sim étrica em relação à arqu i-p olí-
tica. A arqu i-p olítica revogava a falsa p olítica, quer d izer, a d em ocra-
cia. Ela p roclam ava a d istância rad ical entre a verdadeira ju stiça, se-
m elhante à p rop orção d ivina, e as encenações d em ocráticas do d ano,
assimilad as ao reino da inju stiça. Sim etricam ente, a m eta-p olítica sen-
tencia um excesso rad ical da inju stiça ou da desigualdad e em relação
ao que a p olítica pode afirm ar de ju stiça ou de iguald ad e. Afirm a o
d ano absolu to, o excesso do d ano que arru ina tod a cond u ção p olíti-
ca da argu m entação igu alitária. N esse excesso ela revela, tam bém ela,
uma "verd ad e" do p olítico. Mas essa verdade é de um tip o p articu -
lar. N ão é a id éia do bem , a ju stiça, o kosmos divino ou a verd ad eira
igualdade que perm itiria institu ir uma verd ad eira com unid ad e no lu-
gar da m entira p olítica. A verdade da p olítica é a m anifestação de sua
falsid ad e. É essa d istância de tod a nom eação e de tod a inscrição p olí-
ticas em relação às realid ad es que as su stentam .
Sem dúvida essa realid ad e pode ser nom ead a, e a m eta-p olítica
a nom eará: social, classes sociais, m ovim ento real da socied ad e. Mas
o social só é essa verdade da p olítica a p reço de ser a verdade de sua
falsid ad e: m enos a carne sensível da qual a p olítica é feita, do que o
nome de sua falsid ad e rad ical. N o d ispositivo m od erno da "filosofia
p olítica", a verdad e da p olítica não está mais situad a acim a de si em
sua essência ou sua id éia. Está situad a abaixo ou atrás d ela, naqu ilo
que ela escond e e que ela é feita somente p ara escond er. A m eta-p o-
lítica é o exercício d aquela verd ad e, não mais situ ad a em face da fac-
tualidade d emocrática com o o bom modelo diante do simulacro m ortal,
mas com o o segredo de vida e de m orte, enrolad o no cerne mesmo de
qu alqu er d em onstração da p olítica. A m eta-p olítica é o d iscurso so-
bre a falsid ad e da p olítica que vem d uplicar cad a m anifestação p olíti-
ca do litígio, para provar seu d esconhecim ento de sua p róp ria verd a-
d e, m arcand o a cad a vez a d istância entre os nom es e as coisas, a dis-
tância entre a enu nciação de um logos do p ovo, do homem ou da ci-
d ad ania e o cálcu lo que dele é feito, a d istância revelad ora de uma in-
ju stiça fu nd am ental, ela mesma id êntica a uma m entira constitu tiva.
Se a arqu i-p olítica antiga propunha uma terap êu tica da saúde com u ni-
tária, a m eta-p olítica mod erna apresenta-se com o uma sintom atologia

101
O Desentend im ento
m orrem e os term os da igualdad e e da liberd ad e. E o direito, cu ja de-
term inação filosófica fora prod uzida p ara desfazer o nó do justo ao
litígio, torna-se o nom e novo, o nome p or excelência do d ano. Sob
qu alqu er d em onstração de uma contagem dos incontáveis, sob tod o
m od o de com u nid ad e organizad o p ara a m anifestação de um litígio,
estará doravante presente a figura-mestra daquele cu ja contagem é sem-
pre d eficitária: esse hom em que não é contad o enqu anto uma qual-
quer de suas réplicas não o for; m as, tam bém , que nu nca é contad o
em sua integrid ad e enqu anto não for contad o com o anim al p olítico.
Denu nciand o os com p rom issos da p ara-p olítica aristotélica com a se-
d ição que am eaça o corp o social e d ecom p ond o o demos em indiví-
d uos, a p ara-p olítica do con trato e da soberania reabre uma d istância
mais rad ical do que a velha d istância p olítica da parte tom ad a pelo
tod o. Ela dispõe a d istância do homem a si mesmo com o o fund o pri-
meiro e ú ltim o da d istância do povo a si m esm o.
Pois, ao mesmo tempo que o povo da soberania, apresenta-se seu
hom ônim o, que não se parece em nad a com ele, que é a d enegação ou
o escárnio da soberania, o povo p ré-p olítico ou fora-d o-p olítico que
se cham a p op u lação ou p op u lacho: p op u lação laboriosa e sofred ora,
massa ignorante, tu rba acorrentad a ou d esacorrentad a etc., cu ja fac-
tualid ad e entrava ou contrad iz a realização da soberania. Assim tor-
na a se estabelecer a d istância do povo m od erno, essa d istância que
está inscrita na con ju n ção p roblem ática dos term os do homem e do
cid ad ão: elementos de um novo d ispositivo do litígio p olítico, em que
cad a term o serve para m anifestar a não-contagem do ou tro; m as, tam -
bém , p rincíp io de um restabelecim ento da d istância entre a arqu i-p o-
lítica e a p olítica e instalação dessa d istância sobre a p róp ria cena do
p olítico. Essa eficácia política da d istância arqui-política tem um nome.
Cham a-se terror. O terror é o agir p olítico que assume com o tarefa
política o pedido da efetu ação da arkhé com u nitária, de sua interiori-
zação e de sua sensibilização integral, que assum e, p ortan to, o p ro-
gram a arqu i-p olítico mas que o assume nos term os da p ara-p olítica
m od erna, os da relação apenas entre o pod er soberano e indivíduos
qu e, cad a um no que lhe concerne, são sua d issolu ção virtu al, am ea-
çand o em si mesmos a cid ad ania que é a alma do tod o.
N o fundo do d ano rad ical — a desumanidade do hom em —, vão
entrecru zar-se assim o d ano novo que coloca os indivíduos e seus di-
reitos em relação com o Estad o; o d ano que coloca o verd ad eiro so-
berano — o povo — às voltas com os usurpad ores da soberania; a di-

100
Jacqu es Rancière
ferença do povo da soberania e do povo com o p arte; o d ano que op õe
as classes, e aquele que op õe a realid ad e de seus conflitos aos jogos
do indivíduo e do Estad o. É nesse jogo que se forja a terceira grand e
figura da "p olítica dos filósofos", que será cham ad a m eta-p olítica. A
m eta-p olítica ocu p a uma situ ação sim étrica em relação à arqu i-p olí
tica. A arqu i-p olítica revogava a falsa p olítica, quer d izer, a d em ocra-
cia. Ela p roclam ava a d istância rad ical entre a verd ad eira ju stiça, se-
m elhante à p rop orção d ivina, e as encenações d em ocráticas do d ano,
assimilad as ao reino da inju stiça. Sim etricam ente, a m eta-p olítica sen-
tencia um excesso rad ical da inju stiça ou da desigualdad e em relação
ao que a p olítica pode afirm ar de ju stiça ou de iguald ad e. Afirm a o
d ano absolu to, o excesso do d ano que arru ina tod a cond u ção p olíti-
ca da argu m entação igu alitária. Nesse excesso ela revela, tam bém ela,
uma "verd ad e" do p olítico. Mas essa verdade é de um tip o p articu -
lar. N ão é a id éia do bem , a ju stiça, o kosmos divino ou a verd ad eira
igualdade que p erm itiria institu ir uma verd ad eira com unid ad e no lu-
gar da m entira p olítica. A verdade da p olítica é a m anifestação de sua
falsid ad e. E essa d istância de tod a nom eação e de tod a inscrição p olí-
ticas em relação às realid ad es que as su stentam .
Sem dúvida essa realid ad e pode ser nom ead a, e a m eta-p olítica
a nom eará: social, classes sociais, m ovim ento real da socied ad e. Mas
o social só é essa verdade da p olítica a p reço de ser a verdade de sua
falsid ad e: m enos a carne sensível da qual a p olítica é feita, do que o
nome de sua falsid ad e rad ical. N o d ispositivo m od erno da "filosofia
p olítica", a verdade da p olítica não está mais situad a acim a de si em
sua essência ou sua id éia. Está situad a abaixo ou atrás d ela, naqu ilo
que ela escond e e que ela é feita som ente p ara escond er. A m eta-p o-
lítica é o exercício d aquela verd ad e, não mais situad a em face da fac-
tualidade d emocrática com o o bom modelo diante do simulacro m ortal,
mas com o o segredo de vida e de m orte, enrolad o no cerne mesmo de
qu alqu er d em onstração da p olítica. A m eta-p olítica é o d iscurso so-
bre a falsid ad e da p olítica que vem d uplicar cad a m anifestação p olíti-
ca do litígio, p ara provar seu d esconhecim ento de sua p róp ria verd a-
d e, m arcand o a cad a vez a d istância entre os nom es e as coisas, a dis-
tância entre a enu nciação de um logos do p ovo, do homem ou da ci-
d ad ania e o cálcu lo que dele é feito, a d istância revelad ora de uma in-
ju stiça fu nd am ental, ela mesma id êntica a uma m entira constitu tiva.
Se a arqu i-p olítica antiga propunha uma terap êu tica da saúde com u ni-
tária, a m eta-p olítica mod erna apresenta-se com o uma sintom atologia

101
O Desentend im ento
qu e, em cad a d iferença p olítica, por exem p lo, na do homem e do ci-
d ad ão, d etecta um signo de não-verd ad e.
Foi evidentemente Mar x quem, muito particularmente em A ques-
tão judaica, deu a form u lação canônica da interp retação m eta-p olítica.
O alvo continu a sendo o mesmo de Platão, ou seja, a d em ocracia com o
p erfeição de uma certa p olítica, quer d izer, p erfeição de sua m entira.
O princípio de seu qu estionam ento é d ad o estritam ente pela d istância
entre um id eal id entificad o à figu ração rou sseau niana da soberania
cid ad ã e uma realid ad e concebid a nos term os hobbesianos da luta de
tod os contra tod os. O tratam ento dessa d istância entre o homem hobbe-
siano e o cidadão rousseauniano sofre ele mesmo, no desenrolar do texto,
uma inflexão significativa. De início, significa o limite da p olítica, sua
im potência para realizar a parte propriam ente humana do hom em . A
em ancipação humana é então a verdade da humanidade livre para além
dos limites da cid ad ania p olítica. Mas, d urante o p ercu rso, essa verda-
de do homem muda de lugar. O homem não é a realização p or vir para
além da rep resentação p olítica. Ele é a verdade escond id a sob essa re-
presentação: o homem da sociedade civil, o proprietário egoísta ao qual
correspond e o não-p rop rietário, cu jos d ireitos de cid ad ão só estão ali
para m ascarar seu não-d ireito rad ical. A falha da cid ad ania em reali-
zar a verd ad eira humanidad e do homem torna-se a sua cap acid ad e de
servir, m ascarand o-os, os interesses do homem p rop rietário. A "p arti-
cip ação" p olítica é então a pura m áscara da rep artição das p arcelas. A
p olítica é a mentira sobre uma verdade que se cham a a socied ad e. Mas,
recip rocam ente, o social é sempre red utível, em última instância, à sim-
ples não-verd ad e da p olítica.
O social com o verdade do p olítico está preso num esqu arteja-
m ento notável. N um p ólo, ele pode ser o nom e "realista" e "cien tífi-
co " da "hu m anid ad e do h om em ". O m ovim ento da p rod u ção e o da
luta de classes são então o m ovim ento verd ad eiro que deve, med ian-
te sua realização, dissipar as aparências da cid ad ania p olítica em pro-
veito da realid ad e do hom em p rod u tor. Mas essa positivid ad e é de
p ronto corroíd a pela ambigüid ad e do conceito de classe. Classe é de
m aneira exem p lar um desses hom ônim os sobre os quais se dividem
as contagens da ordem p olicial e as da m anifestação p olítica. N o sen-
tid o p olicial, uma classe é um agru pam ento de homens aos quais sua
origem ou sua ativid ade lhes confere um estatu to e uma p osição par-
ticu lar. Classe, nesse sentid o, pode d esignar, no sentido fraco, um gru-
po p rofissional. Fala-se assim , no século XIX, da classe dos impres-

100 Jacqu es Rancière


sores ou dos chap eleiros. N o sentid o forte, classe é sinônim o de cas-
ta. Daí o ap arente p arad oxo segund o o qual aqueles que se contam
sem p roblem a na enu m eração das classes op erárias recusam no mais
das vezes reconhecer a existência de uma classe op erária, que consti-
tui uma d ivisão da socied ad e e lhes dê uma identidad e esp ecífica. N o
sentido p olítico, uma classe é outra coisa completamente diferente: um
op erad or do litígio, um nome para con tar os incontad os, um m od o
de su bjetivação sobre-im p resso sobre tod a e qu alqu er realid ad e dos
grupos sociais. O demos ateniense ou o p roletariad o no qual se con-
ta o "bu rgu ês" Blanqu i são classes desse tip o, isto é, poderes de des-
classificação das espécies sociais, dessas "classes" que p ortam o mes-
mo nome que elas. Ora, entre esses dois tipos de classes rigorosamente
antagônicos, a m eta-p olítica m arxista instau ra uma ambigüid ad e em
que se concentra tod o o desentendimento filosófico do desentendi-
mento p olítico.
Este se resume na d efinição do p roletariad o: "classe da socied a-
de que não é mais uma classe da socied ad e", diz a Introd u ção à Críti-
ca da filosofia do direito de H egel. O p roblem a é que M a r x com esses
term os apenas dá uma d efinição rigorosa do que é classe no sentid o
p olítico, quer d izer, no sentid o da luta de classes. O nome de p roleta-
riad o é o puro nome dos incontad os, um m od o de su bjetivação que
coloca num litígio novo a p arcela dos sem -p arcela. Mar x renom eia,
p or assim d izer, essas "classes" que a ficção do homem e da sobera-
nia queria liqu id ar. Mas ele as renom eia de m od o p arad oxal. Ele as
renom eia com o a verdade infra-p olítica, na qual a m entira p olítica é
levada a d esabar. A excep cionalid ad e usual da classe que é uma não-
classe, ele a pensa com o o resu ltad o de um p rocesso de d ecom p osição
social. Faz, em su m a, de uma categoria da p olítica o conceito de não-
verdade da p olítica. A p artir d aí, o conceito de classe entra numa os-
cilação ind efinid a que é tam bém a oscilação do sentid o da m eta-p olí-
tica entre um rad icalism o da "verd ad eira" p olítica sim étrico ao da
arqu i-p olítica p latônica e um niilismo da falsidade de toda política que
é tam bém um niilism o p olítico da falsid ad e de tod a coisa.
N um p rim eiro sentid o, de fato, o conceito de classe vale com o a
verdade da m entira p olítica. Mas essa verdade mesma oscila entre dois
p ólos extrem os. De um lad o, tem a positivid ad e de um conteú d o so-
cial. A luta de classes é o m ovim ento verd ad eiro da socied ad e e o p ro-
letariad o, ou a classe op erária, é a força social que leva esse movimento
até o p onto em que sua verdade faz a ilusão p olítica estilhaçar. Assim

O Desentend im ento 101


d efinid os, a classe op erária ou o p roletariad o são positivid ad es sociais
e sua "verd ad e" se presta a su p ortar tod as as incorp orações éticas do
povo trabalhad or e p rod u tor. Mas, no ou tro p ólo, são d efinid os p or
sua mera negativid ad e de "n ão-classes". São os puros op erad ores do
ato revolu cionário por cu ja medida não somente tod o grupo social p o-
sitivo com o tím bém tod a form a de su bjetivação d em ocrática apare-
cem com o afetad os de um d éficit rad ical. Nesses dois p ólos extrem os
definem-se, no sentido estrito, dois extrem ism os: um extrem ismo infra-
p olítico da classe, isto é, da incorp oração social das classes p olíticas,
e um extrem ism o u ltra-p olítico de não-classe, extrem ism os op ostos os
quais a hom onim ia da classe e da não-classe permite se fundirem numa
única figura terrorista.
Com o verdade da m entira p olítica, o conceito de classe torna-se
p ortanto a figura central de uma m eta-p olítica, pensad a, segundo um
dos d ois sentid os do p refixo, com o um além da p olítica. Mas a m eta-
p olítica entend e-se sim ultaneam ente segundo o ou tro sentid o do pre-
fixo, que é o de um acompanhamento. Acom p anham ento científico
da p olítica, em que a red u ção das form as da p olítica às forças da luta
de classes vale antes de tu d o com o verdade da mentira ou verdade da
ilu são. Mas tam bém acom p anham ento "p olítico" de tod a e qu alqu er
form a de su bjetivação, que coloca com o sua verdade "p olítica" escon-
dida a luta de classes que ela d esconhece e não pode não d esconhecer.
A meta-política pode ir prender-se a qualquer fenômeno com o demons-
tração da verdade de sua falsid ad e. Para essa verdade da falsid ad e, o
gênio de M a r x inventou uma p alavra-chave que tod a a mod ernid ad e
ad otou , mesmo voltand o-a às vezes contra ele. Cham ou -a de ideolo-
gia. Id eologia não é apenas uma palavra nova para d esignar o simu-
lacro ou a ilu são. Id eologia é a palavra que assinala o estatu to inéd ito
da verdade forjad a pela m eta-p olítica: a verdade enqu anto verdade do
falso: não a clareza da idéia em face da obscu rid ad e das ap arências;
não a verdade com o ind ício de si mesma e da falsid ad e m as, ao con-
trário, a verdade da qual só o falso é ind ício; a verdade que nad a mais
é que a evid enciação da falsid ad e, a verdade com o p arasitagem uni-
versal. Ideologia é então tu d o menos um nome novo para uma velha
n oção. Ao inventá-la, M a r x inventa p ara um tem po que aind a dura
um regime inau d ito do verd ad eiro, e uma con exão inéd ita da verdade
no p olítico. Id eologia é o nome da d istância ind efinid am ente denun-
ciad a das palavras e das coisas, o op erad or conceitu ai que organiza
as ju nções e as d isju nções entre os elem entos do d ispositivo p olítico

100
Jacqu es Rancière
m od erno. Alternativam ente, perm ite reduzir a ap arência p olítica do
povo a ilu são, recobrind o a realid ad e do conflito ou , ao con trário, de-
nu nciar os nomes do povo e as m anifestações de seu litígio com o ve-
lharias que retard am o ad vento dos interesses com u ns. Id eologia é o
nom e que liga a p rod u ção do p olítico à sua evacu ação, que designa a
d istância das p alavras às coisas com o falsid ad e na p olítica sem pre
transform ável em falsidad e da p olítica. Mas é tam bém o conceito pelo
qu al se d eclara que qu alqu er coisa pertence à p olítica, à d em onstra-
ção "p olítica" de sua falsid ad e. E em suma o conceito onde tod a p o-
lítica se anu la, seja p or sua evanescência p roclam ad a, seja, ao con trá-
rio, pela afirm ação de que tudo é p olítica, o que significa dizer que nada
o é, que a p olítica é apenas o m od o p arasitário da verd ad e. Id eologia
é, d efinitivamente, o term o que permite sempre d eslocar o lugar do po-
lítico até seu lim ite: a d eclaração de seu fim . O que se cham a, em lin-
guagem p olicial, "o fim do p olítico" não é talvez nad a mais que o re-
m ate do p rocesso pelo qual a m eta-p olítica, enrolad a no coração do
p olítico e enroland o em volta de qu alqu er coisa o nom e do p olítico, o
esvazia do interior, e faz d esap arecer, em nome da crítica de tod a ap a-
rência, o d ano constitu tivo do p olítico. N o final do p rocesso, o d ano,
d epois de ter passad o pelo abism o de sua absolu tização, é trazid o de
volta à iteração infinita da verdade da falsid ad e, à pura m anifestação
de uma verdade vazia. A p olítica que ele fundava pode então id entifi-
car-se ao inatingível p araíso original onde indivíduos e grupos utili-
zam a p alavra, que é o p róp rio do hom em , p ara conciliar seus inte-
resses p articu lares no reino do interesse geral. O fim da p olítica que
se p ronu ncia no túmulo dos m arxism os p oliciais é em suma apenas a
ou tra form a, a form a cap italista e "liberal" da m eta-p olítica m arxis-
ta. O "fim da p olítica" é o estágio supremo da parasitagem m eta-p o-
lítica, a afirm ação última do vazio de sua verd ad e. O "fim da p olíti-
ca " é a realização da filosofia p olítica.
Mais exatam ente, o "fim da p olítica" é o fim da relação tensa
da p olítica e da m eta-p olítica que caracterizou a era das revoluções de-
m ocráticas e sociais m od ernas. Essa relação tensa se estabeleceu na in-
terp retação da d iferença do homem e do cid ad ão, do povo sofred or/
trabalhad or e do povo da soberania. H á com efeito duas grand es m a-
neiras de pensar e de tratar essa d istância. A prim eira é a da m eta-p o-
lítica. Esta vê na d istância a d enúncia de uma id entificação im possí-
vel, o sinal da não-verd ad e do povo ideal da soberania. Define com o
d em ocracia form al o sistema das inscrições ju ríd icas e das institu ições

101
O Desentend im ento
governam entais fu nd ad o no conceito da soberania do p ovo. Assim
caracterizad a, a "fo r m a " é op osta a um conteú d o virtual ou ausente,
à realid ad e de um pod er que pertenceria realm ente à com u nid ad e po-
pu lar. A p artir d aí, seu sentid o pode variar, desde a simples ilusão que
mascara a realidade do poder e do desapossamento até o mod o de apre-
sentação necessário de uma contrad ição social aind a não desenvolvi-
da su ficientem ente. Em tod os os casos, a interp retação m eta-p olítica
da d iferença do povo em relação a si mesmo cind e em duas tod a cena
p olítica: há aqueles que jogam o jogo das form as — da reivind icação
dos d ireitos, da batalha pela rep resentação etc. — e os que cond uzem
a ação d estinad a a fazer d esvanecer esse jogo das form as; de um lad o,
o povo da rep resentação ju ríd ico-p olítica, do ou tro, o povo do movi-
m ento social e op erário, o ator do m ovim ento verd ad eiro que supri-
me as ap arências p olíticas da d em ocracia.
A essa interp retação m eta-p olítica da d istância entre o homem e
o cid ad ão, entre o povo laborioso e o povo soberano, op õe-se a inter-
p retação p olítica. Que o povo seja d iferente de si mesmo não é, para
a p olítica, um escând alo que se precise d enu nciar. É a cond ição pri-
meira de seu exercício. H á p olítica desde que exista a esfera de apa-
rência de um su jeito povo cu ja propried ad e consiste em ser d iferente
de si m esm o. Logo, do p onto de vista p olítico, as inscrições da igual-
dade que figu ram nas Declarações d os Direitos do H om em ou nos
p reâm bu los dos Cód igos e das Constitu ições, as que m aterializam tal
ou qual institu ição ou que estão gravad as no frontão de seus ed ifícios,
não são "form as" desmentidas por seu conteúd o ou "ap arências" feitas
para escond er a realid ad e. São um m od o efetivo do ap arecer do p ovo,
o mínimo de igualdade que se inscreve no cam p o da exp eriência co-
mum. O p roblem a não é acu sar a d iferença entre essa iguald ade exis-
tente e tu d o o que a d esmente. N ão se trata de d esmentir a ap arência,
mas ao contrário de confirm á-la. Lá ond e está inscrito a p arcela dos
sem -p arcela, p or frágeis e fugazes que sejam essas inscrições, é criad a
uma esfera do ap arecer do demos, existe um elem ento do kratos, do
pod er do p ovo. O p roblem a está em am p liar a esfera desse ap arecer,
em au m entar esse p od er.
Su peravaliar esse pod er quer dizer criar casos de litígio e mun-
dos de comunidad e do litígio mediante a d em onstração, sob tal ou qual
esp ecificação, da d iferença entre o povo e ele m esm o. N ão há, de um
lad o, o povo ideal dos textos fund ad ores e, do ou tro lad o, o povo real
das oficinas e dos su bú rbios. H á um lugar de inscrição do pod er do

100
Jacqu es Rancière
povo e lugares ond e esse pod er é consid erad o sem efeito. O esp aço d o
trabalho ou o esp aço d om éstico não desmentem o poder escrito nos
textos. Para d esm enti-lo, seria preciso que tivessem primeiramente que
confirm á-lo, que fossem relativos a ele. Ora, segundo a lógica p olici-
al, ninguém vê com o e por que o seriam . O p roblem a é p ortanto cons-
tru ir uma relação visível com a não-relação, um efeito de um pod er
que su p ostam ente não tem efeito. N ão se trata mais de interp retar no
m od o sintom atológico a d iferença de um povo com ou tro. Trata-se
de interp retar, no sentid o teatral da p alavra, a d istância entre um lu-
gar ond e o demos existe e um lugar ond e ele não existe, ond e só há
p op u lações, ind ivíd uos, em pregad ores e em p regad os, chefes de fam í-
lia e esposas etc. A p olítica consiste em interp retar essa relação, quer
dizer, primeiramente constitu ir sua d ram aturgia, inventar o argumento
no duplo sentid o, lógico e d ram ático, do term o, que coloca em rela-
ção o que não tem relação. Essa invenção não é nem obra do p ovo da
soberania e de seus "rep resen tan tes", nem obra do p ovo/não-p ovo do
trabalho e de sua "tom ad a de con sciên cia".
Ela é obra do que se pod eria cham ar um terceiro p ovo, que ope-
ra sob esse nome ou sob aqu elou tro nom e, que liga um litígio p arti-
cu lar à contagem dos incontad os. Proletário foi o nome privilegiad o
sob o qual se deu essa ligação. Isto é, que esse nome de "classe que
não é classe" qu e, na m eta-p olítica, valeu com o o p róp rio nom e da
verdade da ilu são p olítica, valeu , na p olítica, com o um desses nom es
de su jeito que organizam um litígio: não o nom e de uma vítim a uni-
versal, antes o nome de um su jeito u niversalizante do d ano. Valeu
com o nome de um m od o de su bjetivação p olítica. Em p olítica, um
su jeito não tem corp o consistente, ele é um ator interm itente que tem
m om entos, lu gares, ocorrências e cu jo caráter p róp rio é inventar, no
duplo sentid o, lógico e estético, desses term os, argumentos e demons-
trações para colocar em relação a não-relação e d ar lugar ao não-lu -
gar. Essa invenção opera-se em form as que não são as "form as" meta-
p olíticas de um "con teú d o" p roblem ático, mas as form as de um ap a-
recer do povo que se opõe à "ap arên cia" m eta-p olítica. E, da mesma
m aneira, o "d ireito" não é o atribu to ilu sório de um su jeito id eal, é o
argu m ento de um d ano. Já que a d eclaração igu alitária existe em al-
gum lu gar, é possível efetu ar a sua p otência, organizar seu encontro
com o usual ancestral da d istribu ição dos corp os colocand o a ques-
tão: tal ou qual tip o de relação está com p reend id o ou não na esfera
de m anifestação da igualdade dos cid ad ãos? Qu and o op erários fran-

101
O Desentend im ento
ceses, no tem po da m onarqu ia burguesa, fazem a pergunta: "O s ope-
rários franceses são cid ad ãos fran ceses?", isto é: "têm os atribu tos
reconhecid os pela Carta real aos franceses iguais perante a lei?", ou
então, qu and o suas "ir m ãs" fem inistas, no tem po da Rep ú blica, fa-
zem a p ergu nta: "As francesas estão incluíd as entre os "fran ceses"
d etentores do sufrágio universal}", uns e ou tros partem realm ente da
d istância entre a inscrição igu alitária da lei e os esp aços em que a de-
sigualdade faz lei. Mas não conclu em d aí, de form a algu m a, o não-
lugar do texto igu alitário. Ao contrário, inventam-lhe um novo lugar:
o esp aço p olêm ico de uma d em onstração que mantém ju ntas a igual-
dade e sua au sência. A d em onstração, com o vim os, exibe ao mesmo
tempo o texto igu alitário e a relação d esigualitária. Mas tam bém , por
essa própria exibição, pelo fato de dirigir-se a um interlocu tor que não
reconhece a situ ação de in terlocu ção, faz com o se ela se exercesse
numa com u nid ad e cu ja inexistência ela d em onstra, ao mesmo tem-
p o. Ao jogo m eta-p olítico da ap arência e de seu d esm entid o, a p olíti-
ca d em ocrática opõe essa p rática do como se que constitu i as form as
de ap arecer de um su jeito e que abre uma com unid ad e estética, à ma-
neira kantiana, uma comunid ad e que exige o consentim ento d aquele
mesmo que não a reconhece.
N os mesmos nom es, o m ovim ento social e op erário m od erno
apresenta assim o entrelaçam ento de duas lógicas contrárias. Sua pa-
lavra-chave, a de p roletário, designa d ois "su jeitos" m uito d iferentes.
Do p onto de vista m eta-p olítico, designa o op erad or do m ovim ento
verd ad eiro da socied ad e que d enuncia e deve fazer estilhaçar as apa-
rências d em ocráticas da p olítica. Dessa form a, a classe d esclassifi-
cad ora, a "d issolu ção de tod as as classes", tornou -se o su jeito de uma
reincorp oração do p olítico no social. Ela serviu para ed ificar a figura
mais rad ical da ordem arqu i-policial. Do ponto de vista p olítico, é uma
ocorrência específica do demos, um sujeito d em ocrático, que opera uma
d em onstração de seu pod er na constru ção de mundos de com u nid ad e
litigiosa, que universaliza a questão da contagem dos incontad os, além
de qu alqu er acerto, aquém do d ano infinito. "O p er á r io" e "p roletá-
r io" foram assim os nomes de atores de um duplo p rocesso: atores da
p olítica d em ocrática, que exp õem e tratam a d istância entre o povo e
ele m esm o; e figuras m eta-p olíticas, atores do "m ovim ento real" co-
locad o com o d issipad or da ap arência p olítica e de sua form a supre-
m a, a ilu são d em ocrática. A m eta-p olítica veio inserir sua relação da
ap arência com a realid ad e em tod as as form a de litígio do p ovo. Mas

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Jacqu es Ran cière
a recíp roca tam bém é verd ad eira: p ara constru ir suas argu m entações
e suas m anifestações, para p ôr em relação as form as de visibilid ad e
do logos igu alitário com seus lugares de invisibilid ad e, o m ovim ento
social e op erário teve de reconfigu rar as relações do visível e do invi-
sível, as relações entre os m od os do fazer, os m od os do ser e os m o-
dos do dizer que op eram em favor dos trabalhad ores e de sua p ala-
vra. Mas, p ara fazer isso, não d eixou de retom ar as argu m entações
m eta-p olíticas que ligam o ju sto e o inju sto aos jogos da verdade "so-
cial" e da falsid ad e "p olítica". A m eta-p olítica interpretava com o sin-
tom as de não-verd ad e as form as da d istância d em ocrática. Mas não
d eixou de ser, ela m esm a, reinterp retad a, de dar m atéria e form a a ou-
tras m aneiras de estabelecer a d istância e de aboli-la.
O d isp ositivo de con ju n to dessas entre-interp retações tem um
nom e. Cham a-se o social. Se as relações da p olícia e da p olítica são
d eterm inad as p or algumas p alavras-chave, alguns hom ônim os m aio-
res, pode-se dizer que o social, na m od ernid ad e, foi o hom ônim o de-
cisivo que fez que diversas lógicas e entrelaçam entos de lógicas se ju n-
tassem e se separassem , se opusessem e se confu nd issem . Os "restau -
rad ores" au top roclam ad os do p olítico e de "su a " filosofia se com p ra-
zem na op osição do p olítico e de um social que se teria usurpado suas
p rerrogativas de form a ind evid a. Mas o social foi p recisam ente, na
ép oca m od erna, o lugar ond e se jogou a p olítica, o p róp rio nom e que
ela tom ou , lá ond e ela não foi simplesmente id entificad a à ciência do
governo e aos meios de ap od erar-se dele. Esse nom e é, na verd ad e, se-
m elhante ao de sua n egação. Mas tod a p olítica trabalh a sobre o
hom ônim o e o ind iscernível. Tod ^ p olítica trabalha tam bém à beira
de seu perigo rad ical, que é a incorp oração p olicial, a realização do
su jeito p olítico com o corp o social. A ação p olítica m antém -se sempre
no interm éd io, entre a figura "n a tu r a l", a figura p olicial da incorp o-
ração de uma socied ad e dividida em órgãos fu ncionais e a figura li-
mite de uma incorp oração arqu i-p olítica ou m eta-p olítica d iferente: a
transform ação do su jeito que serviu à d esincorp oração do corp o so-
cial "n atu ral" num corp o glorioso da verdade. A época do "m ovim ento
social" e das "revolu ções sociais" foi aqu ela em que o social teve to-
dos esses papéis. Foi p rim eiram ente o nom e p olicial da d istribu ição
dos grupos e das fu nções. Foi, ao con trário, o nom e sob o qu al d ispo-
sitivos p olíticos de su bjetivação vieram contestar a natu ralid ad e des-
ses grupos e dessas fu nções, fazend o com p u tar a p arcela dos sem -p ar-
cela. Foi, enfim , o nome m eta-p olítico de uma verdade da p olítica, ver-

101
O Desentend im ento
dade que assu m iu , ela p róp ria, duas form as: a positivid ad e d o m o-
vimento real cham ad o a encarnar-se com o p rincíp io de um novo cor-
po social, mas tam bém a pura negativid ad e da d em onstração interm i-
nável da verdade da falsid ad e. O social foi o nome com u m de tod as
essas lógicas e aind a o nom e de seu entrelaçam ento.
Isso quer dizer tam bém que a "ciên cia social", acu sad a p or uns
de ter frau d u losam ente introd u zid o sua empiricid ad e nas altu ras re-
servad as da filosofia p olítica, lou vad a p elos ou tros p or ter desmis-
tificad o os conceitos supostamente elevados dessa filosofia, foi na ver-
dade a p róp ria form a de existência da filosofia p olítica na era das re-
volu ções d em ocráticas e sociais. A ciência social foi a última form a
assumida pela relação tensa da filosofia e da p olítica e pelo p rojeto fi-
losófico de realizar a p olítica, su p rim ind o-a. Esse conflito e esse p ro-
jeto se fizeram nos avatares da ciência m arxista ou da sociologia dur-
kheim iana ou w eberiana, m u ito mais que nas form as su p ostam ente
puras da filosofia p olítica. A m eta-p olítica m arxista d efiniu a regra do
jogo: o d eslocam ento entre o verd ad eiro corp o social escond id o sob a
ap arência p olítica e a afirm ação interm inável da verdade científica da
falsidade p olítica. A arqu i-p olítica p latônica deu à primeira ciência so-
cial seu m od elo: a com u nid ad e orgânica, d efinid a pela boa engrena-
gem de suas fu nções sob o governo de uma religião nova da com u ni-
d ad e. A p ara-p olítica aristotélica deu à sua segunda era o m od elo de
uma com u nid ad e sabiam ente d istanciad a de si m esm a. A últim a era
da sociologia, que é tam bém o últim o avatar da filosofia p olítica, é a
exp osição da pura regra do jogo: era do vazio, já foi d ito, era em que
a verdade do social está reduzida à da p arasitagem infinita da verd a-
de vazia. Os sociólogos da terceira era às vezes cham am isso de "fim
do p olítico". Talvez agora estejam os em cond ições de com p reend ê-lo:
esse "fim do p olítico" é estritam ente id êntico ao que os rem end ões da
"filosofia p olítica" cham am "volta do p olítico". Voltar à pura p olíti-
ca e à pureza da "filosofia p olítica" tem hoje um ú nico sentid o. Signi-
fica voltar a aquém do conflito constitu tivo da p olítica mod erna com o
do conflito fu nd am ental da filosofia e da p olítica, voltar a um grau
zero da p olítica e da filosofia: id ílio teórico de uma d eterm inação fi-
losófica do bem que a com u nid ad e p olítica teria por tarefa realizar;
id ílio p olítico da realização do bem com u m pelo governo esclarecid o
das elites ap oiad o na confiança das massas. A volta "filosófica" da po-
lítica e seu "fim " sociológico são uma ú nica e mesma coisa.

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Jacqu es Rancière
DEMO CRACIA OU CON SEN SO

A esse estad o id ílico do p olítico dá-se geralm ente o nome de de-


m ocracia consensu al. Tentarem os m ostrar aqui que esse conceito é,
com tod o o rigor, a con ju n ção de term os contrad itórios. Prop orem os
p ortan to, p ara refletir sobre esse objeto mais singular do que p arece,
o nome de p ós-d em ocracia. A ju stificativa desse nom e passa som ente
pela exp licitação de alguns p arad oxos inerentes ao discurso atualmente
d om inante sobre a d em ocracia.
De um lad o, ouvimos p or tod a parte p roclam ar o triu nfo da de-
m ocracia, correlativo do d esabam ento dos cham ad os sistemas totali-
tários. Esse triu nfo seria d uplo. Seria, p rim eiro, uma vitória da d emo-
cracia, entend id a com o regime p olítico, sistema das institu ições que
materializam a soberania popular, sobre seu ad versário, a prova de que
esse regime é ao mesmo tem po o mais ju sto e o mais eficaz. A falência
dos cham ad os Estad os totalitários é de fato uma falência em relação
ao que era sua legitim ação ú ltim a: o argu m ento de eficiência, a cap a-
cid ad e do sistema para fornecer as cond ições m ateriais de uma com u -
nidade nova. Resu lta daí uma legitim ação reforçad a do cham ad o re-
gime d em ocrático: a idéia de que ele garante num mesmo m ovim ento
as form as p olíticas da ju stiça e as form as econôm icas de p rod u ção da
riqu eza, de com p osição dos ju ros e de otim ização dos ganhos p ara to-
d os. Mas é tam bém , ao que p arece, uma vitória da d em ocracia, com o
prática do p olítico a seus próprios olhos. A som bra de uma dúvida per-
sistente da d em ocracia sobre si mesma sempre p airou sobre a história
do movimento d emocrático ocid ental. Esta se resumiu na oposição mar-
xista da d em ocracia form al e da d em ocracia real, op osição m eta-p o-
lítica m u itas vezes interiorizad a na p róp ria cond u ção do litígio p olíti-
co. A d em ocracia nunca d eixou de estar sob suspeita até aos olhos dos
p róp rios d em ocratas. Aqueles que lutavam com mais vigor pelos di-
reitos d em ocráticos eram m uitas vezes os prim eiros a suspeitar de que
esses d ireitos eram apenas form ais, não eram mais que a som bra da
verd ad eira d em ocracia. Ora, a falência do sistema totalitário p arece
levantar finalm ente a hip oteca de uma d em ocracia "r ea l" que alim en-

O Desentend im ento 101


# MéDiaxH èQu e
MaisondeFrance
tava a suspeita sobre a d em ocracia. Parece, p ortan to, possível valori-
zar sem reservas as form as da d em ocracia, entend id as com o os d ispo-
sitivos institu cionais da soberania do p ovo, id entificar simplesmente
d em ocracia e Estad o de d ireito, Estad o de d ireito e liberalism o e re-
conhecer na d em ocracia a figura ideal de uma realização da physis do
homem que empreend e e d eseja enqu anto nomos com u nitário.
Esse sucesso da d em ocracia se atribu i com freqü ência à retirad a
de uma segunda hip oteca, aqu ela colocad a pela idéia de p ovo. A de-
m ocracia hoje renu nciaria a colocar-se com o o pod er do p ovo. Ela
aband onaria a dupla figura do povo que pesou sobre a p olítica na era
das revolu ções m od ernas: a id entificação rou sseau niana d o povo ao
su jeito da soberania, e a id entificação m arxista — e mais am p lam en-
te socialista — ao trabalhad or com o figura social em p írica e ao p ro-
letário ou p rod u tor com o figura de uma su p eração da p olítica em sua
verd ad e. Diz-se que esse povo superd eterm inad o obstava o verd ad ei-
ro con trato p olítico, aquele pelo qual os indivíduos e os grupos con-
cord am acerca das form as ju ríd ico-p olíticas cap azes de garan tir a
coexistência de tod os e a p articip ação ótim a de cad a um nos bens da
coletivid ad e.
Tal é, grosso m od o, o esquema de legitim ação da d em ocracia
que fu nciona com o balanço da catástrofe totalitária. Ora, esse esque-
ma esbarra num p arad oxo. N orm alm ente, a ruína d os "m it os" do
povo e da d em ocracia "r ea l" deveria levar à reabilitação da d emo-
cracia "for m a l", ao reforço da ad esão aos d ispositivos institu cionais
da soberania do povo e p rincip alm ente às form as do controle p arla-
m entar. Ora, não é de m od o nenhum o que acontece. N o sistem a po-
lítico francês, p or exem p lo, observa-se uma d egrad ação contínu a da
rep resentação p arlam entar, a extensão dos pod eres p olíticos de ins-
tâncias não-resp onsáveis (p eritos, ju izes, com issões...), o crescim ento
do cam p o reservad o ao presid ente e de uma concep ção carism ática
da figura presid encial. O p arad oxo é o seguinte: na ép oca em que as
institu ições da rep resentação p arlam entar eram contestad as, em que
prevalecia a idéia de que elas eram "ap en as for m as", eram no entan-
to objeto de uma vigilância m ilitante bem su p erior. E vimos gerações
de m ilitantes socialistas e com u nistas lu tarem ferozm ente p or uma
Constitu ição, d ireitos, instituições e fu ncionam entos institucionais dos
quais d iziam , p or ou tro lad o, que exp rim iam o pod er da burguesia e
do cap ital. H oje, a situ ação se acha invertid a e a vitória da cham ad a
d em ocracia form al vem acom panhad a p or uma sensível perda de afei-

100 Jacqu es Rancière


ção p or suas form as. O ar do tem p o p rop õe, é verd ad e, sua resp osta
a esse p arad oxo. Segundo ele, a sabed oria d em ocrática não seria tanto
a atenção escru pu losa a institu ições que garantem o pod er d o p ovo
p or meio de institu ições rep resentativas, mas a ad equ ação das form as
de exercício do p olítico ao m od o de ser de uma socied ad e, às forças
que a movem, às necessid ad es, interesses e d esejos entrecru zad os que
a tecem . Seria a ad equ ação aos cálcu los de otim ização que se op eram
e se entrecru zam no corp o social, aos p rocessos de ind ivid u alização
e às solid aried ad es que eles mesmos im põem .
Essa resposta coloca dois p roblem as. O prim eiro liga-se a seu es-
tranho p arentesco com o argu m ento da d em ocracia "r ea l". N o m o-
m ento em que se p roclam a a p erem p ção do m arxism o e a falência da
su bm issão do p olítico ao econ ôm ico, vê-se que os cham ad os regimes
de d em ocracia liberal retom am uma espécie de m arxism o rasteiro, em
cu jos term os a p olítica é exp ressão de um certo estad o do social e é o
d esenvolvimento das forças prod utivas que faz o conteú d o su bstan-
cial de suas form as. O su cesso p roclam ad o da d em ocracia aCom-
panha-se então de uma red u ção desta a um certo estad o das relações
sociais. O sucesso da d em ocracia consistiria então em que ela ache,
nas nossas socied ad es, uma coincid ência entre sua form a política e seu
ser sensível.
Mas o p arad oxo assume então uma form a d iferente. Com efei-
to, essa id entificação da d em ocracia a seu ser-sensível m anifestar-se-
ia sob a form a privilegiada da "p erd a de afeição", da insensibilid ad e
à form a de rep resentação desse ser-sensível. A d em ocracia rem eteria
a um certo vivid o, uma form a da exp eriência sensível, mas uma for-
m a da exp eriência sensível que a seus p róp rios olhos não foi sentid a:
com o se houvesse p aixão som ente pela au sência; com o se a d em ocra-
cia — tal qual o am or no d iscurso de Lísias — só conseguisse efeito
ao cu sto de se esvaziar de seu sentim ento p róp rio. O p roblem a é que
a ausência está sempre preenchid a e que ao p arad oxo da form a deso-
brigada corresp ond e, nas nossas socied ad es, uma volta, sob form a im-
p revista, do povo que se tinha enterrad o. O povo sempre ap arece ali
ond e é d eclarad o extin to. E, no lugar do povo rou sseau niano e do
m arxista m and ad os em bora, ap arece mais ou m enos em tod a a p arte
um p ovo étn ico, fixad o com o id entid ad e a si, com o corp o u no e
constitu íd o con tra o ou tro.
N o âm ago desses p arad oxos recoloca-se p ortan to, com insistên-
cia, a qu estão das "for m a s" da d em ocracia e d o que "for m a " nelas

O Desentend im ento 101


quer d izer. Tu d o se dá com o se o liberalism o p roclam ad o reinante
dividisse a visão do m arxism o tid o com o m orto: a que pensa as for-
mas da p olítica no p ar conceitu ai da form a e do conteú d o, da ap arên-
cia p olítica e da realid ad e social; que define o jogo do p olítico e do
social com o relação entre um sistema de institu ições e um m ovim ento
das energias de indivíduos e de grupos que estaria nela mais ou me-
nos ad equad am ente exp resso. A m eta-p olítica m arxista oscilava en-
tre uma teoria da form a-exp ressão e uma teoria da ap arência-m ásca-
ra. O d iscurso oficial da d em ocracia triu nfante, por sua vez, só reabi-
lita a "for m a " enqu anto form a d esobrigada correspond ente a um con-
teúd o evanescente, com o risco de su scitar um p latonism o barato que
op õe de novo o espírito rep u blicano da com u nid ad e ao vale-tu d o dos
pequenos prazeres d em ocráticos.
Para sair desses d ebates que subempreitam de certa form a os res-
tos da "filosofia p olítica", é m elhor voltar às suas prim eiras qu estões.
A d em ocracia provocou inicialmente a filosofia política porque ela não
é um con ju n to de institu ições ou um tip o de regime entre ou tros, mas
uma m aneira de ser do p olítico. A d em ocracia não é o regime p arla-
m entar ou o Estad o de d ireito. N ão é mais um estad o do social, o rei-
no do ind ivid ualism o ou o das m assas. A d em ocracia é, em geral, o
m od o de su bjetivação da p olítica — se p or p olítica entend e-se coisa
d iferente da organização dos corp os em com u nid ad e e da gestão dos
lugares, poderes e fu nções. Mais p recisam ente, d em ocracia é o nome
de uma interru p ção singular dessa ord em da d istribu ição d os corp os
em com unid ad e que nos propusem os conceitu ar sob o conceito am-
pliad o de p olícia. É o nome d aqu ilo que vem interrom p er o bom fun-
cionam ento dessa ord em p or um d ispositivo singular de su bjetivação.
Esse dispositivo se resume nos três aspectos já definidos. Primeiro,
a d em ocracia é o tip o de com unid ad e que é d efinid o pela existência
de uma esfera de ap arência específica do p ovo. A ap arência não é a
ilusão que se op õe ao real. É a introd u ção, no cam p o da exp eriência,
de um visível que m od ifica o regime do visível. Ela não se op õe à rea-
lid ad e, ela a divide e a refigura com o d uplo. Tan to assim qu e, a pri-
meira batalha da "filosofia p olítica" contra a d em ocracia foi a polê-
m ica p latônica contra a doxa, isto é, a assim ilação do visível p róp rio
do demos ao regime da não-verd ad e.
Segund o, o povo que ocu p a essa esfera de ap arência é um "p o-
v o" de um tip o p articu lar, que não é definível por propried ad es do
tip o étnico, que não se id entifica a uma p arte sociologicam ente de-

100 Jacqu es Rancière


term inável de uma p op u lação nem à soma dos grupos que constitu i
essa p op u lação. O povo por interméd io do qual há d em ocracia é uma
unidade que não consiste em nenhum grupo social mas sobre-im p õe,
à dedução das parcelas da socied ad e, a efetividade de uma parcela dos
sem -p arcela. A d em ocracia é a institu ição de su jeitos que não coinci-
dem com p artes do Estad o ou da socied ad e, su jeitos flu tu antes que
transtornam tod a rep resentação dos lugares e das p arcelas. Pod e-se,
sem d úvid a, evocar aqui essa "in d eterm in ação" d em ocrática concei-
tu ad a p or Claud e Lefort 1 . Mas não há nenhuma razão p ara id entifi-
car essa ind eterm inação a uma espécie de catástrofe do sim bólico li-
gad a à d esincorp oração revolu cionária do "d u p lo cor p o" do rei. É
p reciso d esligar a interru p ção e a d esid entificação d em ocráticas des-
sa d ram atu rgia sacrificial que liga originariam ente a emergência de-
m ocrática aos grand es esp ectros da reincorp oração terrorista e tota-
litária de um corp o d ilacerad o. N ão é em p rim eiro lugar o rei, mas o
p ovo, que tem um duplo corp o. E essa d ualid ad e não é a d ualid ad e
cristã do corp o celeste e do corp o terrestre. É a dualidade do corp o
social e de um corp o que vem remover tod a id entificação social.
Terceiro, o lugar da ap arência do povo é o lugar da cond u ção
de um litígio. O litígio p olítico se d iferencia de tod o conflito de inte-
resses entre partes constitu íd as da p op u lação, já que é um conflito so-
bre a p róp ria contagem das p artes. N ão é uma d iscussão entre sócios,
mas uma interlocu ção que põe em jogo a p róp ria situ ação de interlo-
cu ção. A d em ocracia institui p ortanto com u nid ad es de um tip o espe-
cífico, com unid ad es p olêm icas que põem em jogo a p róp ria op osição
das duas lógicas, a lógica p olicial da d istribu ição dos lugares e a lógi-
ca p olítica do traço igu alitário.
As formas da d em ocracia não são ou tra coisa senão as form as
de m anifestação desse d ispositivo ternário. H á d em ocracia se existir
uma esfera esp ecífica de ap arência do p ovo. H á d em ocracia se hou -
ver atores esp ecíficos da p olítica que não são nem agentes do d isposi-
tivo de Estad o nem partes da socied ad e, se houver coletivos que re-
movam as id entificações em term os de partes do Estad o ou da socie-
d ad e. H á d em ocracia, enfim , se houver um litígio cond uzid o sobre o
p alco de m anifestação do povo p or um su jeito não-id entitário. As for-
mas da d em ocracia são as form as de m anifestação dessa ap arência,

1 Cf. em especial Essais sur le politique, Le Seuil, 1986.

O Desentend imento 101


dessa su bjetivação não-id entitária e dessa cond u ção do litígio. Essas
form as de m anifestação têm efeitos sobre os dispositivos institu cionais
do p olítico e se servem de tal ou qual desses d ispositivos. Produzem
inscrições da igualdade e argumentam as inscrições existentes. N ão são,
p ortanto, de form a alguma indiferentes à existência de assembléias elei-
tas, de garantias institu cionais das liberd ad es de exercício da palavra
e de sua m an ifestação, de d isp ositivos de controle do Estad o. Elas
encontram neles as cond ições de seu exercício e em troca os m od ifi-
cam . Mas não se id entificam com eles. Mu ito menos pod er-se-ia iden-
tificá-los com m od os de ser dos ind ivíd uos. A d em ocracia não é a era
dos indivíduos ou a das m assas. A corresp ond ência entre um tip o de
institu ição e um tip o de individualidad e não é a d escoberta da socio-
logia m od erna. Foi Platão, com o se sabe, quem a inventou . E é clara-
mente a prescrição arqui-política de concord ância entre a alma e a pólis
bem governad a que governa a d escrição da concord ância entre o ca-
ráter individual do indivíduo d em ocrático e o de sua cid ad e. Em ou-
tras p alavras, a id éia de que a d em ocracia é um regime de vida coleti-
va que exp rim e um caráter, um regime de vida dos indivíduos d emo-
cráticos, pertence ela mesma à repressão p latônica da singularid ad e
d em ocrática, à repressão da própria p olítica. Isso p orqu e as form as
da d em ocracia não são ou tra coisa senão as form as de constitu ição da
p olítica com o m od o esp ecífico de um estar-ju nto hu m ano. A d emo-
cracia não é um regime ou um m od o de vida social. É a institu ição da
p róp ria p olítica, o sistema das form as de su jetivação pelas quais se re-
qu estiona, se a entrega à sua contingência tod a ord em da d istribu ição
dos corp os em funções que corresp ond am à sua "n atu reza" e em lu-
gares que corresp ond am a suas fu nções. E não é, com o já d issem os, o
seu ethos, a sua "m an eira de ser" que d ispõe os indivíduos p ara a de-
m ocracia e sim a ruptura desse ethos, a d istância exp erim entad a pela
cap acid ad e do ser falante em face de tod a harm onia "ética " do fazer,
do ser e do d izer. Tod a p olítica é d em ocrática nesse sentid o p reciso:
não o sentid o de um con ju n to de institu ições, mas o de form as de m a-
nifestação que confrontam a lógica da igualdade com a da ord em poli-
cial. É a p artir d aí que entend erem os aqui a noção de p ós-d em ocra-
cia. N ão entend erem os p or esse term o o estad o de uma d em ocracia
que se desiludiu tristemente de suas esperanças ou que aboliu felizmente
suas ilusões. N ão procuraremos aí um conceito da d emocracia na idade
p ós-m od erna. Esse term o nos servirá apenas p ara designar a p rática
consensual do apagam ento das form as do agir d em ocrático. A pós-de-

100 Jacqu es Rancière


m ocracia é a p rática governam ental e a legitim ação conceitu ai de uma
d em ocracia de depois do demos, de uma d em ocracia que liquidou a
ap arência, o erro na conta e o litígio do p ovo, redutível p ortanto ao
jogo ú nico dos d ispositivos de Estad o e das com p osições de energias
e de interesses sociais. A p ós-d em ocracia não é uma d em ocracia que
encontrou no jogo das energias sociais a verd ad e das form as institu -
cionais. É um m od o de id entificação entre os d ispositivos institu cio-
nais e a d isp osição das partes e das p arcelas da socied ad e ap ta a fazer
d esaparecer o su jeito e o agir p róp rio da d em ocracia. É a p rática e o
pensam ento de uma ad equ ação, sem resto, entre as form as do Estad o
e o estad o das relações sociais.
Tal é o sentid o do que se cham a d em ocracia consensu al. O id ílio
reinante vê nela a concord ância racional dos ind ivíd uos e dos grupos
sociais, que com p reend eram que o conhecim ento do possível e a dis-
cu ssão entre p arceiros são, p ara cad a p arte, uma m aneira de obter a
p arcela op tim al que a objetivid ad e dos d ad os da situ ação lhe permi-
te esp erar, preferivelmente ao conflito. Mas, p ara que as p artes dis-
cu tam em vez de lu tar, é p reciso p rim eiram ente que existam com o
p artes, tend o de escolher entre duas m aneiras de obter sua p arcela.
Antes de ser a preferência dada à paz sobre a gu erra, o consenso é
um certo regime do sensível. É o regime em que as partes já estão pres-
su postam ente d ad as, sua com u nid ad e constitu íd a e o cálcu lo de sua
palavra id êntica à sua performance lingüística. O que o consenso pres-
supõe p ortanto é o d esap arecim ento de tod a d istância entre a p arte
de um litígio e a parte da socied ad e. É o d esap arecim ento do d isposi-
tivo da ap arência, do erro de cálcu lo e do litígio abertos pelo nome
do povo e pelo vazio de sua liberd ad e. É, em suma, o d esaparecimento
da p olítica. Ao d ispositivo ternário da d em ocracia, isto é, da p olíti-
ca, opõe-se estritam ente a p rop osta de um mund o em que tud o se vê,
em que as partes se contam sem resto e em que tud o se pode regular
por meio da objetivação dos p roblem as. O cham ad o sistema consen-
sual é a con ju n ção de um regime d eterm inad o da opinião com um
regime d eterm inad o do direito, colocad os um e ou tro com o regimes
de id entid ad e a si, sem resto, da com u nid ad e. Com o regime da opi-
nião, a p ós-d em ocracia tem por princípio fazer d esaparecer a ap arên-
cia contu rbad a e p ertu rbad ora do povo e sua contagem sempre erra-
d a, por trás dos processos de p resentificação exau stiva do p ovo e de
suas partes e de harm onização da contagem das partes e da imagem
do tod o. Sua u top ia é a de um cálcu lo ininterru p to que p resentifica o

O Desentend im ento 101


total da "op in ião p ú blica" com o id êntico ao corp o do p ovo. O que é
realm ente a id entificação da op inião d em ocrática ao sistema das son-
dagens e das sim ulações? E p rop riam ente faland o a revogação da es-
fera de ap arência do p ovo. A comunid ad e é, nessa id entificação, inin-
terru p tam ente apresentad a a si m esm a. O povo nu nca mais é ím p ar,
incontável ou irrepresentável. Ele está sem pre, a um só tem p o, total-
mente presente e totalm ente au sente. Está inteiram ente preso numa
estru tu ra do visível que é aquela em que tud o se vê e em que não há
p ortanto mais lugar para a ap arência.
É im p ortante esclarecer esse p on to, m arcand o uma d istância em
relação às análises da sim u lação e do sim u lacro cond u zid as, em par-
ticu lar, p or Jean Bau d rillard . Estas nos m ostraram um gigantesco pro-
cesso de sim u lação sob o signo da exibição integral e permanente do
real: tu d o se vê, nad a ap arece, já que tu d o já está sempre lá, id êntico
à sua rep resentação, id êntico à p rod u ção simulad a de sua representa-
ção. O real e sua sim u lação são d oravante ind iscerníveis, o que eqüi-
vale a despedir um real que não precisa mais acontecer, estand o sem-
pre antecip ad o em seu sim u lacro. A p artir d aí, podem dividir-se d ois
tip os de interp retação dessa "p erd a do r eal". A prim eira põe a ênfase
na m anip u lação integral, que é o p rincíp io de equ ivalência do real e
da sim u lação 2. A segunda saúda alegremente essa perda do real, com o
princípio de uma p olítica n ova 3. A crer nela, a d om inação da técnica
m id iática, que traz o mundo de volta à sucessão de suas imagens, li-
bertas da tirania do verd ad eiro, é um p onto de retorno da d om inação
técnica que abole o mundo dos objetos arrazoad os, med id os e m ani-
pulad os da m etafísica, e abre o cam inho de uma em ancip ação autên-
tica do m ú ltip lo. A em ancip ação, na era m arxista, fora pensad a sob a
insígnia do trabalho e da história, nos conceitos da m etafísica e de seu
universo de objetos m anipu lad os. A nova em ancip ação seria concebi-
da à imagem da virad a da técnica e de sua d estru ição da m etafísica.
Ela liberaria a comunidade nova com o multiplicidade de racionalidades
locais e de m inorias étnicas, sexu ais, religiosas, cu ltu rais ou estéticas,
afirm and o sua identidade sobre o fundo da contingência reconhecid a
de tod a id entid ad e.

2 Cf. as obras de Jean Baud rillard , e especialmente L' Illusion de la fin, Gali-
lée, 1992.
3 Cf. Gianni Vattim o, La Société transparente, Desclée de Brou w er, 1990.

100 Jacqu es Rancière


Essas m aneiras de conceitu ar a relação entre um estatu to do vi-
sível, uma imagem do mund o e uma form a do agir p olítico p arecem
perder de vista um p onto d ecisivo. Esse p onto é que a lógica da simu-
lação se op õe menos ao real e à fé realista do que à ap arência e a seus
pod eres. O regime do tod o-visível, o da ap resentação incessante a to-
d os e a cad a um de um real ind issociável de sua im agem , não é a li-
bertação da ap arência. E, ao con trário, sua p erd a. O mund o da visi-
bilid ad e integral ord ena um real no qual a ap arência não pod e ocor-
rer e prod uzir seus efeitos de d u p licação e de d ivisão. Pois, a ap arên-
cia, e em p articu lar a ap arência p olítica, não é o que escond e a reali-
dade mas o que a d u p lica, o que introd uz nela objetos litigiosos, obje-
tos cu jo m od o de ap resentação não é hom ogêneo ao m od o de exis-
tência ord inário dos objetos que nela são id entificad os. A id entid ad e
do real de sua rep rod u ção e de sua sim u lação é o não-lu gar p ortanto
para a heterogeneidade da aparência, o não-lugar p ortanto para a cons-
titu ição p olítica de su jeitos não-id entitários que pertu rbem a hom o-
geneidade do sensível ao fazer ver ju ntos mundos sep arad os, ao orga-
nizar mundos de com u nid ad e litigiosa. A "p erd a do real" é, na ver-
d ad e, uma perda da ap arência. O que ela "liber a " não é uma p olítica
nova do m últiplo contingente, é a figura policial de uma p op u lação
exatam ente id êntica à enu m eração de suas p artes.
É exatam ente isso o que é op erad o pela con ju n ção da p rolifera-
ção m id iática do visível ind iferente e da ininterrupta ap u ração das opi-
niões sond ad as e dos votos sim u lad os. À ap arência em geral ela op õe
um regime hom ogêneo do visível. E, à ap arência d em ocrática do p ovo,
ela op õe estritam ente sua realid ad e sim u lad a. Mas a realid ad e simu-
lad a não é de m od o nenhum o pod er do sim u lacro enqu anto d estrui-
ção do "m u n d o verd ad eiro" e de seus avatares p olíticos. A realid ad e
simulad a é, antes, a virad a final da verdade p róp ria à m eta-p olítica. É
a organização de uma relação especular da op inião consigo m esm a,
id êntica à efetivid ad e do povo soberano e ao conhecim ento científico
dos com p ortam entos de uma p op u lação reduzid a à sua am ostra esta-
tística. Esse povo presente sob form a de sua red u ção estatística é um
povo transform ad o em objeto de conhecimento e de previsão que afasta
a ap arência e suas p olêm icas. A p artir d aí, podem instau rar-se p roce-
d im entos de contagem exau stiva. O povo é id êntico à som a de suas
p artes. A som a de suas op iniões é igual à som a das partes que o cons-
titu em . A contagem é sempre par e sem resto. E esse povo absolu ta-
mente igual a si tam bém sempre é passível de ser d ecom p osto em seu

O Desentend im ento 101


real: suas categorias sócio-p rofissionais e suas classes etárias. N ad a por
consegu inte pode ocorrer sob o nome de povo a não ser a ap u ração
das opiniões e dos interesses de suas partes enumeráveis com exatid ão.
A con ju n ção d o científico e do m id iático não é p ois, o ad vento
da contingência igu alitária. É mesmo exatam ente o seu inverso. É o
estabelecim ento da iguald ade de qu alqu er pessoa com qu alqu er pes-
soa nu m a série de equ ivalências e de circu larid ad es que constitu i a
form a mais rad ical de seu esqu ecim ento. A igualdade de qu alqu er um
com qu alqu er um torna-se a efetivid ad e im ed iata de um p ovo sobe-
ran o, ela mesma id êntica à m od elização e à previsão científicas que
se op eram sobre uma p op u lação em p írica exatam ente recortad a em
suas p artes. A igualdad e de qu alqu er um com qu alqu er um torna-se
id êntica à d istribu ição integral da p op u lação em suas partes e sub-par-
tes. A efetividad e do povo soberano se exerce com o estritam ente idên-
tica aos cálcu los de uma ciência das opiniões da p op u lação, isto é tam-
bém com o unidade im ed iata da ciência e da op inião. A "ciên cia da
op in ião" não é de fato apenas a ciência que tom a p or objeto a "op i-
n iã o". Ela é a ciência que se realiza im ed iatam ente com o op inião, a
ciência que só tem sentido no processo de especularização em que uma
op inião se vê no espelho que a ciência lhe ap resenta de sua id entid a-
de a si. A unidade sem resto do povo soberano, da p op u lação empí-
rica e da p op u lação cientificam ente conhecid a, é tam bém a id entid a-
de da op inião com sua velha inimiga p latônica, a ciência. O reino da
"sim u lação" não é p ortanto a ruína da m etafísica e da arqu i-p olítica
p latônicas. É a p arad oxal realização do p rogram a d elas: a com u ni-
dade governad a pela ciência que coloca cad a um em seu lu gar, com
a op inião que convém a esse lugar. A ciência das sim u lações da op i-
nião é a realização p erfeita da virtu d e vazia que Platão ch am ava
sophrosyné: o fato de cad a um estar em seu lugar, de fazer ali seu pró-
prio negócio e de ter a op inião id êntica ao fato de estar nesse lugar e
de só fazer ali o que há para fazer ali. Essa virtude de id entid ad e, se-
gundo Platão, supunha que os simulacros dos espelhos e dos m arione-
tistas fossem exp u lsos da p ólis. Mas, no espelho que a ciência da opi-
nião ap onta à op inião, ap arece que opinião pode tornar-se o p róp rio
nom e do estar em seu lu gar, que a especularid ad e pode tornar-se o
regime de interiorid ad e que alimenta cad a cid ad ão e cad a parte da co-
munidade com a imagem verd ad eira do que eles são. A sophrosyné
era essa virtude p arad oxal que realizava em exteriorid ad e, em term os
de pura d istribu ição dos corp os, dos tem p os e dos esp aços, a lei de

100 Jacqu es Rancière


interiorid ad e da com u nid ad e. O espelho científico da op inião dá à
sophrosyné sua interiorid ad e com o relação incessante — e relação
verd ad eira — da com u nid ad e consigo m esm a. Med iante essa espe-
cu larização, o regime do ch eio, o regime de interiorid ad e da com u ni-
d ad e, é id êntico ao do vazio, do esp açam ento d o p ovo. O "cad a um
em seu lu gar" pode então aparecer com o estritam ente id êntico à igual-
dade de qu alqu er pessoa com qu alqu er p essoa, realizand o-se com o
fato de não pensar em ou tra coisa, com o p arte da p op u lação, senão
o que pensa essa p arte da p op u lação ao exp rim ir sua p arcela de opi-
nião. A "op in ião" p ós-d em ocrática é a id entid ad e do povo e da p o-
p u lação, vivida com o regime de interiorid ad e de uma comunid ade que
se conhece com o a identidad e da ciência do tod o e da op inião de cad a
um. A essa supressão da ap arência do p ovo e de sua d iferença a si
devem, então, correspond er processos de supressão do litígio pela pro-
blem atização de tod o objeto de litígio que p od eria reanim ar o nom e
d o povo e as ap arências de sua d ivisão. Tal é a grand e transform a-
ção que o litígio do povo sofre com o d esap arecim ento de sua ap a-
rência e de seu erro de cálcu lo. Tod o litígio, nesse sistem a, torna-se o
nom e de um p roblem a. E tod o p roblem a pode ser recond uzid o à sim-
ples falta — ao simples atraso — dos meios de sua solu ção. A m ani-
festação do d ano deve então ser substituíd a pela id entificação e pelo
tratam ento da falta: objetivação dos p roblem as que a ação do Esta-
do tem de conhecer, da margem de escolha que está incluíd a nela, dos
saberes que estão em penhad os nela, das p artes do corp o social que
estão im p lícitos nela e dos p arceiros que devem ser constitu íd os p ara
d iscu ti-la. O interlocu tor d em ocrático era uma pessoa inéd ita, cons-
titu íd o p ara fazer ver o litígio e constitu ir suas p artes. O p arceiro da
p ós-d em ocracia é, por sua vez, id entificad o à p arte existente da so-
cied ad e que a p roblem atização envolve na solu ção. Daí d ecorre su-
p ostam ente a com p osição das op iniões no sentid o da solu ção que se
impõe p or si só com o a mais racion al, isto é, em d efinitivo com o a
ú nica objetivam ente possível.
Assim se afirm a o ideal de uma ad equ ação entre Estad o gestor e
Estad o de d ireito pelo "au sen tam en to" do demos e das form as d o li-
tígio ligad os a seu nome e a suas diversas figu ras. Uma vez despedi-
dos os atores "ar caicos" do conflito social, não haveria mais obstá-
cu lo p ara essa concord ância. Qu erend o colocar em harm onia os no-
mes e as coisas, o m od elo consensu al volta natu ralm ente a favorecer
a velha d efinição cratiliana do blaberon: o blaberon é o que "p ára a

O Desentend im ento 101


corren te". As velhas figuras do dano e de sua subjetivação obstaculizam
a livre correnteza do sympheron qu e, segundo sua etim ologia, "leva
ju n to" as m ercad orias e as id éias, as pessoas e os gru p os. A dissolu-
ção das figuras arcaicas do conflito p erm itiria a exata conseqü ência
do sympheron ao dikaion, a livre circu lação do d ireito no corp o so-
cial, a crescente ad equ ação entre a norm a ju ríd ica e a livre iniciativa
econôm ica e social pela extensão dos d ireitos da econom ia e da socie-
d ad e, dos m od os de vida e das m entalid ad es.
Assim o consenso, antes de ser a virtude razoável dos indivíduos
e dos grupos que se põem de acord o para d iscutir seus p roblem as e
com p or seus interesses, é um regime determinado do sensível, um modo
p articu lar de visibilid ad e do direito com o arkhé da com u nid ad e. An-
tes de resolver os p roblem as dos p arceiros sociais tornad os sensatos,
é p reciso resolver o litígio no seu p rincíp io, com o estru tu ra específica
de com u nid ad e. É p reciso colocar a id entid ad e da com u nid ad e consi-
go mesma, o reino do d ireito com o id êntico à supressão do d ano. Fala-
se m uito da extensão do Estad o de d ireito e do cam p o do d ireito com o
característica de nossos regimes. Mas, p ara além da concord ância so-
bre a id éia de que a regra é preferível ao arbitrário e a liberd ad e à ser-
vid ão, resta saber quais fenômenos são exatamente designados por esses
term os. Com o cad a uma das palavras im plicad as na p olítica, a p ala-
vra "d ireito" é o hom ônim o de coisas muito d iferentes: d isposições ju -
ríd icas dos cód igos e das m aneiras de p ô-las em p rática, idéias filosó-
ficas da com u nid ad e e do que a fu nd a, estru tu ras p olíticas do d ano,
m od os de gestão p olicial das relações entre o Estad o e os grupos e in-
teresses sociais. A simples celebração do Estad o de d ireito entra en-
tão nas côm od as abreviações que p erm item , em face do não-d ireito
dos Estad os arqu i-p oliciais, unir tod os esses "d ireitos" heterogêneos
num ú nico reino não-qu estionad o do d ireito, feito da harm onia feliz
entre a ativid ad e legislativa do pod er p ú blico, os d ireitos dos indiví-
duos e a inventivid ad e processu al dos escritórios de ad vocacia. Mas o
reino do d ireito é sempre o reino de um d ireito, isto é, de um regime
de unidade de tod os os sentid os do d ireito, colocad o com o regime de
id entid ad e da com u nid ad e. H oje, a id entificação entre d em ocracia e
Estad o de d ireito serve p ara prod uzir um regime de id entid ad e a si da
com u nid ad e, p ara diluir a p olítica sob um conceito do d ireito que a
id entifica ao esp írito da com u nid ad e.
Esse d ireito/esp írito da com u nid ad e m anifesta-se hoje na circu -
lação entre dois p ólos de id entificação: um, onde ele representa a es-

100 Jacqu es Rancière


sência estável do dikaion, pelo qual .1 com unid ad e <• < Li m esm a; ou
tro, ond e essa essência vem id entificai se aos jogos m uliiplos do svw
pheron, que constitu em o d inam ismo da socied ad e. A eMenvio d o ju
ríd ico assume, de fato, nos regimes ocid entais, duas form .r. pi nu ip.ir.,
para cima e para baixo do poder governamental. Para ein u , desenvolvi
se a su bm issão da ação legislativa a um pod er ju ríd ico esp a i.ili/.u lo,
a sábios/p eritos que dizem o que está conform e ao espírito da const 1
tu ição e à essência da com u nid ad e que ela d efine. Saúd a-se então nis
so uma refu nd am entação da d em ocracia com base nos princípios fun
d ad ores d o liberalism o, a su bm issão do p olítico, na pessoa do lista
d o, à regra ju ríd ica que encarna o con trato, que coloca em com u ni-
dade as liberd ad es individuais e as energias sociais. Mas essa pretensa
subm issão do estatal ao ju ríd ico é antes uma subm issão do p olítico ao
estatal pelo viés do ju ríd ico, o exercício de uma capacid ad e de d esa-
possar a p olítica de sua iniciativa, pela qual o Estad o se faz preced er e
legitim ar. Tal é o estranho m od o de legitim ação que as teorias à m od a
do Estad o "m od esto" encobrem . O Estad o m od erno, dizem, é um Es-
tad o m od esto, um Estad o que devolve ao ju ríd ico de um lad o, ao so-
cial do ou tro, tu d o o que lhes tinha tom ad o. Mas é menos em relação
a si mesmo que à p olítica que o Estad o exerce essa m od éstia. O que
ele tend e a fazer d esap arecer, p or esse tornar-se-m od esto, é bem me-
nos seu ap arelho que a cena p olítica de exp osição e de tratam ento do
litígio, a cena de com u nid ad e que colocava ju ntos os mund os sep ara-
d os. Assim, a p rática das "ações de inconstitu cionalid ad e" é menos a
su bm issão do legislativo e do execu tivo ao "govern o dos ju izes" do
que a d eclaração do não-lu gar da m anifestação pú blica do litígio. Ela
é p rop riam ente faland o uma mimésis estatal da p rática p olítica do li-
tígio. Essa mimésis transform a em p roblem a da alçad a de um saber
de perito a argu m entação trad icional que dá ensejo à m anifestação de-
m ocrática, à d istância da igualdade a si m esm a.
É na verdade essa mimésis que realm ente ord ena a d ram atu rgia
ritu al do recu rso à instância constitu cional su prem a. O saber que é
requerido do juiz supremo na verdade não é, de forma alguma, a ciência
dos textos constitu cionais e de suas interp retações. É a pura enu ncia-
ção da id entid ade da iguald ade consigo mesma em sua d iferença. A
arte ju ríd ica d aquele que recorre ao Tribu nal Constitu cional se reduz
sempre a ap resentar a lei ou o artigo de lei ind esejável com o contrad i
tório não com esse ou aquele artigo da Constitu ição mas com o pró
prio espírito da Constitu ição, ou seja, o princípio de igualdade tal com o

O Desentend im ento 101


se exp rim e no artigo I o da Declaração dos Direitos do H om em . A ar-
gumentação "ju ríd ica" de inconstitucionalid ad e constrói p ortanto uma
p aród ia do litígio d em ocrático que punha o texto igu alitário à prova
dos casos de d esiguald ad e. A argu m entação do litígio, a constru ção
da comunidade dividida, é caricaturad a nesses considerandos que detec-
tam , em tod o artigo insignificante de uma lei ind esejável, uma contra-
d ição com o princípio de igualdade, alma da Constitu ição. A essa trans-
form ação do litígio p olítico em p roblem a ju ríd ico, o ju iz constitu cio-
nal pod e então respond er com uma lição de d ireito que nad a mais é
que o primeiro axiom a da "filosofia p olítica", o da d iferença das igual-
d ad es, o qu al, desde Platão, assim se enu ncia: o p rincíp io de iguald a-
de é d ar coisas sem elhantes aos seres sem elhantes, e coisas desseme-
lhantes aos seres dessemelhantes. A igualdade, diz a sabedoria dos juizes
constitu cionais, deve ap licar-se em qu alqu er circu nstância (Declara-
ção dos Direitos do H om em , artigo I o ), mas nas cond ições d iferentes
au torizad as pela d iferença das circu nstâncias (artigo 6 o da mesma de-
claração). Graças ao quê a lei se conform a à balança das duas igual-
d ad es, fora os artigos que não lhe são conform es.
Essa sabed oria que alivia a p olítica de sua tarefa tem um provei-
to d uplo. Prim eiram ente, ela insere tod a querela obscu ra — a com p o-
sição dos conselhos universitários ou a idade da aposentad oria dos pro-
fessores d o Collège de France — no elem ento de id ealid ad e da rela-
ção da Declaração dos Direitos do H omem consigo mesma. A demons-
tração "ju ríd ica" da identidad e a si da alm a da com u nid ad e com p le-
ta então a d em onstração m id iática/científica da id entid ade a si da opi-
nião. Mas ela tam bém d ota o pod er do Estad o de uma form a de legi-
timid ad e m uito esp ecífica. O Estad o "m od esto" é um Estad o que tor-
na a p olítica au sente, que renu ncia em suma àqu ilo que não lhe cabe
— o litígio do povo —, p ara au m entar sua p rop ried ad e, p ara desen-
volver os p rocessos de sua p róp ria legitim ação. O Estad o hoje se legi-
tim a ao d eclarar impossível a p olítica. E essa d em onstração de impos-
sibilid ad e passa pela d em onstração de sua p róp ria im p otência. A pós-
d em ocracia, p ara tornar o demos au sente, deve torn ar a p olítica au-
sente, nas tenazes da necessid ade econôm ica e da regra ju ríd ica, até o
p onto de unir uma e ou tra na d efinição de uma cid ad ania nova na qual
a p otência e a im p otência de cad a um e de tod os venham se igu alar.
É o que m ostra a ou tra form a hoje assumid a pela extensão do
ju ríd ico, buscand o o aval da ação do governo. Assistimos de fato a uma
ativid ad e de m u ltip licação e de red efinição dos d ireitos, empenhad a

100 Jacqu es Rancière


em colocar d ireito, d ireitos, regra de d ireito e ideal ju ríd ico em tod os
os circu itos da socied ad e, em ad ap tar-se a tod os os seus m ovim entos
e em antecip á-los. Assim, o d ireito da fam ília quer seguir e antecip ar
se possível as m entalid ad es e as m oralid ad es novas e os laços d esata-
dos que d efinem , associand o os atores à resolu ção de seus p roblem as.
Os d ireitos de propried ad e correm sem p arar ao encalço das p rop rie-
dades im ateriais ligad as às novas tecnologias. As com issões de sábios
reunid as em nom e da bio-ética prom etem torn ar claro ao legislad or o
p onto ond e com eça a hum anid ad e do hom em . Enqu anto isso, os p ar-
lam entares votam leis p ara regu lam entar os limites da corru p ção no
financiam ento de seus p artid os e uma lei p ara p roibir os historiad o-
res de falsificar a história. Qu an to ao d ireito do trabalh o, ele tend e a
tornar-se "flexív el", com o o p róp rio trabalh o. Ele quer ad ap tar-se a
tod os os m ovim entos da econom ia e a tod as as inflexões do m ercad o
do trabalho, esposar a identidade móvel de um trabalhad or sempre pas-
sível de tornar-se um m eio-trabalhad or, um desempregado ou um qua-
se-d esempregad o. Mas essa ad ap tação não é som ente o rude realism o
que constata qu e, para que os trabalhad ores tenham d ireitos, é preci-
so p rim eiro que trabalhem e qu e, para que trabalhem , é preciso que
consintam em cercear os d ireitos que impedem as empresas de lhes d ar
trabalho. Ela é tam bém a transform ação d o d ireito em idéia d o d irei-
to, e das p artes, beneficiárias do d ireito e com batentes por seus d irei-
tos, em indivíduos p rop rietários de um d ireito id êntico ao exercício
de sua responsabilid ad e de cid ad ão. O d ireito do trabalhad or torna-
se assim cid ad ania do trabalhad or, que por sua vez se tornou p arte in-
teressad a tanto da empresa coletiva qu anto da que o em prega. E essa
cid ad ania é suscetível de investir-se tanto numa convenção de form a-
ção ou num con trato de inserção no m ercad o de trabalho qu anto nos
qu ad ros clássicos e conflitu ais do con trato de trabalh o. À velha "rigi-
d ez" do d ireito e da batalha pelos d ireitos op õe-se a flexibilid ad e de
um d ireito, espelho da flexibilid ad e social, de uma cid ad ania que faz
de cad a ind ivíd uo o m icrocosm o em que se reflete a id entid ad e consi-
go mesma da com u nid ad e das energias e das responsabilid ad es seme-
lhantes aos d ireitos.
Tod as essas extensões do d ireito e do Estad o de d ireito são, p or-
tan to, antes de mais nad a a constitu ição de uma figura do d ireito na
qual seu conceito, eventualmente, se desenvolve em d etrimento de suas
form as de existência. Elas são tam bém extensões da capacid ad e do Es-
tad o perito em tornar a política ausente ao suprimir tod o intervalo entre

O Desentend im ento 101


o d ireito e o fato. De um lad o, o d ireito vem libertar o Estad o da po-
lítica da qu al ele libertou o p ovo; do ou tro, ele vem colar-se a tod a si-
tu ação, a tod o litígio possível, d ecom p ô-lo nos elem entos de seu p ro-
blem a, e transform ar as partes do litígio em atores sociais, refletind o
com o a lei de seu agir a id entid ade da com u nid ad e consigo mesma. A
extensão desse processo é a crescente id entificação do real com o ra-
cional, do ju ríd ico com o científico, do d ireito com um sistem a de ga-
rantias que são acim a de tud o as garantias do pod er do Estad o, a ga-
rantia sempre reforçad a de sua infalibilid ad e, da im possibilid ad e de
que seja inju sto, a não ser por erro, um erro do qual ele não cessa de
garantir-se med iante a consu lta incessante de p eritos sobre a dupla
legitimidade do que faz. H á então uma conju nção entre três fenômenos:
a ju rid icização p roliferante, as p ráticas de perícia generalizad a e as da
sond agem p erm anente. O d ireito e o fato tornam -se tão ind iscerníveis
qu anto a realid ad e e sua imagem, qu anto o real e o possível. O Esta-
do p erito suprime tod o intervalo de ap arência, de su bjetivação e de
litígio na exata concord ância da ord em do d ireito com a ord em dos
fatos. Aqu ilo de que o Estad o se desfaz ao ser constantem ente averi-
gu ad o, o que ele reconhece continu am ente aos indivíduos e aos gru-
pos em d ireitos sempre novos, ele read qu ire com o legitim ação. E o
pod er do d ireito se id entifica cad a vez mais com essa espiral de super-
legitim ação do Estad o científico, na equ ivalência crescente da prod u-
ção de relações de d ireito e da gestão dos equ ilíbrios m ercantis, na
recorrência permanente do d ireito e da realid ad e cu jo term o final é a
pura e simples id entificação da "for m a " d em ocrática com a p rática
ad m inistrativa de su bm issão à necessid ade m ercantil. Em últim a ins-
tân cia, a prova do d ireito do poder estatal id entifica-se com a prova
de que ele não faz nad a além do que é apenas possível, nad a além do
que a estrita necessid ade no con texto do enred am ento crescente das
econom ias no seio do m ercad o mundial recom end a.
A legitimidade do poder estatal se reforça assim pela própria afir-
m ação de sua im p otência, de sua falta de escolha d iante da necessid a-
de mund ial que o d om ina. O tema da vontad e com u m é su bstitu íd o
pelo da ausência de vontad e p róp ria, de cap acid ad e de ação au tôno-
ma que seja mais que a mera ad m inistração da necessid ad e. O libera-
lismo supostam ente reinante retom a do m arxism o, tid o com o cad u -
co, o tem a da necessid ad e objetiva, id entificad a às coerções e aos ca-
prichos do mercado mundial. Que os governos sejam os simples agentes
de negócios do cap ital internacional, essa tese ou trora escand alosa de

100 Jacqu es Rancière


M a r x é hoje a evid ência qu anto à qual "liberais" e "socialistas" con-
cord am . A id entificação absolu ta da p olítica com a ad m inistração do
cap ital não é mais o segredo vergonhoso que as "form as" da demo-
cracia viriam m ascarar, é a verdade d eclarad a com a qual nossos go-
vernos se legitim am . N essa legitim ação, a d em onstração de cap acid a-
de deve ap oiar-se numa d em onstração de im p otência. Aos sonhos de
cozinheiras aptas ao exercício político ou de simples operários tomand o
de assalto o céu opõe-se a tese de um m arxism o revirad o: a otim ização
das fru ições dos indivíduos só é possível na base de sua incap acid ad e
reconhecid a em ad m inistrar as cond ições dessa otim ização. O Estad o
funda então sua au torid ad e na cap acid ad e de interiorizar a im potên-
cia com u m , de d eterminar o ínfim o território, o "qu ase n ad a" do pos-
sível d o qual depende a prosperid ad e de cad a um e a m anu tenção do
vínculo com u nitário. De um lad o, esse quase nada se coloca com o tão
p ou co que nem vale a pena d ispu tá-lo aos ad m inistrad ores da coisa
estatal. Mas do ou tro, é colocad o com o a ínfima diferença decisiva que
separa a prosperid ade futura da miséria am eaçad ora e o vínculo so-
cial do caos bem p róxim o, ínfima d iferença por demais decisiva e por
demais tênu e p ara não ser d eixad a aos p eritos, àqueles que sabem
com o, colocand o 0,5% do Prod u to N acional Bru to de um lad o e não
do ou tro, passam os do lad o bom para o lad o ruim da linha, da pros-
peridade para o abism o, da paz social para a perda generalizad a dos
elos. A ad m inistração da abu nd ância torna-se, assim, id êntica à ad-
m inistração da crise. Ela é a ad m inistração do ú nico necessário possí-
vel que deve ser incessantem ente, dia após d ia, antecip ad o, acom p a-
nhad o, ord enad o, d iferid o. A ad m inistração do "qu ase n ad a" é tam -
bém a d em onstração ininterru p ta da id entid ade entre o Estad o de di-
reito e o Estad o sábio, da id entid ad e entre o pod er desse Estad o e sua
im p otência, a qual interioriza a id entid ad e do grande pod er dos indi-
víduos e dos grupos empreend ed ores e contratantes com a im potên-
cia do demos com o ator p olítico.
É essa id entid ad e que d eixam , igualm ente, de p erceber os ana-
listas pessimistas ou otimistas da sociedade pós-industrial. Os primeiros
denunciam a perda da ligação social provocad a pelo esfacelamento das
coerções e das legitim ações coletivas correlativa ao d esencad eam ento
ilim itad o do ind ivid ualismo e do hed onismo d em ocráticos. Os segun-
dos exaltam , ao contrário, a concord ância crescente entre a livre oferta
de m ercad orias, o livre sufrágio d em ocrático e as asp irações do indi-
vid ualismo narcísico. Eles concord am acerca da d escrição de um es-

O Desentend im ento 101


tad o do vazio, de um vazio das legitim ações com u nitárias, com o ris-
co de interp retá-lo ou com o abism o hobbesiano da guerra de tod os
contra tod os ou com o liqu id ação final da arqu i-p olítica da com u ni-
d ad e. Uns e ou tros d eixam assim de p erceber a equ ivalência entre o
vazio e o cheio que caracteriza a m eta-p olícia p ós-d em ocrática. O es-
tad o p roclam ad o do vazio ou da perda das ligações é tam bém um es-
tad o de satu ração da com unid ad e pela ap u ração integral de suas par-
tes e pela relação especular em que cada parte está engajada com o tod o.
Aos que d eploram a perd a da cid ad ania rep u blicana, a lógica pós-d e-
m ocrática responde com a p roclam ação da cid ad ania generalizad a. As-
sim a cid ad e é cham ad a a encarnar a id entid ade da civilização u rbana
com a comunid ad e da pólis animad a por sua alma com u nitária. A em-
p resa-cid ad ã é cham ad a a exibir a id entid ade de sua energia p rod u to-
ra e ap rop riad ora com a p arcela tom ad a da ed ificação da com u nid a-
de e a constitu ição de um m icrocosm o dessa com u nid ad e. Através da
cid ad ania local e da associativa, a requ isição atinge o ind ivíd uo, cha-
mad o a ser o m icrocosm o do grande tod o baru lhento da circu lação e
da troca interru p ta dos d ireitos e das cap acid ad es, dos bens e d o Bem .
N o espelho de N arciso, é a essência dessa com unid ad e que se reflete.
O "in d ivíd u o" se vê ali, pedem-lhe que se veja ali com o m ilitante de
si m esm o, pequena energia con tratan te, corrend o de víncu lo em vín-
cu lo e de con trato em con trato ao mesmo tem po que de fru ição em
fru ição. O qu e, através d ele, se reflete é a identidade da com u nid ad e
consigo m esm a, a id entid ade das redes da energia da socied ad e e dos
circu itos da legitim ação estatal.
Supond o que a lógica consensual leve a algum novo abism o da
guerra de tod os contra tod os, suas razões são bem diferentes das invoca-
das pelos "p essim istas". O p roblem a não é simplesmente que o "in -
d ivid ualismo d em ocrático" d etermina em cad a indivíduo a exp ectati-
va de uma satisfação que seu Estad o não lhe pode assegu rar. É sobre-
tu d o qu e, ao p roclam ar a efetividade da identidade entre o Estad o de
d ireito e os d ireitos dos ind ivíd uos, ao fazer de cad a um a reflexão da
alm a da com u nid ad e das energias e dos d ireitos, a lógica consensu al
coloca em tod a parte o limite da paz e da gu erra, o p onto de ruptura
em que a com u nid ad e está exp osta à d em onstração de sua não-ver-
d ad e. Ou seja, o "d esligam en to" é o ou tro nome dessa satu ração que
não conhece ou tra form a do estar-em -com u m a não ser o víncu lo es-
pecu lar da satisfação individual à au tod em onstração do Estad o. Ele
manifesta negativamente o fanatism o do vínculo que coloca indivíduos

100 Jacqu es Ran cière


e grupos num tecid o sem bu racos, sem d istância dos nomes às coisas,
dos d ireitos aos fatos, dos indivíduos aos su jeitos, sem intervalos em
que possam constru ir-se form as de com u nid ad e do litígio, form as de
com u nid ad e não-esp ecu lares. Por aí se pode com preend er que a dou-
trina do con trato e a idéia de uma "n ova cid ad an ia" achem hoje um
terreno de conceitu ação privilegiad o: o da terap êu tica aplicad a ao que
se d enom ina a exclu são. É que a "lu ta contra a exclu são" é tam bém o
p arad oxal lugar conceitu ai em que parece que a exclu são é apenas o
ou tro nome do consenso.
O pensamento consensual representa de form a côm od a o que ele
cham a de exclu são na relação simples de um d entro e de um fora. Mas
o que está em jogo sob o nome de exclusão não é o estar-fora. É o modo
da d ivisão segundo o qual um d entro e um fora podem estar ju ntos. E
a "exclu são" de que se fala hoje é uma form a bem d eterm inad a dessa
d ivisão. É a invisibilid ad e da p róp ria d ivisão, o ap agam ento das m ar-
cas que permitem argumentar num dispositivo p olítico de su bjetivação
a relação da com unid ad e e da não-com u nid ad e. N o tem po em que a
lógica p olicial se exp rim ia sem d isfarce, ela d izia, com Bonald , que
"algu m as pessoas estão na socied ad e sem ser da socied ad e" ou , com
Gu izot, que a p olítica é coisa dos "hom ens de lazer". Uma linha de-
m arcava de um lad o o mund o privad o do ru íd o, da escu rid ão e da de-
siguald ad e, do ou tro, o mund o p ú blico do /ogos, da igualdade e do
sentido dividido. A exclusão podia então ser simbolizada, ser construída
p olem icam ente com o relação de dois mund os e d em onstração de sua
com u nid ad e litigiosa. Os incontad os, ao exibir a divisão e ap rop riar-
se por arrom bam ento da igualdade dos ou tros, pod iam fazer-se con-
tar. A "exclu são" hoje invocad a é, ao con trário, a p róp ria ausência
de barreira representável. É estritam ente id êntica à lei consensu al. O
que é o consenso senão a pressu posição de inclu são de tod as as partes
e de seus p roblem as, que p roíbe a su bjetivação p olítica de uma p arce-
la dos sem -p arcela, de uma contagem dos incontad os? Tod o mund o
está inclu íd o de antem ão, cad a indivíduo é célu la e imagem da com u -
nidade das opiniões iguais às p artes, dos p roblem as red utíveis às ca-
rências e dos d ireitos id ênticos às energias. N essa sociedade "sem clas-
ses", a barreira é substituíd a por um continuum das p osições qu e, do
mais alto para o mais baixo, mimetiza a m era classificação escolar. A
exclu são não se su bjetiva mais nele, n ão se inclui mais nele. Apenas,
para além de uma linha invisível, impossível de ser su bjetivad a, saiu-
se do cam p o, d oravante calcu lável som ente no agregad o dos assisti-

O Desentend im ento 101


dos: agregado daqueles que não padecem simplesmente da falta de tra-
balho, de recursos ou de m orad ia, mas da falta de "id en tid ad e" e de
"víncu lo social", incapazes de ser esses indivíduos criativos e contra-
tantes que devem interiorizar e refletir a grand e performance coleti-
va. Para aqueles, o pod er p ú blico faz então um esforço de satu ração
suplem entar, d estinad o a preencher os vazios qu e, ao sep ará-los de si
mesmos, os separam da comunid ad e. Por falta de emprego que ela real-
mente não tem , ela em penhar-se-á em lhes dar o suplemento de iden-
tidade e de vínculo que lhes faltam . Uma terap êu tica individual de res-
tau ração das identidades vem ju ntar-se então a uma terap êu tica so-
cial de reconstitu ição do tecid o com u nitário, para devolver a cad a ex-
cluído a identidade de uma capacid ad e e de uma responsabilid ad e m o-
bilizad as, para instau rar em tod o habitai aband onad o uma célu la de
responsabilid ad e coletiva. O exclu íd o e o su bú rbio aband onad o tor-
nam-se então os mod elos de um "n ovo contrato social" e de uma nova
cid ad ania, ed ificad os no p róp rio p onto em que a responsabilid ad e do
indivíduo e a malha do laço social se d esagregavam. Inteligências e co-
ragens notáveis se empenham nisso com resu ltad os nad a desprezíveis.
Resta a circu larid ad e dessa lógica, que quer colocar em tod a p arte um
suplemento de vínculo no social e de m otivação no ind ivíd uo, qu an-
do a p ertu rbação de um e de ou tro é o estrito efeito desse empreend i-
mento incessante de satu ração e desse pedido incond icional de m obili-
zação. Resta a d em onstração da id entid ade exata da d oença e da saú-
de, da norm a de satu ração do consenso e do d esam paro das id entid a-
des d oentes. A guerra de tod os contra tod os, a constitu ição de cad a
indivíduo em am eaça p ara a com u nid ad e são o estrito correlato da
solicitação consensu al da com u nid ad e inteiram ente realizad a com o
identidade refletid a em cad a um do povo e da p op u lação. A supres-
são do d ano reivind icad a pela socied ad e consensu al é id êntica à sua
absolu tização.
Essa equ ivalência é ilustrad a pela bru tal intru são das novas for-
mas de racism o e de xen ofobia em nossos regimes consensu ais. Pod e-
se seguramente encontrar, p ara isso, tod o tip o de razão econôm ica e
sociológica: o desemprego que faz que se acuse o estrangeiro de to-
m ar o lugar do au tóctone, a u rbanização selvagem, o d esam paro das
periferias e das cid ad es-d orm itório. Mas tod as essas causas "sócio-eco-
n ôm icas" atribu íd as a um fenôm eno p olítico d esignam , na verd ad e,
entid ad es inscritas na qu estão p olítica da d ivisão do sensível. A fábri-
ca e seu d esaparecim ento, o trabalho com o emprego e o trabalho com o

100 Jacqu es Rancière


estru tu ra do estar-em -com u m , o desemprego com o falta de trabalho
e o desemprego com o "d istú rbio de id entid ad e", a d istribuição e a redis-
tribu ição dos trabalhad ores em espaços definidos pela d istância em que
estão do local de trabalho e os da visibilid ad e do com u m , tu d o isso
concerne à relação da configu ração p olicial do sensível e d as p ossibi-
lidades de constitu ir nele a visibilid ad e de objetos litigiosos e de sujei-
tos do litígio. O caráter da com binação de tod os esses elementos é pró-
p rio a um m od o de visibilid ad e que neu traliza ou acu sa a alterid ad e
do estrangeiro. E desse p onto de vista que se pode d iscutir a simples
inferência do núm ero grand e demais de im igrantes p ara a sua rejei-
ção. O lim iar dessa rejeição não é, claram ente, uma qu estão estatísti-
ca. H á vinte anos, os im igrantes não eram m u ito menos nu m erosos.
Mas eles tinham um ou tro nome: chamavam-se trabalhad ores imigran-
tes ou , sim plesm ente, op erários. O im igrante de hoje é um op erário
que perdeu seu segundo nom e, que perdeu a form a política de sua iden-
tid ad e e de sua alterid ad e, a form a de uma su bjetivação p olítica do
côm p u to dos incontad os. Só lhe resta então uma id entid ade socioló-
gica, o qual oscila então na nudez antrop ológica de uma raça e de uma
pele d iferentes. O que ele perdeu foi sua id entid ad e com um m od o de
su bjetivação do p ovo, o op erário ou o p roletário, objeto de um d ano
d eclarad o e su jeito que form aliza seu litígio. É a perda do um-a-mais
da su bjetivação que d etermina a constitu ição de um um-por-demais
com o d oença da com unid ad e. Celebrou-se com estard alhaço o fim dos
"m itos" do conflito de classes e até se chegou a id entificar o d esapa-
recim ento das fábricas da paisagem u rbana com a liqu id ação dos mi-
tos e das utopias. Talvez se comece agora a perceber a ingenuidade desse
"an ti-u top ism o". O que se cham a fim dos "m itos" é o fim das form as
de visibilid ad e do esp aço coletivo, o fim da visibilid ad e da d istância
entre o p olítico e o sociológico, entre uma su bjetivação e uma id enti-
d ad e. O fim dos "m itos" do p ovo, a invisibilid ad e op erária, é o não-
lugar dos mod os de su bjetivação que permitiam incluir-se com o excluí-
d o, contar-se com o incontad o. O d esap arecim ento desses m od os p o-
líticos de ap arência e de su bjetivação do litígio tem com o conseqü ên-
cia o bru tal reap arecim ento no real de uma alterid ad e que não se sim-
boliza m ais. O antigo op erário cind e-se então em d ois: de um lad o, o
im igrante; do ou tro, esse novo racista ao qu al os sociólogos d ão sig-
nificativam ente um ou tro nom e de cor, ch am an d o-o "pet it Blanc"
[pequeno bran co], do nom e ou trora atribu íd o aos colonos m od estos
da Argélia francesa. A d ivisão que foi exclu íd a da visibilid ade p or ar-

O Desentend im ento 101


caica reap arece sob a form a mais arcaica aind a da alterid ad e nua. É
em vão que a boa vontade consensual propõe suas mesas redondas para
d iscutir o p roblem a dos im igrantes. Aqui com o ali, o reméd io e o mal
fecham o cerco. A objetivação p ós-d em ocrática do "p roblem a" imi-
grante cam inha a par com a fixação de uma alterid ad e rad ical, de um
objeto de ód io absolu to, p ré-p olítico. É p or esse mesmo m ovim ento
que a figura do ou tro se exasp era na pura rejeição racista e se esvai
na p roblem atização da im igração. A nova visibilid ad e d o ou tro na
nudez de sua d iferença intolerável é p rop riam ente faland o o resto da
op eração consensu al. E o apagamento "racion al" e "p acífico" da apa-
rência na exp osição integral do real, do erro de contagem do povo na
ap u ração da p op u lação, e do litígio no consenso, que traz de volta o
m onstro da alterid ad e rad ical na au sência da p olítica. É a exau stiva
ap u ração da p op u lação incessantem ente sond ad a que prod u z, no lu-
gar do povo d eclarad o arcaico, esse su jeito cham ad o "os franceses"
qu e, ao lad o dos p rognósticos sobre o fu tu ro "p olítico" de tal ou qual
vice-m inistro, se m anifesta por algumas op iniões bem d efinid as sobre
o número excessivo de estrangeiros e a insuficiência da repressão. Essas
op iniões, é claro, são m anifestações da p róp ria natu reza das op iniões
num regime m id iático, de sua natureza ao mesmo tem p o real e simu-
lad a. O su jeito da op inião diz o que pensa sobre os negros e os árabes
do mesmo m od o real/sim ulad o pelo qual é cham ad o p or ou tro lad o a
confessar tod as as suas fantasias e a satisfazê-las integralm ente pelo
ú nico p reço de uma linha telefônica "9 0 0 ". O su jeito que op ina as-
sim é o su jeito desse novo m od o do visível que é o da exp osição gene-
ralizad a, um su jeito cham ad o a viver integralm ente tod as as suas fan-
tasias no mundo da exibição integral e da ap roxim ação assintótica dos
corp os, nesse "tu d o é possível" da fru ição exp osta e prom etid a, ou seja,
evidentemente prometida a uma decepção e convid ad o, com isso, a bus-
car e perseguir o "m au cor p o", o corp o d iabólico que entrava em tod a
p arte a satisfação total que em tod a p arte está ao alcance da m ão e
em tod a p arte é su btraíd a ao seu cam p o.
O novo racism o das socied ad es avançad as deve assim a sua sin-
gularidade a ser o p onto em que se encontram tod as as form as de iden-
tid ad e a si da com u nid ad e que d efinem o m od elo consensu al, mas
tam bém tod as as form as de d efecção dessa id entid ade e de com p en-
sação dessa d efecção. E norm al, por consegu inte, que a lei venha com -
p letar sua coerência, isto é, fazer de sua unidade o m od o de reflexão
da com u nid ad e que se separa de seu Ou tro. A lei, é claro, ao tratar d o

100 Jacqu es Ran cière


problem a dos im igrantes, se p rop õe fazer obra de ju stiça e de paz. Ao
d efinir regras de integração e de exclu são até então d eixad as ao acaso
das circu nstâncias e à d isparid ad e dos regu lam entos, ela pretend e fa-
zer o p articu lar entrar na esfera de sua universalid ad e. Ao sep arar os
bons estrangeiros dos ind esejáveis, está su postam ente d esarm and o o
racism o que se nutre do am álgam a. O p roblem a é que essa d iscrim i-
nação só pode ser feita ao p reço de d ar feição a esse Ou tro ind efinível
que suscita os sentim entos do medo e da rejeição. A lei que deve des-
fazer o am álgam a do "sen tim en to" só o faz retirand o-lhe seu objeto,
seu modo de unificação sem conceito de casos heterogêneos de inaceita-
bilid ad e do ou tro, e de d evolvê-lo subsumid o sob a unidade do con-
ceito. A lei d ecretad a pelo sistema consensu al é tam bém a confirm a-
ção do tip o de relação a si que constitu i o p róp rio sistema consensu al.
Seu p rincíp io é estabelecer a permanente conversibilid ad e do Um da
lei com o Um do sentim ento que define o estar-ju nto. O trabalho da
lei consensual é portanto primeiramente construir o esquema que trans-
form a o Um sentido mas indefinível da rejeição num Um da lei com um.
É esse esquema que constitu i o inencontrável objeto "im igran te", ao
unificar os casos heterogêneos do jovem d elinqüente de origem magre-
bina, do trabalhad or de Sri Lanka sem d ocu m entos, do m u çu lm ano
p olígam o e do trabalhad or do Mali que impõe o encargo de sua fam í-
lia à com u nid ad e francesa. A circu lação de alguns op erad ores de con-
versão, com o "clan d estin o", que liga a figura do estrangeiro à do de-
linqü ente, constrói o esquema que dá à lei um objeto sem elhante ao
do sentim ento: a figura do m últiplo que extravasa e se reprod uz sem
lei. O esquema da lei consensu al liga, assim , a ord em do nomos com o
pod er de convir e de con tratar com a ord em da physis enqu anto po-
der de con-sentir. O consenso é uma relação de circu larid ad e entre a
natureza e a lei, que d eixa a esta o cu id ad o de d eterminar a antinatu -
reza que aqu ela sente com o insu p ortável. A lei o faz sep arand o da
physis, concebid a com o pod er d aqu ilo que eclod e, a antinatu reza, ou
seja, o poder do múltiplo proliferante. A lei realiza a natu reza, ao iden-
tificar o que esta lhe designava espontaneamente com o sua d oença, essa
m u ltid ão que não pára nunca de reprod uzir-se. Para esta, os mais an-
tigos ju ristas rom anos tinham inventad o um nom e: proletarii, aque-
les que não fazem ou tra coisa senão reprod uzir sua p róp ria multiplici-
dade e qu e, por essa mesma razão, não merecem ser contad os. A demo-
cracia m od erna d estacou essa palavra p ara transform á-la num su jeito
p olítico: um múltiplo singular pelo que são contad os os incontad os,

O Desentend im ento 101


um op erad or de d istância dos corp os p rod u tores e rep rod u tores deles
mesmos, um analisad or que separa a comunidade de si mesma. A meta-
política o tinha transform ad o na figura ambígua do sujeito ultrapolítico
do m ovim ento verd ad eiro que dissipa a ilu são p olítica. Rem ate m áxi-
mo do niilism o da m eta-p olítica, a p ós-d em ocracia consensu al, p ara
fechar a com unid ad e nela m esm a, suprime o nome e remete a figura à
sua origem : aquém da d em ocracia, aquém da p olítica.
A POLÍTICA EM SUA ERA N IILISTA

Recap itu lem os: a p olítica existe ali ond e a contagem das p arce-
las e das partes da socied ad e é p ertu rbad a pela inscrição de uma par-
cela dos sem -p arcela. Ela com eça qu and o a igualdade de qu alqu er um
com qu alqu er um inscreve-se com o liberd ad e do p ovo. Essa liberd a-
de do povo é uma propried ad e vazia, uma propried ad e im própria pela
qual aqueles que não são nad a colocam seu coletivo com o id êntico ao
tod o da comunidade. A política existe enquanto formas de subjetivação
singulares renovarem as form as da inscrição p rim ária da id entid ade
entre o tod o da com u nid ad e e o nad a que a separa de si m esm a, quer
d izer, da contagem apenas de suas p artes. A p olítica d eixa de existir
ali onde não tem mais lugar essa d istância, ond e o tod o da com u nid a-
de é reduzido sem resto à soma de suas p artes. Há várias m aneiras de
pensar o tod o com o apenas a soma de suas partes. A soma pode ser
feita de indivíduos, pequenas máquinas que exploram de forma intensa
sua p róp ria liberd ad e de d esejar, de empreend er e de fru ir. Pode ser
feita de grupos sociais, que com p õem seus interesses com o p arceiros
responsáveis. Pode ser feita de com u nid ad es, cad a uma provid a do re-
conhecim ento de sua id entid ad e e de sua cu ltu ra. O Estad o consen-
sual é qu anto a isso tolerante. O que ele não tolera m ais, p or ou tro
lad o, é a p arte exced ente, a que falseia a contagem da com u nid ad e. O
que ele precisa são de partes reais, que possuem ao mesmo tem po suas
propried ad es e a propried ad e com u m do tod o. O que ele não pode to-
lerar é um nad a que seja tu d o. O sistema consensu al repousa nesses
axiom as sólid os: o tod o é tu d o, o nada não é nad a. Se se suprimirem
as entidades parasitas da su bjetivação p olítica, atinge-se, pou co a pou-
co, a id entid ad e do tod o com o tod o, que é identidad e do p rincíp io
do tod o com o de cad a uma das partes, dos herd eiros com o tod o. Essa
identidade se cham a hum anid ad e.
Aqui com eçam os problem as. O sistema consensual celebrava sua
vitória sobre o totalitarism o com o vitória final do d ireito sobre o não-
d ireito e do realism o sobre as u top ias. Preparava-se para acolher em
seu espaço liberto da p olítica e cham ad o Eu rop a as d em ocracias nas-

O Desentend im ento 101


cidas da d errocad a dos Estad os totalitários. Ele vê em quase tod a parte
a paisagem da humanidade liberta do totalitarism o e das utopias com o
paisagem dos integrismos id entitários. Sobre as ruínas dos Estad os tota-
litários, o etnicism o e a guerra étnica se d esencad eiam . A religião e os
Estad os religiosos abençoad os ou trora p or constitu írem barreiras na-
turais à expansão soviética assumem a figura da ameaça integrista. Essa
ameaça chega mesmo a instalar-se no coração dos Estad os consensuais,
em tod a p arte onde vivem esses trabalhad ores que agora são apenas
im igrantes, em tod a p arte onde indivíduos se m ostram incapazes de
respond er ao pedido de serem m ilitantes de sua p róp ria integrid ad e.
E, d iante d ela, as com unid ad es consensu ais vêem renascer a pura re-
jeição d aqueles cu ja etnia ou cu ja religião não podem ser tolerad as.
O sistema consensu al se representa a si mesmo com o o m od o do di-
reito em face do mundo do não-d ireito — o da barbárie id entitária,
religiosa ou étnica. Mas, nesse mundo de su jeitos estritam ente id enti-
ficad os com sua etnia, com sua raça ou seu povo guiad o pela d ivind a-
d e, nessas guerras de tribos que com batem para ocu p ar tod o o terri-
tório daqueles que repartem sua id entid ad e, ele contem p la tam bém a
extrem a caricatu ra de seu sonho razoável: um mundo limpo das iden-
tid ad es exced entes, p ovoad o de corp os reais provid os das p rop ried a-
des expressas por seu nom e. Para além do demos, ele anu nciava um
mundo feito de indivíduos e de grupos que m anifestam apenas a hu-
manid ad e com u m . Ele só havia esquecid o uma coisa: entre os indiví-
duos e a hum anid ad e, há sempre uma d ivisão do sensível: uma confi-
gu ração que d etermina a maneira com o partes têm p arcela na com u -
nid ad e. E há dois grandes mod os de d ivisão: aquele que conta uma
parcela dos sem-parcela e aquele que não a conta, o demos ou o ethnos.
Ele pensava que sua am p liação não tinha fim : Eu rop a, com u nid ad e
internacional, cid ad ania do m und o, humanidad e enfim : tantos nomes
para um tod o igual à soma de seus elem entos, p rop rietário cad a um
da propriedade comum do tod o. O que ele d escobre é uma figura nova,
rad ical, da identidade do tod o e do nad a. A nova figu ra, a figura não-
p olítica do tod o id êntica ao nad a, da integridade alcançad a em tod a
parte cham a-se d oravante, tam bém ela, humanidade. O homem "qu e
nasceu livre e em tod a p arte se encontra a ferros" tornou -se o homem
que nasceu hum ano e em tod a parte se vê d esu m ano.
Para além das formas do litígio d em ocrático, estende-se com efeito
o reinado de uma humanidade igual a ela mesma, atribuída diretamente
a cad a um, exp osta em cad a um à sua catástrofe; um tod o habitad o

100 Jacqu es Rancière


p or seu nad a, uma humanid ad e que se m ostra e se d em onstra em tod a
p arte d enegad a. O fim das grand es su bjetivações do d ano não é o fim
d o tempo da "vítim a u niversal". É, ao con trário, seu com eço. Os tem-
pos da d em ocracia m ilitante d eclinaram tod a uma série de form as po-
lêmicas dos "hom ens nascid os livres e iguais em d ireito". O "n ó s" to-
mou d iferentes nomes de su jeitos para exp erim entar o pod er litigioso
dos "d ireitos h u m an os", p ara pôr à prova a inscrição da iguald ad e,
perguntar se os d ireitos do hom em eram mais ou menos que os d irei-
tos do cid ad ão, se eram os da mulher, do p roletário, do negro e da negra
etc. Deram assim aos d ireitos hu m anos tod o o pod er que pod em ter:
o pod er da inscrição igu alitária acrescid a pelo de sua argu m entação e
de sua m anifestação na constru ção de casos de litígio, no relaciona-
m ento d o mundo de valid ad e da inscrição igu alitária com seu mundo
de não-valid ad e. O reinad o do "h u m an itário", em contrap artid a, co-
meça ali ond e os d ireitos do hom em estão cortad os de tod a cap acid a-
de de singularização polêm ica de sua universalidade, onde a frase igua-
litária d eixa de ser frasead a, interpretad a na argumentação de um dano
que manifesta sua efetividade litigiosa. Então a humanidade não é mais
atribu íd a de form a p olêm ica às mulheres e aos p roletários, aos negros
ou aos cond enad os da terra. Os d ireitos do homem não são mais expe-
rim entad os com o cap acid ad es p olíticas. O pred icad o "h u m an o" e os
"d ireitos h u m an os" são simplesmente atribu íd os, sem frase, sem me-
d iação, a seu titu lar, o su jeito "h om em ". O tem po do "h u m an itário"
é o da id entid ade im ed iata entre qu alqu er exem p lar da humanid ad e
sofred ora e a plenitude do su jeito da humanid ad e e de seus d ireitos.
O titu lar puro e simples do d ireito não é nad a mais que a vítim a sem
frase, última figura d aquele que é exclu íd o do logos, provid o apenas
da voz que exprim e a qu eixa m on óton a, a qu eixa do sofrim ento nu ,
que a satu ração tornou inaud ível. Mais p recisam ente, esse homem a
quem pertence tu d o o que é hu m ano se reduz então ao par da vítim a,
a figura p atética d aquele a quem essa humanid ad e é negad a, e do car-
rasco, a figura m onstru osa d aquele que nega a hum anid ad e. O regi-
me "hu m anitário" da "com unid ad e internacional" exerce qu anto a elas
a ad m inistração dos d ireitos do hom em , enviand o a uma alim entos e
rem éd ios, à ou tra, mais raram ente, divisões aerotran sp ortad as 1.

1 Qu e seja necessário enviar alimentos e remédios àqueles que precisam de-


les, que capacidades e devotamentos notáveis se apliquem nessas tarefas essenciais,
isso é incontestável e não será contestad o aqui. O que se quer discutir aqui é uma

O Desentend imento 101


A transform ação da cena d em ocrática em cena hu m anitária pode
ser ilustrad a pela impossibilid ad e de um m od o de enu nciação. N o iní-
cio do movimento de m aio de 1968 na França, os manifestantes haviam
definido uma forma de subjetivação resumida numa frase: "som os tod os
judeus alem ães". Essa frase ilustra bem o m od o heterológico da sub-
jetivação p olítica: tom and o ao pé da letra a frase estigm atizante do
ad versário, preocu pad o em despistar o intru so sobre o p alco em que se
contavam as classes e seus partid os, ela a invertia para convertê-la numa
su bjetivação aberta dos incontad os, um nome sem confu são possível
com qualquer grupo social real, com qualquer côm p u to de id entid ad e.
É evidente que uma frase desse tipo seria hoje impronunciável, por duas
razões. A primeira é que não é exata. Os que a pronunciavam não eram
alemães e não eram , na sua m aioria, jud eus. Ora, tanto os p artid ários
do progresso com o os da ordem ad mitiram desde então que só são legí-
timas as reivindicações de grupos reais que tom am pessoalmente a pala-
vra para dizerem eles mesmos sua p róp ria id entid ad e. Ninguém d ora-
vante tem o direito de se dizer p roletário, negro, judeu ou mulher se não
o for, se não tiver essa qualidade nativa e sua experiência social. A única
exceção a essa regra de au tenticid ad e, é claro, é a "h u m an id ad e" cu ja
autenticidade consiste em ser sem palavra e cu jos direitos estão nas mãos
da polícia da comunid ad e internacional. E aí aparece a segunda razão:
a frase é d oravante impronunciável porque é evidentemente ind ecente.
A identidade "ju d eu alem ão" hoje significa im ed iatam ente a id entid a-
de da vítima do crime contra a hum anid ad e, que ninguém pod eria rei-
vind icar sem p rofanação. Ela não é mais um nome disponível para a
su bjetivação p olítica, mas o nome da vítima absolu ta que suspende essa
su bjetivação. O su jeito do d esentend imento tornou -se o nome do in-
terd ito. A era hu m anitária é aquela em que a idéia da vítim a absolu ta
p roíbe os jogos polêm icos da su bjetivação do d ano. O episód io que se
chamou "nova filosofia" resume-se inteiramente nessa prescrição: o pen-
sam ento do m assacre é o que m arca de indignidade o p ensam ento e
proíbe a política. O pensamento do irresgatável vem então servir de duplo
ao realism o consensu al: o litígio p olítico é impossível por duas razões:
porque suas violências são um entrave para o acord o racional das par-
tes; e p orqu e as facécias de suas encarnações p olêm icas u ltrajam as

coisa totalm ente diferente: a subsunção dessas atividades sob uma categoria do hu-
manitário com o artifício da realpolitik dos Estad os.

100 Jacqu es Rancière


vítimas do d ano absolu to. A p olítica deve então ceder d iante do mas-
sacre, o pensam ento inclinar-se d iante do impensável.
Só que a d u p licação da lógica consensu al de su bm issão à pura
contagem das partes pela lógica ética/hu m anitária de submissão ao im-
pensável dos genocíd ios assume o aspecto de um duplo vínculo. A dis-
tribu ição dos papéis, é verd ad e, pode p erm itir que as duas lógicas se
exerçam sep arad am ente. Aind a assim é p reciso que nenhum p rovoca-
d or atinja o p onto em que se encontram , o p onto que d esignam com
evid ência ao mesmo tem p o em que se esforçam para não vê-lo. Esse
p onto é o da pensabilid ad e do crim e contra a humanid ade com o inte-
gralid ad e do exterm ínio. É a esse p onto que chega a p rovocação nega-
cionista. Esta devolve sua lógica aos gestores do possível e aos pensa-
d ores do impensável, m anejand o o duplo argum ento da im possibili-
dade de um cálcu lo exau stivo do exterm ínio e da im pensabilid ad e de
seu p ensam ento, afirm and o a im possibilid ad e de p resentificar a víti-
ma do crim e contra a humanid ad e e de d ar uma razão su ficiente pela
qual o carrasco o teria p erp etrad o.
Tal é na verdade o d uplo m otor da argu m entação negacionista,
para negar a realidad e do exterm ínio dos judeus nos cam p os nazistas.
De um lad o, ela lança mão dos clássicos parad oxos sofistas da enumera-
ção interminável e da d ivisão ao infinito. Já em 1950, Paul Rassinier
havia fixad o seu con ju n to de argu m entos sob a form a de uma série
de perguntas cu jas respostas d eixavam ap arecer a cad a vez qu e, mes-
mo que tod os os elementos do processo fossem reconhecid am ente cer-
tos, seu encad eam ento não p od ia nu nca ser inteiram ente refeito, e
menos aind a a sua ligação às conseqü ências de um p rojeto de pensa-
m ento integralm ente p rogram ad o e im anente a cad a uma de suas se-
qü ên cias 2. Realm ente, dizia ele, houve d eclarações nazistas que pre-
gavam o exterm ínio de tod os os jud eus. Mas d eclarações nu nca m a-
taram ninguém por si sós. Realm ente, houve planos de câm aras de gás.
Mas um p lano de câm ara de gás e uma câm ara de gás em fu nciona-
mento são duas coisas tão diferentes qu anto cem táleres possíveis e cem
táleres reais. Realm ente, houve câm aras de gás instalad as de fato num
certo núm ero de cam p os. Mas uma câm ara de gás é apenas uma fá-
brica de gás com que se pode fazer tod as as espécies de coisas diver-
sas e acerca da qual não há prova de que tivesse a fu nção específica

2 Paul Rassinier, Le M ensonge d' Ulysse, 2 a ed ., Macon , 1955.

O Desentend imento 101


do exterm ínio em m assa. Realm ente aind a, havia, em tod os os cam -
p os, seleções regulares ao cabo das quais desapareciam prisioneiros que
nu nca mais foram encontrad os. Mas há mil m aneiras de m atar pes-
soas ou simplesmente d eixá-las m orrer e as que d esap areceram nu nca
nos d irão com o d esap areceram . Realm ente enfim , houve nos cam p os
prisioneiros m ortos de fato pelo gás. Mas nad a prova que tenham sido
vítim as de um sistem ático plano de con ju n to e não de simples tortu -
rad ores sád icos.
É p reciso d eterm o-nos um instante no duplo m otor dessa argu-
m entação: faltam d ocu m entos, dizia Rassinier em 1950, p ara estabe-
lecer a con exão de tod os esses fatos a um ú nico acontecim ento. Mas
tam bém , acrescentava ele, é m u ito d uvid oso que sejam um dia encon-
trad os. Ora, desde en tão, foram encontrad os d ocu m entos em abu n-
d ância su ficiente. N em p or isso a p rovocação revisionista ced eu. Ao
contrário, soube encontrar novos adeptos ou novas tolerâncias. Qu anto
mais seus argum entos se m ostraram inconsistentes no p lano dos fa-
tos, mais sua verd ad eira força se afirm ou . Essa força provém de ter
tocad o o p róp rio regime da crença segundo a qual uma série de fatos
é constatad a com o um acontecim ento singu lar, e um acontecim ento
subsumid o sob a categoria do possível. Provém de ter tocad o no p on-
to em que duas possibilid ad es devem ser aju stad as uma à ou tra: a pos-
sibilidade m aterial do crime com o encad eam ento total de suas seqüên-
cias, e sua possibilid ad e intelectu al segundo sua qu alificação de crim e
absolu to contra a humanid ad e. A p rovocação negacionista não se sus-
tenta pelas provas que op õe ao acú m u lo das provas ad versas. Ela se
sustenta porqu e traz cad a uma das lógicas que ali se enfrentam a um
p onto crítico em que a impossibilid ad e se encontra com p rovad a sob
tal ou qual de suas figuras: falta na cad eia, ou impossibilidade de pensar
o encad eam ento. Ela obriga então essas lógicas a execu tar uma corri-
da em que o possível é sempre alcançad o pelo im possível, e a verifica-
ção do acontecim ento pelo pensam ento de seu impensável.
A prim eira ap oria é a da lei e do ju iz. A op inião francesa indig-
nou-se contra aqueles juizes que livraram o antigo m iliciano Tou vier
da acu sação de "crim e contra a hu m anid ad e". Mas antes de ind ignar-
se, convém refletir na singular configu ração das relações entre o di-
reito, a p olítica e a ciência im plícita num tal caso. A n oção ju ríd ica de
"crim e contra a hu m anid ad e", p rim eiram ente anexad a aos crim es de
gu erra, foi em ancipad a deles para que se pudesse p rocessar crimes que
as p rescrições ju d iciárias e as anistias estatais haviam d eixad o impu-

100 Jacqu es Rancière


nes. A d esgraça é que nad a define p rop riam ente a humanidade que é
o objeto do crim e. O crim e fica com p rovad o não porque se com p ro
vou que a humanid ad e é que se viu lesada enqu anto vítim a, mas por
que se com p rovou que o agente que o execu tou era no m om ento dt
sua execu ção, o execu tante da vontad e coletiva planificad a de um I s
tad o "qu e pratica uma política de hegemonia id eológica". Pede-se então
ao juiz que faça as vezes de historiad or p ara estabelecer a existência
dessa p olítica, p ara traçar a continuid ad e do desígnio original de um
Estad o até o ato de um de seus servid ores, com o risco de reencontrar
as ap orias da d ivisão ao infinito. Os p rim eiros ju izes do m iliciano
Tou vier não encontraram o fio contínu o de uma "p olítica de hegemo-
nia id eológica", que vai d o nascim ento d o Estad o de Vichy ao ato
crim inoso de seu m iliciano. Os segundos juizes resolveram o p roble-
ma fazend o de Tou vier um execu tante d ireto do Estad o alem ão na-
zista. O acu sad o argu m entava em sua defesa que tinha d ad o prova de
humanid ad e ao fazer menos do que lhe pedia a vontad e coletiva pla-
nificad a. Su p ond o, agora, que um acu sad o alegasse ao contrário ter
feito mais, ter agid o sem ord em e sem m otivação id eológica, p or puro
sad ismo p essoal, esse acu sad o não seria mais que um m onstro ord i-
nário, escap and o ao qu ad ro ju ríd ico do crim e contra a hu m anid ad e,
colocand o em evidência a impossibilidade para o juiz de reunir o agente
e o p aciente do crim e contra a humanid ad e.
A ap oria do juiz e da lei passa a ser então a da ciência requerid a
no caso, isto é, a ciência da história. Os historiad ores trou xeram , en-
qu anto esp ecialistas, tod as as provas exigid as p ara o estabelecim ento
e o encad eamento dos fatos. E protestaram , com o corp o científico, con-
tra os m étod os p seu d ocientíficos dos negacionistas. Pode-se pergun-
tar, então, p or que diversos Estad os devem ad otar leis que proibiam
falsificar a história ao negar o exterm ínio. A resposta é simples, fi que
a história que pode trazer tod os os contratestem u nhos passíveis de re-
fu tar uma parte num tribu nal ord inário m ostra-se incapaz de respon-
der a dois argu m entos: aquele que diz que uma sucessão de fatos en-
cad ead os uns nos ou tros não atinge nunca o p onto em que constitu i
um acontecim ento ú nico, e aquele que diz que um acontecim ento só
ocorre num tem p o se esse tem p o tornar sua possibilid ad e possível. E
ela é incap az disso porqu e esses argum entos são coerentes com o re-
gime de crença segundo o qu al ela se pensa com o ciência: aquele que
subm ete o caráter pensável da efetividade de um pensamento à possi-
bilid ad e de que seu tem po o torne possível.

O Desentend im ento 101


Aí está o duplo gatilho no qual se arm a a argu m entação negacio-
nista. A im possibilid ad e de com p rovar em sua totalid ad e o aconteci-
m ento do exterm ínio se sustenta da im possibilid ad e de pensar que o
exterm ínio pertence à realid ad e de seu tem p o. Os p arad oxos que se-
param a cau sa form al da cau sa m aterial e a cau sa eficiente da cau sa
final teriam rap id am ente esgotad o seus pod eres se não remetessem à
im possibilid ad e de que as qu atro cau sas possam unir-se num ú nico
p rincíp io de razão su ficiente. Para além das argú cias sobre a com p o-
sição dos gases e dos meios de produzir uma quantidade suficiente deles,
a p rovocação negacionista apela à "r a z ã o " do historiad or p ara per-
gu ntar-lhe se ele p od e, enqu anto cientista, encontrar, nos mod os de
racionalid ad e aos qu ais obed ecem em nosso século os sistemas indus-
triais e estatais com p lexos, a razão necessária e suficiente p ara que um
grand e Estad o m od erno se entregue à d esignação e ao exterm ínio em
massa de um inimigo rad ical. O historiad or que tem tod os os fatos para
respond er cai então na arm ad ilha da idéia que governa a razão histo-
riad ora: para que um fato seja com provad o, é preciso que seja pensável;
p ara que seja pensável, é preciso que p ertença àqu ilo que seu tem po
torna pensável, que sua imputação não seja anacrônica. Rabelais, com o
defendia Lucien Febvre num livro célebre, não era um d escrente 3. N ão
que tenham os a prova de que não o tenha sid o. Essa verdade é ju sta-
mente da alçad a do juiz e não do historiad or. A verdade do historia-
d or é que Rabelais não foi descrente porque não era possível que o fos-
se, porqu e sua ép oca não permitia a possibilid ad e dessa p ossibilid a-
de. O acontecim ento de pensam ento que consistiria na p osição clara
e simples de d escrença era impossível segundo aqu ela verd ad e: a ver-
dade d aqu ilo que um tem po torna pensável, d aqu ilo de que au toriza
a existência. Sair dessa verdade é cair no pecad o m aior aos olhos da
ciência da história: o pecad o de anacronism o.
Com o se passa dessa impossibilid ad e à impossibilid ad e de que
o exterm ínio tenha acontecid o? N ão apenas pela perversidade do pro-
vocad or que leva um raciocínio ao seu p onto de absu rd o e de escân-
d alo, mas tam bém pela reviravolta do regime m eta-p olítico da ver-
d ad e. A verdade de Lucien Febvre era a do organicism o sociológico,
da rep resentação da socied ad e com o corp o governad o pela hom oge-

3 L. Febvre, Le Problème de Vincroyance au X VIe siècle. La religion de Ra-


belais, Albin Michel, 1942. Para uma análise mais d etalhad a, cf. J. Rancière, "Les
énoncés de la fin et du rien " em Traversées du nihilisme, Osiris, 1993.

100 Jacqu es Rancière


neidade das mentalid ad es coletivas e das crenças com u ns. Essa ver-
dade plena tornou -se uma verdade vazia. A ad esão necessária de tod o
pensam ento individual ao regime com um da crença de sua ép oca tor-
nou-se o único vazio de um argumento ontológico negativo: o que não
é possível segundo seu tem p o é impossível. O que é impossível não
pôde ser. O jogo form al do argu m ento ontológico negativo con cor-
da então com a op inião "razoável" de que um grande Estad o indus-
trial m od erno com o a Alem anha não tinha nenhum a necessid ad e de
inventar a lou cu ra do exterm ínio dos ju d eu s. O historiad or que refu-
tou tod as as provas do m entiroso não pod e refu tar rad icalm ente a
m entira p orqu e não pode refu tar a idéia de verdade que a su stenta.
O historiad or leva ao ju iz a con exão dos fatos que lhe faltava. Mas,
ao mesmo tem p o, a racionalid ad e historiad ora remove a racionalid a-
de do encad eam ento dos fatos p ara a racionalid ad e de sua p ossibili-
d ad e 4. É p reciso então que a lei p roíba a falsificação da história. É
preciso, em suma, que a lei faça o trabalho que não pode ser feito pelo
historiad or, que era encarregad o de fazer o que a lei não pod e fazer.
Essa dupla ap oria é evid entemente apenas a m arca de pertencerem o
d ireito e a ciência a um certo regime de crença, o regime de crença
peculiar ao sistema consensu al: o realism o. O realism o pretend e ser
a sadia atitud e do espírito que se restringe às realid ad es observáveis.
Ele é na verdad e coisa totalm ente d iferente: é a lógica p olicial da or-
dem que afirm a, em qu alqu er circu nstância, fazer apenas o que é pos-
sível fazer. O sistema consensu al absorveu a necessidade histórica e
objetiva de antigam ente, reduzida à p orção côngru a do "ú n ico pos-
sível" que a circunstância au toriza. O possível é assim o operad or con-
ceitu ai de troca entre a "realid ad e" e a "n ecessid ad e". E é tam bém o
último m od o de "verd ad e" que a m eta-p olítica acabad a pod e ofere-
cer à lógica da ord em p olicial, a verdade da im possibilid ad e do im-
possível. O realism o é a absorção de tod a realid ad e e de tod a verd a-
de na categoria do único possível. E, nessa lógica, o possível/verdad e
é encarregad o de suprir com sua au torid ad e científica tod as as lacu -

4 É significativo que na França seja um historiad or da Antigüid ad e, Pierre


Vid al-N aqu et, quem conduziu a luta contra o negacionism o, especialmente em Les
A ssassins de la mémoire (La Décou verte, 1987). Para colocar a questão do tipo de
verdade ao qual recorrem as p rovocações negacionistas, é sem dúvida necessário
ter a d istância que a familiarid ad e com o pensamento antigo do pseudos dá em
relação à racionalid ad e histórico-sociológica das mentalid ad es e das crenças.

O Desentend imento 101


nas do possível/realid ad e. Qu anto mais as performances do realism o
gestor são incertas, mais ele deve legitim ar-se pela m onótona reitera-
ção da impossibilid ad e do impossível, com o risco de proteger essa
au tolegitim ação negativa pela tênue barreira da lei que d etermina o
p onto onde deve se deter o vazio da verdade, o limite que o argumento
de impossibilid ade do impossível não deve u ltrap assar. Daí o estra-
nho fenôm eno de uma lei que p roíbe a m entira no tem po qu and o a
lei se esforça p or aniqu ilar tod os os "tabu s" que a separavam de uma
socied ad e por sua vez d estinad a à fru ição infinita de tod as as p rofa-
nações. N ão é o respeito às vítimas ou o horror sagrad o que está em
jogo aqui mas a p reservação do mais raqu ítico dos segred os: a sim-
ples nulid ad e dessa im p ossibilid ad e do impossível que é a verd ade
última da m eta-p olítica e a legitim ação última dos gestores do ú nico
possível. Mais do que privar da p alavra os negacionistas, o interd ito
proíbe que se exiba o simples vazio do argumento do impensável. N ão
há estritam ente nad a que esteja além do pensável na m onstru osid ad e
do holocau sto, nad a que exced a as cap acid ad es conju gad as da cru el-
dade e da covard ia quand o se beneficiam de tod os os m eios à d ispo-
sição dos Estad os m od ernos; nad a de que esses Estad os não sejam
capazes ali onde se esfacelam as form as de su bjetivação não id entitá-
rias da contagem dos incontad os, em que o povo d em ocrático está in-
corp orad o com o povo étnico.
Sem dúvida, o argum ento arend tiano da "banalid ad e do m al"
d eixa o espírito insatisfeito. Acu saram -no de ter banalizad o o exces-
so de ód io para com uma vítima esp ecífica. Mas o argu m ento é ele
mesmo reversível. A identidade judia liquidada pelo exterm ínio nazista
não era d iferente da identidade dos fantasm as anti-sem itas usuais. É
p ortanto na cap acid ad e de agenciar os meios do exterm ínio que resi-
de a diferença específica. N ão obstante, o espírito não precisa aqui estar
satisfeito e a qu estão não é exp licar o genocíd io. Está claro que o p ro-
blema está sendo colocad o ao contrário. O genocíd io não é o objeto
que a atualid ad e estaria impondo hoje a nosso p ensam ento, tend o p or
efeito transtornar a p olítica e a filosofia. Foi antes a absorção estatal
da p olítica, com seu resto ou seu duplo hu m anitário, que fez do ge-
nocíd io uma p reocu p ação filosófica, que empenhou a filosofia, sob o
nome de ética, a tratar de algum m od o d aqu ilo que o d ireito e a ciên-
cia não podem atingir nesse resto, essa id entid ad e do hu m ano e do
d esu m ano, cu jo cuid ad o o Estad o consensu al lhe d elegou. É a p artir
desse p onto de vista que se deve situar a d iscussão. N ão há uma "b o a "

100 Jacqu es Ran cière


exp licação do genocíd io que se op onha às m ás. Há m aneiras de situar
a relação do pensam ento com o acontecim ento do genocíd io que en-
tram ou não entram no círcu lo do impensável.
A com plexid ad e do jogo desse "im p ensável" está muito bem ilus-
trad a num texto de Jean -Fran çois Lyotard 5 . Tod a reflexão sobre o
holocau sto deve, segundo ele, pensar a especificid ad e da vítim a, a es-
pecificidade do p rojeto de exterm inar o povo judeu enquanto povo tes-
temunha de uma dívida primeira do homem para com o Ou tro, de uma
im p otência natal do p ensam ento cu jo testem u nho o ju d aísm o carre-
ga e que a civilização greco-rom ana sempre se empenhou em esque-
cer. Mas d ois m od os de atribu ição do p ensam ento ao acontecim ento
se m isturam inextricavelm ente em sua d em onstração. A qu estão pa-
rece tratar p rim eiro do tip o de m em ória ou de esqu ecim ento requeri-
do pelo acontecim ento do genocíd io. Trata-se então, sem se preocupar
em "exp licar" o genocíd io, de medir as conseqü ências que um pensa-
m ento d o genocíd io pode ter para uma reconsid eração, pela filosofia
ocid ental, de sua história. Mas assim que essa história é pensad a nos
term os d o recalqu e, o nome "ju d eu " passa a ser o nome da testemu -
nha desse "esqu ecid o", do qual a filosofia quer esquecer o necessário
esqu ecim ento. O holocau sto vê-se então atribu ir o sentid o "filosófi-
co " do d esejo de se livrar desse recalcad o, suprimind o a ú nica teste-
munha dessa cond ição de refém do Ou tro que é inicialmente a do pen-
sam ento. A identidad e "filosófica" da vítim a, do refém /testem u nha,
torna-se então a razão do crim e. Ela é a id entid ade da testem u nha da
im potência d o p ensam ento, que a lógica de uma civilização mand a es-
qu ecer. Assim se instau ra um duplo nó entre o pod er do crim e e a im-
p otência do p ensam ento. De um lad o, a realid ad e do acontecim ento
está de novo instalad a numa d istância infinita entre a d eterm inação
da cau sa e a com p rovação do efeito. De ou tro, a exigência de seu pen-
sam ento torna-se o p róp rio lugar onde o p ensam ento, confrontand o-
se com os efeitos m onstru osos da negação de sua p róp ria im p otência,
se fecha numa nova figura do impensável. O nó estabelecid o entre o
que o acontecim ento ord ena ao p ensam ento e o p ensam ento que o
mandou ele mesmo se d eixa então apreender no círculo do pensamento
ético. A ética é o p ensam ento que hip erboliza o conteú d o de pensa-
mento do crim e para devolver o p ensam ento à lem brança de sua im-

5 Jean-François Lyotard , Heidegger et "les juifs' \ Galilée, 1988.

O Desentend imento 101


potência natal. Mas também a ética é o pensamento que dá a tod o pen-
sam ento e a tod a p olítica sua p róp ria im p otência, ao se fazer guard iã
do pensamento de uma catástrofe da qual, em tod o caso, nenhuma ética
nos soube p reservar 6.
A ética é então a form a sob a qual a "filosofia p olítica" inverte
seu p rojeto inicial. O p rojeto inicial da filosofia era suprimir a p olítica
para realizar sua essência verd ad eira. Com Platão, a filosofia propu-
nha a realização da filosofia com o princípio da com u nid ad e, em lugar
da p olítica. E essa realização da filosofia era, em última instância, a su-
pressão da própria filosofia. A ciência social do século XI X foi a ma-
neira m od erna pela qual se realizou o p rojeto de uma supressão/reali-
zação da p olítica com o realização/su pressão da filosofia. A ética é hoje
a última form a dessa realização/su p ressão. É a p rop osta feita à filoso-
fia de suprimir-se, de entregar-se ao absolu tam ente Ou tro p ara exp iar
os erros do pensam ento do Mesm o, os crimes da filosofia "realizad a"
com o alma da comunidade. Ela infinitiza o crime para infinitizar a injun-
ção que ela mesma se faz enviar pelo refém , pela testem u nha, pela ví-
tima: que a filosofia expie a velha pretensão do campo filosófico e a ilusão
m od erna da humanid ad e d esalienad a, que se su bm eta ao regime da
alterid ad e infinita que afasta qualquer su jeito de si m esm o. A filosofia
torna-se então o pensamento do luto que vem encarregar-se do mal com o
do resto da red ução estatal do dikaion ao sympheron. Sob o nome de
ética, ela assume o m al, a desumanidade do homem que é a face som-
bria do id ílio consensu al. Ela propõe remed iar o ap agam ento das figu-
ras p olíticas da alterid ad e pela alterid ad e infinita do Ou tro. Inscreve-
se assim numa relação bem determinada com a p olítica, aquela que Aris-
tóteles tinha m arcad o, no primeiro livro da Política, ao separar a "h u -
m anid ad e" p olítica da dupla figura do ser estrangeiro à p ólis: aquele
que é mais ou menos que hom em . Aquele que é mais ou menos que ho-
mem é o deus ou o m onstro, é o par religioso da divindade e da mons-
tru osid ad e. A ética instala precisamente o pensamento no face-a-face
entre o m onstro e o d eu s 7. O que significa que ela assume, com o seu
p róp rio lu to, o luto da p olítica.
N ão se pode certam ente d eixar de ap rovar o atu al cuid ad o da
filosofia em ser m od esta, isto é, consciente da p otência e da im p otên-

6 Cf. Alain Bad iou , UÉthique. Essai sur la conscience du mal, H atier, 1993.
7 Aristóteles, Política, I, 1253 a 4.

100 Jacqu es Rancière


cia conju gad as do p ensam ento, de seu pequeno poder em relação à sua
p róp ria d esmed id a. Resta saber com o se concretiza essa mod éstia do
p ensam ento, o modo pelo qu al ela pretend e exercer sua medida. A
m od éstia presente do Estad o, já vim os, é antes de mais nad a modés-
tia em relação à p olítica, isto é, hip erbolização da p rática com u m do
Estad o, que é viver da su pressão da p olítica. Convém p ortanto asse-
gurar-se de que a mod éstia da filosofia não seja, também ela, uma mo-
déstia p or conta de ou trem , que não seja a última volta dessa realiza-
ção/su p ressão da p olítica da qu al vive a "filosofia p olítica": o luto da
p olítica, p roclam ad o com o exp iação dos erros da filosofia "realiza-
d a ". N ão há luto da p olítica a ser p ensad o, há apenas sua atu al difi-
culd ad e e a m aneira com o essa d ificuld ad e a obriga a uma m od éstia e
a uma im od éstia esp ecíficas. A p olítica hoje deve ser im od esta em re-
lação à m od éstia a que a obrigam as lógicas de gestão consensu al do
"ú n ico p ossível". Ela deve ser mod esta qu anto ao cam p o em que a
imod esta mod éstia da filosofia ética a engaja: o do resto excessivo das
p olíticas m od estas, ou seja, a con fron tação com a humanid ad e nua e
a desumanidade do hu m ano.
O agir p olítico encontra-se hoje preso entre as tenazes das polí-
cias estatais da gestão e da p olícia mundial do hu m anitário. De um
lad o, as lógicas dos sistemas consensu ais apagam as m arcas da apa-
rência, do erro na contagem e do litígio p olíticos. Do ou tro, convo-
cam a p olítica expulsa de seus locais a se estabelecer no terreno de uma
mund ialid ad e do hum ano que é mund ialid ad e da vítim a, d efinição de
um sentid o de mundo e de uma com u nid ad e de humanid ad e a p artir
da figura da vítim a. De um lad o, elas remetem o colocar em com u m
da contagem dos incontad os à enu m eração dos grupos sociais passí-
veis de ap resentar sua id entid ad e; elas localizam as form as da su bjeti-
vidade p olítica nos lugares da p roxim id ad e — do habitat, da ocu p a-
ção, do interesse — e nos laços da id entid ad e — de sexo, de religião,
de raça ou de cu ltu ra. Do ou tro, elas a mund ializam, elas a exilam nos
d esertos do p ertencim ento nu da humanid ad e a si m esm a. Elas indu-
zem o próprio cuidado de recusar as lógicas do consenso a pensar, com o
fund amento de uma comunid ade não-id entitária, uma humanidade da
vítima ou do refém , do exílio ou do d esp ertencim ento. Mas a im pro-
priedade política não é d espertencimento. Ela é o duplo pertencimento:
p ertencim ento ao mund o das propried ad es e das p arcelas e perten-
cim ento à com u nid ad e im p róp ria, a essa com u nid ad e que a lógica
igualitária constrói com o parcela dos sem -parcela. E o lugar de sua im-

O Desentend im ento 101


propried ad e não é o exílio. Ela não é o fora de lugar em que o hum a-
no, em sua nudez, se confrontaria consigo mesmo ou com seu ou tro,
m onstro e/ou divindade. A política não é a comunid ade consensual dos
interesses que se conju gam . Mas não é tam p ou co a comunid ad e de um
inter-ser, de um interesse que lhe im p oria sua originaried ad e, a origi-
naried ad e de um estar-em -com u m fund ad o no p róp rio esse d o inter
ou no inter p róp rio ao esse8. Ela não é a atu alização de um m ais ori-
ginariam ente hu m ano da hu m anid ad e, a ser reativad o sob a m ed io-
crid ad e do reino dos interesses ou p ara além da catástrofe das incor-
p orações. A segunda natureza da p olítica não é a reap rop riação pela
com unid ad e de sua natu reza p rim eira. Ela deve ser pensada com o efe-
tivam ente segunda. O interesse não é o sentid o de com u nid ad e que a
retom ad a da existência, do ser ou do "d iferente do ser" na sua origina-
ried ad e libertaria. O inter do interesse p olítico é o de uma interru p -
ção ou de um intervalo. A com u nid ad e p olítica é uma com u nid ad e de
interru p ções, de fratu ras, p ontu ais e locais, pelas qu ais a lógica igua-
litária vem separar de si mesma a com u nid ad e p olicial. Ela é uma co-
munidade de mund os de com unid ad e que são intervalos de su bjetiva-
ção: intervalos constru íd os entre id entid ad es, entre locais e lugares. O
estar-ju nto p olítico é um estar-entre: entre id entid ad es, entre m und os.
Tal com o a "d eclaração de id entid ad e" do acu sad o Blanqu i a d efinia,
a su bjetivação "p roletária" afirm ava uma com unid ad e do d ano com o
intervalo entre uma cond ição e uma p rofissão. Ela era o nome d ad o a
seres situados entre vários nomes, várias identidades, vários status: entre
uma cond ição de m anejad or baru lhento de utensílios e uma cond ição
de ser hu m ano falante, entre uma cond ição de cid ad ão e uma cond i-
ção de não-cid ad ania; entre uma figura social definível e a figura sem
figura dos não-contad os. Os intervalos p olíticos criam -se ao sep arar
uma cond ição de si m esm a, criam -se fazend o traços entre id entid ad es
e locais d efinid os em relação a ou tros lugares e id entid ad es d efinid os
num lugar d eterm inad o de um mundo d ad o, identidades e locais que
não têm lugar ali. Uma com unid ad e p olítica não é a atu alização da
essência com u m ou da essência do com u m . É a com u nhão do que não
está d ad o com o em -com u m : entre algo visível e invisível, algo p róxi-

8 A discussão sobre esse p onto poderia ser desenvolvida de maneira mais de-
talhada com o que Jean-Lu c N ancy, em La Comparution (Christian Bourgois, 1991)
e Le Sens du monde (Galilée, 1993), diz sobre a política com o d ifração do em d o
em-comum.

100 Jacqu es Rancière


mo e longínqu o, algo presente e ausente. Essa com u nhão supõe a cons-
tru ção d os víncu los que ligam o d ad o ao não-d ad o, o comum ao pri-
vad o, o p róp rio ao im p róp rio. É nessa constru ção que a humanid ad e
com u m se argu m enta, se m anifesta e faz efeito. A simples relação da
humanid ad e com sua d enegação não faz em lugar nenhum uma co-
munidade do litígio p olítico. A atualid ad e não pára de no-lo m ostrar:
entre a exp osição da desumanidade sofrida pelas populações deslocadas
ou m assacrad as da Bósnia, p or exem p lo, e o sentim ento d o com u m
pertencimento hu m ano, a com p aixão e a boa vontad e não bastam para
tecer os laços de uma su bjetivação p olítica que inclu iria na p rática de-
m ocrática das m etróp oles ocid entais um víncu lo com as vítim as da
agressão sérvia ou com aqueles e aqu elas que resistem a ela. O sim-
ples sentim ento da essência com u m e do d ano que lhe é cau sad o não
cria p olítica, nem m esm o sua p articu larização, que im p u taria, p or
exem p lo, ao m ovim ento das mulheres o víncu lo com as mulheres es-
tu p rad as da Bósnia. Falta aind a a constru ção do d ano com o vínculo
de com unid ad e com os que não pertencem ao mesmo com u m . Os cor-
pos exp ostos ou os testem u nhos vivos d os m assacres na Bósnia não
criam o víncu lo que p od iam ter criad o, no tem p o da guerra da Argé-
lia e dos m ovim entos anticolonialistas, os corp os, su btraíd os à vista e
à avaliação, dos argelinos jogad os no Sena pela p olícia francesa em
ou tu bro de 1961. Em torno desses corp os duas vezes d esaparecid os
de fato se criou um víncu lo p olítico, feito não de uma id entificação
com as vítim as ou até com sua cau sa, mas de uma d esid entificação em
relação ao sujeito "fran cês" que as havia massacrad o e subtraíd o a tod a
contagem . A negação de humanid ad e era assim constru ível na univer-
salid ad e local, singu lar, de um litígio p olítico, com o relação litigiosa
da cid ad ania francesa consigo m esm a. O sentim ento da inju stiça não
se faz víncu lo p olítico pela simples id entificação que se ap rop riaria da
d esap rop riação do objeto do d ano. É p reciso aind a a d esap rop riação
de id entid ad e que constitu i um su jeito p róp rio à cond u ção do litígio.
A p olítica é a arte das d ed uções torcid as e das id entid ad es cru zad as.
É a arte da constru ção local e singular dos casos de universalidade. Essa
constru ção é possível enqu anto a singularid ad e do d ano — a singula-
rid ad e da argu m entação e da m anifestação locais do d ireito — for
d istinguid a da p articu larização dos d ireitos atribu íd os às coletivid a-
des segundo sua id entid ad e. E ela o é tam bém enqu anto sua universa-
lidade estiver separad a da m u nd ialização da vítim a, separad a da rela-
ção nua da humanidade com a desumanidade. O reino da mundialidade

O Desentend im ento 101


não é o reino do universal, é o seu con trário. É de fato o d esapareci-
m ento dos locais próprios de sua argu m entação. H á uma p olícia mun-
d ial e ela pode às vezes p rop orcionar alguns bens. Mas não há p olíti-
ca mundial. O "m u n d o" pode expand ir-se. O universal da p olítica, por
sua vez, não se exp and e. Continu a sendo a universalidad e da constru -
ção singular dos litígios, a qual não tem nad a a esp erar, nem da es-
sência encontrad a de uma mund ialid ad e mais essencialm ente "m u n-
d ial", nem da simples id entificação do universal ao reino da lei. N ão
se p retend erá, à exem p lo dos "restau rad ores", que a p olítica tenha
"sim p lesm ente" de recuperar seu princípio p róp rio para recuperar sua
vitalid ad e. A p olítica, na sua especificid ad e, é rara. É sempre local e
ocasional. Seu eclipse atu al é bem real e não existe mais ciência da p o-
lítica cap az de d efinir seu fu tu ro que ética da p olítica que faria de sua
existência o ú nico objeto de uma vontad e. A m aneira com o uma po-
lítica nova p od eria qu ebrar o círcu lo da consensu alid ad e feliz e da
humanid ad e denegada não é hoje nem predizível nem d ecid ível. H á,
em contrap artid a, boas razões p ara pensar que ela não sairá nem da
inflação id entitária sobre as lógicas consensu ais da d ivisão das p arce-
las, nem da hipérbole que convoca o pensam ento a uma mund ialid ade
mais originária ou a uma exp eriência mais rad ical da d esumanid ad e
do hu m ano.

100 Jacqu es Rancière

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